O RETORNO DO REI

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O RETORNO DO REI
I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e
X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória
21 a 23 de Setembro de 2011
UNIOESTE – Cascavel/PR
O retorno do rei 1
ARRUDA, Janaina (G. 1◦ Letras)
DEL POZO, Leila (G.1 ◦ Letras)
RESUMO: O presente artigo busca recuperar o contexto histórico da Grécia na época de
Homero, para que com maior clareza possamos compreender o protagonista da “Odisseia”.
Embora muitas vezes nosso olhar acadêmico não nos permite penetrar na realidade da
personagem, posto que desconhecemos em grande parte os paradigmas da Grécia antiga, suas
leis, modos de vida e costumes, acreditamos ser importante retomar esses pontos para explicar
e compreender um Ulisses desconhecido, tirando a venda de sobre os olhos para vê-lo tal qual
Homero o compôs. Nesse artigo, são discutidas as motivações de Ulisses em seu regresso à
Ítaca, os impedimentos de sucessão do seu trono e a justificativa de herói na personagem.
PALAVRAS-CHAVE: Ulisses; Odisseia; Homero; leis na Grécia antiga; rei/herói.
RESUMEN: En este artículo se busca recuperar el contexto histórico de la Grecia de Homero
para, de esta manera, comprender mejor al protagonista de la “Odisea”. Se parte de la tesis de
la importancia de conocer los paradigmas de la Grecia antigua, sus leyes, modos de vida y
costumbres, que en general, son desconocidos sobre todo por los estudiantes iniciantes en
Literatura Clásica, permitiéndoles una nueva visión y comprensión de los paradigmas de la
Grecia arcaica de Homero, contexto en que La Odisea fue compuesto. Se discuten los motivos
de Ulises para regresar a Ítaca, los impedimentos de sucesión del trono y la justificación de
héroe en el personaje.
PALABRAS LLAVE: Ulises, Odisea, Homero, leyes en la Grecia antigua, rey/héroe.
Talvez tenha sido Ulisses o primeiro herói personificado na figura de homem.
Mesmo apreciado e protegido pela deusa Palas Atena, não era possuidor de nenhuma força
sobre-humana. Tudo de que dispunha era sua sagaz inteligência, e de “pequenos” favores
promovidos pela deusa.
Em sua obra “Odisseia”, Homero foi pioneiro, ao caracterizar a inteligência acima da
força, colocando a figura do homem capaz de vencer qualquer obstáculo, se utilizasse de sua
capacidade de raciocinar. Para compreender Ulisses é necessário nos despojarmos de tudo o
que conhecemos, e estarmos dispostos a entender qual era o mundo de Homero quando seu
herói foi criado.
Grécia, século VIII a.C., provável época em que foram escritas as obras Ilíada e
Odisséia, atribuídas a Homero. Segundo Funari, (2001 p.26), a Grécia arcaica era
caracterizada pela agricultura e pela criação; terras e rebanhos pertenciam a grandes
proprietários, os chefes dos clãs que diziam descender dos heróis lendários. De suas incursões
1
Trabalho apresentado à Disciplina de Literatura Clássica. Curso de Licenciatura em Letras –
2011/01. Sob orientação da Profª Claudiana Soerensen. Alunas: Janaina Rosa Arruda, Leila Del Pozo Gonzalez.
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guerreiras dependia a sorte da cidade em um tempo em que as batalhas se davam em uma
série de combates singulares. Época esta, também marcada pelo início da colonização grega e
sua expansão marítima.
Homero, na sua obra, recria a moral competitiva ou agonística do ideal aristocrático
isto é: ser o primeiro, ser o melhor, pois isso trás fama (areté) que seria o contrário a desonra.
A excelência é herdada como herança dentro das famílias nobres. O homem excelente recebe
o adjetivo de agathós, esthlos, que correspondem ao conceito de excelência ou virtude
humana areté. (Rodrigues, 1966, p.40,41).
Para os gregos a areté é um atributo próprio da nobreza. (Jaeger, 1936, p.24). Não é
possível determinar um equivalente exato para essa palavra na língua portuguesa, no entanto
utilizamos a palavra “virtude” para nos aproximarmos do conceito. Atualmente a palavra
“virtude” está ligada a questão moral, principalmente após o advento do cristianismo, no
entanto na Grécia clássica areté recebe um significado mais amplo, como ideal cavalheiresco
unido a conduta cortês. (Jaeger, 1936, p.23). No contexto de Homero, a areté individual está a
serviço dos interesses coletivos, contando sempre com uma estrita subordinação à classe
nobre. (Rodrigues, 1966, p.83)
Para que seja válida a areté deve ser conquistada através de lutas e vitórias, o que
caracteriza a autêntica “prova de fogo” da virtude humana. Não é apenas a comprovação da
superação física do adversário, mas a rigorosa exercitação das qualidades naturais. Mesmo
que seja uma virtude passada através de herança nobre não era automática, para possuí-la, o
homem deveria demonstrar ser dela merecedor. (Jaeger, 1936, p.26)
O rei desempenhava o papel não só de representante administrativo do povo, mas
também de representante religioso de maior importância2. A autoridade originou-se, segundo
Aristóteles, do culto do lar, onde a figura máxima era o pai, detentor de total domínio do lar,
seja de forma administrativa ou religiosa. Em outras palavras, o rei era o responsável pelo seu
povo, o „pai‟ do povo. A sucessão do poder dentro do lar era transmitida de homem para
homem, o que acontecia também para o culto3, fato a ser destacado, pois essa importante
2
FUSTEL DE COULANGES, p.141: “A autoridade política do Rei, assim como na família, se achava inerente
ao sacerdócio e o pai. Como chefe do culto doméstico, ao mesmo tempo juiz e senhor, assim como também o
sumo sacerdote é, na cidade, também o seu chefe político.”
3
FUSTEL DE COULANGES p. 59: “O filho herda, a filha não. Aqui é que as leis antigas, à primeira vista, nos
parecem bizarras e injustas. [...] Quanto aos colaterais, parece-nos, à primeira vista, estarem mais afastados ainda
da ordem natural e da justiça. Todas estas leis são decorrentes não da lógica e da razão, ou do sentimento de
equidade, porém das crenças e da religião que reinam sobre as almas. A regra estatuída para o culto é a de que o
mesmo se transmita de varão para varão; a regra para a herança é que esteja em conformidade com o culto. A
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informação explicará as ações de Penélope e Telêmaco. Segundo Fustel de Coulanges: “[...] O
rei era um ser sagrado; o homem mais poderoso para conjurar a cólera dos deuses, o homem
sem cuja assistência nenhuma prece seria eficaz e nenhum sacrifício seria aceito” (FUSTEL
DE COULAGENS, 1975 p.142).
Hartog em seu livro O espelho de Heródoto, (1999, p.151) nos mostra o verdadeiro
sentido de lar na antiga Grécia. Não havia uma dualidade no significado da palavra como hoje
percebemos, pois na antiguidade o lar real era sinônimo de lar da cidade. Outro aspecto
importante a ser destacado, refere-se ao fato de que a Grécia primitiva aparece dividida entre
Estados ou cidades, não era um império, mas vários reinos independentes entre si e alguns
territorialmente diminutos, configurando uma Grécia fragmentada em cidades-estado.
(Brandão, 2004, p.68,69). Cada uma dessas cidades era possuidora de um Rei, detentor do
poder e do destino de seu povo. Para Hartog,
[...] um bom rei, um rei justo assegura a prosperidade de seu país [...] o rei
mau, aquele que comete uma falta, deixa-se levar pela hýbris e esquece a
justiça, traz um loimós: a fome espalha-se, os rebanhos não se reproduzem
mais e as mulheres não dão mais à luz. Mas tanto no caso do bom, quanto no
caso do mau rei, o influxo vai sempre do rei para os súditos e o país – não se
supondo jamais a possibilidade de reversão, ou seja, a influência dos súditos
sobre a pessoa do rei. (HARTOG, 1999 p.143)
Todas essas concepções levantadas acerca de lar real e bom rei são inerentes ao
personagem homérico de Ulisses. Homero criou uma lista seleta de personagens dramáticos4.
São poucas as personagens de origem humilde. Até Eumeu, o porqueiro, servo de Ulisses é na
verdade um príncipe Fenício que foi raptado na infância. Se não são reis, suas personagens
são pessoas abastadas5. Bowra, (1968, p.49) acrescenta que Homero utilizou-se de
filha não se considera apta para dar sequência à religião paterna, pois casa, e casando-se, renuncia ao culto de
seu pai para adotar o do esposo: não tem, pois, nenhum direito à herança. Se por acaso um pai deixasse os bens à
filha, a propriedade ficaria divorciada do culto, o que não é admissível. A filha não poderia nem mesmo cumprir
o primeiro dever do herdeiro, ou seja, o de continuar a série dos banquetes fúnebres, pois só aos ancestrais de seu
marido poderá oferecer os sacrifícios. A religião proíbe-lhe, pois, receber herança de seu pai”
4
Aristóteles, p.4. “Sófocles, por um lado, imita à maneira de Homero, pois ambos representam homens
melhores; entretanto ele também imita à maneira de Aristófanes, visto ambos apresentarem a imitação usando
personagens que agem perante os espectadores. Daí que alguns chamem a essas obras dramas, porque fazem
aparecer e agir as próprias personagens.”
5
BOWRA p. 48 – 49: “La tradición y las circunstancias contemporáneas subrayaban la obligación que tenía el
bardo que hablaba del pasado de concentrar su atención en los personajes de noble estirpe. Cuando Homero les
llama habitualmente „semejantes a los dioses‟ o „iguales a los dioses‟, al tiempo de rendir tributo de admiración a
una generación de héroes, deja ver cuán selecta es su lista de dramatis personae. Entre sus personajes son muy
pocos los de origen humilde. Incluso el porquero de Ulises, Eumeu, que fue raptado en su niñez por los fenicios
[...] Por otra parte, a los que no son de alta alcurnia se les presenta a veces bajo una luz de ridículo o de escarnio.
Tersites, que injuria de palabra a los reyes aqueos en la asamblea celebrada frente a Troya, no sólo es un
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personagens da realeza, não só porque a tradição o pedia, mas também porque era do agrado
de seus protetores6.
O grande aedo/rapsodo escrevia o que lhe fosse exigido, de tudo o que acreditou que
lhe foi dito, ou transmitido pela verdade da tradição, pelos acontecimentos que até ele
chegaram, descrevendo aquilo que ele achava ser verdade. Seus relatos contavam com a
verossimilhança e com a coerência, recopilando os relatos e compondo as histórias, no entanto
limitadas, pois não podia fugir demasiadamente dos fatos que lhe foram contados. Tentava
chegar à verdade por meio desses relatos, mas não tinha liberdade em alterá-los submetendose a tradição. (Auerbach, 1971, p.10,11)
Os poemas homéricos, segundo Auerbach, são a fonte de conhecimentos precisos
espaciais e temporalmente delimitados para nossos estudos da sociedade grega. Antes da sua
obra não é possível, nem pensável definir com precisão a Grécia arcaica e sua sociedade.
(Auerbach, 1971, p.13). O autor ainda aponta que as personagens eram destacadas em todos
os aspectos físicos, moral e intelectual. Porém iam além, pois com o tempo surgiram lendas
ao redor de seus nomes. Para Angelo Brelich (apud Brandão, 2005, p.19),
[...] todo herói é uma personagem cuja morte apresenta um relevo particular
e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte
divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os mistérios; isto é;
é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; o herói é, além
do mais, ancestral de grupos consanguíneos e representante prototípico de
certas atividades humanas fundamentais e primordiais. [...] e, embora o herói
possuía uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que marcada
pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início, é
ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo
com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas
memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e
descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico.
Ulisses mesmo não sendo um deus ou semideus, ocupa lugar de destaque, pois se
tornou um estereótipo de virtudes. Detivemos enfim nosso foco de estudo na figura do homem
grego, seu regresso e motivações pra retomar o poder suspenso. Buscamos compreender a
configuração de um rei/herói, sua personalidade e atributos capazes de transformá-lo em uma
personaje ofensivo, sino también feo y nadie le compadece, cuando Ulises le golpea con el báculo dejándole un
doloroso verdugón en la espalda. Dolón, que pretende alocadamente comportarse como un héroe, no es noble,
sino rico [...]"
6
BOWRA p. 49: “El interés primordial de Homero se centraba en los reyes y en los príncipes, porque así lo
exigía la tradición, pero la tradición, sin duda alguna, era del gusto de sus protectores y no veía motivo para
abandonarla”.
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personagem que repercute até os dias atuais. Como já citado anteriormente, Ulisses era um
homem comum, prático, despojado de facilidades extra-físicas, porém inúmeros outros
acontecimentos preenchem sua história que é repleta de simbolismos.
A mordida do javali representa a aquisição do poder espiritual, e a aquisição de seu
arco é a imagem do poder real a da iniciação dos cavalheiros. Foi educado por Quirão, o
centauro e era filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de Autólico, o maior
e mais sabido dos ladrões e ainda bisneto de Hermes, o deus também dos ardis e trapaças.
Ulisses só poderia ser mesmo, ao lado de inteligência exuberante, da coragem e da
determinação, um herói polýmetis, cheio de malícia e de habilidade, e um polýtropos, um
solerte e manhoso em grau superlativo. (Brandão, 2005, p.291).
Talvez nenhum herói homérico tenha sido tão bafejado pela amizade divina quanto
Ulisses. Bastaria citar o respaldo e a proteção que lhe deram Hermes e Atena para se concluir
que o rei de Ítaca era um valido dos imortais. (Brandão, 2005, p.321).
Ulisses é o arquétipo de um bom rei, dotado de inteligência, astúcia, audácia,
liderança e responsabilidade para com seus deveres reais. Comprovamos esta ideia quando no
Canto XI Tirésias lhe revela o anankê:
[...] encontrarás tribulação em casa – homens estróinas, que devoram teu
sustento, pretendendo a mão de tua divina esposa, a quem oferecem
presentes. Tomarás, é certo, vingança da violência deles quando chegares
[...] Tu mesmo virás a falecer longe do mar; a morte será tão branda que não
te levará antes de estares acabado numa velhice opulenta, no meio de tua
gente, em plena prosperidade. Eis as verdades que te vaticino. (Homero,
2010, p. 128 - 129).
Ulisses então reage, reforçando seu status de líder responsável para com seu povo.
Quando posteriormente sua mãe diz que Penélope não desposou nenhum dos pretendentes,
sua esperança se renova. A imagem homérica do casamento é em geral positiva e transmite o
sentimento de respeito existente no relacionamento. Os teóricos Vernant (1991, p.152) e
Brandão (2005, p.315) compartilham da mesma opinião sobre Penélope, ambos a descrevem
como uma mulher virtuosa e correta, símbolo da fidelidade conjugal. Na Odisséia a imagem
de Penélope é um tanto retocada, demonstrando fidelidade absoluta ao herói que esteve
ausente durante vinte anos.
Segundo Rodrigues, em Homero existe liberdade na exposição do amor, ao lado de
uma concepção puramente física do mesmo que posteriormente não se encontra. É o caso de
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Heitor e Andrômaca e de Ulisses e Penélope, exemplos de amor conjugal que não aparecem
descritos na literatura posterior. O encontro de Penélope e Ulisses tem uma tensão emocional
totalmente moderna como se poderia esperar depois da fidelidade dela e da cena entre Ulisses
e Calipso, em que ele prefere a sua mulher terrena e sua ilhota rochosa à deusa imortal. (1966,
p.77,78)
Quando finalmente chega a Ítaca, depois de passar por inúmeras peripécias, Ulisses
encontra Atena, e a ela pede ajuda e proteção para retomar seu trono. A deusa, então, começa
com o plano ocultando-o sob trajes de mendigo, e modificando sua aparência física. Ulisses é
instruído a procurar seu servo Eumeu, para inteirar-se dos acontecimentos na cidade. E
através do relato do servo que Ulisses confirma o estado de abandono e miséria de seu povo.
Brandão descreve muito bem o cenário, composto por 108 pretendentes nobres:
[...] a princípio, de simples cortejadores da esposa do herói passaram a
senhores de seu palácio e de sua fazenda. Arrogantes, autoritários, violentos
e pródigos com os bens alheios, banqueteavam-se diariamente na corte do rei
de Ítaca, exigindo o que de melhor houvesse em seu rebanho e em sua adega.
(2005, p.315)
Os pretendentes não pensavam que estavam destruindo um patrimônio coletivo,
comportando-se de maneira egoísta, não possuíam aidós (Rodriguez, p.74). Percebemos nesse
momento, mais uma vez, o comprometimento de Ulisses com seu povo, retomando a ideia de
bom rei, associada à ideia de alguém que cuida de seus súditos. Não é apenas o lar do rei que
está sendo dizimado, mas o patrimônio do povo de Ítaca.
A atitude dos pretendentes demonstra desonra para com a areté alheia, e a
hospitalidade é um dos atributos que está dentro dessa areté. Mesmo sendo bem atendidos por
Telêmaco, com todas as cerimônias e cortesias a que tinham direito, eles apresentaram um
comportamento vergonhoso. Geralmente os nobres plebeus se comportavam e demonstravam
certo decoro em todas as situações, fato que não pudemos observar nesse episódio.
(Rodrigues, 1966, p.74)
Existe uma relação intima entre o ideal (metron) e a saúde do espírito (sophrosyne),
moderação, temperança. A sophrosyne indica uma qualidade do espírito em que o ideal
(metron) da medida adquire às vezes características especiais, essa medida refere-se
essencialmente a restrição dos impulsos espontâneos. Tal medida estaria dentro do que se tem
como o respeito à proibição social de se invadir certas esferas, o aidós, o não ir além de certo
limite por medo de um castigo divino. (Rodrigues, 1966, p.74)
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De acordo com Rodrigues, a sophrosyne é a genuína representante da moral restritiva
grega, associada com o belo, a justiça, a medida e a piedade. Então consideramos que quando
os pretendentes desprezam a sophrosyne, acabam adquirindo para si o excesso, a cegueira e a
ignorância, a chamada hybris, caracterizada como o pior dos pecados gregos.
Quando Anfínomo, um dos pretendentes, zomba da situação de Ulisses, esse até
então trajado como mendigo, despreza que a vida do homem é um conjunto de altos e baixos
imprevisíveis, consequência da vontade divina. Anfínomo ironiza a condição de Ulisses
ignorando a decisão dos Deuses para o fato. (Rodrigues, 1966, p.65)
Os homens não têm conhecimento do futuro, portanto se tem alguma atribuição
específica é graças ao poder divino. Em conseqüência, a desvalorização do homem o torna
inútil, e se vangloriar é imprudente e insensato, o que é caracterizado como erro. Acreditar-se
sempre na glória é ilusão, pois os homens nada mais são do que fantoches dos deuses,
impossibilitados de determinar seu futuro. É uma hybris o homem acreditar que pode fazer
algo acontecer sem o consentimento dos deuses. (Rodrigues, 1966, p.69)
Do ponto de vista atual, poderíamos atribuir a Ulisses uma visão materialista, ligada
aos bens, ao trono e ao poder. Mas devemos pensar no contexto histórico em que a história foi
escrita, e a figura do rei não permitiria um comportamento materialista moderno. Parmênides,
filósofo pré-socrático, foi o primeiro a afirmar que o mundo percebido pelos nossos sentidos é
um mundo ilusório, de aparências, sobre as quais formulamos opiniões. “A aparência sensível
das coisas da natureza não possui realidade. As coisas, das quais percebemos aparência
sensível, não existem realmente” (CONCEIÇÃO, 2007, p.1). Em um primeiro olhar, veríamos
um Ulisses levado pela aparência, que dá importância ao poder e às posições, que não leva em
consideração as lições aprendidas, depois da peripécia em sua longa viagem de regresso.
A verossimilhança interna, porém, não permitiria fazer essa leitura, pois, então,
Ulisses não seria um herói. Já dissemos que Homero, em suas obras, utiliza-se apenas de
personagens virtuosos. A imagem de Ulisses materialista, não condiz com o contexto
histórico da época, pois a figura do bom rei estava associada a uma responsabilidade para com
o destino do seu povo. Os valores morais de um bom rei vão além de uma perspectiva
material, como dito por Parmênides. Por outro lado, Homero como aedo/rapsodo, manipulava
os parâmetros de virtude, que serviam como exemplos de comportamento. Afinal, era a
aristocracia o público fiel das narrativas épicas,
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[...] os heróis tinham assim um sentido de modelo para os aristocratas, uma virtude
essencial. A qualidade principal do herói épico era o que os gregos chamavam de
Arete (virtude): aquele que se mantem fiel a si mesmo. (FEIJÓ, 1984. p. 56)
Hegel (apud Feijó, 1984, p. 35) disse que: “[...] o indivíduo histórico-universal (o
herói) seria o que compreende as condições maduras e encarnaria na sua liderança aquilo que
sua época determinasse. O herói, portanto, estaria limitado pelo seu tempo e pela cultura de
seu tempo”.
Neste ponto, observamos a preocupação de Ulisses com o povo de Ítaca e
percebemos em um segundo momento a preocupação também com Telêmaco e Penélope.
Quando inquiriu a mãe morta no submundo sobre a sorte da esposa e filho, Ulisses quis saber
sobre o caráter (ethos) de Penélope ante a situação de sua ausência por tanto tempo. Devemos
lembrar que nessa época as mulheres eram vistas de maneira inferior, e não eram consideradas
nem mesmo pelas leis. A herança era passada de varão para varão (FUSTEL DE
COULAGENS, 1975, p. 59) e ela não poderia assumir a responsabilidade com seu povo.
Portanto, Penélope não poderia herdar o trono do seu marido. De acordo com a lei, o herdeiro
legítimo seria Telêmaco, mas esse por ser menor de idade, também não poderia assumir o
trono. Mesmo que Telêmaco fosse emancipado pela mãe ainda assim não assumiria o trono,
pois perderia o direito à herança 7, segundo a lei.
Penélope é uma personagem homérica diferente, é uma esposa que sofre durante a
longa ausência do marido. Diante do cenário do seu patrimônio devorado pelos pretendentes
que aspiram seu dinheiro e posição social, poderia ter sido descrita como uma simples vítima
oprimida e poderia ter contado com seu pathos para ganhar a nossa simpatia. No entanto,
Homero lhe atribui astúcia, cautela e precaução. Penélope é mais do que uma simples mulher
da antiguidade, pois mesmo chorando sua desgraça consegue lidar com uma situação
insustentável 8. Penélope mereceria o título de heroína.
7
FUSTEL DE COULANGES p. 64: “Efeitos da Emancipação e da adoção. Vimos anteriormente como a
emancipação e a adoção produziam, no homem, mudança de culto. A primeira desligava-o do culto paterno; a
segunda iniciava-o na religião de outra família. Ainda aqui o direito antigo se conformava às regras religiosas. O
filho excluído do culto paterno pela emancipação ficava, igualmente, excluído da herança. Pelo contrário, o
estranho que, pela adoção, havia sido associado ao culto de uma família, e se tornava para esta seu filho,
continuava o culto e herdava-lhe os bens. Em um e em outro caso o antigo direito dava maior importância ao
laço religioso do que ao nascimento”.
8
BOWRA p. 52: “Al describir las mujeres Homero se enfrentaba con un problema diferente. Ciertas de ellas, por
fuerza, debieron de desempeñar un papel importante en las viejas leyendas; otras quizá fueran personajes de su
creación, ficciones suyas necesarias a las exigencias particulares del relato. Indispensables para la tradición son
Penélope y Helena, la esposa que surge durante la larga ausencia de su marido, se encuentra con el patrimonio
familiar devorado por pretendientes brutales que aspiran a su dinero y a su posición social, y la mujer de belleza
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Por sua vez Telêmaco, por ser muito jovem não tinha maturidade para lidar com a
situação. Era “[...] suave, dócil, inábil e incapaz de renegar sua distinção congênita perante os
verdugos de sua casa.” (Jaeger, 1936, p.50). Quando a deusa Atena conversa com o príncipe
de Ítaca instruindo-o a ir à busca do pai, Telêmaco desperta para a realidade que o envolve, e
seguindo os conselhos da deusa parte em busca de respostas. Porém, o amadurecimento só
acontece quando ele encontra Ulisses (Canto XVI) e a partir de então aprende o que deve
fazer, e o faz sem vacilar e sem medo.
Ulisses, já reconhecido pelo filho e pelos servos de confiança, decide reverter a
situação, pois os pretendentes descobriram a astúcia de Penélope, e não havia mais tempo
para conter o ânimo dos mesmos. Por ser muito calculista decide-se por eliminar todos os
pretendentes, caso contrário poderia ser vítima de represálias. No desfecho da história os
parentes dos pretendentes se voltaram contra Ulisses, em busca de vingança para seus
familiares. A carnificina só não foi maior, pois Atena interveio a favor da paz, acalmando os
ânimos de todos, terminando a história com um quase “felizes para sempre”. No entanto,
Brandão, no volume III do seu livro Mitologia Grega (2005, p.325), menciona uma variante,
quando cita que Ulisses é exilado e se refugia em Etólia onde desposa a filha do rei Toas,
falecendo em idade avançada. A causa do exílio vem por meio da acusação dos pais dos
pretendentes pedindo satisfações, e Ulisses se submete a decisão de Neoptólemo, que
cobiçando-lhe as posições, condenou-o ao exílio.
Mesmo desejando evitar as represálias, elas foram inevitáveis, e o fim do herói,
como mencionado acima, não acaba com sua morte, mas é trágico pois que terminaria em seu
exílio, segundo apontado por Brandão. Porém Ulisses não tinha como prever tal
acontecimento, e sua intenção a priori era evitar que tentassem lhe tomar o trono. Para
increíble, culpable de la guerra de Troya. A Penélope se la hubiera podido describir con suma facilidad como
una simple víctima oprimida y contar con su pathos para granjearse nuestra simpatía. Homero, en cambio, le da
rasgos que contrarrestan la tediosidad de semejante método. La astucia con la que desteje la trama por la noche
para demorar su respuesta definitiva a los pretendientes se percibe en casi todas sus demás actuaciones. Es
cautelosa y precavida, reluctante hasta para reconocer a su marido cuando éste le ha aducido la prueba
incuestionable de su identidad. Pero tampoco carece de valor. Aunque lamenta la brutal conducta de los
pretendientes, y aunque se da cuenta de que se halla a su merced, tiene la suficiente presencia de ánimo para
cohibirles, cuando aparece ante ellos. Es algo más, bastante más que una mera víctima oprimida, y aunque llore a
menudo su triste estado, no damos por entero crédito a sus palabras, sino apreciamos su habilidad para manejarse
en una situación insostenible […] Los caracteres de Homero pertenecen a sus situaciones y a sus circunstancias,
pero tienen mayor vida y complejidad que lo que éstas por sí solas hubieran requerido. Sabe sacar partido de sus
contingencias para hacerles más humanos y atractivos”.
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compreender melhor a drástica decisão de Ulisses, teremos que nos remeter às leis gregas da
época. O perjuro é um crime para os gregos. Trata-se de um falso juramento e quem comete
perjuro põe em risco seu lar, prejudicando-o. O perjuro, por uma surpreendente transferência,
prejudica não o próprio lar, mas ao próprio rei 9, pois devemos lembrar que o lar real, é o lar
comum da cidade, o lar do povo.
É importante, contudo, ressaltar, que o castigo compete aos deuses e não aos homens.
O castigo é considerado como procedente dos deuses já que eles são os fiadores do juramento.
Curiosamente prevêem um castigo nesse caso: o perjuro, indicado pelos adivinhos, tem a
cabeça cortada. Em outras palavras, Ulisses atua como instrumento de castigo dos deuses,
mas não de forma passiva, pois conseguiu prever um futuro sombrio para Ítaca caso algum
dos pretendentes assumisse o trono.
Sendo todos os pretendentes membros da realeza, qualquer um poderia ser escolhido
por Penélope e tornar-se rei de Ítaca. Ulisses não encontrou em nenhum deles os atributos de
um bom rei e decidido, concatenou ardiloso plano para retomar o poder, assumindo seu papel
como o único e verdadeiro rei de Ítaca. Dizendo:
Cães, cuidáveis que eu não mais chegaria a casa, de volta do país dos
troianos, quando dilapidáveis minha fortuna, forçáveis minhas servas a deitar
convosco é, estando eu vivo, cortejáveis minha mulher, sem temer os deuses
moradores da vastidão do firmamento, nem imaginar que viesse mais tarde
um vingador dentre os homens; agora os laços da morte a todos vos ataram.
(HOMERO, 2010, p.257)
Nesse Canto constatamos a presença de Ulisses como instrumento efetivo para a
vingança dos deuses. Liodes, um dos pretendentes, através do processo de anagnorisis,
ajoelhado suplica o perdão de Ulisses, este cumprindo a anankê impiedosamente corta-lhe a
cabeça. A compaixão ou piedade é aqui como a justiça, uma limitação do ideal heroico, pouco
seguida, mas aprovada pelos deuses. (Rodrigues, 1966, p.72)
O longo retorno de Ulisses na Odisséia sofreu muitas alterações e foi enriquecido, ao
longo do tempo com muitas variantes e adições, como parte das consequências da tradição
9
HARTOG p. 147, 148: “Sem dúvida, o perjuro é um criminoso para os gregos. Trata-se de quem fez um falso
juramento ou, mais precisamente, como explica Benveniste, daquele que ajuntou (epí) um juramento (hórkos) a
uma palavra ou a uma promessa que sabia que era mentirosa. Para ele, não existe, daí em diante, nem repouso,
nem salvação. [...] O perjuro causa, pois, sua própria ruína e a de seu oíkos, abatendo-se sobre ele e os seus uma
sorte de loimós.”
ISSN 2175-943X
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X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória
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oral. A imagem que hoje temos de Ulisses pode não ser a mesma que foi transmitida a
princípio pois as alterações fazem parte da história.
O rei virtuoso consegue, enfim, retornar a Ítaca, retomar o poder para o bem de seu
povo e tornar-se ferramenta dos deuses cumprindo seu anankê. Ulisses está dentro dos
padrões do mito universal de herói, pois vence o mal e salva seu povo da destruição e da
morte, tal qual Jung (apud Feijó)
10
determina. O herói, “originado do mito, passa por um
processo de transformação, pela interferência do poeta, que a partir dele busca a compreensão
da essência humana, tendo e transmitindo o prazer dessa descoberta (FEIJÓ, 1984, p. 52)”.
REFERÊNCIAS:
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Perspectiva. SP, 1971. p.10-13.
ARISTÓTELES, A arte poética.
HTTP://dc102.4shared.com/doc/AFCE1qLm/preview.html acesso em 23/06/2011 às
15:25hs. p.4.
BOWRA, C.M. Introducción a la literatura griega. Ed. Guadarrama. Madrid, 1968. p. 48-52.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol.I Ed. Vozes. Petrópolis, 2004. p.68,69.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol.III Ed. Vozes. Petrópolis, 2005. p. 19,
291,, 315, 321, 325.
CONCEIÇÃO, Rômulo. Parmênides publicado 9/11/2007 em
http://www.webartigos.com/articles/2673/1/Parmenides/pagina1.html#ixzz1PvQZBvfi acesso
em 20/06/2011 às 14:30hs. p.1.
FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. Editora Brasiliense. São Paulo. 1984. p.21, 35, 52, 56.
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. Ed. Contexto. SP, 2001. p.20, 26.
10
FEIJÓ pág.21: “O mito universal do herói refere-se sempre a um homem ou a um homem-deus todo-poderoso
e possante que vence o mal, apresentado na forma de dragões, serpentes, monstros, demônios etc., e que sempre
livra seu povo da destruição e da morte. A narração ou recitação ritual da cerimônia e dos textos sagrados e o
culto da figura do herói, compreendendo danças, música, hinos, orações e sacrifícios, prendem a audiência num
clima de emoções, exaltando o indivíduo até sua identificação com o herói.”
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FUSTEL DE COULAGENS, Numa Denis. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito,
as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca.
Editorial Hemus. São Paulo, 1975. p. 59, 64,141-142.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Ed.
UFMG. Belo Horizonte, 1999. p. 143, 147-148, 151-153.
HOMERO, Odisséia. Tradução direta do Grego, introdução e notas de JAIME BRUNA.
Editora Cultrix. São Paulo. 2010. p. 128-129, 257.
JAEGER, Werner. Paideia. A formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. Ed. Herder.
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RODRIGUEZ, Adrados Francisco. Ilustración y política em la Grécia clásica. Ed. Revista de
Occidente. Madrid, 1966. p.40, 41, 65, 69, 72, 74, 77, 78, 83.
VERNANT, Jean-Pierre. O homem grego. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figuereido. Ed.
Presença. Lisboa, 1994. p.152.
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