nº 40 - Editorial Franciscana

Transcrição

nº 40 - Editorial Franciscana
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
40
Editorial Franciscana
BRAGA - 2011
1
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: [email protected]
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 40 - 2011
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
2
Índice
I — Estudos
1. Maria
Vitoria Triviño OSC
O Livro que dá forma à vida claustral
– A Regra de Santa Clara .............................................................. 5
2. Giovanna Cremaschi OSC
A Formação inicial das irmãs Pobres:
Desde Santa Clara até hoje .......................................................... 31
3. Papa Bemto XVI
– Catequeses sobre três santas clarissas:
Santa Verónica Juliani, Santa Catarina de Bolonha
e Santa Catarina de Génova ...................................................... 49
II — Documentos
Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral da OFM
Carta Circular no Oitavo Centenário da Fundação
da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara ...................................... 65
Fr. José Rodriguez Carballo, Ministro geral OFM
Carta Circular no Quinto Centenário da aprovação
da Regra da Ordem da Imaculada Conceição,
de Santa Beatriz da Silva .................................................................. 71
3
I — Estudos
O LIVRO QUE DÁ FORMA À VIDA CLAUSTRAL
‒ A REGRA DE SANTA CLARA ‒
5
O LIVRO QUE DÁ FORMA À VIDA CLAUSTRAL
‒ A REGRA DE SANTA CLARA ‒
Prólogo*
No arquivo de um mosteiro há livros únicos: A Historia, Livro de Atas,
de Defuntas, etc. Na biblioteca há muitos mais. Mas, o livro por excelência, o
mais importante, o que está em todas as celas, é A REGRA. Temo-lo todas
porque cada uma a recebe solenemente no dia de da profissão.
Cada ordem tem a sua Regra e constituições diferentes. Isso faz com que
uma clarissa não seja igual a uma carmelita, a uma concecionista ou uma
beneditina. Entre nós há elementos comuns e elementos muito diversos.
Tratarei da Regra de Santa Clara1: como anima a vida desde dentro, como
dá forma, como dá estabilidade e mantém as chaves de renovação no tempo de
mudanças. Serve também como uma homenagem à Dama Pobre ao celebrar os
800 anos da fundação.
I. REGRA DE SANTA CLARA
Santa Clara, como fundadora das Irmãs Pobres deu-nos uma Regra. A
primeira e única regra, escrita por uma mulher, que a Igreja aprovou. É breve,
tem doze capítulos e segue de perto a Regra bulada de S. Francisco2. Clara teve
de lutar com firmeza para conseguir a aprovação (1252) e a Bula do Papa
Inocêncio IV (1253), nas vésperas de morrer. O Papa define-a como “Regra da
—————
* Agradecemos à irmã Maria Victoria Trivño, osc, este trabalho que preparou para um
Simpósio que se realizou em setembro na Universidade da Rainha Cristina do Escorial
e que nos confiou ainda antes de o ter apresenta.
1
Citaremos ao longo do artigo como RCl. As citações são feitas de acordo com as
Fontes Franciscanas I e II (FFI-FFII) da Editorial Franciscana, Braga, 2005 e 1996.
2
“A forma de vida da Ordem das irmãs Pobres, que São Francisco institui é esta:
observar o santo Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem
próprio e em castidade” (RCl I, 1).
6
altíssima pobreza e da santa unidade”. O pergaminho original conserva-se no
protomosteiro de Santa Clara, em Assis.
A Regra guarda a sabedoria das coisas breves, a estrutura jurídica que dá
estabilidade, e a chama profética da inspiração, que informa a vida e permite
regenerar-se para atravessar as crises da história.
Regra como base jurídica, que dá estabilidade
A Regra define a natureza e finalidade de uma ordem ou congregação
religiosa. Juntamente com as Constituições, constituem a base jurídica de uma
ordem religiosa e dão-lhe estabilidade.
Ordem de direito pontifício. A Ordem das Irmãs Pobres é de direito pontifício.
Os conventos têm um governo autónomo3. A obediência ao Papa, segundo a
Regra, estabelece-se através dos frades menores; seja directamente com o
ministro geral, ou através do ministro provincial4. No início, franciscanos e
clarissas tinham um mesmo Cardeal Protetor, instituição desaparecida que
agora assume o Dicastério para a Vida Consagrada.
Em Espanha, por causa da exclaustração do século XIX, os conventos
perderam a união jurídica com a I Ordem. Estão sob o cuidado do ordinário,
exceto um. O mesmo acontece em Portugal.
As Constituições. Quando um grupo quer instaurar uma forma de vida
religiosa, adopta uma regra5, elabora suas próprias constituições, e propõe-nas à
aprovação da Igreja.
Nas Constituições explica-se a Regra, a natureza, a forma da profissão e
a finalidade da comunidade, adequando-a ao Código de Direito Canónico. A
Regra é imutável. As Constituições podem ser revistas e adaptadas a novas
situações. As mudanças submetem-se também à aprovação de Roma.
Os votos. Na Regra, santa Clara estabeleceu os votos solenes perpétuos de
castidade, obediência, e sem próprio, os mesmos dos frades menores. Assim se
fez a distinção da profissão monástica de obediência, conversão de costumes e
estabilidade.
—————
3
Código de D.C. 1983, Cânon 613 e 614.
RCl I, 3; Constituições Gerais 1988, n. 121.
5
Ao inicio deu-se a santa Clara a Regra de São Bento e umas Constituições de
inspiração cisterciense. Esta legislação não transmitia a sua forma de vida. Por isso
elaborou e fez aprovar a sua própria rega.
4
7
Nos institutos de vida consagrada faz-se profissão de votos simples
perpétuos, que tornam ilegítimos os atos contrários. Nas ordens de vida
claustral faz-se profissão pública de votos solenes, isto é, que anulam os atos
contrários.
A profissão religiosa é um ato de liberdade que nos coloca num estado
de vida diferente. Na Idade Média significava um precedente do uso da
liberdade e uma tensão para a vida futura. “A própria forma do voto,
compromisso assumido num momento da vida e que obriga para o resto dos
dias, manifesta a realização de uma nova forma de liberdade. A entrega não
decide só o destino social – como ocorria com quem sendo livre se vendia na
escravatura –, antes faz depender de seu cumprimento o destino eterno e
pessoal. É a forma de realização mais excelente a que pode aspirar um homem
cristão e medieval. Os votos são a forma com que o cristão medieval
proclamava que os sujeitos têm uma origem mais radical que a sua genealogia
física ou cultural. E que a liberdade – como regresso à origem, que é progresso
em direção ao fim ou à sua posse –, não tem a sua forma mais radical quando a
origem que se possui ao transmiti-la é física (mediante o exercício da
sexualidade), nem é sociocultural (mediante a transmissão da propriedade no
seu sentido mais amplio), mas uma origem imperecível, inédita, cuja sede é a
“pessoa”6.
Regra, forma de vida e chave profética
Clara imprimiu na sua regra, com solenes exortações, a chave profética
de sua forma de vida. Assim levanta as três “colunas” que sustentam a nossa
espiritualidade: o primado de Deus, a altíssima pobreza e a santa unidade. À
volta delas articula-se todo o resto: vocação, vida comunitária e missão. A
chave profética impressa na Regra dá forma a quem a professa.
O primado de Deus informa a vida contemplativa claustral, a oração litúrgica, a
intercessão, o recolhimento para se dedicar com preferência às coisas do
Senhor.
“As irmãs que sabem ler, rezem o Ofício Divino segundo o costume dos
Frades Menores, lendo-o sem canto. Por isso podem ter Breviários” (RCl 3,7).
Ao estabelecer “a reza do breviário” não procura a solenidade das liturgias
monásticas, mas uma forma simples para atender e saborear a Palavra. Desde o
Vaticano II todos os religiosos rezam a Liturgia das Horas.
—————
6
Cf. MARÍN, H. A invención de lo humano. La géneses socio-histórica del individuo.
Madrid 2007, p. 146
8
A RCl não assinala tempos de oração. “Atendam antes a que sobre todas
as coisas devem desejar ter o Espírito do Senhor e a sua santa obra, orar sempre
a Deus com um coração puro …” (RCl X, 9). Este é o critério: “Orar
continuamente”. Sempre! É a palavra do Evangelho (Cf. Lc 21,36). Deixa
também uma margem de liberdade para se dedicar a este exercício.
O exemplo de santa Clara orante, dia e noite7, com a margem de liberdade
que a Regra dá, multiplicou dom da vigília entre as suas filhas. São muitíssimas
as clarissas que, até aos nossos dias, se entregaram à oração durante as horas do
dia, e durante as noites.
Esta aplicação conduz à evolução mística pela contemplação do Mistério
de Cristo “Espelho da eternidade”,“… para que contemplando-O te
transformes inteiramente na imagem da sua divindade”8.
Muitas vezes, querendo informações sobre a nossa vida, nos perguntam
pelo horário. Dizê-lo é inútil, dizê-lo é nada dizer. O ser para Deus não se mede
por horas, é viver na sua Presença. Para Francisco, a alma é como um ermitão
que vive sempre atenta a Deus na ermida do corpo: “a alma é o eremita que
mora lá dentro para orar e contemplar o Senhor. Se a alma não consegue
descobrir o silêncio e recolhimento interior da sua cela, de pouco aproveita ao
religioso a outra cela, construída pela mão dos homens”9.
Cada um leva dentro de si a Vida de Deus, e reflete-se na comunidade.
Clara afirma-o desta maneira:
“Creio firmemente que, pela graça de Deus, a alma fiel se torna a
mais digna de todas as criaturas, mesmo maior que o Céu. Só a alma
crente se transforma em sua mansão e seu trono pela caridade de que
estão privados os ímpios. É a Verdade que o testemunha: Quem me ama
será amado por meu Pai, Eu o amarei e viremos a Ele e faremos n’Ele a
nossa morada” (Jo 14, 21. 23). Tal como a Virgem das virgens O trouxe
materialmente no seu seio, assim também tu O podes trazer, sem dúvida
alguma de maneira espiritual, no teu corpo casto e virginal, seguindo as
suas pegadas, sobretudo a sua humildade e pobreza”10.
O critério para a distribuição do tempo é o equilíbrio. A Liturgia das
Horas é como o relógio que manda, “a programação fixa”. Por isso, basta
procurar a combinação harmoniosa dos tempos que ficam entre as Horas
canónicas, procurando tempos longos que dão serenidade à oração, à
—————
7
“Disse ainda a testemunha que a Mãe santa Clara era muito assídua à oração, de dia e
de noite” Processo de Clara (PC) II, 9.
8
Terceira Carta de Clara (3CCl) 13.
9
LP, 80, 13-14.
10
3CCl 21-26.
9
fraternidade, ao trabalho e ao descanso. Eis o que Clara diz sobre a forma de
trabalhar sem deixar de orar sempre:
“As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel
e devotamente, depois da hora de tércia, num trabalho honesto e de
utilidade comum. Façam-no de tal maneira que evitem a ociosidade,
inimiga da alma, mas não apaguem o espírito da santa oração (1 Tes 5,
19) e devoção ao qual todas as demais coisas temporais devem servir”
(RCl 7,1-2)
Supõe que pelo exercício assíduo alcançamos o espírito da santa oração,
ou união com Deus, e a santa devoção que “é a virtude que prepara e nos torna
hábeis para toda virtude […] como o vento norte espalha as nuvens e deixa o
céu sereno e limpo, assim a verdadeira devoção sacode da nossa alma toda a
indolência e dificuldade, deixando-a hábil e desembaraçada para todo bem,
porque esta virtude é de tal modo, que é um dom especial do Espírito Santo,
orvalho do céu, socorro e visitação de Deus…”11.
Por fim, por estranho que pareça, a RCl não impõe o silêncio. Somente de
Completas a Tércia. Se a atenção está voltada para o Espírito do Senhor, haverá
discernimento para saber quando convém falar.
A altíssima pobreza leva ao abraço com o Filho de Deus na humildade,
mansidão e desapropriação, até que “o amargo se transforma em doçura de
alma e de corpo”12, até saborear, pela humildade e mansidão, “a doçura
escondida que Deus reserva desde toda a eternidade àqueles que o amam”13.
Aqui está a mística da pobreza clareana e franciscana:
“Esta é a excelência da altíssima pobreza, que a vós, minhas irmãs
caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus, fez-vos
pobres das coisas temporais e enobreceu-vos de virtudes (Tig 2, 5). Seja
esta herança que vos leve à terra dos vivos (Sl 141, 6). Apegai-vos bem a
Ela, minhas queridas irmãs, e nenhuma outra coisa, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do
céu” (RCl VIII, 4-6).
—————
11
S. PEDRO DE ALCÁNTARA. Tratado de la oración y meditación. Barcelona 1791,
p. 215ss.
12
Testamento de S. Francisco (T) 3.
13
3CCl 14.
10
Proíbe terminantemente as possessões e rendas.
“E tal como eu e minhas irmãs sempre nos empenhámos em guardar
a santa pobreza que prometemos ao Senhor Deus e ao bem-aventurado
Francisco, assim também as abadessas que me sucederem no ofício e
todas as irmãs se sintam obrigadas a observá-la inviolavelmente até ao
fim. Por isso, não possuam nem recebam por si ou por interposta pessoa,
algum domínio ou propriedade ou alguma coisa que razoavelmente possa
ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção de terra que
honestamente se achar necessário para o decoro e isolamento do
mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta, para
satisfazer as necessidades da comunidade” (RCl VI, 10-14).
A santa unidade no amor é essência da vida cristã. Dar testemunho dela na
fraternidade, é missão para a irmã pobre, como exemplo e espelho. Sejam
sempre solícitas em guardar umas com as outras a união da mútua caridade que
é o vínculo da perfeição (cf. Col 3, 14)” (RCl X, 7).
Clara fomenta a riqueza das relações humanas seguindo o esquema mãefilho. “Confiadamente manifestem uma à outra as suas necessidades; pois, se a
mãe ama e cria com tanto amor a sua filha carnal, com quanto mais carinho não
deve cada qual amar e ajudar a sua irmã espiritual (1Tes 2, 7)” (RCl VIII, 156).
Quer que a abadessa trate as irmãs como a serva a suas senhoras. E quer
que as irmãs obedeçam à abadessa por amor, para tornar mais leve a sua carga.
“Amando-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras o
amor que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs
se sintam estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua
caridade ”14.
Se há algum conflito entre as irmãs, Clara pede a reconciliação antes de ir
apresentar a oferenda de louvor no coro. Assim podem orar com o coração
puro.
Não encontramos normas sobre a hospitalidade, característica das
beneditinas, nem se faz alusão a tarefas pastorais.
Estas três colunas são o âmago da RCl. Enquanto se guardar esta forma
de viver os votos, a vida mantém-se firme. Se vacilam, o edifício cai em ruínas.
No que diz respeito à espiritualidade, a Regra não perde atualidade. Mas
há pontos disciplinares que se devem interpretar a partir da cultura que os
inspirou, porque se trata de costumes ou instituições desaparecidas.
—————
14
TCL 59.
11
II. REGRAS PROPOSTAS À II ORDEM, DEPOIS DE SANTA CLARA
Através da Cúria Romana, dez anos depois da morte de Clara de Assis,
apareceram três regras propostas às clarissas. No século XIII a Santa Sé
pretendia “orientar as diversas formas de vida religiosa feminina com normas
bem definida e fortemente influenciadas pela tradição cisterciense, e submeter
os cenóbios à Igreja de Roma; pretendia caracterizar o novo monaquismo com a
prática de uma estreitíssima clausura… Tentou-se que este forte impulso
regulador chegasse às numerosas comunidades femininas que nasceram o se
estavam organizando à margem do monaquismo tradicional”15.
A partir da Cúria romana pretendia-se uniformizar os novos movimentos
de vida religiosa feminina, conduzindo-os para uma estrutura monástica. Não
era prudente implementar a clausura sem assegurar a economia mediante rendas
estáveis. Mas a opção de pobreza de Clara não admitia propriedade nem rendas.
Aqui radica a tensão que acompanhou, até ao século XIX, a observância de
RCl.
Clara de Assis resistiu às propostas de Papa Gregório IX quando lhe ofereceu
dispensa do voto para receber rendas. Uma das mais antigas companheiras
declarou: “amava tanto a pobreza, que nunca se quis apropriar de nada, nem
aceitou a posse de bens para si ou para o mosteiro. Interrogada sobre como
sabia isto, afirmou que foi testemunha de como o senhor Papa Gregório, de
santa memória, lhe pretendeu dar muitas coisas e comprar propriedades para o
mosteiro e de como a madona Clara as rejeitou sempre com firmeza”16 Com
efeito, o Papa, na visita ao convento de S. Damião fez ofertas a Clara:
“Se temes pelo voto, nós dispensamos-te dele”. Mas Ela respondeu: “Santíssimo Padre, por nenhum preço quero ser dispensada de viver o
seguimento de Cristo por todo o sempre”17
No século XIII, a autoridade eclesiástica “começou a considerar com
extrema atenção o fenómeno da vida religiosa feminina e esforçou-se por
orienta-la em vista a formas que poderíamos definir monásticas no sentido
tradicional do termo. Se o processo se pode considerar já de alguma maneira
consumado com a bula Periculoso de Bonifácio VIII (1298), com a qual a
obrigação de estrita clausura era estendida a todas as monjas. Para chegar aí foi
—————
15
ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo feminino. Em “El Francisco de
Asís y el primer siglo de la historia franciscana”. Oñate 1999, p.231.
16
PC I. Ir. Pacífica de Guelfucio, n 13; Ir. Benvinda de Perusa: “nem o Papa Gregório
nem o Bispo de Óstia, a convenceram a aceitar propriedades”, n. 22.
17
Legenda de Clara (LCL) n. 14.
12
necessário o trabalho de um século. No princípio foi determinante a ação do
Cardeal Hugolino de Ostia; mais incisiva foi depois da sua eleição para
pontífice com o nome de Gregório IX… e na mesma linha Inocêncio e
Alexandre, até Urbano IV. As intervenções dos pontífices determinaram uma
mudança substancial… mas até à metade do século, estava em S. Damião de
Assis a força não só exemplar, mas também a força institucional de Clara e sua
comunidade a contrariar esta evolução, evitando que se aplicasse a todos os
mosteiros de forma coerente e linear”18.
As três Regras
Depois da morte de Clara, em 11 de agosto de 1253, ficava como herança
a Regra que conserva a sua espiritualidade e 110 conventos19 fundados na
Europa. Depois da sua canonização seguiu-se um século de grande esplendor.
Dez anos mais tarde havia três regras aprovadas propostas às clarissas. Esta era
a situação:
Regra de Santa Clara (RCl) dada à Ordem das Irmãs Pobres, aprovada por
Inocêncio IV no ano de 1252 com bula do mesmo, em 1253.
Regra de Isabel de França (RI) para as Irmãs Menores encerradas. Foi
composta por S. Boaventura e aprovada por Alexandre IV em 1259 para o
convento da beata Isabel20, em Longchamps. Em França, dez conventos
professaram-na. Distingue-se da RCl na medida que espiritualiza e mitiga a
pobreza, permite rendas e impõe uma clausura rígida.
Regra Urbaniana (RU) para a Ordem de Santa Clara, composta pelo Cardeal
Gaetano Orseni e S. Boaventura, aprovada por Urbano IV em 1263.
Diferença entre RCl e RU
A diferença principal entre ambas as regras está nos pontos muito
importantes para a fundadora: o alcance do voto de pobreza; e a união jurídica
com a Ordem de S. Francisco, que na RU passa ao Cardeal Protetor. Supõe a
—————
18
ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo… pp. 227ss.
Em 1300 os mosteiros dependentes da I Ordem eram 413, ‒ 57 em Espanha ‒, com
15.000 clarissas. Não se contam os que estavam sob a obediência dos Bispos. Cf.
OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las carisas a través de los siglos. Madrid 1972, pp. 4650; 67-70.
20
A beata Isabel era filha de Dona Branca de Castela, irmã do rei São Luís.
19
13
opção entre o ideal evangélico da fundadora, ou o da vida monástica clássica,
que assegura a economia com a possessão em comum.
RCl
Prescreve três votos solenes
Não permite o dote
Aceita aspirantes de qualquer
condição social
União jurídica com a OFM
Silêncio de Completas a Tércia
Proíbe propriedades e rendas
Vestidos: túnica, véu e manto
RU
Introduz o 4º voto de clausura
Impõe o dote
Governo do Cardeal Protetor
Silêncio sempre
Supõe propriedades e rendas
Administradas por um síndico
Introduz: Escapulário e touca
Dormir vestidas
A RCl professa três votos solenes. A sua pobreza é a imitação de Jesus
Cristo pobre e humilde. Supõe viver do trabalho e, se não for suficiente,
recorrer à esmola. Não permite rendas o propriedades, nem em particular nem
em comum. Convida a aspirante a dispor da sua herança livremente, antes de
professar, e em nenhum caso pede dote.
“Se alguém, por inspiração divina, vier ter connosco… Se for achada
idónea, diga-se-lhe a palavra do Santo Evangelho que diz que vá e venda todas
as suas coisas e as reparta pelos pobres (Mt 19, 21)... A abadessa e suas irmãs
não ponham cuidados nos seus bens temporais, a fim de que Ela os distribua
como o Senhor lhe inspirar.” (RCl II, 1-10)
Num tempo de grandes diferenças sociais, quando as ordens monásticas
somente recebiam mulheres nobres, Clara recebe aspirantes de qualquer
condição social para viver em igualdade e santa unidade.
RU prescreve um quarto voto, o da clausura. Mitiga a pobreza, de forma
que o mosteiro possa ter possessões e rendas administradas por um síndico. As
aspirantes devem levar dote. E quanto ao hábito, enquanto Clara se limita a
prescrever: túnica, véu manto, a RU acrescenta o escapulário, a touca, o
calçado, e como devem de dormir vestidas, etc.
Com o tempo introduziu-se em alguns conventos de RU uma discriminação que muito contraria o espírito clareano e franciscano. Nos mosteiros de
fundação real não admitiam: as que no procediam da nobreza; no Ultramar não
admitiam as indígenas.
14
Atitude das clarissas em relação à RU
Ao ser promulgada RU a situação foi a seguinte. O Cardeal Caetano
Orsini teve muito interesse em que fosse aceite pelas clarissas. Com esse efeito
encarregou o Visitador da Toscana frei Lotário, para que fizesse uma votação e
o notificasse das razões dos votos contra. A votação realizou-se numa reunião
de clarissas em Viterbo. O resultado conhece-se através da carta do Papa
Clemente IV de 31 de maio de 1266: “Sorores Ordinis Sanctae Clarae
venerunt Viterbium pro multarum terrarum Sororibus… sunt omnes in hoc
proposito, quod tuam Regulam non recipiunt”21 (As irmãs da Ordem de Santa
Clara reuniram-se em Viterbo vindas de muitas nações… foram unânimes no
propósito de não aceitar a tua Regra).
A promulgação da RU não foi um êxito, as clarissas da primeira hora
estavam firmes no ideal da fundadora. Mas, a partir de Roma, a Regra seria
dada a muitas fundações, sobretudo aos mosteiros fundados pela nobreza.
Milhares de conventos ao longo de 800 anos, professaram e professam
indistintamente RCl o RU. Assim conviveram sem tensões nem rupturas.
Temos de reconhecer que nisto as nossas antepassadas foram exemplares.
Muitos conventos sofreram de parte dos superiores religiosos e dos bispos.
Muitas sofreram pressões até da parte de entidades civis, que se negaram a
permitir fundações se não professavam a Regra Urbaniana, garantindo mediante
rendas a estabilidade económica.
As duas formas de vida, a original e a mitigada, conviveram durante
séculos. Mas, por ocasião de algum acontecimento que motivava o fervor entre
as clarissas, muitas comunidades urbanistas pediam a passagem à RCl. Assim
aconteceu na celebração do VII centenário da morte de Clara (1953). O mesmo
aconteceu no VIII Centenário de seu nascimento (1993/4).
O primeiro historiador da II Ordem, P. Ignacio Omaecheverría ofm,
escrevia no ano 1972: “A RU tornou-se obsoleta para o nosso tempo por tantas
disposições próprias de épocas passadas”22.
Chave das tensões à volta do voto de pobreza na RCl
A profissão de RCl suscitou bastantes tensões nos ambientes da cúria, e
nos ambientes franciscanos e civis, até finais do século XIX, quando o viver das
—————
21
BF VII, 82. Cit em OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las clarisas a través de los
siglos. Madrid 1972, p 66
22
OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las clarisas…, p 66.
15
rendas era privilégio de poucos mosteiros. Os problemas surgiam ao equipararse as ordens mendicantes ao monaquismo tradicional. E não se chegou a um
acordo porque a diferença está em dois pontos: um de inspiração evangélica, e
outro social.
A a inspiração evangélica: As comunidades monásticas inspiravam-se na
primitiva comunidade cristã que punha em comum os seus bens. Por
conseguinte, o voto de pobreza proibia a propriedade individual, mas não a
propriedade comum. Foi o que a RU recuperou, dando uma passo atrás o que,
distinguindo-se, assim, da RCl.
As fraternidades mendicantes vão mais além ao inspirar-se na vida
peregrina de Jesus. Pelo voto elegem não possuir nada individualmente nem em
comum. É um verdadeiro risco, mas, a própria Clara exorta a viver como
peregrinas:
“As irmãs nada tenham de seu, nem casa, nem lugar, nem coisa
alguma. Como peregrinas e estrangeiras (cf. Gem 23, 4; Sl 38, 13; 1 Ped
2, 11) servindo o Senhor em pobreza e humildade, com muita confiança,
sejam enviadas a pedir esmola (74). E não devem ter vergonha, porque
também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo (2Cor 8, 9)” (RCl
VIII, 1-2)
A novidade do carisma franciscano foi superar a forma da vida monástica
e eremitico-penitencial “enquanto estas se construíam sobre a forma da Igreja
primitiva, as que seguem a nova experiência de Francisco não se inspiram na
vida dos apóstolos, nem sequer na vida da primeira comunidade cristã, mas
directamente sobre a vida que O Homem-Deus, Jesus Cristo, experimentou na
terra. No texto legislativo de Clara isto é muito evidente: não se trata para Ela
de estabelecer normas para as observar estritamente a fim de alcançar um ideal
de perfeição, mas de definir una vocação grande, que é o encontro com a pessoa
viva do Filho de Deus que “ se fez nosso caminho”23. É um abraço que se
identifica com Jesus pobre, obediente e virgem.
Opção social a partir da pobreza: O segundo aspeto, o social, compreende-se
no contexto. O monaquismo cisterciense separa-se do mundo, é auto-suficiente.
A vida mendicante, guarda a distância necessária para manter o
recolhimento, mas não se isola do mundo nem se auto-abastece. Clara e suas
irmãs renunciando ao dote, libertam-se de todo vínculo com suas nobres
famílias, renunciando também a toda forma de poder, fazendo-se pobres pelo
—————
23
MONDONICO, Chiara Cristina, osc. Vida eremítica y carisma de las Órdemes
Franciscanas. Em “Selecciones de Franciscanismo” n. 118, Valencia 2011, p. 94.
16
Reino. Depois, fizeram-se servas da Igreja com a sua intercessão e exemplo,
transcendendo o temporal, fazendo do temporal um vínculo de caridade e
simplicidade. A sua subsistência dependia do trabalho e da esmola. Pedir
esmola não era um gesto ascético mas um intercâmbio, um gesto de pertença ao
ambiente social.
Isto significa um salto de liberdade muito além do tradicional, um
benefício permitido aos varões mas muito difícil de conseguir por uma mulher.
“… por paradoxal que pareça, os votos são na Idade Media a forma consumada
de liberdade, o sinal da liberdade possível ao homem. Além disso, quando a
ordem religiosa abandona a segurança do dote patrimonial que o constituía
numa linhagem, configura-se ‒ ao menos concetualmente ‒ na primeira unidade
social no sentido nitidamente protomoderno… que depende inteiramente da sua
pertença social para subsistir. A esmola é na Idade Média o reconhecimento de
dita pertença, mas é também a manifestação social da prevalência do fim…”24
Clara deixou-se arrebatar por esta opção evangélica clara e diferente. Não retém
o dote patrimonial, nem o brilho da sua estirpe, antes se despoja como Jesus
pobre e desnudo na cruz.
III. REGRA E TRADIÇÃO, CAMINHOS DE RENOVAÇÃO
Na trajectória de oito séculos, as Irmãs Pobres atravessaram grandes
crises que não eram suas. Eram as crises do seu tempo, afetavam a sociedade, a
política e a Igreja. Umas vinham por mão dos avatares da história como crises
de desgaste; outras, mais profundas, marcavam uma mudança de época, e
conduziam quase à extinção. Em linguagem bíblica diríamos que são momentos
de poda, de juízo, em que se obscurece o céu e caem as estrelas. Não é o fim,
mas é um momento de mudança, chame-se reforma, renovação ou regresso às
fontes.
Santa Clara, com intuição de fundadora, fez da aprovação da sua Regra o
objetivo da sua vida. Na realidade a mudança revitalizadora para superar as
crises com ganhos, sempre se conseguiu nas coordenadas do Evangelho
/Regra/sinais dos tempos.
O regresso às fontes leva à revisão e actualização das três colunas que
sustentam nossa espiritualidade. Olhando à história pode-se constatar que as
reformas impostas, programadas de fora por varões, causaram muito sofrimento
e divisões. Efetivamente, quando promovida de dentre pelas próprias clarissas,
deram fruto copioso.
—————
24
MARÍN, Higinio. La invención de lo humano… p. 148.
17
Reformas impostas de fora
A decadência e relaxamento dos costumes na primeira grande crise que
veio até à Idade Moderna, não começou na vida religiosa, mas na cúria romana
pelo “secularismo dos papas renascentistas, da cúria romana secularizada e dos
bispos afastados do labor pastoral. O que sucedia na Igreja repetia-se, a uma
escala reduzida, em cada diocese e em cada instituto religioso”25. As clarissas,
como as demais ordem claustrais, sofreram esta crise. As alterações no campo
social, a extrema pobreza, levaram a situações não desejadas, e buscaram
soluções que degeneraram em abusos.
Os movimentos de reforma estenderem-se, formando um tecido
complexo. Tratamos brevemente dos que foram promovidos por papas e reis de
fora da vida claustral26. Partiam com a intenção de corrigir o que lhes pareciam
abusos, no geral, mediante ordenações não inspiradas precisamente na
observância da RCl. Todas foram deixando marcas em preceitos, mais ou
menos oportunos, que se transformaram em costumes.
Reforma de Bento XII, século XIV. As Constituições beneditinas de 1336. No
artigo XXIX De monialibus seu minorissis, estabelecia a vida comum no
refeitório e dormitório, limitava o número de monjas à quantia das rendas e
impunha a clausura. As irmãs externas deveriam viver em clausura como
leigas27.
Nem todas se podiam identificar com as normas do Papa cisterciense. Há
aqui um par de medidas contrárias a RCl que atentam contra a forma da
pobreza e da unidade. Por exemplo, vincular às rendas o número de monjas. O
problema era quando não havia renda, e havia problemas por ter de se pedir
dispensa frequentemente para aumentar o número, quando subia a renda. E o
pior foi introduzir a classe das leigas, em inferioridade de condições. Só cinco
séculos depois se conseguiu acabar com tal diferença.
Reforma de Eugénio IV, século XV. Promulgou 100 estatutos para as clarissas
que obrigavam sob pecado grave. “Eugénio IV (1431-1447) encarregou o Geral
Guilherme de Casale da reforma das clarissas. Este tentou uniformizar a ordem
—————
25
AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de la Provincia… p 245.
Sobre a reforma: AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de as carisas en
Cataluña en tiempo de los Reys Católicos. Collectanea Franciscana 27 (1957);
Reforma de a Provincia Franciscana de la Corona de Aragón en tiempo de los Reys
Católicos”. Estudios Franciscanos 71 (1970); GARCÍA ORO, J. El Cardenal
Cisneros. Vida y empresas. Vol II. BAC. Madrid 1998.
27
GARCÍA ORO, José. El Cardenal Cisneros…, p. 199.
26
18
na sua vida e denominações. Mas a variedade radical existente na constituição
da Ordem nunca pode ser superada”28. Os 100 preceitos serviram mais para
criar escrúpulos que para ajudar à santidade. Não tem nada a ver com o espírito
de Clara que põe toda a força no essencial e deixa largueza em todo o resto.
Reforma dos Reis Católicos. Começou em 1493 com autorização de Alexandre
VI. Ensaiou-se no Reino de Aragão e depois em Castela. Vendo que não dava o
resultado desejado com o apoio da hierarquia eclesiástica, encomendou-se ao
Cardeal Frei Francisco Ximénez de Cisneros. Em 1497 pôs-se em marcha a
reforma cisneriana.
Ao obetivo de reforma anterior, clausura e vida comum, juntou-se: as
ordenações da Reforma; e mudança de superior regular, de conventuais a
observantes.
Nomearam-se visitadores com plena autoridade para corrigir e impor
sanções que, em muitos casos foram extremamente severas, levando a que a
autoridade civil interviesse para proteger as monjas. A reforma causou muito
sofrimento e escândalos.
A partir da I Ordem, reforma da Observância.
Os movimentos de reforma surgidos no seio dos franciscanos,
conventuais, descalços e observantes, tiveram um eco notável nas clarissas.
Todos em uníssono subiram pelo caminho da oração e do recolhimento até à
mais alta mística que brilhou no Século de Ouro espanhol. No entanto a
sequência dos passos institucionais dados pela Observância, nem sempre reflete
esse esplendor espiritual.
Extinguidos os conventos masculinos em Espanha, as clarissas foram
postas sob a obediência da Observância, em 1517. Enquanto os mais fervorosos
promoviam a observância de RCl, a maior parte professava a RU e as
ordenações e preceitos acumulados no tempo passado.
Tentativa vã de impor a RU. Na reforma da pobreza, os frades da Observância,
limitavam-se a corrigir toda forma de propriedade individual. Além disso, no
ano de 1518 vendo que alguns conventos não tinham estabilidade económica, o
Geral Lichetto decretou, em Capítulo, não receber sob a sua obediência nenhum
convento de clarissas que não professasse a RU e tivesse suficientes rendas
fixas. Encontrou uma forte resistência nos mosteiros onde se professava a RCl,
sobretudo nas descalças e coletinas, que por nada aceitavam a mudança da
Regra nem a obrigação de ter rendas. Por fim os frades concordaram, em 1532,
—————
28
Cfr. GARCÍA ORO, José. El Cardenal Cisneros… p. 200.
19
em não se intrometer nos assuntos temporais das clarissas. Até 1674, o ministro
provincial era visitador das religiosas de sua província.
A história das clarissas, sobretudo nos séculos XIV-XVII, revela o
heroísmo de muitas mulheres valorosas, que sofrerem grandes humilhações e
dificuldades para permanecer fiéis à RCl. Umas suportaram pressões régias,
outras das autoridades locais, e muitas de alguns frades.
Constituições Gerais. Nos primeiros séculos, os conventos de clarissas tinham
constituições próprias, diferentes. Em Espanha, além das constituições das
descalças e coletinas, os patronos de algumas fundações faziam aprovar
constituições particulares, estabelecendo peculiaridades segundo a sua devoção.
À vista de tal variedade, os frades da Observância promoveram a unificação
que terminou em 1639 com a promulgação das Constituições Gerais pelo
Ministro Geral Juan Merinero29.
Nesta recompilação não tomaram parte as clarissas. Na sua intenção de
promover uma “maior observância e reform” os frades pretenderam o
impossível: explicar e aplicar quatro regras diferentes, para três ordem
diferentes, acumulando preceitos em 15 capítulos.
As Constituições gerais actualizaram-se em 193030 para as clarissas de
RCl e RU, por se tornarem obsoletas e para as ajustar ao Código de D.C. de
1917. Depois do Concilio Vaticano II, promulgado o Código de 1983, foram de
novo revistas, sendo aprovadas em 198831.
Verdadeira reforma no seio das clarissas nos séculos XV-XVII
Duas são as grandes reformas promovidas pelo Espírito do Senhor,
protagonizadas pelas mesmas clarissas, coletinas e descalças, que renovaram a
II Ordem em Espalha, ma Idade Moderna. Consistiu em actualizar a RCl
mediante constituições elaboradas pelas mesmas reformadoras. Adoptaram-se
—————
29
Constituciones Gerales para las religiosas clarisas, concecionistas e terciarias de S.
Francisco de Asís. Dadas pelo Capítulo Geral de Roma no ano 1639. Orihuela 1885.
No capítulo geral de maio de 1583, presidido pelo ministro geral Fr. Francisco de
Gonzaga em San João dos Reis (Toledo), acordou-se em recompilar “as ordenações
gerais antigas […] e outras diversas ordenações e os estatutos mais modernos, tirando e
aumentando outros que pareceu ao dito capítulo geral ser conveniente para maior
observância e reformação do estado monástico e religioso”. Carta preambulo.
30
Reglas y Constituciones Generales para las monjas de l Orde de Santa Clara. Vich
1934.
31
Reglas yConstituciones Generales de la Orden de las Irmãs Pobres de Santa Clara.
Roma 1988.
20
desde o interior os meios para renovar com a força do primado de Deus,
alcançando dimensões místicas, resgatando a forma de nossa pobreza, e a santa
unidade.
À sombra de novas fundações, sob sua influência, renovaram-se outros
conventos já existentes. Houve mais focos importantes, como a Congregação de
Tordesilhas32, e as que seguiram a reforma villacruciana, alcantarina, etc.
Reforma coletina. Foi iniciada por santa Coleta de Corbié no ano de 1408 em
Besançon terminando com a profissão da RCl e das suas próprias constituições.
Fiel à mãe santa Clara, Coleta proíbe possessões e rendas, e não permite
receber dotes. Acentua a santa unidade, quer que as irmãs se relacionem com
naturalidade, não aceita diferença de classes, considera os cargos como ofícios
de serviço. Impõe a clausura. Estreita relação com os frades menores que
conquista para a sua reforma. Cada convento deve ter quatro frades Menores ao
seu serviço, segundo Breve de Martinho IV (1417)
Sobretudo, impulsionou a formação e promoção intelectual das irmãs,
prescrevendo a leitura de bons livros e a criação de uma bela biblioteca em cada
convento. Com estas medidas as coletinas renovam o primado de Deus,
restauram a altíssima pobreza e edificam a santa unidade. É de notar que
suprimiram a diferença de classes criada pelas Constituições de Bento XII
(1436)
A reforma coletina estendeu-se rapidamente. Entrou em Espanha pela
Coroa de Aragão, Perpinhão e Gandia (1458). De Gandia saíram 33
fundações33. Foi uma renovação admirável.
As Descalças. A reforma espanhola das Descalças foi iniciada por Marina de
Vilaseca em 1499 com a Bula Inter universa de Inocêncio VII, no convento de
Santa Isabel dos Anjos, em Córdoba. Vinte anos depois da fundação foi enviada
pelo superior regular ao convento de Santa Maria de Jesus, de Sevilha, de onde
se estenderam, fundando uma dezena de conventos34 que, por sua vez,
fundariam outros.
—————
32
Cf. OMAECHEVERRÍA, I. Las clarisas a través…, p 107ss; GARCÍA ORO, J, O
Cardemal Cisneros… p 204s. 216ss
33
VIZUETE, Carlos. As clarisas nazaremas. Na “A imagem devocional barroca.
Cuemca, 2010, p. 59ss., Tábua 1, Traz as fundações da reforma coletina. Na Tábua 2,
as fundações das descalças.
34
Córdoba 1491;Sevila 1520; Estepa 1599; Marchema em Santa Isabel, em Granada
1624; Ángel Custodio em Granada 1626; Jerez de la Frontera 1635;Ronda 1664;
Cocentaina 1625; Sisante 1714.
21
A novidade das descalças era professar RCl sem as constituições
coletinas, nem os 100 estatutos promulgados pelo Geral Guilherme de Casale a
pedido de Santa Coleta. Dos “preceitos da regra que, segundo Eugénio IV,
obrigavam sob pecado grave”, reteve somente os votos e o modo de eleger a
abadessa no capítulo. Num tempo em que as normas se multiplicavam em
excesso, a redução ao essencial prova a prudência da Irmã Marina.
Estavam sob a obediência do Vigário ultramontano da Observância e dos
Visitadores que ele nomeava. Gozavam dos indultos e privilégios da Ordem,
excepto aqueles que podiam induzir ao relaxamento. Tinham faculdade para
receber as clarissas urbanistas que quisessem professar a RCl.
Cantavam matinas à meia-noite, vestiam o hábito azul-cinza de tecido
grosseiro, toucas e véu de linho sem adornos, não podiam sair à roda sem
licença nem deixar-se ver por estranhos. Perante as visitas cobriam o rosto com
um véu espesso35. Eram medidas tidas como necessárias para evitar abusos. São
detalhes que se generalizam e é bom conhecer quando, onde e por que nascem.
Respirava-se um ambiente espiritual especial no convento de Santa Maria de
Jesus de Sevilha.
O movimento espanhol das descalças estendeu a sua força renovadora,
sobretudo, em Andaluzia. Este espírito perene de renovação encarnou-se numa
dezena de mulheres singulares. Podemos destacar M. Jerónimo da Assunção, de
Santa Isabel dos Reis de Toledo, fundadora nas Filipinas. As suas companheiras
chegaram à China.
Esplendor dos séculos XVII-XVIII
No Século de Ouro, a Ordem de Santa Clara teve a mais alta quota de
expansão, em número e em fama de santidade. No ano de 1680 calcula-se que
havia no mundo mis de 70.000 clarissas com 814 conventos sob a jurisdição
dos frades Menores.
Em Espanha, no ano 1587 havia 34.100 irmãs e 240 conventos. Em 1680
eram 315 os conventos, mais as 20 fundações de clarissas capuchinhas. Isto
sem contar as de ultramar.
Resplandeceu no Século de Ouro a experiência mística do silêncio, da
oração, e do recolhimento. Os grandes mestres e místicos franciscanos
estiveram muito próximos das clarissas. Deixou-se sentir o poder de
intercessão. Mas também a projecção artística e literária. As nossas
antepassadas deixaram composições musicais para órgão, pinturas e sobretudo
escritos. Pequemos tratados de espiritualidade, relatos autobiográficas, poemas,
—————
35
Cf. dados em OMAECHEVERRÍA, I. As clarisas a través…, pp. 101-102; e
CENTEMO Gloria. Monasterio de Santa Maria de Jesus. Sevilha 1996, pp.41ss.
22
cartas. Com o que se conservou e as biografias escritas por suas irmãs e
confessores, hoje formamos a nossa “Biblioteca familiar”36.
Se na reforma imposta se estreitava a clausura para impedir o trato
abusivo com os seculares, as autênticas reformadoras acentuavam-na para
restaurar o primado de Deus, fomentando a experiência de Deus na oração de
recolhimento.
A reforma imposta queria obrigá-las a viver de rendas. As verdadeiras
reformadoras viveram com austeridade e simplicidade, defenderam com
humilde e valentia a pobreza em particular e em comum como imitação e
abraço a Cristo pobre.
A reforma imposta retinha a obrigação do dote e permitia a presença de
empregadas e leigas para o serviço. As verdadeiras reformadoras, em pobreza e
humildade, corrigiam as desigualdades e, sem acepção de pessoas, tornavam
verdadeira a santa unidade em fraternidade.
No século XVIII continuou a expansão das clarissas em Espanha e na
América. Mas os escritos dos finais de século vão perdendo criatividade
mística, afectados pelo barroco.
Preferência das clarissas pela RCl
Não focamos a crise que se deu na entrada da Idade Contemporânea, que
supôs um longo desgaste, mas que não foi tão profunda. As leis de
exclaustração na Península Ibérica provocaram êxodos mais ou menos longos e
dolorosos, enquanto os governos vendiam os conventos em hasta pública. As
dificuldades vinham de fora, mas a vida religiosa estava forte e resistiu bem. Na
hora da restauração reapareceram muitos conventos. Foi uma crise de desgaste
que nos trouxe um grande bem: acabou com as rendas! Purificou a coluna da
santa pobreza.
Em meados do século XX muitos conventos passaram de RU a RCl, sem
as rendas que o impedissem! Foi a homenagem à mãe santa Clara no VII
Centenário de sua morte (1953) Também desta vez o impulso veio de dentre e
ninguém de fora o questionou.
Mas com a exclaustração, aconteceu que se perdeu a união jurídica com a
I Ordem. Todos os conventos de Espanha e Portugal passaram à jurisdição do
bispo diocesano por três anos. Renovou-se o prazo por outro triénio, e assem
ficou por inércia. Na Espanha só um mosteiro tem superior regular, Vilarreal
(Castellón), enquanto que na Itália há 61 conventos sob a jurisdição da Primeira
Ordem. É um caso pendente, que devemos resolver com o tempo.
—————
36
Procurei dar o meu contributo em: TRIVIÑO, Mª. Victoria. Escritoras clarisas
españolas. Antología. BAC, Madrid 1992.
23
Tendo presente o elenco, se aprecia a preferência das clarissas espanholas
pela profissão da RCl, num sentido de fidelidade ao espírito da fundadora. Nos
finais do século XX era esta a situação:
Países
Espanha
Portugal
Itália
Conventos
206
12
150
RCL
189
12
113
RU
25
37
O convite do Concílio Vaticano II aos religiosos de “voltar às fontes”
confirmou o caminho começado. A vida deu uma volta e deixando para trás
práticas que ficaram obsoletas, alimentamo-nos diretamente da Palavra de
Deus, dos escritos dos fundadores, dos Padres da Igreja e da Liturgia. A vida
claustral esteve muito protegida nesses anos e viveu uma primavera de graça. A
celebração do VIII Centenário do nascimento de Santa Clara (1993/94) foi
oportunidade para relançar a esplendorosa figura da fundadora, vivendo-se o
ideal com muito entusiasmo.
CONCLUSÃO
Eis uma ordem de clausura, as Irmãs Pobres de Santa Clara, que
caminharam, lutaram, viveram dias de esplendor, superaram as crises mais
graves da história e já celebra 800 anos de fundação.
A Regra elaborada pela Mãe e Mestra, santa Clara de Asses, é a luz que
lhe da estabilidade na Igreja, que lhe dá forma com uma espiritualidade
esponsal, obediente, amorosa, pobre e pura, que avança pela via da beleza, e a
ilumina nos momentos em que o desgaste ou as crises a arrastam par a mudança
para continuar a existir.
A RCl inspira-se na nobreza do gótico, e essa transparência original
transmite-se na veia secreta da tradição. Tive a graça de me relacionar com
clarissas de muitos países, e experimentei os rasgos de família que nos fazem
sentir, aspirar e até expressar-nos de forma semelhante. É uma experiência
encantadora. A RCl dá unidade aos conventos espalhados pelo mundo, e em
momentos cruciais faz aparecer novas mestras espirituais.
Nas fachadas da vida claustral aparecem restos de culturas passadas,
traços das reformas impostas de fora, diferenças impressas pela renovação
interior, e por duas regras interpretadas por sucessivas constituições às quais se
somaram múltiplas normas. Todas se referem por alguma razão a um tempo
determinado. As crises são belas para desprender-se do velho e resgatar a
24
essência. O conhecimento da história passada é muito útil para distinguir o
essencial.
No terceiro milénio assistimos a uma crise que nos apanha numa rede e
afeta todas as instituições, a família, a economia, a política, a Igreja, etc. Os
seus efeitos pesam também sobre a vida claustral. Tudo foi anunciado há muito
tempo: Que a vida contemplativa perdurará. O trabalho, uma vez mais, é
atualizá-la atendendo aos sinais do tempo presente, e procurando pôr em dia as
três colunas da Regra. Creio firmemente que também agora suscitará mestras
que, com o espírito de Clara de Assis, iluminarão a renovação que o terceiro
milénio está pedindo.
Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
BIBLIOGRAFIA
DOCUMENTOS
Santa Clara de Asís. Escritos y fuentes biográficas. México, 1994.
Constiteuciones Gerales para as religiosas carisas, concecionistas e terciarias de S. Francisco
de Asís. Dadas por O Capíteulo Geral de Roma em O año 1639. OrihuEla 1885.
Regla y Constituiciones Generales para as monjas de la Orden de Santa Clara. Vich 1934.
Reglas y Constituciones Gerales de la Orden de las Hermanas Pobres de Santa Clara. Roma
1988.
ESTUDOS
ALBERZONI, Pía. Clara de Asís y el franciscanismo femenino. Em “El Francisco de Asís e ei
primer seglo de la historia franciscana”. Oñate 1999
AZCONA, Tarsecio de, ofmcap. Reforma de la Provincia Franciscana de la Corona de Aragón
en tiempo de los Reees Católicos”. Estudius Franciscanos 71 (1970)
CENTEMO, Gloria. Monasterio de Santa Maria de Jesus. Sevilla 1996.
COLL, J. Crónica Seráfica de la Santa provincia de Cataluña. Barcelona 1738.
GARCÍA ORO, José. El Cardemal Cisneros. Vida y empresas, Vol II. BAC, Madrid 1993.
MARÍN, Higinio. La invención de lo humano. A génesis socio-histórica del individuo. Madrid
2007
MONDONICO, Chiara Cristina, osc. Vida eremítica y carisma de as Órdenes Franciscanas.
Em “Selecciones de Franciscanismo” n 118, Valencia 2011
OMAECHEVERRÍA, I, OFM. Las carisas a través de los siglos. Madrid 1972
S. PEDRO DE ALCÁNTARA. Tratado de la oración y meditación. Barcelona 1791, p 215s;
Rialp. Madrid 1977, p 148; Col Tau. Ávila 1991
25
TRIVIÑO, Mª. Victoria. Escritoras clarisas españolas. Antología. BAC, Madrid 1992.
- La Orden de Santa Clara em Cataluña. Em: “800 anes de franciscanisme”. “Qüestions
Teològiques” 9. Facultat de Teología de Catalunea, Barcelona 2010Clarisas y
Franciscanos catalanes hasta 1567. Em “Los Franciscanos Conventuales em España” II
Congresso Internacional sobre Franciscanismo en la Península Ibérica (Barcelona 2005)
Madrid 2006, pp 61-84.
VIZUETE, Carlos. Las clarisas nazarenas. Em “L imagen devocional barroca”. Ed. de a
Universidad de Castilla-La Mancha. Cuenca 2010, pp 45-62.
26
A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES:
DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE
Giovanna Cremaschi OSC1
—————
1
O texto corresponde a uma conferência pronunciada no Primeiro Congresso de
Presidentes das Federações das Irmãs Clarissas, Assis, 2008.
27
A FORMAÇÃO INICIAL DAS IRMÃS POBRES:
DESDE SANTA CLARA ATÉ HOJE
Apresentamos a situação atual das Irmãs Pobres de Santa Clara que
acolhem jovens decididas a seguir Cristo pobre e crucificado pelo caminho
traçado por Francisco e Clara, partindo da Forma de Vida de Clara. Teremos
em conta os contributos das ciências humanas, para depois considerar a mulher
nas suas características humanas, cristãs e espirituais, privilegiando o que é
típico do nosso carisma, uma vez que a nossa formação carismática franciscana
e clareana não é um tema entre outros, mas constitui a seiva que unifica o
caminho formativa. Trata-se de dar forma2 à mulher chamada a viver a vida
cristã como irmã pobre. Não duvidamos de que a fraternidade é o lugar de
formação por excelência3. E dentre dela, aquela que é encarregada de seguir
mais de perto as jovens em formação, assume uma importância capital, sem
excluir os contributos de outras pessoas, mesmo que não se coloquem no
mesmo plano que a mestra.
—————
2
O termo formação deriva do latim: forma, que designa a imagem integral de um ser
que chegou à perfeição e maturidade segundo a sua própria espécie, cf. G. POLICIA, G.
ROCCA (ao cuidado), Dizionario degli istituti di perfezione IV, Paoline, Roma 1977,
121. O verbo informare, usado por Clara, que voltamos a encontrar no PC 1, 14, tem o
sentido de dar forma, palavra muito querida a Clara, no sentido de modelo em quem se
deve conformar, que em definitivo é Jesus Cristo. Por isso fala de forma de vida (RCL
1,1) e nunca de Regra, da forma da nossa pobreza (RCL 2, 14). Nesta linha de
exemplaridade cada irmã está chamada a ser forma para as outras. TCL 19).
3
Na nossa sociedade que se expressa por imagens, são os exemplos de vida que podem
convencer, e não as belas instruções. Isso não significa que não tenhamos de transmitir
os fundamentos da nossa vida.
28
A MESTRA
“A abadessa cuide de encontrar, entre as irmãs mais discretas4 do
mosteiro, uma mestra5 para estas (jovens candidatas) e outras noviças, que as
instrua diligentemente (diligenter) na santa vida comum (sancta conversatio) e
nos bons costumes, segundo a forma da nossa profissão (RCL 2, 21-22; CCGG
Art. 179.”
Segundo a nossa forma de vida, devido à delicadeza da tarefa, a mestra é
escolhida pela Madre. No entanto, é muito importante que as irmãs acolham a
mestra designada para este trabalho e a ajudem na sua tarefa. A capacidade de
discernimento é o talento exigido à mestra. A formação consiste em cuidar com
amor a jovem irmã, acompanhando-a com respeito, em tudo o que concerne à
nossa vida. A sancta conversatio (cf. TCL 56-57), a vida em comum na qual
Clara e suas primeiras irmãs foram instruídas por Cristo e Francisco, é, para a
mestra, o objetivo da formação e compreende todos os aspectos do nosso estilo
de vida; consiste, concretamente, em acompanhar a jovem para a ajudar a
encarnar o Evangelho na sua história e na sua pessoa, descobrindo o alcance
dos gestos quotidianos.
Trata-se, entre outras coisas, de introduzir as irmãs na Liturgia das Horas,
não só ensinando-a simplesmente a manejar o breviário6, mas levando-a a
descobrir a Liturgia das Horas como alimento da sua vida espiritual, como
santificação do tempo e do lugar da comunhão fraterna. Para isso é necessário
que compreenda cada vez melhor o sentido do Ano Litúrgico e descubra neste o
caminho do seguimento de Cristo traçado pela Igreja. Deve ser introduzida na
—————
4
No texto latino encontramos discretioribus=mais discretas. Uma vez que no latim
discretus é particípio passado do verbo discerno, permite perceber que a tradução mais
exata é capacidade de discernimento. Na nossa forma de vida, encontramos o que hoje
se considera a primeira tarefa da formação, particularmente necessária numa
formadora, mas não só, também na abadessa, em cada irmã. É um elemento essencial.
Toda a jovem em formação deve ser ajudada a fazer crescer as sua capacidades para
levar a cabo um discernimento pessoal.
5
Em Francisco, por coerência evangélica, não encontramos o termo mestre.Esse nome
só a Jesus Cristo. Clara emprega o termo tomado da tradição monástica, para colocar o
acento no educar, no acompanhamento das que entram.
6
A espiritualidade do século XIX, considerava a “reza do breviário” como uma
obrigação, e o mais importante era o pronunciar de todas as palavras e não o deixar-se
penetrar no mais íntimo da Palavra rezada. Esta atitude é contra a tradição clareana
que, como Francisco e Clara, fez do breviário uma fonte primordial da oração pessoal.
A interiorização da Palavra transforma-a num tecido de escritos que se tornam em
Evangelho vivido e testemunhado. Cf. A vita fraterna in conunitá, em EMCHRIDION
VATICANUM 14, EDB Bolonha 1997, n. 20 (VF).
29
compreensão dos Salmos, não tanto através de um estudo sistemático, mas de
um aprofundamento sério e meditado, com o fim de os integrar na vida. Os
Salmos apresentam a Deus todos os sentimentos humanos e ensinam as diversas
formas de oração: arrependimento, súplica, ação de graças, sede de Deus,
louvor… Por outro lado, manifestam a relação com Deus como uma aliança,
um pacto de amor entre Deus e seu povo, entre o Deus e a mulher que O busca.
Assim se pode compreender o sentido da esponsalidade tão acentuada nas
Cartas de santa Clara: o pacto de amor com Jesus Cristo pobre e crucificado,
onde o seguimento se torna comunhão mística7. O Saltério ensina a
espiritualidade dos pobres que confiam sem reservas no Senhor. Orando, somos
introduzidos no seguimento do Pobre.
Portanto, deve-se iniciar a jovem na oração mental8, ajuda-a a descobrir
o sentido do silêncio9 como lugar do encontro com Deus. Pouco a pouco
perceberá a urgência de não apagar “o Espírito da santa oração e devoção, às
quais as demais coisas temporais devem servir”(RCL 7, 2; 1R 5, 2). A
autenticidade das relações com Deus, que seja ser busca d’Ele orientada pelo
Espírito e não um intimismo carregado de si mesmo, verifica-se na vida
quotidiana. Na vida quotidiana entre as irmãs surge um impulso por uma
liberdade interior que as torna independentes do juízo daqueles que as rodeiam
e as torna capazes de dar o primeiro passo em direção aos outros. A relação
fraterna prospera quando a pessoa não se coloca no centro, quando ajuda
—————
7
A jovem em formação será introduzida pouco a pouco nessa modalidade de
seguimento, que está no coração da vocação das irmãs pobres, sem sentimentalismos e
sem adulterar o alcance da radicalidade evangélica. Cf. CCGG. Art 56-59.
8
A oração é o lugar do encontro pessoal com o Deus. Cf. Vida Consagrada (VC) 15.
Fundamenta-se nas leituras da missa do dia. Clara indica-nos na 2CCL 19-20; 4CCL
15-27. Seguindo as palavras de Clara podemos chegar a uma modalidade da leccio
divina (termo e prática ausentes em Clara: olha (vide): leitura atenta do texto; medita
(intuire): releitura lenta que faz penetrar o conteúdo até ao íntimo; contempla
(contemplare): fixar o coração na Palavra, em silencio, com calma deixando que Deus
fale ao coração em silêncio; que o coração se inflame na imitação (desederans imitari):
deixar crescer em se a vontade de seguir a Cristo Jesus que finalmente se transforma:
“Desta maneira o teu coração se inflame duma caridade cada vez mais forte, ó rainha
do Rei celeste” (4CCL 27). É a força do amor, que da oração passa à vida, como dom
de si às irmãs. Cf. CCGG Art. 56-59; VC 38.
9
O silêncio é um elemento essencial e constitutivo de uma relação autêntica com Deus
Na forma de vida (RCL 5, 1-2) Clara não faz referência à tradição monástica. A
referência ao silêncio aparece na Regra para os Ermitérios 3 e nas Constituições
Pernarbornemses OFM 51; cf. FEDERAZIONE CHIARA D’ASSISI, Chiara d’Assisi e le
sue fonte legislative I, Messaggero, Pádua 2003, 58.
30
espontaneamente a irmã, pois o nosso teor de vida (sancta converseo) se
constitui ao mesmo tempo que a relação fraterna, o trabalho e todos os gestos
quotidianos onde se aprende o estilo de vida pobre e nos ajuda ser cada vez
mais irmãs10.
A segunda tarefa da mestra está estreitamente ligada á primeira: formar
para a honestidade dos costumes. Trata-se, com efeito, de uma maneira de
atuar onde se dá a cada uma o que lhe corresponde, se cumpre com diligência
aquilo que lhes foi encomendado, se é leal no falar, não se busca aparecer de
uma maneira diferente do que se é e reconhece com tranquilidade ter-se
equivocado, não se engana perante a própria consciência e perante as irmãs e se
aprende a dar e a receber o perdão (RCL 9, 7-11). Tudo isto exige a liberdade
interior, que nasce de um longo caminho de aceitação de si, como pecadoras
amadas e perdoadas por um Pai misericordioso que cuida de nós. Para Clara, a
honestidade, a coerência, é de suma importância, e diz respeito também à
fidelidade da nossa pertença total ao Senhor, implicando a castidade e tudo o
que firmemente prometemos. É, definitivamente, a atitude da mulher adulta e
responsável.
O CAMINHO DA FORMAÇÃO SEGUNDO A NOSSA FORMA DE VIDA
“Se alguma, por inspiração divina, vier ter connosco (…) (RCL 2, 1).”
Perante aquela que quer partilhar nossa vida, Clara salienta de imediato o
elemento essencial: a inspiração, que vem do Espírito Santo, primeiro artífice
do chamamento à vida segundo o Evangelho “no estado de perfeição a que te
chamou o Espírito do Senhor”(2CCL 14). Na Segunda Carta, descobrimos que
a perfeição é o seguimento de Cristo pobre até à nudez da cruz (2CCL 18-20;
TCL 45); esse é o princípio (2CCL 11; TCL 78) sobre o qual se fundamenta
uma vida como a nossa. Isto não quer dizer que a jovem que bata à porta do
nosso mosteiro, tenha alcançado essa consciência. Efectivamente, o caminho de
—————
10
É a tríplice relação na qual se articula o caminho de formação: conversão a Deus;
autenticidade da própria realidade de mulher; amar as irmãs com ternura de mãe
(“Amai sempre a Deus, as vossas almas e as vossas irmãs” BCL 14); indica uma
maturidade autêntica, sobretudo na dimensão fraterna. Se não se cresceu na aceitação
de si mesmo e na relação com Deus que conduz à gratuidade e liberdade gozosa de
filhos, as relações interpessoais estão enfermas. Para nós que vivemos sempre juntas,
este ponto é particularmente crucial, até ao ponto de condicionar o caminho de uma
fraternidade: reza-se juntas, mas os corações estão desunidos, surgem rivalidades e
rancores e falta de diálogo… Cf. RCL 10, 6-7; CCGG Art. 150; VC 42.
31
discernimento (através dos encontros no locutório o seguindo outros modos
adotados, como períodos de experiência no mosteiro11) cujo finalização não se
deve apressar, além da observação da maturidade humana da jovem, da sua
alegria de viver e de ser mulher, deve conduzir à verificação de um encontro
autêntico com a pessoa de Jesus Cristo e às possibilidades de um crescimento
nessa direção.
Clara diz-nos também: “examine-a ou faça-a examinar com diligência
acerca da fé católica e dos sacramentos da Igreja. E se ela crer todas estas
coisas e as quiser professar com fidelidade e observar com firmeza até ao
fim…” (RCL 2, 3-4). O exame preliminar de uma aspirante implica, hoje,
ajudá-la a aprofundar a iniciação cristã, o conhecimento da Escritura e de outros
aspetos. Não se trate de se lhe exigir erudição, mas de um crescimento na fé,
uma fé que não é simplesmente adesão a umas verdades, mas confiança em
Deus, abandono a Deus na oração e na vida quotidiana12. Clara, que raramente
usa a palavra fé13, emprega habitualmente o verbo ver para designar a visão
daquele que crê, referido primeiro ao caminho terrestre de Jesus, a quem Ela
quer seguir, e depois, ao desígnio de amor ao Pai. Com efeito, é na sua própria
vida, nos acontecimentos, nas circunstâncias, nas irmãs, que ela vê a ação de
Deus e descobre o fio condutor da história da salvação à luz da Palavra que foi
rezada.
O crer que plasma a vida predispõe para a confesseo fidei, o testemunho,
meta do seguimento de Cristo. Tudo isto se deve exigir como condição a uma
aspirante à nossa vida. Àquela que começa a caminhar connosco, exige-se uma
maturidade humana e espiritual proporcional á idade, ou pelo menos, uma
vivência de fé que lhe permita não desorientar-se quando entra14. A aquisição
—————
11
Convinha refletir-se sobre se os diversos anos de prova exigidos em África às
aspirantes que desejam abraçar a nossa vida, não deveriam ser introduzidos também
noutras culturas, mormente na Europa.
12
Não se trata de um fideísmo fatalista, que não aceita assumir um acompanhamento,
inclusivamente psicológico, para sarar as próprias feridas; e sublima tantos
sofrimentos, atribuindo a sua causa aos outros, impedindo assim de viver o gozo da fé.
13
Clara só utiliza duas vezes o termo fé: RCL 2, 3; 3CCL 17.
14
Precisamente porque estamos numa sociedade onde existem mensagens
contraditórias, não só no Ocidente, onde as mudanças culturais são vertiginosas, é
necessário mais do que nunca ajudar a jovem que deseja caminhar connosco a ter
fundamentos sólidos para poder superar o desconcerto que causam alguns dos nossos
costumes e tradições que muitas vezes se tornam incompreensíveis para quem vem de
uma mentalidade totalmente diferente. É necessário ajudá-las a descobrir o sentido dos
pequemos gestos da nossa vida quotidiana. Os nossos gestos e costumes devem ter
32
progressiva de um compromisso para a vida, de uma fidelidade que se
fundamenta na fidelidade a Deus, exige um passo sério de conversão. São estas
as premissas que levarão a viver o testemunho cristão, que em si conduz ao
martírio no âmbito da fraternidade.
Àquela que vem ter connosco, deve-se perguntar se tem a vontade de
viver a fé até ao fim, numa perspetiva que abarque toda a vida: uma constância
difícil para quem é jovem. É uma firmeza que deve ser como que um impulso,
como uma vontade de compromisso duradoiro; numa palavra, deve-se exigir
seriedade àquela que quer pôr a fé no centre da sua vida e não é volúvel no
essencial. É necessário ajudá-la a perceber a dimensão escatológica, uma visão
da vida que não tem fim, não para fugir do presente numa submissão à
fidelidade futura, mas para viver o momento presente como o máximo que se
nos deu a viver, penhor de plenitude de vida superior, fundada sobre a Páscoa
de Jesus Cristo que se converte no sentido do viver e do morrer (4CCL 23-32).
Temos de ser inflexíveis sobre os requisitos essenciais. Parece claro,
segundo a forma de vida, que a aspirante não seja de idade avançada, nem sofra
alguma doença ou deficiência mental (RCL 2, 6). Da mesma forma, é
necessário não aceitar candidatas demasiado jovens, que não podem ter plena
consciência da sua condição de mulher, uma vez que não viveram a
adolescência com as da sua idade e por isso continuam a ser adolescentes. O
discernimento sobre a maturidade humana e afetiva deve ser rigorosa, uma vez
que a nossa vocação não é uma vocação de massas. Não se entra no mosteiro
para satisfazer aspirações pessoais, mas para uma missão de Igreja que se deve
prosseguir acima de tudo15.
ETAPAS DA FORMAÇÃO
Avançamos no tema da formação escutando o testemunho pessoal de
Clara: “Depois que o altíssimo Pai celestial, pouco depois da conversão do
nosso bem-aventurado Pai São Francisco, se dignou iluminar-me o coração
para que, seguindo-lhe o exemplo, fizesse penitência, segundo a luz da graça
que o Senhor nos comunicou através da sua vida maravilhosa e da sua
doutrina, prometi-lhe voluntariamente obediência juntamente com as poucas
—————
sentido evangélico explicável também com palavras. Não basta dizer que sempre se fez
assim; alguns costumes do século XIX que não fazem crescer o Reino, devem ser
abolidos.
15
O mosteiro não é uma comunidade terapêutica. E para certas patologias é totalmente
desaconselhado.
33
irmãs que o Senhor me tinha dado, logo depois da minha conversão” (TCL 2426). Com uma consciência que alcançou no final da sua vida, Clara ensina-nos
as etapas fundamentais da resposta ao chamamento de Deus.
1. A iniciativa é do Pai. O chamamento é dom gratuito: à luz da graça. É
importante partir da consciência de que a vocação nos foi dada pelo Pai, que
confia na nossa pequenez de criaturas. Portanto, deve-se formar para a
gratuidade, o reconhecimento e a alegria de serem filhas amadas16. Deve-se
ajudar a descobrir as características pessoais do dom encarnado numa mulher
concreta. A auto-estima, reconhecer a beleza concedida pessoalmente a cada
uma, aprender a amar-se sem narcisismos, aceitando os próprios limites, sem
desprezar o dom de Deus considerando-se incapazes, constitui um aspeto
importante no processo formativo. Clara acrescenta: O Pai dignou-se iluminar
meu coração17, benevolência gratuita para a visão da fé pela luz do Espírito
Santo. A nossa espiritualidade é mais do coração que da inteligência (sem a
excluir). Isto deve-se ter presente no caminho da formação.
2. Fazer pemitência: O objeto da iluminação é o caminho da conversão
que começa na fé do Evangelho e nos leva à transformação daquele que quer
viver segundo a forma do santo Evangelho (TCL 14). A formação é um
caminho que dura toda a vida e no qual os anos de formação criam as bases. A
mudança de mentalidade, o deixar a mentalidade do mundo e assumir a do
Evangelho, implica todos os aspetos da nossa vida18.
3.Obediência a Francisco: Clara compreende o chamamento de Deus
pela mediação de Francisco. Promete-lhe obediência, entrando na primitiva
fraternidade, e aprende a viver o Evangelho com a mesma intuição carismática.
A relação com Francisco e com os irmãos Menores não é um simples corolário
da nossa vida, Clara corrobora esta obediência em 1252 (RCL 1, 4), quando a
—————
16
Clara mostra-se cheia de gozo (3CCL 4. 9-10), vive no gozo do Espírito (4CCL 7). É
uma alegria que tem a sua origem em Deus e que se consolida com o facto de estar
bem n’Ele e consigo mesmo.
17
O coração, no sentido bíblico, é a sede da vontade, das decisões, é o lugar onde se
adere à fé.
18
A irmã Filipa de Gislério conta assim a sua vocação: “referiu que a sua vocação se
deveu á influência de Santa Clara que a fez meditar em como Nosso Senhor Jesus
Cristo suportou a paixão e morreu na Cruz para salvação da humanidade. Foi esta
mensagem que a sensibilizou e a levou a fazer penitência juntamente com ela.” Tornase claro que o encontro com Jesus Cristo na sua Páscoa conduz à atitude de conversão
que abraça a vida e dura a vida toda. Cf. CCGG Art 83-84.
34
evolução rumo à instituição tinha transformado a simplicidade das origens,
tendo gerado uma estrutura diferente tanto para os irmãos como para as irmãs.
Insiste em acentuar a unidade do carisma, que deve ser visível na formação19.
Tendo em conta estes elementos essenciais, continuamos com os critérios
da forma de vida.
“Se for achada idónea, diga-se-lhe a palavra do Santo Evangelho
que diz que vá e venda todas as suas coisas e as reparta pelos pobres”
(RCL 2, 8).
O Evangelho é guia da vida: começa-se a vivê-lo quando se abandonam
os bens materiais. A saída da vida secular exige hoje uma salto maior que no
passado. Se o caminho do discernimento conduziu a realizá-lo com a convicção
pela união ardente com o pobre Crucificado20, a formadora deve estar atente
para não adulterar a radicalidade evangélica. Convém que esta seja vivida pelas
irmãs, pessoal e comunitariamente, porque de contrário acaba-se por manipular
o Evangelho, segundo a mentalidade consumista atual21.
O tempo de postulantado, que tem por objetivo a experiência gradual da
nossa vida, deve ajudar a fortalecer a vontade e a capacidade de não colocar no
centre os próprios gostos e necessidades. A jovem que começa com toda a sua
fragilidade, leva consigo o desejo de responder a esse amor de Deus que
descobriu e que em parte experimentou. O caminho que conduz à unidade
interior, de onde provém a paz da alma, deve estimular ao mesmo tempo
espírito e o corpo. A dimensão corporal é a modalidade concreta da nossa
existência e a sua harmonia não se realiza através de um vida cómoda, com a
qual se corre o risco de se pôr a si mesmo no centre das suas atenções. Clara
apresenta o aspeto da virgindade22, não como um puro dado físico, mas como
—————
19
Se esta dimensão não se realiza na vida de fraternidade concreta, ficará como uma
simples teoria. Cf. CCGG Art. 121.
20
2CCL 13; CCGG Art. 5. O desejo não é um vago sentimentalismo, mas uma paixão
do coração que busca Deus, abandonando tudo o que não é Ele. Clara vive a Páscoa
como centro e ensina-nos a enraizar-nos n’Ela desde o princípio do caminho. No fim
da vida, o desejo volta a ser ardente (4CCL 29; CCGG Art. 7.
21
Desta maneira, acontecerá que a jovem encontre mais bens e comodidades do que
em sua própria casa (não só no ocidente). Por isso, não é assim que ajudamos, pois o
coração não se fortalece nas opções e não distingue o único necessário.
22
“…escolhendo um esposo de linhagem mais nobre, o Senhor Jesus Cristo, que
guardará imaculada e incólume a vossa virgindade” (1CCL 7). Esta é a primeira
passagem em que Clara trata o assunto. Depois parece evidente que a virgindade é um
dom quotidiano, que vem d’Aquele que o deu. Está, pois, indissoluvelmente ligado á
35
algo que vai além da castidade. Trata-se de viver o próprio corpo com a
consciência de uma beleza recebida para se transformar em dom de amor. É um
caminho através do qual a mulher, em comunhão com Cristo, faz seu o dom
integral ao Pai e aos irmãos, no caráter específico de ser mulher. O corpo
também é o templo do Espírito, por isso é chamado a escutar as suas
inspirações para que “… com o auxílio do Senhor, Lhe devolvamos,
multiplicado, o talento que nos confiou” (TCL 18). Clara fala “… do empenho
que devemos pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus”
(TCL 18). Recordando a sua experiência entre os leprosos, Francisco afirma:
“… o que me parecia amargo tornou-se para mim em doçura de alma e de
corpo” (T 3).
Não se exige à irmã pobre de hoje as penitências corporais excessivas de
Clara. Mas está sempre chamada a saber controlar os gostos. Por exemplo, deve
ter uma relação sadia com os alimentos (RCL 3, 8). Uma mulher pobre por
amor, deve encontrar o sentido da sobriedade e da ação de graças pelo pão de
cada dia. Estes não são componentes marginais da nossa pobreza, porque a sua
autenticidade verifica-se no quotidiano, no qual a alimentação é um dos
aspetos. Se tomarmos a sério a nossa forma vida, damo-nos conta de que Clara,
assim como Francisco, escolheu a forma de vida que os identificava com os
últimos da sociedade do seu tempo23.
O início de noviciado é assinalado com a tomada do hábito dos pobres,
escolhido pelo Filho de Deus que “… desceu ao seio da Virgem Maria e
apareceu desprezível, desamparado e pobre neste mundo” (1CCL 19). Por isso
Clara suplica: “Por amor do santíssimo e dilectíssimo Menino envolto em
pobres panos e reclinado no presépio e de sua santíssima Mãe, admoesto,
suplico e exorto as minhas irmãs que se vistam com trajes pobrezinhos” (RCL
2, 25). A lógica da encarnação deve estar muito presente na formadora, para
ajudar a jovem a não transformar essa lógica num sentimentalismo vago em
relação ao Menino Jesus. Do que se trata é de acolher essa lógica de vida,
vivendo a própria maternidade na gratuidade do dom. Por isso, deve assumir-se
de maneira consciente, a essência constitutiva da mulher, feita para ser o seio da
vida, para que através do seguimento de Cristo, pobre e humilde, consiga leválo espiritualmente, com a força do Espírito no seu corpo casto e virginal.
—————
pobreza (13), ainda mais, para pertencer sem reservas a Deus em Jesus Cristo. Se
introduzimos a virgindade na formação, mostrando o seu sentido mais profundo, ela
pode também ser compreendida por uma jovem de hoje. Cf. CCGG Art 26.
23
Estamos chamadas a interpelarmo-nos sobre como vivemos esta dimensão e que
mensagem transmitimos às irmãs em formação, à Igreja e à sociedade.
36
Clara acrescenta: “A partir deste momento não lhe é permitido deixar o
mosteiro a não ser por motivo evidente, útil, razoável e aceitável” (RCL 2, 13).
A frase deve ser lida comparando com a regra dos irmãos (“E de modo algum
lhes será lícito depois, sair desta religião… (2R 2, 12”), pelo que podemos
deduzir que o primeiro significado é a exigência da perseverança. Efetivamente,
inclui também uma vida centrada na comunhão mística com Cristo e, por isso,
adopta um género de vida estável, num determinado lugar, de onde se deduz a
clausura desejada pela Igreja. A opção de uma vida contemplativa, onde tudo se
orienta para a busca, a escuta, o louvor, a contemplação de um Deus trinitário
em Jesus com a operação do Espírito Santo, implica também para nós a
clausura, embora a vida contemplativa não se esgote nesta última. Por isso, é
necessário evitar dois riscos opostos:
Por um lado, a relativização da clausura (que não é a totalidade da nossa
vida) pode ter como consequência o abandono de elementos essenciais da
forma de vida, como a renúncia a tudo o que, mesmo sendo bom, não se orienta
para a busca de Deus; aqui se englobam os compromissos e atividades
incompatíveis com a nossa opção de vida, porque são demasiado absorventes e
implicam numerosas saídas; até as compras se podem converter numa busca de
comodidade; o excesso de encontros no locutório, os telemóveis, também
favorecem a extinção do Espírito…
Por outro lado, a rigidez na primazia da clausura que deriva da
mentalidade trindentina, não de santa Clara, conduz que se dê demasiada
importância às estruturas e se traduza concretamente em turvação da mente e do
coração. O contato com os acontecimentos da Igreja e do mundo forma parte do
nosso estilo de vida. Por isso, deve-se formar para o uso crítico dos meios de
comunicação, e a viver os contatos no locutório como uma oportunidade de dar
testemunho evangélico24 (o que não é o mesmo que fazer sermões moralizantes)
e recebê-lo da pessoa que nos visita, sem buscar evasivas ou compensações
para a imaturidade afetiva25.
—————
24
CCGG Art. 125.
Algumas limitações na clausura durante o noviciado podem ser formativas, com a
condição de que estejam realmente fundamentadas e assumidas como um meio
crescimento na vida centrada unicamente em Deus. As formadoras devem ter muito
presente que o viver encerradas pode causar regressão na jovem, caso a clausura se
converta em dependência em relação a tudo, sem espaço de responsabilidade pessoal,
sem confrontação com os problemas concretos das pessoas.
25
37
O noviciado é a iniciação à vida fraterna, mais especificamente à vida
segundo a forma vivendi26, dada por Francisco. O noviciado deve conduzir a
sentir-se cada vez mais filhas de Deus Pai que nos ama com ternura de mãe,
para se abandonar cada vez mais à sua Providência, que nasce também da
escuta e das mediações humanas, na alegria de sentir-se amadas tal como
somos, mesmo naquilo que em nós não é tão amável. Ao mesmo tempo, o
noviciado deve conduzir à experiência da pertença total das escravas: como
Maria, deve deixar-se converter cada dia pela Palavra, para a encarnar e aderir à
vontade do Pai. O sermos esposas do Espírito Santo, leva-nos de novo a Maria.
Francisco afirma que nos fizemos como Maria; Por isso, na vida quotidiana
devemos crescer na docilidade ao Espírito, tal como Maria. Na formação deve
dar-se muito espaço “… a que sobre todas as coisas devem desejar ter o
Espírito do Senhor e a sua santa operação” (RCL 10,9). O Espírito é o artífice
da comunhão mística com Cristo, que nos converte em ouvintes da Palavra,
acolhe o Corpo e Sangue do Senhor, e dá-nos a capacidade de ver o bem que
Deus realiza em nós, nas irmãs, na Igreja e no mundo. A sua santa operação
purifica de tudo o que nos afasta de Deus, ilumina para conhecer a Deus, isto é,
para fazer a experiência d’Ele, para viver a nossa realidade de filhas amadas e
ingratas, para ver os sinais da sua presença na vida quotidiana; faz-nos arder no
fogo do amor, capacita-nos para seguir as pegadas de Jesus Cristo e introduznos na comunhão trinitária27. É o espírito quem nos chama a viver a perfeição
do Santo Evangelho, que é Jesus Cristo28.
É necessário ajudar as noviças a entrar nas Cartas de Clara, que
facilmente nos encantam. As núpcias de Cristo que as Cartas cantam, são o
seguimento de Jesus pobre e crucificado, a radicalidade evangélica que as
Cartas propõem de maneira decidida. Estas devem ser acompanhadas pelas
Exortações de Francisco, onde melhor se explica o sentido do seguimento que é
caminho de Sabedoria. Desta forma, as noviças são introduzidas no caminho do
ascetismo, do qual não podem prescindir e que para nós significa um deixar-se
progressivamente expropriar pelo Espírito, centrado na sabedoria do
Crucificado, que se transforma em sabedoria quotidiana, numa pobreza que
—————
26
RCL 6, 3-4: este texto oferece a síntese trinitária e mariana de uma vida
contemplativa, de seguimento evangélico e de comunhão.
27
CO 50-52; cf. 3CCL 21-23; VC 36.
28
O Espelho de Clara é a Sabedoria encarnada na nossa condição humana (3CCL 12;
4CCL 14. 18-26). A pobreza cantada na Primeira Carta é justamente a Sabedoria
(1CCL 15-17). Não é por acaso que no Evangelho, o discurso sobre a pobreza pela
qual se abandona tudo, está inspirada nos livros sapienciais (3CCL 6-79. CCGG
Art. 9. 34.
38
abraça todas as dimensões da vida, sem descuidar a pobreza efetiva, sem a qual
não se propõe, nem se vive um caminho espiritual, mas algo abstrato e
artificial29. Este caminho de sabedoria harmoniza-se muito bem com um
programa de crescimento humano, que conhece a luta para se libertar de si
mesmo, a concentração narcisista sobre si mesmo, a desconfiança, o sentimento
de culpa pelo pecado pessoal, etc. O processo formativo deve ser acompanhado
por um aprofundamento dos Evangelhos, dos Profetas e do Êxodo30. Uma vez
que a Páscoa é o coração da nossa espiritualidade, a formação deve orientar-se
para o Crucificado ressuscitado, o Cristo pobre de Clara, descobrindo cada vez
mais como a celebração eucarística, ao introduzir-nos no mistério, nos capacita
para “oferecermo-nos como hóstia santa e agradável a Deus” (Ro 10, 7)31. É na
passagem da celebração à vida que se concretiza diariamente o seguimento de
Cristo.
É aqui que se introduz a iniciação à vida fraterna (RCL 10. 6), vivendo
nos pequemos gestos o sim e a gratidão da celebração eucarística. Por essa
razão, o noviciado de uma só noviça é muito problemático, porque não existe
confrontação com as colegas. Faltam as condições concretas para vivenciar um
amor que não seja só de palavras e faça ver como é necessário sair do centro de
si mesma, para se dar conta das suas reações e da falta de liberdade que a
motiva, para aprender a colaborar em atividades realizadas em comum, para
descobrir que a capacidade de diálogo é muito diferente das muitas palavras se
poderiam dizer.
Quando chega o momento da profissão, é necessário que a noviça
compreenda o sentido do seguimento de Cristo na nossa vida, começando por
se deixar desposar pelo Espírito em fraternidade; que tenha feito uma certa
experiência de obediência, não só no que se pede cada dia, mas também nos
pedido específicos da parte de quem orienta, demonstrando a consciência de
saber decidir por imesma e ao mesmo tempo a capacidade de aceitar o
pensamento daquela que nesse momento exerce o serviço de Mãe ou de mestra
—————
29
Clara fala da pobreza e da humildade: aquele que é pobre não é presunçoso, pois
sabe que tudo recebeu como dom do dador de todos os bens, e é consciente da sua
própria pequenez (que não é o mesmo que falta de autoestima), cf. CCGG Art.36), que
se manifesta na relação fraterna, onde não se teme o juízo e se acolhe a outra como
dom na relação concreta. Todo o processo de kénosis de Cristo é vivido por Clara em
clave de pobreza (TCL 45-47).
30
CC GG Art. 75.
31
Cf. 2CCL 10; CC GG Art.12; VC 95.
39
ou de outra irmã com quem trabalha, unindo-se assim à obediência de Jesus32.
A alegria de viver também deve manifestar-se no cansaço do caminho.
No final do tempo de provação, a noviça será recebida em obediência.
Esta a síntese do sentido da profissão para Francisco e Clara, que também
falava da forma da nossa pobreza (RCL 2, 14). A obediência é o cume da
pobreza porque implica a renúncia ao que é mais próprio e imprescindível da
pessoa: a sua vontade. Devemo-nos centrar novamente sobre este ponto: por um
lado, porque renunciamos por amor a Deus ao nosso querer (RCL 10, 2), na
disponibilidade radical de aderirmos à obediência; por outro lado, devemos ter
muito claro que não renunciamos à inteligência33. Estamos chamadas a ser
mulheres adultas, conscientes do que prometemos, que pesam e buscam o bem,
que têm ideias às quais são capazes de renunciar oferecendo-as a Deus e
cumprindo a obediência. A simples dependência pode esconder infantilismo,
delegação das próprias responsabilidades, sinal de carência afetivas, procurando
fazer tudo o que desejamos mas com a cobertura da Madre.
É necessário também valorizar a dimensão do serviço, tão típico de Clara,
e que exige à Madre e às irmãs a atitude de Cristo que lava os pés, em total
doação de si. Assim, a obediência anda ligada harmoniosamente com a
corresponsabilidade de agir juntas, de decidir juntas, de transmitir a fé e a
coerência evangélica nas opções que devem tomar. Se tudo isto se pratica
realmente na comunidade, a jovem professa o aprenderá no contacto diário com
as irmãs e o capítulo conventual se converterá para ela numa escola de unidade
no amor mútuo (RCL 10, 7). Também a teologia da vida consagrada se deverá
entender a partir da vida de Clara e de Francisco, uma vez que se trata de viver
o Evangelho de uma maneira que está para além das teorias.
Com as irmãs de votos temporários, devemos evitar o excesso oposto:
a- Abandona-as totalmente aos trabalhos comunitários, sem lhes dar tempo
para o estudo e aprofundamento, nem para se poderem confrontar com a
mestra das professas, esquecendo que estão em tempo de formação.
b-Transforma esse período em tempo académico em estudos de carácter
universitário. Recordemos o que Francisco nos ensina na Exortação 7.
As nossas irmãs em formação estão chamadas à missão de tornar visível
a Cristo humilde e pobre na atualidade. A sua formação deve ter em
—————
32
Deve ter-se cuidado em não considerar como respeito à pessoa o “fazer o que se
quer”, enquanto que a busca de seguranças conduz a confiar-se em lideres de quem se
depende cegamente.
33
Ex 3.
40
atenção esta resposta, que deve dar a partir da sua maturidade como
mulher. Não esqueçamos, a este respeito, as exigências da forma de
vida: “E as que não sabem letras não cuidem de as a prender” (RCL 10,
8), que nos remete para o primado do Espírito Santo. Trata-se de
aprender com a vida, aprofundando a Escritura, a teologia, a patrística,
orientadas a conhecer melhor a tradição em que Francisco e Clara se
inseriram e descobri a nossa história para compreender como chegamos
ao presente. No geral os nossos mosteiros ainda se ressentem da
espiritualidade do século XIX: renascidos depois da extinção da vida
religiosa, assumiram um estilo de vida observante, devocional e
centrada na clausura. Considero muito importante o conhecimento das
nossas santas, das místicas trinitárias centradas em Jesus Cristo que no
seu tempo encarnaram a vivência do Evangelho. Seus escritos
espirituais ajudam-nos no crescimento interior, muito mais que o
recurso a outras espiritualidades.
Não devemos precipitar o momento da profissão solene. Exige-se à
irmã que chega a este momento a consciência da sua incapacidade de
viver esta vida confiando só nas suas forças e, ao mesmo tempo, a
confiança na fidelidade a de Deus, que já experimentou no processo
formativo. A irmã deve sentir que pode entregar com gozo sua pequenez
nas mãos d’Aquele que é o único Omnipotente34. O processo de
maturidade humana pode exigir mais de três anos para chegar a essa paz
interior que consiste em confiar-se ao Pai celeste e à fraternidade. Até
agora seguimos as etapas da formação tradicional, talvez devamos dar
mais importância às pessoas que aos prazos jurídicos. Seria desejável uma
prática semelhante à da Igreja oriental: o passo à etapa seguinte no
processo formativo realiza-se quando a irmã está preparada, e não porque
transcorreram os anos estabelecidos para essa etapa. Dessa maneira o seu
sim lhe dará a força para seguir as pegadas de Jesus na vida quotidiana.
Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
—————
34
CO 9.
41
PAPA BENTO XVI
— Catequeses sobre três santas clarissas: Santa Verónica Juliani,
Santa Catarina de Bolonha e Santa Catarina de Génova
43
SANTA VERÓNICA JULIANI
Hoje, gostaria de apresentar uma mística que não é da época medieval;
trata-se de Santa Verónica Juliani, monja clarissa capuchinha. O motivo é que
no próximo dia 27 de Dezembro se celebra o 350° aniversário do seu
nascimento. Città di Castello, lugar onde ela viveu durante muitos anos e
faleceu, assim como Mercatello — sua cidade natal — e a diocese de Urbino,
vivem este acontecimento com alegria.
Verónica nasceu precisamente no dia 27 de Dezembro de 1660 em
Mercatello, no vale do Metauro, filha de Francesco Juliani e Benedetta
Mancini; é a última de sete irmãs, das quais outras três abraçarão a vida
monástica; é-lhe conferido o nome de Úrsula. Aos sete anos perde a mãe, e o
pai transfere-se para Piacenza como superintendente das alfândegas do ducado
de Parma. Nessa cidade, Úrsula sente crescer em si o desejo de dedicar a vida a
Cristo. O apelo faz-se cada vez mais urgente, a tal ponto que, com 17 anos,
entra na estrita clausura do mosteiro das Clarissas Capuchinhas de Città di
Castello, onde permanecerá durante toda a sua vida. Ali recebe o nome de
Verónica, que significa «verdadeira imagem» e, com efeito, ela tornar-se-á
deveras imagem de Cristo Crucificado. Um ano depois, emite a solene profissão
religiosa: começa para ela o caminho de configuração com Cristo através de
muitas penitências, grandes sofrimentos e algumas experiências místicas
ligadas à Paixão de Jesus: a coroação de espinhos, as bodas místicas, a ferida no
coração e os estigmas. Em 1716, com 56 anos, torna-se abadessa do mosteiro e
é reconfirmada nesta função até à sua morte, ocorrida em 1727, depois de uma
dolorosíssima agonia de 33 dias, que culmina numa profunda alegria, a tal
ponto que as suas últimas palavras foram: «Encontrei o Amor, o Amor deixouse ver! Esta é a causa do meu padecimento. Dizei-o a todas, dizei-o a todas!»
(Summarium beatificationis, 115-120). Em 9 de Julho deixa a morada terrena
para o encontro com Deus. Tinha 67 anos, 50 dos quais transcorridos no
mosteiro de Città di Castello. É proclamada Santa no dia 26 de Maio de 1839
pelo Papa Gregório XVI.
Verónica Juliani escreveu muito: cartas, relatórios autobiográficos e
poesias. Todavia, a fonte principal para reconstruir o seu pensamento é o seu
Diário, iniciado em 1693: vinte e duas mil páginas manuscritas, que abrangem
44
um arco de trinta e quatro anos de vida claustral. A escrita flui espontânea e
contínua, não há cancelamentos ou correcções, nem sinais de pontuação ou
distribuição da matéria em capítulos ou partes, segundo um desígnio
previamente estabelecido. Verónica não queria compor uma obra literária; aliás,
foi obrigada a escrever as suas experiências pelo Padre Girolamo Bastianelli,
religioso dos Filippini, de acordo com o Bispo diocesano Antonio Eustachi.
Santa Verónica tem uma espiritualidade acentuadamente cristológicoesponsal: é a experiência de ser amada por Cristo, esposo fiel e sincero, e
querer corresponder com um amor cada vez mais comprometido e apaixonado.
Nela, tudo é interpretado em clave de amor, e isto infunde-lhe uma profunda
serenidade. Tudo é vivido em união com Cristo, por amor a Ele, e com a alegria
de poder demonstrar-lhe todo o amor de que a criatura é capaz.
O Cristo ao qual Verónica está profundamente unida é aquele que sofre
na paixão, morte e ressurreição; é Jesus no gesto de se imolar ao Pai para nos
salvar. É desta experiência que deriva também o amor intenso e sofredor pela
Igreja, na dúplice forma da oração e da oferenda. A Santa vive nesta
perspectiva: reza, sofre e procura a «santa pobreza» como «expropriação»,
perda de si (cf. ibid., III, 523), precisamente para ser como Cristo, que se
entregou inteiramente a si mesmo.
Em cada página dos seus escritos, Verónica recomenda alguém ao
Senhor, corroborando as suas preces de intercessão com a oferta de si em cada
sofrimento. O seu amor dilata-se a todas «as necessidades da Santa Igreja»,
vivendo com ansiedade o desejo da salvação de «todo o universo» (Ibid., III-IV,
passim). Verónica clama: «Ó pecadores, ó pecadoras... todos e todas, ide ao
Coração de Jesus; ide à lavanda do seu preciosíssimo Sangue... Ele espera-vos
com os braços abertos para vos abraçar» (Ibid., II, 16-17). Animada por uma
caridade fervorosa, ela presta atenção, compreensão e perdão às irmãs do
mosteiro; oferece as suas orações e os seus sacrifícios pelo Papa, pelo seu
bispo, pelos sacerdotes e por todas as pessoas necessitadas, inclusive pelas
almas do purgatório. Resume a sua missão contemplativa com estas palavras:
«Não podemos ir pregando pelo mundo, para converter as almas, mas somos
obrigadas a rezar incessantemente por todas aquelas almas que ofendem a
Deus... de modo particular com os nossos sofrimentos, ou seja, com um
princípio de vida crucificada» (Ibid., IV, 877). A nossa Santa concebe esta
missão como um «estar no meio», entre os homens e Deus, entre os pecadores e
Cristo crucificado.
Verónica vive de modo profundo a participação no amor sofredor de
Jesus, convicta de que o «sofrer com alegria» é a «chave do amor» (cf. ibid., I,
45
299.417; III, 330.303.871; IV, 192). Ela evidencia que Jesus padece pelos
pecados dos homens, mas também pelos sofrimentos que os seus servos fiéis
tiveram que suportar ao longo dos séculos, no tempo da Igreja, precisamente
mediante a sua fé sólida e coerente. Ela escreve: «O seu Pai eterno fez-lhe ver e
sentir, nessa altura, todos os padecimentos que deviam suportar os seus eleitos,
as suas almas mais amadas, ou seja, aquelas que teriam beneficiado do seu
Sangue e de todos os seus sofrimentos» (Ibid., II, 170). Como diz de si o
Apóstolo Paulo: «Agora alegro-me nos sofrimentos suportados por vós. O que
falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, pelo seu corpo que é a
Igreja» (Cl 1, 24). Verónica chega a pedir a Jesus para ser crucificada com Ele:
«Num instante — escreve — vi sair das suas santíssimas chagas cinco raios
resplandecentes; e todos vieram ao meu redor. E eu via estes raios tornar-se
como que pequenas chamas. Em quatro delas havia os pregos; e numa a lança,
como que de ouro, inteiramente abrasada: e trespassou-me o coração, de um
lado para o outro... e os pregos trespassaram-me as mãos e os pés. Senti uma
grande dor; mas, na mesma dor, eu via-me a mim mesma, sentia-me
inteiramente transformada em Deus» (Diário, I, 897).
A Santa está convencida de participar antecipadamente no Reino de Deus
mas, ao mesmo tempo, invoca todos os Santos da Pátria bem-aventurada para
que venham em sua ajuda no caminho terreno da sua doação, à espera da bemaventurança eterna; esta é a aspiração constante da sua vida (cf. ibid., II, 909;
V, 246). Em relação à pregação dessa época, centrada não raro na «salvação da
própria alma» em termos individuais, Verónica mostra um forte sentido
«solidário», de comunhão com todos os irmãos e irmãs, caminho rumo ao Céu,
e vive, reza e sofre por todos. As realidades penúltimas, terrenas, ao contrário,
embora sejam apreciadas em sentido franciscano como um dom do Criador, são
sempre relativas, inteiramente subordinadas ao «gosto» de Deus e sob o sinal de
uma pobreza radical. Na communio sanctorum, ela esclarece a sua doação
eclesial, assim como a relação entre a Igreja peregrina e a Igreja celeste. «Todos
os Santos — escreve — estão lá em cima mediante os méritos e a paixão de
Jesus; mas para tudo quanto nosso Senhor realizou, eles cooperaram, de tal
modo que a sua vida foi inteiramente ordenada, regulada pelas (suas) mesmas
obras» (Ibid., III, 203).
Nos escritos de Verónica encontramos muitas citações bíblicas, às vezes
de modo indirecto, mas sempre claras: ela revela familiaridade com o Texto
sagrado, do qual se nutre a sua experiência espiritual. Além disso, há que
revelar que os momentos fortes da experiência mística de Verónica nunca estão
separados dos acontecimentos salvíficos, celebrados na liturgia, onde ocupam
um lugar particular a proclamação e a escuta da Palavra de Deus. Portanto, a
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Sagrada Escritura ilumina, purifica e confirma a experiência de Verónica,
tornando-a eclesial. Mas por outro lado, precisamente a sua experiência,
alicerçada na Sagrada Escritura com uma intensidade excepcional, guia a uma
leitura mais profunda e «espiritual» do mesmo Texto, entra na profundidade
escondida do texto. Ela não só se exprime com as palavras da Sagrada
Escritura, mas também vive realmente destas palavras, que nela se tornam
vivas.
Por exemplo, a nossa Santa cita com frequência a expressão do Apóstolo
Paulo: «Se Deus é por nós, quem será contra nós?» (Rm 8, 31; cf. Diário, I,
714; II, 116.1021; III, 48). Nela, a assimilação deste texto paulino, esta sua
grande confiança e profunda alegria tornam-se um acontecimento completo na
sua própria pessoa: «A minha alma — escreve — foi unida à vontade divina, e
eu estabeleci-me verdadeiramente e fixei-me para sempre na vontade de Deus.
Parecia que nunca mais me iria afastar desta vontade de Deus, e voltei a mim
com estas palavras específicas: nada me poderá separar da vontade de Deus,
nem angústias, nem penas, nem dificuldades, nem desprezos, nem tentações,
nem criaturas, nem demónios, nem obscuridades, nem sequer a própria morte,
porque na vida e na morte, desejo inteiramente, e em tudo, a vontade de Deus»
(Diário, IV, 272). Assim, temos também a certeza de que a morte não é a
última palavra, estamos fixos na vontade de Deus e assim, realmente, na vida
para sempre.
Verónica revela-se, em particular, uma testemunha corajosa da beleza e
do poder do Amor divino, que a atrai, permeia e inflama. É o Amor crucificado
que se imprimiu na sua carne, como na de São Francisco de Assis, com os
estigmas de Jesus. «Minha esposa — sussurrava-me Cristo crucificado — sãome preciosas as penitências que fazes por aqueles que estão em desgraça diante
de mim ... Depois, tirando um braço da cruz, fez-me sinal que me aproximasse
do seu lado ... E encontrei-me nos braços do Crucificado. Não posso descrever
aquilo que senti naquele momento: queria estar sempre no santíssimo lado»
(Ibid., I, 37). É também uma imagem do seu caminho espiritual, da sua vida
interior: estar no abraço do Crucificado e assim permanecer no amor de Cristo
pelos outros. Também com a Virgem Maria, Verónica vive uma relação de
profunda intimidade, testemunhada pelas palavras que um dia ouve Nossa
Senhora dizer, e que ela cita no seu Diário: «Fiz-te repousar no meu seio,
recebeste a união à minha alma e por ela, como que em voo, foste levada diante
de Deus» (IV, 901).
Santa Verónica Juliani convida-nos a fazer crescer, na nossa vida cristã, a
união com o Senhor no ser pelos outros, abandonando-nos à sua vontade com
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confiança completa e total, e a união com a Igreja, Esposa de Cristo; convidanos a participar no amor sofredor de Jesus crucificado pela salvação de todos os
pecadores; convida-nos a manter o olhar fixo no Paraíso, meta do nosso
caminho terreno, onde viveremos juntamente com muitos irmãos e irmãs a
alegria da plena comunhão com Deus; convida-nos a nutrir-nos quotidia—
namente da Palavra de Deus para aquecer o nosso coração e orientar a nossa
vida. As últimas palavras da Santa podem considerar-se a síntese da sua
apaixonada experiência mística: «Encontrei o Amor, o Amor deixou-se ver!».
Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2010
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SANTA CATARINA DE BOLONHA
Numa recente catequese falei de santa Catarina de Sena. Hoje gostaria de
vos apresentar outra santa, menos conhecida, que tem o mesmo nome: santa
Catarina de Bolonha, mulher de vasta cultura, mas muito humilde; dedicada à
oração, mas sempre pronta a servir; generosa no sacrifício, mas cheia de alegria
no acolhimento da cruz com Cristo.
Nasceu em Bolonha a 8 de Setembro de 1413, primogénita de Benvenuta
Mammolini e de Giovanni de' Vigri, patrício rico e culto de Ferrara, doutor em
leis e leitor público em Pádua, onde desempenhava funções diplomáticas para
Niccolò III d' Este, marquês de Ferrara. As notícias sobre a infância e a
adolescência de Catarina são escassas e nem todas são certas. Vive a infância
em Bolonha, na casa dos avós; ali é educada pelos parentes, sobretudo pela
mãe, mulher de grande fé. Transfere-se com ela para Ferrara com cerca de dez
anos e entra na corte de Niccolò III d' Este como dama de honra de Margherita,
filha natural de Niccolò. O marquês está a transformar Ferrara numa cidade
esplendorosa, chamando artistas e letrados de vários países. Promove a cultura
e, embora a sua vida não seja particularmente exemplar, cuida muito do bem
espiritual, da conduta moral e da educação dos súbditos.
Em Ferrara, Catarina não se ressente dos aspectos negativos, que muitas
vezes a vida de corte comportava; goza da amizade de Margherita e torna-se a
sua confidente, enriquecendo a sua cultura: estuda música, pintura e dança;
aprende a poetizar, a escrever composições literárias e a tocar violão; torna-se
perita na arte da miniatura e das transcrições; aperfeiçoa o estudo do latim. Na
futura vida monástica valorizará muito o património cultural e artístico
adquirido nesses anos. Aprende com facilidade, com paixão e com tenacidade;
mostra grande prudência, modéstia singular, graça e gentileza no comportamento. Contudo, uma característica distingue-a de modo absolutamente
claro: o seu espírito está constantemente dirigido para as realidades do Céu.
Em 1427, com apenas 14 anos, também após alguns acontecimentos
familiares, Catarina decide deixar a corte para se unir a um grupo de jovens
mulheres provenientes de famílias nobres que viviam em comum, consagrandose a Deus. A mãe, mulher de fé, consente, embora tivesse outros projectos para
ela.
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Não conhecemos o caminho espiritual de Catarina antes desta escolha.
Falando em terceira pessoa, ela afirma que entrou ao serviço de Deus
«iluminada pela graça divina (...) com consciência recta e grande fervor»,
solícita noite e dia à santa oração, comprometendo-se em conquistar todas as
virtudes que via nos outros, «não por inveja, mas para agradar mais a Deus, em
quem tinha posto todo o seu amor» (Le sette armi spirituali, VII, 8, Bolonha
1998, p. 12). São notáveis os seus progressos espirituais nesta nova fase da
vida, mas são também grandes e terríveis as provas, os sofrimentos interiores,
sobretudo as tentações do demónio. Atravessa uma profunda crise espiritual, até
ao limitar do desespero (cf. ibid., VII, pp. 12-29). Vive na noite do espírito,
provada também pela tentação da incredulidade em relação à Eucaristia. Depois
de sofrer muito, o Senhor consola-a: numa visão, concede-lhe um conhecimento claro da presença eucarística real, um conhecimento tão luminoso que
Catarina não consegue expressar com palavras (cf. ibid., VIII, 2, pp. 42-46). No
mesmo período, uma prova dolorosa abate-se sobre a comunidade: surgem
tensões entre quem quer seguir a espiritualidade agostiniana e quem está mais
orientado para a espiritualidade franciscana.
Entre 1429 e 1430 a responsável do grupo, Lucia Mascheroni, decide
fundar um mosteiro agostiniano. Catarina, ao contrário, com outras escolhe
vincular-se à regra de santa Clara de Assis. É um dom da Providência, porque a
comunidade habita perto da igreja do Espírito Santo, anexa ao convento dos
Frades Menores que aderiram ao movimento da Observância. Assim, Catarina e
as companheiras podem participar regularmente nas celebrações litúrgicas e
receber uma assistência espiritual adequada. Têm também a alegria de ouvir a
pregação de São Bernardino de Sena (cf. ibid., VII, 62, p. 26). Catarina narra
que, em 1429 — terceiro ano da sua conversão — vai confessar-se a um dos
Frades Menores que ela estimava, realiza uma boa confissão e pede intensamente ao Senhor que lhe conceda o perdão de todos os pecados e da pena a eles
ligada. Deus revela-lhe em visão que lhe perdoou tudo. É uma experiência
muito forte da misericórdia divina, que a marca para sempre, dando-lhe novo
impulso para responder com generosidade ao imenso amor de Deus (cf. ibid.,
IX, 2, pp. 46-48).
Em 1431 tem uma visão do juízo final. A cena assustadora dos
condenados impele-a a intensificar orações e penitências para a salvação dos
pecadores. O demónio continua a atacá-la e ela confia-se de modo cada vez
mais total ao Senhor e à Virgem Maria (cf. ibid., X, 3, pp. 53-54). Nos escritos,
Catarina deixa-nos algumas notas essenciais deste combate misterioso, do qual
sai vitoriosa com a graça de Deus. Fá-lo para instruir as suas irmãs de hábito e
aquelas que tencionam percorrer o caminho da perfeição: quer alertar contra as
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tentações do demónio, que muitas vezes se esconde sob aparências
enganadoras, para depois insinuar dúvidas de fé, incertezas vocacionais e
sensualidades.
No tratado autobiográfico e didascálico As sete armas espirituais,
Catarina oferece a este propósito ensinamentos de grande sabedoria e de
profundo discernimento. Fala em terceira pessoa, citando as graças extraordinárias que o Senhor lhe concede, e em primeira pessoa para confessar os
próprios pecados. Do seu escrito transparece a pureza da sua fé em Deus, a
profunda humildade, a simplicidade de coração, o ardor missionário e a paixão
pela salvação das almas. Delineia sete armas de luta contra o mal, contra o
demónio:
1. ter o cuidado e a solicitude de realizar sempre o bem;
2. acreditar que sozinhos nunca poderemos fazer algo verdadeiramente
bom;
3. confiar em Deus e, por amor a Ele, jamais ter medo da batalha contra o
mal, quer no mundo, quer em nós mesmos;
4. meditar com frequência sobre os acontecimentos e as palavras da vida
de Jesus, sobretudo a sua paixão e morte;
5. recordar-se que devemos morrer;
6. ter fixa na mente a memória dos bens do Paraíso;
7. ter familiaridade com a Sagrada Escritura, trazendo-a sempre no
coração para que oriente todos os pensamentos e toda as obras.
Um bonito programa de vida espiritual, também hoje, para cada um de
nós!
No convento, não obstante fosse habituada à corte de Ferrara, Catarina
desempenha funções de lavadeira, costureira, padeira e encarregada de cuidar
dos animais. Faz tudo, até os serviços mais humildes, com amor e pronta
obediência, oferecendo às irmãs de hábito um testemunho luminoso. Com
efeito, ela vê na desobediência aquele orgulho espiritual que destrói todas as
outras virtudes. Por obediência aceita o cargo de mestra das noviças, não
obstante se considere incapaz de desempenhar tal função, e Deus continua a
animá-la com a sua presença e os seus dons: com efeito, é uma mestra sábia e
apreciada.
Em seguida confiam-lhe o serviço do locutório. Custa-lhe muito
interromper com frequência a oração para responder às pessoas que se
apresentam à grade do mosteiro, mas também desta vez o Senhor não deixa de a
visitar e de lhe estar próximo. Com ela, o mosteiro é cada vez mais um lugar de
oração, de oferta, de silêncio, de cansaço e de alegria. Quando faleceu a
abadessa, os superiores pensam imediatamente nela, mas Catarina impele-as a
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dirigir-se às Clarissas de Mântua, mais instruídas nas constituições e nas
observâncias religiosas. Contudo, poucos anos depois, em 1456, pede-se ao seu
mosteiro que crie uma nova fundação em Bolonha. Catarina preferiria terminar
os seus dias em Ferrara, mas o Senhor aparece-lhe e exorta-a a cumprir a
vontade de Deus e ir a Bolonha como abadessa. Prepara-se para o novo
compromisso com jejuns, disciplinas e penitências. Parte para Bolonha com
dezoito irmãs de hábito. Como superiora é a primeira na oração e no serviço;
vive em profunda humildade e pobreza. Quando termina o mandato do triénio
de abadessa, é feliz por ser substituída, mas depois de um ano deve retomar as
suas funções, porque a nova eleita ficou cega. Apesar do sofrimento e das
graves enfermidades que a atormentam, ela desempenha o seu serviço com
generosidade e dedicação.
Ainda por um ano exorta as irmãs de hábito à vida evangélica, à paciência
e à constância nas provas, ao amor fraterno, à união com o Esposo divino,
Jesus, para preparar deste modo o seu dote para as bodas eternas. Um dote que
Catarina vê no saber compartilhar os sofrimentos de Cristo, enfrentando com
serenidade as dificuldades, angústias, desprezos e incompreensões (cf. Le sette
armi spirituali, X, 20, pp. 57-58). No início de 1463 as enfermidades agravamse; reúne as irmãs de hábito pela última vez no Capítulo, para lhes anunciar a
sua morte e recomendar a observância da regra. Por volta do fim de Fevereiro é
provada por fortes sofrimentos que já não a deixarão, mas é ela que conforta as
irmãs na dor, assegurando-lhes a sua ajuda inclusive do Céu. Depois de ter
recebido os últimos Sacramentos, entrega ao confessor o escrito As sete armas
espirituais e entra em agonia; o seu rosto faz-se bonito e luminoso; olha ainda
com amor para quantas a circundam e expira docemente, pronunciando três
vezes o nome de Jesus: é o dia 9 de Março de 1463 (cf. I. Bembo, Specchio di
illuminazione. Vita di S. Caterina a Bologna, Florença 2001, cap. III). Catarina
será canonizada pelo Papa Clemente XI no dia 22 de Maio de 1712. A cidade
de Bolonha, na capela do mosteiro do Corpus Domini, conserva o seu corpo
incorrupto.
Caros amigos, santa Catarina de Bolonha, com as suas palavras e com a
sua vida, é um forte convite a deixar-nos guiar sempre por Deus, a cumprir
quotidianamente a sua vontade, embora muitas vezes não corresponda aos
nossos desígnios, a confiar na sua Providência que jamais nos deixa sozinhos.
Nesta perspectiva, santa Catarina fala connosco; à distância de muitos séculos,
ainda é muito moderna e fala à nossa vida. Como nós, ela sofre a tentação,
padece as tentações da incredulidade, da sensualidade, de um difícil combate
espiritual. Sente-se abandonada por Deus, encontra-se na obscuridade da fé.
Mas em todas estas situações apoia-se sempre na mão do Senhor, não O deixa,
52
não O abandona. E caminhando de mãos dadas com o Senhor, percorre a via
recta e encontra o caminho da luz. Assim, diz-nos também a nós: coragem,
também na noite da fé, mesmo em muitas dúvidas que possam existir, não deixa
a mão do Senhor, caminha de mãos dadas com Ele, crê na bondade de Deus;
assim é caminhar pela vida recta! E gostaria de ressaltar outro aspecto, o da sua
grande humildade: é uma pessoa que não quer ser alguém ou algo; não deseja
aparecer; não quer governar. Deseja servir, cumprir a vontade de Deus, estar ao
serviço dos outros. E precisamente por isso, Catarina era credível na autoridade,
porque se podia ver que para ela a autoridade era precisamente servir o
próximo. Peçamos a Deus, por intercessão da nossa santa, o dom de realizar o
programa que Ele tem para nós, com coragem e generosidade, para que
somente Ele seja a rocha sólida sobre a qual se edifica a nossa vida.
Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010
53
SANTA CATARINA DE GÉNOVA
Hoje gostaria de vos falar de outra santa que tem o nome de Catarina,
depois de Catarina de Sena e Catarina de Bolonha; falo de Catarina de Génova,
conhecida sobretudo pela sua visão sobre o purgatório. O texto que descreve a
sua vida e o seu pensamento foi publicado na cidade da Ligúria em 1551; ele é
dividido em três parte: a Vida propriamente dita, a Demonstração e declaração
do purgatório — mais conhecida como Tratado — e o Diálogo entre a alma e
o corpo (cf. Livro da Vida admirável e da doutrina santa, da beata Catarina de
Génova, que contém uma útil e católica demonstração e declaração do
purgatório, Génova, 1551). O redactor final foi o confessor de Catarina, o
sacerdote Cattaneo Marabotto.
Catarina nasceu em Génova, em 1447; última de cinco filhos, ficou órfã
do pai, Giacomo Fieschi, ainda em tenra idade. A mãe, Francesca di Negro,
dispensou-lhe uma válida educação cristã, a tal ponto que a maior das duas
filhas se tornou religiosa. Com 16 anos, Catarina foi concedida como esposa a
Giuliano Adorno, um homem que, depois de várias experiências comerciais e
militares no Médio Oriente, tinha regressado a Génova para casar. A vida
matrimonial não foi fácil, também devido à índole do marido, apaixonado pelo
jogo de azar. Inicialmente, a própria Catarina foi induzida a levar um tipo de
vida mundana em que, contudo, não conseguia encontrar a serenidade. Depois
de dez anos, no seu coração havia um profundo sentido de vazio e de amargura.
A conversão teve início a 20 de Março de 1473, graças a uma experiência
singular. Tendo ido à igreja de são Bento e ao mosteiro de Nossa Senhora das
Graças para se confessar, ajoelhou-se diante do sacerdote e «recebeu — como
ela mesma escreve — uma chaga no coração, de um imenso amor de Deus»,
com uma visão tão clarividente das suas misérias e dos seus defeitos e, ao
mesmo tempo, da bondade de Deus, que quase desmaiou. Foi tocada no coração
por este conhecimento de si mesma, da vida vazia que ela levava e da bondade
de Deus. Desta experiência derivou a decisão que orientou toda a sua vida,
expressa com estas palavras: «Basta com o mundo e com os pecados» (cf. Vida
admirável, 3rv). Então Catarina fugiu, suspendendo a Confissão. Voltou para
casa, entrou no quarto mais escondido e chorou prolongadamente. Naquele
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momento, foi instruída interiormente sobre a oração e adquiriu a consciência do
imenso amor de Deus por ela, pecadora, uma experiência espiritual que não
conseguia expressar com palavras (cf. Vida admirável, 4r). Foi nessa ocasião
que lhe apareceu Jesus sofredor que carregava a cruz, como é frequentemente
representado na iconografia da santa. Poucos dias depois, foi ter com o
sacerdote para finalmente realizar uma boa confissão. Aqui teve início aquela
«vida de purificação» que, durante muito tempo, lhe fez sentir uma dor
constante pelos pecados cometidos e que a impeliu a impor-se penitências e
sacrifícios para demonstrar o seu amor a Deus.
Neste caminho, Catarina foi-se aproximando cada vez mais do Senhor,
até entrar naquela que é denominada «vida unitiva», ou seja, uma relação de
profunda união com Deus. Na Vida está escrito que a sua alma era orientada e
ensinada interiormente só pelo dócil amor de Deus, que lhe concedia tudo
aquilo que ela precisava. Catarina abandonou-se de modo tão total nas mãos do
Senhor que chegou a viver, durante cerca de vinte e cinco anos — como ela
escreve — «sem o intermédio de qualquer criatura, instruída e orientada
unicamente por Deus» (Vida, 117r-118r), alimentada sobretudo pela oração
constante e pela Sagrada Comunhão recebida todos os dias, o que não era
comum na sua época. Só muitos anos mais tarde o Senhor lhe concedeu um
sacerdote que cuidasse da sua alma.
Catarina hesitava sempre em confiar e manifestar a sua experiência de
comunhão mística com Deus, sobretudo pela profunda humildade que sentia
diante das graças do Senhor. Foi só a perspectiva de dar glória a Ele e de poder
favorecer o caminho espiritual de outros que a levou a narrar aquilo que se
verificava nela, a partir do momento da sua conversão, que é a sua experiência
originária e fundamental. O lugar da sua ascensão aos vértices místicos foi o
hospital de Pammatone, a maior estrutura hospitalar genovesa, da qual foi
directora e animadora. Portanto, não obstante esta profundidade da sua vida
interior, Catarina vive uma existência totalmente activa. Em Pammatone foi-se
formando ao seu redor um grupo de seguidores, discípulos e colaboradores,
fascinados pela sua vida de fé e pela sua caridade. O próprio marido, Giuliano
Adorno, foi conquistado por ela, a ponto de abandonar a sua vida desregrada,
de se tornar terciário franciscano e de se transferir para o hospital, para oferecer
a sua ajuda à esposa. O compromisso de Catarina no cuidado dos doentes
continuou até ao fim do seu caminho terreno, a 15 de Setembro de 1510. Desde
a conversão até à morte, não houve acontecimentos extraordinários, mas dois
elementos caracterizaram toda a sua existência: por um lado a experiência
mística, ou seja, a profunda união com Deus, sentida como uma união esponsal
e, por outro, a assistência aos enfermos, a organização do hospital e o serviço
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ao próximo, especialmente aos mais necessitados e abandonados. Estes dois
pólos — Deus e o próximo — preencheram totalmente a sua vida, transcorrida
praticamente entre as paredes do hospital.
Estimados amigos, nunca devemos esquecer que quanto mais amarmos a
Deus e formos constantes na oração, tanto mais conseguiremos amar
verdadeiramente quantos estão à nossa volta, quem está perto de nós, porque
seremos capazes de ver em cada pessoa o Rosto do Senhor, que ama sem
limites nem distinções. A mística não cria distâncias em relação ao outro, não
cria uma vida abstracta, mas sobretudo aproxima do outro, porque se começa a
ver e a agir com os olhos, com o Coração de Deus.
O pensamento de Catarina sobre o purgatório, pelo qual ela é
particularmente conhecida, está condensado nas últimas duas partes do livro
citado no início: o Tratado sobre o purgatório e o Diálogo entre a alma e o
corpo. É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais
tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a
purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento
central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua
época. O primeiro traço original diz respeito ao «lugar» da purificação das
almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a
imagens ligadas ao espaço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o
purgatório. Em Catarina, ao contrário, o purgatório não é apresentado como um
elemento da paisagem do interior da terra: é um fogo não exterior, mas interior.
Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da
alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de
profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (cf.
Vida admirável, 171v). Ouvimos sobre o momento da conversão, quando
Catarina sente repentinamente a bondade de Deus, a distância infinita da
própria vida desta bondade e um fogo ardente no interior de si mesma. E este é
o fogo que purifica, é o fogo interior do purgatório. Também aqui há um traço
original em relação ao pensamento do tempo. Com efeito, não se começa a
partir do além para narrar os tormentos do purgatório — como era habitual
naquela época e talvez ainda hoje — e depois indicar o caminho para a
purificação ou a conversão, mas a nossa santa começa a partir da própria
experiência interior da sua vida a caminho da eternidade. A alma — diz
Catarina — apresenta-se a Deus ainda vinculada aos desejos e à pena que
derivam do pecado, e isto torna-lhe impossível regozijar com a visão beatífica
de Deus. Catarina afirma que Deus é tão puro e santo que a alma com as
manchas do pecado não pode encontrar-se na presença da majestade divina (cf.
Vida admirável, 177r). E também nós sentimos como estamos distantes, como
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estamos repletos de tantas coisas, a ponto de não podermos ver Deus. A alma
está consciente do imenso amor e da justiça perfeita de Deus e, por conseguinte,
sofre por não ter correspondido de modo correcto e perfeito a tal amor, e
precisamente o amor a Deus torna-se chama, é o próprio amor que a purifica
das suas escórias de pecado.
Em Catarina entrevê-se a presença de fontes teológicas e místicas das
quais era normal haurir na sua época. Em particular, encontra-se uma imagem
típica de Dionísio, o Areopagita, ou seja, aquela do fio de ouro que liga o
coração humano ao próprio Deus. Quando Deus purifica o homem, liga-o com
um fio de ouro extremamente fino, que é o seu mor, e atrai-o a si com um
afecto tão forte, que o homem permanece como que «superado, vencido e
totalmente fora de si». Assim, o coração do homem é invadido pelo amor de
Deus, que se torna o único guia, o único motor da sua existência (cf. Vida
admirável, 246rv). Esta situação de elevação a Deus e de abandono à sua
vontade, expressa na imagem do fio, é utilizada por Catarina para manifestar a
obra da luz divina nas almas do purgatório, luz que as purifica e eleva aos
esplendores dos raios fúlgidos de Deus (cf. Vida admirável, 179r).
Queridos amigos, na sua experiência de união com Deus os santos
alcançam um «saber» tão profundo dos mistérios divinos, no qual o amor e o
conhecimento se compenetram, a ponto de ajudarem os próprios teólogos no
seu compromisso de estudo, de intelligentia fidei, de intelligentia dos mistérios
da fé, de aprofundamento real dos mistérios, por exemplo daquilo que é o
purgatório.
Com a sua vida, santa Catarina ensina-nos que quanto mais amamos a
Deus e entramos em intimidade com Ele na oração, tanto mais Ele se faz
conhecer e acende o nosso coração com o seu amor. Escrevendo acerca do
purgatório, a santa recorda-nos uma verdade fundamental da fé, que se torna
para nós um convite a rezar pelos defuntos, a fim de que eles possam chegar à
visão beatífica de Deus na comunhão dos santos (cf. Catecismo da Igreja
Católica, n. 1032). Além disso, o serviço humilde, fiel e generoso, que a santa
prestou durante toda a sua vida no hospital de Pammatone, é um exemplo
luminoso de caridade para todos e um encorajamento especialmente para as
mulheres que oferecem uma contribuição fundamental para a sociedade e a
Igreja com a sua obra preciosa, enriquecida pela sua sensibilidade e pela
atenção aos mais pobres e necessitados.
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011
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Documentos
1- VIII CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DA ORDEM DAS IRMÃS POBRES.
Carta de Fr. José Rodriguez Carballo,
Ministro geral da Ordem dos Frades Menores
2- QUINTO CENTENÁRIO DA APROVAÇÃO DA REGRA DA ORDEM DA
IMACULADA CONCEIÇÃO, DE SANTA BEATRIZ DA SILVA.
Carta de Fr. José Rodriguez Carballo,
Ministro geral da Ordem dos Frades Menores
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DOIS NOMES, DOIS FENÓMENOS, DUAS LEGENDAS:
FRANCISCO E CLARA
VIII CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DA ORDEM DAS IRMÃS POBRES.
CARTA DE FR. JOSÉ RODRIGUEZ CARBALLO,
MINISTRO GERAL DA ORDEM DOS FRADES MENORES
Queridas Irmãs Pobres:
“O Senhor vos dê a paz!”
No dia 16 de abril inauguramos solenemente em Assis, em comunhão
com todas as filhas de Santa Clara espalhadas pelo mundo inteiro, as
celebrações do VIII Centenário da conversão de Clara de Assis e da fundação
da Ordem das Irmãs Pobres. Tal acontecimento iniciou com a celebração das
primeiras Vésperas do Domingo de Ramos, presidida pelo bispo de Assis, D.
Domenico Sorrentino, na Catedral de S. Rufino. Em seguida fez-se uma
peregrinação até à Porciúncula, Santa Maria dos Anjos, onde a jovem Clara,
tendo abandonado “casa, cidade e família”, se refugiou para consagrar-se ao
Senhor “diante do altar de Maria” (cf. LCL 8), e abraçar a forma de vida que
Francisco lhe mostrara (cf. TCL 5), e que mais tarde o Papa Inocêncio IV
abençoou, aprovando a Regra da Ordem das Irmãs Pobres. A peregrinação, da
qual participou um grande número de Irmãos Franciscanos, de Religiosas e
Religiosos, assim como numerosos leigos, passou pelos lugares onde as Irmãs
Pobres conservam e transmitem o propósito de vida de Clara: o Proto-mosteiro,
o Mosteiro de S. Quirico e o de Santa Coleta.
Este foi realmente um momento cheio de emoção diante do acontecimento do qual se fazia memória: a consagração de Clara, com o corte dos
cabelos feito pelo próprio Francisco, e a fundação das Irmãs Pobres; emoção
favorecida e intensificada pela peregrinação noturna desde Assis até Santa
Maria dos Anjos, animada por cantos e pela leitura de textos da vida de Clara e
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de seus Escritos, e iluminada pelas luzes trémulas das tochas, assim como pela
prolongada permanência diante da Porciúncula, onde a “Mãe das misericórdias”
gerou a Ordem dos Irmãos Menores e a das Irmãs Pobres (cf. LSC 8).
Diante da Porciúncula, em nome de todos, dei graças ao Pai das
misericórdias por ter inspirado Francisco a viver segundo a forma do santo
Evangelho (cf. TCL 14) e por ter chamado Clara a deixar-se seduzir pelo “mais
belo dos filhos dos homens” (2In 20), a ponto de dirigir a Ele, constantemente e
para sempre, sua “mente, alma e coração” (2In 20). Ao mesmo tempo dei
graças a Ele pelas inumeráveis Irmãs Pobres que, nestes 800 anos de história,
tentaram seguir Cristo segundo a forma de vida vivida por Clara de Assis,
cumprindo-se deste modo a profecia do Papa Alexandre IV que, ilustrando o
carisma da “mulher nova” do vale de Espoleto, falou de “uma árvore alta,
voltada para o céu, com abundantes ramos, que no campo da Igreja produzia
suaves frutos e em cuja sombra, agradável e amiga, acorreram muitas discípulas
de fé de todas as partes, e ainda hoje acorrem para degustar os frutos” (BCL
31). De fato, na ocasião da morte de Clara já havia na Itália 115 mosteiros e
fora da Itália, 50. No início do século XIV eram 413 mosteiros. Hoje os
mosteiros no mundo inteiro são cerca de 1000, com quase 15.000 Irmãs, todas
nascidas da plantazinha de Francisco.
O significado de uma celebração
As celebrações, que vão de 16 de abril de 2011 a 11 de agosto de 2012,
querem ser um tempo favorável para reavivar a memória daquilo que aconteceu
há 800 anos, para propor de novo a espiritualidade desta mulher extraordinária
e, sobretudo, para redescobrir a atualidade da mensagem da senhora Clara.
Reavivar a memória. Por aquelas “mulheres – grita Francisco enquanto
repara a igrejinha de São Damião – se dará glória ao nosso Pai celeste em toda
a santa Igreja” (TCL 14). Talvez nem Francisco mesmo era totalmente consciente de que a forma de vida abraçada por Clara haveria de ser suporte do
ministério petrino e alimento para a missionariedade da Igreja, como escreveu o
Papa Gregório IX à plantazinha de Francisco e às Irmãs Pobres de São Damião
em 1228. A vida de Clara, “sob a guia de Francisco – escrevia João Paulo II –
não foi eremítica, embora seja contemplativa e conventual”. Alexandre IV, na
Bula de canonização, já afirmava: “Clara calava, porém sua fama gritava”. Sim,
sua fama gritava pela exemplaridade evangélica, capaz de levar a Cristo aqueles
que estavam no mundo; de ser sustentáculo dos membros vacilantes; gritava por
seu grande coração, que abraçava toda a criatura, mesmo a mais humilde e
61
esquecida, porque estava marcada pela benevolência do Criador (cf. BC 4-5;
3In 8; PC 7. 12).
Propor de novo a espiritualidade de Clara. Na mensagem às Irmãs
Pobres, na conclusão do I Congresso Internacional das Presidentas das Federações OSC, se fazia a proposta de três anos de preparação para estas celebrações com aprofundamento dos seguintes temas: vocação (2009), contemplação
(2010), pobreza (2011). Sim, escolhestes um modo sério para preparar-vos para
a celebração do VIII Centenário. Indicastes um caminho preciso para reapropriar-vos da espiritualidade que sustenta a vossa vida e para repropor de novo a
todos a “alma” de Clara. De minha parte, como vosso irmão e servo, tentei
ajudar-vos neste caminho de aprofundamento com as cartas que vos escrevi em
2008, 2009 e 2010 por ocasião da festa de nossa Irmã Clara.
Redescobrir a sua mensagem. Evidentemente sua mensagem deverá
interpelar em primeiro lugar a vós mesmas que escolhestes seguir a Cristo
segundo o “espelho e exemplo” de Clara de Assis. Na Carta que a Conferência
dos Ministros gerais da I Ordem e da TOR vos escreveu na data de 2 de
fevereiro de 2011, entre outras coisas, se diz: “Que queremos celebrar juntos: a
recordação de uma Regra ou a memória da história de Deus convosco perpetuada no tempo e que ainda hoje desperta paixão em vós para ‘observar o santo
Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de
próprio e em castidade? Como fazer vir à luz, em sua inteireza, a forma de vida
que torna visível e credível a todos que ‘o Filho de Deus se fez para nós o
Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de
verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo’?” (TCL 5) Como
podeis ser ainda hoje na Igreja e para a Família Franciscana memória viva
daquilo que todos nós, como batizados, estamos chamados a viver?”
Pelo que me toca, estou plenamente convencido de que o fascínio de
Clara reside na vida evangélica que abraçou; e o que a sustentou durante 40
anos na clausura de um mosteiro tem sido o Evangelho. Tendo fugido de casa e
descoberta a via indicada por Francisco, Clara focaliza a forma de vida das
Irmãs Pobres em “observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo”
(RC 1, 2). É isto o essencial que desvela o segredo da “juventude” de Clara e
sua capacidade de ser um ponto de referência para a Igreja e para o mundo de
hoje.
Queridas Irmãs, narrai-nos com a vida o que contemplais e tocais do
Verbo da vida, contido no Evangelho. Dizei-nos, com vossa existência, que
Deus ainda hoje é amor, sempre e para todos.
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25° aniversário do espírito de Assis
É providencial: o VIII Centenário coincide com a celebração do 25°
aniversário do espírito de Assis. A experiência evangélica de Francisco e de
Clara fez com que João Paulo II tivesse escolhido Assis para cumprir aquele
famoso gesto histórico: o encontro dos Responsáveis do mundo para orar pela
paz. Deste gesto nasceu o que depois se tornou conhecido como espírito de
Assis. Nós, Franciscanos e Franciscanas, nascemos em Assis, porém não
podemos considerar o espírito de Assis como uma glória de família, e sim como
um convite urgente para oferecer nossa contribuição e nosso serviço na
construção de um mundo mais pacífico. E vós, Irmãs Pobres, tendes muito a
oferecer, pois a mensagem de Francisco e Clara – como disse João Paulo II em
Assis em 1993–, pode ser sintetizada “em três palavras evangelicamente atuais:
pobreza, paz e oração”. E continua dizendo o Papa: “pobreza e paz… constituem duas exigências da mensagem de Cristo, válida mais que nunca para o
mundo de hoje”. E conclui, por assim dizer, com a Mensagem para a jornada
mundial da paz de 1993: a “pobreza evangélica é a fonte da paz”. Com tudo
isso não se quer encobrir a complexidade dos problemas, nem negar a urgência
de profundas mudanças. Simplesmente se quer dizer que a civilização do amor
não surgirá se não se remete ao centro de nossas cidades e de nossos canteiros a
“catedral”, se não se tem a coragem de ser pobres, para ser livres e entrar no
“claustro” com a Senhora Pobreza, para entender em modo novo “os segredos
das coisas” e sua alegre resposta às necessidades dos homens.
Conclusão
Nós, os Irmãos Menores, e vós, Irmãs Pobres, não podemos nunca
esquecer um fato: “Um único e o mesmo Espírito tirou deste mundo os irmãos e
aquelas senhoras pobrezinhas” (2Cel 204).
Fomos gerados pelo mesmo Espírito que inspirou Francisco e Clara como
viver o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Sim, segundo uma feliz
expressão de João Paulo II em 1982, não é possível “separar estes dois nomes:
Francisco e Clara. Estes dois fenómenos: Francisco e Clara. Estas duas lendas:
Francisco e Clara”. De fato, ambos manifestaram o primitivo ideal franciscano,
na complementaridade entre o ir de Francisco e de seus Irmãos e o estar de
Clara e das Irmãs.
Trata-se, então, de saber conjugar autonomia e reciprocidade. Será isto
que buscaremos fazer no I Congresso Internacional das Presidentas das
Federações da OSC e dos Assistentes nos dias 5 a 12 de fevereiro de 2012.
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Neste momento desejo somente renovar, também em nome de todos os
meus Irmãos, o compromisso solicitado por Francisco de ter sempre diligente
cuidado e especial solicitude por vós, Irmãs Pobres (cf. RC 6, 3-4).
Desejo concluir esta breve Carta para a festa de Santa Clara de 2011,
voltando ao anoitecer do dia 16 de abril do corrente ano e renovando de novo os
mesmos augúrios com os quais concluí minha homilia naquela especial
circunstância: que o VIII Centenário da consagração de Santa Clara e da
fundação da Ordem das Irmãs Pobres seja um momento de graça, para que as
filhas de Santa Clara conheçam e vivam sempre melhor sua vocação e sejam
sinal no mundo de um Deus que é amor; para que os Frades Menores
intensifiquem as relações fraternas com as Irmãs Pobres; para que todos vejam
em Clara um “espelho e um exemplo” de adesão a Cristo, nosso único Senhor e
Salvador.
“Que o Senhor esteja sempre convosco e oxalá estejais vós também
sempre com Ele” (BEC 16).
Roma, 15 de julho de 2011
Festa de São Belaventura, Doutor da Igreja
Fr. José Rodriguez Carballo, ofm
Ministro geral, OFM
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“PERMANECEI NO MEU AMOR” (Jn 15, 9)
QUINTO CENTENÁRIO DA APROVAÇÃO DA REGRA DA ORDEM DA IMACULADA
CONCEIÇÃO, DE SANTA BEATRIZ DA SILVA.
CARTA DE FR. JOSÉ RODRIGUEZ CARBALLO,
MINISTRO GERAL DA ORDEM DOS FRADES MENORES
Paz e Bem
Chegados ao final de este ano jubilar, a nossa alma está possuída por um
sentimento de nostalgia semelhante ao que experimentamos no dia de santa
Beatriz, quando a hora da tarde apaga nos claustros os ecos da festa. Os dias
têm o seu ocaso, mas o amor não tem ocaso. Os jubileus têm o seu fim, mas
permanece o espírito que os justificou.
Nesta hora de nostalgia por um jubileu que termina, quero fixar o olhar
sobre o essencial da vossa vida, o que vem de longe, porque é de sempre e está
chamado a permanecer.
Perseveranças que fazem Igreja
A Igreja é una, e o que se disse dela quando dava os primeiros passos
depois do Pentecostes, repetiu-se sempre, hoje também, quando o Espírito de
Deus a está levando para um mundo novo.
Da primeira comunidade de homens e mulheres que aceitaram a palavra
da pregação e se batizaram, diz-se nos Atos dos Apóstolos: “Perseveravam no
ensino dos apóstolos, na comunhão, na fração do pão e na oração” (At 2, 42).
Isso mesmo se deve poder dizer dos que formam neste tempo último a única
Igreja de Cristo.
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Perseveravam no ensino dos apóstolos
Considerai o inefável de vossa fé. Com palavras pobres aproximamo-nos
no credo à fonte que eternamente “mana e corre, embora seja noite”: “Creio em
Deus, Pai todo-poderoso… Creio em Jesus Cristo, seu único filho… Creio no
Espírito Santo”. Confessamos o indizível de Deus, porque seu silêncio se fez
palavra no mistério de Cristo Jesus. Por isso, se tu, irmã concecionista, queres
saber de Deus, se queres entrar na obscuridade de seu mistério, sentada aos pés
do Senhor, escuta como Maria a sua palavra (cf. CCGG OIC, 40).
O desejo de conhecer o que necessitas para viver, te levará a apegar-te
com força à palavra de quem te ensina a começar. “Maria conservava todas
estas coisas em seu coração” (Lc 2, 51). Faz do teu coração, irmã
concecionista, a casa da Palavra do amado do teu coração.
A tua busca é expressão de teu amor: “No meu leito, durante a noite,
buscava o amor da minha alma; buscava e não o encontrava. Levantar-me-ei e
rondarei pela cidade, pelas ruas e pelas praças, buscarei o amor de minha
alma” (Cant 3, 1-2).
Porque amas, buscas. Porque amas, perseveras em buscar. Buscar é a
condição de todos os crentes. É a tua condição, irmã concecionista. A
perseverança no ensino dos apóstolos é a tua primeira forma de busca na noite,
é a tua primeira forma de “rondar pela cidade” para encontrar o amor da tua
alma.
A palavra do ensinamento apostólico que acolhida e professada te leva a
Cristo, é o vínculo primeiro que te une aos demais para formar com eles o único
corpo de Cristo.
Perseveravam na comunhão
A “comunhão” é a forma específica de reação que a fé estabelece entre os
que crêem em Cristo. A “comunhão” refere-se ao que é comum aos crentes:
uma fé, um batismo, um mediador, um Espírito, um só Deus e Pai, um só
coração, uma só alma. A “comunhão” não é o teu, mas o de Deus em ti: é graça,
é dom, é prenda de amor, é fruto da entrega de Cristo.
Contempla, e verás brotar com força ali donde nós tínhamos posto só
divisão, pecado, violência, morte. Contempla Cristo crucificado. Ele diz: “Pai,
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perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), e ali mesmo, um
criminoso injustiçado acolhe-se a uma graça que não conhece e, antes de entrar
no paraíso que se lhe promete, entra em comunhão de verdade com quem lho
promete. Ali mesmo, um centurião, “ao ver o ocorrido, dava a Deus, dizendo:
«Realmente, este homem era justo»” (Lc 23, 47). Sem o Crucificado não é
possível esta comunhão. Sem aquela entrega não é possível esta reconciliação.
Sem aquele amor não é possível esta graça (cf. CCGG OIC, 95).
Pela graça da “comunhão” se vai realizando um mundo novo, na
comunidade eclesial nascida do lado de Cristo, o que a Palavra encarnada nos
havia revelado acerca da comunhão que é Deus.
Se a perseverança na escuta da Palavra é teu modo de buscar o que amas,
a perseverança na comunhão é o teu modo de abraçá-lo quando o encontrares.
Perseveravam na fração do pão
Dado que a comunhão na qual deves perseverar nasce da Páscoa de
Cristo, só a poderás manter se perseverar na fração do pão, na Eucaristia,
memória da obra da salvação que se consumou no Mistério da paixão, morte e
ressurreição de Cristo Jesus.
No sacramento da Eucaristia partimos o pão que nos une a todos no corpo
de Cristo. Na Eucaristia santificamos o cálice da nossa ação de graças, que nos
une a todos no sangue de Cristo.
A Eucaristia é o sacramento da vida entregada de Jesus de Nazaré, é o
sacramento de seu amor até ao extremo, um amor que, por ser sem medida, faz
um só corpo, de quem éramos não só muitos, mas também divididos (cf. CCGG
OIC, 75).
Este admirável sacramento que chamamos “fracão do pão” ou Eucaristia,
sendo memória da Páscoa de Cristo, é mistério em que, para nos dar vida, está
escondida, a “eterna fonte” que é Deus mesmo:
“Aquela eterna fonte está escondida neste vivo pão que nos dá vida
embora seja noite.
Aqui se está chamando as criaturas, e desta água sacia, mesmo às
escuras, porque é de noite.
Aquela viva fonte que desejo, neste pão de vida eu a vejo, mesmo sendo
noite” (João da Cruz).
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Pela Eucaristia entramos na vida da Trindade Santa, na divina comunhão,
para ser filhos de Deus no Filho único de Deus.
Perseveravam nas orações
Uma vez que tudo é graça – a palavra da pregação, a comunhão fraterna,
a Páscoa do Senhor, e a eucaristia que celebramos em seu memória –, tudo deve
ser humildemente pedido e por tudo temos de dar humildemente graças.
Perseveranças concecionistas
Queridas: Em comum com os demais religiosos, tendes como norma de
vida o seguimento de Cristo. Essa é vossa regra suprema. Mas a família
religiosa que tem a sua origem na experiência carismática de santa Beatriz de
Silva, deve cultivar com amor perseveranças próprias, que são como que seus
sinais de identidade: A contemplação do mistério da Imaculada Conceição da
Bem-aventurada Virgem Maria, e o empenho por imitar e reproduzir as suas
virtudes.
Contempla sempre o que sempre queres honrar
És de Cristo, irmã concecionista; mas quiseste fazer a tua consagração a
Deus por Cristo “em honra da Conceição Imaculada de sua Mãe”. Terás de
conhecer, por tanto, o que queres honrar; e terás de contemplar o que necessitas
conhecer.
Olha tua Mãe com um olhar comprazido de Deus sobre a sua própria
obra; olha-a com o olhar do anjo da anunciação; olha-a no coração da Trindade
Santa, e olha a Trindade Santa no coração de tua Mãe. Olha tua Mãe com os
olhos e o amor de Jesus, olha-a com a fé da Igreja, olha-a com a admiração do
irmão Francisco de Assis: “Salve, Senhora, santa Rainha, santa Mãe de Deus,
Maria virgem feita Igreja” (SVM, 1).
Se consideras o que Maria recebeu na sua Imaculada Conceição, entras
num mistério de plenitude de graça, de formosura, de bênção (cf. CCGG OIC,
48).
Se consideras o amor de onde tudo procede, o amor que todo se dá,
entrarás num abismo de transparente gratuidade.
No mistério da Imaculada Conceição da Virgem Maria contemplas o que,
pela graça, tu começaste a ser na Igreja, e o que, pela graça, a Igreja há-de ser
um dia em plenitude.
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Poderás fazer tuas, irmã concecionista, as palavras do cântico da Virgem
Maria: “A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus
meu Salvador” (Lc 1, 46-47).
Mas, não só deves permanecer na contemplação da grandeza de Deus na
Virgem Maria, na virgem Igreja, na tua vida virginal; terás de contemplar
também, ao mesmo tempo, a pequenez da escrava do Senhor, a debilidade da
Igreja e a tua pequenez de crente.
A fé te ajudará a iluminar, desde a Virgem Maria, o teu mundo e a tua
noite, as tuas inquietações e o teu sofrimento, as tuas alegrias. E a experiência
da tua condição, da tua vida, da tua pequenez, te ajudará a penetrar no mistério
da pequenez de Maria de Nazaré. Imita o que contemplaste. O hábito que
vestes, irmã concecionista, recorda em cada um de seus elementos, a vocação a
que foste chamada, a obra da graça de Deus em ti. O Senhor quis que tua vida
imitasse o mistério da Virgem Imaculada, e chamou-te à pureza da alma e do
corpo, a um desposório de amor com o Rei do céu, a levar em teu coração a
Mãe do Rei, a imitar a sua conduta inocentíssima, a seguir pelo caminho da
humildade que tudo aceita, e da obediência que tudo entrega a seu Senhor. Se
imitas o que contemplas em tua Mãe do céu, a brancura exterior de teu vestido
evocará a formosura da obra de Deus na tua vida.
Mais além das nossas perseveranças: A vida em Deus
Aquele foi um dia de experiência mística. “João estava com dois dos seus
discípulos e, fixando-se em Jesus que passava, disse: «Este é Cordeiro de
Deus». Os dois discípulos ouviram suas palavras e seguiram Jesus. Jesus
voltou-se e, ao ver que o seguiam, perguntou-lhes: «Que buscais?». Eles
responderam-lhe: «Rabi, onde vives?». Ele disse-lhes: «Vinde e vede». Então
foram, viram onde vivia e ficaram com ele aquele dia” (Jn 1, 35-39).
Nós temos de traduzir “onde vives?”, mesmo que o evangelista escrevesse
“onde permaneces?”. Mas não queria, irmãs, que a necessidade de entendermos
melhor quando falamos, nos privasse de penetrarmos na luz do mistério quando
contemplamos. Pois Jesus, que “vive” num lugar, permanece – vive – sempre
em Deus.
Naquele outro dia de revelações assombrosas, o Senhor disse a Filipe:
“Quem me viu, viu o Pai… Não crês que eu estou no Pai e o Pai está em mim?”
(Jn 14, 9-10). Depois disse a Judas, o irmão de Tiago: “O que me ama guardará
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a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele a nossa
morada” (Jn 14, 23). E a todos os discípulos: “Como o Pai me amou, também
eu os amei; permanecei no meu amor” (Jn 15, 9).
Já sabes, irmã, onde deves de permanecer, onde deves de viver: no amor
com que Cristo te amou, amor que ele comparou com o amor do Pai a seu Filho
único. A tua casa é o amor com que Deus te ama.
Conclusão
Encerra-se o ano jubilar da aprovação da Regra da Ordem de a Imaculada
Conceição. Permanece a forma de vida que ficou recolhida e aprovada nas
palavras da Regra. Permanecei no amor.
O Senhor vos abençoe e vos conceda a sua paz.
Roma, 15 de julho de 2011
Festa de São Boaventura,
Fr. José Rodriguez Carballo, ofm
Ministro geral OFM
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