O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA”
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O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA”
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA” DE MARTINS PENA Ana Paula Rocha V. Pereira∗ Resumo: Escritor do século XIX, Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone literário brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico, sendo considerado o fundador da comédia de costumes. Em suas peças percebe-se um olhar atento sobre as contradições de sua época, sobre os vícios e as virtudes dos homens de seu tempo que são retratados de forma deformantes através da acentuação de aspectos bons, pitorescos e engraçados ou de atitudes reprováveis, negativas a serem refutadas por meio da ridicularização. No trabalho que será apresentado refletiremos, então, sobre o gênero cômico em uma das obras de Martins Pena, “O Juiz de Paz da Roça” (1833), a partir dos estudos teóricos do filósofo francês Henri Bergson. Palavras-chave: Martins Pena, gênero cômico, Bergson. A investigação a respeito do riso é desenvolvida por muitos teóricos a partir daquilo que provoca tal ato, isto é, a partir da produção do cômico, produção esta que se manifesta nas mais diversas expressões artísticas. Neste trabalho, direcionaremos nossos estudos para a análise do gênero cômico presente na obra teatral “O Juiz de Paz da Roça” (1833), do comediógrafo brasileiro Luís Carlos Martins Pena fundamentando tal análise nas teorias desenvolvidas por Bergson (2007) a respeito do cômico. Vale ressaltar que este trabalho, “O cômico moralizante em O Juiz de Paz da Roça”, resulta dos estudos que vem sendo realizados no projeto de iniciação científica “O Cômico na literatura brasileira” orientado pela professora Drª. Jacqueline Ramos. Dentro desse projeto pesquisamos, investigamos, levantamos dados sobre os autores e obras cômicas do período Romântico. Em nossa pesquisa identificamos que quatorze escritores do período produziram obras cômicas, autores como: Graduanda do curso de letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS), bolsista CNPq do Programa de Iniciação Científica. ∗ 198 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Araujo Porto Alegre, Bernardo Guimarães, com seus poemas erótico-cômicos como o “elixir do Pajé”, Machado de Assis, Martins Pena, dentre outros. Dado significativo da pesquisa é que grande parte das obras cômicas produzidas no período romântico são peças de teatro. Só Martins Pena, que conta com vinte e oito produções teatrais, produziu vinte e duas peças cômicas, fato que, aliado a importância desse autor no que concerne a implementação do teatro nacional, nos motivou a selecionar três peças suas para analisarmos a função e os procedimentos cômicos nelas presentes. Assim, as obras selecionadas para uma análise mais profunda do aspecto cômico foram “O Juiz de Paz da Roça” de 1833, “O Judas em Sábado de Aleluia” de 1844 e “O Noviço” de 1845. Na analise dessas peças percebemos que elas apresentam um cunho moralizante, aspecto que vai ao encontro dos estudos realizados pelo filosofo francês Henri Bergson. Bergson (1859-1941), em O riso: ensaio sobre a significação da comicidade (2007), reúne três artigos que expõem minuciosamente os mecanismos de produção da comicidade, mecanismos estes que servem ao aperfeiçoamento do homem como ser social devidamente integrado a seu meio. Para este autor, o riso tem uma significação social que cumpre o papel conservador de corrigir as falhas de caráter dos indivíduos que estejam prejudicando o equilíbrio da sociedade. Desse modo, a teoria de Bergson sobre o riso apóia-se na máxima latina: Ridendo castigat mores (rindo corrigem-se os costumes). Em O Riso, Bergson enfatiza que o cômico é um fenômeno exclusivamente humano e que se dirige à inteligência pura. Essa teoria intelectualista pressupõe que um aspecto fundamental do efeito cômico reside no fato de que as emoções são um obstáculo à produção da comicidade. Dessa forma, o riso só é possível a partir de “uma anestesia momentânea do coração” (1987: 4). A partir dessa observação e da função social que o riso apresenta Bergson, desenvolvendo e demonstrando suas idéias, esboça os procedimentos de obtenção do cômico, procedimentos estes que têm como princípio essencial a interferência do mecânico no vivo. Bergson então categoriza os tipos de cômico 199 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 da seguinte maneira: cômico das formas, cômico dos movimentos, cômico de situação, cômico de palavras e cômico de caráter. O cômico das formas consiste em um mecanismo de obtenção do riso a partir da rigidez fisionômica, isto é, a partir da idéia que se tem de algo preso a uma forma. Nesse sentido, toda a vida moral de um indivíduo parece restringirse a certa imobilidade de caracteres do corpo. Assim é que a caricatura, a exageração de traços distintivos das pessoas, representa um efeito cômico. O automatismo, a rigidez, um hábito contraído e mantido torna uma fisionomia engraçada. Mas esse efeito cômico, segundo Bergson, “ganha intensidade quando podemos vincular tais características a uma causa profunda, a certa distração fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples” (1987: 19). Essa distração do sujeito para consigo produz uma imagem de alguém absorvido na materialidade de uma ocupação mecânica, como algo sempre igual, imutável, que não se renova diante da vida. E o riso funciona como um castigo para essa imobilidade, pois o que se pretende é que as pessoas estejam em constante vigilância para com as suas condutas, evitando a ridicularização e o enrijecimento para a vida social. No cômico dos movimentos o risível é extraído das atitudes, dos gestos, dos movimentos reproduzidos de forma repetitiva, como uma simples mecânica. A esse tipo de cômico associa-se um artifício comum da comédia, o qüiproquó. Já no cômico de situação evidencia-se a repetição insistente de determinados acontecimentos; a inversão dos papéis de certos personagens motivada por uma dada situação ou, ainda, a interferência das séries em que uma situação torna-se cômica quando pertence simultaneamente a dois acontecimentos independentes entre si levando-se a diferentes interpretações, isto é, uma mesma situação apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um que seria o sentido real e o outro que seria ocasionado pelo mal-entendido. Quanto à linguagem, Bergson enfatiza que a maioria dos efeitos cômicos são produzidos por meio dessa particularidade da espécie humana. Em essência, o cômico de palavras é obtido a partir dos processos de inversão – 200 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 verificado com freqüência nos chistes, em que se joga com o sentido da frase a partir da inversão de certa idéia, como no exemplo: “por que o senhor joga a sujeira do seu cachimbo no meu terraço? (...) Por que o senhor põe o seu terraço debaixo do meu cachimbo?” (BERGSON, 1987: 89) –; de interferência, cujo um dos meios é o trocadilho, e de transposição inseridos à linguagem. A transposição apresenta caráter mais profundo que os outros dois processos. Ela é obtida, segundo Bergson, transpondo-se “para outro tom a expressão natural de uma idéia” (1987: 92). O último mecanismo apresentado por Henri Bergson é a comicidade de caráter considerada pelo autor como a parte mais importante de suas análises. A essência desse procedimento cômico está na não integração da personagem à sociedade, no seu desvio comportamental, na sua inflexibilidade diante da vida cabendo à comédia papel fundamental no reajuste social dos indivíduos. Para Bergson, o riso não é um prazer desinteressado. A ele subjaz a intenção de humilhar, de corrigir comportamentos desviados. O riso, assim, tem uma função moralizadora que age sobre os comportamentos viciosos da sociedade. Logo, para este teórico, o riso funciona como um mecanismo de repressão que cumpre a tarefa de reajustar os indivíduos à sociedade. O cômico, então, é definido como uma manifestação negativa que o riso tem por tarefa corrigir e essa função coercitiva atribuída ao riso será perquirida, neste trabalho, a partir da análise da primeira peça do teatrólogo Martins Pena, O Juiz de Paz da Roça. Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone literário brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico. Ao lado de nomes como João Caetano – grande ator dramático e empresário teatral – e Gonçalves de Magalhães, Martins Pena esforça-se, segundo Afrânio Coutinho, “pela criação de fato do teatro brasileiro” (2004: 59) a partir da elaboração de novos textos caracterizados por temas locais, uma vez que as peças teatrais criadas nesse período no Brasil calcavam-se em traduções ou adaptações de composições estrangeiras. 201 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 No que concerne ao desenvolvimento do teatro no Brasil, vale ressaltar que esse gênero nasceu, de acordo com Décio de Almeida Prado, “à sombra da religião católica” (1999: 19), com o empenho dos jesuítas, no século XVI, em catequizar os índios. O teatro nesse período tinha, portanto, um caráter pedagógico sendo o padre José de Anchieta o nome de maior destaque dessa época. No século XVII verifica-se o declínio do teatro empreendido pelos jesuítas e sua realização passa a depender de ocasiões festivas – religiosas ou cívicas – para serem realizadas. Mas, no século seguinte, a situação do teatro começa a melhorar. Em 1705 são impressos os primeiros textos teatrais – duas peças redigidas em espanhol por Manuel Botelho de Oliveira –, e na segunda metade do século dezoito as peças de teatro passam a ser representadas com maior freqüência. A Ópera italiana surge como novo gênero, novidade que vinha de Portugal. Entre 1760 e 1795 na Bahia, no Rio de Janeiro, em Recife, São Paulo e Porto Alegre são construídos teatros que serão conhecidos como Casa da Ópera. Com a vinda da família real para o Brasil, no início do século dezenove, a cultura do teatro se fortalece. Surgem companhias teatrais, sendo a primeira, realmente brasileira, dirigida por João Caetano que “levou aos palcos a primeira tragédia e a primeira comédia nacional: Antonio José ou o Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, e O Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena” (PRADO, 1999: 40). Integradas ao Romantismo, as comédias de costumes de Martins Pena eram bem recebidas pelo público, fato que contribui para a consolidação do teatro. O Romantismo, que cronologicamente inicia-se em 1836, é marcado pela liberdade criadora e individual do artista. Ligado ao movimento político da época, a Independência do Brasil, esse gênero literário se revestiu de características próprias numa necessidade de construir uma literatura plenamente nacional, uma literatura que expressasse os anseios de liberdade e identidade da nova nação. Esse período, segundo Roncari, representa “o período mais importante de tomada de consciência da nossa particularidade, ou seja, de que não podíamos mais continuar considerando-nos europeus ou portugueses, tal qual faziam os colonos no tempo do domínio português” (1995: 202 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 278). Nessa perspectiva, as comédias de Martins Pena inserem-se no desejo de renovação dos temas reproduzidos nos palcos. Assim, o empenho de Pena em renovar o teatro brasileiro vai além da mera reprodução de uma imagem nacional com contornos ufanistas que se vinha desenvolvendo na literatura. De acordo com Bosi, os assuntos tratados por Pena em suas peças “nos dá um quadro mais vivo e corrente do que todos os romances de Macedo” (1994: 149), autor ficcional romântico de “A Moreninha” (1844). O que Bosi nos diz é que as obras de Martins Pena são marcadas por uma realidade objetiva embasada em fatos sociais vigentes sem os exageros das idealizações românticas da época. E essa realidade objetiva será apresentada por Martins Pena pelo viés da comicidade. De acordo com Décio de Almeida Prado, o teatro de Pena “revela um pendor quase jornalístico pelos fatos do dia, assinalando em chave cômica o que ia sucedendo de novo na atividade brasileira cotidiana” (1999: 57). Destarte, por meio do cômico, Martins Pena expõe aspectos da realidade carioca e suas peças adquirem uma perspectiva crítica e generalizante levando à reflexão certas condutas humanas. Em Pena, o riso, na medida em que mostra as falhas comportamentais e as ridiculariza, não só desvela um caráter negativo como também cobra a reabilitação desse caráter corrompido, ou seja, o reajuste do indivíduo à sociedade. Observemos como isso se dá na peça “O Juiz de Paz da Roça”. “O Juiz de Paz da Roça” é uma comédia em um ato cujo enredo é construído a partir de um dos mecanismos mais simples utilizados no teatro, o qüiproquó, situação cômica proveniente de equívocos, confusões. Dividindo-se essa peça em dois núcleos, temos o núcleo integrado pela família de Manuel João e o núcleo composto, principalmente, pelo Juiz de Paz e, a interrelação desses dois centros, produzirá um expediente típico da dramaturgia popular, a surpresa, provocado por uma conjuntura de acontecimentos desencontrados, ou seja, os qüiproquós. E é através desse caminho, do qüiproquó à surpresa, que o enredo dessa peça se estruturará. 203 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 Vejamos como isso acontece analisando o enredo da peça: José da Fonseca, noivo de Aninha, vai à roça fugido da convocação militar, ele não queria exercer suas funções de cidadão na Revolução Farroupilha. Coincidentemente é Manuel João, pai de Aninha, o encarregado, pelo Juiz de Paz, de conduzir o recruta ao serviço militar. Manuel João não sabia do namoro da filha, mas, devido a coincidência ocorrida logo tomara conhecimento do fato. Na trajetória desse enredo, Martins Pena abordará com humor, e de forma simples, as peculiaridades da gente da roça e os desmandos de um Juiz de Paz. E, por meio da representação da linguagem cotidiana dos indivíduos representados na peça, do comportamento dos personagens, seus modos de sentir e agir, Pena revelará certos aspectos da realidade da sociedade de meados do século XIX, problematizando assuntos reais vigentes como a aplicação da justiça nas províncias remotas do Segundo Império por meio dos abusos de autoridade; a escravidão; o recrutamento obrigatório para atuar na Revolução Farroupilha; o casamento arranjado; a idealização da capital que pretendia se equiparar à Europa, enfim, toda uma série de aspectos sociais sérios abordados pelo viés da comicidade. Em suma “O Juiz de Paz da Roça” é uma peça cômica cujas cenas giram em torno de uma família interiorana – a família de Manuel João – e seu universo de valores e, do cotidiano da figura do Juiz de Paz, pelo qual poderemos verificar o rebaixamento que se quer imprimir a este homem, pois o “nobre” papel do juiz é reduzido à resolução de picuinhas cotidianas e esdrúxulos protestos que lhes são apresentados pelos sitiantes. Para a obtenção do efeito cômico desejado, Martins Pena utiliza-se de recursos que são abordados por Bergson em seu estudo sobre a comicidade. Um desses recursos é a comicidade de palavras, um procedimento cômico que proporciona boas gargalhadas a partir do jogo ambíguo de alguns vocábulos, como podemos verificar na cena XI em que um sitiante apresenta sua demanda ao juiz argumentando da seguinte forma: Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua 204 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava Maria tem um filho que é meu, peço a vossa senhoria mande o dito meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher (PENA, 2010: 12). Além do trocadilho, jogo de palavras apoiado no duplo sentido, outro mecanismo de obtenção do riso presente em “O Juiz de Paz da Roça” é a comicidade das formas, que em essência resulta da imobilidade fisionômica. O riso, então, é obtido a partir da idéia que se tem de algo rígido, congelado, preso a uma forma, como o rosto do palhaço preso a traços inconfundíveis que o caricaturizam. Assim, a caricatura participa desse tipo de comicidade que resulta da reprodução deformada de algo ou da acentuação de aspectos típicos de determinada pessoa ou coisa. E, os tipos humanos criados por Martins Pena são geralmente caricaturizados, são personagens que na sua particularidade representam um tipo generalizado. Na peça teatral em questão, podemos verificar tais personagens. O personagem Manuel João representa o típico homem da roça e é facilmente identificado como esse tipo, na cena IV, a partir da descrição acentuada de suas vestimentas – “com uma enxada no ombro, vestido de calça de ganga azul, com uma das pernas arregaçadas, japona de baeta azul e descalço”. Outro traço marcante que representa certa caricaturização é a não identificação do Juiz de Paz por um nome próprio, como se a partir dessa supressão o autor enfocasse o desvio de comportamento dos juízes, e não de um juiz especificamente, que atuam de forma arbitrária. Essa idéia é reforçada com a rubrica que detalha os trajes do Juiz de Paz – “Entra o Juiz de Paz vestido de calça branca, rodaque de riscado, chinelas verdes e sem gravata”. Aqui parece que, descrevendo-se os trajes, procura-se colocar em relevo a moral. Assim, podemos dizer que tal descrição revela a caricaturização do magistrado que faz pouco caso da sua profissão – essa asserção será corroborada com o transcorrer da peça em que o juiz revelará suas atitudes ilícitas – e conseqüentemente dos requerentes que necessitam da sua intervenção jurídica. O juiz, então, parece preencher uma moldura pronta, desvelando um caráter contrastivo entre a 205 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 forma que se apresenta e o comportamento que deveria apresentar. Quanto a isso, Bergson nos diz que “é cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é o moral” (2007: 38). Na rubrica acima não temos uma descrição do físico, porém, em se tratando de um Juiz de Paz percebemos que as vestimentas estão intrinsecamente associadas à moral de um representante de uma instituição pública, donde pressupõe, como já foi dito, a intenção do autor da peça em revelar o descaso do Juiz para com a sua profissão. Não temos então um ridículo do físico, mas um ridículo do traje atrelado ao caráter profissional. No decorrer do enredo a imagem intolerante e corrupta do Juiz será corroborada, como na cena em que um requerente questiona a postura do juiz dizendo assim: “Vossa senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda. E o juiz retruca: “A Constituição!... Está bem!... Eu, o juiz de Paz, hei por bem derrogar a Constituição! Senhor Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem”. Em outra cena temos o juiz com três galinhas nas mãos dizendo ao escrivão que ao menos com a visita de dona Josefa Joaquina, uma de suas requerentes, lucrou donde verificamos certa postura corrupta do juiz que aceita presentinhos de seus requerentes, o que provavelmente deve influenciá-lo em suas decisões judiciais. E assim, por meio da caricaturização e da acentuação de atitudes ilícitas, Martins Pena lança uma crítica a esse desvio comportamental, moralmente inadmissível, para a construção de uma sociedade justa, sendo sua ridicularização, como diria Bergson, o meio pelo qual se pode castigar tal desvio. Esses desvios comportamentais, que o filósofo francês Henri Bergson coloca como vícios, representam um automatismo fácil dos hábitos adquiridos levando o corpo, o espírito e o caráter a uma rigidez social, rigidez que direciona os indivíduos a atuarem de forma mecanizada, como coisas fadadas a executarem funções, ações sempre repetidas estagnando, assim, o aperfeiçoamento dos indivíduos e, conseqüentemente, da sociedade. Mas, através do riso, que tem como função desvelar os vícios para corrigi-los, os indivíduos colocam-se vigilantes quanto a sua postura na vida e na sociedade, 206 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 postura que deve sempre estar voltada para uma tensão e uma elasticidade constantes, premissa que também é colocada em relevo por Bergson na sua análise da comicidade dos movimentos. Na comicidade dos movimentos, o risível é extraído dos movimentos mecânicos com caráter repetitivo a partir de artifícios usuais da comédia como “a repetição periódica de uma palavra ou de uma cena, a inversão simétrica dos papéis, o desenvolvimento geométrico dos qüiproquós” (2007: 26-7). Em “O Juiz de Paz da Roça” nas cenas mais cômicas, as quais giram em torno do personagem que dá nome ao título da peça, podemos observar o artifício da repetição de cena. A partir da cena IX, dá-se início a uma seqüência de movimentos que parecem repetitivos. Em casa do Juiz de Paz pessoas entram e saem com o intuito de resolverem seus problemas. Na cena, XI Martins Pena também explora esse mecanismo fonte fácil de riso – Senhor Tomás e senhor Sampaio, em audiência com o Juiz, disputando a guarda de um leitão agarram ambos no animal puxando-o cada um para o seu lado em movimentos mecânicos de vai-e-vem remetendo-nos à imagem de um boneco de mola que se distende e se contrai em repetições contínuas como uma coisa mecanizada, mecanização que, representando um desvio de comportamento, – que cena mais ridícula a disputa por um porco na peça em questão – deve ser combatida. Todos esses mecanismos utilizados por Martins Pena dão o tom da comédia a sua primeira peça teatral. Contudo, esses procedimentos atrelados a outro tipo de comicidade, a comicidade de caráter, veicula uma comédia satírica na qual se explicita certos desvios comportamentais a que Pena quer chamar a atenção. Em “O Juiz de Paz da Roça” nos é apresentado um Juiz mal trajado, e que não entende certos vocábulos – “circunlóquios... Que nome em breve! O que quererá ele dizer?” (cena IX) –, um Juiz completamente despreparado para o exercício de sua profissão, pois nem se quer sabe despachar – “Quero-me aconselhar-me com um letrado para saber como hei de despachar alguns requerimentos que cá tenho” (cena XXI). Também podemos depreender dessa peça uma crítica às superficialidades orientadas para o universo europeu a que a população brasileira se sujeitava, inclusive Aninha, menina do interior, que 207 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 pede ao pai sapatos franceses, revelando a abrangência da influência européia na vida da sociedade do século XIX. Na cena V, Manuel João e sua esposa cogitam em providenciar o casamento da filha, fazendo-se menção ao casamento arranjado, ao casamento como negócio. Na cena II, a partir da rubrica que descreve os trajes de José, namorado de Aninha, “com calça e jaqueta branca”, e do rumo que tal personagem dá ao dinheiro da venda do bananal herdado do pai – gastou todo o dinheiro na corte –, depreende-se a imagem do bon vivant. A composição desses personagens e os mecanismos cômicos utilizados por Pena atribuem a sua obra uma função social – restaurar a moralidade da sociedade carioca. Assim, o que se pretende é que um Juiz, no uso de suas atribuições, não atue de forma arbitrária; que se combata o apego às ostentações das superficialidades do universo europeu; que o casamento não seja uma transação comercial; que o cidadão seja um indivíduo honesto e trabalhador. Enfim, que se cultivem a ética, a moral, os bons costumes da sociedade. E é dessa forma que, desvelando-se os comportamentos desviados, o cômico, presente em “O Juiz de Paz da Roça”, vai ao encontro dos pressupostos teóricos de Bergson, autor, segundo o qual, a função do riso é corrigir desvios de condutas, é anular a rigidez diante da vida cabendo, pois, à comédia, papel fundamental no reajuste social dos indivíduos. Portanto, explorando os vícios e as irregularidades comportamentais do ser humano, Martins Pena atribui à peça aqui analisada uma dimensão social que visa, por meio do cômico, a correção dos costumes. Assim, a partir da análise da obra “O Juiz de Paz da Roça”, pudemos constatar que os aspectos sociais nelas presentes são retratados de uma forma crítica, como se Martins Pena propusesse a reestruturação de uma sociedade corrompida, o que atribui a essa peça um cunho moralista, uma função coercitiva aplicada aos comportamentos humanos que prejudicam a manutenção de uma sociedade equilibrada e essa moralização social, que Martins Pena procura resgatar por meio de suas obras cômicas, se encaixa na 208 II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010 idéia central do teórico Henri Bergson a respeito do cômico: corrigir os desvios sociais. Referências Bibliográficas: BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução Ivone Castilho Benedetti. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Tópicos). BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1994. COUTINHO, Afrânio. 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