parte 1

Transcrição

parte 1
A Bíblia fala hoje
Editores da série: J. A. Motyer (AT)
John R.W.Stott (NT)
Contracultura cristã
A mensagem do Sermão do Monte
CONTRACULTURA CRISTÃ
A mensagem do Sermão do Monte
John R. W. Stott
Reitor emérito de All Souls' Church, Londres
ABU Editora
CONTRA CULTURA CRISTÃ
Traduzido do original em inglês
CHRISTIAN COUNTER-CULTURE
Inter-Varsity Press, Inglaterra
©John R.W. Stott, 1978
Direitos reservados pela
ABU Editora S/C
C. Postal 30505
01000 — S. Paulo — SP — Brasil.
A ABU Editora é a publicadora da Aliança Bíblica Universitária do Brasil —A.B.U.B.
Tradução de Yolanda M. Krievin
O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil,
exceto quando outra versão é indicada.
lª Edição —1981
Digitalizado, revisado e formatado por:
Fabricio Valadão Batistoni
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/
Prefácio Geral
A Bíblia Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Velho como do Novo Testamento,
caracterizadas por um triplo objetivo: exposição acurada do texto bíblico, relacionar o texto com a vida
contemporânea, e leitura agradável.
Esses livros não são, pois, "comentários", já que um comentário busca mais elucidar o texto do que
aplicá-lo, e tende a ser uma obra mais de referência do que literária. Por outro lado, esta série também não
apresenta aquele tipo de "sermões" que, pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de
abordar a Escritura com suficiente seriedade.
As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus ainda fala através do que
ele já falou, e que nada é mais necessário para a vida, para o crescimento e para a saúde das igrejas ou dos
cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espírito lhes diz através da sua velha (e contudo sempre atual)
Palavra.
J. A. MOTYER J. R. W. STOTT Editores da série
Conteúdo
Prefácio Geral ............................................................................................................................................................. 3
Prefácio do Autor ........................................................................................................................................................ 5
Principais Abreviações e Bibliografia .......................................................................................................................... 6
Mateus 5:1, 2 Introdução: Que sermão é este? .............................................................................................................. 7
Mateus 5:3-12 O caráter do cristão: as bem-aventuranças ............................................................................................14
Mateus 5:13-16 Á influência do cristão: o sal e a luz...................................................................................................27
Mateus 5:17-20 A justiça do cristão: Cristo, o cristão e a lei ........................................................................................33
Mateus 5:21-30 A justiça do cristão: esquivando-se à cólera e à concupiscência ..........................................................39
Mateus 5:31-37 A justiça do cristão: fidelidade no casamento e honestidade nas palavras ............................................43
Mateus 5:38-48 A justiça do cristão: não-vingança e amor ativo ..................................................................................48
Mateus 6:1-6, 16-18 A religião do cristão: não hipócrita, mas real ...............................................................................58
Mateus 6:7-15 O oração do cristão: não mecânica, mas refletida .................................................................................66
Mateus 6:19-34 A ambição do cristão: não a segurança material, mas a direção de Deus..............................................70
Mateus 7:1-12 Os relacionamentos do cristão: com os seus irmãos e com o seu Pai .....................................................80
Mateus 7:13-20 Os relacionamentos do cristão: os falsos profetas ...............................................................................89
Mateus 7:21-27 O compromisso cristão: uma escolha radical ......................................................................................95
MATEUS 7:28, 29 Conclusão: quem é esse pregador? ................................................................................................98
Prefácio do Autor
O Sermão do Monte exerce um fascínio sem par. Ele parece encerrar a essência do ensino de Jesus. Ele
torna a justiça atrativa; envergonha o nosso fraco desempenho; gera sonhos de um mundo melhor.
É como expressou John Donne, num sermão pregado na quaresma de 1629, não sem uma pequena mas
perdoável hipérbole: "Todos os artigos de nossa religião, todos os cânones de nossa igreja, todas as injunções
de nossos príncipes, todas as homílias de nossos pais, todo o corpo de doutrinas estão contidos nestes três
capítulos, neste Sermão do Monte."1
Devo confessar que me rendi ao seu fascínio, ou antes ao fascínio daquele que o pregou. Durante os
últimos sete anos, pelo menos, tenho constantemente meditado nele. Em conseqüência, minha mente tem se
debatido com os seus problemas, e o meu coração se abrasou pela nobreza dos seus ideais. Durante esse
período, tentei compartilhar meus pensamentos e meu entusiasmo com estudantes da Universidade de
Cambridge, com outros grupos de estudantes nos Estados Unidos e no Canadá, com a congregação da Igreja
de All Souls, e com aquelas centenas de peregrinos de todo o mundo, na Convenção de Keswick, em 1972.
É claro que sobre o Sermão do Monte já se escreveram centenas de comentários. Eu mesmo pude
estudar cerca de vinte e cinco deles, e o leitor irá notar minha dívida para com eles. De fato, meu texto está
liberalmente salpicado de citações desses comentários, pois penso que devemos valorizar a tradição muito
mais do que freqüentemente o fazemos, e que devemos assentar-nos mais humildemente aos pés dos mestres.
Meu propósito com esta exposição foi atentar cuidadosamente para o texto. Acima de tudo, o meu
propósito foi deixar o próprio texto falar, ou melhor, deixar Cristo proferi-lo novamente, desta vez ao mundo
contemporâneo. Assim, procurei encarar com integridade os dilemas que o Sermão levanta para os cristãos
de hoje, e não esquivar-me deles, já que Cristo não nos deu um tratado acadêmico, calculado simplesmente
para estimular a mente. Creio que ele desejava que o seu Sermão do Monte fosse obedecido. De fato, se a
Igreja tivesse aceitado realisticamente os seus padrões e valores, como aqui demonstrados, e tivesse vivido
segundo eles, ela teria sido a sociedade alternativa que sempre tencionou ser, e poderia oferecer ao mundo
uma autêntica contracultura cristã.
Sou extremamente grato a John Maile, professor de Novo Testamento na Faculdade Spurgeon, em
Londres, pela leitura do manuscrito e por várias proveitosas sugestões. Da mesma forma devo
agradecimentos a Frances Whitehead e Vivienne Curry pela datilografia do texto.
JOHN R. W. STOTT
1
Citado por McArthur, p. 12.
Principais Abreviações e Bibliografia
AG
Allen
Antiquities
Agostinho
BLH
Bonhoeffer
Bruce
Calvino
Crisóstomo
Daube
Davies
ERAB
ERC
Glover
Homilies
Hunter
BJ
Jeremias
Lenski
Lloyd-Jones
Lutero
McArthur
McNeile
NTV
Plummer
Ryle
Spurgeon
Stier
Stonehouse
Tasker
Thielicke
Tolstoy
War
Windisch
A Greek-English Lexicon of the New Testament and other early Christian literature de William F. Arndt
e F. Wilbur Gingrich (University of Chicago Press e Cambridge University Press, 1957)
A criticai and exegetical commentary on the Gospel according to St Matthew de W. C. Allen (International Criticai Commentary, 1907: T. and T. Clark, terceira edição, 1912).
The Antiquities of the Jews em The Works of Flavius Josephus, c. 75-95 d.C, traduzido por William
Whiston (Londres, sem data).
Our Lord's Sermon on the Mount, uma exposição feita por Agostinho de Hippo. Início do século cinco
d.C. Tradução de William Findlay na série Library of Nicene and Post-Nicene Fathers, vol. VI, editada
por Philip Schaff, 1887. (Eerdmans, 1974.)
A Bíblia na Linguagem de Hoje (Sociedade Bíblica do Brasil).
Discipulado de Dietrich Bonhoeffer (Sinodal, 1980).
Commentary on the Synoptic Gospels de A. B. Bruce, na série The Expositor's Greek Testament, editada
por W. Robertson Nicholl (Hodder, 1897).
Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark and Luke, I, de João Calvino (1558:
traduzido por William Pringle, 1845: Eerdmans, sem data)
Homilies on the Gospel of St Matthew, Part I, de João Crisóstomo (sem data: traduzido por George
Prevost, Oxford, 1843).
The New Testament and Rabbinic Judaism de David Daube (Universiry of London, Athlone Press,
1956).
The Setting of the Sermon on the Mount de W. D. Davies (Cambridge Universiry Press, 1964).
Edição Revista e Atualizada no Brasil (Sociedade Bíblica do Brasil).
Edição Revista e Corrigida (Imprensa Bíblica Brasileira).
A Teacher's Commentary on the Gospel of St Matthew de Richard Glover (Marshall, Morgan and Scott,
1956).
The Second Book of Homilies (1571) na série Homilies and Canons (SPCK, 1914),
Design for Life: an Exposition of the Sermon on
the Mount de A. M. Hunter (SCM, 195,3; edição
revisada 1965).
A Bíblia de Jerusalém (Edições Paulinas).
The Sermon on the Mount de Joachim Jeremias
Universiry of London, Athlone Press, 1961).
The Interpretation of St Matthew's Gospel de R. C. H. Lenski (1943: Augsburg, 1964).
Studies in the Sermon on the Mount de D. Martyn Lloyd-Jones (IVP: vol. I, 1959, vol. II, 1960. As
referências dadas referem-se à edição conjunta, 1977).
The Sermon on the Mount de Martinho Lutero (1521: traduzido por Jaroslav Pelikan: vol 21 de Luther's
Works, Concórdia, 1956)
Understanding the Sermon on the Mount debey McArthur (Harper, 1960; Epworth, 1961).
The Gospel according to St Matthew: the Greek text with introduction, notes and indexes de A. H.
McNeile (1915: Macmillan, 1965).
O Novo Testamento Vivo (Mundo Cristão).
An exegetical commentary on the Gospel according to St Matthew de Alfred Plummer (Alliot Stock,
1910).
Expository Thoughts on the Gospels de J. C. Ryle (1856: edição de aniversário de Matthew and Mark,
Zondervan).
The Gospel of the Kingdom de C. H. Spurgeon (Passmore and Alabaster, 1893).
The Words of the Lord Jesus, I, de Rudolf Stier, traduzido por William B. Pope, 1855 (T. & T. Clark,
1874).
The Witness of Matthew and Mark to Christ de N. B. Stonehouse (Tyndale Press, 1944; segunda edição
1958).
Evangelho Segundo Mateus de R. V. G. Tasker (Vida Nova e Mundo Cristão, 1980).
Life can begin again: sermons on the Sermon on the Mount de Helmut Thielicke (1956: traduzido por
John W. Doberstein, Fortress, 1963).
A Confession, The Gospel in Brief e What I Believe de Leo Tolstoy (1882-1884: traduzido por Aylmer
Maude na série World's Classics, n? 229; Oxford University Press, edição nova 1940)
The Jewish War em The Works of Flavius Josephus, c. 75-95 d.C, traduzido por William Whiston
(London, sem data).
The Meaning of the Sermon on the Mount de Hans Windisch (1929: segunda edição 1937: tradução em
inglês, Westminster, 1941).
Mateus 5:1, 2
Introdução: Que sermão é este?
O Sermão do Monte é provavelmente a parte mais conhecida dos ensinamentos de Jesus, embora se
possa argumentar que seja a menos compreendida e, certamente, a menos obedecida. De tudo o que ele disse,
essas suas palavras são as que mais se aproximam de um manifesto, pois descrevem o que ele desejava que
os seus seguidores fossem e fizessem. Penso que nenhuma outra expressão resume melhor a intenção de
Jesus, ou indica mais claramente o seu desafio para o mundo moderno, do que a expressão "contracultura
cristã". Vou lhes dizer por quê.
Os anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial, em 1945, foram marcados por um
idealismo inocente. O horrível pesadelo terminara. "Reconstrução" era o alvo universal. Seis anos de
destruição e devastação eram coisas do passado; a tarefa agora era construir um novo mundo de cooperação e
paz. Mas a irmã gêmea do idealismo é a desilusão, desilusão com aqueles que não participam do ideal, ou
(pior) com os que se lhe opõem, ou (pior ainda) com os que o traem. E a desilusão com o que é continua
alimentando o idealismo do que poderia ser.
Parece que atravessamos décadas de desilusão. Cada geração que se levanta odeia o mundo que herdou.
Às vezes, a reação tem sido ingênua, embora não possamos dizer que tenha sido hipócrita. Os horrores do
Vietnã não terminaram com aqueles que distribuíam flores e rabiscavam o seu lema "Faça amor, não faça
guerra", embora o seu protesto não tenha passado despercebido. Hoje em dia, há pessoas que repudiam a
opulência ávida do ocidente, que parece ficar cada vez mais gordo, através do esbulho do meio-ambiente
natural, ou através da exploração de nações em desenvolvimento, ou através de ambas as coisas ao mesmo
tempo; essas pessoas exprimem a totalidade da sua rejeição vivendo com simplicidade, vestindo-se negligentemente, andando descalças e evitando o desperdício. Em lugar do simulacro da socialização burguesa,
estão famintas de relacionamentos de amor autênticos. Desprezam a superficialidade, tanto do materialismo
descrente como do conformismo religioso, pois sentem que há uma "realidade" impressionante muito maior
do que essas trivialidades, e buscam essa dimensão "transcendental" ilusória através da meditação, de drogas
ou do sexo. Abominam até o próprio conceito do corre-corre da sociedade de consumo e acham que é mais
honesto "cair fora" do que participar. Tudo isso é sintoma da incapacidade da geração mais jovem de
adaptar-se ao status quo ou de aclimatar-se à cultura prevalecente. Não se sentem à vontade. Estão alienados.
E em sua busca de uma alternativa, "contracultura" é a palavra que usam. Ela expressa um amplo raio
de ação de idéias ou ideais, experiências e alvos. Encontramos uma boa documentação a esse respeito em
The Making of a Counter-culture (A Criação de uma Contracultura, 1969) de Theodore Roszak; em The Dust
of Death (A Poeira da Morte, 1973) de Os Guinness, e em Youthquake (Terremoto Jovem, 1973) de Kenneth
Leech.
De um certo modo, os cristãos consideram esta busca de uma cultura alternativa um dos mais
promissores, e até mesmo excitantes, sinais dos tempos. Pois reconhecemos nisso a atividade do Espírito, o
qual, antes de confortar, perturba; e sabemos a quem a busca deles conduzirá, se quiserem encontrar a
resposta. Na verdade, é significativo que Theodore Roszak, encontrando dificuldade para expressar a
realidade que a juventude contemporânea procura, alienada como está pela insistência dos cientistas quanto à
"objetividade", sente-se obrigado a recorrer às palavras de Jesus: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo
inteiro e perder a sua alma?"2
Mas, ao lado da esperança que esta disposição de protesto e busca inspira aos cristãos, há também (ou
deveria haver) um sentimento de vergonha. Pois, se a juventude de hoje está à procura das coisas certas
(significado, paz, amor, realidade), ela as tem procurado nos lugares errados. O primeiro lugar onde
deveriam procurar é um lugar que normalmente ignoram, isto é, a Igreja. Pois, com demasiada freqüência, o
que vêem nas igrejas não é a contracultura, mas o conformismo; não uma nova sociedade que concretiza seus
ideais, mas uma versão da velha sociedade a que renunciaram; não a vida, mas a morte. Prontamente
endossariam o que Jesus disse de uma igreja do primeiro século: "Tens nome de que vives, e estás morto".3
Urge que não somente vejamos, mas também sintamos, a grandeza dessa tragédia, pois, na medida em
que uma igreja se conforme com o mundo, e as duas comunidades pareçam ser meramente duas versões da
mesma coisa, essa igreja está contradizendo a sua verdadeira identidade. Nenhum comentário poderia ser
2
3
The Making of a Counter-Culture, Anchor Books, Doubleday, 1969, p. 233.
Ap3:l.
mais prejudicial para o cristão do que as palavras: "Mas você não é diferente das outras pessoas!"
O tema essencial de toda a Bíblia, desde o começo até o fim, é que o propósito histórico de Deus é
chamar um povo para si mesmo; que este povo é um povo "santo", separado do mundo para lhe pertencer e
obedecer; e que a sua vocação é permanecer fiel à sua identidade, isto ê, ser "santo" ou "diferente" em todo o
seu pensamento e em todo o seu comportamento.
Foi assim que Deus falou ao povo de Israel logo depois que o tirou da escravidão egípcia e fez dele o
seu povo especial através da aliança: "Eu sou o Senhor vosso Deus. Não fareis segundo as obras da terra do
Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem
andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus estatutos guardareis, para andardes
neles: Eu sou o Senhor vosso Deus."4 Este apelo que Deus fez a seu povo, é preciso notar, tanto começou
como terminou com a declaração de que ele era o Senhor seu Deus. Pelo fato de ser o seu Deus, com quem
eles firmaram um pacto, e porque eles constituíam o seu povo especial, tinham de ser diferentes de quaisquer
outras pessoas. Tinham de seguir os mandamentos de Deus e não os padrões daqueles que os cercavam.
Através dos séculos seguintes, o povo de Israel continuou se esquecendo da sua singularidade como
povo de Deus. Embora nas palavras de Balaão fosse "povo que habita só, e (que) não será reputado entre as
nações", na prática, entretanto, eles continuaram assimilando-se aos povos que os rodeavam: "Antes se
mesclaram com as nações, e lhes aprenderam as obras".5 Por isso exigiram que um rei os governasse "como
todas as nações", e quando Samuel os advertiu com base no fato de ser Deus o rei deles, foram obstinados
em sua insistência: "Não, mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações."6
Pior ainda do que o estabelecimento da monarquia foi a sua idolatria. "Seremos como as nações", diziam
para si mesmos, ". . . servindo ao pau e à pedra."7 Por isso Deus continuou lhes enviando os seus profetas
para que lembrassem quem eram e para insistir com eles a seguirem o caminho de Deus. "Não aprendais o
caminho dos gentios", falou-lhes através de Jeremias e Ezequiel, "não vos contamineis com os ídolos do
Egito; eu sou o Senhor vosso Deus."8 Mas o povo de Deus não queria ouvir-lhe a voz, e o motivo específico
apresentado, pelo qual o juízo de Deus caiu primeiro sobre Israel e, depois, cerca de 150 anos mais tarde,
sobre Judá, foi o mesmo: "Os filhos de Israel pecaram contra o Senhor seu Deus . . . andaram nos estatutos
das nações . . . Também Judá não guardou os mandamentos do Senhor seu Deus; antes, andaram nos
costumes que Israel introduziu."9
Tudo isso constitui um cenário essencial para se compreender o Sermão do Monte. O Sermão encontrase no Evangelho de Mateus, logo no começo do ministério público de Jesus. Imediatamente após o seu
batismo e tentação, Cristo começou a anunciar as boas novas de que o reino de Deus, há muito prometido no
período do Velho Testamento, estava agora às portas. Ele mesmo viera para inaugurá-lo. Com ele nascia a
nova era e o reinado de Deus irrompia na História. "Arrependei-vos", clamava, "porque está próximo o reino
dos céus."10 Na verdade, "percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do
reino" (v. 23). O Sermão do Monte, então, deve ser visto neste contexto. Descreve o arrependimento
(metanóia, a total transformação da mente) e a retidão, que fazem parte do reino; isto é, descreve como ficam
a vida e a comunidade humana quando se colocam sob o governo da graça de Deus.
E como é que ficam? Tornam-se diferentes! Jesus enfatizou que os seus verdadeiros discípulos, os
cidadãos do reino de Deus, tinham de ser inteiramente diferentes. Não deveriam tomar como padrão de
conduta as pessoas que os cercavam, mas sim Deus, e assim provar serem filhos genuínos do seu Pai
celestial. Para mim, o texto-chave do Sermão do Monte é 6:8: "Não vos assemelheis, pois, a eles."
Imediatamente nos faz lembrar a palavra de Deus a Israel, na antigüidade: "Não fareis como eles."11 É o
mesmo convite para serem diferentes. E este tema foi desenvolvido através de todo o Sermão do Monte. O
caráter deles teria de ser completamente diferente daquele que era admirado pelo mundo (as bemaventuranças). Deveriam brilhar como luzes nas trevas reinantes. A justiça deles teria de exceder à dos
escribas e fariseus, tanto no comportamento ético quanto na devoção religiosa, enquanto que o seu amor
deveria ser maior, e a sua ambição mais nobre do que a dos pagãos vizinhos.
Não há um parágrafo no Sermão do Monte em que não se trace este contraste entre o padrão cristão e o
não-cristão. É o tema subjacente e unificador do Sermão; tudo o mais é uma variação dele. Às vezes, Jesus
4
Lv 18:1-4.
Nm 23:9; SI 106:35.
6
lSm8:5,19,20.
7
Ez 20:32.
8
Jr 10:1, 2;Ez20:7.
9
2Rs 17:7, 8,19;cf. Ez5:7; 11:12.
10
Mt4:17.
5
11
Lvl8:3.
contrasta os seus discípulos com os gentios ou com as nações pagãs. Assim, os pagãos amam-se e saúdam-se
uns aos outros, mas os cristãos têm de amar os seus inimigos (5:44-47); os pagãos oram segundo um modelo,
com "vãs repetições", mas os cristãos devem orar com a humilde reflexão de filhos do seu Pai no céu (6:713); os pagãos estão preocupados com as suas próprias necessidades materiais, mas os cristãos devem buscar
primeiro o reino e a justiça de Deus (6:23, 33).
Em outros pontos, Jesus contrasta os seus discípulos, não com os gentios, mas com os judeus, ou seja,
não com pessoas pagãs mas com pessoas religiosas; especificamente, com os "escribas e fariseus". O
Professor Jeremias, sem dúvida, está certo ao dizer que são "dois grupos de pessoas totalmente diferentes",
pois "os escribas são os mestres de teologia que tiveram alguns anos de estudo; os fariseus, por outro lado,
não são teólogos, mas sim grupos de leigos piedosos de todas as camadas da sociedade".12 Certamente Jesus
opõe a moral cristã à casuística ética dos escribas (5:21-48) e a devoção cristã à piedade hipócrita dos
fariseus (6:1-18).
Assim, os discípulos de Jesus têm de ser diferentes: tanto da igreja nominal, como do mundo secular;
tanto dos religiosos, como dos irreligiosos. O Sermão do Monte é o esboço mais completo, em todo o Novo
Testamento, da contracultura cristã. Eis aí um sistema de valores cristãos, um padrão ético, uma devoção
religiosa, uma atitude para com o dinheiro, uma ambição, um estilo de vida e uma teia de relacionamentos:
tudo completamente diferente do mundo que não é cristão. E esta contracultura cristã é a vida do reino de
Deus, uma vida humana realmente plena, mas vivida sob o governo divino.
Chegamos à introdução editorial dada por Mateus ao Sermão, a qual é breve mas impressionante: indica
a importância que ele lhe atribuía.
Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos, e
ele passou a ensiná-los, dizendo. .. (5:1, 2)
Não há dúvida de que o propósito principal de Jesus ao subir uma colina ou montanha para ensinar era
fugir das "numerosas multidões" da Galiléia, Decápolis, Jerusalém, Judéia e dalém do Jordão13, que o
seguiam. Ele passara os primeiros meses do seu ministério público vagando por toda a Galiléia, "ensinando
nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo".
Como resultado, "sua fama correu por toda a Síria", e o povo vinha em grandes multidões, trazendo os seus
doentes para serem curados.14 Por isso Jesus precisava fugir, não só para ter uma oportunidade de ficar
sozinho e orar, mas também para dar uma instrução mais concentrada aos seus discípulos.
Além disso, parece (conforme muitos comentaristas antigos e modernos têm sugerido) que ele
deliberadamente subiu ao monte para ensinar, a fim de traçar um paralelo entre Moisés (que recebeu a lei no
Monte Sinai) e ele próprio (que então explicou aos seus discípulos as conseqüências dessa lei, no chamado
"Monte das Bem-aventuranças", o local tradicional do Sermão, junto às praias ao norte do Lago da Galiléia).
Pois, embora Jesus fosse maior do que Moisés, e embora a sua mensagem fosse mais evangelho do que lei,
ele também escolheu doze apóstolos para formar o núcleo de um novo Israel, em correspondência aos doze
patriarcas e tribos da antigüidade. Ele também proclamou ser Mestre e Senhor, deu a sua própria
interpretação autorizada da lei de Moisés, enunciou mandamentos e esperou obediência. Até mesmo
convidou, mais tarde, os seus discípulos a tomarem o seu "jugo", ou submeterem-se aos seus ensinamentos,
assim como anteriormente carregaram o jugo do Torá.15
Alguns mestres desenvolveram esquemas muito elaborados para demonstrar este paralelo. B. W. Bacon,
em 1918, por exemplo, argumentou que Mateus deliberadamente estruturou o seu Evangelho em cinco
partes, cada uma terminando com a fórmula "quando Jesus acabou . . ." (7:28; 11:1; 13:53; 19:1; 26:1), a fim
de que os "cinco livros de Mateus" correspondessem aos "cinco livros de Moisés" e fossem uma espécie de
Pentateuco do Novo Testamento.16
Um paralelismo diferente foi sugerido por Austin Farrer, a saber, que Mateus 5-7 teve por modelo
Êxodo 20-24, as oito bem-aventuranças correspondendo aos dez mandamentos, com o restante do Sermão
dissertando sobre as mesmas e aplicando-as, assim como os mandamentos também foram dissertados e
explicados.17
Estas tentativas engenhosas de descobrir paralelos são compreensíveis porque em muitas passagens do
Novo Testamento a obra salvadora de Jesus está descrita como um novo êxodo,18 e a vida cristã como uma
alegre celebração disso: "Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso celebremos a
12
p.23.
4:25.
14
4:23,24.
15
Mt 11:29,30.
16
A teoria de B. W. Bacon foi resumida e criticada por W. D. D avies, pp. 15-25.
17
A teoria de Austin Farrer foi criticada por W. D. Davies, pp. 9-13.
18
cf. Mt2:15.
13
festa."19 Embora Mateus não compare explicitamente Jesus a Moisés, e não possamos reivindicar mais do
que isso no Sermão, "a essência da Nova Lei, o Novo Sinai, o Novo Moisés estão presentes".20
Em todos os eventos, Jesus assentou-se, assumindo a posição de um rabi ou legislador, e seus discípulos
aproximaram-se dele, para aprender dos seus ensinamentos. Então ele passou (uma expressão que indica a
solenidade do seu pronunciamento) a ensiná-los.
Três perguntas básicas formam-se imediatamente na mente do leitor moderno, ao estudar o Sermão do
Monte. Tal pessoa não se sentirá receptiva para com os ensinamentos desse sermão se não receber respostas
satisfatórias às seguintes perguntas: Primeiro, o Sermão do Monte é um autêntico pronunciamento de Jesus?
Foi realmente pregado por ele? Segundo, o seu conteúdo é relevante para o mundo contemporâneo, ou é
totalmente fora de moda? Terceiro, os seus padrões são atingíveis, ou devemos esquecê-los por serem em
larga escala um ideal impraticável?
1. O Sermão é autêntico?
O Sermão do Monte aparece só no primeiro Evangelho (Mateus). No terceiro Evangelho (Lucas) há um
sermão semelhante, às vezes chamado de "o Sermão da Planície".21 Lucas diz que foi pregado "numa
planura" à qual Jesus "desceu" depois de retirar-se "para o monte" a fim de orar.22 Mas a aparente diferença
de localização não deve nos deter, pois a "planura" pode muito bem ter sido um platô sobre os montes e não
uma planície ou um vale.
Uma comparação do conteúdo dos dois sermões revela imediatamente que não são idênticos. O de
Lucas é consideravelmente mais curto, consistindo de apenas 30 versículos, em contraste com os 107 de
Mateus, e cada um inclui matérias que estão ausentes no outro. Não obstante, há também óbvias semelhanças
entre eles. Os dois sermões começam com "bem-aventuranças", terminam com a parábola dos dois
construtores, e no meio contêm a regra áurea, a ordem para amar os nossos inimigos e oferecer a outra face, a
proibição de julgar as pessoas, e as vivas ilustrações da trave no olho e da árvore com os seus frutos. Esta
matéria comum aos dois sermões, com um começo e um final em comum, sugere que os dois são versões do
mesmo sermão. Qual é, entretanto, a relação entre eles? Como explicar a combinação de semelhanças e
variações?
Muitos têm negado que o Sermão do Monte tenha sido um "sermão" (qualquer que seja o sentido desta
palavra) pregado por Jesus numa ocasião específica. É um aspecto bem conhecido da prática editorial do
primeiro evangelista a reunião, no texto de um capítulo, de ensinamentos de Jesus que são relacionados entre
si. O melhor exemplo disto é a sua série de sete parábolas de Jesus.23 Há quem tenha argumentado, assim,
que Mateus 5 a 7 representa uma coleção de pronunciamentos de Jesus, habilmente ligados em forma de
sermão pelo evangelista, ou por uma comunidade cristã primitiva, da qual ele o teria recebido. Até Calvino
acreditava nisso: "O plano desses dois evangelistas era o de reunir num só lugar os pontos principais da
doutrina de Cristo que se relacionam com uma vida devota e santa."24 Como resultado, o Sermão é "um
pequeno resumo . . . extraído de seus muitos e variados discursos".25
Alguns comentaristas modernos foram mais francos. Bastará citar um exemplo. W. D. Davies chama o
Sermão de "simplesmente uma coleção de pronunciamentos não relacionados entre si, de diversas origens,
uma colcha de retalhos"; e, depois de fazer uma crítica da fonte, da forma e da liturgia neste texto, ele
conclui: "Assim, o impacto da recente crítica em todas as suas formas é lançar dúvidas sobre a conveniência
de procurar entender este trecho . . . como um todo inter-relacionado que se origina dos ensinamentos
genuínos de Jesus."26 Mais tarde, ele admite que a maré se virou para a chamada "crítica de redação", o que
pelo menos concede aos próprios evangelistas o mérito de verdadeiros autores, que deram forma à tradição
que preservaram. Não obstante, continua cético sobre quanto dos ensinamentos originais de Jesus está
contido no Sermão do Monte.
A reação a esta espécie de crítica literária depende das pressuposições teológicas fundamentais que se
tenha sobre o próprio Deus, sobre a natureza e o propósito da revelação de Deus em Cristo, sobre a obra do
Espírito Santo e sobre o senso de verdade do evangelista. Pessoalmente, acho difícil aceitar qualquer ponto
de vista sobre o Sermão que atribua o seu conteúdo à igreja primitiva e não a Jesus, ou que até mesmo o
considere como uma amálgama de seus pronunciamentos em diversas ocasiões. A razão principal é que tanto
19
1 Co 5:7, 8.
Davies, p. 108.
21
Lc6:17-49.
22
Lc 6:12,17
23
Mt 13.
24
p. 258.
25
p. 259.
26
pp. 1,5
20
Mateus como Lucas apresentam essa matéria como um sermão de Cristo, e parecem pretender que seus
leitores o entendam assim. Ambos lhe dão um contexto histórico e geográfico preciso, atribuindo-o ao
começo do ministério de Jesus na Galiléia e declarando que ele o transmitiu "no monte" e "numa planura"
sobre os montes. Mateus registra a reação de perplexidade das multidões, quando Jesus terminou de proferilo, destacando que foi por causa da autoridade com que ele falava.27 E ambos dizem que, quando terminou,
"entrou em Cafarnaum".28
Isto não significa, entretanto, que os dois evangelistas nos tenham transmitido todo o sermão ipsissima
verba. Está claro que não o fizeram, pois, em ambos os casos, Jesus falou em aramaico, e os dois Evangelhos
têm uma versão grega. Além disso, conforme já vimos, suas versões diferem uma da outra. Há diversos
outros modos possíveis de explicá-lo. Assim também ambos apresentaram a sua seleção e tradução
individual, de uma fonte comum ou de fontes independentes. Ou Lucas apresenta um resumo menor,
omitindo grande parte, enquanto que Mateus registra mais, senão a maior parte dele; ou Mateus elabora um
sermão originalmente mais curto, aumentando-o com o acréscimo de outros contextos autênticos e
pronunciamentos apropriados de Jesus. Podemos ainda afirmar que o Espírito Santo orientou a seleção e o
arranjo.
Quanto a mim, prefiro a sugestão que o Professor A. B. Bruce fez em seu comentário de 1897. Ele
acreditava que o material contido em Mateus 5 a 7 representa a instrução "não de uma simples hora ou dia,
mas de um período de retiro".29 Conjecturava que Jesus poderia ter reunido consigo os discípulos no monte
para uma espécie de "Acampamento de Verão". Por isso não chamava aqueles capítulos de "Sermão do
Monte" (expressão usada pela primeira vez por Agostinho), mas de "Ensinamentos do Monte".30 Mais ainda,
o Sermão, conforme registrado em Mateus, teria a duração de apenas cerca de dez minutos, por isso é
possível que os evangelistas nos tenham dado apenas versões condensadas.
2. O Sermão é relevante?
Se o Sermão é ou não relevante para a vida moderna, só se pode julgar através de um detalhado exame
do seu conteúdo. O que salta à vista é que, não importando como ele foi composto, forma um todo
maravilhosamente coerente. Descreve o comportamento que Jesus esperava de cada um dos seus discípulos,
que são também cidadãos do reino de Deus. Vemos como Jesus é em si mesmo, em seu coração, em suas
motivações, em seus pensamentos, e também quando afastado, sozinho com o seu Pai. Vemo-lo na arena da
vida pública, relacionando-se com o próximo, exercendo misericórdia, patrocinando a paz, sendo perseguido,
agindo como sal, deixando a sua luz brilhar, amando e servindo aos outros (até mesmo aos seus inimigos), e
dedicando-se acima de tudo à expansão do reino de Deus e da sua justiça no mundo.
Talvez uma rápida análise do Sermão ajude a demonstrar a sua relevância para nós, no século vinte.
a. O caráter do cristão (5:3-12)
As bem-aventuranças enfatizam oito sinais principais da conduta e do caráter cristãos, especialmente
em relação a Deus e aos homens, e as bênçãos divinas que repousam sobre aqueles que externam estes sinais.
b. A influência do cristão (5:13-16)
As duas metáforas do sal e da luz indicam a influência que os cristãos devem exercer para o bem na
comunidade se (e tão somente se) mantiverem o seu caráter distinto, conforme descrito nas bemaventuranças.
c. A justiça do cristão (5:17-48)
Qual deve ser a atitude do cristão para com a lei moral de Deus? Ficaria a lei propriamente dita abolida
na vida cristã, como estranhamente afirmam os advogados da filosofia da "nova moralidade" e da escola dos
"não-mais-sob-a-lei"? Não. Jesus não tinha vindo para abolir a lei e os profetas, disse ele, mas para cumprilos. E mais, ele chegou a declarar que a grandeza no reino de Deus se media pela conformidade com os
ensinamentos morais da lei e dos profetas, e que até mesmo entrar no reino era impossível sem uma justiça
maior do que a dos escribas e fariseus (5:17-20). Jesus deu, então, seis ilustrações desta justiça cristã melhor
(5:21-48), relacionando-a com o homicídio, com o adultério, com o divórcio, com o juramento, com a
vingança e com o amor. Em cada antítese ("Ouvistes que foi dito ... eu, porém, vos digo . . ."), rejeitou a
acomodada tradição dos escribas, reafirmou a autoridade das Escrituras do Velho Testamento e apresentou as
27
7:28,29.
Mt8:5;Lc7:l.
29
p.94.
30
p.95.
28
decorrências plenas e exatas da lei moral de Deus.
d. A piedade do cristão (6:1-18)
Em sua "piedade" ou devoção religiosa, os cristãos não devem se acomodar nem com o tipo hipócrita
dos fariseus, nem com o formalismo mecânico dos pagãos. A piedade cristã deve destacar-se acima de tudo
pela realidade, pela sinceridade dos filhos de Deus que vivem na presença de seu Pai celestial.
e. A ambição do cristão (6:19-34)
O "mundanismo" do qual os cristãos devem fugir pode ter aparência religiosa ou secular. Por isso,
devemos ser diferentes dos não-cristãos, não apenas em nossas devoções, mas também em nossas ambições.
Cristo modifica especialmente a nossa atitude para com a riqueza e os bens materiais. É impossível adorar a
Deus e ao dinheiro; temos de escolher um dos dois. As pessoas do mundo estão preocupadas com a busca do
alimento, da bebida e do vestuário. Os cristãos devem ficar livres destas ansiedades materiais egocentralizadas e, em lugar disso, devem dedicar-se à expansão do governo e da justiça de Deus. É o mesmo
que dizer que a nossa ambição suprema deve ser a glória de Deus e não a nossa própria glória, nem mesmo o
nosso próprio bem-estar material. É uma questão do que buscamos "em primeiro lugar".
f. Os relacionamentos do cristão (7:1-20) Os cristãos estão presos em uma complexa teia de relacionamentos, todos eles partindo do nosso relacionamento com Cristo. Quando nos relacionamos devidamente
com ele, os nossos demais relacionamentos são todos afetados. Novos relacionamentos surgem, e os antigos
se modificam. Assim, não devemos julgar o nosso irmão, mas servi-lo (vs. 1-5). Devemos também evitar
oferecer o evangelho àqueles que decididamente o rejeitam (v. 6); devemos continuar orando ao nosso Pai
celestial (vs. 7-12) e tomar cuidado com os falsos profetas, que impedem que muita gente encontre a porta
estreita e o caminho difícil (vs. 13-20).
g. Uma dedicação cristã (7:21-27)
O último item apresentado pelo todo do Sermão relaciona-se com a autoridade do pregador. Não basta
chamá-lo de "Senhor" (vs. 21-23) ou ouvir os seus ensinamentos (vs. 24-27). A questão básica é se nós
somos sinceros no que dizemos e se fazemos o que ouvimos. Deste compromisso depende o nosso destino
eterno. Só quem obedece a Cristo como Senhor é sábio. Pois quem assim procede está edificando a sua casa
sobre o alicerce da rocha, que as tempestades da adversidade e do juízo não serão capazes de solapar.
As multidões ficaram perplexas com a autoridade com que Jesus ensinava (vs. 28, 29). É uma
autoridade à qual os discípulos de Jesus de cada geração devem submeter-se. A questão do senhorio de
Cristo é relevante hoje em dia, tanto com referência a princípios como à aplicação prática, da mesma maneira
que o era quando originalmente ele pregou o Sermão do Monte.
3. O Sermão é prático?
A terceira questão é pragmática. Uma coisa é convencer-se da relevância do Sermão em teoria; mas
outra totalmente diferente é ter a certeza de que funcionará na prática. Seus padrões são atingíveis? Ou
devemos quedar-nos satisfeitos, admirando-os melancolicamente à distância?
Talvez a maioria dos leitores e comentaristas, encarando a realidade nua e crua da perversidade
humana, tenha chegado à conclusão de que os padrões do Sermão do Monte são inatingíveis. Dizem que os
seus ideais são nobres mas impraticáveis, atraentes à imaginação mas impossíveis de se cumprir. Conhecendo bastante o agressivo egoísmo humano, questionam: como pode, então, alguém ser manso? Conhecem
a imperiosa paixão sexual humana; como pode, então, alguém refrear os seus olhares e os seus pensamentos
concupiscentes? Conhecem a preocupação humana com os problemas da vida; como, então, proibir-se a
apreensão? Sabem da prontidão humana em irar-se e em ter sede de vingança; como então, esperar que
alguém ame seus inimigos? Mais do que isto: a exigência não é voltar a outra face a um assaltante, o que é
perigoso para o bem-estar da própria sociedade? E não ultrapassa essa exigência a capacidade individual?
Provocar mais a violência dessa maneira não só permite que ela permaneça sem castigo, mas até a incentiva.
Não! O Sermão do Monte não teria valor prático para os indivíduos ou comunidades. Na melhor das
hipóteses, representaria o idealismo impraticável de um visionário. Seria um sonho que jamais se poderia
realizar.
Uma modificação deste ponto de vista, pela primeira vez expressa por Johannes Weiss em 1892, e mais
popularizada por Albert Schweitzer, é que Jesus fazia exigências excepcionais para uma situação
excepcional. Acreditando eles que Jesus esperava que o fim da História acontecesse quase imediatamente,
argumentavam que ele dava a seus discípulos uma "ética provisória", que exigia deles sacrifícios totais,
como abandonar as suas propriedades e amar os seus inimigos, sacrifícios apropriados só para aquele
momento de crise. Neste caso, o Sermão do Monte transforma-se numa espécie de "lei marcial", 31 que só
uma emergência maior poderia justificar. Enfaticamente, não seria uma ética para o quotidiano.
E tem havido muitas tentativas de acomodar o Sermão do Monte aos baixos níveis de nossa capacidade
moral. Nos capítulos quarto e quinto do seu livro Understanding the Sermon on the Mount (Compreendendo
o Sermão do Monte), Harvey McArthur primeiro examina e depois avalia nada menos de doze maneiras
diferentes de interpretar o Sermão.32 Diz que poderia muito bem intitular esta seção de "Versões e Evasivas
do Sermão do Monte", pois todas menos uma das doze interpretações oferecem qualificações prudentes de
suas exigências aparentemente absolutas.
No extremo oposto ficam aquelas almas superficiais que desembaraçadamente afirmam que o Sermão
do Monte expressa padrões éticos que são manifestamente verdadeiros, comuns a todas as religiões e fáceis
de obedecer. "Eu vivo de acordo com o Sermão do Monte", dizem. A reação mais caridosa para com essa
gente é presumir que nunca leram o Sermão que tão confiantemente consideram uma coisa comum, normal.
Bem diferente foi Leo Tolstoy (embora ele também cresse que o Sermão foi pregado a fim de ser obedecido).
É verdade que ele se reconhecia um fracasso sem limites, mas continuava crendo que os preceitos de Jesus
poderiam ser postos em prática, e colocou a sua convicção nos lábios do Príncipe Nekhlyudov, o herói de sua
última grande obra, Ressurreição, publicada em 1899-1900.
O príncipe de Tolstoy geralmente é considerado como um auto-retrato, e muito mal disfarçado. No final
da novela, Nekhlyudov relê o Evangelho de Mateus. Vê no Sermão do Monte "não lindos pensamentos
abstratos, que apresentam principalmente exigências exageradas e impossíveis, mas mandamentos simples,
claros, práticos que, se fossem obedecidos (e isto parecendo ser bastante exeqüível), estabeleceriam uma
ordem completamente nova na sociedade humana, onde a violência que enchia Nekhlyudov de indignação
não só cessaria sozinha, mas também a maior de todas as bênçãos que o homem pode esperar, o reino dos
céus na terra, seria alcançada."
"Nekhlyudov ficou parado olhando para a luz da lâmpada que bruxuleava, e seu coração parou de bater.
Lembrando toda a monstruosa confusão da vida que levamos, imaginou como esta vida poderia ser, caso as
pessoas fossem ensinadas a obedecer a estes mandamentos; e sua alma foi invadida por um êxtase jamais
sentido antes, Foi como se, depois de muito anelar e sofrer, finalmente encontrasse paz e libertação.
Não dormiu naquela noite e, como acontece com a imensidão dos que lêem os Evangelhos,
compreendeu pela primeira vez o pleno significado das palavras tantas vezes lidas no passado, mas não
entendidas. Como uma esponja que chupa a água, ele bebeu aquela vital, importante e alegre novidade que o
livro lhe revelou. E tudo o que lia lhe parecia familiar, confirmando e tornando real o que já conhecia há
muito tempo mas que jamais compreendera totalmente nem crera realmente. Mas agora entendia e cria...
Disse para si mesmo: 'Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça; e todas estas coisas vos serão
acrescentadas. Mas nós buscamos todas estas coisas e obviamente fracassamos em alcançá-las. Esta,
portanto, deve ser a tarefa de minha vida. Uma tarefa foi completada e outra está por fazer.'
Naquela noite uma vida inteiramente nova teve início em Nekhlyudov, não tanto porque penetrasse em
novas condições de vida, mas porque tudo o que lhe acontecia daquele momento em diante estava revestido
de um significado totalmente diferente para ele. Como este novo capítulo de sua vida terminará, o futuro há
de mostrar."33
Tolstoy personificava a tensão entre o ideal e a realidade. De um lado estava convencido de que
obedecer ao Sermão do Monte é "realidade exeqüível", enquanto que, de outro lado, a sua própria atuação
medíocre dizia-lhe que não é. A verdade não se encontra em nenhuma das posições extremas. Os padrões do
Sermão não podem ser imediatamente atingidos por todo o mundo, nem totalmente alcançados por qualquer
um. Colocá-los além do alcance de qualquer pessoa é ignorar o propósito do Sermão de Cristo; colocá-los
como sendo atingíveis por qualquer pessoa é ignorar a realidade do pecado. Esses padrões são atingíveis,
mas só por aqueles que experimentaram o novo nascimento, condição esta que Jesus disse a Nicodemos ser
indispensável para se ver e para se entrar no reino de Deus. Pois a justiça que ele descreveu no Sermão é uma
justiça interior. Embora se manifeste externa e visivelmente em palavras, em atos e em relacionamentos,
continua sendo essencialmente uma justiça do coração. O que se pensa no coração, e onde o coração é
colocado, isso é o que realmente importa.34 E aqui também que jaz o problema, pois os homens são "maus"
por natureza.35 Pois é do seu coração que saem as coisas más36 e do seu coração é que saem as suas palavras,
31
32
33
A expressão é do Prof. Jeremias (p. 14).
pp. 105-148.
Penguin Classics, 1966, pp. 566-568.
cf. Mt 5:28; 6:21
35
Mt7:11
34
assim como é a árvore que estabelece os frutos que produzirá. Portanto, só há uma solução: "Fazei a árvore
boa, e o seu fruto será bom". 37 Um novo nascimento é essencial. Só a crença na necessidade e na
possibilidade de um novo nascimento pode evitar que leiamos o Sermão do Monte com um tolo otimismo ou
um desespero total. Jesus proferiu o Sermão para aqueles que já eram seus discípulos e, portanto, também
cidadãos do reino de Deus e filhos da família de Deus.38 O alto padrão que estabeleceu só é apropriado para
tais pessoas. Não podemos, e na verdade é impossível, alcançar este status privilegiado por obedecer ao
padrão estabelecido por Cristo. Antes, quando seguimos o seu padrão ou, pelo menos, quando nos aproximamos dele, damos prova de que a livre graça e o dom de Deus já operaram em nós.
Mateus 5:3-12
O caráter do cristão: as bem-aventuranças
3
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
5
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
6
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serãofartos.
7
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
8
Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
9
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
10
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
11
Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo,
disserem todo mal contra vós.
12
Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos
profetas que viveram antes de vós.
4
Quem é que, tendo ouvido falar de Jesus de Nazaré, e sabendo um pouco acerca do que ele ensinou, não
está familiarizado com as bem-aventuranças que dão início ao Sermão do Monte? A simplicidade de palavras
e a profundidade de idéias deste Sermão têm atraído cada nova geração de cristãos, além de muitas outras
pessoas. Quanto mais exploramos suas implicações, mais fica por ser explorado. Suas riquezas são
inexauríveis. Não podemos sondar suas profundezas. Na verdade, "Aproximamo-nos do céu".39
Antes de estarmos prontos para considerar separadamente cada bem-aventurança, há três perguntas de
caráter geral que precisamos responder. Referem-se às pessoas descritas, às qualidades recomendadas e às
bênçãos prometidas.
a. As pessoas descritas
As bem-aventuranças descrevem o caráter equilibrado e diversificado do povo cristão. Não existem oito
grupos separados e distintos de discípulos, alguns dos quais são mansos, enquanto outros são misericordiosos
e outros, ainda, chamados para suportarem perseguições. São, antes, oito qualidades do mesmo grupo de
pessoas que, ao mesmo tempo, são mansas e misericordiosas, humildes de espírito e limpas de coração,
choram e têm fome, são pacificadoras e perseguidas.
Além disso, o grupo que exibe estes sinais não é um conjunto elitista, uma pequena aristocracia
espiritual distante da maioria dos cristãos. Pelo contrário, as bem-aventuranças são especificações dadas pelo
próprio Cristo quanto ao que cada cristão deveria ser. Todas estas qualidades devem caracterizar todos os
seus discípulos. Da mesma forma que o fruto do Espírito, descrito por Paulo, deve amadurecer em seus nove
aspectos no caráter de cada cristão, também as oito bem-aventuranças que Cristo menciona descrevem o seu
ideal para cada cidadão do reino de Deus. Ao contrário dos dons do Espírito, que ele distribui a diferentes
membros do corpo de Cristo a fim de equipá-los para diferentes espécies de serviço, o mesmo Espírito está
interessado em produzir todas estas graças cristãs em todos nós. Não podemos fugir à nossa responsabilidade
de cobiçá-las todas.
36
cf. Mc 7:21-23.
Mt 7:16-20; 12:33-37
38
p. ex. 5:16,48; 6:9,32,33; 7:11.
39
Bruce,p.95.
37
b. As qualidades recomendadas
Sabemos muito bem que há uma discrepância, pelo menos verbal, entre as bem-aventuranças do
Evangelho de Mateus e as de Lucas. Assim, Lucas diz: "Bem-aventurados vós os pobres", enquanto que
Mateus declara: "Bem-aventurados os humildes (pobres) de espírito". Em Lucas temos: "Bem-aventurados
vós os que agora tendes fome", e em Mateus: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça".
Por causa disto, alguns argumentam que a versão de Lucas é a verdadeira; que Jesus estava julgando os
pobres e os famintos do ponto de vista social ou sociológico; que ele estava prometendo alimento aos
subnutridos e ao proletariado no reino de Deus; e que Mateus espiritualizou o que constituía originalmente
uma promessa material.
Mas esta interpretação é impossível, a não ser que estejamos prontos a crer que Jesus se contradisse ou
que os evangelistas foram demasiado ineptos para fazê-lo parecer assim. No deserto da Judéia, nas tentações
descritas por Mateus no capítulo anterior, Jesus recusou-se a transformar pedras em pão e repudiou a idéia de
estabelecer um reino material. De maneira consistente, através de todo o seu ministério, rejeitou a mesma
tentação. Quando alimentou os cinco mil e, por causa disto, induziu a multidão a "arrebatá-lo para o
proclamarem rei", Jesus imediatamente se retirou sozinho para o monte.40 E quando Pilatos perguntou-lhe se
havia qualquer verdade nas acusações dos líderes judeus contra ele, e se realmente tinha alguma ambição
política, sua resposta foi inequívoca: "O meu reino não é deste mundo."41 Isto é, tinha uma origem diferente
e, portanto, caráter diferente.
Com isso não sugerimos que Jesus ficasse indiferente à pobreza e fome físicas. Pelo contrário, ele sentia
compaixão pelos necessitados e alimentava os famintos, e disse aos seus discípulos que fizessem o mesmo.
Mas a bênção do seu reino não era em primeiro lugar uma vantagem econômica.
Mais ainda, se ele não oferecia alívio físico imediato, não o prometia tampouco num céu futuro e,
enquanto isso, anunciava que os pobres e famintos eram "bem-aventurados". Na verdade, em algumas
circunstâncias, Deus pode usar a pobreza como instrumento de bênção espiritual, exatamente como a riqueza
pode ser um impedimento à mesma. Mas isto não transforma a pobreza por si mesma em condição desejável,
que Jesus abençoe.
A igreja sempre esteve errada quando usou a primeira bem-aventurança para fechar os olhos diante da
pobreza das massas, ou para elogiar a pobreza voluntária dos monges e de outros que fizeram voto de
renúncia aos bens materiais. Cristo pode, realmente, chamar alguns para uma vida de pobreza, mas essa
chamada não pode ser, honestamente, percebida nesta bem-aventurança.
A pobreza e a fome a que Jesus se refere nas bem-aventuranças são condições espirituais. São "os
humildes (pobres) de espírito" e aqueles que "têm fome e sede de justiça" que ele declara bem-aventurados.
E podemos certamente deduzir disso que as outras qualidades por ele mencionadas também são espirituais. É
verdade que a palavra aramaica que Jesus usou poderia significar simplesmente os "pobres", como na versão
de Lucas. Mas "os pobres", os pobres de Deus, já constituíam um grupo claramente definido no Velho
Testamento, e Mateus estaria correto traduzindo para "pobres de espírito". Pois "os pobres" não eram tanto
os maltratados pela pobreza, mas os piedosos, assim chamados em parte porque passavam necessidades,
eram oprimidos, tiranizados e afligidos de outras maneiras, mas tinham firmado a sua fé e esperança em
Deus.
c. As bênçãos prometidas
Cada qualidade foi elogiada, enquanto cada pessoa que a possui foi declarada "bem-aventurada". A
palavra grega makarios significa "feliz". A Bíblia na Linguagem de Hoje assim traduz as palavras iniciais de
cada bem-aventurança: "Felizes os que . . .". E diversos comentaristas têm explicado que essas palavras
constituem a receita de Jesus para a felicidade humana. A explicação mais simples que conheço foi feita por
Ernest M. Ligon, do Departamento de Psicologia do "Union College", de Schenectady, Nova Iorque, em seu
livro The Psychology of Christian Personality42 (A Psicologia da Personalidade Cristã). Reconhecendo sua
dívida para com Harry Emerson Fosdick, ele traça a interpretação do Sermão do Monte "do ponto de vista da
saúde mental". "O erro mais significativo que se tem cometido interpretando estes versículos de Jesus (sc.
as bem-aventuranças)", ele escreve, "foi deixar de perceber a primeira palavra de cada um deles: 'felizes'"43
No seu ponto de vista, "constituem a teoria de Jesus sobre a felicidade".44 Não constituem tanto deveres
éticos, mas "uma série de oito atitudes emocionais fundamentais. O homem que reagir ao seu ambiente com
40
Jo 6:15.
Jo 18:36.
Macmillan, 1935; brochura, 1961.
43
p.89.
44
p.24.
41
42
esse espírito terá uma vida feliz",45 pois terá descoberto a "fórmula básica para a saúde mental".46 De acordo
com o Dr. Ligon, o Sermão enfatiza as "forças" da fé e do amor, da "fé experimental" e do "amor paternal".
Estes dois princípios são indispensáveis para o desenvolvimento de uma "personalidade sadia e forte".47 Não
só o caos do medo pode ser vencido pela fé, e a ira destrutiva pelo amor, mas também "o complexo de
inferioridade e seus muitos subprodutos" pela Regra Áurea.48
Não é preciso rejeitar esta interpretação como totalmente ilusória. Ninguém melhor do que o nosso
Criador sabe como podemos nos tornar humanos verdadeiros. Ele nos criou. Ele sabe como funcionamos
melhor. É através da obediência às suas próprias leis morais que nos encontramos e nos realizamos. E todos
os cristãos podem testemunhar da experiência de que há uma relação íntima entre a santidade e a felicidade.
Não obstante, traduzir makarios por "feliz" induz a um erro sério, pois a felicidade é um estado
subjetivo, enquanto que Jesus está julgando objetivamente essas pessoas. Ele não está declarando como se
sentirão ("felizes"), mas sim o que Deus pensa delas e o que são por causa disso: são "bem-aventuradas".
Que bênção é essa? A segunda parte de cada bem-aventurança elucida a questão. Possuem o reino dos
céus e herdarão a terra. Os que choram são consolados e os famintos satisfeitos. Recebem misericórdia, vêem
a Deus, são chamados filhos de Deus. Sua recompensa celestial é grande. E todas estas bênçãos estão reunidas. Exatamente como as oito qualidades descrevem cada cristão (pelo menos em ideal), da mesma forma
as oito bênçãos são concedidas a cada cristão. É verdade que a bênção específica prometida em cada caso é
apropriada à qualidade particularmente mencionada. Ao mesmo tempo, é totalmente impossível herdar o
reino dos céus sem herdar a terra, ser consolado sem ser satisfeito ou ver a Deus sem alcançar sua
misericórdia e ser chamado seu filho. As oito qualidades juntas constituem as responsabilidades; e as oito
bênçãos, os privilégios, a condição de cidadão do reino de Deus. Este é o significado do desfrutar do governo
de Deus.
Estas bênçãos são para o presente ou para o futuro? Pessoalmente, penso que a única resposta possível é
"tanto para o presente como para o futuro". Alguns comentaristas, entretanto, têm insistido que são para o
futuro, e têm enfatizado a natureza "escatológica" das bem-aventuranças. É verdade que a segunda parte da
última bem-aventurança promete que os perseguidos receberão uma grande recompensa no céu, e isto deve
referir-se ao futuro (v. 12). Certamente também é apenas na primeira e na oitava bem-aventuranças que a
bênção foi expressa no tempo presente, "deles ê o reino dos céus" (vs. 3, 10); e, mesmo assim, este verbo não
se encontrava aí quando Jesus falou em aramaico. As outras seis beatitudes contêm um verbo no futuro
simples (serão, herdarão, alcançarão). Não obstante, está claro nos demais ensinamentos de Jesus que o reino
de Deus é uma realidade presente que podemos "receber", "herdar" ou "entrar" agora. Do mesmo modo,
podemos alcançar misericórdia e consolo agora, podemos nos tornar filhos de Deus agora e podemos, nesta
vida, ter a nossa fome satisfeita e a nossa sede mitigada. Jesus prometeu todas estas bênçãos a seus discípulos
aqui e agora. A promessa de que "verão a Deus" pode parecer uma referência à "visão beatífica" final,49 e
sem dúvida a inclui. Mas nós já começamos a ver Deus nesta vida, na pessoa do seu Cristo50 e com a visão
espiritual.51 Já começamos a "herdar a terra" nesta vida, considerando que, se somos de Cristo, todas as
coisas já são nossas, "seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as cousas presentes, sejam as futuras".52
Portanto, as promessas de Jesus nas bem-aventuranças têm cumprimento presente e futuro. Desfrutamos
agora das primícias; a colheita propriamente dita ainda está por vir. E, como destacou acertadamente o
Professor Tasker, "O tempo verbal futuro. . . enfatiza sua certeza, e não simplesmente o seu aspecto futuro.
Os que choram serão certamente consolados, etc."53
Isto nos coloca diante de mais uma pergunta sobre as "bênçãos" que Jesus prometeu. É um problema
que não podemos evitar. Será que as bem-aventuranças não ensinam uma doutrina de salvação pelos méritos
humanos e pelas boas obras, o que é incompatível com o evangelho? Será que Jesus não declara explicitamente, por exemplo, que os misericordiosos alcançarão misericórdia e que os limpos de coração verão a
Deus? E será que isto não dá a entender que é demonstrando misericórdia que recebemos misericórdia e que,
tornando-nos limpos de coração, recebemos uma visão de Deus?
Alguns intérpretes têm ousadamente defendido esta tese. Tentaram apresentar o Sermão do Monte
como nada mais que uma débil forma cristianizada da lei do Velho Testamento e da ética do Judaísmo. Eis aí
Jesus, o Rabi, o legislador, dizem, enunciando mandamentos, esperando obediência e prometendo salvação
45
p.27
p.91
47
p. 18.
48
pp.332ss.
49
cf. 1 Co 13:12; Hb 12:14; 1Jo 3:2; Ap22:4
50
Jo 14:9.
51
1 Jo3:6; 3Jo 11
52
1 Co 3:22, 23.
53
pp.48,49
46
àqueles que lhe atendem. Provavelmente o expoente máximo desta opinião seja Hans Windisch, no seu The
Meaning of the Sermon on the Mount (1929, "O Significado do Sermão do Monte"). Ele enfatiza a "exegese
histórica" e rejeita o que chama de "exegese paulinizante", referindo-se à tentativa de interpretar o Sermão de
maneira que harmonize com o evangelho da graça de Paulo. Na opinião dele, isto não pode ser feito: "Do
ponto de vista de Paulo, Lutero e Calvino, a soteriologia do Sermão do Monte é irremediavelmente
herética."54 Em outras palavras, prega a lei, não o evangelho, e oferece justiça pelas obras e não pela fé.
Portanto, "aqui há entre Jesus e Paulo um abismo que nenhum artifício de exegese teológica pode transpor".55 Mas Windisch vai mais além. Especula que a ênfase de Paulo sobre a salvação pela graça tem levado
muitos a considerar as boas obras como supérfluas, e que Mateus deliberadamente compôs o Sermão do
Monte como uma espécie de tratado anti-paulino! 56
Foi esse mesmo temor de que as promessas do Sermão do Monte dependessem dos méritos humanos
para o seu cumprimento, que levou J. N. Darby a relegá-las para a futura "dispensação do reino". Seu
dispensacionalismo ficou popularizado pela "Scofield Reference Bible" (1909), a qual, comentando 5:2,
chama o Sermão de "lei pura", embora admitindo que os seus princípios têm "uma linda aplicação moral para
o cristão".
Mas tanto as especulações de Windisch quanto os temores dos dispensacionalistas são infundados. Na
verdade, a primeira das bem-aventuranças proclama a salvação pela graça e não pelas obras, pois ela promete
o reino de Deus aos "humildes de espírito", isto é, às pessoas que são tão pobres espiritualmente que nada
têm a oferecer para mérito seu. O leitor pode imaginar com que veemente indignação Lutero repudiou a
sugestão, feita por alguns contemporâneos seus, de que o Sermão do Monte ensina a salvação pelos méritos!
Acrescentou à sua exposição um longo pós-escrito de dez páginas, a fim de se opor a esta idéia monstruosa.
Nele, criticou severamente "aqueles estúpidos falsos mestres" que "chegaram à conclusão de que entramos
no reino dos céus e somos salvos por nossas próprias obras e ações". 57 Esta "abominação dos sofistas" inverte
o evangelho de tal forma, ele declara, que "se compara a jogar o telhado no chão, a tombar os alicerces, a
edificar a salvação sobre simples água, a derrubar Cristo completamente do seu trono, colocando em seu
lugar as nossas obras".58
Como, então, podemos explicar as expressões que Jesus usou nas bem-aventuranças, toda a ênfase que
deu à justiça no Sermão? A resposta certa parece ser que o Sermão do Monte, como uma espécie de "nova
lei", igual à antiga, tem dois propósitos divinos, os quais o próprio Lutero entendia claramente. Primeiro,
mostrar a quem não é cristão que não pode agradar a Deus por si mesmo (porque não consegue obedecer à
lei), conduzindo-o, então, a Cristo para ser justificado. Segundo, mostra ao cristão, que buscou em Cristo a
justificação, como deve viver para agradar a Deus. Mais simplesmente, de acordo com a síntese dos
reformadores puritanos, a lei nos envia a Cristo para sermos justificados, e Cristo nos manda de volta à lei
para sermos santificados.
Não pode haver dúvidas de que o Sermão do Monte tem, sobre muitas pessoas, o primeiro efeito já
notado. Quando o lêem, ficam desesperadas. Vêem nele um ideal inatingível. Como poderiam desenvolver
esta justiça de coração, voltar a outra face, amar os seus inimigos? E impossível! Exatamente! Neste sentido,
o Sermão é "Moisíssimo Moisés" (expressão de Lutero); "é Moisés quadruplicado, é Moisés multiplicado ao
mais alto grau",59 porque é uma lei de justiça interior a que nenhum filho de Adão jamais pode obedecer.
Portanto, apenas nos condena e torna indispensável o perdão de Cristo. Não poderíamos dizer que esta é uma
parte do propósito do Sermão? É verdade que Jesus não o disse explicitamente, embora esteja na primeira
bem-aventurança, como já mencionamos. Mas a implicação está em toda a nova lei, exatamente como na
antiga.
Lutero é ainda mais explícito quanto ao segundo propósito do Sermão: "Cristo nada diz neste Sermão
sobre como nos tornamos cristãos, mas apenas sobre as obras e os frutos que ninguém pode produzir se já
não for um cristão e não estiver em estado de graça."60 Todo o Sermão realmente pressupõe uma aceitação
do evangelho (como Crisóstomo e Agostinho o entenderam), uma experiência de conversão e de novo
nascimento, e a habitação do Espírito Santo. Descreve as pessoas nascidas de novo que os cristãos são (ou
deveriam ser). Portanto, as bem-aventuranças apresentam as bênçãos que Deus concede (não como uma
recompensa aos méritos, mas como um dom da graça) àqueles nos quais ele está desenvolvendo um caráter
assim.
54
p.6.
P-107
Por exemplo, Windisch, p. 96. W. D. Davies examina e rejeita esta reconstrução; pp. 316-341.
57
p. 285
58
p. 288.
59
Jeremias, p. 12.
60
p. 291.
55
56
O Professor Jeremias, que se refere à primeira explicação ("a teoria do ideal impossível"), chamando-a
de "ortodoxia luterana",61 deixando de mencionar que o próprio Lutero também deu esta segunda explicação,
sugere que o Sermão foi usado como "um catecismo cristão primitivo" e, portanto, pressupõe que os ouvintes
já eram cristãos: "Foi precedido pela proclamação do Evangelho; e foi precedido pela conversão, pelo poder
das Boas Novas."62 Assim, o Sermão "foi dirigido a homens que já tinham recebido o perdão, que
encontraram a pérola de grande preço, que foram convidados para as bodas, que mediante a sua fé em Jesus
pertenciam à nova criação, ao novo mundo de Deus". 63 Neste sentido, então, "o Sermão do Monte não é Lei,
mas Evangelho". Para tornar clara a diferença entre ambos, ele prossegue, é preciso fugir de termos tais
como "moralidade cristã", falando, outrossim, em "fé vivida", pois "fica claramente explícito que o dom de
Deus precede suas exigências".64
O Professor A. M. Hunter insere este assunto no contexto de todo o Novo Testamento: "O Novo
Testamento torna claro que a mensagem da Igreja primitiva sempre . . . teve dois aspectos, um teológico,
outro ético: (1) o Evangelho que os apóstolos pregavam; e (2) o Mandamento, produto do Evangelho, que
eles ensinavam àqueles que aceitavam esse Evangelho. O Evangelho era uma declaração do que Deus, na sua
graça, tinha feito pelos homens através de Cristo; o Mandamento era uma declaração do que Deus exigia dos
homens que se tornaram objeto de sua graciosa ação."65 O apóstolo Paulo costumava dividir as suas cartas
desse jeito, com uma parte doutrinária seguida de outra, prática. "Mas nisto", continua Hunter, "Paulo só
estava fazendo o que o seu Senhor fizera antes dele. Jesus não só proclamou que o reino de Deus viera com
ele e com sua obra; também apresentou aos seus discípulos o ideal moral do reino . . . É o ideal esboçado no
Sermão do Monte".66
Resumindo estes três pontos introdutórios relacionados com as bem-aventuranças, podemos dizer que
as pessoas descritas são de modo geral os discípulos cristãos, pelo menos em ideal; que as qualidades
elogiadas são qualidades espirituais; e que as bênçãos prometidas(como dons da graça imerecida) são as bênçãos gloriosamente compreendidas pelo governo de Deus, experimentadas agora e consumadas depois,
incluindo a herança de ambos, terra e céu, consolo, satisfação e misericórdia, visão e filiação de Deus.
Agora estamos prontos para examinar detalhadamente as bem-aventuranças. Diversas tentativas de
classificação foram experimentadas. Não são certamente um catálogo fortuito, mas, nas palavras de
Crisóstomo, "uma espécie de cadeia de ouro". 67 Talvez a divisão mais simples seja considerar as quatro
primeiras descritivas do relacionamento do cristão com Deus, e as outras quatro, do seu relacionamento e
deveres para com o próximo.
1. Os humildes de espírito (v. 3)
Já mencionamos que o Velho Testamento fornece os antecedentes necessários para a interpretação desta
bem-aventurança. No princípio, ser "pobre" significava passar necessidades literalmente materiais. Mas,
gradualmente, porque os necessitados não tinham outro refúgio a não ser Deus,68 a "pobreza" recebeu
nuances espirituais e passou a ser identificada como uma humilde dependência de Deus. Por isso o salmista
intitulou-se "este aflito" que clamou a Deus em sua necessidade, "e o Senhor o ouviu, e o livrou de todas as
suas tribulações".69 O "aflito" (homem pobre) no Velho Testamento é aquele que está sofrendo e não tem
capacidade de salvar-se por si mesmo e que, por isso, busca a salvação de Deus, reconhecendo que não tem
direito à mesma. Esta espécie de pobreza espiritual foi especialmente elogiada em Isaías. São "os aflitos e
necessitados", que "buscam águas, e não as há", cuja "língua se seca de sede", aos quais Deus promete abrir
"rios nos altos desnudos, fontes no meio dos vales" e tornar "o deserto em açudes de águas, e a terra seca em
mananciais".70 O "pobre" também foi descrito como "o contrito e abatido de espírito", para quem Deus olha
(embora seja "o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo"), e com quem se
deleita em habitar.71 É para esse que o ungido do Senhor proclamaria as boas novas da salvação, uma
profecia que Jesus conscientemente cumpriu na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque o Senhor me ungiu, para pregar boas-novas aos quebrantados."72 Mais ainda, os ricos inclinavam-se a
61
p. 11.
p. 24.
p. 30.
64
p.32
65
p. 110.
66
pp. 110,111.
67
p.209.
68
Sf3:12.
69
S134:6.
70
Is 41:17,18.
71
Is57:15;66:l,2.
72
Is 61:1; Lc 4:18; cf. Mt 11:5.
62
63
transigir com o paganismo que os rodeava; eram os pobres que permaneciam fiéis a Deus. Por isso, a riqueza
e o mundanismo, bem como a pobreza e a piedade, andavam juntas.
Assim, ser "humilde (pobre) de espírito" é reconhecer nossa pobreza espiritual ou, falando claramente, a
nossa falência espiritual diante de Deus, pois somos pecadores, sob a santa ira de Deus, e nada merecemos
além do juízo de Deus. Nada temos a oferecer, nada a reivindicar, nada com que comprar o favor dos céus.
"Nada em minhas mãos eu trago, Simplesmente à tua cruz me apego; Nu, espero que me vistas;
Desamparado, aguardo a tua graça; Mau, à tua fonte corro; Lava-me, Salvador, ou morro."
Esta é a linguagem do pobre (humilde) de espírito. Nosso lugar é ao lado do publicano da parábola de
Jesus, clamando com os olhos baixos: "Deus, tem misericórdia de mim, pecador!" Como Calvino escreveu:
"Só aquele que, em si mesmo, foi reduzido a nada, e repousa na misericórdia de Deus, é pobre de espírito."73
Esses, e tão somente esses, recebem o reino de Deus. Pois o reino de Deus que produz salvação é um
dom tão absolutamente de graça quanto imerecido. Tem de ser aceito com a dependente humildade de uma
criancinha. Assim, bem no começo do Sermão do Monte, Jesus contradisse todos os juízos humanos e todas
as expectativas nacionalistas do reino de Deus. O reino é concedido ao pobre, não ao rico; ao frágil, não ao
poderoso; às criancinhas bastante humildes para aceitá-lo, não aos soldados que se vangloriam de poder obtêlo através de sua própria bravura. Nos tempos de nosso Senhor, quem entrou no reino não foram os fariseus,
que se consideravam ricos, tão ricos em méritos que agradeciam a Deus por seus predicados: nem os zelotes,
que sonhavam com o estabelecimento do reino com sangue e espada; mas foram os publicanos e as
prostitutas, o refugo da sociedade humana, que sabiam que eram tão pobres que nada tinham para oferecer
nem para receber. Tudo o que podiam fazer era clamar pela misericórdia de Deus; ele ouviu o seu clamor.
Talvez o melhor exemplo desta mesma verdade seja a igreja nominal de Laodicéia, à qual João recebeu
ordem de enviar uma carta do Cristo glorificado. Ele citou as complacentes palavras dela, e acrescentou o
seu próprio comentário: "Pois dizes: Estou rico e abastado, e não preciso de cousa alguma, e nem sabes que
tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu."74 Esta igreja visível, apesar de toda a sua profissão cristã, não
era de modo algum verdadeiramente cristã. Auto-satisfeita e superficial, era composta (de acordo com Jesus)
de cegos e mendigos nus. Mas a tragédia era que não o admitiam. Eram ricos, não pobres, de espírito.
Ainda hoje, a condição indispensável para se receber o reino de Deus é o reconhecimento de nossa
pobreza espiritual. Deus continua despedindo vazios os ricos. 75 Como disse C. H. Spurgeon: "Para subirmos
no reino é preciso rebaixarmo-nos em nós mesmos."76
2. Os que choram (v. 4)
Quase que se poderia traduzir esta segunda bem-aventurança por "Felizes os infelizes", a fim de chamar
a atenção para o surpreendente paradoxo que contém. Que espécie de tristeza é essa que pode produzir a
alegria da bênção de Cristo naqueles que a sentem? Está claro no contexto que aqueles que receberam a
promessa do consolo não são, em primeiro lugar, os que choram a perda de uma pessoa querida, mas aqueles
que choram a perda de sua inocência, de sua justiça, de seu respeito próprio. Cristo não se refere à tristeza do
luto, mas à tristeza do arrependimento.
Este é o segundo estágio da bênção espiritual. Uma coisa é ser espiritualmente pobre e reconhecê-lo;
outra é entristecer-se e chorar por causa disto. Ou, numa linguagem mais teológica, confissão é uma coisa,
contrição é outra.
Precisamos, então, notar que a vida cristã, de acordo com Jesus, não é só alegria e risos. Há cristãos que
parecem imaginar, especialmente se estão cheios do Espírito, que devem exibir um sorriso perpétuo no rosto
e viver continuamente exuberantes e borbulhantes. Que atitude antibíblica! Na versão de Lucas, Jesus
acrescentou a esta bem-aventurança uma solene advertência: "Ai de vós os que agora rides!"77 A verdade é
que existem lágrimas cristãs e são poucos os que as vertem.
Jesus chorou pelos pecados de outros, pelas amargas conseqüências que trariam no juízo e na morte, e
pela cidade impenitente que não o receberia. Nós também deveríamos chorar mais pela maldade do mundo,
como os homens piedosos dos tempos bíblicos. "Torrentes de águas nascem dos meus olhos", o salmista
podia dizer a Deus, "porque os homens não guardam a tua lei". 78 Ezequiel ouviu o povo de Deus descrito
como aqueles que "suspiram e gemem por causa de todas as abominações que se cometem no meio (de
Jerusalém)".79 E Paulo escreveu sobre os falsos mestres que perturbavam as igrejas do seu tempo: "Pois
73
p. 261.
Ap3:17.
Lc 1:53
76
p. 21.
77
Lc 6:25.
78
SI 119:136
79
Ez9:4.
74
75
muitos andam entre nós . . . e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo."80
Mas não são apenas os pecados dos outros que deveriam nos levar às lágrimas, pois temos os nossos
próprios pecados para chorar. Ou será que eles nunca nos entristeceram? Será que Thomas Cranmer
exagerou quando, num culto comemorando a Ceia do Senhor, em 1662, colocou nos lábios das pessoas da
igreja as palavras: "Reconhecemos e lamentamos nossos múltiplos pecados e maldades"? Será que Esdras
errou quando orava fazendo confissão, "chorando prostrado diante da casa de Deus"?81 Será que Paulo errou
ao gemer: "Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" e quando escreveu à
pecadora igreja de Corinto: "Não chegastes a lamentar?"82 Penso que não. Temo que os cristãos evangélicos,
exagerando a graça, às vezes fazem pouco do pecado por causa disso. Não existe suficiente tristeza por causa
do pecado entre nós. Deveríamos experimentar mais "tristeza segundo Deus" no arrependimento cristão,83
como aconteceu com o sensível missionário cristão junto aos índios americanos do século dezoito, David
Brainerd, que escreveu em seu diário, a 18 de outubro de 1740: "Em minhas devoções matinais minha alma
desfez-se em lágrimas, e chorou amargamente por causa da minha extrema maldade e vileza." Lágrimas
como estas são a água santa que se diz Deus guardar em seu odre.84
Tais pessoas que choram, que lamentam a sua própria maldade, serão consoladas pelo único consolo
que pode aliviar o seu desespero, isto é, o perdão da graça de Deus. "O maior de todos os consolos é a
absolvição enunciada sobre cada pecador contrito que chora."85 "Consolação" de acordo com os profetas do
Velho Testamento, seria uma das missões do Messias. Ele seria "o Consolador" que curaria "os quebrantados
de coração".86 Por isso, homens piedosos como Simeão esperavam ansiosos "a consolação de Israel".87 E
Cristo derrama óleo sobre nossas feridas e concede paz às nossas consciências magoadas e marcadas. Mas
ainda choramos pela devastação do sofrimento e da morte que o pecado alastra pelo mundo inteiro! Só no
estado final de glória o consolo de Cristo será completo, pois só então o pecado não existirá mais e "Deus
lhes enxugará dos olhos toda lágrima".88
3. Os mansos (v. 5)
O adjetivo grego praüs significa "gentil", "humilde", "atencioso", "cortês" e, portanto, o que exerce
autocontrole, sem o qual estas qualidades seriam impossíveis. Embora imediatamente recuemos ante a
imagem de nosso Senhor quando intitulado "Jesus, suave e meigo", porque evoca uma figura fraca e
efeminada, ele mesmo descreveu-se como "manso (praüs) e humilde de coração"; e Paulo falou de sua
"mansidão e benignidade".89 Portanto, lingüisticamente falando, podemos parafrasear esta bem-aventurança
dizendo: "aqueles que têm um espírito gentil". Mas que espécie de gentileza é esta, para que seus possuidores
sejam declarados bem-aventurados?
(Parece importante notar que, nas bem-aventuranças, "os mansos" encontram-se entre aqueles que
choram por causa do pecado e entre aqueles que têm fome e sede de justiça. A forma particular de mansidão
que Cristo exige de seus discípulos está certamente relacionada com esta seqüência. Creio que o Dr. Martin
Lloyd-Jones está certo ao enfatizar que essa mansidão denota uma atitude humilde e gentil para com os
outros, determinada por uma estimativa correta de si mesmo. Ele destaca que é comparativamente fácil ser
honesto consigo mesmo diante de Deus e se reconhecer pecador diante dele. E prossegue: "Mas como é
muito mais difícil permitir que as outras pessoas digam uma coisa dessas de mim! Instintivamente eu me
ofendo. Todos nós preferimos nos condena"r a nós mesmos do que permitir que outra pessoa nos condene."90
Por exemplo, vamos aplicar este princípio à prática eclesiástica cotidiana. Sinto-me muito feliz ao
recitar a confissão de pecados na igreja, chamando-me de "miserável pecador". Não há problema algum.
Nem me incomodo. Mas se alguém vier a mim, depois do culto, e me chamar de miserável pecador, vou
querer dar-lhe um soco no nariz! Em outras palavras, não estou preparado para permitir que outras pessoas
pensem ou falem de mim aquilo que acabei de reconhecer diante de Deus. É uma grande hipocrisia, e sempre
será, quando a mansidão estiver ausente. O Dr. Lloyd-Jones resume isso admiravelmente: "A mansidão é, em
essência, a verdadeira visão que temos de nós mesmos, e que se expressa na atitude e na conduta para com os
outros . . . O homem verdadeiramente manso é aquele que fica realmente pasmo ante o fato de Deus e os
80
Fp3:18.
Ed 10:l.
Rm 7:24; 1 Co5:2; cf. 2 Co 12:21.
83
2 Co 7:10.
84
Sl 56:8.
85
Lenski, p. 187.
86
Is 61:1; cf. 40:1.
87
Lc 2:25.
88
Ap7:17.
89
Mt 11:29; 2Co 10:1; cf.Zc9:9.
90
p. 65.
81
82
homens poderem pensar dele tão bem quanto pensam, e de que o tratem tão bem.91 Isto o torna gentil,
humilde, sensível, paciente em todos os seus relacionamentos com os outros.
Essas pessoas "mansas", Jesus acrescentou, "herdarão a terra". Era de se esperar o contrário. Achamos
que as pessoas "mansas" nada conseguem porque são ignoradas por todos, ou, então, tratadas com
descortesia ou desprezo. São os valentões, os arrogantes, que vencem na luta pela existência; os covardes são
derrotados. Até mesmo os filhos de Israel tiveram de lutar por sua herança, embora o Senhor seu Deus lhes
desse a terra prometida. Mas a condição pela qual tomamos posse de nossa herança espiritual em Cristo não
é a força, mas a mansidão, pois, conforme já vimos, tudo é nosso se somos de Cristo.92
Era esta a confiança dos homens de Deus, santos e humildes, no Velho Testamento, quando os
perversos pareciam triunfar. Isto jamais foi expresso com mais exatidão do que no Salmo 37, o qual parece
que Jesus citou nas bem-aventuranças: "Não te indignes por causa dos malfeitores ... os mansos herdarão a
terra . . . Aqueles a quem o Senhor abençoa possuirão a terra . . . Espera no Senhor, segue o seu caminho, e
ele te exaltará para possuíres a terra; presenciarás isso quando os ímpios forem exterminados."93 O mesmo
princípio continua operando hoje em dia. Os ímpios podem vangloriar-se e exibir-se, mas a verdadeira
possessão foge ao seu controle. Os mansos, por outro lado, embora sejam despojados e privados dos seus
direitos pelos homens, sabem o que é viver e reinar com Cristo, e podem desfrutar e até mesmo "possuir" a
terra, a qual pertence a Cristo. Então, no dia da "regeneração", haverá "um novo céu e uma nova terra" para
herdar.94 Portanto, o caminho de Cristo é diferente do caminho do mundo, e cada cristão, mesmo sendo como
Paulo e "nada tendo", pode dizer-se "possuindo tudo".95 Conforme Rudolf Stier: "A auto-renúncia é o
caminho para o domínio do mundo."96
4. Os que têm fome e sede de justiça (v. 6)
Já no cântico de Maria, o Magnificat, os espiritualmente humildes e famintos foram associados, e
ambos declarados bem-aventurados: pois Deus "encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos".97
Este princípio generalizado ficou aqui particularizado. Os famintos e os sedentos que Deus satisfaz são
aqueles que "têm fome e sede de justiça". Tal fome espiritual é uma característica do povo de Deus, cuja
ambição suprema não é material, mas espiritual. Os cristãos não são como os pagãos, que vivem absorvidos
pela busca dos bens materiais; eles se determinaram a "buscar primeiro" o reino de Deus e a sua justiça.98
A justiça na Bíblia tem pelo menos três aspectos: o legal, o moral e o social. A justiça legal é a
justificação, um relacionamento certo com Deus. Os judeus "buscavam a lei da justiça", escreveu Paulo mais
tarde, mas não a alcançaram porque a buscaram pelo modo errado. Procuraram "estabelecer a sua própria"
justiça e "não se sujeitaram à que vem de Deus", que é o próprio Cristo. 99 Alguns comentaristas acham que
Jesus se refere a isso, mas é provável que não, pois Jesus está se dirigindo àqueles que já lhe pertencem.
A justiça moral é aquela justiça de caráter e de conduta que agrada a Deus. Jesus prossegue, depois das
bem-aventuranças, contrastando essa justiça cristã com a do fariseu (v. 20). Esta última era uma
conformidade exterior às regras; a primeira é uma justiça interior, do coração, da mente e das motivações. É
desta que devemos sentir fome e sede.
É um erro, entretanto, supor que a palavra bíblica "justiça" significa apenas um relacionamento correto
com Deus, de um lado, e uma justiça moral de caráter e conduta, do outro. Pois a justiça bíblica é mais do
que um assunto particular e pessoal; inclui também a justiça social. E a justiça social, conforme aprendemos
na lei e nos profetas, refere-se à busca pela libertação do homem da opressão, junto com a promoção dos
direitos civis, da justiça nos tribunais, da integridade nos negócios e da honra no lar e nos relacionamentos
familiares. Assim, os cristãos estão empenhados em sentir fome de justiça em toda a comunidade humana
para agradar a um Deus justo.
Lutero expressou este conceito com o costumeiro vigor: "A ordem para você não é rastejar para um
canto ou para o deserto mas, sim, sair correndo e oferecer as suas mãos e os seus pés e todo o seu corpo, e
empenhar tudo o que você tem e pode fazer."62 É preciso ter, ele prossegue, "uma fome e sede de justiça que
jamais possam ser reprimidas, ou sustadas, ou saciadas, que não procurem nada e não se importem com nada
a não ser com a realização e a manutenção do que é justo, desprezando tudo o que possa impedir a sua
91
pp.68,69.
1CO 3:22.
93
Sl 37:1,11, 22,34; cf. Is 57:13; 60:21.
94
Mt 19:28, literalmente; 2 Pe 3:13; Ap 21:1.
95
2 Co 6:10.
96
p. 105.
97
Lc 1:53.
98
Mt 6:33.
99
cf. Rm 9:30-10:4.
92
consecução. Se você não puder tornar o mundo completamente piedoso, então faça o que você puder."100
"Talvez não exista um segredo maior no progresso da vida cristã do que um apetite sadio e robusto. As
Escrituras repetem muitas vezes as promessas aos famintos. Deus "dessedentou a alma sequiosa e fartou de
bens a alma faminta". 101 Se estamos conscientes de um crescimento lento, não será devido a um apetite
embotado? Não basta chorar o pecado cometido no passado; precisamos também ter fome de justiça futura.
Mas, nesta vida, a nossa fome nunca será totalmente satisfeita, nem a nossa sede plenamente mitigada.
É verdade que recebemos a satisfação que a bem-aventurança promete. Mas a nossa fome é satisfeita apenas
para tornar a se manifestar. Até mesmo a promessa de Jesus, de que todo aquele que beber da água que ele dá
"nunca mais terá sede", só é cumprida se continuarmos bebendo.102 Cuidado com aqueles que proclamam
estar satisfeitos e que olham para as experiências do passado mais do que para o desenvolvimento do futuro!
Como todas as qualidades incluídas nas bem-aventuranças, a fome e a sede são características perpétuas dos
discípulos de Jesus, tão perpétuas como a humildade de espírito, a mansidão e as lágrimas. Só lá no céu
"jamais terão fome" e "nunca mais terão sede", pois só então Cristo, nosso Pastor, nos levará às "fontes da
água da vida".103
Mais do que isso, Deus prometeu um dia de juízo, em que a justiça triunfará e a injustiça será derrotada,
e após o qual haverá "novos céus e nova terra, nos quais habita justiça".104 Por esta vindicação final da justiça
também aspiramos e não seremos desapontados.
Voltando os olhos para trás, podemos ver que as quatro primeiras bem-aventuranças revelam uma
progressão espiritual de inexorável lógica. Cada passo conduz ao seguinte e pressupõe o anterior.
Começando, temos de ser "humildes de espírito", reconhecendo nossa completa e total falência espiritual
diante de Deus. Depois, temos de "chorar" por causa disto, por causa dos nossos pecados, sim, por causa do
nosso pecado: a corrupção de nossa natureza decaída, e o poder do pecado e da morte no mundo. Terceiro,
temos de ser "mansos", humildes e gentis para com os outros, permitindo que nossa pobreza espiritual
(confessada e chorada) condicione o nosso comportamento em relação a eles e também para com Deus. E,
quarto, temos de ter "fome e sede de justiça". Pois de que vale confessar e lamentar o nosso pecado, ou
reconhecer a verdade a nosso respeito diante de Deus e dos homens, se pararmos aí? A confissão do pecado
deve levar à fome de justiça.
Na segunda metade das bem-aventuranças (as quatro últimas), parece que nos afastamos ainda mais de
nossa atitude para com Deus e nos voltamos para os seres humanos. Certamente os "misericordiosos"
demonstram misericórdia para com os homens, e os "pacificadores" procuram reconciliar os homens uns
com os outros, e aqueles que são "perseguidos" são perseguidos por homens. Do mesmo modo, parece que a
sinceridade demonstrada na "pureza do coração" também diz respeito à nossa atitude e ao nosso
relacionamento com os demais seres humanos.
5. Os misericordiosos (v. 7)
"Misericórdia" é compaixão pelas pessoas que passam necessidade. Richard Lenski proveitosamente
distinguiu-a da "graça": "O substantivo eleos (misericórdia) . . . sempre trata da dor, da miséria e do
desespero, que são resultados do pecado; e charis (graça) sempre lida com o pecado e com a culpa
propriamente ditos. A primeira concede alívio; a segunda, perdão; a primeira cura e ajuda, a segunda purifica
e reintegra."105
Aqui, Jesus não especifica as categorias de pessoas que tinha em mente e a quem os seus discípulos
deveriam demonstrar misericórdia. Não indica se está pensando principalmente naqueles que foram
derrotados pela desgraça, corno o viajante que ia de Jerusalém a Jericó e foi assaltado e a quem o bom
samaritano "demonstrou misericórdia"; ou se pensa nos famintos, nos doentes e nos rejeitados pela
sociedade, dos quais ele mesmo costumava apiedar-se; ou ainda naqueles que nos fazem mal, de modo que a
Justiça clama por castigo, mas a misericórdia concede perdão. Não havia necessidade de Jesus desenvolver o
assunto. Nosso Deus é um Deus misericordioso e dá provas de misericórdia continuamente; os cidadãos do
seu reino também devem demonstrar misericórdia.
Naturalmente, o mundo (pelo menos quando é fiel à sua própria natureza) é cruel, como também a
Igreja freqüentemente o tem sido em seu mundanismo. O mundo prefere isolar-se da dor e da calamidade dos
homens. Acha que a vingança é deliciosa e que o perdão é sem graça quando comparado a ela. Mas os que
demonstram misericórdia encontram misericórdia. "Felizes os que tratam os outros com misericórdia —
100
p.27
Sl 107:9.
Jo4:13, 14; 7:37.
103
Ap 7:16, 17.
104
2Pe3:13.
105
p. 191.
101
102
Deus os tratará com misericórdia também! (BLH).106 Não que possamos merecer a misericórdia através da
misericórdia, ou o perdão através do perdão, mas porque não podemos receber a misericórdia e o perdão de
Deus se não nos arrependermos, e não podemos proclamar que nos arrependemos de nossos pecados se não
formos misericordiosos para com os pecados dos outros. Nada nos impulsiona mais ao perdão do que o
maravilhoso conhecimento de que nós mesmos fomos perdoados. Nada prova mais claramente que fomos
perdoados do que a nossa própria prontidão em perdoar. Perdoar e ser perdoado, demonstrar misericórdia e
receber misericórdia andam indissoluvelmente juntos, como Jesus ilustrou em sua parábola do credor
incompassivo.107 Ou, interpretando no contexto das bem-aventuranças, "o manso" também é "o
misericordioso". Pois ser manso é reconhecer diante dos outros que nós somos pecadores; ser misericordioso
é ter compaixão pelos outros, pois eles também são pecadores.
6. Os limpos de coração (v. 8)
Fica imediatamente óbvio que as palavras "de coração" indicam a que espécie de pureza Jesus se refere,
assim como as palavras "de espírito" indicam o tipo de humildade que ele tinha em mente. Os "humildes de
espírito" são os espiritualmente pobres, que diferem daqueles cuja pobreza é apenas material. De quem,
então, os "limpos de coração" estão sendo distinguidos?
A interpretação popular considera a pureza de coração como uma expressão de pureza interior, a
qualidade daqueles que foram purificados da imundície moral, em oposição à imundície cerimonial. E temos
bons antecedentes bíblicos acerca disso, especialmente nos Salmos. Sabe-se que ninguém podia subir ao
monte do Senhor ou ficar no seu santo lugar se não fosse "limpo de mãos e puro de coração". Por isso Davi,
consciente de que o seu Senhor desejava "a verdade no íntimo", orou: "Cria em mim, ó Deus, um coração
puro, e renova dentro em mim um espírito inabaljavel."108 Jesus adotou este tema na sua controvérsia com os
fariseus e queixou-se da obsessão deles pelo exterior e pela pureza cerimonial: "Vós, fariseus, limpais o
exterior do copo e do prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e perversidade." Eles eram como
"sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de hipocrisia e de
iniqüidade".109
Lutero deu a esta diferença entre a pureza interior e a exterior uma interpretação caracteristicamente
natural, contrastando a pureza de coração não só com a contaminação cerimonial, mas também com a
simples sujeira física. "Cristo . . . quer um coração limpo, embora exteriormente a pessoa possa estar confinada à cozinha encardida e cheia de fuligem, fazendo toda espécie de trabalho sujo."110 E novamente:
"Embora um trabalhador comum, um sapateiro ou um ferreiro possa estar sujo e cheio de fuligem ou mesmo
cheirar mal porque está coberto de pó e piche, . . . e embora cheire mal externamente, no interior é puro
incenso diante de Deus" porque, em seu coração, medita na palavra do Senhor e lhe obedece. 111
Esta ênfase dada ao interior e à moral, quando comparado com o exterior e cerimonial, ou com o
exterior e físico, certamente torna-se consistente com o todo do Sermão do Monte, que exige justiça de
coração em lugar de simples justiça proveniente de regras. Não obstante, no contexto das outras bemaventuranças, "pureza de coração" parece referir-se, num certo sentido, aos nossos relacionamentos . O
Professor Tasker define os limpos de coração como "os íntegros, livres da tirania e um 'eu' dividido".112
Neste caso, o coração limpo é o coração sincero que abre o caminho para o "olho bom" mencionado por
Jesus no capítulo seguinte. 113
Mais precisamente, a referência primária é à sinceridade. Já no Salmo 24, nos versículos que citamos, a
pessoa "limpa de mãos e pura de coração" é aquela "que não entrega a sua alma à falsidade (sc. um ídolo),
nem jura dolosamente" (v. 4). Isto é, em seu relacionamento com Deus e com o homem, está livre de
falsidade. Portanto, os limpos de coração são os inteiramente sinceros. Toda a sua vida, pública e particular,
é transparente diante de Deus e dos homens. O íntimo do seu coração, incluindo pensamentos e motivações,
é puro, sem mistura de nada que seja desonesto, dissimulado ou desprezível. A hipocrisia e a fraude lhes são
repugnantes, e não têm malícia.
Contudo, como são poucos os que, dentre nós, vivem uma vida aberta! Somos tentados a usar uma
máscara diferente e a representar um papel diferente, de acordo com cada ocasião. Isto não ê realidade, mas
representação, que é a essência da hipocrisia. Algumas pessoas tecem à sua volta um tal emaranhado de
106
6:14
Mt 18:21-35
108
Sl 24:3,4; 51:6,10; cf. Sl 73:1; At 15:9; 1 Tm 1:5.
109
Lc 11:39; Mt 23:25-28.
110
p. 33.
111
p. 50; cf. Sl 86:11, 12
112
p.34.
113
6:22.
107
mentiras que já não conseguem mais dizer qual a parte real e qual a criada pela imaginação. Só Jesus Cristo,
entre os homens, foi absolutamente limpo de coração, foi inteiramente sem malícia.
Só os limpos de coração verão a Deus (vêem-no agora com os olhos da fé e, no porvir, verão a sua
glória), pois só os totalmente sinceros podem suportar a deslumbrante visão, em cuja luz as trevas da mentira
têm de se desvanecer, e em cujas chamas todas as simulações são consumidas.
7. Os pacificadores (v. 9)
A seqüência de idéias — de "limpos de coração" para "pacificadores" — é natural, pois uma das mais
freqüentes causas de conflito é a intriga, enquanto que a franqueza e a sinceridade são essenciais a todas as
reconciliações verdadeiras.
Cada cristão, de acordo com esta bem-aventurança, tem de ser um pacificador, tanto na igreja como na
sociedade. É verdade que Jesus diria mais tarde que não viera "trazer paz, mas espada", pois veio "causar
divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra", de modo que os inimigos
do homem seriam "os da sua própria casa".114 E com isso ele queria dizer que o conflito seria o resultado
inevitável da sua vinda, até mesmo dentro da família, e que, para sermos dignos dele, teríamos de amá-lo
mais e colocá-lo em primeiro lugar, até mesmo acima de nossos entes mais próximos e mais queridos.115
Entretanto fica mais do que explícito, através dos ensinamentos de Jesus a seus apóstolos, que jamais
deveríamos nós mesmos procurar o conflito ou ser responsáveis por ele. Pelo contrário, somos chamados
para pacificar, devemos ativamente "buscar" a paz, "seguir a paz com todos" e, até onde depender de nós,
"ter paz com todos os homens".116
Mas a pacificação é uma obra divina, pois paz significa reconciliação, e Deus é o autor da paz e da
reconciliação. Na verdade, exatamente o mesmo verbo que foi usado nesta bem-aventurança o apóstolo
Paulo aplicou ao que Deus fez através de Cristo. Através de Cristo, Deus se agradou em "reconciliar consigo
mesmo todas as cousas", "havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz". E o propósito de Cristo foi "que dos
dois (sc. judeu e gentio) criasse em si mesmo novo homem, fazendo a paz".117 Portanto, quase não nos
surpreende que a bênção particularmente associada aos pacificadores é que eles "serão chamados filhos de
Deus", pois estão procurando fazer o que seu Pai fez, amando as pessoas com o amor dele, como Jesus logo
tornaria explícito.118 O diabo é que é agitador; Deus ama a reconciliação e, através dos seus filhos, tal como
fez antes através do seu Filho unigênito, está inclinado a fazer a paz.
Isto nos faz lembrar que as palavras "paz" e "apaziguamento" não são sinônimas; e a paz de Deus não é
paz a qualquer preço. Ele fez a paz conosco a um preço imenso, o preço do sangue que era a vida do seu
Filho unigênito. Nós também, embora em escala menor, vamos descobrir que fazer a paz é um empreendimento custoso. Dietrich Bonhoeffer tornou-nos familiarizados com o conceito de "graça barata";119 existe
também um tipo de "paz barata". Proclamar "paz, paz", onde não há paz, é obra do falso profeta, não da
testemunha cristã. Muitos exemplos poderiam ser dados de paz através do sofrimento. Quando nós mesmos
estamos envolvidos numa disputa, ou haverá a dor do pedido de desculpas à pessoa que prejudicamos, ou a
dor de repreender a pessoa que nos prejudicou. Às vezes, há a dor importuna de termos de nos recusar a
perdoar a parte culpada até que esta se arrependa. É claro que uma paz barata pode ser comprada por um
perdão barato. Mas a verdadeira paz e o verdadeiro perdão são tesouros caros. Deus só nos perdoa quando
nos arrependemos. Jesus nos disse para fazer o mesmo: "Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se
arrepender, perdoa-lhe."120 Como podemos perdoar uma injúria se ela não foi admitida nem lastimada?
Ou, então, podemos não estar pessoalmente envolvidos numa disputa, porém lutando pela reconciliação
de duas pessoas ou dois grupos que estão separados, em divergência. Neste caso, será o sofrimento de ouvir,
de despir-se de preconceitos, de tentar entender com simpatia os dois pontos de vista oponentes, de arriscarse a ser mal interpretado, de receber ingratidão, ou de até fracassar.
Outros exemplos de pacificação são o trabalho pela união e a evangelização, isto é, procurando de um
lado unir igrejas e, de outro, levar pecadores a Cristo. Nos dois casos, a verdadeira reconciliação pode ser
aviltada a um baixo preço. A visível união da igreja compete ao cristão buscar, mas só quando tal união não é
buscada às expensas da doutrina. Jesus orou pela união do seu povo. Ele também orou que fossem guardados
do mal e na verdade. Não temos nenhuma ordem de Cristo para buscarmos a união sem a pureza, pureza de
doutrina e de conduta. Havendo uma coisa tal como a "união barata", também há a "evangelização barata",
114
Mt 10:34-36.
Mt 10:37.
1 Co 7:15; Pe 3:11; Hb 12:14; Rm 12:18.
117
Cl 1:20; Ef 2:15.
118
5:44,45.
119
pp. 9ss.
120
Lc17:3.
115
116
isto ê, a proclamação do evangelho sem o custo do discipulado, a exigência da fé sem o arrependimento. São
atalhos proibidos. Transformam o evangelista em um fraudulento. Degradam o evangelho e prejudicam a
causa de Cristo.
8. Os perseguidos por causa da justiça (vs. 10-12)
Pode parecer estranho que Jesus passasse dos pacificadores para a perseguição, da obra de reconciliação
à experiência de hostilidade. Mas, por mais que nos esforcemos em fazer a paz com determinadas pessoas,
elas se recusam a viver em paz conosco. Nem todas as tentativas de reconciliação têm sucesso. Na verdade,
alguns tomam a iniciativa de opor-se a nós e, particularmente, de nos injuriar e perseguir. Não por causa de
nossas fraquezas ou idiossincrasias, mas "por causa da justiça" (v. 10) e "por minha causa" (v. 11), isto é,
porque não gostam da justiça, da qual sentimos fome e sede (v. 6), e porque rejeitaram o Cristo que
procuramos seguir. A perseguição é simplesmente o conflito entre dois sistemas de valores irreconciliáveis.
Como Jesus esperava que os seus discípulos reagissem diante da perseguição? O versículo 12 diz:
Regozijai-vos e exultai! Não devemos nos vingar como o incrédulo, nem ficar de mau humor como uma
criança, nem lamber nossas feridas em autopiedade como um cão, nem simplesmente sorrir e suportar tudo
como um estóico, e muito menos fazer de conta que gostamos disso como um masoquista. Então, como agir?
Devemos nos regozijar como um cristão, e até mesmo "pular de alegria"121 Por quê? Em parte porque, Jesus
acrescentou, é grande o vosso galardão nos céus (y. 12a). Podemos perder tudo aqui na terra, mas herdaremos tudo nos céus, não como uma recompensa meritória, mas porque "a promessa da recompensa é
gratuita".122 E, por outro lado, porque a perseguição é um sinal de genuinidade, um certificado da
autenticidade cristã, pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós (v. 12b). Se somos perseguidos hoje, pertencemos a uma nobre sucessão. Mas o motivo principal pelo qual deveríamos nos regozijar
é porque estamos sofrendo, disse ele, por minha causa (v.) 11), por causa de nossa lealdade para com ele e
para com os seus padrões de verdade e de justiça. Certamente os apóstolos aprenderam esta lição muito bem,
pois, tendo sido açoitados pelo Sinédrio, "eles se retiraram . . . regozijando-se por terem sido considerados
dignos de sofrer afrontas por esse Nome".123 Eles sabiam, assim como nós devemos saber, que "ferimentos e
contusões são medalhas de honra"124
É importante notar que esta referência à perseguição é uma bem-aventurança como as demais. Na
verdade, tem o privilégio de ser uma bem-aventurança dupla, pois Jesus primeiro declarou-a na terceira
pessoa como as outras sete (Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, v. 10) e, então, repetiu-a
na oração direta da segunda pessoa (Bem-aventurados sois quando . . . vos injuriarem e vos perseguirem . . .,
v. 11). Considerando que todas as bem-aventuranças descrevem o que cada discípulo cristão deve ser,
concluímos que a condição de ser desprezado e rejeitado, injuriado e perseguido, é um sinal do discipulado
cristão, da mesma forma que um coração puro ou misericordioso. Cada cristão deve ser um pacificador, e
cada cristão deve esperar oposição. Aqueles que têm fome de justiça sofrerão por causa da justiça que
anseiam. Jesus disse que seria assim em qualquer lugar. Também o disseram seus apóstolos Pedro e Paulo.125
Tem sido assim em todas as épocas. Não deveremos nos surpreender se a hostilidade anticristã aumentar,
mas, antes, se ela não existir. Precisamos nos lembrar do infortúnio complementar registrado por Lucas: "Ai
de vós, quando vos louvarem!"126 A popularidade universal está para os falsos profetas, assim como a
perseguição para os verdadeiros. Poucos homens deste século têm entendido melhor a inevitabilidade do
sofrimento do que Dietrich Bonhoeffer. Ele parece nunca ter vacilado em seu antagonismo cristão contra o
regime nazista, embora isto significasse prisão, ameaça de tortura,
perigo para a sua própria família e, finalmente, morte. Ele foi executado por ordem direta de Heinrich
Himmler, em abril de 1945, no campo de concentração de Flossenburg, a apenas poucos dias antes da
libertação. Era o cumprimento do que ele sempre crera e ensinara: O sofrimento é, pois, a característica dos
seguidores de Cristo. O discípulo não está acima do seu mestre. O discipulado é "passio passiva", é
121
Lc6:23.
Calvino, p. 267
123
At5:41.
124
Lenski, p. 197.
122
125
Por exemplo Jo 15:18-25; 1 Pe4:13,14; At 14:22; 2 Tm 3:12.
126
Lc6:26.