Dossiê especial. Revista de Cultura Judaica

Transcrição

Dossiê especial. Revista de Cultura Judaica
Ano
AnoVIV- -número
número2019- -Junho
Fevereiro
/ Julho
/ Março
/ Agosto
/ Abril 2007
2007
- ISSN 1809-9793
Fábio Feldman
e os caminhos do
ambientalismo
Em Darfur a
história se repete
como tragédia
O que dizem os
paulistanos sobre a
Guerra do Líbano?
Vilém Flusser
Os Wolff: pioneiros
Um Shabat
Aracy Guimarães Rosa:
da história
inesperado no
uma vida contra
judaica no Brasil
Rio Grande do Norte
a injustiça
Dossiê especial
EDITORIAL
Permanência de Vilém Flusser
Conselho Editorial
Ernesto Strauss, Flavio Mendes Bitelman, Luis S. Krausz,
Michael Pinkuss, Raul Meyer, Yael Steiner
Publisher: Flavio Mendes Bitelman
Editor: Luis S. Krausz
Direção de arte: Iaara Rosenthal
Diretora de Relações Institucionais: Ana Feffer
Executivo do Centro da Cultura Judaica: Giselle Tidei
Administração: Adriane Oliveira
Circulação: BrandMember
Distribuição: Door to Door
Gráfica: Ipsis
Tiragem: 10.000 exemplares
Colaboraram nesta edição:
Alan Meyer (fotografia), Alfredo Schechtman, Anna Verônica Mautner,
Bertrand Costilhes (ilustração), Carla Ogawa, David R. Krausz, Dov Bigio,
Flávio Blasbalg, Graciela Karman (revisão), Heloísa Pait, Luis Dolhnikoff,
Manuel da Costa Pinto, Márcia Zoladz, Márcio Seligmann-Silva,
Marcos Alves (fotografia), Marleine Cohen, Nahum Sirotsky (Jerusalém),
Nancy Rozenchan, Olívia Lerner (ilustração), Samuel Feldberg,
Saul Kirschbaum, Susana Kampff Lages
Capa: Vilém Flusser, foto: divulgação/Gustavo Bernardo Krause
Impresso em papel Couché Reflex Matte 95 g/m2 (miolo) e 150 g/
m2 (capa) da Cia. Suzano, produzido com recursos renováveis. Cada
árvore utilizada foi plantada para este fim.
As matérias assinadas não necessariamente refletem a opinião da
Revista 18 ou do Centro da Cultura Judaica
Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel
Rua Oscar Freire, 2500 São Paulo CEP 05409-012
Telefone (11) 3065 4333
E-mail: [email protected]
Horário: de 2ª a 6ª feira, das 10h às 21h
Sábados, domingos e feriados, das 14h às 19h
Para receber nossa programação, envie um e-mail para
divugaçã[email protected]
2  Revista 18
HÁ UMA VELHA E TRÁGICA LENDA segundo a qual, para ser
reconhecido no Brasil, um intelectual, um artista, um cientista
ou qualquer pessoa que se proponha a desbravar os próprios
caminhos, precisa, primeiro, ser reconhecida na Europa ou
nos Estados Unidos.
Se a universalidade desta sabedoria proverbial é questionável, ela ao menos parece confirmar-se, uma vez mais, quando
olhamos para a trajetória do filósofo Vilém Flusser, que veio de
Praga para São Paulo, como refugiado, no início da 2ª Guerra
Mundial e aqui permaneceu até completar 51 anos de idade,
em 1972, quando se decidiu por um retorno à Europa.
Flusser é hoje reconhecido no universo acadêmico – especialmente o de língua alemã – como um dos mais lúcidos
teóricos da contemporaneidade, voltando-se sobre questões
como a língua, a comunicação e a fenomenologia dos objetos.
Como afirma Ricardo Mendes, um dos principais estudiosos
brasileiros de Flusser, e responsável por um site dedicado à vida
e à obra do filósofo, “a percepção sobre a obra de Vilém Flusser
é radicalmente distinta na Europa e no Brasil”.
Sua obra completa em alemão vem sendo publicada desde
1990 e seu pensamento é assunto de colóquios anuais, que são
realizados com regularidade, na Europa, desde o começo dos
anos 90. Pouco depois da morte de Flusser, em 1991, sua esposa,
Edith e seus colaboradores mais próximos se empenharam
na construção de um arquivo, que se tornou uma instituição
alemã, intitulada Vilém Flusser Archive, primeiro instalada em
Colônia e, desde janeiro de 2007, em Berlim.
Entre nós, sua obra só aos poucos vai conquistando o espaço
que merece. O recente lançamento de sua autobiografia filosófica Bodenlos, que foi escrita em português mas já existia
em versão alemã há mais de quinze anos, é mais um passo
na divulgação de uma obra que teve na vivência brasileira do
autor, bem como na experiência do exílio, uma de suas mais
importantes influências.
Ao mesmo tempo, a realização de um colóquio na cidade
alemã de Germersheim, no ano passado, que contou com a
participação de vários estudiosos brasileiros, mostra a permanência e a relevância da obra de Flusser entre nós. Convidamos,
por isto, alguns conhecedores e estudiosos do seu pensamento
para comentarem e apresentarem, no dossiê especial desta
20ª edição da Revista 18, uma trajetória intelectual marcada
pelo nomadismo, pela criatividade e pela percepção aguda dos
paradoxos de nosso tempo. Esperamos, assim, poder divulgar
o pensamento criativo de alguém que, nas palavras de Márcio
Seligmann-Silva, “devorou” a cultura brasileira.
Luis S. Krausz
SUMÁRIO
38 Um diálogo cosmopolita com
ENTREVISTA
Ambientalismo e política,
segundo FÁBIO FELDMAN
5
HAROLDO DE CAMPOS
41 BODENLOS,
a autobiografia de um estrangeiro
PERISCÓPIO
LETRAS E ARTES
10 AL-QAEDA chega a Gaza, a sepultura de um herói,
população israelense
Os MUNDOS IMAGINÁRIOS
de Alice Brill
44
OPINIÃO
12 Da arte de ser judeu, por
ANNA VERÔNICA MAUTNER
48 O abandono da natureza, em novo romance
de AMOS OZ
51 CONTOS DE BIALIK,
em nova tradução do hebraico
O REPÓRTER
14 A marcha de um GENOCÍDIO IGNORADO,
54 A política da inconsciência no pensamento de
20 Quarenta anos depois, os reflexos da
58 SERIEDADE JUDAICA,
em Darfur
GUERRA DOS SEIS DIAS
24 O que pensam os paulistanos sobre a
GUERRA DO LÍBANO?
HANNAH ARENDT
em quadrinhos
61 Clássicos russos para o público infantil,
por TATIANA BELINKY
28 A nova música das FESTAS JUDAICAS
CULINÁRIA
62 O fio da memória, numa
NO CENTRO
Arte-educação e COEXISTÊNCIA
30
FORNADA DE BISCOITOS
HUMOR
63 Surdo, EU???
DOSSIÊ
INTERNET
34 Vilém Flusser viu o exílio como
FORMA DE REDENÇÃO
65 O bom e o judaico, na seleção de DOV BIGIO
Revista 18  3
CARTAS
TENHO LIDO A REVISTA 18 de ponta a
ponta. Há artigos de que gostei tanto que
discuto com colegas, docentes univesitários.
Um dos artigos de que gostei imensamente,
pois até me indentifiquei foi “Uma biblioteca,
muitos donos”. Outro de que gostei muito foi
sobre o escritor Scholem Aleichem. Mas é
difícil falar de um ou outro, pois todos estão
muito interessantes. Parabéns!
Anita Simis, Departamento de Sociologia,
UNESP - Araraquara, SP
FOI COM GRANDE SATISFAÇÃO que
encontrei no número 19 da Revista 18 a
brilhante matéria “Caçadores de passos esquecidos”, da jornalista Cláudia Altschüller.
Cláudia soube sintetizar, de maneira clara
e objetiva, o valioso trabalho desenvolvido
pelos Wolff e em especial a vida de Frieda
sem Egon. Quero também registrar, em
nome do Memorial Judaico de Vassouras,
o crédito que nos foi concedido.
Prof. Dr. Luiz Benyosef, Presidente do Memorial
Judaico de Vassouras - Rio de Janeiro, RJ
GOSTARIA DE RESSALTAR a qualidade e a
importância do conteúdo geral da Revista 18.
Mônica de Souza Lopes, por e-mail
ATRAVÉS DA PRESENTE, apresento o meu
agradecimento pela gentileza do envio da
Revista 18 e, nesta oportunidade, cumprimento-os pelo conteúdo e pela qualidade
gráfica da publicação. Aproveito o ensejo
para renovar a expressão de agradecimento
e consideração e apreço.
Ia´aqob Ben Iehochafat, por e-mail
RECEBI A REVISTA 18 nº 19 e fiquei admirado com as mudanças, todas positivas.
Ainda não terminei de lê-la. Ela deu um salto
para melhor e eu não saberia dizer por quê,
pois ainda não a confrontei com as outras. Os
4  Revista 18
artigos continuam formando e informando,
mas tornaram-se mais leves no estilo.
João Valença - Salvador, BA
A NOTA PUBLICADA na Revista 18 nº19,
na seção de cartas, não está correta. A informação correta segue abaixo: o fotógrafo
Hans Gunter Flieg foi o primeiro a fazer
calendários com motivos brasileiros. Foi
ele também o primeiro a vestir o Papai Noel
com roupas características ao nosso clima.
Thea Joffe - São Paulo, SP
COM RELAÇÃO AO ARTIGO de Luis Dolhnikoff, “Anti-sionismo, o anti-semitismo do
século 21”, publicado na Revista 18 nº 18,
seção Opinião, gostaria de observar que, de
acordo com demógrafos e sociólogos, Israel vai
enfrentar, nos próximos anos, uma “ameaça
demográfica”: a população árabe dentro das
fronteiras de 1967 fará com que, dentro de
quinze ou vinte anos, os árabes se tornem
a maioria da população num Estado que
pretendia ser judeu. Se levarmos em conta
os dados da migração negativa que está ocorrendo em Israel agora, a proporção de judeus
na Terra Santa tende a diminuir ainda mais.
De outro lado, a maioria dos judeus do
mundo julga melhor ficar onde está do que
ir para Israel. Ante esta situação, existem
quatro alternativas:
1. Se Israel mantiver o sistema de
democracia parlamentar, que Dolhnikoff
menciona no seu artigo, será obrigado a
estender o direito de voto à população
árabe dos territórios ocupados. Nesse caso,
os judeus se verão em minoria, e se diluirá
a visão do fundador do sionismo, Theodor
Herzl, de um Estado Judeu.
2. Se Israel negar o direito de voto aos
árabes nos territórios, isso constituirá um apartheid, que não ajudaria em nada o sionismo,
nem diminuiria o ódio ao sionismo, que
Dolhnikoff afirma estar atingindo, em ondas
crescentes, desde a esquerda ocidental até o
fundamentalismo islâmico, e ameaça tomar o
lugar do anti-semitismo no século 21.
3. Se Israel promover a “transferência”
forçada dos árabes para fora das fronteiras
israelenses, isso vai causar a expansão ainda
maior dos campos de refugiados palestinos
fora do Estado judeu, o que em nada vai
contribuir para melhorar sua imagem.
4. A quarta opção, que consta de um
manifesto publicado por doze artistas plásticos poucos meses depois do término da
Guerra dos Seis Dias, em setembro de 1967,
é a tese do fim da ocupação. Neste manifesto lia-se: “Nosso direito de nos defender
não nos dá o direito de esmagar outros. A
ocupação leva a um regime estrangeiro, o
regime estrangeiro leva à revolta, a revolta
leva ao esmagamento do povo revoltado,
o esmagamento leva ao terror, que leva ao
contraterror. As vítimas do terror são em
geral pessoas inocentes. A manutenção dos
territórios ocupados nos torna um povo de
assassinos a serem assassinados. Vamos
deixar os territórios imediatamente!”
Na euforia que tomou conta de Israel com
a vitória da guerra de 1967, este anúncio foi
ignorado. Hoje, porém, um em cada três lares
israelenses tem emoldurado este manifesto,
como um ícone. Israel já teve dias gloriosos,
em que o mundo inteiro o estava abraçando
– em 1948 e em 1967. Desde a ocupação, a
roda da história girou. David Grossman,
um dos mais famosos escritores israelenses,
que perdeu um filho no último dia da nova
guerra no Líbano, disse que há um vazio na
liderança e citou o profeta Neemias: “Não
existe mais rei em Israel e os destruidores do
país estão saindo dentre vocês mesmos”.
Hannah Arendt afirmou: “Os sionistas
se fecham em si mesmos, mergulhados
permanentemente na sua defesa física, o que
enevoa todas as suas aspirações e conquistas;
sua cultura deixará de ser seu legado, eles
abandonarão o seu progresso social, o pensamento político se reduzirá até a estratégia
militar, o desenvolvimento econômico do
Estado judeu será dirigido somente às necessidades de guerra, e mesmo que vençam na
guerra, no final das contas, as conquistas
sionistas estarão feridas e defeituosas, sem
reparo. Seja qual for o número de imigrantes
que Israel absorver, quanto mais o país se
expandir e alargar as suas fronteiras, mais
permanecerá uma nação pequena, isolada
e rodeada de um número incontavelmente
maior de pessoas hostis”.Parece que a visão
dessa grande filósofa está se realizando.
Gershon Knispel - São Paulo, SP
ENTREVISTA
Enquanto ainda
há tempo...
Fábio Feldmann acredita que
ainda não seja tarde demais
para superar as mudanças
climáticas geradas pelo efeito
estufa, embora as veja como
inevitáveis. E afirma haver
muita inércia por parte dos
governos, enquanto o setor
empresarial e a sociedade civil
são os novos grandes vetores
da discussão sobre o meio
ambiente. Por Marleine Cohen
Pedro Bicudo
A
mbientalismo, no Brasil, é quase sinônimo de Fábio Feldmann. Não há
bandeira, legislação ou tratativa, no
país, que não tenha despertado seu interesse: da
política nacional de recursos hídricos à implantação de unidades de conservação; da poluição
urbana à proteção da Mata Atlântica, foram
mais de duas décadas de atuação política e gestão
empresarial a serviço da causa ambiental.
Militante desde os tempos em que ser verde
era reivindicar a redemocratização do Brasil
e repelir a energia nuclear e a fabricação da
bomba atômica, Fábio Feldmann foi o primeiro
deputado federal eleito no país graças a uma
plataforma ambiental.
Secretário do Meio Ambiente do Estado
de São Paulo (1995-1998), atraiu a ira dos
insensíveis à causa ao instituir o rodízio na
Capital – em vigor até os dias de hoje. E,
por ser mais sério que polêmico, deu a volta
por cima, conquistando uma cadeira como
parlamentar por três mandatos consecutivos
(1986-1998).
Feldman: “Uma conferência de chefes de Estado para discutir a questão do clima
é urgente, e pessoalmente eu defendo que o Brasil passe a sediar este encontro”.
Revista 18  5
ENTREVISTA
Sua vida pública também inclui inserções na Carta Magna e representações
oficiais: um dos autores do capítulo de Meio
Ambiente da Constituição Federal, foi relator
da Política Nacional de Recursos Hídricos e
da Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Diversidade Biológica.
Nos últimos anos, vem se dedicando à
temática das mudanças climáticas, integrando a delegação brasileira nas Conferências das Partes da Convenção Quadro das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas,
entre as quais a de Kyoto, que deu origem ao
protocolo homônimo.
Em 2000, ajudou a criar o Fórum Brasileiro
de Mudanças Climáticas, do qual foi secretário
executivo até 2004. Um ano depois, empenhouse em constituir o Fórum Paulista de Mudanças
Climáticas Globais e Biodiversidade, à frente do
qual ainda se mantém.
Fundador da sos Mata Atlântica –
matriarca das ongs nacionais –, também deu
vida à Oikos, à Funatura e à Biodiversitas e se
tornou conselheiro da The Nature Conservancy
Brasil, da Akatu e do Greenpeace Internacional,
entre outras.
Gozando de uma sólida reputação internacional em defesa do meio ambiente, acumula, em
seu extenso currículo, prêmios e honrarias como
o prêmio Sarney de Ecologia (1989), o prêmio
Global 500 das Nações Unidas (1990), o prêmio
Trust - International Award For Conservation
Achievement e o pnbe de Cidadania (2002).
Em 1989, foi apontado pela revista Times
como um dos mais importantes ambientalistas
do mundo.
Consultor, administrador de empresas e
advogado, acredita que esgotou “a satisfação no
exercício da vida pública” e quer “empreender
em outros campos”.
“É hora de abrir espaço para pessoas mais
jovens”, anuncia, avaliando que o ambientalismo não morreu, mas “envelheceu em função
de seu próprio sucesso”, e que “o ambientalista precisa se reinventar para atender às
demandas da sociedade na complexidade em
que elas existem”.
Atualmente, Feldman dirige seu próprio
escritório de consultoria em questões relacionadas à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável.
Nesta entrevista à Revista 18, ele fala
do fantasma das mudanças climáticas que
atemoriza o mundo e de suas perspectivas de
carreira.
6  Revista 18
REVISTA 18 Se fosse dar as boasvindas a um recém-nascido neste
exato momento, diria que os filhos
dele poderão continuar vivendo neste
planeta? Em outras palavras: o que
esperar da mudança de clima na Terra?
FÁBIO FELDMANN A mudança de
clima é irreversível, é algo com que deveremos conviver daqui para a frente. A humanidade vai passar por maus momentos. As
chuvas, as secas, a elevação do nível do mar
ocorrerão com muita intensidade e este
será um mundo muito diferente daquele
em que vivemos. Isso significa que nossos
filhos terão de desenvolver uma capacidade
de adaptação que a humanidade nunca
enfrentou antes. Mas eu sou otimista; sou
daqueles que acreditam que ainda não
ultrapassamos o sinal vermelho. Estamos
entre o amarelo e o vermelho; há tempo
de reverter.
18 Os eua se recusam a participar
do grande esforço internacional para
reverter a crise ambiental no planeta.
Na sua opinião, a não-adesão dos americanos ao Protocolo de Kyoto esvazia este
mutirão para amenizar as mudanças
climáticas que se anunciam?
FF Penso estar havendo uma clara
mudança na postura norte-americana em
relação ao problema. A posição de George
Bush é insustentável a longo prazo. Há sinais
perceptíveis de uma rápida mudança por parte
dos eua. A Califórnia, que é um estado republicano, governada por Arnold Schwarzenegger,
tem um programa ambiental muito avançado
em relação ao aquecimento global. Por outro
lado, a Suprema Corte dos eua anunciou
recentemente que a Environmental Protection Agency (epa), o poderoso Ibama norteamericano, tem o dever de controlar o efeito
estufa. Por isso, embora persistam dúvidas
sobre se o Protocolo de Kyoto se manterá
depois de 2012, quando deve ser revisto,
acredito que até lá os eua assumirão outro
papel – e deverá ser atualizado. Não creio
que vão aderir ao Protocolo, mas penso que
farão um grande esforço doméstico para
lidar com o problema.
18 Em termos bem práticos, o que a
humanidade pode esperar com a entrada
em vigor do Protocolo de Kyoto?
FF O Protocolo de Kyoto representa um
espaço político um pouco reduzido. Com a
confirmação da comunidade científica de
quão grave é a situação, acho que devemos
pensar em uma conferência de chefes de
Estado para discutir questões de clima,
como na Rio-92. Pessoalmente, defendo que
o Brasil passe a sediar este encontro.
18 Recentemente, a ministra Marina
Silva, do Meio Ambiente, declarou
que os países ricos devem assumir sua
cota de responsabilidade em relação às
mudanças climáticas e que os países em
desenvolvimento não podem ser bodes
expiatórios. Está aí um esboço de como
o mundo vai lidar com a questão: um
empurra-empurra de culpas?
FF De fato, eu critico muito esta posição:
ela leva a um resultado de soma zero. As
mudanças em curso no planeta representam um problema tão grave que todos
os países deveriam se envolver. No Brasil,
70 por cento dos gases emitidos se devem
ao desmatamento da Amazônia. O tema do
clima exige uma visão de mundo diferente,
e não marcada pela visão Norte-Sul. Esta
posição, a do Itamaraty nos últimos 20 anos,
pertence ao século 19, e não ao 21.
18 A primeira vez que se falou de
Kyoto foi em 1992, 15 anos atrás. Não
acha que está havendo descompasso
entre a gravidade da crise ambiental, de
um lado, e a adoção de medidas, de outro?
Isto é, as negociações não deveriam ser
mais céleres e a ação, mais efetiva diante
da tragédia?
FF Acho que 1992 foi importante porque,
pela primeira vez na história, todos os
conceitos foram colocados. Agora, há outro
grande desafio: implementá-los. Não podemos
ser ingênuos a ponto de achar que não haverá
resistências muito fortes. O mundo mudou, a
gente tem de levar em conta os avanços que
estão em curso fora da esfera governamental.
Para quem acompanha a questão ambiental,
ter, por exemplo, uma Bolsa de Valores que
associa seu nome à questão ambiental, como
a de São Paulo, é um grande avanço. Grosso
modo, está havendo, a meu ver, muita inércia
de um lado – e os governos são os maiores
devedores –, enquanto o setor empresarial
e a sociedade civil como um todo são os
novos grandes vetores da discussão sobre o
meio ambiente.
18 Pelo Protocolo de Kyoto, as nações
ricas que ratificaram o documento devem
reduzir, até 2012, a emissão de gases de
efeito estufa em 5 por cento abaixo dos
ENTREVISTA
níveis de 1990. Já os países em desenvolvimento não têm metas obrigatórias a
atingir. Isso não exime o Brasil de rigor
no trato da questão do desmatamento
na Amazônia?
FF Acho que a posição do Brasil é
insustentável no que tange à questão da
Amazônia. Temos tido, nos últimos vinte
anos, um patamar de desmatamento
suicida. A Amazônia tende a se transformar num cerrado. Isso foi suficientemente veiculado pela mídia e acabou
ferindo negativamente a imagem do país.
Seria preciso anunciar uma moratória em
relação à expansão da fronteira agrícola
– isto é, que se defina uma linha a partir
da qual não se desmata mais. Aquém dela,
que seja feito um esforço para melhorar a
produção, para que o Brasil possa exportar
suas commodities; e, além dela, que não se
mexa. É o que chamamos de uso sustentado da terra, conceito que tem reunido
adeptos fora da esfera governamental: a
pressão dos ativistas do Greenpeace sobre
o McDonald’s, por exemplo, é no sentido
de que os vendedores de soja brasileira se
certifiquem ambientalmente. Quem não
incorporar a sustentabilidade no mercado
de agrobusiness não avança. A longo prazo,
acredito que a tônica será esta.
18 Diante da tragédia que se anuncia
para a Amazônia, com as mudanças
climáticas em curso, acha que a internacionalização não seria uma saída?
FF Não acredito na internacionalização
como hipótese factível. O Brasil tem lidado
com a existência da Amazônia como um
passivo, mas este poderia ser um ativo para
o país, pois lhe conferiria uma posição privilegiada diante de seus parceiros internacionais. No entanto, para isso, o governo teria
de firmar um compromisso com o mundo
e com as futuras gerações.
18 O Brasil está entre os cinco maiores
emissores de gases do mundo. Que
soluções apontaria para diminuir a
responsabilidade brasileira na geração
do efeito estufa?
FF De acordo com o Comunicado
Nacional Inicial do Brasil à Convenção
Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
do Clima, edição 2004, publicado pelo
Ministério da Ciência e Tecnologia, 75 por
cento do total das emissões brasileiras de gás
carbônico são oriundas do Setor Mudança
no Uso da Terra e Florestas. Deste total, 96
por cento são atribuídos à conversão de
florestas em atividades de agricultura e
pecuária, por desmatamentos e queimadas,
o que torna nosso país o quarto maior
emissor de gases efeito estufa no mundo.
O que temos de fazer, enquanto sociedade
civil, é exercer uma enorme pressão sobre
o governo e os responsáveis, para reduzir o
desmatamento. Esta é a questão-chave. O
Brasil tem uma matriz energética baseada
na hidroeletricidade. Tem o que chamo de
uma zona de conforto ainda grande. Agora,
o brasileiro, como todo cidadão do planeta,
A mudança de clima é
irreversível, é algo com
que deveremos conviver
daqui para a frente. A
humanidade vai passar
por maus momentos.
As chuvas, as secas,
a elevação do nível
do mar ocorrerão com
muita intensidade
terá de fazer uma reflexão pessoal e coletiva
para incorporar o impacto ambiental que se
anuncia. É preciso diminuir esse impacto,
como consumidor, como produtor, como
cidadão, para legar um mundo minimamente possível às próximas gerações.
18 Qual sua opinião sobre o surgimento
de uma nova consciência ambiental no
país? E no mundo? Acha que o homem
comum está preocupado com o futuro do
planeta mais do que há dez, 15 anos atrás?
Aumento da temperatura média e desaparecimento de espécies não são questões
de cúpula ainda?
FF A sociedade brasileira incorporou
muito a questão ambiental nos últimos
anos. Tanto que uma pesquisa da bbc de
Londres aponta o brasileiro como o povo
mais preocupado com a questão ambiental
atual*. Mas o bom senso nos faz crer que a
miséria e a violência estão tão presentes e
são tão prementes que é só com relação a
elas que ele externa preocupação. É como
se estas questões estivessem encobrindo seu
interesse pelo futuro do planeta. De qualquer forma, posso assegurar que a geração
dos que estão na faixa dos trinta anos tem
uma consciência ambiental radicalmente
diferente dos que têm cinqüenta anos.
18 Ao longo de sua trajetória pessoal de
envolvimento com as questões ambientais brasileiras, quais foram, a seu ver,
os maiores avanços e os entraves mais
graves do Brasil?
FF Penso que o grande avanço no Brasil
é de ordem legal; nossas leis são sérias e
abrangentes; nossa Constituição é referência no mundo todo. Quanto aos entraves,
consistem em conseguir inserir na agenda
dos tomadores de decisões temas que sejam
relevantes daqui dez, 15 anos.
18 O que tem a dizer sobre a revigoração do Pró-Álcool?
FF O Pró-Álcool é uma boa iniciativa,
mas faço uma advertência: não pode seguir
o mesmo roteiro cinematográfico da soja
brasileira. Isto é, os produtores de canade-açúcar não devem poder expandir suas
lavouras a perder de vista, descontroladamente. Temos de aproveitar este know
how, esta alternativa, mas com os cuidados
necessários para que a cana não seja mais
um vetor de destruição do Pantanal, da
Mata Atlântica e de outras áreas verdes.
18 O que pensa da atuação do Partido
Verde brasileiro?
FF Quando me tornei candidato, em
1986, não existia a opção pelo pv. Saí do
psdb porque os temas ambientais acabavam
sendo moeda de troca nas grandes negociações. Hoje, acho que deve haver um partido
político cujo principal objetivo seja levantar
e defender determinadas bandeiras, e não
se colocar necessariamente como alternativa de poder para a sociedade. Um partido
com boa representação na Câmara, mais do
que no Senado, pode fazer a diferença. O
drama é que todos os partidos brasileiros se
transformaram em máquinas eleitorais. O
Revista 18  7
partido só aparece no momento da eleição,
inclusive o pv – e ele ainda não disse a que
veio no Brasil. É muito eleitoral e pouco
político. Isto é, não está presente no dia-adia dos eleitores. Por isso, penso que seria
promissor se propusesse uma radical
mudança de atitude perante a sociedade,
tomando como inspiração o modelo que se
vê no Exterior. Eu, Gabeira e outros defendemos uma mudança radical de direcionamento; queremos que ele tenha uma atuação
temática acentuada em torno do aquecimento global e contra o desmatamento da
Amazônia, entre outras bandeiras.
18 Qual sua opinião sobre a forma
como o governo aborda a questão das
reservas nacionais de água?
FF A questão da água é um dos três temas
mais importantes no mundo desde 1992. O
Brasil tem de ter uma estratégia mais presente
e definida na questão dos seus recursos
hídricos: isso é estratégico e é inclusive o que
vai poder definir a competitividade nacional
nos próximos tempos. O Brasil deveria cuidar
de não matar a galinha dos ovos de ouro.
18 De que maneira sua formação
humana, como judeu, o influenciou a
se engajar na defesa do meio ambiente?
Houve ou há pontos de convergência
entre as duas coisas ou são características
que caminham em paralelo?
FF Estas são duas questões interdependentes. Toda minha vivência judaica
liberal sempre me estimulou a ser um
cidadão engajado.
18 Como pensa sua atuação como
ecologista para os próximos 5, dez anos?
FF Eu tomei uma decisão na vida: atuar
no campo da sociedade civil em defesa
do meio ambiente. Este é o meu esforço
pessoal. Acredito que tenho pela frente
grandes oportunidades pessoais na questão
do aquecimento global. Pessoalmente, me
considero muito realizado por estar aqui.
O aquecimento é um ponto de inflexão no
sentido de se reinventar: estou fazendo esta
transição há bastante tempo.
Marleine Cohen é jornalista
*
Pesquisa realizada entre 14.220 pessoas de 21 países, em
abril de 2007, pelo canal de tv bbc World em parceria
com o Instituto Synovate, mostrou que 87 por cento
dos brasileiros ouvidos estão preocupadas com as
mudanças climáticas no planeta.
8  Revista 18
Fotos: Luciana Napchan
ENTREVISTA
SEÇÃO
Em paz com a natureza
Novo livro retrata paisagens intocadas da América
T
ratar da natureza latino-americana num livro é um desafio e tanto.
Enquanto a retórica do progresso ou, mais recentemente, a obsessão pelo “crescimento econômico”, domina o discurso e a praxis
política em todas as regiões do continente, são muito poucos os que
se preocupam em ver o que se encontra por trás dos índices econômicos, alardeados obsessivamente pelos condutores dos destinos
dos diferentes países que compõem o continente.
De Norte a Sul, a marcha da devastação segue incólume, enquanto
políticos de todos os matizes insistem em sua devoção incansável
ao PIB e outras estatísticas macroeconômicas. Nada parece conter o
fascínio das quimeras que se escondem atrás dos números, e assim,
cada vez mais, o nível quantitativo de produção e de consumo tornase o único parâmetro a ser considerado, tanto do ponto de vista da
condução da política quanto da vida privada.
Já a natureza, assim como os reais valores humanos, não se deixam
quantificar. E os únicos índices que lhe dizem respeito são a cada tanto
mais trágicos: quantificam a marcha de sua destruição. A avassaladora
riqueza natural do continente tem sido sistematicamente negligenciada
e espoliada desde a chegada do homem branco à América. E os resultados estão aí: devastações maciças, cujas conseqüências desastrosas
apenas começam a se fazer sentir.
Embora o Brasil viva voltado para o Oceano, sempre olhando – e
quase sempre invejando – o que se passa na Europa ou nos Estados
Unidos, às nossas costas está o mais rico continente do mundo em
termos de diversidade biológica e geológica. Um continente cuja
verdadeira riqueza ainda espera por ser descoberta.
Felizmente a sociedade civil tem se envolvido, com intensidade crescente, com a causa da preservação da natureza latinoamericana, e dentre as muitas iniciativas realizadas que têm como
objetivo a conscientização da população, realizadas nos últimos
anos, merece atenção o livro que a fotógrafa Luciana Napchan e
o ambientalista Walter Behr lançarão este mês, que trata de oito
parques nacionais do continente. Estes territórios preservados, ilhas
de natureza intacta, ou tratada sempre com o devido respeito, são
exemplos de como pode o homem viver em harmonia e em paz com
seu ambiente original. E são a prova de que a maior de todas as
riquezas do homem está aí, na criação.
Mais do que isto, o livro propõe-se a lembrar ao homem moderno,
isolado de suas raízes e de sua origem, e mergulhado no frenesi das
grandes cidades, que a natureza tem muito a lhe ensinar, e que a
artificialidade das construções humanas, que não se sustentam por
si mesmas, é muitas vezes uma ilusão autodestrutiva.
Ao selecionarem oito parques nacionais da América Latina,
Luciana e Walter quiseram enfatizar que, ao contrário do que ocorre
com as nações, criadas pela vontade do homem, a natureza não
tem fronteiras nem descontinuidades. Assim, ao longo de cinco
anos, eles pacientemente percorreram o continente em busca de
regiões preservadas, e em busca de imagens que pudessem se
tornar lembranças de que a natureza está ameaçada e necessita de
nossa urgente atenção.
No alto, a perereca-de-olhos-vermelhos, animal extremamente
sensível às mudanças climáticas e cuja presença atesta a
integridade da natureza no Parque Nacional Vulcão Areal, na
Costa Rica. Ao lado, uma cachoeira no Parque Nacional da
Chapada dos Veadeiros: viagem de Luciana e Behr buscou
mostrar a continuidade da natureza do continente americano
“Nesse curto espaço de tempo chamado modernidade”, escrevem os autores na página inicial deste livro, “apostamos que a
Terra deveria ser mais humana que qualquer outra coisa. As leis do
‘progresso’ diziam que dominar era preciso; deixar viver, apenas
secundário. Ou, talvez, supérfluo. Agora, boquiabertos, descobrimos
o quanto nos esvazia viver sem essa biodiversidade perdida.”
Luciana e Walter viajaram por parques no Panamá, Costa Rica,
Equador, Peru, Chile, Brasil e Argentina, e realizaram um trabalho
que fala de paisagens, de árvores e de bichos, mas que também
toca nossos afetos por meio de uma beleza de tirar o fôlego. Para
capturar estas imagens tão comoventes, a fotógrafa passou a ver seu
trabalho como uma espécie de oferenda: “A natureza é tão perfeita
que não necessita de interferências. No momento em que a estou
fotografando, cria-se uma relação como de devoção. Eu me prostro
diante da natureza: ela é minha mestra e estou lá para aprender.
Assim, sempre ao adentrar uma floresta, eu silenciosamente peço
permissão. Parques nacionais e outras áreas protegidas, últimos
recônditos preservados do planeta, são redutos sagrados. Cada
milímetro de uma floresta milenar é sagrado. Ao fotografar esta
natureza sagrada, desejo aproximá-la das pessoas.”
Cativar o olhar do homem, deixar que estes reflexos de uma
natureza majestosa atinjam nossas emoções – esta é a contribuição
de Luciana e Walter para um despertar da consciência de que uma
mudança de rumo radical se impõe em nossos dias.
Para saber mais sobre o livro: [email protected]
Revista 18  9
PERISCÓPIO
Reprodução
Herói sepultado
Liviu Librescu, o professor
universitário de 76 anos que
foi morto quando tentava
proteger seus alunos no
recente massacre na Universidade Técnica da Virgínia, foi
sepultado em Israel no último
dia 20 de abril. Librescu, que
deixou a Romênia em 1978,
viveu em Israel por muitos
anos e mais tarde mudou-se
para os Estados Unidos.
Novas estatísticas
Nos últimos 12 meses, a população de Israel aumentou em 1,8%,
chegando a 7.150 milhões de habitantes. Dos 121 mil novos habitantes
do país, 18.400 são imigrantes. Vinte e quatro mil israelenses deixaram
o país por mais de 12 meses, e 10 mil retornaram depois de ausências
prolongadas. Aproximadamente 80% da população do país é composta
de judeus, sendo os restantes 20% árabes e drusos. Há também 310 mil
imigrantes da ex-União Soviética, cujo status judaico é indeterminado.
Holocausto esquecido?
Algumas escolas britânicas estão evitando mencionar o
Holocausto em suas aulas de História para evitar ofender os
alunos muçulmanos, segundo notícia divulgada pelo jornal
Daily Mail. Segundo o tablóide, outro tema que não vem
sendo mencionado, para evitar controvérsias, são as Cruzadas.
Al-Qaeda chega à Palestina
De Israel, Nahum Sirotsky observa a escalada da violência em Gaza, onde facções rivais se enfrentam
num quotidiano sangrento, e servem como laboratório de movimentos fundamentalistas islâmicos
D
eve ser muito difícil para o leitor
brasileiro entender por que há tantas
matanças entre irmãos na atual etapa da
história do islã. No entanto, devemos
lembrar que o cristianismo viveu e
sobreviveu a uma longa fase de guerras
entre o catolicismo e as crenças derivadas
do protestantismo. A luta entre irmãos
complica-se cada vez mais na Palestina.
Apenas no domingo, 13 de maio, Dia das
Mães, os choques resultaram em dezenas
de vítimas na Faixa de Gaza. A tropa do
Fatah, o grupo herdeiro da Organização
de Libertação da Palestina, olp, confrontase com o Hamas, Movimento Islâmico de
Resistência, vencedor das últimas eleições
na região autônoma palestina, fundamentalista, e que quer aplicar as leis religiosas à
vida social. Os palestinos são muçulmanos
em sua absoluta maioria, mas o Fatah não
quer um futuro Estado palestino governado por fundamentalistas religiosos.
A briga começou em 2006 e chegou
perto da guerra civil, só evitada porque
ambos os lados concordaram em criar um
Governo de União Nacional. Criaram, só
que ainda não funciona. As duas facções
não se entendem no que diz respeito à
divisão dos poderes de governar.
Gaza é uma cidade sem lei. Dá para
ver nos noticiários. O Fatah, partido do
presidente palestino, mandou sua tropa
10  Revista 18
policial tentar estabelecer a ordem. O
resultado foram as matanças nessa região
em que não há um cidadão sem armas. A
tropa palestina também tem como missão
impedir que continuem os ataques com
mísseis Qassam, possivelmente lançados
pelo Hamas ou afins, contra Israel, cujo
território é colado ao de Gaza.
A população das cidades israelenses
alvejadas por esses mísseis – inclusive a
cidade onde vive a família do Ministro
da Defesa israelense – exige medidas
radicais. No caso, uma invasão maciça de
Gaza por tropas israelenses, que custaria
muitas vidas de ambos os lados, além dos
reflexos políticos negativos sobre Israel. O
governo evita tomar tal decisão.
Existem versões diferentes sobre
quem arma o Hamas. Uns dizem que
é o Irã, como no caso do Hezbolá xiita.
Porém o Hamas é dirigido por uma
seita oposta à que governa o Irã. Outros
dizem que é a Al-Qaeda, conforme foi
noticiado pelo diário árabe londrino Al
Quds al Arabi, que publicou uma entrevista de um parlamentar palestino do
Hamas, dizendo que o movimento está
infiltrado em grupos resistentes, inclusive aquele que raptou um correspondente da bbc. O objetivo da Al-Qaeda é a
criação de um Oriente Médio governado
por religiosos muçulmanos.
É sempre irresponsável opinar sobre o
futuro. Mas parece óbvio que existem probabilidades de mais confusões entre o Fatah e o
Hamas. E de se chegar a um confronto maior
entre israelenses e o Hamas que, segundo
consta, vem recebendo os mais modernos
armamentos e tem estudado as táticas do
Hezbolá para uma eventual guerra contra
Israel. Os movimentos islâmicos têm em
comum, em seus programas, o objetivo de
lutarem até acabarem com o Estado judeu,
o que, diga-se, não significa posições imutáveis.Antes de firmarem acordos de mútuo
reconhecimento, o Fatah chegou a realizar
2.432 ataques guerrilheiros contra Israel
num só ano.
Uma antiga tradição diz que o centro
do mundo fica em Jerusalém. Num certo
sentido é uma verdade. Daí o Ocidente
tanto perseguir o projeto de uma paz
para a região por meio da concretização
da teoria dos dois Estados, um judeu e
um árabe-palestino, lado a lado. A idéia
existe desde 1947, quando a antiga Palestina Britânica foi dividida, com tais propósitos, pelas Nações Unidas. Como diz o
povo, esperança é a ultima que morre.
Nahum Sirotsky, jornalista, é correspondente
da RBS e do IG em Israel. Ex-diretor de Visão,
Manchete, Diário da Noite do Rio, foi o criador
da revista Senhor
Por que será?
A psicanalista Anna Verônica Mautner vê na história do judaísmo uma série de
respostas para os desafios que a modernidade globalizada impõe ao homem e percebe o
nomadismo judaico como um paradigma para a crise contemporânea de identidade
P
or incrível que pareça, ser judeu
entrou na moda; não tenho a
respeito disso nenhuma dúvida,
pelo contrário: o noticiário, as fofocas
vivem confirmando. Até meados do
século passado, quando um judeu se
casava com alguém “de fora”, como se
diz, era ele que ia para o outro clã, não
era o outro que vinha para a comunidade. Claro que, como sempre, havia
honrosas exceções. Isso era tão verdadeiro que as famílias às quais acontecia
“esta desgraça” faziam shivah (cerimônia
de luto) direitinho pela alma perdida.
Nem se precisava ser muito ortodoxo
para tanto. A tradição judaica sempre
propôs que, diante de um casamento
misto, fosse o judeu o excluído. Apesar
de continuar biologicamente vivo,
não contaria mais no “entre nós”. De
repente, nos últimos tempos, adensase a discussão sobre qual a conversão
aceitável e qual não, e para quem o é.
Será que basta ser filho de mãe judia?
Será que conversão realizada para casar
vale? A coisa se complica porque não
dispomos de uma tradição religiosa
para proselitismo, isto é, inclusão.
Estamos despreparados para a moda de
conversão ao judaísmo. Além da modernidade, da aproximação dos judeus
orientais, ashkenazim e sefaradim, os três
grandes grupos de judeus, da facilidade
que os novos meios de transporte trouxeram para encontros e reencontros,
temos, ainda, o desencontro entre as
inúmeras seitas de ortodoxia, que apresentam infinitas formas de interpretar o
Talmude. No meio desta confusão, felizmente todos no fim acabam tendo razão.
Existem dogmas discutíveis e outros
indiscutivelmente sagrados. O shabat, a
12  Revista 18
kashrut, o bar mitzvá, a circuncisão, por
exemplo, estão entre os sagrados. Mas
não é sobre isso que eu quero falar aqui
e sim sobre o fato de estarmos na moda:
isso é novo e o Talmude ajuda pouco. E
não é só ser judeu que ficou atraente; a
própria ortodoxia se tornou sedutora. Os
até então menos ortodoxos vêm se transformando em severos defensores da ortodoxia e muitos outros vêm se tornando
interessados em passar a ser membros
dessa ortodoxia. Vou arriscar algumas
hipóteses, que talvez não passem de
uma, que engloba variações em torno de
um mesmo tema.
Há um desencontro entre
as inúmeras seitas de
ortodoxia, que apresentam
infinitas formas de
interpretar o Talmude.
No meio desta confusão,
felizmente todos no fim
acabam tendo razão
Há milênios vimos desenvolvendo
técnicas de sociabilidade que acabaram
por garantir a sobrevivência dos judeus
como uma identidade claramente definida e automaticamente auto percebida.
Temos milênios de experiência de
vida nômade, isto é, de sermos sem terra,
unidos apenas por esta tal identidade
auto percebida. Não importa por onde
estejamos espalhados, os dogmas talmúdicos nos ajudam a encontrar o prumo.
A exigência de dez homens adultos para
realizar cultos é uma perfeição de regra
para inibir o isolamento: dez homens
adultos são, pelo menos, dois núcleos
familiares. Um rabino, um chazan
(cantor sinagogal), um shochet (encarregado do abate ritual de animais para
consumo) para uma ou duas famílias
é, senão anti-econômico, pelo menos
muito difícil. Assim como uma mikvah
(estabelecimento para banho ritual),
um cheder (casa de estudos), um mohel
(responsável pela circuncisão). Também
a kashrut (conjunto de leis dietéticas
judaicas) é complicada no isolamento.
Nossa sobrevivência dependeu sempre
de existirem famílias judias em comunicação constante, mesmo que esporádica, e com uma distância entre elas
pelo menos razoável para encontros
rituais. Não que seja necessário viver
num gueto, mas é preciso estar próximo
o suficiente para manter-se em comunicação. E, para cuidar de nosso destino
de viventes, foram geradas nossas instituições tradicionais. Nascimento, vida
e morte são reguladas e seus rituais,
garantidos por organizações não governamentais: educação – na Yeshivah;
enterros – Chevrah Kadisha (Sociedade
Santa, encarregada dos rituais fúnebres); fertilidade – Mikvot; cuidado com
a terceira idade – Moshav Zkenim (Lar
de Velhos); cuidado das crianças – Gan;
manutenção das tradições, Nahamat,
Wizo, Unibes, Sochnut etc. O centro do
culto comunitário pode ser uma sala
ou uma enorme sinagoga, conforme
o tamanho da comunidade. A própria
Ilustração: Olívia Lerner
OPINIÃO
© Hanan Isachar/Corbis/LatinStock
Há milênios, os judeus vêm desenvolvendo técnicas de sociabilidade que acabaram por garantir
sua sobrevivência como uma identidade claramente definida e automaticamente percebida
retomada recente de Eretz Israel foi
montada, concebida e financiada pelas
nossas ongs: Keren Kaiemet, Keren
Hayesod, Magbit etc.
É longa nossa prática de manter
nossa identidade sem Terra, sem Pátria,
sem Governo, sem Estado. E, se estamos
aqui, é porque temos sido sempre
bastante bem-sucedidos, tanto que
estou aqui a escrever a respeito desta
nossa longa experiência.
Há milênios funcionamos globalizados – antes do telefone, antes do telegrama, antes da internet que re-insere
os novos nômades no mundo – nós realizamos isso só com a fidelidade às nossas
práticas ortodoxas. Agora que o mundo
todo se globaliza, ongs, ongs e mais
ongs vão surgindo para cuidar dos sem
família, dos sem médico, dos sem teto,
dos excluídos, dos sem escola etc., assim
como nós fizemos nos cinco mil anos
de nossa história. Nossas instituições
protegeram nossa comunidade – ricos,
pobres, recém-chegados, já enraizados, perseguidos ou tolerados. Hoje
a humanidade inteira está procurando,
fora do âmbito estatal, e com a força
da solidariedade, maneiras de proteger
seus desvalidos. Nossas ongs viviam
da contribuição de todos que podiam
contribuir, nunca contaram com ajuda
governamental, que não existia. Era a
riqueza de uns fluindo, sustentando
instituições às quais cabia cuidar de
todos. Foi neste fluxo contínuo que
criamos um universo virtual no qual
reconhecíamos uns aos outros. Ser
homem hoje é poder existir à margem
das estruturas governamentais sufocantes. Esta é a modernidade que vem
a bordo das ongs, nossas velhas conhecidas. Cabe às ongs a defesa do planeta,
cabe a elas proteger seus habitantes,
defender os direitos dos humanos, gerar
a consciência, não mais de nacionalidades, mas de humanidade. No planeta
Terra, a questão que se coloca é cada um
de nós se reconhecer e perceber como
humano, cuidando dos outros e da natureza. Os movimentos pela proteção
da água são organizados globalmente
assim como o são os relativos a todas as
formas de vida animal ou vegetal.
Talvez, partindo do pressuposto
da existência de um conhecimento
inconsciente, uns tantos não-judeus
sentem que há certa sabedoria entre
estes eternos marginais da civilização
ocidental. Claro que somos aptos a
dar aulas de ong, pois foi em torno do
funcionamento delas que sobrevivemos
como eternamente globalizados. Começamos nômades em alguma região do
Oriente Médio, dispersamo-nos por essa
mesma região, sobrevivemos na Galut
(exílio) porque nos mantivemos eternamente nômades enquanto estrutura
social. O homem moderno, ocidental
ou não, dotado de existência virtual,
aproximou-se estruturalmente de nós
que sempre assim fomos. Toda nossa
vida pessoal, familiar, grupal, organizase como se fôssemos nômades. Hoje o
mundo é nômade e pede por ongs, se
quiser se manter humano.
Anna Verônica Mautner é psicanalista
Revista 18  13
O REPÓRTER
Darfur: a história
se repete
como tragédia
Luis Dolhnikoff discute o sanguinário assassinato em massa
promovido no Sul do Sudão, que já vitimou mais de 300 mil pessoas,
enquanto o mundo, mais uma vez, se cala; os países desenvolvidos
não se manifestam, e a mídia finge ignorar o que se passa
D
iz um velho adágio que a verdade
é a primeira vítima da guerra. Há
guerras, porém, em que a verdade
não morre, porque não chega a nascer. A
verdade, aqui, significa a consciência de
certos fatos que, por suas próprias características, se impõem à consciência justamente como fatos, apesar de toda opinião
ou interpretação. É, enfim, a consciência
de tais fatos que a propaganda de guerra
elimina, ao substituí-la pela interpretação
e a opinião interessadas. Quando, porém,
uma guerra é travada sem que este fato
seja sequer conhecido, não é preciso que a
propaganda política mascare de que guerra
se trata. A verdade, indiscutível em mais de
um sentido, torna-se uma questão restrita
aos algozes e às vítimas.
É esse, grosso modo, o caso do conflito na
província sudanesa de Darfur. Conflito, e
não guerra civil, pois não se trata de grupos
políticos armados disputando o poder
deixado vago por um governo fraco ou
inexistente, ou mesmo de grupos armados
rebeldes confrontando o governo central,
mas de uma disputa em que o governo luta
contra parte da população do país. Luta,
aqui, é força de expressão: pois o governo,
no caso sudanês, na verdade massacra parte
da população do país. O conflito de Darfur
é, enfim, mais massacre do que conflito.
Sendo, porém, conflito ou massacre, é
14  Revista 18
virtualmente ignorado pela opinião pública
mundial (o termo genocídio é excluído pela
maioria dos analistas, por não se tratar de
tentativa deliberada de extermínio de um
povo). Não obstante, trata-se de uma das
Em função da necessidade
de manter tropas no sul
para garantir a trégua e
os royalties do petróleo,
assim como por razões
étnicas e religiosas, em
lugar de fazer uso do
exército, o governo árabeislâmico de Cartum optou
por armar e apoiar milícias
árabes locais
mais graves crises humanitárias da atualidade. Dois números bastam, ou deveriam
bastar: 300 mil mortos e 2 milhões de refugiados (para não falar das multidões de
mulheres estupradas) desde 2003.
O conflito de Darfur tem causas tanto locais
quanto não-locais, tanto econômicas quanto
culturais, tanto religiosas quanto políticas.
Tentar entendê-las é a razão deste texto.
O Sudão, antiga Núbia, localiza-se no
nordeste da África, diretamente ao sul do
Egito. Maior país africano em extensão, tem
população de cerca de 40 milhões de habitantes, dos quais 75 por cento são muçulmanos sunitas, 17 por cento são animistas
e 8 por cento são cristãos. Os dois últimos
grupos concentram-se no sul do país. O
nordeste é uma planície banhada pelo Nilo
e seus afluentes, enquanto o centro-oeste é
terra árida, nas bordas orientais do Saara.
Darfur significa terra dos furs. Os furs são uma
das etnias que habitam a região [oeste], junto com
os massaleets e os zagawas. Os três são grupos de
fazendeiros sedentários. A disputa entre eles e os
Brian Steidle
Vilarejos incendiados por bombas lançadas por aviões da Força Aérea sudanesa: massacres perpetrados
pelos janjaweeds, as temidas milícias muçulmanas, são precedidos por ações militares
nômades árabes se tornou tensa desde que uma
seca prolongada nos anos 1980 empobreceu os
campos de Darfur. Ficou difícil alimentar o gado
dos nômades nas terras dos fazendeiros, como
era usual. A tensão se transformou em conflito
aberto em 2003. (Marcelo Musa Cavallari, “Sudão:
ninguém para evitar um genocídio”, http://www.
mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/
selecao_detalhe.asp?ID_RESENHA=28383)
A origem imediata do conflito é,
portanto, econômico-ambiental, além de
local. Na verdade, econômico-ambientalétnico-cultural, com perdão da expressão.
Pois envolve uma seca e dois grupos principais que se distinguem tanto étnica
quanto economicamente, ou seja: os fur,
agrários e sedentários, e os árabes, pastoris
e nômades. O conflito local, porém, já
nasceu nacional.
Pois o Sudão passou por uma guerra civil
(esta sim, merecedora do nome) nos anos
80 e 90, opondo o governo central, árabe e
islâmico, ao sul negro, animista e cristão,
iniciada pela tentativa do governo de
impor a shariá, a lei islâmica, a todo o país,
e exacerbada pela descoberta de petróleo
na região (o que instigou os grupos separatistas assim como a reação do governo). A
mesma descoberta de petróleo teve, porém,
o condão de levar à mesa de negociações
rebeldes e governo.
Com [...] a exploração [se] iniciando no ano 2000,
o governo buscou uma negociação com os guerrilheiros do Exército Popular de Libertação do Sul, [...]
havendo desde então uma certa calma. A guerra civil
no sul causou 1 a 2 milhões de mortos (a maioria
pela fome) e 4 milhões de pessoas deslocadas. A
prospecção petrolífera foi concedida à estatal sudanesa de petróleo e companhias da China, Malásia,
Catar, Canadá, França, Áustria e uma joint venture
sueco-americana. Mas quando tudo parecia caminhar para a normalização, ocorreu a crise de Darfur.
A região foi esquecida durante a guerra entre o
governo e os rebeldes sulistas, mergulhando no caos,
com enfrentamentos tribais. (“O Sudão e a catástrofe
humanitária de Darfur”, http://educaterra.terra.
com.br/vizentini/artigos/artigo_168.htm).
Revista 18  15
O REPÓRTER
manter tropas no sul para garantir a trégua
e os royalties do petróleo, assim como por
razões étnicas e religiosas, em lugar de fazer
uso do exército, o governo árabe-islâmico
de Cartum optou por armar e apoiar milícias árabes locais. Essas milícias, os temidos
janjaweeds (“cavaleiros do diabo armados”),
passaram a lutar contra os rebeldes fur
fazendo uso da limpeza étnica. Dois coelhos
com uma só cajadada: a destruição de
aldeias fur e a fuga em massa da população
eliminam a base dos rebeldes, assim como
resolvem a favor dos árabes locais a antiga
disputa econômico-ambiental com os fur.
O governo central debela a crise separatista,
os árabes locais conquistam uma vitória
definitiva por um rearranjo econômicodemográfico, e o mesmo rearranjo econômico-demográfico garante para o governo
central uma província definitivamente
calma, pois sua aliada.
Império Otomano, antes da entrada em
cena dos ocidentais.
Como se não bastasse, a isso se soma a
questão do petróleo:
As hierarquias árabes de Cartum querem evitar
uma brecha pela qual os negros do oeste se aliariam, no futuro, a um sul negro independente e
dotado de reservas de petróleo. Conseqüentemente, torna-se estratégico domar a revolta de
Darfur. (idem)
O que explica o empenho do governo,
não apenas em armar as milícias janjaweeds, como em apoiá-las em termos,
portanto, estratégicos.
Sobreviventes contam que, nos piores momentos
da guerra, todos os ataques dos janjaweeds eram
precedidos por ataques aéreos da Força Aérea sudanesa. Com as cabanas e a vegetação em chamas,
A razão se liga a fatores de raça e cultura. Os
assustados e dispersos pelo ataque aéreo, os habi-
árabes são minoria no Sudão. E o regime islamita
tantes de Darfur caíam vítimas dos janjaweeds. A
é a última encarnação histórica de sua dominação
cavalo ou em carros de combate fornecidos pelo
étnico-regional. (Gérard Prunier, “Investigação sobre
governo sudanês, os janjaweeds invadiam as aldeias
o massacre de Darfur”, Le Monde Diplomatique,
destruindo o que ainda restasse de pé, matando
http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530)
indiscriminadamente civis, estuprando mulheres
e roubando gado, grãos e tudo o que pudesse ter
A questão colonial africana, mais uma
vez. Mas, para complicar definitivamente as
coisas para os que adotam as simplificações
maniqueístas, tão ao gosto da esquerda, a
questão colonial envolvendo, como agente,
o antigo império árabe do Califado e
seus sucessores
islâmicos até o
© Human Rights Watch, 2005
Mas não apenas o abandono liga o conflito
de Darfur à guerra no sul, pois o conflito
na província tomou proporções maiores
quando parte dos grupos que lutavam no
sul contra o governo central, em lugar de
aderir aos acordos de paz, tomou para si a
defesa das aldeias fur, por razões étnicas e
religiosas (os fur são muçulmanos, mas da
corrente mística sufi, considerada herética
pela ortodoxia sunita). O resultado foram
ataques a instalações governamentais em
Darfur, com o objetivo de iniciar um movimento separatista. A autonomia parecia aos
habitantes da província sua melhor – ou
menos pior – opção (não por acaso, isto tem
razões históricas: Darfur foi um sultanato
independente entre 1600 e 1916, quando
foi integrado ao Sudão pelo Império Britânico – a história colonial também tem sua
parte no conflito, como não poderia deixar
de ser, ainda que não detenha toda a explicação, como pretendem certas análises tão
simplistas quanto ideológicas).
O conflito de Darfur, portanto, se insere
num quadro maior, que só pode ser referido
como a tragédia sudanesa, a qual, somando
as vítimas da guerra no sul, dos anos 80 e
90, às atuais, chega a mais de 2 milhões
de mortos e a cerca de 6 milhões de deslocados/refugiados. Números insuficientes
para comover ou mover a opinião pública
mundial, governos ocidentais e onu.
O mesmo quadro ajuda a explicar a opção
do governo central para combater os rebeldes
de Darfur. Em função da necessidade de
alguma utilidade. (Marcelo Musa Cavallari, “Sudão:
ninguém para evitar um genocídio”, http://www.
mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/
selecao_detalhe.asp?ID_RESENHA=28383)
Em todo esse quadro de enorme complexidade e não menor crueldade, o mais
difícil, se não de explicar, mas de justificar,
MUSEU JUDAICO DE BERLIM DENUNCIA MASSACRE EM DARFUR
Caderno com desenhos de criança que sobreviveu a
um massacre: a presença dos assassinos permanece,
para sempre, na memória de toda uma geração
16  Revista 18
De 15 a 22 de março último o Museu Judaico de Berlim realizou uma Semana Darfur, sob o patronato de Kofi Annan, Secretário Geral da ONU . Fotografias de Brian Steidle, Lynsey Addario,
Mark Brecke, Hélène Caux, Ron Haviv, Ryan Spencer Reed, Paolo
Pellegrin e Michal Ronen Safdie foram projetadas sobre a fachada
do museu, enquanto uma exposição de desenhos de crianças
de Darfur, que testemunharam os massacres perpetrados pelos
janjaweeds, se realizou no interior do museu. A Semana Darfur
contou também com uma apresentação da West-Eastern Divan
Orchestra, dirigida por Daniel Barenboim. As fotografias reproduzidas neste artigo são parte desta mostra berlinense, e foram
cedidas à Revista 18 pelo Museu Judaico de Berlim.
Hélène Caux
SEÇÃO
Refugiados à espera de resgate por parte de organismos internacionais: conflitos criaram
gravíssima situação humanitária, que não vem sendo resolvida de maneira satisfatória
talvez seja a inação externa. Essa inação é
feita de três vértices: a inação das grandes
potências; a inação da mídia, e a inação da
esquerda – em outros casos um elemento
importante de influência junto à opinião
pública, como ficou patente nas reações à
invasão do Iraque pelos eua.
A inação das grandes potências não é
difícil de aclarar. Ou elas não têm interesses
na região, ou elas têm interesses na região. Se
não têm interesses não se envolverão; se têm,
se envolverão, mas no sentido de atender
aos seus interesses, e não de acabar com a
barbárie. É o caso, por exemplo, da França,
cuja inação responde ao objetivo de dar a seus
aliados tempo para combater o governo do
Sudão, e da China, esta, aliada desse mesmo
governo por razões econômicas.
Os militantes do regime [sudanês] tentam desestabilizar, a partir de Darfur, os aliados da França:
o presidente chadiano, Idriss Deby, e seu colega
centro-africano, François Bozizé. [Quanto à China],
Cartum é seu segundo parceiro comercial no continente africano: o comércio bilateral gerou us $ 2,9
bilhões, em 2006, e Pequim compra 65% do petróleo
18  Revista 18
sudanês. A China é também o primeiro fornecedor
de armas do regime de Beshir. São chineses os fuzis
que matam em Darfur. (Gérard Prunier, “Investigação sobre o massacre de Darfur”, Le Monde Diplo-
Resta a inação da onu. Mas esta não
carece de explicação. A inação da onu segue
a inação das grandes potências, assim como
sua crônica impotência histórica.
matique, http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530).
Altos dirigentes do governo sudanês me disseram
A inação da mídia segue a inação das
grandes potências. Além disso, a complexidade da situação e a falta de qualquer apelo
direto para o público ocidental não ajudam.
A inação da esquerda segue um padrão
histórico, de viés, não por acaso, ideológico.
A esquerda mundial, senso lato, desde a
queda do Muro e a perda de seu projeto de
poder alternativo, reduziu-se a um criticismo
maniqueísta das ações americanas. Repete,
portanto, com o genocídio do Sudão o que
fez, entre outros, com o genocídio de Ruanda
nos anos 90 e com o genocídio do Timor
Leste nos anos 70 e 80: dedica toda sua rubra
indignação e todas suas pálidas ações ao
Oriente Médio e à guerra do Iraque, porque
há aí o envolvimento americano. Indignação
seletiva, então – que ao ser seletiva é menos
indignação do que adequação à própria
agenda político-ideológica.
mais de uma vez terem comparado os riscos
que havia para eles em obedecer às ordens do
Conselho de Segurança aos riscos de rejeitá-las.
A desobediência implicava arriscar o confronto
com a comunidade internacional. Mas obedecer
representava outro risco, o de aumentar o poder da
oposição interna, com o perigo de perda do próprio
poder. Eles me disseram ter avaliado as opções e
concluíram que os riscos que corriam ao obedecer
às normas eram bem maiores que os riscos que
corriam ao recusar. Eles tinham razão. (Jan Pronk,
ex-representante especial do secretário-geral da
onu Kofi Annan no Sudão, em seu blog, citado em
http://diplo.uol.com.br/2007-03,a1530).
A população de Darfur, como outras
na história recente, jaz entregue à própria
(má) sorte.
Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta
OSEÇÃO
REPÓRTER
Sob o impacto da guerra,
quatro décadas depois
Passados quarenta anos da Guerra dos Seis Dias, Samuel Feldberg
recapitula as causas e as conseqüências do conflito que mudou a
face do Oriente Médio, e vê no pragmatismo político a única resposta
possível para um conflito pautado pela ideologia e pela fé
O
ano de 2007 marca décadas de
alguns dos mais importantes
eventos ocorridos no Oriente
Médio no século passado.
Há noventa anos o império britânico
emitia a Declaração Balfour, documento
que, nos trinta anos seguintes, assombraria seguidos governos ingleses, já que
seu conteúdo foi entendido pela liderança
sionista como a promessa de criação de um
Estado judeu independente na Palestina.
Há sessenta anos, a Assembléia Geral
das Nações Unidas votou a partilha da
Palestina que, no ano seguinte, permitiria
o surgimento do Estado de Israel como
nação independente em parte do território
sob mandato britânico.
E talvez o acontecimento de conseqüências mais evidentes nos dias de hoje
seja a guerra travada em junho de 1967
entre Israel e três de seus vizinhos, o Egito,
a Jordânia e a Síria. O evento será celebrado por uns e pranteado por outros, e
esta divisão deixará do mesmo lado árabes
e judeus, israelenses e palestinos.
Alguns comemorarão a unificação de
Jerusalém, o direito de voltar a rezar junto
ao Muro das Lamentações e à tumba dos
patriarcas, o retorno às bíblicas Judéia
e Samaria, a aquisição de uma profundidade estratégica, sonhada, mas nunca seriamente contemplada.
Para outros, as conquistas militares
passariam a representar um pesadelo
demográfico e um peso administrativo,
uma penosa ocupação que impediria
Israel de concentrar-se em seus verdadeiros
problemas, transformando os judeus em
20  Revista 18
algozes da população palestina nos territórios ocupados. Levaria, ainda, a uma
mudança na doutrina militar israelense,
estabelecendo linhas de defesa estáticas
e um relaxamento que culminaria na
surpresa dos ataques de outubro de 1973.
E para grande parte dos palestinos
a vitória israelense representaria uma
segunda catástrofe (conhecida como Al
Nakba), uma repetição dos infortúnios de
1948 e a ampliação do número de refugiados gerados naquele ano, mas também
o embrião que levaria ao ressurgimento do
nacionalismo palestino, sufocado por jordanianos e egípcios durante décadas.
A Guerra dos Seis Dias, como veio a ser
conhecida, representa apenas um elo, ainda
que dos mais importantes, numa longa
cadeia de eventos iniciada com as primeiras
imigrações de judeus da Europa Oriental
para o que era então uma região do Império
Otomano, e a mudança dos primeiros habitantes judeus de Jerusalém para a região
fora dos limites das muralhas da cidade
velha, na segunda metade do século 19. A
partir deste momento, palestinos árabes e
cristãos por um lado, e judeus por outro,
trilharam caminhos às vezes paralelos, mas
freqüentemente em rota de colisão. Ambos
os povos cortejaram o sultão otomano até
a 1ª Guerra Mundial e viveram as dúvidas
geradas pelos alinhamentos durante o
conflito. E ambos compartilharam a frustração com a “traição” representada pelo
acordo Sykes-Picot, que dividiu a antiga
região otomana entre franceses e ingleses,
ao fim da guerra, com o estabelecimento de
mandatos das duas potências vencedoras.
As relações somente se complicaram
no período entre guerras, com as acusações e a violência intensificando-se de
lado a lado. A rebelião árabe de 1936 levou
ao exílio a liderança palestina, e a ameaça
alemã, na 2ª Guerra Mundial, conduziu à
publicação do Livro Branco, que restringia
severamente a imigração judaica para a
então Palestina britânica, num momento
em que as portas de praticamente todas
as nações do mundo se fechavam para os
refugiados judeus da Europa.
NÃO SE DISCUTE O FATO de o Holocausto ter
representado um fator de enorme peso
na decisão da onu que levou à criação do
Estado de Israel. Seja por questões humanitárias, seja para eliminar o incômodo
problema gerado por centenas de sobreviventes judeus apátridas vagando no centro
da Europa, as Nações Unidas, com o apoio
das duas novas grandes potências, decidiram pela partilha do território conhecido como Palestina, e pela criação de dois
estados independentes, um judeu e um
palestino. Os palestinos e os países árabes
vizinhos, por diversos motivos, decidiram
rejeitar a partilha e, logo após a retirada dos
ingleses em maio de 1948, e a declaração
de independência de Israel, iniciaram uma
guerra cujas conseqüências se fariam sentir
durante as décadas seguintes.
Os armistícios de 1949 deixaram
abertas feridas que, como um câncer,
se alastrariam ao longo dos vinte anos
seguintes. O problema dos refugiados
palestinos transformou-se numa bola de
neve, tornando-se a chave da questão para
a solução do conflito israelo-palestino nos
dias de hoje, mas a ocupação dos territórios
da Margem Ocidental por parte da Transjordânia, e da Faixa de Gaza por parte do Egito,
congelou as aspirações nacionalistas palestinas, que talvez não tivessem sido reacendidas não fossem os eventos de 1967.
Ao longo da década seguinte, apesar das
infiltrações de refugiados e guerrilheiros
fedayin ao longo das porosas fronteiras
do novo Estado, os principais confrontos
travaram-se entre o exército israelense e as
forças regulares de seus vizinhos. As retaliações às incursões no território israelense eram
quase sempre dirigidas contra os exércitos da
Jordânia (o nome adotado pelo reino hachemita após a incorporação da Cisjordânia), das
O REPÓRTER
forças egípcias na Faixa de Gaza e da Síria,
nas Colinas de Golan. Em situações específicas, grandes ações foram deflagradas contra
núcleos de população civil, principalmente na
Cisjordânia, de onde partiam os guerrilheiros
para ataques ao território israelense.
A Guerra de Suez, em 1956, determinaria as
condições para a eclosão do conflito em 1967.
A desmilitarização da Península do Sinai e
a recomposição das forças armadas egípcias
foram acompanhadas de um sentimento
de frustração entre os palestinos, enquanto
a introdução do componente soviético no
Oriente Médio e a ideologia do pan-arabismo
foram elementos extremamente importantes
no novo jogo de forças, mas cuja abordagem
extrapola os limites deste artigo.
Em junho de 1967 as fronteiras israelenses mantinham-se em ebulição, com
exceção, justamente, da fronteira com o
Egito, onde uma força dos Capacetes Azuis
das Nações Unidas mantinha a trégua desde
a retirada das tropas israelenses do Sinai.
Mas no norte, as tentativas sírias de desviar
as nascentes do rio Jordão, e as disputas em
torno do cultivo, por parte de Israel, das
áreas desmilitarizadas ao longo da fronteira,
mantinham alta a temperatura e já não se
podia determinar o que era provocação e
o que era retaliação. Quase diariamente
os dois países se enfrentavam, fazendo as
manchetes dos jornais de todo o mundo. Na
longa e indefensável fronteira entre Israel
e a Jordânia, apesar dos velados interesses
comuns do rei Hussein e do governo israelense, a escalada de infiltrações e retaliações
fazia parte da dinâmica do mundo árabe,
o que contribuiu para envolver a Jordânia
na guerra.
Os fatos envolvendo o confronto e suas
causas são amplamente conhecidos. O Secretário de Estado norte-americano à época,
Dean Rusk, descreveu com precisão a atmosfera às vésperas da Guerra: segundo ele, a
psicologia árabe da Guerra Santa havia colidido com a psicologia apocalíptica de um
Estado israelense temeroso por sua sobrevivência. Por um lado, havia uma ampla coincidência da opinião pública do mundo árabe,
insuflada por suas lideranças que preconizavam a destruição do Estado de Israel e o
lançamento dos judeus ao mar. Israel representava para os árabes o Ocidente e 300 anos
de humilhação, frustração e ressentimento.
E aqueles judeus, que sempre tiveram um
Uzi Narkiss, Moshe Dayan e Itzhak Rabin caminham pela cidade velha de Jerusalém, ainda durante
o conflito: reação inesperada das Forças Armadas transformou Israel em “fato consumado”
status inferior nas sociedades árabes, foram
massacrados pelos europeus ao longo dos
séculos e quase aniquilados pelos nazistas,
haviam surgido das cinzas para instalar-se
no seio do mundo árabe e derrotar seus vizinhos ao longo dos últimos vinte anos. Este
erro seria agora corrigido.
Do lado israelense, conviviam duas
percepções: por um lado a fragilidade e
vulnerabilidade, herança dos pogroms e do
Holocausto, por outro a mentalidade criada
pela nova geração, nascida e educada em
Israel, que estabeleceu as brigadas combatentes, os núcleos das forças armadas
israelenses e as unidades especiais tão bemsucedidas ao longo dos anos anteriores.
Na escalada que leva ao início das hostilidades, nas escaramuças entre sírios e
Revista 18  21
O REPÓRTER
Oficiais da Aeronáutica inspecionam caça francês pouco antes de sua partida para uma missão sobre o Egito:
destruição da aviação inimiga foi um dos trunfos de Israel para a rápida resolução do conflito armado
israelenses, a força aérea israelense derruba
seis dos mais modernos aviões russos fornecidos à Síria. O envolvimento das superpotências tem de ser visto à luz dos alinhamentos
da Guerra Fria; os Estados Unidos estavam
cada vez mais atolados no Vietnã e a União
Soviética ampliava sua penetração junto
aos Estados árabes radicais. A derrubada
de aviões soviéticos pelos caças israelenses
fornecidos pela França representava uma
afronta ao prestígio russo e estes revidaram,
insuflando os ânimos e falsamente alertando
os sírios para uma planejada invasão israelense. Nasser foi compelido a apoiar os sírios
e “deixar de se esconder por trás das tropas
da onu”. Em poucos dias, as forças de paz das
Nações Unidas abandonaram suas posições
no Sinai e na Faixa de Gaza, colocando 100
mil soldados egípcios e mil tanques na fronteira sul de Israel. Em 17 de maio, o estreito
de Tiran foi fechado à navegação israelense,
bloqueando o porto de Eilat e o acesso ao
petróleo iraniano.
Menos de três décadas após a capitulação de Munique, um ditador enfrentava
22  Revista 18
A Guerra dos Seis Dias,
como veio a ser conhecida,
representa apenas um
elo, ainda que dos mais
importantes, numa longa
cadeia de eventos iniciada com
as primeiras imigrações de
judeus da Europa Oriental para
o que era então uma região do
Império Otomano, e a mudança
dos primeiros habitantes
judeus de Jerusalém para a
região fora dos limites das
muralhas da cidade velha
uma organização internacional, revertia
os acordos selados ao final do conflito
anterior, e o mundo não reagia. A resposta
israelense foi devastadora. Em um ataque
preventivo lançado contra os campos de
aviação egípcios, a quase totalidade dos
aviões foi destruída no solo, eliminando sua
capacidade de proteger as forças terrestres
no Sinai. Estas foram destruídas pelos israelenses em poucos dias, estabelecendo ao
longo do Canal de Suez a nova fronteira que
vigorou até a guerra de outubro de 1973.
A Jordânia se envolveu na guerra por
razões completamente diferentes: o rei
Hussein mantinha uma relação ambígua
com Israel, mas temia ser visto como traidor
da causa árabe. Colocou suas forças sob o
comando de um general egípcio, envolvendo a Jordânia na guerra logo no primeiro
dia. Os israelenses decidiram não repetir a
hesitação de 1948; em sangrentas batalhas
derrotaram o exército jordaniano que se
retirou para a outra margem do rio Jordão,
deixando nas mãos dos israelenses uma
Jerusalém reunificada (incluído o terceiro
O REPÓRTER
lugar mais santo do Islã), as antigas comunidades do bloco de Etzion e Hebron, abandonadas vinte anos antes, e uma população de
mais de dois milhões de palestinos.
Na fronteira norte, apesar do constante
bombardeio pela artilharia síria, a guerra
somente se iniciaria no quinto dia; em dois
dias de brutais batalhas os israelenses ocupam
as colinas de Golan, único território anexado
a Israel além da parte leste de Jerusalém.
A GUERRA DOS SEIS DIAS TRANSFORMARIA ISRAEL em
“fato consumado”; e o Oriente Médio jamais
voltaria a ser o mesmo. Os Estados Unidos
passaram a considerar Israel como um “ativo
estratégico” no Oriente Médio e, ao lado do Irã,
parte integrante da Doutrina Nixon1.
Os líderes árabes descobriram que Israel
não poderia ser erradicado pela força das
armas, o que abriu a porta para a chamada
opção demográfica. Renasceu, neste
momento, o conceito do Estado binacional,
derivado da aspiração do sionismo messiânico de incorporar ao estado israelense as
áreas conquistadas na Cisjordânia. Do lado
palestino, a frustração das esperanças depositadas em Nasser levou a uma reformulação
de sua liderança. Arafat se firmou, em 1968,
como líder da Organização para a Libertação
da Palestina (olp) que, em 1972, foi reconhecida como o legítimo representante do povo
palestino. O abandono desta função por parte
do rei Hussein foi contraposto pela rígida
postura de Golda Meir, herdeira política do
primeiro ministro Levi Eshkol, que negava a
existência de um “povo palestino”.
Quarenta anos é um longo período,
simbolizado na Bíblia pelo tempo passado
no deserto, da saída do Egito até a formação
de uma nova geração. Que lições foram
aprendidas ao longo deste período?
A guerra de outubro de 1973, também
conhecida como Guerra do Yom Kipur foi
necessária para convencer os israelenses de
que Nietzsche2 tinha razão quando, depois
da vitória alemã na guerra franco-prussiana,
alertou seus compatriotas dizendo que “a
vitória militar não constitui prova de superioridade cultural”. Após 1967, os israelenses
se agarraram a seus louros, fortificaram suas
linhas de frente e entrincheiraram-se em uma
nova “Linha Maginot”, somente para sucumbir
às levas de sírios e egípcios no ataque-surpresa
que iniciou a guerra. A mudança de doutrina
estratégica, causada também pelo enorme
aumento de suas linhas de suprimento, foi
acompanhada da necessidade de continuar
uma guerra assimétrica, de atrito, contra as
forças da olp que a partir da Jordânia se infiltravam nos territórios ocupados.
Quase que imediatamente iniciouse a discussão em relação ao destino dos
territórios: os radicais, apoiados por uma
crescente parcela de elementos religiosos
que viam na vitória um milagre divino, não
hesitavam em propor a anexação da Cisjordânia e, em alguns casos, a expulsão de
seus habitantes. Uma população palestina
conformada com sua sorte, uma Jordânia
Em um ataque preventivo
lançado contra os campos
de aviação egípcios, a quase
totalidade dos aviões foi
destruída no solo, eliminando
sua capacidade de proteger
as forças terrestres no Sinai.
Estas foram destruídas pelos
israelenses em poucos dias,
estabelecendo ao longo
do Canal de Suez a nova
fronteira que vigorou até a
guerra de outubro de 1973
imersa em seus próprios problemas e o
surgimento de um forte movimento pela
colonização, baseado nos “ideais messiânicos de redenção”3, levou à criação dos
assentamentos, ao plano Allon e ao conceito
da retenção do Vale do Jordão, aprofundados
após a eleição do Likud em 1977. Do outro
lado colocaram-se líderes como o moderado
Levi Eshkol e David Ben Gurion, que reconheceram desde o inicio a impossibilidade
de manter um Estado judaico democrático
incorporando aquela população hostil.
Hoje, passados quarenta anos e outras
quatro guerras4, uma rápida olhada no mapa
mostra um Golan ocupado e que assim
continuará enquanto os sírios não derem
sinais de que estão dispostos a uma acomodação de longo prazo (ainda que o aprofundamento da ligação Irã - Síria - Hezbolá possa
estimular os sírios a se lançarem em uma
aventura bélica de trágicas conseqüências).
A Faixa de Gaza, apesar de abandonada por
Israel, tornou-se um ninho de terrorismo
suicida e lançamento de foguetes, que por hora
somente tem sido neutralizado pela artilharia
israelense e pela disputa entre o Hamas e o
Fatah por seu controle. E na Cisjordânia, além
da construção da barreira de separação, consolida-se a anexação da parte leste de Jerusalém
com os novos bairros construídos a partir de
1967. Mas assim como Yamit foi abandonada
em 1982, para atender aos acordos de Camp
David, podemos vislumbrar também o abandono de cidades como Ariel e Maale Adumim,
apesar das dezenas de milhares de israelenses
que hoje lá habitam.
Em algum momento, uma liderança palestina pragmática assumirá que optará pelo
mesmo critério assumido por Ben Gurion em
1947: o de aceitar aquilo que podia ser conseguido, ainda que com o objetivo de mudar
o mapa por outros meios no futuro. Caberá,
então, ao governo israelense assumir o risco de
acomodar-se ao lado de um vizinho independente e irredentista (e ter seu líder assassinado
por radicais judeus, como no caso de Itzhak
Rabin), ou perpetuar uma relação de conquista
que talvez venha a tornar-se intolerável. Talvez
sejam necessários outros quarenta, ou oitenta
anos para que a face da região se transforme de
maneira definitiva.
Samuel Feldberg é doutor em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo, professor de
Relações Internacionais das Faculdades Rio
Branco, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em
Relações Internacionais da USP e autor de Israel
e Estados Unidos - uma aliança em questão
(no prelo)
1
A nova política de intervenção norte-americana, derivada da guerra do Vietnã, que se apoiava em aliados
locais armados pelos Estados Unidos.
2
F. Nietzsche, The Twilight of the Idols (Harmondsworth,
Middlesex: Penguin, 1968).
3
A. Ravitzky, Messianism, Zionism, and Jewish Religious Radicalism (Chicago, The University of Chicago Press, 1996).
4
A Guerra de Atrito de 1970, do Yom Kippur em 1973,
a primeira Guerra do Líbano de 1982 e a segunda,
em 2006.
Revista 18  23
O REPÓRTER
Cidadãos globais ou
espectadores eventuais?
Paulistanos falam sobre o
conflito do Líbano
Heloisa Pait conversa com seus concidadãos, escolhidos aleatoriamente entre
passantes do Conjunto Nacional ou de uma fila de cinema, e observa a perplexidade
do homem comum ante guerras causadas por forças desconhecidas
© Roney
C
Paulistanos caminham diante do Conjunto Nacional, ícone da
arquitetura metropolitana, escolhido por Heloísa Pait como
campo de provas para sua pesquisa acerca da percepção de
seus concidadãos sobre o recente conflito no Oriente Médio
24  Revista 18
omo os paulistanos viram o conflito
do Líbano de 2006? Até que ponto
se envolveram com as notícias que
chegavam aqui? De onde tiraram recursos
para compreendê-las e como formaram
suas opiniões? Entre julho e outubro de
2006, saí a campo por São Paulo com estas
perguntas impressas numa folha de sulfite
azul e uma enorme curiosidade na cabeça.
A vontade de saber o que meus concidadãos
viam em todas aquelas histórias e cenas de
guerra vinha de meu envolvimento pessoal
com os destinos do Estado de Israel, que se
por um lado não fazia de mim um interlocutor neutro, por outro garantia a atenção
genuína que favorece a construção de narrativas ricas e complexas.
O pano de fundo para minhas entrevistas,
entretanto, era uma investigação sobre
meios de comunicação, espaços públicos
e globalização. Existe hoje uma sociedade
civil global em construção, com narrativas
e celebrações comuns, linguagens e valores
intercambiáveis, preocupações e objetivos
passíveis de negociação? Ou, apesar de toda
a integração econômica, das facilidades
de locomoção e comunicação globais, as
discussões de caráter público ainda são delimitadas por fronteiras nacionais?
O REPÓRTER
De modo concreto, será que ao brasileiro
importa o que se passa no planeta, ou seus
esforços se voltam apenas para compreender
e debater problemas locais e nacionais?
Podemos falar hoje de um cidadão global,
que se vê como parte de uma sociedade mais
ampla e quer participar de deliberações de
caráter global? Sendo esse o contexto das
entrevistas, estive mais atenta ao modo
como os entrevistados se relacionavam com
as notícias e formavam suas opiniões do que
propriamente às suas posições políticas em
relação aos envolvidos no conflito.
Fiz um total de 42 entrevistas, cuja
duração variou entre quarenta minutos e
quatro horas. Na última semana de julho,
falei com 24 pessoas que passavam pelo
Conjunto Nacional à hora do almoço. Esse
público médio acompanha os principais
acontecimentos nacionais e internacionais pela tv ou em jornais diários e revistas
semanais, e mostrou enorme receptividade
à conversa. Falei, também, com participantes do debate com Demétrio Magnoli e
Paulo Farah, realizado na Casa de Cultura
de Israel, que acabou tendo como tema o
conflito no Líbano, e que foi um dos raros
debates públicos sobre o tema naqueles
meses. Falei, ainda, com espectadores de
dois filmes exibidos na 30a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que retratavam o Oriente Médio, já em outubro. Não
pude analisar o público da internet como
ele merece.
Todos os meus entrevistados sabiam
que um conflito importante acontecia no
Oriente Médio. Um disse Líbia ao invés
de Líbano, e vários não sabiam o nome
do movimento armado libanês envolvido no conflito. Mas, de um modo geral,
todos sabiam que Israel havia atacado o
Hezbolá, no Líbano. Muitos citaram como
causa aparente do conflito o seqüestro
de soldados israelenses, mas buscavam
causas mais profundas para um conflito
daquela extensão. Poucos tinham críticas
aos meios de comunicação, que os entrevistados julgavam – acertadamente, em
minha opinião – estarem fazendo uma boa
cobertura, bem informativa e relativamente
isenta. “Quem quiser saber mais pode ir
atrás” foi algo que ouvi muitas vezes.
Ao mesmo tempo, os entrevistados
pareciam satisfeitos com o que os meios
de comunicação de massa lhes traziam.
Raros foram os que disseram ter consultado
alguma enciclopédia ou comprado a edição
especial de uma revista para compreender
melhor o que se passava. Uma professora
universitária evangélica, pró-Israel, que
lê todos os dias, na internet, os principais
jornais mundiais, relacionou o Hezbolá
com a retórica crescentemente belicista de
Ahmadinejad, mas foi uma exceção. Mesmo
um engenheiro que trabalha na indústria
bélica brasileira, e que esteve prestes a ir ao
Iraque nos anos 80, mostrou pouco conhecimento a respeito das cisões entre muçulmanos, quase nada além do que é mostrado
nos jornais televisivos nacionais.
Transpira em quase todas
as entrevistas uma enorme
preocupação com as vidas
perdidas e colocadas em
risco, com as separações
e os transtornos causados
por uma guerra cujas
razões não estão claras
Se o grau de interesse era relativamente
homogêneo, as opiniões divergiam. Há
desde aquela cabeleireira que acredita
que ainda se trata daquelas perseguições
que vêm “desde o tempo do Hitler” até os
que acham que Israel e os Estados Unidos
estão sempre invadindo alguém. As associações entre o conflito e os problemas
brasileiros variaram conforme as posições
tomadas, mas não apareceram espontaneamente. Entre as exceções, um técnico
de laboratório que teve medo de estarmos
vendo o começo da 3ª Guerra Mundial e
um administrador de empresas que temia
os transtornos de uma alta no petróleo. De
modo geral, no entanto, o conflito parecia
acontecer em um lugar remoto: “Eles estão
sempre brigando”.
Transpira em quase todas as entrevistas
uma enorme preocupação com as vidas
perdidas e colocadas em risco, com as separações e os transtornos causados por uma
guerra cujas razões não estão claras. Senti
nas falas de meus entrevistados uma dor
genuína ao falar de vítimas da guerra dos
dois lados, além da tendência de culpar os
“governos” (e não os povos, as culturas ou
religiões) por não saberem resolver suas
diferenças com diálogo e negociação. Se
aparece um bode expiatório, este tende a
ser os Estados Unidos, culpados por ação
ou omissão. Se Condoleezza vai a Beirute é
péssimo, se não vai é pior ainda.
Quando pedia aos entrevistados que
contassem o que estava acontecendo no
Líbano como se falassem com alguém
desinformado a este respeito, eles raramente conseguiam. Além do artificialismo
da situação e do possível constrangimento
em pronunciar errado nomes de pontos
geográficos, há aí algo mais profundo, pois
a cultura narrativa brasileira é rica e peçachave de nossa compreensão do mundo,
mais que o raciocínio analítico ou o pensamento contemplativo, por exemplo. De
onde o “branco”, então?
Falta a grande parte de meus entrevistados a experiência de narrar eventos
internacionais, que eles certamente têm
em discutir outros assuntos. Além disso,
a compreensão de eventos internacionais
exige um acervo de informações mais
extenso e menos acessível no dia-a-dia:
conhecimentos detalhados de história,
geografia, línguas, política e culturas. Com
a exceção de cursos muito especializados
e de debates marginais – uma discussão
sobre sionismo durante um jogo de truco,
por exemplo – a escola e a universidade
não aparecem como lugar onde esse acervo
pode ser obtido ou como lugar de debates. Já
o cursinho foi lembrado, com entusiasmo,
como espaço de discussão e descoberta de
um mundo além de nossas fronteiras.
É um quebra-cabeça complexo: existe
preocupação com os acontecimentos,
Revista 18  25
O REPÓRTER
especialmente quanto ao seu lado humano.
Há um nível de informação corrente satisfatório. Há vontade de encontrar interlocutores, o que me foi dito por vários
entrevistados. Foi muito comum, aliás,
que as pessoas se mostrassem felizes com
a oportunidade dada pela pesquisa de falar
sobre a guerra. Mas não há conhecimento
suficiente para dar conta da complexidade
dos fatos, nem espaços onde tal saber possa
ser gerado coletivamente. Por que a universidade não cumpre esse papel, que é dela em
primeiro lugar, é um mistério.
Recorrer a fatos históricos remotos pode
ser visto, então, como um modo de engatar
uma narrativa com um interlocutor com
quem não se compartilha um conjunto
de suposições. Se pergunto a uma amiga o
que aconteceu na novela, ela compreende
que quero saber apenas os últimos fatos.
Quando eu perguntava o que havia acontecido no Líbano nas últimas semanas, a
ausência desse corpo compartilhado de
conhecimento levou muitos entrevistados a buscar um ponto de fuga para sua
narrativa, como a fundação de Israel ou até
eventos bíblicos.
Notei que os entrevistados com maior
escolaridade buscaram ir além da visão
concreta da guerra, da preocupação com a
destruição e com as vidas postas em risco,
mas de dois modos distintos. Um advogado
contou que amigos de diferentes posições
o acusam de ficar eternamente “no muro”,
sendo que esse papel ponderado é exatamente o que ele busca. Uma engenheira disse
que o Brasil pode contribuir com a solução
dos conflitos no Oriente Médio, aproveitando
nossa capacidade de diálogo e criando espaços
onde distintas posições são acolhidas. Aí a
escolaridade serviu para trazer uma complexidade maior à narrativa do conflito e abriu
espaço para a atuação individual.
Mas veja essas outras análises: para um
pequeno empresário, a mídia brasileira
não pode dar versões corretas do conflito
devido à influência de bancos israelenses.
E um mestrando em direito relacionou a
visão do conflito em cada país ao tamanho
de sua comunidade judaica. Esdrúxulas ou
com aparência racional, asserções deste tipo
aparentemente dão conta de qualquer fenômeno e livram os entrevistados da tarefa de
compreender o conflito ou de aceitar que
ainda não o fazem. Mas mesmo nesse grupo
26  Revista 18
surgiu o interesse em conhecer como outros
entrevistados reagiriam às mesmas perguntas,
o que mostra abertura intelectual.
Três conversas com jovens paulistanos
me marcaram muito, iluminando a relação
entre nossas identidades mais pessoais e o
modo como nos relacionamos com questões
globais. Uma simpática administradora de
empresas, que estudou numa tradicional
faculdade privada, sabia quase nada sobre
o conflito, apesar de bastante articulada.
Depois da breve entrevista, pediu que eu
lhe contasse o que se passava no Líbano.
A cultura narrativa
brasileira é rica e
peça-chave de nossa
compreensão do mundo,
mais que o raciocínio
analítico ou o pensamento
contemplativo. De onde o
“branco”, então?
Dei minha versão, que ela escutou atenta,
a partir da qual começou a questionar por
que não estava informada, já que na época
da faculdade gostava de debater com as
amigas esse tipo de assunto. Por que sua
vida tinha se resumido ao trabalho, happy
hour e fim-de-semana com o namorado?
“Obviamente você gosta do que faz. E eu?”,
ela me perguntou.
Um office-boy, com o segundo grau incompleto, mostrou-se preocupadíssimo com a
tragédia que acontecia no Oriente Médio:
“Se a gente pudesse fazer alguma coisa…” Ele
lê a Folha ou o Estadão na hora do almoço,
mas tem pouco tempo. Com os colegas,
não pode discutir, pois só falam de futebol
e diversão. Ouve os advogados da firma
para a qual trabalha discutindo no elevador,
mas pelo status inferior não pode entrar de
pára-quedas na conversa. Eu perguntei se
havia tentado alguma vez, e ele respondeu
que caso o fizesse seria tratado com polidez
e condescendência, e depois a conversa
morreria. “Eles nem olham para mim. Só
estou ali para cumprir um papel. Se estivesse
na escola, os professores pediriam trabalhos,
eu estaria discutindo, iria pesquisar.”
O terceiro entrevistado, que encontrei na
Mostra de Cinema, fez uma boa faculdade
privada e hoje trabalha com produção de
vídeo. Não conseguia compreender os ódios
étnicos do Oriente Médio, uma vez que na
periferia violenta onde cresceu o luto era
acompanhado de resignação. Na adolescência, via filmes comerciais no centro, e
depois passou a freqüentar o cinema de arte
exatamente pela curiosidade a respeito de
outros lugares e pessoas: “Então Londres é
assim! Como serão os xiitas? Queria estar
naquelas fronteiras do filme Free Zone”. Ele
viu no cinema a chance de se inserir num
mundo mais amplo, que seu ambiente
social e educação formal não lhe dariam.
“A escola é muito ruim, mas muito ruim
mesmo”, me disse com lágrimas que não
tinham aparecido até então.
Saber o que se passa com gente como
nós em outras partes do mundo não se
resume a estar informado. Também vai
além do desejo de participação numa
nova sociedade civil global, que é o que
imaginei encontrar no início da pesquisa.
Para alguns de nós, novos cidadãos globais,
a relação com o mundo lá fora é parte da
imagem mais profunda que temos de nós
mesmos. Se perdemos o desejo de saber
como andam os outros, ficamos desfalcados; se não temos com quem falar sobre
isso, sentimo-nos banidos; e se, de algum
jeito, encontramos uma janela a partir da
qual se abre a experiência de gente tão
distante, nós vencemos.
Heloisa Pait ([email protected]) é doutora em
Sociologia da Comunicação pela New School
for Social Research e professora da Faculdade
de Ciências e Letras da Unesp
O REPÓRTER
O peixe cantador
Líder da banda que acompanhou o show de Matisyahu em
São Paulo, Eduardo Faigemboim, ou o Peixe, está renovando,
com sua Sensacional Orquestra Sonora, o cansado cenário
de músicas para festas. Por Flavio Blasbalg
Rod
rigo
Ros
ent
hal
/Im
ã
M
ais um casamento está
por acontecer. Homens
de ternos azul marinho,
mulheres de pretinho básico,
borrifadas com perfume adocicado. Na entrada da cerimônia,
aqueles que esqueceram sua
kipá em casa podem se servir
das oferecidas pelos noivos,
que ainda tiveram o cuidado
de gravar seus nomes e a data
da união na parte interna do
solidéu. O roteiro todos já
Para o Peixe, caminho da
música não foi um acaso:
“sinto-me privilegiado por
poder transmitir as belezas e
a alegria da música judaica”
28  Revista 18
conhecem, sabem que logo depois do copo ter sido
quebrado é hora de se posicionar, quase como uma
largada de maratona em busca da melhor mesa do
salão de festas. É ali que a família, amigos e um semnúmero de convidados deverão ouvir as mesmas
músicas tocadas em casamentos nas últimas cinco
décadas. Clássicos como It’s Raining Man, La Bamba,
Biquini de Bolinha, Hava Naguila e a indefectível New
York, New York serão fatalmente interpretadas, seja
pela banda, seja pelo dj. A música, tida como alma
de qualquer festa, tornou-se uma commodity. Pelo
menos até a chegada de um músico que até pouco
tempo era mais um executivo de marketing frustrado, preso em um escritório e longe dos palcos, seu
verdadeiro habitat. Eduardo Faigemboim, ou Peixe,
como é conhecido, está provando que nem todos os
casamentos precisam ser iguais.
Tudo começou por acaso, meio sem querer, quando
um amigo decidiu se casar e o nomeou padrinho.
Todos sabem que o padrinho é aquele que dá bons
presentes, em geral caros. Como o mar não estava
para peixe, o então gerente de uma grande marca
esportiva teve uma idéia brilhante: dar de presente
a música da festa! Rafael Terpins, o noivo, conhecia
e apostava no talento do padrinho. O acordo estava
fechado. A festa não só rasgou a noite como também
alguns paradigmas. Peixe fez questão de tocar os hits
necessários de qualquer festa, só que de maneira diferente, com arranjos e ritmos pouco usuais. A mistura
de rock, disco e ska, passando por bolero com pitadas
de ritmos judaicos, frevo e reggae, foi o tempero que
faltava para que aquele casamento ficasse marcado
na lembrança de todos os presentes. Teve até “canja”
de convidado que também era músico e acabou
dividindo o pequeno palco que marcou o início
da carreira artística deste paulistano de 31 anos.
De lá pra cá o telefone não parou mais, incluindo
aquele convite para abrir o show da maior
estrela pop judaica da atualidade: Matisyahu,
compositor e cantor americano que mistura
reggae clássico com judaísmo ortodoxo e que
concorre ao prêmio Grammy deste ano, espécie
de Oscar da música mundial. Cerca de quatro mil
pessoas lotaram o ginásio do clube A Hebraica, em
São Paulo, no final de janeiro para cantar e dançar ao
ritmo da Sensacional Orquestra Sonora (sos), nome
da banda do Peixe, e, claro, de Matisyahu. “Vocês
fizeram um bom trabalho”, sentenciou o músicodublê de rabino.
Antes de batizar como sos, Peixe criou um nome
bem sugestivo para a primeira formação de sua
banda que chega a ter até dez músicos: The Iídiche
Mamas & The Papas. Como todo bom negociante,
o ex-marqueteiro percebeu que pouca gente fora
da comunidade perceberia o trocadilho e decidiu
O REPÓRTER
mudar; afinal o mercado de festas de casamentos
e outras comemorações é muito maior do que se
imagina. Peixe já foi contratado para as mais diferentes situações, desde os tradicionais casamentos,
sejam eles judaicos ou não, batizados, bar-mitzvás,
aniversários e até celebração de morte. “A família
queria algo especial para lembrar os dez anos de
morte de um ente querido. Só que eles queriam celebrar as passagens felizes, as boas memórias”, explica.
“Minha maior gratidão é saber que levo alegria para
as pessoas, que sou parte de um momento muito
especial na vida daqueles que me chamaram. Sou
um privilegiado.” Em setembro de 2005, Peixe
mergulhou na emoção de inaugurar uma sinagoga,
o Centro Religioso Bait, localizado no tradicional
bairro de Higienópolis. Quem imaginou protocolos,
formalidades e pessoas falando baixo, está enganado.
A convite do rabino Isaac Michaan, Peixe subiu em
um trio elétrico e circulou pelas ruas da vizinhança
com uma horda de mais de três mil foliões cantando
e dançando ao som do primeiro trio elétrico judaico
de que se tem história. Até o atual governador de
São Paulo, José Serra, caiu na festa. Para o rabino, o
que vale é a mensagem, independente da forma. “Ele
toca o coração das pessoas”. O resultado musical foi
tão bom que Michaan chamou-o novamente para
comemorar o primeiro ano do Bait, durante a festa
de Simchat Tora, data que festeja a existência do mais
sagrado dos livros judaicos. As tradicionais hafkafot,
sete voltas que os fiéis fazem ao redor da sinagoga
carregando a Torá, foram embaladas pela interpretação hassídica em ritmos que passaram do reggae ao
bolero, do rock ao forró. “O judaísmo é uma religião
que celebra a vida. O Peixe é um jovem vibrante que
conseguiu criar uma nova forma de transmitir essa
alegria judaica para as pessoas”, diz Michaan. “No
dia do trio elétrico, um senhor de quase setenta anos
veio falar comigo, dizendo que nunca se imaginaria
dançando na rua com a Torá nas mãos. E foi exatamente o que aconteceu”, lembra o rabino.
Para Peixe, que não se considera religioso, o
caminho da música não foi um acontecimento ao
acaso. “Isso me marcou muito, nunca imaginei que
pudesse ter um retorno sentimental tão grande.
Sinto-me privilegiado em poder transmitir para
várias partes da sociedade as belezas e a alegria da
música e das tradições judaicas. Tenho descoberto
que esta é a minha missão”. De nada vale a forma sem
conteúdo. Peixe faz questão de explicar tudo o que
acontece aos sete músicos da Sensacional Orquestra
Sonora que não são judeus. Baseado no aprendizado
adquirido nos anos em que estudou no colégio I.L.
Peretz, o líder da banda explica o significado de cada
acontecimento, celebração e simbologia. Paulinho, o
trompetista da orquestra, que também se apresenta
em cultos de igreja, é um dos mais interessados. O
guitarrista Fabio Pinczowski, seu sócio na sos, e a
vocalista Helena Rosenthal ajudam na troca de informações interculturais. O que todos concordam é que
a mais básica das tradições é tocar New York, New
York nos casamentos. O único que não sabia disso
era o próprio Peixe. “Da primeira vez que pediram,
não sabia o que fazer. Não tinha a letra, nunca tinha
sequer tocado”. O jeito foi ensaiar para que nem os
convidados e nem os músicos da banda pudessem
fazer chacotas novamente. Letra memorizada, arranjo
feito, o gostinho da vitória estava por chegar. Lá pelo
meio do casamento seguinte, os pais da noiva se aproximaram do palco e, como se estivessem no Rockfeller Center, pediram a mais clássica canção de
Albert Francis Sinatra. Sorriso maroto
no canto da boca, Peixe respirou
fundo, deu aquela olhada para
os companheiros e... caiu
na gargalhada. O descontrole durou quase dois
minutos, uma eternidade para quem está
sendo observado por
quinhentos conviTudo começou por acaso,
dados. “Apesar da
meio sem querer, quando um
saia justa, ficou um
clima bom, todos
amigo decidiu se casar e o
riram juntos e eu
nomeou padrinho
consegui, finalmente, cantar a
música”, relembra.
Àqueles que nunca
foram a uma festa
comandada por ele,
Peixe promete lançar seu
primeiro cd ainda este ano.
Além das canções judaicas
com arranjos mais modernos e
inusitados, o músico também compõe
peças inéditas e próprias. Sua inspiração vem
de viagens, praia, surf (esporte que pratica há anos)
e até das influências latinas, vindas Colômbia, país
de origem de sua mãe. Ainda em 2007, Peixe fará
sua segunda apresentação no segundo casamento
do amigo Rafael Terpins, aquele que marcou o início
de sua carreira. “A primeira festa deu tão certo que eu
vou repetir a dose, só que com outra noiva”, brinca
Terpins. Romântico e um tanto tímido fora do palco,
Peixe sonha em tocar em seu próprio casamento.
Enquanto não encontra a felizarda, o músico já faz
promessas: “eu não tenho muito a oferecer, mas a
banda é de graça”.
Flavio Blasbalg é jornalista
Revista 18  29
SEÇÃO
NO
CENTRO
Projeto COEXISTENCE de Arte-Educação
vai à escola: mais de
3 mil alunos da rede municipal
de ensino foram atendidos
COEXISTENCE
O setor de Arte-Educação
desenvolve monitorias que
pretendem promover o debate e
a reflexão acerca da temática da
coexistência entre professores e
alunos em São Paulo
D
ando continuidade às atividades,
de 28 de agosto a 26 de setembro
de 2006, na Praça da Paz do Parque
do Ibirapuera, do projeto coexistence,
o Centro da Cultura Judaica estabeleceu
importante parceria com a Secretaria
Municipal de Educação e contato com
escolas do Estado, escolas particulares e
organizações não governamentais de São
Paulo, para viabilizar a participação de
alunos e professores no projeto coexistence vai às escolas em 2007.
Alunos e professores do Ensino Fundamental foram convidados a participar
deste projeto até novembro. No mês de
abril, os monitores foram recebidos por 34
grupos do Ensino Fundamental, ou seja,
cerca de 1.360 alunos. Até o final de maio
teremos atendido 71 escolas, um total
de 3 mil alunos. Diariamente, diferentes
escolas recebem uma dupla de monitores
que levam consigo dez reproduções autorizadas dos painéis, de diversos artistas do
mundo, que estavam expostos no Ibirapuera. Os alunos discutem suas idéias e
sentimentos frente às imagens e participam de uma oficina prática de artes
plásticas, onde fazem uma pintura em
grupo. No agendamento, os professores,
são orientados a implantar as ações e
projetos de coexistence em suas escolas
com os painéis produzidos durante a
oficina, possibilitando a realização de uma
exposição interna e discussões sobre esta
experiência. Até a data da publicação deste
artigo já tínhamos reservas até meados de
outubro, mostrando o enorme sucesso do
coexistence vai às escolas.
Acreditamos que esta é uma experiência muito rica, já que as imagens do
coexistence trazem conteúdos importantes a serem assimilados pelos alunos,
promovendo o conhecimento sobre a
diversidade das culturas em uma perspectiva inclusiva. Um grande estímulo para
que os alunos se tornem cidadãos informados, capazes de argumentar e, ainda,
socialmente responsáveis.
Uma experiência proveitosa para
todos os envolvidos: monitores, professores, coordenadores e alunos.
“A iniciativa de virem até a escola
e conhecer a nossa realidade
foi sensacional”
emef Maria Rita de Cássia Pinheiro
Simões Braga
“Excelente iniciativa que contribui
para a reflexão e o desenvolvimento do aluno como cidadão”
ee Toledo Barbosa
Aconteceu no Centro da Cultura Judaica
Cida Moreira
apresenta o show
Aos que estão por
vir, com canções
de Kurt Weill e
Bertolt Brecht
Raul Meyer conduz
a celebração do
Seder de Pessach, ao
qual compareceram
representantes das
principais religiões e
personalidades do mundo
da cultura e da política
O prefeito
Gilberto Kassab
ao lado de
David Feffer
na celebração
do Seder de
Pessach
Inauguração da exposição COEXISTENCE
30  Revista 18
O grupo Alia Musica, que se
apresentaria no dia 13/05/2007,
cancelou sua vinda ao Brasil
devido ao adiamento do projeto
da ii Mostra Brasileira de
Música Antiga





 
 







 

 



  
   
   
 

 

 



 
 

 
 






 


 

 

 





 


 

 



 

 
 

 



 

 
 
  
 

 

 



 

 

 
 
 
    
   

 

 
 
   
 





 

 




 
 



 


 
 










 










 
 













 
 

  



  
 


 


 


SEÇÃO
A célebre Ponte de Carlos, de Praga: para Flusser, geografia física e psicológica da cidade encontra em Kafka sua mais exata cartografia
Um judeu que militou contra
as pátrias: Vilém Flusser
e as marcas do exílio
Nascido na Praga de Kafka, uma cidade de pontes entre culturas e línguas, Vilém Flusser
refugiou-se da barbárie nazista no Brasil, e aqui criou uma das obras mais instigantes da filosofia
do século 20, calcada sobre a idéia de comunicação entre culturas, e sobre a crítica à noção de
pátria, hoje bem melhor conhecida na Europa do que entre nós. Por Márcio Seligmann-Silva
V
ilém Flusser é autor de um pequeno
e contundente texto escrito em
inglês, cujo título é “The bridge”.
Esta engenhosa peça autobiográfica abre
o volume Jude sein (Ser Judeu), organizado
por Stefan Bollmann e Edith Flusser. O
texto se inicia com uma descrição da casa
da infância do autor em Praga. Nos fundos
desta casa encontrava-se a fábrica do avô
34  Revista 18
materno, Julius Basch, elegantemente denominada de “Fabrique des colorants inoffensifs”
(Fábrica dos corantes inofensivos). Ligando
a cozinha do avô ao prédio da fábrica havia
uma ponte que dava diretamente na cobertura da fábrica, onde havia um jardim. Desta
ponte, Vilém e sua irmã Ludvika costumavam observar os trabalhadores no pátio
da fábrica. Disputando os olhos curiosos
deles andava também, neste mesmo pátio,
o enorme cão São Bernardo, Barry. Esporadicamente as crianças se divertiam galopando sobre ele. Mas, em um belo dia de
1926, narra este texto, os irmãos Flusser
viram Barry, que brincava com um dos
funcionários, repentinamente virar-se. Ele
atacou este funcionário que caiu no chão e
um jorro de sangue ficou a escorrer de sua
Fotos: © RyanDianna
perna, que Barry não queria mais largar.
Flusser narra esta história como uma
espécie de Denkbild (imagem-pensamento)
benjaminiano, ou seja, como uma pequena
imagem que condensa um aspecto importante de sua experiência de vida. Este incidente ensinou a ele que pode haver
algo como “uma metamorfose
repentina do bem em uma brutal
agressão”. Este episódio de 1926 ele
conecta – em uma espécie de ponte
metafórica – com a virada ocorrida
na sua vida e na dos milhares de
judeus de Praga em 1939 graças “à
repentina mudança de atmosfera
com a ocupação nazista”. “Aos meus
olhos”, escreveu Flusser, “Praga é
como um cão São Bernardo Barry”.
A virada que ele testemunhara com
seu cão já o preparara para esta
outra terrível virada.
Mas se Flusser afirma que desde
então, ou seja, dos seus seis anos de
idade, não gostou mais de pontes,
por outro lado ele não deixou de
admirar uma ponte em particular,
também localizada em Praga, a
saber, a famosa Ponte de Carlos. Em
seu ensaio sobre “Praga, a cidade de
Kafka” ele destacou várias analogias ou afinidades eletivas entre
a geografia física e psicológica
de Praga e o universo das obras
kafkianas. Uma peça fundamental
nesta geografia é justamente esta ponte,
que é descrita como “um elo impossível,
mas realizado, entre Castelo e igreja, entre
monte e vale, entre o rei e o burguês, entre
a soberba e a humildade, entre a rua dos
alquimistas e a universidade, entre o céu e
a terra, entre o ‘Castelo’ e a aldeia de Kafka”.
Praga é marcada por esta imponente e deli-
DOSSIÊ
cada ponte, justamente porque é um espaço
de tensões e campos de força. Esta cidade
viveria de sua própria dissolução. Flusser
a descreve como uma cidade “situada nas
fronteiras”. Kafka seria um “pontífice”, ou
seja, segundo Flusser, um “construtor de
pontes impossíveis”. Nele percebemos a
“posição flutuante e duvidosa do praguense
com relação a sua ‘nacionalidade’ ”, que se
explicita, sobretudo, nos momentos em
que esta cidade foi ocupada. O triângulo
cultural entre o alemão, o tcheco e o judeu
ditava a característica desta cidade como
campo de passagem entre fronteiras. Kafka
também transitava, como Praga, entre
o gótico e o barroco, entre o ocidente e o
oriente europeus, e sua língua era simplesmente “o próprio alemão praguense”. Mas
Flusser, no seu apanhado das pontes que
Uma peça fundamental na geografia
de Praga é a Ponte de Carlos,
descrita por Flusser como “um elo
impossível, mas realizado, entre
Castelo e igreja, entre monte e vale,
entre o rei e o burguês, entre a
soberba e a humildade, entre a rua
dos alquimistas e a universidade,
entre o céu e a terra, entre o
‘Castelo’ e a aldeia de Kafka”
marcam a obra de Kafka e no seu paralelo
com a Praga da Ponte de Carlos, também
desemboca, inexoravelmente, na virada,
na metamorfose repentina, ou seja, na
“mordida de Barry”. Ele recorda que Praga,
que era a unidade destes mundos e, sobretudo, destas três culturas – a alemã, a tcheca
e a judaica – tornou-se inteiramente outra
com a eliminação de seus judeus. O “pontífice” Kafka teria conseguido ainda congelar
e passar adiante, nas imagens de sua obra,
uma cultura que foi extinta. As metamorfoses que ele narrou, aprendemos poucos
anos após sua morte, eram antevisões de
metamorfoses muito mais terríveis do que
ele pudera imaginar.
Gostaria de me deter em alguns aspectos
da obra de Flusser que se relacionam com
esta virada na sua história, na história de
Praga e na da Europa. É importante indicar
na obra deste pensador as marcas desta
metamorfose, mas também deste verdadeiro culto da “ponte”. O “pontificado” de
Flusser se estende sobre a linguagem. Mas
como, para ele, língua é realidade, este
pontificado é uma tentativa de (re)construir
pontes após o abalo sísmico provocado pelo
nazismo. Suas pontes são tanto
internas, sentimentais, tentativas
de diálogo com sua cultura perdida,
como também uma resposta ao
enlouquecimento da língua, que
se tornara monolíngüe e deste
modo bloqueou abruptamente, e
com violência, a circulação entre
as línguas e visões de mundo que
caracterizavam seu universo.
Ser Judeu: Bodenlos e Heimatlos
Ruth Klüger, em seu relato autobiográfico weiter leben, que narra
como ela sobreviveu à Shoá, utiliza
uma metáfora que não nos surpreende a esta altura: sua narrativa
funcionaria como uma tentativa
de ligar os pilares de uma ponte
ruída, ou seja, os pontos de sua
própria vida que ficaram ilhados
pela destruição da guerra. Flusser,
portanto, fez parte de uma equipe
de construtores de pontes neste
século de extermínios e guerras.
Como outros pensadores exilados
e sobreviventes da perseguição,
ele desenvolveu seus teoremas em
diálogo com sua época. Neste sentido é
importante recordarmos alguns aspectos
de sua teoria da judeidade e dos conceitos
correlatos de Heimatlosigkeit (“apatricidade”) e de Bodenlosigkeit (ausência de
fundamento). Devemos localizar esses
conceitos dentro do panorama intelectual
da segunda metade do século 20.
Revista 18  35
DOSSIÊ
A judeidade de Flusser, tal como correr da água que o nome Flusser indica – e
podemos ler em suas idéias acerca desta não por sermos seres estáticos plantados em
questão na sua obra, foi, antes de mais culturas estáticas. Daí a admiração de Flusser
nada, pensada a partir do fenômeno pela cultura judaica em ambientes multilincultural único que era a cidade de Praga. gües e multiculturais, como a Praga de antes
Como filho de um professor universitário da guerra e a Alexandria da era helênica. Daí,
“completamente agnóstico, ainda que inte- também, sua concepção do judaísmo como
ressado ativamente no judaísmo”, Flusser uma ponte que não apenas liga culturas, mas
se apresenta como um judeu assimilado, também as conecta com a tradição. A grande
não-ortodoxo e não-sionista. Em Praga, contribuição do pensamento judaico seria
sentia a questão da identificação nacional sua dívida de memória, ou seja, o mandacomo algo “arcaico e secundário”. É claro mento da Zekher, que escandaliza o modo
que ele escreve isto de sua perspectiva de de pensar anti-histórico grego. Lembrando
judeu (impermeável aos nacionalismos germânico ou tcheco)
e anti-sionista. Para ele, em Praga
era-se “internacionalista de nascimento (e não ideologicamente),
pois as pessoas sentiam na própria
existência o ridículo de se fazer
diferenças claras entre os povos”.
O sionismo ele descartava, pois
Flusser recorda que Praga era a unidade
via nele um nacionalismo, uma
reação ao anti-semitismo e ao
de três mundos e, sobretudo, de três
nazismo e porque atribuía ao
culturas – a alemã, a tcheca e a judaica.
judaísmo um papel “diametralmente oposto ao que o judaísmo
Porém, a cidade tornou-se inteiramente
desempenhava em Praga, a saber,
outra com a eliminação de seus judeus. O
ser ponte entre os povos”.
Ser judeu, para Flusser, portanto,
“pontífice” Kafka teria conseguido ainda
não significava de modo algum se
congelar e passar adiante, nas imagens
encastelar em uma cultura fechada.
Muito pelo contrário, a judeidade
de sua obra, uma cultura que foi extinta
para ele era também um avatar
de sua doutrina das “pontes”. Daí
ele não se sentir “completamente
judeu”, ou seja, totalmente e exclusivamente judeu. Ser judeu, para
ele, significava saber circular entre
as culturas. Ele se dizia “ser por
demais ‘grego’, ‘romano’, ‘germano’
e ‘cristão’ para ser totalmente judeu”.
Os “limites da judeidade” fazem parte do várias figuras judaicas de destaque, ele
“ser judeu”. Este deve encarar sua tarefa de propõe que cabe ao judeu produzir modelos.
sintetizar as culturas. Mas cada um realiza Estes modelos seriam figuras paradoxais,
sua síntese ao seu modo. Flusser toma como nascidas desta situação ao mesmo tempo
elogio as palavras derrisórias dirigidas atópica – Bodenlos – que o judeu encarna,
contra os judeus: “Heimatlos” e “cosmopo- e de seu engajamento com a construção
lita”. Indica-se assim que eles não teriam de pontes. Acredito que o próprio Flusser
raízes. Na verdade ser fiel às raízes, para ele, representaria este papel paradoxal: na sua
significa superar (überholen) suas idiossin- vida única e inimitável ele representa um
crasias. Isto significa dizer, o que Flusser tipo de pensador e uma postura existencial
de fato faz em certos momentos, que o ser que é modelar em vários sentidos, assim
humano não é uma planta. Nosso estar no como via no judeu e seu pontificado um
mundo é marcado pelo fluxo – pelo Fliessen, modelo aberto a todos.
36  Revista 18
Em seu pequeno texto de 1990, intitulado
“Pontificar”, ele explora a idéia da tradução
como construção de pontes. Aí ele afirma
que os pontífices (construtores de pontes)
seriam essenciais, hoje mais do que nunca.
Eles deveriam permitir o trânsito não
apenas entre as diversas línguas (trânsito
impossível, mas necessário), como também
entre o discurso verbal e o imagético, entre
o conceito e o algoritmo, entre a música e as
demais linguagens. Traduzir implicaria um
“salto entre universos”. Se traduzir equivale
a “levar de um lado para o outro”, esta atividade é metáfora (no sentido etimológico desta palavra). Mas se, por outro
lado, Flusser precisa que “tradução e
metáfora não são a mesma coisa”, não
deixa de enfatizar – ponto essencial
para ele – que “pensar e traduzir são
sinônimos, e não apenas para poliglotas”. Ser “judeu” para ele significava encarnar esta tarefa pontifícia de
“oscilar” e transitar entre universos.
Sua Bodenlosigkeit (falta de chão, de
terra e de fundamento) abria-lhe a
perspectiva de ser um nômade entre
as diversas línguas e linguagens. Ao
mesmo tempo, de sua “ponte” ele via
que as disciplinas, nações e linguagens específicas são nômades e vivem
de uma constante crise e de um fluxo
que põe em questão suas identidades,
como o próprio indivíduo deve ser
visto como um tal fluir. Ele tinha
como projeto que toda a humanidade
pudesse se tornar Bodenlos e praticar
o pontificado1.
Flusser se coloca a questão “como
viver após Auschwitz?” e uma de
suas respostas é uma proposta de
abertura do judaísmo. Ao invés do
sionismo, que representaria um
movimento de fechamento, sístole (que
entende e considerou digno), propõe uma
diástole, ou seja, uma abertura ao “outro”.
Este movimento foi o que ele mesmo seguiu
em sua vida e em seu pensamento. Ele se
manteve na diáspora assim como continuou fiel, a seu modo, a seu judaísmo.
Nunca tentou reconstruir as ruínas de seu
passado em Praga. Sintomaticamente, a
volta àquela cidade em 1991 significou o
momento trágico do encontro de sua morte.
Como se seu destino existencial e filosófico fosse mostrar que o engajamento no
SEÇÃO
e pelo outro não se dá via uma artificial
recuperação do passado. A rememoração,
Zekher, deve ser feita com os olhos voltados
para o presente. O passado não é Deckerinnerung (memória encobridora), mas meio
de pensar o presente. Com esta mirada de
Flusser podemos fazer uma crítica de nossos
hábitos de reconstruir ruínas e cidades
destruídas pela guerra como se nada tivesse
acontecido. Seu modelo do engajamento no
presente a partir dos cortes (com o passado e
com as ideologias nacionalistas) ainda tem
muito a desconstruir.
Sua experiência de vida deixou-o particularmente aberto para uma obra como Le
Bouc Émissaire de René Girard, comentada
por ele em um texto de 1982 (mesma data
da publicação do livro de Girard). A tese
central deste livro, segundo a qual as sociedades em momentos de caos e de dissolução lançam mão de bodes expiatórios
para gerar novamente uma unidade, ele
vivera na própria carne. Ele sabia como
funciona este mecanismo psicológico que
faz com que “sempre nos identificamos
como os estrangeiros dos estrangeiros”.
Flusser apresenta a partir de Girard uma
teoria da identidade como um gesto de
exclusão assassino. “Quem sou eu? É
uma frase criminosa”, ele anotou então.
Todo ato de auto-afirmação depende
deste “crime”. Flusser apresenta a estrutura do mito como calcada no sacrifício,
no assassinato. Os mitos seriam figuras
do recalcamento da culpa. Não deixa de
ser admirável que Flusser não cite neste
contexto a teoria freudiana de Totem e
Tabu, da tragédia grega como reencenação
(culposa) do assassinato do pai da “horda
primeva”. Flusser afirma que “quanto pior
é a nossa consciência, tanto mais cruéis
tornam-se nossos crimes”. Esta tese revela
nossa sociedade atual, com suas desigualdades gritantes, como um campo fértil
para massacres.
Sua situação de exilado e esta reflexão
sobre o dispositivo de identidade como um
dispositivo xenófobo e “outricida” lançam
também luz sobre sua potente teoria da
Heimatlosigkeit, tal como lemos no ensaio
Wohnung beziehen in der Heimatlosigkeit.
(Heimat und Geheimnis – Wohnung und
Gewohnheit) (Mudar-se para uma Morada
na Ausência de uma Pátria – Lar e Mistério
– Morada e Hábito). Aqui se trata também,
Ainda a Ponte de Carlos, numa de suas extremidades: rios e pontes
tiveram importância crucial na trajetória de um filósofo para quem
ser judeu significava saber transitar entre culturas, e sintetizá-las
de modo explícito, de uma reflexão retirada
de sua própria experiência de vida. Daí este
trabalho ter sido acolhido no volume autobiográfico Bodenlos (que está sendo lançado
pela editora Annablume em português).
Este texto é fruto da reflexão de seu autor
sobre sua origem judaica em Praga e sobre
seu exílio em São Paulo. Ele se inicia com
uma descrição do autor que conclui com
estas palavras: “Em suma, sou heimatlos,
(desprovido de pátria) porque muitíssimas
pátrias [Heimaten] se armazenam em mim.
Isto se manifesta diariamente no meu
trabalho. Eu sou apatrizado [beheimatet] em
pelo menos quatro línguas e me vejo exortado e obrigado a traduzir e retrotraduzir
tudo a-escrever [zu-schreibend]”. Deste fato
ele também deduz seu interesse pela comunicação, pelos buracos entre os lugares e
“pelas pontes que cobrem estes buracos”
(meu grifo). “Talvez este interesse pode ser
deduzido do meu próprio pairar [schweben]
sobre estes lugares”, ele arrematou. Seu
texto, de modo geral, se apresenta como uma
Revista 18  37
DOSSIÊ
reflexão teórica a partir deste “transcender “fetal”, que amalgama os indivíduos à
das pátrias”. Ele parte, nesta teoria, da dife- Heimat, e constitui uma das mais potentes
rença entre o gesto de habitar e o de ter uma matrizes de preconceitos. A Heimat é o
pátria. O ser humano desde os tempos mais dispositivo por excelência da identidade
remotos sempre habitou algum lugar, mas moderna. Sob suas assas é chocado o ovo
apenas recentemente se tornou agregado a do preconceito contra o outro. Se toda idenuma pátria, Heimat. Esta é a protoverdade tidade é assassina, como Flusser destacou
que o exilado Flusser descobre a partir de a partir de Girard, então mais do que
sua “ponte”. “Nós, os incontáveis milhões nunca o pensamento a partir da Heimat o
de migrantes (sejamos trabalhadores estran- é. Assim, Flusser mostra como o Heimatlos
geiros, exilados, fugitivos ou intelectuais (apátrida) incomoda aquele que habita na
andando de seminário em seminário), clausura protetora da Heimat: o Heimatlos
nos reconhecemos não como excluídos revela como tudo aquilo que este acredi[Aussenseiters], mas antes como vanguardas tava formar as verdades mais “originárias,
[Vorposten] do futuro.” Ao invés de pessoas únicas e inimitáveis”, ou seja, tudo o que
dignas de pena, estes deslocados
seriam “modelos”, pois a migração,
além de ser um sofrimento, é uma
ação criadora.
Parafraseando uma das teses
sobre a filosofia da história de
Benjamin, esta postura pode ser
vista como o “salto tigrino” de
Sair da Heimat significa galgar um
Flusser sobre o céu das catástrofes
campo livre para o julgamento – ou ao
do século 20: ele transforma sua
Leidengeschichte (paixão) em um
menos mais livre do que aquele que vive
modelo positivo. Mas não se trata
sob sua campânula asfixiante. Flusser
de um modelo de sofrimento,
de um martirológio. Muito pelo
tende a apresentar suas trocas de
contrário, Flusser escreve relativaHeimat como se fossem trocas de roupa
mente pouco sobre a destruição dos
judeus da Europa. Antes, ele executa
uma reviravolta em sua posição,
passando de vítima a modelo de
um novo homem. Ele está entre
estes autores que partem do lugar
do exílio para escrever. Eles lançam
“outro olhar”, que rompe com o
automatismo de nosso pensamento. Daí sua Heimat significa, pode ser mimetizado.
suas obras envolverem visceralmente suas O estrangeiro, para falarmos de um modo
vidas. De certo modo, uma das primeiras que recorda a Genealogia da Moral de Nietverdades que eles desmontam é a falácia da zsche, revela que a Heimat é um constructo
autonomia da obra diante da vida.
de hábitos decantados, cristalizados, cuja
Na filosofia da Heimatlosigkeit que Flusser origem foi esquecida. Ele profana e dessaderivou de seu exílio, viu em sua saída de craliza a Heimat. Ele mostra como as regras
Praga um “desabamento do Universo”, mas da Heimat são banais. Como conseqüência,
também, dialeticamente, uma “vertigem o estrangeiro é ainda mais odiado e estigda libertação e do ser-livre”. Ele viu nesta matizado. Ele é apontado como o “outro”
ruptura de seus laços com a sua Heimat- do próprio, o “feio e digno de ser odiado”.
Praga uma libertação do sedentarismo e A Heimat é a matriz da ontotipologia, da
um mergulhar no nomadismo. A quebra da criação dos tipos, das “formas ideais”, que
pátria também serve de laboratório para a se querem puras e se relacionam com a
decomposição e análise de seus elementos teoria das formas platônicas, na medida
originários e estruturais. Entre eles, Flusser em que este pensamento da propriedade
detecta uma “memória não-articulada”, da Heimat é inimigo das noções de cópia
38  Revista 18
e de simulação, tanto quanto Platão o foi
e por isso expulsou o poeta de sua República ideal.
Sair da Heimat significa galgar um campo
livre para o julgamento – ou ao menos
mais livre, do que aquele que vive sob sua
campânula asfixiante. Flusser tende a apresentar suas trocas de Heimat como se fossem
trocas de roupas: assim ele passou de Praga
para Londres, para São Paulo, para Robion,
mudando, sucessivamente, de Heimat. A
cada corte de sua relação com uma Heimat
ele foi se tornando mais independente desta
ancoragem identitária. Evidentemente, o
primeiro corte foi o mais radical e o mais
traumático. Foi o único que pode
ser chamado mais propriamente de
exílio. Os demais foram migrações.
A saída de Praga estava ligada a sua
sobrevivência. A quebra daquela
Heimat foi condicionada pela morte
de todos os que o ligavam a ela. Mas
justamente esta radicalidade não
deixava escolhas. Daí Flusser escrever
que “o partir do nó górdio de Praga
foi mais fácil”. Para ele, a liberdade
do migrante permite que ele supere,
aufhebt, suas pátrias. Ele, não apenas
teria rompido com suas pátrias,
mas antes as incorporado: ele – que
foi provavelmente o maior filósofo
brasileiro do século 20, e, de qualquer
modo, o que maior repercussão internacional obteve – definia-se como
praguense, paulistano, robionense e
judeu, além de se localizar dentro do
círculo cultural alemão. 
Márcio Seligmann-Silva é professor de
Teoria Literária e Literatura Comparada
na UNICAMP , doutor pela Universidade Livre
de Berlim e autor de O Lugar da Diferença
(Editora 34, 2006), entre outros livros
1
Em um artigo de 1970 intitulado “Sobre a Ponte de
Avignon” Flusser utiliza a imagem da ponte em ruínas
da ex-cidade papal para representar a Europa em meio
aos movimentos de contestação estudantil. Ele faz neste
texto um rasgado elogio da vida européia (e sobretudo
da Province, para onde se mudaria dois anos depois). O
interessante neste texto é que nele percebemos novamente como Flusser pensava a ponte como um topos
com teor epistemológico. Vemos como ele, “sobre a
ponte de Avignon”, observa seu mundo como uma
espécie de “observador de segunda ordem”.
DOSSIÊ
Em busca de uma linguagem humana:
Vilém Flusser e Haroldo de Campos
Noções de convergência das várias línguas e de cosmopolitismo da literatura são comuns
ao pensamento do filósofo judeu tcheco e do maior poeta concreto brasileiro, e mostram
influências de Goethe tanto quanto de Oswald de Andrade. Por Susana Kampff Lages
A
s idéias de Goethe acerca da Weltliteratur, ou literatura mundial, e de seu
papel na constituição do conceito
da Bildung (palavra que significa simultaneamente cultura e formação), parecem
fundamentar a estratégia de leitura dos
poetas concretistas brasileiros, em especial
de Haroldo de Campos. Suas reflexões sobre
a leitura foram influenciadas, também, pelo
conceito de antropofagia, formulado pelo
poeta modernista Oswald de Andrade, que
o levou a repensar a história da literatura e
o papel que dentro dela têm a linguagem e
a tradução.
Não por acaso, num depoimento
que deu sobre o crítico e filósofo Vilém
Flusser, Haroldo de Campos refere-se a uma
expressão extraída do título de uma obra
goetheana – “afinidades eletivas” – para
remeter às complexas redes de relações intelectuais tecidas por Flusser em seu exílio
brasileiro, ainda que o fluxo dessas afinidades não ligasse, em linha direta, Campos
a Flusser, como fica claro num depoimento
do poeta paulistano:
(...) a relação do Flusser com as artes brasileiras
vai um pouco ao sabor de alguns interesses filo-
Chama a atenção, nesse depoimento, o
uso que Campos faz da palavra fluxo, sobretudo tendo em vista o contexto de referência
à expressão goetheana “afinidades eletivas”
[Wahlverwandtschaften], sublinhando seu
campo de proveniência, a química do
tempo de Goethe. É interessante observar a
complexa operação de negação da afinidade
Em relevo estão, para
os concretos como para
Flusser, o elemento
transnacional e
internacional da literatura,
e a centralidade da
linguagem como
fenômeno privilegiado
de acesso ao cerne da
experiência estética e
existencial humana
sóficos dele e de certas afinidades, daquilo que
em termos goetheanos eu chamaria de certas
afinidades eletivas; um termo da química,
(...) onde elas não ocorriam como ocorreram
com Anatol (Rosenfeld) e não ocorreram no
meu caso, não passava o fluxo que ele queria
transmitir. E ele... naturalmente que se criava
um hiato. Onde isso ocorria, ele podia se deter
e passava a ser entregue... É o caso da Mira
Schendel. (depoimento dado a Ricardo Mendes
em 5/2/1999).
entre Campos e Flusser, traída pelo próprio
uso das palavras: diferentes substâncias
tornam-se afins por meio de uma terceira
– e Campos cita os terceiros que criaram esta
afinidade, a princípio negada, com Flusser: o
crítico Anatol Rosenfeld e a artista plástica,
Mira Schendel, aos quais Campos se sentia
direta e profundamente ligado.
De certa forma, ele reconhece que Flusser
exerceu um papel no debate intelectual e
artístico da época, mas afasta-se dele por
considerar sua visão demasiado próxima
da de intelectuais que ele definiu como de
uma “direita ilustrada” de extração heideggeriana, como o filósofo Vicente Ferreira da
Silva, por demais preocupados com uma
dimensão sacral do ser e da linguagem.
Os poetas concretos, Haroldo e Augusto
de Campos e Décio Pignatari, tinham uma
concepção da linguagem que se chocava
com o idealismo de interpretações de
matiz heideggeriano, que, segundo sua
visão, negligenciavam a linguagem em seu
aspecto material, concreto.
Em sua obra, porém, Flusser evidencia
um interesse constante por aspectos bem
concretos de uso da língua e, sobretudo, de
línguas em contato. Ele possuía um modo
muito particular de refletir e redigir suas
reflexões: fazia sucessivas traduções e retraduções de um mesmo texto. Exercício
lúdico extremamente original, o método
de Flusser coloca a linguagem verbal e suas
múltiplas atualizações, as diferentes línguas,
no centro de uma reflexão que aponta para
si mesma, e também para o próprio sentido
etimológico encerrado nas palavras reflexão e
especulação (reflexo, espelho), cernes da atividade do pensamento ocidental desde as reflexões dos primeiros românticos alemães.
Não por acaso Flusser cita, num artigo
inédito, denominado “Traduções são
possíveis?”, o poeta Yeats, em inglês e o
traduz: “Mirror on mirror mirrored is all the
show (espelho por espelho espelhado é todo
o espetáculo)”. Esse interesse permanente por
uma reflexão sobre a linguagem e as línguas
Revista 18  39
Fotos: reprodção
DOSSIÊ
Haroldo de Campos e Vilém Flusser: afinidades eletivas do filósofo não o ligavam diretamente ao poeta
e tradutor, ainda que houvesse entre os dois um repertório filosófico-ideológico compartilhado
aproxima o trabalho de Flusser do de Campos,
sobretudo de suas reflexões sobre a tradução
como operação de transposição criativa, nos
termos de Jakobson, de transcriação, neologismo criado por Haroldo e Augusto de
Campos para dar conta do elemento de intervenção ativa do tradutor em seu trabalho.
O impulso babelizante da escrita e da
reflexão dos poetas concretistas, de Flusser
e de outro escritor fundamental, cuja obra
Flusser apreciava, Guimarães Rosa, pode
ser atribuído a uma espécie de movimento
ou desejo de atualizar princípios e idéias de
Goethe sobre a literatura em geral e sobre
as literaturas nacionais e suas inter-relações
em particular. Cabe lembrar que a idéia
modernista da antropofagia cultural tem
em Goethe um interessante contraponto.
Goethe manifestou-se explicitamente a
respeito, tendo, inclusive, escrito poemas
que remetem ao ritual do canibalismo em
conexão com o Brasil, país pelo qual nutria
um interesse que advinha de sua curiosidade
pelo mundo científico e antropológico.
Evidentemente, a relação de qualquer
pessoa culta de língua alemã não pode
deixar de passar pela leitura da obra de
Goethe – hoje como à época em que Flusser
emigrou, acompanhado de seu exemplar do
Fausto, lado a lado com um livro de preces
judaicas, que afinal se perdeu.
Em Língua e Realidade, livro em que
Flusser discute a questão da tradução,
ouvimos as múltiplas vozes dos filósofos
40  Revista 18
ou escritores, que ali convergem para uma
“grande conversação” que é, sem dúvida,
tributária de muitas outras vozes da
tradição judaico-alemã da Europa Central:
a de Martin Buber, o pensador por excelência do diálogo, e a de Franz Kafka, cuja
escrita inacabada postula a impossibilidade
do diálogo em vários níveis, bem como a
voz da tradição do romantismo alemão,
em que o discurso filosófico dialoga e se
contamina com as categorias do discurso
literário ou ficcional.
Ora, intelectuais como Anatol Rosenfeld,
Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai e o próprio
Flusser, formados pela leitura das grandes
obras da tradição alemã, influenciaram toda
uma geração da crítica literária brasileira,
que posteriormente teve em nomes como
os dos irmãos Campos, Décio Pignatari e
Roberto Schwarz alguns de seus expoentes,
ainda que muitas vezes representando posições hermenêuticas divergentes. Pode-se
dizer que, em muitos aspectos, a crítica
literária brasileira do século 20 se forma
(no sentido alemão da Bildung) a partir do
diálogo de intelectuais brasileiros com esses
intelectuais de formação alemã exilados
no Brasil. Em especial, deve-se assinalar
que tanto os poetas concretistas quanto o
filósofo Flusser foram transgressores dos
paradigmas clássicos de suas respectivas
práticas – literárias ou filosóficas. Haroldo
de Campos e os demais poetas do concretismo são tributários dos movimentos de
vanguarda do início do século 20; Flusser
se reconhece na filosofia da linguagem de
Wittgenstein – num tempo em que não se
tinha, no Brasil, uma visão mais global da
totalidade da obra wittgensteineana.
Em relevo estão, para os concretos como
para Flusser, o elemento transnacional e
internacional da literatura, e a centralidade
da linguagem como fenômeno privilegiado
de acesso ao cerne da experiência estética e
existencial humana. 
Susana Kampff Lages é professora de Língua
e Literatura Alemã da Universidade Federal
Fluminense
Bibliografia
Berman, A. “Goethe e literatura mundial” In: ____. A Prova
do Estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Bauru: EDUSC, 2002.
Campos, H. Post-scriptum. “Transluciferação mefistofáustica”. In: ____. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São
Paulo: Perspectiva, 1981. p. 179-209.
Flusser, V. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.
Goethe, J. W. “West-östlicher Divan, Teil 1 und 2” [ed.
Hendrik Birus] In: . ____. Sämtliche Werke. Briefe, Tagebücher und Gespräche. (eds. Friedmar Apel, Hendrik
Birus et allii) Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker
Verlag, 1994. Bände 3/1 und 3/2.
Krause, G. B. & Mendes, R. (orgs) Vilém Flusser no Brasil. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
Sousa, C. H. M. R. de. “O Brasil na obra de Goethe” In: ___
_. Do Cá e do Lá – Introdução à Imagologia. São Paulo:
Humanitas, 2004. p. 158-80.
DOSSIÊ
SEÇÃO
Nomadismo como libertação
Manuel da Costa Pinto lê Bodenlos, a autobiografia de Vilém Flusser, para quem descrever uma trajetória
de errância foi como uma iniciação para habitar a Terra da Promissão do convívio e do diálogo
Para Flusser, a errância culminava na arte do diálogo, e tornava-se, assim, uma experiência libertadora
“O
ensaio, essa forma híbrida entre
poesia e prosa, entre filosofia e
jornalismo, entre aforismo e discurso, entre
tratado acadêmico e vulgarização, entre
crítica e criticado, constitui um universo
que é habitat apropriado para o ‘exilado
nos picos do coração’ (para falarmos com
Rilke). Quem tem a sua práxis, quem vive
ensaisticamente (isto é, não quem apenas
escreve ensaios, mas aquele para o qual a
própria vida é ensaio para escrever ensaios),
sabe que, a rigor, o problema do tema a ser
escrito nunca se coloca. Ou, para ser exato:
se coloca negativamente.”
Essa profissão de fé na escrita ondoyante e
na “errância” temática remete, sem dúvida,
àquela tradição fundada pelos Ensaios de
Montaigne no final do século 16. O tipo
de leitura à qual convida, porém, está bem
longe da fruição “vagagunda” proposta pelo
humanista que pode contemplar a comédia
humana da torre de sua biblioteca, no
convívio amigável com os livros.
Pois a frase – extraída de Bodenlos: uma
autobiografia filosófica, de Vilém Flusser – é o
ponto de chegada de uma trajetória marcada
pela guerra e pela perseguição nazista, na
Revista 18  41
DOSSIÊ
O filósofo e sua esposa Edith em férias, em Campos do Jordão:
clima ideológico cosmopolita existente entre refugiados
ajudou-o a criar um antídoto contra as vulgaridades ideológicas
qual a vivência “natural” do descentramento
se radicaliza em desterro metafísico.
Flusser (1920-1991) deixou sua Tchecoslováquia natal após a anexação dos Sudetos
pela Alemanha nazista (um dos marcos
iniciais da 2ª Guerra Mundial). Depois de
breve passagem pela Inglaterra, veio para o
Brasil, mais especificamente São Paulo, onde
esse autodidata sem formação acadêmica
deu aulas na usp, no ita e na faap, colaborando com os principais jornais paulistas
e escrevendo em português as primeiras
versões de sua obra (cujos mais de 30
volumes foram depois publicados em outros
idiomas, com tradução do próprio autor).
42  Revista 18
Bodenlos surge sob o signo
do trânsito lingüístico.
Publicado postumamente
na Alemanha, foi
escrito em português,
possivelmente nos anos
70, após o retorno do
filósofo à Europa
Naturalizado brasileiro, Flusser só
retornou à Europa em 1973, estabelecendo-se em Robion, na França. Em 1991,
revisitou Praga pela primeira vez desde a
guerra, para dar uma conferência no Instituto Goethe – mas morreu no dia seguinte,
em acidente de automóvel, enquanto
passeava pelos arredores da cidade na
companhia da mulher, Edith.
Essas informações factuais não aparecem
no texto do próprio Flusser, mas estão no
prefácio de Bodenlos escrito por Gustavo
Bernardo – estudioso das relações entre
literatura e ceticismo, cujo trabalho junto
à editora Annablume foi responsável pela
redescoberta do filósofo tcheco no Brasil.
Teórico da filosofia da linguagem e da
comunicação, Flusser vem sendo tema de
congressos internacionais e teve algumas
obras reeditadas nos últimos anos – como
Língua e Realidade e A História do Diabo
(ambos pela Annablume), A Dúvida
(Relume Dumará), Ficções Filosóficas (Edusp)
e Da Religiosidade: a literatura e o senso de
realidade (Escrituras). Sobre ele, foram
lançados A Dúvida de Flusser, de Gustavo
Bernardo (Globo) e Vilém Flusser no Brasil,
organizado por Gustavo Bernardo e Ricardo
Mendes (Relume Dumará).
Em Bodenlos, o trabalho do conceito
aparece como produto de uma vida que
se embrenha na reflexão, de uma vida que
vai descobrindo, em progressão abissal, sua
ausência de fundamento. É esse, aliás, o significado ao mesmo tempo literal e metafórico
do título que (explica Márcio SeligmannSilva no texto de orelha) significa “sem chão”,
“sem terra” ou “sem fundamento”.
O livro surge sob o signo do trânsito
lingüístico. Publicado postumamente na
Alemanha, foi escrito em português, possivelmente nos anos 70, após o retorno do
filósofo à Europa. Das quatro partes que
compõem Bodenlos, as duas últimas só
foram localizadas na versão em alemão (e
traduzidas aqui por Raquel Abi-Sâmara).
E, no prefácio, Gustavo Bernardo esclarece uma recorrência estilística que, em se
tratando de alguém cuja língua materna
não é o português, parecerá um barbarismo.
Flusser usa com freqüência quase insuportável a expressão “a gente”, que corresponde
ao pronome neutro on do francês ou man
alemão, remetendo ainda à impessoalidade
do das Man heideggeriano.
DOSSIÊ
Assim, explica ele, Flusser “provoca um
estranhamento poético que desautomatiza
a leitura” e “questiona de dentro, na forma,
o ‘eu solar’, isto é, o ‘eu’ centro do sistema
e do universo”.
Seria possível acrescentar às observações
de Gustavo Bernardo que Flusser introduz
aí modulações sutis, que correspondem ao
modo como esse “a gente” vai se desvencilhando de toda viscosidade, de toda determinação externa – de todo fundamento.
No início, “a gente” é a comunidade dos
judeus de Praga, que extraem desse “clima
existencial” cosmopolita (que ajudaram a
criar) um antídoto contra as vulgaridades
ideológicas: “Passava-se a desprezar toda
identificação nacional como arcaísmo. Erase internacionalista nato, já que o ridículo
de toda diferenciação nacional mostrava-se
intimamente vivenciável”.
O marxismo surge aí como alternativa
ao sionismo, como engajamento supranacional que a invasão nazista tornará derrisória. A partir dessa primeira catástrofe, “a
gente” passa a designar os sobreviventes
em fuga e, numa inversão irônica, Flusser
transforma a perseguição implacável em
prova da culpa daqueles que fogem: “Jamais
se perderia a convicção irracional, mas existencialmente válida, de que ‘de direito’ a
gente deveria ter morrido nos fornos. Que
doravante a vida passava a ser emprestada.
Que foi a gente própria que se arrancou do
seu fundamento (dos fornos) ao ter fugido,
e que ‘com razão’ (?) o abismo sem fundo
era o único futuro possível”.
Com isso, Flusser identifica o núcleo da
ideologia anti-semita (o fundamento natural
do judeu é o extermínio), mas também
define o não-fundamento como sobrevivência, destino e iluminação. O judeu “naturalmente” apátrida deixa seu chão para fugir
do ímpeto daqueles que deitam raízes no
solo profundo, dele extraindo as potências
de um ser coletivo (segundo uma mitologia
telúrica e irracionalista).
A imagem do judeu errante, assim, será
vista menos como a figura ominosa saída do
imaginário cristão do que como afirmação
herética da autonomia e da ruptura com
quaisquer laços: “Doravante a vida passou
a ser diabolicamente sagrada. Vivia-se doravante com nossas próprias forças, não com
as forças que vinham da seiva fundante. (...)
E aí veio uma sensação de todo inesperada.
A sensação de libertação vertiginosa. Doravante não se pertencia mais a ninguém e a
lugar nenhum, era-se independente”.
Se a “seiva fundante” levou à perseguição dos judeus é porque toda idéia de
fundamento equivale à aniquilação do ser
– incluindo-se aí a própria religião (qualquer que seja ela). Logo no início de Bodenlos,
aliás, Flusser afirmara que as religiões são
“métodos de proporcionar fundamento”,
concluindo: “Todos os nossos problemas
são, em última análise, religiosos”.
A arte do encontro
representa, afinal, a
Terra Prometida desse
pensador do exílio
– que nas duas partes
finais do livro resume
de maneira rapsódica
a idéia de nomadismo
e o tema de “habitar a
casa na apatridade” que
atravessam sua filosofia
Seria interessante notar, de passagem,
como Flusser inverte a ontologia de
Heidegger: neste, “a gente” é a esfera da
banalidade, da tagarelice, da “impropriedade” do ente, oposta ao domínio do ser, do
próprio, do autêntico, que o autor de Ser e
Tempo identifica às raízes do “povo” como
“singular coletivo do Dasein” (segundo a
fórmula de Rüdiger Safranski).
No pensador tcheco, desde cedo desconfiado do jargão da autenticidade, “a gente”
designa, ao contrário, a impessoalidade
como refúgio à apropriação pelas identidades estáveis, a possibilidade de sobreviver sozinho no negativo, na periferia
dos modelos de vivência e dos valores que
haviam ficado para trás, no idílio multiétnico de Praga.
Ao longo de Bodenlos, Flusser empenhase em “ser mestre na arte da falta de fundamento” – um leitmotiv que encontra no
Brasil um campo de provas. Seus primeiros
anos em São Paulo são um misto de fascínio
e nojo: atração por esse povo de mascates,
negociantes sem metafísica, mas também
repulsa por uma burguesia que não conseguia ver na “vulgaridade kitsch dos nazistas”
uma “massificação mecanizada” travestida
de “potência mística”.
Daí seu peculiar mergulho na paisagem
e na cultura tropicais, vistas como possibilidade de habitar uma “vastidão desumana”
e conviver com pessoas indiferentes às suas
raízes: “A gente identificava ‘cultura brasileira’ com ‘luta contra a natureza brasileira’
(...) e, por extensão, a gente passava a identificar ‘cultura tout court’ com ‘luta contra a
natureza tout court’, inclusive contra a natureza humana”.
Tal passagem parecerá pouco “ecológica”
a leitores politicamente corretos, mas explicase: natureza, para Flusser, era a segunda natureza, em que “a gente” já não pode mais ser
definida como grupo social ligado por laços
de sangue ou como cultura ancestral, mas
corresponde a um conjunto de individualidades girando em torno do único território
habitável: a escrita, a palavra, a língua.
Toda a segunda parte de Bodenlos será,
assim, um relato de seu convívio com personagens como o filósofo Vicente Ferreira da Silva
e sua mulher, a poeta e tradutora Dora Ferreira
da Silva, a artista plástica Mira Schendel, o
jurista Miguel Reale, o pintor romeno Samson
Flexor (como ele radicado no Brasil) e os escritores Guimarães Rosa e Haroldo de Campos.
A arte do encontro representa, afinal, a Terra
Prometida desse pensador do exílio – que nas
duas partes finais do livro resume de maneira
rapsódica a idéia de nomadismo e o tema de
“habitar a casa na apatridade” que atravessam
sua filosofia. 
Manuel da Costa Pinto é colunista da Folha
de S.Paulo, coordenador editorial do Instituto
Moreira Salles, autor de Albert Camus - um
Elogio do Ensaio (Ateliê) e Literatura Brasileira
Hoje (Publifolha)
Bodenlos: uma autobiografia filosófica
Vilém Flusser
Editora Annablume, 245 p.
R$ 35
Revista 18  43
LETRAS
SEÇÃO E ARTES
Lavadeiras no Tietê, 1946. Óleo sobre cartão, 27,5 x 41 cm
Metamorfose em fragmentos
Exposição retrospectiva da trajetória de Alice Brill recapitula uma vida marcada pela experiência da
emigração e dá testemunho de um século turbulento. Por Carla Ogawa
A
exposição Alicerces da Forma, inaugurada
em 3 de junho pelo Museu de Arte Brasileira
da faap, em São Paulo, é a primeira retrospectiva de Alice Brill realizada no Brasil.
Artista nascida em Colônia, Alemanha, em 1920,
Alice emigrou para o Brasil em 1934 e completará
87 anos em dezembro.
A exposição marca também o lançamento
da primeira publicação sobre sua trajetória e
conta, entre outros, com um texto de Eva Lieblich
Fernandes, artista plástica e amiga de Alice desde
44  Revista 18
a adolescência, que é um testemunho intimista de
uma memória compartilhada.
Concebida em quatro núcleos principais, a exposição aborda tanto o trabalho de Alice como pintora
e gravadora como seu vasto acervo fotográfico, hoje
pertencente ao Instituto Moreira Salles.
O primeiro núcleo da mostra diz respeito à
produção de Alice durante a década de 40 junto aos
integrantes do Grupo Santa Helena – uma produção
de caráter figurativo resultante tanto de excursões ao
ar livre quanto de sessões de modelo vivo.
LETRAS E ARTES
SEÇÃO
Dança dos índios Navajo – New México, 1946. Aquarela sobre papel, 20,5 x 30 cm
Depois desse primeiro período brasileiro, Alice
teve a oportunidade de passar dois anos nos Estados
Unidos, entre 1946 e 1948, onde se aprofundou nas
técnicas de gravura, pintura e fotografia que desenvolveria, de maneira paralela, ao longo de toda sua
trajetória. Foi também dessa viagem que ela trouxe
para o Brasil o equipamento com o qual exerceria, por
mais de dez anos, a profissão de fotógrafa.
De volta a São Paulo em 1948, passou a trabalhar
para a revista Habitat, primeira publicação mensal
brasileira dedicada à arquitetura e às artes e teve a
oportunidade de fotografar vários artistas, arquitetos
e personalidades, entre eles Mario Zanini, Alfredo
Volpi, Hilde Weber, Sofia Tassinari, Yolanda Mohaly,
Karl Plattner, Cássio M’Boi, Burle Marx, Villanova
Artigas e Lina Bo Bardi. Por vezes registrou o artista
absorto na própria produção ao mesmo tempo em
que fotografava suas obras.
Fez duas fotorreportagens significativas: a primeira
em 1948, quando da inspeção das obras da Fundação
Brasil Central, juntamente com a comitiva do então
Deputado Café Filho que viria a se tornar Presidente
anos depois. Nesse período, registrou os índios Carajá da
Ilha do Bananal, no Centro-Oeste do país, região ainda
em descoberta e com uma história peculiar e grandiosa
das intenções políticas de crescimento e expansão.
A segunda fotorreportagem foi realizada em 1950,
a convite de Osório César, crítico de arte e médico
psiquiatra idealizador da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery.
A presença da arte como tratamento terapêutico
levou Osório César a contribuir de maneira relevante na integração social de pacientes com transtornos mentais. Alice, grávida de sua primeira filha,
registrou com sensibilidade o olhar desses indivíduos
diante das próprias produções que cobriam as paredes
do ateliê do instituto psiquiátrico do Juquery. Cautelosa, quase sempre nos surpreende com fotografias
que captam a espontaneidade como quem não deseja
que o outro saiba que está sendo fotografado.
A pedido de Pietro M. Bardi, diretor do Museu Assis
Chateaubriand, fez uma série de fotografias de São
Paulo para um livro que nunca foi publicado, destinado ao Centenário da cidade, em 1954. No decorrer
dos anos, foram publicadas algumas imagens avulsas
dessa série.
Revista 18  45
LETRAS
SEÇÃO E ARTES
A DEDICAÇÃO À PINTURA, à gravura e à fotografia proporcionou um diálogo paralelo entre esses meios expressivos. Assim, Alice realizou alguns estudos com
aquarela e guache a partir de imagens fotográficas
que parecem refletir a ação do fotógrafo que escolhe a
lente mais apropriada para a tomada a ser registrada.
Na totalidade visual, sua pintura proporciona uma
estruturação da composição até a última instância,
ou seja, até a última pincelada, diferentemente da
fotografia que, em geral, nos apresenta uma estrutura
obviamente pensada pelo fotógrafo, só que dotada
de um aparato mecânico, mediador desse processo.
A fotografia aparecerá também, de maneira discreta,
nas composições em preto-e-branco que Alice fez na
década de 70, bem como numa temática que se volta
para a questão do tempo e do testemunho de uma
cidade que cresce compulsivamente e que, conseqüentemente, “encolhe” o indivíduo na solidão.
Viajando pelo Brasil, Alice fotografou cidades como
Ouro Preto, Guarujá, Salvador, Rio de Janeiro. Registrou feiras, vendedores ambulantes, fachadas, ruas e
construções. Foi pioneira nos retratos espontâneos de
crianças num período em que a fotografia de estúdio,
ou “posada”, ainda estava em voga. Inúmeras famílias
foram retratadas pela lente da artista; muitas pessoas
ainda conservam intactas suas feições de criança de
outrora, preservadas nos álbuns que ela fazia.
A PARTIR DA DÉCADA DE 60, Alice retomou a pintura a óleo
e, na mostra da faap, em um núcleo especial denominado “Encontros”, aborda essa fase de sua produção,
cuja temática central é o cenário urbano paulistano.
Novas pesquisas são fonte de inspiração para a
artista. O batik, técnica artesanal da Indonésia, possibilita novas incursões na busca de uma expressão
espontânea, libertando-a da forma geométrica.
Contraditório para quem conhece a técnica? Sim,
pois o batik exige controle absoluto da cera. E nessa
contradição, Alice busca resultados inesperados.
No trabalho com a cera, tanto no tecido como no
papel de arroz, Alice lida com o improviso visto que
nem sempre a técnica adaptada apresenta resultados esperados.
Gravura em metal, serigrafia, batik sobre tecido
ou papel de arroz, acrílica, óleo, guache, aquarela... a
técnica não importa quando se trata dessa temática.
A artista conduz muito bem todas as técnicas e apresenta estudos de cores e de composições.
Telhados e escadas, 1990. Acrílico sobre tela, 122 x 67,5 cm
DE SUAS VIAGENS para o Oriente Médio, Ásia e América
Latina, Alice traz memórias anotadas em cadernos,
com desenhos e relatos dos costumes de cada povo.
Suas pinturas surgem com cúpulas e torres das
grandes mesquitas ou mesmo com motivos florais
pintados, como vitrais, com cores fortes e brilhantes.
46  Revista 18
LETRAS E ARTES
SEÇÃO
Sumaré, 1983. Batik sobre papel de arroz, 62 x 92 cm
Escadarias, pedras, flores, mangues, deuses estão
presentes em seu imaginário e de lá transbordam
para o papel por meio de diferentes técnicas.
O urbano surge algumas vezes em fachadas de
portas cerradas ou até inexistentes; outras vezes,
janelas abertas mostram personagens frágeis e minúsculas que parecem testemunhar a solidão do indivíduo
nas grandes cidades. São fragmentos, estruturas que se
intercalam com detalhes colhidos em suas viagens.
Alice pinta o ritmo da demolição, da construção que
a cidade de São Paulo sofreu durante esses anos. Aqui
tudo se transforma rapidamente, a história cede espaço
a um ritmo alucinante de verticalização.
Num terceiro núcleo está a produção mais recente
de Alice Brill, a partir de 2000, em que o imaginário
se derrama por meio de cores fortes. Seres fantásticos
e situações curiosas são registrados em pequenos
pedaços de papel que, freqüentemente, são colados
em cadernos. A fatura apurada de outrora, com preocupações específicas na busca de suporte e técnica
adequados, agora prima por um intimismo sem
limites, por um mundo de formas e cores que ela
construiu ao longo de sua vida.
Finalmente, há um núcleo dedicado aos pais de
Alice Brill, que apresenta um recorte das viagens e
lugares representativos na vida de Erich Brill através
de suas pinturas e desenhos. Documentos do período
da 2ª Guerra Mundial testemunham o retorno de
Erich para a Alemanha e sua prisão num campo de
concentração, sua última viagem.
Estarão expostas edições do romance autobiográfico
Der Schmelztiegel, de Marthe Brill, mãe de Alice, e matérias
publicadas no jornal da Hamburg Süd na época em que
esta prestava serviços como jornalista. Junto a elas, um
artigo escrito por Reinhard Andress, doutor e professor
de literatura alemã na Saint Louis University (eua).
A exposição Alicerces da Forma estará aberta ao
público de 3 de junho a 15 de julho de 2007 no Museu
de Arte Brasileira da faap, à Rua Alagoas, 903 – Higienópolis. Horário: de 3ª a 6ª das 10 às 20h. Sábados,
domingos e feriados das 13 às 17h. Entrada gratuita. 
Carla Ogawa é curadora independente, licenciada em
Artes Plásticas e mestranda em Teoria, História e Crítica
das Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina, bolsista
pela CAPES
Revista 18  47
LETRAS E ARTES
A propósito de abelhas
e de Amós Oz
Nancy Rozenchan lê novo livro do escritor
israelense, uma fábula alegórica dirigida ao público
juvenil, que aborda com sutileza e ironia uma das
questões cruciais do mundo contemporâneo
N
a mesma semana em que a tradução
de mais um livro de Amós Oz – De
Repente, nas Profundezas do Bosque –
seu 29º publicado em Israel – estava sendo
lançada aqui, uma notícia inusitada chamou
a atenção: abelhas desaparecem dos apiários
sem deixar vestígios. Treinado nas manchetes
brasileiras corriqueiras de roubos, assaltos e
outras categorias de crimes, o primeiro pensamento a brotar foi: quem teria roubado ou
subtraído ou furtado as abelhas? Esta reação
típica de nossa convivência diuturna com
o crime baseava-se num crédulo engano.
Abelhas não desaparecem (e mais ainda, sem
deixar vestígios ou cadáveres) por prosaicas
razões de subtração de um bem, consubstanciadas em desejo de usufruir de seu mel ou
vontade de aniquilá-las por causa de uma
eventual ferroada. Abelhas somem porque
o ambiente em que se encontram é funesto.
E que não se pense que foram uns meros
insetos a serem enumerados nos dedos que
sumiram. Um quarto das abelhas dos Estados
Unidos simplesmente partiu; algo parecido
também vem ocorrendo na Alemanha. Uso
de defensivos agrícolas ou mudanças climáticas parecem explicar o fenômeno. E que
ninguém leve em conta apenas a redução da
quantidade mel que deixaram de produzir.
Elas são essenciais à polinização (ao menos
nos Estados Unidos) de mais de noventa
tipos de frutas e legumes cujas safras estão
avaliadas em 15 bilhões de dólares por ano.
Há que se preocupar tanto com os prejuízos
financeiros como com a fome.
Tivesse Oz conhecimento deste fato
quando da escrita de seu livro, provavelmente a categoria das abelhas teria merecido menção especial dentre as espécies
animais que, em De Repente, nas Profundezas
48  Revista 18
do Bosque, misto de fábula e alegoria, desaparecem da aldeia onde se passa este enredo,
fato igualmente preocupante. Peixes,
aves, insetos, animais dos mais variados
tamanhos e portes sumiram, muito antes
de nascerem os principais protagonistas
do livro, Nimi, o garoto com a doença
do relincho, e o casalzinho Mati e Maia,
que adentram a floresta para investigar o
fenômeno. Seus pais, assim como todos os
Abelhas não desaparecem
por prosaicas razões de
subtração de um bem,
consubstanciadas em
desejo de usufruir de
seu mel ou vontade de
aniquilá-las por causa de
uma eventual ferroada.
Abelhas somem porque
o ambiente em que se
encontram é funesto
habitantes locais, evitam tocar no assunto
do sumiço dos animais, talvez por vergonha
do que teria acontecido no passado. Por
vezes, algum dos adultos faz menção a um
animal de estimação ou que era empregado
no trabalho, ou a seus sons, para logo em
seguida se retrair e negar a lembrança.
Cabe à professora Emanuela, por meio
de quadros na sala de aula e emissão das
diversas vozes animais, ensinar às crianças
o que foram estes entes que sumiram. Ela,
porém, é alvo de zombaria, tanto por isto
como por não ter conseguido arranjar
alguém com quem se casar.
De Repente, nas Profundezas do Bosque é
uma fantasia modesta. Não há indicação
de tempo ou lugar, os personagens têm
apenas um caráter simbólico. São arquetípicos, assim como a ambientação: um
menino alvo de chacotas, o casalzinho de
heróis, uma aldeia com seus habitantes,
uma floresta densa, animais, um demônio
vingador. A narrativa desenrola-se de forma
lenta e gira em torno de um tema apenas,
que não é apresentado explicitamente.
A introdução, logo de início, do menino
Nimi, que adentrou a floresta e sofre do
que é denominado de “doença do relincho”,
assim como o receio que todos têm de serem
contaminados por ele, a inquietação que faz
com que todos se tranquem cedo em suas
casas e apaguem as luzes, indicam um fio
condutor que contrapõe lucidez e loucura,
o par que subjaz o mistério do desaparecimento dos animais.
Nimi é abandonado à própria sorte.
Outro personagem também é deixado de
lado; trata-se do ex-pescador Almon, que
agora discute consigo mesmo ou com o
espantalho que colocou em sua horta;
ele é um dos raros que ainda se sentem
ligados aos animais: esculpe figuras de
animais e aves em madeira e as presenteia às crianças. Guinom, o velho inválido,
que sofre da doença do esquecimento, bale
como um cabrito que ele pensa ser. Lília, a
padeira viúva, ainda jogava, no fim do dia,
migalhas de sobras dos pães para peixes,
pássaros e pombas imaginários. Vivem
LETRAS E ARTES
© Wolfrage
© Wonderferret
No romance-fábula de Oz, animais explorados e humilhados pelos seres humanos decidem abandonar a sociedade
humana em protesto contra os maus-tratos e a discriminação: livro que é destinado também ao público pré-adolescente
faz uma reflexão tanto sobre pessoas alijadas quanto sobre o descaso com que se tratam as questões ambientais
num universo de medo que é dominado
pelo demônio Nehi.
O segredo deste desregramento é a grande
injustiça que os habitantes praticaram no
passado, quando eram crianças, contra
Neman (no original, Naaman, agradável ou
anêmona), então um menino esquisito. Ou
seria talvez retardado? Neman, vítima do
deboche e da discriminação, recolhera-se à
floresta, e todos os animais, muitos dos quais
eram explorados e humilhados pelos seres
humanos, resolveram segui-lo e abandonar
a sociedade humana, num protesto contra a
discriminação e os maus tratos. Neman transforma-se no demônio Nehi (lamento, em
hebraico), rei da floresta; os animais convivem
com ele em paz, e também entre si. Não
mais precisam devorar uns aos outros para
subsistir, uma vez que Nehi planta “carnemônias”, plantinhas com sabor de carne que
alimentam os carnívoros. À noite, Nehi volta
à aldeia e vinga-se um pouco dela. Por vezes
atrai mais alguma criança que é segregada
porque não se comporta como a maioria ou
não se conforma àquela sociedade. E aqueles
que o humilharam agora trancam-se para se
proteger na aldeia, que se tornou triste.
A repetição de um dos eixos da narrativa, a saída daquele que a sociedade rejeita
e menospreza por ser diferente e que tem
como única opção o abandono da sociedade
e o auto-isolamento (saída de Neman, que
vira demônio, saída de Nimi que relincha
e passa a ser chamado de potro), merece
atenção particular. De Repente não é o
primeiro livro infanto-juvenil de autoria
de Oz. Há quase trinta anos, Oz publicou
Sum’hi, obra também traduzida para o português (Sumri, na edição brasileira). Contava
com humor e afeto as reviravoltas de um
dia na vida de um menino de Jerusalém,
um anti-herói. Depois de voltar para casa
derrotado e humilhado, leva três tapas do
pai por ter se atrasado. Assustado e cheio
de vergonha, Sum’hi decide fugir de casa e
jamais voltar. Mas volta, porque é criança.
Mais recentemente, em De Amor e Trevas,
do mesmo autor, também o leitor brasileiro pôde ler a saga da família Klausner,
da qual o garoto Amós Klausner foge, após
o suicídio da mãe, para o kibutz e para se
tornar Amós Oz.
A partida dos meninos “diferentes”
neste livro que ora é lançado, em um plano
fantástico que difere em parte dos mencionados acima, medeia entre fuga por opção
e ato de excomunhão. Por fim, os personagens centrais, Mati e Maia, partem (e
retornam) com a intenção de desvendar
o segredo. Encontram uma floresta densa;
vários trechos descritivos a aproximam
do Jardim do Éden. Outras referências de
tradições culturais e literárias podem ser
percebidas; como nos anseios dos livros
dos profetas, animais convivem pacificamente; há indícios de fábulas atribuídas
ao rei Salomão, do relato da Arca de Noé,
do flautista de Hamelin.
É uma agradável fábula dedicada a
pré-adolescentes, em que o leitor adulto
também encontra, além da sempre bem
elaborada linguagem de Oz, motivos de
reflexão, tanto sobre pessoas alijadas como
sobre o descaso com que se tratam questões ambientais. 
Nancy Rozenchan é livre-docente em Letras
e professora aposentada do Departamento de
Hebraico da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP
De Repente, nas Profundezas
do Bosque
Amós Oz
Tradução Tova Sender
Cia. das Letras, 148 p.
R$ 31
Revista 18  49
Real
Desempenho
www.metsopaper.com
Um Beija-flor bate as asas 60 vezes em um segundo, o que lhe permite pairar no ar
ou voar até 20 m/s (45 mph) … subir, descer, voar de lado, ou ainda virar de cabeça
para baixo. Apesar de muito pequenos, algumas espécies podem migrar até 20.000
km (12.000 milhas) por ano.
A Metso Paper sempre realizou testes de operação em suas máquinas piloto
visando desenvolver e encontrar soluções inovadoras para os seus clientes. A
nossa máquina piloto OptiConcept MP 2 acaba de ser completamente reformada,
fortalecendo a sua posição como a mais avançada máquina de papel piloto do
mundo, o que nos permite oferecer uma infra-estrutura superior em know-how
de fabricação de papel para testar os produtos finais, desde a fibra até a impressão.
Por esta razão fabricantes de papel, cartão e tissue visitam regularmente as nossas
máquinas piloto, ou seja, para ver como os novos conceitos podem melhorar a
qualidade do seu produto final, tanto para novas máquinas, novas seções, reformas,
ou mudanças no processo.
O desempenho que você precisa…esta é a natureza do nosso cuidado.
Natureza, Torá, Eternidade
Reprodução
LETRAS E SEÇÃO
ARTES
Contos de Haim Nahman Bialik,
traduzidos diretamente do
hebraico, rememoram o universo
desaparecido dos judeus do
Leste da Europa e revelam um
mundo livre das descontinuidades
artificiais de nosso tempo.
Por Luis S. Krausz
C
haim Nachman Bialik (1873-1934)
foi um dos pioneiros do moderno
idioma hebraico. Nascido em Radi,
na Ucrânia, então sob domínio russo, veio
ao mundo à época em que começavam, nas
terras do czar, as perseguições, que levariam
à emigração maciça, ao esvaziamento do
modo de vida judaico do Leste-Europeu,
e à destruição de uma cultura baseada na
repetição, de geração em geração, de formas
de vida que se mantinham praticamente
inalteradas desde a Idade Média.
Para o crítico norte-americano Irving
Howe, o ano de 1881 marca uma virada
tão decisiva na história judaica quanto a
tomada de Jerusalém pelos exércitos de
Tito, no ano 70 d.C., ou a expulsão dos
judeus da Espanha, em 1492. A ascensão do
czar Alexandre iii e a eclosão de uma onda
de pogroms representou o início do esfacelamento da vida judaica ashkenazi tradicional,
cuja característica central era a prioridade
absoluta que nela tinham os valores transcendentes. A observância às leis religiosas,
a devoção ao estudo dos textos sagrados, a
busca de proximidade com o divino eram,
ao menos idealmente, os fundamentos da
visão de mundo judaica pré-burguesa, em
que os aspectos materiais da existência
ficavam, sempre, subordinados a estes
valores verticais.
Vivia-se numa proximidade hoje inconcebível com o passado mítico, registrado nas
Escrituras, e com a esperança da proximidade
da chegada do Messias, que haveria de pôr
fim ao exílio judaico, trazendo a redenção e
Continuidade entre as Escrituras Sagradas e o mundo é um dos aspectos da rememoração
que Bialik faz do mundo desaparecido dos judeus do Leste da Europa: nostalgia combinase com espírito crítico nestes contos de um dos fundadores da moderna prosódia hebraica
o início de uma nova era. A eternidade e o
presente, assim, confluíam através das letras
e da memória. O passado bíblico, o exílio
no presente e a esperança pela chegada do
Messias eram os três tempos e os três estados
concebíveis, numa visão de mundo em que a
noção de história não fazia sentido e em que
a imobilidade da língua hebraica, reservada
aos estudos sagrados e inalterada desde suas
origens nas Santas Escrituras, desafiava a
passagem dos séculos e das gerações.
Imerso neste universo de imobilidade,
de pobreza material, de esperança e de
erudição, Bialik veio ao mundo como filho
temporão e, órfão de pai aos oito anos, foi
criado pelo avô, de quem recebeu uma
formação religiosa pietista. Entretanto, o
mundo de seu avô já entrara num processo
irreversível de dissolução. Os ventos dos
novos tempos – e sobretudo as novas idéias,
vindas do Ocidente – já sopravam sobre o
shtetl ao mesmo tempo em que a brutalidade
Revista 18  51
LETRAS
SEÇÃO E ARTES
das perseguições e o esgotamento das
antigas formas de produção levavam a
um esvaziamento demográfico sem precedentes nas aldeias judaicas.
Migrava-se em direção às grandes
cidades, ou em direção à América; pensavase no mundo em novos termos. O encontro
do povo judeu com a história, adiado por
tantos séculos, tornara-se irreversível. Assim
também o jovem Bialik, mobilizado pelas
novas idéias, buscaria, em Odessa, a grande
metrópole russa de seu tempo, um encontro
com a modernidade. Em Odessa aprofundouse nas novas ideologias, conheceu a literatura russa e alemã, e participou ativamente
do movimento de renovação, ou melhor, de
recriação, do idioma hebraico, que estava
diretamente vinculado ao movimento de
renascimento nacional judaico.
Se no mundo de seus pais e avós o uso
do hebraico, que se mantinha como uma
relíquia intocada dos tempos bíblicos,
ficava rigorosamente circunscrito à esfera
dos estudos religiosos, servindo o ídiche
para a vida quotidiana, a geração de Bialik,
entusiasmada pelos ideais do sionismo e do
retorno do povo judeu à terra de seus ancestrais, estava decidida a recriar este idioma
como língua viva. Em 1909 ele visitaria a
Palestina, então sob domínio otomano, e em
1924 mudou-se, definitivamente, para lá.
A ausência de sentido das categorias
históricas no mundo que Bialik retrata
aparece, por exemplo, no conto aparentemente autobiográfico “Renovo”, que se
passa na aldeia natal do autor, e que abre
este volume:
Eu poderia apontar com o dedo o lugar no
campo onde a venda de José se realizou. O poço
ao qual José foi lançado ainda se encontra ali,
em sua forma exata, como o foi na Antigüidade,
até agora. É o mesmo poço que consta no Pentateuco, com todos os seus nítidos sinais, não
falta nada. Assim como o poço do Pentateuco
está vazio, sem água, assim é o meu aqui. Mais
ainda, imagino porém que ele contenha cobras,
escorpiões, exatamente como o de José.
Se eu quisesse me arriscar e atravessar
aquele campo sozinho, estou certo de que logo
encontraria uma caravana de ismaelitas. As
vacas que o faraó viu no sonho ainda são as
mesmas, ou as descendentes de suas descendentes, pastando na beira do rio Titirov...
Mais adiante, no mesmo conto, lemos:
E não há nada na Torá que não teve um
exemplo correspondente ou muito parecido no
bairro. Quem tomou de quem? Empate. Talvez
o Santo, Bendito seja, olhou no Pentateuco e em
Rashi e de acordo com eles criou o bairro; talvez
seja o oposto: olhou para o bairro e suas redondezas e de acordo com eles escreveu o Pentateuco
e Rashi. Talvez eles tenham se entretecido desde o
MAIS CONHECIDO por sua obra poética,
Bialik foi também contista de talento, do
qual a antologia A Trombeta Envergonhada,
ora publicada, oferece ao leitor de língua
portuguesa uma bela amostra. Os contos
reunidos neste volume oferecem ao leitor
um retorno emocionado à infância de Bialik
no shtetl, e sobretudo ao sentido de comunhão original que havia, neste universo,
entre a natureza, a Torá e a eternidade.
Assim, a infância e a visão de mundo desses
judeus que trouxeram a Idade Média até
o limiar do século 20, convivem nestas
páginas de lirismo nostálgico. São também
marcadas pela ironia de um escritor que,
afinal, olhava com confiança e esperança
para o futuro, e partilhava dos ideiais
de uma geração que, em vez de aguardar
pacientemente a chegada do Messias, que
poria fim ao exílio e aos seus sofrimentos,
decidiu tomar o destino com as próprias
mãos para, num esforço titânico, reconstruir
um lar nacional judaico.
52  Revista 18
início dos tempos e nenhum antecedeu o outro.
Esta continuidade entre as Escrituras e o
mundo, mais do que imaginação infantil, é
efetivamente um dos pilares da sociedade
judaica tradicional, que busca na Torá o
paradigma para todos os acontecimentos
mundanos – esse mundo que, assim como
a infância de Bialik, desapareceu, deixando
um povo perplexo, desorientado ante uma
multiplicidade de respostas possíveis a seus
dilemas e sofrimentos.
O caminho escolhido por Bialik, o do
nacionalismo judaico, passava, necessariamente, pela ressurreição do idioma hebraico
e estes contos são, para além de um testemunho das emoções da vida no shtetl,
também uma tentativa pioneira de construção de uma prosódia moderna no idioma
bíblico. Assim, a nostalgia pelo mundo que
desaparecia mistura-se ao impulso iconoclasta que representava o uso profano do
idioma hebraico, quando não ao sarcasmo
de quem aponta para os absurdos e as contradições do mundo dos ancestrais.
Se no hebraico original este pioneirismo
se revela na superposição de estilos, que
vão do bíblico e talmúdico ao da poética
medieval das preces, o uso do idioma
sagrado para descrever realidades profanas
propunha enormes dificuldades à geração
de Bialik. E estas dificuldades muitas vezes
aparecem, de maneira deliberada, na primorosa tradução de Nancy Rozenchan e Eliana
Langer, que freqüentemente preserva, em
português, algo do estranhamento inerente
a esta literatura.
Assim ocorre, também, com a temática
destes contos: às vezes, juntamente com o
idioma, vemos pedaços inteiros de narrativas bíblicas ou talmúdicas se materializarem no instante da leitura, e este jogo com
a tradição é um dos aspectos fundamentais
não só da literatura de Bialik, mas de toda
a geração dos pioneiros da moderna literatura hebraica, cujos repertórios foram,
sem exceção, moldados pelos estudos
sagrados. Em “A Lenda dos três e quatro”,
por exemplo, Bialik retoma uma narrativa
midráshica, revestindo-a de novas formas.
Lamentavelmente, esse delicado jogo de
alusões à tradição, e o caráter renovador de
sua prosa, perdem-se com a tradução e com
o desconhecimento, por parte do leitor, do
texto original.
Traçar alguns contornos da memória
de um mundo extinto, que ainda povoa a
imaginação judaica depois de mais de um
século, é talvez o maior mérito deste livro
belíssimo, porém não o único: a integridade
e a solidez da visão de mundo que emerge
destas páginas é um alívio ao desconforto,
à fragmentação e às dúvidas com que nos
deparamos ao olhar para o futuro e para o
mundo à nossa volta. 
Luis S. Krausz é mestre em Letras Clássicas
pela University of Pennsylvania, pós-graduado
pela Universidade de Zurique e doutor em
Literatura e Cultura Judaica pela Universidade
de São Paulo
A Trombeta Envergonhada
Haim Nahman Bialik
Organização, tradução e notas: Eliana
Langer e Nancy Rozenchan
Editora Globo, 376 p.
R$ 37
LETRAS
SEÇÃO E ARTES
A alienação nossa
de cada dia
Livro que especula sobre o possível conteúdo da
terceira parte de A Vida do Espírito, que Hannah
Arendt não chegou a escrever, aponta para a
responsabilidade sobre o pensar de cada um como
base para uma sociedade justa. Por Saul Kirschbaum
É
possível identificar uma ética
política positiva no pensamento
de Hannah Arendt, ou, como
querem alguns autores, somente poderemos encontrar uma ética negativa, do
não-fazer? Esta é a pergunta que Eugênia
de Sales Wagner se propõe a responder,
com base em seu amplo conhecimento
da obra da grande pensadora, no livro
Hannah Arendt – Ética & Política, recémlançado pela Ateilê Editorial. O ponto de
partida da autora é que Hannah deixou
indícios suficientes de que iria tratar dessa
questão de forma conclusiva na terceira
parte de A Vida do Espírito, que teria por
título “O Julgar”. Infelizmente, Hannah
morreu em 1975, deixando prontas apenas
as primeiras duas partes, “O Pensar” e “O
Querer”. A Vida do Espírito acabou sendo
publicada postumamente; da terceira
parte somente ficaram duas epígrafes e o
enigma: o que teria ela escrito?
Em busca da solução desse enigma,
Eugênia Wagner argumenta que se é
possível fundar uma ética política positiva, uma ética do fazer, então o ato político
deve ser passível de julgamento por parte
daqueles que pensam, ou seja, devemos
poder distinguir se o espetáculo é a ação
que pretende ser um novo começo ou uma
manifestação de cunho autoritário; e esse
julgar deve estar de acordo com algum princípio que subsuma o juízo.
54  Revista 18
Nas palavras da autora, interpretando
o pensamento de Hannah, essa ação política, embora voltada para o futuro, não
pode se dar como um projeto previamente
concebido pelos atores para instaurar um
novo mundo (comunidade), pois isso impediria a inauguração de um novo começo,
na medida em que os projetos são sempre
elaborados a partir da experiência passada
– das idéias prévias de uma pessoa ou grupo
– e o momento crítico que a comunidade
vive exige um começo absolutamente novo,
isto é, a construção pública da comunidade
política pela comunidade política. A ação
política conforme à ética tratará da construção do espaço da convivência humana
através do exercício mesmo dessa convivência; da construção de uma nova morada
para todos.
A participação desinteressada, a ausência
de interesses privados dos atores é condição
prévia para a ação que é um novo começo.
Em conseqüência, o princípio que pode
servir de fundamento para uma ética política positiva deve ser o amor. Mas, pergunta
e tenta descobrir Eugênia Wagner, que tipo
de amor? Ao longo dos cinco capítulos do
livro, a autora reflete sobre os diferentes
tipos de amor, para verificar qual é capaz de
constituir o princípio que está buscando.
No capítulo primeiro, é analisado o
Amor à Sabedoria, sinônimo de filosofia,
tal como nos foi legado pelo pensamento
grego clássico. Aqui, a autora mostra que
para Hannah houve uma clivagem entre “os
conceitos políticos presentes na Tradição
do Pensamento” e “noções nascidas da
prática política dos antigos”: o pensamento
político de Platão e Aristóteles não corresponde à prática política entre os gregos,
tal como se pode depreender dos escritos
não-filosóficos (teatro, poesia etc). A condenação e morte de Sócrates afasta os filósofos
da vida política, que optam, a partir daí, pela
vida contemplativa. Para Hannah, a morte
de Sócrates é o marco da separação entre
filosofia e política. A filosofia não pode
fornecer a base de uma ética política positiva pois, desde Platão, os filósofos se retiraram da política.
Por isso, no segundo capítulo, Eugênia
Wagner focaliza o Amor ao Próximo, tal
como o expressa a mensagem cristã. Mais
uma vez, a autora verifica que, para Hannah,
o Amor ao Próximo é Amor a Deus; o cristianismo primitivo é essencialmente apolítico
porque “a bondade não pode medrar na
esfera pública por não resistir à visibilidade”. A entrada da Igreja no espaço político
só é possível pelas contribuições de Agostinho: a junção entre a experiência romana,
a doutrina cristã e a filosofia grega, um
expediente que auxiliou a Igreja a atuar na
esfera política por ocultar as contradições
entre essa atuação e a doutrina original e, a
seguir, a criação da Civitas Dei, que inaugura
A maioria da população acabou alijada
das decisões políticas e sem espaços para
o exercício da liberdade. Passou a exercer
a “liberdade” como liberdade de escolha: o
direito de voto.
Para Eugênia Wagner, “é relevante considerar a importância que Hannah dedicou
ao advento da esfera social como espaço de
indivíduos isolados e das massas politicamente desenraizadas e desconectadas dos
antigos interesses de classe ou partidários
que apareceram a partir da Revolução
Industrial, na Europa – as massas supérfluas
que, segundo as análises de Origens do Totalitarismo, se mostrariam vulneráveis às mani-
Neste momento de
Reprodução
um espaço transcedental para a realização
de atividades imortalizadoras, justificando,
dessa maneira, a atuação da Igreja no âmbito
secular – a “Civitas Dei na terra”. Agostinho
teria ainda incorporado às crenças dogmáticas cristãs a idéia platônica de inferno e
de punições após a morte, possibilitando à
Igreja guiar a conduta da maioria por meio
do medo. A entrada da Igreja no espaço
público exclui a atuação política do povo.
Impedida de manifestar-se como fenômeno
político, a liberdade foi transposta para “o
espaço interior, no qual os homens podem
escapar da coerção externa e se sentirem
livres”. A autora mostra que, “fundadas na
idéia cristã de liberdade interior, as teorias
políticas da era moderna passaram a
sustentar que a liberdade começa quando os
seres humanos se afastam da esfera política
e passam a viver individualmente a experiência da liberdade como uma relação com
o próprio eu”.
No terceiro capítulo, então, Eugênia
Wagner analisa o Amor à Liberdade. Aqui,
a figura marcante é Maquiavel, e Hannah
observa que, para ele, o ato de fundar justificaria, por si mesmo, o emprego de meios
violentos. O problema, destaca a autora, é
que “a violência é sempre instrumental e
destituída de dignidade e de grandeza, não
podendo, por isso mesmo, fundar a liberdade. Porque gera apenas mais violência,
é incapaz de promover quaisquer causas,
podendo produzir algum efeito apenas
quando num espaço reduzido de tempo
é usada para chamar a atenção pública
para determinadas queixas”. Em suma,
“a violência não é a origem do espaço
público-político”.
Para Hannah, a Revolução Francesa
fracassou em seus objetivos (por não ter
sabido evitar as imensas desigualdades
sociais que trouxeram para o espaço público
a violência dos sans-culottes), enquanto
a Revolução Americana foi vitoriosa ao
inaugurar um novo começo histórico.
Para essa vitória, mostraram-se decisivas,
antes mesmo do advento da revolução, a
eliminação da miséria absoluta e, assim, a
convivência humana fundada na igualdade
política. Se a revolução foi o marco de um
novo começo na história americana, ela
observa, a liberdade que havia sido condição
para esse início perdeu-se em meio ao
sistema de representatividade americana.
Fotos: © Eric Gaba
LETRAS E ARTES
profunda crise, em
que tantos intelectuais
reivindicam o direito de
ficar em silêncio, ignora-se
a lição de Hannah Arendt
que, em “O Pensar”,
ressaltou a importância
do aparecimento daqueles
que pensam – filósofos
ou não – para julgar os
acontecimentos
pulações ideológicas na primeira metade do
século 20”. “O governo de dominação total”,
observa, “é o que certamente corresponde
de melhor forma às tendências inerentes
de uma sociedade de massas.”
No capítulo quarto, então, Eugênia
Wagner considera o Amor da Vontade.
Analisa exaustivamente as relações entre
os conceitos arendtianos de mal absoluto ou
radical e de banalidade do mal. Mostra que
Sócrates, Platão, Aristóteles: condenação
à morte do primeiro afastou os filósofos
da práxis política, já na Grécia clássica,
levando-os a optarem por uma vida
contemplativa e marcando, para sempre, a
separação entre estas duas esferas
Revista 18  55
Reprodução
LETRAS E ARTES
nos tribunais era aquele que – porque não
pensava e isso apenas Hannah percebeu –
não distinguia moralmente quaisquer tipos
de ordens, desde que o cumprimento dessas
ordens fosse um caminho para a realização
do projeto de si. Eugênia observa que se
Eichmann não tinha o hábito de pensar
era, de outra parte, um indivíduo que sabia
o que queria e praticou atos intencionalmente para alcançar aquilo que pretendia:
possuía fins pessoais bem definidos. A
incapacidade para pensar não desabilita a
reflexividade da vontade que, não podendo
alcançar a redenção em um mundo comum,
busca realizar-se através do projeto de um
Eu duradouro – o projeto de si.
Manuscrito iluminado da Civitas Dei, de
Santo Agostinho: a cidade como espaço
transcendental para a realização de
atividades imortalizadoras
quando Arendt se referiu ao “mal absoluto”, em Origens do Totalitarismo, o associou às massas supérfluas e, portanto, ao
poder explicativo da ideologia, à manipulação ideológica das massas. O conceito de
banalidade do mal, no entanto, está ligado
ao afastamento e ao isolamento, isto é, ao
pensar afastado das comunidades políticas
e à falta do hábito de pensar – a irreflexão –
por parte daqueles que se ocupam das coisas
do mundo e nunca param para pensar.
Mas o não-pensar não implica nãoquerer, não ter vontade. Eugênia Wagner
nota que, para Hannah, Eichmann não
pensava e não podia, por esse motivo, ser
punido como pessoa; desse ponto de vista
não era uma pessoa. É da ótica do querer,
todavia, que ele devia ser responsabilizado.
Afinal, Eichmann escolheu quem desejava
ser e procurou obedecer cegamente ao
projeto que fez de si mesmo: o de um burocrata que pretendia subir na hierarquia por
mérito. Se não era dado à reflexão, colocouse à disposição das ordens do Führer e
mostrou-se capaz de praticar qualquer
ato para tornar-se quem escolheu “ser” e
aparecer: o eficiente articulador do transporte rápido de judeus para os campos de
concentração. E o indivíduo que apareceu
56  Revista 18
O ato político deve ser
passível de julgamento
por parte daqueles
que pensam, ou seja,
devemos poder distinguir
se o espetáculo é a ação
que pretende ser um
novo começo ou uma
manifestação de cunho
autoritário
Mas, observa a autora, o Eu duradouro
projetado pelo filósofo profissional é totalmente moldado pela vontade e não no
intercâmbio com os outros: ele próprio se
transforma no projeto da vontade. Podemos
então pensar que a prática do mal banal
não está circunscrita ao burocrata, mas
é uma possibilidade atraente justamente
para os filósofos profissionais que, desde
Platão, optaram voluntariamente pelo
afastamento e pelo isolamento. Estaria,
consciente ou inconscientemente, se referindo a Heidegger?
Chegamos, então, no capítulo quinto,
fim do percurso, ao Amor ao Mundo. De volta
à questão da ética, Eugênia observa que se
os atores agem desinteressadamente, a ação
deve estar inspirada no amor; e se esse amor
não “diz respeito a pessoas ou grupos” não
pode estar referido ao desejo de distinção
que move cada ator; deve tratar-se do amor
que emana do próprio empreendimento,
do exercício da liberdade em concerto. Se
não existem interesses privados guiando o
desempenho dos atores é de supor, também,
que entre os atores há apenas o mundo, isto
é, o que está em questão é o mundo – nem
o globo nem a Terra e, sim, o mundo que é
abrigo humano e assunto dos homens. O
Amor ao Mundo se manifesta, assim, como
desígnio da ação, quando esta encontra o
próprio fim em si mesma, isto é, quando
o amor à liberdade, em cada um, se transforma no nós da ação: no anseio de fundação
da liberdade.
A conclusão de Eugênia Wagner, no
final de sua busca, é que “Arendt tem
uma ética da liberdade que em função do
princípio que ela mesma oferece pode ser
denominada de Ética do Amor ao Mundo e
que é o coração mesmo de uma filosofia
da liberdade. A filosofia da liberdade arendtiana não é nem filosofia política nem
filosofia moral porque Arendt conseguiu
sobrepujá-las por meio da única maneira
possível: colocando sob reflexão o nós
da liberdade – a pluralidade humana – e
oferecendo um princípio inspirador para
a ação”.
Resultado de uma pesquisa ampla e
cuidadosa, o livro de Eugênia Sales Wagner
merece ser lido não só por quem se interessa
pelo pensamento arendtiano mas por todos
aqueles que, habituados a pensar, se preocupam com a construção de um mundo
habitável. Especialmente neste momento de
profunda crise, em que tantos intelectuais
reivindicam o direito de ficar em silêncio,
ignorando a lição de Hannah Arendt que,
em “O Pensar”, ressaltou a importância
do aparecimento daqueles que pensam
– filósofos ou não – para julgar os acontecimentos em momentos de crise. 
Saul Kirschbaum é Doutor em Letras pelo
Programa de Pós-Graduação em Língua
Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da USP .
Atualmente, é bolsista Prodoc da Capes
LETRAS E ARTES
Coragem e nostalgia,
agora em quadrinhos
Duas graphic novels, recém-lançadas no Brasil, abordam temas centrais da tradição judaica, num
formato até há pouco visto como incompatível com a cultura séria. Por Alfredo Schechtman
N
os meus tempos de bancos escolares, ao menos para quem tinha
pais amantes da leitura e devotados
aos livros, ler histórias em quadrinhos era
considerado uma espécie de desvio perigoso
do reto caminho da alta cultura. Quadrinhos
eram a rendição precoce ao puro lixo da
indústria cultural de massas. Pois bem, desde
então, entre apocalípticos e integrados, de
Adorno a Eco, muita água rolou.
Não estou seguro de que aquela postura
crítica com relação aos quadrinhos seria
tão ferrenha se nossos pais já soubessem,
naquela época, que boa parte da indústria
cultural de massas norte-americana, edificada na primeira metade do século 20, e
que se espalhou pelo mundo ocidental,
tinha uma grande e decisiva participação
de judeus, quase todos imigrantes, ou filhos
de imigrantes, recém-chegados de distintas
partes da Europa, tanto na atividade empresarial como na criação artística em seus
diversos campos.
Assim, tal como no conhecido exemplo
de Hollywood, na indústria editorial de
quadrinhos (“comics”) foi destacada a ação
empreendedora de talentosos artistas
gráficos judeus. Muitos super-heróis
nascidos nos anos 30 e 40 brotaram de
suas mentes e penas criativas. Não é o caso
de alongar-se aqui sobre esta história, até
porque o leitor pode se remeter diretamente
ao ótimo artigo de Daniela Katzenstein
Hart, publicado nesta Revista 18 nº 6, para
conhecer mais sobre este tema.
Entretanto, dois livros traduzidos e
editados no Brasil em 2006 justificam
que se volte ao tema. Ambos, passíveis de
58  Revista 18
enquadramento na categoria de “romances
gráficos” (graphic novels), foram concebidos
por autores judeus, com temática judaica, e
produzem um impacto literário e estético
intenso, com densidade dramática bem
maior do que a das habituais histórias em
quadrinhos. O primeiro deles é O Complô:
a História Secreta dos Protocolos dos Sábios do
Sião, de Will Eisner, livro corajoso, em nada
cômico, próximo do trágico, como afirma
Umberto Eco em seu prefácio. Retomando
esta farsa literária, concebida no século 19
pelos serviços secretos e polícias de pelo
menos três países europeus para acusar
os judeus de quererem dominar o mundo,
Will Eisner (1917-2005) criou uma pequena
obra-prima. Eco aponta que o notável na
farsa literária dos Protocolos não é tanto
sua concepção, mas a resistência a todas
as provas de sua falsidade grosseira e o
perverso apelo que continua a exercer.
Com efeito, todas as vezes que alguma fonte
definitiva confirmou a natureza espúria da
obra, houve alguém que voltasse a publicála, defendendo sua autenticidade – uma
história que se perpetua até nossos dias,
agora também pela internet.
A história desta mistificação literária
nos é ensinada por este notável mestre dos
quadrinhos, e resulta de mais de vinte anos
de pesquisas sobre o anti-semitismo. Eisner
explica que, ao longo dos anos, centenas de
livros e competentes ensaios acadêmicos
expuseram a infâmia dos Protocolos. Esses
estudos, no entanto, foram escritos em
sua maioria por acadêmicos e feitos para
serem lidos por pesquisadores ou pessoas
já convencidas da sua fraudulência. Sua
proposta, extremamente bem-sucedida,
foi a de usar a linguagem mais popular
da narrativa em quadrinhos para lidar de
frente com uma terrível obra de propaganda, desmontando-a mais uma vez, mas
numa linguagem mais acessível.
Assim, a história dos Protocolos é
descrita em detalhes, superando em muito
o que se poderia esperar de uma graphic
novel.“Sempre que um grupo de pessoas é
ensinado a odiar outro grupo, inventa-se
uma mentira para insuflar o ódio e justificar
um complô. É fácil encontrar o alvo, porque
o inimigo é sempre o outro”, escreve Eisner
no início do primeiro capítulo do livro, intitulado “O alvo original”, e que descreve, em
rápidas pinceladas, a conjuntura política
francesa em meados do século 19, quando
surge o material que serviu de base para
os futuros Protocolos: um livro escrito em
1864 por um advogado e político francês,
Maurice Joly, para atacar Napoleão iii, intitulado O Diálogo no Inferno entre Maquiavel
e Montesquieu.
O livro de Eisner passa, a seguir, à Rússia
czarista, em 1894, no contexto de um conflito
em que modernizadores e reacionários
disputam a preferência do czar Nicolau ii. Para
manter a aparência de estabilidade, o czar dá
início a uma política de repressão aos judeus
e de apoio aos pogroms. Os conservadores
russos, quase sempre envolvidos com a polícia
secreta, acabam contratando os serviços de
um exilado russo em Paris, Mathieu Golovinski, que, a partir daquele antigo libelo
antinapoleônico, cria esta clássica obra antisemita espúria, publicada poucos anos depois
da virada do século por iniciativa de Sergius
LETRAS E ARTES
A criação dos Protocolos por agentes russos interpretada em quadrinhos por Will Eisner:
para Umberto Eco, o norte-americano concebeu um livro corajoso, próximo do trágico
Nilus, obscuro funcionário do Departamento
de Religiões Estrangeiras de Moscou, editor
de livros, e freqüentador da corte. Esta edição
russa ganhou ampla circulação e os monarquistas costumavam lê-la em voz alta para
camponeses analfabetos. Os czaristas falavam
abertamente de um complô judaico, alimentando um ciclo crescente de pogroms e de
violência anti-semita.
Em 1921, um exilado russo em Constantinopla, Mikhail Raslovlev, encontouse com Philip Graves, correspondente do
Times de Londres, e propôs vender-lhe as
provas de que os Protocolos eram uma falsificação, pois os comparara com os originais
da antiga obra antinapoleônica de Maurice
Joly. O assunto também despertava interesse na Inglaterra, e a assim chamada
ameaça judaica era brandida por políticos
e jornalistas conservadores do porte de um
Winston Churchill.
A matéria foi publicada pelo importante
jornal britânico. Num longo e fascinante
trecho, em que Eisner apresenta requintes de
scholar, assistimos ao circunstanciado cotejamento dos dois livros, tal como teria feito o
exilado russo para o perplexo periodista inglês,
desmontando, assim, a farsa antijudaica.
A seguir, Eisner vai mostrar que o
processo de desmascaramento da farsa
parece não afetar em nada a inabalável
disseminação do livro pelo mundo afora.
Sucessivas edições européias são publicadas
na Alemanha a partir de 1919, na França
a partir de 1921, e assim sucessivamente.
Nos Estados Unidos, Henry Ford, o magnata
da indústria automobilística, publica uma
edição em fascículos em seu jornal.
Nos anos 30 e 40, apogeu dos totalitarismos, os Protocolos seguem se difundindo. Hitler e seus fiéis seguidores haviam
sido seus leitores atentos. Em 1933, as
comunidades judaicas unidas da Suíça
processam a Frente Única Nazista pela
distribuição dos Protocolos naquele país.
A descrição da argumentação apresentada
por ocasião deste julgamento reitera a falsidade da obra, assim como sua incontornável
disseminação pelo mundo.
Eisner insiste e toca à exaustão na tecla
de que a história dos Protocolos não termina
com o fim do nazismo.“É meu desejo que,
talvez, esse trabalho fixe outro prego no
caixão dessa fraude tenebrosa e vampiresca”, escreve ele, nessa lição de história em
que o combate ao anti-semitismo se torna
missão permanente.
A outra graphic novel de temática judaica
publicada no ano passado no Brasil é O Gato
do Rabino: i - O Bar-Mitzvah, do francês Joann
Sfar (1971), que provém de outro universo
judaico, caracterizado pela herança Sefardita. Com notável beleza pictórica, que
Revista 18  59
LETRAS E ARTES
O Gato do Rabino, do francês Joann Sfar: pensamento judaico e contradições do comportamento humano criam um clássico
que sepulta, de uma vez por todas, a noção de que existe incompatibilidade entre os quadrinhos e a esfera da alta cultura
remete ao universo visual dos artistas plásticos argelinos do século 20, Sfar recria, em
tonalidades intensas, a vida quotidiana
de uma comunidade judaica urbana na
Argélia do período colonial francês. A série
O Gato do Rabino, que na França já tem cinco
volumes publicados, agrupa um conjunto
de personagens fascinantes, sempre vistos
do ponto de vista de um narrador, ninguém
menos do que o gato do rabino.
Nas primeiras páginas do livro, o gato
do rabino narra apenas por meio de seus
pensamentos. Ficamos sabendo de sua
relação com o seu dono, da paixão silenciosa que nutre por Zlabya, a filha do
rabino, e da rivalidade que nutre com o
sempre loquaz papagaio da casa. Zlabya, a
horas tantas, comenta que o mundo é muito
injusto, que alguns poucos têm muito, e
outros muitos nada têm. Reclama que os
papagaios falam demasiado, enquanto os
gatos, que teriam coisas incríveis a contar,
nada falam. Tomando estas considerações
ao pé da letra, de modo muito conveniente
para si próprio, o gato devora o papagaio,
às escondidas de seus donos. De imediato,
ganha um novo e insólito atributo, passa a
falar, e prontamente nega ter devorado seu
rival doméstico.
O rabino, aborrecido pelas mentiras
sucessivas que saem da boca do bichano, e
60  Revista 18
com medo de que ele ponha minhocas na
cabeça da filha, a proíbe de ficar sozinha
com o gato, que passa, então, seus dias
com o rabino. Este, sempre segundo nosso
narrador, quer que ele estude a Torá, o
Talmude, a Mishná e a Gemara, que, esperase, o levarão ao caminho da virtude.
O rabino quer transformá-lo num bom
judeu, um bom judeu que não minta. Já
o gato diz ser apenas um gato, e que não
sabe se é um gato judeu ou não. Tem início,
então, uma verdadeira discussão talmúdica,
na qual o rabino afirma que o gato é judeu
pois seus donos são judeus, ao que o gato
argumenta não ter feito circuncisão. Mas, já
que é judeu, quer fazer seu bar-mitzvá.
Na dúvida sobre se isto é permitido, o
rabino consulta o seu rabino, e este lhe diz
que não, e sugere ao dono do gato matá-lo.
Ao dialogar com o rabino do rabino, porém,
o gato alega ser Deus, que teria assumido a
aparência de um gato para testá-lo, e que ele
(rabino) estava sendo tão dogmático consigo
quanto alguns cristãos são com os judeus.
O rabino do rabino chega a ponto de lhe
implorar perdão de joelhos, ao que o gato diz
ser apenas um gato, reiniciando a contenda, e
provocando uma disputa entre os rabinos.
Depois de muitas páginas de diálogo, em
que somos absorvidos pelo mais puro pensamento judaico, sendo o gato absolutamente
cético quanto à religião e quanto a Deus,
o rabino lhe diz que aquela história não
tem cabimento. Emergem as contradições
do comportamento humano, que oscilam
entre o sublime e o vil. Por ter ganhado o
dom da palavra, o gato também se percebe
como um ser contraditório, e torna-se,
assim, menos intransigente consigo mesmo,
e principalmente com os outros.
A alta qualidade do enredo e das imagens
fazem deste volume um clássico, sepultando, de uma vez por todas, a noção de
incompatibilidade entre os quadrinhos e o
universo da alta cultura. 
Alfredo Schechtman é médico, Mestre em
Medicina Social pelo Instituto de Medicina
Social da UERJ
O Complô: a História Secreta dos
Protocolos dos Sábios do Sião
Will Eisner
Tradução André Conti
Companhia das Letras, 160 p.
R$ 36
O Gato do Rabino: 1 O Bar-Mitzvah
Joann Sfar
Tradução André Telles
Jorge Zahar Editor, 48 p.
R$ 39,90
LETRAS E ARTES
Clássicos russos para
o público infantil
Tolstoi e Turguêniev chegam ao leitor brasileiro
pelas mãos de Tatiana Belinky
David R. Krausz cursa a 8ª série da Escola
Vera Cruz
Marcos Alves
T
atiana Belinky, a célebre autora
de livros infantis nascida em Riga,
Letônia, mudou-se para o Brasil aos
10 anos de idade. Reconhecida pela qualidade de sua obra dirigida ao público infantil,
ela também destacou-se pela tradução de
livros russos – como estes dois, recentemente lançados pela Editora 34: As histórias
de Bulka, de Lev Tolstói, e O cão fantasma,
de Ivan Turguêniev. Muito bem traduzidos,
estes livros chegam a nós como se tivessem
sido escritos originalmente em português.
O livro de Tolstói narra a história de um
jovem russo e de seu adorável cão, Bulka.
Recrutado pelo serviço militar, o jovem viaja
para o Cáucaso e, para sua surpresa, o cão
o acompanha no caminho e, conquistando
a amizade de todos, passa a fazer parte do
exército e, junto com seu dono, vive aventuras, caça, persegue animais silvestres e até
é perseguido por homens armados! Narrada
com emoção, a história faz o leitor mergulhar no mundo do cão, sentindo suas alegrias
e tristezas. O livro, porém, é bastante curto e
termina muito depressa.
Já Turguêniev, em seu livro, conta a história
de alguns homens que discutiam a respeito
do sobrenatural e sua existência, quando um
provinciano entre eles relata uma história
surpreendente sobre um cão fantasmagórico
que apareceu em sua vida alguns anos antes.
A história é muito emocionante e realmente prende a atenção do leitor. Tem
muito suspense e mistério, o que a torna até
mais divertida do que a história de Tolstói.
Apesar de tratar do sobrenatural, parece
mais real do que a outra.
Igualmente breve, O cão fantasma diverte
e entretêm o leitor.
Tatiana Belinky: clássicos russos para o público infantil
parecem ter sido escritos originalmente em português
O Cão Fantasma
Histórias de Bulka
Ivan Turguêniev
Lev Tolstói
Tradução Tatiana Belinky
Tradução Tatiana Belinky
Editora 34 - 2007, 46 p.
Editora 34 - 2007, 46 p.
R$ 20
R$ 20
Revista 18  61
COZINHA
Goldene kichelech (biscoitinhos dourados):
minhas lembranças e as de minha mãe
Márcia Zoladz recorda os sabores da cozinha de sua avó, que
dependiam da exatidão de punhados, bocados e olhares
E
sta é a história de uma receita que se
perdeu. Minha avó Golda Sztyglic
chegou em 1937 ao Rio de Janeiro.
Veio com dois filhos pequenos de Ostrov
Lubelski, uma cidade pequena próxima
a Lublin, na região oriental da Polônia.
Meu avô, como tantos outros, viera na
frente para se instalar, encontrar trabalho
e aguardar a chegada da família. Essa espera
dos imigrantes pela família muitas vezes era
longa, algumas vezes demorava-se até três
anos para conseguir organizar a viagem, os
vistos, e até para tomar coragem de enfrentar
a viagem. Minha mãe, Rosza Wigdorowicz
Vel Zoladz, lembrou numa conversa recente
como eram jovens esses casais que tiveram
que sair da Europa com os filhos pequenos.
E como lutaram para criar um quotidiano
em um novo país. Sem as referências das
pessoas mais próximas, sem os primos e
irmãos com a mesma língua, acabaram por
criar amizades fortes com pessoas que nunca
conheceriam se tivessem ficado na Europa.
Minha avó tinha uma vizinha de origem
espanhola, dona Izabel, e a amizade entre
© Crystl
62  Revista 18
elas e entre seus filhos e netos permanece até
hoje, como se fôssemos primos distantes.
Das receitas de minha avó, lembro-me
bem de três: a Chalá (pão trançado), que ela
preparava para os jantares de família, às
sextas-feiras, e da qual eu, como neta mais
velha, ganhava sempre um pedaço especial;
a torta de uvas pretas e uns biscoitos que
ela guardava numa lata de alumínio. Cozinhava, também, alguns outros pratos; não
me lembro de muitas especialidades como
as que a minha avó paterna Sara Wigdorowicz Vel Zoladz fazia. Minha avó tinha
o que poderia chamar de uma cozinha
funcional. Fazia, por exemplo, uma canja,
que as minhas tias grávidas deveriam
comer para que os bebês nascessem fortes e
saudáveis. Como me achava muito magra,
insistia em que comesse bifes, de preferência de filé-mignon. E anos mais tarde,
quando já morava na minha própria casa,
sempre me telefonava para saber se eu
tinha maçãs na geladeira.
As receitas de minha avó se perderam
porque ela não as anotava num caderno,
e as quantidades dos ingredientes
dependiam de uma medida extremamente individual, o punhado ou bocado,
como dizia, e o seu olhar na panela. Ela
não usava copos ou xícaras para medir as
quantidades, mas minha mãe ainda tem
uma lembrança extremamente viva dos
biscoitos que preparavam juntas quando
ela era pequena.
“Primeiro, a colocação da terrina alva
como a cerâmica que lhe dava forma sobre
a pia de mármore, fazia que nossos olhos
infantis nela se fixassem intensamente. A
adição dos ingredientes (...) a palavra ‘bocadinho’ era pronunciada (...) a etapa seguinte
era a de modelagem das formas (...). Gatinhos, elefantes, borboletas e peixinhos eram
os tipos escolhidos e a meia-lua completava
(...). Colocados em tabuleiros de alumínio
previamente untados, que reluziam no
forno, de onde os retiravamos quando
víamos que estavam dourados – daí serem
denominados ‘goldene kichelech’.”1
Ficaram, de minha avó, as memórias e
o hábito de ter em casa comidas gostosas
para o shabat ou o fim-de-semana. A receita
a seguir não se compara a qualquer memória
que tenhamos dos biscoitos feitos por nossas
avós, mas é deliciosa e fácil de ser preparada.
HUMOR
Biscoitos doces - Pareve
Para observar a Kashruth utilize margarina
vegetal, olhe o rótulo, porque a maior
parte das margarinas atualmente mistura
gordura animal e vegetal.
1 1/ 2 xícara de farinha de trigo
1 1/ 2 colher de chá de fermento em pó
1 / 4 de colher de chá de sal
6 colheres de sopa de margarina vegetal
1 / 2 xícara de açúcar
2 colheres de sopa de açúcar cristal ou de sementes de
papoula
1 colher de sopa de casca de limão ou laranja ralada
J
acó estava convencido de que sua esposa estava ficando surda. Como
ela se recusava a ir ao médico, ele perguntou a um especialista em
ouvidos o que poderia fazer.
“Comece na porta do cômodo onde ela estiver”, disse-lhe o doutor.
“Diga a ela alguma coisa, num tom de voz normal. Com isto você poderá
avaliar se ela está ou não surda.”
Depois do jantar, quando sua esposa estava lavando os pratos na
cozinha, Jacó se pôs na porta e disse: “Querida, eu te amo”.
Nenhuma resposta.
Deu alguns passos na cozinha e repetiu: “Eu te amo, minha querida.”
Ainda nenhuma resposta.
Ele chegou bem perto, quase encostou no seu ouvido e repetiu: “Eu
te amo, minha querida”.
Ela se voltou e falou: “Pela terceira vez, eu também te amo”.
1 ovo
2 colheres de sopa de água
1 colher de chá de açúcar
Misture a farinha com o sal e o fermento.
Bata com a batedeira a margarina com o
açúcar, acrescente o ovo e por fim a mistura
com a farinha e a casca de limão ou laranja.
Abra a massa com um rolo sobre um papelmanteiga polvilhado com farinha de trigo.
A espessura é de aproximadamente três ou
quatro milímetros. Coloque o papel com a
massa em um tabuleiro e deixe na geladeira
por 45 minutos.
Retire a massa da geladeira, corte com
um cortador de metal no formato desejado.
Coloque os biscoitos em uma assadeira
forrada com papel-manteiga. Dissolva o
açúcar na água e passe o dedo molhado
sobre os biscoitos e polvilhe com o açúcar
cristal ou com as sementes de papoula. Asse
em forno baixo previamente aquecido até
começarem a dourar.
PARA SABER MAIS sobre as cidades de emigração
judaica visite o site Witness to a Jewish Century: http://
www.centropa.org/archive.asp?arch=HF&mode=adv
O site tem também uma seção de culinária de Mimi
Sheraton, que além de receitas tem muitas histórias
em vídeo.
1
Publicado na revista Menorah, no 408, junho de
1993, p. 13.
Revista 18  63
Parceiros e Mantenedores do Centro da Cultura Judaica
parceiros esmeralda
Banco Safra
Companhia Siderúrgica Nacional (csn )
Suzano Papel e Celulose
Itaú S.A.
mantenedores esmeralda
Edmundo Safdie
Família Feffer
parceiros rubi
Dentsu Latin America
Unibanco
Itaú bba
Crédit Agricole Brasil
Inpal Indústrias Químicas
Isapa
Julio Simões Transportes e Serviços
Metso Paper
Serpal Engenharia
mantenedor rubi
Familia Ruhman
parceiros platina
Adesi Industria e Comércio de Adesivos
Agora Sênior ctvm
Banco Alfa
Banco Fibra
Coteminas
Hedging-Griffo
Imetame Metalmecânica
Inova Investimentos
Leo Madeiras
Ourinvest
Satipel
Triton e Fórum Industria e Comércio de Moda
Unicard
White Martins
Wirex Cable
parceiros ouro
Atlanta Química Industrial
Brascan
Fiorelli Comércio de Veículos
Fortes Engenharia
Guimar Engenharia
Invensys System
km Indústria e Comércio de Papel
Mauá Investimentos
Construtora Moura Schwark
Paranasa Engenharia e Comércio
Petroquímica União
Politeno
Química Fina
rem Indústria e Comércio
Savyon Indústrias Têxteis
Securinvest Administradora de Recursos
Specialty Minerals do Brasil
Voith Paper
mantenedores ouro
David Erlich
Israel Vainboim
Jayme Bobrow
Jorge Feffer
Philip Wojdslawski
Roberto Feder
parceiros prata
Andritz
Brasitest
Devemada Engenharia
Inova Investimentos
Irmãos Passaura
Rosas Empreendimentos
Veólia Water
mantenedores prata
André Kauffmann
Anuar Mitri Maluli
Boris Tabacof
Cláudio Hirschheimer
Eduardo Fischer
Flavio Mendes Bitelman
Fredd Litto
Frederic Michael Litto
Gustavo Halbreich
Henri Philippe Reichstul
Israel Grytz
Jacques Sarfatti
Jayme Garfinkel
José Mindlin
Marcelo André Steuer
Mário Arthur Adler
Mário Fleck
Raul Meyer
Renato Ochman
Rene Werner
Ruy Fischer
Samuel Lafer
Saul Olimpico Libman
William Lohn
NA REDE
INTERNET
por Dov Bigio
Grand Bazar – O Oriente Médio como você nunca viu
O jornalista brasileiro Michel Gawendo atua
como correspondente no Oriente Médio
desde 2002, com matérias diárias no canal
BandNews, bem como matérias especiais para
a Folha de São Paulo, além de participações
na Rádio Antena 1 de Portugal. Em seu blog,
o jornalista publica algumas de suas matérias,
[email protected]
www.gardenal.org/grandbazar
bem como postagens atualizadas sobre a situação em Israel, no Oriente Médio, e os caminhos para a paz. É importante acompanhar a
visão de um jornalista brasileiro judeu num
conflito recheado de paixões ideológicas, e
que nem sempre é visto com imparcialidade
por parte da mídia internacional.
InfoLive TV – Israel News Live
O InfoLive TV é um canal de televisão online
com notícias em inglês, espanhol, francês e
árabe, sempre atualizado, em que se pode
assistir a notícias, ou simplesmente lê-las,
a qualquer hora. Além de notícias sobre
temas atuais, há um grande catálogo de
reportagens em vídeo sobre temas como o
The Israel National Photo Collection
Escondida entre os diversos sites do governo
israelense está a coleção nacional de fotos,
da Imprensa Oficial do Governo, um departamento do escritório do Primeiro-Ministro.
Foi criado nas celebrações do cinqüentenário
de Israel, e possui uma quantidade enorme de
fotos da história do país. Não é um site fácil de
www.infolive.tv
mundo judaico, turismo em Israel, o mundo
islâmico e outros. Os vídeos geralmente são
curtos, e não exigem muitos recursos do
computador. Assim, possibilita acesso ao
noticiário israelense, direto da fonte. O site
oferece, ainda, um boletim periódico com
notícias e reportagens.
http://147.237.72.31/topsrch/defaulte.htm
navegar, e as fotos são encontradas somente
a partir do sistema de busca (não há um catálogo centralizado). Mas, uma vez feita a busca
certa, fotos fantásticas podem aparecer! Tente
procurar, por exemplo, por “Ben Gurion”,
para ver mais de 150 fotos deste grande líder
ao longo de sua atuação em Israel.
HebrewOnLine.Com
www.hebrewonline.com
Pessoas de diversas religiões têm interesse em aprender o idioma hebraico.
Seja para visitar Israel, para entender as
rezas judaicas, ou até mesmo para ler a
Bíblia no original. Projeto do Ministério
das Relações Exteriores de Israel, este site
é de um instituto de ensino de hebraico
que emprega mais de 100 professores e
possui cursos on-line de hebraico para
estudantes de mais de 32 países. A interação entre os alunos e professores é em
tempo real, com vídeos e chat entre alunos
e professores. Os cursos são pagos, mas
há guias de frases, pronúncias e demonstrações para todos os interessados em
aprender este idioma milenar.
Revista 18  65
Safra