Seminário realizado em Paris, 10 de julho de 1978

Transcrição

Seminário realizado em Paris, 10 de julho de 1978
W. R. Bion
Seminário realizado em Paris, 10 de julho de 1978
Apresentação de Chris Mawson, Co-Editor, bpas website
Estamos gratos a Francesca Bion por nos permitir publicar a presente
transcrição. Esta, belamente transmite os amplos poderes do pensamento
reflexivo e especulativo de Bion, assim como, sua peculiaridade de formular
perguntas em vez de respondê-las. O que, a meu ver, não é possível veicular,
satisfatoriamente, na modalidade escrita, é o andamento das comunicações
de Bion no seminário. Pelos padrões da linguagem coloquial e acadêmica de
praxe, ele aqui fala de maneira bem lenta mas de uma forma que engendra
incrível sensação de abertura, de curiosidade e vitalidade. Os que leram as
obras de Bion por certo vão notar que ele diz neste seminário várias coisas
que já dissera antes. É, no entanto, surpreendente que até essas idéias, com
que estaríamos familiarizados (talvez ultrafamiliarizados), nos chegam neste
seminário a partir de uma direção inesperada.
Pede-se não esquecer que o copyright do presente material pertence a
Sra. Francesca Bion e que a publicação total ou parcial da transcrição requer
autorização, por escrito, de sua parte.
Chris Mawson
Co-Editor, bpas website
Introdução por Francesca Bion
Este seminário realizou-se em Paris, em 10 de julho de 1978;
organizado pelo Dr. Salomon Resnik, foi impresso em 1986, na Revue de
Psychotherapie Psychanalytique de Groupe.
Não tinha sido publicado anteriormente em inglês. Sou grata ao Dr.
Luis Goyena pela grande gentileza de me enviar, em maio de 1997, duas fitas
cassetes, de onde retirei e editei a presente transcrição.
Nota do editor de Gradiva: Entramos em contato com o presente seminário
através da internet, e por esse meio o divulgamos. Trata-se de um preciosa
apresentação de W.R. Bion em Paris, em 1978, um ano antes de sua morte, aos
82 anos, e que permanecia inédita aos leitores de língua portuguesa. Confiamos
ao psicanalista Wellington Dantas (SBPRJ), de larga experiência em nosso meio,
a realização da tradução. Há mais de dez anos estudioso da obra de Bion,
Wellington Dantas traduzira, deste autor, “Second Thoughts”, pela Editora Imago.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------BION: Preciso explicar por que tenho que falar em inglês. Em parte, é porque não
falo francês, embora haja aprendido ou me tenham ensinado francês tal qual é
falado na rede particular de ensino inglesa (English Public Schools); mas não é o
tipo de francês que vocês entenderiam. Há outras razões que ficarão mais claras à
medida que nossa discussão avance.
Gostaria que vissem esta reunião como uma reunião de trabalho na qual esse é
um problema com que todos nos defrontamos. Por exemplo, um jovem de 25 anos
se queixa de ter uma vida familiar insatisfatória; não sei ao certo de que família ele
está falando e, no decorrer de uma discussão preliminar, indago sua idade e ele
declara ter 42 anos. Quarenta e dois? Mas agora mesmo eu disse 25. Quando o
olho mais de perto, noto rugas em seu rosto, e vez por outra acho que mais
aparenta 62 do que 42 ou 25 anos. Afinal, qual sua idade?
A primeira pergunta que eu faria a vocês é: Aceitariam ou não este
paciente? Não estou sugerindo que revelem isso ao paciente ou a mim ou a
alguém mais; mas o que diriam a si mesmos? Se quiserem deixar por escrito a
impressão que agora estão tendo, talvez seja interessante fazer uma anotação:
“sim” ou “não”. Para responder essa indagação, proponho usar um método em
que parto de um “vértice” de onde eu possa formar alguma idéia quanto a se
quero ou não rever este paciente.
Suponhamos que você entre numa livraria, pegue um livro, folheie algumas
páginas e leia o que acabo de expor. Será que poria de lado o livro e passaria a
outro? Ou, então, gostaria de folhear outras páginas antes de decidir se quer ou
não lê-lo? Assim, há uma segunda pergunta que eu faria: Está interessado nesta
história; quer ler um pouco mais sobre ela?
Tentarei outra abordagem: Suponhamos que fosse uma música que você
estivesse ouvindo. Esse tipo de música lhe interessa? Decidiria ir a um concerto
para ouvir o restante da música? Ou chegaria à conclusão de que não era o seu
gênero de música? Isso é outro vértice. É claro, na realidade, não dispomos de
tanto tempo assim, mas aqui podemos brincar desse joguinho.
Mudando o vértice novamente: Suponhamos que você entrasse num prédio
e visse no chão um desenho colorido projetado pela luz de uma janela. Heredia,
no poema Vitrail (adiante reproduzido), descreve as efígies sobre as tumbas: não
conseguem ver, tampouco ouvir, mas com os olhos de pedra vêem as cores no
assoalho esparramadas. À medida que o paciente fala comigo e a luz incide sobre
esta conversa, que cores você vê? Elas lhe agradam? Gostaria de ficar mais
tempo aí? Gostaria de estudar a janela por onde a luz do sol penetra, a fim de
descobrir que tipo de desenho há na vidraça dessa janela?
Não farei mais sugestões porque eu gostaria que pensasse em diversos
vértices que podem ser empregados quando se defronte não com um livro, com
uma pintura, com uma janela, mas com uma pessoa. Que tipo de sombra essa
pessoa lança em sua mente?
Retornando à situação analítica. Vamos dizer ao paciente que venha outra
vez? Vamos abrir, por assim dizer, outra página do livro ou escutar mais alguns
compassos musicais, ou vamos parar por aqui? Cada um de nós tem que
responder essa pergunta, sozinho. Não estou lhe pedindo que assuma um vértice
psiquiátrico a esta altura — é muito cedo ainda. Você só dispõe de algumas
poucas frases [da conversa] e de apenas alguns minutos para avistar o paciente.
Você se sente inclinado a dizer: “Bem, acho melhor vê-lo amanhã”, ou “na próxima
semana”; ou, ”Gostaria de revê-lo dentro de um mês”? Ninguém pode lhe dizer o
que fazer, pois ninguém sabe que tipo de pessoa você é ou de que é capaz.
Outro motivo de eu estar falando inglês é este: estou familiarizado com
expressões como verde de inveja, amarelo de ciúme, negro de desespero,
vermelho de raiva. Você pensa nesses moldes? Caso o faça, quais as cores que
vê nessa conversa? De que cores pintaria essa conversa? Talvez diga que não é
pintor, mas é importante que saiba “quem” ou “o que” é. Essa uma das razões por
que defendemos que as pessoas façam análise a fim de se acostumarem com
quem elas são. É muito improvável que já o tenham descoberto. Desse modo,
embora sua tendência seja dizer que você não pinta, eu diria que você pinta.
Então, pegue suas cores; não faça anotações sobre esta história, trace alguns
riscos num papel. Use algumas cores simples, como azul, preto, amarelo, verde.
Depois olhe o resultado; aí terá uma idéia do impacto desse paciente sobre você.
Se você fosse músico, que música iria compor? Fosse escritor, que idioma
escolheria? Francês? Francês como é falado em Paris, ou no Midi, ou na
Touraine?
Assim, escutando a conversa que se trava entre você e seu paciente, que
língua está sendo falada, quer por ele ou ela, ou por vocês dois?
P: É interessante notar que em francês dizemos: “Amarelo de inveja”, em lugar de
verde.
BION: Esse o motivo por que é tão importante saber não que idioma se fala na
França ou na Inglaterra — essas fronteiras geográficas não têm importância, em
se tratando da questão da mente, ou do caráter, ou da personalidade — mas, sim,
recorrer ao linguajar dos pintores, músicos etc. e usá-lo nesta extraordinária
matéria de que nos ocupamos.
P: Acha que podemos escolher o vértice?
BION: Sim, e quanto mais você conhecer a si mesmo, mais saberá que vértice
escolher a fim de examinar um problema. Por exemplo, vendo este homem que
tentei descrever, você o escolheria para escalarem juntos uma montanha? Você o
escolheria para sua equipe no “Tour de France”? Esqueça a psicanálise ou a
psiquiatria, por enquanto — há alguma coisa para qual você o escolheria?
Gostemos ou não, a escolha é arbitrária, uma vez que é sozinho que cada um de
nós faz análise — é uma profissão solitária.
Acostumamo-nos à idéia de que a psicanálise é uma tentativa de fazer uma
abordagem científica da personalidade humana. Trata-se de um ponto de vista
que confere grande importância aos fatos, à verdade, ao genuíno (the real thing).
Se assim for, há muita gente que é cientista sem essa classificação oficial. Um
pintor, por exemplo, pode crer que um quadro deva ser sincero em relação à
verdade, deva lhe mostrar certo aspecto da realidade que de outra forma você não
perceberia. Ele não é psicanalista, mas pinta um quadro. Olhe esse quadro e
talvez enxergue como uma árvore ou um rosto se parece. Se um autor escreve
acerca de personagens imaginários, como Falstaff, Lear, Otelo, Macbeth, estes
devem nos lembrar gente de carne e osso. O último artigo que você leu no
International Journal of Psycho-Analysis lembrou-lhe ou não de gente de verdade,
de gente de carne e osso (real people)?
P: Está dizendo que a experiência analítica pode ser desumanizante?
BION: Penso que há grande risco de isso acontecer. Deparo um bocado do que é
tido por psicanálise científica, mas que em mim nada desperta a não ser tédio.
A situação no consultório, a relação entre essas duas pessoas, poderia ser
que nem as cinzas de uma fogueira. Há alguma fagulha que possa ser atiçada e
virar chama? Nesse pequeno trecho que relatei, teríamos de examinar, observar,
cuidar dos destroços mentais — pedaços do que nos foi ensinado, pedaços do
que nós aprendemos, pedaços do que foi ensinado ao paciente. Vê-se, na análise,
a totalidade dos destroços. Que terá acontecido com o rosto de um homem de 42
anos? Por que ele aparenta 25 ou 62 anos? Por que ele afirma que tem 42? Tudo
isso faz parte dos destroços. Será que esses fragmentos se juntam? Você seria
capaz de encaixá-los para que façam sentido?
P: (Uma alusão inaudível a “vivência psicótica”.)
BION: A idéia de que seja uma vivência psicótica é muito cerebral. Na análise,
estamos interessados em algo que, em última instância, pode ser expresso em
termos cerebrais, mas não é assim que se mostra a nós enquanto analistas
clínicos. Essa é uma razão por que temos de nos conformar com o fato de os
pacientes não nos chegarem portando etiquetas presas a eles com os dizeres:
“maníaco”, ou “depressivo”, ou “maníaco-depressivo”, ou “esquizofrênico”. Caso
nos cheguem com tais etiquetas, cumpre encará-las como outros destroços
adicionais. Ao chamar isso de destroço, de escombro, não quero dizer que não
mereça atenção; quero dizer que é algo que precisa ser observado e examinado
com muito cuidado, do contrário você poderá jogar fora a necessária centelha
vital. Não podemos nos dar o luxo de botar de lado as conjecturas imaginativas,
com o argumento de que elas não são científicas — você poderia também jogar
fora a semente de uma planta, com a justificativa de que não é um carvalho ou um
lírio, mas apenas lixo. Isso se aplica a tudo que ocorre no consultório.
Mas eu digo que valeria a pena considerá-lo não o seu consultório; e, sim, o
seu ateliê. Que espécie de artista é você? Um ceramista? Um pintor? Músico?
Escritor? Na minha experiência, um número enorme de analistas não sabe que
tipo de artistas são.
P: E se eles não forem artistas?
BION: Aí estarão na profissão errada. Não sei qual a que serve pois, mesmo que
não sejam psicanalistas, eles precisam ser artistas na vida. Um matemático é
capaz de ver que uma fórmula matemática é bela; um músico é capaz de ouvir
uma partitura que consiste em simples marcas pretas em papel branco. Mesmo
recorrendo à linguagem que melhor conheço, não consigo exprimir o que é um
“artista”; preferia que você fosse além dessa palavra e visse o que tento lhe
transmitir por meio desse vocábulo tão insatisfatório. Por certo não é alguém que
engane seus olhos, que o leve a pensar que exista uma árvore, ali, quando não há
nenhuma; mas alguém que o faça ver que ali de fato há uma árvore com raízes,
ainda que estas sejam subterrâneas.
Diria que, por trás desse homem de 42 anos, se esconde uma pessoa; que
essa pessoa tem raízes, um inconsciente que, como as raízes de uma árvore, se
esconde de vista. Há não só galhos que se ramificam e possuem vasos, mas sob
a superfície ela tem raízes. Desse modo, quando essa pessoa entra nesta sala, o
que você vê? Não estou perguntando, simplesmente, o que você vê com os olhos,
mas, também, o que sua intuição lhe possibilita ver?
P: Quando relaciona as raízes da árvore com o inconsciente, tem a imagem de
algo que seria vivido como raízes do inconsciente ou o inconsciente enquanto
raízes?
BION: Não. “Inconsciente” é meramente uma dessas palavras que Freud criou na
tentativa de chamar a atenção para algo que de fato existe. Porém, como de
costume, a gente fica enredado na palavra, e aí surgem essas intermináveis
discussões maçantes (para mim) sobre teoria kleiniana, teoria de Abraham, e toda
sorte de teorias. Não posso estar interessado nelas porque elas obscurecem o
fato de efetivamente existir, no que a mim diz respeito, a mente ou personalidade
humanas. Não creio que alguém já tenha descoberto como deve ser descrito esse
caráter, ou personalidade, humana, ainda que um bom retratista seja capaz de
pintar algo que revele não só a cor da pele ou a conformação física da pessoa.
Um artista na Inglaterra pintou um retrato de Winston Churchill. Sua esposa
detestou tanto o quadro, que o destruiu. Mas houve muita gente que o considerou
um excelente retrato. O artista, Graham Sutherland, não era psicanalista, não se
enquadrava nessa categoria, nesse compartimento; mas ele era ou não um
analista? Da mesma forma, você poderá me dizer: “Ah, sim, mas eu não sou
Cézanne, não sou Sutherland”.
Não quero lisonjeá-lo, mas só posso dizer é: Como sabe que não é? Você
foi ao seu ateliê e descobriu que tipo de artista você é?
P: Poderia dizer algo acerca do que descreveu como uma situação catastrófica?
BION: A palavra “catástrofe” também tem sido compreendida à luz de algo que
segue na direção contrária. Eu o concebo como um “desabar” (breaking down),
que é bem próximo da metáfora “espatifar-se” (breaking up).
Na situação analítica, o analista preocupa-se em tentar tornar consciente,
tentar trazer à consciência algo que o paciente não raro passou a vida inteira
procurando tornar inconsciente. Há duas pessoas na sala que se reúnem na
mesma hora, no mesmo lugar, mas são diferentes as direções nas quais estão
pensando. Elas poderiam concordar uma com a outra se o analista consentisse
em ficar muito perturbado e aflito, com o mesmo tipo de neurose ou psicose que o
paciente; mas comumente se espera que o analista não perca a capacidade de se
inteirar do mundo da realidade, ainda que ele chame a atenção para um mundo de
uma modalidade diversa de realidade. O exemplo mais simples que consigo dar é
este: estamos no estado mental que geralmente se conhece como estar acordado,
ou consciente, e a par do que ocorre — assim presumimos. Porém, quando
estamos dormindo, encontramo-nos num estado mental diferente. Essa divisão em
noite e dia não é muito esclarecedora, mas a considero útil se conservarmos o
valioso atributo que é ser capaz de dormir assim como o valioso atributo que é
poder acordar. Esse “casamento” com freqüência não parece ser harmonioso. Por
exemplo, certos pacientes admitem que tiveram um sonho, mas não o levam a
sério; não se sentem dispostos a lhe dizer onde sonharam e o que viram.
Comentam eles: “Ah, eu apenas sonhei isso”. Não sei por que eles “apenas o
sonharam”. Se a glande [ou bolota, de um carvalho] dissesse: “Ah, são apenas
raízes”, que pensaríamos? Afinal, até a glande [fruto] de um carvalho deve algo às
raízes. Assim, que compreensão se pode ter de um paciente que acha que
“apenas o sonhou”? Freud julgava que os sonhos deveriam ser tratados com
respeito — penso que essa é a parte mais importante de sua obra, mas não creio
que estejamos sequer próximos de colher os resultados de tratar com respeito os
sonhos.
P: (Perguntas acerca do significado dos termos “breaking down” [desabar; ter um
colapso] e “breaking up” [espatifar(-se)]. Não há equivalentes diretos em francês).
BION: O que lhe diz o paciente quando pensa que está “ficando louco”?
Você tem de descobrir, a partir do paciente, o que isso significa. Quando ele diz
que está desabando (breaking down), é isso que um colapso
(breakdown)[nervoso] lhe soa e se lhe afigura. Você não tem de acreditar que o
diagnóstico do paciente esteja correto, mas você pode espiar o próprio quadro a
que ele chama de colapso (breakdown)[nervoso]. E aí tem a oportunidade de usar
os sentidos, para que estes lhe digam o que significa essa palavra e, também, que
língua o paciente está falando. Não adianta dizer que ele está falando francês ou
inglês; isso é tosco, grosseiro demais.
P: O que se desenvolve no “ateliê” é a especificidade da linguagem?
BION: É, e a especificidade do que o analista faz. As imagens de Cézanne acerca
da Montagne Sainte Victoire não seriam iguais às minhas se eu a fotografasse.
Qual a diferença? Há que olhar as pinturas para descobrir; são a única linguagem
que Cézanne conseguiu falar para me transmitir aquilo que deverei poder ver se
eu olhar para essa montanha.
Seus pacientes na verdade não são grandes artistas, porém geralmente
sabem o que é sentir os sentimentos que experimentam. Quando procuram lhe
contar isso, não dispõem de muito vocabulário. Assim, você escuta o que eles
dizem e olha o que são, compara ambos e então tira sua própria conclusão quanto
a se eles estariam — para usar o inglês — breaking up (se espatifando), breaking
down (desabando ou tendo um colapso físico ou nervoso) ou breaking through
(rompendo barreira ou fazendo grande avanço ou descoberta).
Em geral o paciente está descrevendo algo que, tenho certeza, existe — a
dor mental.
Quando é física, pode-se indagar: “Que tipo de dor é essa?”
Com o gênero de paciente que temos, precisamos ser capazes de
reconhecer os diferentes nomes que são dados à dor: ansioso, assustado,
aterrorizado, embaraçado, envergonhado, e assim por diante. Representam, todos
eles, modalidades distintas de dor. Se você estivesse tentando pintá-las, teria que
usar diferentes matizes, mas o psicanalista tem que inventar a linguagem; nosso
material não é visível, nem palpável.
Às vezes o paciente não parece ser capaz de se comunicar e quer segurar
sua mão, ter um método físico de comunicação. A maioria dos analistas se
restringe à comunicação verbal; esse, porém, é apenas um método de
comunicação recém-descoberto — não é um método ótimo, mas o melhor que
conhecemos.
P: Tive, há pouco tempo, um paciente que não achava necessário falar para se
comunicar comigo.
BION: Tais pacientes não entendem, realmente, as possibilidades da
comunicação verbal. Entendem as possibilidades de expelir urina, fezes e até o ar
que respiram. De modo que, quando falam, eles se apercebem da atividade
muscular de expulsão, não do caráter mental da atividade de pensar.
P: Isso confirma minha experiência com esse paciente. Certa vez ele estava com
medo de um amigo chamado Pierre. Julgava que este era muito duro (...) (frase
inaudível) que nem atirar pedras pela boca.
BION: É muito difícil a gente ter uma idéia, a menos que se esteja com o paciente.
Uma possibilidade é ele estar impressionado com o movimento muscular. Desse
modo, ele estaria com medo ou de perder alguma parte de sua personalidade,
caso fale, ou de vir a machucar o analista com essas pedras; poderia soltar coisas
ferinas, grosserias, insultos. Até — uma possível conjectura racional — estar com
medo de dizer, se for espontâneo ou natural, coisas ofensivas que deixem o
analista com muita raiva.
Quando este paciente fala com o analista, que aspecto de si mesmo está
sendo expresso? Será que está ciente do crescimento de cálculos renais [pedras
nos rins — Ed.] bem antes que qualquer sinal apareça radiologicamente ou à
palpação física? Assim como as idéias mais aceitas acerca de nossa resposta às
livres associações do paciente, pode haver esta complicação: um sintoma físico,
um sintoma químico, a formação de um cálculo, revelam-se bem antes, na mente,
do que sob qualquer outra forma. A pergunta é: O que deve dizer ao paciente?
Como transformar seus pensamentos, seus sentimentos, suas idéias a
respeito do que lhe é apresentado, numa linguagem que o paciente entenda e que
seja, ao mesmo tempo, correta. É um problema espinhoso, e não vejo outra
maneira de solucioná-lo a não ser que se esteja no consultório.
P: Quem sabe, isso acontece com as crianças também (....) [passagem inaudível]
BION: É difícil saber onde está a origem da dor. As crianças, hoje em dia, são,
com freqüência, agudamente sensíveis ao que se passa; sabem bastante acerca
da escola, dos professores, do lugarejo ou cidade, ou país, em que vivem. Mas
não é a mesma coisa que sabemos como adultos. Desse modo, quando elas lhe
revelam algo, esteja certo de que é bem arguta a informação fornecida, mas não é
grande a experiência delas; não viveram o bastante para conseguir entender o
que lhes dizem os seus conhecimentos ou os seus sentidos. É talvez inteiramente
natural que uma criança seja leal com os que forem da mesma faixa etária e não
queira passar informações a alguém que seja de uma geração diferente. Assim,
há uma divisão que não é simplesmente entre o inconsciente e o consciente,
ainda que se assemelhe a ela; trata-se de uma divisão entre aquilo que a criança
lhe lembra que outrora você foi, com aquilo que, você sabe, você é hoje em dia.
Talvez haja se esquecido de que a criança que você foi era leal para com
os outros meninos e meninas, e não contava aos pais coisas que você sabia e não
considerava perigosas, porque não tinha experiência suficiente para saber que
eram perigosas.
Assim, você depara este problema que em parte tem a ver com você
mesmo; em parte, com a criança real que lhe chega, mas que também está
relacionado àquilo que descrevi como “a moda”. Não estou falando de modismo,
de uma simples manifestação passageira da moda, mas da moda em si — essa
força que existe, sempre existe e é muito poderosa.
Acho que faz bastante tempo que deixamos para trás a entrevista com o
homem de 42 anos. Aqui se pode discutir o problema extensamente, mas, no
consultório, não. A pergunta é: Por que ele me lembra um homem de 24 anos? E
por que, quando o olho, me lembra um homem de 62 anos? A essa altura,
gostaria de saber se tem filhos. Estes o tornariam mais velho ou mais novo? Acho
que gostaria de revê-lo outro dia; quem sabe, eu descobrisse, então, se ele era ou
não casado, ou se ele e a companheira geraram filhos.
Estou acostumado com a idéia de conflito mental, mas há conflitos físicos?
É possível alguém aparentar ter, ao mesmo tempo, 25 e 62 anos, mas não 42
anos? Que músculos do corpo estão sendo usados? Alguns deles são cordas
vocais. Mas que mais? Que dizer de sua pele? Que dizer das rugas ou da falta de
rugas em seu rosto? Como isso é feito? Será que nós, psicanalistas, temos de nos
dar conta do conflito físico bem como do conflito mental?
Recordo um paciente que era sempre muito cooperador e após certo tempo
— provavelmente após um tempo demasiado longo — ficou claro para mim que
ele era o único paciente que não perturbava a aparência do divã; quando ia
embora, era quase como se ninguém tivesse se deitado ali. Isso me fez pensar
que era uma espécie de catalepsia, uma catalepsia mental.
Eu jamais afirmaria, em sã consciência, que teve um sonho; tampouco diria,
em sã consciência, que ele estivesse desperto; ele estava entre ambos, [o sono e
a vigília]. Não estava inconsciente; nem estava consciente. Como vivia ele
exatamente nesse estado mental? Fisicamente, ele conseguia se deitar
exatamente numa determinada posição no divã; ficou agora claro que estava
fazendo a mesma coisa mentalmente.
P: Há dois pontos que gostaria de levantar. Primeiro, aqui em Paris há queixas
quanto a falta de discussão a respeito da escolha de pacientes. Segundo, várias
vezes me falaram de pacientes que querem interromper a análise, mas os
analistas é que não querem “desmamá-los”.
BION: Recorrerei a uma expressão que considero útil, tomando de empréstimo
aos matemáticos um termo: “iniciativa absoluta”. Por “absoluta”, refiro-me a ambas
as direções — a iniciativa de retornar; a iniciativa de seguir em frente. O ponto
importante é a iniciativa, não o rumo. Isso me parece muito próximo de algo
fundamental e básico, até fisicamente; quase idêntico às funções ou aos impulsos
que surgem quando as supra-renais entram em atividade, tornando possível lutar
ou fugir, correr para o perigo ou do perigo. Digo “iniciativa” para expressar essa
área neutra, intermediária entre ambos [entre lutar e fugir]. Quem dá à luz um
bebê? A mãe ou o feto a termo? O feto a termo de algum modo indica que já
chega de estar dentro da mãe? Ou a mãe indica que já chega de carregar consigo
aquele fardo? Isso é exprimi-lo em termos pictóricos. Recomecemos.
O paciente quer se encontrar com o analista, ou o analista quer se
encontrar com o paciente? Julgo que a situação cataléptica representa uma
espécie de refúgio; não se faz nem uma coisa nem outra.
Outro dia ouvi um relato interessante sobre um paciente que parecia
mencionar o 14 de Julho. Ao que tudo indica, ele falou bastante, porém nada
referiu sobre a Queda da Bastilha ou sobre gente dançando nas ruas em
comemoração do feriado. Isso a mim pareceu ser como olhar uma radiografia na
qual se vêem os pulmões, mas essa área está velada por quê? Por que não se
enxergam com nitidez as costelas? O que é que há com esta história? Enquanto
você olha esse destroço, como o chamei, precisa também se dar conta do que
está errado com a história que lhe está sendo contada. Que está faltando? Você
ouviu apenas o começo e é quase certo que você terá de rever o paciente. No
entanto, quando você o fizer, estará também iniciando a análise, e é possível que
descubra que não quer continuar com esse paciente mas que ele deseja continuar
com você. É preciso que você se dê conta dessa possibilidade a qualquer
momento. O mesmo se aplica ao seu ateliê: quem sabe, você não tenha decidido
que tipo de artista ser; mas, à medida que veja em “que” você é razoavelmente
bom, você talvez tenha que “tirar o máximo proveito de um mau negócio”,
conforme dizemos, e decidir descobrir o que fazer com o que tem no ateliê.
É muito importante você estar ciente de que jamais ficará satisfeito com a
carreira analítica caso você sinta que se restringe ao que estritamente se chama
de abordagem “científica”. Há que ter a chance de sentir que a interpretação que
você oferece é uma bela interpretação, ou que você obtém uma bela resposta do
paciente. Esse elemento estético da beleza faz que uma situação muito difícil se
torne tolerável. É sumamente importante ousar pensar ou sentir seja lá o que você
sinta ou pense, não importa quão pouco, ou nada, científico isso seja.
Transcrição de Francesca Bion
Setembro 1999
Tradução de Wellington Dantas (SBPRJ), Abril de 2000
Vitrail
Cette verrière a vu dames et hauts barons
Étincelants d’azur, d’or, de flamme et de nacre,
Incliner, sous la dextre auguste qui consacre,
L’orgueil de leurs cimiers et de leurs chaperons;
Lorsqu’ils allaient, au bruit du cor ou des clairons,
Ayant le glaive au poing, le gerfaut ou le sacre,
Vers la plaine ou le bois, Byzance ou Saint-Jean d’Acre,
Partir pour la croisade ou le vol des hérons.
Aujourd’hui, les seigneurs auprès des châtelaines,
Avec le lévrier à leurs longues poulaines,
S’allongent aux carreaux de marbre blanc et noir;
Ils gisent là sans voix, sans geste et sans ouié,
Et de leurs yeux de pierre ils regardent sans voir
La rose du vitrail toujours épanioué.
Heredia
Copyright  2000 Francesca Bion