Os atentados de Paris e a campanha aérea contra o ISIS

Transcrição

Os atentados de Paris e a campanha aérea contra o ISIS
2014/01/14
Os atentados de Paris e a campanha aérea contra o
ISIS
Alexandre Reis Rodrigues
Não se sabe ao certo mas é provável
que tenha havido uma ligação
estratégica na decisão de levar a
cabo os atentados em Paris de sete
de janeiro com a luta que o ISIS
trava para resistir à campanha aérea
com que a coligação liderada pelos
EUA tenta bloquear o avanço do
movimento jiadista.
Muito menos se sabe como essa
ligação se terá desenvolvido e quais são os seus contornos. Mas há várias
interpretações que sustentam essa possibilidade. A mais citada assenta na ideia de
que o movimento jiadista terá concluído que o seu futuro desenvolvimento precisa
de um agravamento do relacionamento dos Estados europeus com as respetivas
comunidades muçulmanas, levando-os a tomar medidas impeditivas da sua
integração. Ou seja, aprofundar a crise de identidade por que estão a passar as
gerações mais jovens muçulmanos a viver na Europa e tornar a narrativa jihadista
para o seu recrutamento mais apelativa e objetivamente fundamentada.
Se a ligação de facto existe vem como que uma surpresa pois a ideia que
prevalecia era a de uma cisão no movimento jihadista, em 2014, que levou a uma
alteração da estrutura do movimento. Para os especialistas tratar-se-ia de uma
cisão sem natureza ideológica, assente sobretudo numa luta interna pelo poder e
acesso a fontes de financiamento, visível em vários episódios de combate feroz
entre as forças do ISIS e combatentes da fação Jabhat al-Nusra (afiliada da al
Qaeda), na Síria.
Era conhecido que Abu Bakr al-Bagdadi, o líder do Estado Islâmico e agora
conhecido pela designação de Califa Ibrahim, tinha ignorado a orientação dada por
al Zawahiri, líder da al Qaeda, para que o ISIS limitasse a sua intervenção ao
Iraque, deixando o controlo das operações na Síria para a al Nusra. Al-Baghdadi
não terá aceitado esse caminho – presume-se – para não perder a autonomia
financeira que conseguiu a partir do controlo de campos petrolíferos na Síria,
nomeadamente os campos de Deir el-Zour.
Era sabido também que a al Qaeda não tinha aprovada a declaração de al Baghdadi
sobre a criação do Estado Islâmico e que, mal-grado o seu historial de violência,
criticava de forma hipócrita a postura sectária e muito brutal do ISIS, em especial a
sua política de decapitação de reféns.1 Não obstante esta procura de diferenciação
entre as duas fações do movimento jiadista, o que se verificou em Paris, a crer nas
declarações dos protagonistas dos dois atentados, foi uma ação de estreita
coordenação operacional, de que não é conhecido qualquer precedente. É curioso
notar que enquanto os irmãos Kouachi se declararam mandatados pela al Qaeda
1
A certa altura tornou-se evidente uma demarcação da fação al Nusra que, em plena campanha de
decapitações do ISIS, decidiu libertar o jornalista americano Theo Padnos.
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(mais concretamente a al Qaeda na Península Arábica AQAP, que é chefiada pelo
número dois de toda a organização, Nasir al-Wuhayshi), o autor do atentado ao
mercado judeu (Amedy Coulibali) se declarou associado ao ISIS.
Tenha ou não havido coordenação ao nível estratégico é necessário ter presente
que estamos perante duas organizações de natureza bastante diferente embora
com o mesmo propósito final de expulsar os ocidentais da sua região para instalar
uma sociedade regida pelos princípios jiadistas da “sharia”. A al Qaeda permanece
como uma organização terrorista que aposta na dispersão dos seus vários núcleos a
que dá relativamente grande autonomia. O ISIS, ao contrário da al Qaeda, procura
atuar como um Estado com o seu próprio território e com uma estrutura de forças
que joga numa organização convencional malgrado inclua grupos para a condução
de guerrilha. É hoje uma entidade territorial que controla cerca de 35% da Síria e
que se tem expandido no Iraque para além das áreas naturais de apoio sunita,
estando já a norte e oeste de Bagdade.
Apesar de a natureza não monolítica
do movimento se estender para além
das
diferenças
acima
referidas,
incluindo elementos que não são
formalmente
fiéis
a
qualquer
organização (os chamados “grassroot
jihadists”), haverá um propósito final
comum, como acima referido. No
entanto a forma final desse objetivo
varia conforme se trata da corrente
nacionalista ou da transnacional. A
primeira não visa mais do que o estabelecimento de emiratos enquanto a outra
pretende ir mais longe, para o nível do califado, num projeto global, que na sua
fase final se estenderia desde a Península Ibérica até às Filipinas.
A retórica é intimidatória mas carece de um mínimo de consistência. Nem mesmo o
que hoje se auto designa por Estado Islâmico é algo que o ISIS irá conseguir
manter por um período prolongado, muito menos alargar a mais território, se a
coligação liderada pelos EUA adotar uma estratégia correta. No entanto este é um
ponto sobre o qual não há tanto consenso quanto seria desejável.2 Existe uma
maioria que pensa que a atual política dos EUA baseada, numa estratégia de
“containment”, é uma espécie de “half policy” que não vai chegar para levar à
desintegração do ISIS.
Derrotar militarmente o ISIS é um passo incontornável, mas, só por si, não
chegará. Há que, paralelamente, ter em conta que o aparecimento do ISIS e a
criação do Estado Islâmico são sobretudo produto do caos e da disfunção regional
instalada no Médio Oriente, situação, por sua vez, resultante - no passado recente da crise síria e da instabilidade no Iraque, os problemas difíceis que, afinal, são
parte essencial da equação que é preciso resolver. É deles que também depende,
presentemente, a segurança europeia.
2
Numa recente consulta a 73 personalidades americanas ligadas a questões do Médio Oriente, a revista
Foreign Affairs, identificou 33 expressões de discordância sobre a atual política americana, 28 de
concordância e 12 com uma posição neutral.
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