Projeto Político e Modelo Econômico Neoliberal no Brasil
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Projeto Político e Modelo Econômico Neoliberal no Brasil
PROJETO POLÍTICO E MODELO ECONÔMICO NEOLIBERAL NO BRASIL: IMPLANTAÇÃO, EVOLUÇÃO, ESTRUTURA E DINÂMICA* Luiz Filgueiras** 1- Introdução O presente texto faz uma reconstituição e análise dos processos econômicos e sociais que levaram à vitória política do neoliberalismo1 no Brasil, destacando: 1- As forças sociais que formam a sua base de apoio e sustentação, evidenciando as distintas frações de classe (hegemônicas e subordinadas) que passaram a compor o novo bloco de classes dominante, bem como suas contradições e disputas internas. 2- As distintas fases de implementação e evolução do projeto político neoliberal e do novo modelo econômico a ele associado, em especial identificando, neste contexto, o Governo Lula como uma continuação do 2o Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) – constituindo ambos, no fundamental, uma mesma e única fase.2 * Versão Preliminar (17/07/2005). ** Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) da UFBA e-mail: [email protected] 1 Preliminarmente, se faz necessário diferenciar, conceitualmente, “neoliberalismo”, “projeto neoliberal” e “modelo econômico neoliberal periférico”. O primeiro diz respeito à doutrina político-econômica mais geral, formulada, logo após a Segunda Guerra Mundial, por Hayek e Friedman, entre outros - a partir da crítica ao Estado de Bem-Estar Social e ao socialismo e através de uma atualização regressiva do liberalismo (Anderson, 1995). O segundo se refere à forma como, concretamente, o neoliberalismo se expressou num programa político-econômico específico no Brasil, como resultado das disputas entre as distintas frações de classes da burguesia, e entre estas e as classes trabalhadoras. Por fim, o “modelo econômico neoliberal periférico” é resultado da forma como o “projeto neoliberal” se configurou, a partir da estrutura econômica anterior do país, e que é diferente das dos demais países da América Latina, embora todos eles tenham em comum o caráter periférico e, portanto, subordinado ao imperialismo. Em suma, o “neoliberalismo” é uma doutrina geral, mas o “projeto neoliberal” e o “modelo econômico” a ele associado, são mais ou menos diferenciados, de país para país, de acordo com as suas respectivas formações econômico-sociais anteriores. 2 A identificação do Governo Lula como uma continuação do 2º Governo FHC – e não das duas gestões de FHC genericamente – foi feita, originalmente, e de forma convincente, por Boito (2004), da seguinte maneira: “... a política econômica e o bloco no poder ingressaram numa fase nova, que se iniciou no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e que prossegue sob o Governo Lula. De passagem convém ressaltar que só é correto afirmar que Lula dá continuidade à política econômica de Fernando Henrique Cardoso, se estivermos nos referindo apenas à política do segundo Governo FHC. A nova fase do neoliberalismo brasileiro é conseqüência da pressão política da burguesia interna ao longo de toda a década de 1990 e também do ‘estrangulamento externo’, esse novo velho conhecido, que ressurgiu nos anos 90 sob a forma da crise cambial de 1998-99. Resumidamente, o novo arranjo do bloco no poder possibilitou uma integração mais ativa da grande burguesia interna à política hegemônica do capital financeiro, visando, através do crescimento das exportações, obter os dólares e a receita necessários para remunerar o capital financeiro nacional e internacional.” (p. 1-2) 2 3- As mudanças estruturais que levaram à configuração desse novo modelo econômico, bem como os ajustes realizados nos mecanismos de seu funcionamento e nas políticas econômicas adotadas, como uma forma de reduzir, mas não eliminar, a sua grande instabilidade macroeconômica intrínseca. 4- As conseqüências sociais e políticas decorrentes desse processo, em especial o impacto político-ideológico sobre as classes trabalhadoras e suas representações políticas. 5- A incapacidade da burguesia brasileira, com o seu projeto neoliberal, de obter um amplo consenso na sociedade (de ser hegemônica no sentido gramsciano) e, como conseqüência, ter que se defrontar, permanentemente, com sucessivas crises políticas. A razão mais geral desse fenômeno se deve ao fato de que, no atual período histórico, as classes dominantes e seus governos não se obrigam a fazer qualquer tipo de concessão às classes trabalhadoras, às exigências dos de baixo3 (Teixeira, 2003). E isto ocorre, apesar dela exercer uma ampla dominação ideológica na sociedade, evidenciando uma grande capacidade de disseminação dos valores básicos da doutrina neoliberal. Essa reconstituição e análise têm por objetivo demonstrar os seguintes aspectos, inter-relacionados, da realidade brasileira – cuja compreensão, acredito ser fundamental para a retomada da construção de um projeto popular alternativo ao neoliberalismo: 1- Na atualidade, mais do que nunca, não há mais possibilidade de um projeto nacional, de caráter capitalista, vir a ser construído e dirigido por qualquer fração da burguesia brasileira; em virtude de sua absoluta incapacidade – decorrente de sua internacionalização completamente dependente e subordinada à nova ordem mundial capitalista - de expressar, incorporando econômica e politicamente, os interesses diferenciados do conjunto da sociedade brasileira, em especial os das classes trabalhadoras. 3 No sentido gramsciano, o conceito de hegemonia se refere a uma forma determinada de dominação política de uma classe, ou fração de classe, sobre os demais grupos de uma sociedade. Essa forma de dominação só tem possibilidade de se estabelecer quando a classe ou fração dominante consegue ir além de sua estreita esfera de interesses corporativos, isto é, quando tem a capacidade de fazer concessões – dentro de um certo limite – aos demais grupos subalternos, incorporando parcialmente os seus interesses. Desse modo, uma situação de hegemonia expressa não apenas a capacidade de dominação (força) da classe ou fração mas, sobretudo, a sua capacidade de liderar – intelectual, moral, ética e culturalmente – os demais grupos sociais. Por isso, o exercício de uma hegemonia significa, sempre, uma combinação de coerção e consentimento; em suma, o estabelecimento de um amplo consenso na sociedade. Vê-se, portanto, que “... o conceito de hegemonia é apresentado por Gramsci em toda a sua amplitude, isto é, como algo que opera não apenas sobre a estrutura econômica e sobre a organização política da sociedade, mas também sobre o modo de pensar, sobre as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de conhecer” (Gruppi, 1980, p. 3). 3 2- Isto significa dizer que um projeto nacional só poderá ser verdadeiramente nacional se for, claramente, anticapitalista; portanto, terá que ter como base social fundamental, necessariamente, as classes trabalhadoras e ser dirigido, politicamente, de forma autônoma e independente, em relação às diversas frações da burguesia. 3- A instabilidade da democracia representativa formal – associada à incapacidade das classes dominantes se tornarem hegemônicas na sociedade, no sentido pleno já definido - é histórica em toda a América Latina e, de resto, em todos os países da periferia do capitalismo; no entanto, atualmente – após o fim da Guerra Fria e a vitória do neoliberalismo - a sua crise se explicita, claramente, como uma incapacidade estrutural de se constituir em instrumento político de transformações econômico-sociais que contemplem os interesses das classes trabalhadoras. 4- Nesse contexto, qualquer partido político socialista que atue no interior da ordem capitalista-burguesa, no sentido de sua efetiva transformação, não poderá eleger, como espaço central de sua atuação política, o parlamento e a disputa eleitoral; sob pena de, semelhantemente ao Partido dos Trabalhadores (PT), se deixar transformar num partido da ordem. A educação e organização das classes trabalhadoras, bem como a disputa políticoideológica em todos os espaços da sociedade civil4, não podem ser descuradas e nem ficar subordinadas e limitadas à institucionalidade burguesa consentida e absolutamente restrita. Além dessa Introdução e das Considerações Finais – nas quais se retoma os aspectos relevantes da realidade brasileira atual, que marcam a natureza do projeto e do modelo neoliberal -, este texto é constituído por mais quatro seções. Na próxima (2a seção), reconstitui-se as circunstâncias que levaram à vitória do programa político neoliberal no Brasil, analisando a disputa das distintas classes e frações de classes nesse processo. Na terceira seção reconstroem-se os três principais momentos que caracterizam a vitória e 4 Segundo Gramsci, “... a sociedade civil é o espaço onde se organizam os interesses em confronto, é o lugar onde se tornam conscientes os conflitos e as contradições” (Teixeira, op. cit., p. 66). Portanto, é o lugar privilegiado da disputa entre projetos antagônicos, no qual, de um lado, as classes dominantes afirmam, e mantêm, a sua hegemonia e, de outro, as classes subalternas devem contrapor seu ponto de vista, lutando para construir uma contra-hegemonia. Assim, a conquista, e manutenção, de uma nova hegemonia são produtos da luta de classes tanto no interior da sociedade civil, quanto no interior da sociedade política (o Estado). Isto significa dizer que assumir o governo do país, a partir de uma vitória político-eleitoral, sem ter construído uma nova hegemonia nos diversos espaços da sociedade civil – ou pelo menos estar num processo avançado de sua construção -, é absolutamente insuficiente para se implementar um projeto democrático e popular. 4 evolução do projeto neoliberal e de seu modelo econômico. Na imediatamente seguinte (4a seção), caracteriza-se e analisa-se a estrutura e dinâmica do modelo econômico neoliberal. E, por fim, na 5a seção, considera-se os impactos econômico-sociais e político-ideológicos do neoliberalismo sobre as classes trabalhadoras e suas representações políticas. 2- O Bloco no Poder e a Incapacidade Hegemônica do Projeto Neoliberal O Brasil foi o último país na América Latina a implementar um projeto neoliberal5; isto se deveu, de um lado, à dificuldade de soldar os distintos interesses das diversas frações do capital6 até então presentes no moribundo Modelo de Substituição de Importações (MSI) (Filgueiras, 2001) e, de outro, à intensa atividade política desenvolvida pelas classes trabalhadoras na década de 1980 – que se expressou, entre outros eventos, na criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT) e na realização de cinco greves gerais entre 1983 e 1989. No entanto, a mobilização política dos trabalhadores, ultrapassando os limites do economicismo – cuja expressão maior foi a construção de um partido político de massa –, ao ameaçar o poder das classes dominantes, mas não conseguir tornar hegemônico seu projeto nacional, democrático e popular, acabou possibilitando, num determinado momento (a partir da eleição de Collor em 1989), à unificação das diversas frações do capital em 5 Embora tivesse como referência a experiência de outros países da América Latina, e mesmo dos Governos de Margareth Tatcher na Inglaterra e Regan nos EUA, além das recomendações de instituições multilaterais como o FMI, o projeto neoliberal no Brasil foi constituindo e consolidando o seu programa político – como não poderia deixar de ser – no próprio processo de sua implementação, como resultado das disputas políticas entre as diversas classes e frações de classes. Portanto, a concepção aqui adotada é de que não havia um projeto neoliberal prévio, acabado, e que foi implantado; na verdade, a idéia é de que o projeto neoliberal só se definiu claramente de forma ex-post, isto é, como resultado da luta de classes. É isto que explica, em grande medida – ao lado das características próprias da formação econômico-social anterior-, a existência de especificidades e diferenças nos projetos neoliberais implementados nos distintos países da América Latina, em que pese terem eles a mesma concepção doutrinária e o mesmo programa político mais geral. 6 As distintas frações do capital devem ser identificadas e caracterizadas a partir dos distintos lugares e funções que diferentes conjuntos de capitais particulares ocupam e cumprem no processo de acumulação, em diferentes momentos da produção e reprodução do capital social – o que dá, objetivamente, a cada um desses conjuntos, internamente, uma forte unidade de interesses. Externamente, esses distintos lugares e funções de cada um dos conjuntos de capitais os colocam, potencialmente, em conflito entre si, apesar da condição geral de serem todos capitais e, por isso, possuírem o mesmo interesse na exploração do trabalho e a mesma lógica de caráter mais geral. Na prática existem, pelo menos, quatro modos – não necessariamente excludentes - de se identificar, caracterizar e distinguir as diversas frações do capital, quais sejam: 1- A distinção clássica a partir da oposição entre produção e circulação, que identifica, de um lado, diferentes formas de capital produtivo (agrário e industrial) e, de outro, distintas formas que podem ser assumidas pelo capital dinheiro (bancário e comercial). 2- A distinção pela origem ou procedência do capital: nacional, estrangeiro ou associado. 3- A distinção pelo tamanho do capital: grande, médio e pequeno. 4- E, por fim, a distinção pelo lugar de realização dos lucros: o mercado interno, o mercado externo ou ambos os mercados. 5 torno do projeto neoliberal - com idas e vindas, contradições e disputas internas -, em virtude do temor das mesmas de perderem o controle político da sociedade. Durante a crise da década de 1980, pelo menos até a implementação e o fracasso do Plano Cruzado (1986/87), predominava entre as distintas frações de classes do bloco dominante7 a tentativa de redefinir/atualizar/reformar o MSI, mantendo-se ainda um papel fundamental para o Estado no processo de acumulação e desenvolvimento - apesar das críticas à estatização, que haviam surgido já na década anterior (campanha, em 1974, contra o gigantismo do Estado e pela redução de sua participação na economia, principalmente nos setores de transporte, mineração e siderurgia) (Bianchi, 2004). Havia, então, um eixo unificador entre os empresários e os economistas acadêmicos de oposição (heterodoxos), críticos da política econômica ortodoxa recessiva do início dos anos 1980: era a defesa de um projeto neodesenvolvimentista como resposta à crise do MSI, que ainda reservava ao Estado as funções de planejamento e implementação de investimentos estratégicos. Esse projeto se expressava no seguinte programa: “... reforma do sistema financeiro, subordinando-o ao financiamento do desenvolvimento; controle público das empresas estatais, ‘preservando a capacidade produtiva dos setores estratégicos fundamentais (insumos básicos, energia, petroquímica, mineração e telecomunicações), cujo desempenho eficiente é fundamental para expansão do parque industrial brasileiro’ e fechando as estatais deficitárias; uma política industrial que privilegiasse os setores capazes de irradiar novas tecnologias e permitisse avançar no processo de substituição de importações; uma política de investimentos estatais que 7 Conceitualmente, o bloco dominante na sociedade é composto, em cada conjuntura, por distintas classes e frações de classes, assumindo uma delas a posição de liderança e hegemonia no seu interior, que se caracteriza pela capacidade de unificar e dirigir, política e ideologicamente, as demais a partir de seus interesses específicos, transformados e reconhecidos como parte dos interesses gerais do conjunto do bloco. Todavia, as distintas frações da burguesia, por sua vez, não podem ser deduzidas direta, e exclusivamente, do movimento do capital, isto é, a partir das distintas frações do capital, por duas razões: 1- as relações políticoideológicas existentes são também decisivas na conformação das classes e de suas frações; e 2- distintas frações do capital podem ser unificadas sob um mesmo domínio e comando (direção), através da constituição de uma propriedade comum de diversos tipos de capital – o que dará origem a uma fração de classe complexa, cujos interesses estarão presentes em distintos lugares do processo de acumulação. O exemplo mais óbvio disso é, desde sempre, a burguesia agrária brasileira que, em geral, é, ao mesmo tempo, proprietária fundiária e proprietária do capital investido na produção agropecuária e, algumas vezes, do estabelecimento industrial acoplado à produção agrícola. Exemplo mais recentemente é o dos chamados grupos econômicos, que atuam nas mais diversas esferas da atividade econômica - ultrapassando/apagando as fronteiras e as distinções entre os diversos lugares/funções possíveis no processo de acumulação a partir da unificação/integração de unidades de negócio, relativamente autônomas, sob o comando e propriedade de um único poder central que toma as decisões acerca do conjunto de interesses do grupo, constituindo-se, assim, num único bloco de capital. No presente momento histórico, a tendência é de que a lógica financeira articule e dirija o conjunto dos interesses desses grupos; mesmo quando não tenham, como negócio principal, a atividade bancária. 6 maximizasse a geração de empregos; e ‘uma nova atitude na renegociação da dívida externa’” (Documento dos Doze de 1983, Diniz et alli apud Bianchi, op. cit., p.190). Com o fracasso do Plano Cruzado – bem como dos demais planos que se seguiram na segunda metade da década de 19808 -, e ao longo dos embates travados na Assembléia Constituinte (1986-1988), o projeto neoliberal foi se desenhando e se fortalecendo – passando do campo meramente doutrinário para se constituir em um programa político -, com a formação de uma percepção, entre as diversas frações do capital, de que a crise tinha um caráter estrutural e, portanto, que o MSI havia se esgotado e que o projeto neodesenvolvimentista era incapaz de responder aos problemas por ela colocados (Bianchi, op. cit). Desse modo, nos anos 1990, o liberalismo, “... que já havia adentrado na maior parte da América Latina, implanta-se no Brasil com toda força, a partir do Governo Collor. O discurso liberal radical, combinado com a abertura da economia e o processo de privatizações inaugura o que poderíamos chamar da ‘Era Liberal’ no Brasil. Até então, apesar da existência de algumas iniciativas nesse sentido, durante o Governo Sarney, e de uma já forte massificação e propaganda dessa doutrina nos meios de comunicação de massa, havia uma forte resistência à mesma, calcada principalmente, na ascensão política, durante toda a década de 80, dos movimentos socais e do movimento sindical. A Constituição de 1988, apesar de seus vários equívocos, foi a expressão maior dessa repulsa da sociedade brasileira9; por isso mesmo, ela foi alvo privilegiado tanto do Governo Collor quanto do Governo Cardoso, que recolocou, mais tarde, o projeto liberal nos trilhos.” (Filgueiras, 2000a, p. 83-84) Esse processo, que culminou com a afirmação do projeto político neoliberal e a construção de um novo modelo econômico, redefiniu as relações políticas entre as classes e frações de classes que constituíam a sociedade brasileira. A vitória desse projeto expressou, 8 Os planos de estabilização que se seguiram ao Plano Cruzado – Plano Bresser (1987) e Plano Verão (1989) , com algumas variações, seguiram o mesmo caminho, ou seja: eram planos estritamente de estabilização, apoiados na concepção de inflação inercial e que adotaram a mesma estratégia de combate à inflação congelamento de preços com mudança da moeda. Por razões econômicas e descrédito político, os seus resultados foram ainda mais pífios que os do Plano Cruzado (Filgueiras, 2000a). 9 “Em vez de se incorporar ao espírito da contra-revolução conservadora, a sociedade brasileira trilhou uma trajetória de reestruturação orientada pela esperança de construção de um Estado de bem-estar social no país. Assim, ela coroou o período de democratização com uma nova Constituição Nacional que definiu um ordenamento legal com o objetivo de promover um desenvolvimento econômico interno com desenvolvimento social” (Dedecca, 2005, p. 103). Em oposição, o discurso neoliberal “... associava a crise ao sistema de proteção econômica e social existente. Desregulamentação e flexibilização constituíam os fundamentos da proposta, consideradas como os instrumentos decisivos para resolver os problemas econômicos e sociais mais complexos” (op. cit, p. 104) 7 ao mesmo tempo em que estimulou, um processo de transnacionalização dos grandes grupos econômicos nacionais e seu fortalecimento no interior do bloco dominante, além de exprimir, também, a fragilidade financeira do Estado e a subordinação crescente da economia brasileira aos fluxos internacionais de capitais. Em particular, re-configurou o bloco dominante e a sua fração de classe hegemônica10, com destaque para a consolidação dos grandes grupos econômicos nacionais, produtivos e financeiros. Assim, nessa nova configuração, faz parte da fração hegemônica do bloco dominante: o capital financeiro11 internacional - expresso na movimentação dos fundos de pensão, dos fundos mútuos de investimentos e dos grandes bancos dos países desenvolvidos -; os grandes grupos econômico-financeiros nacionais12, que conseguiram sobreviver, até aqui, ao processo de globalização, em função de sua capacidade competitiva ou através da associação (subordinada) com capitais estrangeiros; e o capital produtivo 10 Na formulação gramsciana, a classe ou fração de classe hegemônica é aquela que ocupa/exerce o lugar/função mais estratégico(a) e decisivo(a) no modo de acumulação num determinado período histórico e, a partir de seus interesses específicos – econômicos e políticos -, consegue soldar organicamente (compatibilizar) os interesses das demais frações do capital, de forma que a sua dominação é aceita (consentida) por estas últimas. Quando a fração de classe hegemônica consegue também expressar e articular os interesses das frações de classes subalternas, essa hegemonia se estabelece sobre o conjunto da sociedade, obtendo-se, assim, um consenso. Segundo Gramsci, quando isso ocorre, o grupo social hegemônico afirma sua capacidade de liderança e direção política, intelectual e moral. Como se verá adiante, uma das dificuldades do projeto neoliberal, sob o comando do capital financeiro, está, justamente, na incapacidade de transformar sua dominação em hegemonia, isto é, de construir um consenso para além do bloco dominante, incorporando os grupos sociais subalternos da sociedade. 11 O conceito de capital financeiro possui duas versões clássicas. A de Hilferding (1985), formulada em 1910 a partir da realidade alemã e situada no campo marxista, afirma que esse capital é produto da fusão/integração (aliança orgânica) entre o capital bancário e o capital industrial, com a dominação do primeiro; ele é a expressão maior da fase monopolista e imperialista do capitalismo, que se iniciou no último quarto do século XIX. A outra concepção, de viés heterodoxo, elaborada em 1906 e referenciada na realidade inglesa, é a de Hobson (1983); nela, o capital financeiro surge a partir da constituição de uma solidariedade de interesses financeiros da comunidade de negócios, que articula o capital industrial e o capital bancário, sem, contudo, haver, necessariamente, uma fusão/integração orgânica. Essa teorização, embora mais ampla que a anterior, também define uma dominação geral (não orgânica) do capital bancário. Para uma discussão sobre o Brasil, acerca dessa questão, ver Guerra (1999) e Gonçalves (1999, 1991a, 1991b). No presente texto, a noção adotada, de capital financeiro, é mais geral do que as duas mencionadas anteriormente; refere-se à fração do capital que se reproduz, fundamentalmente, ou principalmente, na esfera financeira, no âmbito da acumulação fictícia, podendo assumir várias formas institucionais - não excluindo, portanto, as duas possibilidades anteriores. 12 Esses grandes grupos econômico-financeiros nacionais além de atuarem diretamente na esfera financeira, se fazem presentes também em outras esferas (atividades econômicas) da acumulação: agricultura, indústria, comércio e serviços; embora possam estar mais focados em alguma delas em particular – o que depende muito da origem inicial das atividades do grupo e do seu poder de diversificação. Quando necessário, internacionalizaram-se, associando-se e fundindo-se com capitais estrangeiros, em uma ou mais atividades do grupo; e transnacionalizaram-se, expandindo suas atividades para outros países. Os seus lucros são realizados tanto no mercado interno quanto no externo (exportação). 8 multinacional (associado ou não ao capital nacional); todos eles tendo aumentado suas respectivas influências no bloco dominante. As demais frações do bloco dominante, situadas numa posição subordinada, são os grandes grupos econômicos, não financeirizados organicamente, e os grandes e médios capitais que têm uma maior “especialização” no processo de acumulação: agronegócio, indústria, comércio ou serviços, estando voltados para o mercado externo e/ou interno. Aqui é importante distinguir entre a lógica financeira - que se constitui na lógica mais geral do capital, desde sempre, e que caracteriza a atual fase do desenvolvimento capitalista em escala nacional e internacional, imprimindo, de forma dominante, a dinâmica do modo de produção e influenciando as mais diversas esferas das sociedades e dimensões da vida social – das formas institucionais assumidas pelo capital financeiro, que definem os sujeitos que comandam concretamente esse processo, articulando os mais diversos interesses, a partir do domínio, controle e propriedade de instituições financeiras. Desse modo, embora todos os grupos econômicos e as frações do capital estejam, hoje, financeirizados – no sentido de estarem subordinados à lógica financeira e aplicarem seus excedentes no mercado financeiro, em particular nos títulos da dívida pública -, apenas aqueles que se articulam organicamente com a esfera financeira, através do controle e propriedade de uma ou mais instituições financeiras, são os sujeitos fundamentais dessa lógica, que subordina inclusive o Estado, a política econômica e social e a ação política em geral. Assim, apesar da maioria dos grandes grupos econômicos, no Brasil, não estar ligada, organicamente, ao capital financeiro – através de um banco ou outro tipo de instituição financeira de propriedade do grupo -, esses grupos também se beneficiam da especulação e do financiamento da dívida pública, ganhando também com as elevadas taxas de juros. Adicionalmente, o projeto neoliberal e a sua política têm como importante aliado a classe média alta: “novos ricos” que rejeitam qualquer coisa parecida com um Estado de Bem-Estar Social, do qual não se beneficiariam - pois ajudariam a financiá-lo com impostos, mas não fariam uso de seus serviços (Boito, op. cit.). Esse segmento é formado “... por executivos de empresas, certos segmentos de profissionais liberais, a alta burocracia governamental, uma nova intelectualidade identificada com os valores e hábitos forâneos e um pequeno grupo de consultores e trabalhadores autônomos altamente qualificados, ocupados em atividades econômicas recém surgidas e típicas dos novos paradigmas tecnológicos. Um segmento social que se beneficiou com a ‘farra das 9 importações’ e também com as altas taxas de juros e que, ao descobrir os padrões de consumo próprios dos países desenvolvidos, e a ele ter acesso, se deslumbrou e se sentiu incluído no primeiro mundo” (Filgueiras, 2002a) Por fim, pode-se afirmar que o projeto neoliberal, embora não contemple organicamente os interesses das classes trabalhadoras, o seu discurso doutrinário tem se afirmado de forma ampla na sociedade - conseguindo apoio/concordância para a sua pregação privatizante, em especial contra os “gastos excessivos” do Estado e os “privilégios” dos funcionários públicos -, evidenciando, assim, um novo domínio ideológico da burguesia no Brasil (Boito, op. cit). A demora do projeto neoliberal se impor, no interior das classes dominantes, se deveu à complexidade da estrutura produtiva do país; nesse âmbito, a contradição fundamental se referia, sobretudo, ao processo de abertura comercial - que atingia de forma bastante diferenciada os diversos ramos de produção industrial e agro-industrial -; em particular a disputa se dava em torno do ritmo e amplitude que a abertura deveria assumir. Essa contradição se expressou, conjunturalmente, na seguinte disjuntiva: a abertura deveria ser utilizada como instrumento de combate à inflação (como de fato ocorreu) ou, alternativamente, deveria se constituir, através de uma política industrial ativa, num instrumento de modernização e aumento da competitividade da estrutura produtiva do país (como pleiteava, majoritariamente, o empresariado industrial). A abertura comercial e financeira – demandada pelos capitais financeiros nacionais e internacionais e por grupos vinculados à exportação/importação de bens e serviços -, juntamente com a reestruturação do Estado, foi fundamental na redefinição das relações estabelecidas pelas diversas frações do capital, entre si e com as classes trabalhadoras e o Estado, implicando o fortalecimento dos capitais internacionais e dos grandes grupos nacionais - que conseguiram se transnacionalizar e se financeirizar organicamente. Esse processo, de implantação e evolução do projeto neoliberal, passou por, pelo menos, três momentos distintos, desde o início da década de 1990, quais sejam: uma fase inicial, bastante turbulenta, de ruptura com o MSI e implantação das primeiras ações concretas de natureza neoliberal (Governo Collor); uma fase de ampliação e consolidação da nova ordem econômico-social neoliberal (1o Governo FHC); e, por último, uma fase de aperfeiçoamento e ajuste do novo modelo, na qual amplia-se e consolida-se a hegemonia do capital financeiro no interior do bloco dominante (2o Governo FHC e Governo Lula). 10 3- As Distintas Fases do Projeto Neoliberal no Brasil - 1a Fase: Ruptura com o MSI e Início da Implementação do Projeto Governo Collor/Itamar (1990/1994) No início dos anos noventa, com o Governo Collor “... o modelo liberal e suas políticas se instalaram, como não poderia deixar de ser, com o apoio e a chancela da burguesia financeira nacional e internacional, conhecida do grande público pelo apelido acéptico de ‘os mercados’, expressão-fetiche que dá uma idéia de algo (entidade) sobrenatural e onipresente, que não pode e nem deve ser contrariado. Também decisivos foram o apoio e o monitoramento das instituições internacionais multilaterais, com especial destaque para o FMI, o Banco Mundial e a OMC. Quem ainda tiver dúvidas sobre o papel e a função desses organismos, bem como sobre a influência decisiva do governo dos Estados Unidos na difusão do modelo liberal mundo afora, pode ler Stiglitz (2003), Prêmio Nobel de Economia em 2001 e que chefiou a equipe de assessores econômicos do ex-presidente americano Bill Clinton e, posteriormente, foi vice-presidente do Banco Mundial” (Filgueiras, 2002a). A razão fundamental de o projeto neoliberal ter conseguido ampliar sua aceitação e adesão se deveu ao fato de que, no final dos anos 1980, “... tanto as políticas de cunho ortodoxo quanto as de caráter heterodoxo demonstraramse ineficazes no combate à inflação em razão de uma série de fatores objetivos e subjetivos, com especial destaque para as condições internacionais extremamente adversas. Foi nesse ambiente de desânimo e descrença, de persistência da estagnação econômica e beirando-se a hiperinflação que, no final da década, as idéias neoliberais e suas políticas encontraram campo para se desenvolver e, com as eleições de 1989, alcançar o poder no Brasil” (Filgueiras, 2000a, p. 83). No entanto, a implementação/construção do projeto neoliberal no Brasil (constituindo o que poderia se chamar de Modelo Neoliberal Periférico) não foi um bigbang a partir do Governo Collor; ao contrário, foi um projeto construído ao longo dos anos 1980 e 1990, resultado de um processo de intensas disputas entre as várias frações do capital e delas com as classes trabalhadoras, a partir da necessidade de se enfrentar, e superar, a crise estrutural do MSI, (Bianchi, op. cit.). Essa crise, que se explicita no início dos anos 80, com a ruptura do padrão de financiamento - em razão da chamada crise da dívida externa e, posteriormente, da fragilização financeira do Estado (Filgueiras, 2001) – é uma crise orgânica (conforme Gramsci), pois, além de afetar o conjunto das relações sociais, é também uma crise de 11 acumulação de capital, com o acirramento das disputas entre as classes e, no interior delas, entre as suas frações – em suma, a combinação de uma crise econômica com uma crise política, cuja resposta à mesma levou à disputa das várias frações do capital e à explicitação e confronto de distintos projetos, isto é, a busca e disputa por uma nova hegemonia burguesa (Bianchi, op. cit.). Apoiado desde logo pelo capital financeiro estrito senso (bancos e demais instituições financeiras), os capitais multinacionais, os grandes grupos e empresas nacionais com fortes vínculos internacionais e, em grande medida, pelo capital comercial, o projeto neoliberal foi, aos poucos, introjetado, em um ritmo diferenciado, pelo conjunto das burguesias industrial e agrária. A ascensão de Collor marcou o início da fase decisiva que levaria à vitória do projeto neoliberal no interior das classes dominantes. Produto de uma aguda crise de hegemonia, no conjunto da sociedade e mesmo no interior do bloco dominante, num momento de forte presença política das classes trabalhadoras, o Governo Collor – cujo programa contou, àquela altura, com a concordância da maioria das diversas frações do capital - foi a solução possível (bonapartista), momentânea, para essas distintas frações no seu embate contra a esquerda e as classes trabalhadoras (NEC, 1991; Oliveira, 1990). Apesar disso, e do fato do MSI, naquele momento, já estar desacreditado para as diversas frações do capital, o projeto neoliberal ainda continuava a ser uma grande interrogação. Configurava-se, então, uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, na qual o “velho” não tinha mais possibilidade de continuar existindo e o “novo” não podia ainda nascer. O programa apresentado, consubstanciado no chamado Plano Collor, pela primeira vez não se resumia – quando comparado aos outros planos de estabilização heterodoxos -, simplesmente ao combate à inflação; era um programa de reformas estruturais do Estado e das relações deste com o setor privado e do capital com o trabalho, nos moldes da doutrina neoliberal: privatização, abertura comercial e financeira e ataque aos direitos sociais e trabalhistas – com a desregulamentação e flexibilização do mercado de trabalho e das relações trabalhistas (Filgueiras, 2000a). Utilizando-se da sua condição bonapartista, Collor atuou politicamente de forma extremamente autoritária, iniciando a implementação do programa neoliberal sem, 12 praticamente, consultar as várias frações do capital, e fazendo uso sistemático – que depois se tornou norma – de medidas provisórias. Esse comportamento foi possibilitado pela “... gravidade da crise econômica, com o país à beira da hiperinflação e a população esgotada com as sucessivas experiências heterodoxas; bem como, nas eleições de 1989, o confronto radicalizado de dois projetos políticos, para o país, diametralmente opostos. Nessas circunstâncias, o total e incondicional apoio das elites à Collor, a partir do segundo turno das eleições, permaneceu firme durante uma boa parte de seu governo.” (Filgueiras, op. cit., 85) Assim, a vitória e implementação do projeto neoliberal não resultaram do “livre e natural funcionamento dos mercados”; muito pelo contrário, foram produtos do embate entre as distintas frações do capital - e destas com as classes trabalhadoras – e de um ato de força protagonizado pelo Estado, através de uma intervenção política e econômica sistemática, com base em medidas legais e instrumentos coercitivos, quando necessários (Bianchi, op. cit.). Embora bem sucedido em iniciar a implementação do projeto neoliberal - com a privatização de 18 empresas públicas, a efetivação de uma primeira rodada de liberalização do comércio exterior e, o que é principal, conseguindo colocar na defensiva os movimentos sociais e o movimento sindical; motivo maior do apoio indiscriminado da burguesia a sua candidatura no 2º turno das eleições de 1989 -, o Governo Collor, aos poucos, foi perdendo o apoio das classes dominantes. Para isso, foi fatal o fracasso de sua estratégia de estabilização dos preços – que desembocou numa recessão econômica brutal, com a redução do PIB em 4% em 1990 e taxas de desemprego recordes, que praticamente dobraram entre 1989 e 1992. Some-se a isso, a sua incapacidade (congênita) em arbitrar os distintos interesses das diversas frações do capital. Assim, quando surgiu a crise política detonada por denúncias (comprovadas) de corrupção generalizada, com a retomada dos movimentos sociais, derrotados na eleição de 1989, e as manifestações políticas de massa exigindo o impeachment, o isolamento político do governo na sociedade foi quase que total – o que levou ao seu término de forma precoce: “Para além das questões morais que apareceram em primeira instância, do insucesso do Plano e do retorno das altas taxas de inflação, o fracasso do Governo Collor e de seu bonapartismo, decorreu de causas políticas e interesses materiais mais profundos Primeiramente, naquele momento, o discurso e a prática neoliberais dividiam as elites e, em particular, o empresariado – ainda bastante marcado pela cultura prevalecente no 13 ‘modelo de substituição de importações’. Não havia se formado, ainda, o consenso que se verificaria mais tarde na eleição e no Governo de Fernando Henrique Cardoso; nessa medida, houve um adiamento momentâneo do projeto, que seria retomado posteriormente. Em segundo lugar, o país já possuía, apesar de tudo, uma ordem democrática formal, com instituições do Estado de Direito funcionando, que se constituíram em instrumentos fundamentais de canalização das insatisfações e questionamento do autoritarismo. E, por fim, a suposta base social de Collor, os ‘descamisados', era totalmente frágil e inorgânica, não se verificando, assim, qualquer tipo de apoio popular mais significativo durante o processo de sua destituição.” (Filgueiras, op. cit., 86). Com a deposição de Collor, a implementação do projeto neoliberal não sofreu interrupção, apesar de ter tido uma significativa redução no seu ritmo - o que demonstra que a sua implementação não foi, simplesmente, produto do voluntarismo de Collor e da vontade de seus tecnocratas; o programa econômico de seu governo – de reformas privatizantes e abertura comercial e financeira - já tinha, naquele momento, uma ampla aceitação no interior das classes dominantes. Enfim, naquele momento (1990/4), a hegemonia restrita do projeto neoliberal - no interior do bloco dominante - estava em franca expansão e afirmação; o que possibilitou a eleição de Fernando Henrique Cardoso: caminho necessário para derrotar, de novo, a esquerda e as classes trabalhadoras; mas, desta vez, através de uma candidatura com total apoio das diversas frações da burguesia, além de segmentos da classe média e da intelectualidade. - 2a Fase: A Consolidação do Projeto Neoliberal Primeiro Governo FHC (1995-1998) Os Governos FHC, em dois momentos distintos, soldaram as diversas frações do capital, através da implantação negociada (arbitrada) do projeto neoliberal sob a hegemonia (restrita) e a lógica do capital financeiro. No primeiro governo, com a implementação do Plano Real (Filgueiras, 2000a e 2003a), a lógica de valorização e a política econômica do capital financeiro se impuseram de forma cabal – com a estabilização monetária apoiada na valorização cambial e em taxas de juros elevadas, acompanhadas de desregulamentação e abertura comercial e financeira, privatização e desregulação do mercado de trabalho –, 14 dando continuidade ao programa de Collor, apesar, ainda, da existência de atritos entre as diversas frações do capital e a resistência de segmentos de trabalhadores organizados13. Com relação às distintas frações do capital e sua posição frente ao programa neoliberal, houve, e há um consenso, entre elas, no que concerne à necessidade de desregulação do mercado de trabalho e das relações trabalhistas; o mesmo podendo se dizer da política de privatizações, apesar desta beneficiar apenas os grandes capitais financeiros e os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros. As privatizações e a desregulamentação do mercado de trabalho funcionaram, e ainda funcionam, como uma espécie de compensação - para os setores mais atingidos pela abertura comercial e financeira, pelo câmbio valorizado e pela taxa de juros elevada - (Boito, op. cit; Bianchi, op. cit.). Já a abertura comercial e financeira, acompanhada por taxas de juros elevadas - em momentos de crises cambiais, a taxa de juros básica chegou a atingir quase 50% - e câmbio valorizado, foi, e continua sendo - ainda que em menor grau -, motivo de atritos, pois atinge de forma diferenciada os diversos segmentos produtivos, acarretando concentração, fusões e centralização de capitais, desnacionalização e desestruturação de cadeias produtivas (Gonçalves, 1999b e 1999c; Carneiro, 2003); enfim, tem implicado em ganhadores e perdedores. Daí a reiterada presença, nas diversas conjunturas, de pressões por medidas de proteção e defesa de determinados setores industriais. A estratégia seguida pelo primeiro Governo de FHC (1994-1998) – expressão do domínio absoluto dos interesses do capital financeiro -, ao ter conseguido controlar a inflação – que caiu, pelo IGP, de 2.406%, em 1994, para 1,7% em 1998 - e obter êxito no aprofundamento e consolidação do projeto neoliberal, deixou, como contrapartida, uma enorme vulnerabilidade externa, acompanhada por uma crescente fragilização financeira do setor público. Ao final desse primeiro Governo, o déficit da balança comercial acumulado (1994/1998) chegou a atingir US$ 23,7 bilhões, enquanto o déficit acumulado em transações correntes, no mesmo período, atingiu US$ 110 bilhões. Considerando-se apenas o ano de 1998, este último déficit foi de U$ 33,6 bilhões, correspondendo a 4,5% do PIB, quando em 1994 o mesmo era de apenas US$ 1,8 bilhão. Essa situação insustentável 13 A importância do Plano Real na vitória de FHC - logo no 1o turno das eleições de 1994 -, bem como na consolidação do projeto neoliberal, está discutida em Filgueiras (1994). 15 desembocou na desvalorização cambial de 1999, a partir da qual esses déficits iriam, então, se reduzir ano a ano. A vulnerabilidade externa e a fragilização financeira do setor público se expressaram na grande elevação das dívidas interna e externa – do setor privado e do setor público. Apesar do amplo processo de privatização realizado, que obteve em torno de US$ 88 bilhões, a dívida externa cresceu de US$ 148 bilhões, em 1994, para US$ 235 bilhões em 1998; enquanto a dívida pública, no mesmo período, aumentou de R$ 153 bilhões (30% do PIB) para R$ 388 bilhões (41,7% do PIB) (Filgueiras, 2000a). Em quatro anos desse governo, o país sofreu três crises cambiais (1995, 1997 e 1998), com ataques especulativos contra o real e fuga de capitais (Filgueiras, 1995 e 2000b). Isso se refletiu em flutuações de curto prazo, com reflexos nas taxas de crescimento do PIB, que além de muito pequenas, foram se reduzindo, chegando a ser negativa (-0,12%) em 1998, já na ante-sala da crise cambial de 1999. As conseqüências para as classes trabalhadoras foram dramáticas: elevação das taxas de desemprego (de 14,3% para 18,3% na RMSP, segundo a PED do SEADE/DIEESE), queda do rendimento médio real, precarização dos postos de trabalho e insegurança generalizada (Filgueiras, 2000a). Em resumo, as políticas econômico-sociais implementadas, que operacionalizaram “... o projeto liberal desde o início dos anos noventa pelo Governo Collor - e que foi aprofundado e aperfeiçoado no 1 o Governo FHC -, resultou no aumento da dependência externa do país e no crescimento acelerado da dívida pública; na desnacionalização da estrutura produtiva e financeira; em taxas de crescimento diminutas, as menores da história econômica do Brasil; na precarização violenta do mercado de trabalho - com a elevação das taxas de desemprego e subemprego para níveis nunca antes atingidos, a ampliação da informalidade e a redução dos rendimentos reais dos trabalhadores -; na manutenção do elevado grau de concentração da renda pessoal historicamente existente no país, além da redução da participação dos salários na renda nacional; na crise de energia e no aumento das tarifas públicas; e, por fim, na ampliação da pobreza e da insegurança em todos os âmbitos da vida social.”. (Filgueiras, 2002a) - 3a Fase: Aperfeiçoamento e Ajuste no Projeto Neoliberal Segundo Governo FHC (1999-2002) No segundo governo FHC, com a quarta crise cambial e, dessa vez, com a desvalorização do real (com o dólar passando de R$ 1,21 para mais de R$ 2, com uma 16 desvalorização de 41% ao final do mês de fevereiro) , ocorrida logo no seu início (janeiro de 1999), as exportações brasileiras voltaram, gradativamente, a ser competitivas (com a obtenção de superávit na balança comercial já a partir de 2001) – além da produção local conseguir uma maior proteção contra as importações. Isto possibilitou uma soldagem mais orgânica do bloco dominante, com a incorporação mais efetiva dos grandes e médios capitais14, industrial e agrário, ao circuito da acumulação financeira, através da função essencial de provedores de divisas – condição fundamental para garantir a remuneração do capital financeiro nacional e internacional e minimizar os impactos das recorrentes crises financeiras e cambiais, quando então se explicita e reitera-se o estrangulamento externo (Boito, op. cit.). As crises cambiais do México (1994), dos países asiáticos (1997), da Rússia (1998), do Brasil (1999), da Argentina (2001) e novamente do Brasil (2002) evidenciaram, de forma cabal, uma característica marcante e estrutural do modelo neoliberal periférico, qual seja: a sua instabilidade congênita, que pode ser minorada, mas não superada. Na sua forma mais “pura”, com predomínio absoluto do capital financeiro, só pode se manter nos diversos países da América Latina – ainda assim com reiteradas crises arrasadoras – enquanto os fluxos de capitais internacionais eram abundantes e enquanto durou o ciclo de privatizações das empresas públicas na região (Filgueiras; 2003a). Com o câmbio flutuante e, portanto, o fim da “âncora cambial”, a política econômica incorporou dois novos elementos, fundamentais, para manutenção dos interesses e a hegemonia do capital financeiro no interior do bloco dominante, bem como para a redução da instabilidade macroeconômica, quais sejam: as metas de inflação e a obtenção de elevados superávits fiscais primários. Desse modo, a nova política econômica, contemplando o “capital produtivo” - em particular os grandes grupos econômicos exportadores -, mas mantendo a hegemonia do capital financeiro, passou a articular, de forma mais orgânica, os interesses das distintas frações do capital. 14 Dados da FUNCEX (Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior) mostram para o ano de 2001, uma grande concentração das exportações brasileiras nas grandes e médias empresas. De um total de 16.821 empresas exportadoras, 1.142 (6,8%) eram consideradas grandes, mas respondiam por quase 70% do valor exportado; enquanto somente 3.294 (19,6% do total) eram consideradas médias e respondiam por quase 27% do total do valor das exportações. Portanto, 26,4% do total de empresas exportadoras eram responsáveis por quase 90% das exportações brasileiras naquele ano. 17 Mesmo assim, a definição de metas inflacionárias extremamente reduzidas (8% em 1999, 6% em 2000, 4% em 2001 e 3,5% em 2002), com a conseqüente política de juros elevados, continuou provocando atritos no interior do bloco dominante em razão da redução do crescimento econômico, que prejudica em especial os capitais industriais e agrários voltados para o mercado interno e, eventualmente, também os segmentos exportadores quando ocorre a valorização do câmbio; em que pese o fato, que reduz o grau de atrito, de todas as frações do capital, e mesmo da classe média alta, também ganharem/acumularem na esfera financeira, através da aplicação de seus recursos excedentes em títulos da dívida pública. A expressão política dessas contradições foi a constituição de duas correntes no interior do Governo FHC e que vem se reproduzindo no Governo Lula, quais sejam: uma corrente neoliberal radical, localizada sempre no Ministério da Fazenda e no Banco Central; e outra corrente que se poderia denominar de “neoliberal-desenvolvimentista” localizada nos Ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio; na verdade, essas duas posições vêm se enfrentado desde o início dos anos noventa (Bianchi, op. cit.). Ao final do 2o Governo FHC, já era visível a recuperação da balança comercial: o seu déficit, que atingiu US$ 6,6 bilhões em 1998, reduziu-se para US$ 1,2 bilhão em 1999 e U$ 0,7 bilhão em 2000, transformando-se em superávits de US$ 2,6 bilhões em 2001 e U$ 13,1 bilhões em 2002! A conta de transações correntes, por sua vez, que chegou a ter um déficit de mais de US$ 33 bilhões em 1998, chegou em 2002 com um déficit bem menor, de US$ 7,7 bilhões. Como conseqüência desses movimentos, o déficit comercial acumulado do 1o Governo FHC (US$ 22,4 bilhões), transformou-se num superávit acumulado de US$ 13,9 bilhões, enquanto o déficit acumulado em transações correntes (US$ 110 bilhões) se reduziu para US$ 80 bilhões – com reflexos sobre a dívida externa, que se reduziu de R$ 230 bilhões para US$ 210 bilhões. Em contrapartida, cresceram as remessas de juros e lucros e dividendos, que passaram de um total acumulado de US$ 47,4 bilhões (1o Governo FHC) para US$ 75,1 bilhões (2o Governo FHC) – variação esta quase toda associada ao crescimento do montante de juros remetidos. A dívida pública, no entanto, apesar da aprovação da chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal” e da obtenção de elevados superávits fiscais primários (R$ 165,4 18 bilhões acumulados), chegou a R$ 881 bilhões, passando de 41,7% do PIB em 1998 para 56,5% ao final de 2002. Duas grandes desvalorizações cambiais, uma em 1999 e outra em 2002, juntamente com as elevadas taxas de juros praticadas pelo Banco Central, foram as responsáveis pelo crescimento da dívida pública nesse período. As taxas de crescimento do PIB e do PIB per-capta foram mais reduzidas ainda, quando comparadas com as do 1o Governo; com exceção do ano 2000, nos outros três anos essas taxas ficaram abaixo de 1,5% em cada um deles. Com isso, as taxas de desemprego continuaram a crescer, chegando a mais de 19% na Região Metropolitana de São Paulo. A consolidação da hegemonia, no interior do bloco dominante, do capital financeiro internacional e dos grandes grupos econômico-financeiros, não conseguiu se estender para o conjunto da sociedade, apesar do ajuste sofrido pelo projeto neoliberal - por absoluta dificuldade de incorporação econômico-social dos segmentos mais expressivos das classes trabalhadoras. Apesar disso, como se verá a seguir, tem conseguido estender uma ponte para os segmentos mais pobres e desorganizados da população - que mais sofrem com a elevação dos preços -, através da adoção de uma política antiinflacionária extremada e da implementação de políticas sociais focalizadas (compensatórias); nesse aspecto específico o capital financeiro e exportador vem conseguindo passar, com relativo sucesso, os seus interesses particulares como interesse geral de toda a sociedade. Governo Lula (2003-2005) O Governo Lula vem dando prosseguimento à política econômica implementada pelo 2o Governo FHC, a partir da crise cambial de janeiro de 1999. Já no processo eleitoral, a composição política que deu a vitória a Lula, trabalhou as contradições de dentro do bloco dominante, fazendo a crítica ao capital financeiro e defendendo vigorosamente o capital produtivo, inclusive dando expressão política e visibilidade a este último com a presença de um grande industrial na posição de candidato a vice-presidente15. Entretanto, uma vez no governo, Lula e a aliança política (ampliada) que o elegeu – adaptando as suas ações, o seu programa e a sua política aos limites da disputa das diversas frações do capital -, mantiveram em primeiro plano os interesses e a política econômica do capital financeiro (Filgueiras, 2003a), mas, na mesma linha do segundo Governo FHC, 15 A ênfase no capital produtivo também foi a estratégia adotada pelo candidato apoiado pelo Governo FHC, não havendo aí nenhuma diferença entre as diversas candidaturas, tanto no primeiro quanto no segundo turno das eleições. 19 acenou também para a importância das exportações na articulação de um modelo “neoliberal-desenvolvimentista”. Nessa direção, combinou uma política econômica (fiscal, monetária e cambial) ortodoxo-neoliberal com uma política comercial externa mais agressiva. Nos primeiros dois anos do Governo Lula os superávits da balança comercial cresceram rapidamente, dando saltos impressionantes (U$ 24,8 bilhões em 2003 e U$ 33,7 bilhões em 2004) – empurrados pela nova desvalorização cambial de 2002, o crescimento das economias americana e chinesa, que puxaram o comércio mundial, a recuperação da Argentina e a disparada dos preços das commodities. Com isso, os déficits em transações correntes, que já vinham se reduzindo desde o 2o Governo FHC, transformaram-se em superávits. Esse excepcional desempenho das exportações – com seus efeitos multiplicadores para o mercado interno – não foi suficiente para evitar a estagnação do PIB (0,5%) e a queda do PIB per-capta (1,4%) no primeiro ano do Governo Lula. Isso ocorreu em virtude da radicalização da política econômica, que já vinha sendo adotada desde o 2o Governo FHC, através da elevação das taxas de juros e da adoção de um maior superávit fiscal primário. No ano seguinte (2004), com novo salto nas exportações e no saldo da balança comercial, e redução das taxas de juros, o PIB voltou a crescer (4,9%). Entretanto, em 2004, todos os países da América Latina, com exceção do Haiti, cresceram, empurrados, em menor ou maior grau, pelo aumento das exportações; tendo o Brasil uma das menores taxas de crescimento da região. Portanto, é importante destacar, que esse movimento de transformação de déficits em superávits nas balanças comerciais dos países latinoamericanos e, mais recentemente, a obtenção de taxas de crescimento maiores, é um fenômeno geral dos chamados “países emergentes”. Adicionalmente, o Governo Lula recolocou na ordem do dia a continuação das reformas neoliberais - implementando uma reforma da previdência dos servidores públicos (Filgueiras, 2003b; Filgueiras e Lobo, 2003) e sinalizando para uma reforma sindical e das leis trabalhistas -; além de alterar a Constituição para facilitar o encaminhamento, posterior, da proposta de independência do banco Central, e dar seqüência a uma nova fase das privatizações, com a aprovação das chamadas parcerias público-privado (PPP), no intuito de melhorar a infra-estrutura do país – uma vez que a política de superávits primários reduz drasticamente a capacidade de investir do Estado. 20 Por fim, o Governo Lula vem apostando num discurso mais enfático, do que o seu antecessor, com relação às políticas sociais compensatórias - que se resumem à adoção de políticas sociais focalizadas (tipicamente assistencialistas) de combate à pobreza, conforme a concepção do Banco Mundial; na verdade tem consolidado e ampliado os programas sociais focalizados do governo anterior, unificando-os através da criação do programa denominado Bolsa-Família. Desse modo, com o abandono do programa histórico do PT, de caráter socialdemocrata-nacional-popular, e com a manutenção do programa e das políticas neoliberais, o Governo Lula evitou enfrentamentos com o bloco dominante, governando com e para ele. Portanto, nem de longe, está se vivendo uma fase de transição pós-neoliberal, mas sim um ajustamento/consolidação do modelo neoliberal – que, por um lado, tem possibilitado uma maior unidade política do bloco dominante, isto é, tem reduzido o atrito no seu interior e, por outro, tem aprofundado as divergências políticas no interior das classes trabalhadoras (Boito, op. cit.) – em especial no que concerne ao comportamento das direções sindicais e dos movimentos sociais frente à avaliação do governo e de suas políticas econômicosociais. Esse ajustamento do modelo se impôs, como já visto anteriormente, no segundo Governo FHC – a partir de uma desvalorização cambial forçada e a adoção de um regime de câmbio flutuante, além da implementação das políticas de meta de inflação e de obtenção de elevados superávits fiscais primários (sempre acima de 3% do PIB). O Governo Lula vem lhe dando continuação, com a radicalização dos superávits fiscais primários (acima de 4,25% do PIB), ajudado, como se viu, por uma conjuntura internacional bastante favorável nos últimos três anos, tanto do ponto de vista da ampliação do comércio mundial quanto de uma retomada dos fluxos de capitais para os países da periferia16. Na verdade, o Governo Lula vem expressando, num sentido político mais abrangente e não imediato, uma tentativa de constituição de uma hegemonia burguesa com significado amplo, isto é, que além de procurar soldar ainda mais as diversas frações do capital, busca obter o consentimento das classes trabalhadoras para um projeto “social16 Os investimentos estrangeiros nos “países emergentes”, depois de uma drástica redução, entre 1999 e 2001, voltaram a crescer. No Brasil atingiram US$ 10,1 bilhões em 2003 e US$ 18,2 em 2004, de acordo com o Banco Central. O valor é 79% maior que o do ano anterior e também é o maior índice desde 2000. 21 liberal-desenvolvimentista”; mas essa tentativa tem fôlego curto, porque o modo de acumulação não é capaz de contemplar os interesses dos distintos segmentos de trabalhadores, embora no curto prazo dificulte, sobremaneira, a rearticulação e retomada dos movimentos sociais e do movimento sindical, de forma independente e combativa, no sentido da construção de um outro projeto. Em suma, da lógica financeira e da natureza concentradora e excludente do modo de acumulação, resulta a incapacidade/impossibilidade estrutural do projeto neoliberal tornarse hegemônico, isto é, de incorporar, parcialmente, as demandas mais significativas das classes trabalhadoras, em particular dos seus segmentos organizados; restando-lhe articular de forma precária, e marginalmente, uma massa pauperizada e desorganizada, através das políticas sociais focalizadas e de caráter assistencialista. Nesse particular, o neoliberalismo se diferencia do período desenvolvimentista, assim como o seu modelo econômico se distingue do Modelo de Substituição de Importações, para pior. As novas circunstâncias só agravaram a incapacidade hegemônica da burguesia brasileira, associada a sua condição retardatária e periférica; portanto, apenas reafirma, com mais radicalidade, uma característica histórico-estrutural presente desde a sua origem. A natureza passiva da Revolução de 1930 e os seus subseqüentes momentos de modernização pelo alto - o Estado Novo em 1937, as inúmeras tentativas de golpes no pós 2a guerra e, finalmente, o golpe de 1964, com a instalação de uma ditadura militar durante 20 anos – são a expressão cabal dessa incapacidade crônica. Com o neoliberalismo essa incapacidade crônica radicalizou-se, pois diferentemente dos diversos momentos da Revolução Passiva brasileira, o modelo neoliberal não incorpora as demandas das classes subalternas; ao contrário, vem lhe retirando, sistematicamente, conquistas obtidas anteriormente17. 17 “... há processos de transição para a modernidade (ou para o capitalismo, ou mesmo de mudanças em seu interior) que se dão pelo alto, resultando do acordo entre frações das classes dominantes, e que têm como objetivo principal a exclusão de qualquer protagonismo das classes subalternas. São transições que, ao mesmo tempo em que introduzem novidades, conservam muitos elementos da velha ordem: o novo surge na história marcado por uma profunda conciliação com o velho... Uma revolução passiva tem como precondição que as classes dominantes se sintam ameaçadas em seu domínio; são assim levadas a introduzir transformações, incorporando algumas demandas das classes subalternas, com o objetivo de conter o seu potencial revolucionário... em função da total ausência em nossa história de revoluções de tipo jacobino, o Brasil é um país que tem sua formação social marcada por processos de transformação pelo alto, que podem ser caracterizados como revoluções passivas... processos de transformação pelo alto são uma constante na história brasileira. Trata-se de movimentos de revolução passiva, já que todos eles incorporaram algumas demandas 22 Daí a necessidade do Governo Lula de tentar controlar politicamente os movimentos sociais e sindical, através da cooptação – material e ideológica - das suas direções, com o objetivo de reduzir as tensões e impedir a sua autonomia, dificultando, assim, as ações de mobilização e construção de um projeto democrático-popular alternativo ao do bloco dominante. Em toda a América Latina, “... tudo parece indicar que os setores dominantes avançam na redefinição do sistema político e na sociedade civil mediante uma estratégia negativa porque não pretendem construir consenso senão impedir a organização dos grupos subalternos, inibindo sua capacidade de questionamento. O plasmam mediante um processo de integração das condutas políticas e sociais dos setores populares. Desta maneira, os setores subalternos são imobilizados não podendo gerar una alternativa política e social que questione as bases de sustentação do novo padrão de acumulação... Esta nova situação da política se enquadra dentro do que Antonio Gramsci denomina de ‘transformismo’, com a particularidade que a cooptação dos partidos políticos não é já fundamentalmente ideológica, senão que cumprem nela um papel decisivo os incentivos materiais.” (Arceo e Basualdo, 2004 – tradução própria). Como conseqüência desse processo, desde o Governo Collor, vem se acentuando a balcanização do Estado (expressão da redução da autonomia relativa do Estado frente aos interesses imediatos dos setores dominantes), com as distintas frações do capital se apoderando abertamente de segmentos do aparelho estatal18. Com o Governo Lula, o capital financeiro manteve o controle sobre o Ministério da Fazenda e o Banco Central, exigindo a independência legal deste último – uma vez já a tendo conquistado na prática. O agronegócio e os interesses exportadores, por sua vez, dos grupos subalternos e modernizaram o país, mas sempre o fizeram por meio da alternância ou da simples conciliação de diferentes frações das classes dominantes. Essas classes sempre reagiram aos fenômenos de ‘subversivismo esporádico, elementar’ de que fala Gramsci (CC, v. 1, p. 393), através dos quais os grupos subalternos se manifestavam de modo ainda primitivo e inorgânico, por meio de manobras pelo alto, que implicavam acordos entre seus segmentos ‘modernos’ e ‘arcaicos’” (Teixeira, op. cit.) 17 No que concerne a essa questão, Basualdo e Arceo (op. cit) afirmam, em relação á América Latina, que “na região se verifica um notável esgotamento da autonomia relativa da instância política [com respeito aos interesses específicos, mediatos e imediatos, das classes e frações sociais dominantes], o qual gera, junto com o modo de acumulação que as mesmas impõem, uma falta crônica de alternativas que integrem, minimamente, as necessidades e aspirações dos setores populares. Isto desencadeia, como processo de longo prazo, em numerosos países da região, uma crescente ilegitimidade do sistema político” (p. 4; tradução própria) 23 apoderaram-se do Ministério da Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior. De outro lado, o Governo Lula renovou o patrimonialismo e o empreguismo na relação do governo com as direções partidárias e sindicais; diretorias dos fundos de pensão das empresas estatais e conselhos dos bancos oficiais - com destaque para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) do BNDES - foram ocupadas por sindicalistas e funcionários do Partido dos Trabalhadores, com poder de decisão sobre o direcionamento de vultuosos montantes financeiros - constituindo o que Oliveira (2003) chamou de uma “nova classe”, cujos membros não mais pertence à classe trabalhadora, mas que também não se constituem em capitalistas/burgueses e nem em executivos tradicionais (gestores de empresas privadas); na realidade, ocupam um lugar no processo de acumulação que lhes dá o poder de controlar e decidir sobre o destino de parte do capital existente no sistema financeiro. Nessa medida, fornecem uma base política para sustentar a colaboração com o capital19. A base econômico-social dessa “nova classe”, bem como o seu próprio tamanho, tendem a se ampliar bastante, tendo em vista a regulamentação dos fundos de pensão complementar, de natureza associativa, que permite que sindicatos, cooperativas e associações de profissionais liberais criem seus próprios fundos de pensão direcionados a seus associados20. A expansão desses fundos de pensão associativos, para toda a estrutura sindical do país, vinculando organicamente os sindicatos (e suas direções) à estrutura e dinâmica do mercado financeiro e aproximando-os dos interesses das empresas, aponta para 19 Uma outra visão sobre a natureza desse segmento social – que não o identifica como sendo uma classe pode ser vista em Dias (2004). Nela, os integrantes desse segmento são identificados como funcionários privilegiados e gestores da interface capital financeiro-Estado-burocracia sindical De qualquer forma, independentemente das distintas caracterizações, o importante é que ambas identificam a mesma base material para sua existência e as mesmas conseqüências deletérias para o movimento sindical e o Partido dos Trabalhadores. 19 No Governo FHC, a lei complementar no 109 (editada em maio de 2001) autorizou essas entidades a montar fundos de pensão associativos. No Governo Lula, essa lei foi regulamentada em duas etapas (2003 e 2004). Atualmente, 21 instituições associativas podem montar esses fundos e 15 já estão funcionando - segundo dados da Previc (Superintendência Nacional de Previdência Complementar), autarquia do Ministério da Previdência Social que regula e fiscaliza os fundos de previdência. As duas maiores Centrais Sindicais do país – Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical (FS) – já estão entrando no negócio, e a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) também está interessada. 20 Os sindicatos poderão colocar nas mesas de negociação, quando das respectivas datas-base das categorias que representam, a criação e expansão dos seus fundos de pensão como uma opção para as empresas participarem, em detrimento de outras reivindicações dos trabalhadores. Portanto, se constituirá em mais um 24 uma transformação radical do sindicalismo no país21; isto, associado à atual reforma sindical proposta pelo Governo Lula (Druck, 2004), que reforça o poder das Centrais Sindicais e esvazia a capacidade de mobilização dos sindicatos de base, tenderá a desfigurar por completo o papel dos sindicatos, historicamente construído no movimento e nas lutas dos trabalhadores. A proximidade entre essa “nova classe” e o capital em geral, em particular o capital financeiro, também pode ser evidenciada através da atuação dos fundos de pensão de empresas estatais, em especial os três maiores – Previ, Petros e Funcef22. Esses fundos participaram do processo de privatização desde os Governos Collor e FHC, tornando-se proprietários de empresas e assumindo posições na direção das mesmas; no entanto, os números que expressam seus desempenhos mostram que hoje esses fundos – que tem por principal objetivo garantir as pensões e aposentadorias de seus associados - são, no fundamental, financiadores do governo, aplicando a maior parte de seus recursos em títulos da dívida pública – maior rentabilidade do mercado, com menor risco e grande liquidez; portanto, cumprem mais um papel no circuito da acumulação financeira, do que impulsionando o desenvolvimento econômico na esfera produtiva (Filgueiras e Lobo, 2005). 4- Estrutura e Dinâmica do Modelo Econômico Neoliberal O que se identifica como sendo o modelo econômico neoliberal no Brasil - com sua respectiva dinâmica macroeconômica extremamente instável -, se estruturou a partir de profundas mudanças – capitaneada por sucessivos governos23 - em, pelo menos, cinco instrumento de flexibilização e precarização do trabalho. As empresas terão uma dupla vantagem em participar: 1- poderão deduzir os pagamentos, feitos aos fundos de pensão, do imposto de renda e 2- poderão reduzir seus encargos trabalhistas, caso haja uma troca, isto é, que os pagamentos aos fundos de pensão sejam feitos em detrimento de reajustes salariais. Adicionalmente, as elevadas taxas de juros, pagas pelo governo para rolar a dívida pública, passarão a ser do interesse dos sindicatos - uma vez que os fundos de pensão se tornarão uma fonte de receita importante para eles –, em aberta contradição com o seu efeito sobre a desaceleração do crescimento e o aumento do desemprego. 22 Hoje existem 367 fundos de pensão complementar, – fechados e abertos - em operação no país: 278 de empresas privadas e 89 de estatais. Os Fundos de Pensão envolvem, hoje, 2,3 milhões de pessoas e administravam, em 2004, R$ 280,2 bilhões - montante equivalente a, aproximadamente, 16% do PIB (Folha de São Paulo, 15-05-2005). 23 Isto significa dizer que a ação política, a partir do aparelho de Estado, foi crucial para a estruturação, evolução e dinâmica do modelo neoliberal; ao contrário de uma redução do poder do Estado, conforme 25 dimensões da organização econômico-social-política do país, quais sejam: 1- a relação capital/trabalho, 2- a relação entre as distintas frações do capital, 3- a inserção internacional (econômico-financeira) do país, 4- a estrutura e o funcionamento do Estado e 5- as formas de representação política. - Mudanças na relação capital-trabalho Quanto à relação capital-trabalho, as mudanças decorreram, antes de tudo, do processo de reestruturação produtiva, que redefiniu radicalmente, no plano objetivo material, a correlação de forças existente, com o claro enfraquecimento da capacidade política e de negociação da classe trabalhadora e de suas representações. A reestruturação produtiva das empresas – privadas e públicas -, através da reorganização dos seus processos de produção, com a introdução de novos métodos de gestão do trabalho e de novas tecnologias, teve implicações devastadoras sobre o mercado de trabalho24. Esse impacto negativo foi reforçado pela abertura comercial e financeira da economia e pelo longo ciclo de estagnação iniciado no começo dos anos 1980 – caracterizado por baixíssimas taxas de crescimento do PIB e reiteradas flutuações de curto prazo. A face mais visível desse processo foi o grande salto verificado nas taxas de desemprego, sintomaticamente, a partir do início dos anos 1990 com o Governo Collor, quando a abertura comercial-financeira e uma profunda recessão - provocada pela política de estabilização adotada – acirraram a concorrência intercapitalista e empurraram as empresas para um processo acelerado de reestruturação, que até então, com raras exceções, caminhava lentamente25. Posteriormente, a partir do Plano Real, com a ampliação da abertura comercial e a valorização da moeda nacional, as taxas de desemprego se elevaram mais ainda – apesar de, inicialmente, entre 1993 e 1995, essas taxas terem se reduzido um pouco. propagado pela doutrina, a implementação e condução desse modelo implicaram, e implicam, uma participação fundamental do Estado, com reforço e ampliação de seu poder (Gray, 1999). 24 “A política adotada, a partir do início dos anos 90, permitiu uma forte exposição externa da base produtiva local, implementou um novo receituário de política econômica e buscou enfraquecer o poder de barganha dos segmentos organizados da sociedade, na esperança de reduzir a resistência aos projetos de flexibilização do sistema de proteção social inscrito na Constituição de 1988”. (Dedecca, op. cit.; p. 105) 25 Há uma ampla literatura acadêmica - no campo da Economia e da Sociologia do Trabalho - sobre o tema, que não deixa dúvidas sobre a natureza e as implicações do processo de reestruturação produtiva, nos países desenvolvidos e no Brasil: Filgueiras (1997); Druck (1999, 1994); Pochmann (1996); Antunes (1995); Anderson (1995); Fiori (1994); Borges & Druck (1993); Coutinho (1993); Hirata (1994a); DIEESE (1993, 1994a, 1994b); Harvey (1992); Borges e Druck (1992); Mattoso e Oliveira (1990). 26 Junto com o desemprego, e como produto de uma ampla desregulação do mercado de trabalho - efetivada na prática pelas empresas e por diversos instrumentos jurídicos emanados dos sucessivos governos -, veio um processo generalizado de precarização das condições de trabalho: formas de contratação instáveis que contornam ou burlam a legislação trabalhista, prolongamento da jornada de trabalho, redução de rendimentos e demais benefícios, flexibilização de direitos trabalhistas e ampliação da informalidade; tudo isso, enfraquecendo e deslocando mais ainda a ação sindical para um comportamento defensivo26. Do ponto de vista da distribuição da renda - e como expressão mais geral, e resultado direto, desse processo - assistiu-se, desde o início da implementação do modelo neoliberal, a uma redução da participação do montante total dos rendimentos do trabalho na renda nacional (de mais de 50% para apenas 36%); tendo por contrapartida o crescimento da participação do montante total dos rendimentos do capital, especialmente os juros do capital financeiro, e das receitas fiscais do Estado. A carga tributária cresceu, sistematicamente, a partir do segundo Governo FHC, passando de 25% para 37%, como contra-face necessária da política fiscal adotada após a crise cambial de janeiro de 1999, de obtenção de elevados superávits fiscais primários para o pagamento da dívida pública. Do total da arrecadação, 27% do seu valor vem dos salários, 49% do consumo e apenas 16% dos rendimentos do capital e outras rendas (IOF e CPMF) e 3% do IPTU, IPVA e de herança. (FSP, 05-07-2005) Além disso, com a obtenção de superávits na conta de transações correntes e superávit fiscal primário (para viabilizar o pagamento das obrigações decorrentes da dívida pública, interna e externa), cresceram as remessas de lucros, juros e amortizações para o exterior. Portanto, atualmente, no lugar da existência dos chamados déficits gêmeos, observa-se exatamente o contrário, como expressão, em última instância, da hegemonia do 26 No presente momento (julho de 2005), discute-se uma reforma sindical, e aponta-se para uma futura reforma trabalhista, que vai no sentido de legalizar e aprofundar as diversas formas de precarização já existentes – em nome da competitividade das empresas e da redução da informalidade. Com relação à Reforma Sindical proposta ver Druck (op. cit.) e sobre a flexibilização e desregulamentação trabalhista nos anos 90 ver Krein (2003). 27 capital financeiro no interior do bloco dominante e de sua dominação sobre o conjunto da sociedade.27 Ainda no âmbito da distribuição da renda, um estudo realizado por Pochmann et al (2004), evidencia que houve o aumento da quantidade de ricos (de 507 mil famílias ricas em 1980, para 1,16 milhão em 2000) e de suas posses. Isso foi possível porque o fator potencializador da riqueza foi o sistema financeiro e não a produção28. O que ocorreu nas duas últimas décadas no Brasil foi uma concentração da riqueza num tipo específico de mercado financeiro, o da dívida pública. Os títulos garantidos pelo governo atraem hoje a maioria dos recursos do crédito bancário29, da folga de caixa das empresas e das fortunas pessoais: uma transferência patrimonial contínua do Estado para os ricos (Carvalho, op. cit.). O estudo também evidencia que esses 1,16 milhão de famílias ricas no Brasil , cuja renda é de no mínimo R$ 10.982 mensal per capita (valor mínimo recebido pelo 1% mais rico do Brasil, em valores de 2003), representam 2,4% do total de cerca de 48,5 milhões de famílias brasileiras. Essas famílias se concentram, principalmente, no estado de SP (58%) e na capital paulista (38%). Além disso, 50% do total das famílias ricas moram em quatro cidades: SP, RJ, Brasília e BH. Ainda segundo o mesmo estudo, os super-ricos no Brasil apropriam-se do equivalente a 3% da renda nacional; são 5 mil famílias – apenas 0,001% do total – que têm um patrimônio equivalente a 40% do PIB nacional. Mas, adicionalmente, essas famílias comandam boa parte do restante da renda nacional a partir de contratação de serviços, da remuneração de empregados de altos salários, além da influência exercida sobre uma parte expressiva do gasto público e das informações veiculadas nos órgãos de imprensa. 27 “Os ricos querem cada vez mais liberdade para movimentar suas fortunas. Há uma grande inquietação nos meios dos grandes detentores de capital e dos administradores dessas riquezas. Eles têm muito medo, porque essa riqueza, que é em grande parte um amontoado de papéis garantidos pelo governo, está atrelada à dívida pública, que está descomunalmente grande. Não é por acaso que eles querem a autonomia do Banco Central, na verdade já entregue a eles. Não é à toa que tem a proposta do Pérsio Arida [ex-dirigente do Banco Central e banqueiro], de estabelecer a conversibilidade do capital. Eles querem o direito de transformar esse dinheiro todo em dólar na hora que quiserem". (Carvalho, 2004) 28 Segundo o mesmo estudo, houve uma metamorfose no processo de composição e manutenção da riqueza no país: até o século 19 a riqueza era muito mais agrária, baseada na posse da terra e de escravos. No século 20, o processo de enriquecimento ficou muito mais dependente do meio urbano-industrial e, dos anos 1980 para cá, esse processo é mais baseado na valorização financeira. 29 Em virtude do financiamento da dívida pública pelos bancos, o crédito para o setor privado corresponde, atualmente, à apenas 22% do PIB. (FSP, 05-07-2005) 28 Enfim, não pode haver a menor dúvida de que a desregulamentação do mercado de trabalho, a flexibilização do trabalho - em suas diversas dimensões - e o enfraquecimento do poder político e de negociação das representações das classes trabalhadoras se constituem, desde o início, em um dos pilares fundamentais do modelo neoliberal, redefinindo radicalmente, a favor do capital, a correlação de forças políticas. - Mudanças nas relações intercapitalistas No que concerne à relação entre as distintas frações do capital, as mudanças caminharam em múltiplas direções. Antes de tudo, assistiu-se, com a abertura e desregulamentação dos mercados financeiros, o aprofundamento da financeirização da economia, apoiada essencialmente na dívida pública e que abarcou todas as frações do capital – no sentido da predominância da lógica financeira no interior de seus processos de decisões. Esse processo foi, ao mesmo tempo, causa e conseqüência do fortalecimento econômico e político dos grandes grupos financeiros, nacionais e internacionais, levando também grandes grupos econômicos, de origem não financeira, a criarem suas próprias instituições financeiras30. O predomínio do capital financeiro na sociedade, e na sua relação com o capital produtivo, se expressa, de forma contundente, nas políticas econômicas implementadas e nos resultados econômicos (lucros) obtidos pelas instituições financeiras – esteja a economia crescendo ou não (FSP, 16/04/2005). Em outra dimensão, os processos de abertura comercial e financeira e de privatização – acompanhados, durante o primeiro Governo FHC, por uma política cambial de sobrevalorização do real – levaram a um movimento impressionante de centralização de capitais, através de aquisições, incorporações e fusões, concomitantemente a uma maior desnacionalização e internacionalização da economia brasileira31. O capital internacional e 30 Entre os 100 maiores grupos econômicos privados do Brasil, no ano de 2001, 19 grupos eram de origem financeira e 11 de outros setores mas tendo algum tipo de instituição financeira pertencente ao grupo. Portanto, 30 grupos articulados organicamente na esfera financeira da acumulação de capital. Além disso, pelo menos 19 grupos estavam associados ao processo de privatização– grupos que foram criados, ou se ampliaram, através da aquisição de empresas públicas. (Exame, 2002) 31 “O processo de desnacionalização, que acompanhou o Plano Real, foi crescente e atingiu todos os setores: indústria, comércio e serviços. Isto decorreu da natureza dos investimentos estrangeiros no Brasil, entre 1994 e 1998; de um total de US$ 65,5 bilhões, 55,4% (US$ 36,3 bilhões) foram para a compra de empresas brasileiras já constituídas.” (Filgueiras, 2000a, p. 162). “O número de aquisições de empresas brasileiras por estrangeiros, entre 1994 e 1998, cresceu 146%, passando de 63 para 237, totalizando, no período, 676 operações - sem contar incorporações, acordos e associações. O estoque de investimentos estrangeiros, que correspondia, até 1995, a 6,11% do PIB, passou a representar, em 1998, 12,34%.” (Filgueiras, op. cit., p. 163). 29 os grandes grupos econômico-financeiros nacionais, que conseguiram se transnacionalizar, aumentaram sua participação na economia e seu poder político. O mesmo pode-se dizer das frações de capital com fortes vínculos com o comércio exterior, especialmente o chamado agronegócio, que passou a se fortalecer a partir da importância estratégica que as exportações passaram a ter para a dinâmica do modelo neoliberal, ao possibilitar-lhe um mínimo de estabilidade. As filiais de multinacionais que, durante o período do MSI, tinham uma razoável autonomia relativa em relação as suas matrizes, passaram a se integrar mais estreitamente às redes corporativas, comandadas a partir dos países desenvolvidos, como fruto de um processo de terceirização em escala global. Com isso, redefiniram, no interior do Brasil, as suas articulações e encadeamentos com as eventuais cadeias produtivas nas quais participavam como um dos elos constitutivos; além de dificultarem muito, ou mesmo impedirem, a execução de políticas industriais por parte dos Estados Nacionais da periferia. Por fim, o processo de reestruturação produtiva, em especial a prática generalizada da terceirização, produziu novas formas de articulação entre os grandes, médios e pequenos capitais e mesmo de segmentos de trabalhadores “autônomos”, através da constituição de redes de subcontratação, principalmente de mão-de-obra (Druck, 1999). Isto implicou uma articulação mais orgânica entre essas distintas frações do capital, tornando-as aliadas e sócias no processo de precarização das condições de trabalho e de flexibilização do mercado de trabalho32. Aliás, a defesa da redução/extinção dos encargos sociais e trabalhistas, capitaneada pelo grande capital, tem ampla aceitação entre os médios e pequenos capitais, que a vêem como um instrumento fundamental para superar o seu pouco poder de competição. Na verdade, essa proposição é uma poderosa solda políticoideológica entre as diversas frações do capital33. - Mudanças na inserção internacional Entre os 100 maiores grupos econômicos privados do Brasil, no ano de 2001, pelo menos 50% eram estrangeiros. (Exame, 2002) 32 Por outro caminho, mas na mesma direção de uma maior soldagem entre o grande e o pequeno capital, pode-se destacar a prática da “franquia”, que se constitui num instrumento efetivo de fragmentação e dispersão de capitais - articulados em rede a partir de um centro (grande capital) propagador. 33 A única forma de se contrapor a isso é transferir os encargos sociais e trabalhistas, que incidem sobre a folha salarial, para o faturamento das empresas, criando-se faixas diferenciadas, com o objetivo de isentar as micros e pequenas empresas e fazer as demais pagarem crescentemente, de acordo com o seu montante de receita – como num sistema de imposto de renda progressivo. 30 No âmbito da inserção econômica internacional do país as mudanças também foram significativas; tendo sido implementadas a partir da abertura comercial, com a queda das alíquotas de importação, e da desregulamentação financeira, que integrou o mercado financeiro nacional ao movimento dos mercados financeiros internacionais. Na nova lógica, derivada das novas relações internacionais, o país passou, inicialmente, a ser importador líquido de bens e serviços – implicando em elevados saldos negativos na conta de transações correntes do balanço de pagamentos. Esses saldos foram financiados pela privatização de empresas públicas, aquisições de empresas nacionais por capitais estrangeiros e pelos fluxos internacionais de capitais (superávits na conta de capital), equilibrando-se, desse modo, o seu balanço de pagamentos. Contudo, depois de sucessivas crises internacionais, e após a suspensão do processo de privatizações de empresas públicas, essa lógica se redefiniu, de forma compulsória, a partir da crise cambial ocorrida no início do segundo Governo FHC. Essa redefinição se deu no sentido da obtenção de elevados superávits na balança comercial, como condição essencial para a remuneração do capital financeiro internacional. Essa remuneração não pode ser garantida apenas através da realização, por parte do setor público, de elevados superávits fiscais primários; é necessário que esses recursos, denominados em moeda nacional (real), possam ser trocados por dólares, para que sejam remetidos à circulação internacional de capital. Com a abertura comercial e as privatizações, importantes segmentos industriais foram afetados, com vendas e fusões de empresas nacionais (privadas e públicas) para e com o capital estrangeiro (desnacionalização) ou a reconversão de suas atividades para montagem de componentes importados. Em certa medida, assistiu-se a um processo de desindustrialização, com redução da participação da indústria na economia nacional, e especialização regressiva - com menor diversidade e desarticulação de cadeias produtivas nos segmentos industriais mais dinâmicos, intensivos em capital e tecnologia, e ampliação do peso relativo de ramos industriais de pouco dinamismo, intensivos no uso de recursos naturais e mão-de-obra (Carneiro, 2002). Os setores mais afetados pelas importações e a 31 valorização cambial (Plano Real) foram os mais intensivos em tecnologia e capital e os menos afetados foram os intensivos em mão-de-obra e, principalmente, recursos naturais34. Em suma, no âmbito da inserção do país na nova divisão internacional do trabalho há uma articulação e um processo complexos; de um lado, reprimarização das exportações agronegócio e indústria de baixo valor agregado - (Gonçalves, 2000) em novas bases tecnológicas e financeiras (mas com uso intensivo de mão-de-obra e recursos naturais) e, de outro, o fortalecimento de alguns segmentos industriais típicos da 2a revolução industrial, modernizados pelas tecnologias difundidas pela 3a revolução (automóveis, petroquímica e aviões); estes últimos segmentos integrados ou não em redes transnacionais e grandes grupos econômicos. Desse modo, o Brasil, dada a complexidade de sua estrutura produtiva, caminha em diversas direções; não se resume exclusivamente à especialização de produtos centrados no baixo custo da mão-de-obra e em recursos naturais, nem é uma mera plataforma de exportação - pois as exportações e o superávit comercial, além de significarem uma proporção relativamente pequena do PIB (respectivamente, 16% e 5,6%), têm, dinamicamente, encadeamentos para trás, num mercado interno de grandes proporções, embora concentrado. Todavia, o mercado interno perde importância relativa na formação do PIB, deixando de ser relevante para frações significativas do bloco dominante, em particular aquelas voltadas, principalmente ou exclusivamente, para o mercado externo e o capital financeiro estrito senso (este último não depende, de forma imprescindível, do 34 Estudo recente (“Impactos das Zonas de Livre Comércio” do Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comércio Exterior - MDIC, 2004) sobre a situação competitiva de 20 cadeias industriais brasileiras (que respondem por 53% do faturamento da indústria brasileira, 63% das exportações e 67% das importações do país, e representam 1% das exportações mundiais desses segmentos) identificou quatro tipos de grupo, com situações distintas tendo em vista a possibilidade de uma maior liberalização do comércio exterior – caso sejam constituídos acordos de livre comércio com o NAFTA ou a União Européia: 1- cadeias com menos ameaças ou mais competitivas (superavitárias atualmente): café, papel e celulose, cítricos, couro e calçados, siderurgia e têxtil e confecções; 2- cadeias com sérias deficiências competitivas (cronicamente deficitárias): bens de capital, química e petroquímica, transformados plásticos, naval e informática; 3- cadeias com oportunidades e ameaças localizadas e/ou que se anulam (têm produtos pouco transacionáveis no mercado externo: cosméticos, madeiras e móveis e cerâmica); e 4- cadeias nas quais predomina o comércio intrafirma (participam intensamente do comércio mundial e são deficitárias atualmente): automotiva, farmacêutica, eletrônica de consumo e tele-equipamentos. Ainda segundo esse fundo, as cadeias superavitárias já eram competitivas desde os anos 80, pelas seguintes razões: vantagens naturais de clima, oferta de matérias-primas e custo de energia e mão-de-obra; vantagens construídas de escala (siderurgia) e comércio intrafirma - que depende da estratégia das multinacionais. Por isso, observa-se resistência e cautela, por parte de muitos segmentos industriais e do próprio Governo Lula, à formação da ALCA – pois esta implicaria em uma nova rodada de abertura comercial, com conseqüências complicadas para inúmeras cadeias produtivas internas e, por conseguinte, para a estratégia de obtenção de elevados saldos comerciais. 32 crescimento do PIB para viabilizar sua rentabilidade, conseguindo ganhar mesmo com a estagnação do produto e da renda per-capta). Por fim, segundo Boito (op. cit.), o Governo Lula aceita a atual divisão internacional do trabalho – na qual o país se integra como exportador agrícola e de produtos industriais em sua maioria de baixo conteúdo tecnológico -, mas quer levá-la ao seu limite, com a crítica ao protecionismo dos países desenvolvidos e a implementação de ações para a eliminação dos subsídios agrícolas. Com isso, entra em contradição com frações importantes do capital desses países, embora tenha a simpatia do capital financeiro internacional - que vê com bons olhos a obtenção de superávits na Balança Comercial, pois garante a capacidade do Brasil em remunerar suas aplicações. - Mudanças na estrutura e funcionamento do Estado Da mesma forma que as empresas, o Estado também se reestruturou, redefinindo-se enquanto expressão das disputas entre as diversas classes e frações de classe. O processo de desregulamentação - com a quebra dos monopólios estatais em vários setores da economia , juntamente com o processo de privatização das empresas públicas, reduziu bastante a presença do Estado nas atividades diretamente produtivas, fortalecendo grupos privados nacionais e estrangeiros - dando origem a oligopólios privados, redefinindo a força relativa dos diversos grupos econômicos e enfraquecendo grupos políticos regionais tradicionais; além de permitir demissões em massa e enfraquecer os sindicatos35. As privatizações36, que também funcionaram como uma âncora na estratégia de estabilização de preços – ao permitir, durante o primeiro Governo FHC, a existência de crescentes déficits na conta de transações correntes do balanço de pagamentos -, contribuíram de forma importante para os processos de desnacionalização da economia e de 35 “Assim, foram extintos o monopólio estatal nas áreas da prospecção, exploração e refino do Petróleo; nas telecomunicações, e na geração e distribuição de energia. Além disso, mudou-se o conceito de ‘empresa nacional’, para possibilitar igualdade de condições para as empresas estrangeiras, e desregulamentou-se a exploração do subsolo e a navegação costeira, permitindo-se, em ambas a atuação do capital estrangeiro.” (Filgueiras, 2000a) 36 As privatizações “... já tinham deslanchado desde o Governo Collor, com a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND); portanto, o Governo Cardoso assumiu a tarefa de expandi-las e acelerá-las, ampliando os setores produtivos e as empresas onde as mesmas poderiam ocorrer – incluindo no processo a Vale do Rio Doce e os setores de concessão de serviços públicos, como energia elétrica e telecomunicações.” (Filgueiras, 2000a). Elas afetaram diversos setores da economia, rendendo, até julho de 1999, US$ 88,3 bilhões de dólares. Entre esses setores destacam-se: petroquímica, siderurgia, mineração, fertilizantes, ferroviário, portuário, financeiro, energia e telecomunicações. 33 centralização de capital; processos estes que contaram com a participação central do BNDES, de bancos nacionais e estrangeiros e de fundos de pensão. Adicionalmente, a reforma administrativa permitiu a criação de mecanismos de demissão e contratação de funcionários para além dos concursos, flexibilizando também as relações trabalhistas no setor público37; enquanto duas reformas da previdência social – a primeira no Governo FHC e a segunda no Governo Lula – redefiniram as regras de aposentadoria, reduzindo benefícios e direitos, em nome do equilíbrio fiscal; abrindo espaço para a atuação dos fundos de pensão privados. Por fim, a instituição de elevados superávits fiscais primários levou ao crescimento, sistemático, da carga tributária, através da criação de novas contribuições ou do aumento das alíquotas de contribuições já existentes. A ênfase nas contribuições, e não nos impostos, foi determinada pelo fato das mesmas não terem as suas arrecadações divididas entre a União, Estados e Municípios, isto é, pertencem apenas à União. Em síntese, a retirada do Estado de setores estratégicos da atividade econômica, juntamente com o agravamento de sua fragilidade financeira, a redução de sua capacidade de investimento e a perda de autonomia da política econômica, enfraqueceu-lhe a possibilidade de planejar, regular e induzir o sistema econômico. O crescimento acelerado da dívida pública - com encargos financeiros elevadíssimos -, juntamente com a livre mobilidade dos fluxos de capitais, é parte central da subordinação da política macroeconômica aos interesses do capital financeiro, ao mesmo tempo em que redefiniu a presença dos interesses das distintas classes e frações de classe no interior do Estado38. - Mudanças nas formas de representação política Do ponto de vista político, a transição da ditadura para a democracia burguesa representativa no Brasil, que de resto ocorreu em toda a América Latina, não foi capaz de 37 “Na reforma administrativa, a questão básica foi a separação dos diversos segmentos do Estado de acordo com as denominadas funções ‘próprias’ de Estado e as ‘outras’, abrindo, assim, a possibilidade da terceirização de uma série de atividades na área social para a atuação de empresas privadas. Isto está associado à questão da estabilidade do funcionalismo, identificada como o empecilho fundamental para ajustar as contas públicas, em especial dos estados e municípios. Assim, aprovou-se a possibilidade de demissão por excesso de quadros – quando os salários pagos ultrapassarem mais de 60% das recitas – e por ineficiência.” (Filgueiras, 2000a) 38 Com relação ao orçamento da União, por exemplo, a criação de um instrumento como a Desvinculação de Receitas da União (DRU), permite desvincular 20% do montante total das receitas, possibilitando uma transferência crescente de recursos da população, que deveria ir para educação, saúde, previdência social, estradas etc, para o pagamento dos juros da dívida pública. 34 se constituir em um instrumento, para as classes subalternas, de transformações econômicosociais importantes – apesar da maior organização e crescimento dos movimentos sociais e da inclusão formal, na Constituição de 1988, de um amplo conjunto de direitos sociais. Com a vitória do Projeto Neoliberal, as decisões relevantes, cruciais com relação aos interesses e disputas de classes, foram, cada vez mais, deslocadas para fora das instâncias formais dos parlamentos, encapsuladas nas agências e nos órgãos “técnicos” do Estado, “autônomos e livres de influências políticas”, como é o caso, por exemplo, das empresas estatais, do Banco Central, do Conselho Monetário Nacional e das chamadas agências reguladoras – configurando-se o que Oliveira (2005) tem denominado de “deslocamento, ou colonização, da política pela economia”. Esse fenômeno pode ser visto como “... resultado de um longo processo que vem se consolidando desde o início dos anos 90, mas que se acentuou a partir do primeiro Governo FHC, e que deu origem a um fenômeno mais geral, ao mesmo tempo lúgubre e curioso, qual seja: as relações sociais em geral, e as relações econômicas em particular, vêm passando por uma operação de despolitização, na qual o social é substituído pelo econômico e o econômico pelo mercado. Operação essa que se constitui, no plano político-ideológico, na expressão maior da dominação do capital financeiro nessa época de ‘capitalismo turbinado’, que tem nos mercados financeiros, em particular o da dívida pública, o sujeito regulador da economia e, no limite, da própria sociedade. [Por isso], todos os dias, toma-se conhecimento, através da mídia, que, por algum motivo econômico e/ou político, ‘o mercado está nervoso ou calmo’, que ‘o mercado está eufórico ou deprimido’, que ‘o mercado está tenso ou relaxado’, que ‘o mercado está confiante ou desconfiado’, que ‘mercado respirou aliviado’ ou, ainda, pasmem, que ‘o mercado atropelou a Argentina’. Todas essas qualificações acabam transformando essa instituição, uma coisa criada pelos homens, em um sujeito; ao mesmo tempo em que transformam estes últimos em nãosujeitos (coisas), que não podem contrariar, em hipótese alguma, a autoridade, os sentimentos, as vontades e os desejos do “mercado” – sob pena da situação econômicopolítico-social ficar ainda pior. Esse fetichismo, que é próprio das relações mercantis, mas que a globalização financeira ampliou ao limite, chegou ao país no Governo Collor e criou raízes com a implementação do Plano Real em 1994. Este último, ao ampliar a abertura comercial e financeira da economia brasileira, ancorando a estabilidade da moeda no capital financeiro internacional, aprofundou dramaticamente a vulnerabilidade externa do país e fragilizou ainda mais as finanças públicas. Na verdade, esse tipo de política de estabilização, aplicada em toda a América Latina a partir do final dos anos 80, 35 se constituiu no carro-chefe das reformas econômicas liberais, sendo fundamental para a construção de uma espécie de círculo de ferro, onde não se vislumbra qualquer saída alternativa. O resultado é a ditadura do ‘mercado’, a chamada ‘via única’. Esse círculo de ferro, de natureza economicista, e que é apresentado e imposto à sociedade de forma absolutamente objetiva e determinista, procura descartar, totalmente, a possibilidade de ação dos sujeitos políticos, ao substituir a política pela economia e esta pelo “mercado”. Em síntese, a única forma de o capital financeiro exercer a sua dominação [tendo em vista a sua incapacidade de ser hegemônico] é através de uma forma de fazer política que tem como elemento central, paradoxalmente, a [aparente]39 negação da própria política. (Filgueiras, 2001). Daí o comportamento pífio dos parlamentos na América Latina, especialmente a partir da “Era Neoliberal”, quando só são ativados, e assumem posição relevante, de fato, quando a burguesia necessita reformar algum aspecto da Constituição que lhe é inconveniente. Assim, mais uma vez, com o neoliberalismo, as classes dominantes conseguiram dar seqüência ao seu longo processo histórico de dominação e de transformismo, no qual dispensa, sistematicamente, o consentimento ativo (consenso) e a hegemonia – por definição, ausentes nos processos de Revoluções Passivas40. O que distingue o atual período, de outros momentos da história do país, é o fato de o projeto neoliberal ter agravado a incapacidade da burguesia em construir uma hegemonia real, em virtude de sua completa articulação, de forma subordinada, política e economicamente, ao circuito mundial de acumulação capitalista – o que a incapacitou, definitivamente, de guiar o seu 39 Apenas aparente, porque, na realidade, o capital financeiro, ao assim proceder, nega a possibilidade da ação política dos outros segmentos da sociedade, em especial as classes trabalhadoras; o que facilita a sua própria ação política, ao decidir, isoladamente, sobre questões que atingirão toda a população. 40 Para Teixeira (op. cit), no entanto, o período de dominação neoliberal não pode nem mesmo ser caracterizado como de continuação da Revolução Passiva brasileira: “O que caracteriza o período em que vivemos como um período de contra-reforma - e não de revolução passiva - é o fato de que as classes dominantes e seus governos não acolhem nenhuma das exigências dos de baixo... as classes dominantes não se vêem obrigadas a fazer-lhes qualquer concessão. Utilizando a metáfora gramsciana, as classes subalternas neste período histórico - não têm ainda conseguido formular uma antítese que seja capaz de enfrentar a tese, ou seja, a dominação do grande capital, como seria o caso numa verdadeira revolução, mas nem mesmo, como ocorre nos processos de revolução passiva, de deixar algumas marcas na síntese final.” (p. 6) 36 destino e o do país de modo soberano e que se reflete nas sucessivas, e reiteradas, crises político-institucionais. Atualmente, a crise estrutural da democracia formal burguesa é visível em todos os países da América latina, sem nenhuma exceção; e a razão maior disso acontecer é a sua incapacidade crônica de servir como instrumento de acomodação dos interesses das suas classes populares e de resolução dos principais problemas de suas respectivas populações. È, de fato, impressionante, o contraste estabelecido entre, de um lado, a incrível velocidade das transformações econômicas, tecnológicas e financeiras – que aceleram , de forma nunca antes vista no capitalismo, o processo de concentração e centralização de capitais e a acumulação de renda e riqueza privada – e, de outro, a enorme lentidão, quase paralisia, do sistema político em responder e encaminhar, adequadamente, as demandas das classes subalternas. Nesse contexto, os partidos políticos são os mais afetados pela irrelevância assumida pela política (Oliveira, op. cit.), sofrendo um forte processo interno, de desgaste e corrosão, e externo, de descrédito na sociedade41. Assim como o parlamento, eles também se tornaram irrelevantes como instrumentos para encaminhar as demandas de seus eleitores. Desse modo a crise se expressa, também, em uma “... alteração na própria dinâmica e composição dos partidos que conformam o núcleo do sistema político. Na medida que o modo de acumulação tende a ser crescentemente excludente e que estes partidos consideram impossível uma modificação significativa deste, deixam de estar integrados por ‘militantes’ (os quais se alijam ou são expulsos destes) e de sintetizar internamente um debate ideológico que define as linhas políticas de ação. Agora, predominam dentro deles verdadeiros profissionais da política, que operam sobre o conjunto social amalgamados por interesses econômicos. Com o que a corrupção assume um papel crescente na conformação do sistema político.” (Basualdo e Arceo, 2004) Em suma, como o Estado, na periferia, perdeu a capacidade de fazer políticas públicas relevantes, que consigam reduzir, de fato, as assimetrias produzidas pelo mercado, restou-lhe a função de “... gerenciar a crise permanentemente e de forma ad hoc. Essa forma localizada aparece nas políticas sociais. Se não há como redistribuir renda, aparece as políticas como Bolsa41 No capitalismo, a política é o meio para se reduzir as assimetrias que são próprias desse sistema econômico-social; se a política e os partidos políticos não conseguem fazer isso, eles se tornam, tal como existem atualmente, irrelevantes para as classes subalternas (Oliveira, 2005). 37 Família, Fome Zero, que não funcionam para o que seria seu objetivo principal, melhorar a distribuição de renda. Mas funcionam enquanto focalização, e mantém a pobreza” (Oliveira, 2005, p. 7) Mas a chamada “via única”, neoliberal, não é, nem pode ser, o único caminho para as sociedades latino-americanas, embora tenha sido, de fato, o único caminho que restou ao capitalismo e à burguesia nos países periféricos – tendo em vista a sua debilidade política e a sua condição, histórica, de subordinação ao imperialismo. - A instabilidade da dinâmica macroeconômica O resultado mais geral de todas essas mudanças foi o de atualizar, radicalizando-a, a dependência tecnológica e financeira do país, agravando a vulnerabilidade externa da economia brasileira e a fragilidade financeira do Estado. É da natureza do modelo neoliberal periférico a reiteração permanente dessa vulnerabilidade e fragilidade, como condição de reprodução do capital financeiro e, portanto, de sua própria reprodução. Assim, a dinâmica do modelo é, intrinsecamente, instável; e isto é verdadeiro mesmo quando da existência de superávits comerciais no balanço de pagamentos42. Essa instabilidade se apresentou de forma radical durante o primeiro Governo FHC, quando a vulnerabilidade externa crescente levou à crise cambial de 1999. A partir daí, apesar da reversão dos saldos negativos da balança comercial, com a conseqüente redução conjuntural da vulnerabilidade externa, a instabilidade permaneceu, como ficou evidenciado pelos efeitos provocados pela crise da Argentina em 2001 e pela nova crise cambial brasileira de 2002. A trajetória lógico-histórica das políticas e da instabilidade macroeconômica dos últimos dez anos, responsável por essa situação, pode ser sintetizada da seguinte forma (Filgueiras, 2002a): 1- A partir de 1994, a estabilidade relativa dos preços – drástica redução das taxas de inflação -, sustentada por uma política de sobrevalorização do real e uma indiscriminada 42 O modelo econômico tem se caracterizado por baixíssimas taxas de crescimento acompanhadas por flutuações bruscas de curto prazo e reiteradas crises cambiais. Em oito anos dos Governos FHC, ocorreram seis crises cambiais. Atualmente, no Governo Lula, a vulnerabilidade externa tem se reduzido, conjunturalmente, em virtude de um ambiente internacional favorável que tem possibilitado a obtenção de elevados superávits na balança comercial. Na verdade, todos os indicadores de vulnerabilidade externa usualmente utilizados (serviço da dívida/exportação, dívida total/PIB, reservas/dívida total, dívida total/exportação e dívida total líquida/exportação), vêm melhorando desde a crise cambial e a desvalorização do real em 1999. 38 abertura comercial e financeira da economia brasileira, implicou uma profunda instabilidade macroeconômica. 2- Essa permanente instabilidade - que acompanha o país desde a crise do México em dezembro de 1994 e que se evidenciou sucessivamente, e de forma cada vez mais crítica, nas crises da Ásia em 1997, da Rússia em 1998, do próprio Brasil em 1999, da Argentina em 2001 e, de novo, do Brasil em 2002 – está associada a uma grande dependência da dinâmica econômica brasileira para com o capital financeiro nacional e internacional, que se alimenta das altas taxas de juros pagas pelos títulos das dívidas interna e externa. 3- Essa dependência, por sua vez, tem como causa primária a fragilidade competitiva da economia brasileira; o que tornou extremamente vulnerável as contas externas do país, em razão de crescentes saldos negativos na balança comercial; que só recentemente – a partir de 2001- começaram a ser revertidos, em razão das sucessivas desvalorizações do real e de uma conjuntura internacional muito favorável a partir de 2002. 4- Ao vulnerabilizar o balanço de pagamentos do país, a abertura comercial e financeira - reforçada pela sobrevalorização do real – exigiu a prática continuada de elevadas taxas de juros e uma política de privatizações que se pode denominar, no mínimo, de apressada e irresponsável. A alta das tarifas públicas, a crise de energia e as denúncias de irregularidades na operacionalização dessa política – com a subavaliação do patrimônio público e o favorecimento de grupos econômicos - falam por si só. 5- Desse modo, a economia brasileira, exposta de forma abrupta à concorrência internacional, estagnou e se tornou extremamente instável. As reduzidíssimas taxas de crescimento e a dramática deterioração do mercado de trabalho apareceram como um resultado “natural”, num ambiente interno marcado por elevadas taxas de juros e precárias condições da infra-estrutura do país, além da mais absoluta ausência de qualquer tipo de política industrial, agrícola, tecnológica e de comércio exterior por parte do Estado. 6- Fechando o círculo deletério, as elevadas taxas de juros e a enorme dependência externa, além de comprometerem o crescimento econômico43, fragilizaram também as 43 Como já se viu, as flutuações de curto prazo continuam no Governo lula; depois do PIB praticamente ficar estagnado em 2003, a economia cresceu 4,9% em 2004 e, agora (2005), desacelera-se de novo, estimando-se um crescimento de menos de 3%. Essas taxas de crescimento são menores que as taxas dos demais países “emergentes” para os mesmos anos. 39 finanças públicas e inviabilizaram a ação e os investimentos do Estado em todas as áreas. Em particular, tornaram as políticas sociais estritamente assistencialistas e focalizadas e, por isso, claramente insuficientes – tendo em vista o estrago provocado pela estagnação econômica, em especial sobre a parcela mais pobre da população. Essa dinâmica também se articula com uma nova dependência tecnológica – definida a partir das redes transnacionalizadas (Basualdo e Arceo, op. cit.), que também decidem, em grande medida e para além das decisões dos Estados Nacionais, a localização das atividades produtivas - e o agravamento da dependência financeira, que restringem a capacidade de execução das políticas macroeconômicas (monetária e fiscal e cambial), tecnológica e industrial44. Em resumo, as sucessivas crises econômicas das décadas de 1990 e 2000, expressão aguda da extrema instabilidade do modelo, evidenciaram que o desempenho das exportações passou a ser decisivo para a remuneração do capital financeiro, dando, ao modelo neoliberal periférico, o mínimo de estabilidade e capacidade de enfrentar as crises cambiais (fugas de capitais) recorrentes com a menor desorganização possível da economia. Portanto, tendo em vista a existência de livre mobilidade de capitais – agravada com a transnacionalização de frações do capital nacional - e a conseqüência daí advinda, de sérias restrições à autonomia da política econômica dos países periféricos (tanto maiores quanto maior o tamanho da dívida pública), a obtenção de saldos positivos na conta de transações correntes, embora não elimine a instabilidade sistêmica do modelo, minimiza a sua extrema volatilidade – ao reduzir, no curto prazo, os indicadores de vulnerabilidade externa. Desse modo, o papel crucial das exportações, para o funcionamento do modelo neoliberal periférico – cada vez mais evidente no período do Governo Lula -, faz com que o crescimento econômico do país fique na dependência, cada vez maior, do comércio internacional – portanto, em grande medida, à revelia das decisões internas. Isto significa que: 1- Embora as exportações produzam efeitos multiplicadores para dentro – estimulando o crescimento da produção, da renda e do emprego e, nessa medida, renove a importância do mercado interno no processo de acumulação -, o impulso primário da 44 Sobre a natureza da revolução molecular-digital, e a anulação da fronteira entre ciência e tecnologia, ver Oliveira (2003a), e sobre o controle da pesquisa e da tecnologia pelas redes corporativas ver Basualdo e Arceo (op. cit.). 40 acumulação e a dinâmica do crescimento passam a ser dados, principalmente, pelo comportamento da demanda internacional, recolocando-se, dessa forma, em novas bases (atualizando-se), um tipo de dependência que era próprio da fase primário-exportadora e que o Modelo de Substituição de Importações (MSI) havia superado. Desse modo, a dinâmica do mercado interno fica condicionada à capacidade da economia exportar e obter superávits comerciais, de modo a reduzir a vulnerabilidade externa e, assim, abrir espaço para o seu crescimento sem ter ameaça imediata de nova crise cambial. 2- A retomada das exportações, como o elemento central da dinâmica econômica e do crescimento, embora reduza a vulnerabilidade externa no curto prazo – através da diminuição, ou mesmo eliminação, do déficit em transações correntes do balanço de pagamentos -, amplia a possibilidade de estrangulamento externo no longo prazo, pois agrava, do ponto de vista estrutural, a dependência externa do país, cuja economia fica com seu desempenho estreitamente atrelado aos ciclos do comércio internacional – colocando, assim, em questão a viabilidade de um novo ciclo de crescimento econômico sustentado. O agravamento da vulnerabilidade no longo prazo se associa diretamente, também, à natureza das exportações brasileiras no que se refere à sua composição, isto é, ao fato dela ser constituída, principalmente, de produtos de baixo conteúdo tecnológico - intensivos em trabalho e recursos naturais, em especial commodities ou produtos associados à 2a Revolução tecnológica. 3- Por fim, todas as características acima mencionadas – o papel estratégico assumido pelas exportações, reprimarização (agronegócio e industrias intensivas em mãode-obra) e indústrias articuladas em redes produtivas transnacionais - pressionam por uma maior exploração da força de trabalho, com a queda dos salários reais e redução dos direitos trabalhistas e sociais (reforma trabalhista para a flexibilização dos direitos constitucionais e reforma da CLT). Assim, a estrutura de distribuição da renda se mantém extremamente concentrada e desigual, reiterando, nesse aspecto negativo, o mesmo padrão do MSI (Basualdo e Arceo, op. cit.). Do ponto de vista das contradições atualmente existentes no interior do bloco dominante, os principais atritos se referem à condução da política econômica (sobretudo, monetária e cambial) e ao papel mais ativo ou não do Estado no que tange ao exercício de uma política industrial e de desenvolvimento - que opõem, de um lado, o capital financeiro 41 internacional e os grandes grupos econômico-financeiros nacionais e de outro, grandes grupos nacionais predominantemente atuantes na esfera produtiva e frações do capital centrados na exportação (que vislumbram um modelo exportador-desenvolvimentista, tipo o da Coréia). Nesse contexto, o capital financeiro, sob pena de colocar em risco sua remuneração – por falta de divisas -, tem que fazer concessões à política de exportação, à burguesia industrial e agrária, mas sem afetar, no fundamental, seus interesses (Boito, op. cit.): daí a implementação de uma política econômica que flutua entre, de um lado, a livre mobilidade de capital, taxas de juros elevadas, superávits fiscais primários elevados e crescente carga tributária e, de outro, a concessão de financiamentos à produção para exportação, taxa de câmbio desvalorizada, redução ou eliminação de impostos e juros menores ou subsidiados45. Embora, atualmente, todas as frações do capital estejam de acordo com o ajuste fiscal – mas com redução da carga tributária e, portanto, dos gastos correntes do governo -, a flexibilização dos direitos trabalhistas, as privatizações e as demais reformas liberais – como a previdenciária e a trabalhista -, a continuação ou não do processo de abertura comercial, na linha da constituição da ALCA ou de um acordo com a União Européia, reitera o conflito no interior das classes dominantes, que opõe, de um lado, os grupos exportadores competitivos (agronegócio, principalmente) e o capital financeiro estrito senso e, de outro, frações do capital voltadas, principalmente, para o mercado interno e que temem a ampliação da concorrência; aqui se coloca, mais uma vez, a disputa sobre a amplitude e o ritmo da abertura, bem como em relação à necessidade, ou não, de uma política industrial e tecnológica ativa por parte do governo. 45 No Governo Lula, a taxa de câmbio voltou a se valorizar de novo, a partir de 2005 – em virtude de um novo ciclo de elevação das taxas de juros, iniciado em setembro de 2004, e dos elevados superávits na balança comercial -; o que tem provocado protestos dos exportadores, em especial o agronegócio e os ruralistas. Em contrapartida, foi editada, recentemente, uma medida provisória na qual, entre outras coisas, se desonera ou elimina a cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados na compra de máquinas e equipamentos destinada à ampliação de capacidade produtiva. Também isenta das contribuições sociais, PIS e COFINS, a aquisição de equipamentos por empresas que exportaram pelo menos 80% de sua produção nos últimos três anos. A mesma regra vale para exportadores de programas de computador e serviços de tecnologia da informação. 42 5- O Modelo Neoliberal e as Classes Trabalhadoras e suas Representações A reestruturação produtiva e as políticas neoliberais mudaram o perfil e a composição das classes trabalhadoras no Brasil: houve uma redução do peso relativo dos assalariados e dos trabalhadores industriais, tendo como contrapartida o crescimento da informalidade, com uma maior fragmentação da classe trabalhadora (Oliveira, 2003). Em resumo, uma maior fragilidade e heterogeneidade da classe trabalhadora e, portanto, uma menor identidade entre os seus diversos segmentos, com redução de sua capacidade de negociação. Isto tudo se deu em razão da desestruturação do mercado de trabalho, acompanhada por um processo de desregulamentação das relações trabalhistas (Krein, op.cit), que levou ao crescimento do desemprego e ao aprofundamento da precarização do trabalho e das formas de contratação (cooperativas, terceirização, etc). Adicionalmente, assistiu-se também ao empobrecimento/enfraquecimento de segmentos da “classe média” assalariada associada ao antigo MSI – em razão do desemprego e da queda do rendimento -, em particular trabalhadores com maiores rendimentos, atingidos pelo processo de reestruturação das empresas, e os assalariados de carreira do setor público, atingidos pelas reformas administrativa e previdenciária, além do arrocho salarial decorrente da política de obtenção de elevados superávits ficais primários. Todas essas transformações atingiram também, em cheio, a esquerda e as organizações representativas dos trabalhadores, em especial os sindicatos e o Partido dos Trabalhadores. O ponto de inflexão foi a vitória de Collor nas eleições de 1989 – mesmo ano da derrocada do socialismo real -, que empurrou os movimentos sociais e trabalhistas, a partir de então, para a defensiva e foi responsável por um lento, mas permanente, movimento de transformação política-ideológica da maior parte de suas direções, no sentido de restringir a sua atuação política aos limites dos espaços que a nova ordem lhes reservava. Desse modo, gradativamente, o movimento sindical combativo - cuja expressão maior era a CUT - encolheu-se e passou a adotar uma estratégia defensiva – economicista e fragmentada corporativamente - de adaptação à nova ordem; estratégia essa denominada, eufemisticamente, de propositiva ou de resultados. Concomitantemente, o PT, com o aprofundamento de sua institucionalização – com vitórias eleitorais em municípios e estados importantes -, iniciou a escalada progressiva que o transformou num partido da 43 ordem. Para isso, teve que passar por transformações internas fundamentais, com uma enorme centralização das decisões e o enquadramento das suas tendências mais à esquerda pela tendência majoritária (Articulação), reduzindo o espaço de debates, formulações e questionamentos, cuja expressão maior foi a destruição dos núcleos de base que formavam o Partido. Agora, pode-se ver, claramente, que, de eleição em eleição (1989, 1994, 1998 e 2002), o Partido foi se transformando politicamente, se configurando como um enorme aparelho burocrático - instrumento eficiente de ascensão econômico-social, através da geração de emprego, prestígio e proximidade com o poder econômico. Isto se refletiu diretamente no financiamento das campanhas eleitorais, nos programas de Governo apresentados, nos discursos falados, nas alianças político-eleitorais efetivadas e, mesmo, nas formas de recrutamento e de fazer as campanhas – com a substituição, gradativa, de militantes por cabos eleitorais remunerados. Assim, para se entender o que vem ocorrendo com o PT e o Governo Lula deve-se perceber que, para além da tese da traição de Lula e das direções partidárias, o que parece ser uma mudança brusca - repentina e inesperada -, foi, na verdade, produto do mesmo processo que levou à vitória político-ideológica do neoliberalismo no Brasil. Assim como essa vitória não foi resultado de um big-bang (o Governo Collor) , o transformismo do PT e de lideranças partidárias e sindicais também não o foi; na verdade, em lugar de servir de explicação, a traição é que carece de ser explicada - enquanto um dos elementos de um processo muito maior e mais complexo, que culminou em uma grande derrota para as forças populares desse país. A crise da democracia representativa formal, produto da incapacidade histórica da burguesia se tornar hegemônica, bem como a imposição da ‘via única’ para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, também ajudam a entender a natureza do Governo Lula e a explicar o transformismo do PT e de seus principais quadros dirigentes. Ao não conseguir se constituir em um Partido claramente anticapitalista – uma vez que a dubiedade político-ideológica foi uma constante, juntamente com um programa políticoeconômico que, no final das contas, pretendia a construção de uma outra via para o capitalismo no Brasil -, as sucessivas vitórias eleitorais para prefeituras de municípios e governos de estados, num momento de fragmentação e enfraquecimento político das classes trabalhadoras, o transformou, aos poucos, em mais um Partido da nova ordem neoliberal. A 44 vitória para a Presidência da República apenas explicitou, de forma bastante clara e, para muitos, dolorosa, a conclusão desse processo. O novo Presidente do PT, ao assumir o posto, após a queda do titular anterior – motivada pela crise política deflagrada após a denúncia de compra de deputados para votar a favor do Governo Lula -, fez uma defesa do PT, que resumiu de forma muito clara o papel que esse Partido deve desempenhar no sistema político brasileiro e que dispensa comentários: “Se as classes populares não tiverem um mediador democrático dentro do Estado de Direito, como o PT, que transforme suas demandas em lutas com qualidade dentro da legalidade, o Brasil pode entrar numa situação de anomia semelhante à da Colômbia. A destruição ou a diluição do partido pode levar para uma desesperança radical e aguçar de maneira irracional os conflitos de classe do Brasil, uma radicalização dos confrontos de classe. As pessoas que eventualmente queiram destruir o PT devem pensar muito bem quais as conseqüências disso para a história do país” (FSP, 12-07-2005) Apesar de tudo, o projeto neoliberal não conseguiu tornar-se hegemônico, com a constituição de um amplo consenso na sociedade, através da incorporação orgânica de importantes setores das classes trabalhadoras. No entanto, conseguiu impactar ideologicamente vários de seus segmentos, obtendo um apoio difuso – ou pelo menos uma não oposição ativa - para as reformas neoliberais que, juntamente com o conjunto do modelo neoliberal, não são vistas como regressivas socialmente pelo conjunto da população (Boito, op. cit.). O Governo Lula, da mesma forma que os Governos FHC, mas aproveitando da origem operária do Presidente e da inserção do PT no movimento popular, explora as contradições existentes no interior das classes trabalhadoras, em especial buscando apoio para o projeto neoliberal na base social do que já foi chamado de “novo sindicalismo”: operários das montadoras de veículos e outras grandes empresas multinacionais, petroleiros, petroquímicos e bancários. Diferenciados do ponto de vista econômico e organizacional, esses trabalhadores estão representados no PT e na CUT por um mesmo grupo político que controla e dirige essas organizações, denominado Articulação e Articulação Sindical (Boito, op. cit.). A base político-ideológica de cooptação material – cargos, empregos, prestígio e remunerações - das lideranças desses segmentos se apóia no economicismo sindical e numa 45 espécie de novo corporativismo; elementos que estiveram na origem do novo sindicalismo nos anos 1970, que foram deixados de lado com a politização derivada da luta contra a ditadura durante os anos 1980 e que voltaram à cena de novo nos anos 1990, após a derrota sofrida pelos setores populares nas eleições de 1989 - num momento de grande desemprego, decorrente da recessão de 1990/92, e abertura comercial, promovidos pelo Plano Collor e que levou esse sindicalismo a uma posição defensiva (Boito, op. cit.). Esse economicismo se ampliou enormemente, após a reforma da previdência de 2003 e a criação dos fundos de pensão associativos, já mencionados anteriormente, que vincula organicamente os sindicatos ao mercado financeiro, articula os interesses empresariais com os interesses das direções sindicais (ampliando a “nova classe”) e descaracteriza de uma vez o papel do sindicato como instrumento de classe; de fato, está-se vivendo um processo de completa transformação da natureza do sindicalismo brasileiro46. No plano dos direitos sociais universais, esses segmentos de trabalhadores e suas lideranças podem, em certa medida, prescindir da legislação social e trabalhista e, portanto, admitir a sua flexibilização – em razão de já estarem inseridos no segmento privado dos planos de saúde e de aposentadoria complementar. Apesar disso, o baixo crescimento econômico, o desemprego e a queda dos rendimentos seguem sendo elementos que dificultam a incorporação orgânica desses segmentos ao projeto neoliberal e colocam arestas nas suas relações com o Governo Lula; é como se aspirassem um neoliberalismo com crescimento econômico e expansão do emprego, de difícil implementação, até aqui, no modelo neoliberal periférico (Boito, op. cit.). O projeto neoliberal, através do que se poderia chamar de um novo populismo regressivo, conseguiu também um apoio inorgânico e difuso em segmentos pauperizados e desorganizados das classes trabalhadoras - tendo por base a revolta desses setores contra o caráter historicamente excludente dos direitos sociais, os péssimos serviços públicos, o clientelismo, o nepotismo e o fisiologismo. Essa revolta foi direcionada pela ideologia burguesa contra o Estado e os servidores públicos – estes últimos identificados como um segmento social privilegiado. Nessa estratégia, o Governo Lula tem mais capacidade, do que o seu antecessor, de aprofundar esse populismo regressivo, indispondo os trabalhadores 46 Uma passagem do sindicalismo “propositivo” e de resultados (negociação) para um sindicalismo, literalmente, de negócios. 46 muito pobres contra os direitos sociais dos trabalhadores formalizados, em razão de suas origens populares e também em função da redução, ou mesmo extinção, da antiga resistência parlamentar feita pelos partidos de esquerda (Boito, op. cit.). Além disso, têm-se também as políticas sociais compensatórias dirigidas a esses segmentos que, na realidade, se constituem na contra-face do superávit fiscal primário que é destinado ao pagamento dos juros do capital financeiro. A lógica neoliberal é a de reduzir os recursos para as políticas sociais universais, transferindo-os para o pagamento dos juros da dívida pública; as políticas sociais focalizadas aparecem nesse contexto como instrumento político desse objetivo. Em síntese, as políticas sociais devem ser restritas, dirigidas seletivamente apenas para “os mais pobres entre os pobres”. Na verdade, através da implementação de programas de transferência de renda assistencialistas, as políticas sociais compensatórias - cimento de um novo tipo de populismo -, estão construindo uma nova base de apoio ao Governo Lula - tendo em vista a tendência do descolamento desse governo de suas bases sociais tradicionais: os segmentos de trabalhadores mais organizados e politizados, bem como a dificuldade em controlar politicamente esses trabalhadores; essa nova base está assentada no segmento da população de mais baixa renda do país – “os mais pobres entre os pobres” -, definida, pelos programas governamentais, como as famílias com renda per capta mensal inferior a R$ 100. Do ponto de vista financeiro, o montante global de recursos direcionados a esses programas é relativamente pequeno47, mas a sua amplitude já atinge um grande contingente de pessoas (concentradas principalmente no Nordeste e em pequenas cidades): 4,2 milhões de famílias, em torno de 16,5 milhões de brasileiros – melhorando, de fato, o consumo alimentar dessas pessoas (Marques, 2004). Nesse quadro, de dominância da ideologia neoliberal, mas incapacidade hegemônica do projeto a ela associado, assiste-se a uma crise das instituições políticas e de representação política (dos sindicatos e partidos), que é decorrente do processo objetivo de redefinição da composição da classe trabalhadora, mas também de cooptação políticoinstitucional de parcela majoritária das direções sindicais e partidárias - acentuada com a 47 O conjunto dos programas sociais do Governo Lula, unificados no chamado Bolsa-Família, teve um orçamento, em 2003 e 2004, em torno de R$ 6 bilhões. A título de comparação, os juros da dívida pública e o superávit fiscal atingiram, em 2003, respectivamente, R$ 150 bilhões (10% do PIB) e R$ 67 bilhões; e, em 2004, R$ 128 bilhões (7%) e R$ 81 bilhões. 47 chegada ao governo do PT, e da aliança por ele constituída, que vem servindo de anteparo para o governo na sua relação com os movimentos sociais e o movimento sindical (basta observar no que se transformaram as manifestações do dia 1 o de maio organizadas pela CUT e as demais centrais sindicais). Essa crise de representação é fortemente alimentada pelo Governo Lula, ao realizar o amálgama entre governo, partido e sindicato, na mais pura tradição stalinista (“fora de lugar”), de aparelhamento do Estado e transformação das organizações de massa em “correias de transmissão” do governo. O comportamento subserviente da CUT, a partir do Governo Lula, e a indicação recente do seu Presidente para ocupar o cargo de Ministro do Trabalho, são exemplos paradigmáticos desse fenômeno Os partidos, em particular o PT, se “estatizam”, acentuando um processo de profissionalização que já vinha ocorrendo muito antes da eleição de Lula – no sentido de seus quadros “viverem” da política, com a cooptação político-ideológica através da ocupação de cargos e funções no aparelho de Estado e no próprio partido; o militante ideológico tradicional perde espaço no partido e reproduzem-se e renovam-se os traços fundamentais característicos da relação dos setores dominantes com o Estado, qual seja, o patrimonialismo, o clientelismo e o empreguismo – com o crescimento da importância de um segmento social específico, que já vinha se constituindo e consolidando durante a década de 1990, cuja característica maior de seus integrantes é o fato de serem gestores/administradores de fundos públicos e de fundos de pensão de empresas estatais, ao mesmo tempo em que tem forte influência na CUT e no PT, confundindo-se com a burocracia e o corpo de funcionários dessas organizações (Oliveira, 2003 e 2005). A reforma sindical proposta pelo Governo Lula fortalece, com a centralização do poder nas centrais sindicais, a burocracia sindical e facilita a cooptação dos dirigentes sindicais e os acordos de cúpula, bem como o controle do movimento sindical, através do enfraquecimento dos sindicatos de base; além disso, dificulta a greve como instrumento de luta (Druck, 2004). Apesar desse quadro adverso, observa-se uma reação de alguns segmentos populares – que se recusam à cooptação material e ideológica -, que se mobilizam politicamente e questionam, em maior ou menor grau, o Governo Lula, identificando-o como continuador das políticas neoliberais; com especial destaque para o MST, atingido 48 diretamente pela política de ajuste fiscal (superávits primários); movimentos pela moradia nas grandes cidades, setores da Igreja Católica (Pastoral da Terra) ligados à Teoria da Libertação, que questionam a política social executada; servidores públicos, ameaçados em suas condições de vida com o arrocho salarial e a reforma da previdência; segmentos ainda minoritários do sindicalismo, parte importante e crescente da intelectualidade e tendências políticas de esquerda minoritárias, de dentro e de fora do PT. 6- Considerações finais As transformações estruturais ocorridas na sociedade e na economia brasileira, a partir da vitória do projeto político neoliberal, são irreversíveis, passando a fazer parte da atual fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. As classes e frações de classes se re-configuraram e deram origem a um novo bloco de classes dominantes; nesse mesmo processo as classes trabalhadoras também foram impactadas profundamente, tanto do ponto de vista material quanto do político-ideológico. Nessa nova fase do desenvolvimento capitalista no Brasil, a abertura comercial e financeira, com a internacionalização da estrutura produtiva do país e a transnacionalização de seus grandes grupos econômico-financeiros, integrou e soldou, de forma orgânica e sem retorno, a economia do país à dinâmica da acumulação de capital no plano internacional. O novo modelo econômico, ao atualizar a dependência tecnológica e financeira do país, moldou as duas principais características da grande burguesia brasileira dos dias atuais – próprias de todas suas frações -, quais sejam: o seu caráter financeirizado e a sua atuação mundializada. A forma como isso foi feito, forjou um consenso básico entre as distintas frações do capital, sem exceção – independentemente de suas respectivas origens, tamanhos e posições no processo de acumulação capitalista -, que abrange os seguintes pontos: 1- a abertura comercial e financeira da economia, com a sua conseqüente internacionalização, é uma das condições obrigatórias de inserção do país na nova ordem dominada pelo capital financeiro; 2- a dominância do capital financeiro e o processo de financeirização da economia não podem, no essencial, ser questionados; portanto, a adaptação à nova ordem capitalista é o único caminho a ser trilhado pelos capitais individuais; 3- a continuação do processo de privatização - com a conseqüente redução do Estado no âmbito produtivo - deve continuar, 49 tanto através das privatizações (PPP) dos novos investimentos na área de infra-estrutura do país, quanto através da venda das empresas públicas ainda existentes; 4- a desregulamentação do mercado de trabalho e a flexibilização da legislação trabalhista devem ser aprofundadas, e os sindicatos, sob o controle do Estado – conforme a nova reforma sindical proposta pelo governo -, devem ser transformados em órgãos de colaboração e instrumento de competitividade das empresas. A importância assumida pelas exportações a partir do 2º Governo FHC – com seus efeitos multiplicadores sobre o mercado interno e o conjunto da economia -, não muda, no essencial, o modelo econômico neoliberal, apenas torna sua dinâmica macroeconômica menos instável - atualizando a dependência externa do país. O dito capital produtivo – industrial e agrícola -, em tese, oposto ao capital especulativo, além de já estar também financeirizado, se articula dentro do modelo como peça importante: na verdade, passou a ser gerador das divisas necessárias à remuneração do capital financeiro, garantida em primeira instância pela rolagem da dívida pública e pela política econômica implementada. Nessa nova fase do capitalismo, a dinâmica do mercado interno passa a depender, cada vez mais, das exportações e dos fluxos financeiros internacionais, que condicionam, e mesmo subordinam, as políticas econômicas adotadas. Com tudo isso, se inviabiliza, de novo, qualquer possibilidade (séria) de distribuição da propriedade e da renda, restando uma pseudodistribuição através da utilização de políticas sociais compensatórias focalizadas. – chamada por Oliveira (pó. cit) de “funcionalização da pobreza”. Em suma, a nova fase do capitalismo no Brasil atualiza as características marcantes de sua formação econômico-social, quais sejam: a dependência externa tecnológica e financeira, com grande transferência de renda para fora do país; enorme concentração de renda e desigualdade social; rebaixamento permanente do estatuto do trabalhador; patrimonialismo nas relações entre o privado e o público e, como produto da incapacidade hegemônica da burguesia, centralização e deslocamento do poder político real para fora das instituições políticas formais – o que tem implicado em reiteradas crises políticoinstitucionais. Essa incapacidade hegemônica, de caráter histórico-estrutural, se atualizou e se agravou a partir da vitória do projeto neoliberal, em virtude do mesmo não conseguir acomodar os interesses – mesmo que parciais e secundários - dos segmentos mais 50 importantes das classes trabalhadoras. O modelo econômico neoliberal periférico, dependente tecnológica e financeiramente na sua relação externa, tem como característica intrínseca de seu funcionamento interno a desestruturação do mercado de trabalho, com a ampliação trágica do desemprego, a precarização das condições de trabalho e a retirada dos direitos sociais e trabalhistas conquistados no período desenvolvimentista do Modelo de Substituição de Importações. Com o Governo Lula, a cooptação material, e político-ideológica, de um número expressivo de lideranças sindicais e partidárias, juntamente com as políticas sociais focalizadas, são instrumentos importantes de controle e manipulação política, mas são totalmente insuficientes para construir um consenso no conjunto da sociedade. Essa situação tende a se agravar com o aprofundamento da crise ética e moral do Governo Lula e do PT, com a criação de um sentimento generalizado – que já pode ser observado - de descrença com relação aos partidos, ao parlamento, à política e aos políticos, explicitandose, mais ainda, a irrelevância da democracia representativa, na qual a população vota de quatro em quatro anos, para que grupos político-econômicos, alternadamente, aparelhem o Estado em seu próprio benefício, enquanto o capital financeiro decide, em causa própria, todos os dias – no âmbito interno de órgãos do Estado que estão fora do alcance da disputa política. A presente crise, iniciada em fins de maio de 2005, explicitou-se a partir de denúncias de corrupção no interior do Governo Lula e nos principais partidos da base aliada (PT, PL, PP e PTB). Mas a crise não se restringe apenas a esses sujeitos; é evidente que a compra de parlamentares – por cargos, financiamento de campanhas através de “caixa 2” e mesmo dinheiro – se constitui numa prática usual, presente em todos os partidos, da situação e da oposição. Desse modo, a corrupção não se apresenta, simplesmente, como exceção, restritamente localizada e que, portanto, pode ser cirurgicamente extirpada. Na verdade, ela é elemento estruturante e operante da vida política, se constituindo em parte componente do sistema político de representação – a partir do momento.em que o projeto neoliberal deslocou a política pela economia. Assim, a crise moral é, na realidade, a ponta do iceberg; o centro da crise é político e se refere à fragilidade e irrelevância da democracia representativa no contexto neoliberal, no sentido de não conseguir encaminhar os interesses das classes trabalhadoras – com a 51 balcanização do Estado, o crescimento da autonomia relativa do sistema político – descolando-se das suas bases de representação - e a profissionalização explícita da atividade política. Do ponto de vista do bloco dominante, a disputa entre o PT e o PSDB expressa, acima de divergências menores e interesses particulares imediatos, uma competição política para saber quem conduz, articula e sintetiza melhor, os interesses das diversas frações da burguesia – soldando-os e tornando-os mais compatíveis possíveis48. No entanto, o “modus operandi” de ambos, no fundamental, já não se diferencia; o financiamento das campanhas, o nepotismo e a ocupação patrimonialista do Estado, as relações fisiológicas como balizador dos acordos e as relações utilitaristas com os grandes grupos econômicos se constituem em um padrão geral desses partidos e dos profissionais da política em geral. O desenlace da crise é muito incerto; porém observa-se, por parte das classes dominantes, uma tentativa de preservação do presidente Lula – cuja popularidade, ainda grande, é um forte motivo para essa estratégia - e das autoridades econômicas, em particular o Ministro da Fazenda; estratégia essa que tem por objetivo principal “blindar” a economia contra a crise em curso. Ao mesmo tempo, as classes dominantes apóiam a apuração das denúncias e desgastam, o mais que podem, o PT e seus quadros dirigentes – destacando o seu caráter semelhante ao de todos os demais partidos e, nessa medida, passando, deliberadamente, a idéia de que um partido “socialista” também pode ser corrupto/corruptor e praticar irregularidades e ilegalidades. Nesse aspecto, revela-se, claramente, a importância do elemento simbólico na disputa política; as classes dominantes, ao desconstruirem o PT, têm por objetivo maior desqualificar a capacidade das classes subalternas construírem algo novo, através de uma ação política autônoma e independente. Assim, a estratégia parece ser a de colocar Lula como refém – tutelando-o de forma mais direta - e isolar a política econômica da crise, tentando, ao mesmo tempo, avançar alguns graus à direita, através, por exemplo, da elevação do superávit fiscal primário, com o aumento das Desvinculações das Receitas da União (DRU) - o que possibilitaria a redução dos gastos correntes do governo, em especial com a educação e a saúde, transferindo-os para o pagamento dos juros. 48 Do ponto de suas respectivas bases sociais, o PT, apesar das transformações por que passou, ainda tem uma base popular e uma militância articulada – associadas ao movimento sindical e aos movimentos sociais -; o PSDB é, claramente, um partido de segmentos sociais mais elevados, sem militância de base orgânica. 52 Essa segunda parte da estratégia, que já está em andamento, com a colaboração do ex-ministro da ditadura Delfim Neto, tem por objetivo “zerar” o déficit nominal do setor público – proposta esta que, do ponto de vista do bloco dominante, é uma tentativa política de soldar mais ainda as distintas frações do capital – de um lado, prometendo a queda da taxa de juros para os setores produtivos e, de outro, aumentando o superávit fiscal primário para o pagamento dos juros do capital financeiro, além de “constitucionalizar” a política econômica ortodoxa. Nesse contexto, ao contrário de uma tentativa de golpe institucional – como, equivocadamente, o PT, o PC do B e alguns movimentos sociais passaram a denunciar -, as classes dominantes e suas representações políticas, incluindo aí segmentos majoritários do PT, vêm costurando um acordo político que garanta a “governabilidade”, isto é, que impeça o Presidente Lula de ser afastado do cargo. Isso ocorre por, pelo menos, quatro razões, quais sejam: 1- Antes de tudo, porque o Governo Lula tem sido um bom governo para o bloco dominante, não apenas em virtude de sua política econômica e das reformas que promoveu, e promete promover, mas também em razão de sua capacidade, decorrente de sua legitimidade popular, de apaziguamento ou, pelo menos, de redução do ímpeto político do movimento sindical e dos movimentos sociais. 2- Um processo de afastamento do Presidente da República, tal como já visto no caso de Collor, pode trazer incerteza e instabilidade político-econômica, podendo se transformar numa arena política para as classes subalternas. 3- Uma das incertezas mais importantes se refere ao substituto de Lula, caso ocorra o seu afastamento; além da conhecida oposição do Vice-Presidente da República à política monetária de juros elevados, tem-se a possibilidade - de acordo com a linha sucessória e caso o vice-presidente se afaste para disputar o Governo de seu estado – do “folclórico” Presidente da Câmara de Deputados vir a assumir o posto de Presidente da República. 4- Por fim, a sua derrota política, e a do PT, deve ser legitimada pelas urnas, nas eleições de 2006 - não devendo pairar a menor dúvida, para as classes subalternas, de que a sua saída, caso isso venha acontecer, tenha decorrido da vontade, ou de qualquer tipo de golpe, das “elites”. Desse modo, o corolário, quase que óbvio, da análise aqui feita é de que: 1- Não há qualquer possibilidade de construção e implementação de um projeto nacional sob a direção das frações mais relevantes da burguesia brasileira, o que significa dizer que a luta 53 antiimperialista e a realização das sempre inconclusas “tarefas democráticas” só poderão se conduzidas pelas classes trabalhadoras; 2- Urge romper o “círculo de ferro do neoliberalismo”, através da negação do economicismo e a afirmação da política e da vontade dos sujeitos sociais e de sua capacidade de transformação. Essa é a pré-condição básica para se buscar uma alternativa à política e ao modelo econômico atualmente existente. Sem essa atitude, reproduzem-se, aí sim de forma inevitável, as condições político-econômico-sociais em que se assenta a dominação do capital financeiro. 3- A reinvenção da política terá que passar pela re-invenção das formas de organização e mobilização política; as formas atuais estão, claramente, num processo de esgotamento acelerado (Oliveira, op. cit.). Mas, mais do que isso, é evidente que a chegada ao poder formal da Presidência da República, quer seja através do transformismo, como foi o caso do PT, quer seja por um partido, ou algum outro tipo de organização, que, futuramente, possa vir a articular a luta dos trabalhadores brasileiros, a partir de um programa claramente socialista, nem de longe se confunde com a obtenção do poder real. Isso significa dizer que, mais do que nunca, ao colocar a disputa político-eleitoral, e institucional em geral, no centro da ação política – em detrimento da educação e da organização direta das classes trabalhadoras – acaba-se sempre, inevitavelmente, sendo engolido e legitimando a ordem de coisas existente, com a permanente atualização da Revolução Passiva brasileira. Essas conclusões, em razão das enormes dificuldades que evidenciam para a prática política imediata e dos grandes desafios delas decorrentes, podem ser desanimadoras ou, alternativamente, abrir uma vereda que, embora mais trabalhosa, poderá ser trilhada de forma mais consistente. Assim, caso se concorde com a análise aqui feita, o maior desafio dos socialistas, e que não é nem um pouco trivial, é conseguir traduzi-la, e às suas conclusões, para a ação política imediata e muito mais concreta, no interior da sociedade burguesa e de suas instituições, sem deixar-se engolir pela sua ordem mas, também, sem se deixar isolar, politicamente, das classes trabalhadoras – tornando-se, assim, estéreis e irrelevantes na disputa política com as classes dominantes e seus representantes. 54 7- Bibliografia ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E., PABLO, G. (orgs.) Pósneoliberalismo - As políticas sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9-23. ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? - ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995. ARCEO, E; BASUALDO, E. Projeto de Estudo: Apresentação e desenvolvimento da problemática proposta. Grupo de Estudos do CLACSO: Setores Dominantes. Mimeo. 2004 BIANCHI, A. 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