fazer do livro

Transcrição

fazer do livro
do canavial elétrico
à metrópole
© Gustavo Berbel
www.poesiaprimata.com.br
texto
Gustavo Berbel
fotos
capa: Caio Andreucci de Lima; contra-capa e
outras: Nana Maiolini e Vinícius Assencio
edição e diagramação
Caio Andreucci de Lima e Gustavo Berbel
2015
com blocos de barro
nos pés, deslizo pelo
espaço entre cidades
feito um pêndulo que
balança entre duas extremidades simetricamente opostas: de um
lado a cana, verdade
horizonte, do outro o
asfalto das minhas artérias. dois universos
colidem em magnífica
explosão, sendo o continuum de meus dias
uma polarização necessária, antes mesmo
um contraponto, para
a máquina do corpo
descarnado; sou um
pé de cana-de-açúcar
sem raízes na cidade,
nítido contraste com o
todo que me cerca; no
dia que sangrei a poesia e bebi de seus versos, eu enxerguei seu
revés: aberto como as
pernas da rua sangrada
de menstruação paulistana; quando achei
que o mantra urbano
me envolvia, desfiz de
toda sua roupa; mais
que cana, sou primata
de pelos hirtos absorto
em habitat ocasional;
enquanto espero mais
movimento aproveito
e transfiguro sua cara:
toda pichada de suor e
sangue.
canavial
ca.na.vi.al
sm (cânave+al3) 1 Lugar em que vegetam canas. 2 O conjunto dos
lotes de cana, tomado como unidade produtiva da fazenda: Canavial
de 500 toneladas anuais.
elétrico
e.lé.tri.co
adj (eletro+ico2) 1 Que tem eletricidade, que é resultado de eletricidade. 2 Que se refere à eletricidade. 3 Que excita, que abala, como
a eletricidade. 4 Que se transmite rapidamente. sm 1 Veículo ou
comboio movido por eletricidade sobre carris de ferro. 2 Zool Arraia
elétrica.
PALAVRAS LAVADAS DE ROXO
margeando o tietê sertanistas sangraram o solo
pintaram a cor forte - esse roxo avermelhado de suas vísceras
amigavelmente assassinando os kaingang
sepultando-os embaixo dos pés de cana-de-açúcar
(pois cada cristão tem sua cruz)
inútil falar
sobre terra de bandeira
solo de covardes desertores de guerra
que preferiram matar índios
(cordialmente)
onde tudo era doce
feito cana-de-açúcar
(hoje é saudosismo)
brotaram casas rachando o solo
subvertendo a terra roxa
e suas culturas
como posso soltar grunhidos?
se na verde bifurcação pontiaguda
fundi-me com a terra roxa e acabei amordaçado
sendo mais uma artéria aberta no campo incomunicável
não há o que explicar sobre essas casas tortas de madeira
sobre o moinho enferrujado da vida rural
são chapas e fábricas de homens
cortes a laser
dobras metálicas
peças
minha certidão de nascimento:
um sítio no limiar de Vanglória
feito terra sou explorado
plantado pisado calado
sem poder falar
nostálgico
cachorros magros e fios elétricos
(nada ilumina o que contamina)
o que expande-sem-freio
resíduos industriais despejados
no meu-seu quintal
(cheiro podre)
mosquitos deformados aos montes
formiga-içá-aperitivo-para-molecada
(com sabor de infância)
sem asco-sem prazer
existe meio termo
quando
dias passam através do vão
de nossos dedos
feito água de torneira após o pega-pega
tão diferente das bordas periféricas
da linha invisível que separa bairros
(além do limite-imobiliário-especulado)
onde
amor de criança é futebol na rua
(distante do semáforo)
tortura de pai é conselho tutelar
(se chega a tempo)
e presente de aniversário é queimadura de cigarro
leve-toque
me despedaço mais um dia
não como trevo de quatro folhas
mas igual brincadeira de domingo quando criança
bem me quer-mal me quer
desabo pesado
feito pétala qualquer de-flor-de-jardim-mal-cuidado
nesse relento que não é acalento
pesado
marcas
me confundo com grama
lavo meus pés
vermelhos
encardidos de terra
no piso alvo
os fios conduzem o escuro
artesanato: tecer de água
fluindo no caminho certo
a escorrer
e a correr
do meu corpo
ainda molhado
descoberto da poeira
não há mais tormento
só o silêncio
que me acompanha
quando me movimento
e desnudo
vejo meu mundo
as minhas marcas
sujas de mim
metrópole
me.tró.po.le
sf (gr metrópolis) 1 Cidade capital de um Estado ou de uma arquidiocese. 2 Qualquer nação relativamente às suas colônias. 3 A igreja
arquiepiscopal em relação às outras que dela dependem. 4 Centro de
civilização ou comércio. M. nacional: Cidade que, por sua importância, possui uma influência nacional e até internacional. Ex: São
Paulo.
sãopaulo
encontro-me
quando perdido
no descaminho composto por vozes e esquinas
existe um sinal aberto e também pernas
]abertas[
entra-e-sai
contraste de caras sisudas
marcadas por rugas e traços de gordura
por onde escorrem gotas salgadas
desço ágil
deslizando pela Paulista
como um Bandeirante cortando
as veias das matas e dos índios
sangrando o verde e o pardo
parto
ao meio
separo seus seios
e glorifico-me
preencho
momento composto:
sons e luzes
passos e destinos
cigarros e delírios
velocidade e descaso
São Paulo e seu preço
um discurso plural
que solidifica seu egoísmo
não são Paulo : é Paulo
sol
a cidade chove ácido lisérgico
leves gotas vestidas de ganância
respingam cores e sabores de fuligem
ácida multiplicidade
tantas formas destoantes
eram antes fortes marcas
retas ilhas de concreto
em abstrato espaço
nadariam em árido sentir
e dançariam imaculadas as sangrentas ruas
desprendidas dos pudores corrosivos na cidade nua
suas livres vias de acesso
partes baixas rente ao centro
vestem de vermelho seu asfalto
só assim violentaria o concreto
com balé de passos soltos
—— caminho neon riscado ——
em mais um corpo absorto na cidade
sendo um corpo sol
solitário
refeição
estou com fome de você
da textura - carne
do sonho apanhado que pairava sobre
nós
de digerir o vórtice de impulsos
que esfrega minha existência
friccionando o composto do meu corpo
carregar de magnetismo o esqueleto
já desprovido de vivacidade
que se debate convulsionado
agora
apanho lâmpadas nas árvores
risco com unhas metálicas
retos prédios
travo os molares nos músculos da cidade
convicto de refazer seus traços
e os pedaços de fruta e seiva
que ex-corriam do seu hábil pomar
reconstruo sua fisionomia
(mosaico de re-feições cósmicas)
tão crua na sua essência
cambuci
no Cambuci: me perdi
São Paulo engoliu os homens
amarrou em seus fios elétricos
os mórbidos corpos e
asfaltou a mobilidade
no Cambuci
me perdi no devir
e chorei gotas ácidas
(não há bandeira ou Bandeirante)
sinto-me pequeno
fora de escala
entre vales e dinheiro
escalo dejetos
completo-me
mesmo concretado
à sua estrutura
espera
espero seu chegar
não com tanto entusiasmo
você vem mesmo?
de trem sem alma ou coração
entre ferro som desejo poluição
sujo de fuligem te espero
do coração nada digo
feito pedra dura cinza:
amálgama-eu-você-São Paulo
acho que gosto de ser usado
177P-10 SANTANA
preso entre prédios e rancor
oprimido pela pressa
(cotidiana
ônibus trem trilhos ruas)
o dia:
mistura de tantos outros
espaço escasso disputado
[paulistano esmagado]
a cidade funciona por conta
tem seu tempo seu dinheiro
suas veias de asfalto-dor
pulsando velocidade
o homem domestica [constrói]
Frankenstein de aço-concreto-humano

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