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- BLUE JEANS UMA PEÇA SÓRDIDA Texto de Zeno Wilde e Wanderley A. Bragança ESPAÇO CÊNICO Um apartamento decorado com bom gosto. Cenas de Rua Cenas de Memória Unidade da Febem OBSERVAÇÕES *Os personagens, todos, têm o mesmo nome comum: Luiz Carlos Soares. *Cada personagem contracena sempre e unicamente, com o Dono do Apartamento. Mesmo quando estão ocupando o mesmo espaço físico, estão em tempos diferentes, não contracenando entre si. *A ação se passa numa grande metrópole, hoje. MARCOS (Chegando da rua com o dono do apartamento) - Tudo bem, eu topo! De repente, o nosso astral bateu! Só que eu acho que vai ser mais uma história pra tua coleção. Igual a tantas outras que já te contaram antes: nós não conseguimos nem, ao menos, ser originais. Quando eu disse "nós", estava querendo falar de nós dois: de vocês, com essa curiosidade obscena sobre cada detalhe de nossas vidas, e de... de nós... os rapazes que cobram pra contar essas histórias! Mas vamos em frente: eu vou lhe contar tudo. Da maneira que aconteceu... detalhe por detalhe. "Juro dizer apenas a verdade e nada mais que a verdade!" De agora em diante, todo cuidado é pouco! Nós combinamos um preço, certo? Só que esse preço era pra "outra" coisa, e não lhe dá a garantia de verdadeira. ouvir (Já uma bem à história vontade no apartamento) Eu já posso estar mentindo... aliás, eu posso ter mentido desde o começo... Mas isso não vai mudar absolutamente nada, vai? O que você realmente deseja, além da "coisa óbvia", é ouvir uma história sórdida e sacana, não é? Meu nome é Luiz Carlos Soares... filho único, nascido em dois de fevereiro de 1963, numa dessas duzentas mil cidades de interior desse Brasil de Deus. Solteiro, profissional liberal e autônomo, sem doenças venéreas, esse é um detalhe importante... escolaridade e sem grau médio predileção de sexual definida. Que merda de ficha técnica, não é? Vamos fazer o seguinte: vamos pular, numa máquina de tempo maluca, de 1963... para 1978... eu acho que aí, a história vai ficar mais estimulante para você. Tudo mais que tenha me acontecido antes, não vale a pena, não interessa, não tem a menor importância... e eu nem me lembro mais... (A luz cai em resistência, no apartamento. Em transição, também em resistência, para o "espaço" de Serginho, na Febem). SERGINHO (Serginho é um pequeno delinqüente, sendo atirado numa sala para interrogatórios, junto com outros meninos de sua idade. Ele está nu) - Não... não fui eu... eu juro! Eu sou inocente, não fui eu. Quando eu cheguei no apartamento ele já estava morto. Por favor, acreditem em mim. (Como se respondesse perguntas) Não... eu nunca tinha ido parar no Juizado antes... mas também não tinha por que ir. Eu nunca roubei ninguém, não fiz nada de mais... Luiz Carlos Soares... Dezesseis anos... vou fazer dezessete em setembro... Não... eu não conheço nenhum desses meninos. O que foi que eles fizeram? Também estão sendo acusados como eu? Porra, eu não preciso da ajuda de vocês. Não... eu não estou cuspindo no prato que comi, não. Só que eu já sei tomar conta da minha vida muito bem. Ah, vocês queriam que eu ficasse a vida inteira agradecendo a caridade de vocês? Oh, obrigado! Se não fossem vocês, eu nunca teria tido um teto, comida, agasalhos... teria morrido numa lata de lixo! Vocês não sabem o que é ser criado numa Unidade de Governo... tudo o que a gente tem, é uma tabuleta na testa: "à espera de adoção"... e tudo o que se é, é órfão! Não... eu não uso drogas. Nunca usei... nem maconha... nem nada... Será que eu vou ter que ficar o resto da minha vida respondendo essas perguntas? Por que é que vocês estão gravando tudo o que eu falo? (Sendo levantado violentamente por dois outros meninos) Tomar banho... agora? (Blecaute. Volta luz geral, no apartamento). GRACINHA (Chegando, com o dono do apartamento. Ele vem atrás, carregando a sacola dela) Nossa! Seu apartamento é um barato! Uma gracinha... eu adoro lugares assim. Pelo menos, já temos uma coisa em comum: gostamos do que é bom! Está tudo pago? Benza Deus! Ah, eu estou podre, hoje... a boate estava uma loucura, não estava? Desde que eu estou lá, que a gente nunca teve uma casa assim tão cheia. Você nunca foi lá, antes... foi? Eu não ia me esquecer de uma cara incomum... como Eu a estou sua, assim, fazendo tão aquele número há pouco tempo... você gostou? Aliás, eu estou nesta vida há pouco tempo, dá pra notar? A boneca que fazia o show antes de mim, teve uma briga feia com o Marcelo, saíram no tapa e tudo... aí, ele me colocou no lugar dela... pra tapar buraco... Agora, você imagina como é que a minha cabeça ficou... eu ainda era uma menina que brincava de bonecas, poxa! Ah, mas eu não deixei por menos! Me esforcei como o diabo gosta... era a minha grande oportunidade, não era? Aos poucos, eu fui mudando tudo... criando um outro show... falei com o carinha da luz, com o pessoal do conjunto, com o moço do som... comprei este vestido vermelho, meu amor! Mas ficou lindo, não ficou? (O outro se mostra muito pouco interessado. Ela procura novo assunto) Você gostou do conjunto? Uma merda, né? Eu sei. Também, com o ordenado que o Marcelo paga, você queria o quê? César Camargo Mariano? Mas tem uma coisa, viu... eu acho que não é culpa dele, coitado... Quando as coisas apertam, ele fica louco, desesperado, ameaça fechar a casa e despedir todo mundo... Deus me livre! Vida de travesti já é uma merda, já pensou então, travesti desempregado? É o maior sufoco! Muita concorrência. Hoje em dia, pra você vencer na vida, a gente tem que trabalhar muito e ser muito boa... que é pra não acabar na rua da amargura, fazendo ponto na Rua Rego Freitas... correndo uma porção de riscos, aturando cada bofe escroto. Cara cheio de doença e que ainda por cima, paga mal. Ah, e ainda tem a polícia, meu amor, que quando cisma, sai de baixo! Isso pra não falar no Juizado de Menores que se me descobre... Na boate, pelo menos, o Marcelo protege a gente. Mas você não tem pinta de quem curte o trabalho das meninas... o que foi... pintou solidão? Eu estou realmente um lixo, não estou? Ultimamente eu venho levando uma vida muito agitada. Depois que eu virei travesti, loucura! Eu minha estudo vida à ficou tarde... uma Colégio Imaculada Conceição, no Ipiranga... entro ao meio-dia e saio às cinco. De noite, eu trabalho como office-boy em um hotel na Avenida Paulista. Quer dizer: é isso que eu conto lá em casa... Olha, eu só estou falando essas coisas, por que você me pareceu um tipo compreensível, sei lá... é o meu jeito mesmo! Eu acabo contando a minha vida inteira, pra todo mundo que sai comigo... coisa de mocinha! (Depois de uma longa pausa) Olha... tem uma coisa meio delicada que eu queria te perguntar... você não vai levar a mal, vai? Estou meio sem jeito... sabe o que é? A gente tem que estar prevenida, né... esse negócio de doenças venéreas... se a gente não tomar cuidado já viu! Mas com você está tudo em ordem, não está? Outra coisa... só que aí já é curiosidade feminina... você é casado? Tens uns que são, né? De dia, a escola, o bairro pobre, a mãe, os irmãos... De noite, o show! Depois, sempre pinta alguém... assim eu vou acabar tendo essa tal de estafa. Que nada... eu nunca vi veado com estafa! Mas bem que a gente podia fazer uma greve, não podia? Não está mesmo na moda? Ia sair em todos os jornais... e uma promoção é sempre uma força pra gente! Mas que nada... a gente não tem Sindicato, carteirinhas... essas coisas de Imposto de Renda. Sabe o que eu queria fazer agora? Tomar um banhinho. Um banho ia me deixar em forma... você me espera? Eu não demoro nadinha, nadinha... é só jogar uma água no corpo. (Saindo em direção ao banheiro) Um kiss... volto logo... (Blecaute. Quando volta a luz geral no apartamento, quem está na porta é Renguitem com as chaves na mão, como se tivesse acabado de chegar com o outro). RENGUITEM - Aí, ó... a chave. Vai deixar a chave na porta? Marcou bobeira, hein? Imagine só: amanhã cedo você acorda, apalpa a cama procurando o garotão pra tirar o último sarrinho, e ó... cadê? O garotão caiu fora, deu no pé! E de lembrança, levou o relógio, a carteira, a televisão... levou tudo de lembrança... Mas comigo, não. Eu quero mais, é defender o "meu", na competência profissional... mas é sempre bom tomar cuidado... Sabe que foi uma boa, você ter aparecido? Você viu aqueles dois que estavam comigo, quando você encostou o carro? Nós viemos ontem, os três, do Rio de Janeiro... Sabe desde que horas a gente estava na Avenida? Desde que escureceu, seis, sete horas, por aí... batendo pernas sem conseguir apanhar nem mosca tonta. Porra, nove horas andando do Trianon ao Largo do Arouche, do Largo do Arouche ao Trianon... com fome, sem lugar pra dormir, sem conhecer porra nenhuma da cidade... Nossas malas rodoviária... estão no guardar, depósito onde? da Fazer Avenida com as malas nas costas, não dá mesmo... E ainda por cima, esse tempo escroto, porra! Essa merda de chuva só serviu pra espantar todo mundo da rua... Qual é a besta que vai sair zanzando com um tempo assim? Só mesmo quem é profissional... ou quem está muito a perigo. Parece que a barra aqui em São Paulo, pra quem vem de fora, sai de baixo! Mas o que é que você queria? Que a gente voltasse pro Rio? Sem um puto no bolso... E depois, o Rio já deu tudo o que tinha que dar. Aquilo lá está infestado de argentinos, bolivianos, paraguaios, e o caralho a quatro. Puta concorrência! Os gringos vão chegando de trem, de ônibus, de carona, na porralouquice. Tem neguinho que vai até a pé. Todo mundo na pior. Pensando que é só chegar em Copacabana, agitar um lance e colocar o pau na praça. Qual é a deles? Estão pensando que o Rio de Janeiro é o paraíso dos viados? Os carinhas saem lá da terra deles, falando um portunhol que nem a mãe entende, pra vir foder a vida da gente, dentro do país da gente? Não tem sentido! Eu acho que viado brasileiro só devia dar o rabo pra michê brasileiro... devia ser de lei... e fim de papo! Ou vai me dizer que não existem viados, na terra desses putos? (Blecaute. Volta luz geral. Seqüência natural da cena com "Marcos"). MARCOS - Minha história só conta daí em diante... dezembro de 1978... (Revive os fatos, muito emocionado) Nós o usamos, cara... como eu vou usar você daqui a pouco, e como você, se pagar um pouco mais, vai poder me usar depois. Ele morava na minha rua... No colégio, entre a turma, era público e notório que ele era um garoto "diferente"... resumindo: ele era um pouco delicado demais, para os nossos padrões. Tímido... sensível... não entrava em brigas, não jogava futebol... essas coisas de "homem". Para mim, ele tinha um certo mistério. Eu o observava sempre... na sala de aulas, nos corredores... dentro de mim, alguma coisa me ligava secreta... a como ele... se numa identificação fôssemos, nós dois, marcados por um sinal de fogo. Éramos cinco, no grupo... (Numa cena paralela, de memória, é mostrado o grupo adolescente) O André... o Fred... o Waldir... mais, eu e o Eduardo... desgraça e glória de todas essas lembranças. Nossas idades variavam entre treze e dezesseis anos... inconseqüentes, alegres, vagabundos... (Blecaute na cena de memória) Para o grupo, comer o Eduardo significava provar que éramos diferentes dele... que éramos machos e que ficávamos de pau duro... coisa meio de moleque, de criança... Em dezembro, quando a família do Waldir viajou, numa noite dessas nós fomos para a casa dele, que era onde iríamos executar o Eduardo... A gente bebeu um pouco... procurando coragem para enfrentar as nossas próprias feras... Quando o Waldir veio com as revistas pornográficas, eu tive toda a certeza de que o jogo já havia começado... você sabe como são essas revistas, não sabe? (O apartamento agora é iluminado por um foco de luz, sobre os dois) Nem foi preciso esperar muito. Num minuto o ambiente já estava preparado para o crime. Foi o Waldir, quem inventou aquele maldito concurso. Tudo bem... com aquela idade a gente está sempre querendo provar, competir, disputar... Cada um escolhia uma revista e: (volta a cena paralela, vivenciando a narrativa) um, dois, três... começava todo mundo a bater punheta ao mesmo tempo, na maior alucinação e no maior sincronismo. Que loucura! O castigo, para quem terminasse por último, era ser enrabado pelo grupo inteiro... Cara, estava todo mundo apavorado. Na maior alucinação, suando pra caralho... com os olhos pregados naquelas fotografias. O André foi o primeiro... pronto, esse estava livre! Depois, eu e o Waldir... sujamos o tapete quase ao mesmo tempo. Puta alívio, cara! Mas eu ainda tinha um medo muito grande. Medo do que vinha pela frente. E que eu sabia, plenamente o que era. Sobraram o Eduardo e o Fred. Não me parece muito difícil deduzir quem foi que levou a pior nessa história... Ridículo, envergonhado, sem saber onde meter a cara, ele tentou escapar correndo, daquele quarto. O André voou sobre ele... parecia que tinha asas nos pés, o puto. Depois o Waldir e o Fred, também entraram na luta. Eu me lembro dos três, tirando as roupas dele, quase rasgando. Ele se debatia e levava porrada. Três contra um, né cara? Eu não. Eu não sabia o que fazer. Eu queria morrer! O André foi o primeiro, claro. O seu direito de vencedor! O Fred e o Waldir o mantinham de bruços, entre braços e pernas. Depois foi o Waldir... eles babaram, eles rasgaram, eles violaram aquele menino... O Fred... os três, porra! Eu estava aos pedaços, dilacerado dentro de mim. Depois o pavor, a náusea, o pânico... Havia chegado a minha vez. Já não era preciso que ninguém o segurasse. Ele não tinha forças para nenhuma reação. Os outros me cobravam... eu deitei sobre ele e fechei os olhos... cara, ele tremia inteiro... era um choro interno, convulsionado... ele chorava por dentro. Os outros foram saindo de mansinho... é claro que ninguém queria ficar por mais tempo naquele lugar. Estava todo mundo se cagando de medo! Eu não sei por quanto tempo nós ficamos sozinhos... ele continuava imóvel... do vão de suas pernas, escorria uma mistura pegajosa de sangue e porra. Cara, eu tinha que fazer alguma coisa. Ele estava chorando... "Por que você não foi embora com eles?" Foi a pior pergunta que eu ouvi em toda a minha vida. Eu não sabia o que responder. Não sei, cara... não sei... Mas eu não era igual a eles... de alguma forma, eu era diferente... Depois, ele me encarou e eu perdi o ar. O peito queria arrebentar... Cara, alguma coisa estava mudando em nós, ali, na precariedade das nossas condições... era um misto de carinho e desespero... Foi quando ele procurou a minha boca e me beijou. Cara, que loucura... agora o seu corpo era quente e bom... agora eu estava feliz, agora eu queria aquilo... Ele soltou a minha mão e pediu que eu fosse embora... que eu fosse embora para sempre... Quando eu saí daquele quarto, ele já não estava chorando. (A luz sai seca, no apartamento e vai saindo lentamente, em resistência, na cena de memória, sobre os dois corpos nus. Após o blecaute, a luz acende, em resistência, no espaço de Serginho). SERGINHO - Eu sempre fiz os meus trabalhos o melhor que pude, não fiz? Sempre consegui bons resultados na Escola... fiz o meu profissionalizante com a maior seriedade... Sempre fui limpo... procurei adquirir bons hábitos. Respeitava sempre as Assistentes. Procurava escutar os psicólogos... mesmo achando tudo aquilo uma grande besteira. Trabalhei até na granja, aprendendo a plantar de tudo... tem menino que quando chega aqui, nunca viu antes, um pé de alface, na vida. Como vocês sempre diziam, eu sempre fui um perfeito "recuperável"! E isso me serviu pra quê? É... vocês devem estar decepcionados comigo... nem eu, esperava voltar aqui tão cedo. Só que tem uma coisa: não fui eu quem escolhi essa arma. Ela foi colocada na minha mão... eu só fiz, é puxar o gatilho! Mas eu não tenho dezoito anos... ainda não pode aparecer, sem tarja preta nos olhos, na primeira página de qualquer jornal, a minha cara de bandido! (Blecaute. apartamento. Luz Seqüência da geral no cena de Renguitem). RENGUITEM - Você mora aqui sozinho? E sempre está trazendo os garotões pra cá? Meio arriscado, hein? Eu saco muito assaltantes por aí, se passando por michês... Você nem conhece o carinha, nunca viu o puto na vida... aí, cruza com ele numa esquina e traz pra cá, numa boa... com as melhores das intenções. Porra, mal você tem tempo de fechar a porta e ele já te encosta o "três oitão" na cabeça... e aí... você tem a manha de reagir? Toma cuidado, hein, malandro! Uma coisa... não é por nada não, mas já que a gente falou em cuidado... não me leve a mal, mas eu acho bom a gente acertar antes, o lance da grana... é conversando que a gente se entende... Olha aí... eu estou cobrando cinco barões! Tudo bem? Cinco barões e está feito o jogo. Mas você pode ficar tranqüilo, que depois eu não vou ficar te enfernizando a vida, te procurando na tua casa, no teu emprego... fazendo esses lances de chantagem, pra descolar mais grana... Cinco barões e jogo limpo! Se um dia a gente se cruzar na rua... pode ficar na tua... eu nunca te vi... nem te conheço... Ah... tem uma outra coisa... Eu não dou, hein! Eu só sou ativo. Mas se você quiser... pode gozar na minha coxa, tudo bem... mas dar, eu não dou, está limpo? Nem beijar na boca! Eu tenho grilo... Tudo bem? Eu não disse, cara? É conversando que a gente se entende! (Blecaute. Sai o Renguitem e entra a Gracinha. Continuação natural). GRACINHA (Voltando do banheiro, enrolada numa toalha) - Demorei muito, bicha? O chuveiro estava uma delícia... eu me esqueço do mundo quando estou debaixo d'água. (Ela senta na cama e percebe que está molhada ainda) Ai, desculpe... eu me enxugo e volto logo... ainda estou um pouco molhada... molhada? Molhado... cheia d'água, caralho (a dúvida é em relação ao sexo. Retorna ao banheiro. Lá senhores... grande de vamos atração dentro). Senhoras apresentar da noite... agora com e a vocês, diretamente de Paris, a internacional, a única, a sensacional Gracinha Tropical! (Aparecendo novamente) Não é assim? Aí eu entro com o meu vestido vermelho, lindo, lindo! Desço aqueles três degraus e rasgo a voz, pra todo mundo escutar! Ah, é a melhor coisa do mundo. Saber que estão me ouvindo, que estão gostando e que vão aplaudir no final. Te juro, é a melhor hora de minha vida. Sabe o que eu queria mesmo? É que um dia ela fosse me assistir... Será que ela vai? Eu acho que eu morro! Já pensou, bicha, eu cantando, e ela, a maior de todas as cantoras do mundo, sentadinha de perninhas cruzadas, me ouvindo, me escutando? Eu não queria mais nada da vida. Juro por Deus! Eu corria para o camarim e dava Completamente um tiro realizada! no Sabe ouvido. que no começo o Marcelo não gostava muito do meu número? Pegava mal pra casa, que a estrela do "despeitada"..., show uma fosse uma ninfeta, boneca como ele dizia... pra ele, boneca que se preza tem que ter peitaça, essas coisas... pra chamar atenção... ele queria até me aplicar silicone. Eu, hein? Eu é que não vou fazer esses tratamentos. Eu não preciso... eu quero mesmo é cantar. Ficar sob aquele foco de luz, nos meus saltos altos... Fale sério, você acha que eu preciso? (Exibe a "plástica") Me capar, Deus me livre! Eu sou católica e respeito a natureza. E as pessoas vão é para me ouvir cantar. Tem gente que nem percebe que é dublagem, você acredita? (O outro não está muito à vontade. Ela muda de tática) Sabe... eu já topei com cada tipo estranho... cada cara, cada gosto... eu vou te contar... eu vou te contar... No começo, quando eu ainda não tinha toda essa experiência, eu saía com qualquer um que me desse atenção... mas depois a gente aprende... acaba entrando na vida pra valer, fica "fina"... Uma vez, um dia... um senhor assim, bem machão, alto, bigodudo, tipo pai de família, que vivia me rondando na saída da boate, me convidou para um programa... eu topei, só por farra... bicha, ele me levou para o apartamento dele de Mercedes... um puta apartamento no Morumbi... espelho no teto, colchão d'água, aromatizantes, o caralho! Aí, eu fiquei lá, deitadinha, esperando ele... com as perninhas cruzadas, me sentindo a própria Sônia Braga! De repente, não mais que de repente, ele me entra quarto a dentro... com uma puta garrafa de champanhe na mão... Sabe pra quê, era a garrafa de champanhe? Nem imagina? Pra enfiar no rabo dele! Mas eu já tive uma pessoa... é... um carinha... a gente ia até morar juntos... eu ia fugir de casa e tudo. Essa coisa de casal, de ficar em casa, de avental e chamar de maridinho. Mas ele vivia metido nesse negócio de tóxico e acabaram matando ele. A gente nunca se entendeu direito nessa, de tóxico. Eu não gosto de tóxico. Tóxico não enche a barriga, enche? Um dia, ele sumiu... não voltou mais pra casa... aí, como eu sabia que ele tinha uma tia que morava lá em Diadema, eu fui lá falar com ela. (Nessa frase, tenta impor virilidade) Disse que era amigo de trabalho e tal, que estava querendo saber por que é que ele estava faltando... essas coisas... (Aqui, volta a falar como antes) Colou a história? Porra nenhuma! A mulher sacou a coisa toda... mas mesmo assim ela me contou tudo... disse que ele havia sido morto pela polícia... que havia sido até torturado. Deus me livre! (Está bastante emocionada) Aí, eu não agüentei, né? Eu sou humana... e tive a maior crise histérica, ali, na frente da mulher... Olha cara, nem com essa vida tão fudida, que eu levo, eu nunca tinha ouvido falar de tanto desrespeito pelo ser humano. É, cara... polícia é foda! (Tenta se recompor) Eu gostava muito dele... gostava mesmo. Era como se fosse meu pai. Mas morreu, morreu... a gente tem mais é que continuar na vida, mesmo sabendo que nunca vai encontrar alguém como ele. A gente tem que viver, a gente tem que viver! (Solta a toalha, de maneira sensual e caminha para a cama, bem provocante - ele está na cama esperando. Entra a música Folhetim, de Chico Buarque, cantada pela Gal Costa) Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres, que só dizem sim... (A luz e a música saem, em resistência. Após o blecaute, o dono do apartamento continua na cama, mas a cena agora é com Marcos). MARCOS - ... era a minha única saída. Abandonar aquela cidade, aqueles amigos... aquela situação de merda... Eduardo, tudo... assim, pelo menos, eu não teria de encará-lo novamente. Só tinha uma coisa, que me perturbava; eu não queria abandonar os velhos, os meus pais... eu gostava muito deles e a gente se entendia legal. Mas fazer o quê? No dia seguinte eu estava sentado na poltrona número onze do ônibus que me levaria para o Rio de Janeiro. Onze é o meu número de sorte... eu nem sabia direito pra onde estava partindo. Só tinha certeza, de que estava indo, ao encontro do meu destino... Foi tudo muito simples: em menos de quinze dias eu já havia torrado toda a grana que havia trazido e me virava como podia. Naquelas de ir dormir às seis da manhã e acordar às cinco da tarde. Eu começava a conhecer e freqüentar as zonas mais barra-pesada da cidade, onde sempre se encontra um boteco aberto, alguém que ofereça um "fumo" e um quarto barato para alugar. Já tinha amizade com rapazes, que como eu, também viviam de restos e de sobras. Para nós, era tudo uma maravilha, tudo novidade... e para ganhar dinheiro, nós descobrimos os nossos corpos e a nossa juventude... Eu já não tinha mais vergonha de abordar as pessoas solitárias, nas calçadas de Copacabana, da Cinelândia, dispostas a pagar por algumas horas de companhia... e sabia reconhecer se uma "mercadoria" era de boa ou de má qualidade, quando me ofereciam cocaína ou maconha. No começo, eu só transava com mulheres. Coroas, cheias da grana... na faixa dos quarenta, cinqüenta anos... todas muito bem casadas e muito mal trepadas. Cara, elas fazem de tudo... chupam, dão o rabo, batem punheta... tudo o que você imaginar em matéria de sacanagem, essas neuróticas adoram... Mas quem é profissional não escolhe sexo. O que cair na rede, é peixe! Quer ver só? Se eu sair com um senhor, às sete, oito horas, e transar com ele numa só de passivo... se aparecer outro cliente, lá pelas madrugada, eu posso faturar com ele também... porque eu me poupei da primeira vez, não me gastei... Com mulher não dá... elas querem que a gente goze sempre... e com mulher só dá pra ser ativo. Aí, eu acabo tendo prejuízo. Ah, tinha também o lance da Casa de Massagem... sabe como é... quem estivesse a fim de um garotão, era só ligar pra lá e a gente ia atender. A grana, era cinqüenta por cento pra nós e cinqüenta por cento pro dono da Casa... De qualquer forma, hoje em dia o mercado masculino é mais aberto, e paga melhor... (A luz cai, em resistência, enquanto ela vai em direção à cama, tirando o cinto e abrindo o ziper da calça. Após o blecaute, a luz volta no espaço de Serginho). SERGINHO (Sob um único foco de luz) - Eu estive sim, naquele apartamento... vocês não me encontraram lá? Não... aquela não foi a primeira vez... eu já tinha ido lá, antes... algumas vezes, não sei quantas... eu não contava. Eu conhecia ele, sim... não tenho pra que mentir. Eu o conheci quando comecei a freqüentar aquela boate... Nos dias de folga, quando podíamos sair, nós íamos em grupo... era só tomar um trem até a Estação da Luz, e de lá... um ônibus, para qualquer lugar. Muitos de nós já freqüentavam mulheres. Os mais velhos já conheciam os pontos de transação. Eles iam lá, uns porque gostavam mesmo, outros, pra transar por grana... é como eles dizem... No começo, eles me chamavam... eu morria de curiosidade, mas não tinha jeito pra ir. Tinha também medo de ser barrado na porta, por ser menor de idade... Até que um dia, eu criei coragem e fui com eles. Não teve o menor problema. (Aqui, explodem outros pontos de luz, mostrando alguns garotos com roupas mínimas e sensuais, que até então, eram escondidos pela iluminação, transformando o espaço de Serginho, no ambiente que ele descreve) Eu nunca imaginei um lugar como aquele. Com tanta gente bonita, sensual e diferente... aquela música louca... Era lindo! Depois, eu passei a ir lá todos os fins de semana. Ele estava sempre lá... e me olhava de uma maneira... como se quisesse alguma coisa comigo... (Ao fundo, ainda meio nas sombras, aparece o dono do apartamento) Eu levava muitas cantadas sim. Muitas carinhas me chamavam e me davam altos toques. Até me ofereciam grana... (O outro já se aproximou, e oferece cigarros) Um dia ele me cantou... (Serginho aceita o cigarro estabelecendo o código - o outro sai lentamente) Eu fiquei sem saber o que fazer... se os meus amigos não tivessem dado a maior força, eu nem teria saído com ele... (Cessa todo o movimento. Serginho fica novamente apenas sob um foco de luz) Era a primeira vez que eu ia ao apartamento de alguém... naquela noite, a gente nem transou... eu acho que ele percebeu que eu estava morrendo de nervoso e não tentou nada... me respeitou. conversando... música... batendo mais nada... Nós ficamos papo... ouvindo Quando eu ia embora, ele me ofereceu dinheiro. Eu só aceitei, porque fiquei com vergonha de não aceitar... parecia que aquilo fazia parte... era natural... não é engraçado? Depois, eu voltei lá... várias vezes... Pra falar a verdade, era muito mais por mim mesmo, que por ele, que eu sempre voltava. O que eu não sabia, era que tudo ia terminar em tragédia... ele era um cara legal... não merecia ter morrido daquela maneira estúpida! (Blecaute. Volta a luz geral no apartamento. Continuidade de cena). RENGUITEM - Meu nome é Luiz Carlos Soares, e o seu? (Silêncio) Tudo bem... não precisa responder... era só pra quebrar o gelo. (Vê o aparelho de som) E esse som aí? Vamos curtir um barato? (Liga o aparelho em altíssimo volume) É isso aí, maninho... o maior barato, não é? (O outro desliga o som) Eh... que é isso? Puta repressão! Cara, alguma coisa vai ter que acontecer aqui, entre nós dois, não vai? Pois é... eu só estou procurando uma maneira de começar... de quebrar o gelo, de partir pro crime... assim, a seco, não vai dar não... Você está com medo do quê? De acordar os vizinhos? Pau na bunda deles! Mas tudo bem... é o senhor quem manda, não é? É o senhor quem está entrando com a grana... Então, vamos curtir o silêncio... psiu.... psiu... (Vai tirando a roupa, até ficar só de cuecas) Eu fico aqui, no centro da sala, de braços cruzados, peladão... só esperando patrão... quando o as ordens senhor do resolver começar... (O outro aproxima-se e é repelido com violência física) Furado, malandro... Furado! Comigo não. Comigo o senhor caiu do cavalo... essa sua regra, pode servir para os michezinhos de merda que transam com você... pra mim, se servir eu uso... se não servir, amasso e, ó... jogo no lixo! E tem mais: aí, ó... seguinte... encheu, torrou! Essa baboseira já deu no saco! Acabou a brincadeira. Seguinte: pode ir tratando de passar a grana que você tem na carteira... toda a grana... (O outro tenta reagir e leva um tranco) E não tente nenhuma besteira... pode dar azar... Vamos nessa, meu irmão... eu preciso dessa grana muito mais que você... Se você quiser, eu posso abrir essa janela, aprontar o maior berreiro, o maior escândalo, um auê dos infernos, acordar os vizinhos e o caralho... e sujar a tua barra, pro resto da vida. Eu não tenho porra nenhuma a perder. Será que o senhor pode dizer o mesmo? Gente como o senhor, dá pra conhecer no cheiro... gostam de fazer a coisa, mas tem que ser na maior enrustição, na maior moita... conheço o tipo. Pra cima de mim, não vai. Eu estou cansado de saber... se pintar escândalo na jogada, o senhor está fodido! (Nesse momento toca o telefone. É Serginho, quem está ligando, e é mostrado em cena paralela) Só mais uma coisinha, antes de atender... eu sou "de menor", lembra? Dezessete anos... e não escondi isso de ninguém... perguntou dezessete no a anos. carro, minha quando idade Malandro, eu você disse... quando tem menor na jogada, Deus me livre! Aquelas coisas de processo, de corrupção... eu não entendo nada não, mas estou sabendo que a lei é foda... a coisa fede pra caralho! Agora, por favor... quantos cruzeiros o senhor tinha mesmo na carteira? (Balanço de luz entre o apartamento e o espaço de Serginho). SERGINHO - Eu já falei tudo o que sabia. Quando eu entrei no apartamento, ele já estava no chão... já estava morto. Não... ele estava sozinho... eu não vi ninguém saindo de lá, juro! Eu não sei como é que eu vou fazer pra provar isso para vocês... é a minha palavra contra a palavra do mundo, não é? Eu não tenho porra nenhuma a perder... se eu soubesse de alguma coisa já teria contado. Por que é que agora vocês me olham desse jeito? Eu transava com ele... transava sim, e daí? A senhora Assistente está decepcionada? Ah... o senhor psicólogo também? Olha, eu sinto muito... mas eu também estou decepcionado... Só que eu não tenho vergonha de ter recebido dinheiro dele... ele sabia que a gente não transava por grana... No fundo, ele ficou meu amigo e queria me ajudar... o dinheiro que ele me dava, não fazia falta pra ele... E agora? Eu estou outra vez nas mãos de vocês... pra falar a verdade, eu acho que sempre estive... Mas um dia eu vou ter que sair daqui... aí vocês vão ver... eu vou entregar todo mundo... vou contar tudo lá fora, tudo o que se passa aqui dentro desses muros. Nem que isso seja a última coisa que eu faço na vida... será como se eu tivesse nascido só pra isso. Eu sou a prova de que vocês nunca se importaram comigo... nem comigo, nem com nenhum outro, desses meninos... Mas agora eu conheço de perto o método de (Blecaute. vocês... Luz geral para no não usá-lo! apartamento. Seqüência da cena de Gracinha). GRACINHA (Pulando da cama, onde estava com o outro, puta da vida) - Mas está pensando o quê? Mas está pensando o quê? Querendo dar uma de machão, pra cima de mim, é? Eu sou travesti sim, bicha, e tenho muito orgulho da minha profissão... mas está pensando o quê? Eu sou uma artista, cara, isso sim. Comigo o buraco é mais em cima... qual é, cara? Eu não sou nenhum desses viadinhos de luxo com quem você está acostumado a trepar... comigo é no toma lá, dá cá... um pra mim, um pra você... Se você estava a fim de mulher, por que não procurou uma mulher de verdade, com racha e tudo? Estava assim, cheio de putinhas loucas pra trepar, na porta da boate. Vejam só... eu estava no maior papo... na maior consideração... e você me apronta uma dessa? O que é que você foi fazer lá, hein? Procurar emoções fortes? Pois é... encontrou! Ah... até que você deu sorte... Ah, se fosse a Glorinha Camburão... você estava fodido... ela te cortava esse pinto com a navalha... Só porque a gente gosta de um salto alto, de uma roupa colorida, de um salário mínimo de purpurina... de um Peruzinho de vez em quando... mas quem não gosta? (Vai perdendo a raiva) Cara, já é uma barra pra mim, me assumir... segurar a minha cabeça... Você, não... você está aqui no seu apartamento, com esse conforto todo... até pagando companhia... eu não... eu moro mal e porcamente num quartinho furreca, lá no cu do mundo... durmo com mais três irmãos. Levo a minha vida na maior contra-mão... até os meus documentos são falsos pra eu poder trabalhar... E eu pensei que você fosse um tipo legal. Você é muito complicado para o meu gosto! Olha, quer saber de uma coisa? Não vai ter show hoje não... vou me arrumar e vou embora. Não vai ter show... só deu merda hoje! (Ao espelho ela se arruma. Coloca o vestido. É o seu único momento de grande reflexão) Eu fico horas, no espelho da boate, antes de começar o show. Eu morro de medo de ficar igual àquelas bichas velhas, que tomam conta dos defendem banheiros nas da saunas boate, que se vagabundas implorando pelo amor de Deus, pra chupar o pau de alguém... Viado bem que podia não envelhecer... Mas que pretensão, não é? Por que seria diferente comigo? Tá na cara... o caminho é um só... Eu não tenho nada de meu... só minhas roupas, minhas bijuterias, essas besteiras... a gente não pensa no futuro... Tinha ele, né? Mas deu no que deu... (No auge da crise) Eu sou bonito, não sou? Tenho o corpo bonito, firme, duro... tenho os dentes bonitos... como os dentes dela... Mas com a vida que a gente leva... a gente não se cuida... dorme pouco, come mal... não se cuida direito... uma dia tem que acabar desmoronando mesmo. É isso aí, cara! (Está maquilada e vestida) Era assim que você me queria... vestido de mulher? (Fica apenas um foco de luz de efeito sobre ela, que vive o show que executa na boate, imitando e dublando a Gal Costa) "Meu nome é Gal / E desejo me corresponder com um rapaz que seja o tal / Meu nome é Gal / E não faz mal / Que ele não seja branco / Não tenha cultura / De qualquer altura / Eu amo igual / Meu nome é Gal. (O show é interrompido bruscamente. Volta a luz geral - é como se ela acordasse de um sonho) Meu nome... meu nome é Luiz Carlos Soares... Gosto da vida, quero ser alegre... pernas bonitas, curvas perfeitas... promessa de noites eternas... quem vai querer? Meu corpo, meus sonhos, meus dezesseis anos... alguém vai levar? Alguém nesse mundo há de querer ficar comigo? (Recompondo-se) Vamos? Agora eu topo! (Volta a luz de efeito e pelo próprio sincronismo da gravação, os agudos da cantora podem ser confundidos com gritos trágicos, enquanto Gracinha se debate. Som e luz saem em resistência. Após o blecaute, volta a luz geral, no apartamento. Seqüência da cena de Renguitem). RENGUITEM - Aí... ó... nessas miudinhas eu não vou nem tocar... de repente você não tem dinheiro nem pra tomar o café amanhã cedo... Confere aí... só apanhei a grana. Documentos, essas merdas, não pus a mão em mais carteira) porra nenhuma. Desculpa, amigo... (Devolve mas a estou sentindo que acabei de foder com a sua noite! (Guarda o dinheiro numa das meias e explica) Medida de segurança... não está dando pra arriscar. A cidade está assim, de assaltante... sair com essa grana toda a essa hora, é a maior besteira... Mas você deve estar puta da vida comigo! Mas fazer o quê, porra! Eu só estou defendendo as minhas partes. Porra, cara... eu mal sei ler e rabiscar o meu nome... Você queria que eu fosse procurar emprego num escritório? Desculpa, vai... não fica aí, com essa cara... eu entendo... O sujeito sai pra rua, o que já é uma barra. Depois, escolhe, escolhe, cria coragem, arrisca uma cantada... leva um fora. Arrisca outra... lá no cu da madrugada, quando está na maior euforia, porque pintou um tremendo garotão... pinta essa zebra no meio do caminho... puta sacanagem! E eu até que estava indo com a sua cara... Mas quem sai na chuva tem mais é que se molhar. (As frases seguintes podem ser divididas entre o elenco de apoio, e ditas de diferentes pontos do palco, que não o apartamento. Quero dizer: apenas as frases grifadas - que depois, na seqüência, seriam repetidas, no Tô na batalha, irmãozinho... olha pra minha cara e veja se eu tenho jeito de quem gosta de viado... Não é meu departamento! Eu gosto muito é de mulher, e tenho bronca de quem apartamento, por Renguitem) não gosta. Maricona, pra mim... serve só para descolar uma grana, um baseado, esses lances. Na hora do vamos ver, eu pulo fora! Não dá pra ficar nessa de transar com homem! E vai me dizer que você estava esperando que eu sentisse por você a mesma coisa, o mesmo tesão, que você estava sentindo por mim? Não tem o menor sentido... puta ingenuidade! Aí, cara... eu não estou querendo abusar da situação, mas eu me amarrei no seu relógio... sem sacanagem... eu estava até sem jeito para falar... (Abre um canivete automático) E agora? Como é que a gente vai fazer? Puta situação chata! (O outro entrega o relógio) Valeu, cara! Valeu mesmo... a regra é essa: não marcar! Lá na rua, quando você encostou o carro, eu até falei: puta máquina... se eu sair com essa maricona, passo a mão nesse relógio... viado não precisa de relóg... ih, cara, desculpe.. eu não estava querendo ofender... desculpe... eu não xingo mais... Aí, ó... não sei se isso serve de consolo, mas eu prometo ter todo carinho com ele... só vendo mesmo se pintar uma grana legal... senão... vai ficar de lembrança, pra uso pessoal, valeu? (Blecaute. Balanço de luz entre o apartamento e o espaço de Serginho - como se houvesse sido massacrado, ele mal pode parar em pé e fala com dificuldade). SERGINHO - Eu nem ia visitá-lo naquela noite. Quando pintou o feriado, no meio da semana... eu resolvi lhe fazer uma surpresa. Liguei pra ele... o telefone não atendeu... como eu tinha a chave, eu fui pra lá... pensando que ele ficaria contente em me ver. Ele me ajudou muito, no tempo que eu estive com ele. Quase todas as roupas que eu tenho, foi ele quem comprou pra mim... Vocês não acreditam, eu sei... mas ele fazia isso sem nenhum interesse especial... ele podia muito bem me pagar pra dormir com ele, e depois me dar um pontapé na bunda e arrumar outro morto de fome como eu. Qualquer garoto aqui dentro daria graças a Deus, se pintasse uma oportunidade assim... Eu não sei o que eu vou fazer agora... vai ficar tudo difícil, novamente... Se ele não tivesse morrido... eu ia estudar, fazer supletivo... Ele ia pagar o curso pra mim. E depois, me arrumar um emprego decente... ele já tinha até prometido. Lá fora, é muito difícil sobreviver honestamente, e nós, reintegrados, não temos a menor chance. Eu não sei se ele recebia outros meninos como eu... eu acho que não... Por favor... eu não agüento mais... (Balanço de luz, para o apartamento - Seqüência de Marcos - Estão na cama, acabaram de transar). MARCOS - Será que nunca ninguém se preocupou com isso? Será que ninguém sabe? Somos uma multidão de jovens, que transformamos nossos corpos, nossos paus, nossas bundas, em instrumentos de trabalho, dispostos a executar qualquer tipo de coreografia entre dois lençóis. Você, por exemplo... sai com um menino, um michê... leva para um hotel... trepa, goza, paga e vai embora. Agora, o dia em que ele estiver numa pior, como eu outro dia, que fiquei vomitando na Cinelândia, ninguém olha pra ele... ele pode até morrer ali que ninguém dá a menor atenção. É por isso que eu penso no futuro. Porque eu sei que a beleza do meu corpo um dia vai pras picas e nesse dia eu não quero estar numa de horror... seria como perder a guerra. E não vamos falar em dignidade, certo? Pra mim, falta de dignidade é trabalhar oito horas por dia em troca de salário mínimo e Fundo de Garantia. Falta de dignidade é comer marmita requentada. Se eu vou para um hotelzinho mixuruca com uma maricona pobre, que paga pouco, em menos de meia hora a gente entra e sai, e eu já estou com uma nota de mil no bolso... mas também pinta muita gente da alta... todo mundo imbuído do mais nobre sentimento de amor e respeito à juventude, chamado vulgarmente de pederastia! Sabe, eu não vejo isso como uma coisa marginal. Não estou dando desculpas pra me justificar... É que não vejo mesmo. Eu não tenho porra nenhuma a perder, cara... e se as pessoas procuraram a gente e nos pagam, é porque elas precisam da gente, não é? E se eles precisam, a coisa tem que existir. Quanta gente, às três da madrugada, não está em casa na maior fossa, na maior solidão... aí sai de carro, apanha um garotão numa esquina, e durante algumas horas esquece de tudo e é feliz? (O elenco de apoio encaminha-se parando para em pose a boca de cena, característica de pegação) Eu acho que nós somos quase como um serviço de utilidade pública. É isso... como as ambulâncias, como um banheiro público, como uma lata de lixo. (Terminada a fala, Marcos une-se a eles, à boca de cena. Coreografia e música. Blecaute. Renguitem, que poderia estar na coreografia, é o único que permanece em cena, quando volta a luz geral no apartamento). RENGUITEM - Eu estava morrendo de medo de você bancar o valente e partir pra reação. Só ia dar merda! Eu não estava querendo cortar você... eu fico mesmo muito puto se tenho que cortar alguém... e ainda mais você... É por isso que eu explico tudo direitinho... que só estou a fim de grana, que não sou de violência e que é bom não pagar pra ver... Cara, eu estou por conta do diabo há muito tempo. O que é que pode acontecer comigo? Ir preso, dançar? Caguei! Ninguém pode fazer nada comigo. Eu sou "de menor". Quando muito, passo um tempo numa Unidade qualquer, numa dessas pensões do Governo e depois caio fora... parto pra outra! O que mais? Levar um tiro na cara? Quer saber de uma coisa? Eu ia achar ótimo. Encerrava logo o assunto. Lá em casa mesmo, todo mundo já cansou de dizer que o meu fim vai ser triste. Só que eu estou cagando pra eles... estou cansado de saber que eu não presto... não presto, e daí? Você vai querer me consertar? Estou vivendo do jeito que eu gosto. Eu não nasci pra pegar no duro. Pra lamber sapato de patrão... não é comigo! consertar O pai, na achava porrada... que se ia me porrada consertasse alguém, eu era o sujeito mais certinho do mundo. Mas agora eu quero ver... o pai me porrava quando eu era pequeno... eu cresci, né cara, e a coisa muda de figura. Hoje, quando eu vou visitar eles, e ainda levo uma grana, fica todo mundo na maior euforia... o pai, a mãe, todo mundo... Tudo bem... eu levo a grana, mais pra mostrar que sou independente e que estou me fazendo por mim mesmo. Eu sei que no fundo, aqueles dois estão é querendo me ver com a boca cheia de formigas. Só que eu sou duro... esse prazer aqueles putos não vão ter... praga de mãe, não me pega! Depois, quem é que teria coragem de me dar um tiro nos cornos? A polícia? Qual é... polícia e bandido, bandido e polícia, é tudo a mesma coisa... O senhor? Brincou! Todo mundo é cagão, malandro. Ninguém tem coragem pra porra nenhuma... O senhor teria coragem de me estourar a caveira, se tivesse um revólver na mão? Teria? Se eu te desse esta lâmina, cara... você teria coragem de me cortar? Vamos ver? Pega aí... pega canivete) aí, porra! Agora me (O outro corta... me pega o corta, porra... se defende! (Ele toma o canivete de volta) Eu não disse? Um bostão como todo mundo... como o pai, como a mãe... cheio de medo... não tem coragem nem pra se defender. Um bostão de merda! (Blecaute. Volta luz geral. Gracinha vem saindo do banheiro). GRACINHA - Agora eu preciso ir mesmo embora. (O outro está visivelmente envergonhado) Que é isso, menino? Não fique assim não... você não foi o primeiro, bobinho... muitos senhores já me fizeram meter neles assim, vestido de mulher... se a moda pega! É sempre assim... a gente acaba sempre comendo o cara que veio comer a gente. Eu entendo um pouco dessas coisas... eu só não sabia era que você estava tão numa pior. Ah, eu vi que você tinha um gravador ligado, o tempo inteiro... é alguma espécie de tara ou é para o Globo Repórter? Você deve ter uma porção de fitas como essa. Eu não sei o que você pretende fazer com elas... mas pode usar a minha... a nossa, da maneira que bem entender... eu não estou ligando nadinha. Eu estou indo, tá? Eu vou assim mesmo... nessa hora não tem mais ninguém na rua, e eu estou indo aqui pertinho... mas tanto faz... eu acho que eu já nasci para esta vida... está no sangue! (O outro tenta fazer o pagamento. Ela rejeita, muito falsamente) Que é isso... dinheiro? Não... não precisa... eu não faço essas coisas por dinheiro... por favor... não precisa mesmo... (Quando ele desiste, ela avança no dinheiro) Um dinheirinho sempre ajuda, não é mesmo? Business is business! Deus lhe pague! Me leva até a porta? Você sabe onde eu trabalho, não sabe? Qualquer coisa, é só pintar, a gente pode até sair novamente, numa boa... se eu não estiver... bem... se eu não estiver... pode ser que eu esteja servindo o Exército... Eu hein, foda-se! (Blecaute). RENGUITEM - Uma vez eu tive que fazer um gringo... num hotel na Frei Caneca... tive que cortar o desgraçado inteirinho... e eu não tive culpa... a besta não falava português... I love, I love... sei lá que diabo de língua era aquela... não deu diálogo. Eu querendo argumentar e o gringo só no I love... I love... Deixei o puto todo riscado, na banheira... parecia um porcão, grunhindo e se afogando no sangue... o puto queria respirar, e cadê o ar? Só saindo sangue... Aí eu me mandei pra Brasília... fiquei por lá durante quase um ano. De vez em quando eu dava uma olhada nos jornais... nada! Parece que o pessoal do hotel não encontrou o corpo até hoje. E já tem o quê? Quase dois anos... abafaram tudo... não sei por que... vai ver que o puto era importante. Sabe o que me deixa puto da vida? Eu fiquei sem saber o nome do porcão. (Toca a campainha da porta. Sobressaltado) Quem é? (Toca novamente) Cara, quem é esse puto que está aí? Tem alguém sabendo que eu subi com você? (Toca novamente, mais insistente agora) Cara, se você me aprontou uma armadilha, puta que o pariu! Vai lá... vai lá ver quem é... vai... (O outro hesita um pouco e acaba indo atender a porta, quando o menino, apavorado, lança-se num vôo, sobre ele, estrangulando-o com o cinto que tinha nas mãos. Na seqüência, Serginho abre a porta e quando vê o corpo caído, corre para ele, desesperado. Renguitem aproveita esse momento para fugir sem ser percebido. Serginho tem o corpo em seu colo. Sirenes de polícia. Luz vermelha girando. Ele foi apanhado em flagrante). SERGINHO - Não fui eu... eu juro... eu sou inocente... Quando eu cheguei aqui, ele já estava morto! (Blecaute. O último bloco de Marcos. A história já terminou. Ele está sozinho no apartamento e é um pouco como porta-voz de todos os garotos que passaram por ali, que ele fala. Na ausência do dono do apartamento, ele fala com o público e com os outros garotos, que vão voltando ao palco, um a determinadas. um, em Entrando falas por pré- últimos, Renguitem, Serginho e Gracinha). MARCOS - Michês, é assim que vocês nos chamam, não é? Eu só sei que agora não me falta uma boa refeição, uma grana no bolso... e isso me parece bem melhor que dormir num banco de praça ou sair assaltando por aí, à mão armada, como é a saída de muita gente que eu conheço. Agora eu pergunto: o que isso tudo mudou em mim? Eu continuo sentado naquela cadeira número onze, esperando que o meu ônibus parta da rodoviária... o pedido de Eduardo, ainda me bate nos ouvidos... e eu ainda estou partindo, à procura do meu destino... As pessoas que cruzaram comigo, e foram tantas, não absolutamente me nada. acrescentaram De verdade, nós sempre estivemos sozinhos... Cada boca que a gente beija, é sempre a boca da gente mesmo... e sempre, quando eu fodia alguém era a mim mesmo que eu estava fodendo! Nunca, mas nunca mesmo, alguém trepou a parte verdadeiramente trepável de nós. É isso... a gente trepa esses homens, por profissão! Mas outro dia eu volto aqui... aí, vou inventar uma história do caralho, pra te deixar bem fissurado. Uma história bem sórdida e sacana, para compensar essa de hoje, tá legal? Fica combinado assim! Agora... vamos ao que interessa? Nisso, eu garanto que sou bem melhor do que em contar histórias... Vamos nessa? Desligue esse gravador e guarde essa fita com cuidado... amanhã, você pode mandá-la para os jornais, para as rádios, para a televisão... torná-la pública, para que todo mundo saiba. Todas as mães, os pais, o filho mais velho, os vizinhos, o padre, a polícia... para que todos saibam... para que mais tarde, ninguém alegue ignorância! FIM