Lina Lessa Lucas - Colégio Ofélia Fonseca

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Lina Lessa Lucas - Colégio Ofélia Fonseca
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COLÉGIO OFÉLIA FONSECA
FEMINISMO NA ATUALIDADE
Lina Lessa Lucas
São Paulo
2012
1
Lina Lessa Lucas
FEMINISMO NA ATUALIDADE
Trabalho realizado e apresentado sob a orientação da Professora Cristiane Bastos
Ferreira, da disciplina de Literatura.
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DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho, como não poderia deixar de ser, a todas as mulheres que
serviram de inspiração para mim durante toda a minha vida até hoje: minha mãe, Deise
Lessa, pelo exemplo de coragem e independência; minhas tias, Dilza, Denize, Dilma e
Dulcedina Lessa, que, cada uma à sua maneira, são exemplos de luta e recebem todo o meu
carinho; minha irmã, Talitha Lessa, que sempre teve minha admiração de irmã mais nova; e,
por fim, minha avó, Talita Teixeira Lessa, que não tive o prazer de conhecer profundamente,
mas o pouco que sei sobre sua história, me encanta e inspira todos os dias.
3
AGRADECIMENTOS
Ao começar um TCC, mesmo que de Terceiro Ano de Ensino Médio, nossas ideias
são fabulosas, cheias de planos fantásticos. Entretanto, quando vamos colocar em prática
nosso ideário, percebemos que a construção de um trabalho como esse é muito mais
complicada do que pensávamos de início. Percebem-se, então, as dificuldades e as
limitações que uma produção escrita ideológica como essa gera. O estudante começa a
desiludir-se, a perder as certezas iniciais que o motivavam: bloqueios, estresse, desespero,
drama total. Entretanto, graças a algumas pessoas muito especiais que se preocupam e
ajudam como podem durante todo o processo, o trabalho sai, e, inesperadamente, superando
suas tão baixas expectativas. Por isso, é muito importante agradecê-las, porque, sem o apoio
constante de algumas pessoas, esse trabalho não teria saído.
Primeiramente, agradeço a minha mãe, Deise Teixeira Lessa, que sempre se dispôs a
revisar o trabalho e me ajudar nos meus momentos de bloqueio.
Sendo esse o resultado da minha formação acadêmica, agradeço a todos os
professores que contribuíram para meu desenvolvimento escolar e individual. Willian Arthur
Ward, escritor e educador estadunidense, disse uma vez: “O professor medíocre conta, o
bom professor explica, o professor superior demonstra e o grande professor inspira”. Dedico
essa frase a esses grandes professores que fizeram parte da minha formação.
Agradeço também as entrevistadas, Lola Aronovich, Tica Moreno, Deise Recoaro e
Jade Percassi, que doaram de forma tão gentil um pouco de seu tempo para me ajudar na
realização desse trabalho. Agradeço também a todos que se dispuseram a conversar comigo
sobre o tema, incluindo os meus amigos que, até se cansarem, me ouviram durante todo o
ano, repetidamente, reclamar, argumentar e discutir. Um agradecimento especial àqueles
que, de forma voluntária, escolheram me acompanhar durante passeatas, me apoiar em
discussões e, até, aderiram a causa após nossas conversas.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a minha orientadora, Cristiane Bastos
Ferreira, que soube entender meus desesperos e dúvidas e me guiou com maestria no
caminho que tracei durante esse TCC. Nossas conversas, momentos tão especiais e
prazerosos, me ajudaram não só na produção desse trabalho, mas, muito além disso, me
inspiraram como pessoa e me incentivaram como feminista. Obrigada por tudo, Cris.
4
SUMÁRIO
Capítulo 1 - Introdução..........................................................................................5
Capítulo 2 – Desenvolvimento...............................................................................9
2.1 O que é feminismo?............................................................................................9
2.1.1 Patriarcado...........................................................................................9
2.1.2 Androcentrismo..................................................................................10
2.1.3 Sexismo e Machismo..........................................................................10
2.1.4 Gênero................................................................................................11
2.2 A História do Feminismo..................................................................................11
2.2.1 O Feminismo pré-moderno................................................................11
2.2.2 A primeira onda feminista.................................................................13
2.2.3 A segunda onda feminista................................................................15
2.2.4 A terceira onda feminista..................................................................17
2.2.5 Anos 80, o início do pós-feminismo.................................................20
2.3 O Feminismo no Brasil....................................................................................21
3. Considerações sobre a sociedade atual..............................................................27
Capítulo 3 – Conclusão.......................................................................................29
Referências bibliográficas...................................................................................36
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CAPÍTULO 1 – Introdução
Qual é o papel da mulher na história da humanidade? A mulher é a fertilidade, é a
geradora da vida e, por muito tempo, foi tratada dessa maneira – deusas eram cultuadas e
adoradas e as mulheres, símbolo da vida, eram valorizadas como tal. No entanto, os padrões
da sociedade se transformam. Acaba a era nômade, o homem se estabelece e entra em vigor
a “lei do mais forte”. A ideia de deus muda – Deus, homem, opressor e julgador, que, de
cima, observa a tudo e a todos. A cultura agressiva se valoriza, assim como o homem
“macho”. Não há mais a deusa da terra, que tudo dá e para onde tudo volta1. E, desde então,
esse novo modo de encarar a vida vai se transformando e se desenvolvendo. Nasce o
pensamento patriarcal2, e, a partir da Idade Média (até o século XIX) esse ideal é fortalecido
e relega à mulher os bastidores da história, salvo raras exceções, podendo ela apenas
alcançar o posto de geradora de grandes homens. Porém, foi no século XIX (o período da II
Revolução Industrial, momento de grandes mudanças econômicas e sociais) que as coisas
começaram a mudar: pela primeira vez surge um grupo de mulheres que lutaram pelo papel
de protagonistas de suas próprias vidas e buscaram sair, finalmente, dos bancos de reserva.
O sufrágio foi só a primeira de muitas conquistas das chamadas feministas, que,
lutando contra séculos de opressão, saíram às ruas reivindicando, por exemplo, o direito ao
voto, clamando por voz em uma sociedade que crescia e se fortificava, cada vez mais,
industrial e culturalmente.
Além da conquista do voto, atualmente a mulher está presente na política de forma
ainda mais significativa. Trabalha, ganhou independência e autoconfiança. Hoje a situação
da mulher é, aparentemente, confortável. Mas será boa de fato?
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 140 milhões de
mulheres sofrem as consequências da circuncisão feminina, que consiste na remoção total ou
parcial da parte externa do órgão de seu genital. Essa é uma prática muçulmana milenar
adotada pelos mais ortodoxos, principalmente na África, que tem como finalidade reprimir a
sexualidade da mulher, mantendo-a virgem e pura até o seu casamento. Quando este
acontece, o marido deve cortar a sutura da região, para que então ocorra a consumação do
1
Baseada na fala da física e economista eleita patrona do feminismo no Brasil, Rose Marie Muraro,
no documentário “Memórias de uma mulher impossível”.
2
Segundo dicionário Houaiss pela quarta definição (a sociológica), patriarcal concernente à
autoridade e ao prestígio do patriarca ('chefe', 'pessoa mais velha'). Patriarcado, segundo o mesmo
dicionário, é uma forma de organização social em que predomina a autoridade paterna.
6
matrimônio. Esses não são processos indolores pelos quais a mulher passa sem sequelas:
tanto a circuncisão quanto a consumação do casamento são processos traumáticos que
marcam sua vida e a faz acreditar que está destinada à dor e ao sofrimento.
Frequentemente, são noticiados nos jornais casos de mulheres apedrejadas até a
morte em países como o Irã sob a acusação de adultério. É o caso Sakineh Ashtiani, viúva
iraniana transformada em mártir por ter sido alvo de discussões em diversas partes do
mundo, que lutava para libertá-la das injustas acusações levantadas sobre ela (adultério após
a morte de seu marido, seguido de adultério durante o casamento e assassinato do marido) e
da desproporcional sentença de morte por lapidação (o apedrejamento).
Nos dois casos acima, pode-se argumentar que se trata de tradições religiosas e
culturais muçulmanas e que isso, em nada, se assemelha ao pensamento ocidental. No
entanto, Waris Dirie, embaixadora da ONU, ativista contra a circuncisão feminina e
muçulmana, afirma: “a mutilação feminina não tem nenhum aspecto cultural, tradicional e
religioso. É um crime que necessita de justiça.”. É, portanto, uma prática ligada a outro
aspecto social, o sexismo3.
Entretanto, maus tratos em relação à mulher não ocorrem apenas no Oriente. É bem
verdade que, no Ocidente, aconteceram os mais importantes movimentos feministas e aqui
as discussões sobre o sexo feminino são menos tabu, mas quando analisamos
cautelosamente detalhes da nossa sociedade, podemos mesmo afirmar que somos tão
diferentes daqueles que apedrejam suas mulheres adúlteras? Talvez não tenhamos leis tão
rígidas, nem costumes tão brutais, mas o julgamento não é bastante parecido? Ainda, será
que o que afeta as mulheres ocidentais é apenas um julgamento? A repressão não vai além
disso?
Segundo um relatório da Anistia Internacional, um bilhão de mulheres já foram
agredidas ou estupradas no mundo. Na França, 25 mil mulheres são estupradas por ano, e no
Congo, estima-se que 48 mulheres sejam estupradas por hora. No Brasil são,
aproximadamente, 15 mil por ano.4 Estes números vêm crescendo, já tendo sido registrados
no primeiro trimestre de 2012 um aumento de 15% nos casos de estupro no Rio de Janeiro,
16% em São Paulo e, o mais alarmente, 50% em Brasília5.
Dessa forma, as situações não são tão diferentes, lá e cá, quanto aparentam: crianças
e adolescentes são sexualmente abusadas por pais, irmãos, tios e namorados. As histórias
3
Por definição, segundo o dicionário Houaiss, é a atitude de discriminação fundamentada no sexo.
http://www.aids.gov.br/es/node/35325, consultado dia 12/06/2012, às 19h00min.
5
http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/06/numero-de-casos-de-estupro-cresce-nasgrandes-cidades-brasileiras.html, consultado dia 12/06/12, às 19h05min.
4
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chocam porque a maioria dos casos de abuso sexual é provocada por aqueles em quem a
vítima confia.
Em 2010, as gêmeas Kellie e Kathie Henderson, Kansas, EUA, foram a público
revelando uma história revoltante. Desde seus quatro ou cinco anos o irmão de sete anos das
meninas, Matthew, começou um ritual de violência, abuso sexual e estupro. Alguns anos
mais tarde, o irmão mais novo, Andrew, começou a fazer a mesma coisa. As meninas, já
com seus sete ou oito anos, denunciaram para a mãe, que não fez nada para impedir tal
violência. Depois de dois anos, o pai das meninas ficaria sabendo, bateria nos meninos e na
mãe, mas levaria as meninas a um quarto, pedindo para que elas mostrassem a ele o que elas
faziam com seus irmãos. A história só terminou quando as gêmeas contaram a uma vizinha o
que estava acontecendo. Seus irmãos e pai foram presos e sua mãe foi sentenciada a
trabalhos voluntários6.
Em Queimadas, Paraíba, no dia 12 de fevereiro de 2012, uma festa de aniversário
com aproximadamente quinze pessoas foi invadida por homens encapuzados que roubaram
alguns pertences dos convidados e, posteriormente, estupraram cinco das sete mulheres
presentes na casa. Ao terminarem, entraram em uma pick-up e, levando duas moças, foram
embora. Essas mulheres, Michelle e Isabela, foram encontradas mortas. O mais chocante é
que todo o acontecimento foi planejado pelos donos da festa e todos os homens presentes
sabiam o que aconteceria: Eduardo, de 28 anos, planejou como presente de aniversário para
o irmão mais novo, Luciano, de 22, um estupro coletivo, e a festa seria apenas uma desculpa
para atrair as vítimas7.
Casos extremos como esses não são tão raros quanto se pensa. Quando aparecem na
mídia, provocam comoção e raiva: “quem seria capaz de tal barbaridade?”. E, então,
divulgam-se casos de mulheres que, em “baladas”, são drogadas e estupradas, ou de
prostitutas violentadas. Muitos poderiam pensar: “mas, também...”. É nessa fala que o
machismo da sociedade é refletido, que o julgamento é visível. São pensamentos como esses
que levam a atos extremos e o estupro passa a ser visto como algo natural ou como culpa da
própria vítima.
Um exemplo é o Caso Geyse Arruda, uma aluna da Uniban que, ao ir com um
vestido curto para a faculdade na quinta-feira do dia 22 de outubro de 2009, foi insultada
pelos outros estudantes e encurralada de tal maneira que só conseguiu deixar o local
6
http://www.oprah.com/showinfo/Raped-by-Their-Father-and-Brothers-Twin-Sisters-Come-Forward
12/06/2012, às 19h04min.
7
http://noticias.r7.com/cidades/noticias/homens-teriam-planejado-estupro-coletivo-como-presentede-aniversario-no-para-20120214.html publicado dia 14/02/2012, às 11h48.
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escoltada por agentes da polícia militar. Após os vídeos se espalharem pela internet e o caso
ganhar fama, a Uniban decidiu expulsar Geyse, alegando que a estudante adotou uma
“postura incompatível com o ambiente da universidade e [que], apesar de alertada, não
modificou seu comportamento”. Após a decisão da reitoria, o caso ganhou a simpatia de
diversos movimentos sociais, atingindo fama internacional8.
Geyse Arruda, não chegou a sofrer nenhum tipo de violência física, mas não se pode
dizer que não foi vítima de agressão psicológica e de violência verbal acentuada a ponto de a
única coisa que a protegeu de ser agredida fisicamente foi a permanência dentro de uma sala
de aula trancada. Tudo isso porque ela vestia uma roupa curta. Sua moral foi julgada e
condenada pelos alunos da Uniban (não apenas os homens, deve-se ressaltar). O tipo de
roupa usada por ela ou por qualquer outra mulher, assim como o seu comportamento, seja
ele sensual ou frígido, não escapará de ser julgado e, muitas vezes, condenado por muitos.
Em 2011, após haver ocorrido diversos casos de estupro no campus da Universidade
de Toronto, no Canadá, o policial Michael Sanguinetti, em uma entrevista na televisão,
sugeriu que as mulheres parassem de se vestir como “vadias” para que os abusos fossem
evitados. Este foi o estopim para um protesto conhecido como “marcha das vadias”
(SlutWalk, em inglês), que, em um ano, ganhou proporções mundiais9.
Afinal, o que é o movimento feminista? É este restringido às questões da mulher e de
seu papel na sociedade ou abrange esta como um todo, colocando em questão os valores do
sistema político e econômico atual? Ao analisar os fatos aqui apresentados, é possível
afirmar que a opressão da sociedade patriarcal acabou? É possível dizer que, hoje, o
movimento feminista é algo ultrapassado e, até, sem sentido? O que é ser feminista no
século XXI? São essas questões que pretendemos investigar e responder neste trabalho.
8
http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/infografico-entenda-a-polemica-que-envolveu-a-estudantegeisy-arruda-20091110.html publicado em 10/11/2009 às 21h11
9
http://www.slutwalktoronto.com/about/why
9
CAPÍTULO 2
2.1. O que é feminismo?
Ao falar sobre uma mulher bem sucedida, muitos adjetivos vêm à mente: independente,
competente, inteligente, pró-ativa, autossuficiente, forte. Porém, quando a palavra
“feminista” é usada, certo estranhamento é gerado. É uma palavra perigosa demais, radical.
Quando alguém se declara feminista, o choque é imediato, pois o movimento carrega tantas
imagens pejorativas criadas por uma visão equivocada da sociedade como um todo, que o
feminismo se tornou misterioso, um tabu e, por não ser discutido, permanece
incompreendido. Acrescentamos que, devido a campanhas feitas em diversas épocas da
história, o movimento é visto por muitos como algo que deva ser combatido, uma ideologia
extremista, inimiga da sociedade.
Então, o que é realmente o feminismo? De fato, pode ser visto como um inimigo da
sociedade, mas da sociedade patriarcal, androcêntrica e sexista em que vivemos, não dos
cidadãos. Deve ser encarado como um movimento de múltiplas vertentes, existentes em
contextos históricos diversos, mas sempre ligados por um objetivo comum: buscar a
igualdade de todos os seres humanos ao lutar pelos direitos das mulheres oprimidas pelo
sistema10.
Ainda assim, não é possível entender o que realmente significa a luta feminista sem ter
claro contra o que se luta. Para isso, é necessário entender o que as feministas querem dizer
quando chamam a sociedade de “patriarcal”, “androcêntrica” e “sexista”. Esses conceitos
podem não ser de simples entendimento, mas são, sem dúvida, essenciais para
compreendermos o ideário do movimento.
2.1.1. Patriarcado
Até meados do século XIX, a palavra “patriarcado” era entendida como “governo
dos patriarcas”, daqueles que detinham a grande sabedoria. A partir do século XIX, porém, o
vocábulo ganhou um novo significado, porque foi nesse período que começaram a ser
desenvolvidas teorias que discutiam a hegemonia masculina na sociedade. Com as
feministas radicais da década de 1970, o termo se firmou como algo a ser combatido porque
10
GARCIA, Carla Cristina, Breve História do Feminismo, p. 12 .
10
este começou a ser tido como uma conotação política, o que significa a tomada de
consciência de até onde realmente se estendiam o domínio e controle sobre as mulheres
nesse sistema. A partir desse momento a visão feminista ampliou-se devido à percepção de
que “o pessoal é político11”. Problemas antes considerados como individuais, do âmbito
pessoal (como a violência doméstica) revelaram-se comuns a todas as mulheres, frutos de
um sistema opressor, o patriarcado, portanto, podem ser considerados um problema social.
2.1.2. Androcentrismo
Androcentrismo é a consideração do homem como medida de todas as coisas, é a
visão de mundo a partir de uma perspectiva masculina. Esse fenômeno atrapalha a ciência e
gera graves consequências para a vida cotidiana. Na mídia, o androcentrismo está presente
de forma ativa, desde a seleção de fatos e acontecimentos que se tornarão notícia, até quais
serão primeira página e quem estará diante do microfone. Na medicina, por exemplo, é
comum a visão androcêntrica: os sintomas conhecidos de infarto (dor e pressão no peito e
dor no braço esquerdo), por exemplo, são sintomas masculinos. Poucas pessoas sabem que,
nas mulheres, os sinais são outros (dor abdominal, náuseas e pressão no pescoço).
2.1.3. Sexismo e Machismo
O sexismo é facilmente confundido com o machismo, mas estes são conceitos
diferentes, mesmo que interligados. Enquanto o machismo pode ser considerado um
discurso de desigualdade (piadas que demonstrem a diferença entre homens e mulheres ou
atitudes onde o sentimento de superioridade masculina esteja presente), o sexismo se define
como todo o conjunto de métodos empregados na sociedade patriarcal para manter uma
situação de inferioridade, subordinação e exploração do sexo feminino. O sexismo é,
portanto, uma ideologia que defende a permanência da desigualdade entre homens e
mulheres, em que o homem mantém-se superior.
11
Slogan da “Segunda Onda Feminista” criado pela ativista e autora feminista Carol Hanisch na
década de 1970.
11
2.1.4. Gênero
Gênero não é sinônimo de sexo. Este conceito é a categoria central da teoria
feminista, nas palavras da autora de Breve História do Feminismo, Carla Cristina Garcia. É,
portanto, um tema que deve ser compreendido antes de começarmos a entender a história
desse movimento.
Segundo Robert Stoller, que utilizou o vocabulário pela primeira vez em 1968, sexo
refere-se a características biológicas do ser humano, sua anatomia ou fisiologia. Entretanto,
a biologia humana não interfere na personalidade em geral, que mesmo estando interligada
com o sexo, não depende de fatores biológicos. Para referir-se a esse aspecto do ser, Stoller
utiliza o termo gênero, afirmando que “assim como cabe falar de sexo feminino e masculino,
também se pode aludir à masculinidade e à feminilidade sem fazer referência alguma à
anatomia ou à fisiologia12”.
Depois da publicação dessas ideias, as feministas passaram a utilizar o termo em suas
teorias, desenvolvendo a ideia de que feminino e masculino não são fatos naturais, mas
construções culturais. Gênero seria, portanto, todas as ações, comportamentos, normas,
obrigações e até gostos e pensamentos esperados dos homens e das mulheres simplesmente
em função do sexo.
2.2. A História do Feminismo
2.2.1. O feminismo pré-moderno
A revolução ideológica do Renascimento foi muito importante para a humanidade já
que é no século XVI que a ciência começa a se desenvolver e laços com a Idade Média
começam a ser desfeitos. Entretanto, a misoginia não é um deles. Os teólogos da Igreja
Católica defendiam a tese de que a mulher é naturalmente inferior ao homem e, por isso, é
incapaz de assumir qualquer função de poder, como o sacerdócio. São Tomás chega a
afirmar que um escravo, por ser “socialmente inferior” poderia ser sacerdote, mas uma
mulher não, pois esta é “naturalmente inferior” 13.
12
STOLLER, Robert. Sex and Gender: On the development of masculinity and feminity. New York:
Vintage Books, 1968, p. VIII e IX.
13
TOMMASE, Wanda. Filósofos y mujeres. La diferencia sexual en la historia de La filosofía.
Madrid: Narcea, 2002.
12
Assim, o Renascimento afetou as mulheres dessa época de forma significativa: a
importância dada à educação gerou um intenso debate sobre a natureza e os deveres dos
sexos, denominado Querelle de femmes.
Filhas, sobrinhas ou irmãs de homens inteligentes e cultos, educadas por estes,
desenvolveram uma visão crítica em relação ao pensamento humanista da época, declarado
universal, mas não aplicado às mulheres. Nascia, então, a conscientização sobre a condição
da mulher e da misoginia da sociedade, que Christine de Pizan, considerada a primeira
escritora profissional, representa em sua obra Roman de La Rose de forma condenatória.
Em 1405, Pizan escreveu seu mais reconhecido livro, A cidade das mulheres, no qual
questiona a autoridade masculina no campo da filosofia e da literatura, argumentando que
essa visão contribuía para a formação da tradição misógina. Contrapõe, também, as
acusações e os insultos atribuídos às mulheres (desobedientes, perigosas, mesquinhas,
faladoras e luxuriosas). A autora propõe, então, uma utopia, um espaço reservado apenas
para as mulheres, no qual estariam seguras para desenvolver seu intelecto e crescer como
pessoas e, por consequência, seria um espaço de cidadania, onde as relações seriam regidas
pelo direito.
No século seguinte, a Reforma Protestante também influenciou as mulheres da
época. Quando o protestantismo anunciava suas ideias de primazia de consciência do
indivíduo e o sacerdócio de todos os crentes frente à relação hierárquica com Deus, as
mulheres começaram a se perguntar por que não elas. Algumas se juntaram ao Unitarismo,
corrente teológica que afirma a unidade absoluta de Deus e prega a liberdade de cada ser
humano para encontrar sua própria verdade sem a necessidade de religiões, dogmas ou
doutrinas. Como resultado, muitas dessas mulheres foram acusadas de bruxaria e de pactos
com o demônio, sendo queimadas - castigo por desafiarem o poder patriarcal.
Ainda no século XVII, na França, surgiu um movimento intelectual de mulheres
muito interessante chamado de “Preciosas”. As preciosas reuniam-se em salões, espaços
com função de desenvolvimento do intelecto e não puramente de entretenimento. Discutiam
a reforma da linguagem, contradiziam o matrimônio e desafiavam as convenções sociais
sobre a incapacidade das mulheres para tratar sobre assuntos como filosofia, ciência e artes.
Claro que o mundo ainda não estava preparado para suas ideias avançadas: em 1659,
Molière publicou As preciosas ridículas, que refletia o pensamento social sobre o que estava
acontecendo nos salões de mulheres como a Marquesa de Rambouillet, considerada a
primeira professora de urbanidade da França.
13
Mas é em Veneza que a ideia feminista realmente começa a se desenvolver com as
obras de três mulheres, consideradas precursoras do feminismo: Lucrécia Marinelli,
Moderata Fonte e Arcângela Tarabotti. A primeira, defendendo a igualdade fundamental dos
sexos e ressaltando o papel da mulher na história da civilização, escreveu, em 1601, La
nobilita e l’eccelenza delle donne (A nobreza e a excelência das mulheres).
A segunda publicou, em 1600, Merito delle donne (Valor das mulheres), uma obra de
ficção que retratava uma dona de casa desiludida com o casamento que almejava liberdade,
mas, sem recursos ou instrução, sujeitava-se ao poder de seu marido.
A terceira, aos 16 anos, foi colocada em um mosteiro por seu pai, onde viveu até o
fim de sua vida. Durante seus 32 anos, Arcângela Tarabotti escreveu cartas em seu “cárcere
feminino”, como chama o mosteiro, falando sobre a inferioridade da mulher. Também
escreve três obras (Antissátira, Defesa das mulheres contra Horácio Plata e A tirania
paterna) que denuncia o falso moralismo masculino, a falta de liberdade feminina e a
violência que a obriga deixar de escrever para bordar.
2.2.2. A primeira onda feminista
A chamada primeira onda feminista começa com o filósofo Poulin de La Barre, que
teoriza o movimento ao publicar Sobre a igualdade entre os sexos, em 1673. É considerada
a primeira obra que se centra em fundamentar a demanda pela igualdade dos sexos. É de
Poulin a frase “a mente não tem sexo”, defendendo a educação das mulheres como caminho
para o progresso da sociedade.
Entretanto, Poulin era exceção dentre os filósofos da época e, cem anos depois o
pensamento geral não era diferente. Rousseau mesmo, um dos principais teóricos do século
XVIII, que discutia sobre igualdade a todos os indivíduos, não aplicava suas teorias às
mulheres, chamando de desejável sua sujeição e exclusão. Mas as correntes filosóficas
misóginas da época não impediram o feminismo de nascer sob a influência da Revolução
Francesa, afinal, esta veio com ideais de igualdade, afirmando que todos os homens nascem
livres e iguais e, portanto, com os mesmo direitos, mas se contradizia ao excluir as mulheres
dessa sociedade.
Essa contradição não passou despercebida pelas mulheres da época, que responderam
ao controle misógino da sociedade participando ativamente tanto na frente de batalha quanto
na intelectual e manifestando-se nas sessões da Assembleia Constituinte, na produção escrita
14
e teórica e em grupos femininos dedicados a lutar pelos direitos civis e políticos das
mulheres.
Um exemplo das conquistas dessas mulheres foi o caderno de queixas feitas pelas
próprias que, excluídas da convocação dos Estados Gerais de Luis XVI, listaram,
conscientes do coletivo oprimido de que faziam parte, necessidades como o acesso à
educação, ao trabalho, aos direitos matrimoniais e o direito a voto, além de reivindicações
como o fim da prostituição e dos abusos dentro do casamento. Suas queixas não foram
relevantes para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas, ainda assim,
conseguiram algumas mudanças, como a lei do divórcio, admissão de testemunhas em
processos civis e a abolição do direito de maioridade, no qual os privilégios estavam com os
filhos homens na sucessão familiar.
As atividades políticas das mulheres não pararam aí: entre 1789 e 1793 havia 56
clubes republicanos femininos ativos emitindo petições e expressando publicamente a voz
feminina, que reclamava o lugar da mulher na política.
Muitas mulheres se destacaram em diferentes áreas da política social da época, mas,
com certeza duas delas podem ser consideradas símbolos da luta que estava acontecendo
nesse século agitado. A primeira é Olympe de Gouges, escritora da Declaração dos Direitos
das Mulheres e das Cidadãs em 1791, que possuía a intenção de conscientizar as mulheres
de todos seus direitos que lhes estavam sendo negados e de pedir a reivindicação para que
pudessem ser cidadãs em todos os sentidos. Defendia que a mulher nascia igual e livre dele e
possuía os mesmo direitos inalienáveis: à liberdade, à propriedade e à resistência à opressão.
A segunda é Mary Wollstonecraft, que publicou Reivindicação dos Diretos das Mulheres
em 1793. Seu livro lança as bases do feminismo moderno, advogando pela igualdade entre
os sexos, pela independência financeira das mulheres e pela necessidade da participação
política e da representação parlamentar do sexo feminino. Afirmava que a educação
igualitária dos sexos era essencial para o progresso da sociedade como um todo. E, ainda,
criticava a instituição matrimonial, chegando a declarar o casamento como prostituição
legal, e que as esposas eram escravos convenientes.
Entretanto, não é tão fácil mudar o pensamento de uma sociedade, principalmente
uma que possui como pilares preconceitos e valores conservadores. Muitas dessas mulheres
tiveram destinos trágicos como Olympe de Gouges, que foi guilhotinada “por haver
esquecido as virtudes que convém a seu sexo e por haver se intrometido nos assuntos da
República”.
15
Os clubes feministas foram fechados pelos jacobinos (mesmo Claire Lacombe sendo
uma jacobina revolucionária e fundadora de um dos maiores clubes de mulheres: “La
Société Républicaine Révolutionnaire”); manifestações feministas foram proibidas ou
mesmo a participação de feministas em qualquer tipo de manifestação, com a sentença de
guilhotina ou exílio para as acusadas. As mulheres não podiam participar das tribunas e as
leis matrimoniais voltaram a ser desiguais, segundo as quais a mulher deveria se submeter
ao marido. O divorcio só era permitido em caso de o marido levar sua amante para dentro de
casa. O Código Napoleônico decretava, em resumo, que nenhuma mulher era dona de si
mesma.
A entrada das mulheres no século XIX não é vitoriosa, mas a luta havia apenas
começado. A história das feministas do século XVIII influenciaria esse novo século de
conquistas.
2.2.3 A segunda onda feminista
Derivando do Iluminismo e da Revolução Francesa, a Segunda Revolução Industrial
traz para o século XIX uma nova forma de enxergar a vida: traz esperança embalada em um
grande pacote de promessas. Mas, aos poucos, suas contradições vão se tornando visíveis. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, declarava a igualdade, a
liberdade e todos os direitos dos homens, valores que seriam a base da nova sociedade. Mas
esse discurso se contradizia ao excluir certas minorias: as mulheres (burguesas ou não) eram
negadas perante a sociedade como cidadãs e o proletariado não usufruía das riquezas das
indústrias, sendo sujeitado à miséria. É por isso que esse novo século será marcado por
muitos tipos de correntes ideológicas e movimentos políticos organizados, dispostos a tirar a
bela máscara dessa sociedade desigual e injusta.
Um desses movimentos é o feminista, que entra nessa nova era como um movimento
social de âmbito internacional autônomo e organizado. E são as sufragistas que, nos Estados
Unidos, vão marcar essa nova era do feminismo.
As mulheres estadunidenses começaram suas reivindicações com a luta pela abolição
da escravidão. Essas atividades deram-lhes base para a tomada de consciência de sua própria
condição. Simultaneamente, os Estados Unidos estavam passando pela reforma protestante,
que dava às mulheres maiores vantagens sociais, como o aprendizado da leitura e da escrita,
tornando o analfabetismo no país muito menor do que na Europa.
16
Esse contexto permitiu a formação de uma nova classe de mulheres: uma classe
média educada que formaria o núcleo feminista, base para a construção de um programa de
ação completo no país.
Em 1840, durante o congresso antiescravista mundial de Londres, quatro delegadas
norte-americanas foram barradas das sessões. Duas delas, estimuladas ainda mais pelo
ocorrido na Europa, seriam muito importantes para o feminismo da época: Lucretia Mott,
fundadora da primeira sociedade feminina contra a escravidão, que fazia de sua casa rota de
fuga de escravos e Elizabeth Stanton, discípula de Mott e a mais destacada intelectual
organizadora dos encontros feministas, que geraria, em 1848, a “Declaração de Seneca
Falls”, texto fundador do movimento sufragista.
Esse documento tinha como objetivo legitimar o discurso feminista, pouco levado a
sério pelos intelectuais da época. Por esse motivo, sua estrutura era baseada na Declaração
de Independência dos Estados Unidos e seus argumentos apelavam à lei natural de liberdade
e igualdade a todos os seres humanos, à razão e ao bom senso. Fazia críticas às restrições
políticas e econômicas, posicionando-se contra a negação dos direitos civis e jurídicos às
mulheres.
É com a Declaração de Seneca Falls que as sufragistas começam sua luta organizada
pelo voto, mas em 1866, quando o voto finalmente é permitido aos escravos homens em
uma emenda na Constituição, mais uma vez as mulheres são excluídas e abandonadas em
sua luta, já que os escravos, tanto apoiados pelas feministas, temiam a perda de seus direitos
recém-obtidos. O pouco caso feito da luta sufragista fez com que essas mulheres a
praticassem ações radicais, levando-as presas e causando a morte de muitas.
Em 1868, Elizabeth funda a NWSA, Associação Nacional pelo Sufrágio da Mulher.
No ano seguinte, a organização divide-se e é criada a AWSA, Associação Americana Prósufrágio das Mulheres, a parte mais conservadora do movimento. No mesmo ano, após 21
anos da Declaração de Seneca Falls, Wyoming é o primeiro estado americano a reconhecer o
voto feminino.
O movimento sufragista trouxe muitas mudanças e grandes influências para a política
feminista e para a democracia como um todo. Foram as sufragistas que inventaram as
manifestações, greves de fome, perguntas sistemáticas dirigidas a palestrantes, enfim, o
protesto como nunca havia sido feito antes: sem violência, apenas chamando atenção para
sua causa.
17
Além disso, o movimento era democrático como nunca havia ocorrido anteriormente,
a organização era aberta e dava voz àqueles que nunca haviam sido ouvidos. Um exemplo é
Sojourner Truth (que, na tradução literal, significa “verdade viajante”.), uma escrava liberta,
analfabeta, que peregrinava discursando sobre a exclusão das mulheres. Foi a primeira
mulher negra a assistir à Primeira Convenção Nacional dos Direitos das Mulheres (1850), e,
em 1851, fez um discurso inspirador na Convenção de Akron, denunciando problemas
específicos das mulheres e discutindo sobre dois grandes temas: a exclusão de raça e de
gênero. Seu discurso abriu caminho para o desenvolvimento do feminismo das negras, uma
corrente bem específica, mas muito polêmica até hoje.
Dois outros nomes importantes e inspiradores derivados do sufrágio é o casal Stuart
Mill e Harriet Taylor. Mill escreveu o livro A sujeição da mulher em 1866, apresentando a
primeira petição a favor do voto feminino ao Parlamento da Inglaterra. Ele e sua esposa
desenvolveram bases teóricas políticas para o movimento sufragista. Possuíam uma vida
privada coerente às suas ideologias, já que o casamento ocorrera por amor e que Stuart
renegava qualquer benefício jurídico, civil ou social que lhe era oferecido por ser homem,
mantendo sempre uma relação de igualdade e companheirismo com Harriet.
Deve-se levar em conta as correntes ideológicas de esquerda que surgiram e se
fortificaram durante o século XIX. A influência desses movimentos não deixaria de afetar o
movimento feminista da época: é nesse século que muitos estudos seriam realizados e obras
seriam escritas embasadas em diversas correntes ideológicas e serviriam de base teórica para
o movimento internacional feminista14.
2.2.4 A terceira onda feminista
Essa terceira onda começa entre guerras. Após a Primeira Guerra Mundial, o mundo
estava mudado e a maioria dos países ditos desenvolvidos, assim como os que haviam
passado pelo processo de descolonização, tinham permitido o voto feminino. O movimento
feminista ficou abalado durante um breve período, no qual uma aparente igualdade civil
surgia como consequência da militância resultando no abandono de muitas mulheres à
14
Muitas mulheres pertencentes aos movimentos trabalhistas de esquerda, ou ligadas a estes de
alguma maneira, questionarão a abrangência destes, afirmando que estes excluem parte importante
da sociedade oprimida: as mulheres. É por isso que a necessidade de reescrever teorias será
suprida por escritoras como Flora Tristán, feminista e socialista utópica; Alexandra Kollontai,
bolchevique e grande influenciadora das feministas radicais da década de 1970; E Emma Goldman,
anarquista.
18
causa, já que nutriam a sensação de dever cumprido. Simultaneamente, devido ao “medo
vermelho” causado pela Revolução Russa de 1917, as feministas começaram a ganhar fama
de subversivas e, ainda, eram acusadas de destruidoras de lares com base na taxa de
natalidade, que caía.
Entretanto, um leve movimento nesse mar volta a crescer e uma nova onda começa a
se formar, tudo por causa de uma única mulher: Simone de Beauvoir, que em 1949 publica
O segundo sexo, livro que traria a base teórica para a grande terceira onda feminista.
Simone não era feminista. Não via a desigualdade social das mulheres, não a sentia:
teve acesso a uma boa educação e era reconhecida como escritora e filósofa. No entanto,
conversas com mulheres de 40 anos que afirmavam sentir-se como “seres relativos” e com
Sartre, seu companheiro, que afirmou a ela que sua educação tinha sido diferente da dos
homens, fizeram com que ela começasse a pensar sobre as dificuldades desse sexo. Foi daí
que O segundo sexo surgiu.
Diferente do feminismo reivindicante de antes, o livro de Simone é um trabalho
explicativo e muito convincente, tão convincente que mesmo não fazendo sucesso quando
lançado na França, foi traduzido para o inglês e, logo, milhões de cópias tinham sido
vendidas. O livro foi traduzido para mais de 16 idiomas. É tão convincente que convenceu
inclusive sua autora, que se tornaria feminista.
Sendo um trabalho explicativo, o primeiro volume de O segundo sexo discute
aspectos da sociedade como o do androcentrismo, que é apontado por Simone e incorporado
à discussão do feminismo contemporâneo. Também comenta a heterodesignação
(imposição, pelos homens, da projeção dos desejos masculinos na personalidade feminina,
negando à mulher seus verdadeiros anseios e o desenvolvimento de seu caráter).
O segundo volume começa com a famosa frase “Não se nasce mulher, torna-se” e,
baseado em um profundo estudo social desde biologia até o materialismo histórico, é a
conclusão de que não há nada de biológico ou natural sobre a subordinação das mulheres,
mas sim uma supervalorização de uma parte da história, a parte exploradora, e uma
desvalorização da parte geradora da vida. Simone renova e esclarece a discussão iniciada por
Poulin de La Barre sobre gênero, mesmo sem usar esse termo, que é a maior discussão do
feminismo contemporâneo. Toda sua obra é o alicerce para o feminismo dos anos 50, sendo
o livro mais lido pela nova geração feminista: as filhas universitárias das mulheres pósSegunda Guerra que obtiveram o direito ao voto e à educação.
19
Outro livro extremamente importante para a nova onda feminista foi A mística
feminina, de Betty Friedan. Neste, a autora discute o problema “que não tem nome” ao qual
as mulheres são submetidas. Chamando-o de “mística feminina”, ela debate a submissão e a
inferioridade do sexo feminino em relação ao masculino. Sua crítica centrava-se nas
mulheres de classe média estadunidenses, mas isso não impediu a obra de se tornar um
clássico feminista de amplitude mundial devido à profunda reflexão social que possibilitava.
Betty foi responsável também pela criação, em 1966, da mais poderosa organização
feminista norte-americana representante do feminismo liberal: NOW, Organização Nacional
para as Mulheres. Chamando de desigual (e não de opressora e/ou exploradora) a relação
entre o homem e a mulher na sociedade, as feministas liberais lutaram para atingir a
igualdade. Entretanto, não eram, na época, o grupo mais influente das vertentes feministas.
Estamos falando da década de 1960 e essa é a hora do feminismo radical.
Os anos 60 foram uma época conturbada, marcada pela contracultura hippie, pela
Guerra do Vietnã, pelo assassinato do presidente estadunidense Robert Kennedy e pelo
espaço que os movimentos radicais de preocupação social ganharam, impondo-se de forma
revolucionária. Entre esses movimentos encontra-se o das feministas radicais (1967 – 1975),
que reivindicavam mudanças gerais no modo de organização da sociedade. Foram elas as
primeiras a não se importarem apenas em ganhar espaço público, mas em transformar as
relações no espaço privado (“o pessoal é político”).
Armadas com teorias marxistas, psicanalíticas, anticolonialistas e com fundamentos
teóricos como a Política sexual, de Kate Millet, e a Dialética da sexualidade, de Schulamith
Firestone, essas mulheres radicais revolucionaram a forma de ativismo com seus grandes
protestos públicos, agressivos na medida adequada para chamar atenção, chocar e ferir o
sistema. Criaram uma nova maneira de protesto feminista: a desobediência civil.
Foram também responsáveis criadoras de centros alternativos de ajuda e autoajuda,
onde era permitido às mulheres um espaço de estudo e debate; assessoria médica e
tratamento ginecológico não patriarcal - incentivando-as a conhecer o próprio corpo e cuidar
de si mesmas; creche infantil; centros de defesa pessoal; assistência jurídica; etc.
Entretanto, já na década de 1970, o movimento começa a perder força. Muitos
teóricos afirmaram que a razão disso derivou da desorganização do movimento, que possuía
um impulso igualitário e anti-hierárquico. Com o tempo, as feministas veteranas foram
sendo desvalorizadas pelas recém-chegadas e, algumas, até criticadas (como a militante
Shulamith Firestone). Jo Freeman escreveu sobre o que estava acontecendo dentro do
20
movimento em uma de suas obras, denominando-a A tirania da falta de estrutura. Foi
durante a decadência do movimento das feministas radicais que o feminismo liberal ganhou
espaço, adaptando suas reivindicações e até adotarem o slogan radical “o pessoal é político”.
2.2.5 Anos 80, o início do pós-feminismo
Assim como todas as fases do feminismo desde a Revolução Francesa, o movimento
radical feminista dos anos 60 e 70 causou a necessidade de reação do patriarcado. Essa
reação chegou na década de 1980 com a tomada de poder da parte conservadora da
sociedade nas grandes potências mundiais, Estados Unidos e Inglaterra (com Ronald Reagan
e Margaret Thatcher).
Foi nessa época que a imagem da “supermulher” (a ótima
profissional, mãe dedicada, esposa exemplar e mulher perfeita) é criada junto com o
levantamento do questionamento “vale mesmo a pena?”.
Mas o feminismo não deixa de existir, mantém-se firme, mesmo que mudado. O
movimento se solidifica e torna-se realidade acadêmica. Algumas estudiosas referem-se ao
período que se inicia nos anos 80 como pós-feminismo, porque é nesse período que as
mudanças sofridas abrem espaço para uma grande diversidade dentro do movimento. Os
ideais de igualdade e liberdade são os mesmos, mas a luta é ampliada e as discussões abremse, englobando orientações sexuais, gênero, etnia.
A ampliação do movimento ocorre de diversas formas e gera o nascimento de novas
vertentes feministas, conhecidas como feminismos contemporâneos. Um deles é o
“feminismo das diferenças”. Essa corrente leva a discussão de gênero para outro nível. Sua
ideia chave é apontar a diferença entre desigual e diferente. Elas afirmam que homens e
mulheres são sim diferentes e que essa diferença deveria ser levada em conta na briga pela
igualdade social. Suas ideias mudaram a forma de enxergar a luta da mulher por espaço.
Sim, é necessário lutar pelo fim da desigualdade social, mas isso não significa comparar-nos
aos homens e moldar nosso lugar na sociedade, tendo-os como modelo. É necessário pensar
na mulher como mulher e atender às suas necessidades, sem ignorar que haja distinção entre
os sexos, de forma que haja uma igualdade justa e real entre homens e mulheres.
Paralelamente a essa corrente, surge o feminismo cultural, que, relacionado com o
feminismo das diferenças, defende a conquista pela autonomia cultural feminina.
21
Surge também um feminismo essencialista15, mais radical, extremista. Defende a
superioridade da mulher e afirma que o lesbianismo é a única maneira de não contaminar-se
pelos problemas masculinos.
Há também o feminismo institucional, que, apesar de ser dividido quanto aos seus
objetivos, tem como consenso a decisão de não se lutar contra o sistema, mas de adaptar-se
dentro dele. Graças a essa vertente do movimento feminista, grandes conquistas foram
obtidas com maior facilidade, já que este aceita medidas que não gerem mudanças radicais.
Muitos, porém, não consideram isso feminismo.
2.3 O Feminismo no Brasil
Ao falar de feminismo no Brasil, é importante saber que, desde que os portugueses
aqui chegaram, as mulheres tiveram participação no desenvolvimento do país, mas
raramente de forma organizada. Houve mulheres pró-ativas e independentes durante o Brasil
Colônia, mas foi apenas no século XIX que elas começam a se organizar para reivindicar
seus direitos, a começar pela educação.
Durante o Império brasileiro, o ensino dado a homens e mulheres tinha objetivos
diferenciados: enquanto a educação masculina era completa e voltada para a formação de
diversas profissões de nível superior, a feminina era voltada para formar donas de casa
prendadas e damas da sociedade ou, no máximo, professoras primárias. As escolas
femininas davam prioridade para o ensino de corte e costura. A leitura, a escrita e as
operações aritméticas estavam presentes na grade escolar, mas de forma básica, já que não
seriam de grande utilidade para o exercício das atividades que eram atribuídas a elas.
As mulheres que seguiam carreira de professoras recebiam salários muito menores
que os de homens na mesma profissão. Além disso, quando elas tentavam mudar o método
de ensino eram punidas, como Maria da Glória Sacramento, que teve seu ordenado suspenso
por se recusar a ensinar “as prendas domésticas” à suas alunas.
No todo, o ensino das mulheres era muito desvalorizado e, até, dificultado a elas
(mesmo o número de escolas femininas era muito menor que o de masculinas). Como
resultado, as mulheres, quase metade da população brasileira, possuía tão pouca instrução
que dependia inteiramente de seus pais, irmãos, tutores e maridos para a sua sobrevivência.
15
Essa corrente ideológica não é considerada pela maioria das feministas como parte do
movimento, sendo chamado também de femismo ou misandria, pois prega o ódio ao homem, que
contraria a luta do feminismo por igualdade de gênero.
22
É, portanto, a tomada de consciência dessa desigual situação que vai, pela primeira vez no
país, formar um grupo organizado e com uma pauta clara: reivindicação de educação
igualitária para homens e mulheres.
Ainda no Império, assim como nos Estados Unidos, o movimento abolicionista de
1860 contava com o forte apoio feminino organizado em grupos como a “Sociedade de
Libertação”, “Sociedade Redentora” e “Ave Libertas”. Essas organizações lutavam pela
libertação dos escravos e, como consequência natural da abolição, pela reforma agrária do
país. Junto a esse movimento abolicionista, é importante mencionar o nome de Nísia
Floresta Brasileira Augusta, considerada uma das primeiras feministas brasileiras. Ela
defendia, além da abolição da escravatura, a educação e emancipação feminina e a
instauração da república. Nísia, por ser alvo de muitas críticas, autoexilou-se na Europa,
onde se tornou positivista e amiga de Augusto Comte.
Foi durante esse período que as mulheres impuseram-se na imprensa, tão usada para
discussões ideológicas entre a população. O Brasil teve, por consequência, o maior índice de
empenho jornalístico feminino da América Latina. Os jornais femininos tratavam, em sua
maioria, de temas polêmicos e de cunho feminista. Alguns exemplos são o Jornal das
Senhoras, de 1852; o Belo Sexo, de 1862; O Sexo Feminino (um dos mais importantes), de
1873 a 1876 e reaberto em 1889; O Domingo e o Jornal das Damas, da década de 1870; o
Eco das Damas e A mensageira, de 1897 a 1900.
Em 1889, com a instituição da Primeira República no Brasil, toda a luta feminina
mudou, devido às grandes mudanças pelas quais o país passava. Era época de
desenvolvimento industrial, as cidades cresciam, o trabalho era assalariado, o capitalismo
desenvolvia-se. Há, também, o crescimento de ideias esquerdistas vindas dos imigrantes
europeus e o aumento de mulheres no mercado de trabalho (duplamente exploradas pelo
trabalho operário e os deveres do lar). A luta feminista tornara-se, então, trabalhista.
As operárias possuíam menores salários, cargas horárias maiores que os operários e
trabalhavam em péssimas condições, e, mesmo quando reivindicavam mudanças trabalhistas
gerais ao lado dos homens, suas conquistas eram sempre menores.
Mesmo assim, a luta feminina, durante esse período, foi grande e importante. Em
1917, a greve das operárias têxteis da fabrica Crespi serviu de estopim para a greve geral
que entrou para a história quando paralisou São Paulo. Mesmo com a grande repressão, essa
greve conquistou a abolição do trabalho noturno da mulher e do menor, grandes conquistas
para o movimento trabalhista.
23
No mesmo ano, Deolinda Dalho, fundadora do Partido Feminista Republicano, que
defendia a abertura de cargos públicos a todos os brasileiros, sem distinção de sexo,
organizou uma passeata de mulheres pelo direito ao voto no Rio de Janeiro.
A década de 1920 entra com o movimento sufragista brasileiro ativo, cada vez com
mais simpatizantes. Em 192216, Bertha Lutz funda a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, grupo com grande influência norte-americana em seus bem pontuados objetivos:
promover a educação feminina, elevando o nível de instrução das mulheres; fornecer
proteção às mães e às crianças; garantir boa condição de trabalho às mulheres por meios
legislativos e práticos; incentivar as mulheres e orientá-las profissionalmente; incentivar o
companheirismo feminino e politizá-las, apresentando-lhes questões sociais e de alcance
público; garantir os direitos das mulheres e assegurar que estes sejam conhecidos e
exercitados; estreitar laços de amizade entre os países da América.
O direito ao voto feminino veio depois da Revolução de 30, incorporado à
Constituição Brasileira de 1934, com a ajuda de Carlota Pereira de Queirós, primeira
constituinte brasileira. Após essa conquista, o movimento feminista concentrou-se na luta
trabalhista e nas reivindicações sobre proteção à maternidade e às crianças.
Também em 1934, nasce a União Feminina, parte integrante da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), de 1935, organizada pelos comunistas para derrubar Vargas e implantar
um governo popular.
Em 1935, a União Feminina foi colocada na clandestinidade e teve todas suas
integrantes presas, entre elas, Olga Benário Prestes17, mandada para a Alemanha, onde pariu
sua filha e morreu em um campo de concentração.
A partir de 1937, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, o papel do
movimento feminista brasileiro focava-se na luta a favor da democracia, contra o nazifascismo e para a entrada do Brasil na II Guerra ao lado dos Aliados.
16
O ano de 1922 foi um ano marcante para a história, palco da Semana de Arte Moderna (Semana
de 22), responsável pela introdução do movimento modernista no Brasil, da Revolta do Forte de
Copacabana, considerada o início do movimento Tenentista, e da fundação do Partido Comunista
do Brasil.
17
Nascida em 1908, em uma família judia e alemã, Olga Benário Prestes, desde sempre, possuía
interesse político e determinação para lutar pelo que acreditava. Aos 15 anos, juntou-se a
Juventude Comunista. Aos 20, já em Moscou, fez treinamento militar e carreira no Comintern. Em
1935, é designada a acompanhar Luiz Carlos Prestes em sua viagem de volta ao Brasil. Durante a
jornada eles se apaixonaram e Olga engravida, sendo presa no mesmo ano após o fracasso da
Intentona Comunista. Foi mandada para a Alemanha, onde pariu sua filha em um campo de
concentração e, depois de 14 meses, a criança seria entregue á avó paterna. Olga morreria em uma
câmara de gás em 1942.
24
Em 1945, fim da guerra e da Era Vargas, funda-se no Rio de Janeiro o “Comitê de
Mulheres pela Democracia”, organização preocupada em trazer, de fato, a presença feminina
para a consolidação democrática. Era necessário movimentar as mulheres, principalmente
quando, em 1946, a nova Constituição retrocedeu a luta feminista em diversos aspectos.
Em 1947, a “Federação das Mulheres do Brasil” foi criada. Esta tinha o objetivo de
impulsionar a ação feminista no país. O dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher,
passou, então, a ser comemorado com festas e programações especiais, assim como o Dia
das Mães.
Os anos seguintes foram marcados pela alta manifestação feminina por todo o país.
Mesmo com a suspensão do funcionamento das organizações feministas durante o governo
de Juscelino Kubitschek, as mulheres continuaram a se organizar: foi criada a Liga Feminina
do Estado da Guanabara, fundada em 1960.
Quatro anos mais tarde, durante o governo de João Goulart, o movimento feminista
estava desarticulado e foi nessa época que milhares de mulheres saíram às ruas em apoio às
forças políticas da direita brasileira, na passeata que ficou conhecida como a Marcha com
Deus pela Família e a Liberdade. Só em São Paulo foram quinhentas mil “marchadeiras”.
Um mês depois a República sofreria um golpe militar que derrubou João Goulart e impôs
uma ditadura que duraria vinte e um anos.
A ditadura militar no Brasil afetaria todos os movimentos sociais do país. Como
resultado da alta repressão, a esquerda brasileira unir-se-ia e usaria de todos os recursos
possíveis para combater o governo opressor dos militares. Após o Ato Institucional nº 5, que
piorou a censura e aboliu o habeas corpus para presos políticos, alguns grupos sentiram a
necessidade de juntar-se à luta armada, e muitas mulheres seguiram esse caminho (um
exemplo é a atual presidente do Brasil, Dilma Rousseff). A guerrilha serviu de grande
aprendizado tanto para o movimento feminista, quanto para a sociedade, que, de repente, via
suas mulheres indefesas transformarem-se em ameaças armadas e prontas para a guerrilha.
Ainda durante a ditadura militar houve um grande movimento das mulheres das
periferias. Essas donas de casa e trabalhadoras sentiram a necessidade de tomar as rédeas da
organização de seus bairros, reivindicando melhorias necessárias para o bem estar de todos.
Tiveram o apoio das paróquias locais e, logo, dos movimentos de esquerda também. Entre as
pautas de discussão estavam desde temas como saneamento básico até reivindicação de
creches e escolas que auxiliassem a mulher trabalhadora e suas crianças.
25
Esses movimentos chamaram a atenção de grupos assumidamente feministas, que
vieram ao auxilio dessas mulheres, incentivando suas ações e discussões. Como a Igreja
estava presente na vida e no movimento, as feministas tiveram limitações estipuladas,
entretanto, a necessidade por informação e por autoafirmação dessas mães trabalhadoras
trouxe muitas mulheres - para a surpresa, inclusive, de muitas feministas - para debates e
reuniões feministas, onde, sem a censura católica, podiam discutir assuntos como
sexualidade, aborto e lesbianismo.
Essas mesmas mães da periferia tiveram uma das maiores iniciativas da época: o
primeiro protesto após o AI5, conhecido como Movimento do Custo de Vida, que criticava a
alto custo de vida brasileiro e reivindicava moradia para todos, escolas, melhorias no
transporte público, a reforma agrária no país e aumento dos salários. Em 22 de junho de
1978, essas mulheres se reuniram na Praça da Sé, em São Paulo, para colher assinaturas de
adesão ao movimento. Mesmo estando em plena ditadura e, apesar do estranhamento e do
medo das pessoas de assinar o documento, no final daquele dia, elas conseguiram mais de 16
mil assinaturas. Essa foi a primeira de uma série de manifestações populares que levaria ao
fim da ditadura.
O ano 1975 foi estipulado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher, e é nesta
época que o feminismo finalmente consegue avançar com suas ideias dentro do território
brasileiro. Antes, concentrava-se nas universidades e centros de pesquisa e em algumas
poucas organizações formadas no país, mas, em 1975, o movimento ganha ressonância na
opinião pública – a proteção da ONU possibilitou às mulheres uma maior discussão livre
sobre sua condição na sociedade.
É importante citar três principais vias de divulgação feminista que se deram a partir
do Ano Internacional da Mulher: Brasil Mulher, de 1975, jornal que abriu as questões
feministas na imprensa logo em sua primeira edição; Nós Mulheres, de 1976, que foi
decisivo para o avanço feminista no país e para o combate do preconceito carregado na
palavra “feminismo”; e Mulherio, que, entre 1981 e 1987, acompanhou a decadência da
ditadura e colaborou ativamente para a sua queda, sem nunca abandonar a causa feminista.
Mulherio foi responsável pela divulgação das ideias do feminismo, dando base para os
movimentos que, por falta de incentivo e objetividade, estavam se dissolvendo.
A partir de 1976, a luta feminista se fortalece e ganha fama, começando pela
retomada da comemoração do “Dia Internacional da Mulher” e, logo, tornando-se uma luta
diária, presente em quase todas as reuniões políticas, com voz ativa na mídia e maior
26
iniciativa e coragem em suas reivindicações. Um bom exemplo disso é o Movimento de
Luta por Creche, de 1979.
A partir da década de 80 as feministas brasileiras começaram a dedicar-se a
campanhas contra violência a mulher, antes considerado tema tabu mesmo entre as
feministas. Dizia-se que, no Brasil, esse tipo de abuso não ocorria, que era um fenômeno
europeu. Entretanto, o que motiva o feminismo brasileiro por essa direção são dois casos. O
primeiro em São Paulo, em que a esposa de um professor universitário branco e de classe
média denunciou-o após ser espancada por ele. O caso ganhou espaço na mídia e causou
muita repercussão, porque esse não era o estereótipo que se empregava a maridos violentos:
ele não era negro, não era alcoólatra, nem pobre ou pouco instruído. Desse caso nasceu o
slogan inicial da campanha: “O silêncio é cúmplice da violência”.
O segundo caso aconteceu no Rio de Janeiro, quando o milionário Doca Street
assassinou sua esposa, Ângela Diniz. O movimento feminista carioca se mobilizou e, depois
de muita pressão e protestos, Street foi condenado. Até então, muitos maridos saíam
impunes de crimes como esse, alegando legítima defesa da honra, mas a condenação de um
milionário influente deu motivação para mulheres e para os movimentos feministas do país
inteiro.
Também a partir de 1980 o feminismo começou a ter uma participação ativa no
movimento de trabalhadores rurais. As mulheres, conhecidas como “boias-frias”,
organizando movimentos trabalhistas, participando de congressos anuais e aderindo a
movimentos como o Movimento Dos Sem-Terra (MST), faziam-se ouvir, reivindicavam
melhores condições de trabalho, pediam maior vigilância para o cumprimento de leis,
apelavam por assistência à maternidade e à criança e defendiam a reforma agrária do país.
A sexualidade, que começou a ser discutida com o movimento das mulheres da
periferia, ganhou força. O questionamento da finalidade do ato sexual era publicamente
discutido por jornais como o Nós Mulheres: “A vida sexual das mulheres é só para agradar o
marido e procriar?”. Assim, também ganha espaço discussões sobre métodos
anticoncepcionais, aborto e lesbianismo. Durante a década de 1990 a discussão amplia-se e a
preocupação com o vírus HIV (Aids) em 1992 leva o Boletim da Rede Nacional Feminista e
Saúde e de Direitos Reprodutivos a encarregar-se da necessária divulgação de informação e
do trabalho de prevenção da doença para a população.
27
3. Considerações sobre a sociedade atual
Devido ao empenho das feministas brasileiras desde a década de 1950, a situação das
mulheres no país melhorou muito no âmbito civil. Em 2006, foi sancionada a Lei nº 11.340,
também conhecida como “Lei Maria da Penha”, que garante a proteção a mulheres vítimas
de violência doméstica e a punição de seus agressores. Essa pode ser considerada uma das
maiores conquistas da luta feminista e, segundo Janete Rocha Pietá, deputada federal,
coordenadora da Bancada Feminina na Câmara Federal e membro das Comissões de
Direitos Humanos e Minorias, uma das três mais importantes leis sobre a questão da
violência contra a mulher.
É fato que, pela primeira vez, elegemos uma presidente e o número de mulheres
eleitas para cargos políticos cresceu consideravelmente nesses últimos anos. Entretanto, tudo
se torna mais difícil quando, mesmo com a melhor aceitação da mulher na política,
percebemos quão pequena é essa participação feminina: apenas 8,77% dos deputados
federais são mulheres, 14,81% dos senadores, 7,4% dos governadores, 12,85% dos
deputados estaduais, 9,8% dos prefeitos e 12,53% dos vereadores18. Não há como números
tão pequenos representarem mais de 50% da população brasileira.
Elas também se destacam na área da educação: segundo estatísticas do censo de 2010
do IBGE, a média de anos de estudo das mulheres brasileiras equivale à média nacional e, ao
ingressar na universidade, elas são maioria. Também são elas que, ao terminar os estudos,
estão mais capacitadas para ingressar no mercado de trabalho, contudo, o número de
mulheres que, de fato, entram nesse mercado é menor que o número de homens. Isso ocorre
por diferentes razões, sendo, talvez, a mais importante, a falta de encorajamento que se dá às
recém-formadas, que são aceitas no mercado de trabalho – ganhando, no geral, 30% a menos
que os homens –, mas suas funções domésticas não lhes são tiradas ou divididas, gerando
assim a sobrecarga da dupla jornada feminina.
Além da sobrecarga causada pela dupla jornada imposta às trabalhadoras e os
benefícios que os homens, muitas vezes, ganham sobre elas, essas mulheres também correm
18
VIEIRA, Amanda. Por que os homens ainda dominam cargos públicos. Outras Mídias http://ponto.outraspalavras.net/2012/10/08/quando-mulheres-farao-parte-da-politica/. 29/10/2012, às
17:32.
28
o risco de sofrer assédio sexual e/ou moral no ambiente de trabalho. E, ainda, 10 a 12
mulheres são mortas por dia por companheiros ou ex-companheiros19 em crimes passionais.
Visto isso, devemos refletir sobre o poder patriarcal, mencionado antes como a forma
de sociedade opressora contra a qual as feministas lutam. É fato que, hoje, muitos dos laços
dessa organização social se desfizeram, principalmente no ocidente: as mulheres, hoje,
estudam, trabalham, divorciam-se, administram famílias e são livres. Entretanto, o nó
patriarcal não está desatado. Há muitas formas de controle que são usadas hoje em dia sob o
sexo feminino, os homossexuais e transexuais (também vítimas do sistema patriarcal).
Uma delas é pela mídia. Em 2007, nove entre dez casas possuíam um aparelho
televisor no Brasil20. As propagandas, os filmes, novelas, séries e programas de auditório
são, portanto, assistidos pela maioria dos brasileiros e, sendo assim, são os maiores
influenciadores da população. Nosso sistema de televisão é, quase totalmente, privatizado e
os principais canais pertencem a grandes corporações de alta influencia nacional (e
internacional). O que passa na televisão é baseado nos interesses empresariais. Nos EUA
anunciantes investiram US$ 235,6 bilhões em 200921. Mesmo este sendo um dado
estadunidense, ainda sim diz muito a nós, brasileiros, já que a mídia aqui é quase uma cópia
da existente nos Estados Unidos – filmes a que assistimos são, em sua grande maioria
(inclusive, porque são muito mais acessíveis à população), hollywoodianos; as propagandas,
no geral, são de produtos estadunidenses, ou seguem o mesmo estilo abusivo e apelativo das
campanhas norte-americanas; os estereótipos apresentados a nós são os mesmos que são
apresentados lá, e é com isso que devemos nos preocupar de verdade.
Os estereótipos servem para reafirmar valores sociais preconcebidos e que são
alimentados pela falta de conhecimento sobre o assunto. Em se tratando de pessoas, o
estereótipo é considerado preconceituoso. Mesmo assim, ao ligarmos a televisão, ou quando
vamos ao cinema, lemos um best-seller, assistimos a uma propaganda televisiva, ou, até
mesmo, numa simples conversa entre amigos, podemos observar que os estereótipos são
reafirmados a toda hora, de forma a se tornarem verdades incontestáveis: o protagonista, via
de regra, será um homem branco, bonito, forte e viril, a proteger a mocinha também branca,
jovem, delicada e bela, que encanta por sua fragilidade e “feminilidade”, mas deverá ser
19
MANSO, Bruno Paes. Dez mulheres são mortas por dia no País. O Estadão,
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,dez-mulheres-sao-mortas-por-dia-no-pais,575974,0.htm,
03 de julho de 2010.
20
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI1907275-EI10361,00Nove+entre+dez+casas+possuem+televisor+no+Brasil.html
21
Dado retirado do filme Missrepresentation, por Jennifer Siebel Newsom, 2011.
29
pouco sexualizada, pois essa característica pertencerá à vilã, sua rival. Poderá surgir no
papel coadjuvante um negro ou negra, amigo(a) do(s) protagonista(s), apresentado como
uma personalidade divertida e engraçada, muitas vezes utilizando a linguagem da periferia.
Os homens homossexuais serão representados como pessoas extravagantes de forma cômica,
e, às vezes, até ridicularizadas. Por sua vez, as lésbicas serão tratadas como mulheres
“masculinizadas”, fora dos padrões de beleza (gordas, baixas e na faixa dos 40 anos),
intelectuais e serão, muitas vezes, apresentadas como feministas. Também os latinos,
orientais, muçulmanos, indianos, judeus, etc., serão construídos de forma estereotipada,
reafirmando os preconceitos sociais.
Refletindo sobre tudo isso, percebe-se que a luta por igualdade não é legítima quando
restrita a uma só bandeira, por isso, o feminismo não se ocupa apenas das questões relativas
às mulheres. Foi durante a Revolução Francesa, inspirado pelos ideais iluministas, que o
feminismo finalmente ganhou voz e força como movimento social. As sufragistas
estadunidenses inspiraram-se na luta abolicionista da qual participaram ativamente, assim
como as feministas brasileiras. Esses são três exemplos de como o feminismo não é uma
causa isolada, e, casa vez mais, não é visto como tal. Hoje, as organizações e movimentos
são pensados de forma a integrar todas as lutas das minorias, como a luta de gênero,
trabalhistas (incluindo as questões rurais), igualdade racial e a se envolver nas políticas
sociais de educação, saúde, moradia, transporte, infraestrutura urbana e cultura, porque,
sendo um movimento que busca a igualdade social, entende-se que não há outra maneira de
alcançar seus objetivos se não pela reforma social.
CAPÍTULO 3 – Conclusão
No decorrer deste trabalho, acreditamos ter respondido, conforme proposto, as
questões que foram levantadas na introdução: o que é o movimento feminista; se está restrito
às questões da mulher e de seu papel na sociedade ou se abrange esta como um todo,
colocando em questão os valores do atual sistema político e econômico; se podemos afirmar
que a opressão da sociedade patriarcal acabou e se é possível dizer que, hoje, o movimento
feminista é algo ultrapassado e, até, sem sentido. Para concluir, então, iremos responder uma
última questão: o que significa ser feminista no século XXI. E para auxiliar a resposta desta
pergunta, recorreremos a entrevistas com quatro importantes militantes do movimento a um
questionário por nós desenvolvido.
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Foram entrevistadas quatro militantes de diversas áreas do movimento:

Lola Aronovich, 45 anos, professora na Universidade Federal do Ceará, doutora em
Literatura em Língua Inglesa pela UFSC e autora, desde 2008, do blog feminista
Escreva Lola, Escreva22;

Deise Recoaro, 41 anos, bancária, sindicalista, diretora da CONTRAF-CUT –
Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, filiada a Central
Única dos Trabalhadores e representante da Rede de Mulheres da UNI América,
formada em Ciências Sociais pela USP;

Tica Moreno, 29 anos, socióloga formada pela USP, integrante da SOF –
Sempreviva Organização Feminista e militante na Marcha Mundial de Mulheres;

Jade Percassi, 35 anos, bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH-USP, licenciada
em Sociologia pela Faculdade de Educação da USP e mestre em Educação pela USP.
É pesquisadora e educadora do Centro de Estudo, Pesquisa e Ação em Educação
Popular atuando junto ao Movimento dos Sem Terra.
Seguem abaixo as entrevistas, transcritas na íntegra.
1. O que é o feminismo para você?
Lola: É uma luta por igualdade. Não apenas igualdade de gênero, mas por igualdade racial,
sexual, o que for. Portanto, é uma luta contínua contra todo tipo de preconceito.
Deise: Por muito tempo eu me negava a ser classificada como feminista. Eu não me
identificava com o feminismo e achava que isto poderia atrapalhar a minha militância na luta
por igualdade. Como você deve saber, o feminismo passou por diversas ondas e uma
possível explicação para minha resistência é, talvez, porque em uma dessas ondas ser
feminista significava ser inimiga de homens ou coisa do tipo. De qualquer forma, meu
primeiro contato com o feminismo foi através da literatura e não com o movimento. Li
Emma Goldman e Alexandra Kolontai, achava que elas faziam um debate mais político, de
alto nível, mais consistente e menos “babão” do que as imagens de feministas que eu tinha
como referência. Então, para mim, o feminismo tem pelo menos duas faces (devem ter
muitas mais, mas eu resumo em duas), uma face mais sectária – quase histérica – na qual as
22
Escreva Lola, Escreva (www.escrevalolaescreva.blogspot.com.br) é, atualmente, um dos maiores
blogs sobre feminismo da internet. Seus posts abrem discussão sobre diversas questões feministas
de diferentes formas: reportagens recentes, filmes assistidos, guest post, e-mails recebidos, etc.
Escreva Lola, Escreva está com média de 240 mil visitas por mês, oito mil por dia.
31
mulheres todas são vítimas, oprimidas e coitadinhas e, os homens por sua vez, carrascos e
opressores. A segunda face, com a qual me identifico mais, apropriou-se do conceito de
gênero e conseguiu dar uma explicação melhor para essa situação de opressão e desigualdade
em que vivem as mulheres – que vai além da divisão sexual, do SER homem e SER mulher.
Tem a ver com a condição de classe social, com a construção social de gênero que estabelece
lugares e condições diferentes conforme o sexo e a cor de cada indivíduo. E que, em última
instância, tem servido para perpetuar as diferenças e o poder nos diversos espaços e lugares.
Tica: Pra mim, o feminismo combina tanto o pensamento quanto o movimento de mulheres
para transformar as relações de desigualdade entre homens e mulheres. O feminismo não é
só uma prática individual de mulheres que têm consciência sobre o machismo, mas um
processo de organização de várias que reconhecem as causas e as manifestações do
machismo e buscam estratégias comuns pra superar essa realidade. O feminismo não é o
contrário do machismo, mas um movimento pela igualdade, porque percebe como a
sociedade é organizada de um jeito que privilegia os homens. Então, é uma reação a isso,
mas que não quer inverter a ordem, e sim construir outra sociedade, onde homens e mulheres
sejam iguais. O feminismo é teoria e prática de mulheres autoorganizadas e em movimento
para transformar esta sociedade em algo igualitário e justo, na qual todas as mulheres possam
ser livres e decidir com autonomia sobre suas vidas.
Jade: O feminismo é a consciência de que a igualdade de gênero não será uma dádiva divina
nem uma evolução da espécie, mas a conquista por meio da organização e da ação das
mulheres e da mudança cultural e política de toda a sociedade.
2. Qual é a validade do movimento feminista na nossa sociedade atual?
Lola: Mesmo que a situação das mulheres tenha mudado muito nos últimos 50 ou 60 anos,
continuamos muito longe da sonhada igualdade. Ainda vivemos numa sociedade patriarcal.
Enquanto as mulheres continuarem ganhando 30% menos que os homens, enquanto houver
violência doméstica, quase sempre direcionada contra as mulheres, enquanto 10 a 12
mulheres forem mortas por dia só no Brasil por companheiros ou ex-companheiros que as
consideram suas propriedades, enquanto o espaço da mulher for visto apenas como
doméstico, enquanto houver divisão sexual das tarefas, enquanto não estivermos
devidamente representadas na política, enquanto nossos corpos não nos pertencerem,
enquanto formos vítimas de terrorismo sexual nas ruas, enquanto nossa sexualidade tiver que
ser vigiada e punida, enquanto formos valorizadas na sociedade apenas por duas funções --
32
ser decorativa e ser mãe --, enquanto o estupro permanecer uma epidemia universal,
enquanto existirem limitações impostas baseadas no nosso gênero, o feminismo continuará
sendo muito válido e atual. Mas meu sonho é que o feminismo se torne obsoleto, que
consigamos tudo, a um ponto de não precisarmos mais do feminismo. Isso ainda está muito
longe de acontecer.
Deise: Minha principal referência de feminismo hoje passa pela Marcha Mundial de
Mulheres e pela Marcha das Margaridas. As mulheres sindicalistas, na sua maioria, não se
assumem como feministas. Mas acredito que essas marchas têm quebrado um pouco com
esta resistência, até porque são movimentos muitos grandiosos e com bandeiras muito mais
próximas das demandas das mulheres da classe trabalhadora – não se restringem somente à
legalização do aborto, que é uma bandeira importante, mas não a única.
Tica: Infelizmente o movimento feminista ainda é muito necessário. Existe uma ideia de que
as mulheres tiveram muitos avanços e já conquistaram seus direitos, mas, se a gente olhar
com mais atenção, não é bem assim. Não é um processo linear e nem acontece da mesma
forma para todas as mulheres. Então, temos mais mulheres com autonomia econômica, ou
participando da política, mas no dia-a-dia ainda vemos um número muito grande de
mulheres que são vítimas de violência, ou que estão presas em um modelo de família bem
tradicional, ou que enfrentam preconceitos e discriminação na profissão que escolheram. E
também vemos como a publicidade e a mídia tratam as mulheres cada vez mais como objeto,
vendendo nossos corpos ao mesmo tempo em que impõe um modelo de ser mulher baseado
num padrão de beleza que muitas vezes é inatingível. E daí muitas meninas, cada vez mais
jovens, têm transtornos alimentares, por exemplo, por conta dessa imposição da magreza.
Tudo isso (mas ainda há mais coisas, como a criminalização do aborto ou a discriminação
com as mulheres lésbicas) mostra como o feminismo ainda é necessário na sociedade atual.
Jade: É total, num tempo em que os direitos conquistados (como trabalhar, estudar, votar,
entre outros) têm em contrapartida uma inclusão perversa das mulheres na vida pública, que
inclui as duplas jornadas, a mercantilização/objetificação do corpo feminino, desqualificação
política e a continuidade de práticas inaceitáveis, como a violência doméstica.
33
3. Em sua opinião, o que é ser feminista hoje?
Lola: É lutar por liberdade. E essa liberdade não é apenas referente às mulheres, mas
também aos homens. Uma ou um feminista deve querer a abolição dos "sexos opostos",
como se estivéssemos numa competição. Não estamos. É preciso questionar o modelo de
feminilidade que associa a mulher à passividade e delicadeza, e principalmente o modelo de
masculinidade que prega que homens devem ser insensíveis e que devem resolver conflitos
usando violência. Não há porque, hoje, educar meninos e meninas de forma tão díspar. Ser
feminista é ser coerente nas nossas atitudes para conquistar o mundo que sonhamos.
Deise: Ser feminista hoje, para mim, é a forma mais autêntica de organização de esquerda.
Porque estou convicta de que não haverá justiça social, muito menos igualdade, enquanto
não se questionar quem ou o quê se beneficia destas desigualdades, da opressão: são os
trabalhadores? Não são. Até porque o salário de todos é rebaixado com a entrada da mulher
no mercado de trabalho. Quem ganha então? Quem ganha é o capital, as grandes empresas e
a elite do país. Portanto, o feminismo coloca em xeque a lógica de funcionamento deste
sistema.
Tica: Ser feminista hoje é um monte de coisas. É perceber no dia-a-dia como o machismo se
manifesta e procurar conversar com as outras mulheres sobre isso, para ver por onde muda a
situação. É denunciar os programas de TV que reproduzem muito o machismo (tipo CQC),
denunciar as propagandas machistas (tipo essas últimas da Marisa), questionar porque as
mulheres são desqualificadas em vários espaços considerados masculinos. É participar de
algum coletivo de mulheres que atue em alguma área para combater o machismo, seja em
um coletivo político ou cultural, seja em um grupo na internet ou na escola. É escrever num
blog sobre como você vê o machismo. No meu caso, é participar de um movimento (a
Marcha Mundial das Mulheres) e tentar espalhar pelo mundo as ideias feministas, porque
muita gente ainda acha que isso é coisa do passado. É, também, buscar uma coerência entre a
nossa vida individual e o que a gente defende pra sociedade, porque é muito difícil romper
com o machismo sozinha, mas a gente tem que fazer um super esforço pra demonstrar, com
as nossas práticas, a solidariedade, igualdade e liberdade que a gente diz querer para o
mundo.
Jade: Como em todos os tempos, é não se calar diante das injustiças cometidas contra as
mulheres em nome de manter as coisas como estão. É lutar contra a violência machista,
racista e a exploração de classe; lutar pela construção de um mundo mais justo, igualitário e
sensível, no qual as pessoas – homens e mulheres – possam ser livres de verdade, tendo
34
asseguradas suas condições de vida digna, para exercer suas profissões, sua criatividade, suas
preferências e orientações sexuais, religiosa, artísticas...
Então, pensando sobre o que foi dito pelas entrevistadas, é possível dizer que,
atualmente, há necessidade real de afirmarmos-se feministas em nossa sociedade. Isso
porque, ao olhar com cuidado para como somos social e culturalmente organizados, e
perguntarmo-nos se, hoje, homens e mulheres têm os mesmo direitos, a resposta ainda é
negativa: não somos educados da mesma maneira; não somos tratados de forma igualitária;
não recebemos os mesmos salários; no casamento, nossos “deveres matrimoniais” são
diferentes e a distribuição das tarefas é injusta; não são esperados de nós, mulheres,
comportamentos semelhantes ao dos homens e somos condenadas socialmente quando
recusamo-nos a seguir os padrões sociais. É mais fácil ser homem (mesmo com a grande
pressão que esse sexo recebe desde o nascimento para seguir os padrões agressivos,
competitivos e insensíveis atribuídos a ele), afinal, ser mulher é sinônimo de fraqueza e
fragilidade, e isso é ofensivo. Nos Estados Unidos, 54% dos homens prefeririam ter um filho
homem se tivesse apenas um herdeiro, 26% não tem preferência pelo sexo e apenas 19%
prefeririam uma menina23. Esses dados mostram como ser homem é mais bem visto aos
olhos da sociedade.
Sendo assim, é necessário afirmar-se feminista, sabendo sempre o que essa palavra
significa realmente. É necessária, ainda, a tomada de consciência das mulheres de sua
condição social, para que, então, surja um movimento organizado que questione os valores
impostos a todos até que não haja mais o que questionar. Somente quando a igualdade entre
os seres humanos for atingida, independentemente de classe social, etnia, sexo e gênero, o
feminismo deixará de ser necessário e de fazer sentido.
Concluímos, por fim, que a luta feminista é essencial para a formação de uma
sociedade justa e igualitária e, mais do que isso, demonstra um ponto de vista mais
consciente e autêntico dentre os movimentos de esquerda, porque se preocupa com todas as
causas das mais diversas minorias e analisa as questões sociais de forma interligada. É um
movimento que permite a discussão e a conexão com outras correntes ideológicas, sendo,
portanto, uma corrente de pensamento e de luta completa e engajada. Ser feminista é,
portanto, preocupar-se com a sociedade em geral e estar preparada (ou preparado) para negar
23
Lovesocial – www.lovesocial.org
35
e afirmar valores e reafirmar-se como ser humano independente e pensante, que luta pela
justiça social.
36
REFERÊNCIAS
Livros
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2001.
118 p.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1993. 181 p.
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e Educação: a Paixão pelo Possível. São Paulo:
Editora UNESP, 1998. 218 p.
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: Operários, Mulheres e Prisioneiros.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 332 p.
KOLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. 2.ed. – São Paulo:
Expressão Popular, 2011. 152 p.
Artigos
SOIHET, Rachel. Pisando no “sexo frágil”. Nossa História, São Paulo, nº 3, p 1420, jan, 2004.
Blogs
Marcha Mundial das Mulheres - http://marchamulheres.wordpress.com/
Escreva Lola, Escreva - http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/
Machismo chato de cada dia - http://machismochatodecadadia.tumblr.com/
Sites de consulta
http://www.aids.gov.br/es/node/35325 Acessado em: 13 de novembro de 2012, às
18h31min.
http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/06/numero-de-casos-de-estuprocresce-nas-grandes-cidades-brasileiras.html Acessado em: 13 de novembro de 2012, às
18h34min.
http://www.oprah.com/showinfo/Raped-by-Their-Father-and-Brothers-Twin-SistersCome-Forward Acessado em: 13 de novembro de 2012, às 18h36min.
37
http://noticias.r7.com/cidades/noticias/homens-teriam-planejado-estupro-coletivocomo-presente-de-aniversario-no-para-20120214.html Acessado em: 13 de novembro de
2012, às 18h38min.
http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/infografico-entenda-a-polemica-queenvolveu-a-estudante-geisy-arruda-20091110.html Acessado em: 13 de novembro de 2012,
às 18h39min.
http://www.slutwalktoronto.com/about/why Acessado em: 13 de novembro de 2012,
às 18h41min.
http://ponto.outraspalavras.net/2012/10/08/quando-mulheres-farao-parte-da-politica/
Acessado em: 13 de novembro de 2012, às 18h44min.
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,dez-mulheres-sao-mortas-por-dia-nopais,575974,0.htm Acessado em: 13 de novembro de 2012, às 18h45min.
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI1907275-EI10361,00Nove+entre+dez+casas+possuem+televisor+no+Brasil.html Acessado em: 13 de novembro
de 2012, às 18h46min.
http://lovesocial.org/ Acessado em: 13 de novembro de 2012, às 18h48min.
http://www.janeterochapieta.com.br/ Acessado em: 13 de novembro de 2012, às
18h49min.
http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/mulher/diainternacional/index.htm Acessado em: 13
de novembro de 2012, às 18h49min.
http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1444&
Itemid=94 Acessado em: 13 de novembro de 2012, às 18h50min.
Documentos eletrônicos
PAPA, Fernanda. JORGE, Flavio. O Feminismo é uma Prática: Reflexões
com mulheres jovens do PT. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2008. 68p.
Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05931.pdf> Acesso
em: 13, Nov, 2012, às 18h57min.