A cidade e as serras

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A cidade e as serras
A cidade e as serras
Eça de Queirós
Resumo de Obras Literárias
A cidade e as serras
Eça de Queirós
Sinopse
A Cidade e as Serras é um romance composto por 16 capítulos
que contam a transformação de Jacinto de Tormes de homem
superurbano e adepto incondicional da civilização e do progresso (a
cidade de Paris), entregue a um cansaço e a um tédio inexplicáveis,
em homem apaixonado pela natureza e pelo campo (as serras de
Tormes, em Portugal), cheio de entusiasmo e apetite pela vida.
Podemos dividir os 16 capítulos do livro em duas partes, cada uma
delas dedicada a uma das fases da vida de Jacinto. A primeira parte é
formada pelos capítulos de 1 a 7 e metade do oitavo; a segunda parte
vai de metade do oitavo capitulo até o final do livro.
Resumo do enredo
Capítulo 1
Jacinto nasceu “em um palácio, com cento e nove contos de renda”, que vinham da exploração das terras
de sua família, de tradicional nobreza portuguesa.
Era neto de outro Jacinto, que um dia foi socorrido de um tombo na rua pelo próprio infante Dom Miguel. A
partir de então, o velho Jacinto se tornou o mais fiel devoto da monarquia e do infante. Defendeu-o como
pôde dos liberais, e quando o rei partiu para o exílio definitivo, partiu ele também, em viagem cheia de
acidentes, para a França. Em Paris, comprou um palacete na Avenida dos Campos Elísios, nº 202. Passou
a viver da “boa mesa”, até que morreu de indigestão.
Sua mulher, Dona Angelina, com medo da viagem de volta para Portugal, ficou em Paris cuidando do filho,
o Cintinho, rapaz magro, amarelo, muito doente. Cintinho apaixonou-se por Teresinha Velha, moça de
família nobre e prendada; casou-se com ela em 1851, apesar de condenado pelos médicos. Morreu logo em
seguida e “três meses e três dias depois do seu enterro” nasceu o Jacinto de nossa história.
Jacinto nasceu sob as simpatias da avó Angelina para que não tivesse a “sorte ruim” do pai. A simpatia não
podia ter dado mais certo: cresceu ele forte, sadio e inteligente. Entre os amigos, era um líder; nunca sofreu
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de paixão; seu maior interesse eram os livros e as ideias – e todas as suas opiniões e ideias mereciam
respeito e admiração; até a sorte e a natureza lhe premiavam. Por tudo isso, Jacinto era chamado de
“Príncipe da Grã-Ventura”.
José Fernandes, o narrador da história, conheceu Jacinto nas escolas de Paris, onde foi estudar por
ter sido expulso da universidade em Portugal, depois de ter esmurrado um professor. Era por volta de
1875 e Jacinto já havia formulado sua tese sobre a vida: “O homem só é superiormente feliz quando é
superiormente civilizado”, entendendo-se isto assim: só o homem que domina toda a ciência e a filosofia
acumuladas ao longo da História e sabe fazer uso dos progressos técnicos alcançados pelo conhecimento
pode gozar e aproveitar a vida ao máximo. Saber e poder proporcionam felicidade ou – como colocou em
“equação metafísica” um amigo de Jacinto:
Jacinto começou a colocar em prática sua tese: comprou uma enciclopédia e um telescópio e explicou
para o amigo Zé Fernandes: enquanto um olho comum só enxerga o outro lado da rua, com o telescópio
se conhece Marte, tem-se uma outra noção do mundo; assim Renan, um homem culto, seria mais feliz que
Grilo, o criado do 202. Zé Fernandes não via utilidade em conhecer Marte nem sabia dizer se um homem de
ciência era mais feliz que o Grilo, mas concordava e propunha que bebessem.
O único lugar onde Jacinto podia exercer sua tese, o lugar que ele amava, era a cidade. A cidade grande
com seus milhares e milhões de habitantes, suas ruas incontáveis sempre cheias de gente, suas indústrias,
seus supermercados, seus bancos, com sua complicada engrenagem de carros, telefones, telégrafos,
canos de água, gases e esgoto; com seus labirintos onde a maioria dos homens buscava o pão de cada dia
e suava para garantir o gozo eterno e o poder de alguns privilegiados como Jacinto.
No campo, pelo contrário, tudo era incerto. De nada valiam o saber dos livros e as máquinas no meio da
natureza. Em um passeio na floresta, perto de Paris, Zé Fernandes viu o desconforto e a falta de jeito
de Jacinto fora da cidade: o chão de grama não lhe era seguro; as pedras, os riachos e os galhos eram
obstáculos irritantes; todo buraco e toda planta desconhecida representavam uma ameaça. O Príncipe quis
voltar correndo para o aconchego da cidade, da civilização. Tinha ele, então, 23 anos: era um moço forte,
digno representante da nobreza rural portuguesa, embrulhado por roupas inglesas e enfeitado por uma flor
artificial, composta por uma florista.
No início de 1880, Zé Fernandes recebeu uma carta do seu tio Afonso Fernandes, que lhe ordenava parar
os estudos de Direito e voltar para sua casa rural em Guiães, região do Douro, Portugal, para cuidar dos
negócios da família. O narrador lembrou-se das flores e do céu da sua fazenda, da comida de sua tia
Vicência, animou-se e arrumou as malas para partir, com um Tratado de Direito Civil dentro da mala, para
não esquecer os estudos.
Jacinto recebeu a notícia com “espanto e piedade”, despediu-se do amigo que ia para o campo como se ele
fosse para o próprio enterro.
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Zé Fernandes ficou sete anos em Guiães, atarefado com os trabalhos da propriedade do seu tio e
aproveitando a vida no campo; nunca abriu o livro de Direito. Quando o seu tio morreu, resolveu voltar para
Paris[1].
Capítulo 2
Em Paris, Zé Fernandes encontrou Jacinto, vestido elegantemente, na entrada do 202. Por fora, o palacete
conservava os mesmos jardins bem tratados, mas por dentro era o próprio resumo da civilização. Já na
entrada, havia um elevador (num prédio de dois andares!) espaçoso, atapetado, com um divã, um guia de
Paris, charutos e livros. No segundo andar, um empregado cuidava do aquecimento e dos perfumadores de
ar. Na biblioteca, havia mais de 30 mil livros ricamente encadernados, iluminados prontamente pelas luzes
elétricas imediatamente acendidas por Jacinto. No gabinete de trabalho do Príncipe, decorado de maneira
muito sóbria, quase sem luz, espalhavam-se inúmeros objetos para as mais diversas tarefas cotidianas. No
entanto, Jacinto parecia cansado, desanimado. Estava mais magro e não mostrava a antiga energia.
Enquanto o amigo atendia o telefone e Zé Fernandes brincava com os objetos, o telégrafo começa a
transmitir uma mensagem: era um comunicado sobre um problema com um navio russo em Marselha!
No fundo da biblioteca, havia um relógio que “marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos
os planetas”. Jacinto vai escrever uma carta (a “caneta elétrica” estraga o papel e ele fica enraivecido)
enquanto Zé Fernandes termina de passear pelo gabinete e pela biblioteca: fios trançavam pelo tapete,
havia uma máquina de escrever e outra de calcular, tubos acústicos faziam a comunicação entre os
cômodos da casa. Na biblioteca, estantes de economia, filosofia, ciências naturais, história religiosa, poesia.
Por último, um “conferençofone” (rádio que transmitia conferências) espantou Zé Fernandes.
Jacinto convidou o amigo para jantar com ele e dois convidados – um psicólogo feminista e um pintor mítico.
O português recém-chegado da calma do campo recusou; estava esgotado de civilização por aquele dia.
Mas aceitou o convite para ir morar no 202 a partir do dia seguinte e ficou feliz de reencontrar o velho criado
negro, o Grilo. Antes de ir embora, perguntou a Jacinto qual a utilidade de todos os instrumentos e este lhe
explicou que serviam para facilitar suas tarefas: cortar papéis, numerar páginas, encadernar documentos e
tantas outras; mas todos falhavam constantemente.
Saíram pela sala de jantar: muito luxo na decoração e uma mesa com mais de seis tipos de garfos e vários
talheres aguardavam os convidados; águas de vários tipos estavam à disposição do Príncipe, que temia
as águas sujas da cidade. Zé Fernandes volta para o hotel pensando no seu Portugal distante e no quanto
precisava aprender sobre civilização com o seu amigo Jacinto, o Príncipe da Grã-Ventura[2].
Capítulo 3
No início das manhãs, Jacinto se arrumava para o dia. Banhava-se em um lavatório cujo jato de água era
graduado de zero a cem, escovava os dentes em uma torneira, fazia a barba em outra, enxugava-se em
quatro toalhas de tecidos diferentes, penteava-se durante vários minutos com incontáveis escovas. Depois
deste ritual, entre suspiros e bocejos, dedicava-se à sua agenda. O dia a dia de Jacinto era preenchido
por compromissos sociais ou tarefas que pudessem oferecer-lhe ainda mais civilização, mas nada disso
o animava e algumas vezes ele chegava a se irritar. Desde o início da manhã ele falava o tempo todo ao
telefone, recebia e respondia bilhetes e atendia visitas de comerciantes de todos os tipos.
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À hora do almoço, o Príncipe sentava-se reclamando da vida, bebia uma das suas águas especiais,
beliscava sem apetite algum prato, tomava seu café turco e acendia uma cigarrete russa.
Quando a agenda de Jacinto permitia, ele e Zé Fernandes saíam à tarde para passear por Paris. O amigo
logo percebeu que o Príncipe não se satisfazia com os passeios como antigamente: as lojas não lhe
interessavam mais, a pressa da população e o contato com a multidão o aborreciam e sonhava ele com
emborrachar as ruas da cidade para tornar mais agradável o passeio. Nem mesmo as visitas de carruagem
ao Bosque de Bolonha – onde passeava a elite que Jacinto antigamente considerava a força da civilização
– animavam o Príncipe. Limitava-se ele a apontar para o amigo, com tédio, os carros de conhecidos seus.
Uma ou duas vezes, Zé Fernandes provocou o companheiro com palavras sobre a dureza da cidade ou a
falta de brilho do Bosque, mas Jacinto recusava-se a admitir que Paris não era a suprema delícia da vida.
Certa noite, no palacete, rebentou o encanamento. A água fervente inundou o banheiro e outros cômodos,
os fios elétricos faiscaram, finas roupas se perderam e uma multidão de curiosos e a polícia foram
atraídos pela névoa e confusão. A notícia saiu no Fígaro[3] do domingo seguinte e choveram telefonemas e
telegramas para Jacinto: do Grão-Duque Casimiro à cocote[4] Diana. No mesmo domingo à noite receberam
a visita da Madame de Oriol, que queria ver as “ruínas” do acidente. madame de Oriol era uma flor de
civilização: vestia-se com elegância e sensualidade, maquiava-se com perfeição, envolvia a todos com uma
conversa que mais parecia o canto dos pássaros, não parava de sorrir. Bajulou Jacinto pelos telegramas
e elogiou o do grão-duque. Por fim, convidou os amigos para ir ouvir o sermão do padre Granon (um
eloquente pregador que fazia sucesso em Paris), mostrou a eles uma original criação da moda parisiense
para a Quaresma – um chapéu envolto por uma delicada coroa trançada de espinhos – e saiu.
O Príncipe, entediado, convida Zé Fernandes para um passeio “simples e natural”: ir ao zoológico ver a
girafa[5].
Capítulo 4
No domingo seguinte, Jacinto preparou uma ceia majestosa para o
grão-duque, que lhe mandara um “peixe delicioso e raro” de presente.
Pouco antes do banquete, a luz do 202 pifou. Jacinto praguejou mas
a luz logo voltou. Zé Fernandes desceu para a ceia: na entrada da
sala de jantar, uma orquestra de ciganos tocava; no gabinete, ele
encontrou a Condessa de Trèves e o historiador Danjon que, com
Jacinto como guia, conheciam os aparelhos da casa. A Madame
se maravilhava com tudo! Elogiou o gosto e o saber de Jacinto, a
eloquência do historiador e paparicou até Zé Fernandes. Era uma
alimentadora de vaidades, uma “sublime falsidade”.
Na biblioteca, junto à estante dos livros religiosos, falavam do
romance Couraça, lançado naquela semana pelo psicólogo
feminista. Todos cobriam de elogios o autor e o livro, até que o
Duque de Marizac apontou um grande erro na obra: o autor vestira a
personagem principal, uma duquesa, com um colete de cetim preto!
Ora, todos sabiam que as duquesas usavam colete branco! O psicólogo
ficou desconsolado, angustiado pelo erro descoberto, pediu perdão e prometeu corrigir o erro em entrevistas
e edições posteriores. No fundo da biblioteca, Jacinto já conversava com o Conde de Trèves – marido da
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Condessa – e com o banqueiro judeu Efraim – amante da Condessa. Os dois tentavam convencê-lo a
entrar como sócio em uma Companhia das Esmeraldas da Birmânia, tentavam disfarçar a negociata com
amabilidades e boas referências, mas Jacinto desconfiava e exigia estudos sobre a viabilidade da empresa.
Na sala de bilhar, o poeta neoplatônico e místico Dornan fumava, rodeado por um velho que contava
histórias grosseiras de mulheres, pelo crítico de teatro Joban e por um moço ruivo, que riam das histórias.
Assim corria a festa, animada pelas futilidades dos homens e mulheres, até que o mordomo avisou a
chegada do Grão-Duque e todos se atiraram para a porta de entrada.
O Grão-Duque chegou para o jantar reclamando dos restaurantes de Paris. Sua atenção foi atraída primeiro
pela Madame de Oriol e logo pelo teatrofone: chamou Jacinto para se certificar de que poderia ouvir pelo
aparelho uma cocote que estreava uma nova canção obscena. Todos se juntaram atentos à volta dos dois
aparelhos de teatrofone para ouvir, menos Zé Fernandes, que se lembrava de suas terras em Portugal.
O mordomo anunciou o jantar. Todos se sentaram à mesa. Os convidados se divertiam mas Jacinto
mostrava-se aborrecido, desanimado. Um moço ruivo lamentou não haver à mesa um bispo e um general
para completar um quadro da elite. Assim poderiam divertir-se jogando uma bomba na mesa: no fim do
século, segundo o moço, não havia prazer ou emoção no amor, nas ciências ou nas artes; o homem só
sentia satisfação em destruir, nunca em criar.
De repente, aconteceu a desgraça: o mordomo avisou a Jacinto que o elevador dos pratos emperrara entre
os andares com o peixe do Grão-Duque dentro! O Grão-Duque, furioso, dirigiu-se ao poço do elevador
para tentar fazê-lo funcionar. O esforço de Jacinto e a fúria do Grão-Duque de nada adiantaram; o elevador
nem se mexeu. Então todos se juntaram à volta do poço contemplando o peixe, até que Todelle, um jovem,
teve a ideia de pescá-lo. O Grão-Duque se animou com a ideia e esqueceu a cólera. Durante um tempo,
ficou tentando pescar o peixe com um anzol e vara improvisados, mas não conseguiu. Resolveram então
abandonar o prato principal e voltar para a mesa.
Voltaram, comeram, beberam e conversaram. Zé Fernandes resolveu se entregar às conversas do grupo,
mas Jacinto aguardava com agonia o fim da festa, o que só aconteceu às três horas da madrugada.
Três dias depois, Jacinto recebeu de Portugal a notícia de que uma tormenta passara por sua propriedade
em Tormes, região do Alentejo, provocando o desabamento da velha igrejinha que abrigava os ossos dos
seus antepassados. O procurador da fazenda avisava que começara o trabalho de recuperação dos ossos e
pedia instruções sobre o que fazer com eles. Jacinto ficou impressionado com a tragédia, conversou com Zé
Fernandes sobre suas terras e escreveu ao procurador ordenando que se reconstruísse a igrejinha[6].
Capítulo 5
Jacinto, humilhado pelos desastres no 202, resolveu reformar toda a engrenagem do prédio. O palacete
entrou em obras, enquanto novas máquinas chegavam e continuavam a maltratar de algum modo os dois
amigos. Livros e livros eram comprados e empilhados pela casa; tantos livros que um dia Zé Fernandes
teve um pesadelo: saiu caminhando por Paris e tudo que via – os prédios, as ruas, as pessoas – tinha o
formato de livros; continuou caminhando, chegou ao campo inundado de livros, subiu ao céu e encontrou o
paraíso coberto por estantes, avistou Deus – e ele lia uma edição barata de Voltaire[7] e sorria.
Zé Fernandes, por esta época, afastou-se um pouco do 202 porque se envolvera com uma mulher, Madame
Colombe, que morava na “Rua do Hélder, 16, quarto andar, porta à esquerda”. Tomado de paixão e desejo,
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entregou-se à mulher como um cego louco; durante sete semanas gastou com ela seu dinheiro, seu relógio,
seus anéis e tudo que possuía de valor. Um dia, ao visitar a amante, não a encontrou e foi avisado pela
porteira que Madame Colombe fugira com outra mulher para longe de Paris. Atordoado, Zé Fernandes
vagou pela cidade até entrar em um restaurante; comeu e, principalmente, bebeu muito. Descarregou sua
raiva esmurrando o banco da carruagem que o levou para o 202. Em casa, vomitou tudo o que comera e
bebera, “vomitou Madame Colombe”. Foi dormir aliviado, sentindo já o fim da sua cegueira de paixão.
Acordou no outro dia e reencontrou Jacinto mergulhado no mais profundo tédio. Foi o criado Grilo que
melhor resumiu o problema que enfrentava seu patrão:
– Sua excelência sofre de fartura.
De fato, Jacinto bocejava a civilização que tanto amava. Cansava-se da agitação, não queria mais passeios
ou compromissos sociais. Sentia faltar ar no 202 mas não suportava enfrentar a poeira do progresso
das ruas de Paris. No entanto, quando Zé Fernandes propunha um passeio ao campo, o Príncipe ficava
indignado e enfurecido, acendia outro cigarro e voltava a bocejar[8].
Capítulo 6
Mas em um domingo em que nada havia a fazer, Zé
Fernandes convenceu o amigo a visitar a Basílica de SacréCoeur, que estava sendo construída em Montmartre,
praticamente fora da cidade. Jacinto se divertiu com a
simplicidade das paisagens e pessoas dos subúrbios
que viu pelo caminho.
A basílica ainda estava toda coberta por tapumes e
lonas de construção e não era nada interessante, mas
o Príncipe foi atraído pela vista de Paris que se tinha do
terraço do edifício: uma cidade cinzenta, coberta por um
céu cinzento. Zé Fernandes aproveitou para provocar o amigo com um longo discurso sobre a cidade:
aquela enormidade de civilização, vista do alto da colina, não passava de uma teia de concreto, ferro e
arame que seduzia o homem e atiçava o seu desejo por dinheiro e poder. Correndo atrás deste desejo, o
homem perdia sua nobreza e sua moral: as amizades eram baseadas em interesses, o amor era comprado
e vendido nas ruas, a inteligência se resumia aos que repetiam ideias e fórmulas e aos que inventavam
novidades para aparecer. Nas cidades, o homem se tornava escravo de uma ilusão infeliz. Além disso, para
que poucos, como Jacinto, pudessem gozar os prazeres que ela oferecia – as roupas de luxo, as comidas
finas, os palacetes confortáveis, a diversão incessante – muitos se esforçavam para sobreviver na miséria
– cobertos de trapos, passando fome e frio nas ruas, trabalhando sem parar e sem poder se cansar. Jacinto
concordou com o discurso do amigo e eles desceram do terraço. No caminho, Zé Fernandes continuou: a
solução para a humanidade não estava nos políticos, nos benfeitores, nos filósofos nem nos revoltados,
mas na volta do Cristo! Terminaram a discussão; o Príncipe estava com vontade de fumar e Zé Fernandes,
com sede.
Ao saírem da basílica, um homem gritou por Jacinto: era Maurício, um conhecido que ele não via há três
anos. Maurício, como Jacinto, vivia “na babel de éticas e estéticas” das modas intelectuais e espirituais que
iam e vinham por Paris, mas há três anos largara tudo e viera morar em Montmartre com um guru budista.
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Maurício despediu-se dos dois amigos; Zé Fernandes, impressionado, perguntou a Jacinto quem era o
“bruxo”. Jacinto respondeu que era um rapaz de família nobre. E que aquele seu budismo também era uma
chatice.
Voltaram então para Paris e Zé Fernandes pôde matar sua sede com boa cerveja, boa água e bom vinho,
enquanto o Príncipe sonhava em construir uma casa em Montmartre para “descansar de tarde e dominar a
cidade[9]”.
Capítulo 7
Naquele ano, Jacinto tornou-se amante de Madame de Oriol. Visitava-a sempre e começou a levar Zé
Fernandes para as conversas que mantinha com ela às tardes. Madame de Oriol era a encarnação da elite
parisiense: bonita, fina e cativante, sua vida resumia-se a fazer-se sempre bela e agradável para os de sua
classe. Gastava o seu tempo em reuniões de coluna social, em quermesses de caridade, em costureiros,
em passeios pelos bosques e igrejas. Sua inteligência, tão consistente quanto o pó-de-arroz que usava,
limitava-se a reproduzir o que a moda ditava sobre qualquer obra de arte e a defender a monarquia, sem
qualquer argumento, contra qualquer outro regime.
Apesar de sua beleza e do seu permanente sorriso nos lábios, nem mesmo Madame de Oriol conseguia
animar Jacinto. Certo dia, ele e Zé Fernandes foram até a casa dela e encontraram na entrada o seu
marido, furioso. Disse ele ao Príncipe que brigara com a mulher porque ela se tornara amante de um criado;
que ela o traísse com gente “de sua roda”, tudo estaria bem, mas com empregados, não! Ele tinha um nome
a defender! Apertou a mão de Jacinto e se foi.
Zé Fernandes, no mês de agosto, resolveu realizar uma viagem pela Europa que programara há tempos.
Durante trinta e quatro dias enfrentou uma correria: trens, hotéis, restaurantes, catedrais e museus.
Voltou para o 202 sem dinheiro e cansado. Encontrou Jacinto ainda mais descorado, desanimado e triste.
Começou então o esforço do Príncipe para compreender racionalmente o próprio tédio e vencê-lo. Se tinha
toda a sorte, inteligência e conforto, se era o mais civilizado dos homens, só havia um motivo para Jacinto
ser triste e entediado: viver era algo entristecedor e tedioso. E Jacinto tornou-se um pessimista. Para o
Príncipe, o sofrimento só podia ser uma lei universal: todos sofriam, desde os mais remotos tempos até
aquele século XIX em que vivia. O Eclesiastes[10] e Schopenhauer[11] provavam isso.
Zé Fernandes se divertia. O seu amigo encontrara uma razão para viver: maldizer a vida. E para exercitar
seu tédio Jacinto não poupou esforços: deu uma magnífica festa em que tudo (da comida às roupas à
decoração) era cor-de-rosa – as “festas de cor” estavam na moda em Paris; tornou-se um benfeitor – fundou
um hospício, um asilo e um hospital para crianças; fez experiências com Maurício – o rapaz budista – e
seu guru; ligou o 202 ao telégrafo do Times[12] para estar sempre prontamente informado sobre tudo que
acontecia na Europa. Depois de cada esforço de prazer, de espírito e de inteligência, abria os braços e
exclamava:
“– Vês tu, Zé Fernandes? Uma maçada![13]”
Mas Jacinto se cansou até do pessimismo. O Príncipe voltou ao velho tédio com indisposição redobrada;
assustava Zé Fernandes com conversas sobre suicídio e o irritava com sua indiferença a tudo na vida, do
mais simples cigarro às decisões mais importantes.
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O aniversário de 34 anos de Jacinto não foi comemorado. Com ironia e aborrecimento, o Príncipe leu
os telegramas e bilhetes que recebeu; não atendeu os telefonemas e só se interessou pelo presente
que o banqueiro Efraim enviara: uma mesa que se abaixava ou levantava por um mecanismo próprio.
Zé Fernandes adormeceu depois do almoço mas foi acordado pelo Grilo, preocupado com o patrão que
passava o tempo picando papel, melancolicamente. Para animá-lo, Zé Fernandes propôs que tomassem
uma xícara do raríssimo chá que fora presente do Grão-Duque. O Príncipe aceitou, mas logo se viu irritado
pela mesa de Efraim, que não conseguiu ajustar em uma altura adequada. O chá veio logo: tinha um gosto
horrível e Jacinto o cuspiu, xingando, assim que o provou.
Zé Fernandes perguntou pela reconstrução da igrejinha de Tormes; Jacinto não tinha notícias. No jantar,
outro fiasco: Zé Fernandes encomendara um prato de tradicional arroz-doce com canela para comemorar o
aniversário do Príncipe, mas o que veio da cozinha foi um doce de arroz “acanalhado”, afrancesado, coberto
de calda de cereja, frutos secos, chocolate e tangerina gelada. Recusaram o arroz-doce, brindaram aos
antepassados e foram ler jornal. Jacinto, inquieto, por um momento revoltou-se contra a própria imobilidade:
levantou-se, andou pelo apartamento, mexeu em todos os seus aparelhos e remexeu na vasta biblioteca, de
70 mil livros, mas acabou subindo para seu quarto, melancolicamente, com um jornal debaixo do braço[14].
Capítulo 8
Pouco tempo depois, entrou Jacinto uma manhã pelo quarto de Zé Fernandes, anunciando que iria para
suas terras em Tormes, Portugal, assistir ao transporte dos ossos de seus antepassados para a capela
nova, que já estava construída, segundo carta que recebera do Silvério, administrador da fazenda. Zé
Fernandes, espantado, avisou ao amigo que a casa que havia na fazenda era inabitável. Mas o Príncipe
resolveu reformar a casa e esperou pela opinião de Zé Fernandes, que fazia a barba, este animou-o.
Jacinto vagou pelo quarto sem rumo e encontrou as fotos da família de Zé Fernandes dispostas sobre uma
mesa; perguntou então a ele quem era uma “lavradeirona rechonchuda” que aparecia em um retrato. Zé
Fernandes exigiu respeito e explicou que a moça era Joaninha, sua prima.
Começaram então os preparativos para a viagem: Jacinto escreveu ao administrador da fazenda para
reformar a casa e contratou uma transportadora para levar todo o conforto do 202 até as serras de
Portugal. Encaixotaram-se móveis, tapetes, cortinas, todos os apetrechos de cozinha, comida em conserva,
águas e mais águas, para-raios e dezenas de livros. O Príncipe se reconciliou com Paris, satisfeito com
a possibilidade de levar todos os seus confortos para o campo graças às facilidades da transportadora.
Voltou a frequentar o Bosque de Bolonha, os teatros, os restaurantes e as festas. Mas tão logo terminou
o encaixotamento, voltou ele ao tédio mais profundo. Zé Fernandes, irritado, propôs que partissem logo
para Tormes. Jacinto concordou mas antes demorou-se uma semana preparando o roteiro de viagem e
escolhendo um vagão de trem confortável. Os dois amigos despediram-se de Paris com um passeio pelo
Bosque de Bolonha, onde cruzaram com todos os refinados amigos e conhecidos do Príncipe.
A viagem começou debaixo de muita chuva e com problemas. O trem que tomaram em Paris e os levaria
até Medina, na Espanha, atrasou-se no caminho. Em Medina, à noite, por pouco não conseguem pegar
o outro trem, que os levaria a Portugal. Na confusão da pressa, não embarcaram juntos com o Grilo e o
Anatole (outro criado), que cuidavam das malas, o que deixou Jacinto enraivecido, nervoso e, por fim,
desesperado. Acordaram em terras de Portugal. Do trem, Jacinto apreciou o azul do céu, o rio Douro, que
avistava deslizando entre as serras, e o bom ar das montanhas. Os amigos comeram fartamente e Jacinto,
curioso, perguntou sobre Tormes, sua terra e sua gente. Chegaram à estação de Tormes, desceram e logo
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foram surpreendidos por más notícias: Grilo, Anatole e as malas não haviam vindo com eles no mesmo
trem! Além disso foram informados por Pimenta, o chefe da estação, que o administrador de Tormes,
Silvério, viajara para visitar a mãe doente e que ninguém aparecera para os levar serra acima até a fazenda!
Profundamente abatidos, os amigos subiram para o solar
dos Tormes montados em uma égua e um jumento,
emprestados por um caseiro compadre do Pimenta.
Mas no caminho, esqueceram-se dos seus males ao
contemplar a beleza das serras: a fartura das oliveiras, os
vales cobertos de árvores, os regatos que corriam entre
pedras, o gado e os laranjais espalhados pelo campo,
as pequenas aldeias ou casas solitárias espalhadas pelo
caminho. Tão maravilhados ficaram que mal se deram
conta do tempo que levaram para chegar até o solar da
quinta dos Tormes.
Recebeu-os o caseiro Melchior, que mal foi apresentado a Jacinto por Zé Fernandes, engasgou-se, pálido,
e começou a contar que ninguém esperava por ele! Silvério desde março estava na casa da mãe, era abril
e só esperavam a chagada de Jacinto para setembro! A casa não tinha ainda sequer telhado! “– Mas os
caixotes, os caixotes mandados de Paris, em fevereiro, há quatro meses?...” – berrou Jacinto. Mas o pobre
Melchior, quase chorando, disse que não recebera nenhum caixote...
Furioso e cansado, Jacinto foi visitar o solar. A construção era inabitável: o soalho rangia e o teto ameaçava
cair. Tudo era sujo e empoeirado. Mas da maior das salas se avistavam as serras ao longe e o pinheiral que
cercava a quinta, o ar era fresco e o céu azul. Uma beleza!
Jacinto avistou uma horta e uma pequena fonte de água e teve sede. Desceram para a fonte passando pela
cozinha, onde, por entre a fumaça da lenha e velhas panelas de ferro, Melchior comandava as mulheres
no preparo do jantar dos dois amigos. Jacinto bebeu com sofreguidão da água da bica e foram passear no
campo. O “senhor de Tormes” gostava do que via, apesar dos desastres da viagem. Voltaram para o solar e
Jacinto presenciou pela primeira vez na sua vida, suspirando, um pôr do sol na natureza.
Foram chamados por Melchior para o jantar. Em uma sala velha, sobre uma mesa com toalha grossa,
rústicos garfos e facas e uma porcelana amarelada, à luz de velas de sebo, serviu-se a galinha ao molho
pardo. O Príncipe provou do prato com desconfiança, mas gostou tanto que acabou raspando a sopeira
velha. Em seguida veio arroz com favas. Jacinto odiava favas, mas depois de provar o prato passou
a comê-lo com gula e a elogiar Melchior e as cozinheiras. Assim foi por todo o jantar e com o vinho da
fazenda: o Príncipe magro que beliscava requintados pratos em Paris, comia como um guloso a comida
caseira das serras de Portugal.
Após o jantar, os amigos filosofaram a olhar para o céu. Depois, Jacinto explicou a Zé Fernandes que iria
no dia seguinte para Lisboa e retornaria quando o casarão estivesse habitável. Zé Fernandes iria para a
casa de sua tia Vicência e enviaria ao Príncipe roupas limpas, uma escova e água de colônia, para que ele
pudesse viajar. Foram se deitar em colchões de palha; o pijama de Jacinto foi uma camisa de estopa. O
Príncipe deitou-se desolado, mas elogiou a frescura dos lençóis[15].
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Capítulo 9
No dia seguinte, Zé Fernandes partiu para a casa de sua tia Vicência, em Guiães. Uma semana depois
recebeu suas malas extraviadas na viagem e telegrafou para Lisboa cumprimentando Jacinto. Mais uma
semana se passou e, como não obteve respostas, telegrafou novamente.
Dias depois, ao voltar de uma visita à sua prima Joaninha, encontrou um sobrinho de Melchior que lhe
informou que Jacinto estava em Tormes, que ele não fora para Lisboa! No dia seguinte, um domingo, partiu
para Tormes. Lá chegando encontrou o solar em reformas, muito limpo e arrumado com simplicidade,
apesar de todas as coisas trazidas de Paris pelo Grilo. Como Jacinto não estava, abriu um livro de Virgílio e
começou a ler. Os primeiros versos que encontrou diziam:
“Fortunate, Jacinthe! Hic, inter ava nota
Et fontis sacros, frigus captabis opacum.[16]”
Adormeceu durante a leitura e foi acordado pelos berros do Príncipe. Jacinto explicou-lhe que quando
acordara no dia seguinte ao da chegada, sentira-se livre e pacificado; almoçou chouriço com ovos e decidiu
ficar, enquanto houvesse chouriços com ovos e água da fonte. Zé Fernandes admirou-se do novo Jacinto:
forte, agitado, com os olhos brilhantes, era outro homem!.
O Príncipe foi atender ao carteiro que chegava com jornais de agricultura que ele encomendara enquanto
Zé Fernandes encontrava-se com o Grilo, que lhe pareceu abatido. De fato, o criado ainda não se
conformara com a súbita simplicidade assumida pelo patrão.
Jacinto explicou ao amigo que todos os caixotes do 202 haviam ido parar em Tormes da Espanha porque
o homem da transportadora se enganara ao despachá-los. Mas Jacinto não tinha pressa de recebê-los:
estava saboreando o prazer de só ter uma escova para se pentear e poucos livros, para poder ler de
verdade pela primeira vez na vida.
De tarde, foram passear. Jacinto se deliciava com tudo: as árvores, os regatos, as trilhas, o silêncio e a paz.
Filosofou que, ao contrário da cidade, onde a mesmice de formas, ideias e ilusões imperava, na natureza
tudo era diversidade, nada se repetia. Assim, Jacinto exercitava sua curiosidade: de tudo que encontrava
queria saber o nome.
Voltaram para o jantar: trutas, cabrito assado e cabidela. Tomaram café na biblioteca improvisada e Zé
Fernandes lembrou-se da moda do pessimismo do amigo em Paris. Jacinto discursou que o pessimismo era
uma teoria criada por pessoas desconsoladas com seu destino ou invejosas da felicidade alheia; uma teoria
que servia para os miseráveis e os sofredores, os que querem tornar sua desgraça e humilhação uma lei
universal. Zé Fernandes adormeceu durante o discurso e acordou com o Príncipe rindo alto com a leitura do
Dom Quixote.
Nas duas semanas seguintes, os amigos prepararam o translado dos restos mortais dos antepassados de
Jacinto para a igreja nova. Foi uma cerimônia muito simples: um velho padre e o sacristão foram à frente
dos oito caixões, atrás seguiram Jacinto e Zé Fernandes, mais atrás Silvério, o Grilo e, por último, Melchior
e um grupo de mulheres soluçando ave-marias.
Também nessas semanas Jacinto passou da contemplação da natureza à vontade de criar algo na
natureza. Pensou em plantar árvores mas elas demoravam a crescer. Pensou então em encher os campos
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de Tormes com vacas de raça, construir queijeiras e currais em arquitetura de ferro e vidro. Estas ideias
esdrúxulas desesperavam Silvério e Melchior, acostumados à simplicidade de anos de tradição. Silvério
pediu a Zé Fernandes que este convencesse o Príncipe do absurdo daquelas ideias: por que gastar
dinheiro em terras tão rudes se ele tinha outras propriedades em outros lugares de Portugal onde aqueles
projetos custariam muito menos? Mas Zé Fernandes não interferiu e Jacinto fincou pé em suas ideias, para
maior inquietação do Silvério. Zé Fernandes, na verdade, como pequeno proprietário e conhecedor das
dificuldades do trabalho no campo, ria do deslumbramento do Príncipe com a natureza. Assim, os planos
cresciam: uma imensa horta de luxo, exótica, cercada por plantações de flores; os regatos correndo por
caminhos esmaltados de azulejos e porcelanas; um pombal com milhares de pombos... Silvério e Melchior
procuravam enrolar Jacinto, que se satisfazia apenas com projetar seus sonhos em planos que não saíam
do papel.
O Príncipe também aprendeu aos poucos a lidar com os trabalhadores e a gente da sua terra. A princípio
tímido e receoso, aos poucos adquiriu confiança e conhecimentos para conversar com todos, o que lhe
dava enorme prazer, quase tão grande quanto o de ouvir os rouxinóis cantando no laranjal da quinta[17].
Capítulo 10
Certa manhã, andando no campo, Jacinto, Zé Fernandes, Melchior e o Silvério foram surpreendidos por
uma grossa chuva. Esconderam-se em um alpendre. Silvério disse que pensara em se esconder na casa
de um caseiro, ali perto, mas que a mulher deste estava doente e, como podia ser maleita, resolveu se
acautelar. Jacinto indagou da doença da mulher e se havia médico nas redondezas. Silvério respondeu
que havia um boticário em Guiães e um médico a não longe distância, mas que o povo era muito pobre,
mal comia, quanto mais se tratar com remédios! Todos se calaram e Jacinto ficou sombrio. Então apareceu
um menino magro e amarelo, escondido atrás das paredes. Era um dos filhos da mulher doente. Jacinto
espantou-se com a aparência do menino. Silvério esclareceu, com naturalidade, que era apenas fome. O
Príncipe espantou-se mais ainda: havia fome em Tormes?! Silvério e Zé Fernandes retrucaram que era
óbvio que havia fome! Jacinto, com determinação, avançou em direção à casa da mulher doente, Silvério
tentou, mas não o conseguiu deter.
Jacinto observou calado, junto com os demais, a casa de uma pobreza tristonha e medonha onde viviam
o caseiro e sua família, e tomou o rumo de volta para casa. No caminho, ordenou a um espantado Silvério
que providenciasse médico, remédios e alimentos para a mulher doente. Também ordenou que construísse
casas decentes e mobiliadas para todos os seus trabalhadores e que fossem revistos todos os contratos
de trabalho. Zé Fernandes cumprimentou o amigo pelas decisões e o elogiou, comparando-o a alguém que
começa uma carreira de santo[18].
Capítulo 11
Zé Fernandes passou a dividir seu tempo entre a casa de sua tia Vicência, em Guiães, e o solar de
Jacinto, em Tormes. Preparava sua festa de aniversário, quando apresentaria o Príncipe aos seus
vizinhos, principalmente às moças. Jacinto gostava da ideia, mas temia que todas as moças de Guiães se
parecessem com legumes: boas para a cozinha e muito sadias mas... legumes. Zé Fernandes antecipou
para o amigo os defeitos e virtudes que encontraria nas mulheres que estariam na festa, sendo a mais bela
e inteligente a sua prima Joaninha.
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Enquanto isto, Jacinto colocava em prática os melhoramentos de vida para os seus pobres. As obras
de construção avançavam, o médico já havia sido providenciado e o “benfeitor de Tormes” fazia planos:
construiria uma escola, uma biblioteca, uma creche; traria uma lanterna-mágica (cinema) para ensinar
história ao povo. Por tudo isso sua popularidade crescia: as crianças o rodeavam, as mulheres o
abençoavam e os homens louvavam suas obras. Todos os domingos ele assistia à missa na capelinha nova
e presenteava o povo com vinho e doces. Silvério se espantava com tudo e corria até um boato de que João
Torrado, um velho misterioso que vagava pela serra, profetizava que Jacinto era El-Rei Dom Sebastião[19]
que retornara[20]!
Capítulo 12
O domingo de 3 de setembro, data do aniversário de Zé Fernandes, não começou muito bem. Sua prima
Joaninha logo cedo mandou avisar que não podia ir para a festa porque seu pai, adoentado, não podia sair
de casa. Mas foi com alegria que Zé Fernandes recebeu ainda para o almoço o amigo Jacinto, que chegou
elogiando a casa de Guiães. O Príncipe felicitou o amigo e presenteou-o com finos objetos que retirara
dos caixotes que finalmente haviam chegado de Tormes, Espanha. Também cativou imediatamente tia
Vicência, com uma caldeirinha de prata lavrada, palavras doces e um apetite enorme. Depois do almoço, Zé
Fernandes arrastou Jacinto por toda a propriedade e pelos cômodos da casa, até o cansar completamente.
Ao final da tarde, Jacinto foi descansar. Logo começaram a chegar os convidados[21].
Capítulo 13
A festa de Zé Fernandes foi um fiasco...
Jacinto apareceu na sala cheia vestido com suas finas roupas de Paris, o que imediatamente impressionou
e assustou a todos, homens e mulheres, que mantiveram-se calados e reservados. À mesa, Zé Fernandes
tentou quebrar o silêncio embaraçoso com forçadas exclamações sobre o apetite de Jacinto e a história do
arroz-doce de Paris no aniversário do Príncipe, o que não interessou a ninguém. Tia Vicência desculpouse por não haver peixes à mesa, porque era difícil encontrá-los na serra. Os homens aproveitaram a deixa
para conversas reservadas sobre questões cotidianas e as mulheres para cochichar. De novo interrompeu
Zé Fernandes, com a história do peixe do Grão-Duque, exaltando as virtudes dos homens e a beleza das
mulheres que frequentavam o 202, o que só provocou enorme desconforto à mesa. Foi sua própria tia quem
o interrompeu. Como Jacinto conversasse animadamente com a moça ao seu lado, Zé Fernandes desistiu
de animar o jantar e deixou à vontade os convidados. Pouco tempo depois Jacinto se levantou e propôs
brindarem ao amigo e sua tia; Zé Fernandes retribuiu a gentileza.
Ao se levantarem da mesa, Dom Teotônio, que antes de jantar perguntara a Jacinto se ele visitava muito
Viena, propôs-lhe um brinde em particular; “ao ausente”. Jacinto brindou espantado, sem nada entender. Na
sala, bebendo o café e conversando com o Doutor Alípio, Zé Fernandes compreendeu: Dom Teotônio era
monarquista ferrenho; acreditava que Jacinto herdara do pai a devoção pelo rei e viera em missão política
para Tormes, preparar a ressurreição de Dom Miguel[22]! Por isto todos os presentes evitavam um contacto
direto com Jacinto: imaginavam-no um antiliberal conspirando a serviço do príncipe exilado!
Irritado com a história, Zé Fernandes retira Jacinto da roda de homens e o leva para a das mulheres. Ao
mesmo tempo, organiza mesas de cartas para os senhores. Como o tempo começava a ameaçar chuva de
um momento para o outro, os convidados, desorganizadamente, resolveram se retirar para evitar problemas
13
no caminho de volta para casa. Mal saíam e já começava a chuva. Zé Fernandes, desconsolado, lamentou
o fracasso da festa, mas Jacinto disse ter adorado as moças e que, assim que se desfizesse o engano do
seu miguelismo, faria ali bons amigos[23].
Capítulo 14
Na tarde do outro dia, Zé Fernandes e Jacinto foram à Flor da Malva visitar Joaninha e seu pai adoentado, o
tio Adrião. Pelo caminho, todo enverdecido pela chuva da noite anterior, iam
a trote lento e pararam em uma taberna da estrada para beber um cálice de
vinho. Quando Zé Fernandes apresentou Jacinto ao taberneiro, uma voz
bradou:
– Bendito seja o pai dos pobres!
Era o João Torrado, o estranho velho, profeta da serra. João pediu a mão
de Jacinto, apertou-a longamente e elogiou-o. Zé Fernandes indagou-lhe
sobre a volta de Dom Sebastião; o velho respondeu enigmaticamente e se
despediu.
Chegaram à sede da Flor da Malva e procuraram Joaninha pelo jardim,
pelo pomar e pela horta da bela quinta. Como não a encontrassem, foram
para a casa. Encontraram Joaninha de surpresa, à porta da casa, corada e
risonha.
Era uma tarde de setembro. Jacinto e Joaninha casaram-se em maio do
ano seguinte[24].
Capítulo 15
Cinco anos depois, Jacinto e Joaninha têm já um filho e uma filha. Jacinto tornara-se um responsável e
disciplinado proprietário de terras, visitara as suas outras propriedades em Portugal e reformara-as todas.
De tudo o que chegou de Paris, extraviado na viagem, o Príncipe apenas aproveitou alguns móveis, tapetes
e cortinas. Instalou alguns telefones na região de Tormes mas o progresso parou por aí. Jacinto enfim
tomara posse do principado da grã-ventura. Ou, nos dizeres de Grilo:
– Sua Excelência brotou[25]!
Capítulo 16
Jacinto sempre falava em levar Joaninha para conhecer Paris e o 202, mas ela mesma sempre o convencia
a permanecerem em Tormes. Certo dia, quem resolveu voltar a Paris foi Zé Fernandes. Na viagem,
encontrou se com o Duque de Marizac, que lhe contou estar Paris e os antigos frequentadores do 202 como
sempre estiveram: “-Todo esse mundo circula...”
A partir desse momento, o tédio, o cansaço e a irritação começaram a dominar Zé Fernandes: em Paris
eram sempre as mesmas pessoas correndo sem rumo pelas ruas e as mesmas fotos de mulheres nuas
14
estampadas em todas as propagandas de jornais; nenhuma notícia nova, nenhuma comida decente nos
restaurantes. Em Paris, só havia a busca animalesca pelo lucro e pelo gozo.
A caminho do 202, encontrou o Grão-Duque, que lhe pediu notícias de Jacinto. Zé Fernandes as deu e
o Grão-Duque lamentou o fim da vida parisiense do Príncipe. Também falou mal de Paris: a falta de boa
comida, boas mulheres e boa diversão. Mas elogiou uma peça e uma cantora ousadas, “muito despidas”.
Nos Campos Elísios, muitas bicicletas, a moda do momento, e alguns carros movidos a um óleo fedorento
de petróleo atravancavam o caminho. No 202, tudo estava mudado: os móveis e livros cobertos por lonas
eram tristonhos e solitários, as engrenagens antigas não funcionavam, todo o ambiente de camaradagem
já não existia mais. No Bosque de Bolonha, as mesmas figuras imutáveis: o romancista feminista, Madame
Verghane, o diretor do Boulevard, Madame de Trèves.
Zé Fernandes voltou para o hotel bocejando, como o fazia antigamente Jacinto. À noite, no Teatro das
Variedades, assistiu a uma peça onde só o que importava era a nudez. No café, encontrou prostitutas.
Até em Motmartre a multidão de mulheres e homens movidos pelo desejo haviam fincado bandeiras. Por
fim, resolveu visitar o Bairro Latino e se lembrar dos seus tempos de universidade. Em um anfiteatro, um
professor falava das cidades antigas e era interrompido seguidamente por urros, apitos, gritos e patadas
dos alunos, que tumultuavam a aula. Curioso, Zé Fernandes pergunta a um velho ao seu lado o porquê da
confusão. Ele responde que agora era sempre assim em todos os cursos: os alunos não se interessavam
pelas aulas. Indignado, Zé Fernandes pediu silêncio, mas foi respondido com uma brincadeira de um aluno.
O português atirou-se sobre o rapaz e jogou-o ao chão com um soco.
Depois disso, resolveu voltar para Tormes. Foi recebido na estação por Jacinto, Joaninha e as crianças:
Teresa e Jacintinho. Este levava consigo uma bandeira branca, a “bandeira do Castelo”, como explicou a Zé
Fernandes. E, de fato, na felicidade e na beleza da paisagem da serra que subiam, Zé Fernandes sentia-se
como se estivesse no caminho do Castelo da Grã-Ventura!...[26]
Foco narrativo
A Cidade e as Serras é narrado em primeira pessoa. O narrador, Zé Fernandes, é personagem da história.
Apesar de narrar a história no passado, Zé
Fernandes não toma a atitude de narrador
onisciente, que tudo sabe sobre tudo o que
acontece. Ele é um «narrador-testemunha», que
conta o que vê e pensa sobre o que ficou sabendo
de tudo o que aconteceu.
O importante, neste caso, é observar que tudo
o que acontece e é contado da história foi
selecionado pela memória do eu-narrador (Zé
Fernandes) a partir da sua memória dos fatos e
da sua subjetividade. Então os personagens, as
paisagens e os acontecimentos são apresentados
com base nas opiniões e sentimentos deste sujeito
que conta.
15
É claro que não podemos confundir Zé Fernandes, o narrador da história, com Eça de Queirós, o autor do
romance. Mas Eça de Queirós – o criador – se utiliza da sua criação – Zé Fernandes – para defender a tese
que está por trás das transformações por que passa Jacinto: a vida no campo é superior à vida nas grandes
cidades, que iludem e desumanizam seus habitantes.
Personagens
Jacinto de Tormes
Jacinto, na mitologia grega, era o nome de um rapaz de rara beleza, amado por muitos deuses,
principalmente por Apolo (deus da beleza, da música e da poesia), que o protegia. Certo dia em que os
deuses se divertiam praticando esportes, Apolo lançou o disco e o deus dos ventos, Zéfiro, com ciúmes da
relação entre Jacinto e Apolo, fez com que ele desviasse e acertasse a cabeça do jovem, matando-o. Apolo,
como homenagem a Jacinto, imortalizou-o na forma de uma flor que leva o seu nome, uma espécie de lírio.
Assim também Jacinto de Tormes, o personagem principal de A Cidade e as Serras, é amado pela bela
e culta Paris, mas esta, sem que ele perceba, quase lhe tira a vida. Ou melhor: é preciso que o Jacinto
de Paris realmente morra e retorne à terra (como as flores...) apenas com a roupa do corpo e sem
conhecimentos, para renascer mais belo e forte.
Jacinto de Tormes é uma representação da elite nobre de Portugal que, com a chegada do liberalismo
ao país, perdeu definitivamente os laços ancestrais e patrióticos com sua terra, seu povo e sua cultura.
Jacinto sequer nasceu em Portugal; é português apenas por direito de nobreza e porque é de lá que vem
a enxurrada de dinheiro que lhe permite saciar sua busca, sem fim e sem sentido prático, de prazer e
novidades.
Um sortudo que nasceu em berço de ouro, muito saudável e inteligente (por isto chamado de Príncipe
da Grã-Ventura ou Príncipe, simplesmente), representante da crença do século XIX no progresso e no
conhecimento como meios para o homem atingir a felicidade plena, Jacinto tem tudo para ser feliz mas
não é: falta-lhe algo em que se fixe seu pensamento, algo que possa permanecer no seu espírito. A Paris
que ele julga ideal não pode lhe fornecer isto: lá nada permanece, tudo é moda, tudo é fingimento e ilusão.
É necessário que o destino estremeça a terra de suas raízes, desenterre os caixões e ossos de seus
antepassados, para que ele se livre desta ilusão que é como a morte e, ao voltar a Portugal para cumprir
a formalidade de dar descanso aos restos mortais de seus avós, encontre também o seu repouso e o seu
destino. Em Portugal ele pode fixar suas raízes: lá estão sua terra e seu povo que há séculos não mudam,
está a comida que é sua seiva. Seu pensamento pode descansar na paisagem das serras e dos céus
infinitos e seu corpo, no acolhimento da natureza.
Ao longo da narrativa, progressivamente, Jacinto passa do homem parisiense inteligente (mas superficial e
inútil) ao homem parisiense deslumbrado com a natureza e a vida no campo, para finalmente chegar a ser o
homem português moderno, ativo e interessado por sua terra e seu povo.
16
José Fernandes
José Fernandes, o narrador, vive à sombra de Jacinto. Mas o narrador não pode ser considerado
personagem simplesmente coadjuvante: ele é a única constância, desde
o início, na vida do Príncipe da Grã-Ventura. José Fernandes de Guiães
será sempre o Zé Fernandes: um bom português, um pouquinho rústico
nos modos mas muito amigável e compreensivo; dotado da quantidade
de cultura e conhecimento necessários para olhar o mundo com senso
prático. Ele é o personagem mais bem construído do romance.
Enquanto Jacinto passa por profundas e abruptas transformações (que
exigem de Eça de Queirós uma descrição nem sempre convincente dos
processos dessas transformações), Zé Fernandes possui uma
personalidade muito mais estável e bem construída: alegre, não deixa
de se irritar com um ou outro pequeno problema em sua vida e chega
mesmo a se irritar até com seu príncipe Jacinto; sempre impressionado
com as pessoas ultracivilizadas que passam pelo 202, não deixa de
observá-las sempre com ironia ou cinismo.
Além disso, apesar de homem equilibrado, cativa o leitor com sua
malícia e algumas vezes, com sua graça de desajustado: admira a
fineza e a sensualidade das mulheres que frequentam o 202 mas acaba
perdendo o juízo e o dinheiro com uma Madame magrela que lhe abandona para fugir com outra mulher;
comporta-se maravilhosamente, com elegância e discrição, nas finas festas de Paris, mas consegue
estragar o próprio aniversário em Guiães...
Talvez por isso não seja exagero dizer que os dois, Jacinto e Zé Fernandes, formam uma dupla no estilo de
Dom Quixote e Sancho Pança[27]. Jacinto é o Dom Quixote que com suas teorias sobre civilização ou com
seus sonhos absurdos de reformas mirabolantes, nos primeiros dias, em Tormes, acaba por encontrar-se
com a realidade. Zé Fernandes é o Sancho Pança realista e prático que cuida do seu Príncipe e nos diverte
com suas histórias.
Os demais personagens têm importância na narrativa apenas para sustentar o eixo central, que é a
transformação de Jacinto. Neles, Eça de Queirós exercita uma das principais características do seu estilo,
que é a caricatura, o exagero de determinados traços da personalidade para tornar bastante característico
aquilo que o personagem encarna ou representa.
Assim, em Paris, o Grão-Duque Casimiro, a Madame de Oriol, a Condessa e o Conde de Trèves, o
diretor do Boulevard, o poeta Dornan, o psicólogo feminista, o Duque de Marizac, a Madame Verghane,
o banqueiro judeu Davi Efraim, o jovem Todelle e outros vão representar a afetação das elites política,
econômica e artística de Paris, a superficialidade das modas da capital, a mesquinhez e falsidade na busca
pelo poder e pelo dinheiro, a degradação da arte, a sensualidade puramente carnal, enfim uma sociedade
que vive de aparências e que ao correr desesperadamente atrás de prazer e novidades esquece mesmo de
viver e cai na mesmice: “-Em Paris, tudo continua”, conta o Duque de Marizac a Zé Fernandes, no final da
narrativa.
Por outro lado, a tia Vicência, a Joaninha, o Silvério, o Melchior, o João Torrado, o Pimentinha e toda
a gente de Tormes representam a simplicidade, a simpatia e a sabedoria popular da ancestral cultura
17
portuguesa: “– A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. (...) Na feira da Roqueirinha
quem sabe com quantos reis antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros...” – é a
sentença de João Torrado.
A fazer a ligação entre os personagens secundários de Paris e Tormes, está o Grilo. Grilo que Zé Fernandes
desde o início aponta como o único verdadeiro amigo de Jacinto além dele mesmo. O bom e sábio criado a
princípio se espanta e sofre com a pobreza e a falta de luxo do casarão de Tormes, mas em pouco tempo
fica familiarizado com o lugar e o povo e se acomoda.
Tempo
A narrativa segue uma cronologia linear – isto é, começa no passado e vem avançando até o presente –
mas sem continuidade. O narrador Zé Fernandes seleciona os episódios que, ao longo do tempo que durou
a história, julga importante narrar com mais ou menos detalhes. Assim, podemos esquematizar o tempo da
seguinte maneira:
I- Entre as décadas de 1820-1830: Dom Galião, avô de Jacinto, é socorrido pelo infante Dom Miguel nas
ruas de Lisboa e se torna seu súdito fiel. Com a expulsão de Dom Miguel de Portugal (1834), Dom Galião
parte para Paris.
II- No final de 1853, morre o pai de Jacinto. A 10 de janeiro de 1854, nasce o Príncipe da Grã Ventura.
III- Por volta de 1875, Jacinto e Zé Fernandes se conhecem na universidade e Jacinto formula a sua ideia
do mundo: “O homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. Em 1880, Zé Fernandes
é chamado a Portugal por seu tio para cuidar das suas propriedades.
IV- De fevereiro de 1887 a abril de 1888, Zé Fernandes volta a Paris e assiste à decadência física e ao
progressivo desânimo e entediamento de seu amigo Jacinto.
V- Abril de 1888 a maio de 1889: Jacinto chega em Tormes, Portugal, entusiasma-se com a vida no campo e
casa-se com Joaninha.
VI- Em 1894, cinco anos depois, Jacinto e Joaninha já têm dois filhos; Zé Fernandes faz uma rápida visita a
Paris e retorna definitivamente para Portugal.
Os três primeiros tempos esquematizados acima são apenas rápidos resumos para introdução da história e
correspondem ao capítulo 1 do livro.
O quarto tempo corresponde aos capítulos de 2 a 7 e início do oitavo. Aqui a ação é bastante datada: Zé
Fernandes constantemente indica as estações e os meses do ano, o passar lento dos dias e das modas
para o entediado Jacinto. Apenas na narração das sete semanas em que esteve com Madame Colombe, Zé
Fernandes resume a história.
O quinto tempo corresponde à maior parte do capítulo 8 (a complicada viagem e a chegada a Tormes) e aos
capítulos de 9 a 14. Também nesse bloco a passagem do tempo é narrada com detalhes, mas já não tão
marcada por datas. Ao invés da monotonia do calendário de Paris, as cenas retratam agora o progressivo
encantamento e sedução de Jacinto pela vida rural.
18
O sexto tempo corresponde aos capítulos 15 e 16. A primeira frase do capítulo 15 é: “E agora, entre roseiras
que rebentam, e uvas que vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a serra”. Podemos tomar este
“E agora” como indicador do presente da narrativa? Não, porque Zé Fernandes vai contar ainda da sua
viagem a Paris e do seu regresso definitivo a Tormes.
Espaço
O espaço é um elemento essencial na construção de A Cidade e as Serras. É através do contraste
entre a grande cidade de Paris (que representa a civilização e o progresso) e as serras de Tormes (que
representam a tradição e a estabilidade) que se constrói a tese da superioridade da vida rural sobre a
urbana, da tradição sobre o progresso desenfreado. Ambos os espaços são apresentados como magníficos,
mas progressivamente estabelece-se a superioridade de Tormes.
Jacinto, no início do livro, louva constantemente todo o progresso, acumulado ao longo de séculos
pelo homem, que está concentrado em Paris. Dos capítulos 1 a 7, o brilho e o luxo da cidade nos são
apresentados através de muitos dos seus pontos de referência: o boulevard sempre superpovoado por
carros e pelos 2 milhões de habitantes que faziam funcionar Paris; o Bosque de Bolonha, onde se reunia
a fina flor da elite parisiense para o seu passeio de fim de tarde; Montmartre, de onde se avistava toda
a capital. E dentro de Paris, como um resumo do progresso e agitação da cidade, estava, à Avenida dos
Campos Elísios, a casa de Jacinto, o seu palacete, o nº 202. O 202, como é afetuosamente chamado por
Zé Fernandes, é um monumento de arquitetura do progresso: tudo nele funciona graças às engrenagens da
últimas tecnologias, visando dar ao homem o máximo de conforto.
O problema é que por trás de cada elogio de Jacinto ou espanto de Zé Fernandes ante a todo esse
progresso, há sempre uma ironia do narrador, e por trás desta ironia, sempre uma crítica. O 202 é uma
maravilha, de fato, mas nunca as coisas estão funcionando perfeitamente bem: é um cano de água
que estoura, o elevador que emperra, a luz elétrica que vai embora. Além disso, as inúmeras máquinas
atulhadas pelo apartamento só servem para atravancar o caminho, para tarefas que dificilmente os
personagens teriam que executar ou para informar sobre assuntos que não interessam realmente. Paris é
linda, mas vista à distância de Montmartre por Zé Fernandes não passa de uma mancha cinzenta, e este
não gasta mais que o esforço de sua lábia para convencer Jacinto de que para que poucos como o Príncipe
e seus amigos gozassem das vantagens de Paris, era necessário que milhares trabalhassem sem cessar,
que muitos sofressem frio e fome nas ruas, que os homens se entregassem à miragem que é a grande
cidade: a miragem do dinheiro fácil e dos desejos realizados.
A condenação final e sem recursos de Paris virá no último capítulo, quando Zé Fernandes visita pela última
vez a cidade e não consegue ver nela nada de bom, a não ser a sabedoria acumulada nos livros e em
alguns homens, mas mesmo isso a própria Paris recusa: os estudantes da Sorbonne não querem ouvir o
mestre que dá uma palestra e Zé Fernandes os agride. A maneira como nesse último capítulo se acentua
a busca obsessiva pelo sexo fácil em todos os cantos da cidade é bem um indício de como por trás de
todas as “armaduras” da civilização (as roupas, o pó-de-arroz, os carros, os prédios) o homem parece estar
cada vez mais parecido com um animal, sem sabedoria e sem moral. O 202, abandonado, transforma-se
em um museu de inutilidades, de ilusões que não conseguiram ir além do seu tempo, de enganos que não
permaneceram. É esta a sentença do narrador para Paris:
19
– Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez não me
pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e caro, lá o receberei na serra pelo correio.
Adeusinho!
O capítulo 8 fará a transição entre esta Paris das ilusões e a Tormes das lindas serras e riachos. Durante
a conturbada viagem Paris-Tormes, passando pela Espanha, Jacinto se arrepende e se aborrece de ter
deixado a civilização. Mas logo ao entrar em Portugal não pode deixar de reconhecer a beleza do país.
E mesmo chegando apenas com a roupa do corpo na estação de Tormes, ao subir a serra não consegue
deixar de exclamar: “–Que beleza!” E mesmo sabendo que dormiria no chão coberto e comeria em pratos
velhos, não consegue deixar de suspirar, aliviado do peso da civilização, ao contemplar o pôr do sol do
casarão dos seus antepassados. O casarão está caindo aos pedaços, assim como Jacinto. O Príncipe
precisará merecer o lar dos seus avós, reconhecer a superioridade das serras, para só então desfrutar delas
com conforto.
Progressivamente, mas com rapidez, esta paisagem das serras conquistará definitivamente Jacinto.
Também, pudera: as serras são descritas pelo narrador como a própria sala de espera do Paraíso; não há
defeitos na natureza, que liberta e fortalece o corpo e a alma para a vida plena. Somente os lavradores é
que sabem o preço desta idealização: as tempestades de inverno e as crianças que passam fome. Mas
Jacinto não teme as chuvas e a miséria é prontamente amparada pelo novo Senhor de Tormes. Resta
apenas, mais uma vez, a ironia de Zé Fernandes ante o deslumbramento de Jacinto:
– Meu filho, olha que eu não passo de um pequeno proprietário. Para mim não se trata de saber se
a terra é linda, mas se a terra é boa.
Linguagem
Em qualquer manual de literatura que procurarmos informações sobre Eça de Queirós, encontraremos a
afirmação de que ele é um dos maiores estilistas da língua portuguesa, responsável por uma revolução na
maneira de escrever em português, renovando e modernizando a nossa língua.
Dizer que Eça utiliza uma linguagem “moderna” pode parecer estranho para um colegial que lê seus livros
hoje; dificilmente um estudante de nossos dias leria A Cidade e as Serras sem recorrer constantemente
ao dicionário. Para entender esta “modernidade” é preciso considerar que dizemos isso de Eça quando o
comparamos aos escritores que vieram antes dele ou aos seus contemporâneos. Mas com que recursos
Eça fez esta revolução no português escrito? Podemos responder a esta pergunta listando alguns
procedimentos que ele utilizou constantemente em sua obra e que estão presentes em A Cidade e as
Serras.
Um desses procedimentos é o uso de expressões estranhas ou incomuns com a finalidade de exprimir ou
explicar melhor um pensamento. Por exemplo: “(...) com a melada flor dos seus vinte anos, brotou nele
outro sentimento, de desejo e de pasmo”, “(...) desesperado com tantos desastres humilhadores (...),”
“(...) e com inefável gosto afundara a minha razão na densidade da sua estupidez (...),” “Claramente
percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio”, “(...) vomitei Madame Colombe”.
Outra característica é a atribuição, a objetos ou substantivos abstratos, de capacidades ou características
humanas, também com a finalidade de ser mais direto e expressivo ao comunicar uma ideia. Por exemplo:
20
“As letras, a tabuada, o latim entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça”, “Oh, a invasão
dos livros no 202!”, “ A eletricidade permaneceu fiel, sem amuos”, “(...)e o sol mesmo parecia repousar
(...)”.
Por fim, podemos apontar o uso de comparações arrojadas: “Dois poços fundos não luzem mais negra e
taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros”, “Então, curado, todo o meu espírito, como
uma agulha para o norte, se virou logo para o meu complicado Príncipe”, “(...) e levantando para o ar os
cinco dedos em curva como pétalas de uma tulipa (...)”.
Além do perfeito domínio da linguagem para dar mais expressividade e dinâmica ao texto, podemos apontar
outras características do estilo de Eça de Queirós presentes em A Cidade e as Serras, como o uso da
caricatura: através do exagero de determinados traços de alguns personagens, o escritor consegue revelar
imediatamente o retrato final que quer dar dele. Por exemplo: “Toda a sua pessoa, desde as plumazinhas
que frisavam no chapéu até a ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo
tenro sob o bulício dos pássaros a chalrar. Só o sorriso, por trás do véu espesso, conservava um brilho
imóvel” (sobre Madame de Oriol, a “flor de civilização”); “Era o Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu,
toda a boca se lhe escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe revelei,
naquele cavalheiro de bigodes louros que descia da égua esfregando os quadris, o senhor de Tormes –
o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante de uma avantesma” (sobre Melchior, o
caseiro de Tormes); “E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas que lhe cobriam
a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e
cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado” (sobre João
Torrado, o “profeta da serra”).
Em quase todas as páginas do livro, principalmente nas cenas de Paris, podemos encontrar passagens em
que a ironia de Eça se destaca, juntamente com o humor.
Além disso, devemos registrar o perfeito domínio do autor na naturalidade dos diálogos, como no que
segue:
(...) Silvério imediatamente o conheceu.
– Como vai a tua mãe? Escusas de te chegar para cá, deixa-te estar aí. Eu ouço bem. Como vai a tua
mãe?
Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram. Mas Jacinto, interessado:
– Que diz ele? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua mãe?
Foi o Silvério que informou respeitosamente:
– É a tal mulher que está doente; a mulher do Esgueira, ali do casal da figueira. E ainda tem outro
abaixo deste... Filharada não lhe falta.
Mas este pequeno também parece doente! – exclamou Jacinto. – Coitadito, está tão amarelo!... Tu
também estás doente?
21
O rapazito emudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados. E o Silvério sorria, com
bondade:
– Nada! Este é sãozinho... Coitado, é assim amarelado e enfezadito, porque... Que quer Vossa
Excelência? Mal comido! Muita miséria... Quando há o bocadito de pão é para todo o rancho.
Fomezinha, fomezinha!
Jacinto pulou bruscamente da borda do carro.
– Fome? Então ele tem fome? Há aqui gente com fome?
Por último, não podemos deixar de registrar o descritivismo que domina no livro, principalmente nas cenas
de Tormes, quando a beleza da região das serras é muitas vezes explorada em descrições cuja plasticidade
é admirável[28]. Você poderá ler algumas destas passagens descritivas na coletânea de textos, mais adiante.
Contexto da obra
Os críticos costumam dividir a obra de Eça de Queirós em três fases:
– a primeira fase compreende os seus principais artigos e ensaios jornalísticos, reunidos posteriormente
em Prosas Bárbaras, e o romance (escrito em parceria com seu amigo Ramalho Ortigão) O Mistério da
Estrada de Sintra. Trata-se de escritos ainda cheios de influências românticas, apesar de já aparecer
neles a defesa do Realismo como ideal artístico;
– a segunda fase vai de 1875 até 1888. É a fase em que Eça coloca em prática uma espécie de projeto de
análise da situação da sociedade portuguesa de seu tempo. Assim, atacará o clero atrasado e hipócrita
(O Crime do Padre Amaro), a falta de vida social e a má educação para as mulheres (O Primo Basílio), os
meios literários corruptos (A Capital), a alta burguesia e as elites rurais (Os Maias). É a fase do apogeu
artístico do escritor: com os livros desta fase ele se consagrou como o maior romancista da história
literária de Portugal;
– a terceira fase é menos engajada. Eça se desliga dos problemas portugueses e da militância realista e
se volta para o passado de Portugal. Pertencem a esta fase os romances A Ilustre Casa de Ramires,
Correspondência de Fradique Mendes e A Cidade e as Serras.
A Cidade e as Serras foi publicado pela primeira vez em 1901, um ano depois da morte do seu autor; esse
romance é, na verdade, o desenvolvimento de um conto que Eça de Queirós escrevera anteriormente e que
se chamava “A Civilização”[29].
22
Interpretação
Um dos maiores críticos literários brasileiros, Álvaro Lins, em um livro sobre Eça de Queirós, considerou A
Cidade e as Serras como “uma vergonha” de romance, se comparado
com os livros da fase anterior do escritor.
Sem dúvida, há muitos defeitos em A Cidade e as Serras se o
compararmos a outros livros de Eça:
– há apenas dois personagens que são trabalhados (Jacinto e Zé
Fernandes), e mesmo estes são compostos a partir de modelos
existentes em outros romances do escritor;
– apesar de preservar no livro seu talento de escritor, o autor passa
longe da capacidade de escrever um romance de tese em que a
argumentação seja construída a partir da própria força do livro. Em A
Cidade e as Serras, Eça assume um partido muito subjetivo das serras
e esquece-se de construir uma história que realmente justifique a
superioridade do campo sobre as cidades;
– o autor abusa das descrições para tapar buracos que a falta de tramas
e personagens bem construídos cria.
A solução para valorizar o livro, segundo Álvaro Lins, seria considerálo não um romance mas um ensaio, um estudo sobre a vida no campo
comparada à vida nas cidades. O problema é que A Cidade e as Serras é um romance: tem uma história
que fala de personagens que em determinados lugares, com o passar do tempo, envolvem-se em mais de
uma situação diferentes. A solução então (e nada mais apropriado para um livro de um escritor considerado
“realista”) é considerar o romance como um romance de tese, isto é: um romance que pretende defender
um determinado ponto de vista sobre um assunto.
O ponto de vista defendido em A Cidade e as Serras é o de que a vida no campo é superior à vida nas
grandes cidades. Isto se faz narrando a progressiva transformação de um descendente da nobreza
portuguesa – nascido e criado no luxo em Paris, à custa das rendas proporcionadas por suas terras em
Portugal – de entediado e decadente homem aprisionado às ilusões e falsos prazeres da cidade grande
em homem interessado e saudável, dedicado às suas terras e ao seu povo, na sua propriedade rural em
Tormes, Portugal.
É possível dizer que Eça de Queirós consegue provar sua tese? Sim, se considerarmos que todo o romance
caminha no sentido de valorizar de maneira quase escandalosa as serras quando comparadas à cidade.
Mas é preciso fazer uma ressalva: por que Jacinto se apaixona tão rapidamente pelas serras? Será porque
elas merecem este amor? Porque elas são superiores a Paris? Talvez não. É o mesmo Álvaro Lins quem
responde: “O amor de Jacinto às serras forma-se como um derivativo e uma consequência; não vem
delas mesmas. É um tédio de uma situação que o leva a outra. Mas o tédio de Jacinto origina-se de uma
condição excepcional e privilegiada: Jacinto pode concentrar no 202 o máximo de conforto, de progresso
e de civilização para depois se cansar de tudo isso. Pôde realizar a sua fórmula perfeita de progresso, e
quando terminou não tinha mais nada que fazer. O que significa: o amor das serras vem do desencanto
23
da cidade. O que significa ainda: para amar as serras é preciso ter sido antes Jacinto, o que constitui uma
necessidade difícil: exige a posse de uma fortuna fora do comum e de uma desembestada fantasia. É um
amor extremamente caro e quase inacessível».
Textos para leitura
Na seleção de textos, indicamos entre parênteses (logo após a indicação do capítulo) a que episódio da
narrativa se refere o trecho transcrito.
Capítulo 1
(Jacinto e Zé Fernandes se conhecem, o Príncipe formula a sua tese sobre a felicidade humana)
Pois um rio de verão, manso, translúcido, harmoniosamente estendido sobre uma areia macia e
alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas aldeias, não ofereceria àquele que o descesse num
barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com frutas e Champagne a refrescar em gelo,
um anjo governando ao leme, outros anjos puxando à sirga, mais segurança e doçura que a vida
oferecia ao meu amigo Jacinto.
Por isso nós lhe chamávamos o Príncipe da Grã-Ventura.
Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do
Bairro Latino, para onde me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande,
quando aqueles malvados me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de
procissão, na Sofia, a cara sórdida do Doutor Pais Pita.
Ora, nesse tempo Jacinto concebera uma ideia... Este Príncipe concebera a ideia de que “o homem
só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E por homem civilizado o meu
camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas
desde Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos
inventados desde Teramenes, criador da roda, se torna um magnífico Adão, quase onipotente,
quase onisciente, e apto portanto a recolher dentro de uma sociedade e nos limites do progresso
(tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de saber e
de poder... Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua ideia, quando conversávamos
de fins e destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias filosóficas no
Boulevard Saint-Michel.
Capítulo 4
(O almoço para o Grão-Duque Casimiro; o peixe no elevador)
Felizmente o Grão-Duque contava a história de uma caçada, nas coutadas de Sarvan, em que uma
senhora, mulher de um banqueiro, saltara bruscamente do cavalo, num descampado, sem árvores.
Ele e todos os caçadores param – e a galante senhora, lívida, como a amazona arregaçada, corre
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para trás de uma pedra... Mas nunca soubemos em que se ocupava a banqueira neste descampado,
agachada atrás da pedra – porque justamente o mordomo apareceu, reluzente de suor, e balbuciou
uma confidência a Jacinto, que mordeu o beiço, trespassado. O Grão-Duque emudecera. Todos se
entreolhavam. numa ansiedade alegre. Então o meu Príncipe, com paciência, com heroicidade,
forçando palidamente o sorriso:
– Meus amigos, há uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira:
– Fogo?
Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de Sua Alteza,
se desarranjara, e não se movia, encalhado!
O Grão-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estava como um esmalte mal posto.
– Essa é forte!... Por um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear?
Que estupidez! E por que o não trouxeram a mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a
copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os ombros
ante esta esmagadora cólera de Príncipe[30]. Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de
Sua Alteza. E eu não me contive; também me atirei para a copa, a contemplar o desastre, enquanto
Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela
que lhe avermelhava mais a face esbraseada. Espreitei, por sobre o ombro real. Embaixo, na treva,
sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda fumegando, entre
rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata, torturava desesperadamente a mola complicada
do ascensor, depois foi o Grão-Duque que, com os pulsos cabeludos, empurrou um empuxão
tremendo aos cabos em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze
eterno.
Sedas roçaram à entrada da copa. Era Madame de Oriol, e atrás Madame Verghane, com os olhos
a faiscar, na curiosidade daquele lance em que o Príncipe soltara tanta paixão. Marizac, nosso
íntimo, surgiu risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o psicólogo, que
se abeirou, psicologou, atribuindo intenções sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada
um o Grão-Duque, escarlate, mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe. Todos
afundavam a face, murmuravam: “Lá está!”. Todelle, na sua precipitação, quase se despenhou. O
periquito descendente de Coligny batia as asas, ganindo: “– Que cheiro ele deita, que delícia!” Na
copa atulhada os decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó-de-arroz
meteu o pé num balde de gelo, com um berro ferino. E o historiador dos duques de Anjou movia
por cima de todos o seu nariz bicudo e triste.
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De repente, Todelle teve uma ideia:
– É muito simples... É pescar o peixe!
O Grão-Duque bateu na coxa uma palmada triunfal. Está claro! pescar o peixe! E no gozo daquela
facécia, tão rara e tão nova, toda a sua cólera se sumira: de novo se tornara o Príncipe amável, de
magnífica polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir à pesca miraculosa! Ele
mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a divertida façanha, mais que uma bengala, uma
guita e um gancho. Imediatamente, Madame de Oriol, excitada, ofereceu um dos seus ganchos.
Apinhados em volta dela, sentindo o seu perfume, o calor da sua pele, todos exaltamos a amorável
dedicação. E o psicólogo proclamou que nunca se pescara com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um cordel, já o GrãoDuque, radiante, vergara o gancho em anzol. Jacinto, com uma paciência lívida, erguia uma
lâmpada sobre a escuridão do poço fundo. E os senhores mais graves, o historiador, o diretor do
Boulevard, o Conde de Trèves, o homem de cabeça à Van-Dyck, sorriam, amontoados à porta, num
interesse reverente pela fantasia de Sua Alteza. Madame de Trèves, essa, examinava serenamente,
com sua nobre luneta, a instalação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os punhos
cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço encovado, no tédio sombrio de fera a quem arrancaram a
posta.
No entanto Sua Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo, sem presa,
bamboleando na extremidade da guita frouxa, não fisgava.
– Oh, Jacinto, erga essa luz! – gritava ele, inchado e suado. – Mais!... Agora!... Agora! É na guelra! Só
na guelra é que o gancho o pode prender. Agora...Qual! Que diabo! Não vai!
Tirou a face do poço, resfolegando e afrontado. Não era possível! Só carpinteiros, com alavancas!... E
todos, ansiosamente, bradamos que se abandonasse o peixe!
O Príncipe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim “fora mais divertido pescá-lo que
comê-lo!” E o elegante refluiu sofregamente para a mesa, ao som de uma valsa de Strauss, que os
ciganos arremessaram em arcadas de lânguido ardor. Só Madame de Trèves se demorou ainda,
retendo o meu pobre Jacinto, para lhe assegurar quanto admirava o arranjo da sua copa... Oh
perfeita! Que compreensão da vida, que fina inteligência do conforto!
Capítulo 6
(Em Montmartre, Zé Fernandes faz o seu discurso contra a cidade)
Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais
amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda sua grandeza e só nela tem a fonte
de toda sua miséria. Vê, Jacinto! Na cidade perdeu ele a força e a beleza harmoniosa do corpo, e
se tornou este ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como
trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo
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sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pôde
reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã
ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre
e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior
como um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias,
praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou um quartel. A sua tranquilidade
(bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para
sempre, nessa batalha pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na cidade para esses
milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais
genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto. São como luzes que o
áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer,
e além brutalmente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades
nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto,
ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do
orgulho. E o amor, na cidade, meu gentil Jacinto? Considera estes vastos armazéns com espelhos;
onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contemple esse velho deus
do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote!
Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os faunos amam as ninfas na
boa lei natural, e busca sofregamente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a
cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade
ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de ideias e fórmulas que
constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os
pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se destacar
na pardacenta e chata rotina e trepar ao andaime da gloríola, inventa num gemente esforço,
inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um
monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando
o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas;
e alguns são macacos, saltando no topo de mastros viçosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu
Jacinto, na cidade, nesta criação tão antinatural, onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão
tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos
canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem aparece como uma criatura antihumana, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como
um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela cidade!
Capítulo 8
(A chegada de Jacinto a Tormes: a subida da serra para o solar)
Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino artista que faz as serras, e que tanto as
cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça.
Para os vales poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de
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um verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar, Dos pendores,
sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar
leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados
pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de
cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do
seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam
como proas de galeras enfeitadas; e, dentre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que
para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas
farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurante, a água
fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, dentre as patas da égua e do burro;
grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como
cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de
veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados... Todo um cabeço
por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e
seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjas recendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam
fartos prados com carneiros e vacas retouçando; ou mais estreitos, entalados em muros,
penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura, Trepávamos
então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgarçava,
fugindo do lar pela telha-vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima
da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na
alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
– Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
– Que beleza!
Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes,
carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as
não tinham maduras. Todos os vidros de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram
hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu de azinheiro a olmo,
assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos,
aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra
bendita entre as serras!
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Obras do autor
O Crime do Padre Amaro (1875)
O Primo Basílio (1878)
O Mandarim (1879)
A Relíquia (1887)
Os Maias (1888)
A Ilustre Casa de Ramires (1900)
A Correspondência de Fradique Mendes (1900)
A Cidade e as Serras (1901)
A Capital (1925)
O Conde d’Abranhos (1925)
Exercícios
1.
“Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do
Bairro Latino (...)”
Com base no trecho acima, indique qual o foco narrativo de A Cidade e as Serras. O que devemos
levar em consideração sobre a história que foi narrada, sabendo qual é esse foco narrativo?
2. A “equação metafísica” a seguir foi criada por um colega de faculdade para condensar o pensamento que
foi a base da vida de Jacinto até a sua descoberta de Tormes. Explique em que consiste esse pensamento.
3. Veja a descrição que Zé Fernandes faz da Condessa de Trèves:
Mesmo para mim (de quem ignorava o nome) arranjou junto do fonógrafo, e acerca de vozes
de amigos que é doce colecionar, uma lisonjazinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como
um rebuçado celeste. Boa casaleira que vai atirando o grão aos frangos famintos, a cada passo,
29
maternalmente, ela nutria uma vaidade. Sôfrego de outro rebuçado, acompanhei a sua cauda
sussurante e cor de açafrão.
Quais características do estilo de Eça de Queirós podemos encontrar no texto acima? Tente justificar
sua resposta com passagens ou argumentos identificáveis no próprio texto.
4.
“Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
– Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
– Que beleza!”
No trecho acima aparecem, em um momento de afinação de espírito, Zé Fernandes e Jacinto.
Considerando este “E eu atrás, no burro de Sancho” dito por Zé Fernandes e a maneira como os
dois personagens são construídos na narrativa, a quem poderíamos comparar esta dupla? Por quê?
5. Analisando a maneira como o palacete de Jacinto em Paris (o 202) é descrito no início da narrativa, os
problemas que acontecem nele ao longo da história e a maneira como ele é descrito no final do livro e
comparando com a maneira como o solar de Tormes é descrito na chegada de Jacinto às serras e como
ele se transforma até o final da narrativa, como poderíamos relacionar a mudança nestes dois espaços da
narrativa com as transformações por que passou Jacinto ao longo de toda a história?
6. Explique por que A Cidade e as Serras pode ser considerado um romance de tese, esclareça qual é essa
tese e qual a importância do descritivismo (uso constante de descrições) para a justificação dessa tese pelo
autor.
30
Gabarito
1. O trecho indica que o livro é narrado em primeira pessoa, isto é, que o narrador é um narradortestemunha. Sabendo isso, devemos levar em consideração que tudo o que está sendo narrado passa pela
subjetividade do narrador: é ele quem escolhe os episódios que julga importante narrar e os analisa do seu
ponto de vista.
2. A equação expressa a ideia de Jacinto de que “o homem só é superiormente feliz quando é
superiormente civilizado”. Entendendo civilização como a compreensão e o acesso à soma de todo o
conhecimento acumulado ao longo da história humana e a sua aplicação na vida cotidiana para melhor
compreensão do universo e desfrute do progresso.
3. Uma das características que podemos encontrar no texto acima é o uso da caricatura, o exagero
ou destaque de alguma qualidade do personagem para fixar mais rapidamente e com precisão a sua
personalidade. No caso, Eça exagera o comportamento bajulador da Condessa para com todos os
presentes (elogiou até Zé Fernandes, que sequer conhecia) e compara-a a uma camponesa (casaleira) que
seduz os frangos com grãos para melhor apanhá-los. Outras características que podemos identificar são
a ironia (“Sôfrego de outro rebuçado, acompanhei a sua cauda sussurrante e cor de açafrão”) e o humor
(“lisonjazinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como um rebuçado celeste”).
4. Poderíamos compará-los a Dom Quixote e Sancho Pança. Porque, à semelhança de Dom Quixote, Jacinto
é um alienado do mundo real, um idealista, que só conseguirá descansar de sua busca de felicidade no final
da história. Assim também Zé Fernandes se assemelha a Sancho Pança por sua fidelidade ao seu Príncipe da
Grã-Ventura, seu bom humor e seu jeito um tanto atrapalhado em algumas passagens da história.
5. O 202 é apresentado inicialmente como o mais bem equipado, moderno e confortável das residências.
Mas vários acidentes acontecem com os mecanismos responsáveis por seu funcionamento até a partida
de Jacinto para Tormes. No final, o palacete é comparado pelo narrador, Zé Fernandes, a um «museu de
antiguidades». Já o solar de Tormes, quando Jacinto chega às serras, está inabitável, caindo aos pedaços,
mas progressivamente vai se tornando uma residência simples mas muito confortável, onde Jacinto se
estabelece. Os dois espaços espelham o estado de ânimo de Jacinto ao longo das transformações por que
passa durante a história: à medida que vai ficando entediado e deprimido, cada vez menos interessado
na vida, a sua residência, o 202 o acompanha na decadência e vai se desmanchando; no final, quando
todas as relações de Jacinto com Paris estão definitivamente cortadas e sepultadas, o 202 também se
torna apenas uma espécie de memória sem brilho daqueles tempos de Paris. Assim também o casarão de
Tormes: Jacinto chega às serras apenas com a roupa do corpo, em um estado de decadência física que se
compara ao solar; mas à medida que ele se afeiçoa à terra e adquire gosto pela vida e energia e disposição
cada vez maiores, em meio à naturalidade serrana, o casarão também vai adquirindo uma bela aparência e
uma alma de lugar habitado.
6. A Cidade e as Serras pode ser considerado um romance de tese porque nele Eça de Queirós pretende
provar uma ideia: que a vida no campo (nas serras) é superior à vida na cidade grande, porque esta não
passa de uma ilusão artificial de felicidade enquanto que aquela proporciona realmente aos homens uma
existência carregada de significados e vitalidade (o contato com a natureza, a valorização das tradições,
relacionamentos humanos mais sinceros e duradouros). As descrições são importantes para provar esta
tese porque é através delas que o autor estabelece o contraste entre um espaço e outro, valorizando
sempre os espaços e acontecimentos nas serras e desvalorizando estes nas cidades.
31
Notas
“O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de
semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.”
“Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a sorte ruim, Jacinto medrou
com a segurança, a rijeza, a seiva rica de um pinheiro das dunas.”
[1]
“Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios
em demanda de 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as
botas rebrilhantes até as abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis de um cabelo crespo,
ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás das costas,
calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele
parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
– Oh, Jacinto!
– Oh, Zé Fernandes!”
“Reparei então que o meu amigo emagrecera; e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito
fundas, como as de um comediante cansado. Os anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a
testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode, murcho,
caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.”
[2]
[3]
Fígaro é um grande e tradicional jornal francês.
[4]
Grão-Duque é um título de nobreza dado a soberanos; cocote é uma prostituta de luxo.
“Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por mais engenhoso, o seduzia; e, como
através do seu tumulto matinal fumava incontáveis cigarrettes que o ressequiam, começava por se
encharcar com um imenso copo de água oxigenada, ou carbonatada, ou gasosa, misturada de um
conhaque raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Siracusa. Depois , à pressa,
sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de
lagosta; e reclamava impacientemente o café, um café de Moca, mandado cada mês por um feitor de
Dedjah, fervido à turca, muito espesso, que ele remexia com um pau de canela!”
[5]
“No entanto o moço de loura penugem voltara à sua estranha mágoa. Não possuirmos um general
com a sua espada, e um bispo com seu báculo!...
– Para quê, meu caro senhor?
Ele atirou um gesto suave em que todos os seus anéis faiscaram:
– Para uma bomba de dinamite... Temos aqui um esplêndido ramalhete de flores de civilização, com
um grão-duque no meio. Imagine uma bomba de dinamite, atirada da porta!... Que belo fim de ceia,
num fim de século!
E como eu o considerava assombrado, ele, bebendo goles de Chateau-Iquem, declarou que hoje a
única emoção, verdadeiramente fina, seria aniquilar a civilização. Nem a ciência, nem as artes, nem o
dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer
que se extraíra de criar, estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!”
[6]
VOLTAIRE (1694-1778) – famoso escritor e filósofo francês; autor de um humorismo irônico e
céptico mas muito refinado.
[7]
32
“Então, curado, todo o meu espírito, como uma agulha para o norte, se virou logo para o meu
complicado Príncipe, que, nas derradeiras semanas da minha infecção sentimental, eu entrevira
sempre descaído por cima de sofás, ou vagueando através da biblioteca entre os seus trinta mil
volumes, com arrastados bocejos de inércia e de vacuidade. Eu, na minha pressa indigna, só lhe
lançava um distraído – ‘que é isso?’ Ele, no seu moroso desalento, só murmurava um seco – ‘é
calor!’”
[8]
“ Mas a basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes e andaimes, toda branca, e
seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E jacinto, por um impulso bem jacíntico, caminhou
gulosamente para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície cinzenta, a
cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de caliça e telha. E, na sua imobilidade
e na sua mudez, algum rolo de fumo, mais tênue e ralo que o fumear de um escombro mal apagado,
era todo o vestígio visível da sua vida magnífica.”
[9]
O Eclesiastes é um livro da Bíblia cuja autoria é atribuída ao Rei Salomão e desenvolve a ideia de
que no mundo tudo é vaidade, todos os atos são em vão.
[10]
SCHOPENHAUER (1788-1860) – um dos mais importantes filósofos do século passado e de toda
a história da filosofia, é o autor de O Mundo como Vontade e Representação, entre outras obras. Toda
sua filosofia é construída em volta da ideia do pessimismo.
[11]
[12]
The London Times é um prestigiado e famoso jornal inglês.
Esta expressão “Uma maçada!” é usada o tempo todo por Jacinto no livro. Significa alguma coisa
como “Que chatice!”, e é bem o grito de guerra do Jacinto entediado.
[13]
“Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o Eclesiastes até
Schopenhauer, todos os líricos e todos os teóricos do pessimismo. Nestas leituras encontrava
a reconfortante comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente ‘jacíntico’ – mas
grandiosamente resultante de uma lei universal.”
“Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na
vida uma ocupação grata – maldizer a vida! E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas,
as mais ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo, de
interesses novos de espirito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supranaturais.”
[14]
“Ao fim desse inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava na cama, sentindo
através da vidraça cheia de sol ainda pálido um bafo de primavera ainda tímido – Jacinto assomou
à porta do meu quarto, revestido de flanelas leves, de uma alvura de açucena. Parou lentamente à
beira dos colchões, e, com gravidade, como se anunciasse o seu casamento ou a sua morte, deixou
desabar sobre mim esta declaração formidável:
– Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau preto do velho D. Galião:
– Para Tormes? Oh, Jacinto, quem assassinaste?”
[15]
Na verdade, os versos de Virgílio, que estão nas Bucólicas, dizem: “Fortunate senex, hic inter
flumina nota et fontis sacros frigus captabis opacum” que podemos traduzir por : “Afortunado velho,
aqui, entre rios conhecidos e fontes sagradas, colherás sombra e frescor”. Eça adaptou os versos
[16]
33
à situação do romance e o próprio narrador Zé Fernandes assim os traduziu: “Afortunado Jacinto!,
Agora, entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz.”
“Mas, infelizmente para a inquietação do Silvério, Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes
na sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo
chão, de onde brotara a sua raça, e o antiquíssimo humo refluísse e o penetrasse todo, e o andasse
transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as árvores que
ele tanto amava.
E depois o que o prendia à serra era o ter nela encontrado o que na cidade, apesar da sua
sociabilidade, não encontrara nunca, – dias tão cheios, tão deliciosamente ocupados, de um tão
saboroso interesse, que sempre penetrava nelas, como numa festa ou numa glória.»
[17]
“Bruscamente, ao saírmos da vereda para um caminho mais largo, entre um socalco e um renque
de vinha, Jacinto parou, tirando lentamente a cigarreira:
– Pois, Silvério, eu não quero mais estas horríveis misérias na quinta.”
“Meteu a corta-mato, saltando um cancelo. E nós seguimos, com passos que eram ligeiros, pela hora
do almoço que se retardara, pelo azul alegre que reaparecia, e por toda aquela justiça feita à pobreza
da serra.
– Não perdeste hoje o teu dia, Jacinto – disse eu, batendo, com uma ternura que não disfarcei, no
ombro do meu amigo.”
[18]
Dom Sebastião foi rei de Portugal e morreu em uma batalha em 1578. Seu corpo nunca foi
encontrado e criou-se em torno de seu nome uma lenda: a de que voltaria para fazer de Portugal,
novamente, a maior nação do mundo, como o foi durante a época dos descobrimentos.
[19]
“E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a natureza, e o renunciamento às mentiras da
civilização com a natureza é uma linda história... Mas, caramba, faltam mulheres!
Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
– Com efeito, há aqui falta de mulher, com M grande. Mas essas senhoras aí das casas dos
arredores... Não sei, mas estou pensando que se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas,
excelentes para a panela – mas, enfim, legumes.”
[20]
“Assim chegou setembro, e com ele o meu natalício, que era a 3 e num domingo. Toda essa
semana a passara eu em Guiães, nos preparativos da vindima, e de manhã cedo, nesse domingo
ilustre, me fui debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, por onde
devia aparecer o meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé Fernandes.”
[21]
Dom Miguel era filho do rei Dom João VI. Apesar de ter jurado perante a constituição e o rei pelo
direito de seu irmão mais velho (Dom Pedro I, do Brasil) de assumir o trono; em 1828 tentou, com a
ajuda de sua mãe, Carlota Joaquina, um golpe para se autoproclamar imperador absoluto de Portugal,
o que deu início à disputa pelo poder entre Dom Miguel e os liberais. Vencido, Dom Miguel foi banido,
exilado de Portugal, indo estabelecer-se em Viena, onde morreu em 1866. Os miguelistas tinham
esperanças de que ele voltasse; com a sua morte, a esperança passou a ser a volta de seu filho, que
também se chamava Dom Miguel.
[22]
“– Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes trabalhar no
miguelismo?
[23]
34
Muito sério, Melo Rebelo chegou o seu bigode à minha orelha:
– Até corre, como certo, que o Príncipe D. Miguel está com ele em Tormes!”
“Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do
vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga
claridade, o esplendor branco de sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabelos, lindamente
risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma
criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na flor da Malva, viu aquela com quem casou em
maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobria todo de rosas.”
[24]
“– Pois, Grilo, agora realmente bem podemos dizer que o senhor D. Jacinto está firme.
O Grilo arredou os óculos para a testa, e levantando para o ar os cinco dedos em curva como pétalas
de uma tulipa:
– Sua Excelência brotou!”
[25]
“Então, no comportamento solitário, bocejei, com uma estranha sensação de monotonia, de
saciedade, como cercado já de gentes muito vistas, murmurando histórias muito sabidas, e coisas
ditas, através de sorrisos estafados.”
[26]
Dom Quixote, o “cavaleiro da triste figura”, é uma caricatura do homem cuja fé em um ideal,
mesmo impossível ou ridículo, é levada até o fim. Sancho Pança é o escudeiro de Dom Quixote em
suas aventuras por um mundo que não condiz com os seus inusitados sonhos de cavaleiro. Ambos
são personagens do clássico Dom Quixote do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (15471616).
[27]
A Cidade e as Serras pertencem à terceira fase da produção literária de Eça de Queirós, quando
aparece mais acentuadamente esta sua capacidade de mestre para criar paisagens muito mais
fiéis a um ideal de beleza que à realidade. É a fase do impressionismo, técnica artística em que a
realidade é expressa a partir da sensibilidade imediata do artista, sem intervenção da racionalidade
que seleciona o que reproduzir ou não da realidade.
[28]
José Maria Eça de Queirós nasceu em Póvoa de Varzim, em 1845. Estudou Direito em Coimbra,
onde conheceu Antero de Quental e Teófilo Braga e participou, sem muito destaque, da célebre
polêmica denominada Questão Coimbrã, que marca o início das ideias realistas na cena cultural
portuguesa. Inicia sua carreira literária com artigos para revistas e jornais; em Lisboa, participa
do Cenáculo (1868), grupo de amigos que se reuniam para manter acesa a chama da amizade
universitária e discutir os mais diversos assuntos. Faz uma viagem ao Oriente para assistir à
inauguração do Canal de Suez (1869). De volta a Portugal, participa das “Conferências do Cassino
Lisbonense” (1872), com uma palestra sobre literatura realista. Vai para Leiria exercer o cargo de
Administrador e começa a escrever O Crime do Padre Amaro. Entra para a carreira diplomática em
1872 e vai para Havana, Cuba. Em 1874, transfere-se para a Inglaterra; em 1888, para Paris. Morreu
em 1900, durante uma viagem de passeio pela Europa.
[29]
“Príncipe”, nesta ocorrência e em outras deste capítulo, não é referência a Jacinto, o “Príncipe da
Grã-Ventura”, mas ao Grão-Duque, que era príncipe de fato.
[30]
35

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