A vida é um jogo para quem tem ancas

Transcrição

A vida é um jogo para quem tem ancas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
“A vida é um jogo para quem tem ancas”: uma arqueologia documental sobre
mulheres escravas domésticas em Pelotas/RS no século XIX
Dissertação
Marta Bonow Rodrigues
Pelotas
2015
Marta Bonow Rodrigues
“A vida é um jogo para quem tem ancas”: uma arqueologia documental sobre
mulheres escravas domésticas em Pelotas/RS no século XIX
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação
em
Antropologia
da
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Antropologia – Àrea de
Concentração em Arqueologia.
Orientador: Prof. Dr. Lúcio Menezes Ferreira
Coorientadora: Profª Drª Flávia Maria Silva Rieth
Pelotas
2015
Universidade Federal de Pelotas / Sistema de Bibliotecas
Catalogação na Publicação
R696v Rodrigues, Marta Bonow
A vida é um jogo para quem tem ancas : uma arqueologia
documental sobre mulheres escravas domésticas em
Pelotas/RS no século XIX / Marta Bonow Rodrigues ; Lucio
Menezes Ferreira, orientador ; Flavia Maria Silva Rieth,
coorientadora. — Pelotas, 2015.
206 f. : il.
Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, 2015.
1. Mulheres-escravas. 2. Trabalho-doméstico. 3. Afetividade.
4. Arqueologia-da-escravidão. 5. Arqueologia- documental.
I. Ferreira, Lucio Menezes, orient. II. Rieth, Flavia Maria Silva,
coorient. III. Título.
CDD : 930.1
Elaborada por Simone Godinho Maisonave CRB: 10/1733
Banca examinadora:
___________________________________
Prof. Dr. Lúcio Menezes Ferreira (Orientador)
___________________________________
Drª Louise Prado Alfonso
___________________________________
Profª Drª Rejane Barreto Jardim
___________________________________
Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira
AGRADECIMENTOS
A Lúcio Menezes Ferreira e a Flávia Maria Silva Rieth, orientador e
coorientadora, pelos tempos disponibilizados, compreensões em momentos difíceis
e pelos conhecimentos transmitidos. Para além da relação professor/professora e
aluna, são meu/minha amigo/a particulares. Duas pessoas por quem tenho grande
admiração e com quem espero conviver por muito tempo, dentro e fora da
academia.
À banca de minha Qualificação, formada por Loredana Ribeiro e Pedro
Sanches, pelas indicações de leituras e do caminho a ser percorrido até a versão
final da dissertação.
A Lori Altmann e, novamente, a Flávia Rieth e Loredana Ribeiro, ministrantes
da disciplina de Estudos antropológicos de gênero teoria feminista (optativa
graduação) e Teorias feministas e gênero (optativa pós-graduação), em que fiz meu
estágio obrigatório. Meu agradecimento especial a essas três mulheres admiráveis
que trouxeram discussões imprescindíveis para meu trabalho durante o curso dessa
disciplina, além de mostrarem elementos fundamentais sobre didática na sala de
aula.
Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação e à querida
secretária do curso, Thaíse Schaun pela dedicação dispensada diariamente.
A todos os amigos e colegas com quem tenho o prazer de conviver.
Especialmente a Liza Bilhalva Martins, Vanessa Ercolani Duarte, Sandra Borges,
Marília Floôr Kosby pelos compartilhamentos cotidianos que ultrapassam as salas
do ICH e pela ajuda de sempre.
Aos amigos Aluísio Alves e Lúcio Xavier e à amiga Tui Villaça, que me
ajudaram na elaboração de mapas, planilhas de dados e correções de textos.
A André Loureiro e, especialmente, Estefânia Jaékel da Rosa, colegas e
amigo/a que entraram na minha vida e me ajudaram muito quando precisei.
À professora e amiga Louise Prado Alfonso que, em um momento pontual
para mim, percebeu o potencial de meu trabalho, mesmo quando eu mesma não
estava convencida disso. Agradeço pela disponibilidade de ouvir minhas aflições,
incentivar-me e aconselhar-me, e pelo convite para participar das oficinas junto ao
Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas, o que ampliou meu
universo de pesquisa.
A todas as trabalhadoras domésticas de Pelotas, sindicalizadas ou não,
principalmente à Sra. Ernestina Pereira, atual presidente do Sindicato.
À Sra. Ândula Beatriz, a Beta, que me fez refletir sobre as amas de leite
durante prazerosos cafés da tarde em São Sepé.
Aos “sepeenses” que acompanharam parte desse episódio da minha vida, em
especial a Paulo Rosa, por ter sido, sempre, grande incentivador.
Ao amigo Adão Monquelat e à colega de “humanas”, Ana Paula Costa, pelas
informações e dados compartilhados.
Aos funcionários da Bibliotheca Pública Pelotense, Luciana Nebel e Maicon
Rodrigues, com quem compartilhei muitos dias de trabalho na busca de dados nos
jornais.
Ao amigo Alexandre Sá Britto, com quem dividi praticamente todos os meus
horários de almoço durante o trabalho de coleta de dados na Bibliotheca.
Finalmente, às famílias pelotense e vitoriense, principalmente à prima
Claudia, também sempre incentivadora; e um agradecimento especialíssimo às
minhas queridíssimas e tolerantes irmãs, Cristina e Emília, amigas e parceiras
sempre! Obrigada por tudo!
À CAPES, pela bolsa de pesquisa concedida.
Eu sou o líquido
Tenho poder do inexato
De tudo que passei
não guardei escudos
Sou mais um velho rio
pretendendo a paz
entre duas margens
Rebente-se quem quiser olhar para frente
E fizer dos seus dias juventude
Eu espero sem ânsias
Estou desperto e já não sonho há séculos
A vida é um jogo para quem tem ancas.
MEL – Marília Floôr Kosby, Os Baobás do Fim
do Mundo – trechos líricos de uma etnografia
com religiões de matriz africana no sul do Rio
Grande do Sul
RESUMO
RODRIGUES, Marta Bonow. “A vida é um jogo para quem tem ancas”: uma
arqueologia documental de mulheres escravas domésticas em Pelotas/RS no século
XIX. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia - Instituto de Ciências Humanas / Universidade Federal de Pelotas.
Pelotas, junho de 2015.
Esta dissertação de mestrado é o resultado de uma pesquisa arqueológica sobre as
mulheres escravas domésticas em Pelotas no século XIX a partir das descrições
dessas mulheres nos anúncios de jornais. A pesquisa objetivou analisar os anúncios
de compra, venda, aluguel, ofertas e procuras de trabalhadoras domésticas
escravizadas e seus cruzamentos com os anúncios de mulheres livres e libertas e
homens escravos que se mantinham nas mesmas atividades. Busca-se, assim,
entender as relações de classe, gênero e “cor” que permeavam o cotidiano dessas
mulheres escravas, com especial atenção às criadas internas ligadas aos cuidados
com as crianças. Partindo das descrições físicas, morais e da especialização do
trabalho doméstico das escravas, buscamos compreender para além das relações
de trabalho, identificando possíveis relações de afetividade. Para tanto, foram
utilizados os conceitos da Arqueologia Documental ou Etnografia Histórica.
Palavras-chave: Mulheres escravas – trabalho doméstico – afetividade –
arqueologia da escravidão – arqueologia documental
ABSTRACT
RODRIGUES, Marta Bonow. “A vida é um jogo para quem tem ancas”: a
documentary archaeology about domestic women slaves in Pelotas/RS at the XIX
century. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia - Instituto de Ciências Humanas / Universidade Federal de Pelotas.
Pelotas, junho de 2015.
This dissertation is the result of an archaeological research about domestic women
slaves in Pelotas/RS at the XIX century form the description of these women at the
newspaper’s advertisement. The research aimed to analyze the advertisements of
purchase, sale, rent, offer and search of women domestic slaves and the crosschecking with the free or liberate women and the men slaves that maintained the
same work. Therefore the dissertation intent to understand the relationship of class,
gender and “colour” that permeated the daily life of these female slaves, with special
attention to the in-house maids that were occupied with the children care. Beginning
with the description of body type, moral and of the domestic labor specialization of
the women slaves, we look to understand beyond the work relationship, identifying
possible affection relationship. For this were used concepts of Documentary
Archaeology or Historical Ethnography.
Key words: women slaves – domestic labor – affection – slavery archaeology –
documentary archaeology
LISTA DE IMAGENS
FIGURA 1 – Anúncios de escravos/as em meio a mercadorias variadas..................27
FIGURA 2 – Ândula Beatriz dos Santos.....................................................................32
FIGURA 3 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul em 1809.......70
FIGURA 4 – Situação das Sesmarias de Pelotas e do Monte Bonito, de algumas
estâncias e dos principais cursos d’água da região...................................................77
FIGURA 5 – Distribuição das charqueadas e primeiro loteamento............................79
FIGURA 6 – Mapa da malha urbana de Pelotas em 1835.........................................81
FIGURA 7 – Anúncio de aluguel de uma ama seca com especificação de idade.....97
FIGURA 8 – Anúncio e venda de um animal, uma cabra.........................................102
FIGURA 9 – Escravos de ganho compravam mais facilmente sua alforria..............108
FIGURA 10 – Quitandeiras em rua do Rio de Janeiro, 1835...................................119
FIGURA 11 – Anúncio de ama de leite de “boa conduta”........................................129
FIGURA 12 – Anúncio de ama seca “sem vícios”....................................................130
FIGURA 13 – Mapa de localização dos endereços dos comerciantes....................132
FIGURA 14 – Lavadeiras às margens do Arroio Santa Bárbara/Pelotas - Início do
século XX.................................................................................................................133
FIGURA 15 – Percentual de homens e mulheres anunciadas dentro das condições
de escravos/as, escravos/as ou livres e sem informação........................................134
FIGURA 16 - Profissões gerais dos homens nos anúncios de jornais.....................136
FIGURA 17 – Condição das mulheres para o trabalho doméstico relacionado à
escravidão nos anúncios de jornais pelotenses.......................................................137
FIGURA 18 – Gráfico com os percentuais totais de escravas, escravas ou livres,
livres e sem informação............................................................................................139
FIGURA 19 – Mulheres trabalhadoras domésticas por categoria de condição social
escrava, escrava ou livre e sem informação e suas especializações......................141
FIGURA 20 – Distribuição das atividades domésticas dos anúncios de mulheres
especificamente livres..............................................................................................143
FIGURA 21 – Anúncio de ama de leite “carinhosa” e “sadia”..................................148
FIGURA 22 – Anúncio de ama de leite com exigência: “sem cria”..........................149
FIGURA 23 – Anúncio de ama de leite de “bom comportamento”...........................154
FIGURA 24 – Anúncio de escrava de “conduta afiançada”.....................................154
FIGURA 25 – Anúncio de escrava “carinhosa” para “andar com uma criança”.......160
FIGURA 26 – Negra com uma criança branca nas costas, Bahia, 1870.................163
FIGURA 27 – Logomarca do Projeto Sindidomésticas / GEEUR / MUARAN..........172
FIGURA 28 – 1ª Oficina: Trabalhadoras domésticas e Oficineiras..........................173
FIGURA 29 – Algumas trabalhadoras domésticas e sua luta..................................173
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 – População escravizada em Pelotas na primeira metade do século
XIX..............................................................................................................................91
TABELA 2 – Atividades dos escravos de propriedade dos charqueadores
pelotenses................................................................................................................103
TABELA 3 – Trabalho doméstico das mulheres e dos homens conforme os anúncios
nos jornais................................................................................................................134
GLOSSÁRIO
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
BBP – Bibliotheca Pública Pelotense
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
FURG – Fundação Universidade de Rio Grande
GEEUR – Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos
MUARAN – Museu de Arqueologia e Antropologia
PEC – Proposta de Emenda à Constituição
UFPEL – Universidade Federal de Pelotas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................16
Parte I – O percurso até o objeto de pesquisa......................................................16
Parte II – Da metodologia - A análise das fontes escritas....................................22
Parte III – As trabalhadoras domésticas na atualidade: a experiência com o
Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas e a trajetória de
vida de uma ama de leite.........................................................................................30
CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA DA ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS: A
CONSTITUIÇÃO DA ÁREA E OS TEMAS ABORDADOS.......................................33
1.1 – A constituição da Arqueologia da Escravidão.............................................33
1.2 – A Arqueologia da Escravidão no Caribe.......................................................41
1.3 – A Arqueologia da Escravidão na América do Sul........................................47
1.3.1 – A Arqueologia da Escravidão no Brasil...........................................50
1.3.2 – A cidade de Pelotas como foco de pesquisas em Arqueologia da
escravidão......................................................................................................60
1.4 – As mulheres escravas nas pesquisas arqueológicas.................................62
CAPÍTULO II – A ESCRAVIDÃO NO SUL DO BRASIL...........................................68
2.1 – Breve apanhado sobre os estudos da escravidão no RS...........................68
2.2 - Escravos africanos em território rio-grandense...........................................73
2.3 – A indústria saladeril na formação da cidade de Pelotas.............................76
2.3.1 – A ocupação colonial e o desenvolvimento da região....................76
2.3.2 – A cidade se configura e se expande................................................80
2.4 – Apontamentos sobre as práticas cotidianas dos cativos na sociedade
oitocentista do Rio Grande do Sul e de Pelotas....................................................83
2.4.1 – A resistência ao sistema escravista................................................83
2.4.2 – A possibilidade da formação da família escrava............................88
2.5 – Os trabalhadores escravizados em Pelotas: onde e como eram
comercializados, quem eram e quais suas especializações laborais.................89
2.5.1 – A comercialização dos cativos.........................................................89
2.5.2 – Quantidade de mulheres e homens escravizados.........................91
2.5.3 – Idade dos cativos...............................................................................95
2.5.4 – Origem dos escravos........................................................................99
2.5.5 – As especializações laborais da camada escravizada..................102
CAPÍTULO III – TRABALHO DOMÉSTICO, ESCRAVIDÃO E RELAÇÕES DE
GÊNERO, CLASSE E COR A PARTIR DE UMA LEITURA DOS JORNAIS
PELOTENSES DO SÉCULO XIX............................................................................110
3.1 – Dos primórdios dos estudos de gênero à atualidade: discussões sobre
mulher e gênero......................................................................................................110
3.1.1 – Breve histórico da Arqueologia de Gênero...................................116
3.1.2 – Mulheres e trabalho doméstico: da “domesticidade” à questão da
mulher negra................................................................................................117
3.2 – As escravas nos anúncios de jornais pelotenses do século XIX.............121
3.2.1 – Mulheres e escravas: da África ao Brasil......................................122
3.2.2 - Os anúncios de jornais: escravidão, mulheres e trabalho
doméstico.....................................................................................................127
3.2.2.1 – A ocupação do trabalho doméstico por homens e
mulheres nos anúncios dos jornais...........................................................130
3.2.2.2 - A idade das (os) escravas (os) nos anúncios e suas
especializações domésticas.......................................................................144
3.2.2.3 – As qualificações das mulheres escravas........................146
CAPÍTULO IV – TRABALHO DOMÉSTICO E AFETOS: ENTRE O PASSADO
ESCRAVISTA E O PRESENTE...............................................................................150
4.1 – Trabalho doméstico e afeto: sobre as criadas e as amas de leite na
escravidão e seus reflexos na atualidade............................................................150
4.1.1 – O trabalho doméstico no Brasil e as leis trabalhistas.................150
4.1.1.1 – As criadas e as amas de leite: os anúncios de escravas e
os regulamentos de postura............................................................152
4.1.2. – Trabalho doméstico e as relações de cuidado e afeto...............155
4.1.2.1 - As amas de leite: um caso especial..................................162
4.2 – Entre o passado e o presente: a experiência junto ao Sindicato das (os)
Trabalhadoras (es) Domésticas (os) de Pelotas..................................................167
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................174
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................176
ANEXOS..................................................................................................................193
16
INTRODUÇÃO
Parte I – O percurso até o objeto de pesquisa
Posso relatar que meu interesse sobre o tema “escravidão” – e aqui vale
lembrar que o foco incide sobre a escravidão de africanos e seus descendentes nas
Américas – começou quando trabalhei, ainda que por um curto período, com a Profª
Maria Luíza Queiroz, entre os anos 1994 e 1995, no curso de Bacharelado em
História na Fundação Universidade de Rio Grande (FURG). Uma das tarefas junto
ao trabalho desenvolvido por essa professora era coletar os dados de batismos de
escravos na cidade de Rio Grande dos séculos XVIII e XIX. Assim ocorreu meu
primeiro contato com a área. Em 2010, no momento em que ingressei no
Bacharelado em Antropologia – Linha de Formação em Arqueologia – deparei-me
com a pesquisa do professor Lúcio Menezes Ferreira sobre Arqueologia da
Escravidão.
A Arqueologia da Escravidão é um tema de abordagem dentro da Arqueologia
Histórica que se institucionalizou em diversos países após a década de 1960,
quando os primeiros estudos sobre africanos e seus descendentes em solo
americano foram realizados. Abarca temas diversos como entender a diáspora
africana, as relações sociais que permeiam os sistemas escravistas americanos:
culturais, identitárias, familiares, espaciais/habitacionais, religiosas/rituais, laborais,
comerciais, alimentares, medicinais, práticas de resistência, e de relações de gênero
(SINGLETON, 1995, 2009; POSNANSKY, 1984, 1999; SAMFORD, 1996; CORZO,
2005; SILLIMAN, 2006; SHARPE, 2003).
Atualmente, o Brasil ainda conta com poucas produções dentro dessa linha
de pesquisa quando comparadas aos estudos nessa mesma área nos Estados
Unidos e região do Caribe e mesmo comparadas à produção historiográfica
brasileira sobre o tema (FERREIRA, 2009a). Ainda que em menor escala, trabalhos
arqueológicos relacionados à escravidão africana no Brasil e em outros países da
América Latina, como Argentina, têm sido realizados com foco na investigação
multidisciplinar, para tentar entender as diversas faces do sistema escravista, tanto
no âmbito rural (agricultura e pecuária), como no âmbito urbano, as relações sociais
dentro desse sistema, as práticas culturais e a resistência à escravidão em suas
mais variadas formas. (SCHÁVELZON, 2003; FUNARI e CARVALHO, 2005;
17
AGOSTINI, 2008, 2009; SYMANSKY, 2007; SYMANSKI e SOUZA, 2007; SOUZA,
2007; FERREIRA, 2009a; LARA et al., 2012; ROSA, 2012; ROCHA, 2014).
Foi, pois, com a leitura do projeto O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão
na Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780 – 1888), coordenado pelo
professor Lúcio Menezes Ferreira, que ingressei para o grupo de estudos sobre
escravidão, proposto e orientado pelo mesmo professor. Meu interesse em torno do
tema aumentou. Um dos primeiros objetivos deste projeto era buscar documentação
ligada a essa temática em Pelotas e região para compor um banco de dados. Esses
dados estão sendo buscados em Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, em arquivos
históricos, públicos ou particulares e englobam documentos oficiais ou não, como
inventários post-mortem de proprietários de escravos, recibos de compra e venda e,
quando possível, de aluguel de escravos, leis municipais ou de outros âmbitos,
cartas de alforria ou manumissões, atas da câmara de vereadores, anúncios de
jornais, entre outros.
Os diários dos viajantes europeus que estiveram no Rio Grande do Sul ao
longo do século XIX também estão sendo analisados e suas informações estão
sendo categorizadas e incluídas no banco de dados, pois muitos de seus relatos
podem servir de base para o entendimento sobre a sociedade da época, uma vez
que esses europeus descreviam, às vezes minuciosamente, as cidades e os campos
com todos os elementos que os compõem. Assim, essas informações auxiliam nos
estudos sobre as relações que se davam entre os diversos indivíduos que
compunham as sociedades desde a formação do Rio Grande do Sul como província
e, posteriormente, estado do Brasil. O foco especial desse projeto está na cidade de
Pelotas e seu entorno, já que foi esse município um grande mantenedor do sistema
escravista através da indústria charqueadora entre fins do século XVIII e durante o
século XIX (FERREIRA, 2009a; ROCHA, 2014).
Além dos trabalhos de busca contínua por documentos primários que possam
dar conta de trabalhos arqueológicos acerca da sociedade pelotense dessa época,
algumas prospecções e escavações em antigas estâncias e charqueadas da região
estão sendo realizadas no âmbito do projeto O Pampa Negro e temos como
resultado, até então, além da presente pesquisa, duas dissertações de mestrado,
alguns trabalhos de conclusão de curso e um de pós-doutorado em andamento.
Todos esses trabalhos que são desenvolvidos dentro da área de Arqueologia
Histórica ligam-se uns aos outros, complementando-se, por isso a importância de se
18
trabalhar os documentos escritos com um olhar arqueológico (FERREIRA, 2009a;
ROSA, 2012; ROCHA, 2014).
Quando iniciei os trabalhos junto ao projeto, estava focada nos relatos dos
viajantes europeus do século XIX que estiveram pesquisando flora, fauna, paisagens
e pessoas no Brasil, Uruguai e Argentina. Especialmente as narrativas sobre
escravos na região do pampa foram alvo de meu interesse. Entendemos, para o
projeto O Pampa Negro, o pampa para além das delimitações geográficas, a
exemplo de Hartmann (2011) para quem ele se estende pelos citados territórios do
Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina e se caracteriza por ultrapassar os limites
geopolíticos, compondo culturas de fronteira e tendo como principal fonte de
economia os rebanhos de gado bovino, ovino e equino (RIETH et al, 2013). Assim, a
denominação pampa pode ser “referida a partir dos agenciamentos de relações que
se estabelecem entre paisagens, homens, animais, ofícios e utensílios, na
configuração de um modo de vida” (SILVA, 2014. p. 6: nota de rodapé).
Porém, a partir de minhas idas ao Arquivo Histórico da Bibliotheca Pública
Pelotense (Arquivo de Obras Raras) para coletar as informações dos jornais do
século XIX a quantidade de elementos contidos nas páginas de anúncios chamou
minha atenção. Quando trabalhamos com os periódicos antigos junto ao projeto O
Pampa Negro, está prevista a coleta de todas as informações possíveis sobre a
região pampa, em todos os cadernos que fazem parte dos jornais. Portanto, estão
sendo compilados diversos textos, como notícias gerais e locais, obituário, entrada e
saída de embarcações e de diligências, exportação e importação de produtos,
informativos policiais e anúncios.
As ideias iniciais foram incentivadas pelo Prof. Lúcio Ferreira Menezes e
inspiradas na obra de Gilberto Freyre, O Escravo nos Anúncios de Jornais
Brasileiros do Século XIX. Para Freyre (2010), os anúncios de escravos nos jornais
do século XIX seguiam o modelo de anúncios de animais e objetos. O objetivo dos
anúncios era “atrair, prender, absorver” a atenção do leitor do periódico. E esses
anúncios denotam as relações de poder que permeiam essa sociedade. Freyre
(2010) nos diz que
São os anúncios de escravos à venda socialmente interessantes pelo
que sugerem das atividades dos anunciantes – brasileiros da cultura
e da etnia dominantes – para com os valores físicos, econômicos,
culturais – representados por indivíduos da cultura e da etnia
dominadas. Relações que não deixavam de implicar avaliações de
19
qualidades “de corpo” e de comportamento de indivíduos servis,
pelos senhoris. (p. 66).
Da mesma maneira, outros trabalhos sobre documentação foram inspiradores
para o desenvolvimento desta dissertação, como Símbolo não escolhido:
Arqueologia das marcas a ferro em escravos de Cuba, de Corzo & Ferreira (2013),
para o qual também serviu de exemplo a obra de Freyre (2010). Assim, a partir das
fontes escritas, podemos inferir sobre as relações entre diferentes indivíduos da
sociedade em questão.
Para Galloway (2006), os textos escritos são parte importante do registro
arqueológico quando se trata de arqueologia histórica, pois, ainda que sejam criados
em uma determinada época e com um objetivo específico, eles possibilitam o
diálogo com as evidências materiais e, portanto, o acompanhamento da rede de
atores envolvidos na produção de ambos. Tanto os documentos escritos, quanto os
indícios materiais, dentro de seu contexto de produção, fazem parte de uma rede
dentro sociedade que se está estudando. Uma das explorações realizadas neste
trabalho está na identificação dessas redes, envolvendo anunciantes (proprietários e
negociantes de escravos), anunciados (trabalhadores escravizados) e veículo
(jornais).
Juntamente com minha curiosidade pelos anúncios de jornais antigos, por seu
formato, pelo espaço que ocupam no periódico e pelas descrições contidas para a
comercialização dos cativos, aparece o meu interesse por questões que envolvem
as discussões de gênero, que veio à tona através de acompanhamento de
disciplinas e projetos junto à Profª Flávia Rieth. Optei, por isso, a dedicar-me ao
estudo das mulheres escravas na cidade de Pelotas no século XIX.
Apesar de as descrições dos escravos nos anúncios serem, em sua grande
maioria, balizadas principalmente sobre suas especializações profissionais e este
fato ser o ponto de partida para a pesquisa, as questões de gênero são evidentes
nos textos coletados. Logo, pretendo analisar as relações sociais a partir de um
estudo de gênero e trabalho doméstico no ambiente urbano, atentando para as
descrições
das
mulheres
com
suas
especializações
e
seus
atributos
comportamentais, principalmente quando se trata de atividades que se dedicam à
lida com crianças, como ama de leite, ama seca e mucama. As criadas, mucamas e,
especialmente as amas de leite, são apresentadas com qualificações que
20
ultrapassam questões de trabalho e parecem direcionarem-se para relações de
afeto, o que será explorado neste estudo.
A questão norteadora deste estudo está, portanto, em procurar entender a
atuação das cativas na sociedade oitocentista pelotense, a partir das relações que
se davam pelo trabalho doméstico feminino colocado nos anúncios de jornais. Como
já citado, essas relações poderiam ultrapassar a questão do trabalho e abranger
noções de afetividade, como é o caso dos anúncios de amas de leite. Ainda que o
foco esteja sobre as mulheres escravas, foram coletadas, também, as informações
de anúncios de homens escravos e de mulheres trabalhadoras livres e libertas, uma
vez que muitas dessas ocupavam-se das mesmas atividades atribuídas às cativas,
principalmente nos anos mais próximos ao fim da escravidão no Brasil.
Além dos anúncios, busquei documentos de contratos entre compradores,
vendedores e intermediadores que pudessem elucidar um pouco mais a respeito das
negociações relativas aos cativos. Alguns contratos de compra e venda de escravos
puderam ser encontrados no Arquivo Público do Rio Grande do Sul e a maioria
desses documentos foi transcrita e faz parte de um livro dessa instituição chamado
Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de Escravos: acervo dos
tabelionatos do Rio Grande do Sul. Recorte temporal de set/1763 a maio/1888
(organizada por Scherer & Rocha: 2010).
Entretanto, não encontrei nenhum recibo ou contrato de aluguel de escravos,
então, até o momento não temos documentação que comprove os valores que
incidiam sobre esses cativos e como ocorriam esses contratos. Muitos contratos de
compra e venda eram feitos em conjunto, em que um preço único era atribuído a um
grupo de escravos, o qual poderia ser mais homogêneo (mesma idade, sexo,
especialização) ou heterogêneo, como aparece nas compilações na obra acima
citada.
A ideia de se ter os valores de comercialização dos escravos nos jornais
seria para que se pudesse comparar a valorização ou desvalorização dos cativos
pelas suas atividades, sexo, idade e mesmo etnia, além de acompanhar os valores
com a aproximação da abolição da escravidão. Raríssimos são os anúncios em que
aparece o preço do negócio; foi encontrado, ao longo desta pesquisa, apenas um,
por isso o interesse pela busca de outros documentos. Entretanto, na falta de fontes
mais seguras, especialmente para os aluguéis de escravos, optei por não utilizar o
preço como um item a ser avaliado neste estudo, mesmo porque a maioria dos
21
contratos de compra e venda que aparecem para os anos de 1834 a 1884 em
Scherer e Rocha (2010) – Documentos da Escravidão no RS –, são relativos a
conjuntos de cativos, como já mencionado.
Da mesma forma, busquei fotografias de escravos em Pelotas, para que
pudesse visualizar a existência de artefatos específicos das funções, porém todas as
imagens de cativos que os acervos continham eram reproduções de outros locais do
Brasil. Algumas foram incluídas no trabalho, mas apenas como ilustração de
algumas atividades dos escravos.
Foram consideradas as categorias sexo, idade, origem e especialização, além
das informações relativas às qualificações de comportamento e conduta dos
anunciados, as quais são muito importantes para tal estudo. Outro item relevante foi
a própria condição do trabalhador, pois muitos anúncios são explícitos em falar
sobre a oferta ou procura de mão de obra escrava ou livre, enquanto outros não
trazem essa informação.
Como ocorre em muitas pesquisas, não há uma totalidade de informações;
por exemplo, a grande maioria dos anúncios não apresenta o proprietário dos
escravos quando a negociação é realizada por intermediadores. Dessa forma, um
elemento importante contido em grande parte dos anúncios é o endereço dos
intermediadores dos trabalhadores. Foi possível, a partir desse conhecimento,
elaborar um mapa das principais ruas onde ocorria a comercialização, o que nos
leva a visualizar o trânsito comercial principal das mulheres escravas na cidade de
Pelotas. Como poderá ser observado ao longo do texto, esse núcleo de negócios
localiza-se quase todo na região do centro comercial da atual cidade de Pelotas,
considerada, como um todo, o sítio da pesquisa.
Para dar conta dessa análise, busquei nos estudos de Arqueologia
Documental, ou Etnografia Histórica, a base para pesquisar este tema, pois, além de
meu interesse por documentos escritos, sabe-se que, em campo, quando se trata
dos materiais relacionados à cultura dos escravos africanos provenientes de
escavações em sítios arqueológicos, deve-se atentar para não essencializar os
achados. Como indicam Symanski e Souza (2007), inúmeros artefatos podem não
ser especialmente atribuídos a um único segmento da população. Os documentos
são, portanto, de suma importância para o entendimento das relações sociais que
ocorriam na Pelotas escravista do século XIX. Partindo dessa perspectiva,
22
apresentarei um apanhado sobre escravidão, gênero e trabalho doméstico, cruzando
teoria e metodologia para interpretar os dados.
Parte II – Da metodologia - A análise das fontes escritas
É importante lembrar que, ainda que se posicione a Arqueologia da
Escravidão nas Américas dentro da Arqueologia Histórica, esta grande área da
disciplina pode ser entendida de várias formas. Arqueólogos do mundo teorizam
sobre a Arqueologia Histórica, porém ela está vinculada a compreensões diversas e
não há um consenso em torno do seu conceito (DEAGAN, 2008). Em um artigo que
originalmente data de 1982, a autora discorre sobre as possibilidades de se pensar a
arqueologia histórica a partir dos pressupostos de vários autores desde meados de
1960, quando a área se “formaliza” (DEAGAN, 2008. p. 63). Uma particularidade da
área, válida quando se trabalha com a escravidão africana nas Américas, é que,
segundo a autora, pensa-se na Arqueologia Histórica como um campo que utiliza
informações arqueológicas e históricas nas suas investigações:
[...] El tema sugerido incluye restos materiales y comportamientos
pasados. A partir de ello, la mayor parte de los investigadores
probablemente coincide em señalar que la arqueologia histórica
incluye el estudio de los comportamientos humanos mediante restos
materiales, para los que la história escrita afecta su interpretación.
(DEAGAN, 2008. p. 64)
Os documentos escritos criados ao longo dos anos são frutos e, ao mesmo
tempo, produtores da ação humana. Assim, utilizando as palavras de Beaudry et
al.(2007), podemos dizer que a análise documental não deve ser desligada do
estudo da vida material nos períodos históricos, pois é parte integral e vital para a
reconstrução dos contextos nessas pesquisas arqueológicas. Ela difere da pesquisa
histórica no sentido de sua proposição: não apenas os dados contidos nos
documentos são coletados, mas se analisa os artefatos (jornais, inventários, etc.) em
que as informações estão inseridas e, também, as descrições dos materiais que
estão apresentados nas fontes, além de se observar o tipo de linguagem utilizada
nessas descrições. Ou seja, tenta-se perceber o contexto em que as fontes foram
criadas, como forma de recuperar os significados desses dados a partir de
perspectivas êmicas (de quem produziu ou escreveu o documento) ou, nas palavras
23
de Beaudry et al. (2007), percepções folk. Dessa forma, a partir de uma análise ética
(do arqueólogo) sobre informações êmicas (quem escreveu ou forneceu as
informações contidas na fonte documental) é possível que se chegue à construção
do contexto cultural e social em que as fontes foram produzidas (BEAUDRY, 1988b;
BEAUDRY et al., 2007; VOSS, 2006).
Segundo Beaudry, et al. (2007),
[...] a análise documental (em acréscimo e em distinção à “pesquisa
histórica”) é parte integral do estudo da vida material no período
histórico e [...] se constitui em um elemento vital em qualquer
pesquisa arqueológica histórica. Isso é vital para se construir o
contexto. (p. 85)
Para um estudo arqueológico de documentos deve-se partir da análise das
fontes escritas não apenas como fornecedoras de dados, mas como material
arqueológico, procurando atentar para o contexto da produção dessas fontes, sua
época, onde elas estão inseridas e seus propósitos e não se ater apenas às
informações nelas contidas.
Enfoques diversos podem ser adotados quando se fala em Arqueologia
Documental; alguns arqueólogos partem de pesquisas já propostas em arqueologia
e posteriormente chegam à análise de documentos, enquanto outros partem da ideia
de que o próprio documento é a base arqueológica. As fontes documentais permitem
as mais diferentes abordagens, dependendo do objetivo, das questões levantadas e
dos problemas propostos pelo arqueólogo (BEAUDRY, 1988a; BEAUDRY, et al.,
2007).
Beaudry (1988a), quando fala sobre estudos arqueológicos de documentos
iniciados na década de 1980, traz a seguinte percepção sobre textos contidos na
obra Documental archaeology in the New World, uma das primeiras que tratam
sobre essa abordagem:
Estes ensaios têm como objetivo demonstrar aos arqueólogos
históricos que o registro histórico, longe de ser um corpo finito de
informação especializada é, sim, um tesouro abundante de novas
percepções sobre o passado. (p. 2 / LIVRE TRADUÇÃO)
A interpretação do pesquisador deve se valer, entretanto, de todo um
entendimento de que os documentos são datados, são intencionais e têm um
propósito (BEAUDRY, 1988a; BEAUDRY, et al, 2007).
24
Segundo Voss (2006), um conceito que pode ser utilizado no estudo de fontes
escritas é o de “trabalho de representação”, em que os arqueólogos valem-se da
análise contextual da produção dos documentos.
O conceito de trabalho de representação pode fornecer uma
ferramenta analítica poderosa para os arqueólogos que desejam
explicar rigorosamente a produção social de imagens e textos
históricos e avaliar o valor probatório dos documentos históricos.
(VOSS, 2006: p. 147 / LIVRE TRADUÇÃO)
A autora aponta caminhos para analisar os trabalhos de representação
envolvidos na produção e divulgação de textos ou imagens que abrangem o estudo
do contexto histórico e político no qual as representações foram criadas, assim como
da própria história da sua produção e suas características físicas. Além disso, devese traçar paralelos com outros documentos, fazer um levantamento de outras fontes
que falem sobre e elucidem o documento em estudo e, em situações que se tem
evidências materiais preservadas (artefatos, prédios, entre outros), deve-se avaliar
as convergências e divergências entre esses materiais e as representações dos
mesmos (VOSS, 2006). Em seu estudo, Voss (2006) observa estratégias e projetos
políticos contidos na convenção intencional da representação (plantas) de presídios
militares. As plantas às quais a arqueóloga refere-se foram desenhos de aquarela
realizados por Joseph de Urrutia na segunda metade do século XVIII e representam
o ideal de arquitetura hispano-colonial na América. Portanto, os conhecimentos
vernaculares de indígenas locais foram desconsiderados nas representações
arquitetônicas, ainda que essas populações estivessem presentes e participassem
das construções dos prédios.
Da mesma maneira, Beaudry (1988b) observa que a metodologia para
avaliação textual de taxonomias populares, objeto de seu estudo, abrange a busca
por outras fontes escritas produzidas na mesma época dos documentos analisados,
tais como obras literárias, pictóricas e materiais arqueológicos preservados, a fim de
relacionar o mundo do objeto no passado ao mundo do pensamento no passado,
para tentar compreender como os artefatos cotidianos eram incorporados no
universo simbólico e social de outras épocas.
Como premissa básica para entender o passado, essa arqueóloga também
atenta para o contexto em que inventários foram produzidos nos séculos XVIII e XIX
em Chesapeake/EUA. Em seu estudo com esses documentos, são analisadas
25
categorias êmicas utilizadas para nomear e adjetivar coleções de cerâmicas; essas
qualificações das coleções eram lançadas pelos interessados nos inventários, seus
representantes legais ou pelo próprio escrevente dos mesmos. Os termos utilizados
descreviam as cerâmicas, vasos, potes, pratos entre outros utensílios e, de acordo
com a época, pessoas envolvidas na produção do documento e mudanças nos
próprios artefatos, esses nomes poderiam ser modificados. Características das
cerâmicas como composição, idade, tamanho, capacidade, função, cor, forma, peso,
conteúdo e condição estão presentes ou não nas descrições, variando conforme já
mencionado. Portanto, um mesmo artefato pode ter nomes diferentes dependendo
dessa série de fatores (BEAUDRY, 1988b). Uma grande colaboração dessa autora,
portanto, é a defesa da incorporação, nos estudos arqueológicos, dessas categorias
êmicas ou folk.
Estudos arqueológicos envolvendo questões de gênero podem centrar-se,
também, em fontes documentais. A pesquisa de Mrozowski (1988) abrange
anúncios de jornais de Rhode Island/EUA do século XVIII e XIX e seu foco está em
duas questões básicas: na comercialização de cerâmica com suas mudanças ao
longo do tempo e na análise do papel das mulheres na sociedade colonial a partir
dos parâmetros êmicos envolvidos na apreciação de uma anedota sobre a
preocupação de um marido com o crescente consumismo de sua esposa. O autor
discorre, ainda, sobre as alterações do status das mulheres ao longo dos anos mil e
setecentos e mil e oitocentos e sobre a relação entre essas alterações e a cultura
material.
Para a primeira questão, Mrozowski analisa os anúncios de cerâmicas como
forma de refinar as técnicas de datação e observar as mudanças de prioridades do
mercado. Assim, a aparição das diferentes louças ao longo do tempo nos anúncios
ajuda a elucidar questões de tipologias, ainda que os termos utilizados sejam êmicos
- da mesma forma como ocorre com as pesquisas de outros autores – e, finalmente,
pode-se fazer uma análise sobre a sociedade de consumo em épocas passadas.
Cabe mais uma vez salientar que várias outras fontes contemporâneas aos anúncios
(e mesmo material arqueológico, como louças, entre outros) devem ser estudadas
criticamente, de maneira a se obter o contexto de inserção e produção dos
documentos, para que o arqueólogo não se deixe levar apenas pelas palavras e
imagens explícitas nesses documentos.
26
Um segundo problema que o autor levanta diz respeito a relações de gênero,
em especial ao papel da mulher na sociedade industrial. Essa análise foi feita, em
um primeiro momento, a partir de uma anedota escrita em um jornal em que o
homem sente-se dominado pelo consumismo crescente de sua esposa, o que
representa o pensamento social da época: aumento da circulação de mercadorias e
percepção da mulher como agente nesse crescimento (MROZOWSKI, 1988). Assim,
pode-se notar, novamente, a importância das fontes escritas para o desenvolvimento
de uma pesquisa arqueológica histórica como forma de tentar entender o
pensamento cultural, social e econômico das sociedades pretéritas.
Os anúncios de jornais o século XIX são, pois, documentos importantes
produzidos para um determinado fim (oferta ou procura de produtos, animais,
escravos, entre outros) para entender como o escravo estava inserido na sociedade
oitocentista. Entre os produtos dos anúncios estão a oferta e procura de artigos
variados para uso pessoal, de gêneros alimentícios, medicamentos, e cosméticos,
máquinas e implementos em diversas áreas, imóveis rurais/urbanos e móveis
(carroças, carros de boi ou cavalo) e animais (Figura 1). Além disso, há anúncios
sobre prestação de serviços de profissionais liberais nas mais diferentes áreas,
como professores, médicos, farmacêuticos, dentistas, advogados. Há, ainda,
anúncios oferecendo e buscando trabalhadores para serviços artesanais ou braçais,
especializados ou não, e é nestes que está o foco desta pesquisa, pois podem ser
observadas a oferta e a procura de escravos para as mais diversas atividades.
27
Figura 1 – Anúncios de escravos/as em meio a mercadorias variadas. Fonte: Jornal Onze de
Junho, n. 774, 9 de abril de 1882. p. 3. (Foto da autora, 2013).
Foram coletados anúncios de escravos de todos os jornais de Pelotas
disponíveis para consulta na Bibliotheca Pública Pelotense (BPP), que abrangem os
anos de 1875 a 1888, e alguns exemplares avulsos de anos anteriores. Quando digo
“disponíveis” significa que, tirando os exemplares avulsos, os quais não são
numericamente significativos para comporem um encadernamento em conjunto ainda que tenham sido usados para a pesquisa -, os demais jornais são
encadernados por semestre e muitos desses livros estavam interditados pelo mau
estado de conservação em que se encontravam; portanto não há uma continuidade
perfeita de todos os periódicos. Alguns encadernados aos quais tive acesso também
apresentavam páginas em processo de deterioração avançada. O ano de 1875 foi o
marco para o início desta pesquisa, porque os primeiros encadernados de
semestres completos disponíveis da BPP são deste ano. O ano de 1888 foi a data
limite para coleta por ser o marco da abolição da escravidão no Brasil.
Para a análise dos dados foram considerados os anúncios sem suas
repetições para que fosse possível quantificar o número de indivíduos anunciados. O
total de anúncios coletados nos jornais pelotenses entre os anos de 1875 e 1888, e
28
mais alguns exemplares avulsos da década de 1850 e 1860, foi de 7.000 (exatos)
sendo que nessa quantidade estão contabilizadas repetições dos mesmos anúncios
em dias diferentes. Sem as repetições, resultaram em 1026 anúncios. Em alguns
casos, os anúncios são generificantes, não aparecendo a especificidade da mulher
ou do homem na condição de escravo. Os jornais, como um todo, apresentavam 4
páginas. Em edições especiais, poderiam chegar a 6, mas essa quantidade é rara
de aparecer. Os anúncios, em geral, encontram-se nas páginas 3 e 4 dos periódicos.
Algumas vezes na página 2 e, em número menor ainda, na primeira página do
jornal. Somente apareciam nas páginas 1 ou 2 quando a parte de informações
gerais, polícia, exportação e importação e notícias era muito escassa.
Segundo Galloway (2006), os textos escritos raramente são criados buscando
a posteridade, pelo contrário, eles são usados para realizar um objetivo em um
presente que eles ajudam a criar. Assim, eles podem ser instrumentos de
manutenção de poder, ajudando os alfabetizados a sobrepujarem os grupos que não
detém o conhecimento da leitura e escrita. Com a observação desses anúncios, seu
formato, sua veiculação – periódicos diários, o espaço em que ocupam no jornal e
as descrições contidas para a comercialização de tais trabalhadores -, podemos
pensar sobre o jornal como parte de uma rede de manutenção da escravidão
(mesmo em seus últimos anos e no pós-abolição).
Os jornais são um dos meios pelos quais a ideia dos escravos como
mercadoria pode se perpetuar na sociedade pelotense da segunda metade do
século XIX. Mesmo que houvesse outra maneira de compra, venda e aluguel de
cativos como mão de obra, as páginas de anúncios foram o objeto escolhido para
uma rápida disseminação, propaganda e comércio na época. As escravas
anunciadas estão nessa condição previamente ao anúncio e posteriormente a ele
também. Elas são produtos da sociedade da época e, ao mesmo tempo, produtoras
dessa sociedade, seja através de seu próprio trabalho (por aptidão ou imposição),
seja através de sua descrição geral anunciada no periódico e de sua
comercialização. Assim, temos diferentes elementos da sociedade interagindo
através dos jornais.
Os documentos, na verdade, codificam conexões entre pessoas em
diferentes níveis: nas relações diretas de parentesco, na família, no
domicílio, na vizinhança e comunidade, nas relações impessoais de
poder entre proprietários de fábricas e trabalhadores, e assim por
diante. (BEAUDRY et al., 2007: p. 85)
29
Em busca de uma Arqueologia Feminista Negra, a arqueóloga Battle-Baptiste
(2011. p. 29 e 43) indica que não há uma fórmula metodológica para essa tarefa,
que deve compreender teoria antropológica, etno-história, narrativa tradicional,
história oral e o estudo de cultura material, aliados aos estudos feministas negros e
à literatura negra. O entendimento das relações de gênero é o passo para o
entendimento da inserção das mulheres escravas nas sociedades passadas.
Entender as diferentes interpretações de raça e gênero no passado é importante
porque as diferenças estão presentes nos grupos com os quais trabalhamos. Os
comportamentos dos indivíduos diferem completamente em classe, gênero e “cor”,
concomitantemente.
Junta-se a isso a constituição da ideia escravista que se mantém, mesmo
próximo à abolição, e de elementos que se entendem como contra o sistema
escravista. Alguns periódicos se identificam com a causa abolicionista, como é o
caso do jornal Onze de Junho; porém, apesar de se posicionar a favor da libertação
dos escravos, podemos observar a rede em que esse veículo está envolvido, pois
continua trazendo anúncios de comercialização de escravos em suas últimas
páginas, a despeito da apresentação de notícias e ideias abolicionistas nas páginas
iniciais. Portanto, pode-se observar os elementos constituindo-se e andando
conjuntamente na manutenção da sociedade escravista na segunda metade do
século XIX: são pessoas, textos na forma de anúncios de cativos e de objetos
relacionados a eles, a mobilidade desses escravos e, em especial, das escravas que
circulam em diferentes casas pelotenses e que mantém a especificidade de
trabalhar com serviços domésticos.
Podemos observar, portanto, que a análise dos anúncios dos jornais,
realizada dentro da área da Arqueologia Documental, é uma forma de tentar
compreender a sociedade pelotense oitocentista, e, ainda que houvesse um
movimento abolicionista na época, havia a manutenção do sistema escravista como
elemento primordial dessa sociedade.
30
Parte III – As trabalhadoras domésticas na atualidade: a experiência com o
Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas e a apresentação
da história de uma ama de leite
Apenas para finalizar esta parte introdutória, gostaria de citar um importante
evento que me ajudou a entender um pouco mais sobre trabalho doméstico e foi
uma experiência extremamente gratificante durante o último ano de mestrado.
Através do Museu de Arqueologia e Antropologia da UFPEL (MUARAN),
coordenado pelo Prof. Pedro Sanches e, também, idealizado e organizado pela Profª
Louise Prado Alfonso, fui convidada para apresentar minha pesquisa sobre os
anúncios em um evento do Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de
Pelotas, mostrando às/os sindicalizadas/os (mulheres, em sua grande maioria) como
era o trabalho doméstico no século XIX e quem o praticava. Esse evento fez parte
do projeto de instalação do MUARAN, que tem por objetivo apresentar diversos
setores sociais da cidade de Pelotas, os quais, geralmente, não estão representados
nos museus tradicionais. Assim, foi realizado um sorteio com nomes das mais
variadas entidades da cidade para que, através de palestras, oficinas e reuniões,
fosse possível conhecer mais sobre esses setores da sociedade e saber se haveria
interesse, por parte dos mesmos, de estarem representados no MUARAN. Um dos
órgãos que foi contemplado no sorteio, portanto, foi o Sindicato das/os
Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas.
Com o resultado de uma primeira oficina com essa entidade, ocorrida em 21
de setembro de 2014, onde então apresentei alguns anúncios e houve uma
experiência de integração e troca de informações entre nós, ministrantes das
palestras – Profª Louise Prado Alfonso, Profª Liza Bilhalva Martins e Profª Flávia
Maria Rieth, além de mim – e as/os sindicalizadas/os, conseguimos montar um
projeto via GEEUR (Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos/UFPEL) e MUARAN.
Esse englobou mais uma oficina com apresentação das ideias proposta no primeiro
encontro sobre como o Sindicato seria integrado às exposições do Museu, onde
ocorreriam e através de que veículos. Essa troca de experiências foi extremamente
importante, pois possibilitou-nos observar, através da apresentação dos anúncios e
das narrativas das trabalhadoras, o quanto essa atividade passou por poucas
mudanças ao longo dos anos, desde o século XIX até os dias atuais e o quanto há
31
para ser trabalhado em torno desse assunto que envolve, além de relações de
trabalho, laços de afeto que se criam dentro do ambiente doméstico.
Assim, no primeiro capítulo, será apresentada a história da Arqueologia da
Escravidão, bem como as principais pesquisas no Brasil, Rio Grande do Sul e os
recentes trabalhos sobre o tema na cidade de Pelotas; no segundo, faço um
levantamento da história da escravidão no Rio Grande do Sul e em Pelotas; no
terceiro, trago as discussões que permeiam a presença escrava nos anúncios de
jornais e o que podemos apurar a partir desse conhecimento sobre relações entre
trabalho doméstico, gênero e afetividades, seguindo uma perspectiva da leitura
arqueológica de documentos escritos. No quarto e último capítulo, busco um
paralelo entre passado e presente do trabalho doméstico atentando para as relações
afetivas.
Entre os indivíduos que aparecem nos anúncios temos, portanto, as mulheres
cativas vinculadas principalmente aos afazeres domésticos ou ligados a serviços
domésticos. As especializações atribuídas a homens e mulheres na sociedade
escravista pelotense, bem como todos os aspectos relativos a esses trabalhadores
(idade, condição social, atividade laboral, etc.) e o que se entende por trabalho
doméstico no século XIX, serão discutidos tanto nos capítulos II como no III.
Entre as várias adjetivações para as trabalhadoras domésticas nos anúncios,
uma que chama a atenção diz respeito às amas de leite. Sobre essas mulheres
falaremos especialmente, pois, através de seus anúncios, podemos chegar a
algumas reflexões sobre as fronteiras entre trabalho doméstico e afetividade.
Durante o ano de 2013, quando eu cursava as disciplinas do mestrado,
morava na cidade de São Sepé/RS, onde conheci a Sra. Ândula Beatriz Oliveira dos
Santos, a “Beta”, negra, aposentada, ex-trabalhadora doméstica e ama de leite. Na
época, com 63 anos de idade, moradora de São Sepé, com cinco filhos, sendo que
duas de suas filhas também foram amas de leite e são trabalhadoras domésticas,
Janaína e Michella, ambas negras, com 34 e 37 anos respectivamente. Uma neta de
Beta e filha de Michella, Francielly, com 19 anos e 2 filhos (uma menina e um
menino), também foi ama de leite, porém de seu primo (sua tia teve um filho na
mesma época que Francielly e não podia amamentar sempre porque trabalhava
como doméstica) e não para “gente de fora”, como o foram as outras três mulheres.
Em entrevista, realizada em 15 de novembro de 2013, conversei com Beta a
respeito de sua profissão e sua história de vida. É líder (cacique) de uma terreira de
32
quimbanda na cidade onde reside. Identifica-se com seus antepassados escravos,
especialmente com os “pretos velhos”, de onde entende vir a força de sua religião e
sua “obrigação” de amamentar as crianças cujas mães não podem ou “não querem”
(palavras de Beta) aleitar. Sua história e suas percepções como trabalhadora
doméstica e ama de leite serão incluídas no tópico “trabalho e afeto”. Segundo suas
contas, “por cima” (ou seja, aproximadadamente) ela foi “mãe de leite” de 26
crianças, mais ou menos 5 crianças por amamentação, além de aleitar seus filhos.
Figura 2 – Ândula Beatriz dos Santos (Foto: Darc
Santos, neta de Ândula Beatriz. 2014)
Mesmo depois que saí de São Sepé para tornar a morar em Pelotas, minha
cidade de origem, eu mantive contato com Beta e suas filhas, bem como com sua
neta Darc, com quem mantenho contato via rede social Facebook. Beta também tem
Facebook especialmente “pras coisas de religião”, segundo ela.
Essa entrevista com Beta foi interessante e despretensiosa; na época eu
ainda não tinha a ideia que direcionaria parte de meu trabalho para as relações de
trabalho e afeto que podem ser percebidas através dos termos qualificadores das
escravas nos anúncios de jornais. A ideia não era e não é fazer uma “varredura” nas
amas de leite atuais nesta pesquisa, porém sua narrativa foi importante para
identificar alguns pontos relacionados com os sentimentos de apego que se dão
entre patroas/patrões e empregadas/os, bem como são importantes as falas de
trabalhadoras domésticas durante as oficinas entre MUARAN/GEEUR e Sindicato.
33
CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA DA ESCRAVIDÃO NAS AMÉRICAS: A
CONSTITUIÇÃO DA ÁREA E OS TEMAS ABORDADOS
1.1 – A constituição da Arqueologia da Escravidão
Quando trabalhamos com Arqueologia da Escravidão, precisamos ter em
mente que estamos falando, aqui, sobre o estudo da vida cotidiana dos
trabalhadores forçados - a partir de seus vestígios materiais - que se dispersaram da
África trazidos, principalmente, para o continente americano através da colonização
europeia no Novo Mundo.
A Arqueologia da Escravidão surge em um período de fervor sócio-político
envolvendo tópicos importantes para as comunidades negras nos Estados Unidos
durante a década de 1960. Nesse período, forças intelectuais, sociais e políticas,
como o ativismo negro, a aprovação da legislação de preservação histórica, o
interesse em estudar diferentes grupos étnicos e o crescimento do uso da
arqueologia para a interpretação de sítios históricos propiciaram e impulsionaram o
aumento dos estudos de africanos e afro-descendentes em todas as áreas das
ciências humanas (SINGLETON, 1995. p. 120). Os movimentos negros nas
Américas, calçados na história de resistência escrava em um mesmo momento em
que se estabeleceram os movimentos panafricanistas, a independência de países
africanos e suas guerras por libertação, juntamente com a observação da relevância
de se estudar os grupos excluídos, foram os principais impulsos para essa nova
visão da Arqueologia Histórica, (SCHÁVELZON, 2003; FERREIRA, 2009b). Assim,
unindo-se a vários movimentos, os arqueólogos estadunidenses, a exemplo de
pesquisadores de outras áreas, voltaram suas atenções aos “oprimidos, maltratados
ou esquecidos” pela história oficial, desenvolvendo uma “perspectiva subalterna”,
desviando o foco dos estudos das elites para as camadas marginalizadas por uma
determinada histografia. (ORSER, 1998, p. 65).
Cabe lembrar que a década de 1960 foi um período de ebulição em todo o
mundo ocidental. Na Europa, ocorre o “Maio em Paris”, com estudantes ocupando a
Sorbonne e questionando a academia; juntamente, tem-se uma descredibilidade dos
partidos de esquerda franceses. Ambos os fatos tomaram força e se alastraram pela
França com estudantes tentando alianças com movimentos operários, o que se
34
difundiu pelo mundo todo. É uma época de efervescência sociocultural, de
revoluções musicais e de movimentos de liberação da mulher, com o feminismo
discutindo relações de poder entre mulheres e homens. Nos Estados Unidos, há a
entrada em massa de jovens do país na Guerra do Vietnã e o aparecimento do
movimento hippie (PINTO, 2010). Assim, o movimento negro não está isolado de
todos os outros eventos nesse período de relevância social para o ocidente.
Desde os anos 1930 até fins dos anos 1960 a Arqueologia Histórica dedicavase quase exclusivamente às pesquisas e escavações dos sítios arqueológicos
associados às elites, buscando a restauração ou reconstrução de edificações e
monumentos ligados a essa camada da sociedade pós-colombiana, com o intuito de
explorar o turismo histórico e fortificar a ideologia nacional da população dos
Estados Unidos (ORSER, 1998. p. 65; ORSER, 2007, p. 12).
As plantations do sul do país e as treze colônias do norte foram alvo de
trabalhos arqueológicos numa perspectiva elitista, branca e enriquecida, tendo como
base de investigação material as estruturas das mansões dessas propriedades, bem
como todo tipo de artefato atribuído a essas camadas da população. Ou seja, os
arqueólogos tinham a intenção de procurar materiais que tivessem uma “assinatura”
europeia e, ao mesmo tempo, traçar um caminho pelos quais os sistemas culturais
se transformaram ao longo dos anos e tornaram-se cada vez mais “americanos”.
Portanto, as investigações arqueológicas dos grupos escravos vêm, a partir de fins
dos anos 1960 e princípios dos 1970, para dar visibilidade a esta população, uma
vez que esta camada deixou poucos registros escritos (SINGLETON, 1995; ORSER,
1998; LOREN & BEAUDRY, 2006; LITTLE, 2007) e “torna-se uma parte essencial e
proeminente da Arqueologia Histórica” desde então (LITTLE, 2007. p. 107).
As pesquisas arqueológicas dos sítios ligados aos escravos foram
propulsadas pela criação do National Historic Preservation Act, em 1966, lei que
objetivou a preservação do patrimônio histórico dos Estados Unidos através da
instauração de instituições especializadas (SINGLETON, 1995. p. 121; BLAKEY,
2001. p. 399) como o Advisory Councilon Historic Preservation, órgão similar ao
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Brasil (ROCHA,
2014). A nova lei propicia o fomento de empresas especializadas em gestão de
recursos culturais, conhecidas como Cultural Resourse Management (CRM), “ou
simplesmente arqueologia de contrato” (SINGLETON, 1995. p. 121), ampliando e
35
sustentando as pesquisas arqueológicas no âmbito privado e, consequentemente,
aumentando os focos das pesquisas arqueológicas (SINGLETON, 1995; BLAKEY,
2001).
Segundo Singleton (1995), a arqueologia de contrato
constitutes a mixed blessing for African-American archaeology. CRM
projects facilitate the study of many sites that otherwise would not
receive attention in traditional academic research. On the other hand,
these one-time, salvage projects tend to define the problem
orientation of this research rather than long-term, ongoing fieldwork of
a site or group of related sites. Consequently, the kinds of questions
asked and data collected in many CRM projects are limited in scope.
Additionally, because of their short duration, salvage projects present
obstacles to developing ongoing dialogues with the local black
communities whose heritage is being investigated. (p. 121)
Assim, temos os dois lados do incentivo a essas pesquisas: a visibilidade de
grupos esquecidos e, em contrapartida, uma certa superficialidade nas análises dos
sítios estudados. Porém, pela primeira vez há uma forma de direcionar os trabalhos
arqueológicos para os grupos invisibilizados pelos estudos tradicionais.
As primeiras pesquisas arqueológicas sobre escravidão africana tomaram por
base as plantations da costa da Geórgia e da Flórida e foram realizadas em 1968
pelo arqueólogo Charles Fairbanks, cujo interesse estava em tentar compreender
como os africanos mantiveram suas próprias culturas mesmo após os horrores
passados na travessia atlântica da África às Américas, ou seja, identificar
“africanismos” nos restos materiais deixados por esses grupos (SINGLETON, 1995.
p. 119; ORSER, 1998. p. 66; LITTLE, 2007. p. 108). A ideia de Fairbanks era apoiar
o antropólogo Melville Herskovits, que defendia as “sobrevivências africanas” ou
“africanismos” na cultura negra (LITTLE, 2007). Assim, o arqueólogo encontrou
objetos de caça e para o preparo de alimentos identificados como de uso dos
escravos, o que demonstrou que esses cativos poderiam consumir além da
alimentação fornecida por seus senhores. No entanto, quando Fairbanks analisou os
materiais advindos dessas escavações, concluiu que os elementos atribuídos
especificamente a uma continuidade da cultura africana não puderam ser
identificados nos artefatos, demonstrando que a dificuldade de encontrar
“africanismos” estava posta mesmo para os arqueólogos (FOUNTAIN, 1995;
ORSER, 1998).
36
Ressalta-se que essa “falta de provas” sobre a sobrevivência das culturas
africanas na América não convenceu os arqueólogos que o conhecimento cultural
dos escravizados tinha sido perdido na travessia do Atlântico; ao contrário, a maioria
dos pesquisadores mantinha sua crença na resistência dos elementos culturais
africanos ainda que os indivíduos estivessem sob regime escravista e parecessem
subjugados ao europeu colonizador (ORSER, 1998. p. 67).
Apesar de ter sofrido críticas posteriores, a perspectiva da Arqueologia da
Escravidão foi inovadora e Fairbanks, com suas primeiras escavações na plantation
Kingsley, na Flórida, inaugurou esse tema que tomou corpo como uma nova linha
teórica de investigação da Arqueologia Histórica (LITTLE, 2007). Segundo a
arqueóloga Theresa Singleton, esses primeiros estudos tinham uma “missão moral”
de contar a história dos esquecidos e excluídos, buscando interpretar a vida
cotidiana dos grupos africanos e afro-americanos a partir de suas próprias
perspectivas,
analisando
restos
materiais
e
alimentares
recuperados
em
escavações. Entretanto, alerta a autora, essas interpretações poderiam ser muito
simplistas, ignorando a complexa rede de relações dos indivíduos na sociedade,
isolando-os em grupos fechados que mantinham suas culturas de origem:
Moral mission archaeology sought to interpret the everyday lives of
African Americans from their own perspectives using the remains of
housing, foodways, and personal effects recovered from excavations.
It succeeded in giving a voice to the voiceless, but many of the
interpretations were overly simplistic. African-American communities
were perceived as bounded, insular enclaves (as was the case in
nativistic approaches in cultural anthropology) capable of reproducing
material aspects of African culture. [...] Further, by choosing African
survival rather than its demise or reconfiguration as a research focus,
moral mission archaeology establishe a research precedent that still
stalks African-American archaeology today: the search for cultural
markers linked to Africa as the most significant aspect of AfricanAmerican material life (SINGLETON, 2001. p. 2)
Portanto, com o crescente interesse e comprometimento dos pesquisadores
por esse tema dentro da Arqueologia Histórica, especialmente nos anos 1990,
passa-se a criticar os estudos dedicados à procura das marcas africanas na cultura
material dos escravos (SINGLETON, 1995). Novas abordagens são introduzidas e
deixa-se de lado a “missão moral” da arqueologia para se pensar nos grupos
escravos a partir de perspectivas de ação social e resistência (SINGLETON, 1995;
37
SAMFORD, 1996; LITTLE, 2007). As práticas cotidianas podem desvelar a ação
social dos escravos; por exemplo, a maneira como os cativos lidavam com as
moradias e qual era sua dieta mostram o quanto tinham suas próprias distribuições
de espaço de convivência e seus próprios modos de se alimentar, ainda que o
regime de escravidão impusesse formatos europeus de habitação e alimentação
(SINGLETON, 1995; SAMFORD, 1996).
Um fator que propiciou a divulgação dos estudos sobre escravidão,
especialmente a partir dos anos 1990, foi a participação das comunidades locais
nessas pesquisas, em uma perspectiva da arqueologia pública; sítios arqueológicos
passaram a ser abertos a visitações e a população pode observar os artefatos
retirados das escavações, incitando o público a colaborar e participar desses
estudos (SINGLETON, 1995; ORSER, 1998; FERREIRA, 2009b; ROSA, 2012).
A grande maioria das pesquisas estava direcionada às plantations do sul dos
Estados Unidos, porém o contexto da escravidão se estendia às pequenas
fazendas, ao meio urbano, ao comércio de artesãos, à indústria, às docas, e vários
outros locais nas Américas (LITTLE, 2007). Diferentes sítios passaram a ser
escavados e seus achados analisados em cima de debates sobre raça/etnia, classe
e gênero, na tentativa de compreender questões socioculturais dos diferentes
grupos do sistema escravista em locais diversos, mostrando as transformações e
novas elaborações das culturas trazidas da África para as Américas. Essa ampliação
de abordagens forneceu possibilidades para se pensar a vida cotidiana dos escravos
a partir dos sítios, da cultura material afro-americana e a da dispersão desses
africanos pelos diversos locais onde existiu o sistema escravista, em uma
perspectiva global e durante um período de tempo prolongado (SAMFORD, 1996;
ORSER, 1998; SINGLETON, 2001; LITTLE, 2007).
Desde os anos 1970 e ao longo dos anos 1980 os estudos sobre escravidão
aumentaram e mesmo que alguns arqueólogos continuassem as buscas por
sobrevivências africanas, muitas dessas focadas nos cemitérios e algumas de certa
forma bem sucedidas, com achados de objetos e formas de enterramentos que
poderiam ser entendidos como de uma continuidade africana, há uma pressão para
que se considere a escravidão africana e afro-descendente como um todo,
ocorrendo como um fenômeno global (ORSER, 1998; LITTLE, 2007).
38
Essa perspectiva de se pensar a escravidão de forma global, levando-se em
conta a diversidade de experiências dos africanos e seus descendentes em
diferentes lugares do mundo depois de retirados da África de forma forçada ou por
outros movimentos migratórios, abrange um novo conceito chamado de diáspora
africana (ORSER, 1998; LITTLE, 2007; SINGLETON & SOUZA, 2009; SOUZA,
2013). A arqueologia da diáspora africana, cujos traços principais centram-se nessa
retirada forçada em escala global de pessoas de um continente a outro para o
trabalho cativo, envolve uma quantidade estimada de nove milhões e meio de
africanos para as Américas e Europa de diversos locais da África. Desses,
aproximadamente quatro milhões e meio vieram para o Brasil, o que torna o país o
maior receptor de escravos no mundo e o Oceano Atlântico o maior formador de
redes de trânsito e de novas configurações e transformações socioculturais
(FALOLA, 2011; SOUZA, 2013).
Este conceito de diáspora africana surge em meio às ações sócio-políticas, já
citadas, dos anos 1970 e é utilizado por áreas diversas das ciências humanas e
sociais; porém a arqueologia “apropriou-se” dele apenas nos anos 1990 (ORSER,
1998; SINGLETON & SOUZA, 2009) e, segundo Singleton & Souza (2009, p. 449),
os estudos arqueológicos contribuem para o entendimento da experiência histórica
das populações implicadas na diáspora africana e para a compreensão dessas
experiências vividas em diferentes locais.
Apesar de tardia em relação a outras ciências que já trabalham com esse
conceito anteriormente aos anos 1990 um artigo do arqueólogo Merrick Posnansky,
de 1984, já chamava atenção para a ideia de que “estudar a arqueologia da diáspora
africana é um campo vital tanto para arqueólogos africanos quanto caribenhos” (p.
196). Para Posnansky (1984), da mesma forma como para Orser (1998), faz-se
necessária a colaboração entre arqueólogos com trabalhos focados nas Américas,
no Caribe e na África, já que o estudo da diáspora deve ser realizado de forma
multidisciplinar e transcontinental, propiciando um entendimento global das
diferentes formas de sítios escravos encontrados pelo mundo.
Para firmar essa ideia de estudos colaborativos, Orser (1998, p. 64) indica
que a diáspora africana “tem raízes profundas na história e é um fenômeno
verdadeiramente global”, uma vez que antes mesmo do tráfico pós-colombiano de
cativos, muitos povos africanos eram escravizados e comercializados para o Oriente
39
Médio, Índia e Ásia; em geral eram povos não-muçulmanos e considerados “infieis”,
o que justificaria a escravidão. Lamentavelmente, segundo Orser (1998, p. 64),
muitos arqueólogos ainda trabalham numa perspectiva de “arqueologia da
escravidão”, focando seus estudos localmente nos africanos e afro-descendentes no
Novo Mundo e não de uma perspectiva de “diáspora global”, ao contrário do que
ocorre com os historiadores que mantiveram a natureza global da diáspora; esse
desenvolvimento lento dos estudos arqueológicos sobre a diáspora africana tem a
ver com o ritmo vagaroso da arqueologia dedicada aos estudos do mundo moderno.
Com isso, perde-se muito da compreensão da diversidade de experiências dos
africanos retirados de seus locais de origem na África.
Entretanto, a diáspora africana tornou-se foco de muitos estudos de
arqueólogos estadunidenses nos últimos anos, na busca pelas relações entre África,
Europa e Américas na tentativa de compreender a “história multicultural do
Atlântico”, por meio das investigações sobre os navios negreiros naufragados, da
diversidade estilística dos materiais dos escravos nas Américas e dos próprios
corpos dos escravos nos estudos bioarqueológicos dos cemitérios, além das
discussões acerca de raça e racismo (FERREIRA, 2009b; FERREIRA, 2009c).
Assim, para Ferreira (2009c), a arqueologia da diáspora africana é entendida como o
estudo da cultura material dos grupos escravos para entender as ações sociais
desses indivíduos numa forma de comporem as suas identidades, sempre buscando
o esforço de resistirem aos sistemas escravistas:
Os estudos arqueológicos da diáspora africana buscam, em suma,
entender como as identidades culturais dos escravos afroamericanos se expressam materialmente em vários contextos. Mas
os indivíduos, como sabemos, constroem suas identidades para
atuar no mundo. A atuação dos escravos foi, quase sempre, um
esforço no sentido de não permanecerem escravos. Não é estranho,
assim, que os arqueólogos identifiquem, nas cerâmicas, edifícios e
habitações de diversas regiões da América, atos de resistência à
escravidão. A “africanização das Américas”, portanto, reúne esses
dois planos de análise: os processos de resistência ante o sistema
escravista e a formação e a transformação das identidades culturais
dos escravos. (FERREIRA, 2009c. p. 272).
Em resumo, pela diáspora africana estar entrelaçada com os fenômenos
generalizados
do
colonialismo,
do
imperialismo
e
capitalismo
emergente,
consequentemente com a formação do mundo moderno, precisamos entender como
40
os escravos lidaram com os sistemas escravistas nos diferentes locais das
Américas, pois dentro do período de escravidão, esta abordagem ampla pode
comparar as vidas e as estratégias de africanos e afro-descendentes nas Américas,
sob diferentes formas de cativeiro e diversas relações com os povos nativos e
colonizadores (ORSER, 1998; LITTLE, 2007). Nas palavras de Ferreira (2009c), a
diáspora africana “remete, pois, às variadas histórias de resistência, como também
às distintas ações sociais e identidades culturais dos escravos afro-americanos” (p.
268).
Firmando a ideia das transformações dos processos identitários através do
Atlântico, Gilroy (2012, pp. 57-58) nos diz que as trocas que ocorriam nos
movimentos dentro dos navios entre negros escravizados levados de um continente
ao
outro
formavam
novas
culturas
nas
Américas,
África
e
Europa,
concomitantemente. Assim, os navios negreiros são importantes “elementos móveis”
da diáspora africana, pois eram eles que “representavam os espaços de mudança
entre os lugares fixos que eles conectavam” (GILROY, 2012. p. 60).
O tráfico transatlântico propiciava ainda mais guerras internas que já existiam
entre diferentes pontos da África, com captura de prisioneiros feitos escravos:
homens, mulheres e crianças. A escravidão como instituição e comércio é o que
melhor localiza a África no sistema internacional e o tráfico transatlântico ocupa um
lugar preponderante nesse processo, uma vez que foi através dele que se estimulou
a retirada massiva de indivíduos de seus locais de origem, propulsando
transformações irreversíveis e formações de novos grupos socioculturais (FALOLA,
2011; CUNHA, 2012; DIAS, 2012).
Assim, as transformações, formações e articulações culturais ocorriam
através das dispersões dos escravos pelos diferentes locais onde se mantinha o
regime escravista, desde a saída dos indivíduos de seus locais de origem até seus
destinos, passando pelos navios negreiros e perfazendo movimentos de ida e vinda
entre as Américas (incluindo Caribe), África e Europa. Para uma melhor
compreensão de como a arqueologia trabalhou a arqueologia da escravidão ou a
diáspora africana nas Américas, seguiremos o modelo de apresentação já propostos
por
Rosa
(2012)
e
Rocha
(2014),
situando
os
principais
trabalhos
no
desenvolvimento da disciplina no Caribe, na América do Sul e, como novidade dos
últimos três anos, em Pelotas/RS.
41
1.2 – A Arqueologia da Escravidão no Caribe
A Arqueologia Histórica na região do Caribe, ainda que em menor proporção
em relação aos Estados Unidos (FERREIRA, 2009a), tem crescido desde a década
de 1960, quando ocorreram as primeiras investigações, e aborda temas diversos.
Especialmente no final dos anos 1970 e início dos 1980, pela influência das
pesquisas dos Estados Unidos que focavam na diáspora africana, os sítios
vinculados a grupos escravos africanos e afro-descendentes passaram a ser
investigados. Inicialmente os trabalhos eram isolados e detinham-se em poucos
sítios na Jamaica e em Barbados; porém com essa influência estadunidense, os
estudos em todo Caribe cresceram exponencialmente e focaram não mais somente
na vida rural, nas plantations, mas também em espaços de habitação urbana
(KELLY, 2004. p. 1).
Assim, têm sido analisados, como foco da Arqueologia Histórica a indústria e
o trabalho nas plantations de açúcar, café e algodão, em praticamente todos os
espaços das ilhas do Caribe. Além desses sítios rurais, foram estudadas
fortificações militares, além de locais residenciais e comerciais urbanos. As minorias
étnicas dentro das classes dominantes, como populações judaicas e irlandesas são
alvo de investigações. No entanto, a maior parte das pesquisas está no âmbito da
Arqueologia da Escravidão, nas condições de vida dos grupos de cativos em todos
os ambientes (KELLY, 2004).
Os primeiros arqueólogos a escavar um sítio relacionado ao cotidiano dos
cativos no Caribe foram Frederick Lange e Jerome Handler, no início dos anos 1970.
Essa pesquisa ocorreu em um cemitério de escravos em Barbados, o Newton
Cemetery, e firmava-se em uma perspectiva de ethnohistorical approach
(abordagem etno-histórica). Previamente a esse estudo, a maioria dos dados sobre
escravidão provinha de documentos históricos e os próprios arqueólogos
imaginavam que somente escavações arqueológicas não identificariam dados sobre
a escravidão. Entretanto, com essa abordagem etno-histórica, os arqueólogos
demonstraram o potencial dos estudos arqueológicos da escravidão a partir de
padrões nos diversos sítios, ainda que sobre esses se disponibilizasse pouca ou
nenhuma documentação (KELLY, 2004; LANGE & HANDLER, 2009, p. 15 e 16).
42
Segundo Kelly (2004), após essas primeiras investigações, alguns dos
principais trabalhos arqueológicos que exploraram as condições enfrentadas por
escravos africanos e afro-descendentes no Caribe, situaram-se nas plantações de
Barbados, Jamaica, Montserrat, entre outras ilhas. Essas pesquisas foram além das
análises das condições de vida dos escravos nas plantations, atentando para a
“criação e manutenção de identidades afro-caribenhas” através da arquitetura, do
uso dos espaços, dos hábitos alimentares e da escolha dos artefatos utilizados pelos
cativos (KELLY, 2004).
Os arqueólogos focam seus trabalhos tanto nas plantations das ilhas
colonizadas por britânicos, quanto nas ilhas francesas e incluem agricultura de café,
açúcar, rum, anil e algodão; um item importante descoberto pelos pesquisadores
Verrand e Vidal foram fornos de cal, utilizado na indústria de açúcar e nas
edificações e que, segundo os arqueólogos, pode ter sido importante produto na
economia da ilha francesa Martinica (KELLY, 2004). Além da variedade de
plantations pesquisadas, foram arqueologicamente analisadas aldeias de libertos no
pós-emancipação, bem como quilombos. Para Kelly (2004) esses assentamentos
maroons1 são importantes para entender como os escravos se opunham ao sistema,
esforçando-se para contestar a instituição.
Um país que foi, e ainda é, destaque para as pesquisas da diáspora africana
é Cuba, onde desde os anos 1960 também se busca sítios ligados aos cativos. O
sistema escravista em Cuba teve seu auge entre os anos 1790 e 1860, quando a
economia local baseava-se principalmente nas plantations de café e açúcar
(CORZO, 2005). Os primeiros trabalhos arqueológicos foram desenvolvidos em uma
dessas plantations na cidade de Cangrejeras, pelo Departamento de Arqueologia da
Academia de Ciências de Cuba. Nessa cidade, entre fins da década de 1960 e
princípios de 1970, foram analisadas as estruturas remanescentes do engenho
Taoro, incluindo as habitações dos cativos, chamados barracóns, e um cemitério de
escravos (DOMINGUEZ, 2005; SINGLETON & SOUZA, 2009). Em um trabalho
realizado entre 1972 e 1974 em Pinar Del Río, Dominguez (2005) observou uma
configuração diferente no espaço da plantation de café: não havia as moradias
coletivas de escravos (os barracóns) e os cativos provavelmente habitavam casas
1
Marrons, cimarrones, palenques – locais temporários para escravos fugidos.
43
distribuídas pela propriedade, o que pode ser consequência da migração de
fazendeiros franceses fugidos da revolução haitiana2.
Uma investigação arqueológica foi realizada no Cafetal Del Padre como
parceria do Gabinete de Arqueología de la Oficina Del Historiador de la Ciudad de
La Habana e a arqueóloga Theresa Singleton, da Universidade de Siracusa em
Nova Iorque a partir de 1999. Essa plantation foi alvo de interesse por esse sítio
apresentar um muro de alverania de 3,35 metros de altura que cercava um local de
habitação de escravos, o que, segundo Singleton (2005), era uma prática incomum.
A autora destaca que neste trabalho o interesse estava mais em entender a vida
cotidiana dos escravos, as formas com que estes respondiam à vigilância dentro
desse espaço e menos em compreender o porquê dos proprietários escolherem a
construção desse tipo de muro. Dentro do espaço cercado pelos muros, existiram,
conforme inventários consultados, de 30 a 45 bohíos3. Os objetivos dessa pesquisa
foram entender como os escravos utilizavam os espaços, “avaliar o nível de
participação da comunidade de escravos em atividades econômicas independentes
de seu próprio interesse” e analisar a utilização dos objetos simbólicos sempre que
possível (SINGLETON, 2005. pp. 6 e 7).
Singleton (2005) chama a atenção para como a cultura material encontrada
nos espaços dos escravos indica que, apesar desse cercamento e distribuição
espacial (os quais se traduziam numa tentativa de maior controle social dos cativos
e induzia a uma maior produção), essa população participava de muitas atividades
iguais às de cativos de outros locais, encontrando meios de suplementar sua
alimentação, de manterem suas ações religiosas e recreativas e de sustentarem um
sistema econômico interno como produtores e consumidores, além de conservarem
contatos com o meio externo, o que propiciava fugas e rebeliões. O grande
diferencial desse trabalho está justamente na presença desse muro, pois apesar da
configuração totalmente diferente do espaço da plantation em relação às outras
existentes em Cuba, os escravos eram agentes ativos e exerciam ações da mesma
forma como em qualquer outro local.
2
Revolução haitiana – revolução de escravos no Haiti entre 1791 e 1804, quando a população cativa voltou-se
contra os fazendeiros franceses e tomou a ilha, acabando com o sistema de plantations, implantando um
“governo de negros e mulatos” e aniquilando tanto quanto possível a população branca (ANDREWS, 2007. p.
84).
3
Cabanas pequenas e individuais de moradia de escravos (CORZO, 2005).
44
Apesar de existirem pesquisas nas plantations em Cuba, para Singleton &
Souza (2009), enquanto o foco dos estudos da escravidão nos Estados Unidos está
nesse sistema de agricultura, em Cuba, e da mesma forma no Brasil, as pesquisas
centram-se mais nas comunidades “auto-emancipadas”, ou seja, palenques e
cimarrones. Estes são os assentamentos temporários ou aldeias dos escravos que
fugiam das plantations em direção às serras cubanas (CORZO, 2005). Os sítios
quilombolas (palenques e cimarrones) foram alvo de investigações de Gabino La
Rosa Corzo (2005) em Havan e Matanzas. Corzo usa amplamente a documentação
histórica para pesquisar os locais de acampamentos de escravos fugidos das
plantations e indústrias cubanas, ainda que nesse momento, o autor nos diga que
para uma compreensão mais completa da cultura material dos escravos somente os
documentos são suficientes:
[...] a documentação pode fornecer uma imagem sobre as
frequências das fugas, sobre os lugares que serviam de refúgio ou
assentamento, número de habitantes que podiam ter, tipos de
cultivos, número de moradias; mas nada elucida acerca da vida
cotidiana das comunidades. A mesma (documentação) não nos
brinda com a possibilidade de acessar o conhecimento da cultura
material, por meio da qual se expressam as raízes africanas e o
processo de transculturação que deve ter sido produzido como
reflexo das variações ocorridas na vida, conduta, conhecimentos e
hábitos dos grupos escravizados como consequência de sua
introdução nos territórios americanos (CORZO, 2005. pp. 47 e 48).
Nessas pesquisas de investigação nas serras cubanas, Corzo (2005),
utilizava a documentação conjuntamente com os materiais obtidos nas escavações
para o entendimento da vida cotidiana dos escravos; posteriormente, esse mesmo
autor, em conjunto com o arqueólogo brasileiro Lúcio Menezes Ferreira, discorrerá
sobre os documentos como passíveis de serem lidos arqueologicamente, sem a
necessidade de escavações para entender alguns aspectos socioculturais desses
grupos (CORZO & FERREIRA, 2013). Sobre esse trabalho, discorreremos mais
adiante, embora já tenha sido abordado no ponto da metodologia na introdução da
presente pesquisa.
Corzo (2005), em suas escavações em Matanzas e Havana, percebe a
predominância nas zonas montanhosas da porção oriental da Ilha de Cuba do
apalencamento ou construção de aldeias ocultas, como formas de resistência
escrava; os cativos nessa região representavam 28% da população total. Para a
45
região central, o autor aponta um mesmo comportamento, porém nesse estudo ele
não analisa mais aprofundadamente os dados, apesar de indicar uma quantidade de
26% de cativos nesse local. Já na região ocidental da Ilha, o número de escravos é
bem maior e eles representavam 73,60% do total de cativos de toda a Ilha. Isso
porque nessa zona estava a maior concentração de grandes plantações e engenhos
de açúcar e cafezais. Essas diferenças numéricas acarretavam as diferentes formas
de resistência por fugas, pois a porção ocidental contava com planícies e, ao sul,
regiões pantanosas, o que dificultaria a formação de “aldeias estáveis” para os
escravos. Assim, nessa porção da Ilha, os cativos buscavam refúgios temporários
em cavernas e abrigos rochosos (CORZO, 2005. p. 49).
Os palenques eram das mais variadas formas, porém tinham em comum o
fato de persistirem em locais reduzidos e de difícil acesso e se integravam a “uma
concepção espacial definida pela sobrevivência perseguida” (CORZO, 2005. p. 52).
Diferentemente do que caracterizava os “simples fugitivos”, a comunidade de
apalencamento era uma forma de resistência que sugeria princípios de defesa e
ultrapassavam a fuga em si. O modo de vida dessas comunidades era baseado na
subsistência e era importante a tentativa de uma “invisibilidade”, uma vez que o
interesse estava em não permanecer fugindo de um local a outro (CORZO, 2005.
pp. 52 e 53).
Em contraponto aos palenques das regiões montanhosas, na porção
ocidental da Ilha de Cuba as fugas eram individuais ou em grupos muito reduzidos e
tinham, em sua grande maioria, um caráter temporal. Essa forma de fuga é
conhecida por cimarronaje e os refúgios desses indivíduos ou grupos eram
constantemente mudados; a mobilidade desses escravos era importante para evitar
a captura e para sua sobrevivência lançavam mão de materiais e alimentos advindos
de roubos e trocas, além de utilizarem a coleta, a caça e a pesca (CORZO, 2005;
LARA et al., 2012). Esses foragidos mantinham-se em locais nas periferias das
plantations e engenhos, de onde poderiam observar a sua movimentação sem
serem observados. Isso porque mantinham contato com os escravos em cativeiro e
buscavam nessas fazendas, produtos para sua manutenção, em forma de roubo e
furto. Através dos restos faunísticos e de objetos usados no preparo de alimentos,
foram encontrados em refúgios cimarrones artefatos de uso pessoal, ritual e para
46
defesa dos foragidos, identificando uma vida sociocultural para fora do cativeiro.
(CORZO, 2005; LARA et al., 2012).
Além das escavações realizadas em Cuba, Corzo & Ferreira (2013),
trabalharam com as marcas a ferro utilizadas nos escravos. A cultura material era
articulada de forma a controlar os escravos, especialmente a arquitetura com a
organização dos espaços de produção e de moradias das plantations, e as marcas a
ferro impostas aos cativos, as quais operavam da mesma maneira (p. 129). Porém, o
diferencial desse trabalho foi a metodologia; como já discutido anteriormente, foram
usadas fontes escritas para se chegar às marcas utilizadas nos escravos e para
entender como essas marcas identificavam o cativo como uma propriedade de
alguém. Em Cuba, foram identificadas, pelos documentos, três tipologias principais
de marcas: marcas por introdução, por indulto e as de proprietários 4 (CORZO &
FERREIRA, 2013. p. 132).
Em todos os casos, o escravo estava identificado com uma marca que
determinava o controle sobre ele. Sobre os proprietários, havia o controle da Coroa.
As marcas definiam tanto os escravos, como os seus senhores, como súditos da
Coroa. Como última instância, as marcas são instrumentos de uma “técnica de
governo”, de um controle social que tanto inflige o poder da Coroa sobre os
indivíduos, quanto é uma resposta dos proprietários ao sistema governamental, no
momento em que burlam a Coroa através do contrabando (CORZO & FERREIRA,
2013).
É necessário lembrar, entretanto, que os escravos, apesar de marcados a
ferro como forma de subjugá-los e controlá-los, eram indivíduos e agiam
socialmente. Apesar de as marcas acompanharem os escravos para toda a sua
vida, e essas marcas não serem um símbolo escolhido pelos próprios cativos, elas
infligiam uma identidade a esses indivíduos, que eram sempre propriedade de
alguém; por outro lado, embora marcados, os cativos resistiam ao sistema, mesmo
carregando em seus corpos essa identificação que não era originalmente deles.
Mesmo sabendo que seriam caçados, eles resistiam dentro das fazendas, fugiam,
aquilombavam-se e formavam novas formas de vida. Se não houvesse essa
resistência, não haveria necessidade de marcas, quaisquer que fossem, e nem de
4
Por introdução: marca firmada no escravo quando este chegava em Cuba; por indulto: quando o cativo
entrava no país por meio de contrabando; marcas de proprietário: identificava o senhor dos escravos.
47
descrições pormenorizadas dos escravos na documentação. As documentações,
lidas arqueologicamente, possibilitam um entendimento do sistema escravista
envolvendo governo, proprietários/colonos e escravos (CORZO & FERREIRA,
2013).
Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos no Caribe, assim como nos
Estados Unidos, avançam em direção a novas perspectivas na busca do
entendimento da diáspora africana nas Américas. Ainda que na América do Sul as
pesquisas não sejam em um número tão expressivo quanto nesses outros locais, e
também sejam mais tardios, temos arqueólogos em diferentes países trabalhando
com o tema em ambientes rurais e urbanos. Algumas das principais pesquisas serão
apresentadas a seguir.
1.3 – A Arqueologia da Escravidão na América do Sul
Embora o sistema escravista tenha sido amplamente implantado e mantido
durante séculos em toda América do Sul e América Latina em geral, os estudos
sobre arqueologia da escravidão ou sobre arqueologia da diáspora africana ainda
são pouco desenvolvidos nos países constituintes nessas partes do continente
americano e têm como base de investigação principalmente o Brasil e a Argentina,
ainda que exista interesse no tema também no Uruguai. (FERREIRA, 2009b; ROSA,
2012).
A exemplo do que ocorreu na década de 1960 em todo o continente
americano, os movimentos civis que se instauraram nesse período influenciaram o
desenvolvimento da Arqueologia Histórica na América do Sul; entretanto as
explorações arqueológicas nem sempre eram realizadas por arqueólogos, tendo
profissionais de outras áreas, como arquitetos, historiadores, entre outros,
trabalhando nessas investigações entre os anos que abrangem as décadas de 1960
e 1970 (LIMA, 1993; ZARANKIN & SALERNO, 2007; FERREIRA, 2009b). Vale
lembrar que nesses períodos, os estudos em Arqueologia Histórica
intentabam buscar correlatos materiales de documentos escritos,
rescatar objectos o estructuras de valor histórico, aportar información
en labores de restauración, o satisfacer curiosidad y afición de sus
empreendedores. (ZARANKIN & SALERNO, 2007. p. 19).
48
Assim, foi apenas a partir da década de 1980 que a Arqueologia Histórica
passou a ser efetivamente estudada na América do Sul, pois nos anos anteriores de
regimes ditatoriais não havia espaço para o crescimento da disciplina e, se para os
historiadores e alguns outros pesquisadores havia a possibilidade de burlar a
perseguição, para os arqueólogos a própria natureza do trabalho de campo
dificultava a oposição ao sistema governamental (FUNARI, 1998; ZARANKIN &
SALERNO, 2007). Esse desenvolvimento incluiu o Brasil, onde houve uma
ampliação da área, primeiramente com o “relaxamento da censura” em 1979 e
posteriormente com o fim do regime ditatorial militar, em 1985 (FUNARI, dez/2004jan/2005. p. 3). A abertura política possibilitou a busca pelas histórias de grupos não
contempladas pelos estudos oficiais e a arqueologia participa desse processo de
resgate sul-americano, que se desenvolve principalmente na década de 1990
(ZARANKIN & SALERNO, 2007).
Dos três países acima citados, que apresentam uma linha de pesquisa sobre
Arqueologia da Escravidão, segundo Funari (1998), a Argentina foi onde a
Arqueologia mais sofreu durante o período de regime militar e a Arqueologia
Histórica, como um todo, não se desenvolveu até a abertura civil em 1984.
Schávelzon (2003) aponta que, da mesma forma como ocorreu em toda a América,
incluindo Brasil e Cuba, onde o aporte de africanos é amplamente reconhecido,
estudar e identificar a cultura afro na Argentina foi, e é, um processo complexo com
barreiras a serem transpostas a todo momento, pois
Aceptar que era posible hallar sus restos materiales era aceptar que
tuvieron su propia cultura, incluso que mantuvieron costumbres
tradicionales pese a los siglos de dominación y servilismo a que
fueraon sometidos: era reconocer que hubo resistência, oposición,
enfrentamiento al Blanco; aunque fuera escondido, silenciado, no
explícito, el espíritu de resistência siempre estuvo alli, esperando,
asomando (p. 129).
Neste país, os primeiros estudos sobre a arqueologia da diáspora africana
podem ser atribuídos a Agustín Zapata Gollán, com suas descobertas em Santa Fe
la Vieja de objetos com símbolos africanos, como cachimbos com figuras não
indígenas e estatuetas com rostos africanos. Embora possa ter sido o precursor das
pesquisas na área, este estudioso não fez uma leitura mais ampla dos achados
(SCHÁVELZON,
2003.
p.
134).
Outros
arqueólogos
retomaram
o
tema
49
posteriormente, porém os estudos em Buenos Aires de maior repercussão são os de
Daniel Schávelzon que procurou, em fins da década de 1990, identificar artefatos
que remetessem a uma cultura afro-argentina na capital do país, a qual chamou de
afro-portenha (ZARANKIN & SALERNO, 2007).
Havia na Argentin, e ainda há a, da mesma maneira como em muitos outros
locais que viveram o sistema escravista, a ideia de uma unidade nacional, onde
apenas grupos indígenas compuseram, junto à maioria branca, a população. Para
demonstrar que os negros participaram da formação dessa sociedade, Schávelzon
(2003) escavou em pontos diversos de Buenos Aires na tentativa de encontrar
restos materiais que pudessem ser associados à população afro-portenha. Junto aos
primeiros achados, encontrava-se uma vasilha, primeiramente identificada como
sendo de uma cultura indígena, e que, posteriormente, em associação a outros
artefatos, o pesquisador pensou ter tido uma origem afro-indígena local
(SCHÁVELZON, 2003. p. 138). Essa mudança mostra como os artefatos
encontrados em escavações não podem ser entendidos isoladamente, fora de um
contexto mais abrangente. As evidências materiais afro encontradas ao longo dos
trabalhos de escavação incluem cachimbos com símbolos africanos, ornamentos
pessoais (medalhas, discos de cerâmica provavelmente utilizados pendurados no
pescoço ou cintura, podendo ser de cunho religioso), artefatos cerimoniais em
cerâmica e madeira, esculturas, jogos, instrumentos de corte e trabalho feitos de
vidro, ossos e pedras, vasos cerâmicos, entre outros, contendo símbolos de
propriedade e cosmogramas mágicos (SCHÁVELZON, 2003).
Contando com uma discussão sobre a diáspora africana em uma proporção
bem menor, no Uruguai, segundo Rosa (2012), as pesquisas arqueológicas estão
restritas ao Caserío de los Negros. Esses trabalhos são realizados a partir do projeto
El Caserío de los Negros: Investigación arqueológica del contacto Afro-Americano,
iniciado em 1998 por arqueólogos da Universidad de la República (UDELAR) no
bairro Capurro - Montevidéu, onde foram realizadas escavações em busca da
localização de antigos prédios do alojamento de escravos chegados à região. Esse
alojamento servia de local de quarentena dos escravos até sua venda (ONEGA,
2005; FREGA, 2011 apud ROSA, 2012. pp. 29 e 30). Segundo Rosa (2012. p. 30),
em 2012 ainda havia discordância entre os pesquisadores sobre onde seria o local
50
exato do Caserío de los Negros e mais escavações deveriam ser realizadas na
tentativa de encontrar o lugar dos prédios.
Argentina e Uruguai desenvolvem poucos trabalhos arqueológicos sobre a
diáspora africana e necessitam de mais pesquisas para que se obtenha resultados
que contemplem “interpretações mais abrangentes acerca dos vestígios materiais da
experiência africana no Rio da Prata” (ROSA, 2012. p. 30).
No Brasil, assim como na América do Sul como um todo, as pesquisas sobre
arqueologia da escravidão também ainda não são numerosas, porém há uma
dedicação cada vez maior de pesquisadores na busca por respostas às questões
que permeiam a vida cotidiana do escravo em seus diversos âmbitos.
1.3.1 – A Arqueologia da Escravidão no Brasil
No Brasil, embora as pesquisas em Arqueologia da Escravidão e Diáspora
Africana ainda sejam em pequena escala quando comparadas aos trabalhos
desenvolvidos nessa área nos Estados Unidos, por exemplo, e mesmo quando
comparadas aos estudos de História, alguns arqueólogos estão se dedicando ao
tema desde os anos 1980 e há um crescente interesse abrangendo diferentes
propostas teórico-metodológicas (SYMANSKI & GOMES, 2012; SINGLETON, 2013).
Trabalhos multidisciplinares têm sido cada vez mais frequentes envolvendo o
diálogo entre Brasil e outras regiões das Américas, o uso mais assíduo dos métodos
quantitativos, a sistematização dos dados baseados em diferentes fontes
documentais primárias e a diversificação das temáticas que podem envolver estudos
de casos específicos ou enfoques mais amplos em determinadas regiões, além do
resgate de temas clássicos na Arqueologia da Escravidão (SYMANSKI & GOMES,
2012).
Como já comentado anteriormente, até os anos 1980 a dificuldade em se
trabalhar o tema da escravidão estava ligada aos regimes ditatoriais impostos nos
países sul-americanos, incluindo o Brasil, pois buscava-se um discurso de
homogeneidade na formação identitária da sociedade brasileira (SINGLETON &
SOUZA, 2009; SYMANSKI & GOMES, 2012). Entretanto, com a abertura e o
aumento dos estudos sobre escravidão, pesquisadores passaram a se preocupar
não mais com as ideias clássicas dos “africanos genéricos” e de uma “crioulização a-
51
histórica”, ambos típicos dos estudos anteriores ao pensamento crítico em torno da
presença africana em solo brasileiro. A arqueologia é uma das disciplinas que
participa dessa reconfiguração preocupando-se sobre quem eram os escravos
africanos e afro-descendentes, quais os impactos do tráfico atlântico sobre os
indivíduos e as sociedades envolvidas e como ocorria o cotidiano do escravo
(trabalho, família e identidade da escravidão) nas Américas e, especialmente para a
disciplina, qual era a cultura material da sociedade escravista (SYMANSKI &
GOMES, 2012).
A década de 1980 foi o marco da primeira investigação arqueológica
englobando a temática da escravidão em que Carlos Magno Guimarães e Ana Lúcia
Lanna analisaram diversos assentamentos de quilombos localizados em Minas
Gerais. Posteriormente, Guimarães dedicou suas escavações e análises a um
desses sítios, o quilombo do Ambrósio, onde identificou vestígios de casas de pau-apique, uma vala utilizada no sistema defensivo e fragmentos de artefatos de uso
cotidiano como vasos cerâmicos e cachimbos, além de restos alimentares. Porém,
Guimarães não deu continuidade às pesquisas arqueológicas, publicando apenas os
resultados de suas análises iniciais (SINGLETON & SOUZA, 2009; SYMANSKI &
GOMES, 2012).
Nos anos de 1992 e 1993, os arqueólogos Pedro Paulo Funari (Brasil) e
Charles Orser Jr. (EUA) e o africanista Michael Rowlands (Inglaterra) iniciaram o
Projeto Arqueológico Palmares, onde realizaram escavações no quilombo dos
Palmares, localizado na Serra da Barriga no estado de Alagoas. O objetivo do
projeto era tentar entender o cotidiano dos aquilombados através de sua cultura
material. Esse quilombo foi um importante local de resistência de escravos foragidos
no início do século XVII, era conhecido pelos habitantes da região como “Angola
Janga” (Pequena Angola) e perdurou até 1694, quando os caçadores de escravos o
destruíram (FUNARI, 1996, 2001; OLIVEIRA & TAMANINI, 2008). De acordo com a
documentação, entre 1.000 e 6.000 pessoas viveram em diferentes comunidades
que englobavam os 14 sítios identificados durante quase um século (SINGLETON &
SOUZA, 2009). Foram encontrados artefatos diversos, muitos foram identificados
como cerâmicas indígenas, cerâmicas vidradas majólicas finas, faianças européias e
cachimbos de barro; entretanto, mesmo na possibilidade de identificação de alguns
materiais como sendo ou tendo características indígenas, africanas ou europeias,
52
ainda há dúvidas quanto às origens de alguns objetos e há um tipo de cerâmica que
apresenta ao mesmo tempo características indígenas, africanas e europeias e ficou
conhecida como cerâmica e Palmares (FUNARI, 1996, 2001; ALLEN, 1998;
SINGLETON & SOUZA, 2009).
Segundo Allen (1998. p. 165) a identificação de materiais de origens diversas,
bem como de elementos étnicos combinados em um mesmo tipo de artefato podem
indicar que palmarinos e grupos indígenas co-habitaram os mesmos espaços, ou
que os palmarinos adquiriam os artefatos dos nativos, assim como ocorre com a
presença de materiais europeus. No entanto, ainda não se tem uma interpretação
mais concreta de como ocorriam as relações entre grupos nativos e palmarinos e
Scott Allen refuta a ideia de um sincretismo e de uma comunidade africana, pois
acredita que as interpretações são baseadas em noções estáticas de etnia (ALLEN,
1998; SINGLETON & SOUZA, 2009). Segundo Singleton & Souza (2009), “Allen
sees the pottery as an expression of separation from the colonies, allowing
Palmarinos to emphasize their difference, while maintaining relationships at various
levels with the colonial society” (p. 462).
A divulgação da importância de Palmares se dá mais fortemente a partir dos
anos 1970, quando ativistas do movimento negro passam a usar esse assentamento
como referência de suas causas e o dia 20 de novembro, quando ocorre a morte de
seu último líder quilombola, Zumbi, é proposto como o dia da Consciência Negra
(FUNARI, 1996). A identificação de uma multiplicidade étnica habitando Palmares,
no entanto, gerou conflitos com membros desse movimento, já que a ideia era
firmar-se sobre a questão da resistência negra neste local.
Entre outros estudos desenvolvidos na linha da resistência escrava em áreas
de quilombos, temos, no Rio Grande do Sul, as escavações realizadas por Claudio
Carle, em 2005. Este autor estudou três pequenos quilombos: do abrigo do Monjolo,
na cidade de Santo Antônio da Patrulha; do Paredão, entre os municípios de
Taquara e Gravataí; e da Ilha do Quilombo, na própria capital. Foram analisadas as
influências do caráter simbólico e filosófico das manifestações africanas na formação
desses espaços e suas possíveis retomadas pela comunidade (CARLE, 2005). Além
desse, outros estudos são realizados em áreas de quilombos por todo o Brasil,
incluindo novas escavações em Palmares (SYMANSKI & GOMES, 2012).
53
Na mesma época das primeiras escavações de Palmares, em 1993, Tânia
Andrade Lima, Cristina Bruno e Marta Fonseca publicaram o resultado do trabalho
desenvolvido na região de Vassouras, no Rio de Janeiro, o qual foi o primeiro em
que se escavaram estruturas de uma senzala na Fazenda São Fernando, de
produção cafeeira do século XIX. Baseando-se na ideia de que a o cotidiano da vida
social dos indivíduos dentro da fazenda ocorria entre os dois segmentos polarizados
representados pelos senhores e pelos escravos, as autoras objetivaram examinar as
práticas socioculturais dos cativos, bem como identificar as suas estratégias de
sobrevivência através da cultura material; para isso, escavaram diferentes pontos da
fazenda, sendo a primeira concentração dos esforços nos locais de possível despejo
de lixo (LIMA, BRUNO & FONSECA, 1993. p. 185; SINGLETON & SOUZA, 2009).
As escavações sobre o cotidiano do escravo concentraram-se, primeiramente, no
local onde seria a senzala e resultaram em poucos fragmentos de cerâmica e vidro,
além de restos da construção (LIMA, BRUNO & FONSECA, 1993. p. 186;
SINGLETON & SOUZA, 2009). Com isso, o foco das escavações passou a ser as
áreas de trabalho doméstico, as quais renderam uma concentração maior de
achados, incluindo cachimbos e contas de colar que foram identificados como sendo
de uso dos escravos (LIMA, BRUNO & FONSECA, 1993. pp. 186 e 187).
Na mesma linha de identificação dos espaços das senzalas nas fazendas
brasileiras, e no que diz respeito à agência dos grupos cativos no ambiente
escravista estão os trabalhos dos arqueólogos Luís Cláudio Symanski e Marcos
André Torres de Souza, os quais se propõem a dar maior visibilidade ao registro dos
escravos, possibilitando, assim, a preservação desse legado (SYMANSKI & SOUZA,
2007).
Em sua pesquisa sobre o Engenho São Joaquim, construído em 1800, na
cidade de Pirinópolis em Goiás, Marcos André Torres de Souza (2007) analisou a
paisagem social que se configurou nesse espaço, demonstrando que o modelo de a
escravidão ali instaurada estava fortemente alicerçada no pensamento iluminista.
Pela distribuição espacial e arquitetura do local, o autor discute as relações que
ocorriam entre senhores (casa grande) e os escravos (senzala) e coloca que assim
como houve vários modelos de escravidão, ali se estabeleceu um tipo que diferia do
sistema comum ao século XVIII. Para tal análise, foi realizado um estudo de fontes
documentais e achados materiais advindos das estruturas arquitetônicas (e sua
54
distribuição) ainda presentes e das senzalas que puderam ser localizadas
arqueologicamente, além dos artefatos encontrados nas escavações. Além das
estruturas, na área central das senzalas em formato de “L” invertido o pesquisador
encontrou restos de alimentação (fauna), e fragmentos de cerâmica, metal e vidro, o
que sugere um amplo uso do espaço para as refeições e para sociabilidade
(SINGLETON & SOUZA, 2009. p. 456). Souza parte das discussões de
espaços/temporalidades/experiências vividas que abrangem pessoas e coisas e a
partir dessas discussões, examina o espaço do engenho por meio da sintaxe
espacial5.
Através desse método, Souza (2007) entende que a distribuição arquitetônica
do engenho reafirma as diferenças entre os grupos sociais que ali conviviam e
analisa os espaços em que ocorrem os encontros e os espaços onde os grupos
evitam o contato (SOUZA, 2007. p. 66). Esses espaços de encontros poderiam ser
públicos ou privados e eram determinados por condição social e gênero. Além dos
espaços, as relações também se dão de modo temporal e podem ser segmentadas
tornando-se independentes, como, por exemplo, a jornada de trabalho no ambiente
de plantio e indústria, as paradas para alimentação e descanso, etc. são compostas
de uma temporalidade diferente da que ocorre no ambiente doméstico. Assim,
seguindo espaço e temporalidades das relações, pode-se visualizar o modelo
iluminista de “ordem e progresso” estabelecido nesse sítio (SOUZA, 2007).
O estado de Mato Grosso também foi foco dos estudos arqueológicos sobre
escravidão. Luís Cláudio Symanski escavou sítios arqueológicos em antigos
engenhos de açúcar dos séculos XVIII e XIX em Chapada dos Guimarães
(SYMANSKI, 2007). Neste trabalho, Symanski (2007) analisa a manutenção das
práticas religiosas dos escravos a partir dos artefatos encontrados nos contextos
relacionados a essa camada de trabalhadores e entende que essa era uma forma de
subverter o sistema de poder, o qual se mantinha nesses engenhos através de uma
rígida estratificação social e que de outra maneira, mais abertamente, não seria
possível.
Os engenhos eram configurados fisicamente de forma a afirmar a ordem
hierárquica, na intenção não só de manter a subjugação dos escravos, como de
5
Método criado por Hillier e Hanson (1984) e usado por Zarankin (2002) para analisar a arquitetura de Buenos
Aires (SOUZA, 2007).
55
impor uma cosmologia ocidental a eles (SYMANSKI, 2007. p. 19). A maior ou menor
proximidade da sede do engenho em relação a outras estruturas poderia definir o
controle visual desse espaço. Porém, mesmo com esse controle imposto de várias
formas, inclusive pelo conjunto arquitetônico, os escravos subvertiam e se
apropriavam do espaço pré-determinado de outras maneiras. Através da análise da
cultura material atribuída aos cativos, como cachimbos, garrafas, figas, contas de
colar, entre outros, encontrados tanto nas senzalas, quanto na sede da fazenda,
Symanski (2007) conclui que alguns desses objetos tinham caráter mágico-religioso
e seriam utilizados em práticas contra os senhores (em enterramentos dentro da
casa grande), porém não descarta a ideia de os próprios senhores terem sido
influenciados pelas crenças africanas. Assim, os escravos mantinham suas próprias
crenças, mesmo em regimes de imposição das visões de mundo ocidental,
resistindo ao sistema, apropriando-se subversivamente dos espaços nos engenhos.
Os depósitos arqueológicos nos espaços rurais, assim como ocorria com os
sítios urbanos, muitas vezes eram formados pela “agência tanto de livres quanto de
escravos”, portanto, os materiais encontrados podem ser de difícil atribuição direta a
uma ou outra categoria social (SOUZA & SYMANSKI, 2007). Nas cidades, muitas
vezes os cativos viviam sob o mesmo teto de seus senhores e, ainda que em alguns
casos existissem senzalas urbanas nos quintais dos casarões, os refugos eram na
maioria das vezes despejados em uma área comum, ocasionando o mesmo
problema de discernir objetos relacionados às práticas das diferentes camadas
sociais (SOUZA & SYMANSKI, 2007. p. 217).
No ambiente rural do Rio Grande do Sul, algumas pesquisas arqueológicas
em escravidão foram e estão sendo realizadas, bem como no ambiente urbano,
embora sejam em número mais reduzido ainda quando em relação a outros locais
do Brasil. Um dos estudos está locado em Rio Grande/RS, onde Thiesen, Molet e
Kuniochi
(2011),
pesquisaram
a
Charqueada
dos
Carreiros,
baseando-se
principalmente em prospecções arqueológicas, onde puderam ser observados os
indícios estruturais já não mais presentes na paisagem, bem como uma casa antiga
ainda habitada. A configuração espacial, bem como os documentos escritos, revelou
uma distribuição de espaços semelhantes às charqueadas pelotenses analisadas
pela arquiteta Ester Gutierrez (2011), as quais serão discutidas mais adiante, e
56
puderam demonstrar claramente o estabelecimento de uma indústria produtora de
charque baseada na mão de obra escrava.
Trabalhando com os espaços de escravos em um casarão urbano, a Casa
dos Mello, na cidade de São Martinho da Serra/RS, Machado (2004) propõe uma
análise dos diferentes elementos que compunham a formação do Rio Grande do Sul
desde o século XVII atentando para o cenário cotidiano do município durante o
século XIX, através de pesquisas arqueológicas em dois sítios: o Sítio Guarda de
San Martín e a Casa dos Mello. Em ambos sítios, a arqueóloga estudou os espaços
físicos e estruturais dos locais (um dos quartéis da guarda, a dispersão das casas e
as casas, a rua, a senzala e a cozinha – ambiente que, para a autora, era espaço de
convivência dos escravos, além da senzala urbana) e encontrou, na Casa dos Mello
restos de artefatos diversos e, entre eles, alguns identificados como de uso dos
escravos (fragmentos de cachimbos cerâmicos). Para esse trabalho a autora utilizou,
além de pesquisa prévia de bibliografia histórica, arqueológica e arquitetônica,
entrevistas com moradores locais, antigos habitantes e descendentes de escravos e
concluiu que o lugar constitui-se muito mais como um espaço de discussões
políticas do que apenas um espaço doméstico (MACHADO, 2004. p. 121 e 122).
Sobre esses restos de materiais escravos, Machado (2004. p. 159), da
mesma maneira que Agostini (1998. p. 132 e 133), diz que as pesquisas ainda
carecem de mais análises, como sobre o tipo de produção dos cachimbos, que
poderiam, por exemplo, ser locais e estarem associados a um comércio interno nãoespecializado ou ligado às comunidades quilombolas. Sobre os outros materiais,
como as louças, Machado fala que, pelo ambiente estudado, por ser urbano, com
vários elementos convivendo em conjunto e possivelmente descartando restos numa
lixeira comum, não há possibilidade de se definir quem eram seus usuários, a
exemplo do que nos falam Souza & Symanski (2007). Um dado interessante foi que
ao longo dos trabalhos arqueológicos de Neli Machado (2004) muitas pessoas, tanto
entrevistados quanto curiosos começaram a se identificar com a história da
escravidão na cidade de São Martinho da Serra, mesmo que, anteriormente, quase
não se falasse sobre a presença de escravos na região.
Como já comentado a respeito de materiais atribuídos a escravos, em um
trabalho anterior ao de Neli Machado (2004), Camilla Agostini (1998) busca, através
das análises de fragmentos dos cachimbos usados pelos escravos no Rio de
57
Janeiro/RJ do século XIX, entender como os símbolos “criados e dinamizados” pela
camada escravizada de africanos e afro-descendentes podem ser entendidos como
estratégias de resistência (p. 115). Essa camada de trabalhadores escravizados era
etnicamente heterogênea, e no continente americano esses diferentes grupos foram
misturados; assim, a autora propõe analisar como ocorreu a manutenção de estilos
étnicos e uma elaboração de um novo sentimento de identidade. Para tanto, a
autora analisa material de 17 amostras arqueológicas e 2 coleções de museus, além
de fontes primárias e documentação histórica, tais como os diários dos viajantes
europeus, imagens e documentos oficiais, e percebe que algumas decorações e
padrões morfológicos são mais encontrados no Rio de Janeiro. Esse fato, no
entanto, não indica uma exclusividade desses padrões no local, eles também
estavam presentes em artefatos achados em Porto Alegre, o que demonstra esses
elementos fazendo parte de uma resistência na diáspora africana (AGOSTINI, 1998;
2009).
Em relação aos artefatos encontrados em escavações no Brasil, discutindo
aspectos da diáspora africana, Singleton (2013) e Symanski & Hirooka (2013) nos
falam que, provavelmente até o momento, os estilos da cerâmica (vasilhas, potes,
panelas, cachimbos, etc.) atribuída à produção e utilização dos escravos é o
exemplo mais distintivo da cultura material Afro-Brasileira, pois muitos dos
elementos de decoração dos artefatos se assemelham às escarificações
encontradas em grupos escravos específicos como os Yoruba, Macua e Angola.
Isso reforça as questões de firmar identidades (de etnia e de gênero) e, ao mesmo
tempo, reconfigura-as (SINGLETON, 2013; SYMANSKI & HIROOKA, 2013). Da
mesma maneira, Agostini (2013) apresenta um estudo sobre as práticas religiosas
derivadas dos encontros culturais africanos em um sítio no litoral norte de São
Paulo, em que ocorria a intermediação do tráfico ilegal de escravos na primeira
metade de século XIX. A dinâmica do mundo Atlântico propiciava esses encontros e,
ao longo da pesquisa, a arqueóloga encontrou resquícios de objetos mágicoreligiosos, como uma pia batismal, fragmentos de panelas cerâmicas e cabos de
panelas com representação fálica que remetem à fertilidade, cabos de panelas ou
frigideiras em formato de figas, entre outros. Todos esses materiais mostram essas
ações de encontros culturais (AGOSTINI, 2013).
58
Temos, ainda, nas questões de identidades e etnogênese, Symanski &
Zanettini (2010) discutindo a formação populacional afro-brasileira no vale do
Guaporé (Mato Grosso e Rondônia) desde o século XVIII. Nesse estudo, analisam
de que maneira os materiais locais abandonados pela elite luso-brasileira no início
do século XIX foram re-apropriados pelas comunidades africanas e afrodescendentes. Os autores baseiam-se em documentações escritas, estudos
etnográficos e arqueológicos para tentar compreender de que forma ocorreu essa
etnogênese, já que, apesar de os afro-descendentes terem sido sempre a maioria
significativa da população local, tenham sido excluídos da história oficial. Os dados
encontrados apontam para a preservação de ricos traços culturais de herança
centro-africana, demonstrando a resistência desses grupos através dos anos
(SYMANSKI & ZANETTINI, 2010).
Camilla Agostini (2010) trabalhou, ainda, com as dinâmicas sociais e
simbólicas que envolvem a produção de panelas nos séculos XIX e XX em São
Sebastião, litoral norte de São Paulo. Neste estudo, foram identificados produtores e
consumidores das panelas produzidas na localidade para uso interno e, também,
para exportação, onde os produtos eram utilizados até mesmo na Corte do Rio de
Janeiro à época do Império. Os objetos eram confeccionados por mulheres e a
autora observa a mudança na produção desde a primeira metade do século XIX até
a primeira metade do século XX a partir do estudo de documentos comerciais, fontes
iconográficas e objetos resgatados de intervenções arqueológicas. Através das
análises, Agostini (2010) entende que as relações entre os diferentes grupos
permearam as escolhas e os significados dados aos artefatos utilizados no âmbito
doméstico, caso das panelas. São Sebastião, como já apontado em outro estudo da
mesma autora, foi um local de intermediação do tráfico Atlântico, portanto um
espaço de encontro e de formação de diferentes identidades.
A produção das panelas era realizada, em sua grande maioria, por mulheres
índias e negras, viúvas e solteiras, cuja posição socioeconômica era desfavorecida
(AGOSTINI, 2010). Essas paneleiras mulheres representavam cerca de 70% da mão
de obra produtora desses objetos, podendo ser livres ou escravas, e vendiam
diretamente suas mercadorias; e assim ocorriam as relações sociais entre grupos
diversos. Mais uma vez estão postas, nesse estudo, as questões relativas a
identidades e as dinâmicas sociais ocorridas ao longo do tempo, tanto em função do
59
mercado, quanto dos envolvidos na produção, uma vez que os símbolos inseridos
na cerâmica variavam de acordo com o artefato e a época de sua confecção. Os
africanos e afro-descendentes de diferentes regiões do Brasil estavam entre os
produtores e os consumidores dessas panelas. Segundo Agostini (2010), os
africanos, apesar de ser a minoria produtora, estariam influenciando na confecção
das panelas e símbolos inseridos na decoração que teriam sentidos atribuídos e não
seriam meramente estéticos. Alguns aspectos decorativos foram extintos de uso nas
cerâmicas com o fim da escravidão e não é possível inferir sobre o significado
implícito desses símbolos. Porém “pode-se, ao menos, inferir sua dinâmica em redes
de sociabilidade que envolviam africanos de diferentes procedências, seus
descendentes crioulos e a população caiçara local” (AGOSTINI, 2010. p. 140).
Assim, para Agostini (2010) a estética conferida às panelas confeccionadas e
consumidas propiciava uma rede de relações. Nessas redes, além do uso das
panelas caiçaras por africanos e seus descendentes por conta das simbologias das
insígnias e tudo o que elas acarretam, há a ideia de que utensílios de uso cotidiano,
na cozinha, podem servir para a manutenção dos referenciais africanos que dentro
da diáspora são reinterpretados, como nesse caso ocorreu pela população caiçara.
Como já foi comentando, as pesquisas em Arqueologia da Escravidão no
Brasil são incipientes, ainda mais quando comparadas à disciplina nos Estados
Unidos, porém elas vêm crescendo nos últimos anos em vários locais, incluindo o
Rio Grande do Sul. Não temos como abordar todas as pesquisas arqueológicas que
têm sido desenvolvidas sobre escravidão, porém neste breve apanhado podemos
acompanhar alguns dos temas mais explorados. O país apresenta-se como um
campo fértil para esses estudos e a cidade de Pelotas, com todo o seu potencial
calçado na história da indústria charqueadora, cuja principal engrenagem para seu
funcionamento era a mão de obra escravizada, está começando a ser alvo do
interesse de pesquisadores a partir do projeto do arqueólogo e professor da UFPEL
Lúcio Ferreira Menezes (2009) O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na
Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888).
60
1.3.2 – A cidade de Pelotas como foco de pesquisas em Arqueologia da
escravidão
Seguindo as pesquisas ainda incipientes sobre a Arqueologia da Escravidão
no Brasil, a região de Pelotas conta com raros trabalhos desenvolvidos até o
momento. Comumente, os estudos sobre escravos estão contemplados na área da
História visando uma análise do trabalho, das práticas cotidianas, das práticas
religiosas, da resistência ao sistema escravista e da memória de quem viveu, direta
ou indiretamente, a escravidão, entre outros (FERREIRA, 2009; DALLA VECHIA,
1994; MAESTRI, 1984; AL-ALAM, 2008; SILVA, 2001).
Dois recentes trabalhos em Arqueologia da Escravidão na região de Pelotas,
realizados por Rosa (2012) e Rocha (2014) contemplam o tema, ambos no âmbito
do projeto O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Rio
Grande do Sul (1780-1888). O primeiro traz uma abordagem sobre paisagem das
charqueadas pelotenses, em que a autora analisa a dinâmica do funcionamento
desses estabelecimentos e a ação dos escravos nesses locais; o segundo faz uma
apreciação espacial de estruturas arqueológicas no local denominado “Passo dos
Negros”, com o intuito de observar as transformações, ao longo do tempo, da
paisagem, da história e do contexto político-econômico, em âmbitos local, regional,
nacional e global.
Estefânia Jaékel da Rosa (2012) apresenta um dos primeiros resultados
sobre as pesquisas em arqueologia da escravidão em Pelotas e, através do estudo
da estrutura interna de algumas charqueadas locais, procura evidenciar a vida
cotidiana do escravo na indústria saladeril em todos os seus aspectos. A abordagem
ocorreu por meio de fontes escritas e mapeamentos das regiões de interesse. Uma
análise dos documentos escritos com uma visão arqueológica foi fundamental para
apreender as informações sobre objetos domésticos e da indústria, sobre a
distribuição espacial da arquitetura das charqueadas exploradas, bem como sobre
os dados que dizem respeito aos indivíduos livres e escravos envolvidos nesse
ambiente. A intenção da autora centra-se em compreender a vida sociocultural dos
escravos, isolando-os de seu conceito como mercadoria e colocando-os como
sujeitos de agência, que possuem suas próprias redes de relações, resistem ao
sistema e procuram obter melhorias de seu cotidiano em cativeiro.
61
Rosa (2012), além de trabalhar com estabelecimentos já conhecidos dos
estudos historiográficos e arquitetônicos, como a Charqueada São João, a de
Boaventura Rodrigues Barcellos, a do Barão do Butuí, a do Barão do Jarau e a de
Manoel Soares da Silva, realizou a descoberta de uma nova charqueada
denominada Santa Bárbara. Essa descoberta ocorreu a partir de indicações do
professor e arqueólogo Cláudio Carle que havia feito uma vistoria de terrenos
adquiridos pela UFPel em 2010. Os terrenos beiram o local do antigo arroio Santa
Bárbara; Carle observou um conjunto de estruturas edificadas, as quais se
assemelhavam às propriedades charqueadoras do século XIX. Após entrevistas com
moradores locais e algumas visitas, chegou-se a conclusão de que ali existiu um
complexo charqueador (ROSA, 2012. p. 137). Posteriormente, no ano de 2011,
iniciaram-se escavações onde foram achados materiais como louças, vidros, restos
faunísticos, contas de colar, fragmentos de um cachimbo cerâmico, outros
fragmentos cerâmicos e uma moeda do século XIX (ROSA, 2012). A autora não
aprofunda as análises sobre os materiais, porém sugere que, a partir das fontes
documentais, é possível inferir sobre questões da escravidão nessa charqueada,
além de indicar a necessidade de mais intervenções arqueológicas no local.
Marcelo Garcia da Rocha (2014) investigou a região denominada Passo dos
Negros localizada em um espaço geográfico de 26 hectares, hoje conhecida como
Chácara da Brigada. Partindo de documentos escritos e algumas primeiras
observações de estruturas e outros materiais existentes nessa localidade, o autor
apresenta uma proposta de cunho arqueológico para tentar entender de que
maneira a região do Passo dos Negros relacionou-se com outros lugares do mundo
firmando essas relações primordialmente no comércio do charque e outros
derivados bovinos. Assim, procura apresentar o valor patrimonial e histórico do sítio
em questão. O Passo dos Negros apresenta elevada importância durante o século
XIX por ser um local de entrada e saída de diversas mercadorias. Ali, havia grande
circulação de objetos, gêneros alimentícios e pessoas, incluindo escravos, e a região
abrigou 3 charqueadas. Por todos esses aspectos, Rocha (2014) indica seu
potencial para pesquisas arqueológicas sobre escravidão. Durante as visitas ao
local, foram encontrados superficialmente, durante um caminhamento, fragmentos
de louça e cravos de metal (possivelmente associados à linha férrea). Além do
georreferenciamento dos locais onde esses fragmentos foram encontrados, foram
elaborados mapas dos conjuntos de prédios e mapas do trânsito de mercadorias
62
que saíam e chegavam a Pelotas através do Passo dos Negros, indo e vindo de
outros locais do Brasil, das Américas e da Europa (ROCHA, 2014). Dessa forma, o
pesquisador, além de apresentar uma discussão da diáspora africana, consegue
fazer uma conexão de Pelotas com vários locais do mundo, dentro de uma
perspectiva do arqueólogo Charles Orser (1998), sobre o processo global de
formação do mundo moderno (ROCHA, 2014. p. 20).
Além desses dois trabalhos acima apresentados, em regiões próximas a
Pelotas/RS, Gil Passos de Mattos tem desenvolvido pesquisas também no âmbito
do projeto O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Rio
Grande do Sul (1780-1888), em que mapeia e trabalha com comunidades
remanescentes quilombolas no entorno desse município, bem como em municípios
vizinhos, como no quilombo Maçambique, em Canguçu, no Monjolo, em São
Lourenço do Sul (comunicação pessoal) e no Fazenda Cachoeira, em Piratini
(MATTOS, 2014).
Busco, portanto, acrescentar uma análise arqueológica que aborde o tema e
que possa auxiliar no entendimento das relações sociais entre escravos, senhores e
comerciantes. A ênfase está no cotidiano das mulheres escravas relacionadas
especialmente ao trabalho doméstico, tanto no ambiente charqueador rural, quanto
no urbano, uma vez que, em Pelotas, esses dois pólos são permeáveis.
1.4 – As mulheres escravas nas pesquisas arqueológicas
Como tem sido discutido usualmente, há uma dificuldade em se discernir,
com um certo grau de certeza, quais são os materiais atribuídos a escravos e quais
atribuídos a outras camadas de trabalhadores e senhores (e mais ainda quando se
trata de sítios urbanos e no ambiente doméstico) e deve-se sempre ter em mente
que há o risco de o pesquisador acabar por essencializar suas análises sobre a
cultura material (SAMFORD, 1996; MACHADO, 2004; SYMANSKI & SOUZA, 2007;
ROSA, 2012). Portanto é necessário que se compreenda os contextos escravos, as
formas de distribuição dos assentamentos, identificando as unidades domésticas e
laborais, para um melhor discernimento no momento das análises dos artefatos
(SINGLETON, 1995; SAMFORD, 1996). Com os materiais atribuídos aos cativos
homens e mulheres pode ocorrer o mesmo problema; para evitá-lo, as fontes
63
escritas fornecem dados imprescindíveis para o entendimento tanto dos espaços
femininos e masculinos, quanto dos artefatos atribuídos a um ou outro. Alguns
espaços femininos e masculinos podem ser identificados nos contextos escravos,
como ocorre nas pesquisas das senzalas nas Américas continentais e ilhas do
Caribe que apontam para uma variedade de modos de habitação escrava, e há uma
certa separação entre os escravos de diferentes ocupações, bem como entre
espaço de escravos solteiros e escravos com famílias, e espaços de homens e de
mulheres (SAMFORD, 1996; HEATH, 1999; MARQUESE, 2005; SYMANSKY &
SOUZA, 2007; SLENES, 2011; ROSA, 2012).
Ainda que se deva analisar os materiais sempre com cautela, os usos de
algumas ferramentas podem ser associados a escravos homens ou mulheres, de
acordo com as atividades exercidas por ambos os sexos. Também devemos ter em
mente que os materiais associados aos escravos podem ser de utilização de grupos
ou de uso individual, quando os escravos eram claramente donos dos artefatos,
como é o caso de canivetes e dedais, objetos pessoais (HEATH, 1999). Nos anos
1990, no sítio arqueológico da fazenda Poplar Forest, propriedade de Thomas
Jefferson, localizada no sul dos Estados Unidos, pesquisadores conseguiram
identificar algumas ferramentas que podem ser atribuídas a homens ou a mulheres,
de acordo com o trabalho especializado dos escravos. Incluem-se nos artefatos de
uso feminino, peças de fiar e tecer, além de algumas fibras como lã, algodão, linho e
cânhamo, todos encontrados no espaço destinado aos escravos. Segundo Heath
(1999), isso indica que ao menos durante certo período de tempo, as cativas
trabalhavam na produção de roupas dentro do espaço escravo.
Alguns objetos encontrados e que foram atribuídos às mulheres cativas são
tesouras, tesourinhas, alfinetes e dedais, além de botões, indicando, portanto as
mulheres dispensando muito de seu tempo no ambiente doméstico, na costura para
si e para suas famílias. Aos homens artesãos, associam-se os resquícios de serras
de ferro, verrumas, cunhas, javre de ferro e uma dobradiça. Os materiais indicam
carpinteiros e produtores de barris, entre outros especialistas. Muitos artefatos
encontrados devem ter sido adaptados a partir da reciclagem de objetos que seriam,
anteriormente, de propriedade da casa grande. Uma série de outros artefatos não
atribuídos a atividades laborais também foram encontrados como moedas, botões
de vários tamanhos, fivelas, contas, entre outros objetos de adorno e uso pessoal
64
(HEATH, 1999). Os materiais encontrados atribuídos às atividades diárias de
trabalho indicam os espaços das mulheres no ambiente doméstico, enquanto os
homens estão no meio externo, o que ocorre comumente, apesar de as
especializações femininas e masculinas poderem se misturar e ultrapassar esses
espaços.
O trabalho arqueológico de Rosa (2012), assim como de historiadores cujos
estudos centram-se nas charqueadas pelotenses, apresenta um levantamento sobre
as profissões dos escravos especializados nas charqueadas pelotenses no século
XIX e aponta em inventários de proprietários de charqueadas, escravos homens
trabalhando como alfaiates, mucamos e cozinheiros, entre outros, o que indica que
eles utilizam artefatos comumente ligados às atividades femininas, como materiais
de costura e cozinha. Isso corrobora a ideia do cuidado na leitura arqueológica dos
artefatos.
A confecção de alguns objetos também pode ser atribuída ao meio feminino
ou masculino e os símbolos inseridos nas cerâmicas podem indicar não só uma
marca de etnicidade e questões sociais ou mágico-religiosas, como um parâmetro
de sexo (DeCORSE, 2001; LITTLE, 2007; AGOSTINI, 2010; SYMANSKI &
HIROOKA, 2013). DeCorse (2001) também nos fala que, na África, a confecção de
potes e panelas de cerâmica, entre outros, em geral é uma atividade feminina, ainda
que em algumas regiões tanto homens quanto mulheres podem produzir vasilhas e
cachimbos de cerâmica. Mesmo a questão de status aparece dentro de uma
comunidade, ou ainda, dentro de um grupo com um mesmo gênero atribuído
(homens/mulheres), como nos aponta Hodder (1982), cujo estudo etnoarqueológico
não está centrado em populações cativas africanas ou afro-descendentes, mas com
povos na África.
Em estudo no Engenho São Joaquim no Mato Grosso/Brasil, Symanski &
Hirooka (2013) indicam as mulheres escravas fabricando vasilhas cerâmicas de
produção local e utilizando-as no preparo de alimentos para si e dentro da casa
grande. Apesar de existir uma proporção de 15 escravos para 10 cativas, elas estão
presentes nas atividades diárias da fazenda. As confecções desses artefatos
cerâmicos indicam uma série de informações sobre seus produtores.
Isso não ocorre apenas nos estudos com povos africanos e afro-americanos,
os quais alocados nas Américas transformaram e firmaram novas identidades ao
65
longo do processo transatlântico, o que reflete tanto na produção, quanto no uso dos
objetos (DeCORSE, 2001; AGOSTINI, 1998, 2010) e deve-se ter em conta que os
artefatos são passíveis de múltiplos agentes de uso (SYMANSKI & SOUZA, 2007).
Portanto, nem sempre as análises serão precisas, como acontece em outras áreas
de investigação em que se trabalha com gênero, como na arqueologia pré-histórica,
por exemplo. (PESSIS, 2005).
Como já foi comentado anteriormente, considera-se, em geral, os espaços
domésticos como do âmbito das mulheres, sendo assim, muitos objetos associados
a tarefas da casa são atribuídos ao universo feminino, enquanto objetos de funções
externas à casa estão no meio masculino (HEATH, 1999; MACHADO, 2004;
SOUZA, 2007). Obviamente, como já foi discutido, não se deve essencializar os
achados, pois muitos artefatos do meio doméstico eram utilizados por homens, bem
como os do meio externo, eram usados por mulheres; assim como não se deve
atribuir um objeto a uma camada específica, como escravos ou senhores, sem levar
em conta todo um levantamento documental e o contexto arqueológico onde os
artefatos ou fragmentos foram achados (SAMFORD, 1996; HEATH, 1999;
SYMANSKI & SOUZA, 2007; ROSA, 2012; SYMANSKI & HIROOKA, 2013).
Por outro lado, para Battle-Baptiste (2011), arqueóloga atuante no feminismo
negro nos Estados Unidos, as unidades domésticas dos escravos são áreas
especiais que não se restringem ao espaço físico, pois apresentam múltiplos
significados para seus ocupantes, uma vez que elas se transformam em centro de
“vida, cultura, tradição e humanidade” (p. 87). É um ambiente que nunca pode ser
totalmente controlado pela “jurisdição” do sistema escravista, apesar de estar dentro
dele e, apesar de serem diferentes para cada tipo de fazenda ou espaço urbano, as
unidades domésticas dizem muito a respeito das mulheres cativas. Segundo BattleBaptiste (2011), uma de suas preocupações é que se associa exageradamente o
espaço doméstico físico como local das mulheres escravas. Para a autora, que
defende a perspectiva de uma “black feminist archaeology”, a esfera doméstica
escrava ultrapassava as paredes estruturais da casa ou da senzala e seu entorno,
pois o trabalho doméstico pode ser entendido como compartilhado entre os vários
outros espaços nas plantations onde cada membro da comunidade tinha tarefas
cotidianas e responsabilidades. Os cuidados com as crianças, a preparação de
alimentos, a manutenção da unidade familiar e a manutenção dos relacionamentos
66
domésticos e pessoais eram problemas que as mulheres não-cativas lidavam de
outras formas, possivelmente considerando o âmbito doméstico como um espaço
físico mais restrito (BATTLE-BAPTISTE, 2011).
Juntamente com os achados advindos de escavações, os trabalhos com
fontes documentais, etno-história e etnografias são importantes para o entendimento
dos
contextos
escravos
(SAMFORD,
1996).
Assim,
além
dos
trabalhos
arqueológicos que utilizam prospecções e escavações em sítios escravos, temos
pesquisas baseadas em documentos escritos e em iconografia, como nos mostra
Sharpe (2003). A autora analisa imagens e documentos escritos para apresentar
mulheres escravas que foram e são importantes personagens da história de
resistência na região do Caribe e como esses ícones estão presentes no cotidiano
da população em narrativas e contos, além de aparecerem em artefatos do dia-a-dia
como em figuras de embalagens de produtos. Dessa forma, esses personagens
estão na formação da imagem das mulheres escravas não só como indivíduos
ligados à categoria trabalho e à casa, mas nas ruas e como líderes de movimentos
de libertação de populações cativas, e não mais “seres domesticados”. É o caso da
escrava conhecida como Nanny, a qual liderou um levante contra os senhores de
escravos na Jamaica e hoje sua imagem estampa xícaras, embalagens de produtos
alimentícios, entre outros.
Segundo Scott (2004), as pesquisas arqueológicas envolvendo questões de
gênero, assim como raça, etnia, entre outras, estão sendo cada vez mais exploradas
na tentativa de se buscar as raízes das desigualdades sociais que persistem ainda
hoje. Assim, os estudos sobre como as questões de gênero eram moldadas dentro
do regime escravista são importantes para o entendimento da formação das
sociedades que se derivaram desse sistema e, quando se fala em mulheres negras,
para tentar compreender os problemas que persistem em relação a trabalho, família
e outros âmbitos da vida cotidiana.
A partir de 1995, em um trabalho arqueológico realizado por Singleton &
Bograd, o papel de gênero passou a ser considerado nas interpretações dos sítios
escravos (SCOTT, 2004). Uma série de estudos se seguiu abrangendo, em geral, as
plantations nos Estados Unidos com o foco na cultura material dos elementos
homem/mulher, apesar de algumas pesquisas dedicarem-se a outros contextos. A
maioria das arqueólogas que se dedicam ao tema de gênero são mulheres e muitas
67
evidenciam o viés feminista de seus estudos, embora outras não sejam tão
explícitas nessa questão; entretanto todas buscam a compreensão de como o meio
social em que as mulheres escravas viviam “moldavam-nas” e, ao mesmo tempo, de
como elas modificavam ou mantinham o sistema, seja através de seus trabalhos,
suas relações familiares, religiosas e nas relações com seus senhores, etc. Com
essas interpretações pode-se trazer análises para o tempo presente na tentativa,
então, de compreender as questões de desigualdades existentes (SCOTT, 2004;
BATTLE-BAPTISTE, 2011).
Embora exista um crescente interesse pela arqueologia da escravidão e
diáspora africana e, no país que inaugurou a temática - os Estados Unidos - haja
numerosos trabalhos na área, muitos deles já contando com análises de gênero
(especialmente falando em homens/mulheres), no Brasil os estudos sobre os
escravos em geral ainda estão em seu início e sobre as mulheres escravas a
produção é menor ainda.
Em Pelotas, cidade com sua formação histórica baseada na mão de obra
cativa, ainda que existam estudos sobre a escravidão, especialmente na área da
História, são poucos os que dedicam o foco principal às mulheres escravas. Na
arqueologia, como já comentado, os trabalhos em escravidão africana e afrobrasileira ainda são ínfimos e nenhum contempla as questões de gênero. Há,
portanto, um grande campo a ser explorado, uma vez que em Pelotas o sistema
escravista perdurou por mais de um século, como será discorrido no capítulo a
seguir.
68
CAPÍTULO II – A ESCRAVIDÃO NO SUL DO BRASIL
2.1 – Breve apanhado sobre os estudos da escravidão no RS
Paira no imaginário nacional que o Rio Grande do Sul é um estado
branco, onde não existem negros, ou que neste lugar a escravidão
foi “mais branda”, corroborada pelo mito da “democracia pastoril”.
(ESCOBAR, 2010. p. 48)
Por mais estranho que esse mito de um Rio Grande do Sul branco ou com um
processo de cativeiro mais brando possa soar aos ouvidos de quem tem interesse
em trabalhar com o contexto da escravidão, a maior parcela da população brasileira
ainda considera este Estado dentro desse modelo. Isso, em grande parte, deve-se
aos primeiros historiadores que trabalharam com o assunto.
Nos primórdios dos estudos sobre a constituição do Rio Grande do Sul, em
fins do século XIX e início do XX, dentro da chamada corrente tradicional, a
participação do negro escravizado era quase inexistente na formação da população
sulina. Além dessa invisibilidade, traziam a ideia de uma harmonia quase total entre
negros e brancos, o que seria um diferencial entre o tratamento dado aos escravos
neste Estado em comparação a outras províncias brasileiras. (CARDOSO, 1977;
SILVA e CUNHA, 2007; MAESTRI, 2008; XAVIER, 2009; ESCOBAR, 2010). Esses
historiadores tinham por base especialmente os relatos dos viajantes e naturalistas
europeus do século XIX. Estes, ainda que em alguns momentos tenham se sentido
chocados pelo tratamento dispensado aos escravos, corroboram a ideia de uma
democracia pastoril em que o cativo dos campos sulinos seria mais livre e menos
submisso (MAESTRI, 2008; ESCOBAR, 2010).
O francês Auguste Saint-Hilaire, em sua visita ao Rio Grande do Sul em 1820,
narra sua impressão sobre essa relação supostamente mais benevolente dos
senhores e de uma maior liberdade dos escravos:
[...] não há talvez, no Brasil, lugar algum onde os escravos sejam
mais felizes do que nesta Capitania. Os senhores trabalham tanto
quanto os escravos; conservam-se próximos a eles e tratam-nos com
menos desprezo. O escravo come carne à vontade; não veste mal;
não anda a pé; sua principal ocupação consiste em galopar pelos
campos, o que constitui exercício mais saudável do que fatigante;
enfim, ele faz sentir aos animais que o cercam uma superioridade
69
consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios
olhos. (SAINT-HILAIRE, 1987. pp. 52 e 53)
Da mesma forma, o comerciante francês Nicolau Dreys fala sobre o trabalho
menos forçoso dos escravos do campo, quando diz que “nas estâncias pouco tem
que fazer o negro, excepto na occasião rara dos rodeios” (DREYS, 1839. p. 203
apud CARDOSO, 1977).
Entre tantos outros, um dos principais historiadores dessa corrente tradicional
foi Jorge Salis Goulart que centra seus esforços em demonstrar essa ideia de
“democracia pastoril” no Rio Grande do Sul, o que significaria um relacionamento
menos servil e mais próximo entre senhores e escravos (CARDOSO, 1977;
MAESTRI, 2008). Goulart (1935, apud CARDOSO, 1977) afirmava que as atividades
pastoris teriam sido desenvolvidas por brancos ou por indígenas e que a própria
família do estancieiro cuidava das criações e plantações, deixando clara a quase
nula presença negra.
70
Figura 3 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul em 1809. (compilado de
COSTA, 2013)
Segundo Camargo (2013), para estudar o pampa sul-riograndense como um
todo, incluindo a presença dos negros na formação do Estado, foi necessário passar
por autores como Emílio Fernandes de Souza Docca, Moysés Vellinho, Arthur
Ferreira Filho, Walter Spalding, entre outros, principalmente entre os anos de 1930 e
1970. Todos, a exemplo de Salis Goulart, sugeriam que, se por ventura houvesse
escravos negros trabalhando nas estâncias, eles estariam em uma posição mais
favorecida em relação aos cativos de outras províncias brasileiras.
Dante de Laytano (1957) é um dos primeiros historiadores a explorar a
presença do negro no sul e aponta para o próprio Saint-Hilaire referindo-se a essa
71
“escravidão mais branda” apenas em relação às fazendas e estâncias, pois no
momento em que o viajante se depara com a realidade das charqueadas, suas
impressões são outras e a sua conclusão para a rigidez com que se tratava os
cativos nesses estabelecimentos devia-se à necessidade de corrigí-los e enquadrálos no modo de produção, pois chegavam à indústria “cheios de vícios” (LAYTANO,
1957). Segundo as palavras de Saint-Hilaire (1987):
Nas charqueadas os negros são tratados com muito rigor. [...] Já
tenho declarado que nesta Capitania os negros são tratados com
brandura e que os brancos com eles se familiarizam mais do que
noutros lugares. Isto é verdadeiro para os escravos das estâncias,
que são poucos, mas não o é para os das charqueadas que, sendo
em grande número e cheios de vícios trazidos da capital, devem ser
tratados com mais rigor. (pp. 86 e 87)
Laytano (1957) publica uma obra confirmando que os negros estiveram
presentes neste território desde sua ocupação e, como escravos, eram considerados
indispensáveis ao colonizador, embora seus estudos fossem cunhados em uma
visão de supremacia de algumas etnias sobre outras e com a ideia de miscigenação
e branqueamento, posição comum entre os intelectuais desse período (ESCOBAR,
2010). Além disso, o autor analisou vários outros aspectos da sociedade que
envolviam a presença negra, como as casas de cultos afro-brasileiros e cultos da
cosmogonia sudanesa, as charqueadas e as batalhas da Revolução Farroupilha.
Assim, apontou caminhos para se pensar a participação do africano e afrodescendente na formação sociocultural e econômica rio-grandense (MAESTRI,
2008).
Maestri (2008) chama a atenção para as questões da memória, do que se
quer fixar e o que se quer esquecer quando alguns elementos não são incluídos na
história oficial. Havia uma intencionalidade dos estudos em não visualizar os negros
na composição da sociedade sulina, já que a presença cativa é confirmada em
relatos e documentos oficiais os quais mostram a existência dessa população no
território desde muito tempo. Segundo este autor, em 1872 o Sul era a sexta região
em número absoluto de cativos (p. 54). Portanto, a corrente da história tradicional
firma-se sobre a desqualificação do negro como escravizado em benefício do branco
como colonizador e dominador por excelência, ou seja, o elemento que acarretou o
“progresso” do Rio Grande do Sul (MAESTRI, 2008).
72
A partir do final da década de 1970, há um aumento de pesquisas advindas
dos primeiros cursos de História do Estado. Com isso, há um crescimento nos
debates sobre a formação do Rio Grande do Sul em que se problematiza a suposta
existência de um padrão de comportamento e convivência interétnica (“democracia
racial”) e a “leveza” do trabalho dos cativos africanos e afro-descendentes da
província (CAMARGO, 2013).
Um dos estudos pioneiros para demonstrar a efetiva participação do negro
cativo na composição da sociedade rio-grandense numa perspectiva sociológica
observando as relações polarizadas entre senhores e cativos foi o de Fernando
Henrique Cardoso (1977), cuja argumentação procura desconstruir esse mito da
“democracia rural gaúcha”. Para o autor, o entendimento das relações que se davam
entre senhores e escravos, só é possível quando se percebe os componentes de
base da sociedade escravagista. Assim, Cardoso (1977) considera a família, a
estância, a charqueada e a cidade:
[...] é preciso compreender concretamente de que maneira, em cada
uma das situações típicas e decisivas para a constituição da
sociedade senhorial gaúcha, o escravo se inseria nos sistemas
sociais particulares que nelas se desenvolviam e como se
articulavam esses vários sistemas num todo complexo. [...] não basta
a enumeração das situações e sua descrição: é preciso compreender
os mecanismos sociais básicos que mantinham senhores e escravos
em cada uma dessas situações em posições determinadas de
afastamento recíproco e o conjunto de valores que orientavam seus
comportamentos. (p. 127)
Maestri (1984) também busca uma nova perspectiva sobre os escravos
procurando mostrar o lugar ocupado por esses indivíduos na gênese da sociedade e
foca seus estudos sobre as charqueadas como elementos fundamentais para a
sustentação do sistema escravista. Este autor, ainda, inaugurou os estudos sobre
resistência escrava no Brasil meridional, os quais continuam sendo explorados.
Outras pesquisas se seguiram e passa-se, então, a uma mudança no modo
de pensar as relações entre os diferentes componentes da sociedade escravagista
sulina. Assim, a corrente de vanguarda, representada especialmente por
historiadores a partir da década de 1980, mostra cativos africanos e afrodescendentes como participantes ativos da população rio-grandense em todos os
seus aspectos e esclarecem que não há diferença de tratamento para com os
73
senhores e seus escravos entre as diversas províncias onde a base da economia
era o sistema escravista (MAESTRI, 2008; SILVA e CUNHA, 2007; ESCOBAR,
2010; ROSA, 2012).
As pesquisas sobre a indústria charqueadora, por sua relevância em
impulsionar e manter o sistema escravista no sul, acabaram por esquecer que o
cativo negro estava presente em outros locais e exercendo atividades além das
atinentes ao ambiente saladeril. Foi principalmente a partir da década de 1990 que
os historiadores se dedicaram à experiência da escravidão em meio a outras
atividades agro-pastoris e urbanas, não só relativas às questões de trabalho, mas
nos diversos âmbitos da sociedade (XAVIER, 2009).
Porém, deve-se refletir que foi a partir da categoria trabalho que se
instauraram os estudos sobre o sistema escravista, pois foi da necessidade de mão
e obra cativa para impulsionar a economia rio-grandense que se estabelece essa
sociedade. Assim, mesmo as questões de resistência, de etnicidade, de liberdade,
de comercialização, entre outras, estão calçadas, primordialmente, nessa categoria.
E, quando se trata de estudar o meio urbano, cabe ressaltar que as cidades do Rio
Grande do Sul não se encontravam isoladas umas das outras: comunicavam-se
entre si e com outros locais do Brasil e exterior, assim como os ambientes rurais e
urbanos não são afastados um do outro. As experiências passadas por escravos nos
diferentes locais, ainda que com suas peculiaridades, não deixavam de apresentar
semelhanças.
Para demonstrar o quanto os cativos, homens e mulheres, estavam inseridos
na sociedade oitocentista formando a população rio-grandense e, em especial,
pelotense, devemos primeiro recordar de que maneira os cativos africanos ou afrodescendentes entraram em território rio-grandense.
2.2 - Escravos africanos em território rio-grandense
A história dos escravos africanos em terras brasileiras remonta aos princípios
da colonização lusitana onde a produção açucareira foi uma das grandes
propulsoras do uso de mão de obra escrava africana nas Américas. Após 1560, nas
principais capitanias açucareiras brasileiras a mão de obra indígena foi rapidamente
substituída pelos africanos e seus descendentes. O Brasil foi uma das primeiras
74
colônias a desenvolver diversas atividades agro-industriais e extrativas a partir
desse trabalho, além de ser o último país a abolí-lo. (SIMÃO, 2002; MAESTRI,
2006).
Dentro das mercadorias extraídas ou produzidas pelo trabalho escravo, além
do açúcar, tem-se arroz, café, fumo, minerais e pedras preciosas, entre outros.
Frutos da entrada de gado nas América há, também, primeiramente a extração dos
derivados bovinos, em especial o couro, altamente valorizado em detrimento dos
outros produtos devido à ausência de um modo pleno de conservação das carnes e,
posteriormente a produção do charque, principal base econômica do Brasil
meridional no século XIX. Foi o charque industrializado o responsável pela
solidificação do sistema escravista sulino, pois, a grande produção para o mercado
externo demandava uma quantidade de mão de obra que, se assalariada
dificilmente propiciaria uma atividade economicamente rentável. Além disso,
geralmente mesmo os mais pobres trabalhadores livres evitariam as charqueadas,
tamanha brutalidade do serviço. (CARDOSO, 1977; MAESTRI, 1984; SANTOS,
1991; SIMÃO, 2002; ROSA, 2012; RIETH et al., 2013).
As primeiras menções específicas aos escravos africanos são encontradas na
documentação que se segue à fundação da Vila do Rio Grande, em 1737, quando
se inicia a colonização sistemática do atual Rio Grande do Sul (LAYTANO, 1957. p.
30; BAKOS, 1982). Ainda assim, acredita-se que a presença do cativo negro
precede a essa data, tendo entrado nesse território possivelmente com a frota de
João de Magalhães (em 1725), que contava com a maior parte de seu corpo
formado por cativos negros e cujo objetivo seria evitar que espanhóis e grupos
nativos instalassem-se na região da campanha (CÉSAR, 1970; CARDOSO, 1977;
SIMÃO, 2002; MAESTRI, 2008).
Embora em seus primórdios a caça ao gado selvagem da primeira metade do
século XVIII não contasse primordialmente com a mão de obra cativa negra, ela
aparece nas vilas fortificadas e nos currais onde se matinha o gado preado.
(CARDOSO, 1977; SIMÃO, 2002). Cabe lembrar que nessa época a utilização dos
cativos negros não era tão comum, e ao longo do século XVIII seu número como
cuidadores dos currais foi reduzido, permanecendo a maior parte dos trabalhadores
escravizados vinculados às atividades domésticas e urbanas nas povoações que se
desenvolveram a partir das fortificações (CARDOSO, 1977). Nessa época de
75
gênese sul-riograndense já havia um grande desequilíbrio entre os sexos dos
cativos, bem como entre a população livre, fenômeno típico das regiões de fronteira.
Para os escravos, encontram-se números de mais de três homens para cada
mulher, enquanto entre as pessoas livres, essa proporção é de dois homens para
cada mulher (KÜHN, 2002).
Foi principalmente a partir da instalação das fazendas ou estâncias sulinas,
quando houve um decréscimo da economia baseada na preia ao gado, que se tem
um aumento na aquisição de escravos tanto para o trabalho nas plantações de trigo,
quanto para as criações de animais (MAESTRI, 2009). Segundo Kühn (2002), essas
primeiras propriedades rurais eram de homens que possuíam uma pequena
quantidade de cativos quando comparados aos criadores e charqueadores do século
XIX e em 1751, o militar Francisco Pinto Bandeira era considerado o maior
estancieiro sulino tendo, em suas posses, vinte trabalhadores escravizados.
Nesse primeiro momento de formação do território, o trabalho cativo já era,
portanto, essencial para a manutenção das fazendas, pois os trabalhadores livres
tinham possibilidade de produzir independentemente de senhores e patrões, como
consequência da abundância de terras a serem ocupadas, mesmo dentro de um
contexto de monopólio real das terras (MAESTRI, 2009. p. 93).
O escravo com plena capacidade para o trabalho rural tinha um alto preço e,
até o início do século XIX um cativo poderia ter o mesmo valor de uma pequena
propriedade ou de várias cabeças de gado, sendo os criadores considerados “mais
como senhores de escravos do que senhores de terras” (DAL BOSCO, 2008;
MAESTRI, 2009). Tanto o número de escravos das estâncias, quanto a atividade
que
eles
desempenhavam,
eram diretamente
pautados no
tamanho
das
propriedades rurais e suas características físicas e de produção. Enquanto em
algumas havia uma quantidade permanente de trabalhadores com funções
específicas, em outras uma única pessoa se encarregava de vários serviços e, em
outras, ainda, poderia existir um número oscilante de cativos, como ocorria em
regiões de plantações, onde o trabalho era sazonal, ou em locais em que existia o
consórcio de criatórios de reses e agricultura. (OSÓRIO, 1999; FARINATTI, 2003;
XAVIER, 2009).
Diferente da estância ou fazenda, em que um único campeiro pode dar conta
de pastorear uma grande quantidade de reses, nas charqueadas esse número de
76
escravos em uma única propriedade era ampliado, pois, nos períodos de safra
dessa indústria a demanda de trabalhadores era alta, e um único animal ocupava
uma série de pessoas especializadas para abatê-lo e operar nas atividades que se
seguiam. Assim, alguns estabelecimentos poderiam possuir até mais de 100 cativos
(OGNIBENI, 2005; ROSA, 2012; RIETH et al., 2013). Porém, da mesma forma como
ocorria com as propriedades de criação de gado, o número de cativos estava
relacionado ao tamanho do estabelecimento e ao poder aquisitivo do charqueador e
muitos trabalhadores circulavam entre o ambiente rural das charqueadas e o meio
urbano desempenhando atividades variadas (SIMÃO, 2002; GUTIERREZ, 2011;
ROSA, 2012).
Como já mencionado anteriormente, as charqueadas formam um importante
núcleo de manutenção do sistema escravista no século XIX, e é a partir desses
estabelecimentos que ocorre o desenvolvimento e a urbanização do município de
Pelotas. Então, para entender as questões sobre esses escravos que circulam entre
rural e urbano é necessário que nos reportemos aos princípios da formação da
cidade.
2.3 – A indústria saladeril na formação da cidade de Pelotas
2.3.1 – A ocupação colonial e o desenvolvimento da região
A ocupação colonial do território onde atualmente se encontra o município de
Pelotas ocorreu, efetivamente, a partir de 1777, quando Portugal e Espanha
assinam o Tratado de Santo Ildefonso e sesmarias são concedidas nessa região.
Em fins do século XVIII, essa zona era formada por sete estâncias, que
correspondem às sesmarias Feitoria, Pelotas, Monte Bonito, Santa Bárbara, São
Tomé, Santana e Pavão (MARQUES, 1987; ARRIADA, 1994; GUTIERREZ, 2011).
As propriedades tinham os seguintes limites geográficos: ao norte, a serra dos
Tapes; ao sul, o sangradouro da Lagoa Mirim; a leste e a oeste, intercalavam-se os
arroios Pavão, Padre-doutor ou Tomé, Fragata ou Moreira, Santa Bárbara e Pelotas.
A exceção era da sesmaria da Feitoria, que estava estabelecida entre a Laguna dos
Patos e os arroios Grande e Correntes (GUTIERREZ, 2011. p. 84).
77
Muitas sesmarias doadas aos militares foram, em seguida, vendidas em datas
(1.089 ha) (MARQUES, 1987) e, segundo Gutierrez (2011), a sesmaria do Monte
Bonito é de importância relevante nos estudos sobre Pelotas, pelo número de
estabelecimentos saladeris que ali se desenvolveram. Assim, instalam-se as
charqueadas em solo colonial português às margens do arroio Pelotas e, também,
na Banda Oriental do Uruguai, com suas localizações derivadas do acordo de Santo
Ildefonso (GUTIERREZ, 2011).
Figura 4 – Situação das Sesmarias de Pelotas e do Monte Bonito, de algumas estâncias e
dos principais cursos d’água da região. In: Gutierrez, 2010 (p. 33).
Devido à concorrência com esses estabelecimentos do solo espanhol, as
charqueadas no Rio Grande do Sul nem sempre foram prósperas, pois os saladeros
do Rio da Prata contavam com taxas de exportação mais baixas, gado de melhor
qualidade, abate mais organizado e facilitado escoamento da produção através dos
78
portos. Entretanto, por questões políticas, especialmente por guerras e lutas pela
independência platina, esse mercado passa a esmorecer e, consequentemente, há
um aumento de produção e exportação do charque rio-grandense (CARDOSO,
1977. p. 70 e 71).
As charqueadas ou saladeros (assim chamadas na região platina) eram
indústrias de salga de carne, onde ocorria o abate do gado e a produção de charque
e de outros derivados bovinos. O charque de vento (carne salgada, desdobrada em
mantas finas postas ao vento para secagem) já era confeccionado de forma
artesanal e mais comumente usado para o consumo interno das propriedades antes
de 1779 ou 1780, pois não havia outra forma de conservação das carnes que não
seriam consumidas imediatamente. A carne salgada já era, então, o principal
alimento dos escravos no Brasil e em outras partes do mundo. Porém essa data
marca o surgimento das charqueadas na região de Pelotas, as quais, ao longo do
século XIX, tornaram-se o principal fomentador econômico da região. O nome de
José Pinto Martins aparece como o primeiro proprietário a produzir em escala
industrial. Este produtor veio para o sul fugindo da seca que dois anos antes havia
assolado o Ceará, província que fornecia ao Brasil quase toda a carne seca ao sol e,
ainda que existam questionamentos quanto a essa primazia, anteriormente a carne
salgada no extremo sul do país era feita de maneira artesanal e em uma quantidade
bem aquém da realizada por esse charqueador (CARDOSO, 1977; MAESTRI, 1984;
MARQUES, 1987; OGNIBENI, 2005; GUTIERREZ, 2010; 2011; ROSA, 2012;
MAGALHÃES, 2013).
No decorrer do século XIX, o núcleo saladeril pelotense foi composto por até
30 charqueadas instaladas umas ao lado das outras na prévia sesmaria do Monte
Bonito (GUTIERREZ, 2011). Além do charque, outros derivados bovinos eram
extraídos como sebos, graxas, couros e chifres, destinados ao consumo local e à
exportação. As propriedades, conforme descrição do sítio charqueador pelotense de
Gutierrez (2010), constituíam-se em faixas de terras subdivididas em potreiros,
hortas, pomares de espinhos, olarias e o terreno ribeirinho. A casa, os varais de
secagem da carne salgada e os galpões de produção, dos sebos e dos couros
ficavam junto às águas. Essas indústrias funcionaram às margens dos arroios que
banham o município, pois as águas serviam para jogar os dejetos, escoar a
produção e importar sal e escravos, sendo essenciais para a exportação e
79
importação de produtos. (CARDOSO, 1977; MAESTRI, 1984; MARQUES, 1987;
ARRIADA, 1994; OGNIBENI, 2005; GUTIERREZ, 2010; 2011; ROSA, 2012).
Figura 5 - Distribuição das charqueadas e primeiro loteamento. In: Gutierrez, 2001. (p. 164)
Os viajantes europeus que passaram pela região das charqueadas
pelotenses no século XIX, descreveram-na como um ambiente “mórbido, insalubre,
que chegava a alcançar o macabro” e apresentaram a zona fabril como sendo digna
de admiração quando vista de longe; porém, ao chegarem perto, ainda nos barcos,
observaram porções de “ilhas movediças” nos arroios, formadas pelo acúmulo de
dejetos despejados pelas charqueadas, sentiram o mau cheiro e ouviram os urros
80
dos animais sendo abatidos (GUTIERREZ, 2010. p. 19). Alguns detalharam não só o
complexo de prédios e a distribuição dos espaços, mas o próprio abate e a
manufatura do charque, como foram os casos de Louis Couty (2000), em sua obra
de 1880, “A erva mate e o charque”, em que compara as indústrias rio-grandenses
aos saladeros platinos e de Nicolau Dreys, em 1839. Essas narrativas de viajantes
foram as principais fontes para os primeiros historiadores entenderem o cotidiano
das charqueadas, e são utilizadas até hoje para descrição do seu funcionamento
(MAESTRI, 1984; GUTIERREZ, 2001, 2004, 2010, 2011; ROSA, 2012).
Durante o período em que a escravidão permaneceu instituída no Brasil, a
maior parte da mão de obra era constituída por africanos e afro-descendentes
escravizados para o trabalho da manufatura do charque e outros subprodutos
bovinos – sebo, graxa, couro, entre outros (MAESTRI, 1984; GUTIERREZ, 2010;
ROSA, 2012). Durante os meses de novembro/dezembro a abril/maio, cerca de
2.000 escravos trabalhavam com aproximadamente 1.200 animais ao dia; durante
os meses mais frios, com pastagem escassa e o gado enfraquecido, não havia
produção (GUTIERREZ, 2010; MAGALHÃES, 2013). É justamente por essa
sazonalidade que por volta de 1820 os charqueadores da região ainda residiam na
Vila de Rio Grande, à qual Pelotas pertencia. No entanto, a evidente prosperidade
dos negócios, paulatinamente fez com que os proprietários viessem a residir
próximo às charqueadas (MAGALHÃES, 2013).
2.3.2 – A cidade se configura e se expande
Desde 1812, quando foi criada a Freguesia de São Francisco de Paula, hoje
Pelotas, havia um povoado entre as atuais Av. Bento Gonçalves e a rua General
Netto com algumas casas e, em 1813, o local recebeu a primeira capela; nesta
região, foram edificados os casarões dos charqueadores, expandindo o espaço cada
vez mais ao sul como modo de “fugir” do mau cheiro expelido pela indústria e das
várzeas que circundam a cidade (ARRIADA, 1994; MAGALHÃES, 2013). Com a
riqueza e o adensamento populacional propiciado pela produção, a maioria dos
donos de saladeros mantinha propriedade urbana, então a cidade começa
efetivamente a se configurar (ARRIADA, 1994).
81
Figura 6 – Mapa da malha urbana de Pelotas em 1835. In: Gutierrez, 2004.
Ressalta-se que o apogeu do ciclo do charque ocorre especialmente pós
Guerra Farroupilha, a qual durou 10 anos e cujo fim ocorreu em 1845, quando há um
acordo sobre a tributação para que o produto rio-grandense pudesse concorrer
principalmente com a indústria platina; em 1851 impõem-se taxas de 25% sobre o
charque uruguaio e a isenção de impostos sobre o gado vivo que entrava para
82
abastecer o mercado do Rio Grande do Sul. (MONASTÉRIO, 2005. p. 6). Advindo,
portanto, das boas safras charqueadoras, expande-se o centro urbano econômico,
comercial e cultural da região, consolidando uma realidade que impulsiona a cidade
rumo à modernização com melhoramentos nos setores de iluminação, transporte e
saneamento, especialmente entre os anos de 1860 e 1890 (MAGALHÃES, 1993;
AGUIAR, 2009).
Por outro lado, é no último quartel do século XIX que se instala uma crise na
indústria charqueadora de Pelotas com a chegada da abolição e com um período de
relevância econômica das regiões de fronteira brasileira com Uruguai e Argentina,
derivada principalmente da livre navegação nos rios e do envolvimento político e
comercial entre os três países, consequências do fim das guerras por
independência. Essa abertura impulsionou principalmente o município de Bagé,
localizado próximo à fronteira com Uruguai e grande fornecedor de gado para a
indústria saladeril pelotense, a intensificar sua criação de gado e a estabelecer suas
próprias charqueadas, ações incentivadas, também, pelas vias férreas que
facilitavam o transporte do produto por terra até Rio Grande. Esses foram alguns
fatores que contribuíram para a queda da indústria do charque em Pelotas
(SOARES, 2006; RIETH et al., 2013; LAGO, 2014).
Dessa forma, o investimento em outros produtos e serviços passa a fazer
parte do cotidiano pelotense mais intensamente e uma série de pontos comerciais e
fábricas são exploradas dando outro panorama socioeconômico ao município.
Setores variados entram nesse cotidiano comercial, como indústria de vestuário e
calçados, fiação e tecidos, chapéus, móveis e acessórios para casa, produtos de
olaria, fábricas de sabão, de velas, de cerveja, entre outros. E, ainda, havia as
charqueadas, fornecendo matéria prima para curtumes, e outros pontos industriais e
comerciais, em que se utilizava mão de obra escrava ou livre. O pólo comercial do
município, com o passar do tempo, desvia-se das charqueadas para a cidade
(MAESTRI, 2008; AGUIAR, 2009).
Não é possível separar o estudo da escravidão na cidade e nas charqueadas,
uma vez que foi essa indústria a propulsora do desenvolvimento de Pelotas. Rural e
urbano se confundem e os escravos que não estão operando diretamente em
serviços especializados na indústria saladeril em períodos de safra podem operar
em diversas atividades laborais domésticas ou externas em ambos espaços
83
(CARDOSO, 1977; MAESTRI, 1984; GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012). Essas
atividades ultrapassam, portanto, o ambiente charqueador, impulsionando o escravo
para regiões urbanas, tanto na entressafra, quanto nos períodos de declínio da
indústria.
2.4 – Apontamentos sobre as práticas cotidianas dos cativos na sociedade
oitocentista do Rio Grande do Sul e de Pelotas
2.4.1 – A resistência ao sistema escravista
Um dos temas frequentemente explorado tanto no âmbito rural, quanto no
ambiente urbano diz respeito às práticas de resistência ao sistema escravista sulino.
Isso porque esse tema enfatiza o quanto, apesar de existirem negociações entre
cativos e senhores, não havia aquela escravidão passiva indicada pelos primeiros
historiadores da corrente tradicional e apresenta um quadro sociocultural dos cativos
em meio ao mundo escravista. Não se pode esquecer o quanto aquele sistema era
cruel para os trabalhadores, entretanto não é mais aceitável colocar o escravo como
indivíduo vitimizado ou acomodado em todas as situações.
Enquanto alguns autores defendem as formas mais radicais de resistência
através de conflitos diretos com seus senhores como fugas, aquilombamentos,
criminalidade e atos de violência em geral, outros estudiosos apresentam estratégias
utilizadas pelos cativos de forma mais cotidianas, como sua presença em espaços
“inapropriados”, embriaguez, “imoralidade”, roubos e furtos, entre outros. Além disso,
havia a criação de espaços de convívio entre cativos e a população livre pobre,
locais da periferia em que era possível alugar quartos ou pequenas casas, ainda que
se tentasse, por meio de repressão, combater essa sociabilidade. (SIMÃO, 2002;
ZANETTI, 2002; MOREIRA, 2003; XAVIER, 2009; ROSA, 2012).
Segundo Xavier (2009), sobre as práticas urbanas:
Se a cidade era um lugar de conflitos e resistência para os escravos,
era, ao mesmo tempo, um lugar que propiciava espaços de
convivência à comunidade negra, importante na construção de
estratégias variadas na busca de melhores condições de vida. (p. 25)
84
Como citado anteriormente, Mário Maestri (1984) é um dos primeiros autores
a trabalhar com a ideia de resistência escrava no sul e com a formação de
quilombos em Pelotas e afirma que, assim como ocorreu nos outros locais
escravistas, as práticas eram decorrentes de atos individuais ou coletivos e seguiam
oportunidades e tendências locais e temporais. Nas resistências grupais, havia os
quilombos e as insurreições, temidas pelos senhores de escravos. Exemplos de
estratégias individuais são a oposição ao trabalho, dificultando a produção da
indústria; a violência contra seus senhores, como o “justiçamento”, quando o
escravo voltava-se contra seu amo, seu feitor ou suas famílias; o suicídio, que seria
uma “fuga” à escravidão e ao mesmo tempo causava danos ao seu proprietário; e as
fugas temporárias ou definitivas por liberdade ou por busca de outros senhores.
Petiz (2001) apresenta as fugas dos escravos urbanos e rurais do Rio Grande
do Sul para além-fronteira na primeira metade do século XIX. Essa prática era
estimulada, especialmente por uruguaios, argentinos e rio-grandenses dissidentes
que procuravam esses cativos para integrarem as causas militares. A alta frequência
dessa prática, de forma individual ou coletiva, é um “testemunho comprobatório de
que o negro não esteve impotente diante da organização social escravista” (PETIZ,
2001. p. 166).
Ainda nas questões de resistência mais radicais no ambiente urbano, Zanetti
(2002) fala sobre o desenvolvimento de Porto Alegre e já ressaltava a grande
participação negra como trabalhadores de ganho ou aluguel urbanos ou nos
arredores rurais da cidade. Em cima dessa categoria “trabalho”, a autora traz um
debate sobre os confrontos que existiam entre cativos e seus senhores e o quanto o
tipo de atividade influenciava nas questões de resistência ao sistema. As práticas
como fugas e crimes cometidos pelos cativos davam-se, especialmente, em função
das más condições de vida dos escravos de ganho propiciadas pela busca diária
para seu sustento.
Para Ana Regina Simão (2002), pode-se pensar que havia acomodação por
parte dos escravizados em Pelotas, especialmente quando se tratava de acordos e
promessas de alforria por bons comportamentos e fidelidade a seus senhores. A
autora buscou nas cartas de alforria e manumissões da primeira metade do século
XIX os dados para pensar sobre uma certa segurança que se criava para os
senhores, senhoras e suas famílias quando estes acenavam aos cativos uma
85
possibilidade de liberdade, evitando, assim, atos de fuga, justiçamento, sabotagem,
etc. (p. 68). Em contrapartida,
Sobretudo para os cativos domésticos, a conquista da confiança do
senhor era estratégica para a obtenção de “privilégios” incomuns à
ordem escravista. (SIMÃO, 2002. p. 68)
Da mesma maneira, Zanetti (2002) observa que as negociações de liberdade
entre escravos e senhores, através das cartas de alforria, não ocorriam de maneira
tão facilitada como se pode pensar. Os cativos não estavam acomodados ao
sistema, mas não tinham total controle sobre essas negociações, embora alguns
cativos pudessem ser mais beneficiados em relação a outros com as promessas de
liberdade.
Entretanto, quem mais ganhava com essas promessas certamente seriam os
senhores, já que muitas dessas cartas de alforria eram compradas pelos próprios
cativos (SIMÃO, 2002) e poderiam ser um jogo de estratégia dos senhores para
tentar “anular” o escravo, impondo uma condição de subordinação e esvaziando as
lutas de classe e de etnia que conformavam (MOREIRA, 2007). Para este autor, as
negociações eram tensas e os cativos contestavam as decisões e em muitos casos
não correspondiam às expectativas dos senhores (MOREIRA, 2007).
Simão (2002) reforça essa elasticidade do sistema, pois se por um lado podese pensar que havia essa relativa acomodação, por outro lado a resistência estava
presente cotidianamente. Processos-crime foram analisados e apontaram para
suicídios, crimes contra a propriedade, homicídios e lesões corporais. Furtos e
roubos eram uma realidade constante. Esses crimes ocorriam entre os próprios
escravos e entre escravos e senhores (p. 91).
Da mesma maneira, Araújo (2008, p. 139), em estudo na cidade de Cruz
Alta/RS, assinala que as imposições dos senhores acarretavam atos conscientes e
providos de ação política por parte dos escravos, transformando diariamente as
relações do cativeiro, ora fazendo acordos, ora desarticulando o sistema, opondo-se
a ele; as ações poderiam ser mais pacíficas ou mais tensas, porém nunca eram
totalmente subordinadas às elites.
Alguns crimes mais “radicais” ou “mais cotidianos” cometidos pelos cativos em
Pelotas também podem ser observados no trabalho de Silva (2001), cujo objetivo foi
86
mostrar de que maneira esses indivíduos aplicavam e utilizavam substâncias
químicas tóxicas tanto contra terceiros quanto para consumo próprio. Segundo esse
autor, era comum a criminalidade fundamentada sobre o manuseio de venenos para
assassinatos e o uso de álcool, tabaco e outros produtos, amiúde, entre os anos de
1828 e 1888.
Corroborando uma resistência diária no meio urbano pelotense, Mello (1994)
fala sobre as religiões de matriz africana, as festas e manifestações culturais em
geral como formas de oposição aos eventos de seus senhores. O autor usa a
expressão de “fuga para dentro”, para se referir às infiltrações do cativo na cidade,
onde o trabalho é menos penoso que no ambiente charqueador. Para o escravo da
indústria na entressafra ou o que não trabalhava diretamente com o charque, o
proprietário tinha como opção alugar seu serviço no meio urbano. Assim, era
possível uma aproximação maior do cativo com outros escravos e outras camadas
sociais (p. 108). O número de fugas é maior entre trabalhadores das charqueadas
nas épocas de produção, mesmo que essas escapadas não fossem definitivas, e
sim, para aproveitar pequenos períodos de liberdade. Havia, obviamente, as fugas
definitivas, porém após 1870, com as mudanças políticas, os movimentos de
libertação e o crescimento urbano, as “fugas para dentro” tornam-se uma alternativa
mais interessante quando comparadas às fugas para fora (p. 113). Este autor trata
de outros tipos de resistência além das manifestações negras e das fugas, como os
furtos e assaltos e as transgressões às regras impostas pela sociedade oitocentista,
outras formas cotidianas de oposição.
Dalla Vechia (1994) apresenta-nos entrevistas com descendentes de
escravos de Pelotas e região, os quais relatam histórias em que seus antepassados
fugiam, escondiam-se nos matos, roubavam de seus patrões, praticavam atos de
vinganças, costumavam fazer festas com danças; as mulheres usavam de práticas
como o aborto, feitiços, benzeduras e simpatias próprias dos escravos que muitas
vezes eram direcionadas aos senhores ou patrões, ou suas famílias. Uma das
entrevistadas, a senhora Honorina, narra que os filhos da “patrona” tentavam roubar
ovos das galinhas criadas pelos escravos e como estes driblavam o problema:
[...] eles (escravos) tinham casa deles, então eles iam trabaiá,
deixavam a casinha fechada deles, diziam... Então, botavam uma
cobra prá dentro e a cobra se enrolava ali na porta pra não entrá
ninguém. Ali não entravam ninguém. Chegava o patrão, dizia os
87
nego veio, os nego véio do cativeiro. “Bueno!” Aí as crianças das
patrona vinha correndo pra tirá ovo das galinhas dos escravos.
Chegava lá, entrava pra dentro e a cobra se enrolava na porta. E
agora, pra saí? Corriam na volta e gritavam e choravam. E tinha que
chamá o nego véio, pra ele vi pra dizê pra cobra que saí dali e
deixasse saírem: “Eu não disse, hum, eu não disse, não é pra
ninguém aí!” Saía aquela criança e nunca mais botava os pé ali. As
cobras não deixavam entrá. Era assim. Os nego véio saíam, mas
deixavam as cobras cuidando. (In: DALLA VECHIA, 1994. p. 218)
Com a atitude de “deixar uma cobra cuidando suas casas”, os escravos
faziam com que seus bens fossem preservados e resistiam ao sistema, não de uma
maneira radical, mas criando contos e lendas próprias que ultrapassavam gerações.
Segundo Moreira (2010), um tipo de poder mágico atribuído a esses
trabalhadores, principalmente quando eram originários da África, era comum nessa
sociedade de senhores e escravos, onde crenças, religião e práticas de cura se
mesclavam e caracterizavam uma proximidade cultural entre essas diferentes
camadas da população. A “feitiçaria” atribuída especialmente às mulheres negras
era muitas vezes motivo de punições, como prisão, espancamento e pena de morte,
como aparece em Paulo Roberto Moreira (2010) que narra a história de uma
escrava preta africana cujo senhor mandou que fosse queimada na fogueira por atos
de bruxaria no ano de 1856, em uma estância na fronteira com o Uruguai. Monquelat
(2014) também traz notícias sobre “feiticeiras pretas”, como no exemplo em que
duas mulheres foram presas em 1877 na cidade de Pelotas pela polícia particular e
um santo e uma vela foram apreendidos como prova de suas atividades mágicas
(pp. 53 e 54).
Um importante estudo sobre crimes e penalidades foi realizado por Caiuá AlAlam (2008), que identifica quando e como se conformou a primeira Casa
Correcional de Pelotas e quem eram os principais “punidos” nos anos de 1830 a
1857. Os principais transgressores eram os peões de tropas (muitos “incivilizados”
da fronteira) e os escravos; ambos os grupos desrespeitavam as “regras” da
sociedade. Segundo este autor, em princípios dos anos 1830, com a população de
Pelotas composta em sua grande maioria por escravos, as elites pelotenses
cerceavam seus passos, procurando evitar revoltas, fugas e aquilombamentos. Isso
era feito através de punições e condenações à prisão e à morte de muitos infratores
cativos, bem como de outros indivíduos das camadas populares, em geral, negros
livres. Esses sujeitos opunham-se ao sistema, violando as leis cotidianamente,
88
através de pequenos ou grandes delitos, como frequentar tabernas e consumir
bebidas alcoólicas, reunir-se em ambientes públicos ou ficarem “vadiando” pela
cidade. Mesmo os trabalhadores das charqueadas não estavam isolados e
mantinham redes com outros indivíduos ou coletivos escravos e livres propiciando,
assim, um esmorecimento do controle social (AL–ALAM, 2008).
Todas essas práticas de resistência mais radicais ou “ativas”, como
apalencamentos/quilombos e fugas e as mais cotidianas ou “passivas”, como
suicídios, abortos, quebra de equipamentos, resistência ao trabalho, o ensinamento
de canções africanas para crianças brancas, etc., eram comuns a todos os locais
onde ocorreram sistemas socioeconômicos firmados no trabalho de escravos
africanos e afro-descendentes (SHARPE, 2003; CORZO, 2005).
2.4.2 – A possibilidade da formação da família escrava
Outro ponto a ser explorado quando se fala em cotidiano dos escravos diz
respeito à possibilidade de formação da família. Questiona-se a categoria “família
escrava”, visto que esse enlace poderia incluir sujeitos de condições jurídicas
diferentes, por exemplo, a união legal entre cativos e libertos; ou a família
expandida, que abrange mais de uma geração, primos, e outros parentes, bem
como padrinhos dos cativos. A “família cativa” envolve estratégias e projetos
comuns, recordações, vivências e esperanças que acabavam por dar manutenção
das heranças culturais e formar identidades dentro do ambiente escravista. No
entanto, ainda utiliza-se essa categoria como instrumento de análise e deve-se
buscar a diversidade da “família” quando se trata de casamentos envolvendo
escravos (GUEDES, 2008; JACINTO, 2008; SLENES, 2011).
Essas uniões oficiais, para formação de família nuclear, típica dos sujeitos
brancos e livres poderiam ser aprovadas e incentivadas pelos proprietários e
dependiam do local, tipo de trabalho e época. Temos senhores incentivando as
uniões, garantindo assim a manutenção dos escravos em seu plantel e evitando
fugas para uniões informais, bem como aparecem proprietários não permitindo que
seus cativos casassem, com vistas em possíveis comercializações de algum
membro dessa família, pai, mãe ou, especialmente, fillhos (SIMÃO, 2002; GUEDES,
2008; JACINTO, 2008; SALES, 2008; SLENES, 2011).
89
Para o município de Pelotas, Simão (2002, p. 115 e 116), demonstra dados
que se referem ao modelo de família nuclear, limitada em um grupo de parentesco
consanguíneo. Em sua pesquisa com livros da igreja matriz de Pelotas, ela
encontrou 59 registros de casamentos oficiais e católicos entre cativos, para os anos
1821 a 1845. A maioria das uniões ocorreu entre escravos de origem declarada
africana, seguidas pelos casamentos entre africanos e crioulos e, por último, entre
crioulos, os quais representaram uma pequena porcentagem do total. A significativa
quantidade de africanos “abençoados” deve-se à maior entrada desses no município
durante a primeira metade dos anos 1800.
As fugas para efetuar uniões ocorriam quando não eram consentidas pelos
senhores ou quando alguns membros da família eram libertos e outros, escravos;
como já foi apontado anteriormente, cabe lembrar que, em geral, esses cativos
estavam inseridos em uma rede de solidariedade, formada por indivíduos ou
coletivos escravos de outras propriedades, por libertos, por aquilombados e outros
elementos da sociedade (SIMÃO, 2002; AL-ALAM, 2008; MOREIRA, 2012).
Apresentar o escravo ativo no ambiente oitocentista é um objetivo das
pesquisas nos últimos anos e as mulheres cativas aparecerem em todos os estudos,
ainda que não tenham o protagonismo. Para entender as práticas dessas mulheres
em Pelotas e a sua perpetuação através de gerações é preciso que se tenha um
panorama geral da camada trabalhadora cativa, uma vez que o sistema escravista
está centrado primordialmente na categoria trabalho e a comercialização dos cativos
ocorresse em função da mão de obra.
2.5 – Os trabalhadores escravizados em Pelotas: onde e como eram
comercializados, quem eram e quais suas especializações laborais
2.5.1 – A comercialização dos cativos
O Passo dos Negros, primeiramente conhecido por Passo das Neves e Passo
Rico, foi o ponto primordial de comercialização dos escravos que chegavam a
Pelotas (Figura 5). Sua localização é estratégica, às margens do Canal São Gonçalo
e próximo ao Arroio Pelotas, importantes fluxos de escoamento da produção, saída
e entrada de todo tipo de mercadoria, escravos e passageiros livres. O local também
90
servia para travessia de gado e funcionava como porto e praça de pedágio, onde se
cobrava as taxas e impostos sobre mercadorias na tentativa de impedir o
contrabando de gado, escravos e produtos para a região platina (AGUIAR, 2009;
GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012; ROCHA, 2014). Escravos vindos da África e de
outros pontos do Brasil e do exterior desembarcavam no porto de Rio Grande e,
vindos pela Lagoa dos Patos, chegavam ao Passo dos Negros, através do Canal
São Gonçalo. Ali, eram comercializados ou encaminhados a outros pontos de
comercialização. (ROSA, 2012; ROCHA, 2014).
O comércio dos cativos era realizado diretamente entre proprietários ou
através de intermediadores. Com o fim do tráfico transatlântico, após 1850, o
comércio de escravos, ainda lucrativo, passa a ser interno (ROSA, 2012). A
importância dos jornais para esse comércio interno durante todo o século XIX é
indiscutível e podemos observar em muitos anúncios de oferta e busca de escravos,
o comerciante e o endereço para a negociação (Anexos 1 e 2). Esses negociantes
muitas vezes não trabalhavam apenas na compra, venda e aluguel de escravos;
imóveis, produtos diversos, maquinários, insumos e animais poderiam estar lado a
lado no mesmo anúncio:
Dinheiro, escravos, terrenos - Rua 3 de Fevereiro, 55 - Compramse escravos de ambos os sexos e idades, casas e terrenos;
recebem-se escravos e casas para alugar, coloca-se dinheiro a
premio sobre hypothecas e boas firmas. Comissão módica. (Jornal
do Commercio, n. 10, sexta-feira, 14 de janeiro de 1876. p. 4)
É interessante salientar que as ruas onde estavam localizados os
intermediadores/comerciantes de escravos em Pelotas correspondem ao mapa onde
iniciou a primeira vila. Atualmente, esse núcleo está no centro comercial da cidade, o
qual permaneceu no mesmo lugar ao longo dos anos (Figura 13).
Sabendo-se como ocorriam as entradas e saídas de escravos em Pelotas e
como se dava sua comercialização, passamos aos dados demográficos referentes a
essa população cativa em fins do século XVIII e ao longo do XIX, até o momento da
abolição.
91
2.5.2 – Quantidade de mulheres e homens escravizados
Os dados demográficos sobre os escravos muitas vezes não podem ser
considerados absolutos, pois ao longo da história houve desinteresse por parte dos
órgãos governamentais em coletar e organizar as informações sobre essa
população; a exceção é o censo de 1872, o qual, apesar de falho e incompleto,
apresenta números oficiais para os cativos (BAKOS, 1982). Entretanto, pesquisas
mais atuais concentram seus esforços na busca de documentos que possam
elucidar nas reflexões sobre essa camada.
Grande parte dos estudos sobre escravidão atenta para os dados
demográficos analisando fontes diversas como inventários post-mortem dos
charqueadores, recenseamentos, cartas de alforria e manumissões, contratos de
compra e venda de escravos, matrículas dos cativos, registros de óbito e batismo,
dados de entradas e saídas de escravos nos portos, registros de fugas nas
delegacias policiais, entre outros documentos oficiais ou extraoficiais, como jornais
locais que podem auxiliar no conhecimento sobre quem eram os indivíduos que
compunham a camada escravizada (MAESTRI, 1984, ARRIADA, 1994; PETIZ,
2001; SIMÃO, 2002; BERUTE, 2006; AL-ALAM, 2008; ARAÚJO, 2008; PESSI, 2008;
ASSUMPÇÃO, 2009; EIFERT, 2009; MOREIRA, 2009; GUTIERREZ, 2011; LEITE,
2011; ROSA, 2012; MONQUELAT, 2014).
Segundo informações levantadas por Arriada (1994), entre 1811 e 1872 a
quantidade de habitantes de Pelotas passou de 2.119 para 21.258, representando
um aumento de 903,20%, sendo que de 1820 até 1872 a população urbana passou
de 1.000 (mais de), para 18.999 (p. 155). Ao longo desse período, temos alguns
números aproximados para o total da população de Pelotas e para os escravizados
na primeira metade do século XIX:
ANO
TOTAL
HABITANTES
TOTAL
ESCRAVOS
MULHERES
ESCRAVAS
HOMENS
ESCRAVOS
1814
1833
1846
1859
2.419
10.873
11.244
12.895
1.226 (51%)
5.623 (51,71%)
4.816 (42,83%)
4.788 (37,13%)
Sem informação
Sem informação
Sem informação
1.693 (35,36%)
Sem informação
Sem informação
Sem informação
3.095 (64,64%)
Tabela 1 – População escravizada em Pelotas na primeira metade do século XIX. Fonte: Arriada,
1994; Simão, 2002; Couto, 2011; Gutierrez, 2011.
92
Pessi (2008) fala que até o fim do tráfico de escravos em 1850, quando se
implanta a Lei Euzébio de Queiroz, havia uma média de 80 cativos por charqueada.
Nos períodos posteriores, esse número cai para 43. O fim do tráfico poderia explicar
uma queda proporcional de escravos nos números totais após 1850.
Na indústria charqueadora, segundo Rosa (2012), os dados de inventários
post-mortem de alguns charqueadores pelotenses entre os anos de 1844 e 1877
apontam para uma proporção média de 80% de escravizados homens e 20% de
mulheres; entretanto esses números variaram, com o número de mulheres podendo
chegar a 32% do total de cativos, caso da Charqueada Santa Bárbara no inventário
de Rita Leocádia de Moraes Borges, de 1851. Esta proprietária poderia necessitar
de mais escravos domésticos, o que explicaria o aumento na proporção de mulheres
(p. 178).
Os números sobre essa proporção são variados, porém as mulheres estão
sempre em quantidade muito inferior aos homens. Gutierrez (2010, p. 31), diz que as
mulheres cativas representavam apenas 13% dos plantéis, enquanto Assumpção
(2009) aponta para o período entre 1780 a 1888, um número médio de 85,37% de
cativos contra 14,63% de cativas.
Pessi (2008, p. 33 e 34) constatou que entre 1846 e 1850 havia 633 cativos
nos inventários consultados, desses 75% eram homens e 24%, mulheres;
entretanto, entre os anos de 1870 e 1874, foram encontrados apenas 386 escravos,
dos quais 86,5% eram do sexo masculino e apenas 13,2% do sexo feminino. De
acordo com esse autor, esse aumento de homens nas indústrias é reflexo do tráfico
interno e do interesse dos proprietários em manterem os cativos em seus plantéis.
Rosa (2012) nos traz um resumo sobre essa desproporcionalidade e fala que,
em média, mais de 70% dos cativos eram do sexo masculino porque a indústria
charqueadora exigia trabalhadores “mais fortes e resistentes para enfrentar o
trabalho pesado da produção de charque” (pp. 63 e 64)
Para o ano de 1872, quando há o único censo oficial com a quantidade de
trabalhadores escravizados Pelotas possuía um total de 21.756 habitantes em seu
núcleo e “mais 2.747 indivíduos da paróquia de Santo Antônio da Boa Vista, não se
computando os dados de duas outras paróquias, o que somaria 24.503 habitantes”
(LONER, GILL e SCHEER, 2012. p. 138). Neste ano, pelo censo oficial, temos um
número de 3.575 cativos, com uma queda de 1.213 indivíduos em relação aos anos
93
de 1858 e 1859; entretanto, após análises mais aprofundadas, pesquisadores
encontraram uma população escrava equivalente a 8.141 indivíduos para o ano de
1873, o que mostra os erros do levantamento oficial de 1872 (VARGAS, 2012. p.
279-181).
Loner et al (2012) e Vargas (2012), indicam que somente após 1873 é que
teremos dados mais corretos, pois há a obrigatoriedade de se fazer matrícula dos
escravos em todo o país, advinda da Lei do Ventre Livre. A matrícula requeria um
cadastro dos escravos e o pagamento de uma taxa; caso contrário, os senhores
perderiam o título de propriedade dos cativos, que poderiam considerados livres. Em
setembro de 1873, segundo dados posteriores, encontrados no jornal Correio
Mercantil de 1884, Pelotas contava com 8.142 escravos (23% da população total),
sendo 5.125 homens e 3.017 mulheres (LONER, GILL e SCHEER, 2012). Há dados
que indicam uma diminuição no percentual da população cativa, em relação ao
número total de habitantes, posterior a 1873, quando se intensifica a busca por mão
de obra riograndense para as plantações de café do sudeste (VARGAS, 2012. p.
281).
Monquelat (2014) traz alguns dados sobre a população escravizada coletados
a partir de jornais pelotenses do século XIX. Até junho de 1882, o autor encontrou
matriculados até o encerramento das matrículas: 8.411; matriculado após esse
período: 1; entraram: 1079; saíram: 567; faleceram: 944; manumissões: 929; total de
indivíduos escravizados em Pelotas: 6.781 (2.530 mulheres, 4.251 homens). Além
desses números de cativos, até 30/06/1882 foram contabilizados os seguintes filhos
livres de mulheres escravas: 814 homens e 804 mulheres, totalizando 1.618
indivíduos (p. 121). Nessa mesma década, para o ano de 1884, próximo à abolição,
Pelotas é a cidade com o maior índice de cativos no Rio Grande do Sul, totalizando
6.526 pessoas nessa camada. Essa queda nos números de cativos deve-se à
quantidade de libertos que aumentou às vésperas do fim da escravidão (LONER,
GILL e SCHEER, 2012).
Apesar da proximidade da abolição, muitos trabalhadores estavam atrelados
a um período de “compensação” ou “indenização” a seus patrões pelas já
mencionadas promessas de liberdade. A diferença desses trabalhadores “quase
livres” é que não poderiam ser castigados ou ter o tratamento dos escravos, porém
94
as obrigações desses indivíduos permaneciam as mesmas, acarretando fugas e
venda de serviço para outros senhores (SIMÃO, 2002; LONER, 2007).
Esse vínculo obrigatório era um ato comum e estratégico para manter os
trabalhadores a serviço da família, como já foi mencionado anteriormente. Rosa
(2012) traz o exemplo do testamento de um charqueador, no qual indica a
concessão de liberdade a dois escravos, que só a desfrutariam anos após a morte
de seu proprietário e esses libertos receberiam duzentos mil réis cada um desde que
continuassem a acompanhar um dos filhos do charqueador ou sua mulher.
As cartas de alforria e manumissões foram importantes fontes para entender
algumas relações que se davam entre senhores e cativos e incidem diretamente na
questão da proporção desigual entre cativos homens e mulheres. Tanto Simão
(2002), quanto Couto (2011) verificaram que, embora a camada de trabalhadores
escravizados homens fosse significativamente maior que a de mulheres, mais
alforrias foram concedidas a estas. Ana Regina Simão (2002) reforça, ainda, que as
senhoras conferiram mais cartas de liberdade em relação aos senhores. Conforme a
autora, isso se deve provavelmente pela proximidade entre senhores e escravos
domésticos, os quais, em sua grande maioria, eram mulheres.
Muitos outros fatores, entretanto, podem ajudar a entender essas ações,
como a importância econômica da manutenção dos escravos homens no trabalho da
charqueada, a diminuição do custo em sustentar escravas domésticas, pois estas
pagavam pela sua liberdade, sendo com dinheiro, com trabalho ou colocando outro
escravo em seu lugar (SIMÃO, 2002). Entretanto, ambos os autores trabalharam
com a primeira metade do século XIX. Para os anos entre 1880 e 1884, Leite (2011)
encontrou uma proporção muito maior de homens alforriados (87,75%) em relação
às mulheres (12,25%), o que a autora explica analisando os grandes plantéis que
ainda funcionavam com uma quantidade de homens bem mais elevada que a de
mulheres. Outros fatores podem ajudar a entender esses números, como a crise das
charqueadas (MONASTÉRIO, 2005) e as próprias alforrias já concedidas
anteriormente a um maior número de mulheres, cujos filhos também já não seriam
mais escravos.
O número de mulheres cativas bem inferior ao número de homens não é
prerrogativa apenas para a região charqueadora pelotense, nem mesmo somente
para o Rio Grande do Sul (KÜHN, 2002; MAESTRI, 1984; ASSUMPÇÃO, 2009;
95
PALERMO, 2009). Segundo Góes e Florentino (2000), no Brasil todo, a diferença
numérica entre os sexos era variável conforme a flutuação do tráfico, e nas épocas
dos grandes desembarques, a proporção chegava a ser de sete homens para cada
mulher escravizada (p. 178).
Contrapondo essa realidade, Eifert (2009) apresenta índices demográficos de
cativos nas estâncias pastoris da região do atual município de Soledade (RS), em
que há um equilíbrio entre homens e mulheres, possivelmente devido à importância
das tarefas domésticas e da agricultura. O mesmo ocorria nas regiões de fazendas e
estâncias de criação de gado em Rio Pardo, Bagé e Vacaria (DAL BOSCO, 2009).
Tanto o sexo, quanto a faixa etária dos cativos influenciavam o tipo de
atividade a ser desempenhada. A idade, segundo Rosa (2012), é um “atributo
relevante para compreender a disponibilidade de mão de obra produtiva na
charqueada” (p. 178). Isso também é válido para as tarefas domésticas e urbanas,
como veremos a seguir.
2.5.3 – Idade dos cativos
Com relação à faixa etária dos escravos, pesquisas assinalam que eram
considerados produtivos para a indústria charqueadora os trabalhadores de 15 a 49
anos e essas idades representavam mais de 50% dos plantéis, pois era a faixa de
maior produtividade dos escravos (PESSI, 2008; ROSA, 2012).
Segundo Assumpção (2009), de 1780 a 1888 houve um decréscimo no
número de trabalhadores com menos de 40 anos; para a primeira data, eles
representavam, em média, 71,1% dos plantéis, e para o ano da abolição, esse
percentual cai para 45,9%, porém, essa queda pode ser consequência de alforrias,
de desvalorização da mão de obra, entre outros fatores. Os números eram variados
nesses 100 anos, porém as idades entre 10 e 49 anos são sempre acima de 50% da
população cativa.
Rosa (2012) encontrou uma média aproximada de 71% de adultos, 24% de
idosos e 5% de crianças nos inventários analisados; a exemplo de alguns
historiadores, como Assumpção (2009), esta autora considerou como crianças os
indivíduos até 14 anos, como adultos, os de 15 até 49 anos e como idosos, aqueles
acima de 50 anos (ROSA, 2012. p. 180). As idades dos escravos eram suposições,
96
poderiam não ser exatas, muitas vezes atribuídas apenas pela aparência dos
indivíduos (ROSA, 2012).
Gutierrez (2006) encontrou uma quantidade muito pequena de crianças
escravas, em torno de 1% apenas, e atribui esse fator à preferência dos
proprietários em investir mais na compra de escravos do que na reprodução da mão
de obra. Entretanto, Rosa (2012, p. 99) entende que a reprodução dos escravos foi
uma estratégia de alguns proprietários; um exemplo está em um dos inventários
analisados pela autora, em que uma única escrava era mãe de, pelo menos, 3
escravos trabalhadores diretos da charqueada em questão. Assim, da mesma forma
que há a presença de mulheres nas charqueadas, há crianças, provavelmente pela
necessidade de trabalhadores domésticos.
A categoria “criança” pode ser pensada como aquele indivíduo que não tem
capacidade de desempenhar uma atividade laboral. A partir do momento em que é
capaz de iniciar uma função, pode ser considerado aprendiz e, quando é
plenamente apto para o trabalho, principalmente nas profissões especializadas, esse
cativo começa a ser apreciado como adulto. Então, um escravo pode ser
considerado criança até seus 4 a 6 anos, dependendo do local e tipo de
estabelecimento,
passando
a
pequeno
trabalhador
ou
aprendiz
até
aproximadamente seus 12 anos quando passa a fazer parte da camada adulta
(GÓES e FLORENTINO, 2000; SCARANO, 2000; PESSI, 2009; PRIORE, s/d).
Para os homens cativos, a idade de 15 anos, em geral, é o marco para entrar
na idade adulta, enquanto para as mulheres, os 12 anos são o fim do período de
aprendiz; um escravo com um alto valor comercial está na faixa etária entre os 15 e
os 24 anos (SCARANO, 2000). Essa idade está ligada à capacidade física do
trabalhador e alguns comerciantes são específicos quando anunciam a preferência
por escravos dentro dessa faixa etária, como no anúncio de jornal a seguir:
Joaquim Monteiro compra escravos, preferindo os de 14 a 26
annos de idade. rua de S. Miguel n. 119. (Jornal Diário de Pelotas, n.
21, quinta-feira, 27 de janeiro de 1876, p. 3)
Pode-se supor, ainda, que alguns proprietários preferiam contratar ou
comprar cativos abaixo do marco da idade adulta se estes pudessem desempenhar
a função desejada, pois pagariam um valor menor pelo serviço/trabalhador. Apenas
para percebermos a especificação de idade, tanto em relação ao desempenho de
97
funções, quanto por provavelmente se pagar menos pelo serviço ou pelo cativo, vale
trazer alguns exemplos de anúncios:
Aluga-se um mulato de 10 para 12 annos, proprio para qualquer
serviço segundo sua idade. Na rua 16 de Julho n. 66. (Jornal do
Commercio, n. 236, sexta-feira, 16 de outubro de 1875. p. 3)
Escrava: quem precisar comprar uma escrava de 13 annos mais ou
menos, muito boa, vinda de fóra e própria para ensinar a mucama,
dirija-se a Casa Vermelha, a rua 16 de Julho, n. 18. (Jornal Paiz, n. 2,
sábado, 02 de setembro de 1876. p. 3)
Figura 7 – Anúncio de aluguel de uma ama seca com especificação de
idade. FONTE: Jornal A Discussão, n.5,quinta-feira, 13 de janeiro de 1881.
p. 3. (Foto da autora, 2014).
Da mesma maneira que ocorre com a categoria “criança”, a categoria
“idosa/idoso” está relacionada à capacidade de trabalhar e seria usada quando há
uma diminuição na produtividade, podendo variar em função do local, época e tipo
de serviço. Portanto, em alguns locais, os escravos já poderiam ser considerados
idosos com aproximadamente 35 anos (SCARANO, 2000), enquanto em outros, da
fase adulta para a idosa o marco seria os 50 anos (ASSUMPÇÃO, 2009; ROSA,
2012).
Mesmo sendo considerados impróprios para determinados trabalhos, os
idosos, assim como os indivíduos em idade de aprendiz, eram recrutados para
atividades específicas como mostra o seguinte anúncios de jornal:
Precisa-se alugar um preto velho, forro ou captivo, para serviço de
chácara, em relação à sua idade. Dá-se gratis moradia em uma
98
chácara perto da cidade a qualquer homem casado. Rua da Igreja n.
24. (Jornal do Commercio, nº 218, sábado, 25 de setembro de 1875.
p. 3)
Rosa (2012) encontrou um caso de dois inventários subsequentes de uma
mesma propriedade com os mesmos escravos aparecendo em ambos e tendo suas
idades diminuídas ao longo dos anos, o que seria uma forma de valorizar
economicamente o cativo, uma vez que seu preço comercial diminuía com o
envelhecimento (p. 180). Neste anúncio observamos essa desvalorização para uma
escrava doméstica idosa:
Escravos a venda - 1 escrava de 24 annos, de todo o serviço, de
boa conducta e sadia; 1 ditta, 23 annos com um filho de 5 a 6 annos,
boa escrava para família; 1 ditta de todo serviço, boa escrava com
três filhos homens; Uma preta, velha, boa lavadeira e cosinheira,
sadia, sem vícios e de boa conducta, que se vende muito barata.
Casa Vermelha. Rua 16 de Julho, n. 17. (Jornal do Commercio, nº
46, terça-feira, 27 de fevereiro de 1877. p. 3)
Em muitos documentos, oficiais ou não, a idade não aparece nem mesmo
como um número aproximado, sendo trocada por características subjetivas que
eram atribuídas a determinadas fases da vida como, por exemplo, “anjinho” (a
criança morria antes ser batizada), ingênuo, de colo, “cria de peito”, moleque, menor,
rapaz, rapariga, moça/moço, maior idade, meia idade, de mais de meia idade, velho,
de idade, etc. (SCARANO, 2000; SCHWARTZ, 2001; BERUTE, 2006; PESSI, 2008;
ROSA, 2012). Essas “idades subjetivas” aparecem, também, nos anúncios:
Escravo a venda – Vende-se um escravo de mais de meia idade,
apto para todo e qualquer serviço doméstico e por módico preço.
Para informações nesta typographia. (Jornal Diario de Pelotas, n.
256, quarta-feira, 15 de novembro de 1876. p. 3)
Escravo a venda – vende-se um preto de meia idade e que entende
de serviço de chácara. Para tratar com Cinccinato Soveral. Rua de S.
Miguel n. 29. (Jornal Diario de Pelotas, n. 271, terça-feira, 27 de
novembro de 1877. p. 2)
Aluga-se um creoulinho de menor idade, apto para todo e qualquer
serviço de uma casa de família. Quem precizar pode dirigir-se á rua
dos Voluntários esquina da de Santa Barbara, n. 51. (Jornal Onze de
Junho, n. 874, quarta-feira, 09 de agosto de 1882. p. 3)
99
No primeiro anúncio, supõe-se que o preço do escravo seja “módico” por ser
ele “de mais de meia idade” e, portanto, com um menor valor comercial,
corroborando as informações da desvalorização do trabalhador conforme o avanço
da idade adulta para idosa.
Algumas
idades
relativas
confundiam-se
com
características
físicas,
especialmente quando o cativo estava abaixo da idade adulta. Isso aparece nos
anúncios de jornais a seguir:
Precisa-se alugar uma negrinha para o serviço de uma casa de
família. Para tratar na livraria Americana. (Jornal do Commercio, n.
148, quarta-feira, 05 de julho de 1876. p. 3)
Vende-se uma pardinha propria para mucama de uma casa de
família. Trata-se na rua S. Miguel, n. 83. (Jornal do Commercio, n.
208, sábado, 14 de setembro de 1878. p. 3)
Obviamente, não há como sabermos a faixa etária real nesses anúncios, mas
podemos identificar que não se trata de pessoas em plena idade adulta.
Além dos índices que dizem respeito ao sexo e idade dos trabalhadores
escravos, a origem ou etnia dos escravos é um item presente em algumas fontes
documentais. Muitas vezes não é real, a exemplo da idade. Entretanto, aparece em
muitos inventários, cartas de alforria, documentos de comercialização, anúncios de
jornais, entre outros.
2.5.4 – Origem dos escravos
Poucas são as atenções diretas às origens dos cativos nas pesquisas sobre a
região charqueadora de Pelotas, bem como ocorre para outros locais em que a
escravidão era o sistema vigente; há a dificuldade da certeza dessas origens, da
mesma maneira que ocorreu em todo o continente americano, pois ao longo da
história de comercialização dos cativos, em muitos casos estes eram incluídos em
uma única grande “etnia” africana ou o local de seu embarque nos portos da África
eram usados para designar suas naturalidades (MAESTRI, 1994; BERUTE, 2006;
ASSUMPÇÃO, 2011; ROSA, 2012).
100
Sabe-se que os principais pontos de abastecimento de escravos para o Rio
Grande do Sul eram Salvador, Recife e, especialmente, Rio de Janeiro (BERUTE,
2012. pp. 207) e os trabalhadores escravizados em Pelotas são principalmente
distribuídos em dois grandes grupos homogeneizados que englobam “africanos”, “de
nação” ou simplesmente “nação” e “novos” (recém-chegados ao continente
americano), quando originários da África, e “crioulos”, quando nascidos já em solo
brasileiro.
Entre os africanos, ainda que não sejam autênticas, aparecem as seguintes
origens: angola, babina, banglula, benguela, beni, brasileiro, cabinda, cabundá,
calunga, cassange, congo, gege (ou jeje), inhambane, jinga (ou ginga), ladino,
mange (ou moange), manjolo (monjolo ou monjollo), mina, moçambique (ou
maçambique), nação (“de nação”), nagô, rebolo (rebollo ou rebola), nagama ou
somente “africana” (MAESTRI, 1984; SIMÃO, 2002; GUTIERREZ, 2004; PESSI,
2008; ASSUMPÇÃO, 2009; SCHERER & ROCHA, 2010; COUTO, 2011; LEITE,
2011; ROSA, 2012).
Os escravos “mina” são os oriundos da Costa da Mina, região da África de
embarque dos mesmos (ASSUMPÇÃO, 2009; COUTO, 2011). Ladinos são os
escravos que conheciam algum ofício e um pouco da língua portuguesa, seja no
continente africano, seja no Brasil (COUTO, 2011).
A origem dos escravos “crioulos” pertencentes a proprietários pelotenses é
variada, abrangendo os atuais estados da Bahia, Ceará, Mato Grosso, Maranhão,
Minas Gerais, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa
Catarina, Sergipe, entre outros, além dos nascidos em território sul-riograndense,
muitas vezes identificados nos documentos como “desta província” (MAESTRI,
1984; SIMÃO, 2002; BERUTE, 2006; ASSUMPÇÃO, 2009; SCHERER & ROCHA,
2010; COUTO, 2011; VARGAS, 2012).
Tanto Assumpção (2009), como Simão (2002) e Rosa (2012), encontraram
um número mais elevado de africanos em relação aos crioulos, porém na maior
parte das fontes há um alto índice de indivíduos sem identificação da origem,
podendo acarretar em percentuais falsos e indicando, também, que a procedência
poderia não ser um atributo de tanto valor como sexo e idade. Entretanto, Freyre
(2010) nos informa que as características das etnias e os atributos físicos
relacionados a elas, como cor da pele e outras peculiaridades físicas naturais ou
101
artificiais (marcas, escoriações, etc.), bem como modos de comportamento e
vestimentas,
são
úteis
principalmente
para
identificação
dos
escravos
transgressores, foragidos ou desaparecidos. É o caso dos seguintes anúncios de
fugas:
Fugio – da charqueada de Domingos Soares Barbosa, em 24 de
outubro, um escravo de nação cabinda, estatura regular, idade de
mais ou menos 36 a 38 annos. É bem conhecido por ter 6 dedos na
mão direita, sendo 2 no pollegar. Gratifica-se convenientemente a
quem o agarrar e levar à charqueada de seu senhor. (Jornal Diario
de Pelotas, n. 269, sábado, 30 de novembro de 1878. p. 3)
Fugio - Da caza à rua Andrade Neves n. 190 fugio a escrava
Celestina, conhecida por Celestina Bagé, é crioula fula, baixa, de 23
annos de idade; quem a entregar a seu senhor, ou d’ella der notícias
será gratificado. Pelotas, 15 de janeiro de 1887. (Jornal Rio
Grandense, n. 531, domingo, 16 de janeiro de 1887. p. 3)
Pode ser observado que há, ainda, uma combinação entre origem e
características físicas, como cor, e/ou relativas ao seu trabalho, em especial quando
o cativo é um “crioulo”; autores apresentam essa miscelânea em quadros
estatísticos onde aparecem escravos com etnia definida lado a lado com indivíduos
descritos como “mulatos”, “mestiços”, “cabras”, “cabra escuro”, “negros”, “pretos”,
“fula”, “pardos” ou simplesmente “escravos” (MAESTRI, 2002; PESSI, 2008; DAL
BOSCO, 2009; SCHERER & ROCHA, 2010; COUTO, 2011; ROSA, 2012).
Em relação a “cabra”, Fonseca (2009) afirma ser uma designação complexa,
que identifica não só atributos físicos, caracterizando indivíduos mestiços ou negros
“claros”, mas também, podendo indicar uma questão de condição social. Freyre
(2010) traz exemplos de anúncios em que não se sabe se a dita ou dito “cabra” é um
cativo ou um animal (p. 127 e 128). Para que não ocorra confusão, alguns anúncios
trazem a definição bem clara da intenção do anunciante:
102
Figura 8 – Anúncio de venda de um animal, uma cabra. Fonte: Jornal Diario de
Pelotas, n. 165, quarta-feira, 26 de julho de 1876. p. 3. (Foto da autora, 2014)
Não obstante a importância de se conhecer a etnia ou origem dos escravos
para algumas ações específicas como nos casos de fugas e registros, parece-nos
que não era essa atribuição relevante para o desempenho das atividades laborais
como são sexo e idade, e a origem pouco aparece nos anúncios pesquisados para o
presente estudo, como será discutido mais adiante.
2.5.5 – As especializações laborais da camada escravizada
As atividades dos escravos de posse dos charqueadores variavam conforme
a necessidade dos senhores; algumas podem ser observadas no quadro a seguir,
compilado e adaptado da pesquisa de Rosa (2012. p. 66), composto a partir das
obras de Gutierrez (2011) e Pessi (2008; 2009). Também foi utilizada, para esta
versão, a obra Documentos da Escravidão no RS: Compra e Venda de Escravos,
organizado por Scherer e Rocha (2010):
103
Produção do
charque
Aprendiz
Carneador
Charqueador
Chimango
Curtidor
Descarneador
Foguista
Graxeiro
Salgador
Salgador de couros
Sebeiro
Servente
Tripeiro
Transportes
Boleeiro
Carreteiro
Carroceiro
Marinheiro
Ofícios Manuais /
Artesanais
Serviços
Domésticos
Calafate
Carpinteiro
Corroeiro ou corrieiro
Ferreiro
Marceneiro
Pedreiro
Oleiro
Serrador
Tanoeiro
Serviços de
campo e
lavoura
Campeiro
Campessino
Cavouqueiro
Falquejador
Roceiro
Alfaiate
Barbeiro
Costureira
Cozinheira (o)
Criada (o)
Engomador
Lavadeiro (a)
Lustrador
Mucama
Padeiro
Peixeiro
Sapateiro
Tecedeira
Tecelão
Tabela 2 – Atividades dos escravos de propriedade dos charqueadores pelotenses. FONTE:
Pessi, 2008 e 2009; Scherer & Rocha, 2010; Gutierrez, 2011; Rosa, 2012.
Pessi (2008; 2009), Gutierrez (2011) e Rosa (2012) obtiveram a listagem das
atividades em pesquisas com inventários post-mortem de proprietários, sendo que a
especialização de cozinheiro, bem como de lavadeiro, podem ser ambíguas. Dentro
da própria indústria, o cozinheiro pode trabalhar com o preparo de partes do animal
abatido ou preparando alimento para os escravos; o lavadeiro pode ser quem limpa
o ambiente. As mulheres, em geral, são cozinheiras da casa e lavadeiras de roupas.
(PESSI, 2008; GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012). A afirmativa dos cozinheiros
homens não é fechada, eles trabalham também nas casas de família. No exemplo a
seguir percebe-se que, por ser cozinheiro e copeiro, o trabalhador serve dentro da
casa de família:
Aluga-se um escravo cosinheiro e perfeito copeiro, de conducta
garantida. Quem d'elle precisar pode dirigir-se à rua Andrade Neves
n. 49. (Jornal Onze de Junho, n. 767, quinta-feira, 30 de março de
1882. p. 3)
Como já foi comentado anteriormente, alguns escravos nas charqueadas não
eram considerados especializados ou eram tidos como semi-especializados, e eram
destinados a atividades diversas no entorno das casas, no serviço doméstico.
Alguns aparecem, ainda, na obra organizada por Scherer e Rocha (2010), onde
informações de compra e venda de cativos foram compiladas dos contratos originais
como “sem ofício” e “de todo serviço”, sendo que esta última categoria aparece,
também, nos anúncios dos jornais pesquisados. Os cativos que desempenhavam
algum
“ofício”
(artesãos
como
sapateiros,
alfaiates)
eram
considerados
104
especializados. Mesmo dentro da indústria, poderiam exercer mais de uma
atividade, caso do “servente”, considerado não-especializado e que aparece no meio
urbano desempenhando funções diversas (SIMÃO, 2002; GUTIERREZ, 2011).
Em alguns anúncios de jornais observamos essa semi-especialização ou não
especialização como nestas procuras e ofertas de cativos para charqueada, onde os
cativos são indicados para o trabalho na indústria, mas sua atividade não é
especificada. Podemos pensar que são aptos a desempenhar múltiplas funções
corroborando a ideia de que o serviço do trabalhador na charqueada pode ser
variado:
Precisa-se alugar 4 pretos para serviço de xarqueada; quem os
tiver queira dirigir-se a praça Pedro II, n. 4. (Jornal do Commercio, nº
42. Quarta-feira, 23 de fevereiro de 1876. p. 3)
Vende-se um negro proprio para xarqueada, campeiro, moço,
entende de roça. Quem precizar dirija-se a bordo do hiate Guahiba,
no porto da cidade que fará negocio. Manoel José da Silva Lisboa.
(Jornal do Commercio, nº 271. quarta-feira, 28 de novembro de 1877.
p. 3)
Os escravos poderiam também estar vinculados a outras múltiplas atividades
fora da indústria, porém em ambiente rural, visto que havia propriedades de criação
de gado na região e alguns charqueadores estavam envolvidos com a produção de
animais e mantinham hortas e pomares (GUTIERREZ, 2010; ROSA, 2012). A
agricultura, ainda que não fosse a atividade principal do município, contava com
plantações de milho, feijão, mandioca e fumo (SIMÃO, 2002. p. 47). Nos anúncios
de jornais, esses serviços estão presentes:
ATTENÇÃO Nesta typographia se dirá quem tem para vender um
crioulo de 17 annos, bonita figura, campeiro e apto para todo
serviço. (Jornal Diario de Pelotas, n. 162, sábado, 22 de julho de
1876. p. 3)
VENDE-SE um excellente pardinho de 10 annos de idade próprio
para boleeiro, entendendo da lida de campo e lavrar; para ver e
tratar com seu senhor, no hotel da Boa Esperança de Vicente
Martins, no outro lado de Santa Barbara. (Jornal Diario de Pelotas, n.
272, terça-feira, 5 de dezembro de 1876. p. 3)
105
Neste segundo anúncio podemos perceber que o referido “pardinho” já é
trabalhador de campo e lavoura com seus 10 anos de idade e está apto para
aprendiz de boleeiro.
Quanto às mulheres trabalhando diretamente com a produção dentro dos
saladeros, são raras as informações. Temos o relato do francês Jean Baptiste
Debret, de 1835, sobre a existência de cativas dentro da indústria, lidando
diretamente com derivados bovinos. Debret descreve o a produção de charque em
Pelotas e fala sobre essas mulheres:
Passando pelo barracão das caldeiras, vimos, pela primeira vez,
negras ocupadas nos trabalhos de charqueada; [...] cortado em
pedaços (a carcaça do animal abatido), foi o conjunto jogado na água
fervendo das caldeiras, a fim de se escumarem as gorduras que se
vende em pães. Do outro lado, e um pouco mais atrás, mostraramnos outra espécie de gordura de qualidade infinitamente superior
produzida pela medula e pelo miolo fervidos e que se escorre ainda
líquida dentro de bexigas de boi; esse trabalho minucioso era
confiado especialmente às negras (DEBRET, In: MAGALHÃES,
2000a. p. 74).
Magalhães assinala que é surpreendente essa descrição do serviço das
mulheres, uma vez que “tem-se disseminado a ideia de uma quase inexistência de
mulheres escravas nos saladeros de Pelotas” (2000a. p. 80).
Maestri (1984. p. 94) apresenta um arrolamento das atividades de escravos
em uma declaração do charqueador Domingos José de Almeida em que aparecem
“15 graxeiros e graxeiras”. Da mesma forma, ocorre na obra de Moacyr Flores
(2013) que traz as informações sobre a presença feminina no trabalho direto da
indústria também atribuídas ao charqueador Domingos José de Almeida, o qual
envia à sua esposa Bernardina uma carta, datada em 10/10/1843. Nessa
correspondência, por conta de uma venda, estão discriminados os nomes e os
valores dos cativos, bem como algumas idades e especializações dos mesmos.
Encontram-se duas mulheres compondo esse grupo: Maria Joaquina e Tereza,
ambas identificadas como “graxeiras” (pp. 50 e 51).
Ainda que existam esses relatos, em geral as mulheres encontravam-se mais
direcionadas ao trabalho “menos pesado”, tanto no meio rural quanto no urbano,
enquanto
as
atividades
mais
pesadas estavam
vinculadas
aos
homens.
Corroborando as informações sobre as tarefas das cativas no centro charqueador
106
pelotense apresentadas por Gutierrez (2009, 2010) e Rosa (2012), o historiador
Agostinho Dalla Vechia (1994) entrevistou descendentes de escravos em Pelotas e
região, e todas as informações e dados apontam para as mulheres cozinhando,
limpando as casas, lavando roupas, costurando e trabalhando em lidas ao redor da
casa dos proprietários ou para fora.
Esses cativos de propriedade dos charqueadores perambulavam entre o meio
urbano e rural, uma vez que os proprietários circulavam entre esses ambientes.
Também
havia
os
escravos
estritamente
urbanos,
especializados,
semi-
especializados ou sem especialização nenhuma, porém essa divisão é complexa e
varia de autor para autor (PETIZ, 2001; SIMÃO, 2002). Os cativos trabalhavam em
fábricas, em tarefas artesanais (ofícios), na construção, no serviço doméstico, entre
outros, lado a lado com a mão de obra de libertos ou de brancos livres pobres
(SIMÃO, 2000; MAESTRI, 2006; GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012).
Algumas das principais atividades desempenhadas pelos escravos urbanos
em Pelotas, sendo elas consideradas mais especializadas ou menos especializadas,
são: acendedor de lampião, aguadeiro, alfaiate, ama de leite, boleeiro, carpinteiro,
carregador, copeiro, costureira, cozinheira (o), criada (o), engomadora/engomadeira,
estivador,
ferreiro,
jardineiro,
lavadeira
(o),
marceneiro,
mucama,
ourives,
passadeira, pedreiro, pintor, remador, sangrador, sapateiro, servente, sombreeiro,
tamanqueiro, tanoeiro, tira-dentes, torneiro, vendedor ambulante, entre outras.
Algumas dessas eram realizadas por homens, outras por mulheres e outras, ainda,
eram comuns a ambos os sexos (SIMÃO, 2002; MAESTRI, 2006; GUTIERREZ,
2011; ROSA, 2012; VARGAS, 2012).
Nas cidades os cativos poderiam servir diretamente seus senhores como
escravos domésticos ou servirem como escravos de aluguel ou de ganho (SIMÃO,
2002; MAESTRI, 2006). O escravo de aluguel era, em geral, especializado em
alguma atividade e gerava uma boa renda para seu senhor (SIMÃO, 2002. p. 49).
Ele poderia ser “adestrado” desde o momento em que entrava na idade considerada
capacitada para aprender algum ofício, a já descrita idade de “aprendiz” (GÓES e
FLORENTINO, 2000. p. 184; PRIORE, s/d). O lucro de seu serviço era remetido ao
seu proprietário, no entanto, assim como os cativos domésticos, tinham moradia,
alimentação e roupa garantidos pelos seus senhores. Não era incomum que os
escravos de aluguel ganhassem algum tipo de “pequeno prêmio” pelo seu serviço
107
(SIMÃO, 2002. p. 49). Cabe salientar que a prática do aluguel de escravos, em todo
o Brasil, pode ser associada diretamente ao trabalhador doméstico e, segundo
Costa (1998. p. 96-97), muitos anúncios de jornais na segunda metade do século
XIX traziam o termo “alugada” para definir “criada de servir”.
Ao contrário do escravo de aluguel, o escravo de ganho centrava sua
atividade em, ele próprio, vender seu serviço ou os frutos da produção de seu
senhor a outras pessoas, conquistando uma pequena participação nos lucros. Os
escravos de ganho eram uma opção para os pequenos proprietários, que detinham
poucos cativos na cidade. O dinheiro recebido poderia equivaler-se a um salário.
Esse cativo, em uma primeira vista, parecia ter uma maior liberdade em relação aos
outros, uma vez que poderia ter sua própria moradia e circular mais livremente na
cidade. Porém, ele precisava obter um ganho suficiente para pagar a seu senhor
uma renda pré-estipulada e seus próprios gastos com o que restava. Ele precisava
pagar o aluguel de sua pequena casa ou quarto nos cortiços urbanos, da mesma
forma que outros moradores das periferias, como libertos, ex-trabalhadores rurais,
operários e imigrantes, e precisava prover sua alimentação e seu vestuário (SIMÃO,
2002; MAESTRI, 2006; CUNHA, 2012; DIAS, 2013; MACIEL, 2014).
Em todo o lugar onde ocorreu escravidão, existia o escravo de ganho e,
consequentemente, havia uma forte concorrência de mercado com outros indivíduos
da população trabalhadora pobre, pois muitos destes desempenhavam as mesmas
funções que os escravos urbanos (MAESTRI, 2006; CUNHA, 2012). Temos, aqui,
alguns exemplos de anúncios dessa população concorrente dos escravos de ganho:
Ama de leite - a libertada Senhorinha, para poder corresponder ao
dever que contrahiu, precisa contratar-se como ama ou qualquer
outro serviço. Para tratar com a mesma em casa do Sr. Estevam
Barbosa de Pinho Louzada. (Jornal do Commercio, n. 277, domingo,
05 de dezembro de 1880. p. 3)
Criada - precisa-se de uma que saiba cosinhar, preferindo-se
branca. Informações n'esta tipographia. (Jornal A Nação n. 126,
segunda-feira, 21 de abril de 1884. p. 3)
Ama de leite - quem precisar d'uma ama de leite allemã e sem filho,
dirija-se a rua do Imperador n. 16. (Jornal Diario de Pelotas, n. 101,
sábado, 08 de maio de 1886. p. 3)
108
Essa suposta maior “liberdade” tinha, portanto, um alto preço, visto que
muitas vezes o valor adquirido pelo cativo era tão escasso que o induzia a furtar,
roubar e prostituir-se. E, ainda, a liberdade não deixava de ser vigiada e, na maioria
das vezes, seus limites coincidiam com os limites geográficos da cidade. (SIMÃO,
2002; ZANETTI, 2002; MAESTRI, 2006). As limitações ultrapassavam a condição de
escravo, entretanto muitos “construíam solidariedades eficazes com membros do
seu “canto”, cujo objetivo era formar um tipo de consórcio, “uma associação de
auxílio mútuo” para conseguir esconder seus ganhos extras, como uma alternativa à
aquisição de suas alforrias (CUNHA, 2012. p. 56).
Figura 9 – Escravos de ganho compravam mais facilmente sua
alforria. Foto de Chistiano Jr. c. 1865. (Acervo Museu Histórico
Nacional / IBRAM / MinC). In: Cunha, 2012. p. 55.
109
Os escravos estavam, então, ocupando-se de vários trabalhos e em
condições diversas e podemos observar que, desde as primeiras presenças do
escravo africano e afro-descendente como mão de obra nas Américas as relações
que ocorriam entre escravos e entre escravos e senhores se davam em vários
âmbitos: escravizados trabalhando no meio rural e urbano, resistindo ao sistema nas
mais diversas maneiras; libertos atrelados a seus senhores, pagando sua “dívida de
vida” com trabalho ou oferta de outro cativo em seu lugar; escravos na cidade
socializando e concorrendo com outras camadas de trabalhadores. As negociações
nunca eram totalmente pacíficas e o escravo resistia de diversas maneiras ao
sistema.
Para a categoria “trabalho”, uma vez que a escravidão ocorre em função de
mão de obra, temos atividades diversas atribuídas conforme idade e sexo dos
cativos. A mulher escrava desempenha, especialmente, os serviços domésticos ou
mais próximos às casas, “mais leves”. Ainda que existam exceções, geralmente são
elas que estão em contato mais próximo de seus senhores. Sendo assim, mais
informações sobre essa camada de mulheres trabalhadoras cativas no ambiente
oitocentista pelotense e suas especializações são úteis para entendermos as formas
de se relacionarem dentro dessa sociedade a partir de suas atividades e para a
compreensão da perpetuação desse trabalho doméstico através das gerações.
110
CAPÍTULO III – TRABALHO DOMÉSTICO, ESCRAVIDÃO E RELAÇÕES DE
GÊNERO, CLASSE E COR A PARTIR DE UMA LEITURA DOS JORNAIS
PELOTENSES DO SÉCULO XIX
Refletir sobre a temática das relações de gênero e da escravidão na
história do Brasil implica, sobretudo, considerar as experiências de
mulheres negras no mundo do trabalho (SOUZA, 2012. p. 244).
Como pode ser acompanhado pela historiografia, os trabalhos forçados na
sociedade escravista eram desempenhados por múltiplos agentes e havia divisão
das atividades por sexo. Em geral, a mulher encontra-se, historicamente, muito mais
no ambiente domiciliar que o homem (SOUZA, 2012) e isso se reflete, também, na
camada escravizada. Podemos dizer que há o “espaço de trabalho da mulher e o
espaço de trabalho do homem” e isso pode ser entendido a partir de reflexões sobre
gênero e classe, na tentativa de compreender as relações que ocorriam entre
mulheres trabalhadoras cativas e de outras categorias.
3.1 – Dos primórdios dos estudos de gênero à atualidade: mulher, gênero e
arqueologia
Os estudos sobre gênero, mostrando o quanto os papéis definidos de
masculino e feminino e o quanto suas diferenças são variadas de acordo com as
diversas culturas, remontam aos princípios do século XX. Na Antropologia e, um
tanto tardiamente, na Arqueologia a temática vem sendo explorada em diversos
âmbitos, porém as origens desses estudos centram-se na compreensão dos
aspectos socioculturais das diferentes sociedades.
Foi a partir de Franz Boas que o indivíduo passou a ser observado com suas
subjetividades e particularidades. Em fins do século XIX, contrapondo-se às ideias
evolucionistas, Boas engajou-se em abranger diferentes disciplinas em suas
abordagens, o que ele chamou de “quatro campos” (antropologia cultural,
antropologia física, arqueologia e linguística). Unindo essas áreas e aproximando-se
da psicologia (CASTRO, 2004), com estudos de raça e cultura, Boas abriu novos
caminhos para pesquisadores que vieram a seguir.
Na mesma época, Émile Durkheim preocupa-se em identificar quais e por que
algumas tarefas são atribuídas a homens e outras a mulheres (ALBUQUERQUE,
111
2007). Sua obra Divisão do Trabalho baseia-se na ideia de que o homem é
biologicamente mais evoluído que a mulher e que as diferenças dos corpos podem
ser transportadas para as diferenças funcionais, pressupondo que as tarefas são
divididas de forma solidária para ambos os sexos, com um serviço complementando
o outro. Entretanto, cabe salientar que, para o autor, essa compreensão de trabalho
solidário não remete a uma questão igualitária, mas sim a uma demanda para
“manter a ordem social”. Seguindo as concepções tradicionais, para Durkheim, o
homem é mais evoluído que a mulher e mais apto para determinadas funções
(ALBUQUERQUE, 2007).
Confrontando as ideias biológicas, as discípulas de Boas, Ruth Benedict e
Margareth Mead inauguram a escola “Cultura e Personalidade”, dentro da qual a
ideia principal seria relacionar a cultura em que o indivíduo estava inserido com a
personalidade deste indivíduo, mostrando como as culturas “selecionam” o que será
minimizado, acentuado ou ignorado nas vidas humanas. Isso porque, segundo essa
escola, algumas características individuais têm um “valor” em cada cultura, a qual
estimularia ou reprimiria essas características, de acordo com o que é concebido
como aceitável (MEAD, 1971; ROCHA, 1984).
Ainda que não se discuta gênero nessas primeiras pesquisas do século XX,
Margareth Mead, a exemplo de alguns de seus colegas contemporâneos, como
Gregory Bateson e Marcel Mauss, já antecipava esse tema quando observou uma
diversidade de papéis sexuais de acordo com as diferentes culturas. A autora, assim
como alguns antropólogos de sua época, percebeu que, mesmo quando as
sociedades estivam próximas geograficamente, elas entendiam de formas distintas
os sexos, não se limitando às peculiaridades anatômicas (MEAD, 1971; SEGATO,
1998). A “natureza”, portanto, não explicaria a gama de outras diferenciações sociais
entre os sexos, como hierarquia, poder, status, posição na divisão do trabalho,
personalidade, comportamento individual e coletivo e até mesmo as formas de lidar
com o corpo. De acordo com Segato (1998. p. 5), foi Mead a precursora do que
atualmente chamamos de “construção cultural de gênero”, partindo da ideia de que
“homem” e “mulher” são entes que se diferenciam conforme cada sociedade e assim
“introduz-se o “gênero” como uma questão antropológica, etnograficamente
documentável”.
Se de um lado temos autores trabalhando com os conceitos de configuração
e padrões de comportamento, por outro temos Lévi-Strauss, que volta a nos trazer
112
uma noção da divisão sexual do trabalho. Porém, ao contrário de Durkheim, para
quem essa divisão ocorre dentro de uma lógica biológica, Lévi-Strauss entende que
existe uma reciprocidade entre os sexos construída culturalmente derivada da
necessidade econômica das sociedades. Para solucionar os problemas econômicos,
existe a divisão do trabalho que ocorre a partir das alianças (os casamentos). Dessa
forma, a partir das relações de parentesco e das dualidades que as relações entre
os sexos permitem, das reciprocidades e das trocas entre as famílias, é que se
mantém a ordem da sociedade (LÉVI-STRAUSS, 1982).
Devemos levar em conta que este e os outros clássicos são datados
historicamente. No entanto, são importantes para o entendimento do percurso dos
estudos de gênero, os quais caminham juntamente com os movimentos feministas,
uma vez que esses movimentos impulsionaram as reflexões sobre a mulher e sua
inserção nas diferentes sociedades.
Os
movimentos
feministas
são,
em
geral,
historicamente
divididos
inicialmente em três ondas. O primeiro, é conhecido como movimento sufragista,
ocorreu entre 1880 e 1920, e caracteriza-se por um levante de mulheres que
reivindicavam direitos políticos, educacionais e trabalhistas (GILCHRIST, 1999. p. 2).
O segundo movimento dá-se em fins dos anos 1960 e é estimulado por
teóricas e feministas tanto européias quanto estadunidenses que passam a refletir
sobre a posição universalizada da opressão da mulher, que se valeram dos
primeiros estudos sobre os papéis sexuais dentro das sociedades (FRANCHETTO,
et al., 1981; GILCHRIST, 1999). Feministas como Simone de Beauvoir, Shulamith
Firestone e E. Reed entendem que fatores ligados à biologia (como a reprodução e
a maternidade) e, também, ao surgimento da propriedade privada utilizando a teoria
do patriarcado, levaram a mulher a ser colocada sob domínio doméstico e sob o
espectro da “fragilidade” (FRANCHETTO, et al., 1981; GILCHRIST, 1999). Uma das
forças para o movimento, especialmente na década de 1970, foi a inserção de
militantes feministas no meio acadêmico, possibilitando o início dos “estudos da
mulher” (FRANCHETTO et al., 1981; GROSSI, 2004). Expoentes dessa época foram
Gayle Rubin, R. Rosaldo e J. Atkinson, cujos estudos centraram-se em análises
antropológicas anteriores, como de Lévi-Strauss e demonstram que a passagem da
“natureza” para a “cultura” e a condição biológica da mulher influenciavam na
opressão feminina, ou na “assimetria” entre os sexos, como passa a ser chamada
pelas duas últimas autoras (FRANCHETTO, et al., 1981; NICHOLSON, 2000).
113
Uma importante pesquisadora para essa linha é a antropóloga estadunidense
Gayle Rubin, que reflete acerca da opressão feminina dentro dos sistemas sociais a
partir de uma perspectiva estruturalista (RUBIN, 1993).
Levantando os
questionamentos sobre as interpretações de Lévi-Strauss, na obra As estruturas
elementares do parentesco, ela percebe as relações entre homens e mulheres como
históricas, consequentes de um arranjo social e com um momento de origem, não
derivando de um estado de natureza. Para ela, o sistema de troca de mulheres
observado por Lévi-Strauss pode ser analisado dentro de uma perspectiva em que a
mulher é socialmente construída, estando o sexo para a natureza e o gênero para a
cultura.
Essa teórica feminista entende que se as mulheres são trocadas para as
alianças dos grupos, o que configura a passagem da natureza para a cultura, e
essas alianças compreendem as regras exogâmicas e o tabu do incesto. O
problema da opressão da mulher (categoria mantida pela autora e que vem do
movimento feminista) estaria exatamente na criação da cultura. Assim, a teoria do
social proposta por Lévi-Strauss traz, implícita, a essência de uma teoria da
opressão feminina (FRANCHETTO, 1981; RUBIN, 1993). Segundo Franchetto, et al.
(1981), tanto no movimento feminista desse período, quanto para as teóricas,
entende-se que a natureza (biológica) é interpretada pela cultura, da qual se
originam múltiplos significados que ultrapassam as diferenças dos corpos, que
ganham sentido socialmente.
Para Nicholson (2000), um dos problemas de algumas feministas desse
período foi não substituir o conceito de “sexo” (biológico) por “gênero” (cultural), uma
vez que sexo não é analisado fora de gênero: “sexo deve ser algo que possa ser
subsumido pelo gênero” (p. 2). Logo, o que era chamado de “estudos da mulher”
passa a ser chamado de “estudos de gênero”, uma vez que as diferenças sexuais
estavam sendo pensadas para além dos corpos biológicos e, então, teóricas
feministas da Europa introduzem o termo “gênero” em lugar do termo “sexo”.
Iniciam-se, portanto, discussões que compreendem o gênero como uma categoria
que presume, além do sexo, aspectos de classe e raça (SCOTT, 1995).
Essa terceira onda, portanto, ocorre especialmente durante a década de
1990, em que uma série de mudanças são consideradas para se pensar gênero.
Segundo Gilchrist (1999, p. 2), esse terceiro movimento traz discursos rejeitando a
ideia de que existem características ou atributos essenciais para tipificar homens e
114
mulheres. Se na segunda onda gênero era entendido como construído culturalmente
e sexo como pertencente à esfera biológica, na terceira onda supera-se essa
dicotomia (GILCHRIST, 1999; NICHOLSON, 2000).
Scott (1995) critica a categoria gênero como um sinônimo de mulher, conceito
utilizado amplamente pelas teóricas feministas de décadas anteriores. Para ela, usar
essa equivalência de termos diminui a posição da mulher na história:
Enquanto o termo “história das mulheres’ proclama sua posição
política ao afirmar (contrariamente às práticas habituais) que as
mulheres são sujeitos históricos válidos, o termo “gênero” inclui as
mulheres, sem as nomear, e parece, assim, não constituir ameaça.
(SCOTT, 1995. p. 75).
Influenciada, portanto, por ideários pós-modernos, essa fase do movimento
feminista é caracterizada por ampliar o conceito de gênero (GILCHRIST, 1999;
NICHOLSON, 2000; GROSSI, 2004) e ultrapassar a esfera da discussão de sexo,
entendendo que gênero deve levar em conta as diferenças: “diferenças entre
homens e mulheres, ou entre homens e mulheres em contraste com sexualidades,
etnicidades ou classes sociais” (GILCHRIST, 1999. p. 3), em uma reestruturação
que exige uma visão de igualdade política e social (SCOTT, 1995). Gênero passa a
ser pensado, então, como uma conjunção de múltiplos fatores e deve ser estudado
de forma “relacional”, e não mais de maneira isolada. As mulheres devem ser
estudadas em relação a outras mulheres e em relação a homens, por exemplo,
entendendo as mulheres em um caráter heterogêneo e dentro de suas relações
sociais.
Buscando uma teoria que rompesse as dicotomias sexo/gênero, temos Butler
(1999), que afirma ser o “sexo” uma categoria também construída culturalmente,
assim como o é “gênero”. Com essa perspectiva, Butler problematiza o conceito de
gênero em que se firma a teoria feminista, pois, para ela, a distinção de sexo/gênero
é arbitrária, na medida em que ambos são construídos e não são naturais. O “tornase mulher e não se nasce mulher” de Simone de Beauvoir, filósofa feminista
francesa, é entendido por Butler como não indicando que o indivíduo seja
biologicamente do sexo feminino para tornar-se mulher. Portanto, sexo também
seria uma categoria que varia de cultura para cultura (BUTLER, 1999).
Também nos anos 1990, nas vertentes do pós-estruturalismo e com teorias
pós-identitárias, rompendo ainda mais as possíveis dicotomias existentes,
115
desenvolve-se a teoria queer, por meio de uma corrente dentro dos movimentos
homossexuais.
Esse
conceito
trata
de opor-se
à
construção
do
gênero
heteronormativo e caracteriza-se por problematizar categorias como sujeito,
identidade, agência e identificação, os quais não eram contemplados nos estudos de
gênero (LOURO, 2004).
As diferentes perspectivas de gênero são construídas historicamente e as
diferenças podem ser percebidas; enquanto a corrente estruturalista apresenta a
dicotomia feminino/masculino, entendendo que para que exista o feminino é
necessário o masculino, na corrente pós-estruturalista o gênero se constitui por
linguagem/discurso. Scott (1995) fala que o discurso é um instrumento de orientação
do mundo e pode ser anterior à orientação da diferença sexual (SCOTT, 1995;
BUTLER, 1999; GROSSI, 2004).
De acordo com Peirano (1995), a antropologia é uma ciência que não segue
paradigmas pré-estabelecidos, unindo teoria e pesquisa na busca por novas
descobertas. Assim, temos que as etnografias são construções acadêmicas a partir
de análises de dados de campo. Strathern (2006) demonstra isso em seu estudo
sobre sociedades na Melanésia, no qual percebe a necessidade de entendermos
que o conhecimento é produzido historicamente e que parte do exercício
antropológico é reconhecer a criatividade dos grupos humanos, a qual ultrapassa
qualquer análise acadêmica.
Dentro dessa perspectiva, Strathern (2006) nos fala que as relações de
gênero são entendidas pelo viés do observador, sendo que a visão feminista “induz
em grande medida a uma visão mais autônoma das relações de poder” (p. 58), uma
vez que “homens e mulheres como seres caracterizados por gênero estão sempre
diferentemente situados” (p. 59). Para Strathern (2006),
A inter-relação entre interesses “femininos” e “masculinos” pode ser
compreendida com respeito a cada um deles, mas a motivação por
trás desses interesses é geralmente tida como inerente à existência
separada das próprias categorias. Isso porque a visão pluralista
implica que as ideologias têm suas origens na promoção de
interesses identificáveis e mutuamente exteriorizados, mais
propriamente do que nas formas de funcionamento internamente
interconectadas de um sistema (p. 59).
Entender a posição das mulheres negras na sociedade escravista é buscar,
portanto, nas relações de poder o foco para o entendimento das permanências das
116
desigualdades na sociedade pelotense atual, centrando os esforços para
compreender as relações entre homens e mulheres e entre mulheres de diferentes
categorias sociais. Discutiremos essa questão mais adiante.
3.1.1 – Breve histórico da Arqueologia de Gênero
Ainda que tardiamente, seguindo o compasso da efervescência dos estudos
feministas, nos anos 1980 a Arqueologia de Gênero começa a se constituir como
área (GILCHRIST, 1999; ZARANKIN & SALERNO, 2010). Pesquisas sobre o tema
passaram a ser discutidas com ênfase em uma visão crítica sobre a interpretação
das relações em tempos passados (ZARANKIN & SALERNO, 2010). As variações
sobre a composição dos gêneros são observadas de diversos pontos de vista dos
pesquisadores e essas relações podem ser interpretadas a partir de artefatos,
edificações/espaços, representações visuais, dados ambientais, restos humanos,
etc. (GILCHRIST, 1999).
De acordo com Voss (2006), as primeiras pesquisas dos estudos de gênero
em arqueologia atentaram para os aspectos sexuais (natureza), como forma de
enfatizar a presença das mulheres nos sítios separando os papéis de gênero da
biologia reprodutiva. A sexualidade foi abordada em micro-escala, como proposto,
por exemplo, por Conkey & Spector e por Gilchrist, entre outras.
Conkey & Spector (1984) são duas das primeiras arqueólogas feministas a
questionarem a invisibilidade da mulher nas pesquisas arqueológicas. Segundo as
autoras, o fator invisibilidade devia-se muito mais a uma falsa noção de objetividade
e sobre paradigmas de gênero empregados pelos arqueólogos do que uma
invisibilidade inerente aos dados (CONKEY & SPECTOR, 1984. pp. 5-6). Para as
autoras, a visão androcêntrica tradicional enraizada nos arqueólogos, em sua
grande maioria homens brancos, tornava as interpretações parciais, subjugando o
papel das mulheres ou relegando-os a uma ideia ocidental de construção dos
sujeitos (CONKEY & SPECTOR, 1984). A proposta dessas arqueólogas foi buscar
metodologias alternativas às aplicadas comumente pelos pesquisadores, procurando
os aspectos relacionados a gênero dentro das análises dos sítios, fugindo das
teorias dos sistemas utilizadas na época e buscando uma arqueologia em menor
escala (CONKEY & SPECTOR, 1984).
117
Apenas na década de 1990, com as propostas pós-modernas de pensamento
sobre as relações de gênero, a arqueologia passa a propor novas reflexões sobre o
papel das mulheres, tanto a partir dos registros arqueológicos, quanto sobre suas
atuações como pesquisadoras. Essas novas perspectivas começam a introduzir a
ideia de múltiplos gêneros, saindo da dualidade feminino/masculino e chegando aos
estudos queer (ZARANKIN & SALERNO, 2010).
Com o entendimento de gênero como cambiante e plural (GROSSI, 2004),
podemos partir para uma análise sobre o trabalho doméstico e as mulheres negras
que o desempenhavam, e ainda o desempenham, e as relações que permeiam esse
trabalho.
3.1.2 – Mulheres e trabalho doméstico: da “domesticidade” à questão da
mulher negra
A história nos mostra que na sociedade escravista as mulheres das elites, as
proprietárias de escravos em geral, as escravas e as trabalhadoras livres
compartilham os mesmos ambientes. As relações entre essas diferentes mulheres
davam-se de formas diversas. Há, por um lado, a ideia de poder e de concorrência
entre as categorias trabalhadoras e, por outro, a ideia de solidariedade entre as
negras (REIS, 2012; DIAS, 2013; SILVA, 2011).
A história da mulher está, em geral, entrelaçada intimamente com o ambiente
doméstico. Segundo Rosaldo (1995), todas as sociedades humanas apresentam os
“grupos domésticos”, os quais são essencialmente integrados por mulheres e
crianças. Apesar de, frequentemente, homens circularem e desempenharem
funções domésticas e mulheres ultrapassarem os limites da casa, pode-se afirmar
que as “mulheres, diferentemente dos homens, vivem vidas que elas mesmas
concebem com referência a responsabilidades de um tipo reconhecidamente
doméstico” (ROSALDO, 1995. p. 20).
Assim, algumas explicações para as relações de poder e de desigualdade de
gênero podem estar centradas no papel reprodutivo da mulher, o que poderia ser a
base para a “acomodação mútua da história humana e da biologia humana”
(ROSALDO, 1995. p. 19). Mesmo em diferentes sociedades, essa acomodação
pode derivar-se do fato de as mulheres terem crianças e produzirem leite e cuidarem
118
dos mais novos, portanto, elas estão mais concentradas na esfera doméstica do que
na esfera pública (ROSALDO, 1995. p. 19). Entretanto, a autora ressalva que esse
modelo público/privado só tem sentido em termos universais, pois em uma visão
mais concreta, o lugar da mulher nas sociedades não está relacionado com o que
ela faz e ao que biologicamente ela é, mas sim à significação que suas atividades
adquirem dentro das interações sociais (ROSALDO, 1995. p. 22). Para essa autora,
o espaço doméstico pode ser compreendido, na sociedade ocidental, como o
ambiente onde ocorrem as relações sociais entre parentes baseadas na moradia e
no abastecimento cotidiano da família e não mais o local de oposição ao espaço
normativo jurídico (masculino): o público (p. 27).
Ainda assim, o espaço da casa relacionado às atividades da mulher está
muito presente no pensamento atual. Para Zarankin & Salerno (2010), embora a
arqueologia, a exemplo de outras ciências humanas, esteja rumando para uma
amplitude de interpretações sobre gênero, as narrativas sobre a humanidade no
passado ainda preservam traços androcêntricos e entocêntricos que são passados
para as novas gerações. Em uma experiência proposta pelos autores, foi pedido a
crianças que desenhassem sociedades do passado. Os desenhos apresentavam as
mulheres no ambiente doméstico desempenhando o que hoje entendemos por
“tarefas do lar”, enquanto os homens estavam nas atividades externas de caça,
pesca, e apareciam com lanças e flechas nas mãos. As mulheres apresentavam
traços de “feminilidade”, como cabelos compridos e roupas de cor rosa. As crianças
reproduziram o que aprenderam em sua própria sociedade, tanto em relação às
normas atuais, quanto à história da humanidade, que é claramente repetida: os
homens estão na rua, enquanto as mulheres estão relacionadas ao ambiente
doméstico (ZARANKIN & SALERNO, 2010).
Essa ideia de ambiente doméstico pode ser ampliada, porém mantêm-se as
atividades relacionadas às mulheres. Conforme a arqueóloga Battle-Baptiste (2011),
o espaço doméstico das escravas seria qualquer lugar onde ocorriam as
negociações atinentes a assuntos de cuidado da família, das crianças, da
alimentação, etc. Portanto, esse espaço ultrapassaria as estruturas arquitetônicas
das senzalas, diferentemente do que ocorria com os espaços das mulheres brancas,
especialmente das elites na sociedade escravista, os quais estavam realmente mais
concentrados dentro das paredes da casa. Assim, o trabalho doméstico não pode
ser atribuído sempre e apenas ao ambiente físico da casa e seu entorno.
119
Podemos incluir nessas tarefas de ambiente doméstico não só as que dizem
respeito ao ambiente da família escrava, mas aqueles que exigiam as ruas para sua
execução, porém ainda assim pertenciam ao ambiente domiciliar, como alguns
trabalhos externos executados pelas cativas, por mulheres libertas e livres pobres.
Esses serviços permitiam a circulação das mulheres escravas e empobrecidas nas
ruas, enquanto as mulheres brancas/das elites, permaneciam em suas casas.
Figura 10 - Quitandeiras em rua do Rio de Janeiro, 1875. FERREZ, Marc. (Acervo
Instituto Moreira Salles/RJ). Fonte: www.ims.com.br
A manutenção das relações de poder no que diz respeito às mulheres negras
na atualidade está diretamente vinculada à herança escravista, em Pelotas e no
Brasil como um todo. Há uma constante construção da subalternidade pelas elites e,
em relação à mulher, pobre e negra, há a implicação nos três âmbitos: gênero,
classe e cor, assim como nos fala Spivak (2010. p. 126) sobre o subalterno que “não
pode falar. Não há valor algum atribuído à “mulher” como um item respeitoso nas
listas de prioridades globais”.
Partindo-se de concepções sobre gênero e relações de poder, temos que a
condição de grande parte da população negra no Brasil permanece em situação de
exclusão, decorrente dos problemas socioeconômicos que se perpetuam no tempo.
À mulher negra cabe uma situação ainda potencializada de desigualdades, pelas
120
discriminações sofridas por elas em vários âmbitos, pois, além da violência de
gênero, a mulher negra sofre preconceito “de cor” e raça, esta entendida como uma
construção cultural, social e histórica. (MENEGHEL, et. al., 2005; RIBEIRO, 2008).
Segundo a autora feminista negra Bell Hooks (1984/2004), os primeiros
estudos feministas nos Estados Unidos não abrangiam as mulheres negras, a quem
era relegado um papel de exclusão e abandono, sendo que às brancas cabia um
papel revolucionário de combater as violências de gênero. O que, para a autora, não
só deixava de lado qualquer mulher que não fosse branca de classe média/alta,
como não possibilitava “medir o sofrimento” dessas outras mulheres que estavam
em desvantagem socioeconômica. Hooks (1984/2004) concorda que esse
sofrimento não é universal para todas as mulheres, porque está vinculado a
determinadas “situações, necessidades e aspirações”, as quais, no entanto, não
excluem os “parâmetros históricos e políticos” que devem ser utilizados como
ferramentas para “medir o sofrimento”. Somente dessa forma é possível tomar os
rumos políticos corretos: estabelecendo as prioridades sociais em níveis de
“sofrimento” (BARER s/p, apud HOOKS, 1984/2004).
A condição histórica de colocar a mulher negra em uma posição de
subalternidade dá-se na literatura feminina branca:
El racismo abunda en la literatura de las feministas blancas,
reforzando la supremacía blanca y negando la posibilidad de que las
mujeres se vinculen políticamente atravesando las fronteras étnicas y
raciales. El rechazo histórico de las feministas a prestar atención y a
atacar las jerarquías raciales ha roto el vínculo entre raza y clase
(HOOKS, 1984/2004. s/p)
Falar de hierarquias de gênero é falar de classe e raça, como entendem as
teóricas pós-estruturalistas. Segundo Brown (s/d apud HOOKS, 1984/2004), classe
ultrapassa a tradicional visão marxista de relações a respeito dos meios de
produção, atingindo aspectos de comportamento, de pressupostos básicos em
relação
ao
modo
de
vida
e
às
experiências
vividas
pelos
indivíduos.
Compreendendo classe dessa forma, podemos entender os diferentes grupos de
mulheres, uns em relação aos outros.
As lutas feministas brancas acabaram por não deixar espaço para as outras
mulheres manifestarem-se, mesmo porque elas poderiam entender que existe a
discriminação sexual, porém sem uma identificação com a opressão. Por isso, por
121
tanto tempo as mulheres negras foram espectros nas lutas feministas e na
identificação de escravas na história das lutas contra o sistema opressor (HOOKS,
1984/2004; SHARPE, 2003; SPIVAK, 2010).
É necessário pensar que, anteriormente às teorias feministas, muitas
mulheres brancas, as quais passaram a questionar sua posição social de oprimida,
não se compreendiam dentro de um sistema opressor. Da mesma forma ocorre com
muitas não-brancas, as quais, por questões que vão além das lutas pelas igualdades
nas condições de trabalho, etc., percebem a opressão pela experiência de violência
vivida no dia-a-dia. Para classe e cor diferente, há a necessidade de se pensar as
lutas de formas diferentes (HOOKS, 1984/2004). Pelos discursos das feministas
brancas, não há identificação das mulheres negras; as experiências de vida são
variadas, portanto as reivindicações são variadas.
Hooks vai mais além e traz relatos de crianças brancas amedrontadas pelas
trabalhadoras domésticas negras, quando essas eram incumbidas de cuidar das
crianças e não permitiam algum ato da criança. Transformando-se em vítimas da
situação, essas crianças não percebiam o quanto elas oprimiam as trabalhadoras
negras; as incumbências de “dar ordens” à criança era uma outra ordem que vinha
dos pais brancos dessa criança (HOOKS, 1984/2004).
Hooks, como mulher, negra e militante do movimento feminista negro,
compreende que há uma diferença muito grande entre essas “opressões”, estando
as mulheres negras invisibilizadas historicamente e socialmente. A autora não
entende a vitimização como um aspecto negativo, entende como uma ideia que é
necessária se manter em mente para que as condições atuais de opressão das
mulheres negras nas sociedades ocidentais sejam alteradas.
Pensando nessas palavras de Hooks e acompanhando o percurso histórico
das trabalhadoras domésticas da atualidade, cujas representantes em sua grande
maioria são mulheres negras, podemos buscar nos anúncios de trabalhadoras
escravas alguns pontos a serem explorados, uma vez que esses documentos
trazem uma série de informações que outras fontes não contém.
3.2 – As escravas nos anúncios de jornais pelotenses do século XIX
Conforme já discutido anteriormente, poucos são os trabalhos que se
dedicam com mais ênfase às escravas em Pelotas, sendo o tema “escravidão” ainda
122
pouco explorado como um todo, e não dando protagonismo para as mulheres.
Entretanto, como podemos acompanhar no capítulo II, elas estão presentes e ativas
no ambiente oitocentista pelotense e estão em maior evidência quando se trata de
alguns eventos, como nas cartas de alforria da primeira metade do século XIX
estudadas por Simão (2002) e por Couto (2011), por exemplo. Nesses documentos,
como já foi apontado, as mulheres escravas aparecem como maioria numérica do
total de cativos que recebiam a liberdade. Da mesma forma, os anúncios dos jornais
pelotenses pesquisados para o presente trabalho apontam para uma grande maioria
de mulheres sendo comercializadas, em relação aos homens. Os dados referentes a
esses números serão explorado logo adiante, juntamente com outras análises feitas
no âmbito deste estudo. No entanto, inicialmente faremos uma breve discussão de
trabalho doméstico no Brasil, desde a escravidão até os serviços assalariados, uma
vez que há reflexos do passado nas condições da atividade no presente.
A seguir, faremos um pequeno percurso histórico das mulheres cativas
africanas e descendentes de africanas e suas atribuições no trabalho doméstico.
3.2.1 – Mulheres e escravas: da África ao Brasil
Os relatos sobre as mulheres escravas, desde a captura, comercialização,
tráfico interno africano e tráfico transatlântico, são muito poucos; porém, ainda que
em número inferior no total de indivíduos escravizados e com seu valor comercial
cerca de 10% abaixo do valor dos homens, sabe-se que elas eram direcionadas
para os serviços nas lavouras, juntamente com os escravos homens e para as casas
de família (PAULA, 2012; DIAS, 2013). Tanto na África, no tráfico interno, quanto na
travessia do Atlântico, as mulheres capturadas para servirem como escravas eram
as que mais sofriam; o maior número de mortes das cativas se dava na viagem pelo
interior da África, especialmente quando eram trazidas da África Central, onde, ao
longo do percurso, eram vistas como reprodutoras e trabalhadoras agrícolas, sendo
destinadas aos países árabes e à Índia, ou então, sequestradas e levadas até o
litoral Atlântico para o embarque em direção ao Novo Mundo (DIAS, 2013). Apesar
de o número de escravos homens capturados ser maior que o número de mulheres,
o que reflete na já citada desproporção entre cativos e cativas nas Américas, as
mulheres estavam mais vulneráveis às doenças, além dos problemas de gestação e
123
partos, e ainda, estavam vulneráveis a constantes maus-tratos infligidos pelo
sistema escravista e pelas suas posições sociais em um mundo majoritariamente
masculino, sofrendo violências físicas diversas e mesmo podendo ser assassinadas
pelos próprios companheiros de escravidão (DIAS, 2013).
Segundo essa mesma pesquisadora, nas regiões da África onde as cativas
eram apreendidas, elas eram direcionadas ao trabalho em plantações, submetidas a
seus senhores quando eram escravizadas, ou aos homens mais velhos de seus
grupos étnicos, os quais detinham o poder sobre essas mulheres. Chegadas ao
Brasil, elas eram direcionadas às lavouras de café, açúcar e a outras atividades no
meio rural e urbano (DIAS, 2013). Na região sudeste do Brasil, muitas escravas
davam à luz em pleno trabalho nas plantações e não conseguiam tomar conta de
seus filhos, em muitos casos acarretando na morte desses recém-nascidos. Nota-se,
assim, que as condições físicas inapropriadas, como um processo de gravidez
avançado, não impediam de as mulheres serem levadas ao trabalho braçal
cotidiano. Há, muitas vezes, uma necessidade da continuidade das atividades, ainda
que as condições orgânicas dos indivíduos não sejam as ideais para o desempenho
dessas atividades. Segundo Dias (2013),
Para as mulheres de origem africana que viveram como escravas
nas grandes propriedades rurais do Brasil, sobreviver já era uma
vitória. Distantes de suas redes familiares originais, elas constituíam
minoria no plantel de escravos, majoritariamente masculino. [...]
Seguir vivendo em ambiente tão hostil exigiu força, inteligência,
capacidade de adaptação e, sempre que possível, rebeldia. É como
se, a todo momento, fosse preciso inventar formas de não morrer,
não adoecer e não enlouquecer enquanto serviam a seus senhores
(p. 360)
Porém, nesse ambiente hostil que todo o tipo de escravidão proporciona, as
escravas buscavam outros meios de se estabelecer dentro da sociedade. A
resistência cotidiana, já discorrida no capítulo anterior, era um deles. Outra forma de
amenizar sua vida de trabalho pesado, principalmente em regiões rurais do Brasil
onde as atividades das mulheres pouco ou nada se diferenciavam das atividades
dos homens (sudeste, nordeste) era
[...] desenvolver habilidades que lhes proporcionassem algum
conforto no seu dia a dia. Boas cozinheiras, engomadeiras e
lavadeiras eram requisitadas para prestar serviços na sede da
124
fazenda. As escravas domésticas, as mucamas, eram poupadas dos
trabalhos mais pesados da lavoura e podiam andar mais bemvestidas e limpas. Na casa-grande, usavam roupas no estilo
europeu, mas as que iam e vinham, como as lavadeiras e as
passadeiras, ousavam manter seus turbantes e saias de bicos,
conservando os penteados e os estilos de vestir de suas terras de
origem e do seu grupo étnico. Para as suas festas e batuques, as
escravas que serviam à casa-grande conseguiam ostentar
acessórios (DIAS, 2013. p. 375).
Portanto, havia uma busca de uma melhoria das condições de vida através do
trabalho das escravas e das relações que esse trabalho permeia. A especialização
das atividades, no Brasil como um todo, abria portas para que as cativas pudessem
sair do meio rural em direção ao urbano e, com o passar do tempo, tentar comprar
sua liberdade, ato muito mais difícil de ocorrer quando elas se mantinham no
ambiente de trabalho rural (DIAS, 2013). A melhoria das condições de vida das
escravas domésticas, ainda que inseridas no ambiente rural, já era apontada por
Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1946), em cuja obra o autor afirma que
havia distinções marcadas pelo status social entre os cativos da casa, cujo
tratamento seria diferenciado, e os demais trabalhadores.
Em Pelotas, essas relações de trabalho das mulheres ocorriam de maneira
diferente, pois, como já visto anteriormente, os serviços brutos das charqueadas
exigiam mão de obra masculina, por demandarem mais força e resistência (ROSA,
2012), direcionando as escravas, desde os primórdios da formação da cidade,
massivamente para o trabalho doméstico. As relações de trabalho alicerçavam,
portanto, a vida cotidiana das cativas e possibilitavam alianças e disputas, criavam
redes de solidariedade ou desentendimentos dentro do próprio grupo ou entre
grupos sociais diferentes (DIAS, 2013).
Nepomuceno (2013) entende que essas relações que se davam entre as
escravas africanas e afro-descendentes, e entre esses grupos de mulheres e outros
grupos, devem ser analisadas de maneira diferente de qualquer outro tipo de relação
social que ocorria no período escravagista e no pós-abolição, pois são nessas
relações envolvendo mulheres cativas e negras, que estão as raízes das
desigualdades que nos dias de hoje ainda persistem. Para a autora, apesar de toda
a trajetória de conquistas de direitos das mulheres desde os fins do século XIX e
princípios do XX, não se pode pensar em todas as mulheres de modo homogêneo,
pois essas conquistas não se aplicam a todas da mesma forma.
125
De acordo com Paula (2012),
Ainda nos dias atuais, as mulheres negras lutam para libertar-se do
cativeiro secular, pois,sofrem com o preconceito devido ao seu sexo
e sua etnia. Estão entre as piores taxas de remuneração no mercado
de trabalho, povoam as listas do desemprego e do subemprego no
Brasil e frequentemente são vítimas de violência física e psicológica.
Assim sendo, é possível afirmar que o fenômeno da (in) visibilidade
da mulher além de social e intelectual, também é espacial e étnico,
visto que a mulher negra e pobre torna-se ainda mais (in) visível
história e à sociedade que a branca (p. 155).
A história da escravidão africana, apesar de muitas vezes esquecida na
memória da população geral contemporânea, está presente na atualidade e é
pontual para o entendimento das diversidades entre as mulheres. Para Nepomuceno
(2013),
Às mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de
submissão vivido pelas mulheres brancas de elite até inícios do
século XX. Tampouco seu espaço de atuação foi unicamente o
privado, reservado às bem-nascidas, uma vez que, pobres e
discriminadas, se viram forçadas a lançar mão de uma gama de
estratégias para sobreviver e fazer frente aos desafios cotidianos (p.
383).
Entre essas estratégias, então, encontra-se o trabalho manual, o trabalho
doméstico, especializado ou não, o qual possibilitava essa maior inserção no meio
urbano com o desempenho de atividades que se restringiam às casas de família ou
que demandavam o trânsito nas ruas, como ocorria com as quitandeiras, lavadeiras
e padeiras, entre outras (DIAS, 1984. 2013; NEPOMUCENO, 2013).
Entretanto, apesar desses meios de sobrevivência e das redes de
solidariedade existentes entre as escravas, ex-escravas e outras mulheres pobres,
Nepomuceno (2013) aponta para um dos problemas ocorridos com as mulheres
negras a partir do fim da escravidão. Trata-se do desejo de as casas de família
terem a seu serviço trabalhadoras de pele clara, o que se devia, grandemente, “aos
ideais de “branqueamento” bancados pelo Estado brasileiro” (NEPOMUCENO, 2013.
p. 385).
Apesar de o número de mulheres brancas empobrecidas, em geral
imigrantes, ser muito baixo em relação ao número de negras, muitas casas de
família deixavam bem explícita sua intenção de contratar trabalhadoras domésticas
126
brancas (NEPOMUCENO, 2013). Essa problemática já foi abordada no capítulo
anterior, onde foram apresentados alguns anúncios de jornais pelotenses de fins do
século XIX em que havia a preferência, por parte de alguns contratantes, por
empregadas brancas, o que ocorria mesmo antes do fim da escravidão. Porém,
ainda segundo Nepomuceno (2013), apesar do aumento da discriminação por parte
das “patroas”, o trabalho doméstico permaneceu predominantemente nas mãos
negras em fins do século XIX e início do XX. E essa predominância ainda persiste
no Brasil do século XXI, segundo Pereira (2012; 2014). Esta autora dedica-se ao
estudo antropológico sobre o trabalho doméstico escravo no passado brasileiro e
suas heranças na atualidade, fazendo um paralelo entre passado e presente: “A cor
representava então aquilo que credenciava para a atividade e continua
predominando no perfil da categoria na atualidade, em quase todo o país (com a
exceção de cidades como Porto Alegre e São Paulo)” (Dados do DIEESE, In:
PEREIRA, 2014).
Segundo Reis (2012), entretanto, cabe lembrar que, apesar de haver essas
relações de poder no que diz respeito a gênero, classe e cor na história das
mulheres negras no Brasil, nem sempre as consequências dessas relações de poder
foram somente negativas para as mulheres. Muitas negras forras, libertas e livres
foram ou tornaram-se proprietárias de escravos, de bens imóveis e de animais,
através do seu trabalho, do casamento ou de herança e “administraram negócios,
tornando-se verdadeiras pontes de processos de mobilidade social” (REIS, 2012. p.
24).
Essa autora reafirma a questão da solidariedade entre as mulheres negras ou
“de cor” e aponta, através do estudo de testamentos na Bahia (1811-1830), que
As mulheres livres solteiras ou casadas demonstram muita
autonomia e interesse em beneficiar outras mulheres, sobretudo
escravizadas e libertas, o que não apenas representa solidariedade
de gênero, mas principalmente aponta para a reprodução bemsucedida de mobilidade ascendente entre mulheres. Ao mesmo
tempo que ascendiam na hierarquia social, também proporcionavam
a ascensão de outras mulheres em situações de dependência (REIS,
2012. p. 33).
Reis (2012, p. 33) indica que não foi possível apurar, através dos dados
levantados, se essas relações de mobilidade social eram reafirmadas e
127
aprofundadas somente entre mulheres “de cor”, mas enfatiza a importância dessas
relações para muitas mulheres escravas, libertas e livres “de cor”.
Uma vez que a sociedade escravista somente mantinha-se baseada no
trabalho forçado e sabendo-se da presença ativa das mulheres escravas nas
atividades domésticas, analisaremos a escravidão em Pelotas a partir desse âmbito,
sem esquecer as relações entre os diferentes grupos de mulheres, e também de
homens, que desempenhavam esses serviços. Além disso, não podemos deixar de
lembrar que o trabalho doméstico atual tem suas raízes principais na escravidão e
que muitos aspectos envolvendo classe, cor e gênero devem ser discutidos com um
olhar no passado.
3.2.2 - Os anúncios de jornais: escravidão, mulheres e trabalho doméstico
Os anúncios de escravos nos jornais do século XIX podem ser muito bem
explorados para as análises das relações que se davam durante os anos de
escravidão. Aspectos relativos à cor, sexo, idade e adjetivações podem ser
trabalhados a partir dos anúncios, propiciando uma maior compreensão das
dimensões socioculturais da sociedade escravista.
Observamos que as relações entre mulheres negras livres, libertas e escravas
foram essenciais para algumas cativas e ex-cativas mudarem elementos de sua vida
social em busca de melhorias nas condições de vida. E que muitas vezes, foi a
proximidade entre as pessoas, propiciada pelo trabalho doméstico, que impulsionou
essas mudanças. Assim, percebemos que o trabalho doméstico, apesar de visto
como um trabalho “inferior”, uma vez que não demanda especialização, e ligado ao
serviço “sujo” nas casas, o que pode ser percebido até os dias atuais (BRITES &
FONSECA, 2014), teve importante participação na manutenção da sociedade
escravista e na formação das sociedades atuais.
De acordo com Souza (2012), as escravas foram especialmente direcionadas
para o trabalho doméstico na sociedade imperial e esse trabalho justamente
destaca-se entre as diferentes funções exercidas pelas escravas ao longo do
período escravista, muito como consequência à “aversão ao trabalho manual – típica
das sociedades escravistas – e às exigências feitas pela própria economia colonial –
128
ainda muito dependente da força de trabalho humana [...]” (SOUZA, 2012. p. 244245).
Ainda segundo Souza (2012), as atividades das cativas nos domicílios não se
limitavam aos serviços de “limpeza e cuidado das residências”, mas englobavam a
“própria produção econômica” nas casas de família, pois cabia às escravas afazeres
relacionados à produção de “alimentação, vestuário, fabricação de equipamentos e
utensílios para o trabalho” (p. 245).
Essa mesma autora vai mais além quando se trata do trabalho doméstico,
pois
[...] a prestação desse serviço sempre constituiu o principal setor de
inserção das mulheres no universo do trabalho no decorrer da
formação da sociedade brasileira. Assim como aconteceu em muitas
civilizações e culturas passadas, o trabalho exigido para a
organização e a manutenção dos domicílios tendeu aqui a ser
predominantemente realizado pelo sexo feminino (SOUZA, 2012. p.
244).
Assim, as atividades atinentes ao ambiente domiciliar na sociedade escravista
eram realizadas por uma maioria de mulheres escravas, mas também, por libertas e
brancas livres pobres, que circulavam pelos espaços sociais improvisando, amiúde,
os papéis informais, por vezes através do trabalho clandestino, por meio de sua mão
de obra mais ou menos especializada (DIAS, 1984; SIMÃO, 2002; SOUZA, 2012).
Além do conhecimento das atividades, para serem consideradas aptas ao
trabalho doméstico, muitas vezes estimulado e desenvolvido desde a infância até
serem consideradas idosas (SOUZA, 2012), essas mulheres precisavam estar
incluídas em alguns requisitos de conduta e comportamento que serviam tanto para
as escravas, quanto para as livres (SOUZA, 2012; COSTA, 2013). Esses requisitos
morais eram exigidos como consequência da proximidade das trabalhadoras e da
família de seus proprietários ou seus contratantes, caracterizada por “vínculos de
pertencimento, de cumplicidade, de afetividade ou de amizade gerados pela
convivência cotidiana” (SOUZA, 2012. p. 256). Assim,
Nesse cenário, os atributos exigidos das serviçais não diziam
respeito apenas à qualidade do trabalho que seria executado, mas
também às características ligadas ao caráter ou ao comportamento.
Ou seja, atributos que eram muito mais necessários ao
estabelecimento de um tipo de relação pessoal do que ao
129
desempenho de uma função, além de serem “qualidades” que eram
esperadas das mulheres de modo geral, tendo em vista os ideais e
as concepções do feminino gestadas no século XIX (SOUZA, 2012.
p. 256).
As “qualidades” destacadas principalmente nos anúncios de jornais do século
XIX são boa conduta, bons costumes, bom comportamento, conduta afiançada,
ausência de vícios, entre outras (FREYRE, 2010; ROSA, 2012; SOUZA, 2012). As
características morais poderiam culminar em leis para definir de que maneira essas
trabalhadoras deveriam conviver e atuar na sociedade, como forma de manutenção
da “ordem”. Essas leis foram implantadas especialmente com a chegada do fim da
escravidão e o temor que a sociedade alimentava em relação às camadas mais
pobres (COSTA, 2013). Essas qualificações são, portanto, importantes para
pensarmos as relações que ocorriam entre diferentes classes e, também,
especialmente sobre as relações de afeto entre trabalhadoras domésticas e as
pessoas da casa da família para quem trabalhavam.
As imagens dos anúncios abaixo mostram como essas qualificações estavam
presentes:
Figura 11 – Anúncio de ama de leite de “boa conduta”. Fonte: Jornal Diario de
Pelotas, n. 165, quarta-feira, 26 de julho de 1876. p. 3. (Foto da autora, 2014)
130
Figura 12 – Anúncio de ama seca “sem vícios”. Fonte: Jornal do Commercio, n. 180,
terça-feira, 7 de agosto de 1877. p. 2. (Foto da autora, 2014)
As qualificações descritas não são específicas para as mulheres. Os
trabalhadores homens que estão no ambiente interno das casas também aparecem
nos anúncios com adjetivações de condutas e comportamentos. Quanto mais
próximos os trabalhadores estão das casas de família, mais as características
morais aparecem. A domesticidade parece carregar a necessidade de apelo moral,
uma vez que não se entrega sua família e casa a uma pessoa desqualificada.
3.2.2.1 – A ocupação do trabalho doméstico por homens e mulheres nos
anúncios dos jornais
Alguns afazeres domésticos já foram apresentados no capítulo anterior, no
tópico 2.5.5, onde citamos autores que fizeram o levantamento das atividades gerais
desenvolvidas pelos escravos urbanos homens e mulheres, em Pelotas. Porém, no
arrolamento não constava quais eram especificamente os trabalhos domésticos, os
quais aparecem em todo o Brasil colonial e englobam principalmente: o serviço de
ama de leite, ama-seca, arrumadeira, bordadeira, camareira, carregadora de água,
copeiro/a, costureira, cozinheira (o), criada (o) de servir, criada que fazia compras ou
vendia produtos, criada de quarto, dama de companhia, engomadora/engomadeira,
governanta, jardineiro, lavadeira, mucama e cuidadora (e) de crianças, padeira,
pajem, passadeira (em geral a mesma engomadeira), quitandeira/escrava de
131
tabuleiro (DIAS, 1984; GRAHAM, 1992; COSTA, 1998; SIMÃO, 2002; MAESTRI,
2006; GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012; SOUZA, 2012; VARGAS, 2012; COSTA,
2013).
Conforme já discutido amiúde, os espaços domésticos internos e externos
confundiam-se em algumas especializações, pois os trabalhadores necessitavam da
circulação nas ruas para o desempenho de suas atividades (SOUZA, 2012; COSTA,
2013), como as lavadeiras, as quais necessitavam de córregos d’água para seu
trabalho, ou as/os quitandeiras/os.
As amas de leite e mucamas estavam no rol das trabalhadoras que exerciam
suas ocupações nas casas de seus contratantes ou proprietários, ficando sob a
vigilância contínua. As lavadeiras não circulavam com frequência nas casas de
família, permanecendo no ambiente mais externo (COSTA, 2013). Já as cozinheiras,
copeiras e arrumadeiras encontravam-se nos dois pólos: casa e rua (GRAHAM,
1992, p. 18). Muitas vezes, os trabalhadores escravos eram mantidos pelos
negociantes, que tratavam de dar abrigo e alimentação durante os períodos de
intermediações de negócios.
O trânsito dessas cativas e cativos em Pelotas pode, ainda, ser acompanhado
pelos endereços dos comerciantes nos anúncios de jornais e pelo mapa que
apresenta a principal área de comércio de escravos na cidade. (Figura 13; Anexos 1,
e 2). O mapa foi elaborado a partir dos endereços dos anunciantes contidos nos
jornais e mostra as ruas que correspondem ao espaço onde localizavam-se os
principais pontos de venda de escravos na cidade; os nomes das ruas são atuais,
porém correspondem aos endereços antigos que podem ser observados no anexo 2.
132
Figura 13 - Mapa de localização dos endereços dos comerciantes (numeração das ruas
correspondente ao anexo 2)
133
Figura 14 - Lavadeiras às margens do Arroio Santa Bárbara/Pelotas - Início do
século XX. Fonte: MAGALHÃES, Nelson N., 1990.
Além da circulação dos escravos domésticos dentro das cidades e, muitas
vezes, entre meio urbano e rural (a exemplo da cidade de Pelotas), tanto por
requisição da própria atividade, quanto pelas negociações de compra, venda e
aluguel dos cativos, havia o comércio desses indivíduos entre as diferentes
províncias do Brasil. No seu estudo sobre o tráfico interprovincial, Vargas (2012)
analisou procurações de venda de escravos e identificou que entre os anos de 1850
e 1884, de 382 indivíduos negociados através dessas procurações em Pelotas, 252
(66%) pertenciam a proprietários pelotenses, os quais enviavam grande quantidade
de cativos principalmente para o sudeste; apesar de 81 indivíduos não apresentarem
ofício ou não terem informações a respeito do seu trabalho e, a maior parte ser
representada por campeiros (37 indivíduos), o autor destacou que muitos estavam
relacionados ao serviço doméstico. Dentre estes, os trabalhadores do sexo
masculino mais numerosos foram os cozinheiros (11), os copeiros (10) e os serviçais
domésticos/criados (5). Entre as mulheres, destacaram-se as cozinheiras (20), as
criadas (16), as costureiras (8), as lavadeiras (8), as mucamas (3) e as
engomadeiras (2). Para o autor, esses números apontam para a “pouca participação
das charqueadas no tráfico interprovincial” (pp. 291-293). O autor destaca que esse
fato aponta para uma circulação mais local dos escravos de Pelotas.
134
Como pode ser observado, há uma complexidade de serviços domésticos,
que podem ser realizados por homens e/ou mulheres. Corroborando as informações
desses estudiosos, os anúncios coletados para a presente pesquisa mostram quais
eram as atribuições domésticas dos homens e das mulheres e de ambos os sexos,
conforme a tabela a seguir:
MULHERES
HOMENS
MULHERES E HOMENS
Ama de leite
Ajudante de cozinha Ama seca / cuidado com crianças
Bordadeira
Copeiro
Criada (o)
Costureira
Cozinheira (o)
Cuidado com idosos
Mucama (o)
Engomadeira
Quitandeira (o)
Lavadeira
Tabela 3 – Trabalho doméstico das mulheres e dos homens conforme os anúncios nos jornais
A quantidade de homens e mulheres que estavam nos anúncios em que as
condições dos trabalhadores era: “escravo/a”, “escravo/a ou livre” e “sem
informação” pode ser observada abaixo (figura 15). Para essas categorias foram
considerados os dados “sem informação” de condição social junto com os anúncios
de “escravas/os” e de “escravas/os ou livres”, justamente porque não se sabe
exatamente quem são esses indivíduos, somente sabe-se que são trabalhadoras/es.
Foram encontradas 764 mulheres, 394 homens e 84 sem informação de sexo:
Sem
informação
7%
Homens
32%
Mulheres
61%
Figura 15 – Percentual de homens e mulheres anunciadas dentro das condições de
escravos/as, escravos/as ou livres e sem informação.
135
Levando-se em conta que temos algumas falhas temporais nos jornais
coletados, pois muitas edições estavam em falta e outras tantas estavam
indisponíveis para consulta pelo avançado estado de deterioração, o número de
trabalhadores escravizados anunciados entre 1875 e 1888 é relativamente alto para
o total da população, visto que nos períodos que abrangem os anos de 1873 a 1884,
Pelotas tinha de 8.142 (5.125 homens e 3.017 mulheres) a 6.526 cativos (LONER et
al, 2012; VARGAS, 2012; MONQUELAT, 2014).
Outro dado importante refere-se ao número de anúncios de mulheres
escravas e homens. Ora, há uma disparidade entre o número de cativos e cativas
durante todo o período escravista. Os homens eram numericamente mais
expressivos que as mulheres: uma média de 20% de mulheres no total de escravos.
No entanto, os anúncios apontam para 61% de mulheres anunciadas e 32% de
homens. Essa proporção indica que as mulheres circulavam muito mais entre as
casas de famílias pelotenses que os homens; elas tinham seu trabalho doméstico
muito mais ofertado e requisitado, enquanto os homens estavam mais instalados
com seus proprietários. As mulheres escravas eram as mantenedoras, muitas vezes,
de famílias proprietárias mais empobrecidas e tinham sua mão de obra alugada ou
vendida como “ganho” (SIMÃO, 2002), portanto a quantidade de anúncios de
mulheres maior que os de homens, vem ao encontro dessas informações.
Os homens anunciados dentro das categorias “escravo”, “escravo ou livre” e
“sem informação”, apareciam em profissões gerais (não só de trabalho doméstico),
os quais somaram 394 indivíduos. Por outro lado, as mulheres somente apareceram
vinculadas aos afazeres domésticos, corroborando as informações de pesquisas que
se ocuparam do tema da escravidão em Pelotas (DALLA VECHIA, 1994; SIMÃO,
2002; MAESTRI, 2006; PESSI, 2008, 2009; GUTIERREZ, 2011; ROSA, 2012).
Do total de homens, 52% eram escravos, 5% eram escravos ou livres e 43%
não apareciam com a informação de condição. Para esses homens, as seguintes
atribuições laborais estavam presentes nos anúncios:
136
120
100
80
60
40
0
Ajudante de cozinha
Ama seca / Cuidado com…
Boleeiro
Batedor de jornal
Campeiro
Carpinteiro
Copeiro
Cozinheiro
Cocheiro
Cozinheiro e copeiro
Carregador de caixa de mascate
Criado
De todo serviço
Marceneiro
Marinheiro
Moleque para recados
Mucamo
Padeiro
Pedreiro
Peão de carroça
Quitandeiro
Roceiro
Serv. de olaria
Serv. de chácara
Serv. de oficina
Serv. de barraca
Serv. de tipografia
Serv. de charqueada
Servente
Tocador de manivela de …
Sem informação
20
Figura 16 – Profissões gerais dos homens nos anúncios de jornais.
As atividades domésticas não eram exclusivas dos escravos; as mulheres
pobres de diferentes categorias poderiam fazer os mesmo trabalhos das escravas
domésticas. No entanto, não podemos dizer o mesmo sobre a participação dos
homens brancos. Os autores em geral não se referem a esses indivíduos como
trabalhadores domésticos, o que pode ser observado nos anúncios: ou os homens
eram escravos, ou a sua condição social não aparecia descrita; nenhum homem
branco apareceu como trabalhador doméstico.
Em todos os anúncios analisados, as mulheres envolvidas nessas atividades
eram escravas, negras libertas, negras livres e, ainda, brancas livres. Estamos
considerando, aqui, como negras todas as trabalhadoras que não são brancas,
como um atributo físico “de cor”, que envolve condição social, a exemplo de Souza
(2012).
Para os proprietários de escravos, não encontramos nenhuma informação
sobre o aspecto “cor” nos jornais. Entretanto, do total de 354 escravos que
aparecem nos contratos de compra e venda (disponíveis no APERS), no ano de
1832 temos o casal de “pretos forros” Bartolomeu Corrêa e sua mulher, Luiza
Carneiro comprando dois escravos: uma mulher e um homem. Não está indicada a
especialização dos escravos. Em 1849, a “preta forra” Joana Meneses compra a
137
escrava Maria Agostina (Mina). Para o ano de 1871, temos os “pretos forros” José
da Silva Santos e sua mulher, Joana Antônia Meneses dos Santos comprando a
escrava Jacinta, africana, de 41 anos e com a especialização de “serviços
domésticos”.
De um total de 794 mulheres, nos anúncios de jornais, para as categorias
“escrava”, “escrava ou livre” e “sem informação da condição”, foram encontrados os
números de 395, 57 e 312, respectivamente.
Sem
informação
41%
Escrava
52%
Escrava ou livre
7%
Figura 17 – Condição das mulheres para o trabalho doméstico relacionado à
escravidão nos anúncios de jornais pelotenses.
Os seguintes anúncios ilustram essas condições de trabalho:
Sobre escrava:
Vende-se uma escrava preta, moça, sadia, faz com perfeição todo o
serviço de uma casa de família; para ver e tratar procure-se a
Juvencio Mascarenhas, rua Riachuelo, 44. (Jornal do Commercio, n.
20, terça-feira, 26 de janeiro de 1875. p. 3).
Criada - na rua 7 de Abril n. 45 há para alugar uma escrava própria
para o serviço de uma casa de família. (A Nação, n. 25, segundafeira, 17 de dezembro de 1883. p. 3).
Sobre livre ou escrava:
Precisa-se de uma cosinheira livre ou captiva na loja da Menina
Pelotense. (Jornal do Commercio, n. 75, domingo, 4 de abril de 1875.
p. 3).
138
Precisa-se alugar uma criada livre ou escrava que saiba cozinhar.
Para informações nesta typographia. (Jornal do Commercio, n. 46,
quinta-feira, 27 de fevereiro de 1879. p. 3).
Sem informação de condição social:
Precisa-se de uma criada para cosinhar e mais serviço de casa de
pouca família. Rua General Osorio n. 69. Loja de Louça. . (RioGrandense, n. 669, terça-feira, 5 de julho de 1887. p. 3).
Precisa-se alugar uma criada branca ou de côr, que saiba
cosinhar, lavar e engommar, para uma casa de pouca família, na rua
S. Miguel n. 120.
Apesar de Costa (1998) levantar a questão sobre a sinonímia entre “criada de
servir” e “alugada”, quando nos anúncios não havia a informação explícita da
condição consideramos como “sem informação”. Mesmo porque, como pode ser
observado no último anúncio acima, a expressão “alugar” parece estar se referindo
ao ato de “contratar” uma trabalhadora (ainda que não seja um contrato
formalizado), independente da condição, uma vez que o termo “branca” não se
refere a uma mulher escrava. Nesses casos, utilizamos a categoria “sem
informação” sobre a condição da trabalhadora, pois sabemos que ela pode ser livre
e branca, mas não sabemos se a expressão “de cor” está associada a uma mulher
livre, liberta ou escrava. Da mesma maneira, alguns anúncios apresentam mulheres
brancas sendo alugadas:
Ama de leite - na rua s. José n. 2 há para alugar uma ama de leite
branca. (Jornal do Commercio, n. 72, domingo, 29 de março de
1877. p. 3).
As mulheres cujos anúncios especificavam a condição de livres ou libertas
não foram contabilizadas no gráfico anterior (figura 17), para facilitar a observação
dos dados. Porém elas totalizaram um número de 46 mulheres, sendo 45 livres e 1
liberta.
Apenas para uma maior visualização dos percentuais totais das condições de
trabalho das mulheres apresentadas na figura 12 e somando-se as trabalhadoras
livres, elaboramos um gráfico único:
139
38%
49%
Escravas
Escravas ou livres
6%
Livres
7%
Sem informação
FIGURA 18 – Gráfico com os percentuais totais de escravas, escravas ou livres,
livres e sem informação.
Ao contrário dos anúncios de escravas, onde geralmente não há a origem das
trabalhadoras e que pode haver confusão entre origem e cor de pele (como, por
exemplo, “crioula” ou “preta”), entre os anúncios de “livres”, do total de 46 mulheres,
apareceram 20 brancas anunciadas, 1 branca ou “de cor”, 1 crioula (portanto “de
cor”) e 24 sem informação de “cor” ou etnia. Das brancas, 3 eram alemãs, 2 eram
francesas e 1 era italiana.
Para Silva (2011), quando falamos em trabalhadoras livres, devemos
entender que
Dificilmente as mulheres domésticas, fossem libertas ou livres
pobres, podiam ser consideradas trabalhadoras plenamente livres no
Brasil do final do século XIX. Contudo, elas podiam, ainda que
premidas pela necessidade, procurar, livremente, sobretudo a partir
de1850, as folhas dos periódicos mais lidos, e então, pagando
alguma taxa, postar um anúncio dizendo-se apta a servir a este ou
aquele tipo de família, ou a realizar serviços autônomos para
diversos clientes como lavar roupa e engomar em seus estreitos
cômodos (p. 42-43).
Apesar dos anúncios, segundo o mesmo autor, é provável que poucas criadas
no Brasil conseguissem vender sua mão de obra. O mais comum seria trocar seu
trabalho por um tipo de relação “que ultrapassava o sentido de troca mercantil”
(SILVA, 2011. p. 43). A maioria dessas mulheres estaria vinculada a algumas
instituições de caridade, ou à prática do serviço gratuito em troca de alimentação e
medicamentos. Ser totalmente livre, para mulheres trabalhadoras domésticas,
140
portanto, poderia não ser uma condição tão fácil para as mulheres pobres, apesar da
existência das redes de solidariedade entre negras livres e libertas (REIS, 2012;
DIAS, 2013).
A distribuição das atividades domésticas pela condição das trabalhadoras
pode ser acompanhada nos dois gráficos a seguir. O primeiro indica os anúncios de
mulheres trabalhadoras domésticas, exceto as anunciadas especificamente como
livres; o segundo, somente as mulheres livres.
141
4
4
4
Sem
informação
7
10
2
4
1
2
2
5
82
8
35
1
24
122
2
Escravo ou
livre
2
2
1
1
21
3
3
14
9
34
4
1
Escravo
1
8
106
23
5
7
21
1
138
9
8
16
11
46
0
20
40
60
Variadas
Quitandeira (o)
Mucama (o)
Lavadeira, engomadeira e costureira
Lavadeira
De todo serviço menos cozinha
Cuidar de idosos
Criada excluindo cozinhar e lavar
Criada (o) / Serviço doméstico
Cozinheira e engomadeira
Costureira
Ama de leite
80
100
120
140
160
Sem informação
Não consta
Lavadeira, engomadeira e cozinheira
Lavadeira e engomadeira
Engomadeira
De todo serviço
Criada para serviço externo
Criada e quitandeira
Cozinheira e lavadeira
Cozinheira (o)
Ama seca / cuidado de crianças
Figura 19 – Mulheres trabalhadoras domésticas por categoria de condição
social escrava, escrava ou livre e sem informação e suas especializações.
Assim como nos indica a arqueóloga Beaudry (1988) quando utiliza as
categorias êmicas usadas pelos escrivãos dos inventários por ela trabalhados (para
142
o entendimento do tipo de louças a que se referiam), utilizamos as categorias de
especializações que constavam nos próprios anúncios. Essas categorias, muitas
vezes, referem-se ao mesmo tipo de serviço, porém cada jornal ou anunciante utiliza
termos diferentes para referirem-se aos mesmos trabalhos. Por exemplo, “criada (o)”
pode se referir, ao mesmo tempo à responsável pela limpeza e manutenção da casa
e assim pode equivaler a “de todo serviço”, ou “serviço doméstico”. Ou, ainda, pode
se referir à/ao criada (o) que cuida das crianças. O mesmo ocorre com a
“engomadeira”,
muitas
vezes
referida
como
“passadeira”,
mas
que
não
necessariamente equivale à lavadeira.
A terminologia que se encontra para o trabalho doméstico nos jornais não foi
usada em todos os casos para a elaboração da tabela. Em relação às mulheres
associadas ao termo “variadas”, consideramos aquelas que englobam quatro ou
mais tipos de especialização doméstica, como por exemplo “criada, cozinheira,
lavadeira e engomadeira”. Poderíamos ter incluído às “criadas”, porém preferimos
utilizar o termo “criada (o)” apenas quando essa palavra estava explícita no anúncio,
mesmo porque, são poucos anúncios em que aparece uma descrição de uma
escrava com mais de três especializações. Provavelmente o uso dessa descrição
mais elaborada ocorria para enfatizar qualidades laborais dessa trabalhadora e o
quanto ela tinha capacidade de desempenhar várias funções. Isso ocorre ainda nos
dias atuais: à “empregada doméstica” são atribuídos serviços variados, desde a
limpeza geral da casa, à culinária, faxinas mais pesadas e, mesmo quando não
haveria o “dever” de desempenhar esse papel, cuidar de animais domésticos (e
passear com ele) da família que a contrata6.
Portanto, muitas trabalhadoras eram anunciadas com mais de uma
especialização, o que era comum de ocorrer. Segundo Costa (2013. p. 67), as
definições das especializações não eram rigorosas, podendo uma mesma
trabalhadora exercer funções externas e internas. Por isso a escolha de manter as
terminologias utilizadas nos anúncios para a elaboração dos gráficos.
Para a ama de leite, entretanto, os anúncios que encontramos eram sempre
exclusivos da atividade, não aparecendo outros serviços domésticos. As
especializações que mais apareceram foram criada/serviço doméstico (31,54%),
6
Informações orais de trabalhadoras domésticas fornecidas durante a primeira oficina MUARAN / GEEUR /
Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas – em 21/09/2014.
143
ama de leite (23,17%) e, em número bem menor, ama seca/cuidado com crianças
(4,97%).
A distribuição das ocupações laborais nos anúncios específicos das mulheres
livres é percebida no seguinte gráfico:
25
20
15
10
5
0
Figura 20 – Distribuição das atividades domésticas dos anúncios de mulheres especificamente
livres
As amas de leite são as que mais aparecem nos anúncios das trabalhadoras
livres.
Os anúncios seguintes ilustram as mulheres livres:
Precisa-se de uma criada livre para o serviço de uma casa de
família. Na rua 21 de Outubro n. 37 achará com quem tratar. (Jornal
do Commercio, n. 173, quinta-feira, 3 de agosto de 1876. p. 3).
Precisa-se de uma criada branca, para cozinhar e que dê fiança de
sua conducta; trata-se com João Resende. (A Discussão, n. 31,
quarta-feira, 8 de fevereiro de 1882. p. 3).
Algumas atividades não aparecem no quadro das mulheres escravas, como
governanta e parteira. No caso da parteira, as referências bibliográficas não fizeram
menção a esta especialização, e não temos mais dados sobre essas trabalhadoras,
ainda que esperássemos encontrá-las nos anúncios. No entanto, o trabalho de
governanta aparece na historiografia como especialização doméstica (SOUZA,
2012).
144
Em que pese a quantidade de anúncios de trabalhadoras especificamente
livres ser muito menor que o da condição de escravas, podemos ver as interações
das diferentes mulheres nas mesmas atividades domésticas. Assim, as mulheres
brancas imigrantes empobrecidas aparecem concorrendo com as escravas; essa
concorrência poderia acarretar um problema socioeconômico, especialmente para
as escravas de ganho, (MAESTRI, 2006; CUNHA, 2012).
Percebe-se, pelas condições sociais e de trabalho determinadas nos anúncios
que, em sua grande maioria, as trabalhadoras são escravas (figura 18), ou seja,
africanas e afro-descendentes. Essas mulheres são descritas como negras, crioulas,
pardas, pretas e, em nenhum momento, sua origem real aparece nos anúncios.
Mesmo dentro da categoria “livres”, ou em que não consta a informação da condição
social, é muito provável que a maioria seja negra, ou as variações afrodescendentes descritas acima, uma vez que foi possível perceber uma quantidade
bem menor de anúncios em que a condição era especificamente “branca”. Portanto,
o trabalho doméstico no passado, assim como seus reflexos na atualidade, mantém
uma cor (negra) e uma categoria específica de gênero (mulher). Os documentos nos
mostram, portanto, a circulação de um conceito de mulher trabalhadora: a negra.
Outro levantamento importante foi relativo às idades das/os trabalhadoras/es
domésticas/os, especialmente das/os escravas/os.
3.2.2.2 - A idade das (os) escravas (os) nos anúncios e suas especializações
domésticas
Para o presente estudo, utilizamos as categorias já mencionadas no capítulo
II para a análise das idades por atividade: ingênua, aprendiz, adulta, idosa (Anexo
3).
É importante salientar que todos os homens que apareceram nas
especializações de mucamo ou “ama seca” (cuidado com crianças), criado e copeiro
estavam dentro da idade de “aprendiz”, alguns já na idade considerada “adulta” para
escravos, com a menor idade encontrada de 8 anos de idade e a maior de 16 anos,
conforme a categoria já foi discutida no capitulo II. Lembramos que “criança” escrava
poderia ir de 4 a 6 anos, dependendo do local em que se encontrava, bem como o
tipo de atividade desempenhado; “aprendiz” é o indivíduo que já tem capacidade
145
para aprender uma profissão e, em geral, vai até os 12 ou 15 anos de idade e
“adultos” são aqueles que já têm a plena ou quase plena competência física para
maior desenvolvimento de atividades (GÓES e FLORENTINO, 2000; SCARANO,
2000; PESSI, 2009; PRIORE, s/d).
Essa idade dos escravos homens que estão nos serviços domésticos internos
das casas é um dado importante para visualizarmos a questão do trabalho braçal.
Ainda que alguns aprendizes de copeiro e de cozinheiro, por exemplo, tornem-se
adultos cozinheiros - alguns anúncios indicam essa especificidade: “copeiro, com
princípios de cozinheiro” -, os mucamos e criados de servir não ultrapassam a idade
de aprendiz. Podemos pensar que, chegada a idade adulta, são direcionados a
outras atividades, externas ou internas, talvez mais braçais, ainda mais se levarmos
em conta que a principal produção de Pelotas durante o período escravista eram as
charqueadas, seguidas das olarias e construções. Os exemplos a seguir ilustram
essas preferências pelas idades:
CRIOULO – Nesta typographia se dirá quem preciza alugar um
crioulo de 8 a 12 annos próprio para cuidar de crianças. (Jornal
Diario de Pelotas, n. 270, sexta-feira, 1º de dezembro de 1876. p. 3).
Mucamo - na loja da Estrella, precisa-se de um mucamo de 12 a 15
annos, para todo o serviço e de conducta afiançada. (Jornal do
Commercio, n. 93, sábado, 26 de abril de 1879. p. 3).
Copeiro - precisa-se alugar um moleque de 13 a 15 annos de idade,
para o serviço de copeiro em uma casa de família. Trata-se na rua
S. Miguel n. 185. (Jornal do Commercio, n. 14, quarta-feira, 18 de
janeiro de 1882. p. 2).
Em relação às mulheres no trabalho doméstico, os anúncios apresentam
idades variadas para as atividades (Anexo 3), sendo que a maioria massiva é adulta
ou sem informação, a exemplo do que foi possível acompanhar nos contratos de
compra e venda de escravos de Pelotas (SCHERER & ROCHA, 2010). Cabe
salientar que as ingênuas entraram na contagem das especializações “sem
informação”, uma vez que, adultas (se chegassem á idade adulta), provavelmente
desempenhariam algum trabalho.
A idade adulta, para as mulheres escravas, gira em torno dos 12 anos
(SCARANO, 2000). Apesar de a idade nem sempre ser determinante das atividades
146
das mulheres trabalhadoras domésticas, muitas amas secas, algumas criadas e
mucamas estão na faixa entre os 8 e os 12 anos de idade (Anexo 3), como consta
neste exemplo:
ALUGA-SE uma parda para o serviço interno de uma casa de família
e uma outra de 12 annos para cuidar de crianças. Rua 7 de
Setembro, esquina da do Imperador n. 74. (Jornal Diario de Pelotas,
n. 265, terça-feira, 20 de novembro de 1877. p. 3).
Nota-se que a idade da “parda para o serviço interno” da casa não aparece,
levando-nos a pensar que se encontra em uma categoria capaz de desempenhar as
atividades relativas aos cuidados gerais do domicílio, adulta, provavelmente. Já a
outra parda “de 12 anos” é específica para o cuidado das crianças. Portanto, parecenos que os serviços de atenção às crianças, exceto o da ama de leite, não é
considerado legítimo apenas da idade adulta, ou, em outras palavras, não é
necessário ter o pleno conhecimento das atividades, pois há a especificação da
idade de “aprendiz” para o desenvolvimento das funções, de acordo com o que os
autores que discutem as idades dos escravos a partir da capacidade para o trabalho.
3.2.2.3 – As qualificações das mulheres escravas
As qualificações morais e de conduta, como já comentado, são critérios que
aparecem em grande parte dos anúncios e, ainda que a maioria não traga essa
informação, elas trazem aspectos que podem ser explorados no que diz respeito às
relações de trabalho e de afeto.
Não nos ativemos às informações referentes aos homens por não serem uma
constante, porém os termos como “bom”, “excelente”, “bonita figura”, “bons
costumes” podem aparecer nos anúncios desses trabalhadores. Em contrapartida,
quando os anúncios são de mulheres, as qualificações aparecem em número
significativo (Anexo 4).
As qualificações que mais aparecem para as mulheres em geral são: “boa”,
“boa
conduta”,
“bom comportamento”,
“conduta
afiançada”
ou
“garantida”,
“excelente”, “sem vícios”. Todas essas adjetivações aparecem em anúncios de
trabalhadores escravos e livres em todo o Brasil oitocentista (FREYRE, 2010; ROSA,
147
2012; SOUZA, 2012). A “conduta afiançada” ou “conduta garantida” eram
importantes para que o/a escravo/a fosse mais facilmente colocado na casa de
família, pois era entendido que ele/a iria desempenhar suas atividades com esmero
e, ainda, não cometeria atos contra as pessoas e contra o patrimônio da família
(SOUZA, 2012). Esse adjetivo pode ser entendido, nos dias atuais, como a “carta de
recomendação” para o trabalho7.
Para as amas de leite, a qualificação mais presente é “carinhosa”. Dentre as
177 amas de leite, 14,12% (a maioria que vinha acompanhada de adjetivo) eram
anunciadas com essa adjetivação, um índice relativamente alto, uma vez que quase
50% dos anúncios dessas mulheres não apresentavam nenhuma informação sobre
esse aspecto e os outros índices não passavam de 13% do total (tanto “conduta
afiançada”, como “boa” atingiram esse percentual) (Anexo 4). Sadia é outra
qualificação que aparece, demonstrando a preocupação com higiene/saúde.
Apesar de parecer óbvio que uma ama de leite deve ser saudável, devido à
grande quantidade de doenças existentes no século XIX, principalmente tuberculose
(GILL, 2007), havia a necessidade de uma certa garantia quanto à saúde das
trabalhadoras que estariam em contato direto com as pessoas da família e,
especialmente, com as crianças.
Não é objetivo deste estudo discorrer diretamente acerca dos aspectos de
saúde, porém no Regulamento para serviço de criados da Câmara Municipal de
Pelotas, de 1887, podemos encontrar o seguinte tópico referindo-se às amas de leite
livres :
Artigo 7º - Nenhuma ama de leite poderá contratar-se sem passar
por um exame médico da Câmara Municipal para cujo fim a Câmara
designará um dia da semana. O atestado médico será anotado no
respectivo registro e lançado na caderneta; o que se repetirá de três
em três meses se ainda não estiver contratada. Penas de 10$000
réis a 20$000 nas reincidências (INSTRUMENTOS DE TRABALHO,
2003).
E relação à saúde das crianças, em sua narrativa, a ex-trabalhadora
doméstica e ex-ama de leite, Beta (já apresentada no capitulo introdutório) fala que
um dos motivadores para ter amamentado tantas crianças (26, além de seus 5
7
Informações orais de trabalhadoras domésticas fornecidas durante a primeira oficina MUARAN / GEEUR /
Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de Pelotas – em 21/09/2014.
148
filhos) é que muitas mulheres, “principalmente brancas”, não queriam amamentar as
crianças de outras mães, com receio de passar alguma doença para seu próprio
filho.
Um deles (um de seus filhos de leite), ninguém queria amamentá
porque ele tinha pneumonia e as outra não queriam dar leite pra não
contaminá os filho delas (BETA, 2013).
Figura 21 – Anúncio de ama de leite “carinhosa” e “sadia”. Fonte: Jornal do
Commercio, n. 41, quinta-feira, 20 de fevereiro de 1879. p. 3. (Foto da autora, 2014)
As particularidades sobre a qualificação “carinhosa” remetem à questão de
afeto. Partimos da ideia de que uma criança não será entregue a uma pessoa que
não seja de confiança, ou que possa vir a não ter os devidos cuidados.
Poucos são os anúncios que aparecem a ama de leite “com filho”/“com cria”
ou “sem filho”/”sem cria”. A maioria dos anúncios não vem com essa especificação.
Porém, o maior percentual de anúncios que trazem essa informação são aqueles em
que a mulher aparece “sem filho” ou “sem cria”. Podemos pensar, a partir desse
aspecto, que muitas mulheres escravas e livres perdiam seus filhos ainda de colo - a
taxa de mortalidade infantil era alta no século XIX (GILL, 2007; LONER, et al, 2012) , propiciando a venda de sua mão de obra para aleitar os filhos de outras mulheres.
E, ainda, muitos proprietários preferiam alugar, comprar ou vender suas escravas
sem os filhos. O mesmo poderia ocorrer com as amas de leite livres. Os exemplos
abaixo mostram esse aspecto:
Ama de leite quem precisar alugar uma, com ou sem cria, sadia e
de boa conducta, dirija-se a Manoel Roxo, á rua 24 de Outubro,
149
esquina da de S. Miguel. (Jornal do Commercio, n. 232, terça-feira,
12 de outubro de 1875. p. 3).
Aluga-se uma ama de leite, sem cria e sadia. Para informações
n'esta typographia. (Jornal Diario de Pelotas, n. 2, terça-feira, 4 de
janeiro de 1876. p. 3).
Ama de leite - aluga-se uma com cria, trata-se com João de PInho
Oliveira á rua de São Miguel, 184. (Jornal do Commercio, n. 142,
terça-feira, 27 de junho de 1876. p. 3).
Figura 22 – Anúncio de ama de leite com exigência: “sem cria”. Fonte: Jornal Diario
de Pelotas, n. 176, terça-feira, 8 de agosto de 1976. p. 3. (Foto da autora, 2014)
Levando-se em conta essa gama de adjetivações para o trabalho e
percebendo a grande quantidade de anúncios com o termo “carinhosa”, entendemos
que é possível o uso dos anúncios de jornais para a compreensão dos limites entre
trabalho doméstico e relações afetivas e de cuidados com as pessoas da casa
durante o período da escravidão e é possível, também, trazer essas percepções
para as relações na atualidade.
150
CAPÍTULO IV – TRABALHO DOMÉSTICO E AFETOS: ENTRE O PASSADO
ESCRAVISTA E O PRESENTE
4.1 – Trabalho doméstico e afeto: sobre as criadas e as amas de leite nos
anúncios da escravidão e seus reflexos na atualidade
4.1.1 – O trabalho doméstico no Brasil e as leis trabalhistas
A gente precisa perceber que esse trabalho é muito importante, se
não tiver uma doméstica fazendo o serviço, a patroa não vai poder
sair pra rua pra trabalhar, ela teria que fazer esse serviço. É um
trabalho importante, é uma categoria que é igual a todas as outras.
Precisa ter todos os direitos como os demais trabalhadores.
(ERNESTINA, Presidente do Sindicato das/os Trabalhadoras/es
Domésticas/os de Pelotas, 2014).
O trabalho doméstico no Brasil é uma atividade tipicamente feminina e
carrega, ao longo do tempo, as heranças do passado escravista, pois agrupa
discriminações de gênero, classe e cor “ao eleger o papel específico da mulher
negra na sociedade” (CRUZ, s/d). Segundo Angela Daves (apud Hooks, 1995), o
trabalho ocupa um grande espaço na vida das mulheres negras e carrega os
padrões estereotipados dos papéis estabelecidos pela escravidão acarretando a
naturalização das desigualdades que está estabelecida nas sociedades atuais.
Além das questões que se referem às divisões sexuais do trabalho (homemmulher), o trabalho doméstico atual é geracional: há uma preservação das crianças
e dos adolescentes, principalmente das classes média e alta, em relação ao
exercício das atividades domésticas (BRITES. In: BRITES & FONSECA, 2014).
Provavelmente por essa razão não há discussão sobre a atuação de indivíduos
dentro dessas faixas etárias, ainda que esses serviços sejam desempenhados por
eles.
Segundo Goldstein (2003, apud BRITES, 2007. p. 3), para a classe média e
alta brasileira, contar com os serviços de uma empregada doméstica é sentir-se
distante da pobreza. Essa pobreza, historicamente associada à sujeira, vícios e falta
de moralidade, no entanto, foi o braço que sustentou o trabalho das mulheres de
151
classe alta e, principalmente média permitindo que essas camadas pudessem
desempenhar papéis “menos domésticos”.
Apesar de a Constituição Federal de 1988 trazer adequações às leis
trabalhistas, a regulamentação dos direitos e deveres não garantia cobertura total,
como o faz em relação a outras atividades laborais (CRUZ, s/d). Apenas neste ano
de 2015 é que o Ministério do Trabalho aprova a lei que garante mais direitos às
trabalhadoras domésticas, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS), por exemplo, comum às outras categorias, na proposta conhecida como
PEC das Domésticas (Proposta de Emenda Constitucional 72).
Como uma atividade tipicamente exercida por mulheres, permaneceu, por
muitos anos, excluída pela Constituição Federal que, mesmo na Consolidação das
Leis do Trabalho em 1943, a qual ampliou até certo ponto as leis em benefício dos
trabalhadores, permaneceu às margens da legalidade e invisível juridicamente
(CRUZ, s/d).
A história da escravidão no Brasil, conforme já discutido no capítulo II e III,
aponta as condições necessárias para entendermos porque a massa de
trabalhadoras negras permanece como “linha de frente” dos serviços domésticos. O
fim da escravidão deixou uma ampla camada empobrecida e marginalizada; as
relações
proprietários/escravos
passou
a
se
refletir
nas
relações
patrões/empregados, não propiciando a inclusão social dessas/es trabalhadoras/es
libertas/os e livres.
Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) de 2005:
Os maiores percentuais de vulnerabilidade da mulher negra no
universo dos trabalhadores [...] se explicam, sobretudo, pela
intensidade de sua presença no emprego doméstico. Esta atividade,
tipicamente feminina, é desvalorizada aos olhos de grande parte da
sociedade, caracterizando–se pelos baixos salários e elevadas
jornadas, além de altos índices de contratação à margem da
legalidade e ausência de contribuição à previdência (p.5)
Por ter uma “cor” e ser massivamente exercido por mulheres, podemos tentar
entender como o passado se comportou em relação a essas mulheres e como,
mesmo com legislações que beneficiassem os contratantes/patrões, esse trabalho
propiciou laços de solidariedade e de afeto, especialmente no que diz respeito às
152
mulheres ligadas ao trabalho interno direto das casas: as criadas e, em especial, as
amas de leite (REIS, 2012; DIAS, 2013; BRITES & FONSECA, 2014).
4.1.1.1 – As criadas e as amas de leite: dos anúncios de escravas ao
regulamento de postura
Como já se tem falado, os registros dos documentos escritos, como cartas de
liberdade, inventários, relatos de viajantes e jornais, mapas, entre outros, são fontes
importantes para o conhecimento da existência desses trabalhos domésticos no
passado, uma vez que em escavações arqueológicas muitas vezes não há
possibilidade de encontrar algum objeto atribuído à especialização.
Os anúncios de jornais possibilitam uma série de interpretações como
compreender de que maneira as criadas internas das casas e, especialmente as
amas de leite são entendidas pela sociedade oitocentista, uma vez que são essas as
servidoras que estão mais próximas da família proprietária/contratante. As relações
entre os proprietários, os comerciantes e as escravas podem ser acompanhadas
através dos jornais; eles circulam entre os interessados tanto em ofertar, como em
adquirir mão de obra, bem como envolvem os próprios anunciantes (donos dos
jornais), portanto formam-se redes heterogêneas envolvendo diferentes elementos
da sociedade oitocentista (LAW, 1992; LATOUR, 1994).
Segundo Law (1992),
[...] quase todas nossas interações com outras pessoas
são mediadas através de objetos. [...] Nossas comunicações com os
outros são mediadas por uma rede de objetos – o computador, o
papel, a imprensa. E é também mediada por redes de objetos-epessoas (p. 2).
Ainda, de acordo com Thomas (1999), o mundo material não está isolado das
relações sociais; os artefatos (jornais) estão diretamente implicados no modo pelo
qual criamos, damos sentido e conduzimos as vidas diárias. Dessa forma, os
periódicos são parte do processo de escravidão oitocentista, atuando na forma como
os
escravos
e
trabalhadores
livres
empobrecidos
são
entendidos
pelos
anunciantes/proprietários/patrões e como os próprios trabalhadores, quando isso era
possível, colocava à disposição sua mão de obra nos anúncios de jornais. Ainda
153
hoje, nos periódicos atuais, é possível acompanharmos ofertas e procura de
empregos nas páginas dos “classificados”, incluindo, entre outras/os, trabalhadoras
domésticas. As relações sociais podem ter mudado ao longo dos anos, porém o
trabalho doméstico permanece e, majoritariamente, está nas mãos de mulheres
negras.
É interessante salientar que tanto os inventários de charqueadores
pelotenses, quanto as cartas de alforria estudadas pelos autores citados nesta
dissertação, bem como os contratos de compra e venda de escravos, não
apresentam a especialização de amas de leite. Sendo assim, entendemos que
poucos documentos falam sobre essas mulheres que, no entanto, aparecem
massivamente nos anúncios de jornais e estão presentes nas leis municipais de
higiene e conduta de trabalhadores domésticos.
Sobre essas leis que regulamentavam o trabalho doméstico no século XIX,
Graham (1992) nos fala que
No Brasil, nenhum código legal regulava, em princípio, as relações
entre senhores e escravos. A lei e o costume, seja [...] expressos
formalmente ou interpretados informalmente, se articulavam para
elevar a vontade do senhor à condição de autoridade suprema na
unidade social brasileira básica: a casa-família (p. 16).
As leis foram implantadas no momento em que as regras da sociedade
oitocentista começaram a mudar, ou seja, com a aproximação do fim da escravidão
e os receios em torno de higiene, conduta e comportamento que existiam em
relação às camadas mais empobrecidas, incluindo os ex-escravos (COSTA, 2013. p.
51). Especialmente para os criados de servir e para as amas de leite livres essas leis
foram cunhadas com o propósito de manter os espaços bem definidos e o
disciplinamento, uma vez que essas/es trabalhadoras/es participavam do cotidiano
da família. No entanto, segundo Graham (1992), muitas cidades brasileiras não
aceitavam a intervenção do governo, em uma tentativa de manter as relações
paternalistas no espaço de domesticidade.
Nos seguintes anúncios podemos perceber as posturas em relação a
comportamento e conduta das trabalhadoras, exigidas tanto para escravas quanto
para livres:
154
Figura 23 – Anúncio de ama de leite de “bom comportamento”. Fonte: Jornal Diario
de Pelotas, n. 176, terça-feira, 8 de agosto de 1876. p. 3. (Foto da autora, 2014)
Figura 24 – Anúncio de escrava de “conduta afiançada”. Fonte: Jornal Diario de
Pelotas, n. 125, quarta-feira, 5 de junho de 1878. p. 3. (Foto da autora, 2014)
Cabe lembrar que, quando falamos em trabalhadores pobres e livres, há uma
condição quase absoluta de continuação dos moldes da escravidão. Como as
criadas e amas de leite livres estavam relacionadas diretamente às categorias de
escravas, uma vez que desempenhavam as mesmas funções, é importante entender
esse instrumento para refletirmos sobre os limites de direitos e deveres entre
patrões/ex-proprietários e trabalhadoras livres (libertas, branca pobres).
O Regulamento para serviço de criados da Câmara Municipal de Pelotas
(Aditivo da Lei 1628 de 23 de dezembro de 1887, do Palácio do Governo de Porto
Alegre) indica a serem contemplados, no artigo 1º, os seguintes serviços dos
trabalhadores livres: cocheiro, copeiro, cozinheiro, criado de servir, ama de leite e
155
ama seca. Para todos havia um registro e deveriam ser celebrados contratos de
prestação de serviço entre contratante e contratado e para ambos havia as
obrigações e os direitos. Essas obrigações e direitos, ainda que em alguns
momentos apareçam como beneficiando os servidores, são bem claros em suas
intenções: manter os serviçais em “seus lugares”, contendo-os e cultivando as
separações de classes (GRAHAM, 1992; COSTA, 2013).
Se por um lado as leis indicam e exigem determinadas condutas ou
comportamentos, sabemos que nos anúncios as exigências para as amas de leite,
em especial, são principalmente de cunho afetivo (Anexo 4).
4.1.2. – Trabalho doméstico e as relações de cuidado e afeto
A afetividade e a “domesticidade” em grande parte das sociedades são
atribuídas ao universo feminino (ROSALDO, 1995). Porém, já nas primeiras décadas
do século XX, Margareth Mead nos diz que os “papéis” dos homens e das mulheres
variam de cultura para cultura; a afetividade e os cuidados com os outros, em
especial com as crianças, não são propriedades inerentes ao sexo feminino. Nem
mesmo fatores biológicos como a concepção, o parto e a amamentação propiciam
“naturalmente” o cuidado com o outro (MEAD, 1971).
Quando olhamos as qualificações das mulheres escravas e livres nos
anúncios do século XIX e somamos às leis municipais, percebemos a importância da
postura das trabalhadoras domésticas dentro das casas de família. Ainda que na
escravidão os códigos fossem mais internos, impostos pelos proprietários de
escravos como negociação de relações patriarcais, as condutas exigidas não são
diferentes das esperadas pelas trabalhadoras livres. As qualificações “boa”, “boa
conduta”, “bom comportamento”, “conduta afiançada” e “conduta garantida”,
explicam, já em uma primeira leitura, quais as condições que a trabalhadora deveria
ter para desempenhar seu papel dentro das casas de família.
No entanto, as exigências quanto à questão relacionada ao “carinho”, ou seja,
a afetividades, propicia uma reflexão que vai além das posturas das trabalhadoras.
Nos anúncios coletados, foram encontradas 25 amas de leite com essa qualificação,
2 amas secas e 1 mucama (Anexo 4). O cuidado com o outro e o afeto, da mesma
forma como propõem Brites (2007) e Brites & Fonseca (2014), pode ser pensado a
156
partir dessas adjetivações. Ainda que precisemos ter cuidados para não
essencializar esses achados, em se tratando de uma sociedade com elementos e
relações socioculturais diferentes das atuais, alguns pontos da observação histórica
e antropológica podem nos auxiliar nesse esforço.
Sabendo-se das permanências que o trabalho doméstico no Brasil carrega
dos tempos da escravidão, há uma possibilidade de compreensão das relações
afetivas e de cuidado dentro do contexto oitocentista que pode ser observado do
contexto atual das trabalhadoras domésticas. Um ensaio etnográfico, a partir das
narrativas de algumas trabalhadoras domésticas atuais, em conjunto com os dados
dos anúncios e a história, pode ser um meio para as interpretações. Wagner (2010.
p. 78) destaca que os contextos são múltiplos e extensos, alguns incluindo outros,
articulando-se entre si, sendo que alguns não mudam com o passar do tempo por
seu caráter claramente tradicional. Compreendemos, assim, que os contextos
sociais em que as empregadas domésticas atuais estão inseridas devem-se, em
larga medida, aos contextos passados.
De acordo com Kofes (2001) não havia apenas a proximidade física das
escravas com a família para quem trabalhava. Elas ficavam, muitas vezes, sob a
prática paternalista dessa sociedade, protegidas por seus senhores. Essas mulheres
estariam mais bem vestidas e poderiam ter uma alimentação diferente da comum
aos cativos, apesar das posições hierárquicas claramente impostas entre
proprietários e escravas. No entanto, essa relação de intimidade é entendida como
sentimento de posse, pois no momento em que a “babá” (mucama/criada/ama seca)
está vinculada às crianças para fazer suas vontades, entrar em suas brincadeiras,
como nos expõe Silva (2011), ela é reafirmada como a propriedade de alguém
(SILVA, 2011. p. 126). Havia essa ambiguidade intimidade/distanciamento: em
momentos se evidencia a proteção e os benefícios e, em outras, se enfatiza as
divisões de classe características da construção do Brasil (KOFES, 2001).
Atualmente, segundo Brites (2007), sobretudo nos cuidados com as crianças,
podemos encontrar os vínculos afetivos que se formam do contato entre
empregadas domésticas e a família empregadora. Levando-se em conta,
especialmente, que a esmagadora maioria dessas trabalhadoras não tem vínculo de
parentela com a família para qual trabalha e, ainda, são mal remuneradas (BRITES,
2007).
157
Nesse interim, temos a constituição das relações de afeto, pela permanência,
por muito tempo, das trabalhadoras nos mesmos ambientes domésticos, através de
ações como os pagamentos extra-salariais não vinculados aos contratos de
trabalho, as conversas íntimas entre empregada e patroa, e, especialmente as
trocas de carinho com as crianças (BRITES, 2007; BRITO, s/d).
A gente se apega aos “bichinho”, é como se eles fossem filhos da
gente (ÂNDULA BEATRIZ, ex-ama de leite e ex-trabalhadora
doméstica, 2013).
Conforme já discutido, o viés hierárquico em que as relações entre
patrões/patroas e trabalhadoras domésticas ocorrem é uma herança da sociedade
escravista e envolve questões de gênero, “cor” e classe. Muitas trabalhadoras
permanecem durante anos na mesma casa de família e, através dessa proximidade
estabelecem-se as relações afetivas. No entanto, isso não altera as posições
hierárquicas claramente estabelecidas pela sociedade (BRITES, 2007).
Dentro dessa categoria de trabalhadoras atuais, temos empregadas fixas, que
trabalham 44h por semana na mesma casa e “faxineiras” ou diaristas, às quais é
permitido o trabalho de até dois dias por semana para que não se caracterize
vínculo empregatício, desobrigando o contratante a alguns deveres, como assinar
carteira e recolher o FGTS (PEC 72 – Leis das Domésticas).
Porém, mesmo no caso das diaristas, muitas estão prestando serviços para a
mesma família há anos e acabam se envolvendo com o cotidiano das famílias,
sabendo “segredos”, conversando com os membros da família e, nesse período, há
um entrelaçamento e, ao mesmo tempo, uma separação entre o que se entende por
obrigações e por extensão das relações afetivas dentro da casa, que nem sempre
ocorrem de maneira recíproca.
Isso faz muita confusão mesmo, eu mesma trabalhei numa casa que
eles diziam pra mim: “bah, tu é nossa. Tu é da nossa família”. Aí eu
digo: “ah bom, se eu sou da família, eu vou sentar na sala e vou ver
televisão. O que vocês vão dizer? E a louça como vai ficar?” Porque
eu não sou da família. Eu gosto muito deles e sei que eles gostam
muito de mim, mas eu não sou da família. Eu tenho que cumprir o
meu serviço. (Narrativa de uma diarista durante oficina
MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
158
Por isso que vem essa conversa de família, só que os da família ele
não vai botar a trabalhar de graça. O patrão, na orientação que foi
passada na antiguidade das escravagistas, é de que ela é pobre e
tem que trabalhar de graça pra mim. Se ela não puder, eu boto outra
que depende disso e faz pra mim. Essa conversa é antiga e essa
conversa se reproduz. (Narrativa de uma das sindicalizadas durante
oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
Muitas vezes os limiares entre direitos e afetividade são ultrapassados e as
trabalhadoras acabam por fazer atividades além do que é previsto em seus
contratos:
Eu faço de tudo, lavo roupa, cozinho, faço faxina, lavo janela,
banheiro, faço tudo.[...] fora as outras coisas que ela (a patroa)
inventa que não são normais. [...] ela pediu pra eu descer lá embaixo
porque o vidro do carro dela tava com cocô de pomba... Eu acho que
é muita escravidão. (Narrativa de uma das sindicalizadas durante
oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
Por isso, segundo Ernestina, presidente do Sindicato, apesar de se criarem
laços de afetividade, é necessária a busca pelo conhecimento de seus direitos e
deveres:
Eles se entregam, a gente se entrega. Eles dizem: são da família,
são considerados da família... Não, senta na mesa, vamos almoçar e
comer juntos. Eles até dizem que são... Nós temos uma senhora aqui
perto, a Dona Terezinha, que ela começou a trabalhar em casa de
família, ela não casou, não teve família, não teve filhos e hoje ela tá
sendo colocada num asilo porque ela tá velha. Não dá pra trabalhar
mais, tá doente.Aí eles largam como se fosse o quê? um animal a
gente tem amor... Daí quando fica velha, nos chutam. [...] É
importante porque nós temos que ter amor, é obrigação tratar os
outros com educação e amor. Agora, não que a gente vá tratar e se
considerar da família. Não. A gente não se considera, não. A gente é
empregada, a gente quer saber dos direitos da gente. [...] Tem gente
que não tem conhecimento, não sabe os direitos. (ERNESTINA,
Presidente do Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de
Pelotas, 2014).
As narrativas acima nos fazem refletir a respeito do legado que a escravidão
deixou. Se, por um lado, temos a ideia de que a empregada está dentro da casa e
“faz parte da família” pelo tempo de serviço e o apego às pessoas da casa, por
outro, há um excesso de atividades. Embora haja leis que determinem as atribuições
das empregadas domésticas, há sempre o condicionante de não se saber
exatamente quais são essas atribuições. Além disso, há o receio e, por vezes, a
ameaça de ser substituída por outra pessoa, caso não cumpra o que lhe foi definido,
159
o que acarreta uma jornada de trabalho híbrida, uma mescla de trabalho assalariado
adicionado de um certo trabalho escravo (CRUZ, s/d).
É complicado. Eu vejo que é frágil ainda a legislação, porque quem é
que vai cuidar? Quem vai entrar na residência pra controlar? Pra
fazer essa fiscalização? É muito complexo tudo isso. Se a gente for
analisar essa estrutura, na verdade a gente tem que mudar a
mentalidade em toda a população. A mentalidade do patrão, do
próprio trabalhador, porque ele mesmo vai ter que fiscalizar. [...] E se
o patrão quiser participar, a gente fica feliz. (Narrativa de uma das
sindicalizadas durante oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
As desigualdades de classe estão claramente dadas, conforme Brites (2007).
A própria fala “se o patrão quiser participar, a gente fica feliz”, mostra que as
posições sociais ainda são distantes. Entender a participação do patrão no controle
do cumprimento das leis como algo a ser celebrado, demonstra essas distâncias
sociais entre empregadas domésticas e contratantes. Da mesma maneira como
faziam as escravas no século XIX, elas utilizam-se de sua mão de obra para seu
sustento e para “garantir a sobrevivência e promoção de suas próprias famílias”
(BRITES, 2007). Isso quer dizer que há uma colaboração entre contratadas e
contratantes, a despeito das diferenças de classe e das relações de trabalho, ainda
que os abusos nos horários e nos tipos de trabalho sejam uma constante.
Os anúncios de jornais nos mostram como as empregadas/trabalhadoras
pobres se colocavam perante as qualificações necessárias para o desempenho do
trabalho, por exemplo. Parece-nos que as contratadas, escravas ou livres, cumprem
os requisitos para continuar seus trabalhos como forma de sua manutenção. Assim,
vemos, por exemplo, este anúncio em que a própria trabalhadora (ou seus
intermediadores -propretários/agenciadores) coloca sua mão de obra à disposição
de contratantes enunciando, possivelmente, suas próprias qualidades:
Engommadeira - Á rua General Osorio n. 94, há uma superior
engommadeira que se encarrega deste serviço a preço rasoavel e
perfeição em trabalho. (Jornal Diario Commercial, n. 9273, terçafeira, 25 de janeiro de 1887. p. 3)
Há uma preocupação da mulher (ou de seus agenciadores) em se posicionar
com seu trabalho doméstico frente às/aos suas/seus contratantes. Há uma clara
diferença de classe, visto que o trabalho é manual e a trabalhadora está colocada
160
com seus atributos laborais, que seriam aceitos por quem a contratasse (classes
mais abastadas).
As negociações ocorrem entre os diferentes elementos da sociedade e,
conforme propõem Brites & Fonseca (2014), podemos pensar as trabalhadoras
domésticas a partir de um perfil de “cuidadoras”, uma das qualificações que aparece
nos anúncios de jornais, especialmente no trato com crianças.
Figura 25 – Anúncio de escrava “carinhosa” para “andar com uma criança”.
Fonte: Jornal do Commercio, n. 73, domingo, 1º de abril de 1887. p. 3 (Foto da
autora, 2014)
A possibilidade de pensar as escravas como cuidadoras pode ser mais um
elemento, a exemplo dos estudos atuais sobre escravidão em geral, para ajudar a
tirar a carga de “mercadoria” sem agência, sob a qual muitas vezes os cativos são
pensados ainda hoje e que é acentuada pela posição que os anúncios de jornais
colocam essas escravas, comercializadas entre objetos, imóveis e animais. Entram
nessa categoria de cuidado com crianças as amas de leite, as amas secas e
mucamas, as quais estavam ligadas diretamente às crianças, em contato
permanente ou como atividades sazonais (ama de leite). Para um total de 764
mulheres, a quantidade dessas das amas de leite e das amas secas nos anúncios é
significativa, somando 177 amas de leite (23,17%), 38 amas secas (4,97%). As
mucamas somaram 12 mulheres (1,57%); entretanto, por vezes as criadas
anunciadas poderiam também englobar o cuidado com crianças. Essa categoria de
trabalho somou 241 mulheres (31,74%). Por vezes, as amas de leite tornavam-se as
amas secas ou mucamas e acompanhavam as crianças até a fase adulta. Além das
161
atividades envolvidas no cuidado com crianças, apareceu um anúncio com a procura
de uma mulher (0,13%) para cuidar de pessoa idosa.
Segundo Brites & Fonseca (2014), pensar o trabalho doméstico como
cuidado, no Brasil ainda é muito recente. Pensa-se em cuidado mais quando está
relacionado à área da saúde, como, por exemplo, na enfermagem. Jurema Brites
(BRITES & FONSECA, 2014),
Creo, sin embargo, que esta categoría representa algunas
potencialidades, pues a mi entender el cuidado [...] se inscribe
también en una discusión proveniente de los estudios feministas que
busca visibilizar las tareas invisibles del cuidado. Pienso que a veces
la palabra cuidado está menos cargada de prejuicio que trabajo
doméstico (p. 164).
Pensar o “cuidado” em lugar do “serviço” doméstico é uma maneira de
visibilizar essa atividade que, em geral, é associada à sujeira, ao trabalho manual e
não é relacionada ao cuidado (FONSECA. In: BRITES & FONSECA, 2014). É
interessante perceber o quanto o trabalho doméstico mudou seu perfil e o quanto
não se alterou desde a escravidão. As permanências históricas em relação a
gênero, classe e “cor” confrontam-se com as separações espaciais entre
empregadas e patroas, por exemplo. Hoje temos as separações do que é da
empregada e o que é da família, numa tentativa de evitar o contato, uma vez que se
pensa no “trabalho doméstico como desprestigiado” e, especialmente, nos “corpos
das empregadas como sujos” (BRITES. In: BRITES & FONSECA, 2014).
Existem casos e casos. Trabalhei em casas que tinha que entrar pela
área de serviço, tu não comia a mesma comida; mas eu também
trabalhei em casas de pessoas maravilhosas que me ajudaram muito
mesmo. Então a gente não pode botar todo mundo num saco só,
mas tem casos e casos (Narrativa de uma das sindicalizadas durante
oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
Essa mudança de perspectiva e as políticas de higiene e conduta que são
trazidas do pós-abolição podem refletir nessas relações confusas na fronteira entre
as obrigações e os vínculos de afeto de trabalhadoras domésticas e famílias para as
quais trabalham.
162
4.1.2.1 - As amas de leite: um caso especial
Tenho filho de leite no Rio de Janeiro! Quando vem pra São
Sepé e passa por mim, sempre diz: “Olha lá a “vaca” que me
deu leite! É a minha mãe de leite!”. Aí me dá uma saudade
desses bichinhos... (ÂNDULA BEATRIZ, a BETA, ex-ama de
leite e ex- trabalhadora doméstica, 2013).
Pela característica “carinhosa” contida nos anúncios podemos pensar para
além do cuidado com a criança, em relações que ultrapassam as obrigações e os
cuidados e criam vínculos de afetividade entre os entes das diferentes categorias.
No caso da ama de leite, o seu corpo biológico determina as relações, visto que é
seu “instrumento” de trabalho, de renda e, ao mesmo tempo, é através da atividade
da amamentação, do contato entre os corpos, que aparecem os laços afetivos.
163
Figura 26 - Negra com uma criança branca nas costas, Bahia,
1870.
(Acervo Instituto Moreira Salles). Fonte:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/…/10-raras-fotos-de-e
A amamentação de crianças brancas por escravas negras no Brasil parece ter
sido importada da Europa (SILVA, 1990). Freyre (1946) nos dizia que era costume
na sociedade escravista as mães darem seus filhos para que as amas negras às
amamentassem ao que ele atribuía ao “maior vigor” das escravas. Entretanto, Silva
(1990) aponta para a própria condição de escrava, com disponibilidade de leite, o
motivo pelo qual se recorria às amas negras.
Badinter (1985) estudou o costume das francesas nos séculos XVII e XVIII de
terem seus filhos criados por amas, hábito que começou pelas mulheres mais
abastadas e espalhou-se pela população: as mulheres ricas mantinham seus filhos
164
junto a si, porém contratavam amas para dentro de suas casas, enquanto as menos
abastadas enviavam seus filhos para as zonas rurais para que fossem alimentados
pelas camponesas. Essa prática, segundo Silva (1990), sempre foi associada à
mortalidade infantil, o que fez com que os governos europeus investissem no
incentivo ao aleitamento materno (BADINTER, 1985).
No Brasil, as escravas negras amamentando os filhos da “casa grande” são
vistas por Freyre (1946) como tornando-se “pessoas da família” de seus senhores,
no momento em que há um estreitamento nas relações entre as diferentes
categorias sociais. No entanto, Magalhães & Giacomini (1983 apud SILVA, 1990)
percebem essa dimensão de relações a partir de outra visão:
A estória da ama-de-leite escrava, da 'embaixadora da senzala na
casa grande', revela-se a história de mais uma faceta da
expropriação da senzala pela casagrande, cujas conseqüências
inevitáveis foram a negação da maternidade da escrava é a
mortandade de seus filhos (pp. 81-82).
Dessa forma, segundo Silva (1990), há uma aproximação das escravas com a
família da casa grande que, no entanto, não beneficia a criação de seus próprios
filhos. Por outro lado, como já foi apontado pelos estudos mais recentes em história,
apesar da alta mortalidade infantil entre as crianças filhas de escravas (e mesmo
entre as brancas) durante o século XIX, havia a possibilidade de formação de
famílias nucleares entre os cativos. Essas mantinham redes e auxiliavam-se
mutuamente.
Com a possibilidade dos escravos de aluguel, as amas de leite também eram
um negócio que interessava os senhores (SILVA, 1990), uma vez que a renda
poderia não vir somente das produções agro-pastoris e muitos pequenos
proprietários de escravos viviam dessa venda da mão de obra urbana. As escravas
aleitando, segundo Silva (1990), eram mais rentáveis sendo alugadas do que sendo
utilizadas dentro do espaço doméstico como criadas ou em outra função.
Outro fator importante para a disseminação do uso das amas de leite negras
no Brasil, na contramão das políticas de aleitamento da Europa pós séculos XVII e
XVIII, é a presença de grande população pobre que vendia sua mão de obra nas
cidades, lado a lado com as escravas. Conforme observado nas figuras 19 e 20 do
capítulo III, podemos identificar a maior concentração de amas de leite entre as
165
trabalhadoras livres. Entre as escravas, essa quantidade fica em segundo lugar, e o
número total de trabalhadoras é liderado pelas criadas.
O uso das amas de leite na França, de acordo Badinter (1985), deve-se
principalmente aos fatores sociais: nas camadas ricas e dominantes as mulheres
poderiam estar buscando maior liberdade, enquanto nas de classes mais populares
desempenhavam, junto à suas famílias, trabalhos como artesãs, etc. necessitando
de tempo livre para essas atividades. Era mais viável contratar uma ama de leite do
que aleitar seu próprio filho. O amor materno, na época, não tinha qualquer valor
social ou moral, assim, o abandono de crianças também não acarretava sentimentos
de culpa para a mãe. Dessa forma, as mães mais empobrecidas poderiam vender
seu leite às mães mais abastadas.
Com as leis de higiene, criadas por muitas províncias brasileiras, alteram-se
os valores sobre o aleitamento (SILVA, 1990; COSTA, 2013). As preocupações com
a saúde da população em geral e com altos índices de mortandade infantil levam a
uma atenção especial para o desenvolvimento de políticas sobre a maternidade e a
amamentação e sobre a criação dos filhos pelas próprias mães. Soma-se a isso, os
receios que as classes mais abastadas tinham em relação à pobreza (AZEVEDO,
2004; COSTA, 2013). Assim, temos os princípios das mudanças, mediante leis e
normas governamentais, além de regras de instituições particulares que investiam
na ideia da “maternidade” associada diretamente à mulher ideal que seria a
intermediadora entre a família e o governo nas questões em relação à saúde
(SILVA, 1990):
A mulher tipo ideal surgiu como o modelo higiênico da filha exemplar,
esposa dedicada e mãe amantíssima. Alguns médicos achavam que
"para ser mãe não é bastante ter o filho, é preciso amamentá-lo"
(MACHADO, 1911. 75-76 apud SILVA, 1990) e comparavam as
mulheres que se recusam amamentar àquelas que se fazem abortar
(SILVA, 1990. p. 74).
As relações de afetividade entre mãe e filho através da amamentação, nessas
condições brasileiras, podem ser entendidas como uma consequência das ações
governamentais para atentar à saúde e higiene. Não se pode falar em falta de
afetividade entre mães e filhos de elites no Brasil colonial apenas através da
amamentação pela mãe, pois não se pode atribuir valores atuais às mulheres
integradas em um outro sistema social (SILVA, 1990). Podemos perceber nos
166
anúncios já citados das amas de leite que contém a qualificação “carinhosa” que as
famílias, as mães livres e mais abastadas, estavam preocupadas com o
comportamento das amas em relação a seus filhos.
Interessante trazer a narrativa de Ândula Beatriz, a Beta, já identificada
anteriormente, que em fins do século XX foi ama de leite. Hoje, com 65 anos,
cacique de uma terreira de Quimbanda, ela fala de sua identificação com seus
antepassados escravos, fala das relações de afeto que permeavam a amamentação
e sobre os problemas que as mães tinham para aleitar. Fala, ainda, que nunca
cobrou nada das mães, que era um compromisso pessoal com os outros:
Meus antepassados passaram muito trabalho. Por que eu iria deixar
os outros passar trabalho também? Ih, contando assim, por cima...
Eu tive uns 25, 26 filho de leite. Naquele tempo ninguém cobrava,
não. Foi por amor. Nunca ouvi falar de nenhuma que cobrava em
São Sepé. Tinha que ser porque tu gostava de ver as criança bem.
[...] Os bichinho não têm culpa, não. Eu ia... ia dar leite pro gurizinho,
a mãe não podia, teve “recaída” porque lavou a cabeça antes dos 45
dias. Eu ia de três em três horas. Até no meio da noite. Teve um que
ficou comigo um mês na minha casa! A mãe também teve “recaída”,
que é depressão, né? [...] Uma outra não tinha leite suficiente pros
gêmeos. A menina é paraplégica e o menino morreu na incubadora...
Eu tirava leite e dava de conta-gota, mas ele era muito fraquinho. [...]
e teve uma filha de leite que morreu porque a mãe levou pra fora, a
guria, e deu leite Ninho, não quis ficar na cidade, então não tinha
ama de leite [...] (BETA, 2013).
Sobre a continuidade da atividade na família, e os aspectos relacionados à
“cor” ela ainda diz que:
As minhas filha, eu disse, pras minhas filha, se alguém precisar,
vocês ajudem. A Francielly (NETA) foi a única que só deu leite pra
família! Ela deu de mamá pro primo. A Janaína (FILHA DA
ENTREVISTADA E TIA DE FRANCIELLY) tinha que trabalhá e elas
tiveram os filho quase junto. Então a Francielly dava de mamá pro
pequeno. A Michella (OUTRA FILHA DA ENTREVISTADA) também
foi ama nos dois filho mais velho. [...] Eu disse pra elas: as pessoas
precisam, acaba tudo essa coisa da cor! Porque aqui, tu sabe, né? É
cheio de preconceito (BETA, 2013).
As relações de afeto estão claramente no contato direto da ama de leite e da
criança. Por esse contato direto de corpos talvez exista a grande procura por amas
de leite “carinhosas” nos anúncios. Como já foi falado anteriormente, os anúncios
das amas de leite apresentam essa qualificação massivamente; ela também aparece
nas amas secas e mucamas, embora em uma quantidade bem menor. Entendemos,
167
assim, que essa adjetivação está vinculada ao ato da amamentação, à ação direta
do ato de “dar” o leite, pela ama, e o de “receber”, pela criança.
Hoje, essas relações de intimidade talvez tenham mudado no que diz respeito
às questões sociais, porém as condições para que ocorra essa intimidade
permanecem. As trabalhadoras estão no ambiente interno, em contato direto com
seus contratantes e, ao mesmo tempo, estão submetidas às hierarquias existentes.
Brites (2007) traz a fala da empregada doméstica Edilene, a qual cuida de uma
criança
de
cinco
anos,
que
pode
elucidar
esses
aspectos
de
intimidade/cuidado/hierarquia:
Lene, tu podia acertar na Sena, né? Aí tu só vinha aqui prá brincar
comigo. Tu podias almoçar e deitar na cama da mamãe, para
descansar, como ela faz. [Edilene fecha seu relato acrescentando] A
idéia da menina! Deitar na sua cama?! (BRITES, 2007. p. 97).
O espanto dessa empregada e a fala da menina sobre “acertar na Sena” para
poder estar no mesmo nível econômico (e social, de acordo com a perspectiva da
menina) demonstra o quanto as relações de cuidado e de afeto estão entremeadas
com aspectos de afastamento entre as diferentes classes.
Comentei sobre esta parte ser um “ensaio etnográfico” justamente porque não
aprofundei o trabalho em etnografia, junto às trabalhadoras domésticas atuais, mas
algumas narrativas sobre as trajetórias de vida dessas empregadas ajudaram-me a
pensar sobre os aspectos contidos nos anúncios das escravas e de outras mulheres
trabalhadoras domésticas do século XIX.
Compreender como ocorriam as relações de trabalho e afeto e as
negociações entre diferentes categorias é buscar algumas origens para problemas
atuais, na tentativa de amenizar as diferenças (de direitos) entre grupos de hoje.
4.2 – Entre o passado e o presente: a experiência junto ao Sindicato das (os)
Trabalhadoras (es) Domésticas (os) de Pelotas
Nesta última parte da dissertação, não tenho a intenção de aprofundar
questões atuais a respeito de direitos e deveres das/os trabalhadoras/es, mas
apresentar algumas falas das empregadas domésticas, que ocorreram durante a
primeira oficina junto ao Sindicato, dia 21 de setembro de 2014, as quais são
168
relevantes e podem alavancar novos estudos. A experiência de, primeiro apresentar
alguns anúncios caracterizando o trabalho doméstico no século XIX, e depois, em
uma segunda oficina, construir conjuntamente uma forma de representar essas
trabalhadoras junto ao MUARAN, fizeram-me pensar muito a respeito dos dados
encontrados nos jornais.
Embora
esta
pesquisa
não
tratasse
inicialmente
das
trabalhadoras
domésticas na atualidade, por meio da aproximação com o Sindicato das/os
Trabalhadoras/res Domésticas/os de Pelotas, ficaram muito claros alguns aspectos
que perpassam o tempo e mantêm-se na atualidade. Da mesma maneira como
ocorria no passado escravista, a grande maioria das trabalhadoras domésticas nos
dias atuais é mulher e é negra. Há uma condição social histórica que permeia a
questão da trabalhadora negra, com suas origens na escravidão (PEREIRA, 2014).
Anterior à primeira oficina, a Profª Louise Alfonso conversou com algumas
integrantes do Sindicato. A professora identificou que falar sobre trabalho escravo
não seria uma perspectiva interessante, pois a primeira tentativa de começar o
assunto da história do trabalho doméstico em Pelotas por essa via foi refutada
mediante a argumentação de que muitas empregadas são brancas ou não se
identificam com a escravidão africana e afro-descendente (comunicação pessoal,
2014). No entanto, os anúncios foram um meio de mostrar que, assim como nos
mostra a história, o trabalho doméstico feminino tem suas origens na sociedade
escravista. Por apresentarem variações entre as mulheres e os homens
trabalhadores domésticos, escravos, livres, libertos, poderia ser mais fácil de
visualizar essa questão. Assim, partimos para a primeira oficina, da qual eu trouxe
muitas informações.
Apresentei
alguns
anúncios
de
jornais
pelotenses
de
escravas/os
domésticas/os. Além das oficineiras (eu, Profª Louise Alfonso, Profª Flávia Rieth e
Profª Liza Martins) e das sindicalizadas/os, estavam presentes algumas/ns
trabalhadoras/es não sindicalizadas/os e uma “patroa”. Durante a apresentação, foi
possível perceber as reações de choque de algumas participantes, principalmente
quando foram mostrados os anúncios de aprendizes (crianças e adolescentes na
categoria atual) e quando falamos sobre as qualificações das trabalhadoras.
Na realização das oficinas, conseguimos identificar o trabalho doméstico em
vários perfis. Um dos primeiros aspectos a ser comentado diz respeito a mulheres e
169
homens. Há uma constância, a exemplo do que foi identificado na sociedade
escravista, da manutenção do trabalho doméstico nas mãos de mulheres. São
poucos homens nessas atividades e eles estão mais direcionados a serviços
externos, como jardinagem e limpeza de casas e entorno. Embora a fala da Sra.
Ernestina Pereira, presidente do Sindicato, “não importa a cor, hoje temos
domésticas negras, brancas, temos homens que são domésticas” (21/09/2014),
percebemos a predominância das mulheres. As questões relacionadas ao trabalho
do mucamo e do copeiro, por exemplo, foram alvo de surpresa, uma vez que “o
machismo coloca o homem distante das vidas do lar” (Sindicalizada, 2014).
Há uma aproximação entre algumas trabalhadoras domésticas
com
movimentos negros e movimentos de mulheres negras, em que se busca não só
melhores condições para todas mulheres, mas para o desempenho do trabalho
doméstico (ERNESTINA PEREIRA, comunicação pessoal, 2014). Isso gera uma
proximidade entre as trabalhadoras, propiciando as redes de solidariedade que
também aconteciam entre as trabalhadoras escravizadas e ex-escravas.
Nós somos consideradas, às vezes, irmãs, só que ela é muito
caridosa. Quando... tem uma irmã dela que perdeu um neto... ela vai
trabalhar na casa da irmã pra... enquanto trabalha, é erguida. [...]
Criamos um grupo chamado grupo da Luluzinha, pra passarmos
umas horas com essa irmã. [...] Pra levantar e ajudar. [...] Mas todos
os dias da semana ela trabalhar na função de doméstica em serviço
geral de condomínio. (Narrativa de uma das sindicalizadas durante
oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
Em relação às qualificações “conduta afiançada” ou “conduta garantida” as/os
sindicalizadas/os presentes fizeram uma conexão direta com as cartas de
recomendação para o trabalho, comuns entre os contratantes. O antigo contratante,
ou em caso das faxineiras, alguém para quem elas trabalhem, fazem uma carta de
recomendação onde constam informações pessoais da trabalhadora e do
contratante para quem prestou serviço. Na carta, além da “conduta” da trabalhadora,
consta o contato do antigo contratante para que confirme essa recomendação. O
interessante foi que essa questão provocou um “levante” entre as participantes, que
começaram a falar sobre como elas não têm cartas de referências sobre os
“patrões”, então, a recomendação, a referência, é uma via de uma mão só. Elas
entram em casas, muitas vezes desconhecidas, para trabalhar e não sabem para
quem trabalham, não têm o histórico de seus “patrões”.
170
A permanência durante longos períodos de tempo numa mesma casa pode
acontecer. Mesmo as diaristas ou “faxineiras” prestam serviços durante anos em
uma mesma casa, criando vínculos de afeto.
Trabalho de empregada doméstica há 18 anos numa casa... [...] É
porque eu me separei e não tinha o que fazer, fui procurar emprego,
na época tinha 36 anos, aí disseram que eu não tinha... Não tinha
idade mais pra procurar e, aí, eu fiquei fazendo faxina. [...] Eu me
peguei nessa e to 18 anos lá. (Narrativa de uma das sindicalizadas
durante oficina MUARAN/GEEUR/Sindicato, 2014).
Esses relatos nos mostram o quanto alguns aspectos da escravidão
permanecem no trabalho atual, conforme já dito várias vezes e demonstrado por
estudiosos de história, ciências sociais, antropologia.
Quando perguntamos a respeito dos espaços, as narrativas das trabalhadoras
apontam para divisões nítidas dentro da casa da família. Essas questões da divisão
dos espaços englobam os cômodos da casa e os materiais de uso pessoal, numa
tentativa de “evitar” a contaminação. Muitas empregadas nos contaram que fazem
suas refeições separadamente dos “patrões” e usam pratos, talheres, copos,
canecas também separadas das de uso da família; outras, ainda, precisam levar sua
própria refeição e em alguns casos, seu próprio papel higiênico e seu sabonete. Isso
nos remete, mais uma vez, a pensarmos na dualidade intimidade/hierarquia, pois,
temos trabalhadoras em uma mesma casa durante anos, cuidando da família, das
crianças, e que não podem ao menos fazer uma refeição no mesmo espaço dos
“patrões”.
Quanto aos cuidados com as crianças, identificamos que é unânime a
participação da trabalhadora doméstica nessa atividade. Em poucos casos há uma
babá separadamente; por questões econômicas, a maioria das casas que mantém
trabalhadoras domésticas não conta com uma babá, a tarefa é atribuída à
empregada que faz a limpeza, prepara o alimento, etc. Não existe a separação das
atividades e, quando há crianças na casa, segundo as trabalhadoras, os patrões
perguntam se a empregada tem filhos, sabe lidar com crianças e gosta de crianças.
O “ter filhos” parece estar associado ao “saber cuidar de uma criança”.
Também, os espaços da casa ora se confundem com a circulação dos
“patrões” e da empregada, ora ajudam a definir claramente a hierarquia. Pelas
171
observações colocadas pelas sindicalizadas, muitas casas em Pelotas ainda
mantém o “quartinho” e o “banheiro” da empregada, para que ela use esses espaços
e não os espaços dos “patrões”, a não ser quando está cuidando das crianças ou
limpando o local.
Várias observações foram feitas pelas participantes da primeira oficina para
pensarmos o trabalho doméstico entre o passado e o presente. E foi extremamente
gratificante ouvir o seguinte relato de uma das sindicalizadas ao final da
apresentação:
Eu gostaria de parabenizar o grupo porque a escolha do tema foi
muito excelente, porque vai de indivíduo a indivíduo [...] Com esse
tema eu acredito que pode mexer muito com as mentes e os
corações. Tem muita coisa que ficou... que pra nós era desconhecida
e que pode vir a mexer com a sociedade no país e no mundo. [...]
Simplesmente uma riqueza, eu praticamente fiz uma faculdade aqui
hoje, de tanta coisa! A escolha foi muito bem feita, muito bem
estruturada, que pra nós não é tudo conhecido, mas tinha muitas
coisas conhecidas e é um feedback, né? (2014).
Ao final da primeira oficina encaminhamos os assuntos para a segunda, onde
apresentaríamos, a partir da composição em conjunto com as trabalhadoras
domésticas, as prévias de como seriam os banners e as exposições dos mesmos
para a representação do trabalho doméstico no MUARAN. Também criaríamos uma
logomarca para o projeto “O Trabalho Doméstico: Entre o Passado e o Presente”,
que foi idealizado, também, a partir dessa primeira oficina pelo GEEUR.
O interessante de se falar sobre a logomarca é sobre a forma como ela foi
“arqueologicamente” montada. Perguntamos quais eram as especificidades que
deveriam estar presentes. As trabalhadoras solicitaram que a imagem tivesse uma
mulher, nem negra, nem branca, para representar todas as trabalhadoras; deveria
aparecer uma vestimenta que remetesse a um uniforme; presença de luvas nas
mãos, balde e vassoura (que acabou sendo excluída para não poluir visualmente a
imagem); e o mais importante: mão para cima em sinal de empoderamento, da luta
dessas mulheres. A imagem a seguir é o resultado da segunda oficina:
172
Figura 27 – Logomarca do Projeto Sindomésticas / GEEUR /
MUARAN. Arte: Simone Ortiz (estudante do Curso de Antropologia UFPEL)
Os artefatos associados ao trabalho doméstico, assim como os espaços
definidos na casa como o da empregada doméstica, são aspectos a serem avaliados
em futuras pesquisas abrangendo antropologia e arqueologia.
Na segunda oficina, apresentamos as ideias dos banners e fizemos a
finalização deles para serem confeccionados e levados a público. Também
ajustamos a logo para que pudesse ficar de acordo com as intenções das
trabalhadoras. Esses banners finalizados, cuja arte é de Simone Ortiz, já estão em
exposição itinerante pela cidade de Pelotas e estão disponíveis no Anexo 5.
A experiência com o Sindicato das/os Trabalhadoras/es Domésticas/os de
Pelotas foi extremamente frutífera para o entendimento das continuidades do
trabalho desde passado até o presente. As trocas de informações que ocorreram
pela apresentação dos anúncios deram outra perspectiva ao meu trabalho e
possibilitaram atualizar o tema da escravidão. Pude perceber o quanto essas
permanências podem ser prejudiciais para a trabalhadora doméstica e o quanto há
preconceitos a serem vencidos.
173
Figura 28 – 1ª Oficina. Trabalhadoras domésticas e Oficineiras.
Foto: Louise Prado Alfonso (2014)
Também, pude entender a ligação entre movimento sindical, movimentos
negros e de mulheres negras, uma vez que as classes caminham juntas, como disse
a Sra. Ernestina: “nós precisamos empoderar nossas mulheres”! Essas oficinas,
creio eu, ajudaram bastante nesse aspecto, já que muitas trabalhadoras, antes do
primeiro encontro, não se sentiam tendo qualquer ligação com o passado escravista,
que traz essa carga de relações ambíguas para o presente.
Empoderar para lutar!
Figura 29 – Algumas trabalhadoras domésticas e sua luta. 1ª
oficina. Foto: Louise Prado Alfonso (2014)
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa apontou que, através dos anúncios de jornais, podemos chegar
a entender as relações de classe, gênero e “cor” presentes no passado escravista,
mas que se refletem na atualidade. As escravas anunciadas são de variados
trabalhos domésticos, porém não estão desempanhando outras atividades laborais.
Há uma permanência das condições do trabalho doméstico nas mãos das
mulheres/negras/empobrecidas em geral, e os anúncios são fontes para a
compreensão dessas permanências.
Utilizar a documentação para uma leitura arqueológica pode permitir a
visualização desses aspectos. Como Galloway (2006) nos indica, os textos escritos
não são, em geral, produzidos para a posteridade, e, sim, pensados para o momento
em que são criados. Assim, eles implicam em situações arqueologicamente visíveis.
Pensar as características das escravas e escravos a partir dos anúncios é entender
como eles eram compreendidos naquele sistema social.
Mulheres livres, libertas e escravas se misturam no desempenho das
atividades domésticas, apresentadas, à primeira vista, como mercadorias nos
jornais. No entanto, as condições qualificantes mostram-nos que as relações vão
mais além: há um misto de subordinação hierárquica de classes que, no entanto, é
permeada por relações de afetividade, as quais podem ser percebidas pelas
adjetivações quanto ao comportamento e a conduta dessas mulheres.
A idade é um fator importante: enquanto as mulheres no trabalho doméstico
são, em sua grande maioria, adultas, os homens nos mesmos serviços são
aprendizes, ou nas categorias atuais, crianças e adolescentes. As origens não foram
importantes para a classificação das trabalhadoras e para o desempenho das
atividades. Mesmo assim, o conhecimento de que existem mulheres brancas com
etnias definidas nos anúncios é importante para compreendermos que existiam
algumas preferências, o que nos dá uma visão das possíveis relações sociais da
época.
A quantidade de mulheres escravas nos anúncios era significativamente
maior do que a quantidade de mulheres livres ou libertas. Essa constância das
mulheres negras permanece na atualidade, como pode ser acompanhado pelos
dados oficiais (DIEESE).
175
Os anúncios são documentos relevantes quando pensamos nas amas de
leite: elas não estão em documentos como cartas de alforria, ou inventários. A
quantidade de amas de leite anunciadas muito mais alta que as outras
especializações indica, não só as relações que se davam entre mães e filhos, como
as relações que ocorriam entre as escravas e outras trabalhadoras e as amas e
crianças de famílias distintas. Também é perceptível a circulação dessas mulheres,
que não são trabalhadoras fixas. Interessante entender que a ama de leite precisava
ser “carinhosa”, característica que demonstra qualificação de afeto, e, ao mesmo
tempo não era presença permanente nas casas. Criavam-se vínculos temporários,
muito provavelmente.
Trazer todas essas informações para o presente durante as oficinas junto ao
Sindicato fizeram-me pensar mais a respeito de como ocorriam as relações entre
trabalhadoras e família proprietária ou contratante. Todas as análises levam a refletir
sobre as continuidades nas condições das trabalhadoras domésticas e sobre os
possíveis materiais a serem pesquisados a seguir. As relações de espaço, de uso de
artefatos, de hierarquias estabelecidas e, por vezes rompidas pelas intimidades, são
aspectos a serem explorados em futuros estudos.
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REGISTROS ORAIS
Áudio gravado durante a oficina realizada pelo MUARAN (UFPEL) em parceria com
GEEUR (UFPEL) e Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Pelotas, em 21 de
outubro de 2014 (Organização e elaboração da oficina: Profª Drª Louise Prado
Alfonso, Profª Drª Flávia Maria Rieth, Profª Ms. Liza Bilhalva Martins e Mestranda
Marta Bonow Rodrigues) – transcrição realizada por Karollina Mendes de
Magalhães, Johan Fonseca Lose e Beatrice Gervazzi -bolsistas do MUARAN, em
dez/2014 e jan/2015).
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193
ANEXOS
194
Anexo 1 – Lista dos negociantes de escravos nos anúncios dos jornais pesquisados
ANO
1853
1854
1856
1856
1861 - 1863
1861 - 1863
1861 - 1863
1862
1863
1863
1865- 1868
1865
1865 - 1882
1866
1866 - 1876
1866 - 1878
1868
1868
1875 - 1879
NEGOCIANTE
Casa de Leilão de Leon
Latisquet
Pedro José Leite
Guimarães e Cia
“Loja”
Joaquim Braga & Cia
João Baptista Roux
Jaques & Blum C.
Armazém de José Martins
da Cunha
Sem informação
Loja do Sr. Henrique de
Souza Gomes
Assis & Cunha
A.G. Gastal
Sem informação
João Resende
Leopoldo Mandello
Agência Marques de
Joaquim Marques de
Oliveira
José Francisco Duarte
João Resende (Pelotas)
Antonio Dutra Pinheiro
(Piratini)
Costa Irmão
Luiz Alberto de Soveral
(Casa Vermelha)
1875 - 1878
João de Pinho Oliveira
1875
1875
1875 - 1880
Francisco Nunes de Souza
Armazém de Manoel Roxo
Juvêncio Mascarenhas
1875
1875
1875
Villela e Sobrinho
Guerra e C.
Boaventura Fontoura
Barcellos
Thomaz Antonio de Oliveira
Angelino Soveral
Sem informação
Sem informação
Maximiano Antonio de
Souza – Loja de Móveis
Agência Commercial de
Antonio Cardoso da Costa
1875 - 1876
1875 - 1881
1876
1876
1876
1876
1876
Serafim Alves
1876 - 1878
Joaquim Monteiro e C. –
Loja Joaquim das Prendas
ENDEREÇO
Rua de S. Miguel
TIPO DE NEGÓCIO
Aluguel
Compra
Rua do Commercio, 149
Porto da Cidade
Rua de S. Miguel
Rua das Flores
Compra
Venda e Aluguel
Venda
Aluguel
Venda
Rua do Commercio, 118
Rua das Flores
Venda
Aluguel
Rua S. Jeronymo, 1
Rua de S. Miguel, 111
Rua da Palma
Rua dos Voluntários
Rua da Igreja, 70
Rua da Igreja, 24
Aluguel
Venda e Aluguel
Compra e Venda
Venda
Aluguel
Compra, Venda e
Aluguel
Rua dos Voluntários, 41 e 42
Compra e Venda
Venda
Rua do Commercio
Rua Sta Barbara, 19
Rua 16 de Julho, 17
Rua General Victorino, 48
Rua de S. Miguel, 184
Aluguel
Compra, Venda e
Aluguel
Rua 24 de Outubro, esq. rua S. Miguel
Rua Riachuelo, 44
Rua Sta Barbara, 67
Rua 3 de Fevereiro, 43
Rua S. Jeronymo, 80
Rua de S. Miguel, 96
Rua 3 de Fevereiro, 33
Rua 3 de Fevereiro, 80
Rua General Victorino, 56
Rua do Imperador, 179
Rua de S.Miguel, 216
Rua de S. José, 17
Rua 3 de Fevereiro, 55
Rua de S. Miguel, 119
Compra, Venda e
Aluguel
Aluguel
Aluguel
Compra, Venda e
Aluguel
Aluguel
Venda
Aluguel e Oferta de
Serviços
Compra
Compra e Venda
Compra e Aluguel
Compra e Aluguel
Aluguel
Compra e Venda
Compra, Venda e
Aluguel
Compra, Venda e
Aluguel
195
1876
1876
1876 - 1881
Honorio da Rocha Peixoto
Casa Vermelha
Manoel Carneiro Flores (M.
C. F.)
1876
1876
João Marengo*
Manoel Esteves Gonçalves
(Pelotas) Antonio Celestino
Alves da Cunha (Rio
Grande)
Nunes e Filho
Sem informação
Ferreira, Filhos & C. –
Bazar do Sol
Cincinato Soveral
Armazém de Carlos F.
Natusch & Cia.
Lucio Cincinato Soveral
Casa Vermelha
Luiz Avila D’Azevedo –
Silva & Azevedo
“Loja”
Joaquim G. Pinto Monteiro
Sem informação
Manoel Staubs
1876
1876
1876 - 1878
1876
1876 - 1880
1877
1877 - 1878
1877
1877
1877
1877
1878
1878
1878
1878 - 1879
1878
1878
1878
1879
1879
1879
1879
1879
1879
1880
1880
1881
1881
1881 - 1882
1881 - 1882
1882
1882
1882 - 1883
1883
1884 - 1888
Loja de Ferragens de
Manoel Lopes de Siqueira
& C.
Castro Silva & C.
Simões e Irmão / Simões e
C.
Miguel – Pharol Pelotense
Casa Vermelha
Fileno Alves da Costa*
Casa Vermelha
Sem informação
Barraca de Couros de
Bernardo Trapaga
Casa da Confiança
Loja das Famílias
Escritório de José Segarra
Filho
Ignacio Paredes
Agência de Leilões de Sr.
João Leão Sattamini
Dominique Villard (Pelotas)
Cintrão & Martins (Rio
Grande)
Souza Gomes e C.
Sem informação
Francisco Antonio Corrêa
Leal
Coelho Leal
Sem informação
Armazém de Moreira &
Azambuja
Duarte e C.
Parque Pelotense
Rua General Netto, 18
Rua 16 de Julho, 18
Rua General Victorino, 90
Rua General Netto, 90
Rua General Victorino, 105
Hotel Alliança - Rua de São Miguel
Praça Pedro II (Pelotas)
Compra e Venda
Venda
Compra, Venda,
Aluguel e Procura por
serviços
Corretor de seguros
Venda
Praça da Matriz (Bagé)
Rua 16 de Julho, 66
Venda e Aluguel
Aluguel
Aluguel
Rua de S. Miguel, 70
Venda
Aluguel e Procura por
serviços
Compra e Venda
Venda e Aluguel
Compra e Venda
Rua de S. Miguel, 29
Rua 16 de Julho, 20
Praça da Igreja, 12
Rua de S. Miguel, 122
Rio Grande
Rua 24 de Outubro, 84
Rua dos Voluntários, 18
Aluguel
Compra e Venda
Compra e Venda
Aluguel e Oferta de
serviços
Venda
Rua General Osório, 127
Rua General Victorino, 68
Venda e Procura por
serviços
Venda e Aluguel
Rua General Victorino, 38
Hotel Alliança – Rua de São Miguel
Rua General Victorino, 40
Rua General Victorino, 81
Praça da Constituição
Venda e Aluguel
Venda e Aluguel
Venda e Aluguel
Venda
Venda
Aluguel
Rua Andrade Neves, 107
Rua São Jeronymo
Rua 7 de Setembro
Procura por serviços
Compra
Aluguel
Rua Sta Barbara, 41A
Rua de São Miguel, 55
Despacho de matrículas
Venda
Praça Municipal (Pelotas)
Rua Riachuelo (Rio Grande)
Venda
Rua São Jeronymo, 37
Rua dos Voluntários, 49 e 51
Praça General Câmara – Rua Conde D’Eu, 21
Aluguel
Aluguel
Compra, Venda e
Aluguel
Aluguel
Venda e Aluguel
Aluguel e Oferta de
serviços
Aluguel
Procura de serviços
Estrada do Fragata (acima da lomba)
Sobrado da Estrella, 57 (Depósito)
Rua Sta Barbara, 63
196
1886
1887
Marques Figueira
Lima e Fonseca
Praça da Constituição
Rua do Imperador, 144 e 146
*Hóspede ou morador do Hotel Alliança - que trabalha com seguros.
Aluguel
Prestação de Serviços
Funerários
197
Anexo 2 – Lista dos endereços dos comerciantes de escravos e os endereços
correspondentes atuais
NÚMERO
1
2
ENDEREÇO
Praça General Câmara – Rua Conde
D’Eu
Rua 3 de Fevereiro
ENDEREÇO ATUAL
Parque Dom Antônio Zattera /
Av. Bento Gonçalves
Rua Major Cícero Góes Monteiro
3
Rua 16 de Julho
Rua Dr. Cassiano
4
Rua dos Voluntários
Rua Voluntários
5
Rua da Palma / Rua General Netto
Rua General Neto
6
Rua 7 de Setembro
Rua 7 de Setembro
7
Rua São Jeronymo
Rua Marechal Floriano
8
Rua Riachuelo
Rua Lobo da Costa
9
Rua 24 de Outubro
Rua Tiradentes
10
Rua de São José
Rua General Teles
11
Praça da Constituição
12
Rua Sta Barbara
(MAPA: está a atual Praça 20 de
Setembro, que fica nas proximidades
da antiga P. da Constituição)
Rua Marechal Deodoro
13
Rua General Osório
Rua General Osório
14
Rua das Flores / Rua Andrade Neves
Rua Andrade Neves
15
Rua de São Miguel
Rua Quinze de Novembro
16
Praça da Igreja (ou Praça da Matriz)
Praça José Bonifácio
17
Praça Pedro II (Também conhecida por
Praça Municipal)
Praça Coronel Pedro Osório
18
Rua da Igreja / Rua General Victorino
Rua Padre Anchieta
19
Rua do Commercio / Rua do Imperador
Rua Félix da Cunha
Estrada do Fragata (acima da lomba)
(estrada que comunicava Pelotas com
a região da Campanha – próxima ao
antigo Arroio Santa Bárbara)
Fontes: MAGALHÃES, 2000; DEVANTIER & SANTOS, 2011; ALMEIDA, 2012; BAÚ LEONENSE,2015.
198
Anexo 3 – Tabela de idade das escravas de acordo com as especializações
Especialização
Ama de leite
Ama seca / cuidado de crianças
Costureira
Cozinheira (o)
Cozinheira e engomadeira
Cozinheira e lavadeira
Criada (o) / Serviço doméstico
Criada e quitandeira
Criada excluindo cozinhar e
lavar
Criada para serviço externo
Cuidar de idosos
De todo serviço
De todo serviço menos cozinha
Engomadeira
Lavadeira
Lavadeira e engomadeira
Lavadeira, engomadeira e
costureira
Lavadeira, engomadeira e
cozinheira
Mucama (o)
Quitandeira (o)
Sem informação
Variadas
Total Geral
%
Adulta
177
19
0
62
19
14
224
2
Aprendiz Idosa
Sem
Ingênuo informação
13
6
1
6
3
4
4
Total
Geral
177
38
0
63
19
14
241
2
2
1
1
22
1
12
2
17
2
1
1
22
1
12
2
17
1
1
32
7
1
54
34
703
92,02%
32
12
1
69
37
764
100,00%
3
8
1
31
4,06%
2
1
4
0,52%
1
1
6
0,79%
6
20
2,62%
%
23,17%
4,97%
0,00%
8,25%
2,49%
1,83%
31,54%
0,26%
0,26%
0,13%
0,13%
2,88%
0,13%
1,57%
0,26%
2,23%
0,13%
4,19%
1,57%
0,13%
9,03%
4,84%
100,00%
199
Anexo 4 – Tabela de qualificação das escravas de acordo com as especializações
QUALIFICAÇÕES DAS ESCRAVAS DE ACORDO COM A ESPECIALIZAÇÃO
Ama de leite
177
100,00%
13
7,34%
Boa conduta
8
4,52%
Bom leite
7
3,95%
Bons costumes
3
1,69%
Carinhosa
25
14,12%
Conduta afiançada
13
7,34%
Conduta garantida
5
2,82%
Excelente
5
2,82%
Morigerada
2
1,13%
Sadia
1
0,56%
Boa
Sem informação
88
49,72%
Sem vícios
4
2,26%
Superior leite
2
1,13%
Variadas
1
0,56%
38
100,00%
Boa
1
2,63%
Carinhosa
2
5,26%
Conduta garantida
2
5,26%
Ama seca / cuidado de crianças
Conduta morigerada
1
2,63%
30
78,95%
2
63
5,26%
100,00%
Boa
5
7,94%
Boa conduta
1
1,59%
Conduta afiançada
3
4,76%
Conduta garantida
1
1,59%
Sem informação
Sem vícios
Cozinheira (o)
Excelente
1
1,59%
52
19
82,54%
100,00%
2
10,53%
11
89,47%
14
100,00%
Boa conduta
1
7,14%
Conduta afiançada
4
28,57%
Sem informação
7
50,00%
Sem vícios
2
14,29%
241
100,00%
Sem informação
Cozinheira e engomadeira
Conduta afiançada
Sem informação
Cozinheira e lavadeira
Criada (o) / Serviço doméstico
Boa
Boa conduta
3
1,24%
17
7,05%
200
Boa conduta e bons costumes
3
1,24%
Bom comportamento
4
1,66%
Bonita figura
1
0,41%
Bons costumes
3
1,24%
Conduta afiançada
4
1,66%
Conduta garantida
4
1,66%
Excelente
1
0,41%
200
82,99%
1
0,41%
Criada e quitandeira
2
100,00%
Sem informação
2
100,00%
2
100,00%
Sem informação
Sem vícios
Criada excluindo cozinhar e lavar
2
100,00%
Criada para serviço externo
Conduta garantida
1
100,00%
Sem informação
Cuidar de idosos
1
1
100,00%
Boa conduta
1
100,00%
De todo serviço
22
100,00%
Boa conduta
8
36,36%
Bonita
1
4,55%
Conduta afiançada
2
9,09%
Conduta garantida
100,00%
1
4,55%
10
45,45%
1
100,00%
1
100,00%
12
100,00%
Boa
1
8,33%
Boa conduta
3
25,00%
Conduta afiançada
2
16,67%
Sem informação
6
50,00%
2
100,00%
Boa conduta
1
50,00%
Sem informação
1
50,00%
17
100,00%
Boa
1
5,88%
Perfeita
1
5,88%
15
88,24%
Lavadeira, engomadeira e costureira
1
100,00%
Sem informação
Lavadeira, engomadeira e cozinheira
1
32
100,00%
1
3,13%
31
96,88%
12
100,00%
Boa conduta
1
8,33%
Carinhosa
1
8,33%
Sem informação
De todo serviço menos cozinha
Sem informação
Engomadeira
Lavadeira
Lavadeira e engomadeira
Sem informação
Conduta afiançada
Sem informação
Mucama
100,00%
201
Conduta garantida
3
25,00%
Muito boa
1
8,33%
Sem informação
6
50,00%
1
100,00%
1
69
100,00%
Boa conduta
4
5,79%
Bonita figura
2
2,90%
Bons costumes
1
1,45%
Prendada
4
5,79%
56
81,16%
2
37
2,90%
100,00%
16
43,24%
21
764
56,76%
Quitandeira
Sem informação
Sem informação
Sem informação
Sem vícios
Variadas (mais de 4 especializações)
Boa conduta
Sem informação
Total Geral
100,00%
202
Anexo 5 – 5 Banners confeccionados para a exposição itinerante realizada entre
MUARAN / GEEUR / Sindicato das (os) Trabalhadoras (es) Domésticas (os) de
Pelotas
203
204
205
206