A letra mata... O Espírito vivifica
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A letra mata... O Espírito vivifica
PNV 341 A letra mata... O Espírito vivifica Conflitos e identidades dos cristianismos originários Ana Cláudia Figueroa São Leopoldo/RS 2016 © Centro de Estudos Bíblicos Rua João Batista de Freitas, 558 B. Scharlau – Caixa Postal 1051 93121-970 – São Leopoldo/RS Fone: (51) 3568-2560 Fax: (51) 3568-1113 [email protected] www.cebi.org.br Série: A Palavra na Vida – Nº 341 – 2016 Título: A letra mata... O Espírito vivifica: Conflitos e identidades dos cristianismos originários Autora: Ana Cláudia Figueroa Capa e revisão ortográfica: Rodrigo Fagundes Imagem na capa: A Viúva de Naim, por Fairannie’s Creative World. Disponível em www.zazzle.com.br Editoração: Rafael Tarcísio Forneck ISBN: 978-85-7733-258-8 Ana Cláudia Figueroa é teóloga e biblista, professora do Instituto Darlene Garner da Comunidade de Comunhão Metropolitana. Sumário Introdução...........................................................................................5 1ª Parte – Poder fazer, poder dizer Algumas mulheres nas primeiras comunidades cristãs..............9 Falar, profetizar – mulheres em Corinto..........................................11 Fazer e não ensinar – Mulheres nas Pastorais..................................15 2ª Parte – Comunidades pastorais, ensino e or(de)namento Um estudo possível das cartas de Paulo a Timóteo e a Tito.......19 As Cartas..........................................................................................19 O contexto histórico.........................................................................21 As comunidades das Pastorais.........................................................23 Dos deveres de lideranças e outras coisinhas mais..........................25 As disputas.......................................................................................27 GIO Judaizantes Gnósticos e GIO Liberais......................................28 1. Os GIO Judaizantes semignósticos........................................30 2. Os GIO Liberais.....................................................................31 Mulheres e Escravos........................................................................32 As mulheres...............................................................................32 As viúvas...................................................................................34 Os Escravos...............................................................................36 Não podem ser líderes......................................................................38 As soluções......................................................................................41 PNV 341 3 Introdução “A letra mata... o Espírito vivifica”. (2Co 3, 6) Nós, que caminhamos com a leitura popular da Bíblia, vez e outra precisamos reconsiderar o que sabemos de nós mesmos, nossas motivações e nossa metodologia. A SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) vende cerca de seis milhões de Bíblias por ano, ao preço médio de R$ 10... são produzidas 30 mil Bíblias por dia... A SBB lança 40 títulos inéditos por ano: a “Bíblia da Família”, a “Bíblia da Mulher” e a “Bíblia do Surfista”... entre outros. Esta também é uma tendência significativa entre as editoras católicas e evangélicas em geral: em 2015 foram vendidos 70 milhões de livros “religiosos”... sendo a Bíblia um dos campeões de venda! Mas... de quantas Bíblias uma pessoa precisa? Quem compra tanta Bíblia? Então é que a Bíblia virou objeto de consumo, mercadoria... O capitalismo “coisou” a Bíblia. Poderíamos dizer que a Bíblia foi “popularizada”? O que isso quer dizer pra nós? A Bíblia tem status de celebridade, é nome de praça, é empunhada em marchas e cantada em shows. Versículos bíblicos em camisetas, nomes bíblicos em padarias e lojas de conveniência. Esta mercantilização do livro “Bíblia” se faz acompanhar também pelo fortalecimento da leitura fundamentalista e dos usos moralistas do PNV 341 5 texto bíblico especialmente nos debates sobre políticas de educação, família e sexualidade. Um deputado usa a Bíblia na tribuna. Defende o modelo de família da Bíblia e com isso quer silenciar todo o debate vivo na sociedade sobre modos de organização social da vida. A Bíblia se torna então uma trincheira, uma parede, um espelho e uma mordaça: • uma trincheira porque é manipulada numa guerra de setores conservadores contra os debates necessários que acontecem na sociedade; • uma parede porque fecha horizontes, nega vislumbres e silencia sobre os conflitos presentes no texto bíblico mesmo; • um espelho porque os conservadores e fundamentalistas, na defesa de seus interesses e privilégios (de classe, de raça, de gênero, de orientação sexual), querem fazer refletir resoluções do passado como imperativos imutáveis; • uma mordaça porque não é lida e interpretada, mas repetida sem reflexão, sem estudo, sem história e sem contexto: no fundamentalismo (de neo pentecostalismos e neo carismáticos) o texto bíblico tem sido usado para silenciar as pessoas e não para fazer surgir significados da presença de Deus na vida. Assim, ao mesmo tempo a Bíblia é muito importante e... não tem importância nenhuma. Importante como coisa, como objeto de poder! Sem importância porque foi reduzida a slogans e frases de efeito. Na caminhada que fazemos da leitura popular da Bíblia, o que nos explica e nos dá significado é o método! Somos parte de duas experiências vitais das lutas de libertação do continente latino-americano: a educação popular e as comunidades de base. A leitura popular da Bíblia é fruto da educação popular, do método ver-julgar-agir, das comunidades de fé e ação, da misericórdia solidária, do 6 PNV 341 acolhimento radical e do protagonismo das comunidades que atualizam o texto no cotidiano de suas lutas e esperanças. Grandes desafios se colocam para nós, de modo especial para o CEBI: um deles é manter a fidelidade à sua história, sendo capaz de fazer a crítica do processo de mercantilização e manipulação do texto bíblico e continuar se alimentando da Palavra de Deus viva na vida das comunidades. Nós não temos respostas nem certezas! Nós temos a abertura para deixar que o Espírito vivifique em nós a Palavra. Para nós, a Bíblia é uma janela: nos colocamos como comunidade diante do texto, nos aproximamos do passado e compreendemos os conflitos e as resoluções do povo de Deus no passado e fazemos o exercício de atualizar – crítica e espiritualidade – o texto em nossa história e cotidiano. Este é o objetivo deste volume da série A Palavra na Vida. Ana Cláudia Figueroa nos convida a conhecer os textos de Corintios, Timóteo e Tito perguntando pelos conflitos, pelas disputas internas entre os grupos das comunidades e os grandes conflitos externos com o Império Romano. Recolocar os textos no eixo dos conflitos nos ajuda a evitar tratar a Bíblia como receituário. Não há respostas prontas... há debates e alternativas. No que diz respeito às resoluções sobre a participação de mulheres, as ordenações familiares e morais... este livro é uma oportunidade de confirmarmos nossa vocação de leitura popular da Bíblia: na história e na vida! Boa leitura! Nancy Cardoso PNV 341 7 1ª Parte Poder fazer, poder dizer Algumas mulheres nas primeiras comunidades cristãs “Por serem ignorantes e analfabetos, estes, tanto homens quanto mulheres, corriam pelas cidades, e entravam nas casas. Pregando em lugares públicos e também nas igrejas. Também dizem que a consagração do corpo e sangue de Cristo na Santa Ceia pode ser feita por qualquer pessoa justa... Eles até creem a mesma coisa concernente às mulheres, se são de sua seita, e assim dizem que toda pessoa santa é sacerdote”1. Há muito tempo que discussões como esta fomentam elaborações teológicas em nossas diferentes igrejas. Provavelmente já no início do cristianismo mulheres exerciam funções nas comunidades, o que indignou alguns homens. 1 Texto escrito por Bernardo Gui, inquisidor no sul da França, contra os valdenses, datado de 1300 d.C. In: BARRY, Colman J., Reading in Church History. Volume I. Westminster, Newman Press, 1956, p.544,546. Citado por REILY, Duncan Alexander, Ministérios femininos em perspectiva histórica. São Paulo/Campinas, CEBEP/Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, p. 119. PNV 341 9 Poder fazer algumas atividades, não poder fazer outras. Poder dizer algumas palavras, não poder dizer outras. O que está por trás dessas normatizações em torno das lideranças femininas no cristianismo? Vamos fazer exercícios de leitura que ajudam a responder. Nós, mulheres, reivindicamos outro olhar para a experiência da fé. Ao pensar a história, queremos visualizar novos personagens. Ao ler a Bíblia, queremos redescobrir seu significado na experiência da vida. Nesse sentido, o Novo Testamento se mostra como um amplo campo de trabalho. As muitas mulheres, nomeadas ou não nos textos, nos convidam a recontar a sua história. Falta-nos, no entanto, definir melhor os parâmetros da pesquisa, um instrumento metodológico que nos aproxime com o máximo de fidelidade das primeiras comunidades cristãs. Assim, partimos dos seguintes pressupostos: • Visualizar a experiência de vida das primeiras comunidades cristãs descrevendo melhor os sujeitos: com presença de homens e mulheres, crianças e idosos, pobres e ricos, estrangeiros e romanos; • Resgatar as experiências desde a realidade do conflito, uma vez que o Novo Testamento traz em si a característica de ser uma tentativa de solução mágica para conflitos emergentes (explícitas em algumas cartas, implícitas nos evangelhos); • Os textos são testemunhos de uma parcialidade dentro das comunidades. Fazer sua releitura significa reconstituir outras parcialidades existentes. Não devemos encarar os textos como normativos, uma vez que são circunstanciais. A seguir, proponho uma leitura sobre a história das mulheres que exerceram liderança no primeiro século em comunidades cristãs. 10 PNV 341