O jogo, o sagrado e o pensamento mágico

Transcrição

O jogo, o sagrado e o pensamento mágico
Seleção de citações de Huizinga: Jogo & Sagrado; Linguagem;
Misticismo; Arte
― Consideradas três obras: Nas sombras do amanhã; O outono da Idade Média e Homo Ludens.
Seleção e ocasionais comentários por João Borba (em Abril de 2013).
Sumário
Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico............................................................1
Sobre a linguagem, o simbolismo e
o pensamento simbólico (mágico-mitológico)...................................................................................6
Sobre o misticismo e os limites da linguagem ...................................................................................8
Sobre arte, poesia e literatura em geral...........................................................................................10
Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico
Se verificamos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação” da
realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então,
captar o valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no
próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida.
As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas
pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o
homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. (…) Por detrás de toda expressão
abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o
homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.
Um outro exemplo é o mito, que também é uma transformação ao uma “imaginação” do mundo
exterior, mas implica em um processo mais elaborado do que ocorre no caso das palavras isoladas. O
homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um
fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que joga
no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto,
verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações
e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo,
tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.
Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a
ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas têm suas
raízes no solo primevo do jogo.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 7.
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Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no
máximo ser uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente
do curso da evolução natural. (…) As crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é
precisamente em tal fato que reside sua liberdade.
Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser
dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele
provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o
jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo
sempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se a noções de obrigação e dever apenas quando constitui
uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11.
Mais do que uma realidade falsa, a representação é a realização de uma aparência: é “imaginação”. No
sentido original do termo.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.
A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência, é até mais do que uma
realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela,
real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa
beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem.
Mas tudo isto não impede que essa “realização pela representação” conserve, sob todos os aspectos, as
características formais do jogo.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.
O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama,
isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de
um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico,
um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representa” não exprime o sentido exato da
ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui “representação” é
realmente identificação, a identificação mística ou a reapresentação do acontecimento.
(…)
O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática,uma figuração imaginária de uma
realidade desejada (…).
Como devemos encarar um processo espiritual que se inicia com uma experiência inexpressa dos
fenômenos cósmicos e conduz a sua representação imaginária no jogo?
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 18-19.
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Diríamos então que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos
animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão,
movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se
encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “vida”
ou “natureza”. O que era jogo desprovido de expressão verbal agora adquire uma forma poética. Na
forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de
racionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua
expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de
ato sagrado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 21.
O culto é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo?
(…) Estamos habituados a considerar o jogo e a seriedade como uma antítese absoluta. Contudo parece
que isto não permite chegar ao nó do problema.
(…) A criança joga e brinca dentro da mais prefeita seriedade, que a justo título podemos considerar
sagrada. Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo. Também o esportista(...). O
mesmo se verifica no ator que, quando está no palco, deixa-se absorver inteiramente pelo “jogo” da
representação teatral, ao mesmo tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo é válido
para o violinista, que se eleva a um mundo superior ao de todos os dias, sem perder a consciência do
caráter lúdico da sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das atividades mais
elevadas. Mas permitirá isto que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afirmando ser
também meramente lúdica a atividade do sacerdote que executa os rituais do sacrifício? À primeira
vista isto parece absurdo, porque aceitá-lo para uma religião nos obrigaria a aceitá-lo para todas.
Assim, nossas ideias de culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo
conceito de jogo.
(…) Essa identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão, que não hesitava em
incluir o sagrado na categoria do jogo (Cf. PLATÃO, Leis, VII. 796 B). A identificação platônica entre o
jogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a
exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 22,23.
Verificamos que uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relação
à vida cotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do
ambiente cotidiano, e é dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade.
Ora, a delimitação de um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto. Esta
exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior ao
meramente espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo
isolamento artificial tanto dos ministros quanto dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto,
de ser recebido numa ordem ou numa confraria, de fazer um juramento, ou de entrar para uma
sociedade secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O
mágico, o áugure, o sacrificador, sempre começam por circunscrever seu espaço sagrado. O
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sacramento e o mistério implicam sempre um lugar santificado.
De um ponto de vista formal, não existe diferença alguma entre a delimitação de um espaço para fins
sagrados e a mesma operação para fins de simples jogo. (...)
Mesmo estabelecida a identidade formal do ritual e do jogo, continua sendo necessário saber se esta
semelhança vai mais longe que o aspecto puramente formal (…) ― as práticas rituais, desenrolando-se
dentro do quadro formal do jogo, são marcadas também pela atitude e pela atmosfera do jogo.
(…)
A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas
também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 23-24.
Quais são, então, a atitude e o ambiente predominantes nas celebrações sagradas? A palavra celebrar
diz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma festa. (…) As consagrações, os
sacrifícios, as danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituir
parte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provas a que é
submetido o iniciado sejam cruéis, que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede
que o ambiente seja de festividade, implicando a interrupção da vida cotidiana.
(…)
Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma
eliminação da vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois
também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos
uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm
em comum suas características principais.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 25.
Não se pense, todavia, que que o estabelecimento de uma estreita relação entre o espírito do jogo e o
ritual possa servir para explicar tudo. O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de
seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber a consciência,
mesmo que seja latente, de estar “apenas fazendo de conta”. Permanece de pé a questão de saber até
que ponto essa consciência é compatível com os atos rituais efetuados dentro de um espírito de
devoção.
Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primitivas, não será impossível determinar o grau de
seriedade com que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos e antropólogos concordam
todos com a ideia de que o estado de espírito que preside às festas religiosas dos povos selvagens não é
de ilusão total. Existe uma consciência subjacente de que as coisas “não são reais”. [A atuação dos]
encarregados da direção do conjunto das cerimônias (…) assemelha-se em tudo à dos pais que brincam
de Papai Noel com seus filhos: conhecem a máscara, mas escondem-na deles. (…) A atitude dos neófitos
oscila entre o êxtase, a loucura fingida, o frêmito de horror e a afetação dos garotos. (…)
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 26.
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É impossível determinar de maneira rigorosa o limite a partir do qual a gravidade religiosa passa a ser
simples divertimento (fun). Entre nós, um pai que seja um tanto ou quanto pueril poderá ficar
seriamente zangado se seus filhos o surpreenderem no exato momento em que estiver preparando os
presentes de Natal.
No capítulo intitulado Primitive credulity, de seu livro The Threshold of Religion, R. R. Marette expõe a
ideia de que em todas as religiões primitivas se encontra um certo elemento de “faz de conta” (makebelieve). Tanto o feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo conscientes e iludidos. Mas um
deles escolhe o papel do iludido. “O selvagem é um bom ator, capaz de deixar-se absorver inteiramente
por seu papel, tal como a criança quando brinca; e, também tal como a criança, é um bom espectador,
capaz de ficar mortalmente assustado com o rugido de uma coisa que sabe perfeitamente não ser um
verdadeiro leão”. (…) O comportamento dos indivíduos aos quais se atribui poderes sobrenaturais pode
frequentemente ser definido como um playing up to the role (manter-se fiel ao papel).
(...)
Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturais
em geral, os mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se que todo o sistema de crenças
e práticas seja apenas uma fraude inventada por um grupo de “incrédulos”, tendo em vista dominar os
“crédulos”. É certo que esta interpretação não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas
tradições dos próprios indígenas, mas mesmo assim, não é possível que ela esteja correta (…): é
impossível perder de vista, por um momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto diz
respeito à vida religiosa dos povos primitivos. (…) Mais ainda: a unidade e a indivisibilidade da crença e
da incredulidade, a indissolúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o “faz de conta” e o
divertimento, são melhor compreendidas no interior do próprio conceito de jogo.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 27-28.
Quando uma certa forma de religião aceita uma identidade sagrada entre duas coisas de natureza
diferente, como por exemplo um ser humano e um animal, não podemos definir corretamente essa
relação como uma “ligação simbólica”, no sentido em que a entendemos. A identidade e unidade
essencial de ambos é muito mais profunda do que a relação entre uma substância e sua imagem
simbólica. É uma identidade mística. Um se tornou o outro. Em sua dança mágica o selvagem é um
canguru. Quer queiramos ou não, sempre transpomos as concepções religiosas do selvagem para o
plano de exatidão rigorosamente lógica de nosso tipo de pensamento. Exprimimos a relação entre ele e
o animal com o qual se identifica como sendo uma “realidade” para ele, e um “jogo” para nós. O
selvagem diz que se apoderou da “essência” do canguru. Mas o selvagem nada sabe das distinções
conceituais entre “ser” e “jogo”, nada sabe sobre “identidade”, “imagem” ou “símbolo”. Portanto,
continua em aberto a questão de saber se a melhor maneira de apreender o estado de espírito do
selvagem no momento em que celebra seus rituais não será o recurso à noção primária e
universalmente compreensível de “jogo”. Em nossa concepção do jogo, desaparece a distinção entre a
crença e o “faz de conta”.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 29-30.
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A noção de jogo associa-se naturalmente à de sagrado. Qualquer prelúdio de Bach, um verso de
qualquer tragédia prova isso. Decidindo considerar toda a esfera da chamada cultura primitiva como
um domínio lúdico, abrimos caminho para uma compreensão mais direta e mais geral de sua natureza,
de maneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma meticulosa análise psicológica ou sociológica.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.
O jogo sagrado, pelo fato de ser indispensável ao bem-estar da comunidade e um germe de intuição
cósmica e de desenvolvimento social, não deixa de ser um jogo que, como dizia Platão, se processa fora
e acima das austeras necessidades da vida cotidiana.
(…)
Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente constituída pelos jogos dedicados à
divindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir esta concepção não
implica de maneira nenhuma que se abandone o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este a
mais alta expressão possível daquilo que escapa às regras da lógica. Os atos de culto, pelo menos sob
uma parte importante de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria do jogo, mas esta
aparente subordinação em nada implica o não reconhecimento de seu caráter sagrado.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.
São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.
Sobre a linguagem, o simbolismo e
o pensamento simbólico (mágico-mitológico)
Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O
pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus
vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um
elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir
sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa
de valor geral. Em outras palavras, qualquer associação com base em qualquer semelhança pode se
transformar diretamente na ideia de uma conexão essencial e mística (…).
A equalização simbólica baseada em características comuns somente fará sentido se as características
forem consideradas verdadeiramente essenciais. Rosas brancas e vermelhas florescem entre espinhos.
O espírito medieval imediatamente vê neste fato um significado simbólico: virgens e mártires brilham
em glória entre os seus perseguidores. Como se dá o postulado da equivalência? Ele se dá porque as
qualidades são as mesmas: beleza, ternura, pureza, e o vermelho-sangue das rosas também são
atributos das virgens e dos mártires. Mas essa conexão só será significativa de fato e cheia de sentido
místico se o elo que conecta os dois termos do conceito simbólico, a qualidade portanto, contiver o
essencial. Em outras palavras, como se as cores vermelho e branco não valessem como meros rótulos
para distinções físicas com base quantitativa, mas fossem encaradas como realidades independentes.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 336-337.
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Para o espírito primitivo, tudo o que é denominável imediatamente assume uma essência, seja ela uma
qualidade, uma forma, o que for. A coisa então se projeta automaticamente nos céus. Sua essência
pode quase sempre (não necessariamente sempre) ser personificada; a qualquer instante começa a
dança dos termos antropomórficos.
Todo realismo, no sentido medieval, acaba sendo um antropomorfismo. Se o pensamento que atribuiu
uma entidade independente a uma ideia quer torná-la visível, não há outro modo além da
personificação. É aqui que se situa a transição do simbolismo e do realismo para a alegoria. A alegoria
é o simbolismo projetado num poder de imaginação superficial; é a expressão intencional, e com isso
também o esgotamento de um símbolo; a transição de um grito apaixonado para uma frase
gramaticalmente correta. Goethe descreve o contraste assim: “ A alegoria transforma a manifestação
em um conceito, o conceito em uma imagem, de forma que o conceito possa sempre se manter
associado à imagem e nela ficar preservado. O simbolismo transforma a manifestação em ideia, a ideia
em uma imagem, de forma que a ideia permaneça sempre eficaz e inalcançável e, mesmo que possa
ser proferida em todas as línguas, permaneça inexprimível.”
A alegoria tem, portanto, o potencial de ser reduzida a um pedante lugar-comum e ao mesmo tempo
reduzir uma ideia a uma imagem.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 338.
O pensamento simbólico proporciona aquela intoxicação, aquela confusão pré-intelectual dos limites de
identidade das coisas, aquele abrandamento do pensamento racional que leva a intensidade do
sentimento pela vida a seu auge.
(…)
O valor moral do modo de pensar simbólico é inseparável de seu valor criativo. A formulação simbólica
é como a música adicionada ao texto das doutrinas formuladas de maneira lógica, que sem essa
música haveriam de soar excessivamente ásperas, excessivamente pobres.
(...)
O desvanecer da Idade Média apresenta todo esse mundo de pensamento em sua última floração. O
mundo era perfeitamente representado pelo simbolismo que tudo abrangia, e os símbolos individuais
se transformaram em flores petrificadas. Desde sempre, aliás, o simbolismo possuíra a tendência a se
tornar puramente mecânico. Uma vez estabelecido como fonte de pensamento, ele não só brota da
fantasia e entusiasmo poéticos, mas se acopla às funções intelectuais como uma planta parasita e
degenera até virar mero hábito e uma doença do pensamento. Surgem perspectivas completas de
contato simbólico, em especial quando este brota de uma simples correspondência entre números. São
meros exercícios aritméticos. Os doze meses devem significar os doze apóstolos, as quatro estações, os
evangelistas, e o ano inteiro, então, só pode ser Cristo.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 339-340.
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O símbolo só conserva o seu valor emocional em função da santidade das coisas que representa: tão
logo o simbolismo passa do puro domínio religioso para o exclusivamente moral, a sua degeneração
irremediável é exposta.
(…)
Naturalmente, porém, mesmo nas manifestações mais insossas, o simbolismo e a alegoria tinham para
o espírito medieval um valor sentimental muito mais vivo do que imaginamos. A função das
equiparações simbólicas e das figuras personificadas estava tão desenvolvida, que qualquer
pensamento se transformava quase automaticamente em um personnage. Qualquer ideia era
considerada uma entidade, qualquer qualidade, uma substância, e, enquanto entidade, era
imediatamente personificada pela inteligência que a concebera.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 341-342.
A forte tendência medieval de criar um órgão para cada função não passa de um resultado da forma
de pensamento que atribuía independência a cada qualidade, que via cada uma delas como uma ideia
em separado. O rei da Inglaterra tinha entre os seus magna sergenteria (altos postos de sargento) um
oficial para segurar a cabeça dele quando atravessasse o canal e ficasse enjoado; em 1442 essa posição
foi ocupada por um tal de John Baker, que depois a passou para suas duas filhas.
É necessário analisar sob a mesma luz o costume de dar um nome próprio a todas as coisas, mesmo as
inanimadas. Trata-se, por mais pálido que seja, de um traço de antropomorfismo primitivo quando,
mesmo na vida militar atual ― que em vários aspectos significa uma volta a um comportamento de
vida primitivo ―, se dão nomes a canhões. (…) Quando vemos que nos dias de hoje os navios
continuam a ter nomes, mas apenas uma ou outra casa manteve o hábito e os sinos não os têm mais,
isso deve-se ao fato, por um lado, de os navios mudarem de lugar e precisarem ser identificados a
qualquer momento, mas também porque o navio contém mais qualidades próprias que a casa, o que
também está expresso no she (ela) usado no idioma inglês para referir-se a embarcações. Deve-se
imaginar que essa percepção pessoal das coisas era muito mais forte na Idade Média: nesse período,
cada coisa recebia um nome, desde os calabouços dos cárceres até cada casa e cada relógio.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 376-377.
Sobre o misticismo e os limites da linguagem
A língua humana é incapaz de evocar uma visão tão drástica da felicidade como ela o faz com o horror.
Para encontrar material cru que descreva a feiura e a miséria, basta mergulhar fundo nos recantos
mais baixos da humanidade; mas para descrever a suprema sensação de felicidade, é preciso esticar o
pescoço bem para o alto, na direção do céu. [Dioniso Cartuxo, na Idade Média,] esfalfa-se em
superlativos desesperados, o que não passa de mero reforço matemático da imaginação, sem nenhum
esclarecimento ou aprofundamento da ideia de felicidade. [E faz o mesmo em relação a Deus.] (…).
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Mas de que adianta acumular superlativos ou visões qualitativas da altura, da amplidão, da
incomensurabilidade e da inesgotabilidade? Continuam sendo meras imagens, tentativas de reduzir a
ideia do infinito a imagens nascidas do mundo finito; isto leva ao enfraquecimento e à exteriorização do
conceito de eternidade. Eternidade não é tempo mensurável. Cada sensação, uma vez expressa, perde
sua imediatez; cada característica atribuída a Deus tirava-lhe um pouco de Sua imponência.
Neste ponto começa a ingente luta para alçar-se, com o poder da mente humana, à absoluta ausência
de imagem da divindade. Sem estar vinculada a nenhuma cultura ou época, essa luta repete-se em
todos os lugares e sempre da mesma forma.
(…) Mas o apoio da imaginação não pode ser abandonado de pronto. Uma a uma, as deficiências dos
meios de expressão se tornam evidentes. As encarnações concretas da ideia e as vestes multicoloridas
do simbolismo são as primeiras a caírem por terra: feito isto, não se fala mais de sangue e expiação,
nem mais de Eucaristia, nem Pai, Filho e Espírito Santo. No misticismo de Eckhart, Cristo quase não é
mencionado, e tampouco o são a Igreja e os sacramentos. Mas as expressões para a visão mística do
Ser, da Verdade, da Divindade permanecem ligadas a conceitos naturais, aqueles de luz e de vastidão.
Mais tarde, bruscamente, invertem-se e passam a ter um caráter negativo: silêncio, vazio e escuridão.
Em seguida, também se reconhece a insuficiência desses conceitos amorfos e sem conteúdo, e tenta-se
resolver essa insuficiência conectando-os continuamente a seus opostos. Por fim, não resta nada além
da pura negação; a divindade, que não é reconhecida em nada do que existe, pois está acima de tudo,
passa a ser chamada pelos místicos de “Nada”.
(…) É evidente que essa progressão do espírito contemplativo até o abandono de toda e qualquer
representação não aconteceu exatamente nessa sequência. A maioria das declarações místicas
apresenta todas essas fases misturadas entre si. Elas já existiam na Índia, estavam completamente
desenvolvidas em Pseudo-Dionísio Aeropagita, que é a fonte de todo o misticismo cristão, e ressurgem
no misticismo alemão do século XIV.
(…)
Ver Deus por intermédio da negação, diz Dionísio em outro momento, é mais perfeito do que pela
afirmação. (…) É certo que Ele é incompreensível e desconhecido, impenetrável e inexprimível, e
distingue-se de tudo o que ele faz mediante uma excelência e diferença incomensuráveis e única (…).
Será que o poder das imagens fora derrotado? Sem imagem nem metáfora é impossível expressar
qualquer pensamento. Quando se fala da essência incompreensível das coisas, cada palavra é imagem.
Falar dos desejos mais elevados e mais íntimos somente por negações não satisfaz o coração, e sempre
que o sábio atinge o impasse, o poeta vem em seu socorro.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da imaginação no misticismo.
São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 361-362 e 366-367.
O caminho do misticismo leva para dentro do infinito e para a falta de consciência. Ao negar toda
conexão entre a divindade e tudo o que é particular e nomeável, anula-se a transcendência; a ponte
que leva de volta à vida foi subitamente interrompida.
(…) O misticismo intensivo representa uma volta à vida espiritual pré-intelectual. Todo intelectualismo
fica sem efeito, é subjugado e tornado supérfluo. Apesar disso, o misticismo contribuiu para a cultura
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com ricos frutos, isso porque ele se desenvolve por estágios preparatórios e só aos poucos descarta as
formas do costume e da cultura. Os seus frutos para a civilização nasce nos primeiros estágios, abaixo
do limite superior da vegetação. É ali que desabrocha o pomar da perfeição moral, necessário como
preparativo para qualquer um que deseje a contemplação: a paz e a ternura, o abrandar do desejo, a
simplicidade, a moderação, a diligência, a seriedade e o fervor. Foi assim na índia e é assim aqui: o
efeito inicial do misticismo é moral e prático, consistindo, acima de tudo, no exercício da caridade.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da
imaginação no misticismo. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 367-368.
Sobre arte, poesia e literatura em geral
Há meio século que a arte vem se afastando cada vez mais da razão.
(…) A arte poética de todos os tempos, mesmo quando o poeta se transporta aos maiores êxtases,
mantém sempre um elo que a liga à expressão racional. (…) [Agora] o quinhão do não-racional e do
anti-racional é cada vez maior (…), vemos a poesia a seguir propositadamente uma derrota diferente da
da razão. Os poetas principais começaram a negar-se ao reconhecimento do critério de inteligibilidade
lógica (…).
Este divórcio da razão e da arte poética tem o seu correspondente nas artes plásticas com o
alheamento das formas visíveis da realidade. Ars imitatur naturam fôra durante muitos séculos, desde
a sua formulação por Aristóteles, um artigo de fé bem firme. O tratamento estilístico, ornamental ou
monumental do assunto nunca o suprimiu, embora desse por vezes a impressão de perturbar o
cumprimento desse princípio. O significado da sentença de Aristóteles nunca foi o de que a arte
simplesmente copia o que vê na natureza. Tem um sentido muito mais profundo: a arte imita a
natureza, isto é, tal como ela, cria formas. Contudo, a reprodução perfeita da realidade visível ficou
sempre o ideal universalmente acarinhado. Para a expressão plástica, respeito pela natureza significava
de certo modo respeito pela razão, visto que esta é o órgão com que o homem interpreta e compreende
o seu ambiente.
(…)
A ruptura só se verifica quando o artista tenta criar formas fora da realidade, tal como esta se
apresenta ao observador comum. Se por vezes na composição artística as figuras isoladas podem ser
ainda tiradas da natureza, o seu agrupamento é tal, que o todo já não corresponde a uma percepção
da realidade passada pelo crivo da lógica. (…) Com a sua completa renúncia ao concreto da imagem
natural como esqueleto da expressão pictórica, a arte da pintura rejeita todos os meios vulgares da
faculdade perceptiva (…).
HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.
São Paulo: Saraiva, 1946, p. 171-174. Capítulo A arte e a literatura.
10
Uma certa analogia entre a situação da arte e a da ciência é inegável. (…) Olhando porém mais de
perto, descobre-se uma diferença fundamental entre os dois fenômenos.
(…) Para a arte não há um imperativo absoluto; não há uma disciplina do espírito que a constranja. O
seu impulso criador centraliza-se na vontade. E aqui é que se manifesta um fato de grande importância;
a arte aproxima-se, muito mais que a ciência, da moderna filosofia da vida que sacrifica a compreensão
à existência. A nova arte julga poder representar e interpretar verdadeira e sinceramente a vida sem
fazer uso da função intelectual, esquecendo que, apesar de tudo, tal interpretação com a sua expressão
continua a ser um ato do intelecto.
HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.
São Paulo: Saraiva, 1946, p. 175-177. Capítulo A arte e a literatura.
(…) a ânsia perpétua de originalidade, outra enfermidade do nosso tempo, torna a arte muito mais
suscetível que a ciência a todas as influências corruptivas exteriores.
HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.
São Paulo: Saraiva, 1946, p. 179-180. Capítulo A arte e a literatura.
Passando em revista, no sei todo, o desenvolvimento do processo espiritual desde os meados do século
XVIII tem-se a impressão de que no decurso deste processo a percepção estética e sentimental foi
penetrando cada vez mais no domínio do pensamento. Esta apreciação estética e sensível introduziu-se
na compreensão lógica. Por outro lado, em trabalhos de beleza e sensibilidade, o elemento “razão”
inerente às suas formas de expressão, tornou-se progressivamente mais débil. Este processo geral
atinge o seu ponto extremo e culminante no momento em que nega ao conhecimento a primazia como
meio de compreensão do mundo.
O perigo desta irracionalização, reside, sobretudo, no fato de ela ser acompanhada pelo maior
desenvolvimento das forças técnicas. É evidente que a adoração da vida, originada pela
irracionalização da cultura, não pode senão promover o culto do eu. Mas o culto do eu significa a
exasperação da ânsia de bem-estar terreno. Ora se esta ânsia tem ao seu dispor as ilimitadas
possibilidades duma faculdade técnica altamente desenvolvida, o perigo inerente a todo culto do eu
será muitíssimo maior para a sociedade, visto que a realização desse desejo ardente de bem-estar
conduz necessariamente à destruição do bem-estar dos outros.
(…) Um regresso à razão e ao racionalismo não é suficiente para nos arrancar ao abismo. O peso para
equilibrar essa cooperação de fatores destrutivos só o podemos encontrar nos mais altos valores éticos
e metafísicos.
HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.
São Paulo: Saraiva, 1946, p. 186. Capítulo A arte e a literatura.
11
[O conceito de formalismo:] A noção inerente da realidade transcendental das coisas significa que cada
ideia é definida por limites fixos, está isolada numa forma plástica, e que essa forma é dominante.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática.
São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 392.
[Normalmente] é a forma que ameaça sobrepujar o conteúdo e o impede de se renovar.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 18 - A arte na vida. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 458.
O mesmo princípio de estilo leva a resultados bem distintos nas belas-artes e na literatura. Mesmo se o
pintor decidir simplesmente reproduzir uma realidade externa em linha e cor, ele sempre acaba pondo
atrás dessa imitação meramente formal alguma reminiscência do não pronunciado ou do
impronunciável. Mas se o poeta não tentar nada além de simplesmente expressar com palavras uma
realidade já visível ou já compreendida, então se esgota na palavra o tesouro do não pronunciado.
Pode ser que o ritmo e a sonoridade ali contidos lhe proporcionem uma nova beleza não pronunciada.
Mas se também esses elementos forem fracos, o poema apenas manterá o seu efeito enquanto a ideia
prender a atenção do ouvinte. (...)
Mas quando a ideia em si já não diz mais nada, o poema consegue manter o seu efeito somente pela
forma. A forma tem uma importância sem igual, e pode até ser tão nova e viva que a questão do
conteúdo da ideia mal vem à tona. (…)
Para o pintor, a época de tal limitação mental só chega mais tarde. Pois ele vive do tesouro do não
pronunciado e é a plenitude desse tesouro que determina o resultado mais profundo e mais duradouro
de toda a arte.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 20 - A imagem e a palavra. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 483.
Eis aí o efeito da “elaboração irrefreada” na pintura. O pintor, esse pintor [Jan Van Eyck] tinha a
capacidade de, dentro de um espaço que não chegava a meio metro quadrado, dar asas a seu desejo
mais descompromissado de detalhamento (ou deveríamos dizer: à satisfação dos pedidos mais
exigentes de um mecenas ignorante?) sem nos cansar mais que o que faria um olhar rápido para a
aglomeração viva da realidade. Pois um vislumbre é só o que nos é permitido; a força das dimensões
estabelecia limites, e adentra-se na beleza e no caráter especial disso tudo que está representado, sem
esforço mental: muitos dos detalhes que merecem atenção nem mesmo são notados, ou já
desaparecem instantaneamente da consciência e servem apenas para efeitos de cor ou de perspectiva.
Se atribuímos essa característica geral de “elaboração irrefreada das particularidades” também à
literatura do século XV (…) tudo ocorre de outra forma.
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(…) a relação entre o assunto principal e os assuntos secundários na poesia [é] justamente inversa à da
pintura. Na pintura, a diferença entre o assunto principal (ou seja: a expressão adequada do tema) e os
assuntos secundários é pouca. Tudo ali é essencial. Para nós, um simples detalhe pode determinar a
completa harmonia da obra.
(…)
Mas é justamente no detalhe que o pintor está totalmente livre. Quanto ao tema principal [na Idade
Média], a ideia do motivo sagrado, lhe foi estipulada uma rígida convenção; cada cena religiosa possui
o seu código iconográfico, do qual não se tolera nenhum desvio. No entanto [nos detalhes] ele tem um
campo ilimitado para desenvolver livremente o seu entusiasmo criador.
Na poesia do século XV, no entanto, essa relação de certa forma se inverte. Quanto ao tema principal, o
poeta é livre: ele pode encontrar uma nova ideia, se puder, enquanto justamente o detalhe e o pano de
fundo são dominados em grande parte por convenções. Flores, o prazer da natureza, tristezas e
alegrias, todos esses elementos têm as suas formas fixas de expressão, as quais o poeta pode lustrar e
colorir um pouco, mas não renovar.
Ele lustra e colore infinitamente, pois lhe falta a salutar limitação imposta ao pintor pelo preenchimento
do espaço vazio; o espaço do poeta é sempre ilimitado. Ele não tem a limitação dos meios materiais, e
justamente por causa dessa liberdade ele, proporcionalmente, precisa de uma capacidade mental
maior que a do pintor para fazer algo bom. Os pintores medianos ainda continuam sendo um deleite
para os olhos da geração seguinte, mas o poeta mediano afunda no esquecimento.
Para demonstrar o efeito da “elaboração irrefreada” numa obra poética do século XV, seria necessário
acompanhá-la passo a passo, em todo o seu conteúdo (e elas são longas!)
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 489-492.
Comparado à pintura, o que constitui no poema [medieval tardio] o efeito diferente da elaboração
extensa da cena natural? Qual é o efeito da expressão de uma mesma inspiração através do uso de
diferentes meios? O fato de o pintor, devido à natureza de sua arte, ser obrigado a manter uma
fidelidade simples à natureza, enquanto o poeta se perde na grande superficialidade amorfa e na
enumeração de motivos convencionais. A prosa, neste aspecto, aproxima-se mais da pintura do que a
poesia. Ela está menos presa a certos motivos. Muitas vezes expõe mais enfaticamente a reprodução
precisa de uma realidade vista e a executa usando meios mais livres. Com isto, talvez a prosa
demonstre melhor do que a poesia o profundo parentesco entre a literatura e a arte.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495.
A característica básica do espírito medieval tardio é o seu caráter predominantemente visual. Este está
ligado de maneira íntima ao atrofiamento das ideias. O pensamento se dá a partir de concepções
visuais. Tudo aquilo que se quer expressar é acomodado em termos visuais. A absoluta falta de
conteúdo intelectual das representações alegóricas ou poemas podia ser tolerada porque a satisfação
situava-se toda naquilo que se tinha visto. A tendência de reproduzir o imediato externamente visível
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encontrou uma expressão mais forte e mais absoluta nos meios pictóricos do que nos literários. E do
mesmo modo, uma expressão mais forte pelos meios da prosa do que pelos da poesia. Por isso a prosa
do século XV, em muitos aspectos, se situa como um meio termo entre a pintura e a poesia. Todos os
três possuem em comum a elaboração irrefreada das particularidades, a qual contudo, conduz a um
realismo direto na pintura e na prosa, realismo que a poesia desconhece e não tem nada melhor a
dispor.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 20 - A imagem e a palavra.
São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495.
Na pintura a reprodução da natureza era de caráter meramente secundário e por isso podia
permanecer pura e sóbria. Uma vez que o pano de fundo não era importante para o tema, por não
fazer parte do estilo hierático, os pintores do século XV podiam reproduzir um certo grau de
naturalidade harmônica em sua paisagem,, que as rigorosas regras quanto ao tema ainda lhes
proibiam na cena principal (…).
Quanto menor for a ligação entre a paisagem e a ideia central, tanto mais harmônica e natural será a
pintura como um todo.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 20 - A imagem e a palavra.
São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 504.
As belas-artes, sempre que descem ao nível da caricatura, conseguem somente expressar um limitado
sentimento cômico. Reproduzido apenas visualmente, o cômico tendo a tornar-se novamente sério.
Apenas nos casos em que a adição do elemento cômico na representação da vida é muito pequena ―
quando não passa de um tempero e não o sabor dominante do próprio prato ―, a imagem consegue
acompanhar o passo da expressão em palavras. A pintura de gênero contém o elemento cômico em seu
grau mais fraco.
(…)
Porém, mesmo no caso do gênero, a palavra passa a ter uma dimensão maior do que a da imagem. Ela
consegue reproduzir explicitamente o estado de espírito.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média:
Estudo sobre as formas de vida e de pensamento
dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.
Capítulo 21 - A palavra e a imagem.
São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 521.
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