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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA O PROBLEMA VENATÓRIO NO ALENTEJO: CAÇA, COSTUMES E TENSÕES SOCIAIS (1974-2000) VOLUME I Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA 2005 2 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA O PROBLEMA VENATÓRIO NO ALENTEJO: CAÇA, COSTUMES E TENSÕES SOCIAIS (1974-2000) VOLUME I Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA Tese orientada por Professor Doutor António Adriano de Ascensão Pires Ventura 2005 3 “O que contém estas páginas são as impressões de um mundo, muito próximo de nós, mas de que quase todos os que escrevemos, andamos muito alheados – o mundo dos campos”. Zacharias D‘ Aça, Caçadas Portuguesas, Lisboa, Companhia Nacional, 1899, p. 1. 4 ABSTRACT Hunting has very deep origins and Cynegeticus historiography seeks to contribute for its clarification, on the subject of the life of the man-hunter regarding subsistence, privilege or recreation. Any of these is an excellent starting point not only to reappraise the evolution of hunting, but also they are the reason of numerous conflicts and many contradictions. We shall, therefore, try to understand the complexity that represented the exploitation of the wild resources and hunting in the Alentejo. The first phenomenon has always followed the changes occurred regarding goods; the latter – hunting - has always marked the agrarian panorama in the largest part of the region from the 25th of April 1974 until the end of 2000. Most Portuguese hunters found their cultural matrix in the Revolution of April 1974. That fact coincided with the end of the game preserve 1975 and it’s recycling into free land. Most game preserves were situated in the immense South of the Alentejo. We shall analyze their different components, mainly local uses, traditions and ways of life and their confrontation with a new period of the Portuguese democracy, the socialization of the wild resources and the paradigm of the hunter-explorer. Moreover, it is part of our erudition to look at the causes and motivations of the conflicts in the South territory around the hunting-agriculture topic, resulting from the reduction of the hunting territory and the depopulation in the free land, the right of hunting, aspects of the environmental politics and the procedures of the Public Administration. After a long process of social and agrarian change, in 1986, the implementation of the new Cynegeticus model revived the spirit of game preserve in the Alentejo and allowed the expansion of a new politics of hunting, more capitalist and intensive, and in relation to the past, comparatively more modern and gradual, closely following the economy concerning natural renewable resources. However, this was not consolidated an entrepreneurial model. On the contrary, there were doubts related to existence of organization skills, apart from the inequalities and conflicts between hunters and landowners. To conclude, it was also our intention to investigate the impact of the environmental planning and the management of wild resources in the trade business and in social and cultural activities of the rural world. On the whole, these originated the Cynegeticus activity in that region. Word-key: Alentejo, hunting, game preserve, after the 25th of April, free land. 5 RESUMO A caça tem raízes muito profundas que a historiografia cinegética procura esclarecer. Em causa estará o modo de vida do homem-caçador por subsistência, privilégio ou recreio. Qualquer um deles são um excelente ponto de partida para uma reapreciação da evolução da caça, mas também motivo de numerosos conflitos e de muitas contradições. Vamos, pois, tentar compreender a complexidade que representou o aproveitamento dos recursos bravios no Alentejo. Este fenómeno sempre acompanhou as mudanças ocorridas numa categoria de bens, a caça, que desde cedo marcou o panorama agrário na maior parte da sua extensão no período pós-25 de Abril de 1974 até finais do ano de 2000. A maior parte dos caçadores portugueses encontrou a sua matriz cultural na Revolução de Abril de 1974. Este facto coincidiu com o fim das coutadas em 1975 e a sua reconversão em terreno livre, cuja maioria se encontrava no Imenso Sul alentejano, que analisaremos nas suas diferentes componentes, designadamente usos, tradições e costumes locais e a sua confrontação com um novo período da democracia portuguesa, a socialização dos recursos bravios e o paradigma do caçador-explorador. Igualmente, faz parte da nossa erudição procurar as causas dos conflitos nos campos do Sul em torno da problemática caça-agricultura, resultantes da diminuição do território de caça e do despovoamento no terreno livre, o direito de caça, aspectos da política meio ambiental e os procedimentos da Administração Pública. Após um longo processo de mudança social e agrária, em 1986, a implementação do novo modelo cinegético reavivou o espírito de coutada no Alentejo e permitiu a expansão de uma nova política de caça, mais capitalista e intensiva, em relação ao passado comparativamente mais moderna e progressiva, seguindo de perto a economia dos recursos naturais renováveis. Porém, não se consolidou ainda como um modelo exemplar de tecido associativo e empresarial, pois gerou desequilíbrios e conflitos entre caçadores e proprietários. Para concluir, foi também nosso propósito investigar o impacto do ordenamento e gestão dos recursos bravios nas actividades económicas, sociais e culturais do mundo rural que, no seu conjunto, estiveram na origem da actividade cinegética naquela região. Palavras-chave: Alentejo, caça, coutadas, pós-25 de Abril, terreno livre. 6 ÍNDICE NOTA PRÉVIA.......................................................................................................................................15 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................20 CAPÍTULO I – CONCEITOS OPERATÓRIOS 1. O PROBLEMA E SUA JUSTIFICAÇÃO.................................................................................................26 2. MEIOS E TÉCNICAS .............................................................................................................................31 3. REFLEXÕES E LIMITAÇÕES ...............................................................................................................37 CAPÍTULO II-TEMAS E PROBLEMAS DO QUOTIDIANO VENATÓRIO 1. O CAÇADOR PRIMITIVO ......................................................................................................................44 2. ÉTICA E NATUREZA SOCIAL DA CAÇA..............................................................................................50 3. ORIGEM E DIGNIDADE DA CAÇA .......................................................................................................58 4. CAÇA NA EUROPA ...............................................................................................................................60 4.1. A SUSTENTABILIDADE DOS RECURSOS BRAVIOS ......................................................................60 4.2. A CAÇA COMO REGULADOR DA FAUNA SILVESTRE...................................................................67 4.3. PROBLEMÁTICA JURÍDICA DA CAÇA .............................................................................................68 4.3.1. CAÇA E NATUREZA .......................................................................................................................71 4.3.2. CAÇA E DIREITO ............................................................................................................................72 4.3.3. DIREITO DE CAÇA E DIREITO DE PROPRIEDADE .....................................................................74 4.3.4. DIREITO DE CAÇA E COMPETÊNCIAS DO ESTADO ..................................................................75 4.4. MODELOS DE CAÇA .........................................................................................................................80 4.4.1. ALEMANHA .....................................................................................................................................80 4.4.1.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ...............80 4.4.1.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAÇA...........................................................81 4.4.1.3. PERÍODOS DE CAÇA ..................................................................................................................81 4.4.1.4. HORÁRIOS DE CAÇA ..................................................................................................................82 4.4.1.5. LICENÇAS DE CAÇA ...................................................................................................................82 4.4.2. INGLATERRA E PAÍS DE GALES...................................................................................................84 4.4.2.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ...............84 4.4.2.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAÇA...........................................................85 4.4.2.3. PERÍODOS DE CAÇA: O CALENDÁRIO DE CAÇA ....................................................................85 4.4.2.4. INTERDIÇÃO DA CAÇA ...............................................................................................................86 4.4.2.5. CONCESSÃO DA CARTA DE CAÇADOR ...................................................................................86 4.4.3. ESPANHA ........................................................................................................................................87 4.4.3.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ...............87 4.4.3.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAÇA...........................................................88 4.4.3.3. PERÍODOS DE CAÇA ..................................................................................................................90 4.4.3.4. HORÁRIOS DE CAÇA ..................................................................................................................91 4.4.3.5. CARTAS DE CAÇADOR...............................................................................................................91 4.4.4. ITÁLIA ..............................................................................................................................................92 7 4.4.4.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ...............92 4.4.4.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAÇA...........................................................93 4.4.4.3. PERÍODOS DE CAÇA ..................................................................................................................94 4.4.4.4. INTERDIÇÃO DA CAÇA ...............................................................................................................94 4.4.4.5. HORÁRIOS DE CAÇA ..................................................................................................................95 4.4.4.6. CARTA DE CAÇADOR .................................................................................................................95 4.4.5. FRANÇA ..........................................................................................................................................97 4.4.5.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ...............97 4.4.5.2. MODALIDADES DE CAÇA ...........................................................................................................98 4.4.5.3. PERÍODOS DE CAÇA ..................................................................................................................99 4.4.5.4. HORÁRIOS DE CAÇA ..................................................................................................................99 4.4.5.5. CARTA DE CAÇADOR .................................................................................................................99 4.4.6. PORTUGAL ...................................................................................................................................100 4.4.6.1. TERRITÓRIOS DE CAÇA: O DIREITO DE CAÇA E O DIREITO DE PROPRIEDADE .............100 4.4.6.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAÇA.........................................................101 4.4.6.3. PERÍODOS DE CAÇA ................................................................................................................103 4.4.6.4. INTERDIÇÃO DA CAÇA .............................................................................................................104 4.4.6.5. HORÁRIOS DE CAÇA ................................................................................................................104 4.4.6.6. CARTA DE CAÇADOR ...............................................................................................................105 4.4.6.7. CONCESSÃO DA CARTA DE CAÇADOR .................................................................................105 4.4.6.8. RENOVAÇÃO DA CARTA DE CAÇADOR .................................................................................106 4.4.6.9. CADUCIDADE DA CARTA DE CAÇADOR ................................................................................106 5. CONSERVAÇÃO DA NATUREZA.......................................................................................................108 5.1. INSATISFAÇÃO E PROTECCIONISMO ..........................................................................................115 5.2. REGULAMENTAÇÃO .......................................................................................................................117 5.2.1. CITES.............................................................................................................................................119 5.2.2. CONVENÇÃO DE BERNA.............................................................................................................119 5.2.3. DIRECTIVA 79/409/CEE (AVES)...................................................................................................121 5.2.4. DIRECTIVA 92/43/CEE – FAUNA/ FLORA/ HABITATS................................................................122 5.3. COMPLEXIDADE DO SISTEMA ......................................................................................................126 6. ADMINISTRAÇÃO VENATÓRIA .........................................................................................................132 6.1. SERVIÇO NACIONAL DE PARQUES, RESERVAS E CONSERVAÇÃO DA NATUREZA..............133 6.2. INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA..........................................................................138 6.3. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA ....................................................................................................141 CAPÍTULO III – A REGIÃO DO ALENTEJO NO SÉCULO XX. ECONOMIA, SOCIEDADE E FORMAS DE OCUPAÇÃO DE ESPAÇO 1. QUADRO NATURAL............................................................................................................................145 2. A POLÍTICA AGRÁRIA DO ESTADO NOVO ......................................................................................149 3. FIM DO ESTADO NOVO E A REFORMA AGRÁRIA ..........................................................................162 4. POLÍTICA AGRÍCOLA NO PASSADO RECENTE ..............................................................................174 4.1. ESTRUTURAS DEMOGRÁFICAS....................................................................................................182 8 4.2. ESTRUTURAS FUNDIÁRIAS ...........................................................................................................187 4.3. ESTRUTURAS ECONÓMICAS ........................................................................................................196 CAPÍTULO IV – EVOLUÇÃO VENATÓRIA 1. CAÇA, COSTUMES E PRIVILÉGIOS..................................................................................................206 1.1. PANORAMA GERAL ........................................................................................................................206 1.2. PENÍNSULA IBÉRICA ......................................................................................................................211 1.3. PORTUGAL ......................................................................................................................................218 2. REGIME DE COUTADA ......................................................................................................................224 2.1. GÉNESE AO LIBERALISMO ............................................................................................................224 2.2. LIBERALISMO AO FINAL DO SÉCULO XIX....................................................................................247 2.3. PRIMÓRDIOS DA REPÚBLICA AO FINAL DO ESTADO NOVO ....................................................256 CAPÍTULO V – A SOCIALIZAÇÃO DA FAUNA BRAVIA (1974-1986) 1. REVOLUÇÃO VENATÓRIA.................................................................................................................262 2. REACÇÃO DAS COMISSÕES VENATÓRIAS ....................................................................................268 3. EXTINÇÃO DOS ARAMADOS: O RUMO DA DESORDEM................................................................272 4. DEFENSORES E DETRACTORES.....................................................................................................285 5. ABOLIÇÃO DAS COUTADAS .............................................................................................................292 6. DIFICULDADES DO ESTADO.............................................................................................................296 7. LUTA DAS COMISSÕES VENATÓRIAS.............................................................................................302 7.1. AS CONSEQUÊNCIAS DO DECRETO-LEI Nº 149/79 ....................................................................304 8. IRRUPÇÃO DA CULTURA DO TERRENO LIVRE..............................................................................310 9. OFENSIVA PREDADORA ...................................................................................................................320 9.1. MASSACRE FAUNÍSTICO ...............................................................................................................320 9.2. FURTIVOS E DELINQUENTES........................................................................................................326 9.3. VÂNDALOS E LADRÕES .................................................................................................................351 10. INEFICÁCIA DA FISCALIZAÇÃO VENATÓRIA ................................................................................357 11. INUTILIDADE DAS RESERVAS DE ORDENAMENTO CINEGÉTICO .............................................364 12. REGIME DE CAÇA SOCIAL..............................................................................................................368 12.1. ZONA DE CAÇA CONDICIONADA DE VILA VIÇOSA...................................................................372 12.2. ZONA DE CAÇA CONDICIONADA DA COUDELARIA DE ALTER DO CHÃO .............................377 12.3. ZONA DE CAÇA CONDICIONADA DA CONTENDA .....................................................................387 CAPÍTULO VI – A REFORMA DA VENATÓRIA (1974-2000) 1. TENTATIVAS .......................................................................................................................................408 1.1. COMISSÃO DE REVISÃO DA LEI DE CAÇA E O PROJECTO -A ..................................................408 1.2. PROJECTO – B ................................................................................................................................412 1.2.1. OPOSIÇÃO DA COMISSÃO VENATÓRIA REGIONAL DO SUL..................................................417 1.3. MOVIMENTOS DE CONTESTAÇÃO ...............................................................................................419 9 1.4. PROJECTO-LEI N.º 486/I .................................................................................................................425 1.4.1. ANTAGONISMOS E CONTRADIÇÕES ........................................................................................427 1.5. PROJECTO-LEI N.º 323/II ................................................................................................................434 1.6. PROJECTOS-LEI I, II, III: CONTEÚDOS E DISCUSSÃO PÚBLICA................................................435 1.7. PROJECTO-LEI N.º 363/III ...............................................................................................................446 1.8. PROJECTO-LEI N.º 416/III ...............................................................................................................448 1.9. PROJECTO-LEI N.º 448 / III .............................................................................................................452 1.10. PROPOSTA DE LEI N.º 15/IV ........................................................................................................453 1.11. PROJECTO-LEI N.º 24/IV...............................................................................................................453 1.12. PROJECTO-LEI N.º 68/IV...............................................................................................................453 1.13. PROPOSTA DE LEI N.º 1/IV ..........................................................................................................454 1.14. PROJECTO-LEI N.º 73/IV...............................................................................................................456 1.15. PROJECTO-LEI N.º 74/IV...............................................................................................................457 2. DEBATE CONJUNTO DOS PROJECTOS-LEI ...................................................................................460 3. MEDIAÇÃO DA COMISSÃO DE AGRICULTURA DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA......................474 4. CONTRIBUTOS PARA A REFORMA DA LEI N.º 30/86 .....................................................................478 4.1. PROJECTO-LEI N.º 299/V................................................................................................................487 4.2. PROJECTO-LEI N.º 208/VI...............................................................................................................487 4.3. APRECIAÇÃO DO DECRETO-LEI N.º 251/92 .................................................................................489 4.4. PROJECTO-LEI N.º 326/VI...............................................................................................................493 4.5. DISCUSSÃO CONJUNTA ................................................................................................................496 4.6. PROPOSTA DE LEI N.º 142/VII/99, LEI DA CAÇA N.º 173/99 E DECRETO-LEI Nº 227B/2000......................................................................................................................................................507 4.7. AUDIÇÃO PARLAMENTAR: CONTRIBUTOS E CRÍTICAS ............................................................513 CAPÍTULO VII – O CICLO DA CAÇA ORDENADA (1986-2000) 1. ABERTURA À CONTEMPORANEIDADE ...........................................................................................539 2. OFENSIVA ASSOCIATIVISTA ............................................................................................................551 3. DIFICULDADES DE ORGANIZAÇÃO .................................................................................................561 4. INTERVENIENTES E PROMOTORES................................................................................................576 4.1. REUNIÕES, DEBATES E CONTRADIÇÕES ...................................................................................582 4.2. CONSELHOS NACIONAIS DA CAÇA..............................................................................................592 4.3. OS CONFLITOS EM TORNO DAS ZONAS DE CAÇA ASSOCIATIVAS.........................................599 5. ORGANIZAÇÃO LOCAL DA CAÇA NO ALENTEJO...........................................................................615 5.1. SIGNIFICADO SOCIO-ECONÓMICO DO TURISMO VENATÓRIO ................................................621 5.1.1. ENDAC: UMA EMPRESA CINEGÉTICA DO ESTADO.................................................................624 5.1.2. INTERESSES E NEGÓCIOS.........................................................................................................627 5.2. PREJUÍZOS CAUSADOS PELA FAUNA BRAVIA ...........................................................................631 5.3. COMPATIBILIDADE E OBSTÁCULOS ............................................................................................643 5.3.1. CAÇADORES DO REGIME CINEGÉTICO GERAL ......................................................................644 5.3.2. CAÇADORES DO REGIME CINEGÉTICO ESPECIAL.................................................................649 5.3.2.1. ZONAS DE CAÇA ASSOCIATIVAS ...........................................................................................652 10 5.3.2.2. TURISMO RURAL E ACTIVIDADE CINEGÉTICA .....................................................................657 5.4. CAÇA TRADICIONAL .......................................................................................................................671 5.4.1. BATIDAS ÀS RAPOSAS................................................................................................................672 5.4.2. MONTARIAS AOS JAVALIS..........................................................................................................680 5.5. DESENVOLVIMENTO DO REGIME CINEGÉTICO ESPECIAL.......................................................684 5.5.1. USOS E ABUSOS DOS CONCESSIONÁRIOS ............................................................................689 5.5.2. MENOSPREZO PELA SINALIZAÇÃO...........................................................................................690 5.5.3. FRAUDE CONTRATUAL ...............................................................................................................693 5.5.4. INCAPACIDADE DE GESTÃO CINEGÉTICA ...............................................................................702 5.5.5. VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE POR IMPOSIÇÃO DOS ENCLAVES ..................710 5.5.6. FUGA ÀS OBRIGAÇÕES TÉCNICO-JURÍDICAS.........................................................................717 5.5.7. CRIMES CONTRA OS RECURSOS BRAVIOS ............................................................................756 5.5.8. PROTESTOS DAS POVOAÇÕES.................................................................................................764 5.5.9. TRANSFERÊNCIA DE CONCESSÃO...........................................................................................767 5.5.10. ANTAGONISMOS E CONFLITOS...............................................................................................772 5.5.11. BRIGA PELOS ACORDOS DE CAÇA.........................................................................................778 5.5.12. OBSTRUÇÃO DOS CAMINHOS VICINAIS.................................................................................789 5.6. NEGÓCIO DA CAÇA ........................................................................................................................792 5.6.1. PAGAMENTO EM DINHEIRO .......................................................................................................792 5.6.2. A TROCO DE OBRAS DE RECUPERAÇÃO ................................................................................795 5.6.3. POR OUTRAS CONTRAPARTIDAS .............................................................................................796 5.6.4. A TÍTULO GRATUITO ...................................................................................................................798 5.6.5. PREÇO NOS ENCLAVES .............................................................................................................799 6. FOGOS E RETALIAÇÃO .....................................................................................................................800 7. A CUMPLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO..........................................................................................802 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................................................805 ABREVIATURAS,SIGLAS E ACRÓNIMOS.............................................................................................830 FONTES E BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................835 ÍNDICE DE GRÁFICOS Gráfico 1. A importância do PAB na formação do PIB em percentagem..............................................................178 Gráfico 2. População residente por sexo e densidade populacional/km² (1992)..................................................184 Gráfico 3. População residente total por classe etária no Alentejo e Continente (1992)......................................184 Gráfico 4. Grau de instrução da população da Região do Alentejo (1993)...........................................................185 Gráfico 5. Quantidade de trabalho agrícola anual existente no Alentejo (Has e %)..............................................192 Gráfico 6. Has por SAU e ceifeiras debulhadoras.................................................................................................193 Gráfico 7. A Região Alentejo em 1999. Comparação em percentagem com o Continente...................................195 Gráfico 8. Margem Bruta standard da Região Alentejo (por 1000$00).................................................................197 Gráfico 9. Rendimento da terra no Alentejo (1997)...............................................................................................198 11 Gráfico 10. Índice de emprego e pluriactividade no Alentejo................................................................................202 Gráfico 11. Coutadas e Aramados (has) existentes no Alentejo (1974)................................................................295 Gráfico 12. Origem dos caçadores identificados que invadiram a Contenda em 1975.........................................395 Gráfico 13. Jornadas de caça na Contenda (1986/1987): receita ilíquida.............................................................401 Gráfico 14. Resultados da caça ao javali e veado na ZCC da Contenda (1983-1987).........................................401 Gráfico 15. Estimativa da caça maior na Contenda (1987-1988)..........................................................................402 Gráfico 16. Receita das montarias aos javalis no Perímetro Florestal da Contenda (1989-1991).......... .............402 Gráfico 17. Tipos de zonas de caça e percentagem de ocupação do solo...........................................................447 Gráfico 18. RCE. Valores totais na IV Região Cinegética (Dezembro de 1988)...................................................544 Gráfico 19. RCE. Valores totais na IV Região Cinegética - Alentejo (Dezembro de 2000)...................................544 Gráfico 20. Concelhos englobados na IV Região Cinegética................................................................................545 Gráfico 21. Evolução das cartas de caçador em Portugal (1993-2000)................................................................548 Gráfico 22. Exames de carta de caçador. Totais nacionais (1986-1995)..............................................................549 Gráfico 23. Resultados dos exames de carta de caçador (1986-1995)................................................................549 Gráfico 24. Aprovação em percentagem dos candidatos no exame de carta de caçador (1986-1995)................549 Gráfico 25. Número de caçadores com licença de caça por Região Cinegética (1992).......................................550 Gráfico 26. Grupos etários dos caçadores do RCG no Alentejo...........................................................................644 Gráfico 27. Como tomou conhecimento da existência de caça?...........................................................................645 Gráfico 28. Como caça o caçador do terreno livre................................................................................................645 Gráfico 29. Custo do terreno de caça livre para a actividade cinegética...............................................................648 Gráfico 30.Quem deve fazer a gestão cinegética do Terreno Livre?....................................................................648 Gráfico 31. Opinião dos caçadores do RCG sobre a Lei da Caça nº 30/86..........................................................649 Gráfico 32. Frequentadores das ZCT por grupos profissionais.............................................................................650 Gráfico 33. Gasto anual do caçador das ZCT com a actividade cinegética..........................................................651 Gráfico 34. Opinião dos caçadores do RCE sobre a Lei da Caça n.º 30/86.........................................................652 Gráfico 35. Profissões mais frequentes entre os associados da ZCA...................................................................653 Gráfico 36. Área média disponível para os caçadores das ZCA...........................................................................654 Gráfico 37. Principais espécies caçadas nas ZCA................................................................................................655 Gráfico 38. Gastos anuais de um caçador nas ZCA (em contos).........................................................................655 Gráfico 39. Opinião dos caçadores das ZCA sobre a Lei da Caça nº 30/86.........................................................656 Gráfico 40. Actividades ou sectores económicos que beneficiam com a caça.....................................................656 Gráfico 41. Evolução das ZCT a nível nacional (1988-2000)................................................................................658 Gráfico 42. Capacidade de Alojamento no Alentejo (camas) em Julho de 1996..................................................660 12 Gráfico 43. Localização da sede do concessionário.............................................................................................661 Gráfico 44. Número de entidades concessionárias sedeadas na Região do Alentejo (Julho de 1997)...............662 Gráfico 45. Número de ZCT por concelho em Julho de 1998...............................................................................663 Gráfico 46. Distribuição dos inquiridos por grupos etários....................................................................................664 Gráfico 47.Total de propriedades que constituem a ZCT......................................................................................664 Gráfico 48. Razões da concessão da ZCT............................................................................................................666 Gráfico 49. Espécies de caça menor preponderante............................................................................................667 Gráfico 50. Origem dos caçadores das ZCT no Alentejo......................................................................................668 Gráfico 51. Número de raposas abatidas nalguns distritos de Portugal (1980/1981)...........................................677 Gráfico 52. Abate de raposas. Representatividade de alguns distritos (1983/1984).............................................678 Gráfico 53. Raposas abatidas no Alentejo. Concelhos mais representativos (1981-1984)...................................678 Gráfico 54. Componentes da dieta alimentar da raposa.......................................................................................679 Gráfico 55. Coutadas e aramados existentes no Alentejo em Abril de 1974........................................................685 Gráfico 56. Evolução das áreas de reservas de caça (has) em Portugal (1973-1977).........................................685 ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1. Titularidade do direito de caça nalguns países da Europa......................................................................76 Tabela 2. Situação das Directivas Aves e Habitats. Informação oficial dos Estados-membros (1996)................126 Tabela 3. Situação do Barómetro Natura depois da aprovação da Lista Nacional de Sítios em Portugal............131 Tabela 4. Classificação global dos solos do Alentejo............................................................................................147 Tabela 5. Entrega de terras a antigos proprietários/ has (1978-1981)..................................................................172 Tabela 6. SAU na Região do Alentejo. Contraponto com o continente (has): representatividade (%) e por classes……………………………………………………………………………………………………………………….190 Tabela 7. Dispersão da SAU e n.º de explorações: representatividade/escalão no Alentejo................................190 Tabela 8. Evolução do rendimento dos agricultores na Região do Sequeiro Alentejano......................................200 Tabela 9. Meios técnicos e humanos da CVRS (1974-1976)................................................................................359 Tabela 10. Transgressões à Lei da Caça – 1984..................................................................................................360 Tabela 11. Transgressões à Lei da Caça na área da CVRS.................................................................................361 Tabela 12. Evolução da ocupação do solo na Contenda em has.........................................................................393 Tabela 13. Peças de caça abatidas na Contenda (1968-1979)............................................................................394 Tabela 14. Peças de caça abatidas nos dias da invasão da Contenda (1975).....................................................395 Tabela 15. Áreas totais cinegéticas disponíveis por caçador e percentagem nalguns Estados da Europa..........542 13 Tabela 16. Evolução das cartas de caçador a nível nacional (1968-1983)...........................................................547 Tabela 17. Batidas às raposas na Administração Florestal de Moura..................................................................673 Tabela 18. Batidas às raposas no distrito de Beja (1980-1981)............................................................................674 Tabela 19. Batidas às raposas no distrito de Évora (1980-1981)..........................................................................674 Tabela 20. Batidas às raposas no distrito de Portalegre (1980-1981)..................................................................675 Tabela 21. Número de raposas abatidas a nível nacional/distrito (1980-1981)....................................................676 Tabela 22. Montarias aos javalis na Administração Florestal de Moura...............................................................682 Tabela 23. Zonas de caça do RCE na IV Região Cinegética (Alentejo).Valores totais em 2000..........................686 Tabela 24. Estimativa dos encargos da caça. Valores (milhares de contos) em Portugal (1992-1993)...............687 Tabela 25. Associações de caçadores registadas na DGF (1986-2000)..............................................................688 Tabela 26. Resultados das caçadas na ZCC da Lagoa de Santo André (1986-1999)..........................................748 ÍNDICE DE ORGANOGRAMAS Organograma 1. Origem da Rede Natura 2000....................................................................................................118 14 NOTA PRÉVIA O presente trabalho procura analisar a actividade cinegética na Região Alentejo e a sua relação com os habitantes regulares dos campos, na perspectiva da História Social, num quadro cujos limites cronológicos se iniciam em 1974 com o fim do Estado Novo e se estendem até ao final do ano 2000. Embora permanecendo dentro das fronteiras nacionais e privilegiando o Alentejo, foi nosso desejo que este estudo contribuísse para melhor conhecimento e debate em torno da Europa Mediterrânea. A opção por um limite cronológico justifica-se pelo reconhecimento de factos políticos e sociais marcantes da sociedade portuguesa e da cinegética, em especial, que reformaram substancialmente a sua orgânica, mas que não comprometem um estudo sério em tratamento e profundidade, nem demasiado curto para obviar uma avaliação positiva. Estamos convictos da extrema dificuldade em avaliar a força e capacidade de transformação dos contextos da vida das comunidades porque nem sempre ficam claros e assinalados os traços e as marcas do exercício do seu próprio poder. Mas importa, julgamos, fundamentar mais profundamente as opções assumidas, algumas das quais deixamos explicitas e que se não resumem, como é óbvio, às questões inerentes à evolução cinegética. Pelo contrário, sem descurar a história meramente quantitativa ou de simples narrativa cronológica, pois não há possibilidade de fazer história interpretativa sem a narração ordenada dos acontecimentos e sem dados quantitativos, o historiador das sociedades é igualmente guiado por análises profundas, que não se limitam a recordar percentagens, mas evocam todos os aspectos da vida social, das actividades, das relações entre os homens. O historiador do social não deve cingir-se a constituir um esquema; pelo contrário, deve partir de factos concretos e, antes de concluir, reflectir nas diversidades, nos casos específicos 1. Nesta circunstância, a administração venatória no contexto do desenvolvimento dos normativos jurídicos e administrativos, que a foram configurando ao longo do tempo, constituiu, sempre, a expressão de processos de transformações económicas, sociais, 1 Explicitamente enumeradas por Jacques Heers no prefácio à tese de doutoramento de Ana Maria Seabra de Almeida Rodrigues, Torres Vedras. A vila e o termo nos finais da Idade Média, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro de 1995, pp. 13-14. 15 culturais e políticas que ocorreram em Portugal, desde a origem até ao final do Estado Novo, quando o período revolucionário se instalou, abolindo o regime dos aramados e das coutadas. Após a consolidação da democracia, procuramos descrever a articulação permanente entre as grandes balizas definidoras da política cinegética que, no seu conjunto, permitirão uma adequada compreensão da mutação do regime livre para a caça ordenada; o aproveitamento dos recursos naturais renováveis; o contexto global em que se afirmou ou não a autonomia dos proprietários e do quadro da evolução das suas atribuições e competências próprias. Não tinha, pois, sentido estudar o meio rural sem o meio político urbano, na sua universalidade, o centro de decisão condicionante da vida rural. Em Lisboa achavam-se os poderes legislativo e governamental, o primeiro que produzia as leis, o segundo que aplicava as normas que, por sua vez, regulavam toda a vida cinegética. O estudo será, pois, orientado, numa perspectiva que evitará juízos de valor e possíveis enviusamentos, face à delicadeza do problema, que é de natureza essencialmente social e política, cujo desafio, ainda que aliciante, deseja identificar os vários protagonistas da sociedade venatória, de os descrever brevemente e medir o número e dimensão no espaço, ao longo de vinte e seis anos. A descrição dos domínios visíveis fornecer-nos-á, se tal conseguirmos, uma boa parte daquilo que importa conhecer. Convém, no entanto, sublinhar que uma das dimensões que mais notoriamente contraria qualquer ilusão de transparência resulta da própria forma como a organização da sociedade se fundamenta, ou seja – o que a sociedade era e devia continuar a ser –, consubstancia-se nas instituições, nos usos e costumes. As palavras e as instituições legítimas encontram-se, assim, cristalizadas, numa herança secular, sempre avessa às novidades ou, em muitas circunstâncias, criando focos de resistências e poderes localizados. Consequentemente, todos os processos de mudança social, institucional ou política, como também os próprios percursos familiares e individuais de mobilidade social, tinham de se legitimar quase sempre invocando esse legado. Uma das heranças da Revolução de Abril de 1974 resultou na democratização da actividade cinegética no espaço continental português que passou a ser livre para o caçador indiferenciado. Na verdade, a abertura dos espaços privados ao caçador e a regulação das relações interpessoais são precisamente aquelas que se revelam mais 16 difíceis de combater e analisar. Por isso, tais conceitos irão ser aprofundados, sem reservas, no sentido de clarificar o discurso que os une ou afasta, na teia de relações sociais. Estamos convictos de que não é possível compreender as transformações na cinegética e da sua relação com a História Rural, sem recurso à investigação, e sem tomar a peito as mudanças sectoriais no campo tão problemático quanto selvagem, ou não fosse a caça qualificada tanto de divina como selvagem. É, decerto, um risco assumir a responsabilidade de preencher o tempo, escrevendo, simultaneamente, uma parte substancial do seu texto, porque o título indicia uma ambição de âmbito vasto e exaustivo que, na realidade, não será integralmente preenchida. Uma parte do conteúdo desta ambição verificou-se estar para além das possibilidades materiais de tratar com profundidade, rigor e extensão de quase tudo o que o título da obra sugere. Começamos por explicar essa frustração. Algumas das maiores dificuldades, que fomos experimentando, condicionaram parcialmente a elaboração deste trabalho, sendo mais significativas no período de transição para a implantação do regime democrático, devido à destruição de grande parte dos arquivos históricos alusivos à cinegética no Estado Novo 2. A primeira das dificuldades encontradas residiu no facto de, para a generalidade da opinião pública, caçadores e matadores serem expressões equivalentes e com conteúdos justapostos. Tal identificação teve, de facto, uma configuração substantiva, pelo menos no período de 1974-1986, porque os governos foram incapazes de promover uma política venatória eficaz de modo a converter o acto cinegético num verdadeiro desporto. Sob este manto conflitual, uma massa indistinta de caçadores tornou-se furtiva, predadora e salteadora. Outra, menos perversa, gerou o caçadorexplorador. À partida a ideia generalizada, exceptuando alguns conflitos em meados do século XX, que os campos portugueses não haviam gerado manifestações sociais expressivas. Mas pensar na pacificidade do campo, em especial em tempo de transformações sociais como o início da República e o fim do Estado Novo, era, obviamente, absurdo. 2 Reafirmamos a constatação formulada na dissertação de Mestrado em História Regional e Local. Veja-se Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, O Problema Venatório no Distrito de Beja (1901-1975), Universidade de Lisboa-Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, p. 8. 17 Portugal seria caso único na Europa. O grande atraso da História Agrária, obriganos a penetrar aí muito mais do que inicialmente tencionávamos, pois só assim se torna inteligível o quadro em que decorria as tensões e os conflitos. Aqui residia, sem dúvida, a nossa maior dificuldade. Pacheco Pereira, por exemplo, caracteriza a região Sul pela sua conflitualidade frequente, nunca adormecida inteiramente. A quebra do ritmo dos conflitos (1957-1960) ocorrerá, quer pelo abandono da pressão sobre a terra, quer por estarem ausentes muitos dos organizadores das anteriores manifestações, uns na cadeia, outros mergulhados na vida clandestina3. Sabe-se hoje, que a História da Cinegética é um domínio em renovação, mais estimulante e fecundo, não apenas para a compreensão da sociedade do passado no seu conjunto e na dinâmica, mas também como facto privilegiado interdisciplinar e de ligações ricas entre passado e presente. Apesar destas dificuldades foi possível ultrapassar a visão fragmentária e dispersa que havia predominado o estudo das revoltas dos caçadores durante o século XX e a visão das causas acidentais e localizadas. Adquiriu-se a consciência da impossibilidade de compreender as transformações do mundo rural e sua transição para o regime democrático sem ter em conta as mudanças registadas no sector em que elas assentam, e as convulsões sociais que as acompanham, o que é válido, de resto, para todas as sociedades predominantes agrárias. A partir do final da década de 1974, os caçadores e as suas lutas entram definitivamente e, com relevo crescente, na historiografia contemporânea, contrariamente ao domínio, longamente privilegiado, do estudo de movimentos particulares no regime salazarista, onde a imprensa cinegética, sobretudo, erguendo a voz em nome dos caçadores, transpôs os terrenos da censura 4. Sobre as lutas dos caçadores, os camponeses e outros intervenientes do mundo rural, é importante dilucidar o seu papel nas transformações sociais e políticas, ou seja, a noção que alguns poderiam considerar axiológica, de que a História também deve ser relatada de baixo. 3 Paula Godinho, «A comunidade, classe e colectivismo no sul de Portugal. Couço, 1958-1962», Ler História, 40, Lisboa, ISCTE, 2001, pp. 128-129. 4 Para mais informação, veja-se Mário Bastos, ob. cit. 18 Não poderia terminar esta nota sem expressar o meu agradecimento a um grupo vário de pessoas e instituições, que de qualquer forma contribuíram para este trabalho e do qual se tornou tributário. Em primeiro lugar, a preparação do tema, incentivo e empenhamento do meu orientador, Prof. Doutor António Ventura, a quem quero demonstrar o meu profundo reconhecimento pelo ensinamento e oportunidade da leitura das suas obras e competência que me transmitiu, pelo modo como respeitou as minhas opções, deixando sempre o caminho aberto à liberdade de criação. Ao Prof. Doutor João Medina, pelo seu trabalho notável na área da História Contemporânea. Às muitas instituições que contribuíram para este projecto das quais destaco: Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Direcção-Geral das Florestas, Direcção-Geral de Turismo, Direcção Regional da Agricultura do Alentejo, Assembleia da República, Instituto Nacional de Administração. Aos funcionários de todas estas instituições pela sua disponibilidade permanente. À Professora Doutora Helena Rato, Directora do Departamento de Investigação do INA, pela sua sabedoria e empenho na prossecução deste trabalho, que apoiou em todos os momentos decisivos. Ao meu colega e amigo Dr. Rego Macedo pelo seu estimulo permanente ao longo de todo o trabalho. Ao velho amigo João Santiago. Ao Dr. Capoulas Santos e Eng.º Vítor Coelho Barros, que me abriram as portas à investigação no Ministério da Agricultura e serviços dependentes. Ao Dr. António Ferro pela total liberdade de acesso à investigação. Aos Engenheiros, Francisco Lopes e João Bugalho, conhecedores profundos das lides do mundo rural e dos recursos bravios. Ao Prof. Doutor Francisco Ramos, da Universidade de Évora, pela forma como me facultou o estudo sociológico recente sobre o Impacto das Zonas de Caça Associativas e Turísticas no Alentejo. A todos aqueles que partilharam comigo a aventura cinegética com paixão e alegria, dos quais destaco os grandes mestres: o meu pai José Carmo, Tio Farias, Rainho e Vicente. A todos os meus amigos ausentes nesta enumeração fica, porém, a minha eterna gratidão pela companhia nesta passagem pela vida. Ao povo alentejano, ao qual pertenço e me afirmo como homem do mundo rural. Finalmente, reservo uma palavra de sentido reconhecimento à minha esposa Maria Antónia, às minhas filhas, Nádia e Erica, e aos meus pais e familiares pela paciência e modo como se dignaram aceitar esta longa e exaustiva jornada com natural prejuízo da sua imprescindível companhia. 19 INTRODUÇÃO A caça é um tema que movimenta forças, cria polémica e suscita discussão como poucos outros. É tão grande o interesse que, em toda a época e qualquer lugar, suscitou e suscita a caça, se escreveu tanto sobre ela, que se torna difícil acrescentar alguma coisa verdadeira e inteiramente original sobre o tema. O tema da caça tocou indirectamente imensas vezes o horizonte de escritor de muitos confrades, o entusiasmo, o fervor quase mítico com que deparam, em quase tudo o que à caça diz respeito: campo, cão, espingarda, espécies, usos e costumes venatórios, etc. 5 Os que conhecemos a actividade venatória percebemos ainda mais esse entusiasmo, esse impulso, porque nele participo há mais de um quarto de século de fadigas e serranias, de sacrifícios e perigos nada desdenháveis, de disciplina e de rigoroso treino. O nosso tempo “bastante estúpido”, segundo José Ortega e Gasset, não considera a caça como um assunto sério. Com esta rotundidade se manifestava o célebre pensador no prólogo que abria caminho, há mais de cinquenta anos, ao livro do Conde de Yebes Veinte años de caza mayor 6. Não é, contudo, frequente que um pensador de dimensão universal escrevesse um ensaio tão profundo sobre um tema tão aparentemente frívolo, como a caça. O resultado é espectacular e na obra de Ortega se condensam as páginas mais brilhantes da literatura cinegética mundial. O Conde Yebes, não obstante o seu condado, era um homem profundamente trabalhador que exercia o ofício de arquitecto. Era, além disso, por obrigação familiar, homem do mundo, que assistia com frequência a festas da sociedade elegante. Mas o mais característico no Conde de Yebes era que desaparecia fortuitamente da cidade, como “se se volatilizasse”. Ninguém sabia onde ele estava, porque estava onde não 5 Veja-se, por exemplo, Miguel Torga, A Criação do Mundo, Coimbra, 1991; Os Bichos, Coimbra, 4ª edição, 1946; Novos Contos da Montanha, Lisboa, Ed. Visão, Dom Quixote, 2003. Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1984; Idem, A via sinuosa, Amadora, Publicações Bertrand, 1985; Padre Domingos Barroso, O Perdigueiro Português, Porto, 3ª Ed., Gazeta das Aldeias, 1990; do mesmo Autor, Sal, ironias e gabarolice, edição de Sérgio Paulo Silva, s.d.; Conselhos velhos para caçadores novos, Edição de Sérgio Paulo Silva, s.d.. Todos eles retratam com entusiasmo e sabedoria a vida dos campos e a ligação do homem rural ao mundo da caça. 6 José Ortega y Gasset, Obras Completas, Tomo VI, «Veinte años de caza mayor», Del Conde de Yebes, Madrid, Alianza Editorial, Revista de Occidente, 1943. 20 estava ninguém: no mais perdido penhasco da “serra de Gredos”, no fundo de um valado em plena contemplação da natureza e na vivência da caça, que muito amava 7. Um dos aspectos mais notáveis é que a maioria dos postulados de Ortega continua válido até aos nossos dias, incluídos os que sustentam a caça. Entre os próprios caçadores, a clarividência de Ortega tem um efeito mágico. Perante a proliferação de caça artificial, deve-se recordar o lema de que “ a escassez de peças é essencial à caçaria” 8. Sem dúvida, a escassez foi mestra do engenho, fez do homem um caçador, mas transformou a caça num privilégio. A importância da caça, como grande pedagogia e um dos métodos preferidos para educar o carácter, contribuiu para o amanhecer da história da caça, quase uma “necessidade”, opinou Miguel de Cervantes Saavedra, de tal modo que o exercício da caça de monte era o mais conveniente e necessário para reis e príncipes. A caça era uma imagem de guerra e havia nela estratagemas, astúcias, ciladas, para vencer o inimigo. Em definitivo, o exercício que se podia fazer sem prejuízo de nada e com gosto de muitos 9. Ao longo da história da humanidade, evidencia-se a acção predadora do homem, por necessidade ou recreio, e dela existem abundantes e específicos testemunhos na Península Ibérica, desde os tempos mais remotos. Assim o demonstra a breve resenha de notícias históricas sobre a caça, da qual deduzimos valiosas conclusões, quer no respeito à abundância de animais de categoria cinegética, quer ao progresso das armas e evolução prática da arte 10. A caça rural é uma actividade tradicional realizada pelos habitantes deste meio, grandes conhecedores do seu envolvente, com intenso apego, actualmente numa dimensão quase exclusivamente lúdica. A caça foi aproveitada de todas as maneiras possíveis para extrair dela o máximo de rendimento. A sabedoria popular soube manter 7 Idem, p. 420. Idem, Sobre a Caça e os Touros (ensaio), Lisboa, livros Cotovia, 1989, p. 28. 9 Miguel de Cervantes Saavedra, El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, Valencia Editorial Alfredo Ortells, S.L., 1986, p. 571. 10 A este propósito veja-se Robert Elman (dir.), El Gran Libro de La Caza, León, Editorial Everest, S.A., España, 1992; Guillermo Muñoz Goyanes, Noticias Históricas sobre la caza en España, Madrid, Ed. policopiado, mayo, 1971. Também constitui referência a obra de Eduardo Trigo de Yarto, España, Tierra de Caza, Madrid, Libercaza, 1993. O autor apesar de se confessar: «Soy aprendiz de todo y maestro de nada», todos reconheciam a sua enorme afición e vasta experiência cinegética, assim como a sua paixão por ler e estudar ardorosamente os livros e as matérias relacionadas com a caça. À parte a sua formação teórica e autodidata nestas matérias, armazenava um enorme saber humanístico, fruto da conjugação da sua excepcional talha cultural e intelectual e de sua capacidade de absorver e registar, até aos mais pormenores do ambiente natural e da biologia das peças de caça. 8 21 este frágil equilíbrio existente num meio pouco produtivo, em muitos casos, cuja chave pode estar na diversificação de actividades. A popularização da caça que começou cedo nos meios rurais incorporou elementos citadinos, mercantilizou a caça, elevou os preços, induziu ao coutamento de grandes áreas, provocou modificações na actividade venatória que, com excepção da introdução das armas de fogo, quase não havia sofrido alteração nos séculos. A caça como elemento cultural faz parte da idiossincrasia dos habitantes do meio rural, que se transmite de pais para filhos 11. A despeito da diversidade de temas – como já se indicou – na contemporaneidade é possível detectar a atracção por um tema até agora ignorado pela historiografia ou timidamente abordado que, além disso, se destinasse à compreensão da realidade cinegética portuguesa do século XX. Tanto mais que não tinha havido continuidade na investigação desenvolvida por Freitas Cruz sobre o Problema Venatório Português até 1945, ou estudos sectoriais na área da perdiz-vermelha, desenvolvidos por António Bonfim e António Garcez, a propósito da economia da caça 12. Por outro lado, não podia deixar de considerar aliciante o estudo de um domínio que em espaço, em gentes e produção desempenhou um papel de relevo, em certos períodos da História Rural, naquilo que podemos chamar um conflito permanente entre os produtores do agro, e caçadores com especial relevância a partir de 1974, circunstância que obviamente cresceu após a reversão dos prédios rústicos em benefício dos antigos proprietários fundiários. Aí se geraram dinâmicas sociais que não poderiam deixar de influir no curso geral da nossa sociedade cinegética, ora tranquilizando-a ora agitando-a. Sem dúvida que a História Social é precisamente aquela onde se “confundem, na mesma unidade social, o longo e o breve, o estrutural e o conjuntural, a pesada espessura da realidade social que resiste à transformação e à trepidação da mudança” 13. Convém ter sempre presente que é nas movimentações agrárias, infinitamente mais que nas operárias, que coexistem numa mesma realidade os diferentes tempos da vida do homem: a quase imobilidade da terra, lentamente alterada pelos factores 11 Em 2000, Gonzalez Arenas, na sua tese doutoral sobre a caça na província de Córdova, demonstrou o seguinte: mais de 90 % dos caçadores iniciou a actividade cinegética antes dos 30 anos de idade. Podemos entender estes dados como um indicador forte da componente tradicional da caça no âmbito doméstico. Revista Lindey Y Ribera, n.º 14, Madrid, Agosto de 2004, pp. 82-83. 12 Veja-se Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, ob. cit. 13 José Manuel Tengarrinha, Movimentos Populares Agrários em Portugal, Lisboa, 1994,1.º vol., pp. 32-33. 22 naturais e humanos, nessa combinação original e fecunda de dois elementos de que fala Orlando Ribeiro, as permanências seculares dos comportamentos e as atitudes de inovação geradas por novas realidades 14. Estamos perante um desafio estimulante, sem dúvida, mas não menos intimidativo. Havia que precaver, antes de tudo, a tentação da facilidade de corrermos atrás do documento novo ou de derivarmos ao sabor do facto fortuito, com o gosto de o generalizar. Impunha-se uma visão que, sobretudo, integrasse os elementos fragmentários num conjunto não necessariamente harmonioso, mas coerente, donde pudesse derivar o nexo que numa informação generalizada lhe conferia. Convinha igualmente reflectir sobre comportamentos, ajustes e desajustes entre eles na perspectiva da sua contribuição para a dinâmica global, pois o circunstancial e o isolado apelam para ganharem a verdadeira dimensão do tempo histórico em movimento. Era, portanto, numa visão estrutural que se pretendia abordar o tema. Tínhamos a consciência de que esta orientação se encontrava no rumo da lídima tradição historiográfica da Faculdade de Letras de Lisboa, que lhe é inerente como uma das suas mais fecundas contribuições, de que saíram algumas para a ciência histórica contemporânea no nosso país. Tal orientação tivemos ocasião de recebê-la de alguns mestres, de que conservamos viva memória, como a Professora Virgínia Rau, cujos trabalhos de História Agrária ainda hoje têm todo o mérito e oportunidade. No mesmo sentido, se destacam a obra do Prof. Borges de Macedo, em História Económica, Cultural e Diplomática, e do Prof. Veríssimo Serrão. Felizmente a Faculdade tem aberto assim um caminho onde nomes como Queirós Veloso, Vitorino Magalhães Godinho, Orlando Ribeiro, que mantiveram uma visão de história estrutural que se mantém. Mais recentemente, José Tengarrinha, com a sua obra sobre os movimentos populares agrários em Portugal e, naturalmente, a História de Portugal, sob a direcção do Prof. João Medina. Todos eles trabalharam para conquistar um suporte que constitui o traço dominante de produção historiográfica. A sua força advém também da diversidade de domínios sobre que incide, tanto de natureza biográfica como de desenvolvimento geral de história portuguesa. 14 Idem, p. 33. 23 Foi nesse sentido que orientámos os estudos sobre a política cinegética, desejando, assim, chegar a uma visão estrutural das condições materiais e sociais da vida rural, com o simultâneo sentido de imutabilidade, do tempo longo, e do momento da durabilidade e da instabilidade, como categorias históricas que Portugal atravessou no período de 1974-2000. Ou melhor, conhecer o mundo venatório no contexto da evolução dos normativos jurídicos e administrativos que o foram configurando ao longo do tempo, atendendo a que, um e outro, constituíram, sempre, a expressão de processos de transformações económicas, sociais, culturais e políticas que ocorreram em Portugal. Este relacionamento permitirá, certamente, uma adequada compreensão da passagem do Regime Cinegético Geral 15 para o Regime Cinegético Especial 16 aplicável aos terrenos privados ou públicos submetidos ao regime ordenado, com aproveitamento dos recursos naturais renováveis 17 , bem como do contexto global em que se afirmou ou não a autonomia dos proprietários e do quadro da sua evolução, das atribuições e competências. 15 Doravante designado RCG. Doravante designado por RCE. 17 As espécies cinegéticas podem dividir-se em dois grandes grupos: caça menor e caça maior. Ao primeiro grupo pertencem todas as espécies aladas (perdiz-vermelha, codorniz, narceja, pato, pombo, rola, tordo, galinhola, tarambola, faisão, etc.) e as espécies de pêlo (coelho e lebre); pertencem ao segundo grupo os animais de porte médio e mesmo grande porte (cabra selvagem, veado, urso, alce, corso, gamo, javali, muflão etc.). Numa posição intermédia situam-se os animais designados depredadores (raposa, saca-rabos). 16 24 CAPÍTULO I – CONCEITOS OPERATÓRIOS 25 1. O problema e sua justificação O tema em estudo pode, porventura, surpreender. Na realidade, durante largos anos, a oposição campo-cidade fez parte do ideário de historiadores, pois consideravam o mundo rural e o mundo urbano em separado, quando não em oposição 18 . Contrariando este paradoxo, a interacção campo-cidade tornou-se um tema a reclamar importância da parte de historiadores, surgindo, de alguns anos a esta parte, numerosas monografias cujo objectivo consiste, precisamente, nessa investigação. Nasceu, por isso, a necessidade de compreender e aprofundar, numa perspectiva histórica, as incidências da actividade venatória na vasta região do Alentejo. Assim, escolhidos, como tema, um espaço e um conjunto de ligações, resta-nos delimitar um tempo. Na sequência do estudo que realizámos sobre o Estado Novo, pareceu-nos oportuno e suficientemente amplo, para detectar as variações de conjuntura e, ao mesmo tempo, coerente e bastante para ser tratado em si mesmo e analisar o período subsequente. Nesta perspectiva, dividimos o tema em três momentos distintos, mas complementares: - O fim do Estado Novo, em 1974, que acabou de vez com o modelo venatório instituído nas reservas de caça e pesca criadas em 1903, a coberto do regime florestal de polícia, e se consolidou na implementação propriamente dita das coutadas e dos aramados, por via da Lei n.º 2132, de 26 de Maio de 1967; - A socialização dos recursos faunísticos (1974-1986), que corresponde a todo o período da estatização do exercício venatório no território nacional; - O período da gestão sustentável dos recursos cinegéticos (1986-2000), fruto da Lei n.º 30/86, que possibilitou o ordenamento progressivo do território nacional, após a criação dos diferentes tipos de zonas de caça, numa pretensa igualdade entre ricos e pobres. Pensamos, nos termos exactos do que expusemos, sobremaneira ir ao encontro das necessidades evolutivas do homem-caçador, do agricultor, do associativismo 18 No que se refere ao mundo rural, «a entidade básica, a unidade inteligível mínima» eram, para o historiador como para o geógrafo ou para o economista, a região natural. Ana Maria Seabra de Almeida Rodrigues, ob. cit., p. 19. Em Portugal, os estudos de história rural de âmbito regional são casos paradigmáticos: Robert Durand, Les Campagnes Portugaises Entre Douro e Tage aux XII. et XIII. siècles, Paris, 1982; Maria Helena da Silva Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média, 1ª Ed., 2 vols., Coimbra, 1983; Pedro Ferreira Gomes Barbosa, Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central (sec. XII a 1325), dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, 2 Vols, Lisboa, 1988. 26 venatório, do turismo cinegético, da conservação da natureza e dos demais intervenientes do mundo rural. Tal como nos outros países da Europa, também em Portugal existe uma tradição de estudos de carácter local e regional, procurando traçar o percurso histórico de uma determinada zona geográfica (com particular destaque para a freguesia ou concelho) e inventariar as suas especificidades e características culturais (ao nível de um trabalho de recolha etnográfica). Este tipo de trabalho tem sido animado muitas vezes por estudiosos e eruditos locais, sendo geralmente fruto de um labor solitário, à margem de qualquer enquadramento institucional e de um quadro minimamente comum de referências problemáticas. Tais características que tem moldado o trabalho de investigação na História Local, impediram que o seu produto tenha tido uma importância significativa no esclarecimento de problemas relevantes da história portuguesa em qualquer período histórico, sem prejuízo dos méritos evidenciados por alguns estudos na exaustividade do acareamento factual ou na preocupação de rigor na crítica e análise das fontes. Em suma, com um impacto geográfico e cronológico diferenciado – e que seria interessante deslindar –, a tradição da História Local manteve-se profundamente afastada dos temas e problemas que eram objecto de estudo por uma historiografia produzida ao nível académico, porventura na ilusão, compartilhada por ambos os pólos, de que uma análise de âmbito local pouco viria a acrescentar à elucidação do processo histórico à escala nacional. Todavia, uma nova prática da História Local veio retirar o anátema de mera curiosidade sobre o passado e as tradições de uma determinada zona. Sem dúvida que a História Regional era já um produto de estudo consagrado mercê da influência da historiografia francesa, produzida pelos Annales. Porém, a escolha de áreas geográficas mais reduzidas como contexto espacial da investigação histórica é o resultado de uma dupla filiação. Em primeiro lugar, as preocupações de uma História Social empenhada em reconstituir as condições de vida, reprodução e conflito de todos os grupos sociais de uma dada sociedade num determinado período histórico, em analisar as suas mentalidades e formas de produção material ou de estruturação social. 27 Em segundo lugar, o surgimento de um novo campo de estudo – a demografia histórica – lidando com uma documentação específica de âmbito local (os registos) exigia uma escala geográfica de análise mais delimitada. A microanálise nasceu, assim, quase como um constrangimento imposto quer pelo tipo de interrogações a que se pretendia objectar (dificilmente perceptíveis e analisáveis à escala nacional ou de espaços geográficos muitos vastos), quer pelo tipo de documentação histórica cuja exploração responderia aqueles problemas (documentação de tal forma extensa, que o seu tratamento impunha uma redução do espaço de análise). Para além dos seus reflexos num alargamento do campo problemático da disciplina histórica, importa sublinhar a renovação metodológica originada por este tipo de estudo. Por um lado, a existência de novas interrogações leva à utilização de fontes históricas até então relegadas para segundo plano. Privilegia-se a documentação que possibilita um tratamento serial e que contenha informações abarcando todos os extractos sociais – salienta-se a documentação institucional local, regional, judicial, etc. Além do seu carácter, abrangendo aspectos outrora desprezíveis da vida quotidiana, estas fontes têm também a particularidade de serem produzidas ao nível local ou, quando produzidas exteriormente à comunidade, incidirem de forma intensiva sobre uma unidade administrativa localizada, constituindo geralmente a unidade mais elementar. Por outro lado, tem-se assistido a um esforço mais aturado de crítica das deficiências e lacunas destes corpos documentais, de desenvolvimento de novas metodologias de análise e tentativas de entrecruzar a informação específica fornecida por cada uma das fontes, de molde a aumentar o grau de conhecimento que se pode ter de uma realidade histórica. O que seria uma imposição exterior à própria estratégia de investigação – a opção por um quadro espacial de análise reduzido – tem vindo a ser encarado como uma postura epistemológica passível de solucionar uma das dificuldades inerentes a qualquer análise da realidade social: a impossibilidade de inferir motivação a partir dos comportamentos 19 . A esta velha questão tem correspondido sistematicamente soluções que tendem a salvaguardar, como base elementar para qualquer análise das práticas 19 A este propósito, José Manuel Tengarrinha afirma: «O estudo das motivações é complexo. Raro é que intervenha uma única causa e, quando os movimentos são longos, em geral interseccionam-se questões diferentes (...).Acontece até, por vezes, que a causa directamente responsável pelo desencadear do movimento não é a que, depois, irá ocupar lugar primordial». Ob. cit., nota de rodapé n.º 4, p. 49. 28 sociais, a redutibilidade a uma unidade e a continuação de experiência humanas ao longo do tempo e em culturas distintas. Só na base da aceitação deste substrato comum seria possível a compreensão do sentido da acção social. Este dilema, que toca profundamente qualquer investigador do social quando tem de estudar e compreender culturas e práticas diferentes, está mais exacerbado na análise histórica, em que a separação não é apenas originada por uma exterioridade no espaço, mas onde os comportamentos individuais e colectivos, que pretendemos compreender, estão separados de nós por um período de tempo mais ou menos longo. A reconstrução da trama social e mental ou das condições de produção dos meios de vida que delimitam o quotidiano no passado, permite enquadrar contextualmente os comportamentos observados. Sendo assim, a reconstituição desse contexto e a inserção da acção social nessa textura permite que se possa inferir à exteriorização desta ou daquela conduta. Por essa razão, a micro análise impõe-se como um quadro privilegiado para o estudo das principais condições de produção e reprodução social, que são o horizonte possível em que se inscreve o dia-a-dia das sociedades do passado – as formas de acesso, transmissão e utilização dos meios produtivos; a família e o parentesco; a mobilidade social e as formas de sociabilidade; as condições de acesso e exercício do poder político local; as normas culturais que regem a vida individual e colectiva. Além disso, a profundidade e intensidade propiciada por uma análise deste tipo, a multiplicidade de facetas da vida social possíveis de analisar e interrelacionar, ou a flexibilidade e selecção de técnicas de exploração da documentação histórica, fazem do estudo da comunidade uma área de investigação indispensável para um conhecimento mais profundo dos processos sociais no passado. Numa perspectiva forçosamente redutora, podemos afirmar que existem três condições primordiais que devem nortear qualquer estudo de História Local, no pressuposto de contribuir para uma compreensão mais sólida de temas fundamentais da historiografia contemporânea: - Afastar o particularismo, a mera recolecção de factos de uma povoação ou de uma freguesia e não coligir tudo o que aconteceu à escala de uma comunidade ou de uma região, pois a sua história vale pela possibilidade de elucidar problemas de carácter global, cuja importância transcende o espaço geográfico de análise; 29 - Conhecer o campo teórico e as metodologias de investigação históricas recentes, opção que ao mesmo tempo permite a fuga aos perigos assinalados e impõe uma perspectiva comparada, condição essencial para a eficácia analítica e o necessário contributo para a síntese histórica por parte da História Local; - Abertura à interdisciplinaridade e à importância das aquisições de outras ciências sociais nos domínios conceptual e metodológico, pressuposto para uma renovação da produção historiográfica de carácter local, na medida em que muitas linhas de investigação neste domínio devem muito aos contributos da sociologia e da antropologia. Será nesta dialéctica que se procurará encontrar uma resposta, ainda que provisória, sobre a actividade cinegética no Alentejo, dado que o ciclo da investigação não pode propor-se como um objectivo definitivo e último, como a construção de uma cronologia completa e sem falhas 20 . A própria História, como as demais ciências sociais, é um fazer e refazer constantes, um esforço permanente, mas sempre provisório, de reaproximação e de tentativas sucessivas de reprodução de um passado. 20 Sobre a metodologia de investigação científica seguimos de perto Mario Bunge, La Investigación Cientifica, su Estratégia Y su Filosofia, Barcelona, Editorial Ariel, S.A., 1989. 30 2. Meios e Técnicas Não deixa de ser verdade para quem trabalha no domínio das ciências sociais que não existe uma metodologia exclusiva, nem um modelo único, para orientar a investigação. Antes, aplica-se a metodologia proposta por um orientador científico com o qual nos identificamos nas suas coordenadas mentais. A coordenação de determinado processo intelectivo e ou de transmissão de conhecimentos, seja ele de que natureza for, “ exige a obediência a critérios de tratamento que permitam seguir uma linha inteligível e capaz de ser entendida por aqueles a quem os mesmos se destinam (....). Cada tipo de trabalho determina uma distinta elaboração do mesmo, numa palavra, um método diferente (...)” 21 . É nesta riqueza derivada de abrangência de perspectiva de abordagem, que os temas oferecem, que reside o interesse na investigação científica. Tais questões não devem ser descuradas em virtude de, no seu conjunto, permitirem conferir ao trabalho em realização uma maior postura científica, alcançando a confiança de quem o consulta ou, quando sujeito a audição, de quem o classifica. A especificidade de cada tema de investigação, determina da parte de quem o realiza, a prudência necessária para não lhe aplicar processos de investigação cuja utilização específica ao seu trabalho possa conduzir a resultados inadequados, ou adequados, mas apresentados de forma que o leitor não considere credíveis, pela deficiente estruturação e descuidada feição com que são expostos. Reside aí, sem dúvida, a enorme importância dos métodos científicos sobrepostos aos estudos de investigação ou seja, a “de fornecerem indicadores, linhas mestras de trabalho, que possibilitem ao investigador guiar-se por estas noções básicas, numa primeira fase, de recolha de informação; numa segunda fase, de selecção da mesma, posteriormente de redacção e sistematização do trabalho a realizar, e, num último momento, de sua conclusão e revisão “ 22. Assim, cada um dos assuntos tratados no presente trabalho foi cuidadosamente analisado no que toca a ideias como originalidade e possibilidade de trazer novidades à comunidade científica, fontes e bibliografia disponíveis. No entanto, todo este processo 21 Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, Metodologia da Investigação, Redacção e Apresentação de Trabalhos Científicos, Porto, livraria Civilização Editora, 1998, p. 27. 22 Idem, p. 29. 31 foi levado com prudência analítica, de modo a não falsear as questões ou adiar possíveis escolhas, nem deixar passar alguns detalhes. Fundamentalmente é importante a busca da origem, do peso das alianças e oposições na luta pela partilha do espaço venatório. Não partimos do pacífico, mas do conflituoso tendo em conta a dimensão da situação social de inquietação (fenómeno geral) e das situações concretas provocatórias (fenómeno particular). A escolha do tema, não implicou uma decisão convincente de escolha do título da investigação, mas este reflectiu a essência do trabalho, sob pena de retractar parcialmente os assuntos versados no mesmo. Por sua vez, a metodologia utilizada obedeceu às seguintes tarefas, técnicas e fases: - Concepção do plano de investigação e respectivo cronograma; - Pesquisa bibliográfica e documental sobre a temática da caça; - Interacção e estudo, concepção e adaptação de métodos técnico-científicos na área da cinegética; - Recolha e análise de documentação oficial arquivada ou dispersa pelos vários departamentos dos Ministérios da Agricultura, do Ambiente e da Economia e da Assembleia da República; - Recolha dos debates parlamentares, estudos científicos, jurisprudência, acórdãos do Tribunal Constitucional e pareceres da Procuradoria-Geral da República, actas do Conselho Nacional da Caça, palestras, conferências nacionais e internacionais; - Acompanhamento das actividades da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, das organizações de caçadores e de agricultores, de instituições ambientalistas e outros agentes, particularmente no levantamento de situações objectivas sobre o funcionamento do regime cinegético; - Estudo dos processos de constituição de zonas de caça sem consentimento prévio dos proprietários ou, de parcelas incluídas por edital (enclaves); percentagem de casos solucionados e não solucionados; análise histórica da extinção de zonas de caça; - Comparsaria das acções de fiscalização junto das zonas de caça nacionais, zonas de caça associativas, zonas de caça turísticas e zonas de caça sociais 23; 23 Doravante passaremos a designar ZCN, ZCA, ZCT, ZCS. Não incluímos no nosso estudo a actividade das zonas de caça municipais (ZCM), porque a sua implementação começou precisamente no final do nosso estudo. 32 - Concepção e administração de quatro tipos de inquéritos destinados aos diferentes actores: caçadores do terreno livre, caçadores do terreno ordenado, dirigentes das ZCA, ZCS e ZCT; - Concepção e administração das entrevistas a informantes-chave; - Elaboração da dissertação. A pesquisa bibliográfica teve em conta a possibilidade do autor em lidar com as diferentes opiniões e versões existentes em diversos estudos e de sobre eles empreender alguns reflexões e tomadas de opinião. O processo de abordagem de uma bibliografia, por não ser linear, compreendeu dois momentos: a consulta de bibliografia geral e a passagem para uma bibliografia específica. Foi deste modo que chegamos à necessidade de criar um ficheiro bibliográfico na área da cinegética, porque a realização de um trabalho desta natureza obrigou à recompilação de fontes estatísticas e bibliografia variada correspondente a artigos de revistas, livros, comunicações, congressos e colóquios. Muitas das revistas consultadas são de carácter divulgativo, razão pela qual diligenciámos no sentido de os títulos seleccionados terem suficiente interesse e qualidade, para que nos ajudem a conhecer o pensamento dos caçadores, agricultores e demais intervenientes do mundo rural, a opinião sobre os distintos termos cinegéticos. Ao mesmo tempo, o seguimento destas publicações durante um período de tempo considerável põe em relevo quais foram, em cada momento, as inquietudes dos caçadores e a problemática abordada pelos estudiosos da cinegética. Encontramo-nos perante uma temática que aborda a caça em termos gerais e específicos, desde os tempos remotos até à contemporaneidade. Entre as revistas de carácter divulgativo, que temos consultado, encontramos: Caza y Pesca, Trofeo, Federcaza, El Mundo de la Caza, Diana, Caça e Pesca, Calibre 12. No domínio dos jornais especializados de índole nacional, apenas assinalamos o Jornal do Caçador e Jornal de Caça e Pesca, ambos extintos. Pelo carácter complementar da actividade Agro-cinegética, destacamos artigos recolhidos em revistas como a Revista do Agricultor e Vida Rural. A classificação temática obedeceu, assim, mais a temas e conteúdos encontrados na bibliografia cinegética que a critérios prévios de classificação. Na verdade, estamos perante uma temática ampla e variada – ecologia, geografia, antropologia, sociologia, direito, história e literatura –, que põe de manifesto o profundo 33 sentido antropológico da caça e a importância económica e desportiva do recente boom cinegético português. Assim temos: - Obras de conjunto, nas quais se incluem as obras referidas à caça em Portugal, assim como as referências bibliográficas da cinegética em congressos, colóquios e jornadas relacionadas com a caça. Nalgumas obras, em geral de carácter divulgativo, se situam a tradicional divisão na caça maior e menor e se incluem capítulos sobre aspectos históricos da caça, sobre o caçador, cães, armas de caça, etc..,: - Espécies cinegéticas: são muitos os títulos recolhidos que nos dão ideia das espécies com maior importância; - Modalidades e técnicas de caça: encontramos títulos gerais sobre técnicas e modalidades de caça e outros que se referem a uma espécie concreta; - Geografia da caça: refere-se quase exclusivamente às distintas regiões portuguesas, sendo muito escassos os títulos referidos a outros países (excluindo Espanha). O número de artigos e obras encontradas para cada região está em relação com a importância de seu espaço cinegético e oferta de caça, assim como a procura que fazem os seus habitantes; - Ordenação e gestão de caça: esta secção justifica-se pela importância que os terrenos ordenados foram adquirindo ao longo da disputa pela caça. Por isso, se classifica a bibliografia em cinco subsecções: - Aspectos gerais: inclui artigos sobre as novas tendências de exploração cinegética; a relação entre a caça e os outros representantes agrários; racionalização da actividade cinegética; linhas básicas da política cinegética portuguesa; - Zonas de caça e reservas de caça: a proliferação de zonas de caça é um fenómeno recente que levou à privatização de grandes espaços com implicações não unicamente cinegéticas, mas também económicas, sociais, jurídicas. São muitos os artigos recolhidos que põem o manifesto sentido polémico e opiniões de interessados que tratam o tema de uma forma precisa e objectiva; - Outros terrenos de RCE: parques naturais e reservas do Estado; - Repovoamento cinegético e escassez da caça: o caçador português sente-se preocupado ante a diminuição da caça e o aumento da procura, por isso, reclama medidas eficazes de repovoamento cinegético, a maioria das vezes sem entender as implicações ecológicas que destas podem derivar; 34 - Fiscalização da caça: artigos e relatórios dos serviços de caça onde se expõe a problemática, cujo conhecimento de todos estes aspectos pode ser de utilidade aos que administram a fauna e tem que questionar a riqueza cinegética do nosso país; - Repercussões da actividade cinegética: a consideração da caça como riqueza e exploração económica é generalizada na bibliografia que comentamos; são frequentes os títulos que fazem referência ao valor das peças de caça abatidas, ao comércio e venda das carnes de caça, aos preços de postos e participação nas caçarias, em suma ao dinheiro que move a caça, quer seja em si mesma ou através da riqueza industrial, comercial e de serviços que indirectamente gera (emprego); além disso, existem outros, não menos importantes, que são ecológicos, e põem ênfases nas vantagens ou nos inconvenientes da actividade cinegética respeitante à conservação da natureza; - Sociologia e Antropologia da caça: nos últimos anos, correntes de opinião contrárias ou favoráveis à actividade cinegética geraram uma literatura a respeito de ataques e defesa da caça que se plasma em bibliografia existente, em geral de carácter apologético; outros temas abordados no conjunto das obras sobre sociologia da caça são: a caça como desporto e actividade venatória que fica muito além de outras considerações de tipo economicista; associativismo dos caçadores, com o fim de defender os seus interesses e como meio de resolução de conflitos; a capacitação do caçador, necessária, que se vai impondo ante o número crescente de aficionados, por meio do exame de caçador; o caçador furtivo, cujo carácter mudou nos últimos anos, converteu-se num caçador com técnicas sofisticadas que foram destrutivamente levadas a cabo, sem nenhum imperativo de subsistência, senão o mero prazer de caçar à margem da lei; do ponto de vista antropológico, no entanto, faltam títulos, destacando apenas o excelente prólogo de Ortega Y Gasset à obra do Conde de Yebes, Veinte Años de Caza Mayor, reflexão acerca duma actividade tão antiga como o homem; - Actividade cinegética e legislação: tema de interesse para o caçador sobretudo do ponto de vista divulgativo e exequível; através das revistas cinegéticas se abordam problemas como a regulação de zonas de caça do regime especial, infracções, caçadas. Por outro lado, existem pequenos artigos sobre direito de caça e recompilação de legislação elaborada por juristas, assim como jurisprudência, aspectos históricos de caça, literatura, arte e caça, relatos de caça, etc. 35 Quanto à Estrutura adoptou-se o seguinte esquema: - Introdução; - No I Capítulo, que contém os conceitos operatórios, definimos o problema e a sua justificação para a História Cinegética, a metodologia e as limitações; - No II Capítulo, procedemos a uma abordagem global dos temas e problemas que o tema suscita; - No III Capítulo, caracterizamos a Região em estudo, do ponto de vista da economia, sociedade e formas de ocupação de espaço agrário; - No IV Capítulo, traçamos em termos genéricos a evolução da História da Cinegética, desde a origem da nacionalidade a 1974; - No V Capítulo, analisamos a socialização dos recursos bravios (1974-1986), que corresponde à cultura do terreno livre, com destaque para a caracterização do espaço cinegético frequentado por utilizadores de ambos os regimes, expondo as condições do seu exercício, interpretando os modos de realização e as contrapartidas da sua exploração, mediante o uso do benefício a título dos diferentes poderes; - No VI Capítulo, estudamos a reforma da lei da caça que o poder político desenvolveu com vista à recuperação do património cinegético e as dificuldades da sua implementação; - No VII Capítulo, identificamos o universo dos protagonistas da sociedade Agrocinegética, os desafios e repercussões económicas decorrentes da concessão de zonas de caça do regime especial, e alguns mecanismos sociais decorrentes do estilo de vida do regime livre, onde se movimenta o grosso dos caçadores mais desfavorecidos, a fim de estimar a dimensão do descontentamento, sem esquecer as reacções dos agentes políticos promotores da continuidade; Nas considerações finais, sintetizamos as linhas essenciais de toda a problemática venatória e da sua influência nos usos e costumes na região do Alentejo. 36 3. Reflexões e limitações Na contemporaneidade não é fácil termos uma ideia precisa, não exclusivamente quantitativa, das realidades sociais e económicas portuguesas no período de 19742000. A tarefa defronta, aliás, escolhas assinaláveis: a informação estatística é muito limitada e deformada, quase sempre, de questionável validade e fiabilidade; os inquéritos sociológicos e os relatórios económicos de âmbito geral são tão escassos quanto o é o conhecimento coevo das suas realidades; a própria literatura de ficção com a índole cinegética, divulgada a partir do último quartel do século, sendo uma fonte de apreciável valor, não é abundante e apresenta qualidade muito variável. No entanto, é fundamental conhecer esse mundo essencialmente rural, onde se relacionam, contrastando, uma multidão de caçadores do terreno livre e uma influente nova geração de caçadores-produtores, com as suas aspirações, ciosos da caça ordenada, na qual se incluem, por razões diversas, um vasto núcleo de pequenos, médios e grandes proprietários agrícolas. Grande parte do nosso estudo ocorre numa sociedade onde, sob os efeitos da crise, quase todos os que tinham alguma coisa de bem se voltam para o Estado, exigindo ou suplicando a tutela protectora dos seus variados e contraditórios interesses. Apreender essa realidade estrutural é delimitar o terreno onde se faz a história, a história que, por seu turno, irá transformar o terreno em que se movimentavam os insatisfeitos. É determinar o ponto de partida do social, do político e do mental do Portugal de então: de quem faz política, de quem se dedica aos negócios, de quem os serve, das lógicas que às respectivas actuações, em última análise, presidem e dos que comandam a sua evolução. A história à base da memória, foi assim atenuada por aquela outra, a actual, na base do raciocínio da dedução e da síntese, mais atractiva para quem estuda, e de muito maior proveito colectivo no sentido dos reflexos das suas conclusões na orientação a seguir, tanto no presente como no futuro, pela própria Humanidade quando dependente de vontade e intervenção humanas. Uma das principais finalidades da História é proporcionar uma consciência social que, para cada um de nós, é também memória de si próprio, que permite libertarmo-nos do presente, ver melhor, aprender o que podemos conhecer, em concreto, quanto aos limites, possibilidades e realização do humano. Nesse caso, o tempo é condição necessária para esse conhecimento, duplamente indirecto, como produto mental e como 37 reconstrução a partir dos dados alusivos ao já conhecido e que por eles indirectamente se reconstitui. Torna-se necessário, portanto, tentar aprender as situações em que os homens se encontram e os esforços que tentaram para resolvê-las – se bem ou mal, isso já é outra questão. Dentro de cada contexto, as decisões são tomadas não só em consequência dos antecedentes, mas também como criadores de soluções. Não estamos perante sistemas abstractos, que funcionam automaticamente, mas sim face a actuações concretas, fruto da ambição e dos interesses, dos receios e dos equívocos, das paixões e dos preconceitos. Daí a reconsideração sobre o papel dos indivíduos como sujeitos activos da história. A biografia valoriza o qualitativo ao particular sem a que as generalizações e as explicações quantitativas ficariam despidas de humanidade. Não há história unilateral. As tentativas de explicação através deste ou daquele factor dominante acabam por ser redutoras. Todas as aventuras individuais se baseiam numa realidade mais complexa, entrecruzada em vários planos, dos condicionalismos geográficos, demográficos e económicos aos psicossociológicos. País feito de terra e águas, de florestas e de montanhas, mas também de homens que praticam determinadas géneros de vida, habituados a certas formas de pensar, sentir e crer, tudo combinado em projecção tão variável que daí resulta, para cada um, uma fisionomia propriamente individual; alimentam a ideia colectiva e global por contraste com o particular e o pessoal. Abrangem o conceito de tempo longo por oposição ao tempo curto dos acontecimentos – aqueles actos sempre dramáticos e breves que Braudel apelidou de «instantâneos da história» – factos isolados que nos dão a visão de um mundo demasiado limitado, familiar à força de ter sido percorrido e inquirido, em que a história parece um logo, monótono, sempre diferente, mas sempre semelhante, tal como a combinação das peças de xadrez 24. Essa história, não à dimensão do homem mas do indivíduo, reconhece-a como a mais apaixonante, a mais rica em humanidade, e também a mais perigosa. Desconfia dela. Está «ainda quente, tal como os contemporâneos a sentiram, descreveram e viveram, segundo o ritmo das suas próprias vidas breves como a nossa» 25. 24 Fernand Braudel. «Prefácio à primeira edição» (1946), o Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Vol. I, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983, p. 25. 25 Idem, ibidem. 38 Se o primeiro problema é de método, já o segundo é de forma. Os sarcasmos de Lucien Febvre contra uma história positivista, batalha, acontecimento, não se dirigiam à escrita de história, não punham a narrativa como causa do discurso. A história nunca deixou de narrar a acção dos homens, embora de diversas maneiras. François Hartog chamou atenção para as provocações de Barthes e as observações de Ricoeur sobre a longa «duração braudeliana, que não recusava a intriga», embora a apresentasse em diversos planos, numa conjugação de estruturas, conjuntura e acontecimentos 26 . O acontecimento, esse «instantâneo» que rompe a noite, pertence a todos os níveis, definido como «uma variável de intriga», tal como Hobsbawn, Hartog mostra-se insatisfeito com o ensaio de Stone sobre o retorno da narrativa. Nesse sentido, evoca a pergunta de Michael de Corteau: «O que é que faço, quando faço história» 27. O nosso estudo, longe de constituir um modelo de investigação, é apresentado apenas para chamar a atenção de alguns aspectos relacionados entre a cinegética e o mundo rural, ou seja, o aproveitamento de um recurso natural renovável na sua vertente desportiva e alimentar, que tem justificado a actividade do caçador desde há milénios, embora com objectivos diversos. Na conjuntura em que nos encontramos dispondo de novos elementos de natureza científica, ecológica em especial, as circunstâncias exigem uma revisão do campo da Engenharia Florestal que o engloba quanto à maneira como tem sido feita essa exploração. Do passado, não deverão ser desprezados muitos dos conhecimentos acumulados pela experiência de gerações, ainda que sujeitos a uma nova e mais segura interpretação sob o ponto de vista científico e técnico. Num período em que se pretendem introduzir, à semelhança de outras épocas da nossa História, tão profundas modificações no universo das populações, nomeadamente no meio rural, esta visão e aferição crítica, tornam-se cada vez mais necessárias e úteis; embora o não julgue a geração actual imbuída de um conhecimento doutrinário, tido quase como indispensável, e falho de um fundamento ecológico, sem o qual não 26 F. Hartoz, «L´Art du récit historique», Passés recomposés. Champs et Chantiers de l´histoire, Jean Boutiers e Dominique Julia (dir.), Paris, Éd. Autrement, 1995, pp. 184-193. 27 Eric Hobsbawn, «On the Revival of Narrative», on History, London, Weinden feld e Nicholson, 1997, pp. 186-191. 39 oferece a segurança necessária para se impor como forma mais segura de oferecer à população aquilo que ela mais precisa, a melhoria da sua qualidade de vida 28. Naturalmente, um trabalho com o escopo deste, duma problemática enquadradora não se poderá propor senão na leitura muito sumária. Mas é indispensável tentá-la, partindo do condicionalismo elementar: a população, a geografia e as condições naturais. É certo que é extremamente difícil avaliar a sua força e capacidade de transformação nos contextos da vida das comunidades porque nem sempre ficaram claros e assinalados os traços e as marcas do exercício do seu próprio poder. A análise interdisciplinar ficará a servir de sugestão a quem sinta mais entusiasmo pela interpretação dos factos, em vez das especulações doutrinais que separam a prática da teoria, vivendo no seu verdadeiro realismo a feição, as consequências do evoluir dos tempos, tanto na paisagem como no viver das populações. De facto, a escassa investigação empírica existente e publicada nos domínios da História Agrária e História da Cinegética e, sobretudo, no campo específico da história e da geografia dos comportamentos e das atitudes, impedem a realização de um trabalho que nos pudesse satisfazer plenamente. Como muitos outros desportos, a caça tem uma exteriorização espacial; daí ser considerada matéria da geografia. Neste caso, pode ser explicada cientificamente as distribuições a que dá lugar. Actualmente, a importância geográfico-agrária da caça está convertida parcial ou secundariamente a essa actividade. A grande questão consiste em saber o que é que se deve estudar como historiador da caça? As coutadas e os seus titulares, os caçadores e seus usuários, as licenças, as rendas cinegéticas, as espécies venatórias, os sistemas de caça, o binómio caça-agricultura? Como não há experiência neste tipo de estudo, em termos epistemológicos, pouco se pode decidir. No entanto, sem perder de vista a geografia agrária, uma realidade venatória se admite: coutadas e seus titulares se correspondem com estruturas de propriedade e espécies cinegéticas. Os restantes factos genericamente ficariam compreendidos nos sistemas de exploração e interacção com o mundo rural. 28 Seguimos de perto o pensamento de Baeta Neves, «A Caça e a História», Jornal de Caça e Pesca, n.º 479, 503-1978, p. 8. 40 Este esquema ressalta a importância das coutadas, unidades básicas da estrutura e tomada de decisão, como a herdade em geografia agrária. Impunha-se, ainda, na coerência da investigação, respirar a atmosfera da região histórica do Alentejo. Sem o compromisso com a humildade, qualquer investigador do social perderá o seu tempo e jamais conseguirá penetrar na sólida e profunda cultura do mundo rural, na tranquila e profícua sabedoria do homem do campo. Por outro lado, a dispersão das fontes, o estado de boa parte dos arquivos distritais e centrais configuram um quadro global que impedia, inexoravelmente, que este trabalho pudesse responder cabal e exaustivamente a todas as questões que, nos seus limites cronológicos, na sua temática global e a nossa própria ambição pudessem suscitar. Outro exemplo das limitações com que nos defrontamos, provém do facto de os concessionários das zonas de caça do RCE, boa parte mesmo de reduzida dimensão, com incidência no espaço geográfico municipal, fecharem as portas ao nosso desígnio, presume-se, por receio de controlo das actividades cinegéticas, sendo, por isso, muito difícil determinar, na sua globalidade, o papel e a envolvente sócio institucional no contexto das comunidades. Contudo, o nosso esforço nem sempre foi em vão. Através de uma amostragem aleatória, que se traduziu na recolha de inquéritos, entrevistas a informantes chave e seriação documental oficial foi possível reunir, embora de forma desigual, dados credíveis, nos limites temporais a que ficamos confinados. A partir de 1974, como é óbvio, houve a possibilidade de utilizar, para todos os investigadores, resultados, analisar a sua evolução político-partidária, concelho a concelho, distrito a distrito, mostrar a geografia eleitoral de implantação das forças políticas em presença e elaborar interpretativamente a sua evolução. Mas apurar a totalidade das zonas de caça do regime especial, quer a sua distribuição geográfica quer o seu procedimento à luz do direito administrativo e venatório, revelou-se um obstáculo intransponível 29. Para resolver as nossas próprias interrogações, ao constatarmos a natureza insuperável das dificuldades atrás enunciadas, servirmo-nos dos arquivos oficiais dos 29 Sobretudo, refira-se a falta de tempo para analisar o imenso espólio documental, na maioria dos casos disperso e não classificado nos arquivos oficiais, salvo os processos de zonas de caça do RCE que se encontram numerados, apesar de na sua generalidade não cumprirem as normas básicas de arquivamento. 41 ministérios, da imprensa diária e das federações de caçadores e agricultores para, ao menos, traçar a evolução da geografia cinegética e da sociedade no período em estudo. Nem assim foi possível concretizar a ambição que norteava o nosso espírito em busca do documento, facto ou informação, porque a própria CNCP (Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses), que deveria herdar o espólio das organizações venatórias, não forneceu qualquer histórico, a não ser, refira-se, as propostas de alteração legislativa que pouco ou nada serviram para o apuramento factual do estudo. Restou-nos, afinal, a FENCAÇA (Federação Nacional das Zonas de Caça Associativas) e a ANPC (Associação Nacional dos Produtores de Caça) que cederam um dossier completo sobre a vida e luta em prol dos seus ideais venatórios. Cremos que estes exemplos são demonstrativos das dificuldades com que nos defrontamos e também suficientemente elucidativos na fundamentação das opções que fomos obrigados a tomar, que mais adiante referiremos. Porquanto este trabalho tem como objectivo essencial ser, ao mesmo tempo, uma obra de avaliação e de síntese, pensamos não defraudar as expectativas ao assumirmos a escolha de analisarmos com rigor a política venatória da Região do Alentejo. Importa ainda fundamentar mais profundamente as preferências assumidas, algumas das quais deixamos explícitas e que se não resumem, como é óbvio, às questões inerentes à evolução geográfica e cinegética. Pensamos que um dos grandes problemas da historiografia portuguesa reside na ausência significativa de trabalhos abundantes e diversificados no domínio da história das vilas e dos concelhos, das comunidades locais ou das regiões, das elites locais, da história das famílias com importância económica, social, política e cultural. Esta ausência impede o desenvolvimento fundamentado ao nível da interpretação explicativa nos precisos termos de uma obra que pretende, como é o nosso caso, estruturar uma visão global centrada na temática específica da venatória e da sua interacção em toda a região do Alentejo. 42 CAPÍTULO II TEMAS E PROBLEMAS DO QUOTIDIANO VENATÓRIO 43 1. O caçador primitivo Durante quase toda a sua evolução como espécie, o homem foi um caçador. Recentemente, surgiu como moderno, urbano, industrializado e desligado do habitat natural e dos animais que no entanto aproveita para caçar. Várias são, porém, as razões porque a apaixonante vida do caçador da Pré-história sobrevive nos sonhos sociais, segundo expressão do passado biológico 30. Depois de várias décadas de um aparente detrimento dos povos primitivos – caçadores e recolectores –, um número crescente de antropólogos e pré-historiadores proclama uma nova interpretação do desenvolvimento do homem que se inverteu por completo. Assim, alguns eruditos indicam agora que a queda do homem começou quando se transformou em agricultor, destruindo grande parte do seu sentido psíquico e espiritual e desencadeando verdadeiramente a agressão contra o meio ambiente. Como caçador, o homem aprendeu a estar alerta, a ter autoconfiança e a inventar para ser mais hábil que as espécies de caça, mas também como cooperar em grupo e partilhar a presa. Praticamente todo o desenvolvimento físico e mental, que serviu de base ao hominídeo, procede da vida como caçador 31. Na Pré-história, a troca numa economia de caçadores e recolectores, a lavoura e a domesticação de animais correspondem ao começo da colonização e da civilização. O homem tinha então uma fonte predisponível de alimento e, por conseguinte, podia dedicar já mais tempo ao ócio e à criatividade. Desenvolveu então culturas com uma estratificação social, religiões complexas, projectos de edificação em grande escala e, finalmente, a palavra escrita, o símbolo que marca a transição da Pré-história à História. Existem, desde logo, muitas excepções a este metódico formato. Assim, os índios norte-americanos desenvolveram uma estratificação social e vida artística sólidas. Apesar destas excepções o homem não só assentou e civilizou, como assumiu o papel de agricultor. Os animais santificados pelo ritual do caçador eram, então, vistos pelo homem como predadores das colheitas. De facto, qualquer ser vivente que não se ajustou ao 30 René Dubos, eminente biólogo americano de origem francesa, citado em «Los primeros cazadores deportivos», in El Gran libro de la Caza, Editorial Everest, León, 1992, p. 122. 31 Idem, ibidem. 44 microcosmo – que o homem agricultor havia desenvolvido para si mesmo –, era eliminado sem piedade. O cultivador converteu-se num prisioneiro do tempo e da terra que alimentava, por sua vez, o espírito e o corpo. Em lugar de poder emigrar com o grupo tribal, o indivíduo e o grupo ficam agora presos a uma diminuta parcela de terra, com a constante preocupação das forças naturais poderem, de um único golpe, aniquilar o trabalho de todo o ano. Em síntese, se a agricultura marcou o nascimento do que se aceita geralmente como civilização, originou o princípio da sujeição do homem a um lugar fixo 32. Se bem que incómoda a vida do caçador da Idade da Pedra, ocupava o seu quotidiano com uma actividade plena de sentido. A caça era em grande parte subsistência, religião, trabalho e prazer. Talvez, por isso, os historiadores da cinegética se acostumaram a distinguir nitidamente entre a caça-recreio e a caça-subsistência das sociedades pré-históricas e primitivas. Existem razões óbvias para tal distinção, sendo mais sustentável basear a história na tese de que, inclusive, para o homem da Idade da Pedra a caça de subsistência era uma forma de recreação, uma actividade que produzia prazer à parte de dar comida. A sua caça foi mais que um trabalho rotineiro requerido pela sobrevivência, conforme nos vem sugerindo o mágico sentimento que irradia nas pinturas das famosas cavernas de Lascaux e Font-de-Gaume em França, e Altamira em Espanha 33. Provavelmente, a primeira arma de caça foi a moca 34 que, num dado momento, uma criatura semelhante ao homem conseguiu empunhar e dar-se conta da sua utilidade ao enfrentar animais portadores de recursos tão colossais como chifres, ungulas e dentes 35. Outro sinal desta actividade foi o uso de um calhau pesado, suspenso em lugar mais elevado, e posteriormente lançado contra o animal encurralado ou de passagem. Mesmo os gigantescos ursos das cavernas de Europa foram mortos ou mutilados por 32 Idem, ibidem. As obras-mestras de Font-de-Gaume foram vistas pela primeira vez por John Reiger, em 1964. O efeito estético e a resposta que despertaram em si, um caçador desportivo moderno, reflecte-se no diário de bordo de 25 de Agosto: « (...) a maioria das pinturas, que realmente devia chamar-lhe bocetos, eram bisontes, cavalos, grandes veados, cervos e mamutes (...) ». Os artistas foram engenhosos ao incorporar nos contornos das paredes da caverna a própria pintura a fim de dar ao tema uma maior sensação de movimento e vida. Este intento de representação realista foi, evidentemente, preconcebido e não meramente acidental. Idem, p. 123. 34 Osso largo de um animal de presa morto por enfermidade, acidente ou vítima de predadores. 35 Sobre a evolução da caça na Península Ibérica, veja Guillermo Muñoz Goyanes, ob. cit. 33 45 pedras, com os cantos rodados, arrastadas de considerável altura pelos últimos caçadores neanderthalienses. Interviria aqui provavelmente a tendência a imitar a Natureza, depois de contemplar os resultados de uma avalanche que surpreende e mata os animais, os primeiros hominídeos podiam duplicar em pequena escala o efeito mortal de um projéctil lançado violentamente. Chegados a este ponto, pergunta-se, se os primeiros caçadores perseguiam os grandes mamíferos em alternativa a espécies mais pequenas e menos perigosas e, em tal caso, porquê? Os grupos de caçadores, presumivelmente, descobriram que era mais simples, e relativamente mais proveitoso, apanhar grandes animais de movimentos lentos, tais como mamutes, em lugar de outros menores e mais velozes. Isto revelou-se autêntico em animais de grande porte como o bisonte, que se atraía até à neve onde permanecia indefeso. Esta técnica interessante de captura e abate de animais na neve foi utilizada na América do Norte e Europa até épocas tão recentes como o século XX 36. Semelhante explicação para perseguir animais de grande porte, durante o Plistocénico, se bem a miúdo passada, foi a necessidade de angariar peles para cobrir todo o corpo de um indivíduo. Com o frio intenso das Eras Glaciais, e antes do homem aprender a cozinhar, os grandes mamíferos de pelagem grossa, na melhor das probabilidades, podem ter sido mais úteis como roupagens do que alimentos. De novo, o desenvolvimento da razão do homem e seu espírito de cooperação prepararam a sua vulnerabilidade. Os de mesma expressão permitiram afinal criar armas e métodos de caça que chegaram a convertê-lo no animal mais formidável do Plistocénico. O urso das cavernas foi noutro tempo uma presa importante da Idade da Pedra. Quando as mudanças climáticas transformaram os ecossistemas da Europa Central, o mamute tornou-se a principal fonte de alimento, conforme recentes trabalhos arqueológicos que cruzaram o estreito de Bering (uma franja de terra aberta ao nível das águas em consequência das glaciações) entre a Sibéria e Alasca, através de migrações que ocorreram durante aproximadamente 25 000 anos. O homem do Paleolítico é caçador por excelência. A sua razão não se eleva para exceder a órbita da existência zoológica: é um animal entremeado de descontínuos períodos de lucidez, em cuja penumbra íntima fulgura o intelecto. Nestas condições 36 John F. Reiger, ob. cit. 46 caça. É a única caça, entre as que o homem praticou, da qual pode com verdade dizerse que é perseguição raciocinada. Inventam-se as primeiras armadilhas e as primeiras estratégias venatórias, a batida, que impele os animais para um desfiladeiro. As armas iniciais não permitem matar o animal solto. A caça ou era despenhamento ou era captura num alçapão, ou com redes e laços. Uma vez a peça feita prisioneira, matavamna às pancadas. Obermaier pensa que, outras vezes, a sufocavam com fumo 37. Posteriormente, a razão robustece-se. O homem inventa armas e técnicas cada vez mais sofisticadas; distancia-se do animal, ganhando elevação; aumenta o enfraquecimento dos seus instintos e afasta-se da original intimidade com a Natureza. De substancial caçador passa a ser pastor, isto é, sedentário. Rapidamente, de ganadeiro se converte em agricultor, isto é, torna-se por completo sedentário. Perde motricidade, olfacto, sentido de orientação, dos ventos e das pistas. Deixa de ser guia (condutor). Isto encurta a sua distância do animal, mantém-no numa categoria limitada de superioridade que permite a equação da caçada. À medida que aperfeiçoa as armas, abandona o costume selvagem e perde capacidade como guerreiro e caçador. O caçador de hoje, que usa a carabina ou a caçadeira, não pode nem de longe comparar-se à aptidão na actuação silvestre do pigmeu ou do seu congénere, o Paleolítico remoto. Por sorte, o progresso na arma fica um tanto compensado pelo retrocesso na aptidão do caçador 38. Daí a admiração e a generosa inveja que o Conde Yebes sente perante o caçador furtivo. Porque este é em longínqua cópia, um homem do Paleolítico – o Paleolítico Municipal –, o troglodita que habita nas nossas aldeias, cuja maior habituação à solidão das montanhas reeducou um pouco os instintos que no homem urbano tem carácter residual. A caça como afirmação do Homem, mais do que um direito, foi nos alvores da humanidade uma necessidade de defesa, posteriormente, de obtenção de alimentos, peles e ossos, através da qual revelou a sua capacidade intelectual. Na verdade, representa uma das ocupações mais ingentes, atestada nas cenas de caça que ilustram as paredes das cavernas. Dada a fereza de algumas espécies, a sua corpulência e os perigos que representa a promiscuidade com determinados 37 38 Idem, ibidem. José Ortega y Gasset, ob. cit, p. 82. 47 carnívoros, não será atrevido afirmar que o homem terá procurado em sociedade a sua defesa e, inclusive, para dividir os despojos, nascendo daí o sentido de cooperação. A habitação humana, provavelmente, terá sido fruto evidente de uma segurança já conquistada e relativamente assegurada, e não apenas de agasalho. A caça contribui para a protecção intencional dos animais domésticos, como auxiliares ou reserva alimentar e a caçada exigia uma ética e argúcia apuradas, com um sentido utilitário e engenho próprios de uma celebração, patente em mais sistemas de captura, que demonstra inequivocamente um proveitoso treino intelectual do homem ancestral. Durante o Plistocénico a actividade venatória revela a gama de artifícios posta em prática para a captura de animais, desde os laços dissimulados, que revelam traços de inteligência e transcendem, em muito, a simples intuição. As fossas com a preocupação de alcançar vivos os animais, o ardiloso sistema de empelejamento, e os colossais despenhadeiros, proporcionavam uma captura espectacular, provas evidentes de uma inteligência já evoluída, que teria o seu reflexo inimitável naqueles aspectos que mais directamente dependiam das manifestações do homem. A caça que tinha sido uma actividade civilizacionalmente estruturante, tanto no plano material como simbólico, nas civilizações primitivas dos nómadas pré-históricos, entrou em decadência como matriz civilizacional nas épocas proto-históricas: neolítico e idade dos metais. Desviada para um lugar de complementaridade, a caça secundariza-se face à aprendizagem do cultivo da terra e da domesticação e criação de animais e recebe um tratamento diferente, num cenário novo: o homem em vez de perseguir a caça, tenta defender-se dela para proteger os animais, já domesticados em rebanho, e as culturas fixas resultantes da recente sedentarização. Alguns povos ou tribos que actualmente vivem em estado semi-selvagem fornecem excelente ilustração dos factos apontados e mostram quanto a caça influi na sua evolução e marcou os estádios dela. De resto, nesta afirmação não apenas existe apologia. Fonte de virtudes, a caça tem também aspectos menos edificantes: a luta entre os homens, até atingir a expressão ordenada e intencional da guerra, terá também surgido das evoluções e sistemas de ataque e defesa aplicados contra o próprio homem. Em consequência, verificou-se verdadeira analogia entre a caça e a guerra, de tal modo que durante séculos, as armas os veículos e até a estratégia eram comuns: os 48 sistemas postos em prática, num e noutro caso, a caça foi, até muito tarde, considerada como excelente treino bélico e a melhor fornecedora de bons soldados. Este estado de coisas fazia de cada homem um caçador, muitas vezes até com carácter permanente, porque o seu exercício seria livre e sempre vivia com as espécies perigosas. O estabelecimento da propriedade territorial ou, pelo menos, da ocupação efectiva, derivado do desenvolvimento e organização agrícolas, deu lugar, à ideia de coutada pela qual se estendia aos animais bravios nela existentes, um direito de posse que nunca tinha sido reconhecido anteriormente 39. No momento em que o homem se tornou pastor dos rebanhos que ele próprio constituía, tratava e defendia, passou a considerar uma qualificação humana baseada na quantidade de cabeças que cada qual possuía: surge assim a noção de riqueza e, com ela, a de distinção de classes. O que tal representava quanto ao direito de caçar presume-se: a carência irremediável para uns sem o benefício evidente para outros. Talvez por isso o direito romano, indiferente a tais costumes e insensível à estabelecida legitimidade da posse territorial, passou a considerar sem possibilidade de atribuição de propriedade, todo o animal bravio, livremente criado. 39 Jayme Duarte «A Caça em Portugal através dos tempos», in A Caça em Portugal, dir. e coordenação de Carlos Eurico Costa, 4ª edição, Lisboa, Ed. Estampa, Vol. I, 1994, pp. 45-46. 49 2. Ética e natureza social da caça A caça na sua forma suprema de montaria durante a Idade Média e mesmo depois dela, conferia aos praticantes uma disciplina vigorosa, um bom exercício e treino para as ocupações da guerra e um hábito onde era possível por em evidência a coragem e a decisão, sendo indispensável que reis e senhores pudessem mostrar esses atributos. A rivalidade entre o homem e o animal selvagem gera sentimentos de violência e morte. Na caça, a lei do mais forte tanto pode ser a da natureza como a da cultura, a do instinto como a da inteligência. O animal selvagem incute o medo que, em certos casos, se domina pela imitação. Daí atribuir-se certas designações de animais para atrair as suas qualidades, ou até vestir roupas com peles, mas sempre usadas com pêlo, para adquirir a nobreza do animal, mas não descer ao seu nível. A caça, como toda a actividade humana, está enquadrada na sua ética, que distingue virtudes de vícios. Há o caçador velhaco, mas há também uma beatice de caçador. Vem tudo a propósito dessa última cena que põe fim à caçada, na qual a pele generosa do animal aparece manchada de sangue, e aquele corpo, que era pura agilidade, fica convertido na absoluta paralisia que é a morte. É licito fazer isto? Tal resposta, ainda que provisória, devemos procurá-la no Conde Yebes. Após o confronto com uma rês esplêndida, que fica ao alcance de tiro, hesita em disparar. A ideia de que, eventualmente, anularia aquela vida tão grácil, colhe-o, de súbito, um instante. Pertence ao bom caçador um fundo inquieto de consciência perante a morte que concede ao animal encantador e não tem uma última e sólida certeza de que a sua conduta seja correcta 40. Contudo, entenda-se, tão pouco está certo do contrário. Encontra-se numa situação ambivalente que muitas vezes quis esclarecer, meditando sobre o assunto, sem conseguir nunca procurada evidência. O genial filósofo chega à conclusão que isto sempre aconteceu ao homem 41 , embora nada diga contra a caça, senão que nessa altura transparece o carácter geral problemático, equívoco, que tem a nossa relação com os animais. Num estudo sobre a caça, sentir-nos-íamos obrigados a tratar em profundidade a dimensão da sua ética que a morte dada ao animal torna inevitável, mas temos de refrear o intento porque o tema se assume com enorme dificuldade. 40 41 José Ortega y Gasset, Sobre a Caça e os Touros (ensaio), Lisboa, livros Cotovia, 1989. Idem, p. 67. Idem, p. 68. 50 Próximo da intolerância dos demagogos, é a total ausência de crítica fundamentada dos moralistas a causa do desmantelamento que hoje padece a convivência humana. Junte-se a isto que a ética da morte é a mais difícil de explicar, por ser a morte o facto menos inteligível com que o homem tropeça. Na moral venatória, o enigma da morte multiplica-se pelo enigma do animal. Há, enfim, esta terceira potência da questão. A morte é já de sobra enigmática quando se apresenta por si mesma, como a doença, o envelhecimento, a consumação. É-o muito mais quando não surge espontaneamente, mas produzida por outro ser. A occisão é o acontecimento mais aflitivo que existe no universo, e o assassino o homem que não chegamos a compreender 42. Recordem os caçadores a primeiríssima sensação, tantas vezes experimentada, quando, no final da caçada, jazem reunidas no solo as peças mortas, com o sangue seco. A coisa é prévia e mais profunda que toda a questão ética, porque essa degradação que o sangue produz em qualquer sítio onde cai nota-se igualmente no que está inanimado 43. Ora, isto é, precisamente, a morte. O cadáver é carne que perdeu a sua intimidade, que se escapou como da gaiola o pássaro, um bocado de pura matéria onde não há já ninguém oculto. Os romanos iam ao circo como à taberna, e o mesmo faz o público das touradas: o sangue dos gladiadores, das feras, do touro opera como uma droga estupefaciente. Do mesmo modo, a guerra é, ao mesmo tempo, uma orgia. O sangue tem um poder orgástico sem par 44 , porque é impossível entrar aqui plenamente na ética da caça, que ao deparar com o problema da morte nos deixa enredados nas questões mais complicadas e nos obrigaria a prolongar indefinidamente este tema, cuja exuberância resulta. Deparamos, além disso, com a circunstância de matar, que multiplica a ininteligibilidade nesta pirâmide de dificuldades: o facto de ter que matar. É, às vezes, obrigatório e inevitável matar o inimigo, o demente, o criminoso e muitas espécies animais, entre elas a humana, não tem outro remédio senão matar para comer. De onde resulta que não somente temos de sofrer a morte à nossa volta, e por antecipação da imaginação a nossa inevitável, mas temos que produzi-la e administrá-la. 42 Idem, p. 70. Idem, ibidem. 44 Idem, p. 71. 43 51 A situação sobre a morte torna-se medonha, porque a maior homenagem que podemos prestar em certas ocasiões a certos animais, não será matá-los com reverências e ritos, mas estimá-los. Assim a toda a morfologia da morte contrapõe-se a caça com alguma coisa sem par, pois é o único caso normal em que matar uma criatura constitui a delícia da outra. Isto leva-nos, porém, ao último paradoxo, ou seja, as dificuldades da sua ética 45. O emposse da peça, o drama táctil da sua captura efectiva e a tragédia da sua morte, nutre antecipada e proporcionalmente os vigorosos e genuínos atributos a toda a tarefa antecedente. Sem estes ingredientes, o espírito da caça volatiliza-se. O desporto é o esforço realizado por comprazimento nele próprio, e não como resultado transitivo que esse esforço rende. Daqui, que ao tornar-se desportista uma actividade, seja qual for, fique invertida a hierarquia dos seus termos. Há, porém, que admitir entre as diversas definições da palavra desporto se elege aquela que o define como conjunto de exercícios corporais que se realizam para recreio ou entretenimento daquele que os pratica. Na caça utilitária constitui a verdadeira finalidade do caçador a morte do animal. Tudo o que ele faz antes é puro meio para alcançar esse fim, que é o seu objectivo determinado. Mas, na caça desportiva, esta ordem de meio e fim inverte-se. Ao desportista não lhe interessa a morte do animal: não é esse o seu objectivo, mas sim tudo o que antes tem que fazer para se apoderar da sua presa. A isto se chama caçar, com o qual se converte em efectiva finalidade o que antes era somente um meio. A morte é essencial porque sem ela não há autêntica caçada; a oclusão do bicho é o termo natural desta e a sua finalidade: a da caça em si mesma, não a do caçador. Este procura-a porque o sinal dá realidade a todo o processo venatório, nada mais. Em suma, não se caça para matar. Se ao desportista lhe oferecem a morte do animal, renúncia a ela. O que ele busca é ganhá-la, vencer com o seu próprio esforço e destreza o animal áspero, com tudo o que se lhe junta depois: a imersão na planície, salubridade do exercício, a distracção do seu trabalho, etc. Com isto tudo não se resolve o problema moral da caçada, mas é forçoso tê-lo em conta. Não se chegou, nem de longe, à perfeição ética da venatória e, talvez, exista precisamente para que nunca se alcance. O mister é orientar a nossa conduta e medir 45 Idem, p. 72. 52 os progressos feitos. Neste sentido, é inegável o avanço conseguido na eticidade da caça. Todo o autêntico requinte tem que deixar intacta a peça de caça, a sua estrutura essencial. Esta consiste em enfrentar as espécies desiguais. O cuidado do homem háde concentrar-se, não em pretender igualar consigo o animal, porque isso é uma utopia, mas evitar cada vez mais o excesso da sua superioridade. A caça é um livre jogo da espécie inferior perante a superior. O homem, durante a caçada, deve atribuir vantagem ao animal e desafiá-lo com nobreza para o situar o mais perto possível do seu nível, sem pretender uma ilusória equiparação que, se fosse possível, anularia ipso facto a própria realidade de caçar. Rigorosamente, o sentido da caça desportiva não é elevar o animal até ao homem, mas alguma coisa muito mais espiritual que isso: uma consciente e religiosa humilhação do homem que abandona a sua prepotência e desce em direcção ao animal 46. O verdadeiro caçador compete, não com outros caçadores, mas com o animal que persegue. Este é o autêntico opositor do caçador ao utilizar todos os recursos de que a natureza o dotou para escapar de quem pretende dar-lhe caça. Em concreto, o verdadeiro caçador é o que mais respeita as espécies cinegéticas protegidas, o que melhor se ajusta aos períodos hábeis para a prática deste desporto; o que procura não limitar com métodos artificiais os naturais meios de defesa do animal; em definitivo, o que actua mais de acordo com a moral cinegética. No facto universal da Natureza manifesta-se, como um mistério fascinante, a hierarquia inexorável entre os seres vivos. Todo o animal está em relação de superioridade com respeito a outro. A caça desportiva submerge o homem nesse formidável mistério e por isso tem algo de rito e emoção em que rende culto ao que há de divino, de transcendente nas leis da Natureza. A tradicional fórmula de que o homem é um ser racional tem sido quase sempre mal entendida, o que não só ocasionou graves erros na teoria, mas também na prática. Induziu sempre o homem a não conter extravagantes ideias acerca de si mesmo 47. Como diziam os teólogos, o Homem in via, caminha para ser racional, nada mais. O Homem auroral para subsistir teve que entregar-se plenamente à caça. Foi, por isso, a caça a primeira ocupação, o primeiro ofício do homem. O trabalho venatório, centro e 46 47 Idem, p. 77. Idem, p. 78. 53 raiz daquela existência, impera, orienta e organiza a vida humana, ou seja, os seus actos e as suas ideias, a sua técnica e sociabilidade. A caçada primitiva não foi pura invenção do homem primitivo. Este tinha-a recebido do animal primata em que a peculiaridade humana brotou. A caça como desporto, se bem com singularidades e características próprias que o diferenciam de todos as demais, efectivamente é um exercício físico que se pratica ao ar livre, individualmente e com uma sujeição a certas regras. Neste sentido, a caça, por antonomásia, diferencia-se dos desportos, porque não pode nem deve ter como fim superar uma marca estabelecida, muito menos um adversário em competição pública. A caça é um desporto estranho totalmente à ideia de competição. A caça concede vastos benefícios aos caçadores, gera alegria, boa disposição, ânsia de viver e inspira os poetas. É na caça e no jogo que se definem os homens. Assegurou Blasonaste, venador francês, pioneiro no capítulo da caça, que os pais deviam encaminhar a educação desportiva dos filhos para o campo venatório, porque tal diversão desenvolvia as faculdades “psíquicas, físicas, morais”. Além disso, a caça é uma escola de bom convívio e comunicação, que ensina o caçador a situar-se na vida, apurar o sentido de sacrifício e observação, a suportar as grandes fadigas com facilidade e até constrições que as circunstâncias convertem em alegria, como permanecer numa estrebaria junto ao gado, nos palheiros, em montes abandonados, onde chovia como na rua 48. Para ser caçador é preciso saber sofrer com cara alegre, mesmo que o corpo peça descanso sem restrições, nem que seja sobre pedras. Exige ter estofo de sofredor, para enfrentar sacrifícios (chuva, frio, fome, cansaço, etc.) e saber apreciar uma bela paisagem, um sol de Inverno que convida à contemplação, entre os ramos grossos dos cedros e zimbreiros que batem na face, dando a cheirar as partículas odoríferas emanadas cuja essência nos inere. O exercício da caça, não obstante ser violento, é salutar, dispersa os sentimentos dominantes e faz esquecer o muito que nos aflige. O vício da caça, a paixão, tudo domina e nesses momentos o pensamento reside apenas num ponto – o encontrar a caça! 48 «Le Chasseur au chien d´arrêt», escrito por volta de 1836, obra que encerra um primor de textos da época alusivo ao desporto da caça, referida por Raul Graça, «A caça – Desporto Salutar», Jornal de Caça e Pesca, n.º 765, 5-04-1990, pp. 1 e 5. 54 Gaston Fhebus (1331-1391), bom poeta e excelente prosador, escreveu no fim da sua vida o Livre de Chasse, verdadeiro breviário na matéria, até ao fim do século XVI 49 . Afirmava com convicção que “Stº Huberto era venador como Stº Eustáquio, ambos congeminavam que os bons venadores se seguiam no paraíso, como a graça de Deus” 50 . Pensava que os caçadores eram prometidos ao paraíso onde os santos estariam além para os acolher. Fhebus era até mais formal nesta matéria. Via na caça a única actividade humana que garantia a entrada no paraíso, ao menos nos seus subúrbios. Xenofonte escreveu a Cinegética para rememorar nos atenienses o gosto pela caça. Michel-Angle Blondus, autor de um livro de caça, no seu prefácio, em dedicatória, dirige-se a François I quando o Rei regressou das prisões de Madrid, afirmando que pela caça são formados bons soldados que permitem conservar a liberdade 51. Além de ser um prazer, a caça foi uma necessidade para o homem, pois alimentava-se, vestia-se com as peles das vítimas, defendendo-se dos animais incómodos. Nos tempos heróicos os gregos eram bons caçadores e formavam uma classe heróica de renome na antiguidade. Homero afirmou que Ulisses fora ferido por um javali quando caçava. Sylla, Sertorius, Pompeu, Júlio César, Ciceron, Marco António etc., foram todos caçadores de elite. A caça foi a grande paixão dos germânicos, mas os franceses preferiam a carne de caça grossa a todas as outras espécies de alimentação. Júlio César, Imperador romano, elaborou uma Lei que condenava com multa os jovens que se deixassem engordar por falta de exercício, forçando-os, por este meio, a praticarem a caça de Cesária. Essa lei geral abrangia diáconos, sacerdotes, etc.52. Na Idade Média, a caça era uma prática iniciática, com as suas inibições misteriosas, sinais de reconhecimento e linguagem à parte. O caçador era por todos saudado e quase todos possuíam uma rica cabana, viajavam a caçar ininterruptamente durante todo o ano, razão porque tinham amigos em qualquer lado. Eram de tal maneira considerados, que diziam ter um pai e uma mãe em todas as paragens. Formavam uma confraria, tinham a sua bandeira, com as suas cores, lugares marcados nas igrejas, bem como nas procissões. 49 Sobre esta personagem que foi um dos maiores caçadores do seu tempo veja-se «Le Saint-Hubert et les chiens dans les livres de chasse de Gaston Fhebus et de du Fouilloux», revista Le Saint-Hubert, n.º 54, Decembre de 1994, pp. 8-11. 50 Idem, ibidem. 51 Idem, ibidem. 52 Idem, ibidem. 55 Na Alemanha, estas confrarias existiam espalhadas por vários lados. Tinham os seus pavilhões de caça, onde os caçadores organizavam os seus concursos de tiro e distribuíam os prémios. No Século XVIII, a invenção das armas de fogo provocou o desinteresse pela falcoaria, conquanto constituiu um novo prazer para os caçadores de aves. Blazer confessava-se admirado pelo facto de, referente à descoberta das armas, não encontrar referenciado qualquer príncipe ou membro da aristocracia financeira. Mais tarde, Walter Scott abriu um novo período com as narrações de cenas de caça praticadas pelos devotos de Santo Huberto. Para ser caçador exigia-se qualidades físicas, atributos intelectuais e predicados morais. O verdadeiro caçador é um sabedor dos componentes da natureza: fauna e flora, montes e vales, cursos de água, chuva e vento. Mas sobretudo um profundo conhecedor dos animais. No mundo rural existem três ambições que sempre povoaram o universo e o imaginário dos alentejanos pobres: ter trabalho permanente; ter um porco para a matança; possuir uma espingarda para a caça. Nos caminhos tortuosos da masculinidade, o homem afirma-se socialmente pelas suas qualidades de perspicácia cinegética e prova-o com número maior ou menor de peças abatidas. Apanhar um “chibato” 53 é uma quase humilhação que precisa de ser reparada quanto mais depressa melhor. Para a maioria dos habitantes do mundo rural, a caça, na sua pura essência, consolida-se num “vou ali já volto” que culmina na agradável surpresa da presa abatida. Para o homem urbano, a caça é uma aventura e um regresso às origens. A massificação da caça e a invasão nortenha dos montados do Alentejo criou naturalmente nos agricultores e nos caçadores locais ressentimentos culturais antigos (e modernos) sentimentos territoriais hibernados e quezílias que importam reduzir. Nalguns casos a caça é a única oportunidade para o cidadão tomar contacto com o campo, para poder contemplar montes e vales, sentir o peso dos elementos naturais ou a força dos deuses, mas é também um momento do escape selvagem que possibilita destruição, violência sanguinária e morte. O apelo à teoria da sublimação dos instintos do homem-fera, duma forma ou doutra, todavia a caça se comporta, como fenómeno social total e gerador de problemas sociais. Teria sido La Palice ou um caçador que afirmou: “bom governo é aquele que 53 Na linguagem popular significa não abater nenhuma peça de caça. 56 consegue fazer uma boa lei da caça”. A legislação venatória é matéria complicada sobretudo quando os interesses individuais brigam com o bem comum, a protecção e a defesa das espécies. Um dia de caça representa um percurso humano e social inigualável. Participar numa caçada é reviver a aventura humana da sobrevivência e retractar a necessidade ancestral da organização social do homem pela via da descoberta cultural, em oposição ao mundo da natureza: repete-se o acto primário da gestação da economia da partilha, caminha-se para os mecanismos económicos de troca, que desembocam natural e progressivamente na actual orientação mercantil. A caça sintetiza os mais nobres sentimentos de entreajuda, solidariedade e fraternidade onde o homem se reafirma como o animal predador por excelência. O interesse e atenção que vastas camadas da população portuguesa dedicam à caça, numa sociedade que trilha os caminhos da democracia, justificam que todos têm o direito a caçar. Numa sociedade e numa época que apesar do tempo perdido, reconsiderou o diálogo com o equilíbrio da natureza e com a noção de precariedade e da não exaurabilidade dos recursos bravios, caçar é acima de tudo, um acto de profunda inteligência. Estudos recentes revelaram que se pode aproveitar as possibilidades oferecidas pela caça e as actividades de tempo livre. O agro-turismo tradicional tem precisamente como complemento a caça, uma caça reflexiva, programada, coordenada e regulamentada nas zonas mais adequadas. Neste sentido, a ética do caçador é a de um defensor do meio ambiente, e da sua judiciosa formação pedagógica 54. 54 Veja-se a referência sobre o Código de Conduta elaborado pelo Conselho da Europa in Giovanni Bana, Trofeo, Ano XXI, n.º 240, mayo de 1990, p. 30-31. 57 3. Origem e dignidade da caça A caça não é tão-só justificável, mas é absolutamente necessária para a maioria dos caçadores 55 . Aristóteles, no seu tempo, era um aficionado venador e considerava a actividade cinegética um dos géneros de vida do homem que se alimentava “ da caça, de aves ou animais selvagens “56. O pensador coloca o homem com centro da criação, desse grande conjunto que é a Natureza. Plutarco, a propósito dos animais bravios, afirmou nesse tempo que o exercício real da caça nasceu da defesa que forçosamente os homens faziam contra as feras, pela guarda dos seus rebanhos, cujos roubos eram motivo das suas mortes: primeiro separavam-nas dos rebanhos; depois procuravam-nas ocultos e prevenidos para não se aproximarem às manadas e as castigarem. Esta prudência cautelosa dos criadores de gado, também caçadores, e da vingança justificada pelo dano, acabaram por ser defesa provida 57. A dignidade da caça, nobre exercício, foi conhecido facilmente por ser acção própria de Reis e Príncipes, que podia ensinar melhor a arte militar, teórica e prática. Os “bosques eram as escolas, os inimigos as feras, e assim com razão é chamada a caça viva imagem da guerra “ 58. Nas sociedades contemporâneas evoluídas o caçador moderno comporta-se como um gestor que aproveita os recursos naturais renováveis mediante uma ética baseada na tradição e no respeito, sob o compromisso iniludível de manter e aumentar os mesmos recursos que encontrou. Nesse caso, qual a razão porque a caça ocasiona alarme social? Evidentemente, por desinformação e exteriorização de alguns caçadores, mas também por condutas desviantes, que concorrem para deformar essa imagem da actividade cinegética. 55 Jornal de Caza Y Pesca, Ano LVII, n.º 665, Maio, 2001, p. 13. Na sua Política, afirma que o caçador quando caça os animais «imita a Natureza». Durante toda a sua vida manifestou um grande interesse pelos estudos de Biologia e Zoologia. Entre 343 a 340 a. C., escreveu o célebre livro Investigação sobre os animais que é uma das primeiras obras sobre ciências naturais; estudou e classificou os animais, entre os quais se encontra a perdiz-vermelha, que caracteriza sumamente. Veja-se La Politica, Alianza Editorial, Madrid, 1991; La Investigación sobre los animales, Editorial Gredos, Madrid, 1992. Também sobre Aristóteles, é interessante o comentário feito pela Revista Caza y Pesca, n.º 665, mayo, 2001. 57 Juan Mateos, Origen y dignidad de la caza, Madrid, Ediciones Velásquez, 1982 (que segue com fidelidade a edição príncipe impressa em Madrid por Francisco Martínez en 1634), p.7. Esta obra não só é um compêndio de saberes e técnicas venatórias das épocas imediatamente anteriores, mas também um tratado cheio de sugestões e notícias do que poderia chamar-se «filosofia da caça» no século XVII.Com a Arte de Ballesteria Y Monteria, de Martinez de Espinar, e o Tratado de caça ao voo, de Tamariz de la Escalera, forma este livro de Juan Mateos a grande trilogia da literatura cinegética espanhola desse século. 58 Idem, ibidem. 56 58 A caça também passou por estádios de fundamentalismo e proibição fatais. Com efeito, durante o século XVI, as regiões que o homem dispunha para caçar se misturam e condicionam. Todos ou quase todos os príncipes, dessa época, eram homens que gostavam de combater e de caçar. É natural que para eles a caça, com os seus faustos e ritos, fosse um prolongamento da façanha autêntica. O nobre, nessa época, ocupa parte do tempo no campo, montado a cavalo e armado, na guerra ou à caça nos bosques. Quanto à gente do campo, tão frequentemente reduzida à fome pelas guerras e impostos, caça por necessidade, muitas vezes fortuita ou furtivamente. Esta gente, de quem Agrippe D´Aubigué nos descreve a espantosa miséria nas “Tragiques”, referindo que não tinham direito a caçar, a tal ponto carece desse direito que os pajens e os batalhões de cães tinham ordem para despir e chicotear os que ousassem aproximar-se duma caçada 59. Insensíveis aos prejuízos causados aos pobres camponeses, os nobres, na recreação dos seus prazeres venatórios, destruíam as colheitas e destroçavam as hortas quando a montaria atravessava os seus terrenos. Na mesma época, Francisco I, mantinha cem pajens, dezenas de escudeiros e montadores, trezentos pássaros de voo alto e os cetreiros. Só caçava de companhia com numerosos gentis-homens, com os respectivos séquitos e gastava, em média, 150 000$00 num fausto cinegético. Nesse tempo, Henrique IV afirmou que gastava 1 200 000$00 neste desporto, soma suficiente para manter 15 000 soldados de infantaria. No entanto, não se tratava apenas de fausto, mas sobretudo de acção violenta e viril 60. 59 60 Idem, ibidem Extraído de «La Caza en El Arte», Jornal de Caça e Pesca, n.º 113, 1-05-1981, p. 11 59 4. Caça na Europa Ao percorrermos o mundo venatório de diversos países europeus, reconhecemos que os costumes se modificaram ao longo dos tempos. Na realidade, as permanências seculares, as mudanças dos hábitos de consumo e as imposições da conservação da natureza reflectiram-se sobre os caçadores, levando-os, quer a respeitar a preservação dos recursos bravios quer a revezar determinadas práticas ancestrais, quer mesmo a abandonar a actividade, contribuindo assim para a selecção do caçador produtor moderno. Esse desenvolvimento só foi possível porque as condições naturais, a partir de agora, não permitem uma atitude libertina e anárquica, que o nível técnico entretanto atingido pelas armas de caça convidava. Nesta lógica, os laços estabelecidos com o compromisso da conservação, substituíram-se à lógica da imutabilidade temporal da caça subsistência, dando continuidade a uma nova mentalidade sustentável e, nalguns casos, complementar ou até alternativa ao aproveitamento tradicional da agricultura de subsistência, sem prejuízo do desporto venatório. 4.1. A sustentabilidade dos recursos bravios Em 1985, na cidade de Madrid, durante o I Congresso Mundial da Caça 61 , os congressistas relacionaram os estudos feitos nos países evoluídos sobre a economia gerada pela caça, circunstância que permitiu demonstrar a importância adquirida por este sector no conjunto das respectivas economias nacionais. As peças de caça tornavam-se, nesse caso, um valioso produto agro-pecuário e originaram um complexo fenómeno económico. Deste modo, este factor produtivo passou a constituir o principal rendimento de muitas explorações agrícolas, ou, pelo menos, um expressivo complemento delas. O aproveitamento dos recursos cinegéticos constitui, é certo, fonte de emprego sectorial, de uma actividade turística destacada e de indústrias e actividades comerciais afins, pelo que merecia um ordenamento próximo no contexto económico agrário. Os meios e processos utilizados na realização dos estudos sobre a economia cinegética foram diferentes, em muitos casos, ficando por calcular aspectos de interesse em alguns 61 «I Congresso Mundial da Caça, Madrid, 22-24 de Outubro de 1984», Jornal do Caçador, n.º 202, 15-011985. 60 deles. É, assim, sob esta perspectiva que se pretendia unificar os critérios a fim de assegurar o estabelecimento futuro duma metodologia similar para obter resultados homologados entre os diferentes países. Através dos tempos, os caçadores adaptaram-se às necessidades de cada época, adoptando normas e atitudes que geraram princípios cinegéticos e conservacionistas. As regras da caça foram os pilares da protecção da fauna silvestre no mundo, pois a intervenção na Natureza exigia racionalidade. A gestão nos espaços naturais não só é autorizada como imprescindível e a caça deve cumprir, neste sentido, uma função reguladora e não destruidora, porque o ordenamento cinegético de um território melhora substancialmente toda a flora e fauna que lhe são próprias, assegurando a sobrevivência, até aos nossos dias de espécies essenciais 62. Nos países onde se pratica a caça racional e os recursos faunísticos foram incrementados, não se extingue nenhuma espécie. Por essa razão, na vanguarda das denúncias sobre a degradação do meio ambiente figuram sempre os caçadores. Contudo, tal constatação não se deve generalizar, pois os caçadores responsáveis foram, em grande parte, os promotores dos movimentos proteccionistas internacionais 63 . A Itália, durante décadas, fora um país riquíssimo de caça, mas o Estado e os caçadores deixaram, de modo inconstante, exaurir os recursos bravios. Naquele período, desenvolviam as zonas de caça privadas e controladas, apesar das dificuldades sentidas, visto que os 1 400 000 caçadores estavam habituados à liberdade total e, por outro lado, as organizações anti-caça exerciam pressões junto do poder e da opinião pública para acabar com a caça, ao ponto de proporem o “referendo” 64. A utilização imprudente e especulativa do território e dos recursos naturais italianos provocou uma degradação do meio ambiente, muito difícil de reequilibrar. Porém, como estava em causa um património de tal modo importante, justificava “ experimentar e defender o que ainda era possível – a contribuição cultural e social dos caçadores e das suas organizações nacionais e supranacionais no plano ecológico – “, 62 Idem, p.2. À CEE, que havia reservado uma maior atenção aos problemas do meio ambiente, competia promover e financiar um grande número de projectos respeitantes a áreas de importância internacional. A FACE (Federação das Associações de Caçadores da União Europeia) e o CIC (Conselho Internacional da Caça) deviam encarregarse deste problema. A FACE elaborou ainda um excelente trabalho no âmbito do recenseamento da fauna europeia. Jornal de Caça e Pesca, n.º 753, 5-10-1989, p. 15. 64 Idem, ibidem. 63 61 que representava a única condição para manter a caça sempre dentro do respeito de um justo equilíbrio da fauna 65. Os italianos perceberam que existiam condições para uma ampla participação social, efectivada pelos agricultores, caçadores e institutos científicos bem qualificados. A experiência, que chegava de numerosos países europeus, mostra que sem a implicação do mundo agrícola era impossível dar passos concretos e significativos em frente. Por isso, os italianos atribuíram um papel de primeira importância ao acordo assinado, na altura, entre agricultores, caçadores federados na União Nacional das Associações Italianas de Caça e o organismo público regional, que em Itália tinha plenos poderes no que respeitava ao meio ambiente, à fauna e à caça 66. Por outras palavras, para o delegado da Itália, tudo isto representava um “passo considerável em frente na iniciativa de determinar as condições dum reequilibro da fauna e as melhores perspectivas para a actividade venatória”. Para o Congresso, porém, a política de defesa e de recuperação do meio ambiente com o fim de reequilibrar a fauna e o exercício controlado da caça devia extravasar os limites do próprio país. Julgamos, que este objectivo, era justamente o fim principal deste Congresso. “Que fazer?” 67. Portanto, convinha que se elaborassem planos de intervenção para a recuperação do meio ambiente e para o reequilibro faunístico à escala supranacional. As organizações de caçadores não podiam limitar-se a denunciar uma situação de crise ou lançar imprecações contra as restrições impostas ao exercício da caça. Os apelos e recomendações não eram suficientes, porque não modificaram em nada a situação. Havia necessidade de criar grupos de trabalho, que, pela sua contribuição científica eficaz, pudessem elaborar planos de intervenção sobre áreas homogéneas supranacionais ou de interesse 65 68 . Nesse sentido, a Federação Italiana de Idem, ibidem. Esse acordo previa uma política de programação do meio ambiente visando reequilibrar a fauna para grandes áreas homogéneas (zonas dos Alpes-zona dos Apeninos-zonas húmidas); coordenação dos calendários da caça para estas grandes áreas; gestão social de todo o território agro-florestal em vista à protecção e aumento da fauna e visando também um exercício controlado da caça (25% do território estava interdito ao exercício da caça e reservado a zonas de reprodução, 10% do território coberto de estruturas privadas chamadas empresas faunísticas de caça e empresas Agro-Turísticas com pagamento do exercício da caça). A parte restante do território seria gerida, a nível social, pelos agricultores e caçadores na prossecução do exercício da caça que assegurasse uma ligação cada vez maior e mais estreita do caçador com o seu próprio território; contribuição em dinheiro aos agricultores que facilitassem a recuperação do meio ambiente e a sua produção de caça; medidas adequadas, por parte do organismo público para realizar projectos de intervenção no território. 67 Idem, n.º 203, 1-02-1985, p. 8 68 Por exemplo, as zonas húmidas da Bacia do Mediterrâneo; a zona dos Alpes; as áreas dos Apeninos, cuja agricultura é desvantajosa. Idem, ibidem. 66 62 Caça tomou a iniciativa de se reunir com várias famílias, com o objectivo de repovoar os ungulados num território muito vasto e mesmo para as zonas húmidas, fez-se mais do que se pedia, pois a Convenção de Ramsar incumbiu os italianos da protecção de 17 000 has, mas estes excederam 34 000 has, porque passaram a ter um conceito de protecção alargado a todo o território agro-florestal. Esta medida, porém, não agradou aos caçadores que contestaram o panorama italiano, onde a protecção do meio ambiente era concebida quase exclusivamente na miríade de Parques Nacionais e Regionais e de Reservas Naturais. A gestão dos parques era constituída em parte por proibições que iam contra os verdadeiros interesses económicos e sociais das populações locais, particularmente contra um justo equilíbrio da fauna e da fruição da actividade agrícola e cinegética: o proteccionismo italiano repudiava os planos de abatimento, a caça selectiva e outras intervenções adequadas, partindo do pressuposto que a Natureza sozinha fazia o seu equilíbrio. A evidência dos factos mostra, no entanto, que a intervenção do homem não é somente necessária mas também indispensável. Na verdade, os recursos naturais não podem ser considerados como monumentos a embalsamar, mas como bens ao serviço da humanidade que, por sua vez, deve fazer deles um uso cultural e social correctos. Era justamente este o problema que o Congresso devia abordar. A síntese de tudo isto é representada pela pessoa de um caçador ecologista e naturalista, que com o suporte do Poder Público e conjuntamente com o agricultor e o homem da ciência protege, produz, gere no interesse de toda a colectividade com a prudência necessária 69. As tradições em matéria de caça nos diferentes países não podiam ser abolidas, salvo por motivos de ordem científica, porque era impossível aplicar a mesma regulamentação à actividade cinegética da Escócia e da Sicília, uma vez que as técnicas, os habitats, as tradições e os costumes populares eram muito diferentes. Os acordos internacionais respeitaram sempre, na medida do possível, as tradições e até mesmo os usos e costumes dos diferentes países, tais como directivas, sugeridas pela oportunidade de harmonizar as exigências dos caçadores nos diferentes Estados Membros. A sua aplicação deve assegurar um levantamento coordenado segundo as exigências de cada Estado, tendo em conta, o habitat e agricultura. Os princípios fundamentais de cada regulamentação supranacional deviam, por isso, assegurar prioritariamente a salvaguarda dos meios naturais, porque de nada valiam as 69 Idem, ibidem. 63 afirmações gratuitas como, preservar, manter ou restabelecer habitats suficientemente extensos e variados, porque era preciso efectuar uma lista de biótipos e de zonas de protecção a reconstituir ou a criar 70. Também era irrisória uma lista rígida de aves cinegéticas que podiam ser caçadas pelo caçador, pois se sobrepunha a certas exigências e hábitos locais ou regionais dos Estados Membros. A caça devia ser compreendida como levantamento coordenado, selectivo e programado das peças de caça porque estas não eram inesgotáveis. A gestão da fauna supõe, por outro lado, um verdadeiro conhecimento dos homens e dos meios naturais, e, por essa lógica, era importante que as autoridades compreendessem as exigências do Homem e da Natureza, servindo-se para tal da investigação sociológica e técnicas que permitem compreender as modificações que a caça sofre no decurso dos anos, segundo a idade e o nível de educação de cada caçador. Em 1982, em Itália, todas as agendas de caça eram remetidas para a província de residência do caçador e em seguida para a região da Lombardia que procedia à triagem, subdividindo-as entre os caçadores que praticavam a caça às aves migratórias, colocados em determinados locais, à sua espera, e aqueles que a praticavam de outras formas. Com efeito, os dados fornecidos pelos caçadores que caçam sempre num determinado lugar de espera fixo “são muito interessantes porque podem ser confrontados durante cinco anos”71. Foi assim possível iniciarem-se as primeiras estatísticas das espécies cinegéticas, cujos dados permitiram o levantamento venatório e o confronto com os índices fornecidos pelas estações de passagem. Estes observatórios ornitológicos, situados ao longo das principais linhas de migração, trabalham de uma maneira estandardizada e servem, igualmente, para o recenseamento invernal efectuado em certas zonas e para as sondagens de amostras na região da Lombardia 72. Um dado significativo pode mesmo ser reconhecido pela nidificação ao comparar as espécies invernantes e aquelas que, no fim da estação primaveril, permanecem para 70 Art.º 3.º da Directiva n.º 79/409/CEE. A Lei italiana n.º 968, de 27-12-1977, e as leis de cada região tendem a fixar um limite de peças a abater para cada espécie, particularmente muito importante relativamente a aves migradoras. Cada Estado organiza rigorosamente a aquisição dos dados de cada caçador. A Região da Lombardia envia a cada caçador de aves de migração uma agenda, na qual deve indicar o número de exemplares abatidos consoante a espécie, em cada dia de caça. No fim de estação venatória, mas nunca depois de 30 de Abril, o caçador deve restituir a agenda devidamente preenchida. Todavia, a não restituição da agenda implicava uma sanção administrativa que podia ir até 50 000 liras. Veja-se I Congresso Mundial de Caça......p. 2. 72 Idem, ibidem. 71 64 a nidificação. A elaboração destes trabalhos deve ter em conta modificações que podem influenciar as migrações, sobretudo as relacionadas com as condições meteorológicas; a gestão dos dados, por consequência, deve fundamentar-se em dois elementos fundamentais: contagem dos levantamentos, incluindo os observatórios ornitológicos; contagem das aves durante os períodos preestabelecidos. Os caçadores eram, portanto, operadores fundamentais. A transmissão dos dados úteis e as sínteses internacionais apoiada numa metodologia cientificamente viável devia ser confiada aos responsáveis nacionais; o sistema, por sua vez, devia organizar-se a nível nacional, numa confrontação necessária com os dados que seriam recolhidos por outras vias e analisados em caso de divergência 73. A actividade cinegética compreendida entre um período de tempo (abertura e fecho) deu lugar à caça “ordenada, controlada e programada segundo um calendário ornitológico para cada espécie”, afastando, assim, puras e simples considerações emotivas que não ligam de modo equilibrado a caça, habitat, agricultura e homem. O Homem, por seu lado, devia colocar-se no centro de um sistema de pensamento razoável e na descoberta mais concreta desta verdade natural que, sob muitos aspectos, é “ desconhecida, misteriosa e também digna de ser explorada e estudada “74. Na Hungria, a partir de 1945, o direito de caçar dissociou-se do direito de propriedade e passou para o Estado. Após a II Grande Guerra Mundial a transformação agrícola socialista criou condições para o estabelecimento de um certo equilíbrio entre a agricultura, a silvicultura e a gestão da caça, circunstância que impeliu o aumento dos recursos bravios 75. Em 1980, o número de cabeças de veado vermelho, corço e javali tinha triplicado em relação a 1936, enquanto que o número de lebres e de perdizes-vermelhas havia diminuído, estimando-se, respectivamente, a terça e décima parte. As espécies de caça maior, embora sendo de alta qualidade, destroem a capacidade natural de alimentação das terras agrícolas e das zonas florestais, por isso, provocam importantes estragos no país. Como compensação, os agrupamentos de caçadores pagam aos agricultores as indemnizações agrárias. Em 1983, o valor total da produção cinegética alcançou 24,4 milhões de dólares e os lucros ascenderam a dois milhões de dólares. Do total da produção, 34%, 73 Idem, ibidem. Veja-se a intervenção do congressista italiano, Giovanni Bana. Idem, n.º 204, 15-02-1985, pp. 6-7. 75 Por exemplo, 82,6% de todos os terrenos aptos para a caça estão arrendados por grupos de caçadores integrados na Associação Nacional de Caçadores da Hungria. Idem, n.º 205, 1-03-1985, p. 2. 74 65 correspondeu a caçadores estrangeiros, 23% para venda de peças mortas e vivas, respectivamente. Anualmente, neste país, caçam cerca de 16 000 caçadores estrangeiros. Comparando os valores pertinentes, comprova-se que a rentabilidade da caça é inferior à silvicultura, apesar dos esforços para melhorar a sua gestão. Os institutos de investigação, assim como os Serviços de Caça estudam a possibilidade de coordenar as actividades inerentes à silvicultura e à gestão da caça de forma mais efectiva, sob o ponto de vista económico e ecológico 76. De qualquer modo, neste período, em Itália a caça representava trabalho e emprego a mais de 33 000 pessoas e estava no centro de uma série de actividades que alcançavam um volume de negócios superior a um bilião de liras 77. Na Polónia, o solo composto por zonas cujos biótipos e tipos de natureza muito variados, favorecia uma fauna silvestre variada, quer de caça maior (alce, corço, gamo europeu, veado); de caça menor (lebre, faisão, perdiz-vermelha e pato). Também existem espécies raras como o lince, o urso, a abetarda, o tetraz-grande das serras e o grevol. A economia cinegética na Polónia é administrada pela Organização Popular (Associação Polaca de Caçadores) 78. As épocas de Caça são fixadas pelo Ministério da Indústria Florestal e Madeireira, e o Regulamento de Caça, pela Associação de Caçadores da Polónia. Para sancionar o incumprimento do Regulamento aplicam-se diversas multas. Os caçadores abatem cada ano, aproximadamente, 1 000 alces, 30 000 veados, 100 000 corços e 100 000 javalis. Durante os últimos anos foi autorizado o abate excessivo de ungulados, 76 Também na África do Sul, Donald Lindsay, Presidente da Associação Internacional dos Caçadores Profissionais, considerou o caçador como “peça fundamental”, sem a qual não se justificava manter a caça. A produção de proteínas animais de uma área de caça pode ser tão boa como outra de animais domésticos. Porém, em certas zonas, a caça afigurava-se mais rentável do que a criação de gado. Tudo o que relaciona com a caça está intimamente ligado ao Departamento Governamental da Conservação da Natureza. Anteriormente, existiam sempre conflitos entre caçadores e autoridades, mas, a partir daí, o trabalho conjunto contribuiu para que os caçadores fossem consultados antes que fosse aprovado qualquer lei sobre o assunto. 77 Os dados elaborados por Proter Censis (1982), dão-nos os seguintes valores no mercado nacional: armas de caça 258 000 milhões de liras (das quais exportam 65%) e 7 901 empregados; munições para caça: 183 mil milhões (das quais exportam 2,45%) e 7 000 empregados; acessórios e vestuário: 100 mil milhões e 5 000 empregados; imprensa cinegética: 19 000 milhões e 6 300 empregados; Armeiros: 409 000 milhões e 6 300 empregados. Carlo Luigi Peroni, «I Congresso Mundial da Caça», Madrid, 22-26 de Outubro, 1984, Jornal do Caçador, n.º 203, 1-02-1985, pp. 11-12. 78 Fazem parte desta associação 2 200 cooperativas de caça que englobam 75 000 membros. As cooperativas de caça arrendam 4 800 coutos com 5 000 has, em média, os quais constituem aproximadamente 90% do território total de caça. Os restantes 105 estão controlados pelos Centros de Protecção da Caça, que determinam os exemplares destinados a exportação ou ao repovoamento interno. Independentemente, existem numerosos parques nacionais e áreas de protecção natural. O cuidado e protecção da caça estão contemplados em planos técnicos de controlo da caça e o seu aproveitamento está regulado de acordo com os critérios que são determinados pelo Conselho Superior da Caça. 66 originado pelos danos causados pelas espécies cinegéticas. O Estado e a Associação de Caçadores da Polónia pagam, por isso, as indemnizações correspondentes. As cenas de caça reflectem-se na cultura nacional, designadamente na pintura, na literatura e na arte. A economia cinegética é uma disciplina que se estuda nas Escolas Superiores de Agronomia 79. 4.2. A caça como regulador da fauna silvestre Numa primeira fase, a caça como actividade destrutiva revelou-se conflituosa com o uso dos espaços silvestres. Porém, a partir do momento em que a caça se tornou um desporto de massas necessitou de uma nova cultura: a da compatibilidade com as exigências da conservação da fauna. Para levar a bom termo este plano, houve que estabelecer, antes de mais, o princípio de que as espécies silvestres constituíam um recurso natural para a humanidade 80. Desta premissa nasceu o compromisso de salvaguarda que podia aplicar-se da maneira mais racional: por um lado, mediante a protecção do habitat natural e a criação de zonas reservadas à estadia e nidificação; por outro, mediante o cálculo rigorosamente científico do movimento migratório, com o fim de estabelecer a quantidade máxima de animais que se podiam abater. Neste caso, havia que recorrer a observadores de classe internacional e a organismos capazes de indicar as medidas mais idóneas em tempo útil, de modo a que a “causa dos caçadores se conjugasse com a da salvaguarda das peças de caça” e a relação caça/fauna recuperasse o seu equilíbrio 81. A manifesta contribuição da caça para a conservação da Natureza e da fauna silvestre constituiu, deste modo, uma correlação com consequências benéficas sobre as espécies silvestres e conservação do meio, especialmente no campo do controle, aproveitamento e administração de grandes territórios cinegéticos 82. 79 Idem, ibidem. A. Vincenzo Gorlani, idem, n.º 207, 1-04-1985. pp. 2-3 81 A este respeito, o especialista esperava que o novo estatuto internacional que protegia a caça das espécies cinegéticas migratórias seria eficiente e por isso haviam de ser os caçadores a segui-lo. Demonstrou ainda, mediante factos, ante a opinião pública, as acusações infundadas que apontam os caçadores como inimigos da Natureza. 82 Carlos Otero Muerza baseou a sua investigação científica em estudos concretos empreendidos em Espanha. Idem, ibidem. Veja-se do mesmo autor, «Contribución de la actividad cinegética a la conservación de la fauna silvestre en España», in Actas de las I Jornadas Nacionales de Turismo Cinegético (Almagro, Ciudad Real, 1983), Madrid, Dirección General de Empresas y Actividades Turísticas, pp. 77-94. 80 67 O Congresso ofereceu, assim, a possibilidade de determinar os conteúdos de uma estratégia meio ambiental para a administração do território, seguindo planos traçados e mediante financiamentos oportunos (descontaminação, aumento dos espaços verdes, protecção dos meios naturais e dos biótipos importantes, reequilíbrio da fauna com recuperação de terrenos de agricultura marginal, aproveitamento controlado dos recursos com um controlo supranacional e com assistência científica). Tudo isso exigia uma participação social na gestão cinegética, quer de agricultores quer de caçadores. Em muitos países, como na Itália, podiam encontrar-se exemplos de boa gestão, apesar de continuarem a ser muito limitados, em determinadas estruturas, como os parques naturais sujeitos a excessivas proibições 83. Apesar da dificuldade em apresentar um balanço da situação cinegética mundial, dada a complexidade nos diferentes países, os congressistas concluíram que a caça e o desenvolvimento eram conceitos conciliáveis; os recursos cinegéticos encontram-se melhor utilizados, dum modo geral, nos países desenvolvidos, nos quais a gestão estabelece planos cada vez mais rigorosos e eficazes; nos países de menor desenvolvimento, onde existem grandes problemas humanos, a conservação da Natureza, a fauna e o incremento da caça furtiva alcançaram níveis inquietantes, porque a ilícita actividade dispunha de meios, cada vez mais sofisticados, com o intuito de produzir grandes lucros comerciais. O furtivismo constituía, assim, uma ameaça para as diversas espécies cinegéticas e afectava a base vital de numerosas comunidades rurais. Finalmente, o Congresso recomendou aos poderes públicos a adopção das medidas necessárias para reduzir o grave problema provocado pela caça furtiva 84. 4.3. Problemática jurídica da caça Todos os acontecimentos da natureza respondem a normas e obedecem a princípios, na maioria dos casos, imanentes à própria realidade. A caça, como acontecimento zoológico que é, estende-se a todo o reino animal. O homem, de uma ou outra maneira, pratica a caça enquanto actividade humana, embora sujeita a normas e a certas regras que a disciplinam. 83 84 «Conclusões», I Congresso Mundial de Caça. Idem, ibidem. Idem, p. 3. 68 Quais são essas normas e quais devam ser é a conclusão a que se deve chegar através de um estudo meditado do direito de caça. Limitemo-nos, porém, a expor alguns pontos de interesse que possam contribuir para conhecer melhor a problemática jurídica da caça em Portugal. A acção de caçar incide profundamente em áreas da vida humana em campos tão heterogéneos que é, além disso, um acontecimento social e económico de singular importância, um facto jurídico, que o legislador atribui um efeito e outorga um determinado perfil legal. É neste sentido que a caça nos interessa. Quais são, e de que natureza são, os problemas jurídicos que coloca? Qual é, ou qual deve ser o regime jurídico que melhor ordena e regula a caça e tudo o que com ela se relaciona? Em suma, qual é a problemática jurídica da caça? Para melhor e mais clara exposição dos problemas jurídicos que a caça coloca temos de começar por estabelecer o plano em que a mesma se desenvolve: caça e natureza; caça e direito; caça e economia 85 . Ao longo da história, a caça tem sido motivo de numerosos conflitos sociais e humanos. Talvez, por isso, estes três aspectos, sejam a versão de entronque entre a caça e natureza, entre a caça e o direito e entre a caça e economia, e nos dão a chave do presente e do futuro da caça. Repartem-se as legislações europeias em dois grandes grupos, quanto a saber a quem pertence a caça: para umas, é res própria, ou seja, propriedade dos donos onde se encontra; para outras, é res natione, ou seja um bem do domínio público. Na nossa legislação, tal como em Itália, diferentemente do que acontece na grande maioria dos países europeus, manteve-se o princípio romanístico de que as peças bravias em estado de liberdade natural são res nullius, ou seja, bens que não tem dono, susceptíveis de apropriação por qualquer pessoa a quem passam a pertencer. O conceito de res nullius, isto é, por definição, Cedunt Primo occupanti, tem sido porém, erradamente interpretado na legislação portuguesa sobre a caça, ou seja, as peças de caça pertencem à primeira pessoa que delas toma posse 86. Muitos censuram, como iremos ver, a lei portuguesa, porque, na civilização e na economia do nosso 85 A primeira tem por objecto estudar a concepção legal que actualmente tem a caça com crescente protecção e defesa da Natureza; a segunda destaca o significado que actualmente tem para a caça a sua formulação legal; a terceira tem por objecto destacar nas sociedades modernas o papel que corresponde à caça no plano económico. 86 Também está ligado ao princípio do direito de propriedade: res nullius est primi capientis (a coisa que não é de ninguém é do primeiro que a toma). Veja-se Olívia Maria Figueiredo et alli, Prontuário Actual da Língua Portuguesa, Porto, 1ª edição, Asa Editores, S.A., 2005, p. 246. 69 século, cometeu o erro de conservar este conceito jurídico, inclusive de o aplicar erradamente, violando e alterando mesmo, o verdadeiro regime jurídico que a caça tinha no direito romano. É indiscutível que o direito romano reconhecia o pleno direito do proprietário do terreno de proibir que outros por ele transitassem com carros, a cavalo ou a pé. E constitui prova evidente, se necessário, a existência no direito romano das serventias 87. Por isso, o direito do caçador romano de percorrer de lés-a-lés o território era limitado pela eventual proibição de circular nas terras, o que logicamente restringia o exercício da caça livre a qualquer terreno que não tivesse dono (o que naquele acontecia) ou cujo proprietário não se preocupasse de fazer respeitar a proibição de entrada. As espécies venatórias pertenciam ao primeiro que as apanhasse, pois eram juridicamente res nullius. Mas isso não constituía razão bastante para o caçador se introduzir nas terras alheias e aí caçasse sem autorização do proprietário 88 . O direito romano limitava o conceito da posse das espécies venatórias mediante o livre exercício da caça com o direito do proprietário do terreno de impedir o exercício da caça dentro da sua propriedade. Portanto, o proprietário do terreno, ao negar a entrada a estranhos, era na prática o único que ali podia caçar ou autorizar alguém a caçar. Porém o direito romano foi, pela lei portuguesa, alterado, pois nega ao proprietário de um terreno, com as devidas limitações, o direito de impedir a entrada, para caçar, a quem estiver munido duma vulgar licença de caça concedida pelas autoridades competentes. Dá-se assim a inúmeros caçadores um direito de propriedade. Por esta razão, a lei portuguesa dominada pelo conceito que a caça é res nullius alterou profundamente, em teoria e na prática, os princípios romanos e não seguiu os ensinamentos dos juristas romanos que criaram o Direito no mundo civilizado 89. Num Estado de Direito, em que a propriedade é realidade indiscutível, parece que a situação correcta dos animais bravios, objecto de caça, seria pura e simplesmente a de res propria. A verdade, porém, é que na lei portuguesa ela é res nullius, o que, 87 Por exemplo, VIA, ITER, ACTUS, ou seja a possibilidade jurídica de exercer o direito romano reconhecia ao proprietário a plena faculdade de afastar do prédio quem não tivesse o mencionado direito de servidão activa ou qualquer outro especial direito de acesso em caso de necessidade reconhecida. 88 Efectivamente, o jurisconsulto Gaio (L. 3 par. D. de acq. Rer. Dom. XLI) assim sentenciava: «PLANE QUI IN ALIENUM FUNDUM INGREDIETUR VENANDI GRATIA POTEST A DOMINO...IURE PROHIBERI». Veja-se Revista Diana, n.º 248, Maio/Junho, 1973, pp. 32-33. 89 Idem, ibidem. 70 parece, ninguém se disporá a contestar e que, aliás, serve perfeitamente o objectivo de se conseguir uma boa lei da caça. A preocupação do caçador português, ao longo dos tempos, resume-se no receio de que algum governo, através de documento legal adequado, decida retirar à caça o carácter de res nullius para lhe dar o de res propria, o que, em seu entender, constitui um roubo. Quando em Portugal se afirma que a caça não é res propria, ou seja, propriedade dos donos da terra, tal não significa que é propriedade dos caçadores, mas sim de todos os portugueses. Daqui que o Governo tenha de legislar, em matéria de caça como em qualquer outro campo, no interesse público e não no de qualquer outra classe aspirante a privilégios. Uma lei, para ser boa, terá forçosamente de utilizar o rico potencial que a caça constitui no interesse geral, e não no interesse particular, porventura egoísta do grupo social, neste caso, constituído pelos caçadores. A realidade básica para voltar a haver caça, na abundância que se deseja, impõe que o interesse nacional leve o governo a legislar para criação de verdadeiros santuários de caça. 4.3.1. Caça e Natureza Duas correntes têm lutado para qualificar a acção de caçar: a utilitária e a desportiva. Os defensores da caça, a seu modo, tem fundamentado as posições doutrinais no pressuposto que a caça como actividade é um acontecimento perene e universal, que tem vindo a praticar-se desde que o homem existe sobre a terra e, portanto, é tão evidente que não necessita de justificação. No entanto, na última década, um movimento ecologista crescente sustentou pela primeira vez a pretensão de questionar a caça. É um movimento que se refugia na defesa da natureza e pretende suprimir a caça com carácter absoluto e geral. A caça está totalmente proibida no cantão suíço de Genebra, os animais tem direito à vida e qualquer actividade que atente contra ela é uma actividade antinatural. Esta obstinação chegou a plasmar um intento, em Itália, para celebrar um referendo que enfrentou duas teses opostas: a da continuidade da actividade ou a da sua proibição absoluta 90 . Se do ponto de vista natural é insustentável, porque a caça é um típico 90 D.José Maria Blanc, La Problemática Jurídica de La Caza, comunicação apresentada nas I Jornadas Nacionales de Turismo Cinegético, Almagro (Ciudad Real), 1983, p. 125. 71 acontecimento zoológico consubstancial com a vida animal, do ponto de vista jurídico choca com todos os precedentes legislativos conhecidos. 4.3.2. Caça e Direito Os ordenamentos jurídicos contém, entre as suas previsões, normas que permitem situar a caça, entre as actividades lícitas dos homens. O direito de caça é um direito do indivíduo, que como tantos outros direitos individuais para existir não necessita ser declarado nos textos legais de maneira expressa. A caça que se pratica, quer como utilidade, quer como desporto, é uma actividade reconhecida e aceite em todos os países e não é lícito questionar o direito ao seu exercício, invocando o sacrossanto direito dos animais à vida. Há, porém que aceitar a caça como actividade que está no repertório dos seres vivos contemplados pela natureza. A fauna e a caça são inseparáveis. O direito de caça como direito pessoal constitui o primeiro problema jurídico, ou seja, se a caça é ou não um jus hominis, isto é, aquele direito imanente ao homem, por mero facto de sê-lo, que nasce e que com ele morre a título individual. Esta concepção do direito a caçar, como direito inalienável da pessoa, é hoje discutido por importantes correntes de opinião. Pretende-se com isto dizer que o direito a caçar não se possui sem mais, que somente o Estado em cada território pode exercê-lo e pode decidir quem deve caçar, quem pode caçar e onde. Segundo esta concepção à teoria do jus hominis se opõe a teoria da concessão administrativa do direito através das licenças do poder público, portanto, não se limita a dar a licença de caça como puro trâmite administrativo, quer dizer, como uma resolução com efeitos meramente declarativos, mas a concessão de licença atribui ex novo ao titular o direito a caçar. Esta corrente tem os seus defensores nas modernas correntes proteccionistas da fauna. Somente aquele que conhece a fauna e que a respeita, porque se propõe caçar com conhecimento das espécies, deve ter direito a caçar 91. Na Constituição da República Portuguesa não há nenhuma referência ao direito de caça como direito exclusivo do Estado, mas faz eco desta preocupação social e assinala entre os princípios da política social e económica, o capítulo da protecção da Natureza, que reconhece o direito a desfrutar de um meio ambiente adequado para a 91 Idem, p.126. 72 pessoa, assim como o dever de conservá-lo. A Constituição ordena ainda aos poderes públicos que zelem pela utilização racional de todos os recursos naturais 92. A lei da caça não veio senão confirmar esse direito como próprio de todo o indivíduo que está em pleno uso dos seus direitos civis e que cumpre certos trâmites administrativos 93 . A natureza jurídica da caça pode ser demasiado ambígua para o estudioso do direito. A palavra caçar em sentido vulgar, já em si mesmo muito imprecisa e rica em matrizes, porque com ela, o mesmo designa a acção de caçar, como os animais que são objecto de caça. Por outro lado, junto a um conceito vulgar da palavra caça existe um conceito técnico e, supostamente, um conceito jurídico. Daqui, se torna inevitável relacionar a acção de caçar com as peças de caça, quer dizer, com a caça, e além disso no lugar da caça o tempo e a forma de caçar. Temos efectivamente, um estatuto jurídico das peças de caça, dos animais que podem ser objecto de caça e um estatuto jurídico dos sujeitos activos do modo de caçar, ou seja, uma norma que regula quem pode exercer a actividade venatória. Mas há também um estatuto jurídico dos lugares de caça, do tempo útil para a prática da caça. Por isso, quando falamos da natureza jurídica da caça, sem mais nexo, expressamos a preocupação genérica de que a caça é composta por determinado cúmulo de ingredientes legais, que da sua análise e de seus concretos perfis dependerá finalmente o plano jurídico e seu definitivo qualificativo. Assim, o direito de caça é fruto da dinâmica interna do ordenamento jurídico ao que pertence ou em que se contempla. A caça está enquadrada no sistema jurídico de cada nação, a partir das concepções sociais, económicas e políticas dominantes. Talvez essa seja a razão pela qual a expressão problemática jurídica da caça é muito significativa, e a multiplicidade de tratamentos legais uma das razões pelas quais a caça está em perigo por todo o mundo, porque nem todos os planeamentos sociais, políticos e económicos, se adaptam a todos os países e, simultaneamente, servem de instrumento para uma política em favor da caça. 92 Na Constituição espanhola de 1978, também não há referência ao direito de caça como exclusivo do Estado, mas apenas se refere no Art.º 45.º como necessidade de uma utilização racional da fauna e o uso cinegético como lícito, quer seja por utilidade, quer seja por desporto. 93 Lei n.º 30/86. 73 4.3.3. Direito de caça e direito de propriedade A nova concepção do direito de caça, defendida na maioria dos países da comunidade europeia, considera o direito de caça fortemente vinculado ao estatuto jurídico do lugar onde a caça é praticável e dos animais que são objecto de caça. A partir destes dois aspectos, a caça seria uma espécie de direito “propter rem” ou “ad rem”. Segundo esta concepção, caça e habitat devem seguir um destino comum e o direito de caça, em abstracto como direito pessoal, perde em certo modo o seu primitivo sentido, para passar a ser uma faculdade dominical 94. Em Espanha, juridicamente a caça atravessou três diferentes fases: a concepção romana ou de liberdade; a concepção dominical ou de vinculação ao direito de propriedade da terra; a concepção estadista que sustenta que o direito de caça pertence ao Estado, porque os animais selvagens são do Estado e somente este pode ceder o direito mediante o outorgamento da licença de caça 95. Lopez Ramon, um especialista na matéria jurídica, defende que o direito anterior à época clássica declara a qualidade de res nullius dos animais selvagens e livres: ao não pertencerem a nada estes animais podiam ser ocupados por qualquer pessoa em virtude do jus hominis. Estamos, assim, em presença de um direito natural que conduz ao princípio da liberdade de caçar. Esta concepção nunca se perdeu no direito espanhol, apesar da sua notória evolução 96 . Apenas a Ordenança de Caça e Pesca de 3 de Maio de 1834, modera este princípio. Marca o ponto de inflexão em direcção a uma concepção dominical do direito de caça. Este conceito que vincula o direito de caça ao direito de propriedade da terra, não se formulou nitidamente. A Lei de 10 de Janeiro de 1879 era um tanto contraditória, porque se inclina resolutamente para outra fórmula, ao exigir a autorização escrita do proprietário para caçar em terrenos vedados. Com isto, adopta a tendência dominical ou proprietarista do direito de caça, que depois consagraria a Lei Espanhola de 1902 e ratificaria resolutamente a vigente Lei da Caça de 1970. Em Portugal, o direito de propriedade só se afirma nitidamente com o Marquês de Pombal, através do Alvará de 1 de Julho de 1776. 94 Maria Blanc, ob. cit, pp. 128-129. Em Itália, por exemplo, a Lei da Caça, de 27 de Janeiro de 1977, assim o proclama no Art.º 1.º, ao declarar a fauna selvagem italiana como bem indisponível do Estado, superando o princípio do res nullius. Ob. cit., p. 130. 96 O Decreto das Cortes Espanholas, de 17 de Junho de 1821, consagra este princípio, ampliando-o, inclusive. Idem, p. 129. 95 74 A terceira concepção tem sustentado que o direito de caça pertence ao Estado porque os animais selvagens são do Estado. Somente o próprio Estado pode ceder o direito mediante o outorgamento da licença de caça. Quanto ao direito de caça do proprietário está condicionado no seu exercício, mas não basta ser proprietário para exercer esse direito: é necessário contar com ele para praticá-lo. A propriedade concede o direito à caça, às peças de caça como fructus fundi, como fruto da terra. Porém, se a caça não tem verdadeira entidade como riqueza, e não pode praticar-se autonomamente num território, no habitat das espécies, o dono da terra tem direito à renda do exercício da caça, mas não à caça sem limitações. Esta concepção quase proprietarista ou económica da caça no direito actual enquadra-se com o sentido moderno desta riqueza. Passa pela superação do conceito de res nullius e mereceria ser objecto de um trabalho intenso 97. 4.3.4. Direito de caça e competências do Estado A titularidade do direito de caça determina o regime de caça em que se vive ou a quem é atribuída a gestão da caça. Em direito cinegético distingue-se entre direito de caçar e direito de caça, sendo o primeiro na tradição jurídica europeia (ocidental) basicamente o que dispõe todo o caçador a partir da obtenção da licença de caça; o segundo, aquele que decorre da detenção da propriedade (ou outros direitos reais ou pessoais) sobre um terreno indissociavelmente ligado ao direito de caça 98. Quer isto dizer que na Europa Ocidental o proprietário da terra, ou quem a explora, tem mediante o cumprimento de certas formalidades bem definidas o direito de reservar para si, ou para quem entender, o exercício da caça no seu território e que, cumpridas essas formalidades e as obrigações que delas decorrem, ninguém pode legalmente opor-se a essa reserva. Em Portugal, o caçador só acede ao direito de caça privado por concessão, não se reconhecendo ao dono da terra, usufrutuário ou rendeiro, a liberdade de concessão automática. 97 Esta concepção tem o seu assento nas seguintes fontes legais: a Constituição Espanhola de 1978, que consagra no Art.º 45.º, parágrafo 2.º, «a utilização racional dos recursos naturais»; a Lei de Caça, de 4 de Abril de 1970, cujo artigo 6.º atribui ao proprietário em exclusivo o uso e desfrute do aproveitamento da caça; o Código Civil espanhol, que estabelece entre os modos de adquirir a propriedade, a ocupação das coisas que não são de ninguém (res nullius), este conceito não pressupõe, na legislação vigente, a subsistência do regime jurídico consagrado na legislação (artigos 449.º,461.º,465.º). Por outro lado, o Código Civil atribui ao proprietário os frutos naturais; entre estes, figuram as produções espontâneas da terra, as crias e demais produtos dos animais. Por último, este direito vem confirmar o Art.º 613.º do Código Civil que identifica propriedade com possessão de determinado animal que vagueia livremente pela terra. 98 Veja-se Louis Gaber, Le Droit de la Chasse et le droit de Chasse, Thèse de Droit, Toulouse, 1948. 75 Tabela 1: Titularidade do direito de caça nalguns países da Europa País Direito de caça França RFA Áustria Proprietário da terra Bélgica Espanha Dinamarca Toda a caça é privada Inglaterra Irlanda Direito de caça ligado ao vínculo fundiário Finlândia Proprietário da terra (com excepção na Noruega onde Noruega as áreas de floresta são geridas pelo Estado) Suécia Checoslováquia Hungria Polónia Portugal Estado, delegado nos serviços florestais Itália Bulgária Jugoslávia Roménia Fonte: La Chasse em Europe, Larousse, 1979 99. As legislações, atribuições e competências de alguns países do espaço comunitário europeu merecem alguma leitura. Genericamente, podemos reconhecer que todos eles, de uma maneira ou outra, sobressaem pelo número de caçadores (França, Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Suíça). A caça depende das competências regionais na Alemanha, Itália e Suíça 100 . No entanto, os länders alemães, as regiões italianas e os cantões suíços ao legislarem sobre caça 101 estão obrigados a respeitar os princípios da lei nacional, que constitui uma lei-quadro. Diferentemente, na Espanha, a caça faz parte das competências que podem ser transferidas às comunidades autónomas, sem que sejam obrigadas a cumprir as prescrições a nível nacional. Actualmente, dez comunidades autónomas 99 Citado por Alexandre Bettencourt e Estêvão Pape, «Como caçamos: nós e os outros», jornal Expresso, 6-121986, p. III. 100 Extraído de «La Chasse», Service des affaires européennes, Bruxelles, mars 2000. Para maior compreensão do panorama da caça nalguns países da Europa, comprovada a falta de estudos e modelos comparativos existentes em Portugal, que nos pudessem esclarecer, socorremos dos textos comunitários, designadamente «La Chasse droit comparée», Coloque de la Société Française pour de droit de L´Environnement, Palis de L´Europe, Strasbourg, les 9 et 10 novembre 1995. 101 Utilizamos aqui a expressão original länders para significar estados federados. 76 adoptaram a sua própria lei de caça, enquanto as demais se regem pela Lei de 4 de Abril de 1970 102. As relações entre direito de caça e direito de propriedade são complexas. Quatro países concedem o direito de caça ao proprietário, com consequências diversas (Alemanha, Inglaterra e País de Gales, Espanha e Países-Baixos). Nestes países, a fruição do direito de caça é sempre subordinado à detenção de uma superfície mínima. A Alemanha fixa em 75 has, mas os länders tem a possibilidade de escolher um limite mais elevado. Na Inglaterra e País de Gales, o exercício do direito de caça é subordinado à posse de um terreno suficientemente grande, apesar de nenhum texto fixar a dimensão. Nos Países-Baixos basta a superfície mínima de 40 has. Em Espanha, a lei permite ao proprietário o exercício do direito de caça no seu domínio, que varia segundo as comunidades autónomas e a modalidade de caça praticada. Assim, a Lei Nacional de 1970 que continua em sete comunidades, fixa em 250 has o valor mínimo para a caça menor e em 500 has para caça grossa. No entanto, as Comunidades Autónomas que dispõem da sua própria lei não têm necessariamente que seguir estes limites. Aragão fixa em 500 has; a Galiza, um só valor de 2 000 has. Os limites não têm o mesmo carácter imperativo que nas outras comunidades, pois a lei nacional e a lei das diferentes comunidades prevêem que vários proprietários de terras contíguas possam agrupar-se para constituir um território de caça. As Comunidades Autónomas têm atribuído a competência exclusiva em matéria de caça, que pode ser limitada, ou seja, competência estatal para ditar a normativa básica em matéria de protecção da fauna silvestre; competência para estabelecer um sistema igualitário indispensável em todo o território espanhol para desfrute dos direitos e cumprimento de deveres nesta matéria. Em princípio, o proprietário tem a possibilidade de se opor a que outro cace nas suas terras. Neste caso, pode optar por as transformar em reserva ou, simplesmente interditar a caça. Contudo, em Espanha, o proprietário para proibir a actividade cinegética nas suas terras deve vedá-las, para que não se tornem banais. Além disso, em certas comunidades autónomas, o reconhecimento administrativo das zonas de caça permite que os enclaves sejam incluídos nestas zonas sem acordo do proprietário. 102 Em cujos múltiplos objectivos se destacam: garantir a protecção da fauna espanhola; assegurar a sua conservação e fomento; regulamentar racionalmente o seu aproveitamento de tal forma que exista, em todo o momento, uma absoluta compatibilidade entre as riquezas cinegética, agrícola, florestal e pecuária do país. Idem, ibidem. 77 Na Alemanha, os proprietários dos terrenos com uma superfície mínima de 75 has estipulada pela lei de caça transferem o exercício do direito e de administração da caça para os membros da associação comunal, passando a ser automaticamente membros de pleno direito. Contudo, as leis de caça de quase todos os länders prevêem um procedimento administrativo que permite aos proprietários reconhecer a interdição da caça nas suas terras. Em Portugal e Itália, o direito de caça pertence ao Estado, que transfere para os particulares o seu exercício com consequências igualmente diversas para os proprietários segundo as modalidades variáveis, bem como na Suíça, ressalvado o cantão de Genebra, que exerce o direito de caça e confia aos guardas da natureza a protecção do equilíbrio das espécies animais. Na Suíça, alguns cantões optaram pelo sistema de arrendamento, ou seja, alugam o direito de caça, enquanto que outros permitem o exercício da caça a todos os particulares que satisfaçam os critérios fixados na lei. O mesmo se passa em Itália, onde o Estado acorda o direito de caça com todos os particulares interessados e que satisfaçam os critérios fixados na lei da caça. Em Portugal, salvo algumas excepções (aglomerados, jardins, murados, etc., e ao abrigo do direito à não caça) a actividade venatória pode ser exercida em todo o território, que se subdivide em terrenos de caça explicitamente reconhecidos como tais, após um procedimento administrativo ad hoc, em terrenos de caça comuns. Existem várias categorias de terrenos de caça reconhecidos. Sobre alguns, o Estado explora o direito de caça e, sobre outros, concede-o a pessoas de direito privado 103. A detenção do direito de caça pelo Estado não impede necessariamente os proprietários de se oporem a que outros cacem nas suas terras. Em compensação, a nova lei portuguesa reconhece aos proprietários o direito à não caça. Do mesmo modo, a lei italiana prevê um procedimento permitindo aos proprietários reclamar a exclusão das suas terras abrangidas, sem o seu consentimento, em zonas de caça. Quanto aos dias de caça, a maior parte dos países optou por um calendário venatório semanal, designando dias obrigatórios de caça ou, noutros casos, deixando ao critério das organizações de caçadores. Excepto a Alemanha, a maioria dos Estados escolheu um ou vários dias semanais de não caça. 103 Idem, ibidem. Veja-se também Lei n.º 173/99. 78 Em Inglaterra e no País de Gales, o Game Act, que rege a caça à lebre, faisão, perdiz, tetraz e outras espécies, interdita o seu exercício ao domingo (também na Holanda). Em Itália, a lei nacional interdita o exercício da caça à terça-feira e sexta-feira, limitando, neste caso, a três dias o número semanal de dias de caça, em geral livremente escolhidos pelo caçador. Em Portugal, a legislação em vigor limita o exercício da caça à quinta-feira, ao domingo e dias de feriados nacionais. Contudo, nas zonas de caça do regime cinegético especial, nomeadamente nas ZCT, pode-se caçar todos os dias à caça indígena, excepto às migradoras, cuja caça se restringe a três dias da semana, livremente escolhidos pelo gestor da zona de caça. Em Espanha e na Suíça, a lei nacional não comporta nenhuma restrição relativa ao exercício da caça a certos dias da semana, mas os regulamentos locais podem fazêlo. Assim, a comunidade de Madrid reserva à quinta-feira, ao sábado e ao domingo o exercício da caça menor; o cantão de Neuchâtel interdita toda a caça ao domingo, terçafeira e sexta-feira. Por último, em todos os países europeus, de uma maneira ou de outra e com distintos níveis de dificuldade, o exame é exigido aos candidatos que pretendam a emissão da carta de caçador ou a licença de caça 104 . Na sua quase totalidade, os países exigem provas de aptidão para obter tais documentos ou, mesmo, titulares da carta de caçador que forem condenados em juízo por crimes de caça. Praticamente todos eles coincidem no conteúdo do exame, legislação, fauna cinegética, manuseamento de armas e na idade a partir da qual pode realizar-se o exame. Algumas disposições relativas à licença de caçar (o conjunto das condições necessárias para uma pessoa poder caçar) permitem reforçar a segurança; a carta de caçador pressupõe não apenas que o interessado passe no exame, mas igualmente que reúna outras condições (saúde, segurança). As disposições relativas à autorização de caçar e que permitem reforçar a segurança são muito variáveis de um país ao outro. Assim, a Alemanha condiciona a locação de um direito de caça à detenção da carta de caçador há pelo menos três anos. Na Inglaterra e no País de Gales, a emissão da licença de caça não depende da passagem de um exame, porque tal documento se obtém nas estações de correios; em contrapartida, os caçadores devem obrigatoriamente possuir uma autorização de caça concedida pela polícia, por tempo 104 Matéria que desenvolvermos nos pontos seguintes. 79 limitado e de maneira restritiva; o interessado deve particularmente ser patrocinado por um terceiro (parlamentar, médico, jurista...) que o conheça pessoalmente. Em Espanha e Portugal, além da carta de caçador, os caçadores devem igualmente solicitar uma licença de uso e porte de arma, cuja validade é limitada a três ou cinco anos, segundo a natureza da caça. Além disso, a renovação desta licença supõe que o interessado ateste a prova das suas capacidades psicofísicas e apresente um registo criminal. Em França, desde a lei de 27 de Dezembro de 1974, a emissão da carta de caçador ou licença depende do interessado superar as provas de aptidão. A licença tem uma validade permanente, mas para poder caçar o caçador paga um imposto anual. O exame só foi exigível aos candidatos que, em 1976, não tivessem licença, bem como a todos os interessados que a pretendessem obter no ano seguinte. 4.4. Modelos de caça 4.4.1. Alemanha Na Alemanha, a caça faz parte das matérias enumeradas no Art.º 75 da Lei Federal de 29 de Novembro de 1952, várias vezes modificada depois da sua entrada em vigor. Os Estados Federados possuem leis sobre a caça complementares à lei-quadro federal, e plena competência para a aplicação do direito de caça no seu conjunto. Em cada Estado, existem administrações habilitadas para a floresta e agricultura. O texto de lei considera o dever de conservação, como parte inalienável do direito de caça. 4.4.1.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade O direito de caça pertence ao proprietário da terra, mas quando a terra não tem titular de direitos, então o direito de caça pertence aos länders. Não obstante, o direito de propriedade não afecta de maneira automática o direito de caçar, quer dizer o exercício do direito de caça, porque a lei federal condiciona o seu desempenho à detenção de um terreno com uma superfície mínima de 75 has, cujo proprietário, se o entender, pode ceder a terceiros 105. 105 A lei federal deixa ao länder o encargo de definir os sítios onde a caça é interdita. Assim, as leis de todos os länders precisam que a caça não pode ser exercida em certos lugares onde ela é incompatível com a vida em sociedade (jardins...). A maior parte das leis prevêem igualmente um procedimento administrativo permitindo aos proprietários exigir que os seus bens sejam reconhecidos como zona de não caça. 80 Se as terras não forem excluídas do território cinegético, os proprietários de terrenos com superfície inferior a 75 has são automaticamente membros da associação comunal dos titulares de direito de caça, para a qual transferem o direito e administração da caça 106. 4.4.1.2. Diferentes categorias de terrenos de caça Como direito de caça ligado à superfície de um terreno, a lei federal, do mesmo modo que as leis dos länders, distingue duas categorias de terrenos de caça privados: os terrenos de caça de uma superfície igual ao mínimo exigido, onde caçam os proprietários e seus convidados, a menos que o direito de caça seja arrendado; os terrenos de caça colectivos, quer dizer os terrenos das associações comunais, constituídas por parcelas de uma mesma comuna (eventualmente de várias comunas) que não pertencem a um terreno de caça privado, na condição que a adição de todas estas parcelas não represente uma superfície superior à estabelecida pela lei 107 . Regra geral, o direito de caça sobre certos terrenos está arrendado. 4.4.1.3. Períodos de caça Segundo a legislação federal, pertence ao ministro da tutela publicar, com o acordo do Bundesrat, um decreto que determina o período de caça para cada espécie venatória, cuja caça pode ser autorizada ou proibida 108 ; a lei federal permite diminuir, até mesmo suprimir, os períodos de caça, designadamente encerramento da caça em certos territórios, e por razões objectivas (luta contra as epidemias, desequilíbrio biológico...). Cada länder fixa o seu próprio calendário, que prevê períodos de caça diferentes segundo as espécies e o sexo do animal. Em quase todos os länders, se exceptuarmos as espécies susceptíveis de serem caçadas todo o ano (essencialmente coelhos-bravos, raposas, javalis pequenos, etc.), a 106 A Lei do Länder de Schleswig-Holstein, por exemplo, permite aos proprietários interditar da caça sobre as suas terras, na medida em que estas estejam fechadas de modo a impedir as entradas e saídas de caça grossa, assim como o acesso de pessoas. 107 A legislação federal fixa esta superfície em 150 has. Além disso, prevê a possibilidade de dividir um terreno colectivo em várias terrenos de caça distintos, na medida em que cada um deles tenha uma superfície de pelo menos 250 has. A lei federal permite ainda aos länders fixar superfícies mais elevadas. 108 O Decreto comporta os períodos de caça seguintes: 1 de Setembro a 15 de Janeiro para o pato; 1 de Outubro a 15 de Janeiro para os outros patos, lebre e faisão; 1 de Setembro a 15 de Dezembro para a perdiz-vermelha; 16 de Junho a 31 de Janeiro para o javali; para os diferentes cervídeos, a data de abertura varia consoante as länders. 81 abertura da caça é geralmente fixada em 1 de Outubro, até mesmo no dia 1 de Setembro para a caça maior. Para a lebre e faisão, o início da caça é fixado a 1 ou a 15 de Outubro. A data de encerramento excede raramente o dia 31 de Janeiro. Quanto aos dias da semana onde a caça é interdita, nem a lei federal, nem a lei do Länder de Schleswing-Holstein prevêem a interdição deste tipo. 4.4.1.4. Horários de caça A legislação federal interdita a caça nocturna, na modalidade de caça maior (excepto para o javali), bem como para as aves (salvo as gaivotas, galinholas, e tetrazes). A noite é definida como o período que começa uma hora e meia depois do pôr-do-sol e termina uma hora e meia antes do nascer do Sol. A legislação dos länders não prevê a capacidade de alterar as regras de interdição de caça de noite; em alternativa, podem, por via regulamentar, prever os planos de caça para certas espécies. Portanto, tais planos podem ser realizados durante a noite. Assim, a lei do Länder de Schleswing-Holstein prevê a possibilidade de abater alguns cervídeos durante a noite, entre 1 de Novembro e 31 de Janeiro, na medida em que seja necessário para realizar o plano de caça. 4.4.1.5. Licenças de caça O exercício do direito de caça está subordinado à definição de uma autorização, que é válida sobre o conjunto do território federal. A concessão da licença de caçador supõe não apenas que o requerente obtenha o diploma de caçador, mas igualmente que reúna outras condições. Segundo a legislação federal, o exame para obter a primeira licença de caça, rege-se basicamente pela lei de caça de 1 de Abril de 1977. A carta de caçador é concedida às pessoas com a idade igual ou superior a dezasseis anos, aprovados no exame, o qual contém uma parte escrita para verificar o nível dos conhecimentos do candidato nos vários domínios (zoobiologia, protecção da fauna, direito dos armas, ensino dos cães, regras de higiene relativas à caça abatida) e uma parte oral e prática. A lei determina que a reprovação na prova de tiro não pode ser compensada pela aprovação nas outras provas. A lei federal permite ao länder exigir aos candidatos à obtenção da carta de caçador que frequentem uma formação prática e teórica, o que a maior parte tem feito. 82 Regra geral, esta formação dura entre seis a doze meses e está assegurada pelos estabelecimentos privados homologados pela Administração. Para obter a licença de caçador, é necessário não apenas possuir a carta de caçador mas também obter a prova da sua aptidão física e apresentar garantias de fiabilidade suficientes. Certos factos, como a utilização imprudente de armas, atestam a falta de fiabilidade do candidato. Além disso, os doentes mentais, as pessoas dependentes de álcool ou da droga, os condenados a uma pena (pelo menos sessenta dias de multa) não estão, à partida, autorizados a adquirir as licenças. A partir dos dezasseis anos, os jovens podem obter uma licença específica, que lhes permite caçar somente se forem acompanhados por um adulto experimentado. O titular desta autorização obtém automaticamente o direito de possuir e de usar uma arma de caça; não tem, por isso, necessidade de uma autorização específica, a menos que pretenda adquirir uma arma de cano superior a 60 cm; ou uma arma automática; ou que não possua já uma arma de caça. A concessão da licença de caça está subordinada à detenção de um seguro de responsabilidade civil. A renovação da carta de caçador, por sua vez, está condicionada ao facto do requerente continuar a satisfazer as condições exigidas para a primeira concessão, mediante a apresentação da antiga autorização e de uma apólice de seguro na qual a duração da validade corresponde à concessão requerida, sem que seja necessário repetir o exame. A licença de caçador pode ser retirada logo que o seu detentor cometa uma das infracções penais definidas pela lei da caça: caçar durante o período de incubação, de parto, ou de interdição de certas espécies; ou até as infracções previstas no Código Penal (nomeadamente tiros e ferimentos, assim como caça no tempo de defeso), as quais o tribunal preveja que a detenção da licença de caçar constitui risco de favorecer a reincidência. Em simultâneo com a suspensão, o tribunal determina que durante um período compreendido entre um a cinco anos, o interessado não poderá solicitar a renovação da sua licença de caçador 109 . A lei federal prevê igualmente que o tribunal possa interditar o exercício da caça durante um período compreendido entre um mês e seis meses, logo que uma infracção penal ligada ao exercício da caça tenha sido cometida ou que o 109 No cantão de Neuchâtel, a renovação da autorização anual de caçar supõe que o interessado tenha participado, pelo menos, num treino de tiro organizado pela federação dos caçadores locais. Além disso, logo que a licença de caça seja suspensa durante um período de cinco anos, o interessado é obrigado a repetir o exame de caça para poder de novo exercer o acto venatório. 83 caçador tenha gravemente ignorado os seus deveres. A licença de caçador deve, então, ser remetida às autoridades durante todo o período de interdição 110. 4.4.2. Inglaterra e País de Gales Em Inglaterra e no País de Gales, as regras relativas à caça estão dispersas por vários textos. As principais disposições aplicáveis encontram-se no Game Act de 1831, que fixa particularmente os períodos de caça a certas espécies; o Hares Act de 1848, que autoriza os proprietários e os locatários a caçarem lebres nas suas terras sem ter necessidade de uma licença de caçador; o Game Licences Act de 1860, que determina as condições de concessão da licença de caçador; o Ground Game Act de 1880, que autoriza os locatários ou os ocupantes de terras, mesmo que se não sejam titulares nem do direito de caça, nem da licença de caçador, a caçar lebres e coelhos-bravos nas terras alugadas ou postas à sua disposição, a fim de proteger as colheitas; os Deer Acts de 1963,1980 e 1991, que determinam as condições da caça aos cervídeos; o Wild life and Countryside Act de 1981, modificada em 1985 e 1991, que interdita a caça de certas espécies animais, limita a de outras, e prevê a criação de reservas naturais e de parques nacionais; o Firearms Act de 1968, modificado em 1988 e 1997, regulamenta a aquisição e a detenção de armas de fogo, nomeadamente as armas de caça 111. 4.4.2.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade O direito de caça pertence ao proprietário, quer se trate de uma pessoa física, de uma pessoa moral ou de uma autoridade pública. Pode utilizá-lo pessoalmente, vendêlo, alugá-lo ou cedê-lo a um terceiro. O tomador de um arrendamento de terras adquire automaticamente o direito de caça sobre as terras que lhe estão alugadas, a menos que o proprietário reserve este direito a uma outra pessoa. Todavia, um locatário que não beneficia do direito de caça pode, assim mesmo, ao abrigo do Ground Act de 1880, abater lebres e coelhos-bravos que se acham nas suas terras, com o fim de proteger as colheitas. O proprietário (ou o locatário) pode, deste modo, criar nas terras que desfruta (ou que ocupa), uma reserva na qual a caça é interdita. O direito de propriedade não legitima o exercício do direito de caça, pois está subordinado à dimensão do terreno e às prescrições gerais relativas à protecção. Com efeito, a caça pode ser exercida em qualquer terreno, mas sob a condição que ele seja 110 111 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 84 suficientemente grande para a prática dessa actividade, sem nenhum critério administrativo estabelecido. Por outro motivo, o Wildlife and Countryside Act prevê a criação de duas categorias de reservas naturais: zonas de protecção especial, para a protecção de certas espécies de aves; sítios de interesse científico particular, que podem ser criadas, a requerimento do Conselho de Conservação da Natureza, na mira de proteger nomeadamente certas espécies animais. Uma convenção é então assinalada entre o conselho e o proprietário ou o locatário para compensar os direitos retirados a estes últimos (por exemplo, o direito de caça). 4.4.2.2. Diferentes categorias de terrenos de caça A legislação não estabelece nenhuma distinção entre categorias de terrenos de caça. Assim, a caça pode ser praticada em terrenos privados, sobre a responsabilidade do proprietário, do ocupante ou do titular do direito de caça; nas terras que pertencem ao Estado, cuja exploração é concedida às associações de caça aquática. 4.4.2.3. Períodos de caça: o calendário de caça Os períodos de caça às diferentes espécies são fixados por vários textos, essencialmente pelo Game Act, Deer Acts, Wildlife e Countryside Act. As datas variam segundo as espécies: a abertura para a caça aquática e para as aves é fixada entre 12 de Agosto e 1 de Outubro, e a data de encerramento entre 10 de Dezembro e 20 de Fevereiro; além disso, as datas podem ser modificadas pelo ministro competente para assegurar uma protecção especial a certas espécies 112 . Todavia, os cervos que se encontram nas terras cultivadas, pastagens ou os bosques vedados, podem ser caçados, mesmo depois do encerramento da caça, por ordem dos ocupantes das terras, se provarem que estes animais causaram danos nas suas colheitas ou nos seus bens. Não existe período legal de encerramento da caça para lebres e coelhos-bravos, mas certas associações de caçadores recomendam evitar a sua caça durante o período de reprodução. Os locatários de terras têm, porém, o direito de efectuar esta caça logo que as lebres e os coelhos-bravos representam uma ameaça para as suas colheitas. Os 112 Os períodos de caça aos cervídeos são os seguintes: 1 de Agosto a 30 de Abril para os cervos e gamos machos; 1 de Abril a 30 de Outubro para os cabritos-monteses machos; 1 de Novembro e o último dia de Fevereiro para as fêmeas. 85 animais considerados nocivos (nomeadamente a raposa) podem ser caçados em toda a 113 época . A caça de aquáticas e aves pernaltas pode, no entanto, por determinação ministerial ser suspensa no máximo de catorze dias, em caso de gelo prolongado ou nevão. 4.4.2.4. Interdição da caça O Game Act de 1831 interdita a caça ao domingo às lebres, faisões, perdizesvermelhas, tetrazes, assim como a caça de planície ou de bosque; a caça às aquáticas poderá ser interdita ao domingo, conforme o Art.º 2 do Wildlife and Countryside Act de 1981, mas, até agora, nenhuma medida foi tomada neste sentido. Nalguns condados, as posturas interditam a caça ao domingo. A caça é autorizada de dia, quer dizer durante o período que se inicia uma hora antes do nascer do Sol e termina uma hora depois do pôr-do-sol. Exceptua-se, a caça de noite às lebres e coelhos-bravos consentida aos proprietários ou ocupantes das terras, para protecção das colheitas. 4.4.2.5. Concessão da carta de caçador O exercício da caça depende da aquisição de uma autorização válida no território da Grã-Bretanha (Inglaterra, País de Gales e Escócia). Por vezes, os proprietários ou os locatários não tem necessidade de possuir uma autorização desde que cacem coelhosbravos ou lebres nas suas terras. O mesmo se aplica aos proprietários de terras vedadas nas quais se encontram os cervos. A concessão da carta de caçador não está sujeita à realização de um exame. Todavia, as sociedades e associações de caça podem emitir, a título facultativo, testes de competência aos candidatos. As demais condições obrigam os caçadores a possuírem uma autorização de porte de arma de caça para detenção de arma de caça. Tal documento, válido por cinco anos, pode ser concedido pelo chefe de polícia se o interessado tiver mais de quinze anos e apresentar um documento assinado por um terceiro (parlamentário, juiz de paz, médico, jurista...), residente na Grã-Bretanha, que o conheça pessoalmente, há dois anos e que, ao mesmo tempo, declare o desejo de deter 113 O Game Act de 1831, que regulamenta a caça às lebres, faisões, perdizes-vermelhas, tetrazes, caça de planície ou de bosque, interdita o seu exercício no dia de Natal, exemplo que, em 1996, o Primeiro-ministro António Guterres, implementou em Portugal através do D.L. n.º 136/96. 86 uma arma. Porém, o funcionário da polícia tem o ónus de aceitar ou não que o candidato tenha uma boa razão para adquirir uma arma de caça, bastando, por vezes, o simples desígnio de pretender usá-la na caça, excepto se estiver impossibilitado de a possuir (quer dizer, se for condenado a pena de prisão, pelo menos de três anos, seja menor, alcoólico ou doente mental) 114. A detenção de armas e de munições pelo caçador no seu domicílio constitui, por outro lado, matéria sujeita a regulamentação mais restrita. À face da lei, as armas de caça e as munições devem ser colocados num móvel fechado à chave, fixado ao muro e se possível ao solo, num local afastado dos visitantes. 4.4.3. Espanha A Lei de Caça de 4 de Abril de 1970 e o Decreto n.º 506/1971, de 26 de Março, serviram de base à regulamentação da actividade cinegética em Espanha. No entanto, o artigo 148-1-11 da Constituição possibilita que as comunidades autónomas possam assumir as competências em matéria de caça. Aproveitando essa faculdade, desde o fim dos anos 90, dez comunidades autónomas adoptaram a sua própria lei de caça 115. As restantes sete comunidades autónomas não produziram regulamentação própria (Cantábria, Catalunha, País Basco, Madrid, Valência, Baleares e Andaluzia, que entretanto elaborou um Projecto-Lei) e continuam a aplicar a Lei de 4 de Abril de 1970. Além disso, as comunidades autónomas que adoptaram a sua própria lei da caça inspiraram-se nestes dois textos. 4.4.3.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade O direito de caça faz parte do direito de propriedade, sem que o direito de propriedade justifique de modo automático o exercício do direito de caça, pois a lei condiciona o exercício da caça à detenção de uma superfície mínima, e que varia segundo as comunidades autónomas. A lei nacional, desde que o terreno seja detido por um único proprietário, fixa essa superfície em 250 has para a caça menor e 500 has para a caça grossa. A lei de Castilla-La Mancha conservou os mesmos limites, mas Aragão exige respectivamente 114 Idem, ibidem. Para esta matéria, veja-se Alonso Sánchez Gascón, Leyes de Caza en España, Madrid, Exlibris Ediciones, S.L., 1998. 115 87 500 e 1000 has, enquanto a Galiza fixou um só valor de 2 000 has qualquer que seja a modalidade de caça praticada. Todavia, a lei nacional e as leis das diferentes comunidades prevêem a possibilidade dos proprietários, e nomeadamente aqueles que detém os terrenos de uma superfície inferior ao limiar, exercerem individualmente o direito de caçar e o direito de se associar para, neste caso, poderem caçar nas suas terras. Os proprietários que não desejem exercer esse direito podem ceder a um terceiro, segundo as modalidades que escolherem e, igualmente recusar o acesso das suas terras aos caçadores, desde que estejam completamente cercadas ou que mostrem claramente a interdição de caçar com a ajuda de placas proibitivas. O proprietário, neste caso, fica responsável pelos prejuízos provocados pela caça, na medida em que pertença a uma espécie susceptível de ser caçada 116. 4.4.3.2. Diferentes categorias de terrenos de caça Os terrenos de caça repartem-se em duas categorias: os terrenos cinegéticos de aproveitamento comum que permitem o acesso a todo o caçador dispondo de uma licença; os terrenos submetidos a regime cinegético especial, acessíveis exclusivamente a determinados caçadores. Os terrenos cinegéticos de aproveitamento comum podem ser públicos ou privados. Este regime aplica-se por defeito desde que o proprietário de um terreno não interdite o seu exercício da caça e que, por outro lado, a administração competente explicitamente não o reconheça como terreno de caça dependente de um regime especial. A Federação Espanhola de Caça, por sua vez, considera os terrenos livres na sua generalidade mal explorados. Por esse motivo, em 1998, apoiou a decisão tomada pela comunidade autónoma de Castilla y León de interditar o exercício da caça nesses locais. Os terrenos de caça dependentes de um regime especial, a requerimento do seu proprietário são agregados pela administração competente da comunidade autónoma e os limites devem ser, então, claramente indicados. A caça obedece a uma gestão programada. Nesta categoria, distinguimos os terrenos privados e os terrenos colocados 116 Veja-se Alonso Sánchez Gascón, « Ley 2/93, de 15 de julio, de caza de Castilla-La Mancha», ob. cit., pp. 413-414. 88 sobre a supervisão da administração. Os terrenos de caça privados devem, por sua vez, ter uma superfície mínima, regra geral, que varia em função da caça aí praticada. Como veremos, as comunidades autónomas não tem necessidade de fixar os mesmos limites. Além disso, a lei nacional prevê as superfícies mínimas duplas, caso o terreno esteja na posse de vários proprietários, as terras sejam contíguas, e se associem para organizar a caça. Sobre estes terrenos privados, a caça é exercida por pessoas autorizadas pelos proprietários. Em geral, estas últimas alugam os seus direitos para obter receitas. Nos terrenos colocados sobre supervisão da administração, cada comunidade autónoma escolheu a sua solução; outras criaram várias categorias destes terrenos, seguindo assim o modelo da lei de 1970. Qualquer que seja a solução escolhida, em cada comunidade autónoma, existe uma categoria de zonas de caça denominada social, constituída em terras sobre as quais a comunidade dispõe do direito de caça (quer na qualidade de proprietário que alugou o direito de caça, ou este direito foi posto à sua disposição pelo proprietário...), cujo objectivo consiste em facilitar a prática da caça a todos os habitantes da região, independentemente do motivo financeiro. O exercício da caça nestes terrenos está reservado aos Espanhóis, por prioridade aos habitantes da província respeitante, que devem representar metade de efectivos dos caçadores da zona de caça. Em certas comunidades autónomas, as colectividades locais podem, também, individualmente ou não, promover a criação de zonas de caça. Nestas condições, o direito de aí caçar é arrendado por contrato ou por adjudicação, ou cedido de maneira a favorecer o acesso dos caçadores locais 117. Os terrenos privados e os terrenos sociais representam à volta de 80% da totalidade dos terrenos de caça em Espanha. A legislação de 1970 prevê uma segunda categoria de terrenos colocados sobre a supervisão da administração: terrenos de caça locais, constituídos por iniciativa das colectividades locais ou de associações de explorantes agrícolas em terrenos públicos ou privados colocados à disposição pelos seus proprietários. As superfícies desses terrenos devem ser superiores a 500 ou a 117 A legislação de Castilla-La Mancha prevê duas categorias de terrenos de caça sociais, uns criados e geridos pela comunidade autónoma, os outros pelas colectividades locais. Para os segundos, o regulamento local requer uma superfície mínima de pelo menos 1 000 has. O direito de caça sobre os terrenos sociais é reservado aos caçadores sorteados, 80% de entre os quais devem ser da região. O objectivo social destes terrenos justifica a inclusão forçada das propriedades privadas encravadas e daquelas que confinam um terreno de caça social sobre ¾ do seu perímetro. Alonso Sánchez Gascón, ob. cit. , pp. 391-439. 89 1 000 has, consoante respeite a caça menor ou maior. O gestor de um tal terreno de caça cede o direito de caça por contrato ou adjudicação pelo menos seis anos para a caça menor e nove anos para a caça maior. Também é possível a inclusão forçada dos proprietários encravados ou contíguos sobre os ¾ do seu perímetro 118. 4.4.3.3. Períodos de caça Todos os anos, cada uma das comunidades autónomas fixa o seu calendário de caça para cada uma das suas províncias e para cada espécie venatória. Regra geral, a caça menor abre em meados de Outubro e prolonga-se até ao fim de Janeiro, por vezes, meados de Fevereiro. Em compensação, a caça maior abre geralmente em meados de Setembro ou Outubro e delonga-se até ao fim do mês de Fevereiro. Certas circunstâncias podem opor-se à aplicação deste calendário. As diferentes leis das comunidades autónomas têm geralmente adoptado a mesma formulação da lei de 1970. Interditam, por conseguinte, a caça logo que as espécies cinegéticas ficam privadas das suas faculdades normais de defesa (incêndio, seca, inundação...) e enquanto a neve recobre o solo. Além disso, a Lei 4/1989, de 27 de Março (Conservação dos Espaços Naturais e da Flora e Fauna Silvestre) interdita a caça durante as épocas de reprodução e de criação, bem como na travessia de regresso das espécies migratórias. Neste sentido, várias comunidades autónomas inseriram disposições na sua lei de caça. Nem a Lei de Caça de 1970, nem o Decreto regulamentar de 1971, contêm indicações sobre o calendário da caça, mas autorizam que o Ministério da Agricultura publique, em cada ano, a permissão para as comunidades autónomas disporem sobre as datas do seu início e encerramento 119. Apesar de a lei nacional e as leis regionais não preverem interdições nos dias da semana, contudo, várias comunidades autónomas limitam o exercício da caça menor. Assim, a Galiza, autoriza a caça menor apenas às quintas-feiras, domingos e feriados. Também nas comunidades autónomas de Madrid e de Castilla-La Mancha é autorizada, além dos dias feriados, as quintas-feiras, sábados e domingos. 118 A Lei de Caça de Castilla-La Mancha e seu regulamento não prevêem a criação de terrenos de caça locais. Geralmente, este tipo de terrenos não existe nas comunidades autónomas que criaram a sua própria lei de caça. 119 A lei e o regulamento de caça de Castilla-La Mancha interditam o início da caça às aquáticas antes de 15 de Outubro e a caça às espécies migratórias entre 1 de Fevereiro e 31 de Maio. 90 4.4.3.4. Horários de caça A caça é autorizada durante o período que começa uma hora antes do nascer do Sol e termina uma hora após o seu ocaso. No entanto, o regulamento de 1971 prevê derrogações a esta interdição, em proveito da caça ao tetraz, bem como certas modalidades de caça, na medida em que o plano de caça o preveja 120. 4.4.3.5. Cartas de caçador O exercício da caça está subordinado à detenção de uma carta de caçador. A concessão da carta de caçador, pela primeira vez, carece de um exame de aptidão, que se compõe de provas teóricas e práticas, nas quais o candidato deve demonstrar conhecimento da legislação relativa à caça, reconhecer os animais e usar as armas de caça 121 . A aprovação no exame permite obter uma licença de caça, em princípio válida sobre o território da comunidade autónoma que a concedeu cujo custo varia em função da natureza da modalidade praticada 122. Nos termos da lei nacional sobre a caça, das leis das diferentes comunidades autónomas e do decreto de 1993 relativo às armas, a licença específica de armas de caça é obrigatória para todas as armas de fogo. Esta autorização supõe que o interessado demonstre a prova das suas capacidades psicofísicas através da obtenção de um registo criminal. Além disso, todo o caçador deve constituir um seguro que cubra a responsabilidade civil, de forma a indemnizar os prejuízos causados a terceiros, no limite de 15 milhões de pesetas por vítima. Quanto ao exercício da actividade venatória, os menores de dezoito anos podem caçar com uma arma desde que acompanhados por um caçador maior de idade 120 123 .A Castilla-La Mancha interdita a caça nocturna e perfilha a mesma definição da noite que a lei de 1970. O regulamento local sobre a caça autoriza a caça nocturna ao javali, quando praticada à espera mediante uma autorização administrativa, a menos que o plano de caça não preveja explicitamente uma tal disposição. Veja-se Art.º 27.º da legislação citada, in Alonso Sánchez Gascón, ob. cit. 121 Na legislação de Castilla-La Mancha a prova teórica comporta quatro partes: legislação relativa à caça; conhecimento da caça; modalidades de caça; ética de caça e normas de segurança das caçadas. A prova prática incidirá sobre os conhecimentos das espécies objecto de caça e o manuseamento de armas de caça. Os certificados de aptidão das outras comunidades são reconhecidos se incidem sobre os mesmos tipos de provas. Idem, art.º 32, pp. 458-459. 122 Em Castilla-La Mancha, a licença para a época de 1999-2000 custava 2 235 pesetas para a caça menor, e o dobro para a caça maior, ou para participar nas batidas à perdiz-vermelha. 123 No caso de Castilla-La Mancha (Art.º 31.º do seu regulamento de caça), desde que a distância que os separe seja aquela que, em todo o momento, permita ao maior de idade vigiar e controlar efectivamente a actividade cinegética do menor, em nenhum caso esta distância será superior a 120 metros. 91 renovação da licença efectua-se a requerimento, em princípio todos os anos, sem necessidade de repetir o exame. Trata-se de uma simples formalidade. Contudo, a renovação é recusada às pessoas condenadas por infracção à lei da caça e que não tenham executado a sua pena. A renovação da licença de uso e porte de arma, que supõe a confirmação das capacidades psicofísicas do interessado, ocorre ao fim de três ou cinco anos conforme a natureza da arma utilizada 124. Na comunidade autónoma de Castilla-La Mancha, os menores, apesar de poderem obter a licença de caça a partir da idade de catorze anos, contudo se pretendem caçar com uma arma, devem ser acompanhados de uma pessoa maior. 4.4.4. Itália Em Itália, a Lei-quadro n.º 157, de Fevereiro de 1992 (Protecção da Fauna Selvagem e da Caça), permite a aplicação de leis regionais. Com efeito, o artigo 117.º da Constituição prevê que em certas matérias, entre as quais a caça, “a região adopte as normas legais que não podem estar em contradição com o interesse nacional ou com outras regiões”. Segundo a lei, a fauna selvagem é “ património indisponível do Estado, salvaguardada no interesse da comunidade nacional ou internacional “. Por conseguinte, o exercício da caça é autorizado “ na condição de não causar obstáculo à preservação da fauna selvagem e não provocar danos reais aos produtores agrícolas”. É, por isto, que a totalidade dos espaços naturais deve constituir o fim de uma planificação relativa à fauna permitindo uma gestão programada da caça 125. 4.4.4.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade A separação entre o direito de caça e o direito de propriedade data da época fascista. O Estado detém o direito de caça, e concede o direito de caçar às pessoas que o requeiram e que satisfaçam os critérios fixados pela lei da caça. Em princípio, os proprietários não podem opor-se a que alguém cace nas suas terras. Com efeito, o Art.º 842.º do Código Civil prevê que o “ proprietário de um terreno não possa impedir que alguém aí entre para caçar, excepto se o terreno estiver cercado segundo as normas 124 A lei nacional de caça sanciona as infracções penais ou administrativas, com uma multa ou uma pena de prisão, bem como a retirada provisória da licença ou a impossibilidade de a renovar durante um período que varia de dois meses a cinco anos, segundo a gravidade da infracção cometida. 125 La Chasse, ……………. 92 previstas pela lei da caça”, ou que não tenha culturas susceptíveis de suportar os estragos 126. Todavia, como a lei de 1992 estabelece que o exercício do direito de caça é limitado a certas zonas, um proprietário (ou um locatário) pode, nos trinta dias seguintes à publicação de um plano regional que determina estas zonas, solicitar à administração competente a desanexação do seu terreno 127 . Se obtém reparação, o interessado deve assinalar claramente a interdição, que se aplica a todos, incluído ele próprio. Além disso, a lei prevê que a região compense o proprietário (ou ao locatário) das terras incluídas numa zona de caça. 4.4.4.2. Diferentes categorias de terrenos de caça A lei de 1992 obriga as regiões a estabelecer diferentes planos geográficos de caça. A totalidade dos espaços naturais deve, perante a lei, ser repartida em zonas de protecção da fauna selvagem (que representam 20% a 30% da superfície considerada e onde a caça esteja interdita); explorações privadas de caça, instituídas sobre procura dos interessados (quer dizer, não necessariamente os proprietários), no máximo de 15% da superfície, e onde a caça esteja reservada; territórios de caça sobre a área excedente, no propósito de facilitar a gestão programada da caça. Estes territórios são, na medida do possível, delimitados a partir de critérios naturais, quer dizer independente da estrutura fundiária. Cada província deve comportar, no mínimo, ao menos dois desses territórios. Em princípio, cada detentor de uma licença de caça tem o direito de aceder, após requerimento, a um único território de caça. A circunstância de uma pessoa não poder caçar num território de caça, segundo o legislador, favorece a responsabilização dos caçadores. A planificação do território é estabelecido ao nível da província, mas depende da competência da região. A decisão final é tomada pelas autoridades regionais, em colaboração com o Ministério da Agricultura e o do Ambiente, do mesmo modo que com as partes interessadas (caçadores, agricultores e defensores do ambiente). 126 127 Idem, ibidem. Em Portugal, a Lei n.º 173/99 e o Decreto-Lei n.º 227-B/2000 prevêem essa possibilidade aos proprietários. 93 4.4.4.3. Períodos de caça Segundo o Art.º 18, a legislação nacional fixa o calendário venatório que se reparte em quatro grupos: as espécies que podem ser caçadas desde o terceiro domingo de Setembro a 31 de Dezembro (nomeadamente codornizes, perdizesvermelhas e lebres); as espécies que podem ser caçadas desde o terceiro domingo de Setembro a 31 de Janeiro (nomeadamente faisões, galinholas e patos); as espécies que podem ser caçadas entre 10 de Outubro e 30 de Novembro (nomeadamente perdizesbrancas, tetrazes, cervos, gamos e muflões); o javali, contudo, só pode ser caçado entre 10 de Outubro e 31 de Dezembro ou entre 10 de Novembro e 31 de Janeiro, tal como na maioria de Estados europeus; porém, a caça é interdita logo que o solo esteja coberto de neve. A lei nacional permite às regiões modificar o calendário estabelecido pelo Governo, ou seja, podem alargar, restringir os períodos de caça ou interditar a caça de certas espécies, por causa da densidade da fauna, por razões climáticas particulares ou por motivos de doença. As regiões são obrigadas a respeitar as datas limites de 10 de Setembro e 31 de Janeiro. Além disso, devem submeter as modificações adequadas ao Instituto Nacional para a Fauna Selvagem, que é o organismo consultivo instituído pela lei de 1992 para estudar a fauna. Cada região deve, porém, publicar o seu calendário de caça alusivo a cada época venatória, mas previamente a 15 de Junho, discriminando o número de animais que podem ser abatidos em cada jornada de caça. Assim, na época venatória de 19992000, a Toscânia decidiu abrir a época de caça a 19 de Setembro e encerrar a 31 de Janeiro, prevendo as datas diferentes para cada espécie: a lebre pode ser caçada de 19 de Setembro a 8 de Dezembro, se bem que as províncias pudessem prolongar o período de caça deste animal até 31 de Dezembro. 4.4.4.4. Interdição da caça A legislação nacional impõe que o exercício da caça seja circunscrito a três dias da semana com interdição à terça-feira e sexta-feira. No entanto, a lei nacional permite às regiões escolher livremente os três dias durante os quais é possível caçar, na condição de respeitar a sua completa proibição nos restantes. Contudo, certas regiões limitam a actividade cinegética a dois dias por semana (em geral, domingo e um outro dia) para determinadas espécies e modos de caça. Outras, por sua vez, impõem os três 94 dias de caça a todos os caçadores (Basilicata, por exemplo) ou, então, restringem a caça a certos animais (o javali, nomeadamente). As regiões têm, porém, a possibilidade no que respeita à caça das aves migradoras, de fixar além dos três dias de caça semanais, entre 10 de Outubro e 30 de Novembro, sob a condição de respeitar a interdição da terça-feira e sexta-feira. Apesar da interdição geral de caçar com o solo coberto de neve, as regiões alpinas podem autorizar a caça nestas condições. Certas leis regionais interditam a caça em ocasiões festivas; entre outras, na Sardenha, é proibido caçar no dia de Natal e no primeiro dia do ano. 4.4.4.5. Horários de caça A caça é permitida durante o período entre o nascer do Sol e o seu ocaso. No que respeita aos ungulados, a caça é praticada uma hora depois do pôr-do-sol. Em cada região, os horários da caça são determinados por quinzena 128. 4.4.4.6. Carta de caçador Em Itália, a idoneidade venatória é regulada pelo decreto de 28-02-1968 129 .O exame de habilitação ao exercício da caça é organizado a nível regional e cada região deve, segundo a lei nacional, verificar se os candidatos ao exame dispõem de conhecimentos suficientes. Exige-se ainda aos candidatos uma prova teórica e outra prática versando as seguintes matérias: legislação venatória; zoologia aplicada à caça, e provas práticas de identificação das espécies venatórias; armas e munições de caça; protecção da natureza e das colheitas; primeiros socorros, etc. A caça está interdita a quem não possua a licença de uso e porte de arma de caça, válida sobre todo o território nacional durante seis anos, cuja concessão é atribuída às pessoas maiores mediante a apresentação de um certificado médico de aptidão, após a aprovação no referido exame de habilitação para o exercício da caça. As outras condições impõem aos caçadores a cobertura de um seguro de 128 Assim, na Toscânia, estabelecem-se da seguinte forma: entre 6-19 horas de 19 a 30 de Setembro; entre 6,3018,30 horas de 1 a 15 de Outubro; entre 6,45-18,15 horas de 16 a 31 de Outubro; entre 6-17 horas de 1 a 15 de Novembro; entre 6,15-16,45 horas de 16 a 30 de Novembro; entre 6,30-16,30 horas de 1 a 15 de Dezembro; entre 6,45-16,45 horas de 16 a 31 de Dezembro; entre 7-17 horas de 1 a 15 de Janeiro; entre 6,45-17,15 horas de 16 a 31 de Janeiro. 129 Refundido com outras normas pelo Decreto de 30-12-1970 e na Lei de 27-12-1977. 95 responsabilidade civil que abrange os danos causados a terceiros pela utilização de armas de caça, no limite de mil milhões de liras por sinistro; os acidentes de caça, no limite de um milhão de liras, por pessoa morta ou tornada inválida. Os caçadores devem igualmente obter uma carta regional, que é emitida gratuitamente, após a apresentação dos documentos necessários ao exercício da caça, passada pelas autoridades regionais competentes, e na qual se divulga o calendário regional de caça; os três dias semanais de caça que o interessado tem de escolher no princípio da época de caça; a forma de caça autorizada e o território de caça de reatamento (bem como, eventualmente, os outros territórios de caça onde é admitido). Durante os doze meses seguintes à primeira autorização da carta de caçador, o novo caçador não pode caçar a não ser acompanhado por um caçador titular de carta, pelo menos com três anos; não tenha cometido nenhuma das infracções à lei da caça sancionadas com a suspensão ou anulação da carta de caçador. Ao fim de seis anos, a renovação da licença de uso e porte de arma de caça supõe a apresentação de um novo certificado médico. Por outro motivo, cada ano, os caçadores devem pagar uma taxa regional do mesmo montante que a exigida aos candidatos ao exame 130. As infracções penais definidas pela lei da caça traduzem-se em sanções penais. Em certos casos, podem igualmente justificar a suspensão da carta de caçador, acompanhada da confiscação das armas de caça e da suspensão provisória da licença de uso e porte de arma, por um duração compreendida entre um a três anos, após o cometimento de algumas das infracções penais definidas pela lei de 1992 e que corresponde essencialmente ao incumprimento das interdições de caçar (geográficas, espaciais e a algumas espécies cinegéticas). A anulação da carta de caçador, que implica a obrigação de repetir o exame, pode ser pronunciada após o caçador abater um animal protegido, como o urso, ou quando utilizou um meio interdito para caçar as aves (varinhas enviscadas, laços). A anulação é acompanhada da interdição de requerer uma nova carta durante dez anos. Em caso de reincidência relativa às mais graves infracções penais definidas pela lei da caça, a suspensão pode ser definitiva 131. 130 Em Itália, a primeira entrega da licença de caça (e a sua renovação) estão dependentes da apresentação de um certificado médico. Certas infracções à lei da caça anulam a licença de caça e obrigam a repetir o exame correspondente. Em caso de reincidência, a cessação da licença de caça pode mesmo ser definitiva. 131 Idem, ibidem. 96 4.4.5. França Em França, a Lei de Caça, de 26 de Julho de 2000, confirmou o ONCFS (Office National de la Chasse et de la Faune Sauvage) como o estabelecimento público encarregado da ciência da fauna silvestre. A organização da caça é, na sua essência, distinta dos demais países comunitários, visto que está dividida em três organismos, todos eles interdependentes e com atribuições importantes: - Estado, que regulamenta e co-tutela a administração através do Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, e do Ministério da Agricultura, da Alimentação e dos Assuntos Rurais; - ONCFS organismo público que assegura três missões fundamentais: política de caça e da Natureza (parte da política de ambiente); estudos e pesquisas (observatório da fauna e dos habitats); centro de estudos e de pesquisa aplicadas 132; - Pirâmide associativa federal, composta pelas federações departamentais, regionais e nacionais, na qual se incluem as associações especializadas, sociedades de caça 133. Ta 4.4.5.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade Em França, o direito de caça é um dos direitos de uso comum ligado ao direito de propriedade no interesse geral. O direito de caçar é um direito acordado por um proprietário ou um detentor de direito de caça, isto é, uma pessoa determinada em caçar numa propriedade. Este direito não pode ser nem alugado nem transmitido a um terceiro, porque materializa a relação pessoal existente entre o titular do direito de caça e a pessoa autorizada a caçar. O rendeiro, por sua vez, é titular do direito de caçar nos terrenos alugados. Por razões de segurança, um proprietário de um terreno não vedado, pode interditar o acesso a terceiros, bem como o guarda privado da propriedade ou os seus ajudantes. Não existe, em direito comum, regras a respeitar pelos proprietários para assinalar os seus terrenos retirados da associação de caça. Em compensação, nas comunas onde existe uma Associação de Caça Comunal Agregada (ACCA) criada pela 132 O ONCFS tem mais de 1 800 pessoas ao serviço da natureza. Cerca de 100 engenheiros, investigadores e técnicos dos cinco centros nacionais de estudos e pesquisa aplicada (CNERA) da Direção dos Estudos e da Pesquisa (DER) realizam missões de estudos, pesquisa e experimentação, de apoio técnico e de vistoria. Dirigem também 12 redes de observação (monitoramento patrimonial). 133 Ives Lecocq, La chasse dans une Europe Elergie, Lisboa, Universidade Moderna, 26-09-2003. 97 Lei de 1901 134 , este território deve ser assinalado de maneira a que cada caçador não possa ignorar esta restrição. Porém, o proprietário que liberte as suas terras, em princípio, deverá arcar com os prejuízos provocados pela fauna que livremente aí circule. O Bail de Chasse (arrendamento da caça) é um contrato passado entre o proprietário de terrenos e uma pessoa física ou moral, na qual o objecto é a locação, por um período de tempo, do direito de caça sobre a propriedade, designadamente pelo contrato. Este direito pode abranger todos os modos de caça ou estar limitado a um de entre eles, a montaria. A Lei de Verdeille 135 , que modificou a lei da caça francesa, permite às pessoas filosoficamente opostas à caça (opositores de consciência) não cederem o direito de caça nas suas terras à ACCA. As outras modificações referem-se à retirada dos terrenos (seis meses, em vez de dois anos), e aos períodos de renovação da ACCA (cinco anos em vez de seis anos). As ACCA são assim constituídas sobre uma comuna, que reagrupa o direito de caça nas propriedades, cuja superfície seja inferior a um certo limite variando entre 20 a 60 has sem interrupção. Em contrapartida, os proprietários das parcelas podem, se o entenderem, aderir à ACCA e caçar no seu território 136. 4.4.5.2. Modalidades de caça A lei francesa autoriza várias modalidades de caça, designadamente a caça a tiro com armas de fogo, a montaria, a caça ao voo com aves de rapina e as caçadas tradicionais, consentidas com armadilhas, que se desenvolvem no período legal de caça e requerem um grande conhecimento da espécie caçada e dos meios utilizados. 134 Nas ACCA destacam-se os Grupos de Interesse Cinegético (GIC) que reagrupam os detentores do direito de caça com o fim da gestão comunitária de uma ou várias espécies de fauna selvagem ou de um território de caça que se autonomiza para a caça. 135 A lei deve o nome ao senador Fernand Verdeille, filho de um correeiro de aldeia, relator da lei das associações comunais de caça. 136 Estas ACCA, criadas após um questionário público, são agregadas pelo prefeito e colocadas sob a sua tutela. Os proprietários que não sejam caçadores podem, a seu pedido, participar na vida da ACCA. Veja-se Office National de la Chasse e de la Faune Sauvage. Http//www.oncfs.gouv.fr, 2003 98 4.4.5.3. Períodos de caça O período de caça a tiro e caça de altanaria, para a maior parte das espécies caçáveis começa, em princípio, no primeiro domingo de Setembro e termina no último dia de Fevereiro. A montaria pratica-se, exclusivamente, de 15 de Setembro a 31 de Março. No entanto, algumas espécies previstas no plano de caça, como espécies migratórias e o javali quando provoquem estragos nas culturas, podem ser caçadas fora deste período. Por conseguinte, o período de abertura pode ser fixado a partir de 10 de Agosto ou 1 de Setembro, segundo as espécies, e o encerramento entre 31 de Janeiro (caso da maioria das aves) e 20 de Fevereiro. 4.4.5.4. Horários de caça No que concerne à caça de espécies sedentárias, a caça é autorizada apenas de dia e nos departamentos respectivos: a prefeitura fixa as horas quotidianas de caça na sua Portaria de abertura. Esta regra aplica-se igualmente à caça de passagem terrestre. Em alternativa, as espécies aquáticas podem ser caçadas duas horas antes do nascer do Sol e até mesmo duas horas antes do ocaso (hora legal). Pode também ser caçado de noite a partir de postos fixos autorizados exclusivamente em certos departamentos. Também existe um dia de não caça; a caça a tiro, a caça com arco e com arma de fogo, estão interditas à quarta-feira, desde as 6 horas. Porém, a lei prevê duas excepções, ou seja, autoriza a caça a tiro nos cercados à caça de pêlo exclusivamente e ao pombo-bravo à quarta-feira, desde 1 de Outubro a 15 de Novembro, exclusivamente a partir de postos fixos 137. 4.4.5.5. Carta de caçador A carta de caçador obtêm-se após o candidato se submeter a um exame organizado pelo ONCFS que comporta uma prova teórica e uma prova prática. A formação é assegurada pelas federações departamentais dos caçadores, depois da inscrição na prefeitura do domicílio do candidato. 137 Ou seja, um posto materializado construído pela mão do homem que permita fixar o caçador a um ponto dado durante o acto de caça. Idem, ibidem. 99 A obtenção da carta de caçador definitiva é passada pela municipalidade da respectiva circunscrição mediante a apresentação do bilhete de identidade e a remessa de duas fotografias e um cheque para pagamento do direito de selo. No entanto, para poder caçar é preciso, primeiramente ter um território de caça. O exercício da caça só é permitido a quem tenha na sua posse a carta de caçador, como se viu. Mas não é suficiente para poder praticar a actividade cinegética. O caçador precisa de território de caça. Neste caso, se o desejar, terá de o procurar, quer por aluguer ou sendo proprietário deverá obrigatoriamente aderir a uma associação de caça e comprar uma acção de caça. Depois, é preciso validar a carta de caçador no departamento onde se situa o território associado138. Para isto, deve subscrever um contrato de seguro de caça, aderir à Federação dos Caçadores deste Departamento, pagar a quotização e as despesas de validação. Tal como nos demais países, em caso de condenação por crime de caça o infractor terá de repetir o exame. A validação de carta de caçador, que pode ser temporária ou anual, é obrigatória em cada ano cinegético. 4.4.6. Portugal Em Portugal, a Lei da Caça n.º 30/86, de 27 de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, que estabelecem o regime jurídico de protecção, exploração e de conservação dos recursos cinegéticos, foram revogados pela lei n.º 173/99, de 21 de Setembro. 4.4.6.1. Territórios de caça: o direito de caça e o direito de propriedade A Lei 30/86 previa que a caça pudesse ser exercida em todos os terrenos à excepção daqueles onde a caça constituísse um perigo para a saúde ou a tranquilidade das pessoas, ou provocasse danos graves aos bens; nos terrenos fechados, nos jardins ou em parques que constituem os anexos das habitações, bem como nas terras cultivadas durante os períodos onde é inevitável proteger as culturas 139. 138 Veja-se que a eficácia da carta de caçador depende da opção do caçador por caçar entre um a três departamentos no máximo, pois a sua validação carece de autorização dos respectivos departamentos. Em caso de querer ultrapassar este número deverá optar pela licença nacional. 139 Lei n.º 30/86 e confirmada pela Lei nº 173/99. 100 Por outra via, a lei possibilitava ao governo definir as reservas de caça. O direito de caça pertencia ao Estado, que outorgava o direito de caçar aos particulares segundo dois regimes cinegéticos diferentes: - O Regime Cinegético Geral (RCG), que se aplica por defeito nos terrenos onde o Estado concede o direito de caça a todas pessoas que obedecem às condições fixadas pela lei (carta de caçador, nomeadamente); - O Regime Cinegético Especial (RCE), que se aplica apenas em certas zonas, especialmente definidas por regulamento do Ministério da Agricultura; quando não é assegurado pela administração, a exploração dessas zonas é concedida principalmente às associações de caçadores, clubes, sociedades de caça, ou proprietários em nome individual. O direito de caça sobre estas zonas é reservado às pessoas que tem o acordo do gestor, titular dos direitos de propriedade ou usufrutuário. Em princípio, a constituição de uma zona de caça resultante do regime especial requer o acordo de todos os proprietários respeitantes (duas excepções, no entanto, estão previstas no caso de terrenos encravados ou quando a constituição de uma tal zona é considerada de utilidade pública). Um proprietário não pode interditar um caçador de caçar nas suas terras, a não ser quando as inclui numa zona de caça do regime especial. Caso contrário, é o regime geral que se aplica, uma vez que a lei prevê, salvo excepção, caçar sobre todos os terrenos. Entre os princípios gerais que a lei n.º 173/99 estabelece, o Art.º 3 reconhece o direito à não caça, ou seja a faculdade para os proprietários, usufrutuários ou locatários de interditar a caça sobre os seus terrenos ou de aí impedir a manutenção de uma zona de caça, na condição de não serem titulares de carta de caçador e não poderem fazer valer o direito que detém sobre o terreno num fim ligado à caça. Nesta condição, somente os titulares do direito de caça, que não sejam caçadores, podem impedir que outrem cace nas suas terras. As pessoas que fazem valer o seu direito de não caça ficam, porém, com a obrigação de indemnizar os proprietários vizinhos lesados pela caça que abrigam nas suas terras. 4.4.6.2. Diferentes categorias de terrenos de caça A lei n.º 30/86 permitia no RCG que todo o detentor da carta de caçador pudesse exercer a actividade venatória no território nacional desde que os terrenos de caça se 101 achassem livres. No seio do regime cinegético especial, que não podia ser aplicado a mais de 50% do território de caça do respectivo município, a lei distinguia quatro categorias de zonas de caça. Todas estas zonas deviam apresentar um plano de exploração, que estabelecia os períodos de caça e o número de animais que era possível abater: - ZCN instituídas por um período indeterminado, em terrenos públicos e administradas pelos serviços do Ministério da Agricultura, livremente acessíveis a todos os caçadores a troco do pagamento de uma contraprestação em dinheiro; - ZCS instituídas igualmente por um período indeterminado, de preferência em terrenos públicos ou pertencentes a cooperativas, administradas conjuntamente pelos serviços do Ministério da Agricultura, as colectividades locais e associações de caçadores; são livremente acessíveis a um número limitado de caçadores seleccionados por um procedimento que garanta o princípio de igualdade (sorteio, por exemplo); - ZCA constituídas de preferência em terrenos privados ou pertencentes a cooperativas, cuja superfície é limitada a 3 000 has e a sua exploração é concedida a associações de caçadores por um período limitado, superior a seis anos mas inferior a doze anos; cada caçador não pode ser associado em mais de duas zonas de caça associativas e o número de caçadores admitidos numa zona é fixado de maneira a que cada um deles não possa dispor de mais de 30 has em cada zona; - ZCT constituídas de preferência em terrenos privados ou pertencentes a cooperativas; procuram conciliar a exploração da caça e a prestação de serviços turísticos; a sua exploração é assegurada pelo Estado, pelas colectividades locais, ou por uma sociedade, concedida por uma duração limitada, mas superior a seis anos; o exercício da caça é livre para todos os caçadores mediante o pagamento de uma quantia ou por convite do titular dos direitos. Após a publicação da nova Lei da Caça n.º 173/99 a repartição da totalidade do território nacional passou a ser feita entre três categorias de terrenos: - Aqueles onde a caça é interdita, quer porque são locais onde a caça constitui um incómodo para a população (aglomerados, instalações militares, vias de comunicação, praias...), quer porque se trate de locais onde a fauna é protegida; - Aqueles onde a caça não pode ser exercida senão de modo condicionado, nomeadamente parques, jardins e domínios fechados, quer em certos períodos do ano quando sejam terrenos cultivados; 102 - Zonas de caça, nas quais a lei suprime a dualidade entre regime geral e regime especial e distingue quatro categorias de zonas de caça: nacionais; associativas; turísticas; municipais 140. Para as três primeiras categorias, a lei retoma, sem contudo utilizar a mesma formulação, as definições da Lei 30/86. Em contrapartida, as ZCM são uma criação da Lei n.º 173/99. Instituídas em terrenos públicos ou privados, devem ser geridas pelos municípios e acessíveis a um tão grande número de caçadores quanto possível. Todos os caçadores, teoricamente aí terão acesso na seguinte ordem de prioridade: proprietários e locatários de terrenos pertencentes à zona de caça; residentes no município; outros caçadores. A lei precisa que todas as zonas associativas e turísticas, quer dizer as zonas onde o exercício da caça é mais dispendioso e selectivo, não devem, em princípio, representar mais de 50% do território de cada município. 4.4.6.3. Períodos de caça As duas leis comportam, em termos muito próximos, as mesmas disposições: prevêem a fixação de um calendário nacional de caça para cada espécie, que deve estabelecer, para as espécies sedentárias, os ciclos de reprodução e, para as aves migratórias, a época e a natureza das migrações. O Decreto-Lei n.º 136/96 previa os períodos durante os quais era possível caçar as principais espécies: Setembro a Dezembro para o coelho-bravo, lebre e codorniz; Outubro a Dezembro para a perdiz-vermelha e faisão; Agosto a Fevereiro para o pato; Outubro a Fevereiro para o javali; todo o ano para os cervídeos, dependendo da modalidade de caça praticada (montaria, de Outubro a Fevereiro), caça selectiva de aproximação ou de espera, em qualquer período do ano para determinadas espécies, excepto o javali, que pode ser caçado durante a fase de Lua Cheia. O calendário pode variar em função da categoria do terreno de caça e da natureza da caça. Assim, nas zonas dependentes do RCG, a caça ao pato à espera só é autorizada em Agosto, Setembro, Janeiro e Fevereiro nas condições definidas por edital. Aliás, sobre a base das indicações gerais do diploma regulamentar, o Ministério da Agricultura fixa em cada ano o calendário de caça. 140 Desaparece, assim, a figura das ZCS. 103 Geralmente, salvo alguma medida de excepção, como, por exemplo, alterações dos ciclos biológicos da reprodução das espécies, seca, intempéries, etc., a caça da maior parte das espécies, abre no primeiro domingo de Outubro e termina em finais de Dezembro. Contudo, em determinadas zonas do RCG, para certas aves (rolas, patos e galinhas de água, etc.) a época de caça começa a 15 de Agosto e termina a 30 de Janeiro( excepto as rolas, que termina em finais de Setembro), enquanto que, para outras (galinholas e tordos, etc.), começa a 3 de Outubro e termina a 27 de Fevereiro. 4.4.6.4. Interdição da caça A lei n.º 173/99, seguindo de perto a lei anterior, limita o exercício da caça às quintas-feiras, domingos e feriados nacionais obrigatórios, excepto o Natal, no regime livre e nas ZCA e ZCM. No entanto, o diploma prevê algumas exclusões a esta regra geral, designadamente à caça ao javali, à espera nas noites de lua cheia, e as montarias que podem ter lugar aos sábados nos meses de Janeiro e Fevereiro. Igualmente, nas ZCT, exceptuando a caça indígena, que pode ser caçada em qualquer dia da semana (menos o dia de Natal) de acordo com o plano de exploração, a caça às aves migratórias pode ser praticada três dias por semana, livremente escolhidos pelo gestor da zona. No entanto, esclareça-se, que o Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, permitia a actividade cinegética nas ZCA além daqueles dias, em mais um dia por semana fixado nos respectivos planos de ordenamento e exploração cinegéticos. Em 1996, contudo, o Governo socialista sentiu a necessidade de reinstalar a normalidade entre os apoiantes do regime geral e os defensores do regime cinegético especial. Nesse sentido, através do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, igualou o número de dias de caça e o número de peças a abater de espécies migradoras 141. Por outro motivo, o Governo interditou a caça quando o solo esteja coberto de neve, bem como no dia de Natal, nos dias de eleições nacionais e nos dias de eleições locais nos concelhos respeitantes. 4.4.6.5. Horários de caça 141 Veja-se preâmbulo do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto. 104 O D.L. n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro, autoriza o acto venatório exclusivamente de dia, excepto no caso dos patos e da caça maior, cuja caça também é permitida de noite. Define o dia como o período que decorre entre o nascer e o pôr-dosol 142. 4.4.6.6. Carta de caçador Em Portugal, o exame de concessão da carta de caçador, previsto na lei 143 , destina-se a contribuir para a formação na biologia das espécies cinegéticas. O candidato é submetido à análise sobre legislação, fauna, ordenamento cinegético, meios e procedimento de caça, manuseamento de armas de fogo e medidas de segurança. Todo o caçador português está, perante a lei, obrigado a trazer consigo a carta de caçador, o bilhete de identidade ou passaporte, a licença de caça, a licença dos cães que o acompanham, a licença de uso e porte de arma de caça, o livrete do manifesto da arma utilizada no exercício da actividade cinegética e o seguro de caçador. A solicitação das autoridades fiscalizadoras, deverá apresentar todos estes documentos obrigatórios. Em Portugal, a carta de caçador tem uma duração limitada e variável em função da idade do titular. 4.4.6.7. Concessão da carta de caçador O exame permite verificar se o interessado possui as aptidões e os conhecimentos necessários ao exercício da caça. A carta de caçador só pode ser emitida a favor de pessoas que reúnam várias condições: ter mais de dezasseis anos 144 ; não serem portadores de anomalia psíquica ou de deficiência física ou fisiológica que torne perigoso o exercício da caça; não ter sido objecto de nenhuma proibição de caçar por disposição legal ou decisão judicial; terem sido aprovados em exame destinado a apurar a aptidão e o conhecimento necessário ao exercício da caça. 142 Art.º 29.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro. Lei n.º 2132, de 26-05-67, regulamentada pelo Decreto n.º 47847, de 14-08-67, Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto e Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto e no artigo 43 do Decreto n.º 47847, foi tornado obrigatório e regulamentado pela Portaria n.º 499/85, de 23 de Julho. 144 Refira-se, no entanto, que o D.L. n.º 136/96, de 14 de Agosto, no seu Art.º 13.º previa a possibilidade apenas aos maiores de dezoito anos, tratando-se de carta de caçador com arma de fogo ou de arqueiro-caçador, ou de 14 anos, tratando-se de carta de caçador sem arma de fogo, arco ou besta; os menores, só podiam obter a carta de caçador desde que autorizados por escrito pelo seu representante legal. 143 105 Para poder caçar o venador necessita, além da carta de caçador, de possuir uma licença de caça, licença de uso e porte de arma e um seguro de caça. A licença de caça é válida durante um ano. O seu custo varia conforme o caçador deseja caçar no território nacional ou na sua região cinegética. Além disso, existem as autorizações especiais para a caça ao javali e aos patos 145 . O seguro de caçador deve ter uma validade, pelo menos igual ao período da autorização de caçar na época venatória e cobrir os danos causados a terceiros. A concessão da licença de uso e porte de arma de caça supõe nomeadamente que o interessado esteja na posse de todos os seus direitos cívicos e políticos, e que se submeta a exame médico e testes psicotécnicos. 4.4.6.8. Renovação da carta de caçador A carta de caçador é válida por períodos de dez ou cinco anos, desde que emitida ou renovada antes ou depois do final do ano em que o seu titular perfez 50 anos. A sua renovação está subordinada à apresentação de um atestado médico e de um registo criminal e efectua-se nas mesmas condições que a primeira concessão 146 . Em caso de infracção grave, a carta de caçador pode ser suspensa por decisão judicial, sujeitando obrigatoriamente o infractor a um novo exame teórico-prático. 4.4.6.9. Caducidade da carta de caçador A prática de uma das infracções penais definidas pela lei da caça implica a caducidade da carta de caçador. A lei determina então que o facto de caçar nos períodos de defeso, ou recorrendo a meios ilícitos, nos sítios onde a caça é interdita ou nos terrenos para os quais o infractor não detém nenhum direito, acarreta sempre a perda do direito de caçar. De maneira geral, as infracções penais definidas pela lei da caça são punidas por sanções penais e, a título acessório, podem igualmente arrastar a perda do direito de caça por um período compreendido entre três e cinco anos147. 145 Para o ano de 1999-2000, o custo das licenças de caça estimou-se no seguinte valor: nacionais – 4 500$00; regionais – 2 250$00; suplemento para a caça grossa ou maior – 4 500$00; suplemento para a caça ao pato – 1 000$00. 146 Supõe, em particular, um exame médico, que se ateste que não é portador de anomalia psíquica ou de tal anomalia ou deficiência, a mesma só limite o interessado a exercer a caça com emprego de arma de fogo, arco ou besta e, ainda, um certificado de registo criminal. Veja Artigos 65.º, n.º 2 e 67.º do D.L. n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro. 147 Segundo a Lei n.º 173/99 basta qualquer uma das” infracções administrativas ou penais” para interditar o direito de caçar por um período compreendido entre três e cinco anos. 106 A lei n.º 173/99 não invoca especificamente a perda definitiva da carta de caçador. No entanto, depois do cometimento de uma infracção penal à lei da caça e após a aplicação da pena final, a carta de caçador opera por caducidade; a renovação não é automática, pressupõe a apresentação de um registo judicial e, obviamente, obriga a novo exame. 107 5. Conservação da Natureza Conservação é um termo excessivamente utilizado na actualidade por políticos, ecologistas e estudiosos que falam da manutenção dos bosques, das fontes de energia, das terras para cultura, da fauna, etc. Materialmente, para o homem médio, o termo manifesta-se com o propósito de um recurso subsistir melhor reduzindo o seu consumo. Para o caçador desportivo significa muito mais: a conservação é mais do que simples preservação; no caso dos recursos faunísticos, é a administração inteligente de uma fonte de riqueza que nunca acabará se for cuidada adequadamente; ou seja, desde que a população esteja sã e convenientemente controladas, as espécies venatórias podem fornecer ao homem carne e recreação, peles, penas, por sucessivas gerações. A civilização contemporânea suscita aos biólogos novos problemas que precisam de soluções. Por exemplo, em algumas partes do mundo, os veículos matam nas estradas mais animais que os caçadores. Os conservacionistas abordam este problema com entusiasmo. Por outro lado, cães e gatos assilvestrados constituem um problema para muitas zonas povoadas, matando milhares de cervos, faisões e outras espécies venatórias que se concentram nos refúgios, que o homem preparou, além de aumentar a incidência das enfermidades na fauna. A contaminação do meio ambiente é um dos problemas básicos de conservação nas nações modernas. Por esse motivo, uma das tendências essenciais da actual administração da caça consiste na manipulação intensa do habitat. Assim, conforme estabelecido na Estratégia Mundial para a Conservação de 1980, a caça é o aproveitamento dos recursos naturais renováveis constituídos pela fauna silvestre. Sempre que este aproveitamento seja racional de modo a preservar as populações silvestres afectadas, tanto directa como indirectamente, pelas acções cinegéticas, assim como dos ecossistemas em que se integram tais formações, a caça do ponto de vista ecológico é uma actividade perfeitamente compatível com os princípios da conservação da natureza. Neste sentido, se manifestam distintos naturalistas, como o francês Jean Dorst148, em 1924, que considera o homem o ente exclusivo com capacidade para limitar o número de peças cinegéticas abatidas. De acordo com a importância das populações cinegéticas, o homem comporta-se como um depredador natural e comuta as causas da redução das mesmas. A caça, sem sentimentalismo de nenhuma classe, pode 148 Antes que la naturaleza muera, Barcelona, 2ª ed., Ed. Omega, 1987. 108 considerar-se, então, como a exploração legítima do capital natural para benefício e satisfação desportiva do homem 149. O maior agravo à sobrevivência dos recursos bravios é, sem dúvida, a caça furtiva, praticada nos países civilizados até à savana primitiva de África. O êxito da conservação depende, em grande medida, da atitude e do conhecimento do público. Por esta razão, os conservacionistas investem cada vez mais na educação pública. De todos os instrumentos de conservação, quer se trate de um administrador ou de um caçador, a comunicação com o resto da humanidade é provavelmente o mais importante. Se os recursos bravios são planetários e tem de sobreviver às numerosas ameaças, a sua adequada sustentação é essencial para a própria existência. A caça por prazer, ou por desporto é também o mais natural, pois uma relação atávica e directa com a Natureza em harmonia com o seu interesse não a destrói. Se assim for, a caça assume-se aos olhos dos ecologistas e dos caçadores-produtores, como um recurso natural renovável, sendo por isso, necessário regulá-la de modo estrito150. O homem primitivo é uma espécie predadora do lustre da civilização. O caçador desportivo aprende isto, consciente ou instintivamente, e sente-se em concordância no seu encontro natural. O homem é o único, entre os predadores, capaz de realizar previsões conscientemente benignas na sua interacção com a presa. Na contemporaneidade, muitas pessoas estão convencidas que a conservação da fauna é uma questão de manter em zoológicos ou parques as espécies ameaçadas ou em perigo, porque confundem a salvação de uns poucos exemplares escolhidos com a permutação geral da espécie. Por contraste e intrínseco desfrute do caçador, está o compreender que a população saudável de qualquer espécie é o resultado de selecção natural na qual os mais débeis perecem, por acção dos parasitas ou predadores. A diversidade natural implica que no ecossistema preferido por uma dada espécie exista a suficiente quantidade de alimento, de água e de outros requisitos, mas também pressupõe a existência de competência. 149 Trofeo, Ano XXVII, n.º 308, enero / 96, p.35. No século XIX desapareceram 75 espécies de aves e mamíferos. No século XX deixaram de existir até ao momento 53 espécies de aves e 68 mamíferos, ainda que se encontram em vias de extinção outras 35 aves, 200 mamíferos, 80 anfíbios e répteis e a incrível cifra de 20 000 a 25 000 espécies vegetais. Informação do ICN, Lisboa, 2000. 150 109 Isto explica, em parte, os motivos porque os caçadores desportistas desde há algum tempo se empenham na forma de restauração e conservação dos habitats, circunstância que só os ignorantes ridicularizam ou atacam. Por vezes, o futuro conservacionista é mal interpretado por todos os inimigos da caça, que intentam reescrever a história como se o caçador desportivo não tivesse desempenhado nenhum papel. Naturalmente, excluir o caçador da história é negar à humanidade as suas raízes, que fornecem os ingredientes vitais da vida e da evolução. O Homem é um predador por opção ancestral, mas o caçador produtor moderno tem uma tríplice responsabilidade: administrador do território de caça, produtor de espécies cinegéticas e caçador das mesmas, a exemplo dos demais recursos naturais renováveis. Actualmente, os critérios conservacionistas sobre a flora e fauna não são património de minorias consciencializadas. Amplos sectores da população, por vezes, sentem-se inclinados a uma atitude de compromisso com a protecção da natureza. Em 1980, o Prof. Baeta Neves afirmou, convictamente, que o caçador português insistia, de uma maneira geral, a confiar a si próprio (e aos seus direitos) de uma forma completamente desactualizada, pois de acordo com os princípios e objectivos do ordenamento, não era mais do que um “colhedor da quota-parte do rendimento do capital cinegético a que tinha direito” 151. Impunha-se, portanto, modificar, ou tentar modificar, a orientação dos serviços oficiais ligados à cinegética e à preparação dos técnicos que deles faziam parte, naturalmente a começar pelo ensino. O autor, que pertenceu ao Conselho Superior da Caça, insistia na necessidade de se olhar a cinegética do ponto de vista ecológico. Nesse sentido, o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, seguia os mesmos ideais ainda que as medidas legislativas, entretanto tomadas, não fossem tão longe quanto se desejava, após a integração dos Serviços de Caça na Direcção-Geral da Gestão e Ordenamento Florestal. 151 Baeta Neves, Jornal de Caça e Pesca, n.º 546, 22-12-1980, pp. 1 e 3. Veja-se também o trabalho de João Filipe Flores Bugalho, «Aves de Rapina de Portugal», Estudos e Divulgação Técnica, Grupo A-Secção Zoologia Florestal e Cinegética, Lisboa, DGSFA, 1970. Aí refere o Autor: «Ora, se a falta de fiscalização é uma das razões porque a protecção imposta pela lei não tem sido uma protecção de facto, permitindo aos caçadores ou couteiros mais encarniçados na luta contra os chamados nocivos continuar a manter a sua actividade destruidora, resultante dos seus conhecimentos sobre rapaces serem escassos ou mesmo nulos, uma outra razão não menos importante, é consequência de a maioria da população não compreender o interesse da protecção das nossas aves e ainda não as saber identificar correctamente». Ob. cit., p. 7. 110 Quanto às Comissões Venatórias, o problema era mais difícil de resolver, devido ao atraso a que estavam votadas, em vez de evoluírem, à semelhança do que vinha a acontecer em todos os países da Europa, na qual Portugal era uma das raríssimas excepções, não somente quanto à forma como estavam agrupados os caçadores, mas também como intervinham na orientação da cinegética, circunstância que se agravaria com a entrada para membro da CEE. A investigação carecia de ser organizada e a oferecer os seus frutos, tão escassos eram os conhecimentos bioecológicos fundamentais sobre as espécies cinegéticas de maior interesse entre nós. Foi então feita uma primeira tentativa na Tapada de Mafra, para preencher essa lacuna, iniciando nela alguns estudos, nomeadamente sobre a perdiz-vermelha e os predadores, a alteração da vegetação própria, provocada por um excesso de população de cervídeos, gamos e veados. Por mais inconcebível que possa parecer, as dificuldades entretanto surgidas obrigaram a transferir para a Mata do Cabeção os planos de trabalho até então iniciados com tão assinalado êxito, cujo interesse qualquer um podia apreciar lendo as publicações que os Serviços Florestais foram editando. De regresso à Tapada de Mafra, em colaboração com engenheiros silvicultores e biologistas e com as contribuições dadas pelos alunos estagiários (tanto do Instituto Superior de Agronomia como da Faculdade de Ciências), foi possível ir cumprindo um programa de observações e ensaios. Também não era menos apreciável o quanto fora feito em relação aos cães de caça, nomeadamente raças nacionais, sector da cinegética com o maior interesse, que também não estava a ser dada a atenção que merecia, mas que era indispensável. Destaque-se, entre os trabalhos realizados, aqueles que diziam respeito à vegetação, nomeadamente ao emprego dos fogos controlados no sentido de corrigir os efeitos, ali tão evidentes no Livro da Montaria, de D. João I, no Libro de La Montaria de Afonso XI, e no Livre de Chasse, de Gaston Phebus, Conde de Foix, obras clássicas do passado, ou noutras mais recentes em relação às condições actuais do desporto venatório, mesmo considerado este à luz das ideias mais modernas nas suas relações com a exploração dos recursos naturais renováveis. Seria indesculpável, sem referir os nomes dos engenheiros silvicultores José Maria Saldanha Lopes e João Filipe Flores Bugalho, a quem o país deve reconhecer tão 111 prestimosos serviços, aos quais se irão acrescentar outros de igual ou maior mérito pela continuidade do esforço 152 . Os predadores como o lobo, a raposa, a águia, o milhafre, e tantos outros, foram durante séculos exterminados e perseguidos por se considerarem nocivos para a caça. Estas ideias estão hoje de parte. Estudos científicos demonstram que os predadores têm uma acção extremamente benéfica sobre as populações das suas presas: os coelhos-bravos, as perdizes-vermelhas apanhadas são, com alto grau de risco de probabilidades, animais doentes, feridos ou debilitados. Compreendemos então que, longe de destruir a caça, os predadores contribuíam para a vitalidade e sanidade das populações das espécies cinegéticas. No dizer de João Bugalho, comportam-se como “verdadeiros saneadores”, e “seleccionadores, porque destruindo os indivíduos débeis contribuem para a melhoria das populações por eles controladas “153. A rapidez e eficiência com que a mixomatose dizima e destrói a população de coelhos-bravos na Europa, só foram possíveis devido ao estado de pobreza, a que chegaram as populações de predadores. A destruição que se imputa ter origem nos predadores, acabou por acontecer de forma catastrófica e paradoxalmente devido à sua falta, porque se as populações de coelhos-bravos recuperarem da doença, tal facto deve-se, entre outras razões, à acção saneadora dos predadores. Este e outros exemplos naturais mostram que as populações animais correm graves perigos quando privados dos seus predadores naturais. Sabemos que muitas espécies perseguidas nem sequer se alimentam de caça, mas sim de pequenos animais prejudiciais à agricultura como ratos e muitos insectos. Conscientes destas razões, por todo o país, as autoridades deixaram de oferecer prémios pelo abate de animais, até então, considerados nocivos. Em Portugal, devido a sua utilidade e ao risco de uma extinção, estavam protegidas por lei grande partes dos predadores: todas as aves de rapina (diurnas e nocturnas) e alguns mamíferos como o lince, o gato-bravo, a gineta e a lontra 154. A primitiva floresta do nosso país era constituída por espécies do género de quercus – como os carvalhos, o sobreiro e a azinheira, e uma variedade enorme de estas espécies, como o carrasco, o sanguinheiro, o azevinho, o freixo, o medronheiro e tantas outras. 152 Idem, ibidem. João Bugalho, ob. cit., p. 14. 154 Sobre esta matéria, veja-se Mário Bastos, ob. cit. p.142. 153 112 Foi este tipo de florestas aliado às zonas de cultivo, que permitiram o desenvolvimento e manutenção das espécies de caça ainda hoje comuns, como a perdiz-vermelha, o coelho-bravo e a lebre, outras cujo número é muito reduzido, como o veado, o corço, e outros já existentes como a cabra do Gerês. É este espécime de florestas variado que lhe fornecem alimento, abrigo e local de criação, resistente aos incêndios. A política florestal, que no século XX cobriu o nosso território com grandes extensões de pinheiro bravo, foi o golpe final nessa floresta progressivamente destruída, e nessa devastação, foram arrastados os animais que nela viviam. Contudo se o pinhal era desfavorável às espécies de caça nos nossos dias assiste-se a acontecimentos mais graves: o fogo posto e os escândalos, queimando ou enterrando vivas as plantas e animais prepararam o território florestal para os novos senhores dos montes: o eucalipto e a indústria de celulose. O eucalipto, trazido da Austrália, deixou na terra natal os animais que dela viviam, não respondendo a nenhuma das necessidades vitais das nossas espécies, onde as grandes plantas transformaram em deserto de caça e podendo mesmo provocar um desastre irremediável dos nossos solos florestais. Por outro lado, estas plantações sensíveis ao fogo, tal como o pinheiro, continuam a manter os nossos montes sob a ameaça de grandes incêndios, ignorando que a solução passava por uma reflorestação das espécies próprias do nosso país: sobreiro, castanheiro, azinheira, carvalho e nogueira. O Conselho da Europa elegeu 1983 como o Ano Europeu das Zonas Ribeirinhas encetando uma campanha que pretendia chamar atenção para a necessidade de conservação e ordenamento dos ecossistemas. Por esta razão, a costa sudoeste de Portugal, abandonada em grandes faixas no esquecimento pelos interesses turísticos, impeliu a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), representante em Portugal do Conselho da Europa, a considerar prioritárias seis zonas de protecção permanentes às espécies cinegéticas localizadas nas áreas de arribas da orla marítima a Sul do Tejo, limitadas entre a linha da costa, incluindo as ilhotas adjacentes e uma linha paralela, para o interior a uma distância aproximada de 1 km. Nestas zonas era proibido o exercício da caça, o qual só excepcionalmente podia ser autorizado pela DGF, entidade administrante, quando se justificasse em face dos prejuízos causados em culturas agrícolas, desde que a simples captura para 113 repovoamento de outras áreas, não fosse adequada, suficiente ou conveniente para os fins em vista. Quando foi autorizada a caça dentro destas zonas, a mesma teve de ser condicionada e regulamentada pela DGF, em colaboração com associações locais de caçadores e tornadas públicas por editais as condições em que a mesma era permitida, bem como as regras de inscrições públicas de caçadores e as listas e distribuições das mesmas. As transgressões de caça cometidas dentro destas zonas eram punidas nos termos do disposto nos artigos 5.º e 6.º do D.L. n.º 407-C/75, de 30/7 155. A Natureza é constituída por espécies animais e vegetais que se encontram em perpétua luta pela sobrevivência. Só a partir desta consciencialização e com o auxílio de organismos ligados à defesa do património natural, podemos pensar numa legislação de caça eficaz que permita a salvaguarda da fauna e actividade cinegética em Portugal. Outro aspecto, não menos importante, se devia ao desconhecimento, por parte dos caçadores e entidades de fiscalização, das espécies cujo abate estava proibido durante as épocas de caça. Estas espécies continuavam a ser consideradas pelos leigos como animais nocivos. É falso o conceito de nocividade, assim como era inconcebível que Portugal continuasse a comercializar linces com o título de animais nocivos. Ainda mais condenável a publicação de carácter paupérrimo ao incitar o abate indiscriminado de seres vivos que se encontravam protegidos, não só pela legislação portuguesa, mas também por normativos internacionais de protecção da fauna, perante os quais Portugal assumira compromissos. Os estudos científicos revelam que o abate indiscriminado de espécies animais e vegetais conduzia a graves desequilíbrios ecológicos. Tornava-se imprescindível, até ser criada nova legislação, que todos os anos, antes da nova época de caça se publicassem e divulgassem, através dos meios de comunicação social e editais, as espécies em vias de extinção156. Com a extinção das coutadas, em 1975, degradou-se o património faunístico. As raras medidas aplicadas pelos sucessivos governos ao longo das legislaturas foram de ineficácia comprovada. Apesar dos protestos generalizados e das queixas de falta de caça, os diplomas concernentes a reduzir o abate eram exíguos. 155 Portaria n.º 1038, 14-12-1983. Era, pois, “oportuno o aparecimento de uma publicação, do tipo de livro de campo” que elucidasse os caçadores sobre a fauna portuguesa ou ibérica. Luís Filipe Ferreira, Jornal de Caça e Pesca, n.º 540, 22-091980, pp. 5 e 8. 156 114 Tal evolução, porém, só atingiu o caminho da sustentabilidade, tão desejada pelos conservacionistas, após a publicação da Lei 30/86, que criou a concepção de caça ordenada e abriu as portas para a participação do Ministério do Ambiente na administração da caça nas áreas protegidas e na criação da Rede Natura 2000, primeiro através do Serviço Nacional e Parques e Conservação da Natureza (SNPRCN); posteriormente, através do Instituto da Conservação da Natureza (ICN). O culminar da protecção veio, contudo, a ter consagração na Lei 173/99 que reforçou o papel dos organismos estatais e não governamentais, imprimindo uma nova dinâmica, nomeadamente com a criação do direito à não caça e dos refúgios de caça. 5.1. Insatisfação e proteccionismo Diversas vozes se ergueram, nesse período, contra a administração venatória portuguesa, culpando-a de ser uma estrutura legislativa inadequada à salvaguarda do património nacional faunístico. Para tal, contribuíram, entre outros factos: a incapacidade e ignorância dos legisladores; insuficientes conhecimentos zoológicos; aumento quantitativo dos caçadores e o desprezo a que se tinham sido votadas as instituições científicas cujo contributo, noutros tempos, tinha sido válido. A ignorância dos caçadores era inegável. Além do preço da licença, vacina, dias de caça e número de exemplares de cada espécie que se podiam abater, pouco mais conheciam. Juntava-se o desconhecimento profundo, no que concernia ao ciclo biológico das espécies cinegéticas, ao reconhecimento no campo das aves e mamíferos, e às espécies interditas a abater durante a época de caça. Os caçadores e demais população portuguesa desconheciam, genericamente, que mais de 80 % das espécies animais se encontravam protegidas pelos Decretos-lei n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967 e n.º 354-A/74. O primeiro aspecto a relevar – o desconhecimento dos ciclos biológicos e identificação das espécies –, era consequência da inexistência de bibliografia portuguesa actualizada que, sucinta e objectivamente, pudesse elucidar os caçadores sobre as características biológicas das espécies animais (identificação, habitat, nidificação, etc.) 157. Em 1980, a bibliografia existente em Portugal sobre essa matéria encontrava-se em alemão, inglês, francês, espanhol, circunstância que, à priori, constituía obstáculo à 157 Preocupações que Baeta Neves e João Bugalho, em larga medida, corroboram. 115 consulta. Contudo, entre os recursos didácticos, que podiam eliminar esta imperfeição, encontrava-se a imprensa que, infelizmente, deturpava a realidade natural com a publicação de notícias banais. Após a abolição das coutadas em 1975, caminhou-se gradualmente para a degradação do património faunístico. As raras medidas tomadas pelos sucessivos governos ao longo das legislatura (redução ou proibição de abates de determinadas espécies) foram ocasionais e ineficazes, respondendo apenas aos protestos por falta de caça. Em 1977, pela Portaria n.º 523-A/77, de 13 de Agosto, o Governo decidiu conter o abate indiscriminado de coelhos-bravos mediante a interditação da sua caça com furão; reduziu o número de dias de caça; limitou o abate diário de perdizes-vermelhas de oito para seis e uma lebre; antecipou o fecho da caça aos patos para o último domingo de Janeiro e das migradoras para o último domingo de Fevereiro158. Uma parte da sociedade civil também não ignorava a necessidade de conservação dos recursos bravios. Em 1982, Jorge Roque de Pinho, em representação do Clube Português de Monteiros (CPM) e o ex-ministro Carlos Macedo, durante um encontro com jornalistas defenderam a constituição de coutadas, como condição para a subsistência de espécies cinegéticas em Portugal, e o agravamento de fiscalização do exercício da caça. Carlos Macedo, inclusive, aludiu às “atitudes demagógicas” que delapidavam o património cinegético português por transigência com o conceito de caça como desporto, ignorando que este, devidamente estruturado, arrastaria outros que abrangiam o” turismo, a hotelaria e o comércio de produtos “159. Mesmo a imprensa cinegética não omitia o triste desastre faunístico que se avizinhava. Em 1988, o Jornal de Caça e Pesca, após ter solicitado aos caçadores que se pronunciassem voluntariamente sobre a proibição de caça à perdiz-vermelha, naquela época venatória de verdadeira catástrofe para as criações, tal atitude foi considerada uma verdadeira ofensa: “Pouco faltou para nos cair o Carmo e a Trindade em cima”160. O fenómeno faunístico impeliu, por vezes, às mais diversas medidas proteccionistas em muitos países, como a proibição temporária de se caçar – a única medida sensata e eficaz de preservar um património de incalculável valor para a 158 Portaria n.º 523-A/77, 13 de Agosto. Jornal de Caça e Pesca, n.º 149, 1-11-1982, p.3. 160 Idem, ibidem. 159 116 sobrevivência dos povos e do planeta. Na Suíça, exemplo vivo da preservação, o problema sempre foi encarado com seriedade, ou seja, a caça foi proibida temporariamente em alguns dos 11 cantões que dividem o Estado, como aconteceu em Genebra. Em Ticino, após a iniciativa da Associação de Protecção e Conservação das espécies selváticas, em todo o território cantonal, apoiada pela Associação de Agricultores, Ambientalistas e Ecologistas e que envolveu também o Movimento Juvenil Progressista e os caçadores, cerca de 44 633 suíços (44,6%) através de referendo votaram pela proibição da caça, sem contudo imporem a sua vontade à maioria161. 5.2. Regulamentação A conservação da Natureza, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, manifesta-se através da preservação dos diferentes níveis e componentes naturais da biodiversidade. Por essa razão, tornou-se um imperativo de acção política e de desenvolvimento cultural e socio-económico à escala planetária. A interiorização de tais princípios e da acção que lhe está subjacente consumouse a partir da Declaração do Ambiente, adoptada pela primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente, realizada em Estocolmo, em 1972, e, posteriormente, na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar no Rio de Janeiro, em 1992. Daí, resultou a adopção de um conjunto de documentos e compromissos, com particular destaque para a Convenção da Diversidade Biológica. De modo que, no espaço comunitário, a primeira grande acção conjunta dos Estados-membros para conservação do património natural ocorreu em 1979, com a publicação da Directiva n.º 79/409/CEE (Aves), de 2 de Abril do Conselho, relativa à conservação das aves selvagens. A finalidade é a protecção, gestão e controlo das espécies de aves que vivem no estado selvagem no território da União Europeia. Atendendo à regressão de muitas populações de espécies de aves no território europeu (em especial das migradoras), à degradação crescente dos seus habitats e ao tipo de exploração de que eram alvo, a Directiva prevê o estabelecimento de zonas 161 de protecção especial (ZPE), Votantes inscritos: 187 059. No final, 44,6% votaram contra a caça e 58,4% a favor da sua manutenção. José Roriz, «caçar ou não caçar em Ticino», idem, n.º 812, Abril, 2ª quinzena, 1992, p.3. 117 correspondentes aos habitats cuja salvaguarda é prioritária para a conservação das populações de aves162. Em 1993, os Estados membros da União Europeia publicam aquele que é considerado o principal acto de direito comunitário no domínio da conservação da Natureza, ou seja, a Directiva n.º 92/43/CEE (Habitats), do Conselho, de 21 de Maio, relativa à conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens do território da União Europeia, nomeadamente pela criação de um conjunto de sítios de interesse comunitário, designados como zonas especiais de conservação (ZEC)163. Ou seja, a Directiva prevê o estabelecimento de uma rede ecológica europeia de zonas especiais de conservação, que englobará as ZEC e as ZPE. Por outras palavras, em termos de direito comunitário, a regulamentação relativa à conservação da Natureza alicerça-se em torno das Directivas Aves e Habitats, de âmbito complementar e objectivos substancialmente idênticos, os quais no início do século XXI consubstanciarão em conjunto o instrumento de conservação comunitário por excelência – a Rede Natura 2000 164. Organograma 1: Origem da Rede Natura 2000 Directiva Habitats 92/43/CEE Directiva Aves 79/409/CEE Rede Natura 2000 Zonas de Protecção Especial (ZPE) Anexo I: Habitats Naturais Anexo II: Espécies Lista Nacional de Sítios Junho 1996 Lista de Sítios de Importância Comunitária (SIC) Junho 1998 Zonas Especiais de Conservação (ZEC) Natura 2000 Junho 2004 Fonte: Extraído de Natura, DGXI Nature Newsletter, Maio, 1996. 162 Portugal transpôs esta directiva para a ordem jurídica interna através do D.L. n.º 75/91, de 14 de Fevereiro. Também entrou na ordem jurídica interna através do D.L. n.º 226/97, de 27 de Agosto. 164 Foi assim que o D.L. n.º 140/99, de 24 de Abril, procedeu à revisão da transposição para o direito interno das directivas Aves e Habitats, cujo texto se modela pela clareza de exposição e definição de termos técnicocientíficos de particular importância no plano da conservação da Natureza. 163 118 5.2.1. CITES A Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagem ameaçada de extinção (CITES) foi assinada por 21 países, em 1973, na cidade de Washington. A partir daí, mais 13 países aderiram à convenção que regula o comércio internacional de espécies da fauna e da flora selvagem, isto é, a exportação, reexportação e importação de espécimes vivos de animais e plantas, suas partes e derivados com base num sistema de licença e certificados. As espécies de animais e plantas sujeitas a níveis de regulamentação 165 , referindo-se o facto de serem milhares as espécies de animais e plantas que estão incluídas na CITES, isto é, que as suas populações já se encontram em perigo de extinção ou a caminho. A União Europeia representa um dos três mercados para o comércio internacional das espécies da fauna e da flora selvagens, principalmente como importadora. Por isso, a legislação a aplicar a este tipo de comércio desde há muito que constituiu uma prioridade em matéria de conservação das espécies. 5.2.2. Convenção de Berna A Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa foi assinada em Berna, a 19 de Setembro de 1979, durante a 3ª Conferência Europeia de Ministros do Ambiente, por um grupo de 9 países e a Comunidade Económica Europeia166. Naturalmente, que tais Estados estavam conscientes dos numerosos pedidos de acção comum provenientes dos governos ou das instâncias internacionais, nomeadamente os que foram expressos pela Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente, de 1972, e pela Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, empenhados em respeitar na conservação da vida selvagem, as recomendações da Resolução n.º 2 da II Conferência Ministerial Europeia sobre o Ambiente. Esta Convenção teve um âmbito pan-europeu, estendendo-se também a sua influência ao Norte de África para cumprimento dos objectivos da conservação das espécies migradoras listadas nos seus anexos que nesse território passam uma parte 165 As espécies de animais e plantas sujeitas a níveis de regulamentação estão incluídas em três apêndices. Veja CITES. 166 Portugal aderiu à Convenção e o Governo publicou o texto integral no D.L. n.º 95/81, D.R., I Série, n.º 167, de 23 de Julho. Actualmente, perto de 40 países são partes contratantes da Convenção de Berna, com sede em Estrasburgo, França. A sua regulamentação decorre da aplicação do D.L. n.º 316/89, de 22 de Setembro. 119 do ano. Segundo o Art.º 1.º, garantia “a conservação da flora e a fauna selvagens e dos seus habitantes naturais”, em particular, as espécies e os habitats cuja conservação exija a cooperação de diversos Estados. Neste contexto, uma ênfase particular é atribuída às espécies em perigo ou vulneráveis, incluindo as espécies migratórias167. Grupos de peritos em diversos temas abrangidos pela Convenção de Berna têm sido dinamizados. Estes efectuam reuniões periódicas (por vezes, em Estrasburgo) para sugerir orientações técnico-científicas e estratégicas de conservação. A Comissão Permanente da Convenção de Berna, ao longo da sua existência, tem demonstrado por diversas formas (declarações, organizações de seminários conjuntos e outras iniciativas, etc.) a sua determinação em não duplicar, mas congregar os esforços de diversas organizações e instrumentos de Conservação da Natureza. O carácter pioneiro da Convenção de Berna relativamente à definição de princípios e objectivos de Conservação da Natureza na Europa, bem como a identificação das espécies ameaçadas no território europeu, veio a influenciar de forma notória a redacção e os anexos originais das Directivas Aves e Habitats, posteriormente negociadas e aprovadas. Com o alargamento do espaço de influência territorial da Convenção de Berna, que resultou da adesão de muitos países da Europa Central e de Leste, novas tarefas de conservação – em termos de espécies, de habitats naturais e de problemática – vieram a ser analisadas e incluídas no âmbito da sua aplicação. Ao mesmo tempo que este processo decorria, os países da União Europeia iam traduzindo as Directivas em acções que implicavam um grande esforço técnico, político e financeiro: a designação dos sítios candidatos à Rede Natura 2000 (ZPE e ZEC). 167 Para além do articulado, no qual se desenvolvem os aspectos relacionados com as obrigações das Partes Contratantes e os mecanismos de aplicação da Convenção, fazem parte da Convenção os Anexos I (Espécies da flora estritamente protegidas), II (Espécies da fauna estritamente protegidas), III (Espécies da fauna protegidas), IV (Meios e métodos de captura interditos). Cabe ainda a responsabilidade de implementar os Temas 1 (Estabelecimento da Rede Ecológica Pan-Europeia) e II (Espécies Ameaçadas) da Estratégia Pan-Europeia para a Conservação da Diversidade Biológica e paisagística. O trabalho desenvolvido em torno da protecção das espécies (legislação e fiscalização), a avaliação do seu estatuto de conservação (elaboração e revisão de listas e livros vermelhos) e a definição de medidas de conservação (elaboração de planos de acção) são actividades afectas à Convenção, que neste contexto se enquadram na implementação do Tema 1. 120 5.2.3. Directiva 79/409/CEE (Aves) A Directiva 79/409/CEE 168 interdita, sem excepção, a detenção e a comercialização de todas as espécies de aves que vivem naturalmente em estado selvagem sobre o território europeu da União. A fim de preservar a fauna selvagem, é indispensável respeitar os períodos de reprodução. De tal forma que muitos caçadores a contestaram 169. A Directiva Aves vai nesse sentido e aplica-se às aves, aos seus ovos, aos seus ninhos e aos seus habitats 170. As associações de protecção da Natureza e o Ministério do Ambiente têm sucessivamente proposto o encurtamento da actividade cinegética às espécies migradoras, designadamente retardando a abertura ou antecipando o fecho, sob o argumento que as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem no território europeu dos Estados-membros são em grande parte espécies migratórias, que constituem um património comum, cuja protecção eficaz representa um problema de ambiente tipicamente transfronteiriço, implicando responsabilidades comuns. As medidas a adoptar aplicar-se-iam aos diferentes factores que podem agir sobre o nível populacional das aves, as repercussões das actividades humanas e, nomeadamente, a destruição e a poluição dos seus habitats, a captura e a destruição pelo homem, assim como o comércio a que estas práticas dão origem no âmbito de uma política de conservação e de gestão dos recursos naturais, a longo prazo. Proibia-se os meios, instalações e métodos de captura ou de abate em grande escala ou não selectivos, bem como a perseguição a partir de certos meios de transporte, devido à pressão excessiva sobre o nível populacional das espécies em causa. Outra medida não menos importante consistiu na proibição de introdução de espécies de aves que não viviam naturalmente no estado selvagem em território europeu dos Estados-membros a fim de não acarretar nenhum perigo para a flora e fauna locais. 168 Alterada pelas Directivas n.ºs 91/244/CEE da Comissão, de 6 de Março, 94/24/CE do Conselho, de 8 de Junho e 97/49/CE da Comissão, de 29 de Junho. Também o D.L. n.º 140/99, de 24 de Abril, actualiza as directivas Aves e Habitats. 169 É uma evidência partilhada por 83% dos franceses e 79% dos caçadores. (Sondagem IFEN, Julho de 1998). http://www.globenet.org/ape/chasse/chasse.html. 170 Art.º 1.º, n.º 2, da Directiva Aves. 121 A preservação e manutenção e o restabelecimento dos biótipos e dos habitats comportam em primeiro lugar a criação de zonas de protecção; manutenção e adaptação ajustadas aos imperativos ecológicos situados no interior e no exterior das zonas de protecção; criação e reabilitação dos biótipos destruídos. A directiva não restringe na sua totalidade o abate das espécies que podem ser objecto de actos de caça no âmbito da legislação nacional, mas transfere para os Estados-membros a capacidade de zelar para que a caça não comprometa os esforços de conservação, proibindo a sua caça durante o período de reprodução e de dependência. Quando se trate de espécies migradoras, que não sejam caçadas durante o período de reprodução e durante o período de retorno ao seu local de nidificação, os Estados-membros, após a sua adesão dispunham de um prazo de dois anos a contar da sua notificação. 5.2.4. Directiva 92/43/CEE – Fauna/ Flora/ Habitats A Directiva Habitats completa a legislação comunitária em matéria de conservação da natureza, iniciada com a Directiva Aves. Em 1993, os Estados-membros da União Europeia publicam aquele que é considerado o principal acto de direito comunitário no domínio da conservação da Natureza: a Directiva n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de Maio, relativa à conservação da biodiversidade, através da conservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens do território da União Europeia. A Directiva Habitats define uma estrutura comum para a conservação das plantas e dos animais, incluindo as aves, e habitats enquanto meios naturais; prevê a criação de uma rede de “zonas especiais de conservação”, denominada Rede Natura 2000, destinada a garantir um estado de conservação favorável dos habitats naturais e das espécies de interesse comunitário. Percursora na Europa da protecção das espécies e dos seus habitats, a Convenção de Berna serviu de base à Directiva Habitats. Esta, porém vai mais longe introduzindo o princípio da conservação dos tipos de habitats naturais, enquanto tais, e não exclusivamente como meio de vida de espécies. Em Junho de 1992, a Comunidade e os seus Estados-membros assinaram conjuntamente no Rio de Janeiro, a Convenção para a Conservação da Biodiversidade. A Directiva Habitats representa com a Directiva Aves, a contribuição comunitária para a 122 manutenção da biodiversidade, enunciada nesta Convenção e obriga todos os Estadosmembros da União Europeia a entregar uma lista Nacional de Lugares (pLIC), a qual, em sucessivas fases, se transformará em Lista de Lugares de Importância Comunitária (LIC) e depois em Zonas Especiais de Conservação (ZEC). Tais ZEC, junto com as Zonas de Especial Protecção para as Aves (ZEPA), da Directiva Aves, conformarão a futura Rede Natura 2000, ou seja, rede ecologicamente coerente de áreas protegidas. Por outras palavras, as Zonas de Protecção Especial (ZPE), destinam-se a conservarem as 182 espécies e subespécies de aves contidas no Anexo I da Directiva Aves, bem como as espécies migradoras; as Zona Especiais de Conservação (ZEC) visam conservar os 253 tipos de habitats, 200 animais e 434 plantas constantes dos anexos da Directiva Habitats. A finalidade desta rede é, consequentemente, manter ou recuperar habitats e espécies garantindo-lhes um estatuto de conservação favorável. A comunidade, devido à sua superfície, engloba diversas entidades biogeográficas distintas, ou seja, a região alpina, atlântica, continental, mediterrânea e macaronésica. Cada uma destas regiões tem a sua especificidade e a sua originalidade, ainda que possuam em comum determinados tipos de habitats e determinadas espécies. O legislador teve em conta esse facto na sua definição dos tipos de habitats e dos sítios de importância comunitária e elaborou uma lista, para cada uma das 5 regiões, com base nos sítios propostos pelos Estados-membros, de importância comunitária, lista essa que se fundamenta num processo e em critérios comuns. As zonas de conservação são designadas pelos Estados-membros a partir da lista dos sítios de importância comunitária e integrando-se num conjunto mais vasto que forma a Rede Natura 2000. Além disso, as zonas de protecção especial designadas nos termos da Directiva Aves farão parte integrante desta rede. Esta noção de rede subentende a existência de ligações entre as zonas. Pode tratar-se de estruturas paisagísticas lineares (sebes, cursos de água e suas margens arborizadas, limites tradicionais dos campos), bem como de charcos, lagos, matas e baldios que funcionam como etapas de migração ou como refúgios para as espécies selvagens. A Directiva designa por habitats zonas naturais ou seminaturais que possuem características biogeográficas e geológicas específicas e únicas. Os diversos tipos de habitats naturais constantes das listas do Anexo I são pelo menos 200. Impressionante à primeira vista, este número constituiu, porém, um resumo apenas da extraordinária diversidade dos meios naturais europeus. Foi imposta selecção extremamente severa, 123 com a preocupação de dispor de um instrumento utilizável e de concentrar esforços nos bens mais preciosos da Comunidade. Constam, nomeadamente, desta lista os meios raros ou de pequena extensão, como os cursos de água alpinos ou as dunas móveis, os meios que encerram uma diversidade biológica elevada, como os prados calcários de orquídeas ou os bancos de possidónias, os meios indispensáveis às espécies migratórias, como os estuários, que são testemunho de práticas agrícolas tradicionais que se mantiveram até aos nossos dias, como os montados portugueses ou determinadas florestas de árvores caducas continentais. Finalmente, são assim tidos em conta os testemunhos milenários da evolução do meio natural europeu (turfeiras, florestas de loureiros, etc.)171. Quanto à flora, a lista abrange 278 espécies de plantas fanerogâmicas, 19 espécies de musgos e 12 espécies de fetos, às quais se vem juntar uma lista específica das ilhas Canárias, dos Açores e da Madeira, devido à enorme originalidade da flora desta região geográfica (Macaronésia). A flora europeia foi objecto de inúmeros trabalhos. A lista do Anexo II é, por conseguinte, extremamente representativa do estado de conservação das espécies vegetais comunitárias. Além disso, a protecção dos meios naturais repercute-se favoravelmente na flora que neles habita. Espécies rigorosamente protegidas são as constantes no anexo IV, ou seja, 173 espécies de plantas, 71 invertebrados e mais 160 espécies de vertebrados. No que respeita aos animais a captura e o abate intencional são proibidos, bem como a perturbação nas frases críticas do ciclo de vida respectivo (hibernação, reprodução, desenvolvimento das crias…) e a destruição das suas áreas de repouso e dos seus locais de reprodução. No que se refere às plantas, a colheita, a recolha, o desenraizamento e a destruição intencionais são proibidos na sua área de repartição natural. Por outro lado, é proibida a detenção, o transporte e a comercialização do conjunto destas espécies. 171 Para as espécies cujos habitats deverão ser protegidos (anexo II), a Directiva estabelece uma lista com o objectivo de proteger os meios de vida que lhe são indispensáveis. Assim, a fauna, a lista dos vertebrados, distinta das aves, agrupa as espécies que possuem um estatuto precário na Europa (134 espécies). Devido aos inúmeros estudos científicos realizados, esta lista constituiu um reflexo bastante fiel da situação na Comunidade. No que se refere aos invertebrados, apenas 59 espécies, dos milhares de espécies existentes na Europa constam dessa lista. Esse valor reduzido possui uma dupla explicação: por um lado, a ausência dramática de conhecimentos neste domínio, sobretudo a uma escala tão vasta como a Comunidade Europeia; por outro, muitas espécies de invertebrados inserem-se em meios naturais específicos, cuja protecção se repercute nas espécies que neles vivem. 124 Quanto às espécies com estatuto especial (Anexo V), a directiva prevê que possam ser aplicadas, se for caso disso, medidas de gestão e de controlo das populações relativamente a determinadas montanhas, as espécies que sejam objecto de colheita ou captura ou de exploração. Pode citar-se, como exemplo, o coral vermelho, o salmão ou a arnica. Após um período de preparação e discussão pública iniciado em 1988, a Directiva Habitats foi adoptada pelo Conselho da União Europeia em 21 de Maio de 1992. Propõe-se conservar nas 6 Regiões Biogeográficas em que foi dividido o território da União Europeia. De acordo com o seu Art.º 4.º, todos os Estados-membros deveriam transpor para o seu direito interno e enviar à comissão da União Europeia a sua Lista Nacional de Sítios até 5 de Junho de 1994. Em Julho de 1995, ficou disponível um esboço de Proposta de Lista Nacional de Sítios e, em Maio de 1996, concretizou-se a proposta para ser submetida a um processo de discussão pública. No âmbito da primeira Directiva (Aves), Portugal, em 1988, designou um conjunto de ZPE, que se destinam essencialmente a garantir a conservação dos habitats das espécies de aves listadas no seu anexo I e que se encontram distribuídas da seguinte forma: dezoito no Continente, três na Região Autónoma da Madeira e quinze na Região Autónoma dos Açores. Contudo, este processo só foi completado em 1996, através de uma proposta para a designação de novas ZPE, no total de onze, e para o alargamento de duas das já existentes, em ambos os casos para o território do Continente. 125 Tabela 2: Situação das Directivas Aves e Habitats. Informação oficial dos Estados-membros (1996) Estado Membro Directiva Aves Directiva Habitats N.º de ZPE Área Total Km² Evolução Lista Nacional N.º de Sítios Mapa dos Sítios - Área Total (km 2) - Bélgica 36 4 313 A 0 Dinamarca 111 9 601 A C 175 9 000 D Alemanha 494 8 537 A 0 - - - Grécia 26 1 916 B 0 - - - Espanha 149 25 338 A 0 - - - França 99 7 069 B 0 - - - Irlanda 75 1 579 A 0 - - - Itália 80 3 164 B C 900 ? - Luxemburgo 6 14 B 0 - - - Holanda 11 3 276 A 0 - - - Áustria N. Disp. N. Disp. B C 94 3 620 D Portugal 36 3 323 A C 30 414 D Finlândia 15 N. Disp. B C 370 24 726 D Suécia 75 1 460 B C 563 40 498 D Reino Unido 126 4 396 A C 211 7 429 D - Fonte: Extraído de Natura, DGXI Nature Newsletter, Maio de 1996. Legenda: “ “ “ “ A: Classificação completa B: Indefinida C: Lista Nacional completa D: Disponíveis mapas e formulários completos e computorizados N. Disp.: não acessível 5.3. Complexidade do sistema Competia a cada Estado-membro, antes do estabelecimento das ZEC, a elaboração de uma Lista Nacional de Sítios, com base em critérios de selecção especificados pela própria Directiva no seu anexo III (1ª fase). A grande dificuldade desta tarefa, nomeadamente a generalizada falta de conhecimento científico imprescindível à inventariação e caracterização dos valores naturais constantes da Directiva, fez com que fosse ultrapassado o prazo previsto (Junho de 1995) sem que os Estados-membros cumprissem tal obrigação. A partir das Listas Nacionais foram seleccionados os sítios de Importância Comunitária (SIC), através de um processo de análise e discussão bilateral entre a Comissão e os Estados-membros. Esta selecção (critérios do anexo III, 2ª fase) de acordo com a Directiva deveria estar concluída em Junho de 1998, e será feita por 126 Região Biogeográfica, encontrando-se Portugal incluído em três das seis estabelecidas para a totalidade da União Europeia: Região da Macaronésia (Arquipélago dos Açores e da Madeira) e Regiões Atlântica e Mediterrânica (território do Continente). Relativamente ao Continente, o ICN assumiu a responsabilidade de apresentação de uma lista de sítios. Consequentemente, após várias versões intermédias, foi submetida a um processo de discussão pública a “Proposta Preliminar de Lista Nacional de Sítios – Continente”. Efectivamente e depois de uma primeira apresentação desta proposta técnica de Lista que decorreu no ICN, em 4 de Junho de 1996, deu-se início a um processo de ampla discussão pública numa sessão realizada em 12 de Junho do mesmo ano. Neste âmbito, desenvolveram-se por todo o país cerca de sessenta sessões públicas de debate e reuniões técnicas de trabalho, que contaram com a participação de Comissões de Coordenação Regionais, Delegações do Ministério do Ambiente, Institutos e Autarquias Locais, etc. Entretanto, foram recebidas e analisadas no ICN mais de duzentas e cinquenta comunicações escritas; abordada a gestão futura dos sítios, nas suas óbvias implicações com o desenvolvimento socio-económico regional e local; apresentadas sugestões para acerto de limites e constituição de novos sítios. Por decisão do Governo, a aprovação da Lista Nacional (Continente) desenvolveu-se por fases. A Lista de Sítios correspondente à primeira fase, aprovada em Conselho de Ministros no dia 5 de Junho de 1997, era composta por um conjunto de 31 sítios considerados imprescindíveis para a conservação do habitat de espécies da flora e da fauna selvagens, com estatuto particularmente desfavorável a nível nacional. Relativamente aos sítios especialmente importantes para a conservação dos habitats naturais do anexo I identificados para Portugal, aguardou-se por informação proveniente do projecto Habitats Naturais em curso, para se proceder a uma selecção mais fundamentada 172. Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 142/ 97, de 28 de Agosto, e após a transposição para a ordem jurídica interna da Directiva Habitats – conforme previsto no Art.º 3.º do D.L. n.º 226/97, de 27 de Agosto, revogado pelo D.L. nº 140/99, de 24 de Abril – encontra-se, enfim, definido o estatuto dos sítios. Relativamente à gestão dos 172 De uma segunda fase farão parte igualmente alguns sítios previamente seleccionados, mas relativamente aos quais subsistem ainda dúvidas quanto à sua delimitação, como Áreas Protegidas e Sítios constantes no documento técnico já referido, além de outros propostos ao ICN durante o período de discussão pública. 127 mesmos ficou consignada a articulação com os outros instrumentos de planeamento e ordenamento do território actualmente em vigor; salvaguardou-se a importância de desenvolver uma apropriada avaliação das incidências ambientais; a elaboração de regulamentos específicos para a gestão destes espaços envolvia as autarquias, as associações de defesa do ambiente e de produtores florestais e agrícolas 173. Equacionar a gestão dos sítios constituiu um grande desafio para o ICN, por se tratar de uma matéria multidisciplinar, devendo o modelo a implementar ter em conta as exigências económicas, sociais, culturais, bem como as particularidades regionais e locais. Por outro lado, a comunidade científica soube responder ao desafio e uniu-se em torno do objectivo comum de obtenção dos conhecimentos indispensáveis à implementação da Directiva Habitats e o enorme ganho do conhecimento sobre o nosso património natural 174. Assim, só a 4 de Julho de 1996, com a presença do Presidente da República, teve lugar a sessão de apresentação do documento técnico “Proposta Lista Nacional de Sítios”. Posteriormente, deu-se início ao processo da sua discussão, ao longo de quase um ano (entre Maio de 1996 e Fevereiro de 1997), por todo o país, decorreu cerca de seis dezenas de encontros, reuniões e debates promovidos com o objectivo de analisar esse documento. A discussão pública da Lista Nacional de Sítios teve lugar em 16 de Julho de 1996, na cidade de Lisboa, contou com a presença de Bruno Julien, em representação da Comissão Europeia (DGXI) 175 . Relativamente a todos os pareceres recebidos pelo ICN (194), foi feita uma análise detalhada dos mesmos, com o apoio de equipas universitárias envolvidas no processo. Tal discussão pública dizia respeito essencialmente aos limites dos sítios propostos e respectivo conteúdo em termos de Património Natural presentes, Habitats Naturais e Espécies da Flora constantes na Directiva Habitats (Anexos I e II). 173 De qualquer modo, na Lista já aprovada (1ª fase), encontram-se representados habitats referentes a 88% das espécies da Flora identificados para Portugal, 89% para espécies da Fauna e 90% para o caso dos habitats naturais (anexo I). No entanto, a representatividade nalguns situações foi considerada insuficiente. Óscar Knoblich, Curso «Compromisso da Política Comunitária do Ambiente após o Tratado de Amesterdão», INA, 18 a 20 de Outubro de 1999, Oeiras. 174 Maria João Cabral, «Implementação da Directiva em Portugal», ICN, Junho de 1997. 175 Neste âmbito realizaram-se 39 sessões de apresentação e debate, assim como reuniões de trabalho, que contaram nomeadamente com a presença de Organismos Oficiais (Institutos, Direcções-Gerais, DirecçõesRegionais), Instituições Científicas, Autarquias, Associações Industriais, Associações de Agricultores e Produtores Florestais, Associações de Defesa do Ambiente, Órgãos de Comunicação Social. 128 As respostas dos 108 municípios diziam respeito particularmente a alteração de limites (25%), tanto para alargamento dos mesmos (por ex. Município de Beja, Ribeira de Cobres e Terges), como para diminuição, na qual se requereu, sobretudo, a exclusão de perímetros urbanos e zonas industriais. Cerca de 4% dos municípios propuseram a retirada da lista de determinados sítios, como por exemplo Rio Vouga (Sever do Vouga, Oliveira de Frades). Aproximadamente 8% dos municípios enviaram informações adicionais acerca da presença de Habitats Naturais e ou de Espécies da Fauna e da Flora. Quanto à gestão futura dos sítios, 27 % dos municípios defenderam: que as autarquias acompanhassem os planos de gestão ou regulamentos que vieram a ser elaborados; implicações com o desenvolvimento socio-económico regional; fontes de financiamento e medidas compensatórias preconizadas; articulação com o estipulado nos Planos de Desenvolvimento Municipal (PDM) e outros Planos de Ordenamento do Território (POT); indispensabilidade de atender a compromissos já estabelecidos; estatuto a atribuir a sítios e importância de se proceder ao seu zonamento; necessidade de esclarecer sobre as medidas de gestão/acções de carácter geral apresentadas no documento em discussão; novas propostas de medidas de gestão; futuros dos sítios que não forem designados como ZEC (não incorporados na Rede Natura 2000). Cerca de 35% dos municípios solicitaram: informações gerais ao ICN sobre a Directiva Habitats e respectivo processo de implementação em curso; cartografia detalhada sobre os sítios; conhecimento do diploma de transposição da mesma directiva; pedidos de consulta dos relatórios científicos produzidos para o efeito; informação dos critérios utilizados para afinação dos sítios; pedidos de agendamento de reuniões com o ICN para análise das propostas apresentadas. Outras entidades se pronunciaram, nomeadamente, Associações de Agricultores, Industriais, Produtores Florestais, referindo-se essencialmente às consequências socioeconómicas (financiamento, compensações resultantes da criação desta Rede de Sítios 176 . Essas sessões públicas contaram sempre com a presença de dirigentes e ou técnicos do Ministério do Ambiente e do ICN, na sua dupla qualidade de interlocutores e de receptores de contributos. Esta postura, inédita, promoveu o espírito de participação 176 Sobre esta matéria não foi possível sabermos exactamente qual a proporção de agricultores que se opuseram a esta política. No entanto, os testemunhos locais recolhidos no Parque Natural do Guadiana demonstram inequivocamente a revolta contra a cartografia detalhada dos sítios e os prejuízos daí resultantes, tais como a proibição das actividades ancestrais (uso secular do solo, práticas tradicionais de agricultura e pastoreio). 129 que se considerou e pretendia desejável, em função da importância, do alcance e dos reflexos que este projecto irá ter para o futuro da conservação da Natureza em Portugal. Na sua totalidade, foram abrangidos pela “Proposta” 212 municípios. Destes, mais de metade (110) enviaram os seus pareceres 177 . A composição da primeira fase da Lista Nacional de Sítios abrangia 31 dos 69 sítios inicialmente propostos (acrescentando a estes mais 22 sítios, em análise). Os critérios que estiveram subjacentes à sua selecção assentaram no conhecimento técnico-científico, como garante da ocorrência e da importância do sítio para espécies da fauna e flora com estatuto de conservação mais crítico; em função da existência de um conhecimento mais aprofundado sobre os seus valores naturais do sítio e respectivas ameaças (e que o podem identificar como fundamental para a conservação das espécies e habitats mais ameaçados); na presença de habitats que representam de forma significativa a diversidade de duas regiões biográficas que ocorrem em Portugal continental. Em finais de 2000, a Região do Alentejo reunia 118 267 has de sítios, nos quais se incluiu a Costa Sudoeste, com a área terrestre de 106 440 has e também a área marítima de 11 827 has; Guadiana-Juromenha (2 501 has); Comporta-Galé (32 051 has); Guadiana – Mértola, Serpa (39 257 has). Relativamente ao Parque Natural do Guadiana, com a dimensão de 69 600 has, foi proposto uma área de 39 257 has. Após a sua publicação em Diário da República, o projecto que deu corpo à transposição da Directiva Habitats para o direito interno, foi analisado pela Comissão para a verificação da sua compatibilidade com o texto comunitário. Diante de um cenário de enorme compromisso de conservação de espaços comunitários, a grande questão coloca-se em termos de aproveitamento e uso múltiplo dos solos em Portugal e da sua implicação nas relações sociais entre caçadores e conservacionistas. Anteriormente a 1997, o Barómetro Natura indicava que Portugal dispunha no seu território nacional de apenas 41 400 has de área protegida, correspondendo a uma percentagem de 0,5% da área terrestre, a que acrescia a área marítima. Após a aprovação da Lista Nacional de Sítios portuguesa a área total aumentou para 1 180 970 has, ou seja, cerca de 12,3 % do país. 177 No tocante aos sítios propostos, 3,5 % dos municípios manifestaram o seu desacordo quanto à sua existência. Em contrapartida, 16,5% propuseram novos sítios; 18% manifestaram contra os limites dos sítios propostos; 76% propuseram o seu alargamento. Cerca de uma centena de outras entidades (governamentais e não governamentais) assumiram por escrito o seu posicionamento relativamente aos documentos em análise; 12% dos pareceres propunham a inclusão de novos sítios e 2% propunham a retirada de alguns sítios; 9% dos pareceres manifestaram-se contra os limites propostos e 5% propunham o seu alargamento. Em simultâneo, processou-se a transposição para o direito nacional do texto da Directiva 92/43/CEE. 130 Tabela 3: Situação do Barómetro Natura após a aprovação da Lista Nacional de Sítios em Portugal País N.º de Sítios Área Total (has) % do País Novos Sítios Alemanha 9 128 0 + 80 Áustria 97 36 200 4 - Bélgica 102 90 300 3 - Dinamarca 175 1 100 000 25 + 30 Espanha 122 307 800 0,4 + 37 Finlândia 415 2 559 900 7,6 + 600 França 0 0 - - Grã-Bretanha 255 1 332 200 5,4 + 35 Grécia 245 2 659 000 17,0 - Holanda 27 282 000 6,7 +27 Irlanda 0 0 - 0 Itália 2 800 3 325 000 12 - Luxemburgo 0 0 - +12 Portugal 61 1 180 970 12,3 - Suécia 1 047 4 373 600 9,7 - Fonte: World Conservation Monitoring Centre, Junho, 1994. Comparativamente à ordenação dos Estados-membros da União Europeia por percentagem do seu território afecto a áreas protegidas, Portugal ocupava o 12.º lugar com 6,5%, em Maio de 1994 178 . No entanto, no respeitante à ordem dos Estados- membros da União Europeia por percentagem do seu território na Lista Nacional de Sítios, como se viu, Portugal ocupava, na mesma data, o segundo lugar, com 12,3 %, apenas secundado pela Grécia com 17,0%, enquanto a vizinha Espanha ocupava escassos 0,4%. As fundamentações do ICN, para uma tão larga percentagem de território classificado, foram simples e objectivas: Portugal, apesar da sua extensão reduzida relativamente ao restante território da União Europeia, apresenta uma grande diversidade de habitats e encontra-se incluído em três Regiões Biogeográficas 178 O primeiro lugar era ocupado pela Dinamarca (32,20%), seguida da Alemanha (25,76%); Áustria (24,82%). Curiosamente a Espanha, com maior espaço territorial que Portugal, ocupava o oitavo lugar com 8,41%. Word Conservation Monitoring Centre, Junho de 1994. 131 6. Administração venatória A caça durante o século XX esteve dependente de vários Ministérios 179 . Em 1974, dependia do Ministério da Economia, com a competência delegada na Secretaria de Estado da Agricultura até 15 de Março de 1974, quando foi criado o Ministério da Agricultura e Comércio. As competências em matéria de administração venatória passaram sucessivamente pela Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas (1919 a 1975); Direcção-Geral dos Recursos Florestais (1975-1977); Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal (1977-1982); Direcção-Geral das Florestas (1982-1993); Instituto Florestal (1993-1996); Direcção-Geral das Florestas (1996-2000), instituições que garantiram sucessivamente a execução das políticas públicas da cinegética. Consumada a Revolução de Abril, durante o I Governo Provisório, sob o mandato presidencial do General António de Spínola, a agricultura perde a sua função ministerial e passou a simples secretaria de estado, sob a tutela do Ministério da Economia, cujo titular, Alfredo Gonzalez Esteves Belo, assumiu a pasta (27-05-1974 a 17-07-1974), lugar que mantêm no II Governo Provisório (30-09-1974) e no III Governo Provisório (2603-1975), sob o mandato presidencial do General Costa Gomes e a chefia do Brigadeiro Vasco Gonçalves. Durante o IV Governo Provisório, em 26-03-1975, sob a mesma chefia, é finalmente criado o Ministério da Agricultura e Pescas, assumindo a pasta, o Eng.º Fernando Oliveira Batista. Foi então transferida a tutela da caça para a Secretaria de Estado do Fomento Agrário, sob a chefia do Eng.º Henrique Lopes Moreira de Seabra, cargo que ocupou em 12-09-1975, até à queda do 5.º Governo Provisório 180. À medida que avançamos no tempo, os organismos oficiais ligados à conservação da natureza, passam a ser juridicamente responsáveis pela administração da caça nas Áreas Protegidas. Então, com alguma naturalidade, surgiram vozes discordantes contra a administração de tais órgãos estatuais, uma vez que a maioria dos caçadores e proprietários de terras entendia que tal atitude interferia com questões desde longa data enraizadas na sociedade portuguesa e de difícil contorno. 179 Veja-se em Anexos, «Historial dos Serviços Florestais – organismos e dirigentes», nos quais se referem as diversas portarias sobre a tutela da Caça em Portugal no século XX. 180 Para mais informação sobre os diversos mandatos governamentais e respectivos titulares veja Vol II, Apêndices e anexos, pp.12-16. Veja-se ainda Alberto Laplaine Guimarãis et alli, Os Presidentes e os Governos da República no século XX, Lisboa, Ed. da Caixa Geral de Depósitos, 2000. 132 No período em estudo, podemos afirmar com alguma margem de segurança que excepcionando a intervenção de Faústo Reis, Director do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, João Bugalho, na qualidade de Director dos Serviços de Caça e Francisco Lopes 181 , que administrou de forma singular os destinos da caça no Alentejo (1975- 2000), os Serviços Florestais nunca tiveram uma filosofia, um plano, uma estratégia determinada para a venatória portuguesa. Pelo contrário, indefinidamente se limitaram a reparar situações criadas pelos acontecimentos; arrecadaram os dinheiros pagos pelos caçadores, mas raro se esforçaram por seguir directivas e planos estudados para que não se chegasse próximo da desertificação, aliás facilmente previsível. 6.1. Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza Com a Lei n.º 9/70, de 19 de Junho, introduziram-se na nossa ordem jurídica as noções de parque nacional e reserva e iniciou-se o acompanhamento da evolução internacional de protecção da Natureza, através da classificação das áreas mais representativas do património natural. Ao abrigo dessa lei criou-se o Parque Nacional da Peneda – Gerês e várias reservas. O ponto de vista de protecção da Natureza veio, entretanto, a beneficiar de um apreciável alargamento com o surgir do D.L. n.º 613/76, de 27 de Julho, pois àquele se juntou então, como factor de influência na classificação das áreas a proteger, o seu valor estético e cultural. Com a publicação da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril – Lei de Bases do Ambiente –, a par da manutenção das áreas protegidas de âmbito nacional, consagram-se no nosso sistema jurídico os conceitos de área protegida de âmbito regional e local, consoante os interesses que procuram salvaguardar, o que releva na iniciativa da classificação, regulamentação e gestão das mesmas. Com efeito, a gestão daquelas áreas passa a ser cometida às autarquias locais ou às associações de municípios. Prevê-se a possibilidade de, a requerimento dos próprios proprietários interessados, serem criadas áreas protegidas do estatuto privado, que se convencionou designar “sítio de interesse biológico”, com o objectivo de proteger 181 Foi Delegado da Administração Florestal do Alentejo, Chefe da Circunscrição Florestal do Alentejo e Subdirector da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo. 133 espécies da fauna e da flora selvagem e respectivos habitats naturais com interesse ecológico e científico. O D.L. n.º 19/93, de 23 de Janeiro, transferiu a gestão das áreas protegidas de interesse nacional para o SNPRCN que passou a ter um papel de relevo no território nacional. Anteriormente, a gestão dos parques e reservas florestais esteve sob a tutela da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, criada pelo D.L. n.º 221/77, de 28 de Maio, de acordo com o previsto no Art.º 35.º, alínea l). Na sequência desta dinâmica, em 18 de Novembro de 1995, foi criado o Parque Natural do Vale do Guadiana 182 , atendendo ao seu elevado interesse faunístico, florístico, geomorfológico, paisagístico e histórico-cultural. Estes factores, conjugados com a circunstância de a identidade da paisagem desta zona se encontrar ameaçada pelo progressivo desaparecimento dos sistemas tradicionais de utilização do solo, justificaram a sua classificação, de forma a salvaguardar os valores naturais, paisagísticos e culturais aí existentes e, simultaneamente, promover o desenvolvimento sustentado da região e a qualidade de vida das populações. Com a publicação da Lei n.º 30/86, assistiu-se a uma profunda alteração no âmbito dos conceitos e modalidades da caça. Primeiro, porque ela permitiu, através de várias formas de associativismo, que proprietários privados pudessem chamar a si a gestão deste recurso. Em segundo, porque a caça passou a ser considerada como fonte de riqueza a nível Nacional e portanto objecto de comercialização. Numa primeira fase, a actividade cinegética sofreu algumas limitações, designadamente nas zonas de caça do RCE, as quais aumentaram substancialmente após a publicação do D.L. n.º. 227-B/2000, de 15 de Setembro, que regulamentou a nova Lei da Caça n.º 173/99, de 21 de Setembro 183. De notar que esta modificação se verificou precisamente numa altura em que em Portugal se assistia a um vazio cinegético (diminuição drástica de algumas espécies e quase desaparecimento de outras), consequência directa de vários anos em que apenas vigorou o regime de caça livre. Também a manutenção dos habitats e a conservação das próprias espécies não era contemplada. Por essa razão, o SNPRCN procurou desenvolver e aperfeiçoar métodos e técnicas que, através de um rápido aumento dos efectivos populacionais, permitissem a sua máxima rentabilização. 182 Decreto Regulamentar n.º 28/95, de 18 de Novembro. Embora as restrições à actividade cinegética tenham sido avolumadas, por vezes, com graves interdições, o nosso estudo abrange apenas o período até ao final do ano 2000. 183 134 A exploração múltipla da caça, agricultura e turismo ou mesmo dos métodos mais eficazes para a sua maximização, exigia uma vertente que, pelo menos, na prática, tinha sido sucessivamente negligenciada: a caça e a conservação da Natureza. Sendo a caça um recurso natural renovável, a sua gestão pressupõe uma metodologia própria, que assegure a preservação das espécies e mantenha a diversidade genética: é fundamental atender a um conjunto de regras no seu fomento e gestão, de tal forma que a sua rentabilização não seja contrária aos princípios que regem a Conservação da Natureza. Esta preocupação passou a estar subjacente, além de todo o país, principalmente no Sistema Nacional de Áreas Protegidas, cujos princípios foram aplicados com rigor, dada a sua responsabilidade acrescida no controle da forma como a actividade cinegética é exercida, uma vez que constituem laboratórios vivos e o repositório do nosso Património Natural, onde se pretende manter os ecossistemas em equilíbrio, por nelas existirem os habitats naturais ou espécies raras, ameaçadas ou endémicas (animais e vegetais), muitas das quais já desaparecidas ou em rarefacção. Naturalmente, sendo a “caça um juro de um capital produtor”, o acto venatório devia incidir sobre os excessos da produção anual, ou seja, o juro gerado pelas populações cinegéticas; o controle de predadores reveste-se de um carácter excepcional, onde a relação predador-presa, em condições instintivas, é um fenómeno natural que se deve manter, e se alcança “através do fomento das espécies”. A caça então podia ser equacionada e não subtraída à acção dos seus predadores naturais” 184. Segundo o ICN, as populações cinegéticas devem estar em equilíbrio com o meio, opondo-se ao princípio da maximização da caça no interior do Serviço Nacional de Áreas Protegidas, evitando excessos nas densidades preconizadas para as populações cinegéticas, o que era conseguido normalmente através de uma artificialização do meio, sempre indesejável; igualmente a defesa das espécies ameaçadas cuja protecção somos obrigados a respeitar, constantes dos anexos das várias Convenções Internacionais ratificadas por Portugal, o que significa que as acções de predadores deviam ser levadas a cabo de forma selectiva, de tal modo que não seja posta em causa a sobrevivência de espécies ameaçadas, como o lince, o gato-bravo, doninha, fuinha, marta, corvo, gralha-preta de nuca cinzenta, aves de rapina, entre outras. 184 Orientações do ICN, Junho 1999. 135 Do mesmo modo devia constituir preocupação da conservação do habitat, as espécies ameaçadas (fauna e flora), pelo que as acções de melhoramento do meio para as espécies teriam que ser criteriosamente programadas; os métodos habituais de caça deviam ajustar-se ou ser substituídos, de acordo com as características do meio e espécies em presença 185. A área submetida ao RCG devia ser restringida ao mínimo possível, uma vez que aí se tornava difícil efectuar um correcto ordenamento cinegético que se harmonize com os princípios conservacionistas subjacentes à criação da Áreas Protegidas (Art.º 56 n.º 2, do D.L. n.º 274-A/88). A caça como recurso natural renovável e susceptível de exploração económica devia ser preferencialmente gerida dentro do RCE (Art.º 57, n.º 2 do citado decreto). Quando nas áreas em questão existiam espécies animais ameaçadas, a que se prendem problemas particulares de conservação, devia optar-se pela criação de ZCN ou ZCS, as quais permitiam directa intervenção do Estado. A partir daquela data passou a estar sujeita à aprovação do SNPRCN a concessão, renovação e extinção de zonas de caça especiais e de reservas de caça; a aprovação dos planos de ordenamento e exploração cinegética. Por outro lado, os concessionários de área de RCE situadas em terrenos dentro das áreas protegidas estavam obrigados a participar ao SNPRCN os resultados do plano de exploração nos mesmos termos em que o faziam para a DGF, de acordo com Art.º 72.º do citado diploma; a fiscalização era feita em conjunto com as demais entidades, através das brigadas compostas por guardas e ou vigilantes da Natureza e guardas-florestais; proibição de introdução de espécies animais não indígenas pelas implicações gravosas que geralmente acarretam aos ecossistemas em questão, criando situações de desequilíbrio, a evitar a todo o custo (Art.º 88.º, 3.º do citado diploma); as operações de introdução ou reintrodução e repovoamentos previstos deviam ser 185 Por exemplo, as montarias poderiam não ser aconselhadas, pela perturbação que inevitavelmente exercem; a introdução de espécies exóticas é contrária aos objectivos a desenvolver nas Áreas Protegidas, pelas situações de desequilíbrio consequentes; não era admissível, a prazo, o regime de caça livre nessas áreas por constituir exploração desordenada de um ecossistema, não existindo também um interlocutor que permitisse ao SNPRCN, acompanhar a prática venatória; apesar deste condicionalismo a caça devia representar nestas áreas, como aliás no resto do País, uma alternativa viável para zonas de economia debilitada; será de facto uma saída desejável para zonas onde as condições do meio não permitam, por exemplo, uma exploração agrícola ou pecuária rentáveis. A caça se exercida com regras cautelares, através de um ordenamento e gestão adequados, é perfeitamente compatível com a Conservação da Natureza. Normas orientadoras do SNPRCN, Março de 1991. 136 criteriosamente analisados, nomeadamente nos aspectos de proveniência, estado sanitário e inter-relação com a fauna e flora locais. Em 9 de Agosto de 1989, o Presidente do SNPRCN determinou que todas as normas orientadoras sobre a conservação da Natureza deviam ser abertas e flexíveis, mas a introdução de espécies exóticas não devia ser tomada como dogma, antes ponderada caso a caso, à luz da legislação nacional e internacional aplicável 186. O controle de predadores passou a ser alvo de atenção especial, de acordo com o previsto na Lei e Regulamento da caça, Convenções e Directivas Internacionais assinadas e ratificadas por Portugal: só podiam ser abatidas as espécies venatórias mencionadas no Regulamento da Lei da Caça, estando as restantes protegidas; proibiase o seu abate e ou captura, exceptuando-se casos pontuais para os quais houvesse derrogações, fora o caso do lobo, cuja Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto, interdita “o seu abate ou captura em todo o território nacional, em qualquer época do ano”, salvo no caso previsto no n.º 2, do Art.º 2.º, da mesma Lei. Relativamente às espécies referidas no Regulamento da Lei da Caça, chama-se a atenção para algumas, cuja caça ou abate não estava autorizada187 e cujos efeitos nocivos junto dos culturas agrícolas (melão, girassol, grão, etc.) e até de frutos pendentes (azeitona) provocou contestação dos proprietários afectados. A imensidão de pedidos que caíam nos Serviços Florestais comprova, por um lado, a divergência dos lesados face ao proteccionismo; por outro lado, denuncia o radicalismo dos ambientalistas, porque na maioria das vezes, o SNPRCN (posteriormente, o ICN) não autorizava o abate das espécies prejudiciais à agricultura. 186 Despacho exarado na Informação n.º 712/89 da Divisão da Conservação da Natureza, Lisboa, SNPRCN, 3006-1989. 187 O sisão encontra-se no anexo II da Convenção de Berna e anexo I da Directiva 79/409/CEE (Directiva Aves). A derrogação foi comunicado por Portugal, sendo os pedidos para abate analisados, caso a caso; para os abelharucos (anexo II da Convenção de Berna e anexo I da Directiva Aves), Portugal não apresentou derrogação, pelo que até ao ano de 2000 não foi autorizado nenhum abate; embora os corvídeos (gaio, pega-rabuda, gralhade-nuca-cinzenta, gralha-preta e corvo), o estorninho-malhado e o estorninho constam como espécies cinegéticas no D.L. n.º 274-A/88, de 3 de Agosto a sua caça é interdita pela Directiva Aves. Tal situação deveu-se a uma interpretação incorrecta do estipulado naquela Directiva, cuja aplicação é obrigatória em todo o espaço Comunitário. Assim, nos termos desta Directiva, o controlo das populações daquelas espécies que, eventualmente, venham a revelar-se necessário teria de ser efectuado caso a caso, mediante acções de “correcção de densidade” que implicavam a autorização prévia do Ministério do Ambiente. 137 6.2. Instituto da Conservação da Natureza O ICN foi criado pelo D.L. n.º 193/93, de 24 de Maio, sob a tutela do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais 188 , assumindo a partir daí a responsabilidade pelas actividades nacionais nos domínios da conservação da natureza e da gestão das áreas protegidas. As atribuições que lhe foram conferidas no domínio da conservação da natureza, compreendia, entre outras, propor a criação das áreas protegidas e assegurar a sua implementação e gestão, através da rede nacional; ser autoridade administrativa e científica da CITES 189 . Neste domínio, competia ao ICN propor as espécies consideradas de interesse comunitário, os sítios de importância comunitária e as zonas de protecção especial que seriam integradas na rede ecológica europeia (Rede Natura 2000); propor as medidas de protecção que asseguravam a manutenção dos habitats e ecossistemas, bem como para a recuperação dos que se encontrem degradados; colaborar com as entidades competentes na gestão e ordenamento das espécies da fauna selvagem consideradas cinegéticas e piscícolas de modo a serem respeitados os princípios da conservação da natureza 190. O D.L. n.º 120/2000, de 4 de Julho, criou o Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território (MAOT), como departamento do Governo que definia e coordenava a execução da política do ambiente e do ordenamento do território. Manteve-se o ICN, como entidade autónoma, mas funcionando sob tutela e superintendência do respectivo ministro, com as funções idênticas à sua criação. Em 1991, durante um encontro de técnicos das Áreas Protegidas realizado em Manteigas, concluiu-se que era indispensável a inventariação do património natural, possibilitando-se assim uma gestão adequada dos recursos que garantisse a sua conservação e valorização. Também constituía preocupação os prejuízos causados 188 O activo, o passivo, os direitos e as obrigações, incluindo posições contratuais, de que era titular o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza (SNPRCN) foram automaticamente transferidos para o ICN, sem dependência de quaisquer formalidades. 189 «Atribuições», Art.º 2.º do citado diploma. 190 Idem. O Programa Life é um instrumento financeiro que foi adoptado em 1992 pela União Europeia, e revisto em 1996. No domínio da Conservação da Natureza, procura manter e recuperar os habitats naturais e espécies selvagens da fauna e da flora num ambiente favorável. Este programa contribui para a implementação das Directivas Aves e Habitats e, de um modo particular, para o desenvolvimento da Rede Natura 2000, a qual visa a gestão e a conservação in situ de espécies faunísticas e florísticas e dos habitats mais importantes na União Europeia. O Programa LIFE-Natureza comparticipa com 50 % do financiamento global do Projecto Saramugo. http://europa. eu.int/ comm/ life/ nature/index.htm 138 pelos lobos nas Áreas Protegidas, junto das populações e a indicação dos procedimentos a adoptar para apresentação das reclamações. Deveriam até ser tomadas medidas adequadas para um efectivo controlo dos cães assilvestrados; controle de comércio de venenos, em especial estricnina e insecticidas proibidos, e a intervenção das autoridades competentes; estudar-se a possibilidade de segurar os rebanhos contra os prejuízos causados pelo lobo, com o eventual apelo à lei do mecenato 191 ; exigia-se pagamento dos prejuízos em atraso, estabelecendo-se critérios de prioridades para esse fim. Em 1994, o plano estratégico global para o período 1994-1999 promovido pela Secretaria de Estado do Ambiente e do Consumidor e ICN previa que a actividade cinegética incidisse sobre os excessos da produção das várias espécies cinegéticas, substituindo-se o homem aos predadores naturais. Segundo o plano, este princípio mostrava-se contrário a uma maximização de caça que se obtinha, sobretudo, à custa de outras espécies (animais ou vegetais), o que contrariava os objectivos de conservação da Natureza. Lamentavelmente, esta maximização era levada a cabo por muitas explorações em Portugal 192. Conquanto aceitassem algumas acções de melhoramento do meio que beneficiassem o aumento de densidade a exploração de certas espécies à custa da eliminação de outras, nomeadamente com o chamado “controlo de predadores”, tão frequente naquele período. Ao pretender-se a manutenção dos equilíbrios ecológicos de uma forma natural, regulados por diferentes interacções onde a relação predador-presa é um fenómeno igualmente natural, a eliminação de certas espécies supostamente consideradas nocivas à caça pode ser encarada como um dos mais sérios e actuais problemas de conservação da Natureza. Nesse sentido, as acções de controlo deviam revestir-se de um carácter de absoluta excepcionalidade 193. Como corolário, não devemos esquecer que a caça deve ser exercida tendo subjacente um conhecimento real dos valores naturais existentes na área em questão, nomeadamente quando se estiver em presença de espécies raras, endémicas ou ameaçadas, da flora ou da fauna, ou perante habitats naturais importantes ou de espécies ameaçadas. Os planos de ordenamento e exploração cinegéticos deveriam ser 191 «I Encontro sobre Conservação da Natureza», Manteigas, 21 e 22 de Fevereiro de 1991. AICN. «Plano Estratégico Global para o Período 1994-1999», Secretaria de Estado do Ambiente e do Consumidor, ICN, Dezembro de 1993. p. 109. 193 Idem p. 110. 192 139 elaborados tendo em atenção, obrigatoriamente, o Património Natural existente, ao qual se encontram condicionados o maneio do habitat ou fomento de espécies. Tais princípios, segundo o ICN, deviam ser seguidos e constituir uma preocupação inerente a todas as explorações cinegéticas de Portugal, sendo, contudo, nas Áreas Protegidas, fundamental aplicá-los com o máximo rigor. Nesse sentido, o ICN seguiu uma política bem definida, com regras e princípios a que a caça, como uma das actividades possíveis, devia obedecer. A partir da publicação da Lei n.º 30/86, e do D.L. n.º 311/87, no interior das áreas do sistema nacional de áreas protegidas, as disposições deste regulamento deveriam constar de Portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, Pescas e Alimentação e do Plano e Administração do Território 194 . Estamos, assim, perante uma verdadeira revolução costumeira no tocante à conservação dos recursos bravios. Foi assim que, em 2 de Setembro de 1987, a DGF solicitou ao Serviço Nacional de Parques Reservas e Conservação da Natureza (SNPRCN) que nomeasse dois representantes para a elaboração da Portaria de regulamentação nas áreas protegidas 195 . Em verdade, apesar de sucessivas reuniões entre as partes, não se chegou a qualquer consenso, prova disso a publicação do D.L. n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, não apresenta alterações de substância, em virtude de não serem aceites as propostas do SNPRCN 196 . Posteriormente iniciou-se um ciclo de propostas regulamentadoras, com carácter de especificidade para cada Área Protegida, mas que resvalaram num manancial de imposições, a maioria de carácter dogmático e restritivo. Em Maio de 1989, o Governo criou um grupo de trabalho de caça na Divisão da Conservação da Natureza, do SNPRCN, que coincide com a criação da primeira ZCT (Turicorço) numa Área Protegida. Em 8 de Fevereiro de 1990, é publicado em Diário da República, o D.L. n.º 43/90, que altera em parte o D.L. n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, designadamente altera a lista das espécies cinegéticas, excluindo o lobo, gato-bravo, corvo e gralha-de-nuca cinzenta, e incluindo o muflão. Em 30 de Janeiro de 1991, o D.L. n.º 60/91, que alterou o D.L. n.º 194 Art.º 126.º do citado diploma. Foram nomeados Carlos Magalhães e António Teixeira. Idêntico pedido foi formulado pelo SNPRCN à DGF que indigitou Faústo Reis e José Saramago Carvalho. 196 O Art.º 128.º do citado diploma dizia simplesmente: “Sem prejuízo do disposto no presente pode, por portaria conjunta dos ministros da Agricultura, Pescas e Alimentação e do Planeamento da Administração do Território, ser fixado um regime adequado às especificidades próprias das áreas integradas no Sistema Nacional das Áreas Protegidas”. 195 140 274-A/88, vincula o SNPRCN na importação de exemplares vivos de espécies cinegéticas não indígenas e na correcção de densidades de espécies não cinegéticas. Porém, a grande força dos conservacionistas nasceu após a publicação do D.L. n.º 251/92, o primeiro a ter regulamentação própria para as zonas de caça nas Áreas Protegidas. No Alentejo, as zonas de caça existentes em áreas protegidas iniciaram-se em 1993 no Parque Natural de S. Mamede, Costa Vicentina, Parque Natural do Guadiana e Tejo Internacional. 6.3. Ministério da Agricultura O Decreto-Lei n.º 39/79, de 10 de Julho, que regulamentou a DGOGF, atribuiu à Direcção dos Serviços de Caça, a promoção e coordenação das acções de gestão dos recursos cinegéticos e das explorações cinegéticas e o licenciamento, fiscalização, transporte e comércio da caça, bem como a preparação dos princípios da conservação da fauna 197. Uma das novidades foi a criação das Administrações Florestais, que entre outras funções, asseguravam o fomento e a fiscalização dos recursos cinegéticos 198 . Nesse tempo, a Região Alentejo estava inserida na 8ª Administração Florestal, que incluía os seguintes perímetros florestais: Serra de S. Mamede, dunas da Trafaria e dunas da Costa da Caparica, dunas de Albufeira, Mourão, Herdade das Ferrarias, Barrancos, Herdade da Contenda, Salvada, Cabeça Gorda, coutos de Mértola, Terras da Ordem, Vila do Bispo, Lagos, Tavira, dunas de Vila Real de Santo António 199. Em 1982, durante o mandato de Francisco Pinto Balsemão, o D.L. n.º 293/82, de 27 de Julho, reformulou o Ministério da Agricultura, Comércio e Pescas, nomeadamente “adequou as estruturas orgânicas da Administração Pública aos sistemas das comunidades europeias”, impondo uma política de gestão por “projectos e objectivos” 200 . Vivia-se, então, o prenúncio da Regionalização. Com efeito, o Ministério, como instrumento de apoio aos agentes económicos, ficou incumbido de progressivamente transferir o aparelho técnico administrativo para as regiões, atendendo à rigorosa política de austeridade que a situação económica e financeira do país impunha. 197 Artigos 43.º a 48.º. Idem, artigos 53.º e 54.º, alínea b). 199 Idem, p. 148. 200 Preâmbulo do diploma citado. 198 141 As quase três dezenas de unidades orgânicas centrais foram reduzidas para cerca de metade. Preparava-se assim, o caminho para uma desconcentração e descentralização, em que os serviços regionais constituíam os protagonistas. Com o intuito de gerir os recursos cinegéticos foi criada a Direcção-Geral das Florestas, mas na dependência do Ministro funcionavam as direcções regionais de agricultura, equiparadas para todos os efeitos a direcções-gerais. Em 1986, durante o mandato de Aníbal Cavaco Silva, a nova Lei Orgânica do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação (D.L. n.º 310-A/86, de 23 de Setembro) mantém a Direcção-Geral das Florestas, com as competências específicas de “coordenação da protecção e fomento do património cinegético”, mas cria os serviços regionais de execução das políticas agrária e alimentar, entre elas, a Direcção Regional de Agricultura do Alentejo que passou a administrar a actividade cinegética a nível regional. O Decreto Regulamentar n.º 51/86, de 6 de Outubro, criou a nova Lei Orgânica da Direcção-Geral das Florestas e extinguiu a Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal. O referido diploma destinava-se a regular um organismo centralizado cuja vocação fundamental era a gestão do património florestal das áreas públicas, que apenas representavam cerca de 20% do património florestal nacional, além de dinamizar o aproveitamento de cerca de 2,5 milhões de solos impróprios para a agricultura. Foi criada a Direcção de Serviços de Caça, Apicultura e Pesca nas Águas Interiores, como serviço operativo central 201. A orgânica completava-se a nível regional, com a criação das Circunscrições Florestais, que nas áreas da sua actuação exerciam as políticas e objectivos veiculados pelos serviços centrais. As Administrações Florestais, a nível local, de composição variada, de acordo com as especificidades das suas áreas de actuação e na dependência hierárquica e funcional das primeiras, desenvolviam as suas actividades na gestão dos recursos cinegéticos. O Alentejo, para efeitos da administração, ficou inserido na Circunscrição Florestal de Évora (CFE), com sede nesta cidade, que actuava nas áreas correspondentes aos distritos de Portalegre, Évora, Setúbal, Beja e Faro, e assegurava as acções de fomento, gestão e ordenamento dos recursos cinegéticos, bem como o 201 Igualmente foi criado o Conselho Florestal, como órgão consultivo, entre outros, constituídos por quatro representantes dos sectores (caça, pesca, apicultura e conservação da Natureza). 142 licenciamento e fiscalização das normas decorrentes da legislação da caça e da pesca 202 . Em 1993, alterou-se a dinâmica do Ministério da Agricultura com a entrada em vigor da nova lei orgânica (D.L. n.º 94/93, de 2 de Abril). A DGF deu lugar ao Instituto Florestal (D.L. n.º 100/93, de 2 de Abril), que assumiu a gestão dos recursos naturais renováveis, designadamente cinegéticos, mantêm a Direcção de Serviços de Caça e a nível regional criou as delegações florestais e as zonas florestais, com funções idênticas ao diploma anterior. Na pendência do Governo socialista, sob a chefia de António Guterres, em 1996, a Lei Orgânica do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e Pescas (D.L. n.º 74/96, de 18 de Junho) extinguiu o Instituto Florestal e recriou a DGF, que após a publicação da lei orgânica (D.L. n.º 11/97, de 30 de Abril) passou a coordenar a política de caça a nível nacional. As Circunscrições Florestais foram extintas e as Direcções Regionais de Agricultura administram a política de caça a nível local. 202 Para o exercício das suas atribuições a Circunscrição Florestal dispunha da unidade orgânica da Divisão de Caça, Pesca e outros Recursos Silvestres, que assegurava a preparação dos projectos de ordenamento e exploração cinegéticos, bem como executava os repovoamentos cinegéticos; avaliava os prejuízos causados pela caça; promovia o espírito de associação entre os caçadores e agricultores com vista à produção da caça; assegurava as acções de fiscalização do exercício da caça; zelava pelo cumprimento das respectivas leis e planos de ordenamento e exploração cinegéticos que não estivessem sob intervenção estatal; garantia o licenciamento da caça ou apoio às zonas de caça condicionadas e às associações de caçadores e de produtores de caça. Veja-se Art.º 16.º do Decreto Regulamentar n.º 51/86, de 6 de Outubro. 143 CAPÍTULO III – A REGIÃO DO ALENTEJO NO SÉCULO XX. ECONOMIA, SOCIEDADE E FORMAS DE OCUPAÇÃO DE ESPAÇO. 144 1. Quadro natural Em 1987, o Portugal Continental descrito por Orlando Ribeiro 203 abrangia uma superfície de 88 683,54 km². Exceptuando as zonas urbanizadas e as águas interiores (15%), restava uma área de aproximadamente 75 381,03 para o exercício da actividade venatória. Predominam os cereais, entre os quais, o trigo e o milho, cultivado, por vezes, em condições desfavoráveis, para cobrir as necessidades de consumo, as culturas arbustivas e arbóreas, a predominância do gado miúdo, em relação com os pastos pouco ricos e, nalguns casos, o relevo acidentado. As planícies do Sul apresentam características particulares no contexto do país: prevalece a grande propriedade e a cultura cerealífera de sequeiro, associada a montados e à criação de gado; a população é pouco abundante, agrupada em grandes aldeias e, em geral, desprovida de terras. Esta especificidade regional é antiga, embora se tenha modificado muito a partir dos séculos da Reconquista, quando os reis distribuíram imensos domínios incultos aos grandes senhores e às ordens religiosas. As terras arroteadas organizaram-se pouco a pouco em herdades, à volta dos montes, que iam buscar, quando necessário a mão-de-obra temporária nas aldeias de ganhões e nos foros instalados nas piores terras, ou que recebiam a ajuda dos grupos de migrantes temporários vindos da Beira. Criou-se assim uma sociedade profundamente contrastada, ainda que provida de alguma mobilidade, com um proletariado numeroso e submetido a frequente desemprego. Quando ocorreu a Revolução de Abril de 1974, a situação tinha-se já em parte transformado pelo recente êxodo dos jovens para as cidades, o Algarve e, até, o estrangeiro. Mas a situação política excepcional permitiu que velhas aspirações do proletariado alentejano encontrassem então condições para se exprimir através da ocupação de certo número de herdades. As tentativas de aproveitamento ou de contenção do movimento pelas forças políticas que se digladiavam levaram o Governo a definir uma Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA) e a regulamentar as expropriações efectuadas, criando-se grandes Unidades Colectivas de Produção (UCPs). As transferências de propriedade chegaram a afectar 2/5 da área cultivada da ZIRA, com 1 200 000 has ocupados pelas 203 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas, Lisboa, 5ª Ed. revista e ampliada, Sá da Costa, 1987. 145 UCPs em 1975. A crise que imperava em muitas regiões urbanas fez com que muitos alentejanos voltassem às terras de origem, para receber aí os salários garantidos. Mas este enorme abalo regional teve vida curta. Grande parte das terras, as melhores, foram devolvidas aos antigos proprietários, as UCPs dissolveram-se e o campo alentejano esvaziou-se outra vez, voltando a densidades de população que não ultrapassaram as do começo do século, e com uma população rural fortemente envelhecida. A actual crise de adaptação da agricultura portuguesa às normas da CEE levanta problemas particularmente agudos nas planícies do Sul, por dominarem ali as naturais empresas capitalistas, que não têm o recurso de um curto auto-consumo em período de crise, nem das fontes de rendimento trazidas pelo trabalho exterior de uma parte da família. Muitas das pequenas explorações das outras regiões aguentam-se, melhor ou pior, graças a estes recursos complementares. Os cereais, vinha e oliveira desde cedo ganharam importância no Sul, onde são mais acentuadas as influências mediterrânicas. Data de 1875 a primeira avaliação, muito grosseira, do aproveitamento agrário do território continental, onde releva a grande extensão de incultos que abrangia mais de metade do país 204 . Tais condições impeliram os governantes a arrotear extensas áreas, apoiados numa legislação no final do século XIX, que dificultava a importação de trigo, protegia a produção nacional e condicionou o aumento da área cultivável. Outra faceta desta tendência de extensificação cultural está ligada à redução dos baldios, áreas que constituíam propriedades colectivas dos habitantes de diversos lugares 205. O Alentejo é uma região caracterizada pela uniformidade: peneplanície, levemente ondulada, cuja altitude média ronda os 200 m, apenas com afloramentos montanhosos pouco acentuados. Do ponto de vista geológico, pertence na sua maioria 204 “ A superfície cultivada seria apenas de 2 526 milhares de has (28% do território continental), incluindo neste número a superfície agrícola propriamente dita (1 886 milhares de has, 21%) e a florestal (640 milhares de has, 7 %); havia ainda 2 116 milhares de has de áreas incultas mas produtivas (24%), sem esquecer que, na superfície improdutiva, se contavam 3 961 milhares de has de terrenos considerados cultiváveis (45%). “. Em 1902-1907, a superfície cultivada era avaliada em 5 068 milhares de has (57%) do território continental. A Campanha do Trigo iniciada em 1929 e prolongada pelos anos trinta, como “ battaglia del grano “ veio a alargar ainda mais a área dos cereais. Carlos Alberto Medeiros, Geografia de Portugal. Ambiente Natural e Ocupação Humana. Uma introdução, Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pp. 163-165. 205 Pressupõe-se que tenham atingido cerca de 2 milhões de has, mas a sua partilha e posterior aproveitamento privado remontam à segunda metade do século XVIII (por exemplo, o Decreto de Agosto de 1869). Em muitas regiões procedeu-se à divisão de baldios, ficando em regra conhecidos por sortes, as várias parcelas distribuídas que, apesar da boa intenção de agraciar os mais pobres acabavam por se concentrar nas mãos dos grandes proprietários. Recorde-se que na sequência da Revolução de Abril de 1974, foi decidido devolver os baldios às comunidades rurais (nessa altura, as Juntas de Freguesia recebiam já uma parte do rendimento da exploração florestal, muitas vezes, 1/4). 146 ao maciço antigo Ibérico, com excepção da parte sul da bacia do Tejo e do Sado e os depósitos terciários que cobrem a peneplanície nalguns locais. As potencialidades pedológicas são um dos factores mais importantes nas opções dos empresários agrícolas relativamente às culturas a efectuar na sua exploração, cuja representatividade se revela em cada uma das classes de solos (A, B, C, D e E). Neste domínio, o Alentejo é uma Região agro-silvo-pastorícia em que os solos representam cerca de 14% (classe A e B) da superfície total, variando em ordem decrescente da sua capacidade. Tabela 4: Classificação global dos solos do Alentejo Classe de solos Área (has) Total (%) Capacidade de uso de solo A 109 976 4,18 Utilização agrícola intensiva B 267 682 10,17 Utilização agrícola moderadamente intensiva C 513 567 19,52 Utilização pouco intensiva D 710 975 27,02 Pastos permanentes, exploração da vegetação natural, floresta com poucas restrições (pinheiro, sobreiro, azinheira) E 1 029 489 39,11 Exploração florestal com severas limitações, vegetação natural florestas de protecção, reservas TOTAL 2 631 689 100,00 Fonte: Serviço de Reconhecimento e Ordenamento Agrário (SROA), Lisboa, 1999. Deste modo, predominam os solos das classes D e E (66%) da superfície total, com muitas limitações, e que não se coadunam com a exploração agrícola intensiva, em condições que nos permitam concorrer com os nossos parceiros comunitários. Este tipo de solo deve ser utilizado em explorações florestais associadas à pecuária, mas não para explorações extensivas de grande dimensão, como são os cereais, pois apresenta severas limitações produtivas. O clima apresenta características mediterrâneas e continentais, com Verões quentes e secos (temperaturas médias entre os 21º C e os 25º C) e Invernos suaves (temperaturas entre os 8º C e os 12º C), prolongando-se a estiagem por cerca de sete 147 meses, para uma temperatura média anual de cerca de 16º C. A precipitação é fraca e predomina nos meses de Inverno, variando entre os 400 e os 600 mm 206. A principal restrição do clima à agricultura, sem dúvida, é a falta de precipitação durante o Verão, o que limita a escolha de culturas às variedades de ciclo curto, que atingem a maturidade mais rapidamente, condição que pode influir negativamente na qualidade da produção, além de serem mais exigentes em termos de solo. A IV Região Cinegética, objecto do nosso estudo, engloba o Alentejo e situa-se no Sul de Portugal ocupando uma área geográfica aproximada de 27 003,158 km ²– cerca de um terço da superfície total do país – abrangendo os distritos de Beja, Évora e Portalegre e quatro concelhos do Distrito de Setúbal (Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines). Mais do que uma província dominada por uma grande artéria geográfica, o Alentejo passou a ser um corredor obrigatório para os amantes da venatória. Muitos núcleos da população conheceram focos de actividade cinegética intensa nos campos da sociedade, da economia e da cultura, sem esquecer que desempenhou um papel, já em grande medida estudado, que o viu como condutor de gentes e produtores, recebendo o influxo da vida societária que permitiu animar as terras do interior. Este quadro humano e geográfico, com amplas ligações à história de uma fronteira de contorno singular merece um aprofundamento mais cuidadoso. 206 Francisco Cary, Enquadramento e Perfis do Investimento Agrícola no Continente Português, Lisboa, Banco de Fomento Nacional, Estudos 22, Vol. II, 1985. 148 2. A Política Agrária do Estado Novo Entre as formas de colonização interna existentes em Portugal, nos fins do século XIX e princípios do século XX, realça a pequena empresa não capitalista de tipo familiar ou individual que se multiplicou extraordinariamente mercê do aforamento ou arrendamento a longo prazo, em certas regiões, de courelas delimitadas dentro dos extremos de latifúndios. Foi um processo usado por muitos proprietários da época para “colherem maior rendimento das suas terras elementarmente exploradas e (...) para fixarem junto das explorações agrícolas nascentes a indispensável mão-de-obra” 207 que originou numerosos povoados no Sul 208. Durante a I República, o proletariado de Beja, Évora e de toda uma faixa do Alto Alentejo estava sindicalizado e as suas Associações Rurais eram das mais activas na luta e proclamação de uma greve geral 209. A política de colonização interna ganhou contornos nítidos a partir de 1930, numa situação em que pesou o movimento dos trabalhadores agrícolas nos campos do Sul, sob a influência do fascismo italiano 210. Entretanto, precedendo medidas de colonização interna, os trabalhadores agrícolas haviam já sido atingidos por uma repressão violenta que conduziu ao desmantelamento do aparelho sindical legal e à tentativa de asfixia de todos os movimentos reivindicativos. 207 Eugénio de Castro Caldas, Formas de exploração da propriedade rústica, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1947, p. 105. 208 Os objectivos consistiam em facultar ao proprietário a obtenção dum maior rendimento e fixar uma reserva de força de trabalho. Para garantir este objectivo as glebas não permitiam que uma família se sustentasse do seu cultivo. De muitos exemplos, na freguesia de Cuba, algumas propriedades arrendadas em pequenas glebas, na Herdade da Misericórdia, em 1911, o proprietário viu no aforamento em parcelas de 1 has a forma de valorizar a sua propriedade até então inteiramente entregue ao mato, obrigando os foreiros a ter pegadas 20 estacas de oliveira por has e pagando entre dois e quatro escudos por has/ano, quantia que foi duplicada em 1924. Anos depois, dos 58 colonos recenseados apenas 11 viviam exclusivamente do cultivo da gleba. Diferentemente, a Herdade da Torre (Vidigueira), com a área de 397 has, foi vendida em 1919, em 96 parcelas, obtendo o proprietário quase cinco vezes o que teria obtido em valores absolutos se tivesse vendido a propriedade indivisa. Dos 99 compradores, 51 eram seareiros e 20 pequenos proprietários, também seareiros. Fernando Oliveira Baptista, «Declínio de um tempo longo», in O Voo do Arado, Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 1996, pp. 26-27. 209 “ (...) a cifra de operários assassinados, presos, torturados, espancados e exilados, é de longe constituída por uma maioria de rurais”. José Pacheco Pereira, As Lutas operárias contra a carestia de vida em Portugal: a greve geral de Novembro de 1918, Porto, Portucalense Editora, 1971, p. 85. 210 A criação da Junta de Colonização Interna (1936), as Leis n.ºs 1914, 1935, 1937 e 1949, referentes ao aproveitamento para rega, os diplomas sobre casais agrícolas e outras formas de colonização constituem no plano institucional e legal os principais marcos onde se propunha assentar a política de colonização interna que se anunciava também como uma base para defesa da nacionalidade, a expansão da raça, conforme um parecer da Câmara Corporativa: “Conserva e aumenta uma população rural sadia, forte e garante fiel da nacionalidade; combate as consequências da exagerada industrialização, que tanto faz crescer o proletariado e o desemprego (...)“. Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, Edições Afrontamento, Porto, 1993, p.19. 149 Esta repressão, associada às dificuldades de adaptação às novas condições de luta e ao acentuar do desemprego, contribuiu para dificultar o combate dos trabalhadores. Este último aspecto obrigou, mesmo, uma parcela significativa do proletariado rural do Sul a procurar em expedientes e na mendicidade uma saída para a sobrevivência 211. Por volta de 1950, a agricultura e a sociedade rural alcançaram a sua maior expressão demográfica, e a vida das aldeias e lugares assentava na população agrícola, que se havia apropriado de todo o espaço disponível. Não havia mais incultos para aproveitar.”A agricultura, a sociedade rural e o espaço trilhavam destinos coincidentes “212. A Lei n.º 1949, cujo modelo de colonização interno previa a expropriação da propriedade dos grandes agrários e latifundiários, não chegou a concretizar-se 213 . Em Fevereiro de 1925, sendo Ministro da Agricultura, Ezequiel de Campos, foi promulgado um Decreto que autoriza a divisão da Serra de Mértola “ por todos os indivíduos de nacionalidade portuguesa, de qualquer sexo, idade ou estado”, de modo a combater a sua apropriação por alguns empresários, o que se vinha verificando, em especial desde o período da guerra de 1914-1918. Foram assim divididos 9 660 has da Serra em 2 617 glebas, cuja concentração não tardou a fixar-se nas mãos de alguns, embora a lei decretasse as glebas inalienáveis durante quinze anos 214. O segundo projecto de colonização interna atinge o auge no final da década de cinquenta, defendido por uma corrente industrialista, que pretendia fazer da agricultura um bom comprador, ou seja assegurar um alargamento do mercado interno 215 . O modelo proposto para prosseguir este objectivo resumia-se à instituição da propriedade privada, familiar no aspecto social e de dimensões funcionais no ponto de vista técnico e económico, que implicava a modernização da agricultura conseguida por meio da industrialização e, por sua vez, facultava a mecanização e a motorização. 211 Idem, p. 20. Fernando Oliveira Baptista, «Declínio de um tempo longo»... p. 36. 213 Comparativamente ao previsto no plano de 1946 foi diminuto o trabalho realizado em 1965. Assim, as glebas mais os casais agrícolas/has oriundas dos baldios atingiram 17 326 has; provenientes do Estado 5 141 has e nenhuma de privados. Idem, p. 30. 214 José Martins de Mira Galvão, «Projecto-Lei sobre a reorganização do parcelamento da Serra de Mértola», Diário da Sessões, n.º 78, de 24 de Janeiro de 1947 e Ezequiel de Campos (relator), «Parecer n.º 17 – Reorganização do parcelamento da Serra de Mértola», Diário das Sessões, suplemento ao n.º 87 de 12 de Fevereiro de 1947). 215 Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, p. 36. 212 150 Procurando apoio na doutrina social católica, esta tentativa tinha como imagem as transformações que noutros países se verificaram, principalmente no século XIX, na adequação das estruturas agrárias ao domínio da burguesia, cuja caracterização, em termos genéricos, é recoberta pela “via americana” e se traduzia na constituição de uma forte classe de médios agricultores, muito ligados ao mercado e com um elevado consumo de produtos industriais. Todavia, da compressão dos interesses em jogo nasceu uma contenda entre os defensores da propriedade latifundiária e os industrialistas, em que os primeiros manifestam oposição na Câmara Corporativa e na Assembleia Nacional, não só contra a possibilidade de intervir no sequeiro, mas também contra a expropriação do regadio que o Estado queria fazer, por força da Lei n.º 1949. As disputas em torno do II Plano de Fomento e os rumos que a política de colonização interna tomou, no seu conjunto, acabaram por determinar uma paralisação de qualquer projecto concreto de colonização nestas propriedades. Evidentemente, os interesses ligados aos grandes agrários e latifundiários conseguiram, assim, impor-se sem que os seis anos do II Plano de Fomento conhecessem qualquer experiência de um moderado intervencionismo na agricultura 216. O Portugal dos anos trinta era sobretudo agrícola e a terra o elemento decisivo para aprender a estruturação da produção agrícola e, em larga medida, das relações de poder nos campos. Em 1940, a agricultura era a actividade económica mais relevante ao nível do emprego – a população activa agrícola era quase metade da população activa – e nela se gerava (em 1938) um terço do produto interno bruto (PIB). Os grupos sociais dominantes nas relações de poder nos campos do Sul organizavam-se em torno das unidades que concentravam grandes extensões de terra (latifúndios), quer para a cultura, quer para o arrendamento e da parceria, nos quais predominava a presença dum proletariado agrícola numeroso e combativo, a brutal repressão policial foi a face visível do Estado Novo 217. A posição e a economia dos latifúndios e dos grandes patrimónios predominaram até finais dos anos cinquenta, mas a posição central da agricultura na sociedade portuguesa foi-se alterando: durante a guerra de 1939-45 a política agrária submeteu-se aos imperativos do abastecimento; depois da guerra e até à crise dos anos sessenta as orientações da intervenção estatal subordinam-se ao processo de industrialização. 216 217 Idem, pp. 47-48. Idem, p. 7. 151 Os anos sessenta abriram uma nova época marcada pelas guerras coloniais, por alguns no sentido duma maior abertura económica ao exterior, pela emigração e pelos efeitos da industrialização desencadeada depois da guerra. As consequências na agricultura foram nítidas. Por um lado, na relação de forças no seio do Estado Novo, consagrou-se a sobreposição dos interesses ligados aos capitais financeiro e industrial relativamente aos dos grandes proprietários e latifundiários; por outro lado, acumularamse factos e situações que conduziram a uma profunda crise agrícola que revestiu duas faces: - No conjunto da economia (que se traduziu no surgimento dum desfasamento acentuado entre a evolução da produção e do consumo de produtos agrícolas e conduziu a um deficit de grandes proporções na balança comercial agrícola); - Nas próprias estruturas de produção (a emigração que se fez sentir ao abrir uma saída para muitas centenas de milhares que partiram para outros países em busca duma vida melhor) 218. Na zona do latifúndio, assistiu-se à reconversão em grandes explorações assentes em trabalho assalariado e muito capitalizadas; extensificação e abandono da produção. Muitos dos terrenos incultos foram florestados com o apoio do Estado. O relacionamento dos senhores da terra com o Estado Novo teve vicissitudes de que o melhor revelador é os dois momentos em que se apregoaram projectos de intervenção nas relações da propriedade dos grandes domínios: - O primeiro ocorreu a partir de 1930, sob o exemplo invocado dos fascismos italiano e espanhol, que lançou um plano de concretização interno cujo objectivo declarado era construir uma paz social pela conversão dos trabalhadores agrícolas em pequenos proprietários, retalhando para o efeito baldios, terras do Estado e privadas. Nos anos trinta, quarenta e cinquenta o Estado cedo abandonou aquele projecto de solução que no Alentejo impunha a intervenção nas grandes propriedades e optou pela repressão violenta e constante; - O segundo momento chegou no final dos anos cinquenta. Os latifundiários e grandes proprietários haviam perdido peso no seio do regime e os industrialistas, em grande força, projectaram medidas visando a adequação da agricultura ao que eram consideradas as necessidades do desenvolvimento capitalista do país. Foi nesse contexto que se avançaram directivas para o parcelamento dos grandes domínios. 218 Idem, p. 8. 152 Porém, as circunstâncias históricas e políticas da época, como por exemplo, o reforço do movimento oposicionista, um período de grande agitação social e política que atingiu o seu ponto mais alto em 1962 e o início das guerras coloniais em 1961, não permitiram que o Estado Novo deixasse rupturas entre os seus. Por tudo isto, os projectos de parcelamento foram esquecidos e a crise nas estruturas da produção agrícola, aberta nos anos sessenta, foi abordada com o sentido do compromisso entre os interesses das diferentes facções, que se acolhiam no Estado Novo. De modo que, face ao êxodo agrícola, o Estado apoiou a emergência do sector capitalista agrícola mas, simultaneamente, tomou medidas visando amparar os grandes proprietários e latifundiários – como é o caso da florestação da propriedade privada – que não se encontravam em condições que lhes permitissem avançar por um processo de capitalização 219. Neste trilho inconsequente, foram constituídas à sombra do Regime Florestal de Polícia muitas e variadas “ coutadas vigário”, cujos proprietários de forma oportunista receberam o direito ao “coutamento”, sob o compromisso de florestarem uma percentagem previamente estipulada pelo Governo, mas que efectivamente, não acataram 220. Estas e outras deficiências da agricultura portuguesa não ultrapassaram o período abrangido pela aceleração do crescimento económico, induzido pelo arranque industrial dos anos 50 e 60. Pelo contrário, conheceu novos e íntimos agravamentos 221. Impossibilitada de dar resposta à missão fundamental que se lhe exigia para cumprir adequadamente o papel atribuído, no quadro de um processo de crescimento de sede urbano-industrial, o sector agrícola era tido como realidade aberrante, a que cabiam graves responsabilidades na travagem do desenvolvimento económico. 219 Idem, pp.10-11. Sobre o problema do abuso do coutamento veja Mário Bastos, ob. cit., p. 106 e ss. Esta luta prosseguiu de forma implacável contra as coutadas em aberto “falsamente mascaradas de reservas de caça” e fraudulentamente metidas na lei por políticos sem escrúpulos, que tratavam somente de agradar às clientelas a quem durante o tempo de caça enchiam a barriga com almoços e vaidades venatórias. Conhecedor dos abusos praticados pelos proprietários sem escrúpulos que afixavam tabuletas de proibição de caçar nos seus termos ou de reserva de caça, sem que para isso tivessem requerido a sujeição ao Regime Florestal, o Jornal do Caçador publicou a relação de todas as propriedades sujeitas a esse regime, para esclarecimento dos leitores e evitar a burla. Em 1931, lançou um apelo aos caçadores para se unirem contra as coutadas ilegais porque a caça constituía um património do Estado e não o monopólio de quem queria “ coutadas limitadas e justamente tributadas sim. Coutadas vigário não”. O jornal fazia um apelo a todos os concelhos para que os caçadores se unissem e informassem se as coutadas existentes na sua área estavam legais; caso contrário, deviam participar aos serviços florestais. Jornal do Caçador, ano II, n.º 6, 1-12-1927, pp. 4 e 5. 221 Afonso de Barros, A reforma agrária. Das ocupações de terras à formação das unidades de produção, Instituto Gulbenkian de Ciência, Centro de Estudos de Economia Agrária, 1ª edição, Oeiras, 1979, p. 153. 220 153 As causas do bloqueamento de actividades agrícolas residiam nas deficientes características das estruturas agrárias. Pelo malogro se saldou toda a intervenção estatal justificando a crise da agricultura e a necessidade da reforma das estruturas agrárias, ficando, contudo, por explicar a inércia do poder político 222. Predominam na economia das explorações agrícolas alentejanas as produções vegetais, sobretudo as englobadas na rotação trigueira, vindo a acentuar-se com nitidez o decréscimo do trabalho familiar, em termos médios, com o aumento da área, mesmo nas explorações até 10 has, em média, se recorre ao trabalho assalariado temporário (26%) em épocas de ponta 223 . O êxodo rural foi, sem dúvida, o factor que mais marcadamente afectou estas estruturas de produção, pois a possibilidade de encontrar emprego nas zonas urbanas e o escape fornecido pela emigração, abriram as portas à debandada dos trabalhadores assalariados, familiares e mesmo, pequenos agricultores 224. As condições de trabalho, entre as quais a ceifa, como se sabe, eram uma empreitada atroz efectuada por trabalhadores temporários, frequentemente por ranchos vindos de outras regiões 225: “(...) é trabalho violento, pois a um calor depauperante vem juntar-se o alargamento dos horários próprios da época e da tarefa. Trabalha-se de sol a sol com dois intervalos de 1 hora para almoço e merenda, e um de 2 horas e meia ao jantar seguido de sesta. São particularmente difíceis os últimos momentos antes do jantar (...)” 226. Existiam graves deficiências no abastecimento de água, evacuação de águas sujas, sanitários e claridade, ventilação; situações carenciais na lavagem de roupa, cozinha, superfície por pessoa – divisões onde se dorme e cobertura 227. No contexto da população activa agrícola, assiste-se ao predomínio esmagador dos assalariados, oscilando entre 82% (1970) e 89% (1960); o reduzido peso, 222 Idem, p. 16. Fernando Oliveira Baptista, «O Alentejo-entre o latifúndio e a Reforma Agrária», Arquivo de Beja, vol. I, II série, 1984, p. 234. 224 Alberto de Alarcão, Mobilidade geográfica da População de Portugal (Continental e Ilhas Adjacentes) Migrações Internas-1921-1960, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1969 e M.L. Marinho Antunes, «Vinte anos de emigração portuguesa», Análise Social, n.º 30-31,1970, pp. 299-385. 225 Um estudo publicado em 1956 avalia entre setenta e cem mil o número de pessoas que anualmente tomava parte em migrações temporárias. Noutro trabalho estima-se para o período 1956-1960, em cerca de 23 mil o número de homens que anualmente tomam parte neste tipo de deslocações. Em Portalegre, por exemplo, em 1974, a região já não recebia migrações sazonais. Fernando Oliveira Baptista, «O Alentejo-entre o latifúndio e a Reforma Agrária»..., p. 238. 226 José Luís Conceição e Silva, Baixo Alentejo-a agricultura regional, Lisboa, 1965-1966 (dactilografado) inédito, citado por Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. p. 235. 227 Idem, p. 236. 223 154 comparativamente, da agricultura familiar – a percentagem de isolados e trabalhadores varia, entre 9% (1960) e 16% (1970). Em 1929, a Campanha do Trigo lançada pelo Ministro, Linhares de Lima, tinha dois objectivos: directamente, a melhoria do aumento da produção de trigo até às necessidades de consumo, evitando assim a saída para o estrangeiro de divisas; indirectamente, dignificara a indústria agrícola como a mais nobre e a mais importante de todas as indústrias e como primeiro factor de prosperidade económica. Arrastou consigo a expansão do consumo dos adubos e máquinas, ligando assim directamente, interesses da indústria e do comércio ao desenvolvimento da política do trigo. O grande agente deste arroteamento foi o seareiro, muito embora logo que as terras foram desbravadas, as melhores ficaram à conta dos proprietários, empresários ou dos rendeiros e somente as terras de pior qualidade continuaram entregues ao terço, ao quarto ou ao quinto, a seareiros 228. Assistiu-se, então, a um ciclo de grandes produções, que excedendo o consumo do país, revelou fragilidades na política trigueira, pois a sobreprodução da colheita de 1932,1934 e 1935 criou grandes dificuldades ao escoamento do cereal que afectou, particularmente, os agricultores de menor dimensão, com fracas capacidades financeiras de armazenagem, sendo frequentemente obrigados a vender o cereal a preços irrisórios a intermediários que depois o colocavam, com elevados proventos, ao preço da tabela. A combatividade dos trabalhadores rurais do Sul por uma melhoria das condições de vida e trabalho foi uma constante desde a década de quarenta, após uma acalmia nos anos trinta que, em parte se deveu à Campanha do Trigo e ao sistema repressivo entretanto implantado, ao desmantelamento das associações sindicais e à tentativa de destruição das organizações de oposição ao regime corporativo 229. A economia do trigo foi afectada pela crise que atingiu as estruturas de produção nos anos sessenta. As repercussões do êxodo rural percorreram, contudo, caminhos diferentes nas explorações agrícolas de distintos modos no Alentejo. No caso das explorações assentes no trabalho assalariado a nova situação foi impondo a escolha de tecnologias que incrementam a produtividade do trabalho, seja por economia de força de trabalho, seja pelo aumento da produção retirada de cada parcela de terra; a 228 Eugénio de Castro Caldas, Formas de exploração da propriedade rústica, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1947, p. 271. 229 Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, p.174. 155 mecanização e a implantação de sistemas de produção mais intensivos – exigindo largos investimentos e maiores montantes de capital circulante – foram esquematicamente, as vias tomadas pelas empresas que tinham condições económicas e financeiras para as capitalizar. No caso do trigo, as piores terras cujo cultivo já não era rentável foram abandonadas pelos seareiros que as traziam de parceria. A evolução verificada nos preços e salários colocou em condições económicas mais favoráveis as explorações que se conseguiram mecanizar. A crise dos salários, que também afectou a olivicultura, reflectiu-se fortemente na estrutura do custo de produção e contribui decididamente para o seu aumento, levando a descurar os olivais menos rentáveis face aos “critérios capitalistas”, o que incidiu numa queda da produção de azeite nos distritos de Beja, Évora e Portalegre 230. Quanto à economia corticeira, o aumento do preço do custo tornou-se forte, sobretudo a partir de 1965, dada a importância fundamental da remuneração do trabalho nas despesas de exploração do montado. Após essa data, devido à alta dos salários tornando-se cada vez mais marcada, os métodos tradicionais de trabalho foram seriamente postos em causa 231. A criação de ovinos integrada no sistema agrícola, coincidia com as grandes explorações que imperavam no Alentejo e que tinha a sua maior expressão na grande exploração, pastoreando nos restolhos da cultura cerealífera e nas ervagens das folhas em alqueive e pousio 232 . No entanto, até 1972, assiste-se a uma diminuição dos ovinos devido à regressão na cultura cerealífera, com a consequente diminuição dos restolhos e áreas de pastoreio e a crise na profissão de pastor 233. O porco de montanheira, engordado em numerosas varas, alimenta-se de bolota que pastoreia nos montados, de que é sem dúvida o melhor e mais cómodo aproveitador, e nos meses em que aquela falta percorre as pastagens mais variadas 230 Fernando Oliveira Baptista, O Alentejo-entre o latifúndio e a Reforma Agrária, p. 242. J.S. Sampaio, À la recherche d´une politique économique pour le liége au Portugal, Paris, E.P.H.E., 1972, (mimeografado), pp. 91-92, referida em Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. pp. 242-243. 232 Em 1952, 90% das explorações agrícolas com área de cultura arvense superior a 500 has dedicavam-se à produção de ovinos; esta percentagem era de 73% nas explorações entre 200 has e 500 has e de 50% no escalão de 50 has a 200 has; descia depois para se situar nos 7% no escalão até cinco has. José Luís Conceição, ob. cit. 233 A contínua carência de mão-de-obra obrigava a maior parte dos pastores a serem simples guardadores, daí ser evidente um pior aproveitamento das pastagens. Veja-se E.A.S. Ramos da Costa e A. Vaz de Portugal, «Sugestões para o aproveitamento da exploração ovina em Portugal Continental», Separata da Lavoura Portuguesa, n.ºs 7 e 8, 1968. 231 156 aproveitando ervas, restolhos, e sobretudo os chamados “ agostadouros”, terras semeadas de cereais e leguminosas, após a colheita 234. No declínio da montanheira fizeram-se sentir vários factores, dos quais se destaca de modo determinante a peste suína africana, o crescente desinteresse pela ingrata profissão de pastor, o desenvolvimento de pragas nos montados, e o facto do porco muito gordo, o afastar crescentemente dos “gostos e necessidades dos consumidores e industriais” 235. A cerealicultura constituía o cerne da economia agrícola do Alentejo que no período de 1953-1972 se pode subdividir em duas fases: - A primeira, até 1962, que se caracteriza relativamente à produção de trigo pelas medidas concretas abarcarem a garantia da compra a um preço tabelado, o financiamento de campanha, bónus aos adubos e fornecimentos de sementes; - A segunda fase, que viria a centrar-se numa óptica de reconversão da agricultura do Sul e se começou a desenhar nos finais da década de cinquenta, culmina com a publicação do D.L. 46 595, que representa uma profunda viragem e tentativa de reformulação da própria estrutura da agricultura. Acabava assim o tipo de regime cerealífero predominante mais de trinta anos, em que a partir do trigo protegido especialmente na sua cultura, era dado grande desenvolvimento às farinhas e ao pão: o primado da agricultura passava agora a ser considerado num todo, deixando o próprio trigo de constituir o centro do “pendão político “ 236. A nova orientação política exprimia-se, com nitidez, na delimitação dos que podiam (deviam) beneficiar do apoio do Estado, aos empresários que iniciassem a reorganização das suas explorações agrícolas, pela reconversão das culturas ou pela melhoria dos seus actuais instrumentos e técnicas de produção. O objectivo era claro: a intensificação da produção de cereais onde esse reforço fosse aconselhável e conduzisse também a uma diminuição progressiva mas drástica nas áreas presentemente afectas à cultura de cereais praganosas de sequeiro. 234 Vulgarmente conhecido por restolhal ou restolho que fica no campo após as ceifas. J.L.C. e Silva, ob. cit. Também a este propósito, Ramos da Costa escrevia em 1967: “ Não nos causará surpresa de maior se, dentro de alguns anos, a tradicional exploração extensiva deste animais for substituída por uma bem vincada intensificação”. Veja-se Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. p. 245. 236 Arlindo Cabral, Monografia sobre medidas de política económica adoptada sobre cerealicultura no período de 1950-1973, 1976, (dactilografado), pp. 227-229. 235 157 Neste quadro, a selecção capitalista das explorações rentáveis acabou por se desenvolver, mas independentemente da política governamental, mais lentamente que o pretendido: de 1960-62 a 1968-1970 a área do trigo nos três distritos alentejanos baixou cerca de 15%. A via traçada neste regime cerealífero – o último antes de 1974 – mantinha as mesmas directivas de reconversão (redução da área do cereal, mecanização, florestamento, etc.), mas tendia a deslocar do aumento selectivo dos preços para a concessão seleccionada de créditos e subsídios o apoio à cerealicultura e, dum modo mais geral, à reconversão agrícola 237. Traduzindo a crise registada em muitas unidades de produção, a área média anual da cultura arvense de sequeiro diminuiu, de 1955-1959 para 1970-73, em cerca de 32%. Todavia, a evolução registada nas explorações com melhores condições económicas e integrando os melhores solos concorreu amplamente para que a produção média anual de trigo por has da área semeada tenha subido 50% e o produto agrícola bruto a preços constantes aumentado 23% de 1960 a 1970 ou, de acordo com outro índice, a uma taxa média anual de 2,1%, o que em todo o caso, é inferior ao valor calculado para o conjunto do país. A mecanização foi assim revezando paulatinamente a mão-de-obra nas lavouras, isto é sem gado de tracção 238. A ceifeira debulhadora retirou braços de trabalho durante a ceifa, que era para muitos a ocasião em que, conjuntamente com os seus familiares, poderiam juntar dinheiro que lhes permitia pagar o pão, consumido nos meses de desemprego invernal. A par do progresso da mecanização das explorações surge, também a actividade de aluguer de máquinas agrícolas, o que não era novidade, como se sabe; com a expansão da debulhadora surgem os alugadores de máquinas que debulhavam o cereal a troco de uma percentagem do volume total trabalhado (a maquia), que no Alentejo, em 1965, oscilava em média entre os 7% e os 15% 239. 237 Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. p. 249. Entre muitos exemplos de resistência, Mariano Feio, «Le bas Alentejo et l´Algarve», Congrès International de Géographie, Lisboa, 1949, pp. 54-58, refere a Herdade dos Machados, em Moura, que ocupava uma extensão contínua de cerca de 6 000 has em 1948 (6 100 em 1974-1975), em cuja economia predominava o olival (1 500 has em 1948 e 1350 has em 1974-1975), o figueiral (550 has em 1948; 500 has em 1975) e, como cultura anual, a cerealicultura de sequeiro. Esta Herdade era um exemplo de futuro possível, porque empregava 450 homens e, além disso, 100 a 150 mulheres nas mondas, 60-80 homens na ceifa e 250 homens e 350 mulheres na apanha da azeitona. A tracção era fornecida por 44 mulas, uma vintena de burros, 170 bois de trabalho, 70-80 vacas e, apenas, dois tractores. A mão-de-obra era bastante barata e abundante. Em 1974-75, a mecanização havia imposto o domínio, sendo o essencial da tracção assegurada por 39 tractores e 3 ceifeiras-debulhadoras e o emprego baixara: trabalhadores permanentes, 180 homens e 89 mulheres. 239 O uso intensivo das charruadas nos alqueives e, mais tarde, das ceifeiras nas searas causavam prejuízos de monta na nidificação de perdiz-vermelha, com particular destruição de ovos. 238 158 Fruto desta política agrícola inconsequente, nas boas terras assiste-se a uma ligeira diminuição das culturas arvenses, embora se regista um acentuado acréscimo da área do trigo – produto principal das rotações praticadas – bem como o fortalecimento da sua posição, a par duma maior produção/has; verifica-se, assim, numa apreciação global, uma tendência para a intensificação no sistema de produção; nas más terras regista-se uma acentuada redução das áreas semeadas do conjunto da cultura arvense e também do trigo, bem como do peso deste nas rotações praticadas, ou seja, a par dum abandono do cultivo em grandes áreas verifica-se uma evolução para rotações menos intensivas que no grupo das boas terras. Deste modo, as políticas governamentais apontam para uma reconversão das terras abandonadas pela cultura arvense tradicional no Alentejo em favor do florestamento e da pecuária. Como ocupação alternativa para os solos a posição que acabou por prevalecer foi a defesa da coutada e do pastoreio extensivo, “ambas muito modestas” 240. Ocorre, porém, que o papel da agricultura portuguesa em modelos de crescimento, nas décadas de cinquenta e sessenta e nos princípios dos anos setenta, não se confina à produção de alimentos e de matérias-primas necessárias à expansão dos pólos urbanos e industriais, mas sim a produção de homens, de força de trabalho que, em quantidade aceleradamente crescente, é necessária ao desenvolvimento da indústria e à actividade de serviços a ele ligados. Naturalmente, a agricultura portuguesa desempenhou exemplarmente essa função 241. Consideráveis contingentes de força de trabalho, formada no quadro do sector agrícola alimentaram esse crescimento de actividade industrial no país, e contribuiu também para o desenvolvimento do capitalismo europeu. O crescimento industrial 240 Mariano Feio, Problemas da lavoura alentejana, Beja, Grémio da Lavoura de Beja, 1972, p. 22. Fernando Oliveira Baptista alude a Luís Filipe Cisneiros de Sousa Lara, Alexandre Bettencourt, et alli, Perspectivas para uma reconversão dos solos esqueléticos de xisto do Distrito de Beja, (mimeografado), Beja, 1969, pp. 11-12, no qual apontam como solução o arrendamento dos 359 mil has de coutadas existentes nos três distritos do Alentejo, nas explorações de grande dimensão composto por solos esqueléticos de xisto, onde a cultura do trigo havia sido abandonada. O autor considerou que a caça podia constituir uma das maiores fontes de rendimento das explorações silvo-pastoris no Alentejo, como complemento dos solos esqueléticos de xisto, ao lado de outros formas de exploração (caprinicultura, apicultura e cerealicultura) naqueles terrenos, dado que para haver fartura de caça teria que haver também abundância de comida. Ao comparar Portugal com Espanha – que soube aproveitar as potencialidades da caça indígena – com o fim de criar turismo de Inverno sugeriu a possibilidade de se constituírem grandes reservas e coutos de caça naquelas regiões, para onde não se conseguiam encontrar modelos de exploração agrícola suficientemente rendáveis. Apresentou ainda um modelo de exploração de coutada de caça no Alentejo com fins lucrativos, e conclui que por si só a caça oferecia rendimentos líquidos variáveis por has entre 64$00 e 89$00, muito embora os particulares estivessem a oferecer pelos coutos bem repovoados de perdiz-vermelha até 100$00/has ou mais. Veja-se Mário Bastos, ob. cit., pp. 92-100. 241 Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, Porto, Edições Afrontamento, 1993. 159 português beneficiou da possibilidade de utilizar a força de trabalho reproduzida no quadro agrícola, com o correspondente efeito de embaratecer o respectivo custo (fenómeno dos operários-camponeses). Aspectos centrais do modelo de desenvolvimento foram a emigração, a entrada de divisas resultantes das remessas dos emigrantes, as quais permitiam a compra no estrangeiro de bens alimentares e de equipamento necessário à expansão industrial e mecanização da agricultura, a fim de compensar a saída de trabalhadores para a cidade e para o estrangeiro. O recurso ao modelo apontado implicou, no que concerne à agricultura, haver-se optado objectivamente por privilegiar a função de produção e fornecimento de força de trabalho, até em prejuízo da função de fornecimento de bens alimentares. Este modelo dava sinais claros de esgotamento quando ocorreu o 25 de Abril de 1974, pois avizinhava-se a crise mundial. O recurso à importação para suprir o deficit de oferta dos bens alimentares surgia como pratica alarmante e cujos limites se descortinavam com clareza. O papel da agricultura no desenvolvimento económico e social ganhava peso e diferente configuração. As estruturas agrárias careciam agora, mais do que nunca, da rápida e profunda alteração 242. A crise da agricultura adquirira nova e plena actualidade, colocando frontalmente a questão da reforma agrária. Enfrentar a crise da agricultura exigia, na verdade, que se começasse por concretizar medidas de efectiva transformação do complexo e contrastado quadro estrutural que espartilhava a actividade agrícola, bloqueando as condições de aplicabilidade com êxito de uma nova e eficaz política agrária. No Alentejo, a fome da terra estava no auge do confronto social, como a forma de “acabar com um sistema de desigualdade injustificável e com o sistema de dominação que, em todos os sentidos, se desenvolveu por esta causa” no quadro económico e social desta região não havia saída para os trabalhadores agrícolas que não pusesse em causa as relações da propriedade dos grandes domínios 243 . A maioria do proletariado agrícola do Alentejo, particularmente os trabalhadores agrícolas temporários, foi vítima duma divisão de trabalho que a afastava do controlo do processo de produção, da sua organização e das relações deste com o mercado. O seu universo de trabalho – as grandes tarefas indiferenciadas e o seu quotidiano – 242 Idem, p.17. Manuel Pérez Yruela, La conflictividad campesina en la provincia de Córdoba, 1931-1936, Madrid, Ministerio de Agricultura, 1979, p. 37. 243 160 desenrolava-se num ambiente de opressão e exploração que tinha como ponto central a concentração da terra em domínios de grande dimensão. Desta trajectória decorre que a luta pela terra era vivida como a possibilidade de assegurar um trabalho permanente e seguro, e também uma via para acabar com a opressão e exploração que impunham o capitalismo agrário e o latifundismo, suportados pelo Estado Novo. Ou seja, na situação portuguesa de 1926 a 1974, alcançar estas metas passava pela terra, pelo fim das grandes propriedades. Na realidade, mesmo com a subordinação da agricultura à indústria e ao capital financeiro, nítida desde o final dos anos cinquenta, o processo de desenvolvimento do capitalismo em Portugal não foi de molde a afastar a terra do centro do confronto social nos campos do Sul 244. 244 Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. p. 13. 161 3. Fim do Estado Novo e a Reforma Agrária Em 1974, consumada a Revolução de Abril, antevia-se a morte do Estado Novo e com ele necessariamente a questão agrária ocuparia lugar central. A reforma agrária a empreender havia que desdobrar-se em medidas diversificadas, única forma de fazer face à própria complexidade e multiplicidade da agricultura portuguesa 245 .O elemento central consistia doravante em alterar a repartição do rendimento social agrário a favor das classes sociais mais desfavorecidas, face à estrutura complexa e diferenciada de agricultura portuguesa, e incidir sobre as relações de força entre as classes sociais ligadas à actividade agrícola 246. Contudo, a transferência de terra não é suficiente para que a reforma agrária se implemente, consolide e ganhe consistência. Nas formações sociais como a portuguesa, a agricultura vive interpenetrada com outras actividades e a sua estrutura obedece aos interesses dominantes da sede urbano-industrial. Deste modo, a completa e efectiva transformação das relações de produção na agricultura, objectivo último e razão de ser da reforma agrária, só se atingirá no caso de se concretizar a alteração ao nível de toda a formação social, no sentido de propiciar as indispensáveis condições para que se erga na terra transferida de uma classe para outra novas formas de organização de actividades agrícolas, novas e diferentes relações de produção, entre sistemas de agricultura. Os agentes sociais beneficiários da transferência de terra jamais poderão levar a efeito o processo de reforma agrária se inseridos em contextos adversos e bloqueadores da real modificação das estruturas agrárias no seu sentido mais amplo. Isso mesmo se acha espelhado na Constituição da República Portuguesa de 1976, ao considerar a reforma agrária como um instrumento fundamental para a construção da sociedade socialista e ao atribuir-lhe o objectivo de criação de novas relações de 245 O conceito de reforma agrária é muito diversificado. Para Michel Gutelman consiste na manifestação mais essencial, pelo menos numa ocupação de terra apropriada por uma ou várias classes sociais e na sua transferência para outra ou várias outras classes sociais. Veja-se Structures et Reformes Agraires, Paris, François Maspero, 1974, p. 132. Em sentido restrito, é costume abranger na reforma agrária aqueles actos que visam a modificação e repartição da propriedade fundiária entre os habitantes de certo país ou região. Tais actos propõem-se, em certos casos, expandir a condição de proprietário rústico, graças à fragmentação dos grandes domínios territoriais e à criação de novas explorações agrícolas por conta própria, muito mais numerosas e com muito menores dimensões físicas do que as anteriores. Noutros casos, propõem-se substituir os grandes domínios territoriais privados – ou, até a totalidade da propriedade privada – por médias e grandes unidades de exploração de tipo cooperativo ou de tipo público. É esta a categoria de reforma agrária propriamente dita. Henrique de Barros, «O problema de extensão agrícola no quadro do seu condicionamento por uma reforma agrária», in separata do livro Primeiro Seminário Universitário de Évora: Extensão Rural, Évora, Dezembro de 1974, pp. 1 e 2. 246 Idem p. 19. 162 produção na agricultura, para tanto se impondo, como primeiro passo, a transferência progressiva da posse útil da terra e dos meios de produção para aqueles que a trabalham. O objectivo do legislador constitucional impõe como concepção de reforma agrária a efectiva alteração do modo de produção e do sistema de agricultura e condição para aumentar a sua produtividade 247. O D.L. n.º 406-A/75, de 29 de Julho, promulgado pelo IV Governo Provisório, tinha exclusivamente o fim de permitir a expropriação pelo Estado de propriedades rústicas consideradas grandes, no propósito de reduzir a proporções aceitáveis as assimetrias económicas que caracterizavam a repartição da propriedade da terra, e não propriamente a procurar uma reforma agrária no concreto e amplo sentido de expressão. Neste sentido, foi um diploma sob muitos aspectos controverso e bastante contendido 248. O limite estabelecido para que a propriedade fosse susceptível de se classificar como grande (50 000 pontos), passível de compulsória devolução era colectivamente expressa em escudos de rendimento fundiário líquido (100 000$00), afigurava-se bastante modesto, ainda que pudesse acontecer e provavelmente aconteceu, que tal questão calculada como foi a partir de avaliação cadastral, em regra prudente, fosse um tanto inferior à realidade 249. Dado o sistema que foi adoptado para salvaguardar o rendimento fundiário e que obrigou a contabilizar todo o trabalho prestado e, naturalmente, também a mão-de-obra não paga do agricultor, família e o juro do capital de exploração, àquela quantia não podia adicionar-se, em certos casos, os valores atribuídos a essa mão-de-obra e a este juro, o que porém não é de molde a aumentá-lo substancialmente e tanto menos quanto 247 Art.º 96.º da Constituição da República, Lisboa, 2ª Revisão, AR, 1989, pp. 67-68. Henrique de Barros in «É indispensável concretizar a reforma agrária» (policopiado), Ministério da Agricultura, Lisboa, 1977, defendeu a tese na qual um Estado, verdadeiramente democrático, deveria fixar um limite máximo à dimensão da propriedade privada da terra, para além da qual se arrogaria o direito, em nome de equidade social e do interesse nacional, de transferir a posse do excedente para a colectividade; o melhor critério para medir aquela dimensão, não deveria ser a de mera grandeza territorial, mas sim o do rendimento fundiário médio anual líquido, pois, só assim, se conseguia aplicar um sistema uniforme, por completo independente de diversas características de cada região agrícola, da natureza, aptidão e fertilidade dos solos, da localização da propriedade. 249 «Poderá, por acaso, atrevo-me a perguntar, rotular-se como latifundiário, como grande senhor da terra, mais ou menos feudal, situado na posição evidente de privilegiado da fortuna, como impiedoso explorador do trabalho alheio, um agricultor por conta própria que, além da remuneração do trabalho que ele porventura realizou e do juro do capital de exploração próprio, tenha conseguido para si, finda a campanha e vencido as contingências que nunca deixam de assinalar todo e qualquer ano agrícola, uma quantia mensal da ordem de dezenas de contos?». Idem, p. 12. 248 163 há sempre que deduzir-lhe a contribuição predial e respectivos adicionais e, em certos casos, há que descontar-lhe os juros da dívida real. O caso do agricultor absentista é obviamente distinto, justificando-se maior rigor nos critérios desencadeados de acção legal expropriadora, em especial quando se trate de pessoas que, em virtude da origem urbana do seu principal rendimento, devem ser considerados como estranhos ao sector agrícola 250. Se o legislador pretendeu reduzir acentuadamente a amplitude do leque de remuneração das pessoas pertences ao sector agrícola, esse tão louvável objectivo atingir-se-ia sem que tornasse indispensável fixar a nível tão moderado a dimensão máxima de unidade de produção privada legalmente consentida. A ter sido escolhido um nível superior ao que foi não teria acontecido o que tantas vezes aconteceu ou poderá ter acontecido: terem ficado abrangidos pela lei numerosos casos de médios agricultores por conta própria, alguns dos quais talvez até fossem empresários familiares, que de latifundiários nada tinham, cuja sobrevivência não era de molde a contribuir para a injustiça social e cuja manutenção como produtores, seria provavelmente justificada, senão mesmo socialmente útil. A segunda razão de discordância da lei prende-se com o facto de terem sido tomadas em conta, para efectivação do cálculo teórico do rendimento fundiário (pontuação), as plantações arbóreas e arbustivas de curta duração existentes à data nas propriedades a expropriar (vinha e pomares); era incorrecto um agricultor que possuía certa superfície de terra com rendimento inferior ao mínimo fixado na lei de expropriação, fosse atingido pela expropriação devido à circunstância de ter tomado a útil decisão de plantar uma vinha, um pomar, onde efectuar uma obra de adaptação de regadio. Tais benfeitorias deviam ser tomadas como não existentes, para efeitos de cálculo do rendimento fundiário tanto as de curta duração com as de longa duração quando efectuadas pelo proprietário actual 251 . O autor nem se ocupou dos casos “deploravelmente frequentes”, de ocupação de terras à margem da lei e incidindo sobre propriedades com rendimento oficialmente atribuído a 50 000 pontos, grande número das quais foram, sem a menor dúvida, ocupadas com notória injustiça social 252 . 250 Idem, p.13. Idem, p.15. 252 «Formulo estas considerações com inteira serenidade. Sei muito bem que corro o risco de me ver acusado de inimigo da reforma agrária, ou de advogado mais ou menos hipócrita de uma pseudo reforma agrária e defensor do capitalismo agrário». Idem, p.16. Associada a esta acção correctora regional um grupo de medidas de alcance 251 164 Naturalmente, o que ocorreu nos Campos do Sul depois de 25 Abril de 1974 foi um “fortíssimo indício da diversidade social, cultural e política da realidade nacional ” 253. A Reforma Agrária foi, nesse particular, um elemento considerável na nova percepção espacial do país, agora entre o Norte e o Sul e consagrada através de leis e medidas do poder político. A fragmentação do país fundiário e agrícola foi legalizada através de diplomas que antecederam uma intensa agitação rural nos campos, durante o auge revolucionário de meados de 1975, e a resistência de Rio Maior em Novembro daquele ano, fechando as portas a Lisboa. Em Agosto e Setembro de 1974, são instituídos dois organismos – o Instituto Nacional de Investigação Agrária (INIA) e o Instituto de Reestruturação Agrária (IRA) –, particularmente este, que iria ser determinante na Reforma Agrária. Os antigos serviços não eram capazes de cumprir as novas tarefas nem de pôr em prática um grande esforço de reforma 254. No ano seguinte, vão ser criados vários organismos no Ministério da Agricultura – que recentemente deixara de ser uma Secretaria de Estado –, entre o III e o IV Governos Provisórios. Neste contexto, adivinha-se um novo período agrário, agora mais marcante 255. Consequentemente, o quadro legal da Reforma Agrária adquire força jurídica com a publicação do D.L. n.º 203-C/75, de 15 de Abril, na sequência das nacionalizações da banca, dos seguros e das empresas industriais e de serviços 256 . Os centros da Reforma Agrária investidos de poderes para descentralizar e servir o Sul do nacional visando eliminar o minifúndio (outro gravíssimo defeito estrutural tradicionalmente nosso); a incentivar e apoiar trabalho em comum; pela via cooperativa, a racionalizar os circuitos comerciais, eliminados os seus elos intermediários sem papel útil; a melhorar os transportes; a garantir aos produtores preços convenientes, e proporcionar aos agricultores e às cooperativas agrícolas uma activa, assídua e eficaz colaboração técnicoeconómica do Estado; a organizar um sistema de crédito adequado às características específicas de agricultura como actividade económica e como modo de ser biológico poderá então, mas só então, dizer-se que está em curso uma genuína reforma agrária de âmbito e cariz nacionais, democrática capaz de remodelar uma estrutura agrária arcaica e, por isso, anquilosada. Veja-se também a perspectiva de Joaquim Barros de Moura, ContraReforma Agrária, Legislação, Coimbra, Coimbra Editora, 1978. 253 José Medeiros Ferreira, «A reforma agrária na geografia da revolução», in História de Portugal (dir. de José Mattoso), Portugal em Transe (1974-1985), VIII Volume, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 121. 254 Quadro, que aliás, o antigo titular da pasta da Agricultura, António Barreto ilustra categoricamente: «Os funcionários idosos, rotinados pela burocracia e cultivando eventualmente ideias pouco favoráveis ao novo regime, deveriam ser substituídos (...) Os novos serviços criados na fase anterior e a criar nos meses seguintes, constituem um verdadeiro novo ministério maduro para a revolução». António Barreto, Reforma agrária e revolução em Portugal (1974-1976), Mem Martins, Publicações Europa-América, 1987, p. 142. 255 Saliente-se que até Abril de 1975 todos os diplomas agrários são marcados por uma filosofia moderada e reformista, por exemplo, a Lei dos Baldios, o Decreto sobre o arrendamento compulsivo das terras abandonadas ou subaproveitadas. Durante a passagem do III para o IV Governo Provisório, após as ocorrências de 11 de Março, assiste-se ao aceleramento das medidas revolucionárias. 256 José Medeiros Ferreira, ob. cit, p. 122. 165 país, entre 1975 e 1977, acentuarão as clivagens políticas e culturais com o Norte 257 .A área da ZIRA encontrava-se dispersa por sete distritos, mas só dois perfaziam 48,5% do seu total: Beja com 28% e Évora com 20,3%, ocupando assim 41% da superfície do Continente, 46% da superfície agrícola cultivada e 54% da terra arável, embora com um atraso estrutural no peso da economia nacional, pois concorria apenas com 19% para o PIB e o seu contributo para o produto agrícola não ultrapassava os 30% 258. Convém, em boa verdade, separar as ocupações de terra das nacionalizações para se assimilar os diferentes modos de apropriação e as distintas realidades sociais e económicas revestidas na Reforma Agrária. As ocupações de terras processaram-se de forma irregular, avulsa e com diferentes protagonistas (sem menosprezo da acção do PCP, dos sindicatos e militares do MFA) diversamente das nacionalizações efectuadas pelos órgãos governamentais ao abrigo do D.L. n.º 407-A/75, de 30 de Julho, coagidas por tais entidades. Deste modo, segundo António Barreto, é possível traçar a periodização da Reforma Agrária em quatro etapas 259: 1ª - 25 de Abril de 1974 até ao final do ano: abertura da questão agrária; 2ª - Ocupação de terras em Janeiro de 1975: conquista à margem da lei 260; 3ª - Aprovação das leis de expropriação e de nacionalização, em Julho de 1975: processo revolucionário com cobertura legal; 4ª - Inicia-se em Janeiro de 1976, após uma plataforma dos partidos do VI Governo Provisório e termina em Outubro daquele ano com o pedido de demissão de Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura do I Governo Constitucional: consolidação e de contestação. As nacionalizações de terras (que tiveram a aprovação da maioria das forças políticas representadas no IV Governo Provisório) circunscreveram-se num total de 186 638 has de perímetros regados, a maioria concentrada nos concelhos de Alcácer do Sal (68 000 has), Ferreira do Alentejo (23 000 has), Coruche (18 000 has), Odemira 257 O D.L. 236-B/76, de 5 de Abril, acantonou a Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA) aos distritos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal, etc. Para maior esclarecimento veja mapa da Zona de Intervenção da Reforma Agrária em Afonso de Barros, A Reforma Agrária em Portugal, Oeiras, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1981, Mapa I. 258 Em 1970, a densidade populacional da Região Alentejo (exceptuados os concelhos industrializados do Norte de Setúbal) situava-se nos 25 habitantes por km ², em contraste com os 133 habitantes da média de portugueses por km ². Ob. cit., p. 124. 259 António Barreto, «Reforma agrária e revolução em Portugal (1974-1976)», in Portugal. O sistema político e constitucional, 1974-1987, coordenação de Mário Baptista Coelho, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1989. 260 Afonso de Barros admite três fases: de fins de 1974 até Julho de 1975; Verão de 1975; princípios de Outubro até ao final de 1975. Ob. cit. pp. 60-75. 166 (14 000 has), Santiago do Cacém (12 000 has) e Idanha-a-Nova (10 000 has). Na vigência do VI Governo Provisório, sendo Lopes Cardoso Ministro da Agricultura, foi também nacionalizada a Companhia das Lezírias, na altura uma sociedade privada por acções, símbolo da exploração capitalista da agricultura e o maior conjunto agrícola de Portugal, com 23 777 has de extensão. No entanto, o fenómeno global da Reforma Agrária vai mais longe. As terras ocupadas atingiram cerca de 35% da ZIRA. Tratavam-se principalmente de campos cultivados em propriedades privadas (não baldios, propriedade estatal ou terras de abandono), onde foram criadas cerca de 500 Unidades Colectivas de Produção (UCPs) 261 . Tal metamorfose originou uma variada consistência económica e social, na qual o solo tornou-se propriedade do Estado e todas aquelas terras foram colectivamente apropriadas. Por sua vez, as UCPs assenhorearam-se das colheitas, do gado e das alfaias existentes à data da sua criação e empregaram 60 000 trabalhadores (1976), a coberto da euforia e das manifestações rurais protagonizadas pelos fortes Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas, que se multiplicaram no ano de 1975, e pretendiam não apenas as ocupações de terras como a sua legalização através das nacionalizações e particularmente das expropriações. As primeiras ocupações de terras não colhem unanimidade dos vários especialistas, tanto mencionam como primeiro acto de ocupação a acção dos alugadores de máquinas na Herdade de Pombal, no distrito de Évora, em Novembro de 1974, como em finais de 1974, no distrito de Beja ou, segundo António Barreto, a Herdade do Outeiro ou Herdade do Zé da Palma, no concelho de Beja, e outras em Março de 1975 262. De qualquer modo, assinala-se o importante papel dos seareiros e/ou de alugadores de máquinas no começo da ocupação, porque viviam nos últimos anos, do trabalho da sua máquina, quase sempre adquirida a crédito, para agricultores que lhes pagavam à hora ou por empreitada ou, habitualmente, faziam uma seara em quinhão de terras cedidas à ração pelos agricultores para quem trabalhavam com as suas máquinas. À medida que aumentava o encolhimento de numerosos proprietários acharamse os alugadores de máquinas sem labuta bastante para alcançar provento. Nesta 261 262 António Barreto, ob. cit., p. 454. José Medeiros Ferreira, ob. cit. p. 126. 167 medida, sendo conhecedores profundos das técnicas de gestão agrícola, não hesitaram alguns em avançar para herdades em estado de abandono, arrastando consigo assalariados sem trabalho. A partir das acções de seareiros/alugadores de máquinas surgiram outros agentes sociais interessados nas ocupações de terras com os assalariados rurais eventuais e os sindicatos agrícolas 263, assistindo-se, assim, ao progressivo afastamento dos pequenos agricultores no processo de Reforma Agrária no Alentejo 264. O Verão quente de 1975, que corresponde à 2ª fase, encontrou no movimento das ocupações de terras no Alentejo umas das suas mais notórias expressões, durante as quais a “ acção dirigente dos sindicatos prevaleceu sobre as iniciativas pontuais de alugadores de máquinas e de trabalhadores desempregados ” 265 ; aumentam os assalariados agrícolas, as ocupações perdem a configuração indecisa, esporádica e localizada que caracterizou a primeira fase e o movimento assume explicitamente objectivos de alteração das relações de propriedade e de produção 266. A promulgação legal dos Decretos-Leis nºs 406-A/75 e 407-A/75, relativos à expropriação e à nacionalização de terras, veio dar cobertura legal à movimentação político-social na ZIRA. Não admira, por isso, que a par da ocupação de terras, o ímpeto revolucionário conduza à supressão das coutadas (Decreto-Lei n.º 407-C/75). Na verdade, tal medida ocorreu na 3ª fase, de princípios de Outubro até ao final de 1975, em dois meses se ocuparam cerca de 60% do total dos prédios a expropriar, numa extensão aproximada de 700 000 has, que sustentada pelo D.L. 541-B/75, de 27 de Setembro, permitiu a utilização do crédito agrícola de emergência para efectuar pagamentos de salários aos trabalhadores rurais. Até Janeiro de 1976 serão ocupados mais de um milhão de has, predominantemente durante o VI Governo Provisório, empossado a 25 de Setembro de 1975 e assinalando o fim da hegemonia do Partido Comunista e dos elementos radicais. As expropriações ocorrem quando o processo de ocupação de terras está no auge e o Decreto n.º 406-A/75, de 29 de Julho, só é publicado em pleno Verão quente; 263 Ob. cit., p. 127. António Barreto condensa o principal cariz económico-social da reforma agrária: «A polarização social era nítida: um objectivo, a terra; uma classe, os proletários rurais; uma região, o Alentejo; um dirigente, o Partido Comunista; uma organização de massas, o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas; um inimigo, os proprietários de terras. Estes aspectos garantiram o sucesso do movimento de 1975, mas foram também a causa do isolamento cada vez maior a que esteve sujeito a partir de 1976 e da sua posterior derrota». Idem, p. 463. 265 Afonso de Barros, ob. cit. p. 62. 266 Idem, ibidem. 264 168 fazem-se após uma avaliação do estado social da exploração agrícola; as decisões são tomadas por simples Portaria e iniciaram-se em Setembro de 1975, durante o V Governo Provisório chefiado por Vasco Gonçalves, sendo titular da pasta da Agricultura, Fernando Oliveira Baptista, e prolongam-se a diferentes níveis até 1978 267. O movimento de ocupação e as medidas de expropriação e nacionalização de terras desenrolarem-se e foram aplicadas sem que houvesse um projecto claro de qual o tipo de unidade de produção que deveria suceder ao “sistema capitalista latifundiário” 268 , pois o D.L. 407-A/75, não excluía a possibilidade das organizações locais populares elegerem o modelo de gestão empresarial 269 . Foi assim, que nasceram as herdades colectivas e pré-cooperativas, a cujas Comissões de Trabalhadores eram passadas credenciais que as habilitavam aos actos de gestão mínimos, naturalmente sob um manto de gestão colectiva 270 altamente conduzida pelo PCP e Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas, assim como elementos de uma variada esquerda revolucionária nacional e até internacional. Predominava na ZIRA a agricultura de sequeiro, “ com acentuado peso dos cereais de Inverno e do chamado trigo rijo, cultivado no âmbito de grandes empresas ou latifúndios, que concentravam os meios de produção” 271. A par das formas de gestão estatal, a Reforma Agrária deu origem a dois tipos de novas unidades de produção: a Cooperativa de Produção Agrícola ou Agropecuária, que tinham de respeitar os limites físicos das anteriores herdades, em muitos casos provenientes de ocupações feitas por seareiros e alugadores de máquinas de terrenos, onde o peso dos trabalhadores rurais permanentes era maior, e a UCP, nascida do movimento de ocupação de terras por trabalhadores rurais eventuais, dirigido 267 Aquando das expropriações já ocorrera a ocupação de 400 000 has de terras, circunstância que impeliu a tendência de considerar como objecto de reconversão da propriedade para as mãos do Estado, não os baldios ou os latifúndios incultos e ainda menos o critério da área da exploração, mas antes um critério de rendimento da terra calculado em pontos. Contudo, os proprietários expropriados tinham direito a uma área de reserva até um limite equivalente a 50 000 pontos de valor cadastral, desde que explorassem directamente a propriedade. A aplicação do D.L. n.º 406-A/75 durou até à publicação da Lei n.º 77/77. Até essa data foram expropriados cerca de 900 000 has, correspondendo a 3 623 herdades, ⅔ do total da área estimada como passível de tal medida. 268 Afonso de Barros, A reforma agrária em Portugal. Das ocupações de terras à formação das novas unidades de produção, Oeiras, 2ª edição, Instituto Gulbenkian da Ciência, 1981, p. 107. 269 Preâmbulo do diploma. 270 Anote-se que o acréscimo de trabalhadores permanentes entre a época anterior às ocupações e 1976-1977 cifra-se em 4 vezes, sendo de 2,9 vezes o aumento total de trabalhadores permanentes e eventuais. Afonso de Barros, ob. cit., p. 117. 271 José Medeiros Ferreira, ob. cit., p. 130. 169 localmente pelo Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas, que reformava os termos das herdades ocupadas 272. Neste ambiente de delírio empresarial, foram criadas 500 UCPs, cobrindo mais de um milhão de has, sob a égide de uma filosofia revolucionária nacional e internacional, na convicção da superioridade produtiva da agricultura em larga escala que correspondia ao arquétipo instituído pelo PCP para a zona da Reforma Agrária, a quem foi facultado crédito e os circuitos comerciais. Tais unidades conservaram as “colheitas dos antigos exploradores assim como o gado e as máquinas destes, garantindo entre 1975 e 1976, 60 000 postos de trabalho e atingindo, por vezes, entre 15 000 a 20 000 has “ 273. As UCPs, explorações originais, não correspondiam em rigor, nem a cooperativas, nem a empresas estatais, pois as suas direcções eram designadas pelos trabalhadores e o Estado fora afastado da sua administração. Houve também a formação de cooperativas, de menor dimensão, mas a falta de enquadramento técnico e financeiro e a mudança de orientação política, cada vez mais longe do radicalismo inicial, tornaram difícil a vida destas explorações. Apesar de tudo, as UCPs produziram um aumento de superfície cultivada no ano agrícola de 1975-1976 com o desbravamento e arroteia de áreas incultas, sem contudo, cuidar da protecção e uso dos solos “ excessivamente delgados, sem aptidão agrícola “ 274. A viragem na política agrária ocorreu após a publicação da Lei n.º 77/77, de 29 de Setembro, dita Lei Barreto, que aproximou o PS e PPD/PSD, com oposição radical do PCP, algumas organizações radicais e militares do MFA, apoiando-se, quase sempre, numa massa anónima de atropados entre 1975 e 1976, com acantonamento na cintura industrial de Lisboa e nos camponeses da ZIRA. As expropriações legais alcançaram um milhão de has, quando pelo Decreto-Lei que as regulamentou podiam atingir um milhão e seiscentos mil has. Próximos a 1982, 272 No entanto, um número vasto de cooperativas agrícolas nasceu das desanexações de terras inicialmente reunidas nas UCPs, que se quiseram autonomizar sem romper com o movimento social de reforma agrária. Contrariamente, nas cooperativas que se constituíram na União das Cooperativas Livres do Baixo Alentejo (COLBA) avultam empresas geridas por antigos feitores, em terrenos férteis e bem providos de equipamento. Afonso de Barros, ob. cit., pp. 108 e ss. 273 Os modelos de gestão das UCPs definiam-se pelos seguintes parâmetros: «A propriedade do solo era do Estado, após as expropriações e as nacionalizações; a propriedade das máquinas e alfaias agrícolas era da UCP; a gestão da UCP era autónoma do Estado proprietário; os responsáveis pela gestão eram eleitos pelos membros da UCP; salvo excepções, os membros da UCP não tinham o direito de cultivar nem de explorar individualmente pequenas parcelas de terra; a UCP tinha personalidade jurídica para os actos comerciais exteriores e podia dispor da sua produção colocando-a livremente no mercado, com a notável excepção da cortiça, que pertencia ao Estado». José Medeiros Ferreira, ob. cit, p. 131. 274 Idem, ibidem. 170 as UCPs detinham apenas 450 000 has e cerca de 150 000 has haviam sido distribuídos pela Aliança Democrática a pequenos e médios agricultores, numa tentativa de criar uma nova realidade social assente em empresas agrícolas de média dimensão. Em 1987, restavam na “fruição de UCPs – que vieram a assumir a forma jurídica de cooperativas – cerca de trezentos e cinquenta mil has “ 275. A par desta reconversão agrícola, a Lei da Caça n.º 30/86 teria de enfrentar, numa 1ª fase, a resistência destas UCPs, ou seja, a politização da Reforma Agrária que escondeu, durante esses anos e mesmo depois, as outras grandes questões rurais e agrícolas em Portugal, que se irão revelar após a entrada na CEE. A legislação sobre a Reforma Agrária acompanha a oscilação da evolução política geral 276. Em Janeiro de 1976, foi celebrado um “pacto sobre a Reforma Agrária” entre os partidos representados no VI Governo Provisório (PS, PPD e PCP), através do qual são introduzidas novas e mais restritivas orientações 277 , entre as quais: impedir novas transformações das estruturas fundiárias (efectivação de novas ocupações mesmo no ZIRA), limitar os prejuízos aos agentes sociais mais atingidos pelas medidas tomadas e alargar o número de proprietários com direito a reservas de exploração, ou seja, a todo o empresário agrícola que o requeresse, contrariamente à limitação prevista no DecretoLei n.º 406-A/75, extensível apenas aos proprietários que explorassem directamente a terra e da exploração agrícola retirassem a principal parte dos seus rendimentos. Na verdade, a Lei Barreto visava a “ transformação das estruturas agrárias do país”, admitia a necessidade de uma reconversão fundiária como condição prévia para uma nova política agrícola no Sul do país, embora com a oposição frontal do PCP. Deste modo, entrou-se numa nova fase política do Ministério da Agricultura, agora como promotor no processo, na parte e na medida, em que a Lei facultava autoridade ao Ministro para estabelecer as áreas de reservas a conceder a antigos proprietários ou a outras entidades empresariais. Como se viu, em 1975, declaram-se sujeitos a expropriação os prédios com extensão superior a 500 has de sequeiro ou 50 has de regadio, números aproximados, ajustáveis em função do rendimento (50 000 pontos de rendimento fundiário cadastral); 275 Ricardo Sá Fernandes, «A Constituição económica agrária», in Portugal. O sistema político e constitucional, 1974-1987, coordenação de Mário Baptista Coelho, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1989, pp. 897-898. 276 Depois de 11 de Março surge o primeiro texto legal que trata explicitamente de reforma agrária: o DecretoLei n.º 203-C/75, de 15 de Abril, que aprovou as bases gerais dos programas de medidas económicas de emergência. 277 Ou seja, legalizar, através de portarias de expropriação, as ocupações de terras e em reconhecer, por despachos ministeriais, as novas unidades de produção assim constituídas. 171 em 1977, estes limites foram elevados para 70 000 pontos, cabendo ao Ministério da Agricultura a faculdade de aumentar a área das reservas. Em Outubro de 1988, o limite mínimo de expropriação foi elevado para 91 000 pontos, o que na prática pouco ou nada significou. Na própria Constituição, segundo a revisão de 1989, passou a falar-se de reconversão, em vez de Reforma Agrária. Na realidade, decorridos vinte anos sobre o seu início, o processo que esta representou tinha terminado. A partir de 1991 foi abolida a ZIRA e tomaram-se medidas para entrega das propriedades e para pagamento de indemnizações 278. Em Julho de 1978, o CDS provocou uma crise governativa protagonizada por Diogo Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa, após considerar exíguos os efeitos da devolução de terras aos antigos proprietários, por via da aplicação da Lei n.º 77/77, factos que levaram à queda do II Governo Constitucional e à formação de três executivos sucessivos de iniciativa presidencial, bem como aceleraram a política de entregas de reservas. No entanto, durante o Governo da Aliança Democrática, presidido por Sá Carneiro, tal procedimento beneficiou maior número de pequenos e médios agricultores e antigos proprietários, contrariando assim o slogan do PCP, que reagiu de forma violenta em todo o Alentejo, em defesa da política colectiva dos meios de produção. Tabela 5: Entrega de terras a antigos proprietários/ has (1978-1981) Governo PS/PSD 17 997 has Idem Nobre da Costa 24 000 has Idem Mota Pinto Idem Maria L. Pintassilgo Idem Sá Carneiro Idem Pinto Balsemão 24 800 has Total 535 197 has 100 400 has 45 000 has 324 000 has Fonte: Extraído de “ A Reforma Agrária na geografia da revolução”, adaptado segundo Eugénio Rosa, O fracasso dos governos de direita em Portugal, Lisboa, edições Um de Outubro, 1982, p. 301. Sem dúvida que, com a ocupação de terras e o aumento da área cultivada (mais de 15% para uns, 17% para outros), os anos de 1975 e 1976 foram excepcionais em termos de produção de trigo, de 601 000 toneladas e 686 000 toneladas respectivamente, acontecimento só ultrapassado em 1934, ano em que se obteve uma 278 Veja-se os artigos de Manuel Carvalho, Francisco Cabral Cordovil, José Manuel Fernandes, Ana Sousa Dias, Jornal Público, Lisboa, 30-07-1995, na sua generalidade, referenciados por Carlos Alberto Medeiros, ob. cit., p. 179. Aí se pode constatar, em finais de 1995, que o Estado ainda tinha para devolver 2 800 has de terras; sem hipótese de recuperação pelos antigos proprietários estavam mais de 36 mil has de terras, arrendadas pelo Estado a 500 agricultores. 172 colheita de 711 000 toneladas. Tal circunstância deveu-se, em parte, às magníficas condições meteorológicas propícias à cultura de sequeiro 279. Por outro lado, aumentaram outras culturas como o linho, girassol e o tabaco, bem como a criação de gado, além de terem melhorado as condições de vida dos assalariados rurais, circunstância, no entanto, efémera porque as alterações constitucionais afastaram o slogan da Reforma Agrária como instrumento fundamental para a construção da sociedade socialista: em 1982, a reforma agrária subordina-se à política agrícola; em 1989, foi totalmente suprimida na Constituição qualquer referência à reforma agrária que, assim, se tornou um fenómeno transitório das novas políticas comunitárias resultantes da integração na CEE. 279 José Medeiros Ferreira, ob. cit., p. 137. 173 4. Política Agrícola no passado recente A actividade agrícola, como fracção da actividade económica e social e pelo relacionamento que gerou com as áreas que a antecedem ou sucedem na cadeia produtiva, assumiu em Portugal uma grande importância económica. No Alentejo atinge a maior unidade nacional com grande influência no sector primário a nível económico e social, mesmo sofrendo ao longo dos anos uma estagnação na forma de produção. Na verdade, a política de incentivo à produção cerealífera seguida pelo Estado Novo a partir dos anos trinta, no propósito de alcançar a auto-suficiência alimentar, provocou uma adaptação de grande parte das explorações a este tipo de cultura, acontecimento decisivo na inércia que foi ocorrendo na agricultura alentejana, pois o intervencionismo e o proteccionismo marcaram profundamente este sector de actividade económica. A actuação estatal garantia a totalidade do escoamento dos cereais aliada ao pagamento, através de elevados subsídios, de toda a produção, não sendo necessário por parte dos agricultores a sua associação para a constituição de circuitos de comercialização dos produtos, função inteiramente realizada pelo Estado. Estes factos permitem notar que esta forma de produção não funcionava em concorrência perfeita com as outras actividades agrícolas, daí a sua vantagem. A actividade agrícola criou, durante largos anos, riqueza para os empresários e para a região, pois os subsídios rentabilizavam largamente este tipo de cultura, inclusive em explorações de pequena dimensão. Deste modo, estas explorações vocacionadas para as culturas mais intensivas, nomeadamente hortícolas e culturas de estufa, que utilizavam uma maior quantidade de mão-de-obra que os cereais, adaptaram também este sistema cultural, com prejuízo para a ocupação dessa produção agrícola. Acresce, neste período, que a mecanização era incipiente, as culturas de cereais necessitavam de muita mão-de-obra, nomeadamente durante a ceifa, recorrendo os seareiros à contratação de trabalhadores sazonais. O incremento deste sistema numa área cada vez maior, favorecida pela estrutura fundiária das explorações de grande dimensão, essencialmente de latifúndio, pouco diversificadas e utilizando bastante mão-de-obra, adaptaram todas as suas estruturas físicas e técnicas a este tipo de cultura de sequeiro e explorada de modo extensivo, como os cereais e as pastagens e forragens, essencialmente em terra limpa sem coberto florestal ou disperso, de modo a facilitar a utilização da maquinaria em muitos 174 casos à exploração pecuária extensiva, alimentada à base de pastagens e restolhos das culturas arvenses. Todas estas tarefas implicavam investimentos elevados, que eram facilmente recuperados através dos subsídios a que os agricultores tinham acesso, nomeadamente em maquinaria, tractores e alfaias. Tais explorações eram geridas pelo próprio empresário, geralmente com escolaridade reduzida e de uma forma rotineira, cujos conhecimentos assentavam no empirismo e na herança social e familiar, facto que explica em parte a dificuldade em alterar a actividade bem como, contabilidade que organizasse a gestão da exploração de forma a apurar correctamente os resultados de exploração, no final do ano agrícola. Todo o conhecimento agrícola dos empresários era virado para as culturas arvenses e transmitia-se de geração em geração. Os serviços de apoio aos agricultores não existiam e, mesmo que existissem, eram inúteis, porque esbarravam com o espírito conservantista e a sabedoria, que os próprios afirmavam possuir, sobre este tipo de actividade. Esta conjuntura conduziu a um processo de acomodação em termos produtivos, inclusive para aqueles que tinham solos mais pobres (menor produção) e áreas muito pequenas (maior custo de produção). Estes factos negativos eram facilmente recompensados pelas elevadas subvenções atribuídas a este tipo de cultura. O uso intensivo dos solos provocou o seu esgotamento e a progressiva erosão; as culturas arvenses e o trigo, particularmente, são muito exigentes em nutrientes e provocam uma maior erosão do solo, por causa das grandes mobilizações que sofrem até à cultura. Quando comparado com outros países, quer no contexto europeu quer mesmo à escala mundial, Portugal surge como um país especializado na actividade silvícola, visto que estas actividades têm no PIB, a preços de mercado, um peso superior aos valores médios europeus e mundiais 280. Embora desde a década de 60 se tenha feito sentir uma diminuição do peso da agricultura e silvicultura em termos económicos em Portugal, sem dúvida que o complexo agro-florestal 281 , e por maioria de fundamento, o complexo agro-alimentar 280 Por exemplo, comparativamente à União Europeia, em 1991, dos quinze estados membros, Portugal em termos de importância relativa do sector florestal no PIB, ocupava o terceiro lugar, com 3%, a seguir à Finlândia (7%) e Suécia (4%). Alfredo Gonçalves Ferreira e Ana Cristina Gonçalves, Plano Específico de Ordenamento Florestal para o Alentejo, Évora, Universidade de Évora, 2001, p. 160. 281 O complexo agro-florestal (CAF) é constituído pela Agricultura, Indústrias Agro-alimentares, Silvicultura e Indústrias Florestais. 175 (Agricultura, Silvicultura e Indústria Agro-Alimentar), conserva uma importância respeitável na economia. Em termos reais, quanto ao Continente, o peso do Valor Acrescentado Bruto a preços de mercado (VAB) proveniente do complexo agro-florestal (CAF) no VAB da economia, em 1990, era de 8,3%, e, em 1999, já só representava 4,2%; igualmente em relação ao emprego nesta actividade, tem-se assinalado uma quebra do seu peso; a quantidade de trabalho do CAF representou 16% do total, dos quais 10,5% na agricultura e silvicultura. Por seu lado, a actividade florestal no seu conjunto, primário e secundário, representa cerca de 6% do total da população activa empregada 282. Ainda que a actividade florestal e as actividades directa ou indirectamente relacionadas com a floresta tenham uma relevância muito grande em Portugal, estas apresentam características diferentes para as regiões. No Alentejo, apesar de o sector terciário apresentar uma dinâmica de crescimento idêntica à do país, com maior representatividade na estrutura de distribuição sectorial do VAB, o facto de essa região ter a maior parte da sua superfície destinada à agricultura e silvicultura, permite-nos caracterizá-la pela predominância do sector primário sobre todos os restantes sectores de actividade económica, quando comparada com outras regiões do Continente. Em 1993, o VAB do sector primário referente ao Alentejo representava cerca de 15,4% do total do país, sendo de 14,3 % do total do VAB da Região que dispõe de 2 842 094 has de SAU, com cerca de 45 234 explorações agrícolas; a área média é de 39,2 has por exploração, cerca de cinco vezes superior à média das explorações do Continente (8,6 has). Apesar de coexistirem na região um pequeno número de explorações com a área bastante elevada e um número superior com uma área relativamente pequena 283 , o Alentejo dispõe de melhores condições fundiárias que a maioria das outras regiões do país. Porém, a rendibilidade dessas explorações não é a melhor, dado que cerca de 85% apresentam níveis de rendimento abaixo do salário bruto não agrícola nacional, explorações que são representativas de cerca de 21,5 % da SAU da Região. 282 INE, 1999. Saliente-se que para além dos produtos transaccionáveis, a floresta dá origem a outros benefícios indirectos – externalidades positivas –, muito difíceis de quantificar. 283 De acordo com o Recenseamento Geral da Agricultura de 1989, do total das explorações tinham uma área inferior a 50 has, representando cerca de 15% de Superfície Agrícola Utilizada, enquanto os restantes 85% respeitavam apenas a 15% das explorações. «Estudo para a definição de uma Base Económica para a Região do Alentejo», Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, Lisboa, CEDRU, 1996. 176 A elevada percentagem de superfície que é ocupada no país por explorações agrícolas e/ou florestais (75%), no Alentejo, essa área representa 85% do total, com uma extensão equivalente a um terço da superfície total do território nacional e uma densidade populacional cerca de 19% do continente. Nesta região, a actividade florestal é realizada maioritariamente em associação com a agricultura, contrariamente ao resto do país onde aparece isoladamente em toda a área florestal. Em termos económicos, as actividades florestais contribuem em média com 25% para o produto agrícola da região agrícola alentejana 284. Em finais de 2000, a superfície florestal no Alentejo representa 37% da superfície do Continente e cerca de 40% do total da superfície da região, com particularidade da floresta com culturas sob-coberto estar concentrada na região. As actividades florestais estão em grande parte inseridas nas explorações agrícolas combinando-se frequentemente com as actividades agro-pecuárias em sistemas produtivos integrados. Do total das explorações que existiam em 1995 no Alentejo, cerca de 24% situavam-se entre os 0 e os 5 has, 22 % têm mais de 100 has, repartindo-se os restantes 54% igualmente pelos restantes escalões de dimensão média. Atendendo à estrutura fundiária, no entanto, as explorações melhor dimensionadas (cerca de 22%) ocupam cerca de 80,8% do total. No que respeita à propriedade das explorações, a grande maioria delas são pertença de produtores singulares (cerca de 94%), das quais 16% são detidas por empresários, enquanto as restantes explorações pertencem a produtores singulares autónomos285. O sector agrícola empregava, em 1994, cerca de 23% da população activa portuguesa e originava um valor acrescentado próximo de 9% do PIB. Tais índices globais, sendo bem a expressão de uma agricultura atrasada relativamente aos restantes sectores de actividade, escondem, contudo, uma grande diversidade de situações que vão desde a mera subsistência até à existência de faixas de explorações 284 Alfredo Gonçalves Ferreira e Ana Cristina Gonçalves, ob. cit. pp. 161-162. Veja-se ainda que entre as espécies florestais que podem ter um papel fundamental na transformação do Alentejo, está certamente o sobreiro como cultura mais remuneradora. Em 1969, as estimativas do rendimento fundiário médio para o sobreiro variavam entre 296$00 e 1074$00 por has. Então o preço do trigo era de 2$75 por kg, enquanto a arroba de cortiça valia, em média, 83$67; isto é, com uma arroba de cortiça compravam-se cerca de 30 kg de trigo. Actualmente, o sobreiro evoluiu no sentido de tornar ainda mais lucrativo a produção florestal, comparativamente às arvenses, ou seja, com uma arroba de cortiça compram-se mais de 350 kg de trigo. António Manuel de Azevedo Gomes, Fomento da arborização nos terrenos particulares, Planeamento a Sul do Tejo. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1969. 285 Saliente-se que as explorações detidas por tais empresários respeitam em grande parte (71%) a explorações entre 50-100 has e com mais de 100 (só estas últimas representam quase 92% da Superfície Florestal). Idem, p. 165. 177 agrícolas dinâmicas e eficientes, a proporcionarem elevados níveis de rendimento aos agricultores 286. Gráfico 1: A importância do PAB na formação do PIB em percentagem 35 34,1 30 23,9 25 20 17,23 15 10,67 10 6,22 6,08% 5 0 1950 1960 1970 1986 1990 1991 Fonte: INE, Banco de Portugal (relatórios anuais); J.A.Girão. Desde 1973 até 1986, as tendências demonstradas pelos indicadores globais da agricultura portuguesa não sofreram grandes alterações relativamente aos anos anteriores. O PIB manteve-se incapaz de satisfazer as necessidades do consumo interno, acrescido pelo aumento da população residente em quase um milhão de pessoas, oriundas, quase todas, das antigas colónias. Os défices da balança agrícola permaneceram, embora mitigados pelo aumento espectacular das exportações de produtos da floresta: a taxa de cobertura das importações pelas exportações passou de 77,8% (1973) para 88,4% (1986). Se tomarmos em conta a evolução das áreas cultivadas de algumas principais espécies produzidas no Continente, verificamos uma tendência geral de redução que, não obstante possa estar ligada à conjugação de diversos factores. Na verdade, a superfície cultivada anualmente, que inclui as áreas ocupadas por espécies, de modo algum corresponde à “superfície produtiva ou à superfície agrícola útil”, mas representa, de “certa maneira e tendencialmente, a retracção das áreas anualmente sujeitas a 286 Raquel Soeiro de Brito, Portugal Perfil Geográfico, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 168. 178 operações culturais, amanhos, granjeios ou colheitas, com vista à produção agrícola ” 287 . Estamos, assim, perante um sentimento permanente de crise na agricultura portuguesa, em parte devido a condições naturais desfavoráveis, mas também a aspectos estruturais determinantes pela evolução da conjuntura da economia portuguesa, sobretudo nas últimas décadas do século XX. A produtividade do trabalho agrícola manteve-se bastante abaixo do nível de produtividade geral da economia, ao mesmo tempo que o produto agrícola foi perdendo peso na composição do PIB, como aliás aconteceu e continua a acontecer, em todos os países industriais ou em esforço de industrialização. Entre as culturas destinadas à indústria, salientam-se a cevada dística, o tomate, o girassol e, durante alguns anos, o cártamo. Todas se repartem preferencialmente pelo Alentejo, embora estejam também representadas no Ribatejo. Segundo a sistematização de Armando Sevinate Pinto, a agricultura, depois de constituir sector subalterno em 1950-1960, entrou em rotura com o tipo de crescimento baseado na indústria em 1960-1974 e acabou por se tornar verdadeiro travão ao desenvolvimento socioeconómico. Descapitalizada no primeiro período, vê-se incapaz, no segundo, de responder às exigências cada vez maiores de consumo alimentar, relacionadas com circulação crescente de dinheiro (aumento do PIB e das remessas dos emigrantes e receitas do turismo) 288. A agricultura permaneceu, enfim, um sector muito heterogéneo encerrando em si uma enorme diversidade de situações e das próprias regiões agrícolas.Com alguma dose de abstracção, podemos encontrar um certo grau de especialização produtiva para uma faixa de explorações e regiões agrícola, essencialmente em torno das actividades privilegiadas pelas políticas fomentistas dos anos sessenta e princípios dos anos setenta. Contrastando com esta situação, por todo o Alentejo mantém-se a particularização em produções tradicionais como cereais e azeite, que nunca 287 Apenas a batata e o arroz registam aumentos na superfície cultivada e a cevada e a fava, diminuições no rendimento. Notam-se modificações sensíveis no quadro das culturas a que podemos chamar tradicionais. No que respeita à superfície cultivada anualmente sofreu uma redução de 1 404 704 has, o que equivale a 43%, percentagem realmente considerável. Fernando Oliveira Baptista, A Politica Agrária do Estado Novo, Porto, Edições Afrontamento, 1993, pp. 378-379. Segundo dados difundidos pelo INE, a superfície agrícola seria de 3 636 579 has, em 1993. 288 Os autores mostram como foi sobretudo significativo o acréscimo do consumo de carne, que levou ao da produção de alimentos compostos para os animais – mas marginalizando a produção forrageira nacional e com base na importação de milho e outros cereais. Armando Sevinate Pinto, Avillez, Francisco et alli, A Agricultura Portuguesa no Período 1950-1980: de suporte do crescimento industrial a travão do desenvolvimento económico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. 179 beneficiaram das políticas de fomento bem estruturadas que consolidaram os sectores mais dinâmicos da agricultura nacional 289. A integração de Portugal na Comunidade Europeia (CE), consagrada com a assinatura do tratado de adesão de 1986, constitui, depois do êxodo rural da década de 60, o mais importante factor de mudança que influenciou a agricultura portuguesa nos últimos tempos que, até à data da adesão, viveu sob os auspícios das políticas fomentistas, orientada para o objectivo de auto abastecimento. Mesmo quando aquelas políticas não tinham uma configuração bem estruturada, resumindo-se à simples marcação administrativa de preços elevados, surtiam um efeito, se não fomentista, pelo menos proteccionista como aconteceu no caso dos cereais, durante os últimos anos que antecederam a integração. Daí que a agricultura portuguesa tenha vivido as últimas décadas envolta num ambiente de grande intervencionismo e proteccionismo estatal que, aliás, explica em parte a capacidade de sobrevivência de situações caracterizadamente ineficientes. As importações de bens agrícolas eram feitas na estrita medida das necessidades, decorrentes da insuficiência da produção interna para satisfazer a procura, e os produtos importados eram lançados no mercado a preços que não prejudicassem o escoamento da produção nacional. Por outro lado, os bens considerados essenciais para a dieta humana eram subsidiados, de molde a tornaremse acessíveis a toda a população independentemente dos preços pagos à produção; finalmente, para muitos bens alimentares estabeleciam-se regras de intervenção no mercado que evitavam a degradação dos preços em caso de oferta. Após a adesão à CE, a agricultura portuguesa foi posta perante uma situação completamente nova, de que relevam três aspectos essenciais: a sua inserção num espaço económico excedentário em muitos produtos agrícolas nos quais Portugal é deficitário ou, não o sendo, tem níveis de consumo muito baixos, passíveis de expansão; a sua inserção num sistema mais concorrencial que actualmente evolui para a liberalização das trocas com países terceiros e redução dos mecanismos de intervenção do mercado interno; a disponibilidade de um conjunto de meios e instrumentos com os quais a agricultura portuguesa poderá reformar as suas estruturas e adaptar-se de forma positiva às novas exigências da política agrícola comum. 289 Idem, pp. 174-175. 180 Os primeiros sete anos de integração revelaram as enormes fragilidades de uma agricultura que não conseguiu emergir, apesar dos significativos fluxos de capital de que beneficiou. Desde a data de adesão à CE, foi reconhecida a especificidade da agricultura portuguesa e a sua maior dificuldade em adaptar-se às regras da política comum. Com base nesse reconhecimento negociaram-se dois regimes de transição diferentes, de acordo com o grau de organização das produções agrícolas que integravam. O país ficou ligado a um amplo espaço geográfico, no seu conjunto com nível tecnológico superior, e em relação ao qual se levantam problemas de excedentes de produção, que determinaram a fixação generalizada de preços baixos. Os ajustamentos graduais no sentido destes, a fixação de níveis de quotas de produção, as propostas e os incentivos quanto à reconversão da utilização do solo começam a fazer sentir os seus efeitos no nosso país. Os agricultores portugueses vêem-se agora confrontados com incentivos para reduzirem a área e a produção de muitas das espécies cultivadas, o que vai contra o sentido das solicitações e estímulos que lhes eram repetidamente lançados. A concorrência de produtos dos parceiros comunitários tem sido fonte de atritos e descontentamentos. Os processos e as fases, segundo as quais, no âmbito da PAC, se dará a integração plena de Portugal na Comunidade vão ser relevantes na evolução da nossa agricultura. Para os cereais, leite e lacticínios, carne de bovino e suíno, vinho, frutas e produtos hortícolas frescos, que no seu conjunto representavam cerca de 85% da produção agrícola nacional, foi negociada uma transição em duas etapas: - Na primeira, com a duração de cinco anos, a gestão dos mercados manter-se-ia da responsabilidade das autoridades portuguesas que, entretanto, deveriam providenciar as acções inerentes à adaptação dos sistemas nacionais aos mecanismos comunitários. Esta primeira etapa incluiu já a observância de uma disciplina para a evolução dos preços nacionais, dos subsídios e das condições do comércio com países terceiros e com os parceiros comunitários; - Na segunda, também com a duração de cinco anos, contados a partir de 1 de Janeiro de 1991, dever-se-ia proceder à integração gradual dos mercados nas respectivas organizações comuns, segundo um procedimento idêntico ao seguido na transição clássica. 181 Em 1992, a reforma da PAC veio colocar novos desafios à agricultura nacional. Incidindo sobre os cereais, oleaginosas, proteaginosas, forragens secas, tabaco, açúcar, leite, carne de bovino e carne de ovino, a reforma reflecte-se indirectamente na suinicultura e avinicultura, afectando, cerca de 75% da produção agrícola comunitária 290 . Deste modo, promove a tendência de liberalização das trocas com países terceiros e de redução drástica dos mecanismos de intervenção no mercado e de sustentação de preços; prevê a compensação das quebras de rendimento dos agricultores, decorrentes da diminuição do valor final das suas produções, através da instituição de subsídios atribuídos por has de terra cultivada ou por cabeça de gado. Trata-se de um processo de compensação complexo, que tem sido contestado por grande parte das estruturas representativas dos agricultores em toda a Europa meridional, nomeadamente em Portugal: a PAC coloca os agricultores na total dependência da decisão política das instituições comunitárias quando, anualmente, estabelece o montante dos subsídios a inscrever no orçamento; por outro lado, introduzindo um maior nível concorrencial na agricultura europeia, poderá de facto, penhorar a viabilidade económica de uma significativa faixa de explorações agrícolas pouco eficientes ou mal enquadradas do ponto de vista comercial. A partir de 1993, com a entrada em vigor das normas do Mercado Único e após duas renegociações dos regimes de transição para a integração da agricultura portuguesa, os mercados perderam, praticamente, eficácia nos aspectos relacionados com as trocas. Também foram introduzidas diversas alterações e derrogações da legislação comunitária referente à política socioestrutural e à política de mercados, com o objectivo de os tornar mais facilmente aplicáveis em Portugal 291. 4.1. Estruturas Demográficas O crescimento regressivo da população no Alentejo alterou a estrutura etária. Proporcionalmente ao país, a Região apresenta maiores níveis de idosos e menores níveis de jovens. O peso da população em idade activa é no Alentejo inferior à verificada 290 Os principais apoios à agricultura portuguesa entre 1986-1992 atingiram a quantia de 265 milhões de contos, repartidos pelo FEOGA (Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola) e OGE (Orçamento Geral do Estado). Dados extraídos do IFADAP e INEA. 291 Particularmente foi instituído um programa específico para o desenvolvimento da agricultura portuguesa, conhecido pela sigla PEDAP, com uma duração de 10 anos, abrangendo todo o território nacional em domínios diferentes como melhoramento das estruturas fundiárias, valorização dos produtos agrícolas, melhoria dos sistemas de drenagem e irrigação, florestação e formação, vulgarização e investigação. 182 no território nacional. Pela análise da população entre os censos de 1981 e 1991 se constata essa mudança. Em 1981, a população residente no Alentejo era de 578 430 habitantes. No país, a população activa agrícola era minoritária em todos os distritos e o contraste entre o Litoral e o Interior permanecera de forma generalizada. Partiram principalmente os assalariados e os jovens que, no quadro familiar, prestavam ajuda às explorações. Dez anos depois, a população no Alentejo diminui para 541 548 (-6,38%) o que correspondia a 5,7 % da população do país. No final de 2000, de acordo com os dados preliminares dos Censos da População de 2001, a população residente era de 534 365 habitantes, o que representa apenas 5,2% da população do país292. A diminuição da população dos concelhos do Interior resulta fundamentalmente da fuga generalizada ao campo. Muitos jovens deixam a aldeia para procurar trabalho na sede do concelho, antes de decidirem a sua partida para mais longe, quer para as faixas progressivas do Litoral, quer para os países europeus industrializados que até, há pouco, os recebiam de bom grado. O resultado foi, obviamente, um envelhecimento acentuado das pessoas que trabalhavam no campo. Em geral, foram os filhos que emigraram para a cidade ou que se empregaram em qualquer ofício não agrícola. Os pais vão mantendo a exploração em funcionamento, enquanto podem, episodicamente ajudados durante os fins-desemana pelos filhos que vivem perto, ou no Verão pelos que passam férias na aldeia 293. A população activa na agricultura representa em 1996 cerca de 23% da população activa total da região; em 1999, os trabalhadores agrícolas permanentes representavam apenas 67% do valor apurado em 1989, e os trabalhadores eventuais 60%; a estrutura de povoamento teve a sua evolução recente marcada por alterações significativas, globalmente associadas a grandes perdas de população, reproduzindo um espaço de ocupação demonstrado por duas características essenciais: - Êxodo continuado da população das zonas de ruralidade acentuada, atenuado acidentalmente após a ocupação de terras no período revolucionário, que nacionalizou em 1975 a maioria dos prédios rústicos no Alentejo; 292 Caracterização da Região Alentejo (policopiado), DRAAL, Évora, Junho 2002, p. 3. A idade média dos chefes de exploração aumentou sensivelmente. Em muitas regiões do Interior mais de 30% tinham em 1979, 65 anos ou mais; em 1989, a proporção subia a 29% em média no País, a 40% na Beira Interior e a 41% no Algarve. Suzanne Daveau, Portugal Geográfico, Lisboa, 3ª Ed., Edições João Sá da Costa, 2000,p. 155. 293 183 - Atracção pelos aglomerados urbanos das sedes dos concelhos, que concorrem com os tradicionais pólos de atracção situados no exterior da Região. Gráfico 2: População residente por sexo e densidade populacional/km² (1992) 9.859.630 10.000.000 8.000.000 5.107.460 4.752.170 6.000.000 4.000.000 537.020 262.280 2.000.000 274.740 20 107 0 Alentejo Continente Homens 262.280 4.752.170 Mulheres 274.740 5.107.460 20 107 537.020 9.859.630 Densidade da população Total Fonte: Fonte: Anuário Estatístico, Região Alentejo, 1993. Em 1992, apenas 5% da população do Continente residia no Alentejo, o que correspondia a uma densidade média de 20 habitantes/ km², valor inferior ao observado no Continente (107 habitantes/km ²) no mesmo período; a densidade populacional, em finais de 2000, era de 19,8 habitantes/km². Verificamos também a predominância do sexo feminino em todos os locais analisados, bem como a perda generalizada de população no período examinado. Gráfico 3: População residente total por classe etária e representatividade no Alentejo e Continente-1992 10.000.000 9.000.000 8.000.000 7.000.000 6.000.000 5.000.000 4.000.000 3.000.000 2.000.000 1.000.000 0 Alentejo Continente 0 a 14 15 a 24 25 a 64 65 ou mais Total 95.047 72.948 270.452 104.442 543.442 1.971.659 1.610.089 1.342.221 9.862.540 1844.938.571 Fonte: Idem Porém, se observamos por grupos etários, com igual metodologia, constamos que cerca de 1/5 da população do Alentejo tem mais de 65 anos de idade, sendo o segundo grupo mais representativo, ao contrário do Continente em que este corresponde à classe etária mais nova, sendo a classe mais velha a que apresenta um menor número. A faixa etária da população residente, caracterizada por duplo envelhecimento (existência de poucos jovens e muitos idosos), exterioriza-se, sobretudo, no facto de a maior parte da população agrícola (66%) ter mais de 55 anos de idade, associado à circunstância de a saída da população se repercutir maioritariamente nas camadas mais jovens. Esta ocorrência relaciona-se com o desenvolvimento socio-económico e tem efeitos imediatos sobre a população activa, acelera o processo de envelhecimento do segmento em que se acentua a sua triagem e origina o declínio absoluto do seu efectivo. Outro evento decorre do fraco nível de instrução da população da zona, com uma proporção muito elevada de analfabetos (em 1979, em muitos concelhos, mais de um terço dos chefes de exploração agrícola não sabiam ler). A idade avançada, a falta de informação e de actualização técnica, aliadas à pouca esperança que têm de transmitir a exploração aos filhos, não são incentivos para uma modernização eficaz das empresas. Gráfico 4: Grau de instrução da população da Região do Alentejo (1993) 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 50% 43,2% 4,7% Sem escolaridade Com ensino básico Com o secundário médio e profissional Fonte: Idem 185 2% Com o nível superior Em 1993, o cenário pouco mudou. Aproximadamente 93% da população ou não sabia ler e escrever ou tinha apenas a escolaridade obrigatória, sinónimo de envelhecimento, sendo a sua formação profissional quase exclusivamente prática, factor impeditivo da aprendizagem de novas tecnologias imprescindíveis para modernizar as explorações, que, em princípio, estão ao alcance das camadas mais jovens, que apresentam melhores níveis de escolaridade. Em finais de 2000, num total de 22 000 agricultores alentejanos, os que produziam trigo em regime de sequeiro, encontravam-se envelhecidos e possuíam um baixo nível de instrução escolar. Na verdade, neste período, cerca de 93,3% dos agricultores tinham, no máximo, o ensino básico elementar e apenas 900 possuíam um curso superior, mais de um terço dos quais, com explorações localizadas no distrito de Évora. Ou seja, a esmagadora maioria dos agricultores não tinha qualquer grau de instrução e, destes, cerca de 14 mil não sabiam ler nem escrever. Uma taxa de analfabetismo semelhante nos agricultores de todo o Alentejo, embora no distrito de Beja os números sejam ligeiramente superiores. Aqui, quase quatro mil agricultores são analfabetos e mais de oito mil completaram apenas o ensino básico. Assim, no processo de mudança como aquele em que se encontra a nossa agricultura não pode deixar de causar as mais sérias apreensões, e constituiu seguramente um dos mais difíceis obstáculos a remover que não pode ser minimizado ou muito menos ignorado 294. Quanto à idade, quase 20 mil agricultores alentejanos têm uma idade superior a 55 anos; destes, 15 mil têm mais de 65 anos; só 7,5% têm menos de 34 anos 295. Para a DRAAL, estes números demonstram não ter ocorrido na agricultura regional, como era desejável, uma incorporação de jovens agricultores capaz de operar uma melhoria significativa do nível etário da respectiva classe empresarial 296. Estamos, assim, perante uma situação alarmante, pois o envelhecimento populacional atingiu a curto prazo limites que poderão condicionar de forma muito significativa o processo de desenvolvimento regional. Na actividade agrícola, esta situação assume maiores proporções porque a idade média do produtor individual é de 56,6 anos. 294 Caracterização da Região Alentejo, DRAAL, Évora, Junho de 2002. Suzanne Daveau, Portugal Geográfico, Lisboa, 3ª Ed., Edições João Sá da Costa, 2000,p. 155. 296 Caracterização da Região Alentejo....... 295 186 4.2. Estruturas Fundiárias A estrutura fundiária no Alentejo determinou o regime de caça e as opções que o caçador foi obrigado a tomar ao longo dos séculos. As propriedades rústicas, na maior parte distribuídas em termos mais ou menos extensas chamadas herdades, remontam ao tempo de D. Afonso III que aboliu as jugadas estabelecidas por D. Afonso Henriques, e os foros certos ou censos de D. Sancho I, deu as terras alodiais, separando a parte que reservou para si, em reguengos. Estes terrenos, passando em herança de pais para filhos, tomaram o nome de terras herdadas ou herdades 297. O Sul que aqui se aborda, do ponto de vista da História e da Antropologia, é parte desse Portugal Mediterrâneo de que Orlando Ribeiro e Albert Silbert esboçaram os grandes contornos geográficos e históricos. É o Sul da grande exploração de grande propriedade, com uma longa história de identificação, em torno da representação problemática. Identificar regionalmente o Alentejo passa por abordar a representação que radica na oposição Norte-Sul, que foi historicamente construída, entre outros, pelos contrastes da paisagem agrária, da distribuição da terra, do valor do trabalho, da densidade humana, das formas de integração e identidade social. É nessa longa história de construção das identidades regionais que ganham sentido as modalidades do olhar etnográfico. Os latifúndios são produto de longas doações dos reis de Portugal, aos mosteiros, às ordens monásticas e militares, aos grandes senhores e municípios. A estrutura agrária do Alentejo aparece delineada desde o fim da Idade Média no Sul do Tejo baseada na grande propriedade e com múltiplas unidades de exploração médias ou pequenas, constituídas com base na enfiteuse no arrendamento ou na exploração directa parcial dos grandes proprietários, os quais geriam através das grandes administrações senhoriais 298. O modelo fundiário alentejano só conheceria uma alteração significativa em meados do século XIX, mercê da desamortização liberal. Com a liquidação e venda em hasta pública dos bens das ordens religiosas, a abolição dos morgados, o aforamento e venda dos baldios comunais, foi abalada a estrutura económica e social da velha 297 Almanaque Alentejano, Ano XIII, 1951, p. 162. Virgínia Rau, «A grande exploração agrária em Portugal a partir de fins da Idade Média», in Estudos de História Económica, Lisboa, Ed. Ática, p.26. 298 187 exploração agrária portuguesa. Como resultado de tudo isto, teria sido a emergência, a partir do terceiro quartel do século XIX, de uma nova exploração unitária até então ausente do mundo rural português, a grande exploração que, com a grande propriedade, passou a marcar o modelo fundiário sulista e latifundista. No entanto, Albert Silbert, revelou que, já no século XVIII, a grande propriedade construída no domínio pleno e/ou enfitêutico convivia com a grande exploração baseada fundamentalmente na acumulação de herdades por arrendamentos 299 . Afirmou-se assim a ideia de que o modelo fundiário alentejano, consolidado no latifúndio da propriedade e da exploração indirecta, a tara do Mediterrâneo 300 , tinha raízes históricas muitos profundas que a reforma agrária liberal, propiciando apenas a mudança da titularidade da propriedade e a expansão da propriedade burguesa, se teria limitado a consolidar acabando assim por inviabilizar progressos na agricultura e na sociedade rural do Alentejo. Até Abril de 1974, para o comum do cidadão, o Alentejo só era conhecido e bom para a caça. Ser alguém importante, sangue azul com brasão, membro do governo ou ligado às grandes empresas nacionais ou não, tinha forçosamente de constar no seu currículo, ao menos uma vez por ano, uma caçada no Alentejo. Mesmo que não soubesse manusear uma espingarda, tal não era relevante. Importava, sim, que acompanhasse os apelidos mais sonantes da sociedade. Estas caçadas preparavam-se com muita antecedência, e com todos os pormenores. Ficaram famosas e como símbolo duma época, as coutadas, onde os grandes vinham caçar. As instalações do Monte, eram luxuosamente transformadas, para três ou quatro noites, enquanto decorriam as caçadas, num quadro em que os criados nem sequer podiam espreitar, em contraste chocante com as suas tarimbas nas cavalariças. Os animais de caça eram religiosamente tratados e respeitados, para que, no devido tempo, não faltassem aos senhores importantes de Lisboa, as ambicionadas vítimas de prazer e gáudio; às perdizes-vermelhas facultava-se comida e bebedoiros, e pagava-se bem a quem matasse cobras e outros répteis que comiam ovos e perdigotos, 299 Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen à la fin de l´Ancien Régime : XVIII – Début XIX Siècle. Contribution à l´histoire Agraire Comparée, 3 vols. , 2ª Ed. , Lisboa, INIC, ( 1ª Ed. Francesa, 1966). 300 Desde a Antiguidade, não deixou de preocupar os “ espíritos como forma de injustiça social e de desaproveitamento da terra. A grande propriedade instalou-se tradicionalmente em áreas insalubres, abandonadas durante séculos à malária, ou em grandes descampados entre ilhas de cultura que, rodeando as povoações, as deixaram afogadas nos maninhos”. Orlando Ribeiro, Mediterrâneo. Ambiente e Tradição, Lisboa, 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 125. 188 não falando já da criação de perdiz-vermelha lançada em voo na véspera da caçada, a facilitar a tarefa a caçadores inexperientes. Enquanto os cavalheiros caçavam ou fantasiavam, as elegantes damas discutiam ao redor da grande chaminé do Monte, a fazer tempo para o almoço, constituído pelos melhores manjares da região, servido a rigor. Eram nestas caçadas que se faziam as grandes e interesseiras amizades, podendo mesmo dar oportunidade à entrada na alta sociedade. Nelas se faziam os grandes pedidos, e se punha a funcionar com toda a sua eficiência o sempre bem sucedido sistema da cunha. Se formos a meditar em pormenor, verificamos que grande parte dos maiores empreendimentos do Alentejo teve o seu início numa caçada. Hoje continua quase tudo na mesma: só mudaram os caçadores 301 . Vestidos agora de ganga proletária, em tudo procuram imitar os primeiros, com muita dificuldade, porque imitação não é material de origem. Revolucionários continuam os mesmos e na mesma, os que dormiam nas tarimbas, comiam açorda todos os dias ou não, todos aspiram ao doce conforto da burguesia e seus encantos. Uns sim respeitavam a caça para os senhores, que eram uns e que agora são outros. “O Alentejo real continua o mesmo, província de caça, desta caça e doutras caças “ 302. Os laços a partir dos quais os homens têm acesso à terra que cultivam e utilizam para a criação de gado ou a exploração florestal são um dado muito importante no estudo da geografia rural. A terra tanto pode ser aproveitada directamente por quem a desfruta, como através do arrendamento ou outras formas eventuais de contrato. Daqui a distinção entre a propriedade, a área que pertence a um mesmo dono (quase sempre retalhada por um número variável de prédios) e exploração, aquela que está a cargo de determinada pessoa (também normalmente dividida em blocos ou parcelas). Tanto a propriedade como a exploração se encontram repartidas de forma desigual em Portugal. Em 1980, o número de propriedades rústicas no Continente atingia pouco mais de 5 milhões (média de 57 por km²). No Sul, as propriedades são maiores e contínuas. As explorações agrícolas com SAU, ou seja a que é constituída pelas terras aráveis (limpa e subcoberto de matas e florestas), culturas permanentes 301 Seria interessante, como o fez Helder Adegar Fonseca, ob. cit., a propósito da origem das elites alentejanas, aprofundar-se a origem da nova burguesia que se instalou no Alentejo, na fase pós-revolucionária de 1974, particularmente saber a sua proveniência. Grande parte pertence ao negócio da construção civil, mas também de outras proveniências que investiram na Região. 302 Acácio Marques, Jornal de Caça e Pesca, n.º 499, 5-01-1979, p. 5. 189 abrangiam em 1993 cerca de 1 842 187 has, que correspondiam a 47 % do total de superfície agrícola nacional continental, com uma estrutura concentrada. Existe um número elevado de pequenas explorações, mas ocupando uma área reduzida. O número de médias e grandes explorações é baixo, ocupando, no entanto, uma elevada percentagem de área. Em 2000, no Alentejo, ocupavam cerca de 35% da superfície total da região. Tabela 6: SAU na Região do Alentejo (has). Contraponto com o Continente (has): representatividade (%) e classes Classes SAU Alentejo Continente Importância do Alentejo (%) <1 3 555 82 159 4,3 1 a <2 12 112 225 726 5,4 2 a <5 31 810 423 660 7,5 5 a < 10 42 671 367 489 11,6 10 a < 20 61 380 346 947 17,7 20 a <50 122 530 376 476 32,5 50 a <100 142 265 259 373 54,8 >=100 1 425 864 1 798 029 79,3 TOTAL 1 842 187 3 879 859 Fonte: Portugal Agrícola, INE, 1993. A análise do quadro anterior permite confrontar as classes de SAU mais elevadas e verificar a representatividade do Alentejo, que aliás, a dispersão e o número de explorações existentes em cada escalão estabelece resultados evidentes. Tabela 7: Dispersão da SAU e n.º de explorações: representatividade por escalão no Alentejo Classes de SAU SAU (Has) Sem SAU - % de SAU N.º de Explorações % das Explorações 0 1 815 4 > 0 a <0,5 0,5 a <1 439 3 116 0 0 1 658 4 489 4 1a<2 12 112 1 8 761 2 a <5 31 810 2 10 001 5 a <10 42 671 2 6 047 10 a <20 61 380 3 4 366 13 9 20 a <50 122 530 7 3 873 8 10 19 21 50 a <100 142 265 8 1 969 4 100 a <200 <= 200 239 572 1 186 292 13 64 1 682 2 388 3 5 TOTAL 1 842 187 100 47 049 100 Fonte: Portugal Agrícola, INE, 1993 190 Verificamos que no período de 1979 a 1989, o Alentejo passou de 46 612 explorações para 47 049 (acréscimo de 1%). Porém, este facto, eventualmente, poderá não corresponder à veracidade porque os critérios utilizados em 1989 no Recenseamento Geral Agrícola para considerar uma exploração como agrícola, foram mais alargados do que dez anos antes no recenseamento de 1979. O alto número de explorações sem SAU representa o recurso à actividade pecuária de regime intensivo, como a engorda intensiva de bovinos, a produção de leite e a produção de porcas reprodutoras, em que os animais se apresentam estabulados permanentemente. A maior parte das explorações (80%) concentra-se nas classes de SAU compreendidas entre 0,5 e 20 has. A SAU acumula-se nitidamente nas explorações em que esta se apresenta com área superior a 100 has; apenas 8% das explorações detém 77% da SAU, o que acusa o predomínio da exploração de grande dimensão em superfície. Em termos gerais, o Alentejo apresenta uma SAU média de 40,7% has por exploração, não considerando as 1 815 explorações que não utilizam área agrícola na sua actividade. No que concerne à posse dos terrenos, o arrendamento tem o maior relevo do Continente (cerca de 1/3 da SAU) 303 As culturas principais são os cereais de Outono/Inverno – trigo, cevada e aveia – em regime de sequeiro e que atingem uma produção média de 2 000 kg /has, podendo chegar aos 4 000 kg/has nos bons solos da zona de Beja. O Alentejo realiza cerca de 70% da área total de cereais do país, número que sobe para 95% quando nos referimos ao girassol. Na pecuária, que tem também um contributo importante para o PAB da região, são os ovinos (48% do efectivo nacional) e bovinos de carne (cerca de 29% do efectivo reprodutor), as espécies com maior relevo. No que se refere aos suínos, o Ribatejo, o Oeste e o Alentejo reúnem cerca de 61% do efectivo nacional em apenas 17% das explorações nacionais que detém esta espécie. A olivicultura e, em menor escala, a viticultura, são também actividades importantes na região. Na produção silvícola ocupa de realce a cortiça, de que Portugal é o principal produtor, contribuindo a Região Alentejo, com cerca de 60% da produção nacional. 303 Portugal Agrícola, INE, 1993. 191 No que respeita à maquinaria, que nos fornece um indicador do tipo de actividade agrícola desenvolvida, no Alentejo encontra-se o maior número de tractores de potência mais elevada, nomeadamente 30% dos tractores com potência compreendida entre 55 e 82 cavalos e 52% dos tractores com potência igual ou superior a 82 cavalos. As explorações têm um número médio de 1,6 tractores, embora existindo explorações com quatro tractores. As ceifeiras debulhadoras em número de 2 599 (59% do total nacional destas máquinas) existem dispersas por 2 221 explorações. Gráfico 5. Quantidade de Trabalho Agrícola Anual existente no Alentejo (Has e %) 60.000 50.372 40.000 24.097 30.000 15.949 10.326 10.000 Tipos Hectares/SAU/UTA UTA assalariada sazonal UTA assalariada permanente UTA Familiar UTA Total 0 37 31,66% 20,50% UTA Sazonal /UTA Total ( %) 20.000 UTA permanente/ UTA Total ( %) Valores 50.000 Fonte: INE, RGA, 1989. A maior parte do emprego resulta do trabalho familiar, que estará directamente relacionado com o número elevado de explorações de pequena dimensão, se bem que no concelho de Moura exista uma grande percentagem de trabalho sazonal (olival), mais do que o trabalho dos permanentes não familiares nas explorações. Alterou-se o trabalho e também o panorama dos que trabalham na agricultura. Os assalariados já não são a sua componente maioritária, pois predomina o trabalho familiar que também cultiva a maior parte (57%) da SAU, repartindo-se o restante pelas unidades capitalistas privadas (36%) e por outros tipos de explorações (7%). Este panorama global tem variações regionais. 192 Gráfico 6: Has por SAU e ceifeiras debulhadora 17.548 18.000 16.000 14.000 12.000 10.000 8.000 2.599 6.000 4.000 104,97 708,77 2.000 0 Tractores Ceifeiras debulhadoras Hectares/SAU/Tractor Hectares/SAU/Ceifeira debulhadora Fonte: Idem. O número de has de SAU, por tractor e por ceifeira nos concelhos de Beja, Ferreira do Alentejo, Alvito, Évora, Elvas, Moura, Serpa etc., é superior aos valores médios da Região Alentejo, o que indica um maior grau de utilização de maquinaria agrícola nos sistemas de produção agrícola e está directamente relacionada com a sua especialização agrícola. Pelo contrário, o concelho de Barrancos apresenta valores bastantes inferiores, o que é sinónimo da sua especialização pecuária. O trabalho agrícola praticado na Região do Alentejo, que tem como base o valor nacional de 7,9 has de SAU por UTA, é de 36 has, indiciando uma maior utilização de maquinaria e actividades menos intensivas em termos de mão-de-obra 304. A ceifeira e a debulhadora, escreveu Orlando Ribeiro, “ com o seu ruído mecânico, acabaram com os belos corais (....) que (...) acompanhavam estes trabalhos feitos à mão” 305. Morre uma cultura, declina um mundo, mas os milhões de homens e mulheres que, sempre que poderem o abandonaram, não lamentam a perda. A partir de 1960, a debandada que varreu os campos acelerou a transformação tecnológica da agricultura. Generalizou-se progressivamente o uso do tractor, da moto cultivador e da ceifeira debulhadora. O avião passou também a ser empregue, por vezes, na monda e na adubação do arroz e do trigo em zonas onde o cultivo destes 304 Idem. Fernando Oliveira Baptista, «Declínio de um tempo longo», in O Voo do Arado, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 1996, p. 44. 305 193 cereais se encontrava mais concentrado. Os herbicidas foram substituindo a morosidade das mondas manuais. Cresceu acentuadamente o emprego dos adubos químicos. Os fungicidas e os insecticidas orgânicos de síntese difundiram-se e, a sua presença na defesa das plantas sobrepôs-se às do enxofre, sulfureto do século XIX. Aumentou o recurso a sementes melhoradas e impuseram-se os elementos concentrados para a alimentação dos animais. Analogamente a estas modificações foi-se retraindo o uso das alfaias agrícolas tradicionais. Esta transformação, em especial a motorização 306 e o uso de herbicidas, associou-se a uma diminuição acentuada da criação de espécies venatórias, particularmente afectadas pela destruição dos ninhos e das próprias criações, reduzindo drasticamente o efectivo faunístico. Igualmente se modificaram os saberes. O velho homem dos campos que vivia uma relação temerosa com a Natureza transforma-se aos poucos num agricultor profissional e manuseia com menos cuidado, mas mais autonomia e sucesso produtivo. As mudanças associadas ao êxodo dos anos sessenta conduziram, no Alentejo, a uma modificação marcada no panorama agrícola, a que os latifúndios e explorações agrícolas tiveram de se ajustar, no caso concreto, para as unidades de média (50 a 200 has) e grande dimensão (mais de 200 has), foram a intensificação e a capitalização ou a crescente expansividade do cultivo, a florestação e o abandono das terras ao mato. Nas explorações patronais de menor dimensão, verificou-se uma tendência para a sua conversão em familiares porque o recurso a tecnologias que incrementam a produtividade do trabalho, permitiu que passassem a depender, sobretudo, do trabalho da família. A diminuição do emprego assalariado no sector capitalista contribuiu também para maior peso relativo do trabalho familiar na agricultura. Com a possibilidade de sair, aberta sobretudo pela emigração, os assalariados agrícolas puderam fazer subir os salários. No conjunto da população agrícola, onde se acentuou a percentagem do número de mulheres, o balanço dos últimos quarenta anos, relativamente aos que trabalham na agricultura, apresenta, assim, algumas tendências muito nítidas. Em 1996, eram metade do que eram em meados do século; o envelhecimento acentuou-se; os trabalhadores familiares são, agora, a maior parte desta população e cultivam mais de metade da SAU; com particular evidência, a maior parte das famílias ligadas a explorações 306 Assim, por exemplo, em 1979, do total de 58% de explorações familiares que utilizavam o tractor, 53% faziam-no por aluguer. Idem, p. 42. 194 agrícolas vivem do rendimento exterior às unidades de produção. O recurso pelas empresas agrícolas a equipamentos exteriores (tractor, sala de ordenha mecânica) e empresas de serviços (contabilidade, projectos) para assegurar certas fases do trabalho agrícola, forçou necessariamente o declínio da entreajuda e os ranchos migratórios. Percebendo estas premissas conclui-se que o problema estrutural do Alentejo reside na terra, na estrutura da posse e do uso, a que corresponde explorações de grande dimensão, com pouca diversidade agrícola, essencialmente extensivas, por conta própria e com pouca utilização de mão-de-obra, basicamente o conceito do que conhecemos por explorações de latifúndio, exceptua-se a este, a utilização do olival com grande expressão nesta zona e que emprega bastante população agrícola. Gráfico 7: A Região Alentejo em 1999. Comparação em percentagem com o Continente 307 2500000 1924043 2000000 1500000 1097027 1000000 500000 325832 203163 118316 35906 9% 51% 54% 16580 8% 13884 41% 20% 20839 8% 63% 50% 20489 0 Fonte: Caracterização da Região do Alentejo, DRAAL, Évora, Junho 2002. O âmbito particular da agricultura pode ser apreciada pelo comportamento das suas principais rubricas: a produção animal que representa um contributo dominante (mais de 50%) quando consideramos o período de 1985 a 1992, exceptuando os anos 307 O Número de explorações, de vacas leiteiras, outras vacas e ovelhas reprodutoras e tractores são expressos em quantidade; o SAU, os cereais, a área da Vinha, superfície regada são expressos em has. 195 12% de 1985 e 1987 (43,3% e 49,8%, respectivamente). A irregularidade da produção vegetal é o reflexo das características edafo-climáticas, tipicamente mediterrâneas de Portugal 308 . Em conclusão: no Alentejo, a esmagadora maioria dos habitantes regulares do campo exerce a actividade profissional como produtora singular. É nesta categoria que se inserem 45 mil explorações e uma superfície agrícola utilizada de mais de 1 milhão e 400 mil has. Atendendo à natureza jurídica dos produtores agrícolas do Alentejo, existem pouco mais de mil sociedades agrícolas e 174 cooperativas e algumas centenas de explorações pertencem ao Estado e a outras entidades públicas que ocupam uma área inferior a 15 mil has 309. 4.3. Estruturas Económicas O Portugal agrícola não resistiu à globalização e à concorrência que atormentou a fragilidade da sua permanência secular. De 1950 para 1990 avulta a mudança; a percentagem da população activa que trabalha na agricultura passou de 48% para 10%; a população ligada às explorações agrícolas no total da população residente diminuiu de 55% para 20%; a contribuição da agricultura para a produção do país através do Valor Acrescentado Bruto a preços de mercado (VABpm) agrícola baixou de 28% para 5%; a partir de 1980 variou entre 8,3% (1985) e 7,1% (1992) ao longo do período em análise, reflexo de uma estabilidade relativa em termos de volume, mas representativa da pouca importância económica que a agricultura têm a nível nacional 310. O rendimento bruto pode ser retirado das explorações agrícolas da Região Alentejo através da Margem Bruta Standard (MBS)311, ou seja, as retribuições dos sistemas de produção agrícolas, completando este estudo, com uma análise por exploração, outra por unidade de trabalho agrícola. A agricultura perdeu peso na economia e na sociedade ainda que tenha aumentado a produção e a produtividade; alargou-se a sua relação com o mercado; 308 INE (1), 1993. INE, 1999. 310 Cálculo que se obtém pela dedução do consumo intermédio à produção final. O resultado da actividade produtiva pode ser avaliado pelo VABpm, calculando-se deste modo a importância da agricultura de mercado. INE (I), 1993. 311 O valor em dinheiro de uma produção agrícola (produção bruta) deduzida dos principais custos específicos proporcionais, correspondentes à produção em questão, sendo calculado em função de definições uniformes de cada uma das actividades numa dada região. (INE, 1997). 309 196 tornou-se menos vegetal, e acentuou-se a importância das carnes, leite e ovos, sem, contudo, impedir o agravamento do país em termos de dependência em produtos de origem agrícola, nem a tornar mais competitiva face aos mercados externos, nomeadamente no contexto da União Europeia. Gráfico 8: Margem bruta standard da Região Alentejo (por 1000$00) 100.000.000 90.000.000 80.000.000 70.000.000 90.417.740 60.000.000 50.000.000 40.000.000 30.000.000 20.000.000 1.998 10.000.000 49 1.795 0 MBS Total MBS por Exploração MBS por Has de SAU MBS por UTA Fonte: INE, RGA de 1989 A análise dos sistemas de produção agrícolas em zonas como Barrancos, Ourique, Almodôvar, Mértola, evidencia valores inferiores aos demais concelhos, o que poderá indicar uma nula utilização de mão-de-obra em certas explorações. Embora exista a tendência generalizada para reconhecer o Alentejo como região preferencialmente vocacionada para a agricultura, observa-se que apenas 8% dos seus produtores agrícolas dispõe de contabilidade própria. Se, porém, a esta acrescentarmos os que efectuam pelo menos o registo de receitas e despesas, essa percentagem sobe de imediato para 14%, valor insuficiente quando se pretende saber o resultado das operações económicas numa empresa agrícola. As características agrícolas da região conferem ao Alentejo uma peculiaridade onde predomina o sistema cerealífero de sequeiro nos solos com melhor perfil cultural, e aponta elementos estatísticos demonstrativos da estrutura da propriedade rural. Como vimos, mais de 41 mil explorações ocupam uma área inferior a cem has. Destas, 25 mil não atingem sequer cinco mil has e mais de dez mil ocupam uma área inferior a vinte has. No entanto, a maior parte da superfície agrícola utilizada é ocupada por explorações de média e grande dimensão. Cerca de 75,4% da área total encontra-se 197 ocupada por explorações com mais de 100 has. Um pequeno grupo de 169 explorações, algumas das quais pertença de um mesmo proprietário, tem quase 300 mil has 312. Tais explorações apresentam um “elevado grau de condicionamento ao mercado, tanto no que diz respeito à aquisição de factores de produção como no que se refere à colocação de produtos”. Tratam-se de agricultores individuais ou sociedades agrícolas que recorrem com “ frequência ao crédito de curto prazo para investimento” 313 . Um esforço financeiro notável mas aparentemente mal orientado, pois na sua maioria, 88,3%, foi aplicado no reforço da agricultura tradicional, ou seja, uma clara aposta nas culturas de sequeiro em detrimento do regadio. Ainda uma área de 450 mil has é cultivada com cereais para grão, sobretudo trigo mole, cuja produção envolve dez mil explorações e quase 215 mil has. Por outro lado, o olival e a vinha são culturas permanentes com maior expressão regional. No caso concreto da vinha, a área ocupada abrange 16 580 has (8% da área continental), na qual se encontram 3 726 explorações que se dedicam ao cultivo da uva para vinho. O olival ocupa uma área de 138 084 has, num total de 22 513 explorações. Mais de metade do volume global de investimentos destinou-se à aquisição de máquinas e equipamentos agrícolas; apenas 20% do volume global de investimentos neste sector realizados no Alentejo pertence a jovens agricultores 314. Gráfico 9: Rendimento da Terra no Alentejo (1997) 80% 75% 70% 60% 50% 40% 30% 25% 20% 14% 10% 10% 8,60% 7,80% 0% Agropecuária Floresta Cortiça Trigo Azeite e Azeitonas Carne de bovinos Fonte: DRAAL, Évora, 1997. 312 Alfredo Gonçalves Ferreira e Ana Cristina Gonçalves, ob. cit., p. 168. Cerca de 30% dos recursos financeiros destinados ao crédito no Continente são absorvidos no Alentejo. Idem ibidem. 314 Caracterização da Região Alentejo, DRAAL, Évora, Junho de 2002. 313 198 No que respeita ao rendimento da terra, a agropecuária representa 75% da riqueza gerada, enquanto a floresta se fica pelos 25%. A cortiça representa 14 % dos rendimentos, seguindo-se o trigo com quase 10 %, o azeite e azeitonas com 8,6% e a carne de bovinos com 7,8%. A entrada de Portugal no espaço económico europeu modificou o comportamento de duas componentes do rendimento agrícola: os subsídios e os juros 315. Acresce que a redução que ocorreu nos preços dos produtos foi contrabalançada em parte no aumento dos subsídios à produção, apesar de os investimentos realizados pelos empresários agrícolas à custa dos empréstimos bancários, hipotecarem de forma complexa e difícil a sua capacidade de endividamento devido ao preço elevado dos juros bancários. A modernização da agricultura é também muito acentuada. A Lei do Arrendamento Rural de 29-09-1977 (modificada a 3-12-1979), aprovada em paralelo com a da Reforma Agrária, protege os rendeiros. Para os apoiar, em 7 de Maio de 1980, é instaurado o Programa de Financiamento a Arrendatários Rurais (PAR); mais tarde, foi abolida a enfiteuse, uma estranha sobrevivência feudal. Também o crédito assume um papel nuclear nas reformas. É fundado o Instituto Financeiro de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP), a 19-081977. O apoio ao crédito cooperativo encontra um estímulo com a criação da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, bem como o seguro agrícola de colheitas. A EPAC perde o monopólio de compra de cereais no mercado interno (29-121983) e organizam-se os mercados agro-pecuários (23-12-1985). Ao mesmo tempo, assiste-se a um apoio à agricultura. De 1968 a 1974, a parte da agricultura no PIB desce de 18,1 % para 14%. De 1979 a 1985 passa de 11,6% para 8%. A maior parte das produções agrícolas estagna ou decresce. A agricultura continuou, com o sector financeiro, a ser um dos ramos da actividade económica portuguesa mais protegido por quotas de importação, direitos aduaneiros e organizações de mercados. Os preços agrícolas portugueses são 315 O primeiro factor foi positivo para o empresário, o segundo negativo. Os subsídios, que, em 1985, ascenderam a 12 milhões e 644 mil contos, apresentam uma taxa média de crescimento de 29,7%, atingindo o valor de 78 milhões e 238 mil contos, em 1992. Os juros (contrapartidas dos empréstimos concedidos pelas entidades do subsistema bancário, para satisfazer as necessidades da actividade) também por regra evoluem à taxa média de crescimento de 14,6%. Idem. Veja-se ainda a perspectiva de Luís Filipe Safara Rodrigues Conceição, Zonas de Caça Turísticas: uma alternativa de desenvolvimento rural para a margem esquerda do Guadiana, Évora, Universidade de Évora, 1998, p. 75. 199 superiores aos da CEE, eles próprios substancialmente mais elevados do que os do mercado internacional 316. Diferentemente do sector financeiro, a agricultura portuguesa, envelhecida e descapitalizada, não tem uma estrutura empresarial que lhe permita enfrentar os novos desafios. A questão agrícola – absorvendo quase um quarto da população activa em 1985 – continuava por resolver. A democracia pagou, aqui, um preço.” A República caíra às mãos do mundo rural em 1926. O 25 de Abril manteve os agricultores médios, comprou-lhes caro e vendeu-lhes barato, não lhes cobrou impostos. Haveria também uma factura a honrar, a do 25 de Novembro, no qual os agricultores, em particular os do Norte do Tejo, tiveram um papel decisivo” 317. Na ressaca da revolução, a conformação social portuguesa não tem energia para impor outras políticas. As nacionalizações anularam o capital financeiro e marginalizaram a burguesia lisboeta. A ineficácia dos preços agrícolas ressalta da queda dos alimentos, de 19% para 8%, no total das exportações. Os preços agrícolas portugueses mantiveram-se até 1985 substancialmente superiores aos praticados na CEE, que por sua vez eram mais elevados do que os do mercado mundial. A importância social de algumas organizações como a Confederação da Agricultura Portuguesa (CAP) pode ajudar a explicar a importância política do sector. Se tomarmos como referência o ano de 1988 para ano base (100), pela circunstância do preço dos cereais constituir a média na década de oitenta, o rendimento dos agricultores na região do sequeiro foi o seguinte: Tabela 8: Evolução do rendimento dos agricultores na Região do Sequeiro Alentejano Anos 1988 Trigo 100 Girassol 100 Bovinos 100 Ovinos 100 Média ponderada 100 1989 60 108 107 77 90 1990 60 89 55 109 74 1991 66 89 61 87 74 1992 49 84 44 72 60 1993 46 97 119 82 76 Fonte: Divisão de Garantia Agrícola, DRAAL, Évora, 1996 316 Durante o período, os preços dos inputs agrícolas portugueses sobem menos do que os dos outputs. Assim, a agricultura enriqueceu comparativamente mais do que o resto. «A evolução da sociedade portuguesa», in História de Portugal (dir. de José Mattoso), Oitavo Volume, pp. 160-161. 317 Idem, p. 161. 200 Os valores anteriores são indicadores representativos em termos absolutos dos rendimentos dos agricultores, notando a partir do ano base as quebras e recuperações de rendimento que ocorreram nas actividades mais importantes realizadas na zona de sequeiro Alentejano, constatando que a actividade pecuária é aquela em que o empresário obteve os maiores resultados 318. A PAC tem, desde 1992, mecanismos de concessão de subsídios desligados das quantidades de produção obtidas, e cujos critérios de atribuição são articulados com a dimensão física das parcelas de terra, numa vertente, muitas vezes, associada à protecção da Natureza e da paisagem, vem subalternizando a figura dos agricultores face à dos proprietários fundiários. Estes recebem, sob a forma de subsídios, verdadeiras rendas, que atingem quantias elevadas nas propriedades de grande dimensão. Capitula, assim, o “fim dos incultos”, tema tão dominante em meados do século XX 319 . A relação da sociedade rural com o seu espaço não tardaria a alterar-se. Na primeira metade dos anos setenta (1970-1974), a superfície semeada anualmente no Continente já baixara 23% relativamente a 1960/64; em 1985/88, esta quebra era já de 45%.O destino da terra retirada de cultivo reparte-se entre o abandono, a caça, a pecuária extensiva e a florestação. Esta evolução teve, como seria de esperar, grandes variações regionais. As populações rurais e agrícolas não se relacionam apenas com a área cultivada agricolamente, mas também com a floresta. Esta ocupa uma larga parte do território, como pode avaliar-se por uma estimativa da ocupação da superfície do Continente: área agrícola (fora o sob-coberto florestal) ocupa 33%; a floresta 35%, estando 20% integrados em explorações agrícolas; 16% são incultos e 6% correspondem à área edificada, vias de comunicação, faixa litoral e linhas de água; sobram ainda 10%, cuja utilização não foi possível determinar. 318 A esta conclusão chegou Luís Filipe Safara Rodrigues Conceição…, ob. cit. , a propósito da análise que fez à margem esquerda do Guadiana. Com efeito, em Moura e Serpa apenas 5 a 15% e Barrancos de 0 a 5% da população agrícola trabalha a tempo completo. 319 Na realidade, em 1945, Henrique de Barros, Castro Caldas e outros, constatam que o tema dos incultos chegara ao fim, pois o cultivo e a florestação do território tinham progredido e já não era possível assentar soluções na utilização de espaço abandonado. Fernando Oliveira Baptista, O Voo do Arado, p. 52. 201 Nos campos do Sul onde decorreu uma reforma agrária virada para a maximização do emprego, os eucaliptos enfraquecem a terra e prejudicam a agricultura, impedindo, logo, a luta pelo aumento do nível de emprego. Quanto aos empregos, o Alentejo é a região onde menos activos estão ligados à agricultura, cujo sector é responsável por ocupar cerca de 22,8% da população da região 320 e, como vimos, a menos povoada do país (20 habitantes/km ²). A sociedade rural, embora concentrando mais de metade da população residente, tem aqui menor amplitude que nas duas regiões anteriores e apresenta uma fisionomia claramente agrícola. Predominam os grandes domínios fundiários e a agricultura capitalista. Os assalariados agrícolas são o maior contingente da população activa agrícola, cuja solução para melhorar a vida é o êxodo 321. Sabemos também que a população agrícola manifestamente envelhecida, tem uma mentalidade muito adversa a mudanças na sua forma de exploração. A ruralidade do território continental português pode ser expressa, embora de modo aproximado, pelas raízes vivas e até funcionais da sua população, sobretudo da população familiar, principalmente aliada às explorações de menor dimensão. Outra característica importante do Alentejo provém da grande dimensão das explorações agrícolas, cujos empresários não trabalham a tempo completo, o que se reflecte no facto de os produtores terem uma outra actividade, acusando assim uma situação em que não podem conduzir actividades de carácter intensivo. Gráfico 10: Índice de emprego e pluriactividade no Alentejo Taxa de Desemprego 10% 41% Taxa de Actividade Emprego no Sector Terciário 51% Emprego no Sector Secundário 26% Emprego no Sector Primário 23% Fonte: INE, Censos de 1991 e Anuários Regionais. 320 De acordo com o Portugal Agrícola (1993) a variação da população activa agrícola entre 1981 e 1991 no Alentejo foi de 53,5%. Na maior parte do país, depois do Algarve, foi de 47,1%, o que contribuiu para um aumento dos grandes contrastes regionais. 321 Fernando Oliveira Baptista, ob. cit. p. 64. 202 O Sector dos Serviços ocupa metade da população, incluindo os serviços agrícolas. Em finais de 1993, o desemprego no Alentejo cifrava-se em 33 658 indivíduos, dos quais 33% eram oriundos do sector agrícola, enquanto a taxa de desemprego abrangia cerca de 20% da população activa, sendo os concelhos de Barrancos, Serpa e Moura, aqueles que apresentam maior taxa de desemprego, sobretudo por falta de actividades impulsionam a ocupação da mão-de-obra local e, em derradeira sobrevivência, abandonam a região. Em termos de oferta turística, os principais pólos de atracção da zona da Margem Esquerda do Guadiana resultam da existência de património monumental, artesanato regional e de actividades de caça e pesca 322. Depreende-se, assim, que a grande maioria das empresas existentes no Alentejo, consequência da actividade de empresários em nome individual, e aquelas que poderiam promover mais emprego, praticamente não existem. O número de empresas se reduz com o aumento do rendimento extraído e do escalão de pessoal, factor sinónimo da predominância de empresas de pequena dimensão. Embora o rendimento e a importância da agricultura tenham atenuado nos últimos anos, é responsável por empregar um número significativo da população, factor que deve implicar a preocupação em fomentar actividades que criem empregos neste sector e que consigam aumentar os níveis de rendimento no contexto da nova política agrícola comum e, interface com outras actividades, tais com a indústria e turismo. As orientações da PAC não são favoráveis à agricultura portuguesa, pois continuam a privilegiar os produtos mais relevantes do Centro e Norte da Europa em detrimento dos mediterrâneos que marcam numerosos sistemas de produção dos países do Sul. Privilegiam-se as explorações agrícolas tidas como mais competitivas no mercado mundial, e pretende-se orientar as áreas dos sectores considerados não concorrenciais para a florestação e para sistemas de produções extensivos em que a defesa do ambiente é enunciada como uma preocupação central. Fragmentado pelos erros do próprio homem, o meio rural sofreu em todo o continente europeu uma progressiva deterioração das condições de vida e um 322 No que respeita a hotelaria apenas existe um hotel em Moura, com 37 quartos e uma capacidade de alojamento para 80 pessoas, pensões não existem, classificando em outros um estabelecimento em Serpa, uma pousada com 18 quartos e capacidade para alojar 42 pessoas, não se registando qualquer outra oferta. Anuário Estatístico da Região Alentejo, 1993. 203 progressivo abandono dos seus habitantes naturais, ficando os escassos recursos humanos com alta quota de envelhecimento, graves perdas de cultura, usos, tradições e uma situação de insociabilidade, precisamente na linha onde se quer dirigir um futuro imediato nas negociações para a globalização. A Europa alinha com outros países para um tipo de agricultura de marcado carácter social frente ao hiper liberalismo americano, australiano e neozelandês. Para o futuro proclama-se a multifuncionalidade, ou seja que se desenvolva nesse campo, justamente o que os outros países pretendem eliminar. Neste sentido, beneficia as regiões mais desfavorecidas, precisamente aquelas que mais potencialidades têm para a produção cinegética. Em qualquer caso, prevê-se uma crise no sistema e um provável descontentamento no campo. Conscientes destes perigos, os responsáveis da União Europeia procuram criar uma política que consiga equiparar as áreas rurais europeias ao nível das rendas das cidades. Objectivo francamente difícil, já que na Europa o sector agrário foi sempre confinado ao atraso, ao sacrifício e à sobrevivência, ao contrário do que se desenhou no Norte da América. 204 CAPÍTULO IV - EVOLUÇÃO VENATÓRIA 205 1. Caça, costumes e privilégios 1.1. Panorama geral A História da Cinegética reserva-nos muitas contradições no seu desenvolvimento. Da tendência para a escassez das espécies venatórias derivou a sua perene configuração como privilégio, a que todas as classes sociais sempre desejaram alcançar. Se a caça foi a ocupação venturosa mais apreciada pelo homem 323 , quando se tornou dispensável para a subsistência humana, porque razão se transformou num simples e decadente passatempo, apesar de não existir nada mais importante na vida que a recreação? 324 Ao Homem, contrariamente a outros seres vivos que vivem isolados, não foi dada opção de viver tão-só. Ao longo da História Universal desde a Suméria, Acádia, Assíria e o I Império Egípcio até aos nossos dias, houve sempre homens que se dedicaram à caça não apenas por distracção, desejo ou afición. A importância simbólica da caça para os soberanos das grandes civilizações antigas era benefício imanente à própria existência, tal como se depreende das muitas representações alusivas às cenas de caça. As formas naturais foram registadas com a mesma vivacidade de observação que podemos apreciar nas pinturas rupestres pré-históricas 325. Após observar a arte de caçar das grandes civilizações antigas, concordamos com Ortega y Gasset quando afirma que o caçador é, possivelmente, mais do que outros seres vivos um “homem alerta” 326 : ao imitar a vigilância perpétua do animal selvagem, observa-o completo. Do ponto de vista do historiador, as pinturas de caça são possivelmente mais importantes pela sua representação do que o modo como foi caçado ou ocupado o animal. Apesar dos antigos camponeses egípcios caçarem para obter alimentos, os 323 José Ortega y Gasset, Sobre a Caça e os Touros, Ed. Cotovia, 1989, pp. 24 a 34. Segundo o Nuevo Diccionario Internacional de Webster, «recrear-se é alegrar-se (...) renovar-se ou animarse, descansar após a fadiga devida ao trabalho ou abatimento do ânimo». John Reiger «La Caza desde los tiempos primitivos hasta la Edad Media», in El Gran Libro de La Caza, Madrid, Ed. Everest, 1992, p. 128. 325 Para citar alguns exemplos mencionemos a caça de bois selvagens no templo egípcio de Ramsés III (11951164 a.C.) em Tebas e a famosa cena de aves de caça noutro túmulo; o Rei assírio caçando leões do Palácio de Assurbanipal (669-626 a.C.); em Ninive, a magnífica leoa agonizante atravessada por flechas; o Rei persa Cosroes I (531-570 a.C.), no seu cavalo, caçando a cabra montês. Idem, ibidem. 326 José Ortega Y Gasset, ob. cit., p.99 e ss. 324 206 faraós e seus cortesãos caçavam para se distrair utilizando cães de caça parecidos aos actuais galgos 327. Na etapa correspondente à colonização fenício-helénica (1100-516 a.C.) ao existir uma florescente metalurgia do ferro, as armas para caçar alcançam um notável progresso. Depois de haver estendido, por todo o litoral mediterrâneo, uma resplandecente linha de armazéns e fábricas, os fenícios estabeleceram amistosas relações comerciais com os indígenas ibéricos (que haviam dispensado uma benévola acolhida), dando preferência, aos pagamentos de mercadorias, ao cobre, prata, estanho e às peles de animais selvagens. Assim, se incrementou a actividade cinegética no país, com fins puramente mercantis 328. Por seu lado, a colonização grega, cuja afición pela prática da caça não era de interesse material mas uma saudável diversão, tomou considerável incremento, porque os gregos eram astutos e entusiastas caçadores, testemunho que o próprio Xenofonte corrobora: “ o povo mais apaixonado pela liberdade (o ateniense), pelos deleites da imaginação, pela glória e pelas artes, deveu tão altas qualidades às suas afeições cinegéticas” 329 . A dominação cartaginesa (516-205 a.C.) impôs um forte regime militar e tributos aos habitantes de Hespéria, durante a qual pouco se pode assinalar relacionado com a caça, a não ser os grandes estragos causados na fauna selvagem provocados pelas incessantes lutas entre invasores e indígenas 330. Assírios e persas amavam a caça ao ponto de construírem enormes cercados amuralhados, onde as espécies selvagens eram guardadas até que o rei e o seu grupo estivessem preparados para as caçar. Numa só caçaria, um monarca assírio afirmou ter matado 450 leões, 390 bois selvagens, 200 avestruzes e 30 elefantes 331. Em Roma e na Grécia clássicas, a caça foi praticada com tanta paixão como em épocas anteriores; a principal diferença era que então se conhecia muitíssimo mais sobre ela como consequência de uma superveniência documental. Tanto a arte pictórica 327 Uma cena de caça do Rei Tutankhamon a ser transportado por um carro movido por dois cavalos mostra um desses cães correndo junto a um animal parecido a uma gazela. 328 Guillermo Goyanes, ob. cit. p. 13. 329 Idem, ibidem. 330 Refira-se no aspecto jurídico desde os tempos mais remotos até à invasão cartaginesa, quando a caça era apreciada quase exclusivamente pelo seu valor material ou económico, foi considerada, em todo o momento, como um pleno direito natural. 331 John Reiger, ob. cit., p. 130. Segundo o autor, a palavra paraíso procede do persa antigo e refere-se a um «parque ou couto de caça». 207 como a literatura clássica transmitiram a popularidade da caça como desporto, pelo menos no que às classes altas se referiam 332. Porém, a caça era algo mais que um entretimento popular. De modo crescente chegou a converter-se numa formação na idade viril, tanto física como simbolicamente 333 . Na Roma Antiga, os homens do império romano, cujos ecos de grandiosos banquetes e autênticas orgias de comida chegaram aos nossos dias, dispensavam as carnes selvagens nos seus repastos. Este testemunho é noticiado pelos autores clássicos dessa época, em descrições de festins que duravam dias, nos quais os romanos usavam técnicas para vomitar depois de cheios para, a seguir, continuarem a empanturrarem os buchos. A caça na Região da Úmbria atraía os senhores de Roma, principalmente a caça ao javali, como refere Petrónio, no Satiricon, ao tempo do imperador César Augusto que marca o apogeu da caça Imperial. A princípio, os romanos não se interessavam pela caça como outros povos contemporâneos, porque estavam absorvidos pelas suas empresas guerreiras. No entanto, logo que alcançaram o poderio e a grandeza, importam da Grécia os poderes venatórios, criam cães e cavalos de raça. A partir daí a mocidade patrícia de Roma aprendeu a arte de montear, ganhando o gosto pela caça desportiva e o interesse que ela despertou foi tão grande e, de tal forma se generalizou, que poucos foram os poetas, filósofos ou escritores que não exaltaram as suas virtudes. No Cynegeticus, o primeiro manual sobre a caça conhecido, Xenofonte afirma: “Os homens amantes do desporto (caça) obterão através da sua leitura muitas vantagens já que lograrão saúde corporal, melhor visão ou melhor ouvido, assim 332 Em Portugal, também cenas emotivas da caça não foram indiferentes ao poeta Luís de Camões. Na sua obra não são encontradas narrações pormenorizadas de caçadas, mas amiúde com realce cenas de caça. Nos seus «Cantos», o poeta alude algumas vezes às caçadas, indicando nitidamente que conhecia as armadilhas, como por exemplo a rede, o laço, a besta, a espingarda, etc. Veja-se os Lusíadas, Canto VII, 12; refere-se ainda ao caçador no seu canto IX, 26; produziu observações «cantando» acerca dum célebre episódio cinegético ocorrido na Ilha dos Amores, descrevendo-o no (s) Canto (s) IX, 63; 64; 66; 67; Canto IX, 74. 333 Platão, na República, dirigindo-se a um filósofo amigo afirma: “Sendo assim, Glauco, devemos competir como um círculo de caçadores ao redor dos matagais com as mentes muito despertas de forma que a justiça não se nos escape (...).Mantêm-te vigilante nesse caso, faz tudo o que podes para vislumbrá-la antes que eu (...)”. Platão vai mais longe e afirma claramente que o filósofo que procura a justiça deve aspirar a adquirir os mesmos hábitos mentais que possuem os bons caçadores. John Reiger, ob. cit, p. 130. 208 como uma velhice mais prolongada. Mas, sobretudo, a caça é um excelente treino para a guerra” 334. A forma como a caça era praticada naquela época testemunha que o soldado grego estava seguro ao traçar aquela opinião tão elevada sobre as vantagens físicas que a mesma representava para o caçador. A lança, mais do que o arco e as flechas, parece ter sido a arma desportiva correntemente utilizada. Os javalis eram caçados invariavelmente com cães, no intuito de os conduzir para as armadilhas onde podiam ser abatidos com lanças curtas. Por vezes, o plano falhava. Nesse caso, os caçadores confrontavam sozinhos, pelo menos durante algum tempo, os javalis. O facto mais importante sobre a montaria neste período, acima de tudo, é que se tratava de um desporto e não de uma matança desregrada. Por exemplo, os caçadores de javalis iam a pé e armados somente com lanças. O seu principal objectivo resumia-se a obrigar os cães, alguns dos quais tão grandes como lobos, a codilhar os javalis conduzindo-os até à armadilha. À medida que as armas dos caçadores europeus mudam radicalmente, a essência da caça permanece a mesma, pois não existe um desporto verdadeiro, se os animais não têm uma oportunidade de escapar, os cães participem na montaria e exista algum risco para a pessoa 335. Mencione-se que a caça da lebre ao largo do Danúbio, a fronteira a norte do império Romano, comprovou que apenas a classe rica a podia recrear, em toda a sua amplitude, já que os ricos cavalgavam atrás dos cães, ao passo que os pobres tinham de ir a pé 336. Pela primeira vez no mundo, em Roma, apareceram as primeiras regras escritas que regeram a actividade de caçar. Entre essas normas de caça, é curioso verificar que 334 Idem, ibidem. Recorde-se que o Cynegeticus, o primeiro livro da literatura cinegética do século II d.C., noticia as caçadas dos celtas (técnicas de caçar dos senhores, dos homens que pertenciam a uma classe e das classes inferiores). 335 Como afirmou o historiador sueco Gunnar Brusewitz: «não é certamente um exagero manifestar que o desporto da caça europeu tem as suas raízes em Roma e Grécia». A caça da lebre na antiga Grécia é um exemplo extraordinário de que «o espectáculo é o essencial»; que a montaria – e não matança – é o que constitui a caça. Por exemplo, Xenofonte recomendava que quando uma lebre era perseguida pelos cães de caça fosse lícito escapar «em honra da deusa da caça». Dois mil anos depois, o filósofo francês Pascal afirma o mesmo por outras palavras: «o valor da lebre não está em possuí-la, mas em persegui-la». Idem, ibidem. 336 O desporto inglês da caça à raposa, levado mais tarde às colónias americanas, põe de relevo as glórias da montaria ao tempo que obsta importância a dar morte ao animal; o mesmo mostra igual preocupação para as distinções sociais. Juntamente com outras componentes da cultura grega clássica, os romanos conservaram as ideias gregas relativas à caça. 209 são classificadas de res nullius os animais selvagens e, como tal, deviam estes pertencer, por direito, a quem deles se apropriasse, desde que não fosse em propriedade devidamente identificada de outrem. Quer isto dizer que o ponto polémico no Direito Romano foi sempre a conservação do direito de propriedade da caça. Tal se justificava, na época, na medida em que raramente um animal de porte, como um javali, era morto à primeira lançada. Com o incremento e divulgação entre a população e os patrícios dos espectáculos de circo, o entusiasmo e a paixão pela caça foram definhando entre os romanos, que preferiam ver as lutas entre os gladiadores ou um duelo de morte entre um tigre e um leão. Por outro lado, se a caça desportiva passou para segundo plano, com o intuito de manter as exigências dos espectáculos de circo no Coliseu de Roma, acabaram por ser organizadas grandes caçadas destinadas a capturar animais de vulto, nos domínios do Império romano, sendo de referir que, num determinado momento chegaram a juntar-se no Circo de Roma, nada menos de quatrocentos leões, capturados em regiões distantes do Oriente 337. A dominação romana, desde o ano de 205 a.C. até 414 d.C., caracteriza-se por um notável abaixamento das actividades caçadoras, propriamente ditas, em beneficio das monótonas e dilatadas operações de captura que se realizaram para obter animais selvagens vivos, com destino aos espectáculos de circo, denominados “venationes”, tão frequentes em anos posteriores ao Império de Augusto. Desta forma, as três províncias em que César dividiu a Hispana (Tarraconense, Lusitânia e Bética) forneceram, durante largos anos, uma abundante fauna para as diversões de Roma 338. Também se organizaram batidas, com relativa frequência, para a captura de cavalos, que deviam encontrar-se em estado selvagem. Nesses tempos, o cão de caça ibérico encontrava-se em plenitude de qualidades de habilidade e ligeireza 339 . Durante a época do domínio de Roma na Península Ibérica, o exercício da caça era um direito natural, embora submetido a determinadas limitações. Os primeiros povos bárbaros que invadiram a Península Ibérica (vândalos, suevos e alanos) encontraram no Sul dos Pirenéus os terrenos propícios para praticar a 337 Elisiário Rodrigues, «Primeira Lei de Caça elaborada na Roma Antiga», Jornal de Caça e Pesca, n.º 807, Fevereiro, 1ª Quinzena, 1992, p. 2. 338 Guillermo Muñoz Goyanes, ob. cit. p. 14. 339 As quais foram afloradas, por exemplo, pelo poeta grego Oppianos e o latino Neomésio, autores de notáveis poemas sobre temas cinegéticos. Idem, p. 15. 210 caça de carreira, com cães e cavalos, abandonando os sedentários sistemas à base de redes, armadilhas e outras artimanhas tão usadas na antiguidade e mantidas, em grande medida, durante a dominação romana. Os primitivos reis visigodos procederam à partilha, entre vencedores e vencidos, de terrenos de lavoura e bosques, dividindo, para eles o solo conquistado em três categorias, procuraram incluir na chamada alodial o senhorio das parcelas que possuíam animais de caça 340. 1.2. Península Ibérica Na Península Ibérica as primeiras montarias, de que se tem notícia, datam do ano 770 e foram organizadas em Roncesvalles, por Carlos Magno, grande aficionado por verdadeiras chacinas. Existem bastantes razões para supor que, naquele território, as primeiras caçadas de cetraria ocorreram a cargo dos visigodos, que praticavam uma rudimentar caça de baixo voo (utilizando açores ou aves semelhantes). Durante a dominação dos árabes, praticou-se intensamente a cetraria de baixo voo. Sabe-se, com segurança, que os falcões peregrinos foram apreciados pelos citreiros. No entanto, no princípio do século XI, de certa maneira, a caça maior era mais abundante que a menor. Encontravam-se inclusive ursos em lugares onde, com o tempo, desapareceram para sempre. No que se refere às armas de caça, no século IX, os franceses tinham notícias sobre a existência de uma arma chamada “balestra”, cuja invenção atribuíram alguns eruditos aos naturais da ilha espanhola de Maiorca e que empregava também flechas envenenadas, cujo alcance atingia, por vezes, 120 metros 340 341 . A montaria adquiriu, na No Codex Euricianus não figuravam expressamente regulamentações cinegéticas, mas na compilação legal, redigida por jurisconsultos romanos por ordem do Rei visigodo Alarico II, conhecido pelo nome de Breviário de Aniano (506), enumeram-se preceitos aplicáveis à propriedade da caça em relação com os terrenos em que vive. Idem, ibidem. O Fuero Juzgo (O Foro Julgado), corpo de leis que regeu os territórios hispânicos durante o domínio dos visigodos, trata no Livro X, do direito de propriedade; nele se estabelece que a sucessão não é o único modo de adquirir o domínio, porque, além daquela, consta também a ocupação bélica, a pesca e a caça. Portanto, este Código acabou com a perturbadora dualidade de legislação para vencedores (Código de Eurico) e vencidos (Código de Alarico), e, de acordo com o critério do direito germânico, o exercício da caça se considerou como um direito privado do dono do terreno. Idem, p. 16. Segundo Marcelo Caetano, o Codex Euricianus foi uma lei pessoal dos Godos, como defendem, entre muitos outros, Gama Barros, Paulo Merêa e Sancho Albornoz, ob. cit. p. 101. 341 Afigura-se, contudo, que no século XII era tão destruidora, que o segundo Concílio de Latrão (1139) proibiu o seu emprego entre os cristãos. Com a balestra lançavam-se com força projécteis em forma de dardo, fabricado com diversos materiais. Preferentemente eram usados paus, de ponta aguçada e endurecida ao fogo, que recebiam o nome de jaras (dardos), esteva, arbusto cistíneo, muito abundante na Península Ibérica. Idem, ibidem. 211 segunda metade do século XII, verdadeira maturidade. Existiam muitos e bons caçadores de caça maior, a pé e a cavalo 342. A afición que o Rei Afonso X possuía pela caça coloca-se de manifesto na sua obra, o célebre Código das Sete Partidas 343 . Aí se verifica que os recursos bravios, em terrenos de propriedade privada, pertenciam ao dono do prédio. Em Espanha, até ao século XIII, todas as mencionadas normas jurídicas cinegéticas estavam ajustadas ao Direito Romano, pelo que os animais selvagens, ou aqueles domésticos que conseguiam a definitiva liberdade, se consideravam como res nullius. Em 1350, em pleno reinado de Afonso XI, foi publicado o Livro de la Monteria, obra ímpar da bibliografia cinegética espanhola, dada a conhecer por Pedro I de Castela. Entre as prudentes leis promulgadas por aquele monarca mencione-se o Ordenamiento de Alcalá, na qual figura uma curiosa proibição de armar em montes cepos com ferros para a caça de porcos, ursos ou veados 344. Os Reis Católicos preocuparam-se com protecção da Natureza em geral e dos animais selvagens em particular, restringindo o direito a caçar, exigindo aos senhores feudais o pagamento de indemnizações por danos causados aos proprietários de prédios agrícolas, tanto para os caçadores como para as rezes procedentes de terrenos próximos acoutados, e regulamentando o uso de certos procedimentos de caça 345. Resumidamente, sobre a Idade Média espanhola, cabe dizer que a prática da caça se converteu, segundo uma regalia ou privilégio nobiliário, na diversão favorita dos Senhores; além das suas aves de presa, cuidadosamente adestradas, utilizavam bons cães e excelentes cavalos. A cetraria e a montaria alcançaram um alto grau de perfeição entre as gentes de elevada classe; inclusive os eclesiásticos se apaixonaram de tal modo pelos exercícios cinegéticos, que prelados e Concílios se viram obrigados a ditar 342 Nas quatro grandes caçadas organizadas por Sancho VI, o Sábio, Rei de Navarra, no ano de 1165, nos Montes de Roncesvalles, foi abatida uma apreciável quantidade de ursos, veados, corços, rebecos e javalis. Recorde-se, que este monarca mandou redigir, em 1180, um Código de Montaria, que além de ser o mais antigo da Idade Média é também o mais completo. Nele se ditam as regras a que deve sujeitar-se um bom monteiro; se estudam, ao pormenor, as práticas desta arte. Os animais que compunham a caça maior eram, o urso, javali, zorro, lobo, o lince; o veado, o corso e o rebeco, animais de monte que Deus deu ao Homem para seu sustento. Somente o Rei, os Ricos-Homens, os Infantes e Cavaleiros poderiam caçá-los. Proibia-se por este foro, a toda a pessoa de qualidade inferior, se dedicasse à caça, sob pena de aplicação das seguintes medidas: para os fidalgos lavradores perda da sua herança e dos direitos feudais; para os dos povos, perda de seus bens; os vilões sofreriam multa e penas corporais. Idem, p. 21. 343 Assim afirmava: «A caça é a arte é sabedoria de guerrear e de vencer». Idem, p. 22. 344 À semelhança do que se fazia noutros países europeus, nesse tempo, introduziu-se em Espanha a modalidade de caça com leopardo amestrado, chamado «chita». Idem, p. 24. 345 Entre muitos exemplos pode citar-se a Pragmática del 15 de enero de 1470, na qual se previne: «a caça, de nosso monte e Bosque del Pardo, está vedada, proibida e acoutada». Idem, p. 25. 212 severas medidas para reprimir o luxo e a dedicação dos clérigos ao custoso sustento dos treinos de caça. Os plebeus, por sua vez, foram constrangidos a caçar onde os deixavam, utilizando tão modestos procedimentos como o emprego de flechas, laços e armadilhas e ameaçando as suas vidas ou um dos seus membros corporais à menor infracção cometida 346. Na Idade Moderna, depois da tomada de Almeria (1489), e da rendição de Granada (1492), a Espanha alcançou a unidade nacional. Nesse caso, com invulgar convivência entre os nobres cavaleiros castelhanos vencedores e nobres cavaleiros árabes vencidos organizaram-se grandes caçarias de “ feras e alimárias nos bosques “, em cuja ocasião, “ numerosos ginetes, montando magníficos corcéis, rivalizaram para brilhar a sua destreza ante a rainha, para seu maior divertimento” 347. Nos primeiros anos do século XVI, alguns caçadores utilizaram o arcabuz e o mosquete, ambos tão pesados e imprecisos, que exigiam ao usuário que colocasse ao alcance da sua mão várias armas, com outros tantos servidores, para facilitar a repetição dos disparos 348. O uso cada vez mais frequente das armas de fogo, alterou os métodos de caça. Surgiram diversas modalidades de caça com arcabuz e criaram-se novas raças de cães, mais idóneas, e facilitou-se até certo ponto a prática do desporto cinegético aos caçadores modestos. Desapareceu rapidamente a cetraria e a montaria continuou limitada aos coutos dos poderosos. Não obstante, nesse período, os governantes não contiveram a conservação da riqueza cinegética. Filipe II gostava de ir à caça com as suas filhas – as Infantas –, que matavam também muita caça. Em cartas que lhes escrevia de Lisboa (quando era dono e senhor de toda a Península Ibérica), o monarca recorda as suas partidas cinegéticas em 346 De qualquer modo, admite-se que a profusão de leis, proibições, códigos e foros medievais, procurando manter certos privilégios em favor de determinadas classes sociais elevadas, é, em certa forma, uma prova de que o povo simples caçava quanto podia, sem se arredar ante os severos castigos. Idem, p. 26. 347 O Discurso sobre El Livro de la Monteria (publicado por Gonzalo Argote de Molina, em 1582) alude às caçadas de D. Fernando, enquanto D. Isabel se inclinava mais à leitura para a qual dispunha de muitos livros, entre eles, uma preciosa biblioteca de caça. Também nesta obra se descreve o Rei Filipe I como homem muito destro, «tanto com a balestra (....) a escopeta, e como grande monteiro e caçador de volataria». As Leis de Toro, do ano de 1505, contêm normas acertadas sobre a propriedade dos animais selvagens caçados e os donos de prédios rústicos. Idem, p. 27. 348 Da Alemanha, Carlos I de Espanha e Imperador do Sacro Romano Império, mandou vir um dos melhores fabricantes de arcabuzes, ao ponto do país criar uma indústria de armas de fogo que fornecia aos exércitos imperiais hispanos. Não obstante, o uso de tais armas nas caçarias tardou em generalizar-se. Idem, p. 28. 213 Espanha e elogia a abundância de animais de caça maior que existiam, naquele tempo, em Portugal 349. Por esta época matavam-se muitos machos monteses da cabra hispânica, dada a sua abundância na Serra de Cazorla e em Santisteban del Puerto. Com a subida ao trono de Filipe III, assinala-se um dos momentos mais florescentes da caça maior em Espanha. Entre 1601 e 1606, quando a Corte esteve instalada em Valladolid, por expresso desejo do monarca, celebraram-se caçarias régias em numerosos lugares, patrocinadas pelo Conde de Alba, o Duque de Maqueda, o Duque de Lerma, etc. Em 1611, Filipe III promulgou uma severa Pragmática, que estabeleceu a “absoluta proibição de caçar com laços, armadilhas e outras artes semelhantes, assim como arcabuz, nem com outro tiro de pólvora”. Em 7 de Novembro de 1617, derrogou a parte que proibia, excepto em determinadas épocas e lugares vedados, o emprego de arcabuzes na caça. Porém, durante a sua vigência não se evitaram danos, pelo contrário, verificou-se maior esterilidade e carestia, porque se introduziram novos métodos de caçar com laços e armadilhas e outros géneros de instrumentos secretos e sem ruído 350. Filipe IV publicou a Pragmática de 1622, que proibia caçar com “tiro de chumbo, nem com outra coisa, em Madrid e vinte léguas em contorno”, com o fim de conservar os animais de caça para as montarias reais 351. A afición pela caça alcançou uma tal importância que excedia notoriamente o âmbito da aristocracia. Pessoas que não pertenciam a classes elevadas, mas possuíam terras e dinheiro, aspiravam a algo mais que matar perdizes-vermelhas e coelhosbravos nos domínios de Filipe IV. Após a sua morte, decaem as actividades cinegéticas. Ao subir ao trono de Espanha em 1700, Filipe V, como instaurador da Casa de Bourbon, empreende uma notável mudança nas modalidades de montaria e introduziu o sistema de batida, que havia de perdurar, através dos anos, como método característico espanhol 352. Por este tempo, os lobos abundavam em Espanha, e o dano que causavam à riqueza cinegética ia-se incrementando pela acção da transumância dos rebanhos que, 349 Idem, p. 29. Apesar desta derrogação, a partir de 1611 muitos espanhóis continuaram a não utilizar tal arma de fogo, por receio de se verem envolvidos em processos alheios às práticas cinegéticas. Idem, p. 30. 351 Idem, p. 31. 352 Idem, p. 32. 350 214 flanqueados por hábeis cães de gado, atravessavam em centenas de kms as defesas e coutos, no uso do direito da Mesta 353. Carlos III, um dos monarcas mais apaixonados e tenaz caçador, de quem se afirmava que somente durante três dias no ano deixava de praticar a caça (trabalhava nas manhãs e caçava de tarde); governou, contudo, com grande “ acerto e prudência, mediante sábias e populares disposições” e dedicou muitas destas à protecção da flora e fauna 354. Ao chegar ao século XIX persiste a mesma preocupação e inquietude dos governantes pela sobrevivência dos animais de caça nos montes de Espanha. Entre o breve espaço de tempo transcorrido desde a saída de Carlos IV e o regresso ao trono de Fernando VII (1808-1814), o dano que sofreu a riqueza cinegética espanhola e as vicissitudes que atravessaram o país foram incalculáveis, sobretudo, porque os animais de caça foram exterminados pelas tropas invasoras francesas, por um lado, e os próprios moradores, por outro 355. Posteriormente à Guerra de Independência, a fauna cinegética também sofreu graves danos, devido às frequentes guerras civis que padeceu o país, durante as quais foram arrasadas, por forças regulares e irregulares, regiões propícias à fauna silvestre. A Lei Geral Desamortizadora de 1820, com o seu acentuado critério individualista da propriedade, suprimiu os direitos gratuitos da caça em solo alheio; a Lei de 3 de Março de 1823, unida às Disposições das Cortes de Cádiz de 1811 e 1813, declararam abolidos os privilégios chamados “privativos e proibitivos”, em matéria de caça, que tinham a sua origem no senhorio, decretando-se cerradas e cercadas todas as propriedades. Tais Disposições significaram um passo decisivo rumo à proclamação do princípio do respeito da propriedade privada, no que a caça se refere 356. Todas as Ordenanças, com outras reformas introduzidas por Disposições régias dos anos de 1836 e 1837, vieram a outorgar publicamente o direito de caçar do proprietário de cada prédio, como renda inerente a este. 353 Em Portugal, equivale ao direito de sociedade de proprietários de gado. Neste sentido, criou em 1761 uma “Compañia de Fusileros Guarda-Bosques Reales”, cuja principal missão consistia em vigiar a riqueza dos mesmos. Cite-se, a título de exemplo, a Real Cédula, de 3 de Março de 1769, porque têm como precisa finalidade a defesa dos animais selvagens, ao dispor a veda absoluta de caça, no geral e no Reino desde o primeiro dia de Março de cada ano até ao final de Julho; em dias religiosos e neves, dos sete meses restantes, ou por mais tempo se fosse necessário. Idem, p. 33. 355 Idem, p. 34. 356 Idem, ibidem. 354 215 A atracção que exerciam a Corte e as grandes cidades sobre as gentes cultas que viviam no campo deu lugar a que emigrassem deste grande parte de aristocratas e terratenentes, o que contribuiu, em bom grado, a que o exercício da caça, tanto menor como maior, passasse a usufruto dos que permaneciam em povos e entidades menores. Para isso, contribuiu, também a dificuldade de comunicações, que restringiu, durante um largo período de tempo, a celebração de grandes caçarias senhoriais. Apesar das tímidas e ineficazes disposições legislativas de protecção da fauna cinegética, o grande dano provocado, desde o começo do século XIX, não se pode remediar, nem sequer deter, principalmente devido à pouca afición pela caça, tanto de Fernando VII, com da sua viúva, a Rainha Governadora Maria Cristina de Bourbon, como a filha de ambos, Isabel II. Este dano culminou com um verdadeiro aniquilamento da riqueza cinegética, com a proclamação da I República, no ano de 1873, ao deixar incontrolados todos os caçadores e colocar em venda a maioria dos Coutos do Real Património. A partir da subida ao trono de Afonso XII, em 1875, o panorama começou a mudar e acometeu-se a reconstituição da riqueza cinegética, à base de repovoamentos diversos com animais seleccionados 357 . Em 1879, foi promulgada a verdadeira I Lei de Caça, a qual constituía uma refundição sistemático-juridica das Disposições ditadas sobre a matéria, pois se introduziu nela a importante inovação de delinear os interesses do proprietário de cada prédio com os dos demais caçadores. A II Lei da Caça foi promulgada no dia 16 de Maio de 1902. Ao longo da Idade Moderna espanhola, observa-se que o direito de caça se inspirou pela necessidade de conciliar o respeito da propriedade privada com o direito de conservação das espécies e o fim social da propriedade e da caça. Em 1915, os coutos de caça, reais e privados, que haviam começado a proliferar a partir de 1870, estavam na sua maioria bem providos de reses e caçarias.Com a proclamação da II República, em 1931, a radical alteração de regime político, afectou a maioria dos coutos de caça estabelecidos em Espanha por iniciativa privada 358 . Em Abril de 1931, as fortes agitações reflectiram-se notoriamente na agricultura, na terra e 357 Idem, p. 35. Existem dados estatísticos concretos que permitem afirmar que no decurso do tempo compreendido entre 1915 e a proclamação da II República, todos os coutos haviam prestado um serviço de incalculável valor à causa da regeneração da riqueza cinegética nacional. Idem, p. 39. 358 216 na sua fauna. Um par de anos de insensatez dos camponeses consumou a destruição de uma riqueza incalculável, que somente se reconstituiu ao longo do tempo 359. Após o desastre, a afición pela caça, em todas as classes sociais, desenvolve um enorme incremento, ao mesmo tempo que se nota a falta de protecção nuns casos, ou a ineficácia de medidas noutros, para fomentar a riqueza cinegética espanhola, tão-pouco, para conservá-la. A então vigente Lei de Caça de 1902 e o Regulamento para a sua aplicação de 1903 eram legislação muito pouco respeitada. Procurou-se, então, reforçála com diversas Disposições, entre as quais se destaca a Lei de 25 de Julho de 1935, que procurou compatibilizar o aproveitamento das espécies objecto de caça, com a necessária tutela estatal das mesmas. No entanto, não se assinalavam sinais aparentes de recuperação. O nascimento do Ministério da Agricultura e a Lei de 4 de Junho de 1940, que instituiu o Conselho Superior de Caça, Pesca Fluvial e Parques Nacionais, iniciou um novo ciclo de conservação e fomento da riqueza cinegética espanhola 360 . Mas as Disposições não lograram obter a necessária eficácia: em primeiro lugar porque faltava a unidade de acção e coordenação entre os diversos organismos que, de uma maneira ou outra, intervieram na tutela e administração da caça; em segundo lugar, não estavam adaptadas às realidades da época, prejudicando, desta maneira, o desfrute da mesma, por um número possível de caçadores espanhóis, através de um generoso e justo critério social 361. A Lei de 20 de Fevereiro de 1940 previa a criação de um organismo autónomo dependente da Direcção General de Montes, Caza Y Pesca Fluvial. Assim nasceu o Servicio de Pesca Continental, Caza y Parques Nacionales, cujos técnicos concluíram que uma contínua e bem programada protecção das espécies cinegéticas garantia a sua sobrevivência através da criação das Reservas Nacionais de Caça. Por último, a necessidade de modernizar os preceitos cinegéticos conduziu à publicação da Lei da Caça, de 4 de Abril de 1970, entre múltiplos aspectos se destacam: a protecção da fauna espanhola e a sua conservação e fomento; aproveitamento de 359 Duque de Almazán, historia de la Montería en España, ob. cit., p. 40. Idem, ibidem. 361 Sem dúvida que a interconexão de uma amálgama de entidades heterogéneas como Governos Civis, Delegações de Fazenda, Julgados, Serviços dependentes dos Ministérios da Agricultura, Comércio, Informação e Turismo, etc. não exerciam a causa legal com suficiente força jurídica para obrigar todos os caçadores a respeitar a lei. 360 217 modo a que exista, em todo o momento, uma absoluta compatibilidade entre as riquezas cinegética, agrícola, florestal e pecuária do país 362. 1.3. Portugal No período mais remoto, a caça – tal como a pesca – em Portugal eram sempre consideradas como direito inerente, sem restrição, ao “domínio do solo”, 363 pois estava compreendida nos domínios relativos à concessão régia. Tanto na propriedade das corporações monásticas como no património dos grandes senhores, assim como nos forais concedidos pelos concelhos, o direito do proprietário arrecadar tributo nas suas terras pela actividade cinegética, era sempre ratificado. Por um tempo longo, que se prolongou até aos nossos dias, ser caçador era ser privilegiado e nobre; não era qualquer um que tinha posses para adquirir os instrumentos tecnológicos da caça. À margem destes benefícios, em cada aldeia ou vila, uma “mão cheia” de homens do povo possuía o engenho para completar as suas tarefas de assalariados sem terra ou de pequenos agricultores, com a actividade artesanal de caçadores. Apesar da actividade venatória ser privilégio de nobres e do clero, alargava-se naturalmente a burgueses e vilões, mas com objectivos essencialmente económicos e não como desporto 364 . Ou seja, a importância económica que a caça devia ter na vida quotidiana levou a tolerância por parte dos governantes. Tal consentimento, verificou-se, em diversas épocas, no que diz respeito aos lobos e águias. Em 1475, os moradores de Évora e o seu termo foram autorizados a caçar perdizes-vermelhas, perdigões e lebres. O facto é digno de registo porque a região era oficialmente coutada. Tal tolerância verificou-se em diversas épocas, no que respeita a lobos e águias. Nobres e plebeus foram então convidados (ou coagidos) a realizar batidas sistemáticas. 362 Idem, p. 42. «Caça», in Dicionário de História de Portugal (coord. de Joel Serrão), Vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, 1984, p. 418. 364 Até o clero se deixou arrastar pelo interesse exagerado da actividade cinegética, ainda que, a Igreja, em diferentes concílios a tenha interditado, sem condenar de alguma forma o seu consumo. Crónicas citam, através de várias épocas, histórias de padres rezando missa de botas calçadas, com os cães presos junto do altar, e o cavalo esperando à porta da Igreja. Alfredo Saramago, A Caça perspectiva histórica e receitas tradicionais, Sintra, Colares Editora, 1994, pp.41-42. Também, no século XX, o Padre Domingos Barroso, Conselhos velhos para caçadores novos, alude a essa prática na igreja do Barrosão. 363 218 D. João I sentiu a necessidade de promulgar uma lei para que se efectuassem batidas aos lobos, todos os sábados, constituindo encargos dos moradores de concelho. Como os lobos 365 não eram comestíveis e o prazer de lhes dar caça não estava nos hábitos do povo, embora constituísse símbolo de predação, maldade e ameaça permanente de rebanhos e capoeiras, o povo não os perseguia. O desinteresse manifesto do povo pelas montarias, por vezes necessárias para acautelar a propagação da espécie e defesa das culturas, obrigou D. Afonso V a ordenar aos moradores de concelho, de algumas cidades e vilas, que organizassem, a expensas suas, quatro batidas por ano aos javalis, sob pena de multas para quem não participasse 366. Os excessos de actividade cinegética e a extensão das coutadas foram, por outro lado, motivo de queixas por banda das populações menos favorecidas que levaram o descontentamento até às Cortes, muito embora a maior parte não fosse atendida. A partir do século XIV regista-se uma diminuição de reservas de caça, mas tal facto prende-se com a opção de agricultar novas courelas e aumento demográfico. O direito de caçar foi sucessivamente adaptado, conforme a dominação fosse romana visigótica, ou árabe. No território português, até ao último quartel do século XVIII, vigorou a tradição romanista, ou seja, a caça susceptível de ocupação independentemente da propriedade, embora mesclada com o direito germânico 367. A caça foi, igualmente, apanágio de elites, salvo autorização para caça menor concedida ao povo miúdo em momentos de circunstância política 368 . Tal como serviu para as populações sedentárias como um exercício de guerra, também se tornou um desenvolvimento do ardil 369 que, em certa dimensão, a Revolução Industrial popularizou ao introduzir a caçadeira criando ao mesmo tempo hordas de caçadores ávidos de matar as espécies cinegéticas. A regulamentação do exercício da caça variou ao longo dos tempos. A lei para a população em geral adoptou o direito romano, o que significa a aplicação do princípio da 365 O lobo, outrora apelidado de “tigre do Ocidente”, por Robert Fossier, L´Enfance de l´Europe, I, p. 139 e ss., animal pleno de astúcia e agressividade, vivendo em alcateias, era o único que atacava simultaneamente homens e animais, povoando por isso o imaginário dos homens; era também o barómetro da saúde das comunidades humanas, pois sentia a fome antes dos homens e a sua intrusão em aldeias e cidades anunciava essa mesma fome. Robert Delort, Le Moyen Age. Histoire illustrée de la vie quotidienne, Paris, 1972, p. 16. 366 Chancelaria de D. Afonso V, livro II, folio 69. 367 Cristina Joanaz de Melo, Coutadas Reais (1777-1824), Lisboa, Montepio Geral, 2000. 368 Mário Bastos, ob. cit., p. 28. 369 Teófilo Braga, O Povo Português, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 1985, p. 79. 219 res nullius. Aplicado à caça determina que o proprietário de uma parcela de terreno não detém o direito de propriedade sobre os animais bravios. Estes deslocam-se livremente e, tal como a água ou o ar, são inapropriáveis. O direito de propriedade sobre as espécies cinegéticas é adquirido no exacto momento em que o caçador as persegue, fere ou mata. Por esta via, o direito romano dissocia o direito de propriedade sobre as espécies cinegéticas do direito de propriedade de bens de raiz. No entanto, com a transformação da sociedade, assiste-se a uma reformulação do direito de apropriação das espécies cinegéticas, operada através da criação do regime de coutada. Esta limita os animais que se podem caçar ao espaço em que se encontram e a sua propriedade ao proprietário da base fundiária, excluindo desse direito os rendeiros e os foreiros. Ao conceder o direito do exercício da caça exclusivamente ao proprietário, o regime de coutada postula a aplicação do direito cinegético germânico. Desta forma, é possível constatar que, em Portugal, vão vigorar em simultâneo, durante o Antigo Regime, os dois sistemas de direito cinegético, romano e germânico, aplicados respectivamente a agentes sociais distintos. O direito romano constituiu o suporte da legislação para a população em geral; o direito germânico aplica-se a um regime especial, o regime de coutada, em concessão de privilégio ao topo da hierarquia social. Ao longo de toda a História do Antigo Regime, a aplicação do direito germânico à caça, que resulta na livre utilização e apropriação dos recursos bravios exclusivamente pelo proprietário, criou inúmeras situações de tensão entre as populações rurais e os donatários da coroa e o Rei. Em toda a actividade venatória, a eliminação de lobos é a única circunstância em que a coroa, monteiros, couteiros e populações rurais estão de acordo e para a qual reúnem esforços, não havendo conflitos entre as partes. A coutada constituía uma unidade complexa de restrições ao usufruto dos recursos naturais, fossem eles caça, pastos, ou produtos florestais. A colecta de frutos silvestres constituía um direito natural dos povos, que o regime de coutada, desde logo no período medieval, vem limitar. Enquanto espaço simbólico e manifestação visível dos privilégios reais, as coutadas de caça adquirem um estatuto especial, por constituírem no território nacional, o lugar de maior frequência da família real durante cinco séculos e da monarquia. 220 A protecção dos recursos bravios esteve cedo presente no espírito do legislador, através de restrições para o exercício da caça, de aplicação de multas e penas para o transgressor e para a adopção de um período de defeso. Segundo Gama Barros, desde a ocupação romana da Península Ibérica que se conhecem disposições regulamentares de direito à caça e à posse no território que é hoje Portugal. Para os romanos, a caça passou a ser um bem de todos e propriedade daquele que lograsse abatê-la, reservando-se apenas aos proprietários o direito de consentir ou não a prática nos seus terrenos. É o princípio da res nullius – o reconhecimento da caça como valor económico nacional 370. Em Roma, o contacto com os modelos orientais de caça conduziu à encenação da caça como “espectáculo circense, frivolizando-se e dando lugar ao massacre entre homens e feras” 371 . Com as invasões bárbaras, especialmente com os visigodos e nas regiões por estes ocupadas, o direito germânico liga a posse da caça à posse da terra. No seu espírito político-social é a divisão de classes que detém o segredo de toda a estabilidade. Tal conceito de posse, interrompido durante a ocupação pelos Árabes, para quem a “caça tal como outras coisas que Deus dá é de todos”, seria retomada e refinada pelo sistema feudal prevalecendo desde o advento da nacionalidade. Surge então a concepção e o reconhecimento da nobreza como elite e direito a todos os privilégios embora também carregada com deveres para com as massas anónimas. Por isso, na sua estrutura político-militar, o direito de jogar às armas, de ser guerreiro, tornase exclusivo dos nobres. Era um dos seus mais pesados encargos. Toda a espécie animal cuja caça envolvesse perigo era considerada propriedade da pessoa real e o direito de abatê-la tinha de ser requerido ao Rei. Mas, tal pedido, só o podiam fazer os nobres. Sem perder totalmente a sua feição prática e utilitária a caça adquire por essa altura uma expressão quase exclusivamente de diversão. Na Idade Média, a montaria dá-nos uma configuração das intenções que norteavam a actividade venatória. São abandonadas as armas menos nobres até se reduzir à lança e à espada o armamento de caçador fidalgo, para aumentar os riscos e 370 Henrique de Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII-XIV, 2ª Ed., Lisboa, Tomo VI, Sá da Costa, 1949, pp. 37-92. 371 Maria Helena da Silva Cruz Coelho e Carlos Guilherme Riley, «Sobre a Caça Medieval», Separata dos Estudos Medievais, Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1988, p. 226. Sublinhe-se, ainda, que Xenofonte a retracta na sua obra Cynegeticus, como exemplo de treino de cães, antecipando assim a componente pedagógica da Cinopedia. Durante o Império, a caça era símbolo de virtudes imperiais e etapa obrigatória de educação a cavalo, como factor demonstrativo de resistência de uma civilização crepuscular contra a barbárie. 221 pôr à prova a coragem do caçador. Ao mesmo tempo que se deixou de receber da caça qualquer cariz utilitário. No Século XII, em quase toda a Europa, observa-se certo regresso ao espírito utilitário da caça que se aproxima da táctica militar, confunde-se com ela. Apesar de aqui ou além se libertar, nem por isso deixa de reconhecer-se que constitui, realmente, o melhor treino para quem tiver de brigar na guerra. As caçadas abandonam a configuração que haviam conhecido na Idade Média, razões que explicam ser a caça um privilégio de que só alguns podem beneficiar. Particularmente, a caça entra nos “domínios e serve o espírito da expressão mais característica que o medievalismo criou: a cavalaria no seu significado objectivo e no seu próprio sentido idealista”.372 O arco e as flechas apenas se utilizam na caça área, pelas classes menos bafejadas, contrariamente aos nobres que surgem nos campos em magníficas cavalgadas para praticar com incontestável requinte a altanaria (ou volataria) em qualquer dos aspectos mais absorventes: a cetraria ou falcoaria. Era a caça galante, a caça subtil mais para recreio dos sentidos do que para exercício dos músculos, a qual transfigura as ilustrações do tempo 373. As comunidades nascem por si, naturalmente, e a coutada surge no “panorama geral da caça como o feudo aparece na base da organização política. O feudo é assim toda uma coutada completa na qual se estende o habitual senhorio ” 374. Tal espírito não podia abranger a totalidade dos aspectos, até porque à nobreza de então não interessavam determinadas espécies cuja caça não estava à altura de fornecer, nem treino de caça, nem acção meritória, nem sequer passatempo de qualidade. O uso dos laços, das redes, das armadilhas e de outros sistemas inferiores, ficava para o povo, que assim se entretinha ante o olhar condescendente dos seus senhores que, até mesmo para a altanaria utilizavam os cavalos, se não para auxiliar as acções, possivelmente, para maior rapidez de deslocação e consequente alargamento do campo de actividade. Os muçulmanos não podiam ser batidos pelo espírito militar medieval, mas sim por hostes aguerridas e libertas de estranhos princípios. A presença dos cavaleiros 372 Jayme Duarte D´Almeida, ob. cit., p. 49. Também durante a dominação dos árabes em Espanha, se praticou intensamente a cetraria de baixo e alto voo, utilizando preferentemente açores, que adquiriram tão extraordinário valor que se consideravam bens inalienáveis, como a espada, de que jamais se podia despojar um verdadeiro cavaleiro, nem sequer como pagamento de seu resgate ou liberdade. Guillermo Goyanes, ob. cit. p. 17. 374 Jayme Duarte D´Almeida, ob. cit., pp. 49-50. 373 222 vilões nas hostes trabalhadores, verificada quase desde o início, pode concorrer para ilustrar o que se refere. Havia, pois, que ceder em alguns aspectos e não podiam cercear-se tão completamente os benefícios a quem se pedia determinado esforço e mesmo o sacrifício de participar numa luta incerta. Era o princípio da Justiça medieval na qual se reconhecia o equilíbrio que era preciso existir com o seu quê de exemplar. Desta forma a caça não podia ficar inteiramente fora das regalias do povo e tinha de se integrar, mesmo, no princípio romano da res nullius. A criação do cavalo esteve em Portugal alheia a qualquer disposição ou fiscalização oficial até ao reinado de D. Fernando – que demarca o percurso de dois séculos sobre a constituição da nacionalidade. Até lá as raças existentes – a céltica ou galiziana, no Norte, ou a bética Lusitânia nas lezírias do Tejo, ou nas planuras alentejanas –, têm uma existência natural e livre. A par da legislação protectora da agricultura D. Fernando estabelece também medidas protectoras de ampliação e regulamentação da criação do cavalo como elemento indispensável ao fomento pecuário da Nação e ao seu poder militar. Entre outras coisas, sujeita-se “todo aquele a quem se fazia a doação de terras a corresponder com bons cavalos para a guerra” 375. Estes factos são demonstrativos da circunstância que a criação do cavalo originou não apenas feições novas na legislação correspondente à prática da caça e defesa dos animais, como até certa evolução nos sistemas de caçar, conquanto sofreria um retrocesso, com D. Afonso V, quando revoga grande parte da legislação vigente, particularmente aquela que determinava só “ser permitido cavalgar muares a quem cavalos possuísse ou éguas de criação”376. D. João II renova as leis coudélicas e logo a seguir o período dos Descobrimentos chama a si a totalidade das atenções. Quando os cavalos abundam ao ponto de poderem ser utilizados para servir a caça, as espécies perigosas se circunscrevem a determinadas classes – justamente as mais privilegiadas – num procedimento muito semelhante ao dos tempos medievais. 375 376 Idem, p. 52. Idem, ibidem. 223 2. Regime de coutada As interpretações historiográficas em torno do conceito de coutada explicam-se, de modo especial, pela sua natureza, objectivos e meios utilizados. Neste sentido, em Portugal, o regime de coutada configura um quadro de utilização privada dos recursos bravios que conheceu diversas formas ao longo dos séculos. 2.1. Génese ao Liberalismo Em Portugal, país de matos e florestas, a prática cinegética acompanha as investidas cristãs para a formação do território pátrio. Durante o período medievo era um espaço de coutadas e baldios onde a caça se incluía entre as principais distracções do nobre e representa para o vilão fonte importante de subsistência 377. No direito romano anterior ao de Justiniano, e também neste, estava consignado o princípio que a caça pertencia ao primeiro ocupante, ao qual era reconhecido o direito de não consentir que se caçasse nas suas terras. Com Alarico, a prática baseava-se no antigo direito. A lei nova não trouxe especificidade relativa à caça a não ser algumas disposições normativas sobre a perseguição de cães que fossem encontrados a caçarem em terra alheia 378. Porém, nos séculos XII e XIII, o direito romano não era o único fundamento dos direitos do nosso território. Segundo Alfredo Saramago, “há quem não veja no direito romano, germânico ou visigótico, uma herança que levasse a dar consistência ao direito que os proprietários se arrogavam em relação à caça. Preferem ver o privilégio da caça como um vício da sociedade que transformou o autoritarismo em costume” 379. Os senhores poderosos fizeram da caça um monopólio, que guardavam aplicadamente, permitindo algumas tolerâncias em relação aos direitos reclamados pelo povo, mas em circunstâncias e ocasiões eleitas, não consentindo facilidades que lhes prejudicassem o contínuo uso desse privilégio. 377 António Herculano de Oliveira Marques, Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera na Idade Média, 3ª Ed., Lisboa, 1978, p. 8. Veja-se ainda A. de Sousa Silva Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no Século XV, Lisboa, I.N., 1903, p. 78. 378 Alfredo Saramago, ob. cit., p. 11. 379 Idem, p. 12. 224 Há notícias de reservas de caça no Alentejo durante a ocupação, onde os senhores da guerra e da terra procuravam prazer e exercício físico. Durante o período visigótico promoveram-se caçadas reais com os cães 380. Desde os primórdios da Nacionalidade figura a caça naquilo a que podemos chamar legislação nacional. Existem realmente, a partir de 1111, determinações curiosas sobre a matéria, que provam o interesse que ela merecia, como nos dizem que o conceito da res nullius não era tão lato como à primeira vista parecia 381. O conteúdo dos Forais de Vila de Sousel (1111) e o de Ferreira Alves (1136), informa-nos que sobre a prática de caça incidia uma contribuição paga em espécie em função do produto da caçada; tais tributos fazem transparecer a prática popular da caça profissional; os forais provam assim que existiam coutadas, as quais eram franqueadas aos caçadores mediante o pagamento do tributo. Tratando-se de caça grossa, era devida uma parte de cada animal abatido; na caça ligeira o pagamento correspondia a determinado número de peças por certo período de caçada. Tais factos reportam-se a costumes anteriormente estabelecidos entre a grei que apenas passaram a submeter-se a determinadas condições: apenas referiam a contribuição a pagar sem qualquer alusão ao sistema em prática, às zonas autorizadas ou a quaisquer limitações. Estabelecida a Nacionalidade (1143) e principiada a conquista, a actividade essencialmente de defesa, não permite desde logo a promulgação de regras de carácter venatório. No entanto, a título pessoal, o Bispo de Coimbra e o cabido deram aos habitantes de Coja, no foral concedido em 1260, o direito de caçar lebres, coelhosbravos, cervos, corços, porcos ou ursos, contra o pagamento de tributo. À medida que a Nação se firma e se alarga, doações, honras e coutos são concedidas às Ordens Militares e à Nobreza 382. No foral de Covas (1162) concedido por particulares aos moradores, vêm indicados os tributos a pagar em relação à caça grossa – de veado, o lombo, e de urso, as mãos 383 . No Couto de Pedroso, em 1260, o abade do mosteiro proibiu a caça das 380 Idem, p. 23. Na Europa, a primeira lei que se conhece depois do Império Romano é uma ordem do rei Dagoberto, do ano de 648, regulamentado a caça na floresta real das Ardenas. A palavra floresta, que vem do latim forestare – significa proibir ou defender através de cercas, ou seja, à volta dos territórios reservados à caça real. A reserva real atravessou os séculos e a primeira que há notícia para cativeiro de gazelas e antílopes teve lugar no Sinai, cerca de 2 100 a.C. Alfredo Saramago, ob. cit, p. 12. 382 Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines, Ed. Alexandre Herculano, Vol. I, p. 695. 383 Idem, p. 387. 381 225 perdizes-vermelhas e dos coelhos-bravos 384 D.Sancho I, em 1202, exige tributo de caça . No foral de Trovadelo, Fontes e Crustelo, 385 . Nos costumes da Guarda, que remontam ao século XIII, o direito municipal dava protecção aos coelhos-bravos e às lebres, espécies desprezadas pelas classes possedentes, e punia com a multa de dois maravedis quem matasse podengo ou galgo 386 . Nas Cortes de Elvas (1361) houve vários agravos que referiam o aumento exagerado das coutadas e a proibição de matarem os animais que saíam dos coutos. Disse o povo: “que os lavradores podem castigar o homem que lhes cause prejuízo nas searas ou nas vinhas, mas têm que respeitar a veação que aí lhes for fazer estragos”387. De igual modo, os procuradores de Estremoz afirmavam que as searas e as vinhas eram dizimadas pela caça, os lavradores não tinham que caçar e a caça era dada por Deus para mantimento dos homens 388. O povo de Moura alegava que a coutada existente no concelho, e que a ocupava toda, era para desenfadamento do Rei, mas não servia o Rei, porque este nunca ia a Moura e assim fazia a desgraça do povo. Em 1459, o povo de Montemor-o-Novo alegou existirem muitas “pessoas e das melhores”, assim como outras de somenos, que eram “doentes de tais dores, que lhes seria proveitoso comerem perdiz-vermelha e não ousavam de as matar pela vossa defesa que é tão grande, que vos pedimos mercê de as matar, já que elas comem o nosso pão e destroem as nossas vinhas” 389. Quando era preciso estabelecer princípios jurídicos ligados à caça, logo ressurgem com expressão de continuidade do estabelecido anteriormente. Durante longos anos assim aconteceu, limitando-se as determinações sobre a caça a referir a contribuição que era devida a quem, pertencendo ao povo, a praticava. Porém, essas determinações apenas abrangiam o povo e beneficiavam entidades a quem se queria 384 Idem, p. 724. Idem, p. 523. 386 Idem, p.7. 387 Alfredo Saramago, ob. cit., p.18. O autor, baseado na Chancelaria de D.Afonso V, livro XX, folio 88, refere que nas Cortes de Lisboa de 1407, o povo lamentava-se: “ (...) a caça come tudo e os homens, que são criaturas de Deus, não têm com que viver e morrem de fome, porque se tolhe o trabalho de suas mãos, o que é contra os mandamentos de Deus, tirar os mantimentos aos homens e dá-los às bestas selvagens. Além disso, erma-se a terra onde elas andam, o que não é serviço de Deus, nem honra de rei nem da terra”. Idem, p. 18. Veja-se também Visconde Santarém, Memórias para a História das Cortes Geraes (1827 e 1828), Elvas, 3ª edição, Tip. Progresso, 1901. 388 Idem, ibidem. 389 Idem, ibidem. 385 226 fazer mercê, quando elas se não revestiam de interesse, optava-se deliberadamente pela coutada de feição particular, quase íntima. A facilidade de escolha era tal que a quantidade dessas áreas privadas foi aumentando, não apenas por concessão real, mas igualmente por mera determinação do proprietário ou beneficiário das terras. Nesta circunstância, limitava o direito de caçar, mesmo em troca do pagamento da aludida “contribuição”, sendo talvez esse o motivo por que a legislação não apresenta aspectos novos e perfilhe uma rotina sem qualquer interesse para o panorama geral da actividade venatória portuguesa nos séculos XII, XIII e XIV 390. Segundo Martinez de Espinar são três as modalidades de caça existentes ao longo do tempo: a arte de caçar javalis e montaria, em sentido amplo, ou seja, a caça maior, como diriam hoje; a volataria ou de aves e a caça ardilosa com redes, laços, etc. As três, com matizes, se aludem no D. Quixote, praticando o cavaleiro do verde gabão, fidalgo, medianamente rico, a caça menor se bem que sem falcão nem galgo, mas com perdigão manso ou algum furão atrevido; os nobres, a altanaria, com açor; e os duques, anfitriões de D. Quixote, a montaria ao javali. Assim dizia D. Quixote: “ O exercício da caça de monte é o mais conveniente e necessário para os reis e príncipes que outro algum. A caça é a imagem da guerra, há nela estratagemas, astúcias ardis para exercer a sua salvação ao inimigo: sofre-se, com ela, frios enormes e calores intoleráveis; rejeita-se o ócio e o sono; fortalecem-se as forças; agitam-se os membros (....) é o exercício que se pode fazer sem prejuízo de nada e com gosto de muitos. E o melhor que tem é que não é para todos, como o é o dos outros géneros de caça, excepto da volataria, que também é somente para reis e senhores” 391. Das objecções de Sancho à caça se conclui inequivocamente o seguinte: a caça, excepto a menor (mas não a volataria) foi privilégio dos poderosos, como na Idade Média. Só que este privilégio adquire agora características de verdadeiro delírio com reis como Filipe III, Filipe IV, Carlos III e Carlos V, cuja principal ocupação, senão exclusiva em algum acaso, fosse caçar. Naturalmente, as repercussões são muitas e 390 Sobre a evolução da Cinegética em Portugal, veja-se também Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, ob. cit, pp. 13-31. Na Idade Moderna sobre – a Idade de Ouro da Montaria espanhola – existem três obras fundamentais: G. Argote de Molina, Discurso sobre La Montería, de que se publicou originalmente como prólogo ao Livro de Montaria de Afonso XI, Ed. De José Gutiérrez de La Veja, Madrid, Sucesores de Rivadeneyra, 1882, XVI; L. Barahona de Soto, Diálogos de La Montería, Ed. de Francisco R. De Uhagón, Madrid, Bibliófilos Españoles, 1890, XII; anónima Diálogos de La Montería, publicados por el Duque de Almazán, Barcelona. Instituto Gráfico Oliva de Villanova, 1935, LXIX; A. Martínez de Espinar, Arte de Ballestería y Montería, introducción de Eduardo Trigo de Yarto, Madrid, Ediciones Velásquez, 1976. 391 Miguel de Cervantes Saavedra, ob. cit., pp. 571. 227 variadas na arte, conformação de um património real cinegético que alcança agora o seu zénite com caçarias que se erguem em festejos por antonomásia da época 392. Se o privilégio de caça adquire tal grau de monopólio e ostentação e implica tantos danos para a agricultura do povo miúdo, não se deve estranhar que no século XIX se pretenda acabar de raiz com ela. Os fundamentos das virtudes da caça expostos são os mesmos dos textos medievais, que se encontram em todos os clássicos da época 393. Ideias originais são as de Martinez de Espinar, que a considera como “escola perfeita de milícia”, na qual se “perde a aversão do sangue e escândalo da morte” 394. Quevedo, por sua vez, explica as razões de sempre: “ (...) ao ser capaz de méritos de caridade este exercício de caçar javalis, diminuindo em muitos animais a destruição das colheitas dos lavradores, justifica-se ainda pela voracidade do lobo, que como ladrão dos rebanhos inteiros os arrasa “395. As reflexões de Sancho à caça são, entre outras, a ociosidade, que consiste em “matar um animal que não cometeu nenhum delito”, e que podia originar o abandono de importantes deveres: “minha fé, senhor – diz – a caça e os passatempos mais hão-de de ser para os mandriões do que para os governantes” 396. Os textos de D. Quixote aludem inclusive ao argumento mais radical contra a caça, o da inocência e direito à vida do animal, a perplexidade ancestral e justificada do agricultor e ressaltando a futilidade, perigo e desprezo, “própria dos marqueses e dos astutos “ 397. Tudo isto é tão real e durável historicamente como a sua defesa e justificação, a qual se demonstra nas Partidas, a literatura anticinegética da época moderna, o 392 Como a que ofereceu o Duque de Medina de Sidónia no Bosque de Doña Ana a Filipe IV, em 1624, importou, segundo um dos seus cronistas em 300 000 ducados e revestiu tais caracteres de sumptuosidade, que se teve por um dos mais esplêndidos festejos que se celebraram no século XVII. Relación de la Cacería dada en el Bosque de Doña Ana a Felipe IV por D. Manuel Alfonso Pérez de Guzmán el Bueno, VIII Duque de Medina de Sidonia, Madrid, Guillermo Blázquez Editor, 1984. 393 Miguel de Saavedra Cervantes, ob. cit., pp. 713-714. Veja também referência bibliográfica muito completa sobre a caça como “exercício de cavalheiro”, “imagem viva da guerra” e outras excelências em M. Terrón Albarrán, «Notas» a Pedraza, pp. 119-121 e 123. 394 A. Martinez de Espinar, ob. cit., pp. 6 e 8. 395 Idem, ibidem. 396 Miguel Cervantes de Saavedra, ob. cit., p. 714. 397 A propósito das desvantagens e prejuízos da caça muito significativos no século XIX, veja-se: F. Troche y Zuñiga, El cazador gallego com escopeta y perro, Prólogo de António Berruezo Jiménez. Estudio preliminar de José Maria Alvarez Blázquez. Notas de Francisco Fernández de Córdoba, Madrid, Ediciones Velásquez, 1983. pp. 49-50 nota 2, pp. 198; Fernández García, « Las sociedades de Cazadores en Asturias. Un ejemplo de las estrategias para la defensa del espacio rural de la invasión urbana», Eria, n. º 10,1986. 228 desprezo com que a aborda Larra 398 . As espécies cinegéticas e a sua abundância são referenciadas na literatura espanhola nos séculos XVI-XVIII em coutos reais e senhoriais. Assim, consta que no Escorial, Filipe IV, havia morto à bala mais de 600 veados, grande quantidade de gamos e mais de 150 javalis; lobos, mais de 400. No mesmo sítio, Luís I, afirma na sua carta que avistou cerca de mil gamos. Fernando VI, em oito anos, abateu 396 veados, 1 151 gamos, 441 javalis, 265 lobos. Em 1762, os Reais Bosques de Aranjuez foram abatidos 2 257 gamos e 212 javalis. Neste local, Carlos IV, só em 1805, abateu 7 363 peças de caça maior e menor, predadores e rapaces. Caçava-se tudo o que havia para caçar – caça maior e caça menor – sem respeito a fêmeas e crias, como aparece no quadro de caça de Carlos IV, em 1805, e sem proibição alguma. Tal era possível por uma ingente proliferação das peças e de uma eficaz protecção, o que engendrava muitos danos à agricultura e pecuária, como o testemunham a petição de Cortes, disposições legislativas e queixas dos afectados 399. Convém fazer alguma previsão sobre espécies de caça maior. Em Espanha, o urso multiplicou-se no século XVI, desaparecendo totalmente em finais do século, por circunstâncias desconhecidas 400 . O corso e o rebeco unicamente aparecem nas nónimas e notícias de caça nos Reais Sítios e inclusive nos tratados de montaria da época. Em primeiro lugar, o rebeco, pelo seu escasso tamanho passava quase despercebido e a sua agilidade, timidez e isolamento dificilmente o tornavam caçável; em segundo lugar, provavelmente, porque sendo um animal de alta montanha não aparecia nos coutos do Centro e Sul da Espanha, que era onde mais se caçava. Neste contexto, o gamo foi a peça de caça maior mais apreciada, como se infere de dados quantitativos existentes, contrariamente às opiniões posteriores contrárias. Desde logo, foi introduzido na Idade Média como afirma Rubio, aclimatou-se perfeitamente e, provavelmente, o seu carácter gregário e preferência por terrenos desprovidos de monte facilitaram a sua captura e uma caça menos arriscada que a de 398 Duque de Almazán, Diálogos de la Montería, Ed. del Duque de Almazán, Barcelona, Instituto Gráfico Oliva de Villanova, 1935, p. 66. 399 A. M. Ladero Quesada, La Caza en la legislación municipale castellana. Siglos XIII a XVIII. En la España Medieval. Estudios dedicados al Prof. González, Madrid, Universidad Complutense, 1984, p. 95, 160, 275,286 e 295. 400 Idem, ob. cit. p. 37. Veja-se ainda M. Terrón Albarrán, De la Caza en Extremadura Propostas para una evolución histórica de la fauna de caza mayor. En La Caza en Extremadura. Trabajos con motivo del I Congreso Internacional de La Caza en Extremadura, Cáceres, Excma. Diputación Provincial de Cáceres, 1987, p. 47. 229 outras espécies. A sua grande proliferação e incompatibilidade com os cervos podem explicar que as capturas não sejam de monta. Como tão pouco são as dos javalis, acometidos, por vezes, de graves epizootias, como na época de Fernando VI 401. A preocupação pelos danos que causavam os lobos está presente nas petições de Cortes, do século XVI 402 . Com efeito, o número de lobos abatidos por reis da época moderna e notícias de outro tipo nos deixam verdadeiramente atónitos 403 , coincide com o auge da transumância dos gados; provavelmente possibilitou ao lobo uma disponibilidade de alimento suplementar e anormal, comportando-se esta espécie como “ favorecida pelo homem”, pese a tenaz perseguição a que se sujeitou 404. Neste século são abundantes as disposições e acções colectivas para lutar contra ele, como a “determinação Real de 1788 para extermínio de lobos, zorros e outros tantos animais daninhos”, que impunham a obrigação aos povos de fazer batidas anuais para sua perseguição 405. Em Portugal, as coutadas reais ocupavam maior espaço territorial, tendo em consideração as terras não arroteadas. Em 1380, a coutada real dirigida por João Marques, monteiro-mor de D. Fernando, começava em Benavente, ia até Marateca e abrangia os concelhos de Montemor-o-Novo e Évora. Em 1407, D. João I aumentou-lhe os termos de Lourinhã, Óbidos e Autoguia 406. Nesta época, a defesa da caça seria a tarefa dominante do monteiro-mor, estando vedado à população “correr monte com qualquer caça”, reservando-se apenas aos moradores o direito de colher a madeira que necessitassem em sítios demarcados das matas sem as prejudicar, podendo meter nelas os porcos somente enquanto houvesse glande. Isto é, a vegetação teria que ser preservada por ser indispensável como abrigo das espécies venatórias e o pastoreio não podia reduzir a disponibilidade alimentar para sustento das mesmas espécies. 401 Duque de Almazán, ob. cit. p. 285.Sobre a doença da caça veja-se a obra de Rui Perestrelo-Vieira, Inspecção Higio-sanitária de Caça Selvagem. Epidemiologia de algumas doenças, Odivelas, Ed. Ciência e Vida, 2005. 402 M. A. Ladero de Quesada, ob. cit. p. 201. 403 Duque de Almazán, ob. cit. pp. 160-161 e 368-369. 404 J.M. Rubio Recio, Biogeografía Paisajes Vegetales Y Vida Animal, Madrid. Editorial Síntesis, S.A., 1988, p. 142. 405 M. A. Ladero Quesada, ob. cit. pp. 201 e ss; Duque de Almanzán, ob. cit., pp. 318-321. 406 Baeta Neves demonstra que, em Portugal, os documentos mais antigos respeitantes a monteiros se referem às serras de Soajo e às matas do Botão, nos tempos de D.Afonso III. Nas inquirições, os serranos são referidos como monteiros e quando correm monte por si, dão “a El-Rei as espáduas dos porcos monteses grandes que matam e se matam urso dão a El-Rei as mãos; e se correm monte sete semanas antes do Entrudo e três semanas antes da Quaresma não dão ao Rei nada do que matam”. Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines, pp. 360 e 387. 230 O monteiro-mor do Reino foi nomeado pela primeira vez por D. João I, que lhe deu poder “sobre todos os monteiros” das comarcas. Depois disto, os monteiros-mores começaram a ocupar-se também do governo e defesa das florestas e dos seus produtos como as madeiras de construção, as lenhas destinadas a combustível ou carvoaria, o que os identifica, na época, com os Silvicultores. Além das montarias reais existiam vastíssimas coutadas do Rei e de Nobres que impediam a rapina dos rurais, causada pelo impulso do caçador para defesa da vida e necessidade de criar o equilíbrio alimentar, em face da carência de proteína animal que sempre se apresentou endémica, ou mesmo para combater a fome. Deste modo, a montaria do Rei, as coutadas reais ou da nobreza, os monteirosmores, tudo representa o desporto mais vulgar e, indirectamente o aparelho funcional destinado a enfrentar o drama da delapidação de recursos naturais que, de outra forma, se alargaria rapidamente. À margem destas cautelas, as agressões praticadas sobre a Natureza, extinguiram espécies e vegetais. Em dependência muito estreita do clima e da orografia, a floresta, servindo de enquadramento de paisagens as mais variadas, tanto se apresenta como mitológica como barreira posta ao serviço de defesas vitais, como obstáculo capaz de esconder feras, inimigos, fantasmas, mistérios. Perante as necessidades de segurança e de consumo, a floresta foi sempre objecto de constantes destruições e recolecções. Manobrando o fogo, tanto os pastores como os agricultores abriram clareiras mortais, e depois nunca abandonaram a rapina dos destroços. Não admira que a defesa medieval dos restos de florestas determinasse reclamações em Cortes contra as coutadas. No reinado de D. Manuel I, após inúmeras queixas do povo em relação à dimensão das coutadas reais expostas nas Cortes de Lisboa de 1498, o monarca reservou algumas para seu desenfado e determinou que ficassem: “Coutados os concelhos de Évora, para lebres e perdizes; o de Almeirim e Sintra, também para perdizes, todo o Ribatejo, desde a Chamusca até ao Barco das Enguias. Todo o concelho de Coina até Azeitão e Sesimbra, com todos os antigos que havia até Erra e Coruche. Os antigos de Canha e Cabrela e as montarias do Soajo e do Cabril. Todo o terreno de Alcácer com a charneca da Landeira, as matas de Óbidos com todas as outras, incluindo o paul da Ota “ 407. 407 Visconde de Santarém, Memória das Cortes, 2ª parte, doc. 208, p. 208. 231 Apesar de todas as restrições a uma prática que era privilégio das classes possedentes, os moradores encontravam sempre alguma liberdade para caçar. A caça estava nos hábitos e costumes do povo e dela há notícia no quotidiano de todas as classes. Até nos capítulos especiais de Évora e no relato das cortes de Elvas, verifica-se que em relação à caça menor havia mais tolerância, caçava-se com besta, cães e furões: a caça constituía um dos produtos mais assinalados na portagem de Évora 408 . Nos costumes de Évora, posturas de 1280, é consagrada a lei que pune quem matar podengo ou galgo alheio, pagando o criminoso o preço que o proprietário julgar, sob juramento 409. Dominados pelos prazeres da caça e repartindo-os com a nobreza, desde D.Sancho I que se nota nos reis portugueses um sentido de limitação que não abona as teorias do Direito Romano e, nas suas concepções, a feição popular da caça em território português durante os referidos séculos. Tanto assim que se ergueram reclamações que nem mesmo D. Pedro I, com o seu carácter popular e justiceiro, escutou. Muito pelo contrário, no seu tempo se alargaram mais as concessões particulares e as demonstrações para utilização própria, daí resultando uma área cada vez menor para a prática da caça livre. O descontentamento popular era evidente e mais manifesta a pouca importância que se concedia a esse mesmo descontentamento. Porém, além das coutadas reais, muitas terras estavam destinadas para prazer do Rei, com protecção especial para algumas espécies de animais. Por vezes descoutava-se alguma caça, reservando-se outra para o Rei, como o fez D. Afonso V, em Sintra, deixando as perdizes-vermelhas para “relevamento de nossos cuidados e enfadamentos” 410. Com D. Fernando, o panorama cinegético altera-se, tendo promulgado leis de muito interesse para a economia do país, achar-se-ia em face de problemas políticos transcendentes, cuja amplitude o povo não poderia continuar inteiramente alheio. Tal circunstância deu certa força às massas populares, exortando a atitudes que não seriam possíveis alguns anos antes. Até D. Fernando nenhum plebeu se atrevia a erguer a voz sem contar com a oposição da nobreza. Nesse tempo, quando o povo se 408 Documentos da História de Évora, p. 89., citado em Alfredo Saramago, ob. cit., p. 17. Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines, p.11. 410 Chancelaria de D. Afonso V, Livro XX, folio 8. 409 232 revoltou contra um assunto de Estado que, não lhe não competia julgar, bastou-lhe para chefe um simples alfaiate que o guiou em gritaria até às portas do palácio real e a turba viu, como se tratasse de um coisa naturalíssima, os seus representantes serem recebidos pelo soberano. No período de crise do século XIV, quando abundavam os incultos, diminuiu a fauna selvagem. Mas logo que uma mais ampla recuperação agrícola se faz sentir e os senhores pretendiam com as coutadas reservar para si espaços e espécies de caça, de novo a defesa do ager se terá evidenciado com toda a acuidade, como o demonstram aliás as queixas dos povos em Cortes, sobretudo a partir de D. Fernando e repetidas com grande frequência ao longo do século XV. As frequentes reclamações e descontentamentos dos povos provinham mais dos estragos que a caça fazia na pequena agricultura de subsistência, do que com a própria reivindicação do direito de caçar, a nosso ver, porque na prática os objectivos não eram estritamente os mesmos. A caça preferida pelo povo era a caça económica, vil, predominantemente utilitária, para fins alimentares, mais do que distracção, que acautelava menor risco físico e não requeria demoras ou meios. Bastava-lhes os coelhos-bravos, lebres e perdizes-vermelhas, contrariamente aos senhores que se dedicavam de corpo e alma à altanaria e montaria, a caça sumptuária, por excelência. Existia assim uma oposição entre a caça desporto aristocrático e de cariz guerreiro e caça fonte de rendimento principal ou secundário; entre caça a cavalo perseguindo animais de grande porte e a caça com armadilhas tendo em vista mais os animais de pequeno vulto. Durante a Idade Média a caça defensiva, como defende Robert Fossier 411 , foi encarada basicamente como um processo de defesa por todos os homens, mesmo os privilegiados. E eram os próprios camponeses que muitas vezes pediam ao senhor que organizasse as batidas contra os javalis, cervos ou lobos, pois só ele tinha possibilidades económicas de reunir as matilhas e fornecer as armas necessárias para o sucesso da expedição 412. 411 Robert Fossier, Enfance de l´Europe. X - XII siècles. Aspects économiques et sociaux, tomo I, L´Homme et son espace, Paris, 1982, p. 139. 412 Portanto é algo redutor, como o fez Carlos Riley, afirmar que o camponês caça apenas como forma de subsistência, já que muitas vezes o faria, sem dúvida, tendo em vista os fins lucrativos, sobremaneira no que se refere ao comércio de peles. O caçador profissional, em certas partes do ano, na época do defeso em que a caça lhe estava interdita, teria de se dedicar a qualquer outra actividade, onde poderia avultar o trabalho da terra ou a pastorícia. Veja-se Maria Helena da Silva Cruz Coelho, ob. cit., p. 257. 233 Deste modo não admira que o povo se servisse de tal oportunidade para se fazer escutar nas suas queixas contra as limitações cada vez maiores que se faziam ao seu direito de caçar. Logo o Rei os atendeu e prometeu não autorizar mais coutadas e reduzir as existentes até se atingir o quadro deixado por seu avô, D. Afonso IV. Por outro lado, se as coutadas reais eram pouco frequentadas por razões que se prendem com a soberania régia – o que não sucedera no princípio do reinado – as preocupações gerais intensas proporcionavam o meio para que cada um fosse coutando, por sua iniciativa, as terras que lhes pertenciam. D. João I, apaixonado pela caça, consciente dos seus deveres perante o povo, escreveu um tratado de montaria no qual, às opiniões próprias junta o acordo de muitos bons monteiros. Afirma nele a convicção de ser a caça bom exercício a fim de não perder “jogo e feito de armas”, a marcar, talvez, desígnios que se iriam reflectir nas concessões venatórias do futuro. Das coutadas reais mais famosas, como vimos, realça-se pela sua dimensão a coutada velha de D. João I. Desde o mar, entre a cidade do Porto e a foz da Ribeira da Marateca a Sul de Setúbal. Ia até à estrada de Coimbra, incluía a mata do Botão e margens do Zêzere, passava por Tomar até Abrantes, daí Montargil e de Montemor até Cabrela. A diversidade de animais produto de actividade venatória era enorme nos mercados medievais portugueses, cujas carnes se tabelavam: “gamo, zebro, cervo, lebre e até urso, entre as gordas, ao lado de uma variedade assombrosa de aves, perdiz, abetarda, grou, pato-bravo, garça, maçarico, fuselo, sisão, galeirão, calhandra e muitas outras” 413. Os safões, tão peculiares e tão caros aos Alentejanos, recomendados para a caça por D. João I, nesses tempos, tal como as luvas, tinham particular utilidade na caça e vendiam-se para a arte de cetraria, consoante se quisesse caçar com açor ou com gavião 414 . O comércio com as aves de rapina era próspero e importante, havendo notícia em Beja, de grande movimento na pauta dos direitos de portagem nos quais estavam compreendidos açores, falcões e gaviões. Os abusos na prática do comércio das aves de rapina logo apareceram e, de tal forma, que foi ainda D. Dinis que promulgou uma lei em 1328 contra quem se apropriasse, indevidamente, de falcões. 413 414 Oliveira Marques, ob. cit., p. 8 Idem, p. 34. 234 Mais tarde, D. Afonso V regulamentou o comércio destas aves, assim como instituiu pesadas multas aos infractores 415. As grandes áreas de reserva venatória localizavam-se, tal como hoje, no Sul de Portugal, “Riba D´Odiana”. Aqui se caçavam ursos, javalis, lobos e gamos. O urso ainda abundava em meados do século XIV, quer no Alentejo quer na Beira Interior. Havendo notícias de várias caçadas a este animal, em Beja, no Soajo e na Serra de Ossa, que terá o seu nome pela abundância de ursos que aí viviam. Os infantes D. Duarte e D. Henrique caçaram um corpulento urso, em 1414, junto a Portel. Os reis protegiam muito esta caça, que permitia evidenciar a destreza e a valentia, servindo de portentoso exercício e treino para as tarefas da guerra. Todavia, em finais do século XV, a espécie estava praticamente extinta. Apesar da actividade ser privilégio de nobres e clero, alargou-se a burgueses e vilões, mas com objectivos essencialmente económicos e não desportivos. Nobres e plebeus foram convidados a realizar batidas sistemáticas. Apesar disso, nas Cortes de Estremoz, em 1416, D. João I atendeu uma reivindicação do povo para que o monteiro-mor “não condenasse a prisão nem a pagar pena aos que matassem perdizes-vermelhas, sem serem judicialmente convocados”. As posturas de Évora, do último quartel do século XIV, informam que se fazia calçado de vaca, de corço e de cervo; no açougue, vendia-se carne de corço e javali e, das peles, faziam safões 416. Atendendo aos capítulos especiais de Évora e pelo relato das Cortes de Elvas, verifica-se que em relação à caça menor havia mais tolerância, caçava-se com besta, cães e furões: a caça constituía um dos produtos mais referenciados na postura de Évora 417. Nas comunidades rurais inseridas nos ecossistemas, no âmbito de uma economia senhorial, a caça passou de um direito natural para direito de propriedade, permitindo aos senhores cobrar foros desta actividade e através das jeiras exigidas, entre outros serviços, para a caça, firmar a sua autoridade sobre os homens. E os exemplos a aduzir são muitos, pois não faltam as fontes, sejam Inquirições ou 415 Costumes de Beja, Inéditos da Historia de Portugal, p. 485, citado em Alfredo Saramago, ob. cit., p. 48. P.M.H.L.C., p. 146. 417 Documentos da História de Évora, p. 89. 416 235 documentação de proveniência eclesiástica ou régia. Assim os foros senhoriais são exigidos ao campesinato tanto sobre a caça grossa como sobre a miúda 418. Os direitos de portagem, que vigoravam em muitos forais, atestam o comércio de peles de coelhos-bravos e coiros de vários animais mostrando que a caça se converteu num modo de vida de muitas gentes das classes mais desfavorecidas. Nos costumes de Évora, posturas de 1280, é consignada a Lei que pune quem matar podengo ou galgo alheio, pagando o infractor debaixo de juramento o preço que o dono entendesse 419. Nas Cortes de Lisboa, em 1427, voltaram os chefes populares a reclamar contra os fidalgos proprietários das terras por nelas estabelecerem coutadas de porcos monteses e outras espécies: “dizendo que o faziam por mandado de El-Rei” quando isso “só devia ser próprio do seu real senhorio, não devendo outorgar a outrem tais regalias”. De novo, o Rei cedeu, mandando então que fossem suspensas. A natureza destes pedidos dá-nos a convicção de que não apenas se coutava abusivamente como se levava a efeito uma Justiça de carácter particular, como um procedimento de cunho feudal, a revelar, que a nobreza avocava uma força capaz de contrariar as próprias disposições legais. De resto, isso se notou por toda a Europa feudal. É possível que as concessões reais não tivessem beneficiado grandemente o povo no seu desejo de livremente praticar a caça. No entanto, a simples anuição constitui subsídio valioso para se concluir da forma como eram encarados estes problemas. Seguiu-se o curto reinado de D. Duarte, onde as leis coudélicas de D. Fernando atingem a plenitude dos seus frutos. Já há bons cavalos com excelentes características para a prática da “caça de encontro”, modalidade onde a presença da lança se reveste de utilidade, e a nobreza volta a situar-se em lugar privilegiado no contexto venatório. A proliferação de toda a espécie de caça em vastas matas e matagais fomentou a prática venatória, principalmente na Idade Média, a ponto de se elaborarem tratados 418 Em certos povoados do Baixo Mondego, nos séculos XII e XIII se exigia, sobretudo em aforamentos colectivos, mãos de urso (Taveiro), lombos ou corazis de veado (Verride, Lavos, Vila Nova da Barca, Almeara, Taveiro) ou foros de coelho (Mira, Arazede, Lírio, Brenho, Lavos, Taveiro), as punções senhoriais sobre a caça são quase nulas nos séculos XIV e XV, prova certamente do decréscimo das espécies, que são reservadas para os senhores e ficam, em boa parte – e sem dúvida no que à caça grossa diz respeito – interdita aos camponeses. Maria Helena da Cruz Coelho, O Baixo Mondego, nos finais da Idade Média. (Estudo de história rural), Coimbra, 1983, pp. 253-254. O mapa elaborado por Armando de Castro, A Evolução Económica, IV, p. 161, com base na referência em forais, a tributos sobre esta actividade nos mostra que a caça predomina em Trás-osMontes, Beiras Interiores, Estremadura e Alentejo. 419 P.M.H.L.C., p. 11. 236 sobre a arte. Tal é o caso do livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, verdadeiro tratado de montaria além de se promulgarem várias disposições. Nas Cortes de Évora (1436) promete o soberano ao povo, ante as suas reclamações, que não fará mais coutadas do que fizera o seu pai 420 . É de crer que a promessa não se tivesse concretizado na sua íntegra, pois a pretexto de que estavam rareando determinadas espécies, particularmente os ursos, se estabeleceu que ninguém as pudesse caçar sem licença régia. Quem o fizesse em circunstâncias ilegais seria condenado ao pagamento de mil libras de “boa moeda” 421. No reinado seguinte são mais veementes as reclamações populares. Algumas vezes, segundo parece, as coutadas estabeleciam-se por instigação de quem pretendiam com elas criar ofício para si, ou, se já o tinha, torná-lo mais rendoso. A vila de Moura, nas Cortes de Santarém de 1451, anunciou a D. Afonso V que fora notificada e apregoada no concelho uma ordem régia, trazida por Nuno Vaz, monteiro-mor, para fazer certas matas, e por ela se proibia que se caçassem ursos e javalis. O concelho de Moura, na sua representação, observou que tendo-se em vista o desenfado do Rei, tal mandado era pouco serviço para Ele, mas muito grande dano do povo, porque o Rei nunca ia a Moura, e se fosse alguma vez, não existia motivo para semelhante defesa se colocar, visto que entre tantas e tais serras não havia de faltar caça. Insistindo neste ponto, acrescentou que as “searas precisavam de ser guardadas de noite para não serem muito danificadas pela veação. Por último, pedia que se levantasse a defesa “ 422. Acedeu D. Afonso V, mandando que as coutadas reais fossem descoutadas, e que não as houvesse ali, porque era “ lugar a que poucas vezes ou nunca imos” 423 . Em 1455, idêntica situação ocorreu no concelho de Avis, que acusa o monteiromor Nuno Vaz de ter feito no termo da vila novas coutadas muito odiosas aos 420 Em Portugal até o final do Antigo Regime, os tratados de caça referem-se exclusivamente à caça maior efectuada pelo rei ou pela nobreza de corte e não à caça ordinária «exercício modesto do bom burguês, do rústico discípulo de Santo Huberto, em que se mata a tiro com menos sciência, em que se diverte melhor, em que se dispende muito menos». Apenas a partir da segunda metade do século XIX encontramos manuais de caça elaborados a pensar no caçador comum e nas espécies de caça menor. L. A. Ludovice da Gama – Resumo da caça Ordinária. Poesia e Siência do Caçador Rústico, Lisboa, Typografhia da Gazeta de Portugal, 1866. Também as criticas à caça como prática condenável, efectuadas episodicamente por doutores da Igreja, como S. Agostinho, ou por escritores como Cervantes, através do personagem Sancho Pança, parecem ter poucos seguidores no plano da Literatura. É esta a convicção de Cristina Joanaz de Melo, ob. cit. p. 97 que, a este propósito, cita Antonio López Ontiveros, «Algunos Aspectos de la Evolución de La Caza en España» in Agricultura Y Sociedad – n.º 58, Enero-Marzo, 1991, pp. 47-51. 421 Ordenações Afonsinas, Liv. I, Tomo 67, § 17. 422 Costa Lobo, ob. cit., p. 65. 423 Capp. especiaes de Moura, cap. 3, na Chancelaria de D. Afonso V, liv. XI, fol. 58, in Costa Lobo, idem, ibidem. 237 moradores, porque nessas matas “se semeava e colhia muito pão, com grande proveito da terra”. Anuiu o Rei, ordenando o descoutamento dos terrenos 424. Noutro capítulo não é do monteiro que se queixam os moradores do concelho, mas sim de que o soberano haja coutado as perdizes-vermelhas em todo o termo de Montemor, que bastante falta faziam aos moradores, que eram “ doentes “ que lhes seria benéfico “comerem as ditas perdizes-vermelhas, e não ousam de as matar pela defesa vossa que é tão grande “ 425 . Acusam ainda o monteiro de matar os porcos dos vizinhos das matas do termo da coutada, a pretexto de “ encarnar os cães”, levando a carne para si, dizendo que lhe pertencia. Era contra isto que o povo reclamava, pedindo ao rei que o monteiro não fosse às matas encarnar os cães sem prevenir, com quinze dias de antecedência, os moradores para tirarem os porcos que lá traziam. O Rei concordou 426. Como vimos, entre 1451 e 1473, novamente se atendem as reclamações populares, desta última vez chegando-se a atingir as próprias coutadas que D. João I estabelecera, ao ponto de determinar que não se fizessem mais coutadas senão El-Rei, para que nunca mais ali houvessem, conservando-se, no entanto, algumas limitações 427 . Todas estas medidas não constituíam uma verdadeira legislação sobre a actividade venatória: as limitações impostas tem um carácter puramente particular e uma expressão pessoal a regatear-lhes qualquer sentido sério e de ordem geral, tendente a beneficiar ou regularizar a prática da caça no plano nacional. Os excessos da actividade venatória e a extensão das coutadas foram, quase sempre, motivo de preocupação e queixas por parte das populações menos favorecidas. Houve, efectivamente, a partir do século XIV, uma diminuição das reservas de caça, mas, tal facto, resulta da necessidade de agricultar novas courelas e ao aumento demográfico. A protecção da caça em Portugal esteve bem cedo no espírito do legislador, manifestada nas restrições para o seu exercício, na aplicação de multas e penas para o transgressor e na adopção de um período de defeso. O primeiro defeso oficial, que abrangeu todo o território nacional, foi instituído por D. Afonso III, em 1253. O período do defeso – em que não se podia caçar e se deixava 424 Capp. especiaes de Avis nas Cortes de Lisboa de 1455, Chancelaria de D. Afonso V, liv. XV, fol. 134 vº, in Costa Lobo, ob. cit., p. 66. Também em Elvas, em 1472, o povo se queixa contra a nomeação de Vasco de Carvalho na qualidade de couteiro das perdizes-vermelhas, porque tal “ oficio nunca existira na vila e era para o povo não só sujeição mas até vexame («sayoria»)”.Idem, ibidem. 425 Idem, p. 67. 426 Idem, ibidem. 427 Artigos Geraes das Cortes de Évora (1473), in Maria Teresa Duarte Nogueira, ob. cit., p. 92. Veja-se ainda Costa Lobo, ob. cit., pp.68-69. 238 a caça sossegada para reprodução e criação – ia desde o dia de cinzas até Santa Maria de Agosto. Com as Ordenações Afonsinas foi possível elevar aquele plano a legislação portuguesa. No reinado de D. Afonso V (1438-1481) aparecem as primeiras determinações venatórias com cariz técnico para o equilíbrio das espécies: o estabelecimento do defeso, a limitação dos sistemas de caça autorizados, a fixação dos processos proibitivos e as penalidades para quem procurasse caçar com o uso de redes, candeio, boi, perdiz-vermelha de gaiola, enxós, cevadoiro, armasse pedra, vara ou tecla. O estabelecimento do período de defeso, ao tratar da protecção da perdizvermelha, vem mostrar que a caça menor se tinha tornado importante, bem como a limitação dos sistemas de caça autorizados e firmeza das penalidades a que o transgressor se expunha. Assim, com ligeira decisão se determinava: “Desde o 1.º dia de Março até ao S. João alguém não cace com cães, nem cadelas, nem com aves e qualquer que o contrário fizer perca a ave, e cães com que caçar e por cada cão duzentos réis e mais cem réis por cada perdiz que matar”428. Em simultâneo, fixaram-se, os processos proibidos e as penalidades correspondentes, em conformidade com a forma geral em que El-Rei determina que descoutassem: “As perdizes naqueles lugares em que seu desenfadamento se for, e houver por bem que as não matem e assim mesmo lebres e coelhos. Qualquer um que matar perdiz, onde elas assim forem coutadas, em qualquer maneira que a mate, seja preso e por cada uma perdiz que lhe for provado que matasse pague cem réis da cadeia (...)429”. Decretou também a limitação do processo de caça: “Qualquer que nas ditas coutadas caçar com rede e candeio e lhe for provado, pague mil réis de pena da cadeia e não seja solto sem mandado especial de El-rei, e mais pague cem réis por cada uma perdiz que assim matar. Se caçar com boi, duzentos réis da cadeia e mais não seja solto sem especial mandato do dito senhor, e mais cem réis por cada uma perdiz que assim matar. Qualquer que cace com perdiz de gaiola pague quinhentos réis da cadeia não seja solto sem mandato especial de El-rei, e perca a perdiz com que assim caçar, e mais cem réis por cada uma perdiz que assim matar. Quem caçar com enxós pague quinhentos réis da cadeia e não seja solto sem mandato especial de El-rei, e mais cem réis por cada uma perdiz que assim matar. Qualquer que fizer cevadoiro onde as ditas perdizes forem coutadas trezentos réis da cadeia e se armar nele rede, pague quinhentos réis isso mesmo da cadeia e 428 429 Jayme Duarte de Almeida, ob. cit.,p. 56. Idem, p.57. 239 não seja solto sem mandato de El-rei. Qualquer que armar pedra, ou vara ou tecla, ou laço, por cada uma armadilha destas cem réis da cadeia e mais cem réis por uma perdiz que matar” 430. Protegia-se também os ovos da perdiz-vermelha: “Qualquer que tomar ou britar ovo ou ovos de perdizes-vermelhas, no tempo em que elas põem, por cada um pague cem réis da cadeia” 431. De todo o modo, as disposições aludem a espécies menores, pois a caça grossa acarretava penas mais pesadas. Na Lei Geral contida no Livro Vermelho alusiva às coutadas de perdizes-vermelhas, lebres e coelhos, quem se atrevesse a caçar a pé ou a cavalo ou com cães e furões ou aves de presa pagava a multa de 2000 reais e era preso ou degredado por um ano para Arzila. Igualmente, quem matasse ”porco ou porca, bácoro ou bácora, por cada cabeça” pagava “dois mil réis da cadeia” e era “degredado um ano para Arzila, e assim preso levado” 432. D.Afonso V, apaixonado pelo exercício venatório, não se contentou com as coutadas velhas da coroa e aumentou os domínios em vários distritos. Os excessos de actividade venatória e a dimensão das coutadas continuavam a ser fonte de descontentamento popular, muito embora a partir do Século XIV se assistisse a uma diminuição das reservas de caça por exercício da lavoura e do aumento demográfico. As limitações ao direito de coutar assumem carácter particular e uma expressão claramente pessoal 433. Em todas as coutadas, os guardas às ordens do couteiro-mor podiam prender os infractores apanhados em flagrante delito e o seu depoimento jurado bastava para a condenação. A caça das perdizes-vermelhas era proibida nas coutadas reais com prisão de 100 reais por cada ave abatida. As lebres não podiam ser corridas com matilhas nem mortas à espera ou apanhadas por armadilha 434. A insistência das reclamações populares e as reais determinações resultantes delas, por vezes, repetindo-se numa afirmação de não terem sido respeitadas, 430 Idem, p. 56-57. Alvará de 31 de Outubro de 1468. Explique-se, que o termo cevadoiro significa “ lugar onde se cevam animais, ou põe a isca para atrair a caça ou pesca”, Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Nova Edição revista e actualizada, Texto Editora, Lisboa Março de 2000. 431 Jayme Duarte de Almeida, ob. cit., p. 57. 432 Inéditos da História de Portugal. Livro Vermelho do Senhor Rei D.Afonso V, Tomo III, p.499. 433 Dada a imensidão dos documentos existentes, consultar Maria Teresa Duarte Nogueira, A Cinegética e a História de Portugal, Lisboa, UTL, 1989, pp. 24-30. Para o estudo em causa, consulte-se a Carta de 25 de Dezembro de 1471, na qual são coutadas as perdizes de Alvito e estabelecidos outros coutamentos no Alentejo. 434 Tal é o exemplo do Alvará de 3 de Dezembro de 1467, no qual se proíbe a caça às perdizes no Alvito e a Carta de 20 de Abril de 1480. Assim se determinava: «Quem matasse porco, ou porca, bácoro ou bácora, por cada cabeça pagaria 2000 réis de cadeia e degredado um ano para Arzila, quem matasse cervo ou cerva, pague por cada cabeça mil réis de cadeia e degredado um ano para Arzila». Maria Teresa Duarte Nogueira, ob. cit., pp. 27 e 97. 240 denunciam a força que a nobreza avocava, numa perigosa oposição ao poder real. D. João II procurou consolidar o poder real e fê-lo dominando a nobreza, por forma violenta, ao estabelecer as coutadas com base nas antigas concessões – logo no início do reinado, quando as cortes haviam reunido em Évora (1481-1482). Havendo reclamações do povo, deliberou: “Que a caça brava não fosse coutada excepto nos lugares que El-Rei reservasse para si” 435. Estabeleceu que deveriam proteger os seus direitos, apresentando razões válidas, todos aqueles que por essa determinação se considerassem lesados. Durante o seu reinado, o povo nas Cortes de Montemor-o-Novo pediu-lhe que descoutasse algumas dessas terras para aproveitamento dos campos e redução dos danos da veação. O Rei descoutou muitas, mas não atendeu o pedido para suprimir as coutadas dos fidalgos e comendadores de caça, assim como a autorização para caçar onde as houvesse. A justificação do Rei foi peremptória ao afirmar convictamente que diferentes razões estiveram na origem da concessão, embora se aprontasse a verificar quais as coutadas que mais danos causavam e as que traziam privilégios para lhes retirar a confirmação 436. Confrontados com estas medidas rígidas e pela obediência a que forçavam, surge pela primeira vez em Portugal um panorama do res nullius, atendendo as reivindicações do povo contra as coutadas, sacrificando-as em prol do princípio da coisa de ninguém, visto que as proibições e penalidades de D. Afonso V apenas se reportavam às coutadas reais. Com a morte de D. João II, alguns nobres quiseram regressar aos antigos hábitos. Abusando dos direitos não tardaram a fazer coutadas por sua exclusiva iniciativa. Mais uma vez o povo apelou nas Cortes de Lisboa de 1498, que Damião de Góis refere, para que puna os excessos e apenas reserve para si o direito de fazer coutadas: “O povo recebe muito dano por no reino haver muitas coutadas, e oficiais delas, pelo que reservando algumas para desporto D’el-rei, lhe pedem que descoute as outras ficando guardadas as coutadas antigas das pessoas particulares” 437. Acedeu D. Manuel I através das Ordenações Manuelinas, determinando o princípio das terras livres, onde a caça achada seria de quem a abatesse, continuando com o descoutamento, o qual atinge até Coutadas Reais: 435 Dava-se o prazo de um ano para que a prova se fizesse. Capítulos Geraes das Cortes de Évora. 1481 e 1482, in Maria Teresa Duarte Nogueira, ob. cit., p. 98. 436 Idem, p. 31. 437 Henrique da Gama Barros, ob. cit., p. 56. 241 “A isto respondemos que as havemos por descoutadas, tirando a coutada da nossa cidade de Évora de lebres e perdizes, e Almeirim e Sintra, e de Riba Tejo, desde Chamusca até ao barco das enguias e do Rio de Coina até Azeitão e Sesimbra, com todas as coutadas antigas que há na Ribeira de Canha, e Cabrela, e as montarias de Soajo, e Cabril, e todo o termo de Alcácer, com a charneca de Ladeira e assim mesmo as matas, e montarias de Óbidos com todas as outras de serra, e assim ficará o paul de Ota, e que todas as outras fiquem descoutadas” 438. Embora se desconheça o que ficou descoutado para se estimar o dano concedido ao povo, a área protegida constitui domínio particularmente vasto. Tais medidas estabeleciam para as coutadas limites perfeitos e absolutos, em oposição aos aspectos vagos e confusos anteriores, que incitavam à desobediência. Seja como for, a montaria e a coutada formavam as caçadas de recreação dos reis e dos nobres, sem que deixassem de ser, nos períodos de perturbação social, a rapina do povo. Por sua vez, as peles das peças abatidas abasteciam o mercado. A montaria era o desporto nobre e nela, com ao auxílio de cães, se abatiam os ursos, veados e javalis. A altanaria ou falcoaria representava arte requintada de ensino e treino de aves de rapina como o falcão. O povo usava armadilhas ou candeio de noite, o que era proibido. Ocorria porém, as coutadas abrigarem a fauna selvagem que, por sua vez, causava sérios prejuízos nas culturas da vizinhança, o que justifica as reclamações e protestos contra os porcos monteses, cervos, ursos, perdizes-vermelhas, lebres e outras caças. Conforme vimos, a caça e a pesca eram simultaneamente recreio, desporto, indústria, complemento alimentar, tudo enraizado nas tradições e na vida, não admira, portanto, que passassem a ser odiados os privilégios que a coutavam em benefício de poucos e, como resultante, entre as primeiras leis liberais, figurasse a abolição das montarias e das coutadas. Tal se verificou devido ao rigor das Inquirições de D. João II. No entanto, após a sua morte julgaram alguns nobres ser possível voltar aos antigos tempos e, abusando 438 D.Manuel I concedeu mais seis coutadas, entre elas a Carta de Coutada de 14 de Maio de 1501, das perdizes e lebres de Beja e termo, pela qual era proibido matá-las, salvo com aves e galgos; a Carta de Confirmação da Coutada do Azinhal de 1497; Carta de Confirmação do Privilégio do concelho de Almodôvar, de 20 de Fevereiro de 1499, pela qual foi levantado o coutamento de perdiz-vermelha e permitido caçar nos termos da vila; Carta de Privilégio a caçadores que cacem com negaças de falcões e açores em várias localidades, entre elas Beja e Campo de Ourique. Maria Teresa Duarte Nogueira, ob. cit., pp. 35-36. 242 dos seus direitos, não tardaram em estabelecer coutadas por sua exclusiva determinação. Esta preocupação de equidade, apesar de não se conheceram reclamações que o justificassem, levou D. Manuel I a rectificar as determinações extinguindo os monteiros das “vilas de Setúbal, Sesimbra e Palmela” 439 . Igual desígnio de rectidão o norteou, mormente a utilidade venatória e preocupação técnica das limitações de processos de caça estabelecidos por D.Afonso V, para serem observados nas coutadas, que atingiram um carácter social. As restrições são propagadas: “Defendemos geralmente em todos os nossos reinos que pessoa alguma não mate nem cace perdizes, lebres nem coelhos-bravos, com bois, nem com fios de arame, nem tome nenhuns ovos das ditas perdizes, sob pena de quem o contrário fizer pagar da cadeia dois mil reais por cada vez que nisso for achado, ou lhe for provado dentro de dois meses, e mais perder as armadilhas; nas quais penas isso mesmo incorrem aqueles em cujo poder ou casa, as ditas armadilhas forem achadas, ou sejam suas ou alheias” 440. Também estas determinações previam o defeso nos meses de Março, Abril e Maio para a caça ao coelho-bravo com cães, bestas, furão, redes, nem com qualquer outra armadilha, sob pena: “De quem o contrário fizer, se for achado caçando ou lhe provar que dentro de três que caçou, ou matou os ditos coelhos-bravos em cada um dos ditos três meses, pagar mil reais, e mais perder os cães, e o furão, bestas e todas as armadilhas com que assim matar ou caçar os ditos coelhos-bravos. E além da dita defesa geral em nossos reinos, em especial os lugares seguintes a saber: Lisboa (...) e Almada que pessoa alguma não mate nem cace perdizes com rede de cevadoiro, nem com perdigão, ou perdiz de chamada, sob pena de quem o contrário fizer, pagar, por cada vez que for encontrado caçando, ou se lhe provar dentro de seis meses que caçou com as ditas (...)” 441. Fixavam-se várias penas que iam até ao degredo por dois anos nos (nossos) lugares de África. Os aspectos retractados atingem particular importância tendo em conta o período em que ocorreram, coincidentes com grandes acontecimentos históricos cuja transcendência validaria certos desleixos de legislação interna. Com D. João III mantêm-se sem alterações, mas na regência do Cardeal D. Henrique (1562-1568) promulgam-se novas leis destinadas a regulamentar ou, pelo menos, regular a prática da caça, surgindo com certo ineditismo jurídico (1565) as 439 Jayme Duarte de Almeida, ob. cit., p.59. Idem, ibidem. 441 Idem, pp. 59-60. 440 243 penalidades aos infractores, admitindo vários graus de culpa conforme a função da classe social do prevaricador: “Quem o contrário fizer, sendo fidalgo ou cavaleiro, pela primeira vez seja degradado para África, e pague vinte cruzados; pela segunda haja a dita pena de degredo e dinheiro em dobro. E sendo de menor qualidade, pela primeira vez seja preso, até trinta dias de prisão e pague dois mil reais; e pela terceira vez seja degredado por um ano para fora da vila e termo em que caçou, e do lugar do seu termo em que for morador, e pague a dita pena de dinheiro em dobro. E além das ditas, perca quaisquer aves, armadilhas, cães, fios e redes com que caçou” 442. Por Lei de 19 de Dezembro de 1560, proibiu D. Sebastião que nos meses de Março, Abril e Maio se caçassem perdizes-vermelhas ou a criação delas por qualquer modo que fosse, e que lhes tirassem ou quebrassem ovos. O furão e as armadilhas constituíam também grave problema. A transgressão proliferava, ao ponto das verbas das multas terem que ser repartidas com o acusador, para o aliciar. Afigura-se, que havia quem tivesse algumas culpas entre os oficiais da Justiça. Sob o domínio Filipino, as coutadas reais em Portugal perdem a importância e uso, uma vez que os monarcas espanhóis não tinham ocasião de nelas caçar. Por isso mandaram descoutar muitas, entre as quais se incluía a vila alentejana de Arraiolos 443 . As Ordenações Filipinas, ainda que com apreensão, voltam a dar preferência às coutadas, restringindo o uso do poder mortífero da espingarda, que fazia enormes razias nas espécies, quer nos terrenos coutados, quer nos livres. Filipe II de Espanha sabia que não podia confiar demasiado nas facilidades encontradas, que não estavam de modo algum na índole do povo português e essa necessidade política reflectir-se-ia de maneira muito especial nos sectores da caça, dada a sua expressão cada vez mais popular. Deste modo, as Ordenações Filipinas vão estruturar-se na legislação anterior mas permitindo algumas facilidades. No entanto, apesar de tudo se fazer em benefício do povo, o certo é que as áreas coutadas aumentaram e só manifestamente se atendiam as reclamações, porque daí resultava o duplo proveito de agradar e enfraquecer o poder de revolta 444. 442 Cunha Rivara, Memórias da Villa de Arraiolos, Parte I, Arraiolos, Edição da Câmara Municipal, 1979, p. 159 Idem, ibidem. 444 Para maior esclarecimento veja-se Regimento de 20 de Março de 1605, e a interpretação de J.A.Freitas Cruz, O Problema Venatório Português (Estudo e critica), Lisboa, 1945, p. 85. 443 244 Por todas estas razões, ao surgirem as solicitações populares para que fossem revogadas as leis coudélicas de D. Sebastião, logo o Rei os atendeu necessário como era dividir o poder bélico dos vencidos, naquela época ligada à criação do cavalo. Às Ordenações de carácter um tanto liberal seguiram-se regimentos ou Cartas Régias que logo cerceavam os direitos antes concedidos. Prosseguia a manutenção dos processos autorizados para a marcação dos períodos de caça, multas e outras penalidades, o abate das espécies prejudiciais, principalmente os lobos, a requerimento do povo que vivamente se queixava. Instituemse prémios para os caçadores dessas espécies 445. O princípio do século XVII traz novos desafios à legislação venatória com a divulgação da espingarda a prática da caça torna-se mais fácil e eficiente, aliciando maior número de adeptos, de tal modo, que foi limitado o uso de arcabuzes ou espingardas. A Carta de Lei de 12 de Outubro de 1612 determinou penas diversas, de graduação variável em função da posição social do infractor, envolvendo todas elas a perda da espingarda com que se caçava: “ (...) que pela experiência ter mostrado o grande dano e prejuízo que em todo o reino se faz à caça com atirar à espingarda no ar, e por esse respeito ficarem as coutadas destruídas por se fora delas desta maneira muita quantidade de caça assim, de que delas sai como em outras partes deste reino, onde há alguma caça, e convir muito dar-se algum remédio e atalhar-se a estes e outros inconvenientes, hei por bem e mando que daqui em diante, nenhuma pessoa, em todo este Reino, em qualquer lugar dele ou seja coutado ou não, possa atirar à caça com espingarda no ar (...) 446“. Todavia estas penas não abrangiam os fidalgos da Casa Real, porque a eles o Rei mandava dar o que lhe “parecia conforme”. Tais regalias e outras concedidas, a que acrescia uma área cada vez maior de coutada, em 1618, provocou protestos veementes do povo ao ponto de Filipe III ser obrigado a mandar suspender, sem procedimento, todos os processos que corriam com base em infracções às leis da caça 447. 445 Francisco Câncio, Ribatejo Histórico e Monumental, p. 146. Jayme Duarte de Almeida, ob. cit., pp. 62-63. 447 Em Espanha, o uso generalizado do arcabuz no século XVI, quase levou ao desaparecimento da caça. A reacção imediata a esta opinião traduziu-se na Pragmática de 1611, que mandou que nenhuma pessoa, de qualquer estado e qualidade e condição que fosse ousado de caçar nenhum género de caça ” com arcabuz ou escopeta, nem com outro tipo de pólvora, nem com bala, nem com bagos de chumbo, nem de outra coisa”. Duque de Almazán, ob. cit. p. 260 e ss. Não obstante, Filipe II, em 1617, derroga esta proibição por razões: cinegéticas, pois da “proibição não havia resultado a abundância que se esperava, antes se conheceu uma maior esterilidade ou carestia, por se introduzir novos modos de caça com laços e armadilhas e outros géneros de instrumentos secretos”; de segurança, pois sem este género de armas se temia o dano, que a falta disto para os casos ocorrentes do serviço, e em outros de necessária defesa de pessoas próprias; de aumento de animais 446 245 Filipe IV volta a refrear a utilização da espingarda na Carta de Lei de 23 de Fevereiro de 1624. Desta vez não se registam exclusões (ou não ficaram consignadas) e até, se alargaram as responsabilidades, visto que: “Desde que alguns anos a esta parte se introduziu de novo a invenção de atirar no ar às perdizes-vermelhas, com que está quase de todo acabada a criação delas”. Determinou-se para melhor observância da lei “as pessoas que vendem munição ou a fazem, ou fazem moldes para ela, incorrem nas ditas penas”448. D. João IV era um artista e um caçador: amava o cavalo e por isso reunia todas as condições para promover o exercício duma legislação venatória justa e conforme as necessidades do país. Apesar disso, na legislação cinegética portuguesa não há modificação alguma. Voltam a vigorar as Ordenações abolidas em 1580 e não se revogam as instituídas pelos Reis Católicos. Como documento ficou apenas o Alvará de 16 de Agosto de 1674. Daqui se depreende que nos últimos anos do domínio Filipino se havia ordenado a suspensão do pagamento de prémios, com manifesto prejuízo para os proprietários e criadores de gado. Extintas as primeiras espécies cinegéticas perigosas, cuja caça quase sempre se vedou ao público, os nobres encontram nas armas as antigas emoções das montarias, servindo o mesmo sentido de requinte, a caça de altanaria, que experimenta nos primeiros anos da restauração nacional, uma tentativa de regresso que, afinal, não se concretiza. Regista-se então um período de indecisões, em que os nobres se afastam um tanto do monte. D.Afonso VI e D. Pedro II são mais toureiros que caçadores. Mas não é urgente legislar; o que está, vai servindo, não se sabe se bem mas é de crer que não, porque D. João V tem de acorrer em defesa dos que são vítimas de abusos e do súbito desenvolvimento da caça popular. Sobre mais de um século de silêncio aparece, enfim, uma determinação que respeita à caça. No Alvará de 1 de Julho de 1776, expedido pelo Marquês de Pombal, o direito de propriedade afirma-se com nitidez. Não se proíbe apenas que se entre nos terrenos murados e vedados. Rotula-se de invasor o que contra a vontade do dono ou dos seus propósitos, penetre na fazenda alheia, e para a qual se instituem pesadas penas. nocivos, os quais provocaram graves danos aos gados e até às pessoas, se bem que a proibição subsista nos bosques reais ou para a caça dos particulares que tiveram o “direito ou estivessem em posse de os vedar ou guardar”. Idem, pp. 458 e ss. 448 Jayme Duarte de Almeida, ob. cit., p.63. 246 Existia, na realidade, um desinteresse a que não estavam alheias certas vicissitudes históricas: guerras com Espanha, invasões francesas, independência do Brasil, lutas liberais e outras circunstâncias a furtarem o carácter tradicional à nobreza. 2.2. Liberalismo ao final do século XIX A Revolução Liberal de 1820, apesar de constituir feliz conjugação de forças políticas fortemente empenhadas na salvaguarda da Paz perante a perspectiva da Guerra Civil, não deixou de encontrar junto da população rural dominante evidente e pronto reflexo, nas ruas e nos campos, bem como no impulso das reclamações provindas de diferentes quadrantes das forças vivas da comunidade nacional 449. Simplesmente, a nível agrário, o móbil afirmou-se pelas novas ideias revolucionárias que manifestavam os prometimentos da Liberdade e da Igualdade na vida social, o “alívio do pagamento de pesados tributos”, bem como a projecção liberalizante nas actividades económicas, pensamento que conflituava com o Regime Senhorial de há muito dominante, “corrompido de superior prepotência” desde que o despotismo se instalara, sob o argumento do “monopólio das Luzes” 450. Com efeito, as pretensões do povo envolvido na contemplação do processo revolucionário eram, segundo Albert Silbert, as estruturas agrárias e o funcionamento da actividade agrícola dominante na economia portuguesa, que determinavam petições a solicitarem do Poder angustiosas intervenções correctoras ou moralizadoras 451. A ineficácia dos governos, de há muito envolvidos nas guerras napoleónicas e desligados da Corte, ausente no Brasil, situava o país real numa espécie de clamor no deserto ou nas trevas, alargando-se a descrença ou o desencanto, ficando excluída a esperança para as amarguras da vida. As maiores reclamações para as Cortes imploravam a reforma dos Forais, que se configuravam como “códigos anacrónicos”, sendo os mais recentes, quase todos manuelinos, dissimulados em símbolos dos direitos feudais que passam a ser vistos 449 J.S.Silva Dias, «A Revolução Liberal portuguesa: amálgama e não substituição de classes», in Eugénio Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa através dos tempos, Sociologia 2, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1991, p. 285. 450 Idem, ibidem. 451 Albert Silbert, Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, 3ª Ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1981,pp. 105-120.Veja ainda Le Problème Agraire Portugais au temps des Premières Cortès Libérales, Paris, PUF, 1968 e le Portugal Méditerranéen à la fin de l´Ancien Régime, XVIII - début du XIX siècle. O historiador alude às petições ou reclamações dirigidas às Cortes ou aos deputados por Conselhos Municipais, vereadores, grupos ou moradores isolados. 247 como cartas senhoriais que enfraquecem o valor de cartas municipais, que na realidade também elegiam 452. A abolição do Regime Senhorial, que se impunha como uma súplica, era um imperativo dos povos no sentido de suprimir usurpações inadmissíveis (direitos realengos ou outros de sujeição ao Senhor, corveias ou censos) por motivos humanos ou sociais e entraves à liberdade económica. Os direitos banais mais correntemente denunciados eram os do “lagar de azeite e o dos monopólios de fornos particulares, moinhos senhoriais e monopólios da venda de vinhos, para além de direitos pessoais de colheita, de eiragem, de fogaça, de fogueira ou de fumaça, de jugada, de teiga e de traviscada” 453. As Cortes não tiveram a coragem de abolir tais extorsões e apenas as aliviaram. As terras comunais figuravam como baluarte territorial – nas quais os camponeses se serviam como complemento da vida agrária –, recebiam a designação de baldios, fruindo direitos tradicionais como os do compáscuo ou livre pastoreio. O património colectivo deriva dos mais remotos tempos, sendo referido por Cícero e Virgílio, defendido por reis na repartição da presúria e respeitado nos Forais de D. Manuel 454. As petições também condenavam e exigiam reparação pelas apropriações de terrenos comunais alcançados por Donatários, mercê de doações régias, como solicitavam partilha que proporcionasse aos povos o desbravamento ou a cultura das sortes. As Cortes não se manifestaram na defesa intransigente dos bens comunais, porque o liberalismo não podia esconder, como objectivo, a finalidade da estruturação fundiária baseada na propriedade privada individual. Havia sobejos motivos para fundamentar as dúvidas que tolheram as decisões dos deputados das Constituintes nesta matéria. 452 O debate nas Cortes sobre os forais foi «longo e difícil não tendo sido possível alcançar acordo que permitisse decisões de reforma. Portanto, a Lei dos Forais de 1822 resultou moderada não se furtando ao labirinto dos forais e apenas diminui vexames, não tendo a audácia de os suprimir, o que ficaria adiado. Mesmo assim esta lei foi banida pela contra-revolução logo em 1823». Eugénio Castro Caldas, ob. cit., p. 286. 453 Idem, ibidem. 454 O conceito de baldio aplica-se a terrenos que, do ponto de vista jurídico e no que se refere a propriedade, são de «logradouro comum, isto é não apropriados individualmente e cujo desfruto é direito dos povos, regulado a nível de Aldeia, Paróquia ou Município». No conceito popular o baldio será constituído pelos terrenos que ficaram pertencendo aos moradores do termo em que estão situados permanecendo em domínio comum, largamente designado «logradouro do povo». Tal situação deverá distinguir o baldio ou o logradouro do povo dos maninhos que seriam incultos, em regra reservados por Senhorios ou Donatários de terras que os podiam aforar, emprazar ou arrendar, ou então mantidos como bens do Concelho, que por alguns forais eram reservados aos Municípios, como seu domínio privado, não particular mas da autarquia administrativa, dos quais muitos foram divididos em sesmarias. Idem, p. 288. 248 A tradicional liberdade de conduzir o gado manadio por todo o terreno não cultivado, destruindo vedações e deixando abertas as canadas, encontrava-se radicada, constituindo fortíssima limitação ao direito de propriedade privada da terra e, fundamentalmente, apoio ao pastoreio. Na realidade, os pastores itinerantes faziam deslocar os seus rebanhos até aos campos de Ourique no Alentejo e, tradicionalmente, não prescindiam do direito ao uso da transumância, o que demonstra a sua força e o argumento contra os interesses dos agricultores sedentários. Por toda a parte o pastoreio se impunha como herança cultural e o gado manadio esmagava as vedações que se lhe opunham e, faminto, procurava o restolho das searas, as ervas sob-coberto dos olivais, ou qualquer renovo primaveril mal acautelado de quaisquer culturas. Tudo isto constituía a defesa do livre pastoreio, “cujo povo” (os pastores) se apresentava aos olhos dos defensores do domínio privado que não queria ver-se desprovido da regalia de ser proprietário sem propriedade. Por essa razão, o livre pastoreio era para os defensores do sedentarismo agrário “revoltante violação do sagrado direito de propriedade, funesto obstáculo à liberdade do trabalho, sério embaraço ao progresso da agricultura” 455. Afigura-se, porém, que as petições, pela sua índole e natureza, apresentavam o país dividido em duas condições completamente diversas. No Norte predomina o compromisso de ver abolido o senhorialismo em favor da libertação do camponês, pela extinção do servilismo e vexames os mais variados, de forma a alcançar a consolidação da empresa familiar; no Sul apresenta-se o campesinato tradicional e altivo, de pastores e cultivadores livres de semearem searas em baldios e herdades, que assistem ao prelúdio da concentração latifundiária que necessariamente os reduz à dramática proletarização nunca constatada 456. Decorre nos domínios da utopia o rasgo que levou as Cortes Constituintes a decretar medidas avançadas sem ter em conta as restrições dos tempos. Foram extintos os direitos banais (fornos, moinhos e lagares de toda a qualidade) e os de relego (pelo qual a Coroa, Donatários dela, ou quaisquer outros agraciados tinham a venda exclusiva dos vinhos) e abolidas as coutadas, logradouro de privilegiados a que se opunha de há muito a reclamação dos povos, bem como as coudelarias nacionais. Tornou-se pertença da Nação os bens da Coroa e foi tentada a restrição a muitas das violências dos forais. 455 A legislação antiga apresentava-se de aplicação local e contraditória. Em 1793, D.Maria atende as «repetidas queixas dos lavradores das vilas de Serpa e Moura os muitos e gravíssimos inconvenientes, que resultavam da abusiva prática dos pastos comuns ou compáscuos» e aboliu-os. Outras petições partiram de Terena, Arronches. Idem, ibidem. 456 Idem, p. 109. 249 Aboliram-se, assim, os mais notórios vestígios do senhorialismo que assumia a forma de trabalho servil, de tributo pago pelo habitante ao servir-se do forno, do moinho, do lagar, da botica, da estalagem que pertenciam ao Donatário; ou por colher frutos, ter animais, vender vinho, matar porco, acender fogo, ir buscar água à fonte, dar de beber ao gado ou casar-se. A imaginação senhorial portuguesa tinha efectivamente sido fértil na construção da rede onde a existência humana se prendia, porque muitas obrigações regionais e costumeiras existiam, tendo nesta lei contemplação ou interdição genérica 457 . No período de 1850-1890, o modelo económico ensaiado pela Região Histórica do Alentejo alicerçou-se, basicamente, na abertura dos mercados, que já tinham uma tradição na economia regional; no final do Antigo Regime, e apesar das deficiências de comunicação, a Região tinha uma economia relativamente aberta; das suas produções, uma parte dos excedentes dos géneros agrícolas (cereais, vinho), matérias-primas (lã) e gado (bovino) eram canalizados para as trocas inter-regionais (Algarve, Lisboa, Beira, raia de Espanha) e para exportação (lã), dirigida à Europa do Norte 458 ; a par cresceram as redes ferroviárias do Leste e do Sul, que tornaram a região mais abrangida por meios de transporte rápidos e baratos. A diferenciação produtiva resultou, por um lado, do reforço da produção fabril em indústrias já com tradição regional, e, por outro, da emergência de novas actividades neste sector. Nos anos de 1830-1840, implantou-se na região, do litoral ao interior, a indústria preparadora (pranchas) e transformadora (rolheira) da cortiça, uma actividade cuja expansão foi significativa pelo menos até 1860. Na década de 1850, arrancou a extracção de minérios. Nestes dois novos subsectores, dominantemente orientados para o mercado internacional, a região assumiu a liderança produtiva do país, posição que conservou até ao final do século 459. A agricultura permaneceu o sector chave da economia regional, uma evidência que é importante referir para evitar qualquer equívoco interpretativo. A composição do 457 Ainda que os historiadores reconheçam que o sistema desta fora banido, não chegava a alcançar o requinte dos autênticos feudalismos europeus porque despertavam as mais cruéis revoltas camponesas, facilmente se compreende o alívio sentido com a sua extinção. Idem, p. 294. 458 Helder Adegar da Fonseca, O Alentejo no Século XIX. Economia e Atitudes Económicas, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996, p. 433., citando Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen à la fin de l´Ancien Regime, pp. 532-544. 459 Além disso, se algumas indústrias tradicionais entraram em declínio, a componente fabril dos lanifícios, “polarizada em Portalegre, reforçou-se nos anos de 1840 e manteve-se importante até ao final da década de 1860”. A transformação e preparação regional de produtos agrícolas (moagem de cereais, fabrico de azeite, vinhos e aguardentes, descasque de arroz) não regrediram.” (...) O sector moageiro ilustra bem este fenómeno. A sua importância na economia alentejana variou consoante o comportamento da produção regional de trigo e centeio”. Idem, p. 434. 250 produto agrícola final regional, estimado para meados do século XIX, mostra também que, no Alentejo, o sector era mais diversificado e menos dependente da cerealífera do que se supunha. Contrariando o paradigma da permanente falta de iniciativa e dinamismo, a elite económica alentejana, em fase de renovação sociológica, não se colocou à margem deste processo. Verifica-se a nova vertebração e hierarquia do espaço económico nacional, em construção desde meados do século. Para o Alentejo ter-se-á pretendido reservar o papel de fornecedor de produtos agrícolas e matérias-primas ao centro polarizador da actividade industrial (em expansão desde os anos 1870) e portuária da região económica do Sul, a zona de Lisboa. Para isso, contribuiu a política agrícola então promovida, claramente favorável ao trigo, pelo amplo proteccionismo pautal e produtivo adoptado, reguladora do mercado das carnes e do vinho, e progressivamente restritiva em matéria de exportação de cortiça em bruto ou semilaborada. A variedade dos interesses económicos concretizados pelo grupo dos maiores contribuintes eborenses testemunha o empenho acima referido e denuncia uma estratégia de investimentos geralmente assente na diversificação das fontes de rendimento. Lavradores, negociantes e aristocratas, ao mesmo tempo que reforçam solidariedades e caminham para um estilo de vida similar, estiveram entre os principais compradores dos bens desamortizados no distrito; ligaram-se a interesses comerciais, variados no modo como se organizavam e nos produtos que vendiam; envolveram-se em actividades agrícolas e industriais (moagem, cortiça, minas, etc.,) com fundos familiares ou sociais (sociedades comerciais e por acções); emprestaram dinheiro e negociaram letras; criaram dois bancos regionais. Poucos foram os que investiram fora da região, e os que o fizeram foi em títulos e acções nacionais e estrangeiras e em sociedades industriais. Capitalizar na terra e fazer agricultura no Alentejo de Oitocentos foram aplicações, além de mais seguras, melhor remuneradoras do que as que se fizeram em outras actividades. Logicamente, a grande exploração mista combinando produções vegetais e pecuárias, surgia como uma alternativa proveitosa. As opressões porque passavam os povos nos terrenos coutados provinham do natural prejuízo que sofriam as culturas, com a mais rigorosa e severa proibição de caçar, cortar matos e fazer carvão, acrescendo ainda os abusos cometidos pelos rendeiros sobre as populações. Também alguns senhorios das ordens religiosas 251 oprimiam os moradores com o regime de coutada, que dificultavam a utilização das charnecas, da floresta e da caça aos camponeses nos baldios das suas terras. Tais arbitrariedades forçaram os lesados a dirigirem várias petições às cortes. Os deputados debateram o assunto e actuaram prontamente. Em 30 de Janeiro de 1821, procedeu-se à abertura das Cortes Constituintes. Em 7 de Fevereiro desse ano, Borges Carneiro considerou o privilégio da caça e pesca o “ último grau de opressão senhorial (...).As coutadas formam um abuso terrível e opressivo contra os lavradores” com a agravante dos donatários poderem destruir as searas aos habitantes sem que estes se pudessem defender 460. Ao abrigo da defesa da propriedade privada, um valor capital do liberalismo, proclamou-se a extinção de todas as coutadas, ficando excluídas da presente determinação as tapadas reais ou de qualquer particular, desde que constituíssem uma propriedade individual e estivessem muradas 461. Reconhecia-se ao rei a legitimidade de praticar o real desporto, mas sem prejuízo da propriedade de terceiros. Por isso, são mantidas as Tapadas Reais de Ajuda, Alcântara, Belém, Necessidades e Mafra. Todas as outras coutadas da coroa são extintas. Porém, é preciso não confundir a liberdade de caçar por muitos propagada. Contrariamente ao que se tem afirmado, as Cortes Constituintes não interferem na legislação cinegética, pois as disposições regulamentares sobre épocas venatórias e períodos de defeso são mantidas na íntegra, bem como o primado da propriedade privada, enunciado pelo Marquês de Pombal, quanto à interdição dos caçadores entrarem armados em terrenos vedados ou semeados. A conquista do direito de caçar como um direito individual, só termina em 1867, com a promulgação do Código de Seabra. O tema das coutadas regressa ao parlamento, pois as Matas Nacionais eram devassadas pela população. Em 18 de Agosto de 1821, é promulgado o decreto que extingue o cargo de monteiro-mor do Reino e de todos os monteiros menores considerados por muitos deputados, por exemplo, Girão, como verdadeiros parasitas que não cuidavam “senão de vexar os povos e gozar de grandes privilégios, como não 460 Além disso, pergunta Cristina Joanaz de Melo, “ que razão justificava a submissão a uma pena de dez anos nas galés a um pobre camponês por matar um veado que lhe aniquilava o sustento? Com que direito se apropriava alguém dos bens silvestres que não eram de ninguém, tal como o ar e a água? Ninguém tinha esse direito. E a ninguém foi concedido: nenhum homem do universo tem propriedade sobre os animais bravios, que não comprou, que não criou e sobre que não exerce domínio ou uso algum (Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, Imprensa Nacional, Sessão de 18.08.1821) “. Ob. cit., pp.55-57. 461 Idem, ibidem. 252 pagar a jugada”. De pouco serviu a oposição dos deputados, como Trigoso de Aragão Morato, que embora duvidasse da competência das câmaras municipais para desempenhar tal tarefa, defendeu a manutenção dos monteiros maiores e menores para vigiar e tratar as florestas. Em 1822, determina-se que sejam as Câmaras Municipais a regular a actividade e as condições do exercício da caça, cabendo-lhes, portanto, a fixação dos períodos de defeso, modo de caçar, etc. Estamos em presença da caça vista no plano regional, em prejuízo do seu carácter nacional. Agora é Assembleia da Nação que concede à realeza o espaço para esta poder caçar impondo-lhe condições, limita e define quais são os espaços de lazer a que o rei tem direito, invertendo o que até então constituía um direito régio sobre toda a população: o direito de coutar. Em 1823, no período da Contra-Revolução, a montaria volta informalmente a funcionar, recuperando o seu estatuto em 5 de Junho de 1824. Nesta data, D. João VI repõe na íntegra o Regimento de 1800 sobre as coutadas de caça e as coutadas de mata são devolvidas à coroa. Por Alvará de 24 de Julho de 1824, vão dar origem a uma repartição designada Administração Geral das Matas. Reposto o regime das coutadas de caça a partir de 1824, são estes os diplomas que se mantêm em vigor, mesmo durante o período miguelista. A extinção da montaria-mor do Reino data de 1834, com a abolição definitiva do Antigo Regime e o triunfo do liberalismo Constitucional. Com o advento do liberalismo desorganizou-se totalmente o regime cinegético de séculos anteriores, assentando no privilégio da caça, em especial a caça maior, a favor da realeza e aristocracia. A nível europeu, também a França e a Alemanha acabaram com o direito feudal da caça a favor da aristocracia, se bem que na contemporaneidade subsistam reminiscências dele, consequente do novo sistema ligado ao “desenvolvimento da exploração agrária e capitalista e a crescente urbanização “ 462. A conflitualidade nas coutadas reais não resulta de um contexto político específico ou de um movimento revolucionário. O regime de coutada que contrariava o direito natural dos povos, era tão violento que foi questionado durante o final do Antigo Regime, como o reconheceu José Manuel Tengarrinha, cuja abolição foi reconhecida 462 Karl Kaustky, La cuestión agraria. Estudio de las tendencias de la agricultura moderna y de la política agraria de la socialdemocracia, 2ª Ed., Barcelona, Editorial Laia, 1974, pp. 221 e ss. 253 como um dos pontos vitais de contestação e de libertação dos povos, durante as revoluções liberais na Europa 463. Em Portugal, a Lei de 1821, que Baeta Neves condenou, causou o drama da floresta portuguesa ao extinguir os cargos de monteiro-mor do Reino, monteiros-mores e menores, coudéis e todos os mais lugares da sua dependência, por os ver além de inúteis, gravosos e opressivos ao público 464 . A configuração do novo regime cinegético fixou-se na concepção de considerar todos os homens iguais e livres, figurando nesse caso o princípio jurídico de que as espécies de caça pelo direito natural e escrito se consideravam res nullius. Aboliu-se o privilégio de caça e doravante permitiu-se a todos os Portugueses caçar sem limitação 465. Neste período, a presença de javalis no Alentejo, particularmente nas terras de Alcáçovas, Viana e Torrão, levou à organização de uma caçada para o Rei D. Pedro V em 1860, “visto ali o ser o sítio de haver muitos, não chegando El-Rei a deliberar-se vir assistir, por lhe ficar longe do seu palácio de Vendas Novas” 466. Em 11 de Março de 1868, entra em vigor o Código Civil, da autoria de António Luís de Seabra 467 , que se afasta das ideias do Alvará de 1 de Julho de 1776, expedido pelo Marquês de Pombal, onde o direito de propriedade se afirma com nitidez, e recorre ao conceito romanista. A comissão revisora perfilha-o. Assim, passa a ser lícito caçar animais bravios, não só nos terrenos próprios como nos alheios. Quando o incumprimento dos períodos de defeso começou a influir na diminuição dos contingentes cinegéticos em volta dos grandes aglomerados populacionais, os caçadores reuniam-se em associações com o fim de fazer respeitar esses períodos. Assim nasceu a primeira dessas associações, o Clube de Caçadores do Porto, fundado 463 José Manuel Tengarrinha, ob. cit. É por esta razão que os caçadores hoje reivindicam a perpetuação da caça, alegando que ela foi uma das conquistas da Revolução Francesa, uma vitória do Iluminismo sobre o regime feudal. Foi em 4 de Agosto de 1789 que a Assembleia Nacional Francesa estendeu o direito de caça aos plebeus que fossem proprietários. 464 C.M.Baeta Neves, «Dos Monteiros-Mores aos Engenheiros Silvicultores», Anais do Instituto Superior de Agronomia, vol. XXVIII, 1965. 465 Também em Espanha a abolição foi imposta pelo decreto das Cortes de Cádis de 1811, transitoriamente eclipsado em 1823, e com restabelecimento definitivo por decreto em 2-2-1837. Daí em diante todos os espanhóis podiam caçar, sem outras limitações: «que as que todos impõem a Justiça, a equidade e a conveniência colectiva ou social». J. De Argullol, La caza desde el punto de vista histórico, filosófico e higiénico, 2ª Ed., Madrid, Guilherme Blázquez, 1984, p. 33. 466 “ (...) mataram-se dez porcos, entre elles um porco velho, manêta da mão direita, isto é, parece que em tempo lhe cortaram os dedos da mão direita, com algum tiro de bala, e por isso se firmava n´ella como uma moleta”. José Paulo de Mira Carvalho, Uma Noção da Caça ao Javali, Évora, 2ª Ed., tipografia do Governo Civil, 1874, p. 15. 467 A partir da entrada do Código Civil e para melhor esclarecimento da regulamentação de actividade venatória veja-se artigos 383º, 384ºa 394º. 254 em 1878, com o fim da defesa dos “passatempos venatórios e, principalmente, a observância do defeso” 468. As associações de caçadores surgem, igualmente, para a defesa da caça, mormente em tempo de defeso, numa conjuntura em que a prática venatória era orientada pelas Câmaras Municipais, sob a influência dos caçadores dos respectivos concelhos que, em larga medida, foram responsáveis pela anarquia e aniquilamento dos recursos bravios, designadamente nos campos do Sul 469 . O desalento de Zacharias de Aça era expressivo: “ A isto chegámos – graças à falta de lei, aos costumes e às autoridades” 470. A grande questão coloca-se agora, a nível ideológico. Reconhecia-se que boa parte das aspirações e preocupações da nossa sociedade respeitavam à caça (não aos privilégios senhoriais) e defesa de propriedade, temor à diminuição da caça, etc.., bem como aos instrumentos básicos de regulamentação e controle deste (licenças, vedas, coutos, proibição de determinadas artes). Pode estranhar-se que não sendo a caça um tema de segundo interesse, apesar de inerente à propriedade e aos progressos de agricultura, não tivesse uma lei geral, pois havia dificuldades geográficas (e de outro tipo) como perspicazmente sintetizou F. Troche: “ É muito difícil conciliar os diversos e opostos interesses dos proprietários e caçadores, da agricultura e abundância de caça, da segurança e diminuição dos animais ferozes, 468 Como nos relata Baptista de Sá no seu interessante livro Mistifório Venatório e C.ª Limitada, editado em 1937. Veja-se, ainda, Mário Bastos, ob. cit., pp. 21-27. 469 Entre outras, Associação dos Caçadores Portugueses; Clube de Caçadores do Porto, Associação de Caça em Tempo de Defeso, Associação de Caçadores do Norte, Clube de Caçadores da Figueira da Foz; Associação de Caçadores Portuenses, Clube de Caçadores de Braga, Associação de Caçadores de Coimbra, Clube de Caçadores de Setúbal, Alvito, Ourique, etc. Cf. Revista, A Caça, ano 1, n.º 10,15-05-1900, p. 158. Na verdade, no final do século XIX a caça furtiva era praticada com atrevimento indescritível. No Sul, por exemplo, durante o defeso, os lavradores, em ostensiva provocação, entravam a cavalo nas aldeias, carregados de caça. Idem, ibidem. 470 O autor prossegue a sua mágoa: «Falar nas antigas caçadas e montarias, hoje que as nossas, longe de serem reais, para muitos não passam de imaginárias, é tocar em assuntos alegres, mas que em nós só provocam tristezas (...)”. Zacharias de Aça, Lisboa Moderna, Lisboa, Livraria Editora – Viúva Tavares Cardoso, 1907, pp. 416-417. É curioso também a imaginação do autor quando coloca os caçadores portugueses a solicitar uma audiência a Santo Huberto, patrono dos caçadores, que acedeu, justificando: “Estou com curiosidade de os ver, a esses caçadores de Portugal. Mande-os entrar”. Quando acabou o solilóquio, em frente aos caçadores, afirmou então: “ Na vossa terra, em tempos que lá vão, houve reis e fidalgos, todos gentis-homens e grandes cavalheiros e bons caçadores, e tinham todos muitas e ricas coutadas. Ainda os tendes hoje, mas que vos resta dessa grandeza, da antiga abundância de caça? As coutadas, abertas para todos e por todos devassadas, tornaram-se ermas! E em muitas dessas solidões o homem não substitui pela cultura o que tirou à caça – eram charnecas, ainda o são! Às terras livres sucedeu o mesmo. As vossas caçadas são razias, e vazias! Destruidores insensatos, não prevíeis o que fatalmente havia de acontecer, até ao ponto em que com os vossos próprios olhos vistes a triste realidade! (...) Essa visão devia chamar-vos ao bom caminho. Entrastes nele há pouco, mas haveis de persistir. Então honrareis o vosso nome, e eu serei honroso convosco. Ide, e que Deus vos acompanhe, e a caça vos não falte, no dia da vossa festa (....). Mas se vos faltar, não vos admireis – Vós o quisestes.”. Idem, pp. 423-425. 255 sem que a lei traga as justas e indispensáveis distinções entre culturas e mentalidades tão diferentes em tudo” 471. 2.3. Primórdios da República ao final do Estado Novo Em 1901,1903 e 1905, são publicados os Decretos Reais, respectivamente, de 24 de Dezembro, 9 de Março e 11 de Julho, que definiram as condições em que os proprietários podiam submeter as suas propriedades ao regime parcial de Polícia Florestal 472 . Além disso, incentivaram os proprietários absentistas à florestação, tendo como contrapartida a autorização do coutamento. Acessoriamente podiam, deste modo, ser atribuídas reservas de pesca e caça a estes proprietários. De notar que a caça, como entidade de características próprias, ainda não era reconhecida e o principal objectivo dos citados diplomas era o fomento florestal. Com o advento da República, de novo se põe o problema, durante a discussão do projecto da autoria do deputado Francisco Cruz e que se transformou na Lei n.º 15, de 7 de Junho de 1913. Um pouco, no mesmo tom, o deputado João Luís Ricardo, insistia em que o direito de caça não se incluía no de propriedade. Eram vozes discordantes que não lograram eco. Na prolixa e desconexa legislação que se sucede mantêm-se o princípio do terreno livre. Mesmo considerando a promulgação da Lei, não se conseguiu encontrar as soluções que muitos anos de abandono e negligência tornaram particularmente difíceis. Assim nasceu a lei da caça que entregou ao Estado a tutela do património cinegético nacional e institui as Comissões Venatórias, organismos essencialmente populares, nas quais os caçadores, pela simples razão de legalmente o serem, adquiriam o direito livre e democraticamente de votarem e de serem votados para esses organismos, através dos seus representantes; terem voz activa na orientação do seu desporto, sem esquecer que a caça, porque normalmente praticada em terrenos alheios, tinha deveres para com os proprietários desses terrenos. 471 F. Troche, ob. cit., pp. 49-50 e nota 2, p. 198. Decreto real n.º 296, de 31 de Dezembro de 1901, que organizou os Serviços Florestais. Assim, ao abrigo do Art.º 32.º permitiu-se a submissão de propriedades ao regime parcial de polícia florestal. Complementarmente, o Regulamento para a execução (Decreto n.º 294, de 30 de Dezembro de 1903), no seu Art.º 253.º autorizava a sujeição a todo o regime florestal, parcial ou simplesmente ao de polícia florestal, os terrenos a coutar, a arborizar ou em via de arborização, bem como as matas de um ou mais particulares. Finalmente o Decreto n.º 161, de 21 de Julho de 1905, definiu os fins do regime florestal. Para mais informação veja-se Mário Bastos, ob. cit., p. 46 e ss. 472 256 No entanto, ao longo do século XX, as eleições de Comissões Venatórias Concelhias caracterizavam-se na maioria das vezes pela ausência absoluta de eleitores, por desinteresse originado pelo prévio conhecimento da falta de meios de acção. Por essa razão, muitos membros das Comissões Concelhias foram designados pelos próprios presidentes das Câmaras Municipais. Em termos funcionais, dependiam das Comissões Venatórias Regionais que fiscalizavam o trabalho daquelas, as orientavam no esforço para bem da caça e nas obrigações de ordem burocrática. Contudo, a fiscalização era demasiado dispendiosa e de eficácia duvidosa muitas vezes operada por guardas que desconheciam os terrenos 473. Porém, não podemos generalizar esta imagem. Na verdade, as Comissões Venatórias, quer na constituição e distribuição, quer nas suas atribuições, agiram como organismos descentralizadores do poder, ambição muito cobiçada, a partir do momento em que a caça se transformou numa fonte de rendimento. Ao chegar-se ao Decreto-Lei n.º 23 460, de 17 de Janeiro de 1934, reconhecia-se que a caça havia sido regulada de modo vacilante, consignando-se disposições que ora eram “ exageradamente favoráveis aos caçadores”, ora propendiam em demasia a ”favor dos proprietários”. Apesar de quase todos os anos se ter promulgado uma nova lei da caça, não se conseguira encontrar um “ meio-termo, um terreno comum em que proprietários e caçadores se encontrassem plenamente de acordo” 474. Crescia assim timidamente o processo incipiente das reservas de pesca e caça interrompido em 1935 por despacho do Presidente do Conselho de Ministros e mais tarde revogado em 1953. Nesse tempo, alguns críticos consideravam as coutadas “úteis e necessárias”, mas a sua regulamentação carecia de ser modificada: “Não são os direitos dos couteiros que necessitam de ser grandemente diminuídos; são as suas obrigações que devem ser muito aumentadas” 475 . Atribuíam assim à lógica da concessão da coutada, o fim exclusivamente de contribuir com espécies cinegéticas para os terrenos livres, e não a fruição dos seus donos. Ao Estado, competia a 473 Existiam em 1946 cerca de 45 comissões venatórias concelhias inibidas de actuar na defesa da caça, por não terem verbas transferidas, ou seja, quase metade das existentes na CVRS. António Bonfim, Da Caça (Palestras Cinegéticas), s.n., Lisboa, Tipografia Gráfica Santelmo, 1946, p. 106. 474 Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 23 460, de 17 de Janeiro de 1934. 475 “ Coutadas existem em que os guardas são tudo menos guardas de caça; isto é um abuso que deve ser reprimido; os guardas particulares devem ser por sua vez fiscalizados, obrigados a estar no seu posto, fardados, com a carabina da ordem, enfim, serem de facto guardas de caça. Um terreno com reserva deve ter condições para a caça se desenvolver, alimentar e beber. Aqueles que não a possua, e não adquiram não devem continuar a ser reservados. Uma coutada onde a caça tenha condições de existência e procriação, e onde seja convenientemente defendida, é de manifesta utilidade para caçadores que utilizem os terrenos livres vizinhos; aquela que não satisfaça essas condições é um ultraje a esses caçadores, é uma posse imerecida de um direito”. António Bonfim, ob. cit., pp. 87-88. 257 protecção da caça e da sua existência mesmo nas reservas ou terrenos livres, pois era sempre uma riqueza nacional. Na verdade, uma propriedade submetida ao regime florestal de simples polícia tinha de dar cumprimento ao plano de arborização, tratamento e exploração 476 , nomeadamente: proteger a regeneração natural do montado; manter os povoamentos na devida densidade; cumprir os preceitos estabelecidos para a conservação do solo; observar o cumprimento de todas as práticas culturais preconizadas pela DGSFA; mandar colocar no perímetro da propriedade as tabuletas a que se refere o Art.º 40.º do Decreto-Lei n.º nº 39 931, de 24 de Março de 1954, postas de modo a que cada uma delas se possa avistar a imediata e a antecedente; assumir o encargo de manter um guarda-florestal auxiliar para o devido policiamento e sujeitar-se à fiscalização do pessoal dos Serviços Florestais. Apesar destes imperativos, a caça continuava a não ser sequer conhecida, enquanto actividade florestal. Os concessionários, por sua vez, não cumpriam com a lei, furtando-se aos deveres a que se haviam comprometido 477. Finalmente, em 26 de Maio de 1967, estabelece-se uma nova etapa na venatória nacional com o reconhecimento da importância da caça como actividade de características e requisitos próprios, através da definição de um quadro legal específico consubstanciado na Lei n.º 2132, que definiu as bases do seu regime jurídico e do regulamento (Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto). O conceito de caça adquiriu então uma nova definição: é a forma de apreensão ou ocupação de animais bravios que se encontram em estado de liberdade natural. Será desta forma que se lançam as bases, pese embora de forma rudimentar e pouco sistemática, para a exploração da caça racional, dando-se os primeiros passos que iriam permitir uma exploração económica desse recurso; no entanto, o conceito de caça ficou restringido apenas ao aspecto de apreensão ou ocupação dos animais bravios que se encontram em estado de liberdade natural, distinguindo unicamente os interesses desportivos e turísticos. Com este diploma é introduzida a possibilidade da criação das “coutadas”, instituindo-se o princípio de relacionar directamente o conceito de posse da terra à posse da caça nela presente, com obrigatoriedade de serem fiscalizadas e repovoadas 476 As propriedades com características predominantemente florestais necessitavam de ter mais de 2/3 da sua superfície total arborizada para beneficiar do regime florestal de simples polícia. 477 Sobre as infracções e incumprimento do regime florestal veja Mário Bastos, ob. cit. 258 criteriosamente, abertas somente aos concessionários, seus acompanhantes e aos portadores de autorizações escritas pelos primeiros. Durante anos as coutadas e o regime florestal conseguiram, apesar das regras rígidas, desenvolver um património cinegético riquíssimo à custa da limitada actividade venatória, quase sempre, de batida. Porém, este reconhecimento na fase final do Salazarismo não iliba os couteiros de abuso e prepotência perante a Administração Florestal. Na verdade, o afrontamento dos couteiros no Alentejo criou então contornos de difícil avaliação. Na sua maioria, não cumpriam as obrigações decorrentes do seu estatuto que, como se sabe, legitimou a concessão: pagamento de taxas ao Estado; manutenção de guardas-florestais auxiliares e execução do plano de florestação 478. De certa forma, até Abril de 1974, voltaram a crescer as coutadas apoiadas na política dos aramados, quer ligadas aos proprietários da terra, quer arrendadas aos caçadores com maior posse económica. Bastava a simples existência de oito arames dispostos em cerca nas propriedades, para ser proibido o exercício venatório aos caçadores do terreno livre, permitindo-se, contudo, ao proprietário ou arrendatário, o benefício do acto cinegético para si ou, convidados, independentemente de qualquer programa de exploração e ordenamento cinegético 479. Em certos concelhos, as áreas de caça particulares ultrapassavam os 25% da área total, sendo os casos de Avis, Elvas, Monforte, Fronteira, Sousel, Alandroal, Arraiolos, Montemor-o-Novo, Portel Alvito, Cuba, Vidigueira, Barrancos, Ferreira do Alentejo e Alcácer do Sal, das mais ricas e importantes zonas de caça do país. Fora-se longe de mais na usurpação do território de caça, que durante anos estivera livre para o caçador desportista e desprovido de terras. À custa dos aramados, as áreas privadas não deixaram de crescer até ao fim de 1973, sempre debaixo de uma contestação por banda das populações rurais. Em 1974, os aramados foram suprimidos na sua totalidade e restringiu-se aos 1000 has a área máxima das coutadas. A Revolução de Abril de 1974 trouxe consigo a euforia, os excessos e algum radicalismo, que sempre caracterizaram as mudanças políticas, destruindo tudo o que 478 Veja-se Mário Bastos, ob. cit. Sousa Lara, em Julho de 1971, informa que só no Alentejo e Algarve haviam 899 coutadas e aramados, ocupando mais de 560 mil has, ou seja, cerca de 16% da área total destas regiões. Luís Filipe Cisneiros de Albuquerque de Sousa Lara, «A caça perspectiva de desenvolvimento do Património Cinegético do Distrito de Beja», Comunicação apresentada no I Encontro sobre Desenvolvimento Regional da Região-Plano Sul, Évora, 1969. 479 259 efectiva ou simbolicamente era interpretado como apanágio do poder. São as arbitrariedades do próprio processo histórico e evolutivo das nações. Seguindo o espírito das transformações, em 1974, publicou-se o D.L. n.º 354A/74, de 14 de Agosto, que terminou com a ligação entre a posse da terra e a posse da caça, extinguiu os aramados e alterou os conceitos que se vinham a impor no sentido de conferir ao proprietário da terra a propriedade da caça. Na prática, este evento levou à restrição do número de áreas privadas em benefício do terreno livre, e impediu a execução de uma política racional de reconversão das coutadas privadas em coutadas comunitárias, em vez da sua extinção em 1975. Constitui também um verdadeiro retrocesso em termos da evolução dos recursos bravios. 260 CAPÍTULO V – A SOCIALIZAÇÃO DA FAUNA BRAVIA (1974-1986) 261 1. Revolução Venatória Após a queda do regime político que vigorou em Portugal até 24 de Abril de 1974, as estruturas económicas, sociais e políticas alteraram-se por acção directa de movimentos de massas. Durante o período pré-constitucional, muitos responsáveis e protagonistas políticos classificam esse tempo como revolucionário. O então Presidente da República, general Costa Gomes, no seu discurso inaugural da Assembleia Constituinte, a 2 de Abril de 1975, insiste no uso da frase feita “processo revolucionário em curso”, que até se consagrou na conhecida fórmula PREC, circunstância que permite generalizar ao todo nacional a percepção de se ter vivido uma época revolucionária, independentemente dos seus resultados. E a percepção dos contemporâneos sobre os acontecimentos que viveram é um dado comportamental que o historiador deve ter na devida conta 480. Nesse sentido, o Governo Revolucionário encarregou um grupo de modificar a Lei da Caça n.º 2132, que reuniu, pela primeira vez, em 27 de Junho de 1974, com a participação das Comissões Venatórias, os técnicos dos Serviços Florestais de vários pontos do país, não estando inexplicavelmente representados, nem a Lavoura nem os proprietários de coutos e aramados. Esta atitude impeliu o membro do Conselho Internacional da Caça e Conservação da Fauna (CIC), Jorge Roque de Pinho, a tecer fortes críticas à rapidez de pessoas sem representatividade, mas que intervieram na nova lei da caça, ao contrário de outros países, que fizeram um estudo consciencioso de todos os problemas com ele relacionados 481. 480 Não vamos aqui defender o conceito de revolução para caracterizar aquele período, como o fez José Medeiros Ferreira, Ensaio histórico sobre a Revolução do 25 de Abril-O período pré-constitucional, Lisboa, co-edição INCM-SREC da Região Autónoma dos Açores, 1983, embora, dois anos depois, utilizasse o conceito de «revolução imperfeita», para cobrir a falta de perspectiva temporal, e também indicasse um movimento incompleto. «Portugal em Transe (1974-1985)», História de Portugal, dir. de José Mattoso, Lisboa, Editorial Estampa, Oitavo Volume, 1994, p. 7. Veja-se também História Contemporânea de Portugal (dir. de João Medina), Vol. V «25 de Abril», Camarate, Ed. Mutilar, 1988. 481 O CIC fundado em 1930, em Paris, é o Órgão Consultivo do Conselho da Europa e o único organismo internacional que se dedica exclusivamente aos problemas da caça e da conservação da Fauna Selvagem. Dele fazem parte oficialmente cerca de 60 Estados membros, representados pelas Delegações Nacionais, além de associações de caçadores e de um número limitado de membros individuais, titulares ou correspondentes caçadores. Financia estudos, trabalhos, por intermédio da Fundação Internacional para a Protecção das Espécies Cinegéticas em todos os países, já o tendo feito algumas vezes em Portugal. Entre os países que dele fazem parte, além de Portugal, citemos: EUA, URSS, França, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Países Escandinavos, Itália, Suíça, Holanda, Bélgica, Japão, Polónia, Hungria, Roménia, Jugoslávia, Checoslováquia, Bulgária, Brasil, Argentina, África do Sul, Senegal, Angola, Paquistão, Mongólia, etc. Jorge Roque de Pinho, «Contradições e Ambiguidades», Jornal de Caça e Pesca, n.º 396, 15-09-1974, pp. 4 e 6. 262 O diploma estabelecia disposições reguladas apesar de adequadas às novas realidades que se situavam ao nível da legislação sobre caça da maioria dos países da Europa. Não obstante, Roque de Pinho colocou as maiores reservas quanto ao papel das Comissões Venatórias, pois nelas não figuravam os representantes do turismo; no que aludia aos técnicos, defendeu a sua formação na conservação da natureza, de caça e pesca, tradição que não existia em Portugal à data da elaboração do diploma; advogou a emissão de duas licenças (geral e concelhia) e criticou a limitação de dois dias de caça, frustrando assim, o turismo cinegético aos estrangeiros 482. Exemplificou com a vizinha Espanha, país com muito mais caça, mas onde se pagava menos que em Portugal. Inclusive, os estrangeiros, que caçavam em Espanha, podiam optar por licenças temporárias. Contudo, o que se oferecia em Portugal de comparável a Espanha com a abundância de caça maior e menor os numerosos coutos e reservas nacionais, particulares, turísticas e sociais, onde se podia caçar? Recusando-se a criticar a antiga lei que já previa as coutadas turísticas e comunitárias, mas que os detractores nunca quiseram aproveitar, responsabilizou os decisores políticos de destruírem as existentes, em vez de construir aquilo que era o único caminho a seguir. Roque de Pinho sabia que a maior parte do património cinegético se encontrava nas coutadas e aramados. Aí residia o ponto crucial da nova legislação, argumento, perante o qual, defendeu a proibição total de se caçar nos aramados, mas não a sua extinção. Em Portugal existiam cerca de 480 propriedades aramadas, ocupando uma área de 254 251 has. Bastava que cerca de 1/3 dos 170 mil caçadores se concentrassem nas propriedades para exterminarem a fauna em três ou quatro dias. Nesse caso, perguntou: “ seria este o processo de garantir a continuidade e preservação do património cinegético português? “ 483. Em Janeiro de 1974, Nabais da Cunha, defensor da “caça para todos”, alude a uma comissão de caçadores composta pelas Comissões Venatórias Regionais do Norte e do Sul, que em tempos requerera audiência ao Presidente do Conselho de Ministros e 482 A licença em Espanha custava entre 230$00 a 345$00, com direito a caça maior e tomar parte nas batidas de perdizes-vermelhas e patos, etc. Os estrangeiros não residentes em Espanha pagavam 4 000$00 (1 845$00) e 6 000$00 (2 760$00). Os espanhóis tinham ainda oportunidade de tirar licença válida por dois meses, com preços variáveis. Idem, ibidem. 483 Quanto aos dias de caça, no seu entender, seria mais justo que se pudesse caçar à caça geral, aos sábados, domingos e feriados; aos pombos todos os dias. Considerou um exagero o número máximo de peças de caça indígena que se podia abater, por cada dia de caça e condenou a proibição das batidas, «movidos por velhos ressentimentos ou outros inconfessos motivos», dado que era incontestável que se podiam realizar nas coutadas sem prejuízo para os terrenos livres e para a sobrevivência das espécies. Idem, ibidem. 263 ao Ministro da Economia, com vista a reformular a posição da caça desportiva e dos perigos que ameaçavam a fauna, por defeito de uma rígida regulamentação que limitasse a “chacina e o seu indiscriminado monopólio” 484. A Comissão, que era portadora de um estudo sobre a matéria, alvitrou medidas junto dos coutos e aramados considerados “monopólios de caça, arbitrariamente medievais”, que impediam o Estado de receber unicamente uma taxa incompatível com o bem público de quem tinha o direito exclusivo. Parte importante do Centro e Sul do país estava coutado e aramado, circunstância que impeliu o autor a colocar a seguinte questão: “Quem lucrou com a caça, na sua densidade, com o enxameado de coutos e aramados em detrimento dos pobres? Onde foram feitos os repovoamentos nas regiões mais pobres?” 485 . A presunção iniludível que o benefício foi estritamente para os couteiros e proprietários, suscitou a revolta dos caçadores no pós-25 de Abril de 1974. Almeida Coquet, personalidade destacada do meio cinegético nortenho e observador atento da realidade cinegética nacional, confessou que por ser nortenho quase só abordava os assuntos de caça que aos nortenhos interessavam. Daí desprezou a “questão das coutadas, que em grande parte do Sul representava grande acuidade” 486. Esta abordagem é de certo modo um afrontamento contra as habituais batidas de perdizes-vermelhas nas coutadas do Alentejo. Por outro lado, demonstra o desinteresse que os homens do minifúndio expressaram pela caça privada, em prol da caça em regime livre, e que se assemelhava à exercida pelo caçador modesto alentejano. Em Janeiro de 1974, a Comissão Venatória de Santiago do Cacém, que apoiara a reivindicação apresentada pelas Comissões Venatórias em Alcanena, requereu ao Secretário de Estado da Agricultura para que na época venatória seguinte, a caça fosse praticada nos corredores de 600 metros, entre duas coutadas, independentemente de pertencerem ou não ao mesmo proprietário (idêntica situação para os aramados); 484 Nabais da Cunha, «Quem acode à caça», Jornal de Caça e Pesca, n.º 380, 17-01-1974, p. 1. Idem, p. 2. 486 “Não nos permite a orografia nortenha nem a pequenez de propriedade, com raras excepções, adoptar o figurino do Sul e temos mantido, e esperamos poder manter enquanto possível, o nosso sistema tradicional de caça perseguindo as perdizes-vermelhas e não, aguardando que no-las enxotem. Isto explica, talvez, o nosso desinteresse pelas coutadas comunitárias”. Veja-se «Novos rumos da caça», idem, n.º 398, 15-10-1974, p. 5. 485 264 redução dos dias de caça para domingos, feriados e um dia a meio da semana, isto é, a todas as espécies dentro e fora dos coutos e aramados 487. Pressionado pelas Comissões Venatórias, como vimos, na primeira semana de Abril de 1974, o Secretário de Estado da Agricultura determinou que o projecto de reforma da lei da caça fosse submetido à sua apreciação, bem como dos técnicos dos serviços florestais e dos organismos corporativos. Em resultado dessa iniciativa, um verdadeiro caudal de exposições veio a desaguar na Direcção dos Serviços Florestais e provocou uma tormenta nos cerca de 140 mil caçadores portugueses e milhares de proprietários, centenas de couteiros, muitos dos quais tiveram opiniões fundamentadas sobre o magno problema em debate. As reivindicações do Presidente da CVRS, J.M.Ennes Ferreira, um dos consultados, são por demais elucidativas: - A caça e pesca deviam ser regidas por um só organismo público, autónomo ou não, sob a tutela de uma Direcção-Geral, com duas repartições, pelo menos, uma para a caça e outra para a pesca, dispondo de um Inspector Chefe nos Serviços de Inspecção e de um Inspector Regional na área de cada comissão venatória regional; - Criação do Corpo Nacional da Guarda Nacional Venatória; centralização dos ficheiros para controlo das cartas de caçador; uma única licença, pois não se concebia a diferenciação das licenças de caça, dado que a maioria dos caçadores portugueses fazia parte da média e pequena burguesia e do correspondente meio rural, como o próprio afirmava: “para essa maioria se deveria olhar especialmente”, sem prejuízo de considerar-se aplicável a todos o mesmo critério de justiça; - Custo das licenças consoante os dias gastos na actividade, para benefício dos caçadores modestos, cuja necessidade de ganhar a vida lhe deixava livre apenas o dia de descanso semanal; ficava, porém, aberta a possibilidade dos caçadores profissionais caçarem até à totalidade dos dias da semana, mediante o pagamento do respectivo imposto 488 . De resto, defendeu as coutadas, porque “suprimi-las era uma pretensão tão pouco razoável”, como aquela outra, advogada por alguns, de que a caça devia ser 487 Decorre do sentimento expresso pelas Comissões Venatórias em Alcanena. Idem, n.º 381, 3-02-1974, p. 5. Refira-se que já nesse tempo, muitos caçadores defendiam o princípio da caça como desporto e não como profissão, excluindo os caçadores profissionais que proliferavam pelo imenso Sul. 488 Idem, n.º 385, 1-04-1974, pp. 1-2. Em 1984,o ilustre jurista foi relator de um Projecto-Lei da caça. Jornal de Caça Pesca, Suplemento especial, n.º 628, 20-07-1984, pp. I-V. Basta lembrar que possibilidades teriam os caçadores urbanos (Lisboa, Porto, Coimbra) de caçar com uma licença concelhia? Havia muito tempo que, em qualquer desses distritos, não existia caça. Do mesmo modo, também muitos concelhos rurais ou do litoral tinham pouca ou nenhuma caça. 265 considerada fruto e, como tal, só permitido o seu exercício com prévia autorização, onerosa ou gratuita do proprietário. Os coutos seriam compostos por duas partes: uma área de reserva de caça ao centro, até 1000 has, onde a caça pertencia exclusivamente ao dono da coutada; a área marginal, de dimensão pelo menos igual ao território onde a caça seria absolutamente livre. No entanto, uma coutada estabelecida em propriedade de um único dono ou de vários donos podia ter uma área superior a 2 000 has. Todo o proprietário, ou grupo de proprietários de terras contíguas, podiam requerer a concessão de uma ou mais coutadas, observando sempre a regra fundamental, que seria a de manter a proporção máxima de metade da área coutada, situada ao centro, como reserva de caça. O pagamento das licenças de coutamento poderia ser em dinheiro ou em espécies para repovoamento das regiões mais carenciadas. O cronista Elisiário Rodrigues Nogueira, resistente antifascista e defensor da caça livre, denunciou “o desenfreado e abusivo coutamento do país e o seu entrincheiramento com arame farpado”, que tinha de ser plenamente fiscalizado e modificado, particularmente as coutadas estabelecidas nos últimos quinze anos, pois nem os residentes locais podiam caçar nas aldeias onde nasceram. “Fora-se longe de mais, no processo de escorraçar o caçador pobre”; a falta de “equilíbrio e consciência, a ganância, egoísmo e a maldade cegara muita gente “. A aplicação de uma política social errada, impeliu o autor a terminar com um desejo: “Não gostaria de ver a nossa geração acusada de coveira do desporto da caça popular em Portugal” 489. Uns e outros eram pontos de vista extremistas que o bom senso aconselhava a por de parte. As coutadas deveriam não só subsistir, como até ser aumentadas e reconvertidas em coutadas comunitárias, bastando que se estabelecesse, sob a forma de lei, princípios de execução que permitissem uma fruição justa e equilibrada da actividade venatória. Após a queda do Estado Novo, a lei foi de imediato alterada. O D.L. n.º 354-A/74 arruma de vez com os aramados e estipula a sua abertura aos caçadores indiferenciados. Contudo, a formulação do diploma não esteve isenta de críticas, sobretudo, pela precipitação com que o Governo Provisório se quis livrar de um manancial de conflitos. No ano seguinte, o Decreto-Lei n.º 407-C/75 extingue as 489 Elisiário Rodrigues, «Pelo caminho de sempre», Jornal de Caça e Pesca, n.º 399, 17-05-1974, pp. 1-2. Vejase ainda os excelentes artigos produzidos, neste período, pelo Jornal do Caçador e Jornal de Caça e Pesca, que ilustram a resistência frontal às coutadas. 266 coutadas e considera livres os terrenos, abrindo as portas à cultura do terreno livre, facto que iria marcar uma nova etapa da cinegética portuguesa. 267 2. Reacção das Comissões Venatórias Consumada a Revolução de Abril, em 3 de Junho de 1974, as três Comissões Venatórias (Norte, Centro e Sul) reunidas na sede da CVRS pediram uma nova lei da caça para a próxima época alegando entre outras razões: a fraca densidade das espécies cinegéticas; a indisciplina nos campos, que justificavam o aumento do número de guardas de caça; redução dos dias de caça (quintas-feiras, sábados, domingos e feriados nacionais); abertura de corredores nas coutadas com mais de 1 000 has; necessidade dos guardas-florestais das coutadas serem nomeados e remunerados pelos Serviços Florestais; autorização para os guardas abater cães vadios fora das zonas habitadas 490. A principal reclamação foi, sem dúvida, a abolição dos aramados e a abertura dos perímetros florestais. No que respeita às coutadas reivindicam que a Junta de Colonização Interna cumprisse o D.L. n.º 47 847, ou seja, contribuir em espécies para o repovoamento dos terrenos livres, posição secundada pela Comissão Venatória Concelhia de Tomar que pediu a imediata extinção dos aramados e coutadas, que “proliferavam por todo o país como ervas daninhas”. Por essa razão, sugeriu que fossem criadas reservas de caça geridas pelo Estado, nas quais se limitassem os dias de caça, a coberto de uma licença única para todo o território nacional 491. Por todo o país, os caçadores mantinham-se atentos à evolução dos acontecimentos, como sucedeu no Barreiro, onde grupos organizados apelam à mobilização geral, para que fossem tomadas medidas contra a “lei da caça, as coutadas e os aramados”. A par das ocorrências e aproveitando a onda de agitação, os guardas-florestais auxiliares, funcionários dos couteiros, reuniram-se na Mata Nacional da Machada, também no Barreiro, e reivindicam: dependência do Estado e assunção das verdadeiras atribuições policiais; afastamento dos “patrões-feitores”, que assim abdicavam de intervir nos assuntos do policiamento; fiscalização em patrulha; criação de sindicatos; direito à transferência, após um ano de serviço efectivo; residir em aglomerados populacionais, criando para o efeito habitações condignas; inclusão dos guardas da venatória e guardas-rios na corporação, porque não fazia sentido que existissem três fardas diferentes a desempenhar tal missão; definição de um horário de trabalho que 490 491 Idem, n.º 389, 3-06-1974, p. 8 Idem, ibidem. 268 contemplasse a semana de sete dias, com direito ao subsídio de férias e décimo terceiro mês 492. As reclamações dos guardas-florestais são justas, tendo em consideração o risco profissional e isolamento a que foram votados durante anos consecutivos, circunstâncias que explicam a precariedade de emprego e o abandono permanente das zonas de caça 493. Aumentam, assim, os protestos por todo o Alentejo. No Crato, por exemplo, onde grande número de caçadores se reuniu para discutir problemas relativos à caça. No final, comprometeram-se a enviar à Junta de Salvação Nacional as principais reivindicações dos caçadores locais, que se resumiam, na essência, à extinção das coutadas e aramados, pois as existentes na região, quase na totalidade, se destinavam ao negócio. Por estes motivos, reivindicam a criação de uma única lei de caça e a estatização da sua administração. Igualmente no Barreiro, os caçadores tomaram idêntica posição, tal como em Santarém, onde se agruparam cerca de 1000 indivíduos, por iniciativa da Associação de Caça e Pesca e Protecção da Natureza do Ribatejo e dos representantes das Comissões Venatórias Concelhias aprovaram uma proposta, que enviaram ao Ministro da Economia 494 , na qual reivindicam a extinção imediata do Conselho Superior da Caça; demissão da Direcção da Comissão Venatória Regional de Sul e sua substituição por uma Comissão Administrativa, composta por um caçador de cada distrito eleito democraticamente por representação dos caçadores das Comissões Venatórias; substituição do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca pelo Departamento Nacional da Caça e Pesca 495. Reclamam também a extinção de todas as “formas de feudalismo estabelecidas pelo regime fascista, coutos ou aramados e as coutadas comunitárias”, que eram uma “tentativa fascista para anular o descontentamento crescente que reinava entre os caçadores”; exigiam que as áreas destes coutos fossem entregues à administração das Comissões Venatórias Concelhias até à estruturação total dos serviços de caça; que as Comissões Venatórias constituíssem reservas no que se referia a perdizes-vermelhas, faisões e lebres e onde a abundância de coelhos-bravos causasse prejuízos à agricultura se permitisse democraticamente os caçadores a correcção da sua 492 Idem, n.º 390, 17-06-1974, p. 8. Mário Bastos, ob. cit. p. 99 e ss. 494 Idem, ibidem. 495 Notícia publicada no Diário do Ribatejo e reproduzida no Jornal de Caça e Pesca n.º 391, 3-07-1974, p. 3. 493 269 densidade; abertura dos “coutos-aramados” ao livre exercício da caça; que as propriedades com interdição de actividade venatória, não constituíssem feudo dos funcionários dos serviços florestais, mas simples reservas de caça; que as Comissões Venatórias procedessem a repovoamentos e a constituição de grupos de trabalho para regularem o exercício venatório; regulamentação dos trabalhos referentes a cada distrito com vista ao planeamento e ordenamento cinegético nacional 496. Na Beira Alta, a Comissão Venatória da Guarda, além de reivindicar que os caçadores fossem ouvidos, aconselhou o limite de dois dias de caça por semana (quintas-feiras e domingos); a supressão das coutadas e aramados (para satisfazer uma reivindicação das Comissões Venatórias Concelhias) e, em sua substituição, a criação de reservas em todas os concelhos; a extinção do caçador profissional 497. Em 1 de Julho de 1974, na cidade de Beja, perante a evolução dos acontecimentos, muitos caçadores reuniram-se para discutir e aprovar pontos fundamentais da futura lei da caça, designadamente a extinção do Conselho Nacional da Caça e das Comissões Venatórias regionais, órgãos “eleitos e servidos por membros de formação fascista, que não visavam os interesses da caça e dos caçadores, mas da alta burguesia apadrinhada”, de modo a servir apenas a minoria que julgavam constituir a Nação Portuguesa 498. Tentaram inclusive constituir um órgão principal, com sede em Lisboa, que superintendesse a caça em geral e garantisse a autonomia dos órgãos distritais, bem como o funcionamento dos órgãos concelhios em ligação com as distritais, todos eleitos democraticamente e rodeados de especialistas; a revisão urgente da lei da caça no intento de extinguir as coutadas; abertura dos aramados e manutenção como reservas de caça de todos os parques nacionais, perímetros florestais, centros de colonização interna existentes; criação de reservas geridas pelo Estado; restrição dos dias de caça a quintas-feiras, domingos e feriados nacionais; fixação do número de peças de caça por cada dia de caça; proibição da caça de batida à perdiz-vermelha; limitação das linhas de caçadores ao máximo de seis caçadores por grupo, separados 500 metros em relação às outras linhas; proibição do uso da carabina de pressão de ar; autorização do uso do furão em certas zonas; aumento do número de guardas-florestais; condenação dos transgressores da lei da caça 499. 496 Idem, ibidem. Idem, p. 8. 498 Idem, n.º 392, 17-07-1974, p. 3. 499 Idem, ibidem. 497 270 A euforia venatória crescia por todo o país. Em Setúbal, a capital de distrito que congregava milhares de caçadores imbuídos de ideais revolucionários, durante um plenário, no qual se juntou uma multidão, a maioria decidiu acabar com as coutadas e os latifúndios; limitar os dias de caça a sábados, domingos e feriados nacionais e proibir a venda da caça 500. No entanto, as movimentações não aconteciam apenas no Sul. Também a Comissão Venatória Regional do Norte, que garantia representar cerca de 36 000 caçadores nortenhos, reunida no pavilhão do Estádio das Antas, entre outras propostas, aprovou a abertura aos caçadores dos aramados, terrenos da Junta de Colonização Interna e os perímetros florestais. Quanto às coutadas, embora não pedissem a sua extinção, condicionavam a fruição a regras idênticas aos caçadores do terreno livre, nomeadamente os mesmos dias de caça. Tal como vimos, igualmente outras regionais pediam a supressão do profissionalismo venatório e a constituição de uma comissão composta pelas direcções das três Comissões Venatórias Regionais, no propósito de se libertarem, total e definitivamente, da tutela dos Serviços Florestais 501. Percorrendo o território nacional, encontramos as Comissões Venatórias de Tomar e Famalicão reunidas em plenários com centenas de caçadores a solicitarem a supressão das coutadas e redução dos dias de caça 502. Todo este turbilhão de gente obcecado pela alforria venatória exigia duas reivindicações: uma medida radical, a abolição das coutadas e aramados; uma solução imediata, o terreno livre e reservas de caça controladas pelo Estado. O Governo Revolucionário fez-lhe a vontade. 500 Idem, p. 7. Idem, n.º 393, 3-08-1974, p. 1. 502 Idem, n.º 394, 17-08-1974, pp. 7-8. 501 271 3. Extinção dos aramados: o rumo da desordem Após a Revolução de Abril de 1974, cresceu por todo o Alentejo o ambiente de contestação venatória, manifestado nas dezenas de plenários de caçadores nos vários concelhos. O objectivo consistia em destruir o corporativismo venatório do Estado Novo, associado à máxima da liberdade de caçar. Tais ocorrências induziram o Governo Provisório chefiado por Vasco Gonçalves a publicar o D.L. n.º 354-A/74, de 14 de Agosto 503. Conforme se reconhece pela leitura do diploma, entra-se na fase da socialização dos recursos faunísticos, ou seja à eclosão da cultura do terreno livre. Nesta circunstância, ante o novo quadro social económico e político, quais seriam as transformações profundas na sociedade venatória portuguesa, em que sectores e com que efeitos se repercutiram nos caçadores? Responder a estas questões obriga-nos a percorrer o imenso espaço do Alentejo no qual coabitaram durante largos anos couteiros e caçadores do terreno livre. Sabe-se à luz do nosso direito, que a principal categoria de associações públicas foi, antes do 25 de Abril de 1974, constituída por organismos corporativos. Na verdade, a estrutura constitucional do Estado incluía a organização corporativa – a qual compreendia, num primeiro nível, os Sindicatos, os Grémios, as Casas do Povo e as Casas dos Pescadores; num segundo nível, mais acima, as federações e uniões em que se agrupam esses organismos; num terceiro nível, no topo do sistema, as corporações, que integravam todos os organismos de um determinado sector. Nestas se incluíam as Comissões Venatórias. Não há hoje – sabido é – qualquer organismo deste tipo na ordem jurídica nacional, pois a organização corporativa foi desmantelada. Porém, apesar de terem desaparecido os organismos corporativos, a categoria das associações públicas continua a existir no nosso direito, hoje porventura com maior nitidez conceitual do que na fase do regime corporativo. Elas não constituem propriamente uma figura nova nos quadros do direito público, mas é nova a sua utilização e recente o aumento da sua importância qualitativa e quantitativa – a demonstrar a crescente complexidade dos modelos organizativos da Administração Pública moderna, que recorre com frequência à 503 Diário do Governo, I Série, n.º 189, de 14-08-1974. Veja-se ainda rectificação no Diário do Governo, I Série, n.º 207, 5-09-1974. Assumia a pasta do Ministério da Economia, que tutelava a Secretaria de Estado da Agricultura, Emílio Rui da Veiga Peixoto Vilar. 272 colaboração de particulares e adopta cada vez mais “instâncias e técnicas participativas e contratuais” 504. O D.L. n.º 354-A/74 aboliu os aramados (Art.º 22.º, n.º 1), que passaram a ser livres para o exercício da caça. O mesmo princípio se aplicava aos terrenos abrangidos pela alínea a), do n.º 1, dos artigos 63.º a 65.º, do Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967, sempre que tivesse adquirido regime correspondente às coutadas. A disposição contida no Art.º 23.º obrigava, porém, os proprietários a retirar a sinalização nos terrenos onde cessassem os pressupostos da proibição das culturas, previstos no citado artigo 63.º, sob pena de incorrerem em multa igual a dez vezes a taxa aplicável às coutadas. Desta maneira, o Governo, “em conformidade com os princípios da democratização da vida nacional” considerou imperativo nacional rever a lei da caça “nos seus aspectos fundamentais e em ordem a harmonizar, tanto quanto possível, os diferentes interesses das camadas da população envolvidas nesta actividade” 505 ; o imperfeito critério de ordenamento cinegético responsável por muitas desigualdades na actividade venatória justificou a revogação de grande parte das disposições, tais como, a limitação da concessão de coutadas e substituição da exploração tradicional individualista por formas comunitárias e associações que beneficiassem o maior número possível de caçadores. Estranhamente, o diploma manteve o negócio da caça restringido às coutadas turísticas, quando em Portugal não havia uma única concessionada 506 . Em alternativa, o Estado assumia a função de gestor da caça colectiva, através do patrocínio às novas zonas de caça condicionada 507. O Governo reconheceu a grande complexidade de alterar substancialmente a lei. Por essa razão, apenas modificou os pontos “justos e essenciais” para os caçadores, deixando em aberto, logo que as “instituições democráticas do país se consolidassem”, o intento de formalizar um regime que traduzisse uma opção fundamental sobre o exercício da caça 508 ; defendeu a consagração da caça como recurso natural renovável, 504 A doutrina portuguesa mais antiga não conhecia a figura das associações públicas: ainda no princípio do século XX, além do Estado e das autarquias locais, só se fazia referência aos institutos públicos e aos institutos de utilidade pública, os primeiros considerados como elementos da Administração, os segundos como entidades privadas. Cf. J. Caeiro da Matta, Pessoas sociais administrativas (Princípios e teorias), Coimbra, 1903, pp.86 e 103. 505 Preâmbulo do D.L. n.º 354-A/74. 506 Fundamentamos a nossa posição no estudo que fizemos sobre o Alentejo. Mário Bastos, ob. cit. 507 Doravante, passaremos a designar zonas de caça condicionada por ZCC. 508 Preâmbulo do D.L. n.º 354-A/74. 273 sujeita a normas de ordenamento cinegético em igualdade de “oportunidades entre ricos e pobres e, em harmonia, com o aproveitamento e valorização do património agrário” e a conservação da Natureza 509. Enfim, consagrou-se o poder das Comissões Venatórias que passaram a ser constituídas por três caçadores efectivos e um substituto, residentes no concelho, eleitos pela maioria dos caçadores residentes na mesma área, proprietários, usufrutuários, enfiteutas ou arrendatários. As Comissões Venatórias regionais, por sua vez, eram formadas por quatro caçadores efectivos e dois substitutos, residentes na região e eleitos pelos representantes da maioria das comissões concelhias respectivas, ou pelas direcções das associações de caçadores legalmente constituídas, com sede na região, cabendo um voto a cada um dos membros. Faziam ainda parte, dois técnicos da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, nomeados por despacho do Secretário de Estado da Agricultura, facto que não agradou aos caçadores devido ao peso excessivo da intervenção do Estado. Na verdade, estes técnicos dos Serviços Florestais passaram a coordenar as Comissões Venatórias, além do planeamento das acções de polícia e fiscalização da caça; fomentavam e desenvolviam o associativismo dos caçadores, a criação de coutadas comunitárias e sugeriam a constituição de ZCC, para além da promoção de sessões de esclarecimento e divulgação das normas que regulavam o exercício da caça. As coutadas, que não foram suprimidas neste quadro legislativo, foram mantidas nos termos da lei (Art.º 89.º), apesar de se proibir o coutamento dos terrenos cujo aproveitamento cinegético pudesse contender as práticas agrícolas (Art.º 90.º). Por esta via, só podiam ser coutados os terrenos que oferecessem condições indispensáveis ao fomento e protecção da caça, cuja exploração devia ser ordenada (Art.º 91.º), enquanto os terrenos das coutadas, de feição “predominantemente florestal”, ficariam submetidos ao regime florestal de simples polícia. A partir de 31 de Maio de 1975, passou a ser restrita a determinadas entidades requerer a concessão de coutadas, mas limitadas a um conjunto que não excedesse a área total de 1000 has. Por conseguinte, cada associação de caçadores não podia 509 Idem, ibidem. 274 administrar mais de 3000 has em regime de coutada 510 . O caçador não podia associar- se em mais de três coutadas, obrigando-se a um número mínimo de vinte sócios por associação, com o compromisso de um quarto do seu total, pelo menos, residir habitualmente em cada um dos concelhos onde se localizavam as coutadas administradas pela associação, como meio de garantir o exercício venatório e apoio ao caçador local 511. Estabelecia-se um prazo máximo de seis anos para a concessão de coutadas, prorrogável por períodos sucessivos de dois anos; proibia-se a cobrança de taxas nas coutadas como contrapartida do direito de caça, salvo nas coutadas turísticas, cujo preço seria fixado conjuntamente pelos Secretários de Estado do Comércio Externo e Turismo e da Agricultura 512 ; fixaram-se os limites de áreas mínimas e máximos de coutadas 513. A fim de garantir as medidas anteriores e a contento de uma massa indiferenciada de caçadores, os couteiros, com áreas excedentárias, eram obrigados a reduzir a área até ao limite legal, sob pena de multa igual a dez vezes a taxa paga na anterior época venatória; a abrir os “corredores”, tão caros aos caçadores locais, aspiração que constituía uma reivindicação desde o tempo do salazarismo 514. A área coutada submetida a regime de exploração não colectiva, em cada concelho, não podia exceder o limite máximo de 20% da sua área total. Porém, no regime de exploração colectiva, esse limite seria fixado pelo titular da pasta que dispunha do poder discricionário 515. 510 As associações de agricultores nos terrenos por si explorados, desde que não tivessem individualmente áreas superiores a 50 has; as coutadas comunitárias ficavam acessíveis apenas às Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia, Juntas dos distritos autónomos, Misericórdias, Associações e Fundações de utilidade pública, Comissões Venatórias, Associações de Caçadores legalmente constituídas; outras pessoas colectivas; os proprietários de terrenos, bem como o usufrutuário, o enfiteuta ou o arrendatário, individualmente ou em grupo. Veja-se os artigos 94.º e 98.º do D.L. n.º 354-A/74, de 14 de Agosto. 511 Art.º 100.º. 512 Art.º 103.º. 513 As coutadas não poderiam ter áreas inferiores nem superiores, respectivamente, às seguintes: 50 has e 1 000 has no continente; b) 20 has e 250 has nas ilhas adjacentes. Os conjuntos das coutadas contíguas não poderiam exceder a área de 2 000 has no continente; 500 has nas ilhas adjacentes, muito embora esses limites ficassem ao critério discricionário do titular da pasta da Agricultura, tratando-se de coutadas com fins turísticos ou coutadas destinadas à exploração de caça maior. Veja-se Art.º 104.º do citado diploma. 514 Que acabou expressa no Art.º 129.º do Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto. Sobre o problema dos corredores, veja-se Mário Bastos, ob. cit., pp. 46, 50, 62, 66, 71, 82 e 100. 515 D.L. n.º 354-A/74, Art.º 108.º. 275 As taxas a pagar pelas coutadas eram proporcionais às áreas, mas as coutadas comunitárias beneficiavam de uma isenção de taxas durante os cinco anos de existência, após o que pagariam 25% das taxas em vigor 516. A lei penalizou os couteiros que reservassem para si, ou para os seus sócios ou para aqueles a quem autorizassem o exercício da caça, com o agravamento em triplo das taxas previstas no Art.º 113.º, bem como os concessionários locadores que arrendassem as coutadas a pessoas colectivas ou singulares, ou a fruição exclusiva (Art.º 130.º). Punia com multa de 30 000$00 o arrendamento verbal de coutadas ou por prazo inferior a três anos, ou se não respeitassem as restrições da caça que fossem estabelecidas no contrato de arrendamento. O concessionário obrigava-se ainda a pagar ao Estado 5% do preço acordado pela locação 517. Tal como no Estado Novo, os concessionários estavam obrigados a remeter aos Serviços Florestais o comprovativo do pagamento da respectiva taxa, cuja falta dentro do prazo constituía a perda da concessão, e a contribuir em espécies para o repovoamento dos terrenos livres, das ZCC e das coutadas comunitárias situadas nos concelhos de localização da coutada, mediante requisição à Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas ou por propostas das Comissões Venatórias regionais 518 . O diploma propunha a constituição de ZCC com fins de investigação e experimentação cinegética, podendo o Estado, por força da lei, ou vontade do concessionário, caso se verificasse a extinção de uma coutada, constituir nesse terreno uma ZCC com a faculdade de transferir a gestão para as entidades a que se referia o Art.º 132.º do diploma. Os caçadores passaram a estar dotados de uma estrutura democrática de associações, com representatividade dos agricultores, “estando acautelados os seus interesses pela faculdade de recurso das decisões lesivas da agricultura”. Como o diploma consagrava o “carácter técnico” das atribuições das Comissões Venatórias, o Estado intervinha na futura constituição das CVR, através da nomeação de dois técnicos da Secretaria de Estado da Agricultura. 516 Por exemplo, até 200 has, para qualquer superfície, pagava-se a taxa de 7 000$00; por cada has a mais, de 201 a 500 has, 35$00; além de 500 has foi fixada a quantia de 70$00 (Art.º 113.º). 517 Artigos 129.º a 136.º. 518 Artigos 115.º a 119.º. 276 Actualizaram-se as taxas para a concessão da carta de caçador; foram extintas as licenças com fim lucrativo e determinou-se que os antigos caçadores profissionais tivessem prioridade na integração como guardas-florestais assalariados da DGSFA 519. A lei da caça foi ao encontro das reivindicações da maioria dos caçadores e Comissões Venatórias, ao determinar a abertura dos aramados à fruição indiferenciada de caçadores, que passaram a terrenos livres de caça, embora obrigados a entrarem nas propriedades pelos portões existentes no seu perímetro, o que não veio a acontecer, pois a inexistência de pontos de passagem em quase toda a extensão do arame farpado, impeliu muitos caçadores impacientes a destruir as cercas com o uso de alicates ou a derrubar os postes. A lei restringia ainda a actividade venatória exclusivamente aos domingos, quintas-feiras e dias de feriado nacionais (Art.º 29.º); fixava limites diários máximos de abate por caçador, assegurados pela competente fiscalização (artigos 35.º a 71.º) 520. Por outro lado, a lei da caça definiu as espécies a abater baseada no cumprimento dos acordos internacionais, que até aí não haviam sido cumpridos pelo Estado Novo, algumas das quais acordadas por convenção, mas sem integral execução 521 . Outra inovação, a contento dos caçadores, foi a proibição da caça de batida, tanto nos terrenos livres como nas coutadas (excepto com fins turísticos, Art.º 46.º); proibia-se a perseguição e captura de perdizes-vermelhas a cavalo, assim como caçá-las por qualquer outro processo que não fosse a tiro ou de altanaria (Art.º 47.º); interditava-se a caça ao pombo-bravo nas dormidas, como modo de preservar o sossego (Art.º 65.º, n.º 4); proibia-se “enxotar” ou “abater” caça com o fim de a conduzir de uns terrenos para outros (Art.º 79.º); interditava-se o uso de espingardas automáticas de mais de três tiros, salvo quando os carregadores fossem transformados de modo a admitir apenas dois cartuchos (Art.º 76.º). Passou também a ser proibido formar linhas ou grupos de mais de cinco caçadores, salvo na caça às lebres a cavalo e de “batida” às espécies permitidas; formar 519 Por exemplo, em Junho de 1974, só no distrito de Beja foram emitidas 678 licenças, das quais duas com fins lucrativos (uma no concelho de Odemira e outra em Serpa). Veja-se Estatística das licenças de caçar concedidas no período de 1/60/1974 até 5/7/1974 pelas Câmaras Municipais do distrito de Beja, Beja, Governo Civil, 12-071974, AGCB. 520 D.L. nº 354-A/74, p. 894. O Governo, porém, confiava que a principal garantia do cumprimento da lei estava na consciência de cada caçador. 521 Finalmente proíba-se o abate do lince, lontra e o bufo real, espécies ameaçadas de extinção, quando por toda a Europa desde longa data se encontravam protegidas. 277 paralelamente duas ou mais linhas de caçadores, salvo a distância de 300 metros entre os caçadores das “pontas” (Art.º 81.º) 522. Os prejuízos agrícolas causados pelos recursos bravios e o modo de os evitar, permaneciam sob a responsabilidade da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, designadamente a correcção de espécies sugeridas pelas Comissões Venatórias ou pelas associações de agricultores. Também o direito à indemnização, por aqueles que sofressem prejuízo provocado por animais bravios, estava consagrado nos artigos 86.º a 88.º. Com o fim de por termo à especulação dos preços cobrados por autorizações para caçar, reserva-se exclusivamente aos concessionários das coutadas turísticas e comunitárias a faculdade de exigir o pagamento de um preço àqueles que exercessem a actividade cinegética nos seus coutos, num regime controlado pelo Estado. O legislador reconhecia o valor suplementar do rendimento da caça para a agricultura, razão pelo qual se institui um regime favorável aos pequenos agricultores que se associassem em coutadas. Também se autorizou o arrendamento de coutadas com incentivos que iam desde a isenção de taxas aos arrendatários que fruíam em comum com os caçadores. No mesmo sentido, os proprietários onde se instalassem as ZCC auferiam uma renda a regulamentar 523 . Mas a ambição do Governo não ficou por aqui. Embora mantendo as medidas reguladoras do comércio e transporte de caça, pretendia controlar o número de peças abatidas através da operação de selagem previstas no Art.º 186.º e 189.º do D.L. n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967 (que não fora revogado). Porém, esta pretensão não foi aplicada, simplesmente porque era técnica e humanamente impossível de concretizar. Para combater os infractores e disciplinar a actividade venatória, a Lei criou a figura do “caçador vigilante”, inspector da actividade venatória, investido de poderes para denunciar os infractores. A fiscalização da caça, além das entidades previstas no Art.º 235.º do Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967 522 524 foi atribuída, ab novo, a Também aqui os caçadores fizeram ouvidos de mercador. Como iremos ver, as linhas ultrapassavam com facilidade tal limite legal. 523 Idem, ibidem. Refira-se, contudo, que a promessa não foi concretizada, pois os proprietários jamais foram indemnizados. 524 A polícia e a fiscalização da caça competiam a todas as autoridades administrativas e policiais e aos seus agentes e, em especial, aos funcionários e agentes da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, membros das comissões venatórias e das comissões regionais de pesca, guardas especiais de caça e guardas-rios da Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos, à Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, 278 estes vigilantes que o Governo numa primeira saída do diploma quis equiparar a agentes de autoridade, depois de ajuramentados perante o juiz de direito da comarca. Eleitos pela assembleia de caçadores do concelho do seu domicílio, por uma época venatória, sob a iniciativa da comissão venatória concelhia, não podiam ultrapassar 20% do total dos caçadores residentes no respectivo concelho 525. Adoptou-se a ideia de que residia no comportamento dos próprios destinatários das normas a garantia do seu cumprimento. A ideia, apesar de legitimada à luz do abuso, indisciplina e furtivismo imperantes, era de difícil aplicação prática, pois transferia para os caçadores locais a competência para elegerem os seus vigilantes durante uma época venatória. Na prática, a sua função veio a ser reduzida, como meros auxiliares das autoridades fiscalizadoras da caça, com o dever de participar todas as infracções que presenciassem 526. A medida, longe de funcionar como os olhos e ouvidos da democracia venatória, pelo contrário, mereceu forte contestação, conforme se verificou no plenário de caçadores em Beja, no dia 30 Agosto de 1974, no qual se denunciou a função “pidesca dos vigilantes” 527. Com o intuito de agradar às multidões em exaltação, suspendeu-se o Conselho Nacional da Caça, pela sua reduzida participação nas questões da caça, muito embora se aceitasse a necessidade de um órgão que reunisse os interesses gerais junto das populações. Até que fosse criado um novo órgão e, para maior controlo do Estado, foram nomeados dois técnicos da DGSFA para cada comissão venatória regional e distrital, que apoiavam as eleições dos membros das comissões concelhias 528. A extinção da figura do caçador de contrato, com fim lucrativo, correspondeu aos inúmeros protestos dos caçadores que se vinha manifestando, desde longa data, contra a sua actividade profissional. Como alternativa, poderiam ser concorrentes ao cargo de guarda-florestal assalariado da DGSFA, “gozando de preferência na admissão”, desde que reunissem os “requisitos exigidos por lei” 529 . Obrigava-se as entidades que Polícia de Viação e Trânsito, Polícia Marítima, Guarda-Fiscal e Inspecção-Geral das Actividades Económicas. Os guardas-florestais auxiliares contratados para a fiscalização de coutadas ou reservas de caça, só tinham competência para a polícia e fiscalização nas áreas das respectivas coutadas ou reservas, embora com o dever de participar à DGSFA, todas as infracções cometidas fora dessa área, que tivessem presenciado ou conhecimento por outro modo. Veja-se Art.º 235.º do Decreto n.º 47 847. 525 Os caçadores vigilantes da caça exerciam a fiscalização exclusivamente no concelho onde eram eleitos, não estando, porém, inibidos de comunicar as infracções detectadas fora dessa área. D.L. n.º 354-A/74, Art.º 158.º. 526 Rectificação ao D.L. n.º 354-A/74, de 14 de Agosto, publicado no D.R., I Série n.º 207, de 5 de Setembro. 527 Jornal de Caça e Pesca n.º 401, 1-12-1974, p. 3. 528 Artigos 160.º a 168.º. 529 Art.º 173.º. 279 explorassem coutadas a elaborar planos de exploração cinegética que seriam enviados à DGSFA até 31 de Dezembro de 1974. As alterações da lei da caça introduzidas por este normativo previam, em matéria de coutadas, a restrição da exploração da actividade cinegética exclusivamente nas coutadas turísticas, como carácter excepcional. Nesse sentido, foi criado na DirecçãoGeral de Turismo, como requisito prévio, um registo especial para as empresas que se dedicassem ao ramo. A fim de evitar que tais coutadas fugissem ao escopo social para que foram instituídas, estabeleciam-se normas: permitia-se a cobrança de uma quantia pela autorização de caçar e fixava-se um preço por cada peça abatida; proibia-se que os cidadãos residentes em território nacional exercessem o acto cinegético fora dos dias agendados para os caçadores do terreno livre. Uma das medidas sociais mais importantes aplicava-se às empresas concessionárias de ZCT que ficavam obrigadas a autorizar o exercício gratuito da caça aos caçadores residentes no concelho, ficando a cargo da DGSFA o limite dos quantitativos e a garantia de igualdade de oportunidade de acesso a todos os caçadores concelhios 530. À Direcção-Geral de Turismo, por sua vez, competia apreciar os planos técnicos e a capacidade financeira para oferecer um serviço de qualidade. O requerimento, que servia para a obtenção do fim turístico da coutada, devia ser acompanhado de um conjunto de requisitos indispensáveis 531 . As coutadas com fins turísticos podiam, à face da lei, exceder o limite máximo da área fixado na alínea b) do artigo 195.º do D.L. n.º 354-A/74, quando o respectivo programa de exploração e os interesses agrários o justificassem (Art.º 8.º); a selagem das peças de caça abatidas era obrigatória, como forma de controlo, forçando cada caçador a transportar para fora da coutada um número de peças igual ao limite máximo diário autorizado para cada espécie pela lei geral. Autorizava-se a caça de batida, que seria fiscalizada pela DGSFA. Até 31 de Maio, de cada ano, os concessionários 530 Artigos 13.º a 14.º do D.L. n.º 733/74, de 21 de Dezembro, D.R., I Série, n.º 297. Tais como, identificação da entidade exploradora, indicação do início da exploração, modalidades e processos de caça previstos, espécies cinegéticas a caçar, indicação do regime a que as caçadas ficavam submetidas, previsão da utilização das espécies criadas em cativeiro e do número de caçadores por época venatória, descrição do aproveitamento agro-silvo-pecuário dos terrenos coutados, indicação das vias de comunicação, meios de transporte e equipamento hoteleiro, indicação do conjunto de serviços a oferecer, planos de promoção a realizar e outros elementos considerados necessários. Veja-se os artigos 1.º a 7.º do citado diploma. 531 280 obrigavam-se a participar os resultados da exploração cinegética sob pena da extinção do reconhecimento do fim turístico das coutadas 532. Enfim, a promulgação do D.L. n.º 354-A/74 surgiu como a primeira lei democrática que abriu o caminho à liberalização do direito de caçar. O desaparecimento das limitações territoriais ao exercício venatório, primeiro com a extinção dos aramados e posteriormente das coutadas, veio ao encontro dos desejos da grande maioria dos caçadores portugueses. Tal liberalidade, que originou o paradoxo da liberdade de caçar, exigia certa ponderação por parte dos praticantes e adequada salvaguarda dos responsáveis pela problemática venatória. Se é certo que as coutadas, pela injustiça social que em alguns casos representaram, se tornaram motivo do desagrado de muitos caçadores, não é menos verdadeiro que nem só facetas negativas as caracterizaram. Efectivamente, a existência de coutada representou um papel positivo na conservação de todas as espécies venatórias, que seria injusto não reconhecer. A abolição do direito de caçar privado, o extraordinário empolamento do número de novos caçadores, e por último, o espectacular constrangimento, ou mesmo invasão das áreas tradicionalmente mais povoadas de caça necessitava de solução rápida, sobretudo medidas capazes de evitar, que em curto espaço, se desbaratasse o património cinegético dessas zonas. Numa primeira fase, mediante um ordenamento cinegético, pouco mais se poderia ambicionar que a preservação das espécies, a motivação dos caçadores pelo respeito e carinho que lhe deveriam merecer. Com efeito, as diligências, as demoras, as dificuldades e impasses de que se revestiu a publicação dos diplomas que haviam de reger a prática venatória, limitaram no tempo a possibilidade de orientar com maior eficiência esse propósito. Estudos fundamentados e experiências colhidas noutros países possibilitavam que tal ordenamento devia apoiar-se no encerramento, pelo espaço de dois anos, de áreas correspondentes a 25% da superfície de cada concelho. Porém, era evidente que não satisfazia os interesses dos caçadores, nem dos agricultores, estabelecer uma simples rotação de zonas abertas ou fechadas ao exercício da caça, cuja incidência territorial se baseava apenas num factor numérico. Impunha-se, por isso, ir mais além, ligar a técnica e o conhecimento científico dos especialistas à experiência dos caçadores, tarefa que, como veremos, não foi 532 Artigos 12.º a 24.º. 281 conseguida por falta de organização. O fundamento do ordenamento residia na estratégia de localização das reservas e no seu dimensionamento tal que pudessem verdadeiramente funcionar como zonas de refúgio, de procriação e irradiação de caça. De um modo geral, a dimensão das reservas e os critérios de localização no terreno, nem sempre terão sido os mais adequados, quer no campo dos interesses dos caçadores, quer dos agricultores de quem, não podemos esquecer, muito depende a sobrevivência das espécies. Em suma, era indispensável motivar os caçadores para uma participação efectiva na resolução dos problemas cinegéticos, colhendo junto das bases opiniões válidas que permitissem corrigir os erros grosseiros que foram sucessivamente cometidos: a localização das reservas de caça, a sua dimensão, os problemas da densidade das espécies, para que os naturais antagonismos com os agricultores se não agudizassem e extremassem. Outro aspecto que o decurso do tempo fez esquecer, reportava-se à sinalização das reservas, na maioria precária e excessiva distância entre tabuletas, ao ponto de se fixarem milhares de placas em árvores, tornando-as de difícil referência, ou mesmo muito pouco visíveis, ou então, espaços enormes sem quaisquer sinais, entretanto tombados, por deficiente e atabalhoada colocação nos postes. Todo este imbróglio carecia de rectificação na medida em que, uma reserva, jamais devia funcionar como ratoeira para incautos e bem intencionados que, não tendo o prévio cuidado arriscavam-se às sanções da lei, da qual sendo intransigentes defensores, acabaram por se tornar vítimas. Ao lado, os transgressores aproveitaram-se da deficiência do sistema para arrancarem as placas durante a noite com vista a caçarem no dia seguinte como de terreno livre se tratasse. Levados a juízo, muitos infractores ludibriavam os magistrados. A medida político-social mais eficaz instituída pelo Governo foi, sem dúvida, a extinção dos aramados, uma herança do D.L. n.º 47 847. Os aramados, ao interditarem o acto venatório, contribuíam para o extermínio consecutivo da fauna no terreno livre. Este elevado número de “coutos açougueiros” 533 , onde as chacinas em batidas eram constantes, numa região geográfico-cinegética paradoxal, na qual só alguns caçavam em detrimento da maioria. Onde estavam as reservas volantes ou fixas, destinadas exclusivamente à aclimatação dos elementos que constituíam os recursos bravios? 533 Para utilizarmos aqui a expressão repetidamente usada por Nabais da Cunha, no Jornal de Caça e Pesca. 282 Ao percorrermos a Região do Alentejo, naquele período, reconhecia-se o estado de vergonha a que chegaram os campos com arame farpado disperso, na maioria das vezes, para impedir o direito de caçar, pois gado aí não existia em abundância que justificasse as vedações. Os aramados tiveram uma origem oportunista, mas consentida pela própria lei, porque em princípio se dispunham a serem simples aparcamentos de gado, áreas divididas em zonas, compartimentadas por meio de arames, sebes, estacas, redes, etc.., destinada à pastorícia, ordenada ou descanso do gado, com alternância de locais onde a actividade cinegética era expressamente proibida, inclusive ao próprio proprietário 534. Na realidade, essa restrição não se aplicou. Apesar dos aramados não serem coutadas, funcionavam como tal, por abuso dos seus proprietários, independentemente dos processos burocráticos mencionados na lei para o estabelecimento de uns e outros fossem distintos e regulados pelo disposto no Art.º 65.º e as coutadas pelo Art.º 131.º e seguintes. As únicas afinidades eram duas: ambos estavam sujeitos ao pagamento de taxa ao Estado e a contribuir em espécies para o repovoamento dos terrenos livres, dever que nunca foi cumprido. O aramado, pela sua configuração, não era coutada, conforme se depreende do Art.º 63.º, pois era proibido caçar sem autorização dos respectivos proprietários ou possuidores, como nos terrenos murados e nas terras das coutadas. Como se vê, a própria lei marca a diferença entre o aramado ou a congénere coutada, se não o legislador não teria feito a destrinça sob as duas alíneas. Portanto, nos aramados, não sendo coutadas, as restrições eram evidentes: estavam proibidas batidas às perdizes-vermelhas (que eram autorizadas nas coutadas - Art.º 87.º, alínea a); neles não se podia exercer arbitrariamente a caça com furão - Art.º 82.º, n.º 1); a caça não podia ser vendida, nem mesmo as terras arrendadas, desde que o contrato de arrendamento tivesse a caça por objecto (artigos 152.º e 155.º). Obviamente, neste capítulo havia muito que contar. Vendiam-se, compravam-se, arrendavam-se e subarrendavam-se aramados com a mesma facilidade com “que se 534 O aramado propriamente dito correspondia à área circundada por arame liso de diâmetro não inferior a 3 mm, ou farpado de secção mínima não inferior a 2 mm, preso por estacas ou postos colocados a intervalos não superior a 4 metros. Esclareça-se, que um aramado para reunir as condições legais tinha de ser formado por oito arames, à distância de 20 centímetros e com altura mínima de um metro e meio do solo. Era livre a caça nos terrenos aramados que não estivessem assim estabelecidos, a não ser sob o regime de coutada, mas, para isso, tinham de se encontrar devidamente assinalados com as tabuletas adequadas. Veja-se Art.º 64.º do Decreto Regulamentar n.º 47 847. 283 bebia um copo de água” 535 . Nabais da Cunha alude a um episódio vulgar passado no distrito de Beja durante uma batida, na qual os caçadores do terreno livre, que circundavam a zona limítrofe do aramado, foram corridos pela GNR sob pretexto de que não podiam estar parados à espera das peças de caça que saíam para fora 536. O ódio contra os aramados cresceu, em grande medida, a partir dos finais dos anos sessenta, como reflecte o episódio no primeiro dia do ano de 1974. Depois de cerca de uma centena de caçadores invadir os terrenos aramados da Herdade do Vale do Porco, na freguesia do Lavre, em Montemor-o-Novo, a GNR autuou trinta e cinco 537. Independentemente de outra opinião em torno do assunto, a incursão resguardou-se sempre na permissividade da lei e muitos caçadores resolviam a questão com o pagamento de uma multa, que ia dos 900$00 aos 5 000$00, sem a ocorrência transitar para juízo. Contudo, os mais informados que levavam o caso a juízo, viam a sua reivindicação satisfeita, pelo menos num dos julgamentos em Alcácer do Sal, o pleito foi decidido em seu favor, após ter sido provado que os aramados invadidos não obedeciam aos requisitos legais previstos na lei. Os tribunais, gradualmente fundamentados nesta prerrogativa, passaram a absolver os caçadores, no que se referia à sua continuidade ou sempre que suprimiam os corredores. Em 1974, a ideia de que o aramado se ia estender de tal forma que desaparecia o terreno livre, desenvolveu a consciência de injustiça da lei e as pessoas não se sentiam obrigadas a respeitá-la. Até pelos abusos praticados pelos proprietários invocando como legais aramados e vedações instaladas em condições contrárias à lei 538 , independentemente das taxas a pagar 539 . Neste dilema, Faústo Reis dá razão aos caçadores nas suas contestações aos aramados 540. 535 Testemunho de António Espadinha Nobre Pita, de Alter do Chão, Jornal de Caça e Pesca n.º 379, 3-01-1974, p.7. Calculamos em cerca de 40% as propriedades aramadas que foram arrendadas à margem da lei, presumindose, contudo, que a falta de controlo fiscal e de registo oficial permitam aumentar os dados. 536 Jornal de Caça e Pesca, n.º 380, 17-01-1974, p. 4. 537 Entrevista de Faústo Reis ao autor, Lisboa, 22-10-2000. 538 Jornal de Caça e Pesca, n.º 388, 17-05-1974, p. 4. 539 As taxas variaram ao longo do século XX. O Decreto n.º 12 625, de 3-11-1926 estipulava: até 500 has o pagamento de 250$00 e, por cada has a mais, $50. Pelo Decreto n.º 14 102, de 9-08-1927 mantiveram-se estes valores até 250 has. Todavia, pelo Decreto n.º 47 847, de 14-12-1967 aumentou para 1 200$00 até 200 has e, por cada has a mais: até 1 000 has pagava-se 6$00; além de 1 000 has-8$00. O D.L. n.º 354-A/74, de 14-08-1974, aumentou substancialmente a taxa para 7 000$00 até 200 has e, por cada has a mais, de 201 a 500 has-35$00 e além de 500 has -70$00. 540 Faústo Reis, Entrevista...... 284 4. Defensores e detractores Após a saída do D.L. n.º 354-A/74, não faltaram os detractores e os defensores. Entre outros, o irreverente João Maria Bravo 541 , que defendia a manutenção das coutadas e dos aramados, discordou da autorização conferida para todos os que neles quisessem caçar. Alegou que Portugal iniciava uma fase de reestruturação política, que devia ser secundada por uma recuperação económica acelerada, sem a qual não haveria elevação do nível de vida, maior justiça social, riqueza e melhor distribuição. Em 1952, João Bravo desempenhou as funções de procurador à Câmara Corporativa em representação dos organismos venatórios. Nesse tempo, reformulou um trabalho elaborado pelas Comissões Venatórias, que apresentou como sugestão de alteração à Lei da Caça, mas por motivos de ordem formal e regimental foi rejeitada pela Câmara. A tendência liberal de texto apresentada por João Bravo era inconciliável com a doutrina em que se inspirou o legislador em 1967 que, como vimos, culminou na Lei n.º 2137 e respectivo regulamento (Decreto n.º 47 847). Este texto de lei autorizou os proprietários de terras a reservarem para si a caça nela existente, bastando rodear as mesmas com uma vedação que originou os célebres aramados. João Maria confessou, várias vezes, que os aramados eram incompatíveis com o princípio da liberdade de caçar que defendera na sugestão em 1952, mas que só tomou conhecimento da sua instituição depois de publicada a lei que os consagrou. Tendo sido afastado da Câmara Corporativa em 1959, revelou que nunca mais teve interferência, quer a título oficial, quer particular, na elaboração de qualquer diploma legal relacionado com o exercício da caça. Em 1974, João Bravo após tomar conhecimento que o Governo Revolucionário se preparava para abrir os aramados, os coutos do Estado e os perímetros florestais a uma actividade venatória só limitada em número de dias, mas ilimitada no número de caçadores e de peças que podiam abater, definia numa só palavra o que pensava sobre a matéria: “chacina “ 542. 541 O venador foi director e proprietário da célebre Revista Diana encerrada em 1971, após ter sido suspensa pela Censura na sequência de um artigo publicado com o título “ De mal a pior”. Autor de vários livros, um dos quais, A Caça, foi apreendido pela PIDE três dias depois de posto à venda, salientava que a esmagadora maioria da geração a que pertencia não tivera nos últimos quarenta anos qualquer interferência na vida pública do país. Fechou-se assim um ciclo que se iniciara em 1948 e termina em 1971. A revista voltaria às bancas em 1973. 542 João Maria Bravo – «O momento venatório», Jornal de Caça e Pesca, n.º 392, de 17-07-1974, p. 2. Em 1994, voltou a referir os erros cometidos pelo legislador português quando extinguiu as coutadas, pois, permitiu, a partir de 1975, a caça indiscriminada dentro das reservas e coutos e a inevitável destruição das espécies cinegéticas que os povoavam, sem a percepção das consequências desastrosas da legislação. Jornal de Caça e 285 Negando as acusações que A Capital 543 lhe fizera de ter sido o autor da Lei n.º 2 137, de 1967, admitiu, contudo, que o legislador aproveitou uma parte da sugestão da lei por si apresentada, dez anos antes, à Câmara Corporativa, mas introduziu-lhe alterações de vulto, criando a figura dos aramados, conforme minuciosamente estabelecido no regulamento venatório instituído pelo Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967 544 . Acusação idêntica lhe fez o semanário Expresso, a propósito da constituição da Frente Independente Alentejana, após a Revolução de Abril, quando atacou os donos dos aramados que assim viam: “Esvair-se a possibilidade de continuarem a fazer do Alentejo uma terra de prazeres: os extensos aramados que uma iníqua e imoral lei da caça assinada por João Maria Bravo, em 1967, desencadeou, dando um carácter legal aos campos de concentração propícios à chacina das espécies cinegéticas” 545. João Bravo desmentiu, considerando que se tratava de uma inovação incompatível com o princípio da “ liberdade de caçar”, por si defendida na sugestão. Tal, porém, não significava que concordasse, em vários aspectos, com os aramados aos quais se devia, a preservação dos restos do nosso património cinegético 546 , mas nas actuais circunstâncias de invasão que se avizinhava eles constituíam, juntamente com os perímetros florestais e os coutos do Estado, a reserva, a base, a partir da qual se devia restaurar o património cinegético do terreno livre, para que nessa área a densidade de caça fosse equiparável à das reservas onde a sua perseguição era controlada 547. Pesca, n.º s 824/825, Fevereiro de 1994, p. 4. Veja-se ainda os artigos de João Bravo, «O Momento Político e a Caça», Revista Diana, n.º 253, Maio/Junho de 1974, pp. 16-21. 543 Edição de 21-06-1974. 544 «De semelhante inovação na ordem jurídica portuguesa, inteiramente contrária ao princípio que serve de base à sugestão de lei apresentada, só tive conhecimento depois de publicada a lei em vigor». Revista Diana, n.º 253, Maio/Junho, 1974, pp. 16-17. 545 Idem, p. 17. 546 Idem, p. 19. 547 “ Portanto, permitir a destruição destas tornando-as livres a todos os que nelas queiram matar o mais que possam é um absurdo inadmissível num país que se pretenda civilizado”. O autor, propunha em vez da abertura dos aramados, o pagamento de derramas venatórias, espécie de imposto que as Comissões Venatórias Concelhias cobrariam no valor de dez escudos por cada has aramado que, por sua vez, seria dividido em duas zonas iguais: uma em reserva e outra para zona de caça. Toda a caça de pêlo ficaria ao dispor das Comissões Venatórias Concelhias que, mediante a passagem de senhas de dez ou quinze escudos por coelho e, vinte ou trinta por lebre a abater, originaria um sistema de caçadas perfeitamente controladas. O proprietário – de quem dependia afinal haver, mais ou menos caça – poderia caçar na área não reservada nesse ano, à Comissão Venatória Concelhia, matando nela um número de lebres e coelhos estipulado. O produto da venda de senhas e da taxa permitiria criar uma verba de milhões de escudos para aumentar a fiscalização. (...) A perdiz-vermelha ficaria, por motivos óbvios, excluída do regime que proponho, até porque, além de não ser nociva à agricultura, o seu número relativamente aos dos concelhos é de tal forma mais baixo que não teria interesse como forma de criação de verbas “ Idem, p. 20. 286 Alertou para o morticínio que se avizinhava, a exemplo do que acontecera em 1972, depois do Secretário de Estado da Agricultura abrir os coutos que não tinham regularizado a sua situação administrativa, quer por falta de pagamento das taxas ao Estado, quer por outros motivos. Tal decisão contribuiu para que os coutos fossem invadidos por uma multidão de caçadores que exauriu, sem excepção, todos as espécies cinegéticas existentes. Em Julho e Agosto de 1974, num último esforço, a Revista Diana saiu em defesa dos couteiros e dos proprietários de aramados incentivando à luta contra a sua extinção. Utilizando-se do velho slogan, “temos que reagir”, apelou para os milhares de portugueses que seriam vítimas da “chacina que se preparava”, para suspenderem as normas da futura lei, na parte em que os afectava 548 . Segundo João Bravo, não era com o Governo Provisório,” uma manta de retalhos das mais variadas cores políticas que se conseguia a serenidade indispensável à preparação isenta de uma Lei que correspondia às aspirações da maioria dos portugueses responsáveis” 549. A única solução para resolver o problema venatório português consistia “ em dar um dono à caça”, conforme acontecia nos coutos, para que a actividade venatória deixasse de constituir o “espectáculo de autêntica chacina e pilhagem” e fosse limitada a três dias por semana, como modo de evitar o extermínio da caça no terreno livre. Esta medida foi aproveitada em Maio de 1974 pelas Comissões Venatórias Regionais, mas João Bravo entendia ser uma estranha contradição, pois reclamavam medidas que visavam a protecção do património cinegético nacional mas, ao mesmo tempo, propunham a abertura das reservas existentes para a caça livre 550. Entendeu, assim, em 1974,o Governo criar reservas de uma área considerável – as reservas de ordenamento cinegético – falhas de gestão, onde passou a ser proibido caçar e local de refúgio para a caça acossada nos terrenos marginais. O objectivo aparentemente de aplaudir, acabou por ter resultados relativos, visto que não bastou defender as espécies dos caçadores para estas sobreviverem e se multiplicarem. Além das reservas cinegéticas resvalarem em reservas de predadores, por nelas os daninhos não serem controlados. Como resultado, assistimos a uma destruição de ovos e criações que quase anulou as vantagens da sua criação. 548 Idem, n.º 254, Julho/Agosto de 1974. Idem, n.º 252, Março/Abril de 1974, pp. 25-26. 550 «(...) há quem, honestamente, tenha dúvidas de que abertos a todos os caçadores os aramados e os coutos do Estado onde poderiam campear à-vontade sem qualquer fiscalização de processos de caçar e de matar e qualquer limite de peças a abater, os terrenos, hoje privilegiados, ficariam equiparados, de um dia para o outro, a autêntica terra queimada?». Idem, n.º 252, Março/Abril de 1974, p. 23-24. 549 287 O pior ocorreu quando a lei estabeleceu que as reservas, assim criadas, seriam franqueadas regularmente, alguns anos depois de constituídas, a todos os caçadores que nas mesmas quisessem caçar. Com o anúncio da abertura da reserva, concentravam-se centenas ou milhares de caçadores que destruíam, em poucas horas, os recursos bravios na maior confusão e atropelo às mais elementares regras desportivas. Seguindo este dilema, J. Ennes Ferreira, cronista habitual do Jornal de Caça e Pesca, apoiante da manutenção dos coutos, considerou um “verdadeiro crime” a invasão desenfreada pela horda de caçadores, animada pelo espírito de destruição das “características feudais daqueles que os possuíam”, transformando-os, por igual, em coutos postos à disposição de todos os caçadores. Pela Europa fora, as coutadas eram os locais onde a caça se encontrava organizada, mesmo nos países socialistas, não existia praticamente terreno livre 551. A Comissão Venatória Regional do Norte, após a saída do D.L. n.º 354-A/74 enviou um protesto ao Secretário de Estado da Agricultura, pois os caçadores esperavam “medidas de emergência”, em devido tempo apresentadas pelas Comissões Venatórias Regionais. O diploma foi considerado “tecnicamente errado e omisso em matéria de interesse venatório” (não defendia nem fomentava a caça); “impopular”, porque provocou o “descontentamento geral”, ao excluir o sábado na autorização semanal de caçar e não autorizar diariamente a caça às espécies migradoras até à abertura geral; aumentou exageradamente o custo das licenças e a falta de uma fiscalização. A CVRN queixava-se de certas incoerências expressas na lei, como o aumento das linhas de caçadores e o abate diário exagerado de espécies, em contraste com a redução do número de dias de caça. Por todas estas razões, sugeriu a redução das linhas para um máximo de quatro caçadores, a validade das licenças concelhias extensível aos concelhos limítrofes e a transferência da fiscalização para a tutela das Comissões Venatórias Regionais, que passariam a incluir um representante do Turismo e das Forças Armadas 552. 551 «A nossa estouvada maneira de cada um caçar sempre que lhe apeteça, quando e onde entende e pode, ainda por cima, matar toda a bicharada que apanha a jeito é sistema que deverá considerar-se ultrapassado, por inconcebível com os tempos actuais». Jornal de Caça e Pesca, n.º 393, 3-08-1974, p. 1. 552 Jornal de Caça e Pesca, n.º 397, 1-10-1974, p. 1. 288 José Ennes Ferreira considerou a lei “possível, democrática e disciplinadora do acto venatório e dos limites diários de número de peças a abater, a supressão dos profissionais, a redução dos coutos” 553. O diploma, ao transformar os coutos privados em coutos comunitários, nas várias modalidades que previa, estava no bom caminho. De resto, o decreto não abandonou por completo os couteiros, continuando a permitir que usufruíssem de algum rendimento das coutadas, desde que arrendassem a outros o direito de caçar, ou se dispusessem explorar os terrenos em regime de coutadas turísticas ou comunitárias. Entretanto, como não foram criadas as condições previstas na lei para as eleições das Comissões Venatórias Regionais, o Secretário de Estado da Agricultura, Alfredo Gonzalez Esteves Belo 554 , determinou, que até ao dia 20 de Outubro de 1974, fossem eleitos os representantes dos caçadores para as comissões concelhias e distritais, com base nos cadernos eleitorais organizados pelos Presidentes das Câmaras Municipais a partir do respectivo licenciamento concelhio 555. Posteriormente, para criar condições futuras para as eleições das Comissões Venatórias Regionais constituiu uma comissão administrativa composta por três membros, sendo Presidente, António Joaquim Santos Durão 556. Também, Nabais da Cunha, conhecedor do elevado número de analfabetos, acautelou a necessidade de esclarecer os caçadores através da realização de encontros periódicos nas aldeias, vilas e cidades, funções que competiam às Comissões Venatórias e associações de caçadores, “até para os preparar no futuro exame de caçador”, previsto no Art.º 43.º do Decreto n.º 47 847 557. Neste ambiente de contestação, por todo o país, se faziam plenários de caçadores promovidos pelas Comissões Venatórias Concelhias para discutirem a lei da caça. No dia 22 de Janeiro de 1975, em Évora, na sede da Comissão Concelhia da Regional do Sul, após o debate sobre o D.L. n.º 354-A/74 os caçadores aprovaram, por maioria, a extinção das coutadas particulares e a criação de verdadeiras reservas de caça; diminuição do número de peças por cada jornada de caça, que passaria a ser apenas aos domingos e feriados nacionais; criação de reservas condicionadas com 553 Idem, n.º 398,15-10-1974, p. 2. O titular, que se manteve no cargo de 27-07-1974 a 17-07-1974, durante a vigência do 1.º Governo Provisório, transitou para os 2.º e 3.º Governos Provisórios, respectivamente, de 23-07-1974 a 30-09-1974 e 3009-1974 a 26-03-1975. 555 Idem, n.º 397, 1-10-1974, p. 1. 556 Idem, n.º 402, 15-12-1974, p. 2. 557 Nabais da Cunha, «É preciso esclarecer os caçadores», ob. cit., pp.1 e 8. 554 289 direito de acesso a todos os caçadores do país (dormidas de pombos e abate de rolas na passagem); proibição do uso do furão; lançamento de um imposto a nível nacional sobre todo o material de caça, com vista a uma fiscalização eficiente 558. Muitos foram os caçadores que se dirigiram à tribuna cinegética, no dia 23 de Fevereiro de 1975, na Figueira da Foz, para debaterem o tema “a caça para todos e não para alguns”. Entre as propostas aprovadas, refira-se a defesa da actividade venatória em dias seguidos (sábados e domingos) 559. Também em Beja, durante um plenário de caçadores realizado na concelhia, a maioria defendeu a ideia de transformar as coutadas em reservas de ordenamento cinegético, a reestruturação venatória e a representatividade dos caçadores nos órgãos da caça 560. Seguiram-se os caçadores de Guimarães, em protesto contra a lei da caça. Acusavam os caçadores do Alentejo de ter os “favores da legislação”, que parecia talhada para eles, contrariamente aos colegas do Norte e Centro que “viram sair-lhes o tiro pela culatra”, pois os dias designados para a prática da caça não justificavam uma saída; reivindicam as quintas-feiras, sábados e domingos para a prática do desporto favorito e não aceitam as tabelas em vigor para a licença da caça 561 . Em Sesimbra, um plenário de mais de 200 caçadores escolheu as quintas-feiras e domingos para o exercício venatório. Também, a polémica questão das licenças de caça foi discutida em mais de 180 concelhos, cuja maioria votou pela existência de licenças concelhias 562 . Estamos assim em presença da defesa da caça local protagonizada por caçadores do concelho. Em Outubro de 1975, chegou ao conhecimento dos Serviços de Inspecção de Caça e Pesca, órgão que coordenava a actividade venatória, que nalguns locais do país apareciam indivíduos incitando os caçadores a invadirem as reservas de ordenamento cinegético, criadas pelo Estado, após aprovação em assembleias de caçadores e sob 558 A redução do número de peças abatidas por jornada de caça era o prenúncio da hecatombe que se instalaria nos próximos anos: 10 coelhos; 1 lebre; 5 perdizes-vermelhas; 10 rolas; 5 patos. Idem, n.º 412, 15-05-1975, p. 7. 559 Idem, n.º 407, 1-03-1975, p. 3. 560 Foram ainda debatidas muitas questões, tais como, linhas de caçadores, limites de peças, protecção a algumas espécies, furões, transgressões, penalidades, fiscalização, coutadas turísticas, venda de caça e distribuição de receita. Idem, n.º 411, 1-05-1975, p. 5. 561 Idem, n.º 416, 15-07-1975, p. 7. 562 Idem, n.º 420, 15-09-1975, p. 1. 290 proposta das Comissões Venatórias Concelhias, com vista ao futuro ordenamento do território cinegético 563. Esta notícia, que acabou por ser confirmada, impeliu o Director dos Serviços de Inspecção, Eng.º Faústo Reis, a solicitar a colaboração das forças de segurança a intensificar as acções de fiscalização a partir de 5 de Outubro de 1975, com o apoio do Exército e da Força Área 564 . Porém, apesar dos esforços desenvolvidos, muitas reservas foram invadidas e o seu capital cinegético massacrado 565. Os caçadores do distrito de Beja reunidos em plenário em 1975, nas vésperas da abertura da caça geral, após a queda dos aramados e das coutadas dos “capitalistas” defendiam a sua substituição pelas reservas de caça estrategicamente distribuídas. Contudo, a “reacção” acabou por destruir o “futuro da caça e a mais progressiva lei da caça da Europa – por grupos minoritários e caciques empenhados em desacreditar muitas centenas de caçadores, mediante calúnias e boatos”. Com a extinção das coutadas, como afirmavam, “ganhou-se a primeira batalha contra o latifúndio e deu-se o primeiro passo para a reforma agrária” 566. À margem desta exaltação, em Estremoz, um grupo de proprietários e de caçadores constituía uma associação a fim de requerer a concessão de coutadas e protecção da Natureza. Em Amarante, para debater os problemas da caça, nomeadamente a relação entre a Comissão Venatória Regional do Norte e as concelhias, reuniram-se dezenas de caçadores, presididos pelo médico Babo de Magalhães, acérrimo defensor da transparência dos actos venatórios. 563 A Comissão Venatória Concelhia de Évora, em Outubro de 1975, no uso do poder que a lei lhe conferia, dividiu o concelho em onze reservas de caça, devidamente muradas e assinaladas nas freguesias. Idem, n.º 416, 15-07-1975, p. 7. 564 Idem, n.º 421, 1-10-1975, pp. 1 e 8. Refira-se, aliás, que a informação foi confirmada por Faústo Reis, Entrevista.... 565 Segundo testemunhos oculares colhidos em vários concelhos do Alentejo, raras foram as reservas de ordenamento que escaparam à invasão. Usualmente, os vândalos praticavam as enxotas (espantando as espécies cinegéticas de dentro para fora da área reservada), durante a madrugada, ou por incursões esporádicas de grupos de caçadores que se infiltravam no seu interior. Argumentação que tomámos com base nos Inquéritos aos caçadores no Alentejo, 1995....Esta posição é corroborada pelo antigo responsável da CFE, Eng.º Francisco Lopes. 566 «Reunião do Conselho dos Caçadores do Distrito de Beja», Jornal de Caça e Pesca, n.º 421, 1-10-1975, pp. 4 e 8. 291 5. Abolição das coutadas O problema das coutadas vinha de longe. Na maioria dos casos provinha mais dos prejuízos que as espécies cinegéticas causavam nas áreas limítrofes, do que a fruição do prazer da caça. Assim aconteceu ao longo da História. Nas Cortes, quando reunidas, surgiam muitas vezes pedidos para reduzir o seu número e área ou não consentir, pelo menos, o seu aumento, quer na dependência do Rei, quer da Nobreza 567 . Após a Revolução de Abril de 1974, apesar de a última legislação sobre a caça melhorar os interesses gerais dos caçadores, estavam em vias de execução medidas que pretendiam defender os interesses da fauna, daqueles que a perseguiam e dos agricultores, que sempre mais reclamaram, na medida dos prejuízos por vezes sofridos. Por vezes, nas Cortes, as suas vozes foram atendidas, mas nem sempre respeitadas as reivindicações e aplicadas as medidas para sua satisfação 568. A resistência às coutadas desde cedo expressou um movimento de contestação generalizado na sociedade venatória portuguesa. Numa perspectiva geral, os jogos de poder, os conflitos de diferente natureza, em especial, os que se desencadearam em torno de terras, persuadiram o Estado Novo a alguma prudência nas concessões e, não raro, conteve as conveniências do capitalismo agrário. E estas aumentavam na medida em que aumentava a riqueza de uma burguesia rural com mais posse e lucrativo uso da terra. Com a morte de Salazar, o poder político organizou-se em torno de interesses agrários. O Almirante Américo Tomás, apaixonado pela actividade venatória, passou a incluir a caça como corolário da agenda política da excelsa geração. Após a publicação da Lei n.º 2132, de 1967, ressurgiram, pela primeira vez no século XX, as coutadas, que assim vieram a reconverter as reservas de caça e pesca, cuja designação, como vimos, remonta aos Decretos reais de 1903 e 1905. O Governo de Marcelo Caetano liberalizou a concessão dos aramados de tal modo que não conseguiu evitar as infracções cometidas pelos proprietários que 567 Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, ob. cit., pp. 99-114. O Prof. Baeta Neves no seu prognóstico mostrava-se optimista: «Agora já não mais haverá dificuldades na harmonia a estabelecer, defendidos como tem de ser os direitos de todos. Para tanto se tem esforçado com invulgar entusiasmo a DGRF e as Comissões Venatórias (...) nomeadamente quanto à instalação de reservas de caça, da existência das quais dependem em grande parte a solução desejada do problema venatório português a tudo o que à Protecção da Natureza aludia». Veja-se «A Caça e a História», Jornal de Caça e Pesca, n.º 480, 2003-1978, p. 7. 568 292 continuamente obstruíam as decisões da Administração, de pouco ou nada valendo as contra-ordenações aplicadas 569. Os usos e abusos cometidos em torno do coutamento e a supressão dos corredores entre coutadas com arame farpado, antes livres para o comum do caçador, originaram a confrontação que se estabeleceu depois da Revolução de Abril de 1974. Nesse tempo, Nabais da Cunha comentava que grande parte do país estava “enxameado de coutos e de aramados (...) reminiscências feudais que entre nós podíamos chamar de restos do salazarismo”, razão porque urgia acabar com “ o esbulho medieval à grei de um bem “ 570. As contestações contra as coutadas começaram cedo. Durante a malograda reunião de 19 de Setembro de 1974, no Estádio da Luz, em Lisboa, uma multidão enfurecida impediu pela força que os couteiros expressassem a sua posição e debatessem ideias, como era indubitavelmente seu pleno direito, acabando até por ser expulsos do recinto, sob um manto de ameaças veladas 571 . Foi então que um grupo de caçadores do concelho de Cascais, auto intitulando-se “ nós, os verdadeiros caçadores”, enalteceu tal ocorrência e agradeceu publicamente: “ A generosidade da Comissão Promotora de reunir no Estádio da Luz, no passado dia 19, com intenção dolosamente reaccionária e à custa de muito dinheiro não conseguiu mais, com a sua expulsão do recinto, do que demonstrar onde está a verdade e a razão. Demonstrou que as Forças de Massas conscientes venceram a força das massas (dinheiro). Reconhecemos grande necessidade que o povo caçador se associe em clubes nas diversas localidades e concelhos e que estes clubes contactem entre si tanto quanto possível. Neste sentido, temos de cumprir e fazer cumprir a nova lei da caça “ 572. Também os caçadores de Beja se insurgiram contra a pretensa reunião dos couteiros e enviaram um telegrama ao Primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, repudiando a iniciativa, por manobra fascista contrária à democracia do país e ao Presidente do Sport Lisboa e Benfica, manifestando a sua “ estranheza pela colaboração do Clube do Povo em tais manobras” 573. 569 Para maior esclarecimento consulte Mário Bastos, ob. cit., pp. 73-92. «A caça para todos», Diário do Alentejo, n.º 12 816, 15-06-1974, pp. 2 e 6. Veja-se ainda do mesmo autor «O furto da caça aos pobres», idem, n.º 12 835,18-07-1974, p.2. É de admitir que os movimentos de contestação anti-coutada, nomeadamente nos distritos de Lisboa, Évora, Beja e Setúbal, pela amplitude e dureza, dirigidos como eram contra as autoridades e desenvolvendo-se em fase pós-revolucionária, tenham influído no agressivo comportamento das populações de caçadores. 571 Jornal de Caça e Pesca, n.º 398, 15-10-1974, p. 8. 572 «Caçadores», idem, 22-09-1974, p. 20. 573 «Caçadores de Beja contra plenário em Lisboa», Diário do Alentejo, n.º 12 884, 14-09-1974, p.1. 570 293 Em resposta, os couteiros e proprietários de aramados apelam no jornal O Século para todos lutarem contra as disposições recentemente aprovadas (referiam-se ao D.L. n.º 354-A/74), “altamente lesivas do Património Cinegético Nacional”, pois ameaçavam os recursos bravios, os interesses dos caçadores, da Lavoura e dos milhares de guardas e trabalhadores rurais que a nova lei, a manter-se, ia lançar no desemprego 574. Todo este procedimento impeliu Vasco Gonçalves a publicar o D.L. n.º 407-C/75, de 30 de Julho, integralmente divulgado numa única página, que muda radicalmente o espírito que tinha consagrado o diploma anterior: as coutadas sob a aparência de protecção e de fomento da caça, são vistas como “fonte de privilégios a que urgia por termo, lançando-se então as bases de um verdadeiro ordenamento cinegético do território” 575 . Deste modo foram extintas todas as coutadas, à excepção das coutadas turísticas, que não existiam em Portugal, e intimados os proprietários a proceder ao arranque da sinalização. A medida demagógica abriu o caminho para o morticínio dantesco. Os massacres cinegéticos e os testemunhos colhidos ao longo destes anos evidenciam a devastação 576 . Nesse ano, o Diário do Alentejo e a Revista Alentejana, pelo contrário, enalteciam a atitude revolucionária de extinguir as coutadas: “ finalmente pôs-se termo ao esbulho, autenticamente feudal, da riqueza venatória monopolizada durante séculos, com sensível agravamento no último meio-século” 577. Muitas delas rodeadas de “ requintes de luxo à boa maneira oriental “. Enquanto isto, a classe trabalhadora, incluindo a rural, “estiolava de miséria, a terra coutada era em grande parte votada ao abandono e o país obrigado a comprar ao estrangeiro, para a nossa alimentação, centenas de milhares de escudos de trigo, carne, leite, arroz, azeite, etc., que a terra coutada, por ficar inculta, não produzia” 578. Em substituição das coutadas e com vista ao ordenamento cinegético, o Governo criou zonas de reserva onde o exercício da caça seria proibido ou condicionado, temporária ou permanentemente, depois de ouvidas as organizações representativas 574 A convocação era assinada pela “Comissão promotora”. O Século, 19-10-1974, n.º 33 167, p.6. Preâmbulo do D.L. n.º 407-C/75, de 30 de Julho. 576 Utilizamos aqui a expressão horda, como qualificativo de «bando indisciplinado que se entrega a devastação e assaltos», in Dicionário Universal de Língua Portuguesa, Lisboa, nova edição, revista e actualizada, Texto Editora, p. 805. Por todo o Alentejo, os testemunhos colhidos aludem a chacinas indescritíveis. Indivíduos trajando camuflados, investiam pelo interior das coutadas e tolhidos de um instinto predador tudo abatiam a eito. 577 Nabais da Cunha, «Caça para todos», Diário do Alentejo, n.º 12 816, 15-06-1974 p.2. Idem, «Que benefícios devem os coutos à riqueza venatória?», n.º 12 886, 17-09-1974, p. 2. Veja-se ainda para o período do Estado Novo os artigos do cronista na Revista Caça e Pesca referidos in Mário Bastos, ob. cit., pp. 111,120,125,154. 578 Idem, ibidem. 575 294 dos caçadores. Enquanto não estivessem criadas as atribuições, conferiu às Comissões Venatórias poderes de gestão. Mantinha-se em vigor o D.L. n.º 47 847, no tocante a matérias que não previssem a constituição de coutadas, com excepção das turísticas 579 . Gráfico 11: Coutadas e Aramados (Has) existentes no Alentejo (1974) 2000000 1.822.193 1800000 1600000 1400000 1200000 1000000 800000 600000 575.530 374.752 400000 200.778 200000 0 Coutadas Aramados Área total reservada Fonte: Arquivo da DGF, Julho de 1974 579 Idem, artigos 1.º a 8.º do D.L. n.º 407-C/75, de 30 de Julho. 295 Área livre no Alentejo 6. Dificuldades do Estado Com a abolição das coutadas transferiu-se para o Estado o papel de gestor de um vasto território, num processo pouco ou nada pacífico, que provocou o início da desertificação cinegética de grande parte do país, e o insensato desbaratamento das 1300 coutadas, que ocupavam 8% do território nacional, onde existiam condições de repovoamento, alimentação, bebedouros e fiscalização própria. Associações de caçadores e comissões venatórias acreditavam, então, na fartura de animais e na defesa de terrenos livres para todos os caçadores, esquecendo que a manutenção do património cinegético dependia da intervenção humana, responsável por lhe conferir qualidade e desenvolvimento ou o desgaste e extinção. A coberto de um relacionamento quase totalitário, tais promotores defendiam escrupulosamente a manutenção do Regime Livre. Assumiu-se uma política de fomento e ordenamento cinegético baseada na premissa retrógrada, de que ao Estado competia assumir o papel de condutor, praticamente exclusivo, de uma correcta exploração da riqueza cinegética nacional. A figura central deste ordenamento da caça foi, sem dúvida, a rede de reservas de ordenamento cinegético que cobriu o país, cujos resultados nefastos se reflectiram na educação e responsabilização dos caçadores e na própria conservação e fomento do recurso. Nestas áreas, por determinação do D.L. n.º 354-A/74, proibia-se o exercício da caça, servindo como repovoados naturais do terreno livre, embora o Estado nunca tivesse, durante a sua existência, desenvolvido qualquer actividade de gestão, unicamente limitando o seu papel a uma mera fiscalização de duvidosa eficiência, sendo, por isso, propícias à actividade dos caçadores clandestinos que aí desenvolveram intensa prática predatória, provocando, grosso modo, a revolta dos caçadores locais. Este quadro, que se configurou pelo Alentejo, interessava ao furtivo por vários motivos. Entre outros, porque constitua o seu couto, onde exercia sem parcimónia actividade ilícita através da extorsão cinegética; por outro lado, a incapacidade da fiscalização venatória actuar na Região do Alentejo, a falta de pedagogia e civismo de indivíduos que se declaravam caçadores, a quem o Estado havia outorgado uma licença 296 para caçar, constituíam o elemento que contribuiu para o fracasso do Ordenamento Cinegético Nacional 580. As ZCC foram criadas aparentemente para servirem de alternativa ou substituto dos aramados e das coutadas (extintos uns e, em vias disso, as outras), preferencialmente em terrenos do Estado e, por ele geridas, destinados à utilização colectiva pelos caçadores, além da investigação e experimentação cinegética. A possibilidade foi também estendida aos terrenos de outros domínios da propriedade (cooperativos ou privados) mesmo onde o direito de caçar fosse livre, podendo a sua gestão ser delegada em autarquias locais ou organizações de caçadores (ao tempo, as Comissões Venatórias). No caso de incluírem áreas não estatais, o Estado obrigava-se ao pagamento de uma renda por has 581. Pelos caminhos conturbados que as coisas da caça tomavam em Portugal, a partir de 1975, antevendo e defendendo alguns desde logo a necessidade de uma nova lei da caça, foram-se arrefecendo ou adiando as ideias existentes sobre implementação de ZCC. Caçava-se na imensidão do terreno livre recortado por utópicas, embora circunstancialmente úteis reservas de caça, com área média de 781 has, limitando o acesso anual apenas a um número reduzido de caçadores e a espécies, como a caça aos coelhos-bravos e pombos-bravos, unicamente para controlar a concorrência alimentar com gado vivente. Enquanto os sucessivos governos iam prometendo e adiando a nova lei da caça, à medida que os recursos cinegéticos, que eram de todos e de ninguém, iam rareando, a vontade de ensaiar áreas de caça em zonas convenientemente ordenadas perdurava nas gavetas ministeriais. Ficavam experiências pontuais, quase clandestinas, como a que, desde 1977, se vinha desenvolvendo no perímetro florestal da Contenda (Moura). Somente, em 1982, na Tapada de Vila Viçosa aparece uma segunda ZCC em área sob gestão estatal, numa superfície mínima (267 has) e quase por acréscimo ao centro da criação de veados para repovoamento, que ali foi criado. Autorizava-se ainda a caça controlada aos coelhosbravos. 580 A nossa posição firma-se, nos encontros tidos com agricultores, caçadores e o povo, em geral, no Alentejo, dos quais se extraíram a gestualidade, os comportamentos, os usos e costumes, e ainda pelo testemunho do exChefe da CFE, Eng.º Francisco Lopes. 581 Obrigação, que aliás, ao longo da vigência das reservas de ordenamento cinegético nunca cumpriu. 297 De todo o modo, o interesse sobre áreas ordenadas de caça existia, nomeadamente nas zonas raianas onde alguns autarcas questionavam a inércia em Portugal, principalmente as razões porque não se copiava o modelo dos “coutos sociais” em Espanha, que dispunham de caça abundante e o rendimento da sua exploração ordenada possibilitava uma gestão sustentada, além de emprego. Nesse sentido, em 1982, uma pretensão da Junta de Freguesia do Sabugal foi preterida pelo responsável governamental com a justificação de que uma nova lei da caça estaria seguramente por sair. Entretanto, decorrente dos resultados insuspeitos que se iam colhendo do circunscrito número de ZCC, fosse pelos exemplos que vinham de fora, ou ainda pela clarividência que só a avidez cria, ia aumentando, da população ao governo, a receptividade para novas formas de gestão de caça. À semelhança do que ia acontecendo na Contenda, a caça aparecia também como uma possibilidade de rendimento perene do solo, mesmo nas terras marginais para agricultura ou floresta, com significado não só económico mas também biofísico e social, por vezes a única resposta para debelar os magros rendimentos da terra, o desemprego e a aridez. Em 1985, com a publicação da Portaria n.º 129/85, de 7 de Março, deu-se o passo mais significativo na implementação de mais ZCC, facto que contribui para o seu crescimento por todo o país. Para tal confluiu ainda a possibilidade de gestão pelas autarquias (Câmara Municipal de Fafe e Aldeia da Ponte são pioneiras). Segundo o diploma, quando as receitas de exploração das ZCC não englobassem terrenos exclusiva e directamente explorados pelo Estado, uma parte significativa podia ser atribuída às Juntas de Freguesia envolvidas, para que estas aplicassem em obras de interesse social local ou as fizesse reverter para os agricultores que tivessem contribuído para o fomento e protecção da caça. Por outro lado, definiam-se os princípios básicos que permitiam o retomar da tradição de caça maior em Portugal nas ZCC, onde se começou a caçar gamos, veados e corços, bem como lobos à espera. Do seu funcionamento resultaram dados animadores, mas partindo de uma premissa errada, ao assumir-se que o princípio de fomento e ordenamento cinegéticos competia exclusivamente ao Estado. No entanto, a progressiva consciencialização da situação calamitosa em que o panorama cinegético mergulhava, vinha tendo expressão em tentativas empenhadas ainda que desordenadas, de encontrar um paliativo para o problema. Surgiram assim 298 algumas alterações, tais como o incremento e a reorganização do corpo de fiscalização, a obrigatoriedade do exame para a obtenção da carta de caçador. Neste pleito venatório, os Serviços Florestais mostraram sobejamente a sua inoperância. Na verdade, ao assumirem directamente a responsabilidade da orgânica venatória, sem pessoal qualificado e minimamente preparado para enfrentar os desafios do futuro, apesar da denúncia pública da sua debilidade técnica e funcional, reiterada durante anos em múltiplos encontros, comícios, reuniões e congressos de caçadores, a confiança acabou por ser-lhe legalmente atribuída pela Lei de Caça n.º 30/86, assim como a centralização de poderes nos serviços competentes do Ministério da Agricultura. Compreendia-se que a caça sendo res publica, como bem comum do povo português, devia ser tutelada pelo Estado, mas centralizar toda a sua orgânica administrativa e orientadora em Lisboa, era, no mínimo, absurdo e paradoxal, porque contrariava a orientação descentralizadora do poder e das regiões. Em Espanha, as comunidades autónomas criaram a sua própria lei de acordo com a especificidade da região e dos recursos bravios 582. No mundo actual, interroguemo-nos sobre como deverá ser feita a gestão de uma população de animais bravios no terreno livre, onde qualquer cidadão, desde que munido da licença, poderá percorrer como entender, abatendo o que lhe surja à disposição, sem prestar contas aqueles que eventualmente estejam dispostos a fazer a sua gestão. Que interesse terá uma entidade gestora de um terreno livre em criar e fomentar caça, se no dia da abertura os terrenos são integralmente invadidos por massas de caçadores anónimos, tanto mais numerosos quanto mais for a caça existente na sua propriedade, assaltando os campos e as culturas e abatendo a caça com que deparam, quando não cometendo abusos, derrubando muros, quebrando vedações, roubando até frutos e gado? Os gestores agrícolas dos terrenos livres, os proprietários ou fruidores sentiam-se tanto melhor quanto menos caça possuíssem nos seus limites, porque essa seria a forma de se verem livres dos caçadores. No terreno livre, o Estado surge como a única entidade que arca sobre si o fomento cinegético. 582 No caso concreto, dez comunidades autónomas aprovaram a sua lei de caça. Alonso Sánchez Gascón, Leyes de Caza de España, Madrid, Exlibris, ediciones, S.L., 1998. 299 Que acção podia desenvolver um guarda-florestal – na maior parte dos casos indevidamente preparado, mal fardado e pior, deficientemente armado – numa área de mais de 20 mil has e cerca de um milhar de caçadores à sua guardaria? 583 No período de 1978-1984, houve 103 casos de agressão ao corpo da GuardaFlorestal, constituído por escassas três centenas de efectivos, de que resultaram quatro mortos e vários feridos, alguns inválidos até ao final dos seus dias. Estas questões aliadas à falta de formação pedagógica de alguns praticantes da caça e à benevolência dos tribunais impunham que fosse criada a figura do produtor de caça. Assim o entendia João Bugalho, defensor da criação de ZCN, que ocupariam cerca de 500 406 has, na maioria dos casos, cujos produtores seriam as autarquias, os gestores cooperativos ou privados. A gestão da caça exigia, por sua vez, superfícies grandes, razão pela qual, na Europa, os agricultores com frequência se associavam para a constituição de zonas de caça ordenadas. Os problemas de fiscalização diminuíam fortemente e passaria a tornar-se mais necessário o tratador da caça que o guarda polícia de furtivos, tendo em conta se fosse exigida ao caçador a formação e os conhecimentos suficientes para usufruir de um património que, afinal, era um bem de toda a comunidade nacional e até internacional, como é o caso das espécies migratórias. A caça assim praticada passaria a constituir-se perante os gestores da terra como entidades conhecidas e responsáveis, veículo de riqueza não só material, mas também social e humana e deixaria de ser uma fonte de conflitos, para se tornar num interesse mútuo 584. Por isso, em Portugal, urgia meter “mão à obra”, valorizando um património, quase totalmente delapidado, mas que todos tinham a obrigação de recuperar, de forma socialmente justa, criando uma riqueza que beneficiasse directa ou indirectamente o maior número possível de portugueses e implantar um sistema de gestão racional de tão importante recurso 585 . Aliás, não só os estudiosos portugueses o reconheciam. Também Joaquim Cardim, 1.º Vogal do Conselho Internacional da Caça para a 583 Todas estas interrogações foram colocadas por João Filipe Flores Bugalho, Sobre a Impossibilidade de Gerir a Caça no Terreno Livre (policopiado), Lisboa, DGF, 1984. 584 Através do D.L. n.º 116/75, de 8 de Março, a partir de 1 de Junho de 1975, o exercício da caça com armas de fogo só podia ser exercido desde que estivesse coberto por seguro não inferior a 200 contos, como meio de indemnizar os prejuízos que pudessem resultar dessa prática. 585 João Filipe Flores Bugalho, ob. cit. 300 Península Ibérica, não compreendia como era possível que em Portugal se continuasse a “exterminar sem produzir” 586. Os erros cometidos pelos dirigentes, na maioria das vezes para satisfazer as reivindicações sociais, prejudicavam seriamente a conservação das espécies. Uma das medidas demagógicas mais comuns, particularmente no Alentejo, consistia na abertura das reservas de ordenamento para a actividade cinegética. Durante vários anos, tais espaços cinegéticos haviam cumprido a função de conservação da fauna bravia no contexto da cinegética nacional. Com a abertura das reservas, os caçadores, bem informados, corriam em loucura, pernoitando no local, para participarem na chacina da destruição das espécies cinegéticas, que ali foram criadas no tempo. A fiscalização, que devia estar presente e actuar, não tinha recursos humanos e sentia, como era natural, receio de enfrentar a horda. Um verdadeiro genocídio se consumou então por todo o Alentejo. Os agricultores e proprietários de terrenos, cujos recursos bravios haviam sido criados à sua custa, sentiam os efeitos da chusma de caçadores, que na falta de caça, roubavam tudo o que lhes surgia. Tal chacina teve a cumplicidade inequívoca do governo conforme ocorreu em 1992. Após o Conselho Nacional da Caça em Sousel, nos dias 8 e 9 de Outubro, Álvaro Amaro determinou a abertura de trezentas e oitenta e cinco reservas de ordenamento cinegético, com a área de 285 000 has 587. 586 Segundo Joaquim Cardim «havia que acordar do sono letárgico hibernal em que vivíamos desde o 25 de Abril que veio por à disposição de todos os caçadores portugueses enorme quantidade de espécies indígenas (porque) hoje tudo acabou». Jornal de Caça e Pesca, n.º 482, 2-03-1978, p. 3. 587 Só na Circunscrição Florestal do Porto abriram 111. As restantes foram distribuídas do seguinte modo: 46 para Vila Real; 15 para Coimbra; 49 para Viseu; 77 para a Marinha Grande; 85 para Évora e 2 para Faro. Actas do Conselho Nacional da Caça e da Conservação da Fauna, de 8 e 9 de Outubro de 1992, Sousel, AMAPDR. 301 7. Luta das Comissões Venatórias Em 1976, o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca referia que o D.L. n.º 354A/74 abrira novas perspectivas para a democratização das estruturas venatórias ao reduzir substancialmente os “privilégios dos grandes latifundiários e da alta finança”, acabando com os coutos “ardilosamente constituídos pelos aramados e estendendo às propriedades coutadas as regras gerais dos processos de caça dos terrenos livres” 588. O largo debate que a promulgação da lei da caça deu lugar, a experiência duma época venatória, no seu termo, e a vontade manifestada pelos caçadores através das Comissões Venatórias ou grupos activos constituídos em diversas regiões, aconselhavam uma nova e mais profunda análise de todo o sistema de forma a dar-se um passo decisivo na participação fundamental dos caçadores no estabelecimento da política do país 589. Com fundamentado nos conhecimentos técnicos, reconhecidos e apoiados pela opinião expressa dos caçadores tornava-se necessário proceder rapidamente à fase inicial do ordenamento cinegético e venatório sob orientação do Estado, com vista a permitir a melhor e mais racional utilização desse mesmo património e em igualdade de oportunidades para todos os portugueses. Como resultado da estreita colaboração existente entre as Comissões Venatórias Regionais e os Serviços de Inspecção de Caça e Pesca, esperava-se continuidade a este programa de ordenamento pela divisão do território em áreas com cerca de 2 000 a 4 000 has, das quais cerca de 25% seriam fechadas ao exercício venatório, em regime flutuante ou fixo, consoante os objectivos locais, constituindo estas a forma de garantir a salvaguarda e o repovoamento de grandes zonas. A partir destas zonas, e com a colaboração das comissões locais de caçadores, iriam constituir-se ZCC, dirigindo progressivamente a gestão cinegética para o controlo dos fluxos de caçadores, em cada uma delas, para um sistema de exploração técnica e socialmente mais correcto, mais coerente com a situação política nacional e de acordo com vontade de grande maioria dos caçadores portugueses. Nesse tempo, a Direcção-Geral dos Recursos Florestais defendia a teoria de que a caça tinha de ter alguém que a protegesse e ordenasse, pois era o único argumento válido usado pela “reacção” desde a promulgação do D.L. n.º 354-A/74. Assim, “só o 588 589 Relatório do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Lisboa, DGOGF, Fevereiro de 1976, p. 3, ADGF. Idem, ibidem. 302 Estado ou o proprietário da terra a podiam fomentar eficazmente”590. Porém, num país cujas zonas cinegeticamente mais ricas eram dominadas pelo latifúndio, entregar a caça ao proprietário “era agravar a situação de injustiça social. Esta era, afinal, a política que se fazia no país através dos aramados e das coutadas “ 591. Em Portugal, a coutada correspondeu a uma posição social e económica privilegiada, não sendo de estranhar, por isso, que a maioria dos caçadores reagisse com certa violência à sua implementação, colocando a fiscalização numa situação injusta e ingrata. As Comissões Venatórias concluíram que o processo se complicara ao longo da época venatória de 1975, mas agravar-se-ia se no interior das reservas ou das zonas livres estabelecidas pelo Estado, caso permanecessem cerca de mil coutadas, funcionando como ilhas para benefício de um minoria de caçadores, sujeitos a um regime de excepção. Passando a ser o Estado o responsável pela total protecção, fomento e ordenamento das espécies cinegéticas, considerava-se não só injustificável, como incompatível com este programa, a continuação da existência de coutadas particulares, uma das reivindicações sociais mais justas que, por razões de ordem técnica e de conjuntura política, não fora possível contemplar no diploma em vigor. Esta fora, sem dúvida, uma das reclamações que exigia a supressão das coutadas existentes e tornava inviável a concessão de novas coutadas a qualquer título, exceptuando a possibilidade da constituição de coutadas com fins turísticos, subordinada à legislação em vigor, as quais visavam um objectivo turístico de reconhecido interesse nacional. Estas modificações deviam assegurar a participação dos caçadores na planificação das acções com vista ao fomento cinegético e a sua activa presença na execução da política. Pretendiam as Comissões Venatórias que as estruturas, de acordo com a política geral do governo, correspondessem ao esquema da regionalização dos serviços públicos, mediante uma estrutura vertical de conselhos de caçadores a partir das bases da freguesia ou lugares dos concelhos, passando pelos conselhos regionais. 590 Idem, ibidem. «A situação é bem diversa na Alemanha, país onde mais caracteristicamente se segue o regime de posse simultânea da terra e da caça, mas onde a área média da propriedade rural é apenas de 18 has. Por isso, os proprietários se associam para a exploração da caça em unidades, designadas reviers, de 1500 a 2000 has, as quais são colectivamente exploradas por grandes grupos de caçadores. Mesmo assim, as unidades de área superior pertencem e são geridas pelas autoridades federais, como zonas de caça condicionada». Idem, ibidem. 591 303 Como órgão de cúpula, as Comissões Venatórias exigiam a criação do Conselho Nacional dos Caçadores com ligações ao governo, por si ou por intermédio do Conselho Nacional de Agricultura; uma estrutura hierárquica de serviços com um Serviço Nacional de Caça, directamente ligado ao governo, com Serviços Regionais da Caça em cada uma das zonas em que o país fosse dividido; a interligação destas duas estruturas farse-ia nomeadamente a nível central por intermédio da Comissão Nacional de Caça e, a nível regional, pelas Comissões Regionais de Caça 592. Efectivamente, na revisão da lei da caça, os caçadores da V Região Venatória (criada em 25 de Maio de 1977), que reunia cerca de 90 000 dos distritos de Leiria, Lisboa, Santarém e Setúbal, protestaram contra a composição da Comissão de Revisão da Lei da Caça, porque num elenco de 10 membros, unicamente três eram caçadores e, como não bastasse, um dos elementos era funcionário do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, além de outros elementos patrocinadores “acérrimos dos aramados de triste memória” 593. 7.1. As consequências do Decreto-Lei nº 149/79 Após a publicação do D.L. n.º 149/79, de 25 de Maio, foram transferidas todas as atribuições (fiscalização, licenciamento e fomento da caça e a definição da situação jurídica dos servidores) para a Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, do Ministério da Agricultura. Até à publicação da nova lei da caça, as Comissões Venatórias mantinham as atribuições definidas nas alíneas d) e m) do n.º 1 do Art.º 260.º e c) e e) do Art.º 262.º do Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967 594 ; passaram a funcionar como simples órgãos consultivos; em simultâneo, foi extinto o Fundo Especial de Caça constituído pelas receitas provenientes de multas e licenças. A retirada de competências às Comissões Venatórias não foi compreendida por muitos caçadores que reconheciam o esforço desenvolvido por aquelas corporações ao 592 Idem, ibidem. «Caçadores batem-se pela criação de um Serviço Nacional de Caça», Jornal de Caça e Pesca, n.º 480, 20-031978, p.7. 594 Ou seja, propor à DGOGF os concelhos e locais onde poderia ser exercida a caça às espécies consideradas não indígenas; as áreas e períodos onde era autorizado o furão na caça aos coelhos; o adiamento da abertura e a antecipação do encerramento da caça geral, ou da caça a certas espécies, bem como a proibição de caça em determinadas zonas; a realização de batidas às raposas e lobos; a instituição de prémios destinados a estimular e a recompensar a prática de actos de fomento e defesa da caça; dar parecer sobre todos os assuntos em que fossem consultadas; propor à comissão venatória regional respectiva as medidas que julgassem úteis para o fomento e protecção da caça no seu concelho; proferir parecer acerca dos assuntos venatórios sempre que fossem consultadas pela comissão venatória regional. 593 304 longo dos anos, em prol do fomento cinegético, nas áreas da sua jurisdição. Muitas vezes, alegavam falta de fundos, invocavam a inexistência de auxílio dos governos, queixavam-se do desinteresse por parte de alguns caçadores, mas o certo é que havia sempre um grupo de devotos que tomavam posse dos seus cargos, sem remuneração, durante três anos. As reservas e zonas de protecção existentes, naquele período – por incapacidade técnica dos funcionários do Ministério da Agricultura – não atingiam os objectivos propostos, e os fins para que foram criadas. As Comissões Venatórias Concelhias da V Região voltaram a reunir-se no dia 10 de Junho de 1979, em Vila Franca de Xira. Aprovaram, por maioria, a rejeição do D.L. n.º 149/79, por ter sido feito à revelia das estruturas dos caçadores, exclusivamente com o apoio do Governo de Mota Pinto. Por essa razão, congratulam-se pelo facto dos partidos públicos – PS, PCP e CDS –, terem requerido individualmente a sujeição de ratificação do malfadado diploma. Também a Comissão Venatória de Viana do Castelo defendeu o Decreto n.º 354A/74, na parte em que possibilitava a representação dos agricultores nas Comissões Venatórias, democraticamente eleitos, evento de “louvar no Minho, onde as coutadas e aramados” eram concessões que o agricultor nunca explorou nesta região, onde o desporto venatório se fazia em terras de cultivo ou de monte, franqueadas a todos os caçadores. Seria uma das causas porque escasseava muito a perdiz-vermelha, a lebre e o coelho-bravo e se impunha o seu repovoamento à custa das coutadas do Sul transformadas em reserva de caça 595. Segundo a Comissão Venatória de Viana do Castelo, os agricultores eram os detentores da caça nas suas terras, onde a mesma nascia e se alimentava, empenhando-se contra os caçadores furtivos e opondo-se às armadilhas, razão pela qual, os caçadores deviam ter para com eles toda a atenção, sem causar danos e evitar que os cães o fizessem, sem derrubar sebes e pisar as culturas 596. A fiscalização da caça, comparativamente às acções desenvolvidas desde Abril de 1974 até meados de 1979 – quando ficou dependente dos técnicos do Serviço de Inspecção de Caça do MAP – encontrava-se desacreditada. A recuperação e prestígio da mesma só podiam ser alcançados quando lhe fosse atribuído o poder de intervenção 595 596 Jornal de Caça e Pesca, n.º 402, 15-12-1974, p. 6. Idem, ibidem. 305 e guardas-florestais eficazes 597 . Igualmente se verificava o incumprimento das prometidas aberturas rotativas das reservas de dois em dois anos. A CVRS enviou ao Ministro da Agricultura, Vaz de Portugal, uma contestação, na qual denunciava favores e corrupção dos técnicos dos serviços; incapacidade técnica dos funcionários, que durante um ano em que administraram os dinheiros da CVRS, causaram dívidas para o ano seguinte de cerca de dois mil contos; falta de reuniões e de diálogo com os caçadores 598. Em 13 de Abril de 1980, no Ribatejo e Aveiro, eclodiram protestos dos caçadores contra o D.L. nº 149/79, por limitar fortemente a sua participação na resolução dos problemas. As Comissões Venatórias de Cascais e Anadia, o Clube de Caçadores de Aveiro e outros, após reunirem 3749 assinaturas, reivindicam de imediato: - A anulação do D.L. n.º 149/79 e a reposição das competências das Comissões Venatórias; - Proibição total do exercício da caça durante um ano; proibição da caça com furão e proibição total da venda da caça, excepto a criada em cativeiro; - Uma única abertura de caça em Outubro e o seu encerramento em Dezembro; elaboração de um Projecto-Lei a entregar ao Governo que facultasse oportunidades iguais aos caçadores; - Obtenção da carta de caçador mediante exame prévio; criação de reservas zoológicas (com proibição total da caça a qualquer espécie); - Constituição de reservas de protecção (santuários, onde fosse proibida a caça e actividades que prejudicassem o seu desenvolvimento); reservas parciais, exclusivamente destinadas para caçar a cavalo e falcoaria; reservas nacionais talhadas para fomentar a caça maior; - Criação de uma fiscalização própria e eficiente; - Criação do Instituto da Caça onde estivessem representados os caçadores 599. Durante uma conferência de imprensa realizada na Casa do Ribatejo, em Lisboa, um membro da CVRS afirma que teriam saído oito mil contos para a Comissão Venatória Concelhia de Torres Vedras. Em boa verdade, desde 1978, que existia um 597 Idem, n.º 511, 5-07-1979, p. 3. Idem, n.º 511, 5-07-1979, p. 1. 599 Proposta das Comissões Venatórias de Cascais, Aveiro e outras sobre a nova Lei da Caça, Aveiro, 13-051980, ADGF. Veja-se também Revista Diana, n.º 9, Maio de 1980, pp. 38-39. 598 306 diferendo entre os técnicos do Departamento de Caça, representados nas Comissões Venatórias, e os caçadores que sabiam dos actos de corrupção cometidos 600. As Comissões Venatórias do distrito de Beja, após grande discussão sobre o diploma decidiram, por maioria, pedir ao Governo a anulação, bem como, a necessidade de mais fiscalização e melhor orientação nos trabalhos sobre caça 601. No dia 31 de Maio de 1981, em Santarém, foi a “apoteose, o delírio, a primeira grande batalha ganha por todos os caçadores” que culparem os transgressores e a Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal como principais inimigos dos caçadores, pois pretendiam impor uma lei sem os “ouvir ou consultar” e por não ter tomado, em devido tempo, as medidas que se impunham para evitar o abaixamento drástico do número de espécies. Também exigiram a revogação imediata do D.L. n.º 149/79 e a realização de eleições para as novas Comissões Venatórias Concelhias 602 . No entanto, de pouco serviram os protestos ruidosos e as manifestações por todo o país, pois o Governo manteve a sua decisão até Agosto de 1986. Em 1982, atendendo à situação crítica dos recursos faunísticos, a Portaria n.º 655/82, de 30 de Julho, impõe a tomada de medidas urgentes com vista a restaurar o património cinegético, nomeadamente o encurtamento da época venatória e a proibição total da caça à lebre. Esta disposição bastou para surgirem abaixo-assinados provenientes de vários concelhos do Alentejo, contendo cerca de 600 assinaturas, que reconheciam que a falta de fiscalização beneficiava os transgressores e marginais, mas prejudicava a maioria dos caçadores portugueses 603. O representante da Figueira da Foz acusou os técnicos do MAP de se assemelharem a “caçadores furtivos” e de legislarem nas suas “costas”. Também não poupou o malogrado “projecto Bugalho”, ainda que vestindo “novas roupagens” 604. Babo de Magalhães, médico e representante da Comissão Venatória Regional do Norte, justificou a sua presença por uma questão ética, como esforço para assegurar aos vindouros garantias do exercício de uma “actividade salutar”; acusou o MAP de ser manejado por pessoas sem conhecimentos, de “segregar” os interesses dos caçadores, 600 Jornal de Caça e Pesca, n.º 514, 20-08-1979, p. 8. Idem, n.º 521, 5-12-1979, p. 2. 602 Idem, n.º 559, 5-08-1981, p. 6 e n.º 566, 15-12-1981, p. 1. 603 Recorde-se que a época venatória de 1982-83 teve início em 17 de Outubro e terminou em 19 de Dezembro de 1982. Idem, n.º 581, 5-08-1982, p. 8. 604 Tanto mais que «não era nos gabinetes alcatifados que se conhecem os problemas de uma actividade. Os seus autores revelam incompetência, pois pretendem regressar com outro nome ao velho processo das coutadas». Jornal de Caça e Pesca, n.º 557,15 de Junho de 1981, p. 3. 601 307 pois, falar de “associativas ou de coutadas era o mesmo” 605 ; insistiu em revogar o D.L. n.º 149/79 – um acto “verdadeiramente atentatório” dos interesses dos caçadores 606 ; assegurou que o Ministro do MAP, Cardoso e Cunha, já estava a par do “descontentamento dos caçadores e do tom aberrante da lei”; acusou Álvaro Barreira, técnico dos Serviços Florestais, de ser o causador da incompatibilidade entre caçadores transmontanos e do litoral. Nesse sentido, persuadiu o Ministro a “afastar esse divisionista” que causara o envenenamento de cães: “ Se é verdade que vamos a Trás-os-Montes buscar as espécies, não é menos certeza que os trasmontanos se servem do litoral para os principais bens de consumo. Acho bem que paguem os prejuízos aos lavradores, eventualmente vítimas dos excessos de caçadores, pouco conscientes, mas não se tomem medidas que visem o divisionismo entre portugueses e que já tiveram consequências gravosas “ 607. As conclusões do congresso foram unânimes ao exigirem a revogação daquele diploma, não só porque retirou competências às Comissões Venatórias, mas pela necessidade de se proceder à elaboração de cadernos eleitorais por concelhos das novas Comissões Venatórias, no prazo de quatro meses, e das comissões regionais, no prazo de 60 dias. Opuseram-se a um novo projecto da lei da caça ou alteração que não fosse aprovado em condições de igualdade pelos organismos do Estado e pelos representantes dos caçadores democraticamente eleitos 608. Todavia, esta posição não foi generalizada. Assim, em Trás-os-Montes, as organizações de caçadores de Bragança representadas pela Comissão Venatória de Caça asseguram que haviam recebido manifestações de apoio à nova lei, não só de caçadores, mas de lavradores da região. Esse apoio, segundo testemunhos, vertia-se na circunstância dos caçadores locais acusarem os do litoral de invadirem Trás-osMontes durante a época da caça (cerca de 60 000 caçadores), “quando a região não podia comportar mais de 30 000”, destruindo o pouco que restava sem contrapartidas e contribuindo para transformar a área num deserto cinegético 609. Os caçadores do Nordeste Transmontano defendiam que a caça tinha de ser disciplinada e a abundância de caçadores controlada para cada área cinegética. Inclusive, os lavradores da Região consideravam o caçador do litoral como persona non grata. Por essa razão, não estavam na disposição de permitir que as suas propriedades 605 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 607 Idem, ibidem. 608 Estas conclusões foram publicadas no Jornal de Noticias, n.º 348, 1-06-1981, p. 4. 609 Jornal de Caça e Pesca, ob. cit. 606 308 continuassem a ser devassadas por quem não respeitava os cercados e roubava colheitas e animais domésticos 610. Naquela época, o Ministério da Agricultura, que tinha cerca de 300 agentes da fiscalização venatória, não cobria as necessidades do país. Também não era com Portarias que se resolviam os problemas da caça em Portugal 611. Do Fundão queixam-se as Comissões Venatórias Concelhias contra a marginalização a que foram votadas pelo Decreto n.º 149/79, que pôs fim a uma actividade eleita “democraticamente pelos caçadores” 612. Todos estes acontecimentos obrigam-nos a admitir que o caçador português sempre teve uma enorme dificuldade em relacionar-se com o futuro, pois insistia em manter um modelo venatório ancilosado, desprovido de um princípio fundamental da ecologia e das modernas tendências de gestão: a caça ordenada como recurso natural renovável. 610 Senão tinham de “arrumar as armas e se fosse necessário” os caçadores transmontanos viriam à rua. Idem, ibidem. 611 Pelo contrário, as Portarias n.º 835-A/83, de 13 de Agosto e n.º 920-A/83, de 7 de Outubro, provocaram a revolta dos caçadores, a indisciplina e a falta de confiança nos governos sucessivos. 612 A CVC do Fundão, desde 1979, era credora dos serviços de caça na quantia de 560 018$00, porque não havia dinheiro. «As Comissões Venatórias não tinham, neste momento, um centavo para enviar uma carta», Jornal de Caça e Pesca, n.º 564, 15-11-1981, p. 8. 309 8. Irrupção da cultura do Terreno Livre Longe de ser um modo de vida para o caçador, a caça, na contemporaneidade, é um exercício voluntário, um desporto ou divertimento que se pratica ao ar livre, além de cultivar o físico de cada um, desenvolve o entendimento, obriga ao aperfeiçoamento da reflexão, ao sentido da vista e do ouvido, ao convívio entre os indivíduos, a amizades nunca sonhadas, das quais dependem muitas vezes valiosos benefícios que se reflectem no futuro de muitos. É um desporto que junta o útil ao agradável, quando ordenadamente praticado. Para ser caçador não basta escrevem-se crónicas e fazerem-se comentários venatórios e outros episódios que a caça proporciona, e que vale a pena conhecer pelo seu conceito humorístico: é necessário mais alguma coisa, principalmente que o caçador se comprometa que a base fundamental que lhe dá a verdadeira noção do que anda a fazer de cabeço em cabeço, de vale em vale, com o cão e a espingarda à procura de uma lebre ou de uma perdiz-vermelha, só a experiência e a prática lhe pode dar. Saber procurar uma peça de caça, conhecer os terrenos próprios, e bem assim a crença das espécies nos terrenos, são factores importantes que só a experiência e treino fazem que tais conhecimentos se firmem no espírito do caçador. Além disso, é óbvio que estes factores não se ensinam, nascem com o indivíduo, são natos e intuitivos. Para que qualquer indivíduo tenha direito ao nome de caçador, é preciso saber caçar; ter intuição para procurar a caça, prever a crença que ela tem por este ou aquele sítio, saber encaminhar o cão de parar de conformidade com o terreno e o vento. Longe iam os tempos, em princípios do século XX, quando a Revista Caça e o Jornal Tiro Civil, aludia à abundância de caça no Sul do país, ao ponto de mal se parar para comer os farnéis (se é que se parava): “comia-se a andar”, mas apesar de tudo havia caça com fartura, o terreno era livre, caçava-se o que se queria, os caçadores pouco ou nada se estorvavam uns aos outros 613. No decurso do tempo, em quase toda a sua extensão, assistimos à competição dos caçadores intra-grupo estabelecida dentro da mesma colectividade, de um modo geral e na origem nas rivalidades entre as linhas, que atingia proporções indescritíveis, 613 Mário Bastos, ob. cit., p. 118. 310 tal era a febre dos cintos. Aqui se estabelecia uma relação de competência entre os caçadores. Não obstante, era óbvio que o caçador mais eficaz e socialmente dignificado era o que conseguia melhores resultados. Tal conduta levava-o a ocupar posições de liderança e de preeminência no seio do grupo. Movia-se sempre uma constante competência informal entre os caçadores, que se materializava na habilidade e na pontaria e alimentava os comentários entre grupos. Estes factos transportam para a caça uma necessária e distinta dimensão social. A par da inconstância e protagonismo, a partilha das terras marginais alimentou o horizonte venatório dos caçadores pobres, onde a caça constituía um complemento da dieta alimentar para contento da vida miserável. Alguns aproveitavam a madrugada para ir dar uma volta à caça, ou seja, repartiam o trabalho com o percurso atávico num vou ali e já volto. O caçador estranho à região, leigo nas manhas da caça, à medida que aumenta a rarefacção venatória, desinteressa-se da actividade venatória. Em certa medida, tudo se conjuga para a sua frustração venatória: não possui a experiência e ligeireza do rural, não conhece o comportamento das espécies, as dificuldades do terreno, muito menos, possui o instinto que deve acompanhar o verdadeiro caçador quando persegue a peça de caça. Para quem percorre a montanha, a prudência é uma imperiosa necessidade. Por um pé em falso no bordo de um barranco pode custar a vida. Também uma simples entorse, longe de quem possa prestar ajuda, se converte numa fonte de sofrimentos atrozes 614. O rural movimenta-se com sabedoria e identifica-se com o meio que o rodeia, na base do talento, que coloca ao serviço da arte venatória. É um sabedor profundo das coisas da Natureza, mas para ganhar a sua confiança são precisos longos anos. Ensinar a volta das perdizes-vermelhas, a cama das lebres sempre alimentou o horizonte venatório do caçador estranho à região. Aí residia o sucesso da caçada. Nas aldeias do Alentejo, a ida para a caça constituía um espectáculo indescritível. Caçadores, que ao romper da aurora partiam e gritavam: “Vamos para a 614 J.M.Mundet e C. Brighenti, Manual del cazador. Caza menor y caza mayor, Barcelona, Editorial De Vecchi, 2000, p.17. Intencionalmente referimos esta obra que julgamos fundamental para o caçador, pois contém toda a informação adequada para caçar em todos os continentes, designadamente legislação, licenças de caça, homologação e pontuação de troféus de caça; critérios a seguir para selecionar o modelo de arma mais adequado; qual a raça de cão mais conveniente; quando e onde caçar; coutos de caça, técnicas de caça, etc. 311 caça, como se proclama uma vitória”. À noite, no regresso desancados, marchavam em voz surdida, as mochilas cheias ou vazias. Mas viram a caça, é quanto bastava. A caça em jolda era, porventura, de todas a mais venturosa. Fazia lembrar a velha caça colectiva. Obedecia a um trabalho de equipa que abrangia o convívio e culminava na partilha das peças abatidas. O grupo, organizado em torno de amizades, sabedoria e empenho, palmilhava quilómetros, quase sempre nos terrenos eleitos pelo líder. As linhas de 10 caçadores eram vulgares. Podiam ser em caldeirão, isto é, formando uma meia-lua 615 . Como os caçadores, por vezes se distanciavam cerca de 150 metros uns dos outros, cada linha chegava a atingir mais de 1 quilómetro. Os caçadores que faziam as pontas tinham a missão de meter as perdizes-vermelhas para dentro da linha, e as contrapontas eram a referência dos companheiros para manterem a linha em boa ordem e evitarem que as perdizes-vermelhas saíssem para os lados ou virassem para trás. No Alentejo, em geral, para conservar a linha até ao final da caçada (e não se perderem os caçadores) era costume, cada caçador olhar para o da sua esquerda. Por essa razão, o líder da caçada era o verdadeiro técnico e dele dependia o êxito da caçada. Nas primeiras décadas do século XX, os transportes eram raros. Em Évora, por exemplo, só havia uma camioneta de carga, quando muito, duas, que tinham de ser contratadas com quinze dias de antecedência. De modo que todos os que ficavam sem transporte não tinham outra solução senão ir a pé. Às vezes acontecia alugarem uma ou duas carroças puxadas por qualquer animal de tracção. De uma maneira geral iam a pé e regressavam a pé 616. Naquele tempo valia a pena ser caçador, não só porque não havia quem “perseguisse maldosamente”, mas também porque a caça era tão abundante, que bastava um percurso de dois quilómetros em volta da cidade de Évora para se fazer uma caçada de perdizes-vermelhas, coelhos e lebres. Era invulgar o caçador que não 615 Por vezes eram formadas com os homens que quisessem alinhar 10, 20, 30 e até 50. Em Évora houve várias, das quais, as «que conservo na memória» foram as linhas do João Jorge, homem pacato, sério e bom organizador, e melhor orientador das voltas no campo da caça; a linha do Mão-fatal ou do Latas (deram-lhe este nome porque dizia-se que por onde passava, tudo que aparecia a jeito de captura, ia para a mochila: galinhas, patos, frangos, etc.). Na região faziam-se boas caçadas que terminavam sempre no monte com perdizesvermelhas assadas no espeto e barradas com manteiga de vaca ao lado de um garrafão. José Manuel Queimado, Coisas de Caça no Alentejo, Évora, Ed. do Autor, 1968, pp. 33-34. 616 Idem, p. 34. 312 possuía um cão de parar 617 .Mas também havia os caçadores decorativos que faziam sempre número nesta ou naquela linha. O caçador rural fazia grandes explorações antes das aberturas e poucos iam à sorte para o campo. Por habitualidade, em certas aldeias do Alentejo, um cavalo ou uma mula acompanhavam a jolda, com a finalidade de carregar a caça e os farnéis, libertando o caçador, tornando-o mais ágil e eficaz. Para os de fora, ser acolhido na jolda era um privilégio 618. Os ceifeiros acostumados à fadiga eram os caçadores mais resistentes ao calor nos dias de caça. Por eles passava o suor incomodativo, flagelador, mas prosseguiam a sua marcha pelos campos fora. Bebiam, por vezes, uns golos de água, mastigavam punhados de pão ou carne frita (toucinho, quando o havia no tempo competente) 619. Um dia de caça constituía um percurso social e mental inarrável. O regresso da caçada obedecia a um ritual colorido, passando pelas ruas da vila ou da aldeia, que fazia parte do folclore da terra. Mesmo os não caçadores se divertiam com isso. Nesses dias, ainda que não combinasse em caminho, dava-se um jeitinho para passar pelas ruas principais. Nos dias de azar, havia quem desse a volta para entrar sem ser visto a arrastar a grade, o badalo ou o chibato. Este folclore, de rara sensibilidade popular, sofreu uma considerável modificação, que principiou nos anos cinquenta, quando os hábitos moderados dos velhos caçadores cederam à exigência, competitividade, febre dos grandes cintos e a mania do recorde, em vez do duelo desportivo. Uma luta que podia ter muito de desportivo, mas de todo condenável por estar em desarmonia com a sobrevivência das espécies. O vício da competição era de tal modo impulsivo que, em Ourique, nos anos sessenta, corria o Totocaça, como entretenimento. Resumia-se numa aposta feita ao caçador-matador que abatesse mais peças de caça no dia da abertura geral da caça 620. António Garcez, contudo, admite nem sempre ser de louvar o efeito social da caça nas populações rurais. A caça, em vez de ser encarada como “desporto e exercício salutar”, quer sob o ponto de vista físico ou sociológico, gerava com frequência o 617 Idem, p. 35. Mário Bastos, ob. cit., p. 117. 619 Ceifeiros que Manuel da Fonseca refere em Cerromaior, 6ª Ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1988, p. 191 a 224. A cada perturbação rebentava uma chama nos olhos dos ceifeiros. Já não sentiam o corpo. Só a sede escaldante a congestionar-lhes as gargantas, o zumbido dormente a roer-lhe os ouvidos. Esticavam as pernas, levados na ânsia de não caírem, de não baterem de vez com a cabeça nos torrões duros. 620 Noutros concelhos do Alentejo a febre das apostas corria as tabernas das aldeias em sinal de proclamação de um hino venatório. 618 313 “sentido de avidez e de morticínio traiçoeiro, do desamor pelo trabalho e do desemprego pelas obrigações” 621 . Este ataque ao profissionalismo foi, não obstante, ardilosamente mantido por António de Oliveira Salazar, numa cumplicidade inequívoca para equilibrar os baixos salários dos rurais, embora possamos afirmar com segurança, que muita caça vendida nos mercados de Lisboa era fruto da criação em cativeiro. As estatísticas provam que os caçadores de profissão se fixavam nas regiões mais pobres e menos cultivadas. Contudo, a venda de uma peça de caça não pode ser generalizada, comparativamente ao comércio de Lisboa e grandes cidades, onde aliás, a partir dos anos sessenta, tudo aponta para a escassez. O profissional negociava a caça fora do concelho para as grandes cidades, diferentemente do rural que caçava para se alimentar e, esporadicamente, vendia na região, uma ou outra peça, para cobrir os gastos das munições 622. Além do Alentejo, em muitas regiões pobres de Portugal, como Rio de Onor, a caça, em alguns anos, dentro da época venatória, chega mesmo a constituir a base de alimentação. A burocracia complicada que o povo tinha relutância, fazia com que grande parte dos caçadores rurais fossem caçadores furtivos e a fiscalização intensa obrigava muitos a desistirem inteiramente da caça com armas de fogo 623. Chegados a 1974, este quadro singular de usos e costumes resvalou no desenvolvimento da predação e do delito. Portugal tinha sido paraíso para os caçadores. Havia abundância e variedade de espécies cinegéticas e o caçador podia escolher, perdizes-vermelhas e lebres pela manhã, coelhos-bravos pela tarde. A caça era privilégio de uns poucos, não um apanágio de casta, como na Idade Média, mas originado sobremaneira pela falta de comunicações, circunstância que favoreceu a fruição da caça pelo caçador local, de modo natural e intrínseco ao direito de personalidade. À parte de quem tinha dinheiro e tempo para se deslocar das cidades – e eram uma minoria –, caçavam os lavradores, proprietários, camponeses ricos e pobres e uma casta de funcionários de serviços, porque lhes bastava sair à porta da sua casa para encontrar-se com a caça. 621 António Bandeira Garcez, A Caça em Portugal, Lisboa, Ed. do autor, 1962. Manuel da Fonseca alude ao caçador profissional Jacinto Codesso “ onde punha a mira punha um tiro”, embora por vezes se ocupasse de qualquer actividade passageira. Fosse em que época fosse, os filhos, os garotos apareciam nas ruas de Cerromaior a vender caça, mais às ocultas. Às vezes era chamado ao Posto da Guarda. Mas nunca conseguiram provar que caçava fora da época. Manuel da Fonseca, Cerromaior, Lisboa, Editorial Caminho, 6ª Ed., 1988. p. 68. 623 A caça significava para o rionorês “ caça para comer sem que isso implicasse a ausência de verdadeiro entusiasmo quase diríamos, paixão”. Jorge Dias, Rio de Onor: comunitarismo agro-pastoril, Lisboa, 3ª Ed. Editorial Presença, 1984, pp. 281 a 283. 622 314 Após a queda do Estado Novo, o paradigma venatório muda por completo: à medida que aumentam os caçadores, diminui a caça, porque sobe o nível de vida e melhoram as comunicações, as quais facultam a fruição do campo; aumentam as paixões pela febre venatória, não a que distinguia o caçador humilde e talentoso, mas a procura do fascínio da predação. A partir daí, pessoas que em toda a sua vida não aspiravam a ser caçadores, por razões de segurança, apetrecham-se de arma e munições e convertem-se em atiradores. A par da insensibilidade e do desejo incontido do pastoreio, o agricultor viu as suas terras ocupadas pela Reforma Agrária e passou a olhar a caça como uma fonte inveterada de conflitos e intranquilidade. A grande maioria dos novos ocupantes desleixa-se na relação Agro-cinegética: corta o feno durante a nidificação ou gradeia a terra e destrói um ninho de perdiz-vermelha, contrariando, grosso modo, toda a estrutura agrária que havia ajudado a montar em torno do interesse colectivo dos meios de produção. As reservas de ordenamento cinegético, longe de contribuírem para a protecção e fomento da fauna, eram o viveiro ideal para os furtivos. Os responsáveis dos serviços de caça pouco fizeram, apesar do tempo bastante ao seu dispor para disciplinar e tornálas úteis como podiam e deviam ser, quando conscientemente estudadas, tecnicamente estabelecidas, suficientemente policiadas e atempadamente programadas as suas aberturas. No fundo, a solução de grande parte dos problemas da caça, com vista a um futuro melhor, residia no seu estudo, programação, suporte técnico e fiscalização adequados, empenho que não existia em Portugal. Os ímpetos predadores despertaram na Revolução de Abril de 1974, com graves prejuízos para a sobrevivência das espécies cinegéticas. À sombra de cumplicidades dos caçadores e do poder local, apoios inequívocos das Comissões Venatórias à democratização da caça, ausência de uma fiscalização eficaz e incapacidade do poder político em implementar uma lei da caça, a cultura do terreno livre gozou de tal impunidade que era parte do poder discricionário e factor de instabilidade no quadro rural e venatório. No transcurso dos anos, são patentes as limitações que se impõem aos governantes e ao livre exercício da caça, assim como as prerrogativas que gozam certas classes sociais, originariamente nascidas da Reforma Agrária e das Nacionalizações, que impediram os sucessivos governos de intervir em matéria de gestão ordenada dos recursos bravios. 315 Por sua vez, a expropriação dos prédios rústicos no Alentejo, Beiras e Ribatejo, impediu a iniciativa privada de reivindicar uma parte da responsabilidade no processo de ordenamento da actividade cinegética ordenada. Não obstante, a indisciplina que se foi gerando nos campos provocou tensões, quer pela fruição de um espaço de todos e de ninguém, quer pela conflitualidade permanente que acabou descambando no desenvolvimento do ardil 624. Na imensidão do Alentejo, a passagem da horda traduziu-se, em certa dimensão, no roubo de frutos, animais domésticos, tudo menos caça. Esta revolução costumeira transfigurou brutalmente a relação caça-agricultura. A dilecção profícua e duradoura, que caracterizou durante décadas a passagem do caçador pelas herdades, finda com o temor e, não poucas vezes, ódio visceral ao venador indiferenciado. Do fruir dos prazeres da caça passou-se para a anarquia e desconfiança generalizadas. No quotidiano, persistia a caça furtiva, predominantemente lucrativa. Mas também existe um outro furtivo, cujo crime consiste em fazer um calendário ou um horário à sua conveniência, ou em utilizar métodos contrários aos estabelecidos. Contudo, este homem quando está no lugar da caça, não pensa no proveito que possa obter: está obcecado com a caça e não pode resistir à tentação de matar. Todavia, se esta caça não é utilitária – como é evidente – nem desportiva, como dizia Ortega – e devem reconhecê-lo todos os caçadores –, que classe de caça é? Simplesmente, uma não caça. Estamos certos que nem todos os caçadores se comportam como predadores ou delinquentes. Por exemplo, o caçador rural marcha contando os passos e, seguindo sempre as manobras do seu cão, olha à direita, olha à esquerda, não escapa coisa alguma à sua vista perspicaz, nem um movimento, nem um indício; o menor grito, o mais leve rumor, atrai a atenção de seu ouvido apurado; pára, espera, consulta-se, tem a consciência do que lhe cumpre fazer; não é este caçador que andando a caçar, leva a sua espingarda debaixo do braço ou ao ombro com a sua coronha para cima, na posição negligente da arma à-vontade. Ainda que o Sol dardeje os seus raios 624 Por exemplo, é indescritível a infinidade de indivíduos que caçavam com armadilhas e laços de toda a espécie ao longo dos carreiros estreitos onde passava a caça. Além do apresamento em dias normais, na ocasião das queimadas de mato, os animais fugiam espavoridos e caíam às dezenas e, às vezes, centenas. Em 1948, O Primeiro de Janeiro refere que após uma queimada morreram 400 coelhos-bravos, 40 lebres e 1 raposa. Jorge Dias, ob. cit.,p. 284. 316 abrasadores, o caçador rústico “não se inquieta pelo calor, nem pelo frio; não pensa senão na caça “ 625. Fiel ao seu carácter, o caçador rural toma pelo caminho mais longo para regressar ao seu ponto de partida. Apanhou quase toda a caça que escapou aos caçadores inábeis. Modesto no seu triunfo, abdica da grandeza da caça a quem a quiser tomar. Contenta-se com o testemunho da sua consciência e com a estima de seu cão 626 . Entre muitos exemplos que encontramos no Alentejo, mencione-se um grupo de caçadores humildes, naturais e residentes na aldeia dos Sapos, concelho de Mértola, que mantêm a tradição da caça comunitária partilhada nos escassos terrenos livres do concelho. Fixemo-nos num caçador, sumamente destemido, como o Mestre Chico, por alcunha o Tarraço, 38 anos, pedreiro de profissão na autarquia, mas acima de tudo um sabedor da arte venatória. Não surpreende que considere a forma suprema da caçada aquela em que o caçador, solitário na serrania, é simultaneamente quem descobre a peça, a persegue e a abate. Como chefe do grupo, por ele passam as grandes decisões das caçadas nas courelas e serranias de Mértola. A sua grande paixão é a caça da perdiz-vermelha, e nisso se revela um perfeito venador, porque este é, em longínqua cópia, um homem talentoso, que habita nas nossas aldeias. A sua maior habituação à solidão das montanhas reeducou um pouco os seus instintos. É bom lembrar que o caçador local caça melhor que o entusiasta, não porque seja mais racional que este, mas porque se cansa menos, está habituado ao monte, vê melhor e funcionam-lhe de modo vigoroso os instintos predatórios. O Mestre Chico cheira sempre um pouco a perdiz-vermelha e a sua pupila é de raposa, fuinha ou toirão 627 contra a “caça de piolho” 628 . É esta a razão mais enérgica que faz investir o Mestre . Nela defrauda-se e engana-se aquele instinto, com o que se fomenta a sua total extinção, porque puro animal, não há mais nenhum senão o bravio, e a relação com ele é a caça. Se queremos gozar dessa intensa e pura 625 Ludovice da Gama, ob. cit., p. 29. Idem, p. 35. O autor critica duramente os caçadores “alfacinhas”que antes de chegarem ao domicílio, atiram aos “pombos domésticos”. Além disso, “o senhor seu cão, pela sua parte, estrangulou um gato e três galinhas no pátio de uma quinta (....). O caçador rústico envergonhar-se-ia de todos estes crimes de lesa-propriedade; entra no solar doméstico como um simples mortal”. Idem, p. 36. 627 Em 1990, quando o vi caçar no campo, descobri que a maioria de nós, não é caçadora, que com todo o esforço e entusiasmo, não conseguimos penetrar na sólida profundidade do saber e poder venatórios, que o Mestre entesoura. Há que submergir inteira e heroicamente o nosso ser numa ocupação para a dominar. 628 Expressão usada por Francisco Lopes para significar a caça produzida em aviários e largada para os campos, por vezes na véspera da caçada. 626 317 felicidade, que é o regresso à Natureza, temos que buscar o convívio do animal arisco, descer ao seu nível, sentirmos competição perante ele, persegui-lo. Este rito subtil é a caça. Observe-se como, na realidade, na serrania de Mértola, transparece a bem aventurança dessa efectiva imersão na Natureza. Tem o ar, quando se caça, outro sabor mais fino ao resvalar sobre a pele ou visitando os pulmões. Por essa razão, quando o Mestre Chico se confunde na rocha da Ribeira de Oeiras, ou aguarda no sítio certo nas barreiras do Monte das Neves que a perdiz-vermelha passe ao seu alcance, adquire uma fisionomia mais expressiva e as estevas carregam-se de significados. Tudo isto deve-se a que, enquanto avança ou acocorado espera, sente-se unido por baixo da terra com o animal que persegue ache-se este à vista, oculto ou ausente. Quem não for caçador, julgará que estas palavras são pura retórica. Mas não os caçadores. Eles sabem muito bem que isso é literalmente verdade: que, ao achar-se no campo o primeiro, e como eixo de toda a situação, é essa união mística com o animal, senti-lo e pressenti-lo que automaticamente leva a aperceber o seu contorno, sem abandonar o seu próprio ponto de vista. Nessa união engendra-se imediatamente um contágio e o caçador começa a comportar-se como ele; encolher-se-á instintivamente para não ser visto; caminhará evitando todo o barulho; conhecerá tudo o que o rodeia partindo do ponto de vista do bicho com a minúcia que lhe é peculiar. Esta técnica, indispensável para o êxito da caçada, o Mestre Chico executa com uma destreza invejável. Actua no sentido unilateral, exclusivo da sua utilidade para o êxito da caçada, apesar de intervir no drama da caça cada coisa a partir de si mesma, com o seu concreto e pleno ser. Quando caça o animal, imita uma boa parte das técnicas venatórias fundamentais no uso do mimetismo. Mas há muito mais: aquele que consiste em aproximar-se tanto quanto possível do animal e assimilar-se ou disfarçar-se dele. Porém, onde o Mestre Chico revela toda a sua experiência de caçador é na técnica que impõe aos demais na arte infatigável de subir e cortar os cabeços, na vista apurada, ir de encontro à trajectória das perdizes-vermelhas e preparar o tiro final. Se nos diz: pelo voar do pássaro, foi ter ao Cerro do Oiro, entende-se que nos indica a posição exacta da perdiz-vermelha. É esta capacidade inesquecível que marca a diferença de caçar com um grupo, por si coordenado, e a generalidade dos caçadores. 318 Observe-se o desdém com que fala dos que andam obstinados por andar a fugir à sua frente, como se isso fosse caçar: “aí vão os galgueiros”. Quando eles passam, o Mestre põe em prática a técnica do caracol e aplica-a, na essência, à caça da perdizvermelha 629. É assim, que descobre o pássaro, que antes se escondera pela passagem da horda, e prepara o tiro, no qual se revela um exímio atirador. Também é um mandamento da ética do caçador treinar-se com constância e paciência, para ser bom caçador e conservar a forma, mas com a condição de não se converter num convencido, assunto diferente da verdadeira caça. A cultura do terreno livre é para a maioria dos caçadores modestos, a forma suprema de caçar nos campos 630 . O gosto que Mestre Chico sentia em sair de madrugada, acordado pelo canto do galo, sempre de manga curta, bigode felino e acompanhado pelos seus fiéis cães, o farralho e o malogrado xeque-mate, permanecem nos anais da Aldeia dos Sapos, que o viu nascer, como uma recordação do expoente máximo do caçador local, uma verdadeira parábola de talentos. Ei-lo, agora, nas manifestações dos caçadores do terreno livre na defesa da manutenção do seu eterno ideal venatório, com o qual mobilizou sempre os seus instintos de venador. Acima de tudo, há que compreender a filosofia de vida deste grande caçador e sua irrenunciável liberdade de movimentos num território que reconhece de comunitário, mas aos poucos vê desaparecer. Terminará, certamente, com a supressão do terreno livre, a actividade venatória que praticou durante anos consecutivos, ora tranquilizando-o, ora agitando-o. A função social da caça comunitária tem para os caçadores modestos dos concelhos alentejanos, mormente rurais, um significado atávico e essencial, como justa compensação da vida miserável e distante dos divertimentos dos caçadores urbanos. Retirá-la do seu quotidiano equivale à manifestação de vontade de um povo oprimido em torno da permanência secular do ideal venatório. 629 Consiste em caminhar em círculos em torno do local onde se presume que as perdizes-vermelhas se encontram escondidas. 630 Esclareça-se que nos referimos aos verdadeiros caçadores, não aos portadores de uma arma de caça, cujo intento se resume, exclusivamente, à chacina dos recursos bravios. 319 9. Ofensiva predadora Em pleno Alentejo, no início da década de 1970, a par da caça no terreno livre campeavam desenfreadamente o furtivismo e o profissionalismo venatório 631 . O furtivo servia-se de todos os processos que a sua prodigiosa imaginação lhe fornecia para colher os proveitos, tais como espingardas, laços, fios, ferros, arames, redes, enxós, uso de faróis, etc. 632 . O profissionalismo era uma praga. O regulamento que oficializou os caçadores profissionais, em vez de os proibir, facultava o exercício da actividade pela bagatela de uma licença de caça, com fim lucrativo, que custava 300$00 633 . Em finais de 1973, os caçadores profissionais (ou de contrato) serviam-se da licença especial, a tal ponto que nos 109 concelhos da Regional do Sul foram emitidas 900 licenças. A ideia do governo conceder ao rural uma licença económica por época de caça, na maioria dos casos, destinava-se à subsistência familiar. O mesmo não se justificava nas mãos do caçador comerciante, cuja actuação foi uma das principais causas da baixa densidade de espécies cinegéticas. Portugal era o único país da Europa que admitia o profissionalismo venatório até à sua extinção em 1974. 9.1. Massacre faunístico Em 1975, após a abolição das coutadas, quase todo o espaço se achava livre para o caçador. Era uma imensa vastidão de terras francas, excepto as reservas de ordenamento cinegético entretanto criadas. As aberturas de caça geral, habitualmente no primeiro domingo de Outubro, despertavam nos caçadores uma tentação inarrável e satisfaziam a maioria. Tal era o “vício”, que muitos iam dormir de véspera ao campo, ou nas aldeias onde eram naturais. Era o regresso às origens. Este quadro de usos e costumes manteve-se vivo, até passado recente. No Alentejo constituía ocasião de singular ansiedade. Imensos caçadores viviam em contacto directo com os recursos bravios e mantinham uma relação quase patriarcal. 631 No tocante à caça menor, visto que a caça maior, entre nós, era rara. Sobre os efeitos do furtivismo e vandalismo, veja-se Mário Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, ob. cit., p. 137 e ss. 632 Ao longo da História Cinegética todos estes artifícios ilegais acompanharam o furtivo no uso do ardil para abater ou capturar peças de caça, tanto pelo prazer da morte como do negócio. 633 Malaquias Verdades, Jornal de Caça e Pesca, n.º 379, 3-01-1974, p. 2. 320 Chegados a 1974, como se viu, a predação humana aumentou. A horda de caçadores constituída por gente eufórica começou pela invasão dos 200 000 has de aramados, a maioria constituídos à margem da lei, que em muitos casos não serviam para a exploração pecuária, mas para adquirir o direito de caçar 634. O testemunho de muitos caçadores que viveram e partilharam a invasão é unânime: por todo o Alentejo, a chacina cinegética começou com o abate indiscriminado de perdizes-vermelhas, lebres e coelhos-bravos e acabou em roubos de frutos e animais domésticos. Só num aramado em Mértola, um caçador, que assistiu ao morticínio, contou cerca de 440 viaturas automóveis. Após a razia, os caçadores carregaram os carros com centenas de peças de caça, imbuídos de uma vontade carniceira e compelidos pelo slogan mobilizador: “Isto é nosso. Vamos camaradas!” 635. Os concelhos do distrito de Évora, e no Baixo Alentejo, Mértola, Moura, Ferreira do Alentejo foram, na verdade, os mais flagelados pela horda de caçadores vindos do resto do país que assolou a região atraídos pela fama e abundância de caça. Apesar disso em alguns concelhos ainda sobreviveram espécies cinegéticas, como nos revela um testemunho local: as linhas de mais de trinta homens abatiam entre 150 a 200 coelhos-bravos por dia, na freguesia de Safara, concelho de Moura 636. Outro testemunho de um caçador, que escreveu para o Jornal Caça e Pesca, é elucidativo: a multidão de caçadores de todo o país que desabou sobre o Alentejo era impressionante. Perto de Águas de Moura “vendiam-se coelhos-bravos ao desbarato”. De madrugada, pela estrada principal a caminho de Monforte seguiam centenas de caçadores, “como nunca vira na vida. De regresso, foram só duas horas para atravessar a ponte de Vila Franca de Xira. Carros carregados com mais de 200 coelhos-bravos” 637. O ímpeto revolucionário impelia os caçadores a uma loucura quase comparável aos exércitos em pleno campo de batalha. Assim, no dia 30 de Agosto de 1974, correspondendo ao grito de um caçador bejense proferido durante num plenário em Beja, os caçadores, que repartiam o seu apoio ao momento revolucionário, ofereceram aos militares – “os grandes obreiros da democracia portuguesa” – um prenda venatória 634 Recorde-se que os aramados foram abertos pelo D.L. n.º 354-A/74, mas as coutadas só foram extintas no ano seguinte pelo D.L. n.º 407-C/75. 635 A nossa posição firma-se nos juízos de valor formulados em centenas de entrevistas a caçadores cuja leitura não deixa margens para dúvidas. A ordem era para avançar e abater independentemente da forma como era feito. 636 O autor explica como a linha de trinta caçadores destruía a caça: «10 na linha da frente; 10 na linha do meio munidos de paus, tampões, cornetas, cães galgos e rafeiros; 10 na linha de trás com os célebres furões». Carta de António Pereira Rodrigues, Jornal de Caça e Pesca, n.º 414, 15-06-1975, p.6. 637 Idem, n.º 399, 1-11-1974, p. 3. 321 638 . Um apelo inédito lançado sobre a multidão eufórica para cada caçador oferecer “uma peça de caça às forças armadas”, mobilizou um turbilhão humano. Só no Regimento de Infantaria 3, em Beja, foram recebidos “3 223 peças de caça e um zorro”. A notícia, que fora divulgada pelo Diário do Alentejo, descreve o massacre venatório 639. A par da actividade predadora também se dirigiam críticas aos “tubarões”, que “escamotearam a caça aos pobres a coberto do rendoso negócio da caça” e haviam levado uma vida “parasitária e ociosa, abdicando duma exploração agrícola rendível para o país”. Por sua vez, “ os tubarões”, afirmavam que a nova lei era “lesiva para o património cinegético e para a lavoura”. Também eles, que “sempre exploraram o trabalhador rural”, apareciam como “notados seres pseudo defensores do seu futuro” 640. Em rigor, não só o Governo Revolucionário consentia estes massacres, como a fiscalização não operava. Igualmente, os proprietários, tal como os enfiteutas ou arrendatários, individualmente ou em grupos, após a saída do D.L. n.º 354-A/74, começaram a dizimar as espécies existentes dentro das coutadas, uma vez que pelo Art.º 100.º não podiam explorar, a qualquer título, a partir de 31 de Maio de 1975, um conjunto de propriedades coutadas que excedessem uma área de 1000 has 641 . Para acautelar ambiguidades resultantes da lei e evitar conflitos com os caçadores, o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca aconselhou os couteiros a balizarem as coutadas de modo a não ultrapassarem esse limite 642. Em 1974, o Diário do Alentejo denunciou em Ferreira do Alentejo grupos de dois ou três caçadores, que quase todas as noites a partir da meia-noite e até cerca das quatro horas da madrugada, percorriam os campos de automóvel, caçando lebres e coelhos-bravos, sendo vulgar cada grupo abater entre 30 a 40 peças numa só noite. O descaramento era tal que chegavam a contar aos amigos tais peripécias. A proeza fazia-se constar na vila, onde havia restaurantes a servir lebre e coelho-bravo de forma indistinta 643. A razia das coutadas acompanhou de perto a incursão dos aramados. Foi quase simultânea. Chegam testemunhos de vários pontos do Alentejo sobre caça em terrenos 638 Idem, n.º 401, 1-12-1974, pp. 1 e 3. Veja-se o artigo do comerciante Hernâni Correia, sobre o evento no Diário do Alentejo, de 29-10-1974, p. 2, que abrange um universo variado de agricultores e proprietários absenteístas. 639 Idem, ibidem. 640 Idem, ibidem. 641 Idem, n.º 400, 15-11-1974, p.1. 642 A consulta a dezenas de processos de coutadas ilustra essa particular advertência que na maioria dos casos não teve acolhimento e acabou por redundar na invasão das coutadas em 1974. 643 «Onde está a fiscalização», Jornal de Caça e Pesca, n.º 399, 1-11-1974, p. 6. 322 coutados feita por grupos de indivíduos. Na Aldeia Nova de S. Bento, três caçadores quando caçavam em pleno dia, foram abordados por um transeunte que os interpelou se o patrão estava. Respondeu um deles: “Aqui não há patrão nenhum, isto é nosso !” 644 . Também Agapito Mendonça denunciou à Comissão Venatória Regional de Sul a actividade ilegal dos caçadores locais com auxílio do furão e os assaltos nocturnos, para os quais pedia travão 645. Em 1979, na aldeia de Cabeço de Vide, a mesma atitude tomou Marciano Malheiro, revoltado contra a prática da caça com furão e o abate indiscriminado de lebres na calada da noite. Os furtivos, além dos crimes praticados, não se coibiam de proferir insultos aos camaradas de caça. A responsabilidade, porém, era quase sempre imputada aos forasteiros: “Reina grande descontentamento entre os caçadores da região pelos abusos cometidos pelos caçadores estranhos” 646. A disputa territorial inicia o período da contestação do caçador local à presença do estranho; aumenta à medida que o vandalismo impera nos campos, em especial os roubos, que também incidiam sobre os próprios caçadores. Assim, aconteceu na Herdade da Palma, próximo de Alcácer do Sal, a seguir ao almoço, onde trinta caçadores foram assaltados 647. Em Julho de 1974, no sítio do Carneiro, próximo da coutada de Guilherme Gião, na Amareleja, um grupo de caçadores do terreno livre, que circundava a coutada, avistou outro grupo a caçar no interior que transportava vários coelhos-bravos à cintura perante o olhar complacente do guarda. Ao serem abordados sobre as razões porque caçavam, responderam que tinham autorização para caçar de espingarda e furão, com rede e à espera, a qualquer hora do dia ou de noite, mediante uma credencial passada pelo Secretário de Estado da Agricultura, válida até 30 de Setembro de 1974. Divulgada a notícia, alguns dias depois, a autorização foi suspensa. Porém, quando o Governo pensou que o assunto estava encerrado, a onda de indignação aumentou de tal monta que o Secretário de Estado foi obrigado a divulgar um comunicado no qual justificou as autorizações especiais para a caça ao coelho-bravo com furão, no concelho de Mourão, nas propriedades Carvoeira e Sardinheira, de 9 de 644 Testemunho de Aureliano Custódio Neves, idem, n.º 401,1-12-1974, p. 4. Idem, n.º 402, 15-12-1974, p. 5. 646 «Senhores legisladores, venham numa abertura da caça ver como as coisas se estão a passar», Carta de 24-101979, idem, n.º 520, 20-11-1979. 647 Roubaram-lhes os coelhos e os pombos-bravos que tinham guardado nos carros. Idem, n.º 401, 1-11-1974, p. 8. 645 323 Abril a 30 de Setembro de 1974, a pedido do proprietário e com fundamento nos prejuízos causados nas culturas 648. Em Mértola, na Herdade de Corte Pão e Água, propriedade aramada de Mário Vinhas, após a extinção dos aramados, o proprietário, não contrariando a lei, procurou, contudo, evitar a todo o custo a entrada de caçadores pelo termo da propriedade, que ali pretendiam caçar rolas. Nesse intento, introduziu 80 vacas bravas. Sucedeu, porém, que junto à Ribeira de Oeiras e encravado na propriedade, existe um pequeno prédio rústico, chamado Águas Santas, propriedade de Custódio Martins Rodrigues, onde muita gente, habitualmente fazia tratamento nas águas sulfurosas, e se hospedava na pensão contígua. O gado existente na Herdade tresmalhou-se e acabou por entrar naquela zona, ferindo duas pessoas que tiveram que ser transportadas para o Hospital de Beja 649 . Apesar da progressiva diminuição da caça no Alentejo, em 1980, houve variedade no abate, a que não faltou a habitual fuga de cães abandonados ou perdidos a afectar os residentes nos montes alentejanos. Todavia, os acidentes de caça também marcaram presença no Hospital de Beja, onde entraram dez pessoas vítimas de acidentes de caça e duas em Portalegre 650. Em 1981, a abertura da caça no distrito de Évora foi desastrosa. Além de dois caçadores mortos, um dos quais com um tiro da própria caçadeira que se disparou ao saltar um muro, foram assistidos no Hospital Distrital dezoito caçadores feridos. Perto de Arraiolos, dois grupos de caçadores envolveram-se em zaragata, de que resultou a morte de Carlos Patrício e um ferido, Fernando Patrício. O grupo agressor pôs-se em fuga 651. No ano seguinte, assistiu-se a grande movimento de caçadores por todos os campos e estradas do Alentejo, pelo triângulo Elvas, Redondo, Reguengos, Évora 652 . Os Serviços Florestais, no final da época venatória, relatam um panorama de profunda consternação: próximo dos 250 000 caçadores existentes, apenas 50% haviam tirado licença de caça. Do Tejo para Sul, a caça continuava a existir, mas a rarefacção das 648 Idem, n.º 394, 17-08-1974, p.2. «Gado tresmalhado feriu duas pessoas», idem, n.º 396, 15-09-1974, p. 7. 650 Idem, n.º 101, 15-10-1980, p. 8. 651 Jornal de Caça e Pesca, n.º 564, 15-11-1981, p. 4. 652 O jornalista do Jornal do Caçador contactou vários caçadores, desde as quatro horas da madrugada, no Hotel Santa Clara, em Évora, e pediu que se pronunciassem sobre a lei da caça no respeitante às reservas. «Prontamente três ou quatro responderam: só com coutadas bem guardadas poderá voltar a haver caça em Portugal». Jornal do Caçador, n.º 148, 15-10-1982, p. 1. 649 324 espécies era uma evidência, devido à falta de alimento pelo abandono dos campos cultivados. Por outro lado, os caçadores apresentavam-se nos campos com grande mobilidade atormentando as espécies cinegéticas. Os Serviços de Caça possuíam 300 guardas com idades que ultrapassavam os 50 anos de idade para um número superior de concelhos. Na prática, pouco ou nada apoiados pela GNR, com a agravante do último guarda-florestal ser admitido em 1979. Apesar de tudo, a CFE administrada por Francisco Lopes elaborou com regularidade relatórios sobre as aberturas da caça geral no Alentejo. Entre muitos exemplos, refira-se a época venatória de 1989-90, que decorreu com normalidade, embora a afluência de caçadores fosse inferior a épocas anteriores, devido à escassez das espécies venatórias, salvo a abundância dos pombos-bravos na zona de Mora. Nas áreas mais sobrecarregadas pelos caçadores, Alandroal, Reguengos de Monsaraz e Mourão, junto ao Rio Guadiana e parte do concelho de Estremoz, os caçadores lamentavam-se da falta de caça e da pouca área livre para o seu exercício, igualmente contestavam a colocação de placas de sinalização das novas reservas de ordenamento em cima do dia da abertura da caça 653. Em S. Estêvão, S. Bento do Cortiço e Veiros, registou-se maior afluência de caçadores. O relatório da Brigada Fiscal denuncia desmotivação e algum desalento, pela falta da colaboração da GNR. Apesar disso, foram fiscalizados sessenta caçadores. Na região de Alandroal e Redondo, a abertura decorreu normalmente e o comportamento dos caçadores foi correcto, embora muitos se queixassem de pouca caça. Idêntica situação no concelho de Vila Viçosa. Em Portel, foram intersectados dois indivíduos a caçar dentro da zona de ordenamento cinegético n.º 7 654. Em Vila Viçosa, a área mais visitada pelos caçadores foi a freguesia de S. Romão. A fiscalização colaborou com três elementos da GNR e foi feita uma fiscalização de controlo na Estrada Nacional, junto às bombas de gasolina da Galp, em Borba 655. No concelho de Mourão, as propriedades mais sobrecarregadas com caçadores foram Esparragueiros, Alcarrache, Mercadores, Rio Guadiana, Xerez, Barrocal, Paço de 653 Ofício n.º 698/CP da CFE, 31-10-1989, ASFE. Esclareça-se, que nos anos seguintes, os relatórios não alteraram os dados referidos. 654 Idem, ibidem. 655 Veja Relatório da Brigada Fiscal de Vila Viçosa sobre a abertura da caça geral nos concelhos de Alandroal, Redondo e Vila Viçosa, na época venatória de 1989-1990, Vila Viçosa, 19-10-1989. Idem. 325 Areias e Vale de Carneiro. Foram fiscalizados cerca de 60 caçadores, em colaboração com a GNR de Mourão e Reguengos de Monsaraz 656. Em Montemor-o-Novo, foi normal a afluência de caçadores, mas não houve caçadas de vulto, nem a GNR colaborou na fiscalização. O mesmo sucedeu em Vendas Novas 657 . Em Évora, apesar dos poucos caçadores e da escassa caça abatida, foram levantados cinco autos por falta de estojo, de vacina e licença para cão de caça. Em Montemor-o-Novo e Vendas Novas, apesar da abundância de caçadores pouca caça foi abatida 658. 9.2. Furtivos e delinquentes O caçador furtivo, grande responsável pela depredação dos recursos bravios, foi qualificado no I Congresso Mundial da Caça (Madrid, 1984), como o delinquente habitual que “tanto rouba uma galinha, ovos de perdiz-vermelha, para os vender no mercado negro, a duzentas pesetas cada, como ainda se dedica a pilhar perdigotos, à nascença” 659. O mercado negro era rendoso, porque havia quem pagasse por cada perdizvermelha duas mil pesetas; às vezes, até mais. Mas outras razões favoreceriam a infracção, nomeadamente relacionadas com os clubes de diversão nocturna instalados à beira das estradas e alguns dentro de coutos. Outrora, o furtivo, que não tinha trabalho, limitava-se a matar um veado para alimentar a família. Actualmente, muitos invocavam o espectro do desemprego para justificar a empresa de caça furtiva, bem equipada e preparada com automóveis de aluguer. Usam carabinas 22 (cuja detonação é mal percebida) e abatem às dezenas, duma só vez, para satisfazer encomendas antecipadas, e no rol existe sempre um talhante disponível para ficar com as restantes peças. O entusiasmo do furtivo, em larga medida, assemelhava-se ao destruidor. Os relatos são bastante elucidativos: “um grupo vendeu veados a um talhante por cem mil pesetas, as quais foram logo esbanjadas, numa só noitada, em Whisky”. O furtivismo em Espanha era um negócio montado em escala. Havia sociedades de dez ou doze 656 Informação da Brigada Fiscal de Mourão, de 23-10-1989, ASFE. Relatório da Brigada Fiscal de Montemor-o-Novo. Idem. 658 Idem, ibidem. 659 Perto de Castilla La Mancha, um reformado foi apanhado em flagrante delito, com um veado às costas. Em interrogatório confessou que «com aquele já lá iam cinquenta». «Actas do I Congresso Mundial de Caça, Madrid, 22-26 de Outubro de 1984», Jornal do Caçador, n.º 203, 1-02-1985, p. 5. 657 326 indivíduos que se protegiam de algum modo, caso algum fosse apanhado, os restantes pagavam a multa 660. Na Bélgica, o panorama era bastante similar. Em 1977, existiam cerca de 28 000 caçadores, por força do exame obrigatório para obter a carta de caçador; a caça menor diminuíra bastante, não pela pressão cinegética ou furtivismo, mas, principalmente, pelos pesticidas, as novas técnicas agrícolas e abertura de estradas. Neste país, onde a caça furtiva estava bem organizada, a pressão cinegética do furtivo actuou fortemente sobre a caça maior. Existiam grupos, que no silêncio da noite, utilizavam veículos munidos de faróis potentes e abatiam veados, cuja carne vendiam aos talhantes 661. Em pleno Alentejo, a violência e actos selváticos praticados por indivíduos sem escrúpulos marcaram uma geração que se instalou valendo-se do desejo incontido para imporem a sua lei. Desde ameaças, crime e pilhagem da recolha de caça que outros abatiam, roubando com “à-vontade de bradar aos céus”, compeliram os alentejanos a apresentarem queixa às autoridades. A caça era de todos, mas o que os furtivos e gatunos não tinham direito era de cometer toda a sorte de transgressões e actuar como autênticos ladrões. As causas do furtivismo sempre deram azo a múltiplos argumentos. O que leva o caçador a transgredir? São múltiplos os factores embora, na generalidade, quase todos relacionados com a avidez da matança e o conceito retrógrado de que o bom caçador é aquele que abate muita caça e obtém lucros. Os conceitos de vanglória para alguns e chacota para os caçarretas ou marteleiros, pode levar, tanto uns como outros, à transgressão 662. Nas áreas rurais, muitos caçadores de origem humilde não conseguiam na caça desportiva uma peça de caça. Procuravam então nas transgressões a contrapartida. Apesar de tudo, muitas eram saudáveis, particularmente aquelas que consistiam em matar um coelho-bravo ou uma lebre para alimento da família. Outros hábitos, mais ruinosos para as espécies cinegéticas, vinham do tempo da destruição dos aramados e coutadas, que não conseguiam eliminar e nem sequer se esforçavam nesse sentido. Após o 25 de Abril de 1974, o crescimento rápido do número 660 Ricardo Mendem propunha o controlo através da regulamentação de licenças e da selagem, para cada peça. Isto permitia um controlo muito mais restrito, evitava o furtivismo, obtinha receitas adicionais, mas também uma informação importante para conhecer as populações e a sua evolução dentro dos espaços naturais da geografia espanhola. Idem, ibidem. 661 Na Bélgica cerca de um terço de toda a caça maior era abatida por furtivos. Idem, ibidem. 662 Na gíria venatória, as expressões caçarreta e marteleiro significam todo o caçador que raramente abate uma peça de caça. 327 de caçadores, associado ao descoutamento de terras, conduziram à ideia generalizada de que a caça era de todos independentemente da forma como era ocupada. Esse equívoco seria fundamental para a rarefacção da caça, sem que os sucessivos governos refreassem o prazer egoísta. Também distintos caçadores foram impelidos pela sedução dos transgressores: “se os outros transgridem e não lhes acontece nada, então nós vamos fazer o mesmo. Eles não são mais do que nós!” 663. Aqueles que pisavam o risco continuavam a fazê-lo, visto que havia caçadores que em toda a sua vida nunca foram alvo de um simples contacto por uma autoridade. Idêntica fonte de pressão diária ocorria nas tascas da aldeia, onde a rivalidade desafiava os mais afoitos à transgressão, numa competição desenfreada e sem escrúpulos 664 .A ousadia, em muitas ocasiões, impeliu os furtivos a abaterem coelhos-bravos e lebres junto aos montes alentejanos. Quiçá, um verdadeiro terrorismo venatório. Tal indignação não era novidade. Ao longo da nossa História sempre que se verificou o coutamento de terras em grande escala, o povo exercia pressão junto do poder para a descoutagem. Esta medida popular originou, por sua vez, a rarefacção dos recursos bravios e daí a necessidade de medidas de protecção, que levaram os Reis Filipes a não instituir de novo as coutadas. Por outro lado, D. José I inculpa os transgressores pela prática de malfeitorias e pelos modos como usavam a violência, sem pejo de matar. Em 1821, a descoutagem continuou com D. João VI. Após Abril de 1974, a rarefacção aumentou atingindo todas as espécies, consciente ou inconscientemente, conduzindo a uma desenfreada transgressão, que na História da Cinegética, entre outros, o Marquês de Pombal procurou combater de forma autoritária 665. Até à queda do Estado Novo, muitos proprietários de coutadas não folgavam enquanto não dizimavam a caça adjacente. Quando não tinham possibilidade disso mandavam os criados enxotar as espécies para o seu interior. Em muitas coutadas, ninguém tocava nas perdizes-vermelhas. Estavam reservadas até finais de Dezembro para batidas e enxotas, ocasião em que os couteiros pagavam a patrulhas da GNR para 663 Este slogan generalizou-se por todo o Alentejo (e presumo, que por todo o país). Os testemunhos colhidos nos inquéritos são reveladores da fragilidade da fiscalização. 664 Testemunhos que corroboram as afirmações que temos vindo a desenvolver em vários concelhos do Alentejo.Com particular destaque refiram-se a caça ilegal à lebre, coelho e javali, durante a calada da noite. O descaramento era tal, que muitas vezes, se davam ao luxo de espalhar os troféus no meio da rua. Tal prática aumentava substancialmente durante o Verão, com o retorno dos imigrantes e emigrantes, que nesta ribaldaria gostavam de fazer o gosto ao dedo e comer uma sopa de lebre na tasca da aldeia em parceria com os amigos. 665 Alvará de 1 de Julho de 1776. 328 vigiar os terrenos limítrofes da coutada, no intento de impedir os caçadores do terreno livre de abaterem alguma peça de caça escapada. Nas reservas de ordenamento cinegético era interdito caçar, mas não para os transgressores. Segundo O Século, logo na abertura geral, no dia 9 de Outubro de 1975, foram detidos cerca de 80 caçadores por caçarem na reserva de ordenamento cinegético da Quinta de Sousa, em Montemor-o-Novo, e mais doze caçadores, três dias depois 666. No ano seguinte, durante a abertura da caça geral, o Jornal do Caçador realizou várias entrevistas a caçadores no Alentejo e chegou à conclusão de que o cenário era quase apocalíptico: para além dos inúmeros acidentes de caça, a lebre e a perdiz estavam em vias de extinção, o descontentamento e a frustração eram evidentes, não só pela falta de caça, mas por se ter permitido caçar com furão 667. Igualmente, nesse período, uma denúncia colectiva dos caçadores do concelho de Estremoz, refere determinada reserva onde se caçava por processo ilegais, quer em dias proibidos quer de noite, com furão e ligando os escapes dos automóveis aos covis 668 . Por sua vez, na reserva n.º 2, em Arraiolos, os guardas da CVRS numa operação surpresa detectaram vários transgressores que se puseram em fuga. No entanto, conseguiram capturar Manuel de Almeida Martins, residente na Azinheira do Manhoso, em Évora. Apesar do flagrante delito, submetido a interrogatório, negou a infracção cometida 669. Ainda em Monte Trigo, durante a noite, foram interceptados dois trabalhadores rurais, munidos de um candeio com pilha ligado a uma bateria, quando caçavam furtivamente de caçadeira em punho na reserva do ordenamento cinegético n.º 7 do concelho de Évora 670. 666 Jornal de Caça e Pesca, n.º 421,1-10-1975, pp. 7 e 8. Jornal do Caçador, n.º 17, 15-10-1976, p. 8. 668 Além dos casos de furtivismo o desleixo dos caçadores era assustador. Próximo de Montemor-o-Novo, Jorge Sampaio, caçador incauto, ao passar próximo de uma oliveira viu os ramos em movimento e calculou tratar-se de uma perdiz-vermelha ou peça volátil. De imediato, apontou a arma e fez fogo atingindo António Maria Lopes, residente em Vila Nossa Senhora do Bispo. Idem, n.º 18,15-11-1976, p.5. Veja-se também o Diário do Sul, n.º 2318, 26-10-1976. 669 «Tenho uma arma boa mas não a trago (...) para as transgressões, para não me ficar apreendida, assim ficam com esta que não tem qualquer valor», Jornal do Caçador, n.º 20, 15-12-1976, p. 4. 670 O Tribunal aplicou a multa de 3 300$00 a cada um; interdição de caçar durante cinco anos, bem como a perda dos utensílios a favor do Estado. Idem, ibidem. 667 329 Por todo o Alentejo, a fúria devastadora não se restringia apenas ao uso de técnicas e utensílios, mas também ao uso de sementes envenenadas. No concelho do Redondo um indivíduo não identificado espalhou trigo roxo no campo que provocou a morte a vários pombos de negação, propriedade de António Joaquim Alves 671 . A criminalidade nesta vasta Região, continuou durante anos consecutivos conforme se verifica pela extensa lista publicada pela CVRS 672. Tais crimes suscitavam indignação junto da população. António Diamantino Rocha Regato, revoltado contra a falta de fiscalização venatória, denunciou os crimes no Alentejo: “umas vezes, andam à caça de noite, com focos luminosos e com varapaus; outras vezes, andam à caça de espingarda em punho durante o defeso. Deste feito, até de camião se vai à caça” 673. Porém, nem só a arraia-miúda se envolvia nas malhas da infracção. Muitas e variadas infracções foram cometidas por personalidades da vida política, das quais não escapou o deputado do PCP, Custódio Jacinto Gingão, interceptado em flagrante delito pela guarda venatória local quando caçava com furão, no dia 1 de Janeiro de 1978. O deputado preenchia o feriado nacional com a prática do seu favorito e não pouco elitista desporto, a caça, numa reserva próxima da localidade de Foros de Vale Figueira, em Montemor-o-Novo. A GNR de Cabrela, que confirmou a ocorrência ao Jornal Caça e Pesca, mencionou que o transgressor tinha imunidade parlamentar, facto que lhe valeu ser mandado para casa. Contudo, a arma, os cartuchos, o furão, o automóvel, se dele se serviu para entrar na reserva ou se nele guardou os coelhos-bravos, não tinha qualquer imunidade parlamentar. Deviam, por isso, ter sido apreendidos e entregues no tribunal da comarca. Porém, a CVRS desmentiu a notícia, alegando que o deputado se encontrava a caçar dentro de uma zona de reserva e não a caçar de furão 674. Em 1977, em pleno Alentejo e no final da época venatória, assistia-se à caça furtiva e diversas infracções à lei da caça. O desequilíbrio do ano cinegético deveu-se muito à caça à lebre, ao uso do furão, e o prolongamento por mais de um mês da caça ao tordo, em vez de se limitar o número de aves a abater por jornada de caça, de molde a repartir uma poupança do património cinegético 675. 671 Idem, n.º 21, 1-01-1977, p. 8. Jornal de Caça e Pesca, n.º 425-426, p. 8. 673 Idem, n.º 427, 1-09-1976, p. 5. 674 Idem, n.º 499, 5-01-1979, p. 5. 675 Jornal do Caçador, n.º 22, 15-01-1977, p. 8 e n.º 25, 15-03-1977, pp. 1 e 8. 672 330 Após uma denúncia contra caça ilegal feita pelo rendeiro de uma herdade, abrangida por uma reserva de caça da freguesia de Arraiolos, a Brigada de Fiscalização Venatória preparou uma emboscada, durante a qual foram interceptados cerca de trinta furtivos que caçavam com furão 676. O Governo pouco fazia para ultrapassar a problemática indisciplina venatória. Face a esta dificuldade, em 1977, reuniram-se na Tapada Nacional de Mafra, símbolo das caçadas do Presidente Américo Tomás, as três Comissões Venatórias Regionais (Norte, Centro e Sul) e representantes do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, que no seu conjunto tomaram várias medidas: fecho da caça à perdiz-vermelha, lebre e sisão no último domingo de Novembro; proibição, em toda área do Continente, da caça à lebre e ao coelho-bravo com furão; diminuição do número de perdizes-vermelhas a abater por dia de caça; autorizar a caça à raposa, lobo e javali de acordo com regulamento próprio para cada espécie; restringir o número de caçadores e conferir maior rigor no exame de aptidão física, bem como maior dureza na aplicação das sanções venatórias aos transgressores 677. Como se pode ver, num país em que a gestão cinegética se limitava a simples interdições, em vez do ordenamento sustentável, quase todas as medidas caíam numa demagogia. A partir do momento em que se proibiu a caça ao coelho-bravo nas reservas de ordenamento, a densidade estimada por has aumentou excessivamente. Os transgressores actuavam, assim, indiferentes à fiscalização venatória. Entendeu, porém, o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca que o corpo de Guardas Venatórios não devia exercer exclusivamente funções de protecção, mas também de fomento da caça, educação e prevenção, mais importantes que a “ multa a um transgressor, porque caçou espécies proibidas” 678. Os abusos e ilegalidades praticados nos concelhos do Alentejo eram tão vulgares como a água que brota da fonte. Nos concelhos de Beja e Serpa, concretamente nas margens do Guadiana, depois de uma multidão de caçadores que ali se havia deslocado para a abertura da caça ao coelho-bravo com furão, caçar nas áreas proibidas. Além disso, a mesquinhez dos “buraqueiros”, que iam de buraco em buraco à espera que os 676 Informação Técnica dos Serviços de Fiscalização da Administração Florestal de Évora, 2-02-1977, ASFE. Jornal de Caça e Pesca, n.º 464, 15-07-1977, p. 4. A Portaria n.º 523-A/77, de 13 de Agosto regulamentou a caça com furão e limitou o abate diário, entre outras espécies, a uma lebre e seis perdizes-vermelhas, por caçador. 678 Relatório do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, 5-071977, ADGF. 677 331 coelhos-bravos saíssem, originou cenas de pancadaria e agressão entre caçadores, circunstância que obrigou à intervenção da GNR. A avidez tomou conta das mentes de tal modo, que com relativa facilidade, grupos de caçadores abatiam 50 coelhos-bravos, logo pelas “oito horas da manhã”. Estas ocorrências, que encontramos nos relatórios da brigada venatória, denunciam um quadro inexorável onde se movimenta uma cáfila de predadores, num Alentejo desordenado e sem rumo cinegético 679. Aliado a este drama, que completava a chacina, assistia-se com relativa frequência à caça praticada por linhas de 10 e 12 caçadores, acompanhados com quinze e vinte cães. Na Vila de Serpa, porém, as queixas reflectiam outra forma de predação levada a efeito por cães e gatos vadios 680. Igualmente, na freguesia de Figueira e Barros, concelho de Avis, a Brigada Venatória surpreendeu o furtivo António Maçarico a caçar coelhos-bravos com furão em zona proibida. Porém, o furtivo desafiou a autoridade, em vez de entregar a arma carregada e os documentos que lhe foram solicitados. Após alguma luta, os guardas acabaram por lha tirar à força 681. Em torno desta chacina ocorria a morte de espécies cinegéticas à queima-roupa, com a cumplicidade inequívoca do governo, de pouco servindo os constantes autos de transgressão à lei da caça levantados pela CVRS 682. Apesar dos protestos de agricultores, por causa dos prejuízos do coelho-bravo, nem sempre foram concedidas as autorizações para o desbaste com o auxílio do furão. A Comissão Venatória Concelhia de Serpa, por motivo da abundância de coelhosbravos na Herdade dos Canivetes e a pedido do proprietário, optou pela sua captura e posterior transladação para outras zonas, cumprindo assim a lei e beneficiando os terrenos livres 683. A simples presença da fiscalização em certos concelhos do Alentejo intimidava os transgressores. Assim aconteceu em 1977, quando as operações das Forças de 679 Relatórios da Brigada Florestal da CFE (ASFE) e ainda o Jornal de Caça e Pesca, n.º 449, 11-12-1976, p. 8. Idem, n.º 454, 15-02-1977. 681 O infractor foi condenado em tribunal na pena de 1 000$00 e dez dias de prisão remíveis a dinheiro (50$00 por dia) e o mínimo de imposto de Justiça no valor de 271$00. Idem, n.º 450, 15-12-1976, p. 8. 682 Por exemplo, 45 cães a vaguear, cujos proprietários foram identificados. Foram ainda interceptados 33 caçadores por caçarem no defeso; 6 caçadores que caçavam em zona de reserva de ordenamento cinegético e ainda 2 caçadores que foram interceptados com meios proibitivos. Idem, n.º 456, 15-03-1977, p. 7 e n.º 457, 304-1977, p. 7. 683 Idem, n.º 454, 15-02-1977, p. 7. 680 332 Segurança (Exército, Força Área, Marinha e GNR) actuaram com dinamismo 684 . Os caçadores utilizavam a informação circulante de modo ardiloso, quer nos locais de caça quer na presença da fiscalização venatória, não assimilando que essa fantasia só beneficiava os infractores. Em Agosto de 1977, na Vila do Crato, um modesto alentejano indignou-se contra a fiscalização venatória e a governação, prenúncio das movimentações eclodidas anos depois. Afiançava que, em 1974, na freguesia existira uma coutada comunitária que os caçadores da terra pouparam, no intento de servir de modelo para as demais freguesias, mas que o 25 de Abril de 1974 não deixou crescer. “Foi um autêntico crime” 685. A ambição dos Serviços de Inspecção, não atingiu os objectivos da fiscalização e de instauração da paz social. Pelo contrário, nos anos seguintes aumentou consideravelmente o banditismo venatório organizado. Em 1978, irromperem protestos de vários pontos do país devido à autorização para a caça ao coelho-bravo com furão, concedida pela Portaria n.º 520/78, de 21/8, na sequência de uma proposta do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, justificada pelos graves prejuízos causados à agricultura e não ser viável qualquer meio de correcção de densidade. Por esta via, foi autorizada a caça ao coelho-bravo durante o mês de Novembro nos concelhos de Alandroal, Arraiolos, Évora, Reguengos de Monsaraz, Borba, Elvas, Estremoz, Moura, Mourão, Portel, Redondo, Serpa e Vila Viçosa 686 . Tal deliberação, longe de pacificar o ambiente venatório, aumentou a indisciplina nos campos, quer pela disputa dos melhores buracos, quer pela clandestinidade originada pelos caçadores sem licença de uso do furão, como vimos, a exemplo do que aconteceu nas margens do Guadiana. Entre os incidentes graves que registámos, mencione-se a ocorrência no concelho de Évora, em Outubro de 1978, após os agentes da fiscalização venatória tentarem abordar um caçador furtivo que se dedicava à caça ilegal. Proferida a ordem de entregar a espingarda, os agentes foram ameaçados de morte por Francisco 684 «Quando amanhã cada caçador for fiscal mais de si próprio do que dos outros, porque tem consciência dos limites que a liberdade lhe permite, a caça estará defendida. Os guardas da caça deixarão então de andar a correr atrás dos transgressores. Colaborando com os caçadores, será então possível aumentar o número de espécies venatórias, protegendo as existentes, reintroduzindo outras, que tendo existido outrora, infelizmente desapareceram». Idem, ibidem. 685 «Tínhamos recebido 160 perdizes-vermelhas da CFE, para repovoamento da comunitária, e que foram largadas no campo. Foi então que veio o fim das vedas e assim chegou o crime e a comunitária não foi perdoada». Carta de João Carreira de Purificação, Jornal de Caça e Pesca, n.º 465,1-08-1977, p. 5. 686 Informação do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Outubro de 1978, ADGF. 333 Mamede, irmão do furtivo, surgido de trás de um silvado, de arma apontada e a gritar para aquele: “afasta-te desses porcos, desses bandidos, que eu já liquido os dois”. O irmão, por sua vez, respondeu: “aguenta um pouco a ver se eu me entendo com estes gajos”. Os meliantes, que entretanto conseguiram pôr-se em fuga, foram capturados e condenados em tribunal 687. Situação idêntica ocorreu no lugar de Vale de Mais, no mesmo concelho, no dia 8 de Outubro de 1978, por volta das quatro horas da madrugada e na sequência de uma rusga nocturna desencadeada pelos guardas da CVRS, na qual foram detectados vários caçadores furtivos, que “àquela hora já transportavam 21 coelhos-bravos” 688. Na Igrejinha, concelho de Évora, no dia 23 de Outubro de 1980, por volta das 5,30 horas, a Guarda Venatória no decurso de uma emboscada interceptou um grupo de furtivos que planeava caçar ao candeio, mas que entrou em debandada logo se aperceberam da presença da autoridade. Após alguma perseguição, foi capturado o transgressor António João Mateus, residente em Pêro Pinheiro, o qual tinha averbado na carta de caçador o título de vigilante. Os furtivos estavam devidamente apetrechados com uma bateria e uma arma, com a qual abateram alguns coelhos-bravos. Também a viatura onde seguiam os restantes companheiros transportava armas carregadas com cartuchos, coelhos-bravos e furões 689. Na aldeia do Rosário, concelho de Almodôvar, em 1982, um grupo de caçadores furtivos, que se fizeram transportar numa carrinha Toyota Dyna, equipada com arcas frigoríficas, caçou a bel-prazer desde o dia da abertura até quinta-feira. Também em Évora, durante a noite, foram disparados mais de 30 tiros de caçadeira, um dos quais atingiu o carro onde se encontrava a dormir José Emílio Ribeiro. Nesse período, igualmente foram interceptados dois caçadores do concelho, afora os outros que conseguiram fugir 690. Em Fronteira, no dia 16 de Novembro de 1982, os guardas da venatória surpreenderam em flagrante um grupo de caçadores clandestinos, residentes em Loures, Faro e Santarém, que seguiam num jipe. Após a intercepção, tentaram atropelar a brigada da fiscalização, que em legítima defesa forçou um dos agentes a disparar um 687 Jornal do Caçador, n.º 53, 1-10-1978, pp. 1 e 2. Idem, n.º 54, p. 2. Outros incidentes, com o mesmo grau de ilicitude, foram confirmados nos concelhos de Arraiolos, Mértola, Castro Verde, Vendas Novas, Moura, Vidigueira, etc. Informação colhida no Arquivo da DRAAL. 689 Idem, n.º 102,1-11-1980, p. 6. 690 O “ratoeirista-mor” deste concelho chegou a gabar-se de ter apanhado “365 coelhos-bravos” durante uma época venatória. Jornal de Caça e Pesca, n.º 583, 5-09-1982, p. 6. 688 334 tiro de admoestação no propósito de coagir o condutor a imobilizar a viatura, de tal forma que por infortúnio a bala atingiu um dos transgressores. Forçado a internamento no Hospital de S. José, o transgressor foi operado de urgência. Os restantes foram apanhados, mais à frente, e entregues à ordem do Tribunal judicial da comarca 691. Semelhante ocorrência, no dia 4 de Novembro de 1982, quando dois guardas da brigada de Arraiolos seguiam de motorizada para Évora. Inesperadamente, verificaram que dois indivíduos se dedicavam à caça furtiva no interior de uma reserva de ordenamento cinegético. Quando se aproximaram dos infractores, no objectivo de os abordar, foram alvejados com três tiros de caçadeira, um dos quais abateu o guarda Bilrão, e os restantes atingiram no rosto o colega João Caineça, de tal modo que lhe provocou a cegueira no olho esquerdo 692. Levados a juízo, o Tribunal de Arraiolos condenou Nelson Leitão, de 45 anos, natural de Avis, carteiro, a quatro anos de prisão por homicídio voluntário praticado e a título de indemnização, ao pagamento de 300 000$00 ao guarda-florestal Caineça; Adelino de Sousa, (o Lino), de 58 anos de idade, ajudante de motorista e caçador há mais de quarenta anos, foi condenado a seis anos de cadeia e pagamento de 750 000$00 à viúva e ao filho do Bilrão. Ambos foram definitivamente interditados de caçar e possuir armas 693. A morte do guarda-florestal Bilrão foi vivamente repudiada pelo Clube de Caçadores do Barreiro (e muitos caçadores, em geral) que, no dia 8 de Novembro de 1982, exigiu ao governo sanções rígidas e prometeu lutar por uma lei de caça que defendesse os interesses dos caçadores e o património cinegético nacional 694. As denúncias contra os infractores quando dirigidas aos órgãos próprios dos Serviços Florestais eram valiosas, como evidencia a queixa de um grupo de caçadores 691 Idem, n.º 587, 5-11-1982, pp. 1 e 5. Sobre esta matéria veja-se a decisão do STA, Proc. 27 625, de 9-10-1990, 2ª Subsecção do CA: «Não age como autoridade policial cuidadosa e diligente, como e suposto no agente ou funcionário do Estado por que se deverá aferir a conduta exigível, o guarda-florestal que dispara um tiro de espingarda Mauser, a uma distância de 80 metros e a 120 centímetros do solo, em direcção a um jeep, cujos ocupantes haviam desobedecido a ordem de paragem que lhes fora dada – por suspeita de caça ilícita – e decidido fugir. A conduta do A., atingido por aquele tiro, como ocupante do referido jeep e solidário na decisão de fuga, não pode considerar-se causa adequada do dano sofrido. Não se tendo determinado as espécies de incapacidades sofridas pelo A. desde o acidente, nem o respectivo grau, e licita a condenação no que se liquidar em execução de sentença, nos termos do art. 661, n.º 2 do Código de Processo Civil. Litiga de má-fé o A. lesado que deturpa a verdade da sua conduta delituosa com a clara intenção de acentuar o ilícito e a culpa do lesante». 692 Idem, n.º 588, 15-11-1982, p. 3. Esta versão foi confirmada pela vítima ao autor em entrevista realizada em Évora, em Março de 2002. 693 Antes do julgamento, juntou-se à porta do Tribunal uma multidão de cerca de 500 pessoas, que não aceitaram a sentença. «Os próprios réus devem ter ficado surpreendidos com a aplicação de pena tão ligeira e houve uma tristeza da parte da assistência». Jornal do Caçador, n.º 168, 1-08-1983, p. 3. 694 Jornal de Caça e Pesca, n.º 590, 15-12-1982, p.1. 335 remetida ao Jornal do Caçador, em 1981, contra a chacina operada pelos “ladrões de Ponte de Sôr”, nesse concelho, mas também em Avis, Fronteira, Cano, Casa Branca, Sousel, Crato, Alter do Chão, Vaiamonte, Monforte, etc. Os furtivos, que tinham o quartel-general em Ericeira, além da grande quantidade de caça (coelhos-bravos e lebres) abatida, concentravam-se junto à cooperativa entre as 22 horas e 02 horas, daí partindo em motorizadas devidamente equipadas. Segundo os queixosos, os guardas da venatória nada faziam porque passavam os dias na “Auto Reparadora Central Ouriense “ 695. O furtivismo oculta uma estratégia, habilmente planeada, que servia os interesses económicos dos infractores: o negócio da venda de caça clandestina. Em todo o Alentejo, grupos organizados, davam-se ao luxo de largar os seus empregos para se dedicar à caça, pois receptadores não lhe faltavam, em cafés, tabernas e casas particulares, sabendo-se que um determinado grupo de tractoristas fornecia um supermercado do Porto, durante todo o ano 696. A real dimensão do negócio da caça clandestina é algo que a história não pode avaliar, mas admitir como muito rentável. Assim o demonstram os testemunhos locais que descarregam toda a sua fúria contra os prevaricadores 697. Em 1983, como noutras ocasiões, o governo debatia-se com uma crise económica que afectou a fiscalização venatória. Os guardas não tinham fardas, por vezes, eram barbaramente assassinados, os meios de defesa eram insuficientes, não havia verbas disponíveis para combustível e reparação de veículos. Somente após o assassínio do guarda Bilrão, as patrulhas passaram a ser organizadas por cinco elementos. A escassa fiscalização, os desgastados jipes e unicamente um rádio ou telefone de apoio contribuíam para que os guardas-florestais, de fraca cultura, chegassem a tribunal onde habitualmente interrogados por advogados dos réus, astutos e bem preparados, os baralhavam de tal ordem, que faziam dar o “dito por não dito”. 695 Idem, n.º 562, 6-10-1981. Veja-se também Jornal do Caçador, n.º 114, 15-05-1981, p. 4. Esta denúncia comum a muitos concelhos do Alentejo, por onde realizamos entrevistas e caçadas, retrata um quadro, cujo grau de marginalidade é difícil de avaliar. Julgamos, com alguma segurança, que em todos os concelhos do Alentejo imperava a devassa. Em Ourique, um grupo de conhecidos transgressores comprou vários carros, à custa da venda da caça clandestina, sobretudo, para os restaurantes do Algarve. Os vândalos, após o regresso das caçadas, espalhavam as espécies abatidas pela rua principal, junto ao Banco Fonsecas e Burnay, verdadeiro flagelo que indignava os caçadores. Testemunhos colhidos em vários locais do Alentejo ilustram este cenário apocalíptico (Mértola, Castro-Verde, Aljustrel, Serpa, Vila Verde de Ficalho). 696 «O Observador», Jornal do Caçador, n.º 167, 15-07-1983, p.2. 697 Nas dezenas de testemunhos colhidos, referem-se as denúncias da caça furtiva como um negócio qualificado, quase tão natural como a colheita de cogumelos. 336 Este dilema sempre burilou a eficácia da fiscalização e da sua concretização à luz do direito venatório 698. A actividade cinegética no Alentejo, onde o respeito cívico não primava, segundo Jerónimo Lagartixo, Director do Jornal do Caçador, assemelhava-se a uma “balbúrdia, com o risco de não sobrar peça sobre peça”, devido à reiterada violação da lei, à autoridade fiscalizadora retraída e a judicial incerta, o que fazia aumentar a prevaricação. Num ano em que se proibira a caça à lebre, era inacreditável o número de animais abatidos e ostensivamente mostrados nos carros 699. Perante esta desobediência, o descaramento e provocação com que era praticada, não admira que os verdadeiros caçadores se indignassem, particularmente os locais, vigilantes permanentes dos utilizadores do espaço venatório, tomavam a peito a voz do protesto escrito. Assim o fez, um grupo de caçadores das Alcáçovas que enviou uma longa carta à redacção do Jornal do Caçador, delatando os transgressores das reservas de caça situadas nos arredores da vila (Canelas, Convento e Herdade de João Núncio Branco). Ao todo eram quarenta e cinco os indivíduos mencionados, com a particularidade de serem identificados pelo nome, profissão e local de trabalho 700 – um verdadeiro polvo numa vila com 3000 habitantes. Estes factos foram confirmados pelo Jornal o Caçador, após conversa com vários caçadores locais, que relataram uma desavença tida entre os próprios transgressores devido a desentendimento na partilha da caça 701. Diante deste desaforo, o Presidente do Clube Desportivo de Caça da Coutada, em Évora, aconselhou o fecho da caça por uma ou duas épocas, a extinção da guarda venatória e sua integração na guarda das matas nacionais; a criação de uma Brigada de Fiscalização de Caça, a fim de zelar pelos bens e haveres de todos os cidadãos; a proibição de comercializar a caça na época do defeso e actuação da fiscalização às arcas congeladoras das unidades hoteleiras. Sugeria, ainda, que o “dono mais indicado 698 Para sanar este problema o Director do Jornal do Caçador admitia: «Estou convencido de que as verbas pagas pelos caçadores devidamente estruturadas e bem aplicadas dariam para salvar a caça em Portugal, e talvez ainda sobrasse algum para ajudar a amortizar a divida externa». Idem, n.º 162, 1-05-1983, p. 8. 699 Assim desafogava: «Verdadeiramente a caça em Portugal, particularmente no Alentejo, é um pandemónio». Idem, n.º 150, 15-10-1982, p. 12. Sobram-nos aqui largos testemunhos corroborando esta leviandade, inclusive presenciada pelo próprio autor nas suas deslocações venatórias. O afrontamento banalizou-se de tal modo que os infractores vendiam as lebres em plena praça pública alentejana. 700 Entre os infractores contavam-se, médicos, guardas-republicanos no activo e reformados, negociantes de gado, barbeiros, taberneiros, tractoristas, camionistas, electricistas, sapateiros, padeiros, curtidores de peles, funcionários camarários, da Caixa de Seguros, da Junta das Estradas, bancários, pintores, taxistas, ourives, empregados de papelaria, soldadores, carpinteiros, talhantes, pedreiros, trabalhadores rurais e desempregados, etc. Jornal do Caçador, n.º 204, 15-02-1985, p.11. 701 Idem, ibidem. 337 para a caça” seria o Estado, a quem competia instituir três tipos de reservas: Estatais, Turísticas e Associativas, bem como repovoar o terreno livre, na prossecução do “interesse de todos os caçadores” 702. Em Ourique, um caçador denuncia ao Jornal do Caçador os furtivos que dizimavam lebres e coelhos-bravos, usando jipes, carros, tractores de toda a maneira 703 . Também junto à Herdade dos Pinheiros, no concelho de Évora, foram desactivados pelos guardas especiais de caça cerca de 40 laços destinados a apanhar lebres. Nesse período, foi detido um conhecido furtivo por caçar com furão; depois de responder em juízo, duas vezes na mesma semana, foi condenado em oitenta dias de prisão não remíveis a dinheiro, acrescido de oitenta mil escudos de multa 704. No concelho de Mourão, a fiscalização venatória, após uma aturada perseguição, interceptou dois indivíduos que caçavam com furão na Ribeira de Alcarrache. Mais tarde, foi avistada uma viatura a circular pela zona, que os guardas presumiram transportar cúmplices 705. Nesse tempo, um respeitado caçador do Crato sustentava o desejo de constituir uma zona de caça comunitária, que serviria de modelo a todos os caçadores. A busca de um auxílio configurava um anseio admirável: “Só precisamos do primeiro apoio, o resto fazemos nós. Se eu soubesse escrever, como vontade tenho de ver os caçadores voltarem a casa com caça para a família, escrevia até ver realizado o sonho (...). Faça-se qualquer coisa, para que a caça seja o desporto alegre e não um sacrifício” 706 .Naturalmente, que este desígnio vindo de um homem prudente e honesto, deixa transparecer a idiossincrasia de um povo em constante peregrinação. Enfim, de toda a parte chegavam casos de graves atropelos à lei da caça. Falamos da brandura da magistratura, do mau ordenamento das reservas, da coabitação de alguns guardas da venatória com os caçarretas. Muitos guardas-florestais até participavam nos petiscos de caça, bem sabendo que provinha de colheita clandestina. Manuel da Silva Gil, a este propósito tocou na ferida cinegética: “Quando se fizer a história da destruição da cinegética Nacional dos nossos dias, certamente estes magistrados, que julgam com o coração, em obediência a certos princípios 702 Idem, n.º 152, 15-12-1982, p. 11. «Ora o governo devia tomar conta disto. Aqui todos os caçadores sabem que há uma seita que sai quase todas as noites para a caça nocturna». Jornal de Caçador, n.º 170-171, 1-09-1983, p. 8. Na verdade, os predadores actuavam com a complacência das autoridades. 704 Idem, ibidem. 705 O infractor declarou à saída do tribunal que a multa seria paga com o «lucro dos coelhos que iria apanhar nessa semana». Idem, n.º 268, 15-10-1985, p. 9. 706 Idem, ibidem. 703 338 ideológicos colaborando na obliteração de um património que é de todos (...) devem desde já ser condecorados com um emblema de cortiça queimada. Muitos são os indivíduos que transgridem e os juízes, na prática, deviam concluir que não será com paninhos de água quente que prestarão à cinegética Nacional a terapêutica necessária” 707. Reconhecia-se a culpa dos caçadores que contribuíam para a desordem, porque limitavam a sua acção à predação dos recursos bravios sem se esforçarem na sua protecção. Terminada a época, fácil era verificar as transgressões por todo o país. Todos prevaricaram, desde deputados, passando por caçadores vigilantes e até caçadores residentes. Guardas da venatória foram assassinados e outros ficaram incapacitados para sempre. Quantos caçadores, no final de cada época venatória, abandonavam os cães nos campos ou nas estradas? Ninguém sabia ao certo, mas imagina-se, muitos. Em 1980, a Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, que tutelava a matéria da caça, distribuiu por elevado número de caçadores um calendário onde se pretendia a recolha dos elementos sobre o número de espécies abatidas, por meses e durante aquela época. Depois de preenchidos deviam ser enviados aos serviços. Apenas responderam 0,4% dos caçadores: “Um em cada duzentos e cinquenta prestou a sua colaboração” 708. Este exemplo, permite-nos, nesta época, classificar o caçador português como um eterno aproveitador de um capital cinegético, em cuja produção não participava minimamente, a não ser exigindo, em cada época e em cada momento que a ordem natural repusesse os recursos bravios, esquecendo-se que, os agricultores tinham em todo o processo produtivo uma função essencial. Evidentemente, não era com comportamentos negativos que se podia alterar o universo da caça, quando os próprios interessados não colaboravam naquilo que era de interesse mútuo. Mencione-se que o caçador português sempre foi avesso a inquéritos e perguntas. Por vezes, sem a preocupação de existirem ou não espécies cinegéticas e da forma como eram estioladas. A primazia do terreno livre concebia-se numa lógica simplista e ilusória, sustentada na ideia que ao Estado competia a gestão da caça, obviamente, sem atropelar os movimentos dos caçadores. Outro ilícito praticado na maioria dos concelhos raianos, consistia na recolha de ovos dos ninhos de perdizes-vermelhas com a finalidade de serem chocados por 707 708 «Vale a pena lutar», Jornal do Caçador, n.º 104, 1-10-1980, p. 10. Idem, n.º 107, 1-02-1981, p. 8. 339 galinhas. No concelho de Serpa, nomeadamente nas freguesias de Pias, Vale de Vargo e Vila Verde de Ficalho esta prática ocasionava rendoso comércio com a venda ilegal de perdigotos para Espanha, cujos compradores pagavam pelos machos entre 2 000$00 a 2 500$00709. Este mercado negro, conhecido das autoridades locais, provinha da paixão dos espanhóis pela caça do chamariz, que se resumia à utilização de um perdigão mantido em sequestro numa gaiola, onde desenvolvia o canto atípico até atingir a mestria. Durante a época do cio o perdigão engaiolado era transportado para os locais frequentados por perdizes-vermelhas bravias, com a função de as atrair para a proximidade, que eram então abatidas exclusivamente no chão com um tiro de caçadeira pelo caçador emboscado. Em Portugal, a modalidade apesar de proibida por lei, acabou por resvalar na caça clandestina protagonizada por muitos caçadores das aldeias. Ao lado do contrabando, outra actividade ilícita se praticava através do envenenamento das espécies cinegéticas, com trigo roxo 710 . A caça nocturna no Alentejo, apesar de proibida, constituía uma prática habitual. No dia 4 de Agosto de 1984, na Herdade dos Rafeiros, no concelho de Montijo, quatro “gatunos da caça”, que se fizeram transportar em duas motorizadas, foram interceptados pelo guarda-florestal quando caçavam dentro de uma reserva de caça, com o auxílio de faróis e munidos de duas espingardas 711. Proferido o veredicto, os réus foram condenados com penas suspensas de três anos de prisão, pagaram o imposto de justiça e o juiz restitui-lhes as motorizadas e espingardas. Como foi possível esta sentença? Como se justifica que o juiz dirimisse em juízo as infracções cometidas e agravantes, tais como, caçar em tempo de defeso, dentro de uma reserva de ordenamento cinegético, de veículo motorizado, com o auxílio de faróis, durante a noite? 709 Recolha oral a informantes-chave, muitos dos quais, outrora envolvidos no negócio. Jornal de Caça e Pesca, n.º 584, 15-09-1982, p. 4. Esta denúncia, por nós comprovada através de dezenas de testemunhos na zona raiana (Vila Verde de Ficalho, Aldeia de Nova de S.Bento, Minas de S. Domingos, etc.), assume uma cumplicidade inequívoca com o contrabando, tal como outros negócios que alimentavam o horizonte das gentes pobres ou, noutras circunstâncias, avessas ao trabalho braçal, que praticavam com entusiasmo a recolha de ovos ou a captura de perdigotos com quatro ou cinco semanas de vida que depois contrabandeavam para os vizinhos espanhóis. Era um negócio lucrativo. 711 Os «rapaces» (termo usado pelo jornal) foram identificados com sendo, Domingos Nunes, pedreiro; João Pinto, serralheiro mecânico; António Marçal, operador de máquinas; Manuel Ramos, canalizador, todos residentes no Passil, concelho de Alcochete. Na ocasião, abateram 26 coelhos e 2 lebres. Idem, n.º 635, 5-111984, pp. 1-2. 710 340 Este episódio e outros semelhantes reforçam a convicção do funcionamento da Justiça laxiva. Os caçadores desportistas esperavam mais para inibir os infractores de praticarem tais actos, com a agravante da impunidade desmotivar as autoridades venatórias. No concelho de Alandroal, no dia 26 de Setembro de 1988, após denúncia de forte tiroteio na calada da noite, a GNR local, por volta das cinco horas da manhã, surpreendeu dois furtivos que caçavam ilegalmente com o uso de caçadeira numa reserva de caça no lugar das Passadeiras, junto à barragem de Terena. Os dois cadastrados, que cumpriam penas suspensas por decisão do Tribunal de Arraiolos, no momento da intercepção tinham em sua posse 16 coelhos-bravos e 8 lebres, que haviam abatido durante a noite, com a agravante de não possuírem carta de caçador, nem livrete da espingarda. Ouvidos em juízo confessaram que praticavam desde longa data esta chacina todo o ano em reservas de ordenamento cinegético, exclusivamente para negócio 712. Também na Reserva do Parque Africano, em Arraiolos, eram frequentes as invasões por grupos de caçadores que não respeitavam a proibição de caçar. J. Pinto, em Novembro de 1981, relata a verdadeira chacina provocada por uma incursão de nove caçadores desconhecidos 713. Aumentava, assim, a crítica à Fiscalização Venatória, organismo que tradicionalmente as populações rurais e os verdadeiros caçadores confiavam em por cobro ao movimento de predação e chacina. Em 1983, o escritor José Manuel Queimado descreve o banditismo organizado que vivia do negócio clandestino da caça no Alentejo, região “alma materna” de todas as espécies cinegéticas, sobretudo, o distrito de Évora, que vivera um período áureo nos anos cinquenta, em abundância de perdizes-vermelhas, lebres e coelhos-bravos 714. 712 Com sempre, o Tribunal foi leve na pena a aplicar: 150 dias de prisão e todos os instrumentos a favor do Estado. A advogada dos condenados recorreu para o Tribunal da Relação, pelo que os criminosos saíram em liberdade. Jornal do Caçador, n.º 280, 1-11-1988, p. 1. 713 O desabafo do cidadão era elucidativo «Isto, aliás, confirma o velho ditado popular: quem tem vergonha anda magro». Idem, n.º 127, 1-12-1981, p. 5. 714 «A lembrança desse período (...) e o presente causa-me horror e tristeza, e não concebo como é possível chegar-se este nível de vida tão degradante. Parece que foi uma onda de loucura que envenenou o espírito humano e o tornou refractário ao trabalho honesto e útil, visto que grande percentagem de homens, desprezando as espécies, dedicam-se a destruir o património de todos os portugueses – a Natureza –, começando pelas aves e outros animais, um massacre de dia e de noite, com toda a espécie de ratoeiras e armas em Janeiro, e vendendo caça na praça nos restaurantes, hotéis e a quem compra. Isto basta para dizer a calamidade a que se chegou». Idem, n.º 173, 15-10-1983, p. 1. 341 A conceder-lhe razão, em Aljustrel, no ano de 1984, os caçadores queixam-se dos transgressores, que de noite e dia, de jipe e motorizada, com o auxílio do furão “liquidam a caça”. As autoridades venatórias eram acusadas de nada fazer para o cumprimento da lei e aparecerem no campo, “completamente bêbadas”, tomando por vezes, atitudes incompreensíveis, como exemplo, apreenderem os documentos e a espingarda a um caçador que “até chorou, visto não andar a transgredir” 715. Igualmente na Alcaria Ruiva, no concelho de Mértola, um caçador queixa-se de que durante o exercício da caça um pastor lhe envenenou a cadela junto a uma ribeira, após ingerir carne toxicada com “605 forte”. Formulada a queixa à GNR, verificou-se que a carne tinha sido colocada a mando do patrão, que pediu para o caso não ir a tribunal, a troco do pagamento de uma indemnização, que o lesado livremente fixou em 20 000$00, mas que o dono da herdade achou um exagero e não pagou 716. Ocasião para o cometimento de infracções não faltava no Alentejo. Ocorria durante a tradicional abertura da caça às rolas em 15 de Agosto de cada ano, junto a uma água ou um restolho, sendo raros os que continham o ímpeto predatório de abaterem perdizes-vermelhas, lebres ou coelhos-bravos. Um acontecimento emblemático, entre tantos que nos foram revelados, ocorreu na Herdade dos Cachopos, em 15 de Agosto de 1982, concelho de Mértola. Um caçador após presenciar vários transgressores a caçarem perdizes-vermelhas a tiro de caçadeira em época proibida, quando procurou saber das razões de tal acto foi ameaçado de morte por um dos infractores 717. Na Herdade da Defesa de S. Brás, no concelho de Moura, em 13 de Novembro de 1983, a Brigada de Fiscalização da Venatória interceptou dois indivíduos, em época proibida, a caçarem coelhos-bravos com furão. Os infractores, em vez de obedecerem à ordem de detenção, puseram-se em fuga com as armas apontadas para a autoridade. Como foram perseguidos e encurralados junto ao Guadiana lançaram-se à água e 715 O caso acabou por ser dirimido em tribunal por falta de acordo no montante a indemnizar, pois o caçador exigiu uma cadela coelheira, cujo preço atingia os 22 000$00, quantia que o proprietário não aceitou, argumentando que o «animal era vulgar e não merecia esse valor». Idem, n.º 178, 1-01-1984, p. 18. 716 Idem, ibidem. 717 O caçador, indignado, perguntou: «Então, isto é tempo de caçar às perdizes?». Respondeu o infractor: «Deixe-se estar calado senão sai-lhe cara a pergunta». Não se contentando, ameaçou o pobre homem que sensatamente se afastou do local. O desabafo do denunciante era elucidativo da penúria que se vivia nos campos: «Que atraso de mentalidade, que tristeza de portugueses (...) que considero bandidos».O mesmo caçador e mais oito colegas, no dia 13-12-1982, foram à caça junto a Reguengos de Monsaraz. Pouco depois, surpreenderam seis grupos de caçadores que caçavam furtivamente com furão. Idem, n.º 131, 15-01-1982, p. 9. 342 atravessaram a nado para a outra margem, já no concelho de Portel, onde acabaram por ser detidos seis horas depois 718. As margens do Guadiana, como temos vindo a relatar, sempre foram cobiçadas pelos infractores. José Domingos Rosa, um velho e experiente caçador de Estombar, denunciou a caça ilegal com furão, próximo da Ponte Nova. O mesmo sucedeu junto ao Alqueva, no terceiro domingo, a escassos quilómetros do Torrão, na estrada para Alcáçovas, protagonizada por nove indivíduos numa reserva de ordenamento cinegético, para onde iniciaram o massacre disparando contra as placas de sinalização no propósito de as destruir, de tal ordem que “o tiroteio fazia lembrar o alvorecer duma manhã de festa” 719. Igualmente, na estrada de Amieira para Portel se assistiu a um incidente inusitado. Um grupo de caçadores que seguia a pé para casa, carregados de caça – alguns com peças de caça além do permitido por lei –, por mero acaso, um dos caçadores vendeu sete perdizes-vermelhas a um indivíduo, a quem afirmou com naturalidade, que não tinha medo de “pendurar a mais” 720. No dia 7 de Setembro de 1980, Homero Fagulha, famoso caçador, fez a abertura da caça às codornizes em Alvalade Sado, onde presenciou vários caçadores que atiraram a perdizes-vermelhas e lebres, quando tal prática era proibida. Em Portel, também assistiu à caça de coelhos-bravos com redes de tresmalho, protagonizada pelo “senhor Ramalho” apesar de não ser denunciado, porque os “vizinhos e amigos não tinham coragem para isso”. Entretanto, vendia “às sacadas os coelhos-bravos a 100$00 o quilo”. No dia 22 de Outubro de 1980, no sítio da Fúria de Cima, no Fundão, a GNR interceptou três indivíduos a caçarem numa reserva de ordenamento cinegético, onde já haviam abatido sete perdizes-vermelhas, duas lebres e dois coelhos-bravos 721. Em pleno coração do Alentejo, na aldeia de Baleizão, já na vigência do RCE, em 1987, uma patrulha da GNR apreendeu treze perdizes-vermelhas ao conhecido receptador, Francisco Eduardo Martins (o Baleizão) que, naquele dia, se fazia acompanhar pelo caçador furtivo, José Augusto Pereira, que abatera as perdizes- 718 Um dos quais já se encontrava no interior de uma viatura; o outro, na estrada Moura para Alqueva. Idem, ibidem. 719 Idem, n.º 485, 5-06-1978, p. 3. 720 Idem, ibidem. Recorde-se que a lei fixava em 6 perdizes-vermelhas o máximo que cada caçador podia abater num dia de caça. 721 Idem, n.º 541, 5-10-1980, pp. 7-8. Em 1981, o Jornal do Caçador lançou o seguinte repto: «Quem disse que as lebres tinham limite de abatimento? Eu julgo que deve ser boato, pois ainda no primeiro dia de caça vi indivíduos com três e quatro destes exemplares!». «Rebatendo», Idem, n.º 125, 1-11-1981, p.7. 343 vermelhas na reserva de ordenamento da Herdade do Seixo, próximo de S. Miguel de Machede. A ocorrência principiou na noite de 2 de Outubro de 1987, após Francisco Martins transportar José Pereira para a reserva da Herdade da Galvoeira, arredores de Évora, onde durante várias horas caçou com auxílio de um candeio. De regresso a Évora, por volta das quatro horas da madrugada, os dois indivíduos foram surpreendidos por uma patrulha da GNR que os interceptou junto da Ponte do Rio Degebe, na estrada de Redondo. Foram apreendidos a viatura, a espingarda e 13 perdizes-vermelhas, bem como os demais instrumentos utilizados 722. Mais tarde, os agentes deslocaram-se a casa do condutor do veículo, com a sua permissão, encontrando ali dezassete lebres, dois coelhos-bravos por esfolar e dois sem pele, e ainda dezasseis perdizes-vermelhas depenadas e mais quinze com penas. O tribunal apurou que Francisco Martins ajustara com o José Pereira o preço de 400$00 cada perdiz-vermelha, e 800$00 cada lebre, respectivamente, que abatesse 723. Em 1985, a abertura da caça com furão no Alentejo, nos dias 24, 28 de Novembro e 1 de Dezembro, provocou um rude golpe nas aspirações dos verdadeiros caçadores. Segundo relatos de pessoas, durante a noite nas herdades da Defesa Grande e da Atafona, o desaforo era tal, que se assemelhava a um verdadeiro cenário dantesco, com cerca de meio milhar de fogueiras localizadas junto aos covis que aqueciam quase 5 000 caçadores. Quantos furões se perderam nesse dia nas herdades e que não estavam registados? 724. Poucos foram os caçadores contactados que acataram a medida tomada, como necessária. A fiscalização, como era óbvio, limitou-se a vigiar as reservas existentes nestes locais para evitar que fossem invadidas 725 . Na realidade, a caça com furão foi um erro grosseiro cometido pelo Secretário de Estado da Agricultura, num país à beira 722 Idem, n.º 262, 15-10-1987, pp. 11-12. Idem, ibidem. 724 O autor da notícia, que contactou no local vários grupos de caçadores de diferentes pontos do país, foi unânime nas respostas colhidas: «Isto é o maior escândalo (….) foi uma pena a TV não mostrar ao país este triste espectáculo para dar a conhecer aos portugueses e ao mundo a forma como se caça aos coelhos em Portugal. Imagens que deveriam ser observadas pelo Sr. Primeiro-ministro e certamente punir os responsáveis por esta tão grave anomalia». «Caça com furão no Alentejo», Jornal do Caçador, n.º 222, 15-12-1985, p. 7. 725 «Até mudamos um tabuleta para caçarem num marouço que ficava na extrema da reserva, porque sabíamos que iria haver problemas se não (a) tirássemos. Afinal caçou-se dentro e fora dos limites, mas que poderíamos nós fazer frente a uma tão grande avalanche? Era do nosso conhecimento que a maior parte dos caçadores caçavam sem registo de furão, mas como poderíamos agir se as pessoas não tiveram tempo de os registar, pois os Serviços resolveram tudo tão apressadamente». Idem, ibidem. 723 344 da destruição da espécie, cuja estrutura venatória apresentava sintomas de total incapacidade de gestão do património cinegético. Por outro lado, não se conciliavam os interesses dos agricultores com o dos caçadores, pelas razões que o património nacional estava ao dispor de todos sem controlo. Perante este mórbido quadro, os Serviços Florestais de Évora justificaram a autorização pela solicitação dos proprietários para corrigir a densidade de coelhosbravos nas herdades e assim resolver os prejuízos causados. Os Serviços Florestais, face à lei e ao Regulamento em vigor, tinham apenas três alternativas: ou indemnizavam os donos, transferiam os coelhos-bravos para outros locais ou, então, autorizavam a correcção das espécies. Obviamente, que a última medida, aliviou os cofres do Estado, mas criou um problema social grave para o caçador comum que não aceitou a experiência correctiva, originando, por esse motivo, protestos generalizados por todo o Alentejo 726. A violência também fazia parte dos horizontes venatórios, como se demonstra no caso julgado pelo Tribunal do Circulo Judicial de Beja, em 1990, que condenou Domingos Pereira da Conceição, como autor material de um crime de coacção de funcionário com arma, praticado no dia 27 de Setembro de 1984, cerca das 11,30 horas, na freguesia de Seles, concelho de Vidigueira. O réu foi surpreendido a caçar em época proibida pelos guardas-florestais, António Barrocas e Joaquim Serrano, que lhe solicitaram a respectiva identificação e a entrega de duas perdizes-vermelhas mortas, que trazia consigo escondidas debaixo do casaco, bem como a espingarda que empunhava 727 . Reagindo a tal instância, atirou as perdizes-vermelhas para ao chão, deu dois passos à retaguarda e apontou a espingarda de caça na direcção dos guardas, proclamando, ao mesmo tempo, em voz alta: “Eu fodo a cabeça a tiro a qualquer um de vocês, que tentar aproximar-se” 728. Actuando pelo modo descrito, o réu logrou impedir os guardas de levarem a cabo a apreensão da espingarda e recolherem os seus elementos de identificação. Por sua vez, o dono da espingarda, Mário Manuel Pereira Camaro, que incentivou o réu a não a entregar, pôs-se em fuga do local. 726 Da imensa documentação alusiva aos protestos, a mais evidente provinha dos caçadores locais, que não entendiam nem queriam entender, a filosofia dos serviços florestais, que culpavam de conceder privilégios, em vez de transferirem coelhos de umas herdades para outras. 727 Relatório do Tribunal Judicial de Beja, 2-03-1990, ASFE. 728 Idem, ibidem. 345 O Tribunal condenou o réu na pena de um ano e seis meses de prisão, a pagar as custas do processo e a quantia de 5 000$00, a título de indemnização a cada guardaflorestal, mas atendendo à boa conduta posterior, concluiu que a simples censura bastava para o afastar da criminalidade e, por esse motivo, suspendeu a execução da pena 729. Decorria o ano de 1989, em Mértola, o Administrador da ZCT da Herdade do Belo, propriedade de António Champalimaud, interpelou o condutor de uma carrinha de caixa aberta, que circulava por uma estrada vicinal no interior da Herdade, no propósito de o fazer voltar para trás, pois transportava 11 caçadores que exibiam seis espingardas fora da bolsa obrigatória por lei. Porém, o condutor, após alguma agressividade, recusou-se a fazê-lo e respondeu que “passava por onde queria e que ali ninguém lhe dava ordens”. Após a análise jurídica da participação, os Serviços Florestais concluíram que o mesmo não constituía crime no âmbito da lei da caça, mas do Código Penal (n.º 2, do Art.º 388). João Champalimaud, não conformado, apresentou queixa na GNR de Mértola que, por sua vez, elaborou auto de ocorrência ao condutor 730. Em Reguengos de Monsaraz, também um grupo de caçadores se queixou, por escrito, aos Serviços Florestais de Évora contra as joldas de 20 caçadores que caçavam com redes e furão, cuja caça vendiam em plena praça pública. Afiançavam que a “Guarda conhecia os infractores, mas não os apanhava porque não queria, dado serem seus amigos”. O desespero dos caçadores chegou ao ponto de pedirem que viessem guardas de fora ou o apoio da GNR, porque senão “ficava tudo arrasado”. Até insistiam: “ Venham cá domingo depois de almoço e vigiem ou escondam-se bem nas herdades e zonas onde há covas ou buracos de coelhos-bravos, aqui nos arredores de Reguengos. A nossa opinião é esta: ou os senhores fazem o serviço apanhando essa dúzia de transgressores ou, caso contrário e contra a nossa vontade, iremos fazer o mesmo” 731. As transgressões não cessavam por todo o Alentejo e o comércio de caça era insolente: lebres, perdizes-vermelhas, coelhos-bravos, abatidos clandestinamente seguiam do Alentejo para Leiria e Braga, como se confirmou durante uma operação de 729 Idem, ibidem. Auto de Noticia da Brigada de Fiscalização Venatória de Mértola, 15-08-1989, ASFE. Ignora-se o desiderato deste episódio. No entanto, a passagem dos caçadores pelos caminhos vicinais, a pé ou por transporte, abriu o caminho a uma série de conflitos por todo o Alentejo, à medida que o regime cinegético privado progredia. 731 Insistiam: «Façam o favor de apanhar esses filhos da mãe, que actuam de tarde». Indicava o nome dos infractores e a respectiva profissão: Júlio Pedreiro de Xabregas, Zé da Ofemea (pintor), Zé Paixão (pedreiro), Palácio (pedreiro), Arlindo Rato, Inácio Rotechil, Octávio Lota e um pastor da Casa Leal. Os Serviços mandaram arquivar a queixa, quando deviam procurar as razões subjacentes ao assunto. Como esta denúncia descobrimos outras, que tiveram o mesmo fim. Carta de um grupo de caçadores de Perolivas ao Chefe da CFE, 3-11-1989, ASFE. 730 346 fiscalização realizada pela GNR de Ponte de Sôr, na qual interceptou uma viatura em cujo interior se encontravam 4 lebres, 16 coelhos-bravos e 4 perdizes-vermelhas 732. Também no mesmo dia, um industrial de Beja foi interceptado pelas autoridades quando transportava na sua viatura dez perdizes-vermelhas e oito coelhos-bravos – que em tribunal alegou ter abatido em Espanha apesar de documentalmente não conseguir provar tal argumento. O juiz, perante o enredo considerou que não havia matéria para julgar e mandou entregar todos os pertences ao homem 733. As zonas de ordenamento cinegético, como vimos, também foram objecto de invasão. Em 1980, próximo de Elvas, as autoridades detiveram Rui Almodôvar no exercício do acto venatório numa reserva sem licença e seguro. Nesse ano, em Montemor-o-Novo, a GNR surpreendeu quatro indivíduos por prática de exercício da caça em local proibido 734 . Também, em Moura, junto ao Perímetro Florestal das Ferrarias, António Branco, de 35 anos, tractorista, residente em Barrancos, foi interceptado a caçar munido de uma espingarda de caça dentro de uma zona de ordenamento cinegético, onde o exercício da caça era proibido, tendo abatido um coelho-bravo 735 . Em Brinches, o agricultor Manuel Castelhano foi interceptado pela GNR, mas abandonou o colete e fugiu para o Monte, que distava cerca de 200 metros do local. Os agentes da autoridade sabiam que o infractor se encontrava interdito de caçar, pelo que o intercederam. Mais tarde veio a confessar que andava “a ver se matava uma rola” 736. Junto a Vale Formoso, Póvoa de S. Miguel, no dia 21 de Outubro de 1989, a GNR interceptou João Miranda, pedreiro, de 50 anos de idade e Cândido Barbosa, motorista, de 42 anos de idade, residentes em Amadora e Algés, a caçarem coelhosbravos com dois furões e dezanove redes. Os infractores desculparam-se em tribunal que os furões não lhe pertenciam, e que os haviam encontrado naquele local por mero acaso, presumivelmente ali deixados por caçadores desconhecidos 737. O local onde se encontravam constituía uma reserva de ordenamento cinegético, na qual não era permitido o exercício da caça, agravado ainda por ser tempo de defeso o que bastava para a ilicitude da sua conduta. Afinal, o que pretendiam, pela evidência dos factos, era simplesmente capturar os coelhos-bravos existentes nas tocas. Os 732 Jornal do Caçador, n.º 1, 1-12-1988, «Páginas Agro-pecuárias» p. IV. Idem, ibidem. 734 Jornal de Caça e Pesca, n.º 683, 3-11-1980, p. 12. 735 Auto da Brigada Florestal de Moura, 26-11-1990. 736 Auto da GNR de Moura, 26-08-1990. 737 Sentença do Tribunal Judicial de Moura, 23-10-1989, ASFE. 733 347 arguidos eram ambos de modesta condição social. O Miranda era delinquente primário e caçador há mais de 20 anos. O Pereira, caçador há mais de 25 anos, já respondera em Tribunal por delitos causados à sua profissão de motorista e tinha quatro filhos a seu cargo. O Tribunal considerou o grau de ilicitude dos factos: grande desrespeito pelo património cinegético nacional, de mais a mais, utilizando um meio, o furão, extremamente pernicioso, em tais circunstâncias, para a população de coelhos-bravos, numa matéria ligada à prevenção geral, onde a caça assumia particular relevo e numa área onde as tradições venatórias eram grandes, como a desta comarca, e onde se tinha vindo a assistir “ gradualmente à delapidação do património cinegético, que era de todos, mediante autuações à margem da lei e da própria deontologia do caçador” 738. Tal dificultou qualquer decisão no sentido de suspensão de execução da pena. Nessa condição, o tribunal condenou ambos à pena única de 125 000$00, ou em alternativa, 277 dias de prisão 739. Mas as infracções à lei da caça também atingiram a magistratura. Em 1987, um juiz do Tribunal de Ovar foi apanhado pela Brigada dos Serviços Florestais de Castelo Branco, quando participava numa batida clandestina ao javali, juntamente com mais oito elementos 740. Em 16 de Novembro de 1987, o Tribunal de Redondo condenou um indivíduo de alcunha “Terror”, residente em Montoito, que na companhia do irmão foi interceptado pelas autoridades a caçar com furão nas margens do Guadiana 741. Ainda nesse ano, responderam em Tribunal três indivíduos, todos bancários e residentes, respectivamente, em Corroios, Queluz e Barreiro, por prática de caça nocturna, com o auxílio de uma luz na cabeça, actividade que a fiscalização da caça interrompeu cerca das 23 horas de 30 de Novembro de 1987, junto ao Moinho das Mestras, onde estes se acoitaram, sendo-lhes apreendidos 16 coelhos-bravos que haviam escondido 742. 738 Idem, ibidem. De acordo com o Decreto-Lei n.º 274/A/88, de 3/8, os arguidos foram considerados co-autores materiais, em concurso real, de um crime de caça com furão; um crime de caça no defeso; um crime de caça com redes; um crime de caça na reserva. 740 O magistrado foi julgado no Tribunal da Relação de Coimbra, mas desconhece-se o veredicto final. Idem, n.º 687, 3-01-1987, p.1. 741 Na altura da detenção, já havia abatido dezassete coelhos. Jornal do Caçador, n.º 266, 15-12-1987, p. 11. 742 O tribunal aplicou ao Diamantino a pena de 120 000$00 de multa ou, em alternativa, 180 dias de prisão à razão de 500$00 diários e três anos sem poder caçar. Todos os apetrechos reverteram a favor do Estado. O 739 348 O Jornal do Fundão, em 1984, noticia que na reserva dos Lamaçais, próximo da Covilhã, foram interceptados sete indivíduos pela Brigada Fiscal da Venatória que vieram a ser condenados em Tribunal 743. Em 26 de Novembro de 1991, nas imediações da povoação de Quinhendros próximo das Quintas do Taipal e de Foja, Montemor-o-Novo, propriedades submetidas ao RCE, ocorreu um incidente entre caçadores e guardas-florestais de Coimbra, que culminou com uma coronhada na cabeça do guarda António Vaz e lhe provocou um ferimento, tendo sido suturado com 12 pontos, e ainda um ferimento num braço de um caçador, provocado pelo disparo de uma bala. Ali abundavam os patos em quantidades que não afluíam no regime geral. Tal coincidência propiciava aos caçadores, na passagem das aves, a oportunidade de se colocarem entre uma e outra propriedade, para “fazerem o gosto ao dedo”. Só que, tais caçadores eram indistintamente os que caçavam no terreno livre e nas associativas. Estes caçavam às quintas-feiras e domingos com aqueles no regime geral, e nos outros dias caçavam nas suas zonas de caça. Daí que, naquele dia, quando apareceram os fiscais, “amena” discussão se travou com os agentes da autoridade e alguns caçadores. Cenas de pura violência, que envolveram aperrar de armas, ameaças e o envolvimento de dezenas de pessoas, tal foi o balanço deste grave incidente. Segundo o Jornal Correio da Manhã, 40 incidentes e pelos mesmos motivos, já haviam ocorrido em vários pontos do país 744. A mudança cultural do caçador e do lavrador era, neste caso, a mais eficiente medida de fiscalização que se podia aplicar, contrariamente ao recurso às multas e repressão violenta que nada resolveu. O caçador transgressor não reconhece nem aceita a multa ou repressão, mesmo quando admite que está em transgressão, arranja sempre uma desculpa para se livrar de responsabilidades, se for obrigado a pagar a transgressão, imediatamente, se desforra, envenenando os campos ou destruindo a caça de qualquer forma. A caça, como riqueza pública em vias de extinção, coloca ao historiador numerosas dificuldades, porque “pouco ou nada havia para historiar”, a não ser o Jornal do Caçador revelou os nomes de outros indivíduos condenados em juízo, por caçarem dentro de uma reserva de ordenamento cinegético. Idem, ibidem. 743 A multa aplicada de 10 000$00 foi acrescida de 1 500$00 de imposto de Justiça, e 1 000$00 de Procuradoria, proibição de caçar durante 5 anos e a perda dos instrumentos acessórios. «Caçadores furtivos condenados em Idanha e Covilhã», Jornal do Caçador, n.º 180, 1-02-1984, p. 12. 744 Manuel da Silva Gil, «caçadores descontentes provocam incidente grave». Idem, n.º 313/314, 15-01-1991, p.5. 349 descalabro completo da cinegética 745 . De pouco serviam as soluções pretendidas para que a caça, em Portugal, voltasse a ser um desporto e não o campo dos marginais, por falta de protecção em todos os seus múltiplos aspectos. A prioridade consistia na moralização do acto venatório, na luta cerrada aos transgressores, castigando-os, responsabilizando-os pela destruição do património cinegético, que a todos pertencia. As novas medidas legislativas que se avizinhavam não podiam alimentar tibieza, fraquezas, porventura utópicas. A situação da cinegética não se compadecia com experiências desastrosas. O importante não era agradar a esta ou aquela ideologia política, mas defender cabalmente um património que foi e poderia ainda vir a ser fluorescente. Sucumbiu, deste modo, a ideia lançada por Joaquim António Madeira ao Jornal de Caça e Pesca, para que todos os caçadores defendessem a caça, através de um encontro, que associasse leitores, caçadores e amigos da caça mediante sessões públicas de esclarecimento sobre a problemática da caça com intervenção de pessoas qualificadas. Havia a noção de que as estruturas da caça eram demasiado fechadas e não apelavam à educação cívica nem à sua participação. Quantas ideias e sugestões válidas não se perderam por falta de estímulo e receptividade desses organismos e da criação de uma associação que organizasse os caçadores em bloco? 746. Escasseavam exemplos de frontalidade contra a Administração Florestal, como por exemplo, o agricultor Félix residente em Colos, Odemira. Em 1984, revoltou-se por a Administração autorizar a limpeza de matos no mês de Maio, com tractores de arrasto e grade de discos, dentro de uma reserva de caça, na freguesia de Vale Santiago, em tempo da criação e na terra onde as perdizes-vermelhas nidificavam. Daí o seu constrangimento: “Não será com o actual Secretário de Estado que vamos a lado nenhum” 747. 745 “Agora vejo que aqueles que defendiam o terreno para todos, e que tanto lutaram contra os senhores de então, lutam hoje com a mesma força contra os mesmos senhores de agora. Só que os senhores de outrora tinham dinheiro para gastar com a caça, protegendo-a dos ladrões, com os guardas privativos a cavalo. Os senhores de agora lucram com a caça; em vez de a proteger, surripiam-na a todos nós. Até havia caçadores de profissão e caçava-se todos os dias, não faltava caça, podia vender nos mercados e nos restaurantes, porque alguém se interessava e havia respeito pela propriedade privada. Os senhores de agora são ladrões a que se deu protecção, em vez de dar protecção às espécies. A caça não pode ser do povo, não obstante estarmos num país democrata e pluralista. No antigamente sempre se reservava e plagiava”. Carta de António Diamantino Rocha, Lourosa, Jornal de Caça e Pesca, n.º 544, 22-11-1980. 746 Idem, n.º 466, 15-08-1977, p. 1. 747 Jornal do Caçador, n.º 191, 15-08-1984, p. 13. 350 9.3. Vândalos e ladrões Certamente que as infracções não eram cometidas exclusivamente no Alentejo. Queixa-se o Mensageiro de Bragança duma autêntica invasão de caçadores do litoral ao Nordeste Transmontano, que utilizavam o furão, gases e outros processos ilegais para o exercício da sua actividade, mais com fins lucrativos do que desportivos, situação que gerou conflitos entre caçadores locais e os forasteiros. Também no Distrito de Beja, nos concelhos de Almodôvar, Mértola, Serpa e Moura, grupos de indivíduos vandalizaram os carros dos caçadores, furando os pneus, ou danificando a chapa com tiros de caçadeira 748 . Qual a razão para estes actos de vandalismo? O problema da territorialidade justifica-se pelo decurso de uma actividade atávica ligada ao res nullius, que imprimia ao caçador local um sentido de domínio sobre a terra. Porém, a tibieza com que muitos censuram a gestualidade do caçador rural é sintoma de pura ignorância. A preparação de uma caçada pelos locais obedecia a uma lógica comunitária. Em geral, aceitavam a partilha do território cinegético com forasteiros, desde que não hostilizassem os seus hábitos e a sua cultura. Evidentemente, quando tais indivíduos se convertem em ladrões e vândalos, viram as espingardas contra si próprios, pois a sua presença passou a ser uma afronta para os habitantes naturais dos campos e caçadores indígenas. Nesse caso se explica a retaliação a que temos vindo a assistir e que, injustamente, vitimou muitos caçadores honestos. Por todos estes motivos, o caçador estranho ocasionou desconfiança. As circunstâncias excepcionais em que é abonado na região dimanam da subtileza do trato. Outro motivo pode ainda explicar o receio do rural: o intuito de conhecer as manhas e a crença dos recursos bravios, impelia o estranho a ser acolhido no grupo da aldeia, numa aproximação interesseira, não raras vezes vindo a abandonar aqueles que lhe transmitiram o saber venatório entesourado ao longo de gerações. Nesta estranha e, por vezes, hipócrita relação se deslocaram multidões para o Alentejo. A violação das regras sociais, quebrada e espartilhada ao longo do tempo, desenvolveu um clima de suspeita de difícil contorno, que somado ao roubo inveterado de animais domésticos e frutos pendentes constitui o fundamento que conduziu à repulsa dos caçadores estranhos em terras alentejanas. No mesmo âmbito se insere o quadro de conveniência desencadeado através do suborno de informações vertido em almoços e jantaradas na taberna ou no monte, onde 748 As queixas avolumadas na GNR são expressivas da agitação que então se vivia no Alentejo. 351 se criam amizades, mas também se iludiam as relações sociais. Nesta ambígua e por vezes cúmplice relação forasteiro-local, o povo alentejano abriu as portas a uma casta de gente sem escrúpulos. Ao lado do vandalismo, grupos de caçadores, por ocasião, rivalizavam entre si ao ponto de cometerem homicídios. Em 1981, junto a Arraiolos durante a abertura de caça, um grupo de caçadores envolveu-se numa escaramuça, um dos quais morreu e o outro foi esfaqueado 749 . Nesse ano, pela primeira vez na História da Cinegética Nacional, depois da criação das reservas de ordenamento cinegético, uma mulher juiz condenou um caçador apanhado em flagrante delito à pena de um mês de cadeia. As detenções de caçadores em áreas protegidas eram frequentes, mas acabavam por resultar em penas leves, principalmente por culpa dos magistrados 750. Por paridade também o vandalismo se implantou noutras regiões. Em Monfortinho, um grupo de bandoleiros golpeou 240 pneus e danificou um número indeterminado de viaturas automóveis, pertencentes a caçadores que se deslocaram para caçar naquela zona, muitos deles nortenhos, foram surpreendidos. Idêntica selvajaria ocorrera, no mesmo local, durante um congresso médico ali efectuado 751. Em Vila Nova de Foscôa, os habitantes desencadearam uma campanha contra a presença de caçadores estranhos na região, alegando que caçavam espécies raras. Frases comummente escritas nas paredes e no chão, tais como, “caçadores fora daqui” visavam principalmente os caçadores do Norte do país. Os habitantes queixavam-se dos caçadores que roubavam produtos agrícolas e estragavam as culturas com os pés. Ao lado das chacinas, também os roubos faziam parte do ideário do caçadorpredador, tal como aconteceu em 22 de Outubro de 1989, perto de Santa Iria, concelho de Serpa, após um grupo de meliantes, que ali caçava, roubar uma perdiz-vermelha a um caçador solitário que a trazia pendurada na cartucheira. Tudo aconteceu quando um dos indivíduos se destacou, apontou a arma à vítima e disparou-lhe um tiro à queimaroupa que quase o atingia 752. Em 30 de Novembro de 1989, junto a Juromenha, um grupo de amigos caçadores, após a jornada cinegética, constatou que a viatura ali deixada havia sido 749 Jornal do Caçador, n.º 125, 1-11-1981, p. 5. Veja-se o artigo «Juiz fez história». Idem, n.º 126, 15-11-1981, p. 9. 751 Jornal de Caça e Pesca, n.º 543, 5-11-1980, p. 7. 752 Segundo Lourenço Damásio Ribeiro, autor da queixa que testemunhou a ocorrência, os caçadores eram algarvios. Jornal de Caça e Pesca n.º 756, 20-11-1989, p. 1. 750 352 arrombada e furtados onze coelhos-bravos e 300 mil escudos, que se encontravam numa mala, além da documentação e outros bens pessoais 753. Ninguém ignora que o Alentejo é uma zona por excelência para a caça. Parecia, por essa razão, pouco justa uma lei na qual os agricultores eram obrigados a proteger e sustentar a caça e outros a colherem-na sem esforço, bastando estar-se munido das devidas licenças pagas ao Estado. Mais grave ocorria, quando na época de caça chegavam ao Alentejo milhares de caçadores que lascavam árvores e enxertos para construírem aguardos, pisavam milhares de quilos de azeitonas, outros frutos e culturas, carregavam as mochilas, várias vezes no dia de tudo quanto apanham, muitas vezes com o auxílio da família; matavam pombos mansos, galinhas, patos, perus, cabritos, borregos, porcos. Por esse motivo, em tais dias, os proprietários tinham de reforçar a guardaria 754. O clima de confrontação, que se instalou no Alentejo e que envolvia a maioria dos caçadores do litoral e das cidades, dimanava das relações sociais que se haviam estabelecido durante anos, mas cujo equilíbrio urdido ao longo de gerações se rompia gradualmente. Neste período, de marcado endurecimento, a simples presença física do caçador estranho, equivalia a uma provocação para o aldeão ou campónio (quando não preocupação), justamente porque uma franja marginal desses caçadores nas suas deslocações para os campos deixava uma imagem de destruição e furto inqualificáveis. A relação caça-agricultura é brutalmente interrompida e determina doravante as relações interpessoais entre a população do agro e os caçadores. Refira-se que os primeiros agricultores, à medida que vão sendo ressarcidos das terras espoliadas pela Reforma Agrária, vão alicerçando as bases do futuro enquadramento da relação Agrocinegética, nomeadamente criando mecanismos de autodefesa como sejam os aparcamentos de gado, os projectos florestais ou requerendo a proibição de caçar nos olivais com frutos pendentes, interditando o acesso dos caçadores. Mas nem isso coibiu o vandalismo. Muitos rebentavam as vedações, com alicates ou à pesada, sem se importarem que o gado se tresmalhasse e causasse prejuízos nas searas do próprio ou alheias; exterminavam pássaros, cotovias, pardais, calandras, 753 Segundo o testemunho de um caçador que escreveu ao Jornal de Caça e Pesca. Idem, n.º 757, de 5-12-1990, p.7. 754 Testemunhos colhidos nos inquéritos realizados. Seria sumamente destemido calcular o montante dos roubos praticados num universo tão variado quanto obscuro, porque o roubo de frutos pendentes, em áreas extensivas é difícil de quantificar. Também constituía ofensa comum, o furto de aves ou animais domésticos auxiliados pelos próprios cães. 353 poupas, etc., pois tudo servia para alvo dos atiradores. Tais arbitrariedades contribuíram para o desequilíbrio dos recursos bravios naquela magnífica região. Muito embora nas boas searas também haja joio, a maioria das queixas revertiam contra os caçadores estranhos que roubavam fruta, gado e aves de capoeira. O roubo de azeitonas na região de Campo Maior, Elvas, Moura, apesar da sua abundância, provocou prejuízos de monta na economia da região. Em vez de se dedicarem à caça, que não existia, os gatunos enchiam as mochilas com azeitona, num descaramento evidente 755. Na Amareleja, além dos roubos citados, levaram um bezerro que foi interceptado pelas autoridades na ponte de Vila Franca de Xira; outro, foi morto a tiro, mas os rurais evitaram que fosse transportado; roubaram um escarificador e uma charrua de tractor, 5000 quilos de trigo ensacado, já no local de sementeira, e tudo isto à vista dos donos ou testemunhas que não tiveram tempo de o impedir 756. Não admira, portanto, em face da legião de predadores humanos e da devassa que campeava no Alentejo, que após a implementação do Regime Cinegético Ordenado em 1986, muitos agricultores ou proprietários de terras oferecessem a terra gratuitamente às associações de caçadores para a protecção das suas terras 757 . Diante de tal balbúrdia, o agricultor Domingos Fialho, natural e residente em Barrancos, interrogava-se: “Será que os governantes receiam reprimir os caçadores com vistas a próximas eleições? Terá o agricultor que comprar espingardas e ir à caça dos caçadores? Furar as rodas aos milhares de automóveis espalhados pelos campos, coisa que esporadicamente já se tem feito e muito se vai falando que será uma solução? Fazer agricultura no Alentejo, também será, além das secas ou intempéries, pragas e o vandalismo dos caçadores? “ 758. 755 Estes testemunhos, retirados dos 900 inquéritos feitos no Alentejo, provam ainda outra evidência: o fim da velha saudação popular, o acenar da mão, o cumprimento habitual, gestualidade característica do agricultor ou do rural quando avistava um caçador a calcorrear os seus terrenos. 756 Jornal de Caça e Pesca, n.º 637, 5-12-1984, p. 7. 757 Assim sucedeu, entre dezenas de contratos de cessão do direito de caça que encontramos nos processos de zonas de caça do regime especial. Entre elas, destaca-se a ZCA da Serra Baixa, em Vila Verde de Ficalho, constituída com 1 900 has englobando cerca de 700 prédios rústicos, cuja cessão do direito de caçar foi entregue sem contrapartidas a não ser a protecção das cercas do gado. Pelas mesmas razões, no concelho de Ourique a ZCA do Monte de S. Pedro, constituída pelo Clube de Caçadores e Pescadores da Freguesia de Ourique, conseguiu reunir perto de 3 000 has com a cessão do direito de caça a título gratuito na maior parte dos prédios, ou, em situações excepcionais, a troco da cedência de portas. Também o proprietário da Herdade do Carrapetal, em Alvalade Sado, com 740 has, cedeu os direitos de caça com a contrapartida da associação reservar seis portas para os seus empregados. 758 Carta de Domingos Fialho, Jornal de Caça e Pesca, n.º 637, 5-12-1984, p. 7. 354 Estas incertezas legítimas obrigam-nos a reflectir sobre o enigma da caça. Se a democratização da actividade cinegética pôs termo à situação de privilégio até aí gozado por uns poucos, em detrimento da espoliada maioria dos caçadores, não podia, contudo, permitir que indivíduos portadores de uma carta de caçador deliberadamente pilhassem os campos e animais domésticos. O Estado falhou no seu compromisso de gerir a caça em Portugal, e os caçadores apesar de disporem de uma lei progressista e democrática (D.L. n.º 354A/75), foram traídos por uma geração que se apresentou nos campos com uma simples espingarda, conquanto documentada para a utilizar, mas absolutamente despida da mínima pedagogia e formação cívica para ser legitimada como venadora. Muitos se assumiam como meros predadores e pouco ou nada se preocuparam com a preservação da fauna. Foram, na sua generalidade, os maiores culpados do fracasso do processo reconhecido como ideal numa sociedade justa e democrática. Perante este cenário, os sucessivos governos, apesar de condicionados pelo temor social dos caçadores do terreno livre, foram obrigados a disciplinar a actividade venatória, de modo a garantir a preservação do património cinegético nacional e o equilíbrio ecológico, essencial à vida e à Natureza. Todavia, não o conseguiram, pelo menos, até 1986. Ou seja, fracassaram nos adiamentos da consagração das estruturas venatórias, visível nas actuações deficientes, a inoperante fiscalização, a benevolência dos tribunais, a limitada capacidade dos técnicos e, sobretudo, a violência e desprezo votados ao ordenamento do território. Perante a ameaça de desertificação cinegética, os caçadores portugueses não se convenciam da necessidade de aprovar uma nova lei da caça que atingisse os principais objectivos, diante da fauna exaurida e da necessidade de se criarem condições indispensáveis para que as reservas de caça protegessem a fauna bravia, em vez de persistirem em manter preceitos de caça e organizações debilitadas pelo decurso do tempo. Neste período, mais de 80 % dos caçadores nacionais organizavam-se em grupos de cinco, utilizando a mesma viatura, calcorreando o país e rateando tudo quanto era terreno livre 759. O preço da recuperação seria forçosamente difícil. Os caçadores furtivos eram demasiados para que os governos lhes dessem caça de dia e noite e as zonas de ordenamento cinegético eram uma fantasia. Por essa razão, subsistia muita ingenuidade em supor que a eficácia destas zonas se obtinha apenas com a simples aposição de 759 «A caça na hora da verdade», Jornal do Caçador, n.º 59,1-01-1979, p. 8. 355 tabuletas de interdição e sua permanente fiscalização própria, visto que não passavam de capoeiras onde os transgressores, na maior parte comerciantes de caça e profissionais do ofício, bem e depressa enchiam os carros. O estado paupérrimo dos campos alentejanos levou muitos a terem saudades dos coutos 760. Por ironia do destino, reconhecia-se que aqueles que lutaram em tempos e tomaram como cavalo de batalha os coutos, se limitavam agora a protestar contra os furtivos e a aceitarem que, afinal, a cinegética era o fruto da situação anárquica que os governos haviam criado com a aplicação de medidas legislativas inúteis. À medida que a democracia e os conceitos de liberdade venatória avançam, no Alentejo, a actividade cinegética progressivamente desilude a maioria dos caçadores e nem a abertura das reservas de ordenamento aliviou a sua frustração, devido à concentração e consequente dizimação de tudo o que aparecia pela frente 761 . Por isso, aumentava o número de acidentes de caça ocorridos nos primeiros dias. Assistia-se, em ritmo acelerado, ao desaparecimento da fauna; a nova lei tardava e fazia lembrar a lenda de D. Sebastião: “Surgirá numa manhã de nevoeiro” 762. Em 1977, as constantes pilhagens e abusos cometidos por caçadores no concelho do Alandroal e Vila Viçosa, designadamente caça em tempo de defeso e em reservas de ordenamento, só terminaram após a Brigada Venatória interceptar vários infractores que foram levados a juízo. As sentenças, que decorreram no dia 14 de Dezembro desse ano, absolveram os transgressores, decisão que indignou os caçadores da região e concorreu para a demissão dos membros da Comissão Venatória Concelhia do Alandroal 763. Neste panorama de violações, o vandalismo associado ao furtivismo dificilmente eram controlados. É o caso da ocorrência, em Montemor-o-Novo, com José Adelino Passinhas Piteira, guarda especial de caça que foi atingido por um tiro de caçadeira no olho e no corpo durante a perseguição que moveu a dois infractores. Os homicidas puseram-se em fuga, mas foram capturados na manhã seguinte 764. 760 Este testemunho, colhido durante a investigação no Alentejo, retrata a consciência da desertificação nos campos alentejanos e explica o saudosismo dos velhos caçadores. 761 «Cai lá o Carmo e a Trindade! E o perigo que isso representa (...) de modo que deviam ser tomadas medidas para evitar a concentração de caçadores o pandemónio e a chacina». Jornal do Caçador, n.º 37, 15-11-1977, pp. 1,2 e 8. 762 Foi esta a expressão singular escolhida pelo Jornal do Caçador, n.º 38,1-12-1977, p. 2. 763 Idem, ibidem. Era o sinal do mais alto protesto das Comissões Venatórias, que ousavam enfrentar a Justiça laxiva. Se a caça era um património comum, os crimes contra ele cometidos deviam ter um tratamento exemplar. Os crimes ilibados constituam um convite aos infractores, para prosseguirem a carnificina. 764 Idem, n.º 39, 1-01-1978, p. 8. 356 10. Ineficácia da fiscalização venatória Desde a publicação da Lei n.º 15, de 7 de Julho de 1913, que se definiram as diversas entidades competentes em matéria de fiscalização da caça. Nela se afirma que essa actividade cabia em especial à Guarda-Fiscal e Guarda-Republicana, a todas as autoridades e agentes de autoridades administrativas, judiciais, fiscais, militares, rurais, florestais, fluviais e aduaneiras; aos chefes de estação e empregados ferroviários; aos guardas especiais de caça; aos sócios de todas as agremiações de caçadores e ainda aos médicos veterinários e outros agentes encarregados da fiscalização sanitária. Às agremiações de caçadores legalmente constituídas competia a nomeação dos guardas especiais de caça, vindo a mesma competência a ser igualmente conferida às Comissões Venatórias Concelhias e Regionais através do D.L. n.º 18 743, de 11 de Agosto de 1930. Até à publicação do D.L. n.º 26 091, de 23 de Novembro de 1935, a coordenação de acções de fiscalização da caça pertencia ao Ministério do Interior. Depois, passou para o domínio da Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, dado a crescente extensão e importância venatória das áreas autárquicas e privadas, as primeiras correspondendo, às matas e perímetros florestais e as últimas às coutadas de caça, dispondo de meios autónomos de fiscalização. O Ministério do Interior continuou, porém, a comparticipar na coordenação da fiscalização através de delegados nas Comissões Venatórias Regionais e dos presidentes das Câmaras Municipais, que eram simultaneamente os presidentes das Comissões Venatórias Concelhias. Até Agosto de 1975, a fiscalização venatória contou essencialmente com a participação dos guardas de caça e da GNR no terreno livre, competindo em especial aos guardas-florestais auxiliares a fiscalização nas áreas reservadas. Verifica-se até aquela data um certo equilíbrio entre a população de caçadores e os meios de fiscalização disponíveis, pelo menos nas áreas com maior rigor e importância cinegética, muito embora a quantidade de caçadores só possa ser inferida através do número de licenciados, porque as cartas de caçadores existentes, em razão da falta de actualização, correspondem também a pessoas já falecidas ou que deixaram de exercer a caça. Após Abril de 1974, em consequência dos eventos que se registaram e da publicação dos Decretos-Lei n.º 354-A/74 e 407-C/75, criou-se uma nova situação: por 357 um lado, à limitação ou extinção das reservas de caça juntou-se um acréscimo significativo de caçadores; por outro lado, a acção de fiscalização venatória da GNR e dos guardas-florestais afectos a matas, perímetros e áreas privadas submetidas ao regime florestal, reduziu-se expressivamente, acumulando os guardas especiais de caça, que fiscalizavam a actividade venatória, uma acção sobre a globalidade do território, prioritariamente sobre as reservas do ordenamento cinegético nacional. Muito embora o número dos efectivos de guardas especiais de caça tivesse aumentado a partir de 1975, é facto que esse aumento só minimamente traduz o acréscimo de responsabilidade e das áreas de acção que lhe foram cometidos, sendo de realçar porém a acção pertinaz e corajosa destes guardas, mesmo nos períodos recentes mais conturbados, na defesa do património cinegético português. Progressivamente, as atribuições de coordenação regional da fiscalização foram cometidas às Comissões Venatórias Regionais, organismos até então com estrutura corporativa 765 e integrando todo o pessoal da extinta Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, designadamente o corpo de guardas-florestais afectos à fiscalização da caça. A ele se deve em grande medida a quase globalidade das acções da fiscalização da caça em Portugal, apesar de outros organismos e funcionários terem competência legal para as exercer, especialmente a GNR, por si ou acções conjuntas com os guardas de caça. Os caçadores continuamente queixavam-se da falta de fiscalização venatória. Porém, a partir de 1974, a crescente consciencialização que se vinha notando desde finais de 1967, quando aumentou a área de caça privada, por via dos aramados, e a consequente diminuição dos terrenos livres, onde a grande maioria dos caçadores portugueses exercia o acto venatório, contribuíram para o caçador português se organizar livremente e as organizações venatórias se converterem nas legítimas e mais interessadas defensoras do património cinegético nacional. Por isso, as Comissões Venatórias eleitas a seguir à publicação do D.L. n.º 354-A/74, em colaboração com o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, aumentaram os efectivos de fiscalização, dotando-os com meios mais eficientes. 765 Como a define a Portaria n.º 24 395, de 30-10-1969, foram reformuladas, cometendo-as numa primeira fase (D.L. n.º 354-A/74) aos técnicos da Direcção-Geral das Florestas nelas representadas, e posteriormente através do D.L. n.º 149/79 e Decreto Regulamentar n.º 71-D/79. 358 Tabela 9: Meios técnicos e humanos da CVRS (1974-1976) TIPOS ANOS GEC/GF 766 Motorizadas Jipes 1974 118 71 10 1975 156 126 10 1976 214 178 10 Fonte: DGF Foi ainda possível conseguir algumas melhorias sensíveis no armamento e comunicações. Projectou-se o equipamento do corpo de fiscalização venatória, com fardamento mais adequado às funções. Até 1974, as patrulhas venatórias eram praticamente autónomas. No início de 1975, unicamente um Chefe de Brigada superintendia sobre todos os Guardas Especiais de Caça na área da Comissão Venatória Regional do Sul (CVRS). Com o avanço do Projecto de Regionalização do Serviço de Inspecção de Caça e como consequência da nova organização venatória, surgem na área da CVRS quatro Serviços Regionais de Caça, correspondentes a outros tantos Conselhos Regionais. Existiam em Portugal continental, naquele período, várias regiões cinegéticas. Por exemplo, a V Região Venatória, com sede em Santarém, englobava os Distritos de Leiria, Santarém, Lisboa e os concelhos de Alcochete, Almada, Barreiro, Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Sesimbra e Setúbal, com uma área aproximada de 1 457 392 has 767 ;a VI Região Venatória, com sede em Évora, abrangia os Distritos de Portalegre e Évora, com uma área aproximada de 1 327 534 has e sede em Évora 768 ; a VII Região Venatória, com sede em Beja, agrupava o Distrito de Beja e os concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines, do Distrito de Setúbal, com uma área aproximadamente de 1 378 452 has 769 ; a VIII Região Cinegética, com sede em Faro, englobava o Distrito e tinha uma área aproximada de 507 160 has 770. 766 Guardas Especiais de Caça e Guardas-florestais do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca. Estava dotada dos seguintes meios humanos: 1 Chefe de Brigada Regional; 7 Chefes de Brigada de Zona; 8 condutores; 54 patrulhas fixas, num total de 70 efectivos. 768 1 Chefe de Brigada Regional; 6 Chefes de Brigada de Zona; 7 condutores; 25 patrulhas fixas, num total de 64 efectivos. 769 1 Chefe de Brigada Regional; 9 Chefes de Brigada de Zona; 7 condutores; 26 patrulhas fixas, num total de 66 efectivos. 770 1 Chefe de Brigada Regional; 2 Chefes de Brigada de Zona; 3 condutores; 18 patrulhas, num total de 24 efectivos. 767 359 Tabela 10: Transgressões à Lei da Caça –1984 Documentação Falta de carta de caçador Licença caduca: Total 5 24 Caçar em locais proibidos Caça em reservas de ordenamento cinegético Outras Total Caçar no defeso Total 117 Durante o dia 125 Durante a noite: 24 39 - - - - - - Caçar com meios proibidos Armas automáticas com mais de três tiros Total 4 Redes, ratoeiras, visco, etc. 25 Com cães 32 Cães a vaguearem 158 Falta de licença nacional 84 Falta de licença concelhia 53 Falta de licença batedor Cães a mais na matilha 28 21 Falta de livrete de arma Caçar com cão de guarda 17 56 Falta de licença de cães Pastorícia com cão de caça 13 221 27 Cães proibidos para certas espécies cinegéticas 1 Outras Caçar com furões 110 Caçar de salto em tempo proibido 77 Caçar de batida 3 - - - - Fonte: DGF, Lisboa, 1984. Porém, não era o aumento da fiscalização venatória que iria por si só resolver os problemas das transgressões da caça, mas a crescente consciencialização dos caçadores e a educação do cidadão, que permitiria a cada um defender o que era de todos. Subsistia na mente de muitos caçadores a ideia de que a fiscalização da caça era meramente repressiva. A sua única preocupação limitava-se a perguntar quantos autos se levantaram a transgressores, imaginando que em função da quantidade se qualificava o trabalho desenvolvido pela fiscalização. As maiores infracções verificavamse por negligência dos caçadores, designadamente cães a vaguearem ou falta de licença de cães, caçar no defeso, em reservas de ordenamento cinegético, caçar com o auxílio de furões, falta de carta de caçador, etc. Naturalmente, as infracções mais nocivas aos recursos bravios provinham da caça em tempo de defeso (149 casos) e com o auxílio de furão (110 casos), sendo relativamente escassos os casos detectados com armadilhas proibidas (25 casos), que, 360 no entanto, não reflectem a verdadeira dimensão do desaforo que os passarinheiros praticavam por todo o país. Sem menosprezo das demais infracções, a maioria das contra-ordenações não afectava de modo dramático a sobrevivência das espécies cinegéticas. Seguindo de perto a dimensão das infracções, o quadro seguinte respeita apenas à área cinegética da CVRS. Contudo, em 1973, foram levantadas 2793 autos de contra-ordenação, o que se torna curioso, se atendermos ao regime político vigente. Tabela 11: Transgressões à Lei da Caça na área da Comissão Venatória Regional do Sul Transgressões Detectadas Anos Guardas dos Serviços Outros Guardas-Florestais GNR Outras Entidades Total de Caça 1969 856 97 656 5 1614 1970 931 104 630 40 1705 1971 1099 105 725 38 1967 1973 1576 229 919 69 2793 1974 810 222 855 4 1891 1975 1100 65 240 10 1415 1976 1869 10 220 17 2116 1977 1321 8 210 8 1547 1978 1564 13 290 2 1869 1979 1331 18 208 13 1570 1980 1334 12 204 13 1563 1981 1566 13 271 2 1852 1982 1101 - 394 11 1506 Fonte: DGF, Lisboa, 1982. Decorria o ano de 1985, quando a Administração Florestal de Portalegre reconheceu a deficiência nos meios disponíveis: eram necessárias três viaturas todo-oterreno, seis motorizadas, três rádios. O estado da fauna era bastante negativa e defraudada (reprodução, criação, migração, prejuízos, doenças, censos, inquéritos, 361 culturas efectuadas, etc.) e praticamente não haviam contactos com as Comissões Venatórias 771. Não se pense que a fiscalização foi sempre infrutífera naquele distrito. Em 1989, a Brigada Venatória, na sequência de uma operação de fiscalização, detectou várias infracções 772 . Dois anos depois, o Despacho n.º 14/91, de 16 de Outubro, determinava que no dia da abertura geral da caça (20 de Outubro de 1991) fossem tomadas providências cautelares para instruir os elementos da fiscalização venatória com vista a futuros contactos com a GNR, programando actuações em conjunto ou combinadas. Na sede da CFE, ininterruptamente, um operador de rádio mantinha contactos com os guardas e a chefia das brigadas. Idêntico procedimento foi adoptado em todas as Administrações, privilegiando-se o contacto permanente entre os vários responsáveis, que se deslocaram pelo Alentejo em três viaturas equipadas com rádio. Após a abertura da caça, foi determinado a elaboração de um relatório “descritivo” e não em “estilo totoloto, como fizeram alguns departamentos depois da abertura da caça às rolas “ 773 . Chamava-se a atenção para o bom acolhimento destas determinações, visto que a inobservância podia acarretar situações de difícil solução e pouco dignificantes para o organismo da Administração Publica, que tinha a seu cargo toda a problemática da caça. Em 1991, a Circunscrição Florestal do Alentejo dispunha de dez brigadas para assegurar a fiscalização, sendo necessário programar duas operações nocturnas por mês e por brigada, o que se traduzia em 18 operações por mês (90 operações no total). Cada operação nocturna abrangia 540 horas, mas a CFE entendia que as brigadas que efectuavam fiscalização nocturna não deviam desenvolver trabalho durante o dia que a antecedia, evitando-se pagar horas nocturnas extraordinárias. Seria importante delimitar a área geográfica para menor dispêndio de verbas, condição que instituía uma gestão mais racional e equilibrada do orçamento 774. 771 Relatório da AFP ao Chefe da CFE sobre o estado da fauna e das condições de trabalho no distrito, 2-051985, ASFE. 772 Que envolveu dois mestres-florestais e 33 guardas, num total de 10 brigadas e 10 viaturas, com colaboração da GNR nas operações STOB. Os resultados foram os seguintes: uma participação contra dois indivíduos por caçarem dentro de uma reserva de ordenamento cinegético; um auto de notícia por falta de licença geral de caça; cinco autos de notícia por falta de licença geral de caça; cinco autos de notícia por falta de licença estojo próprio para transporte da arma; um auto por falta de vacina do cão e um outro por falta de licença de cão. Ofício n.º 698/CP da CFE, 31-10-1989, ASFE. 773 Ordem de Serviço n.º G.C.C. 42/91 da CFE, 16 de Agosto, ASFE. 774 Idem, n.º 517/CP, 4-04-1991. Só na época venatória de 1991, a receita da caça arrecadada pela AFE, por concessão de zonas de caça, renovações de cartas de caçador alcançou a verba de 11 021 627$00. No Regime Cinegético Especial, a situação era bem diferente, porque a fiscalização conjunta estava prevista no Art.º 76.º, do 362 Qualquer pessoa podia ir para o campo e atirar a tudo o que se movia. Conhecimento dos regulamentos não era preciso ou julgava-se desnecessário. Lamentavelmente, as entidades a quem competia a fiscalização, nos termos do artigo 235.º do D.L. n.º 47 847, ou seja, todas as autoridades administrativas e policiais pareciam não estar grandemente interessadas no cumprimento da lei, embora beneficiassem na comparticipação nas multas por transgressão ao regulamento da caça. Muitas e variadas eram as entidades a quem incumbia a fiscalização da caça, mas na verdade não se materializava a sua actuação nos campos, onde se lavrava a mais completa anarquia, lesiva da riqueza dos recursos bravios. D.L. n.º 274-A/88, de 3 de Agosto. Entre outros exemplos, na AFP, um conjunto de seis associações de caçadores requereu a fiscalização conjunta das respectivas áreas de caça, que foi autorizado pelo Presidente do Instituto Florestal, a saber: Clube de Caçadores de Alter do Chão, Associação de Caçadores do Nabão, Clube Associativo de Caça e Pesca Chancense, Clube de Caça e Pesca de Vale de Barqueiros, a Turvena, Associação de Caça da Praperdiz. O modelo de fiscalização proposto era apoiado por um sistema de policiamento e dois rádios instalados em duas viaturas automóveis; treze rádios portáteis sendo distribuído um por cada guardaauxiliar; três viaturas automóveis todo-o-terreno e oito velocípedes com motor tipo todo o terreno. Veja-se Requerimento subscrito por um grupo de associações e clubes de caçadores ao Director-Geral das Florestas, 912-1992, ASFE. 363 11. Inutilidade das reservas de ordenamento cinegético A instituição do ordenamento cinegético no território nacional criou as zonas de ordenamento cinegético móveis, vulgarmente conhecidas por reservas, mas que acabaram por permanecer fixas, grande parte delas assentando nas antigas coutadas, mais ou menos abundantes em recursos bravios, que tinham os seus guardas privativos. Contrariamente, as reservas passaram a ser fiscalizadas pelos guardas das Comissões Venatórias e dos Serviços Florestais, cujo número era demasiado reduzido para controlar zonas tão dispersas e também o imenso terreno livre. Por esta razão, e com relativa frequência, estas reservas passaram a ser os coutos dos caçadores furtivos que deste modo foram os grandes beneficiados pelo erro cometido 775 . As vandálicas incursões em reservas de caça tornaram-se comuns em todo o território nacional, ao ponto de Nabais da Cunha criticar: “Pode lá continuar a ceder-se uma carta de caçador a indivíduos desconhecedores do regulamento da caça?” 776. Efectivamente, as infracções praticadas dentro das zonas de ordenamento cinegético apesar de serem punidas com certo rigor – o dobro das praticadas em terrenos livres –, não eram tão elevadas como deveriam ser quando se confirmava ter havido intenção de abusar e desrespeitar a lei. O abuso era permanente, quase diário. Havia, por isso, necessidade de actuar com energia contra os prevaricadores contumazes, agravando as multas. De contrário, passariam a constituir os coutos privativos de indivíduos falhos de vergonha e escrúpulos 777 . Poucos dias após o início da época venatória, os Serviços Florestais foram obrigados a pedir auxílio ao Exército para afugentar de uma reserva, na Herdade de Quinta de Sousa, em Montemor-o-Novo, cerca de 80 caçadores furtivos, sete dos quais foram detidos e os restantes fugiram, indício de que sabiam que se encontravam em transgressão 778. Antes da abertura da caça indígena, tinham sido detidos na mesma 775 Faústo Reis «Legislação Portuguesa do passado ao presente», Ingenium, Revista da Ordem dos Engenheiros, Setembro/Outubro de 1989, p. 22. 776 «Vandálicas incursões em reservas de caça», Vida Rural, n.º 29, 22-11-1975, p. 16. 777 O Art.º 5.º do D.L. n.º 407-C/75 atribuía às infracções cometidas nos terrenos reservados para fomento da caça a interdição do direito de caçar por cinco anos e definitivamente, em caso de reincidência, e o agravamento para o dobro das restantes sanções. 778 Nabais da Cunha, «Vandálicas incursões em reservas de caça», Vida Rural, n.º 29, 22-11-1975, p. 16. 364 reserva cinco furtivos, apesar da reserva estar devidamente sinalizada com tabuletas, não sendo de admitir desconhecimento ou ignorância 779. Entre muitas ocorrências, mencione-se a que teve lugar no Vale do Sado, durante a noite de 15 de Setembro de 1974, quando vários indivíduos tentaram matar um dos poucos veados existentes, para obtenção de carne, tendo ferido uma vaca (em vez do veado) que, mais tarde, foi encontrada a gemer junto a uma cria 780. Também na Herdade de Pasmaceira, em Arraiolos, durante a noite, a GNR interceptou em flagrante delito três indivíduos que, dentro de um automóvel, caçavam furtivamente coelhos-bravos com espingarda caçadeira 781. Por vezes, o excesso de zelo da fiscalização tinha efeitos perversos nas relações sociais entre os caçadores. Na Herdade da Cavandela, Castro Verde, Francisco Vilhena, comerciante e espingardeiro, na localidade, em representação dos caçadores do concelho pediu uma batida às raposas na Herdade, onde existiam veados, cuja criação era por vezes devorada pelas próprias raposas. Como a tapada era murada por uma parede de cerca de dois metros de altura, e no seu interior existia uma mancha de mato onde se refugiavam as raposas, era necessário que fosse percorrida pelos batedores, que demoravam a “abater cerca de dez a quinze minutos” 782. Por ser uma batida pequena, Francisco Vilhena resolveu não pedir autorização à Comissão Venatória Concelhia, lapso fatal, como o próprio admitiu: “talvez aqui tenha havido transgressão” 783 . Foram então interceptados pela brigada fiscal que autuou todos os quarenta caçadores participantes. Francisco Vilhena ficou indignado e insinuou que a Brigada de Fiscalização procurasse outros transgressores que caçavam de noite, com auxílio de faróis, espalhavam trigo envenenado em pleno dia ou utilizavam os furões e redes na caça ao coelho-bravo. 779 Informação dos Serviços Florestais de Évora, confirmada por Francisco Lopes ex -Subdirector Regional da Agricultura. 780 Jornal de Caça e Pesca, n.º 399, 1-11-1974, p. 3. 781 Os infractores Moisés da Silva (53 anos), Ramiro do Santos (37 anos) e Joaquim Júnior (48 anos) eram todos residentes no concelho. Idem, ibidem. 782 Queixa enviada para o Jornal de Caça e Pesca, n.º 460, 15-05-1977, p. 8. Esta atitude, que não comportava riscos imediatos, justifica-se pelo simples facto dos guardas quererem mostrar serviço junto da Circunscrição Florestal. Razão tinha Francisco Vilhena quando denunciou a caça furtiva no concelho, protagonizada por indivíduos sem escrúpulos, dispostos a tudo na calada da noite, mas que raramente eram interceptados. Com insistência, os furtivos faziam apostas entre si ou com os amigos, quer para satisfação pessoal, quer para negócio. 783 Idem, ibidem. 365 Em 1981, perante o aumento de indisciplina venatória que assolava o Alentejo, o Director do Jornal do Caçador perguntava para que servia a GNR se nunca se via a patrulhar os campos, apesar de: “ Toda a propaganda feita na Rádio Televisão Portuguesa exaltando a acção altruísta e filantrópica desta instituição, quando o Governo podia aumentar os efectivos daquela corporação? Porquê esse desinteresse pela caça e por todo um processo de protecção e valorização da nossa fauna cinegética?” 784 . A resposta, ainda que precária, devemos procurá-la na falta de coragem política e da fragilidade dos sucessivos governos em matéria de autoridade venatória. A caça com furão continuava a ser o processo preferido de captura de coelhos-bravos de forma absolutamente escandalosa. Em 1989, a GNR de Pias autuou Bento Rosa quando praticava ilegalmente o exercício venatório numa “reserva de caça”, munido de uma espingarda caçadeira, com a agravante de não possuir quaisquer documentos que o habilitassem. Após a perseguição movida pela autoridade, acabou por se entregar. Em tribunal, foi provado que o arguido se pôs em fuga, apesar de perseguido pelos guardas que, por várias vezes, o intimaram a parar e colocar a arma no chão. O arguido só obedeceu à ordem dois quilómetros à frente, depois de o agente Fernandes ter disparado um tiro para o ar 785. As condenações por infracção à lei da caça eram constantes, muitas quase sempre praticadas na véspera da abertura da caça à rola (abate clandestino de perdizes-vermelhas, lebres e coelhos-bravos, quando as haviam, de dia ou na calada da noite). Em 15 de Agosto de 1985, segundo o Jornal de Caça e Pesca, próximo de Ferreira do Alentejo, durante a noite, um grupo de furtivos abateu várias lebres a tiro de caçadeira com o auxílio de um farol. No mesmo ano, em 22 de Setembro, em Alandroal, na margem direita do Guadiana, a fiscalização venatória surpreendeu um grupo que actuava na Herdade da Defesa e Roncanito. Servindo-se de uma matilha de cães e batedores, abateram grande número de coelhos-bravos e lebres 786 . Em 1990, as autuações atingiram números alarmantes no Alentejo. Em Aljustrel, como noutros locais do Alentejo onde a fiscalização não actuava, as linhas de vinte caçadores eram habituais. Caçam à margem da lei da caça e quando 784 Jornal do Caçador, n.º 124, 1-11-1981, p.1. Auto da GNR de Pias, 9-12-1989, ASFE. Em Tribunal, foi condenado em cúmulo jurídico, ao pagamento de quantia de 50 000$00 ou, em alternativa, a 166 dias de prisão, com a perda dos instrumentos e quatro anos sem caçar. 786 Testemunho de A. Soares, Jornal de Caça e Pesca, n.º 656, 20-09-1985, p. 2. 785 366 inquiridos pelos demais caçadores, refugiavam-se na velha e manhosa desculpa: por mero acaso, as linhas se haviam juntado. Ao lado destes infractores, os caçadores matreiros circundavam as linhas. Nesse dia, um conhecido infractor daquele concelho, ao comando do seu automóvel, abateu a tiro de caçadeira várias perdizes-vermelhas 787. Semelhante atrocidade cinegética repetia-se com frequência nos campos do Sul. Daí as desavenças entre os verdadeiros caçadores e os infractores que, em situações extremas, resvalavam em agressões mútuas 788 .Também era comum no Alentejo, nas zonas de planície ou em terrenos pouco ondulados, os caçadores das aldeias agruparem-se em grandes linhas, que chamavam arrastão, responsável pelas constantes carnificinas, sobretudo de lebres e perdizes-vermelhas que morriam fatigadas ou abatidas a tiro 789. 787 No caso concreto, o denunciante contou dezassete. Um dos caçadores, indignado, virou-se para o infractor, após este afirmar que estava cansado, e ironizou: «não são apenas as pernas que te doem, mas sim os dois calos do traseiro, por percorreres sentado os caminhos (...) Houve alguém que disse: o gajo ainda esta noite vai matar 5 ou 6 lebres!» Veja-se o testemunho de Castelo Guerra, «Ladrões de Caça actuam no Alentejo», idem, n.º 660, 20-11-1985, p. 9. 788 Estas ocorrências manifestavam-se nos dias de intenso calor, quando as perdizes-vermelhas se cansavam, sobretudo nas zonas de planície, ao ponto de os infractores se ameaçarem de morte. O verdadeiro caçador não perdoa aos manhosos o roubo descarado das peças de caça fruto do esforço colectivo. 789 Episódios semelhantes foram presenciados pelo autor nas suas digressões cinegéticas. Em 1980, na aldeia de Albernoa, concelho de Beja, era habitual os caçadores agruparem-se numa só linha de trinta ou quarenta indivíduos. Poucos quilómetros após o início da carnificina, a caça metida no caldeirão (círculo) ou morria extenuada ou era abatida sem tréguas. 367 12. Regime de caça social A fim de colmatar as deficiências do terreno livre, o Governo, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 354/A/74, instituiu várias zonas de caça condicionadas (ZCC), previstas no Art.º 122.º, mediante uma simples proposta da DGF ao Secretário de Estado da Agricultura, se bem que o Art.º 125.º, através de mecanismo semelhante, previsse a constituição dessas zonas em coutadas e nos terrenos onde o exercício da caça fosse livre. Porém, nas coutadas tal não aconteceu, como vimos, porque entretanto foram extintas. Até 31 de Julho de cada ano, a DGF publicitava a relação das ZCC existentes em cada concelho e o regime da respectiva exploração (Art.º 127.º). A área coutada submetida ao regime de exploração colectiva em cada concelho (Art.º 108.º) não podia exceder o limite máximo de 20% da sua área total, fixado pelo Secretário de Estado da Agricultura. Tornava-se necessário proceder ao ordenamento cinegético e venatório do território sob a orientação do Estado, com vista a permitir a racional utilização desse mesmo património, em igualdade de oportunidades para todos os portugueses. Em colaboração com as Comissões Venatórias Regionais e a participação dos caçadores, os Serviços Florestais iniciaram o programa de ordenamento através da divisão do território em áreas com cerca de 2000 a 4000 has, dos quais cerca de 25% seriam fechados ao exercício venatório, em regime flutuante ou fixo, consoante os objectivos locais, constituindo estas as bases de uma rede de refúgio e reservas capazes de garantir a salvaguarda e o repovoamento de grandes zonas. A partir destas zonas e com a colaboração das comissões locais de caçadores, nasceram as ZCC encaminhando-se progressivamente a gestão cinegética nacional pelo controlo dos fluxos de caçadores em cada uma delas para um sistema de exploração técnica e socialmente mais correcta, mais coerente com a situação política nacional e de acordo com a vontade de grande maioria dos caçadores portugueses. A caça só podia ser defendida desde que alguém a protegesse e ordenasse. Porém, num país cujas zonas cinegeticamente mais ricas eram dominadas pelo 368 latifúndio, entregar a caça ao proprietário, segundo a doutrina dominante, era agravar a situação de injustiça social que representava 790. Deste modo, passando a ser o Estado o responsável pela total protecção, fomento e ordenamento das espécies cinegéticas, considerou-se não só injustificável, como incompatível com este programa, a continuação da existência de coutadas particulares, uma das reivindicações mais justas que por razões de ordem técnica e de conjuntura política não fora possível contemplar no diploma em vigor. Houve, portanto, a preocupação na lei, de nunca submeter ao regime de caça condicionada a área total útil de um concelho, mas parte dele, para que sobejasse espaço para o acto venatório em terreno livre 791. Por essa razão, ao referir a obrigatoriedade de publicitar a relação das ZCC existentes em cada concelho, o legislador não pretendeu seguramente deixar caminho aberto, por exemplo, para os “coutos concelhios” de Mogadouro e Montalegre. Com efeito, a lei aludia a zonas concelhias – uma ou mais, por conseguinte – e não a concelhos englobados no seu todo 792. As ZCC assumiam, assim, uma função social de usufruição da actividade venatória, da necessidade de os proveitos derivados da caça não se limitarem apenas a quem a praticasse, mas beneficiarem também as populações locais, através de fundos que se destinavam a melhoramentos nas freguesias. A Administração procurou ordenar o exercício da caça para não se correr o risco do deserto cinegético. Iniciaram-se com a área de 15 mil has e, em 1985, produziram uma média de 3,7 perdizes-vermelhas por dia e por caçador, contra percentagens muito mais reduzidas antes do funcionamento destas zonas, o mesmo aconteceu com os rendimentos resultantes das inscrições de caçadores do concelho, nacionais e estrangeiros. Deste modo, em 1986, estavam condicionados cerca de 104 mil has da área transmontana (correspondente a 10% da província), que envolvia a participação de 19 freguesias e 5 concelhos. O interesse por este processo de caça foi demonstrado pelos agricultores e caçadores, em virtude de terem acesso mais directo à caça e por usufruírem dos 790 «Era a política que se fazia em Portugal através dos aramados e das coutadas. (...) A coutada correspondeu e corresponde a uma posição social e económica privilegiada, não sendo de estranhar por isso que a maioria reaja com certa violência a esses privilégios colocando a fiscalização numa situação injusta e ingrata de defender um status quo injusto». Extraído das Conclusões do Relatório das Comissões Venatórias Regionais e Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Fevereiro de 1976, ADGF. 791 Uma nota emanada dos Serviços de Caça em 1987 informa que os caçadores podiam caçar em trinta e uma ZCC. 792 Recorde-se que a ZCC do Mogadouro ocupava grande parte do concelho. 369 proveitos dessa actividade. No distrito da Guarda, as ZCC atingiam os 19 mil has, englobando 13 freguesias. Fafe também tinha a sua ZCC, com 3 mil has. Outras autarquias estavam empenhadas no desenvolvimento de ZCC, como Silves e Sousel 793. Em 1988, existiam em Portugal cerca de 1 000 000 has de reservas de ordenamento cinegético permanentes ou condicionadas constituídas, como vimos, com base no D.L. n.º 407-C/75, de 30 de Julho, cujo diploma foi revogado pela Lei n.º 30/86 e respectivo regulamento aprovado pelo D.L. n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, mantendose, no entanto, em vigor essas zonas de caça como previa o Art.º 129.º, até 1 de Junho de 1993, data do seu cortejo fúnebre 794 . Estas reservas deviam obrigatoriamente ser extintas em 31 de Maio de 1988, mas como a caça seria dizimada, pelo D.L. n.º 274A/88 foi prorrogada a sua vida até 1 de Junho de 1993, apesar dos protestos dos caçadores do terreno livre que queriam a sua abertura 795. No concelho de Bragança, as 12 reservas de ordenamento existentes, onde era interdito o exercício venatório a toda a gente, foram transformadas em quatro ZCC. Os regulamentos, por sua vez, eram semelhantes à ZCC da Lombada, particularmente o violento cerceamento de direitos dos caçadores de outras regiões 796. O Jornal do Caçador contestou as ZCC de Mogadouro e de Montalegre, visto que a lei foi cilindrada no seu espírito e constituição, ao não garantir em proporções minimamente aceitáveis idênticas condições de acessibilidade a todos os caçadores para caçar. Na verdade, estes concelhos foram totalmente transformados em “autênticos coutos” 797. Os caçadores dessas regiões pagavam metade da taxa que era exigida aos caçadores de fora; beneficiavam de 75% dos ingressos a sortear, enquanto aos 793 Dados recolhidos na ADGF. O primeiro regulamento da Lei n.º 30/86 foi publicado em 1987, ou seja, o D.L. n.º 311/87, de 10 de Agosto, revogado sucessivamente pelos seguintes diplomas: D.L. n.º 274/88, de 3 de Agosto; D.L. n.º 43/90, de 8/02; D.L. n.º 60/91, de 30/01; D.L. n.º 251/92, de 12 de Novembro; D.L. n.º 136/96, de 14 de Agosto. Com a publicação da Lei de Bases Gerais da Caça n.º 173/99, de 21 de Setembro, da autoria do PS, a actividade cinegética passou a ser regulamentada pelo D.L. n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro. 795 Assim determina o Art.º 127.º do D.L. n.º 311/87. As ZCC foram constituídas do mesmo modo e com a mesma base legal das zonas de caça de ordenamento cinegético permanente (vulgarmente designadas por reservas do Estado), ou seja aquelas que se encontravam por todo o país com sinais rectangulares de cor vermelha e branca (as condicionadas tinham o mesmo sinal e um outro a completar de cor preta e branca em diagonal). 796 Em 1985, na ZCC da Lombada, com cerca de 15 000 has, podiam caçar cerca de 75 % de caçadores locais e os restantes caçadores do País. No concelho de Montalegre, havia igualmente 12 reservas e a ZCC de Montalegre, com a área de 20 500 has; em Miranda do Douro situava-se a ZCC do Planalto Mirandês com cerca de 20 000 has, enquanto no Mogadouro existiam 5 reservas e uma ZCC com cerca de 14 300 has. No concelho de Almeida também existiam quatro ZCC. 797 Jornal do Caçador, n.º 240, 1-10-1986, pp. 1 e 3. 794 370 caçadores forasteiros, em maior número, além da despesa em transporte e estadia, restava a “miséria da triste lei do quarto”; beneficiavam ainda da vantagem das “sobras” da caça que saia para fora, junto aos locais onde se caçava nas ZCC 798. Mas porque razão um cidadão residente em Bragança, Évora, Beja, que fosse empregado por conta de outrem ou funcionário público, havia de conhecer direitos, no campo cinegético, diferentes dos residentes noutras partes do país? Muitos caçadores aceitavam como justo que aquele que trabalha a terra, ou estava de qualquer forma ligado à exploração, como o caso do pastor, fosse ressarcido dos danos decorrentes da sustentação da caça e do próprio acto venatório ou usufruísse de direitos especiais de acesso na sua zona de caça. Mas marginalizar o caçador forasteiro, que a maioria das vezes via acrescida a despesa em deslocações, era, obviamente, paradoxal. Entretanto, chegavam à DGF as reclamações dos caçadores por não terem conhecimento das inscrições para as ZCC espalhadas pelo país. Esta questão da restrição de direitos aos caçadores não naturais ou residentes dos concelhos suscitou viva polémica. São inúmeros os protestos arquivados na DGF e que se resumem, quase sempre, à inibição de caçar. Os caçadores para caçarem nas ZCC tinham de se inscrever nos termos do respectivo regulamento da zona e sujeitar-se ao sorteio. Quem participava nessas caçadas sem obedecer aos regulamentos existentes, fazia-o ilegalmente ou com o beneplácito de terceiros 799. No Alentejo, foram criadas três ZCC, cujos regulamentos, salvo algumas excepções, eram mera tautologia, diferindo unicamente no capítulo dos abates diários de espécies, tendo em conta a sua existência e a necessidade de racionalizar a fauna. Este modelo cinegético concebido num momento problemático da fauna em Portugal não foi devida e tecnicamente acompanhado pelos responsáveis da tutela e, por essa razão, não atingiu os verdadeiros objectivos. Ordenamento não significa apenas demarcar com placas áreas escolhidas por outrem, muitas vezes sem conhecimentos mínimos de gestão de recursos naturais, mais ou menos localizadas; pelo contrário, exigia conhecimentos técnico-científicos para a sua realização. Sem o conhecimento absoluto de todos os factos limitativos, a não ser 798 799 Idem, ibidem. A nossa análise pressupõe, contudo, que muitos a praticaram indevidamente. 371 por mero acaso, a sua atitude não era praticável para que os mesmos pudessem avançar e obter a maior potencialidade. 12.1. Zona de Caça Condicionada de Vila Viçosa Situada na parte da Tapada de Vila Viçosa, vulgarmente designada por tapada pequena, ocupava uma área de 267 has, nas freguesias de Conceição, concelhos de Vila Viçosa e Borba. O Estado arrendou a propriedade e procurou implementar um modelo de ordenamento silvo-cinegético que tinha em vista a protecção e regeneração dos povoamentos de azinho e sobro, a manutenção de uma população de gamos de excelente qualidade e a introdução de veados com vista à selecção de reprodutores e à produção de efectivos para repovoamento em áreas do país potencialmente adequadas. A Tapada foi submetida ao estatuto de ZCC, em virtude de algumas espécies cinegéticas existentes nesta área, pela sua estada, prejudicarem os objectivos de ordenamento propostos, nomeadamente por competição alimentar com os cervídeos, por afectação dos renovos de azinho e sobro pelos coelhos-bravos, ou por excesso de predação dos gamos e veados jovens pelas raposas. Por outro lado, convinha ensaiar modelos de caça condicionada, passíveis de virem a ser posteriormente extensivos a outras áreas do país. Deste modo, foi autorizada a caça de salto aos coelhos-bravos (domingos, quintas-feiras e feriados nacionais) de 17 de Outubro a 19 de Dezembro de 1982, a quem estivesse munido da respectiva autorização especial. Em cada dia de caça podiam ser admitidos até 3 grupos de 5 caçadores cada um, mas limitados a abater por grupo e por cada dia de caça, até 50 coelhos-bravos. Caso se justificasse, a caça às raposas podia ser autorizada, mas proibida às restantes espécies cinegéticas. A permissão para cada caçada dependia do pagamento de uma taxa de inscrição no montante de 1 500$00 por cada grupo de 5 caçadores; do total de autorizações diárias a atribuir, 25% eram destinadas aos caçadores residentes no concelho de Vila Viçosa, 25% aos caçadores residentes no concelho de Borba e 50% destinadas aos restantes; as inscrições eram obrigatoriamente formalizadas através de bilhete-postal dos CTT à CFE, com aviso de recepção, sob pena de nulidade; careciam de identificar os grupos de cinco caçadores, cinco dias após a publicação do regulamento. Apesar deste aviso, ao longo dos anos, muitos foram os pedidos anulados por incumprimento do Regulamento. 372 A fiscalização da actividade venatória e dos princípios regulamentares nessas áreas competia aos guardas-florestais, bem como assegurar no início de cada caçada que os caçadores presentes fossem aqueles a quem a autorização especial de caça fora concedida e não outros, bastando que cada um fosse portador da documentação legalmente exigida. Para além disso, competia-lhes ainda indicar a cada grupo de caçadores a área que lhe fora destinada, controlar a sua saída no fim do dia de caça e contabilizar o número de peças de caça abatidas por cada grupo. Os caçadores e mochileiros que não acatassem rigorosamente as disposições do Regulamento, doravante eram impedidos de tomar parte nelas ou obrigados a abandoná-las, podendo ser-lhes negada a inscrição e participação, no futuro, para além da autuação por contravenção à lei da caça, quando fosse caso disso. Na época venatória de 1982-1983, ao abrigo desse Regulamento, nos meses de Novembro a Dezembro, foram abatidos 744 coelhos-bravos, contrariamente aos maus resultados obtidos na época venatória de 1984-85, devido ao gigantesco surto de mixomatose que atacou animais, a partir de finais de Agosto de 1984 800 ; na época venatória seguinte, a taxa de inscrição aumentou para 2 500$00, por cada grupo de 5 caçadores. Durante a caça aos coelhos-bravos era permitido abater raposas, mas o direito ao troféu valia 500$00, por cada exemplar 801. Em 1985, o Administrador Florestal da Tapada, através de relatório, divulgou as três modalidades de caça autorizadas. Assim, para a caça de salto aos coelhos-bravos entraram na CFE cento e sete pedidos de inscrição (dos quais foram eliminados trinta e sete por apresentarem anomalias no respectivo pedido de inscrição) 802. Conforme se verifica, os caçadores locais obstinadamente rejeitavam esta forma de caça, que não lhes interessava, como os próprios confirmam no quotidiano venatório. No final, após algumas desistências, apenas caçaram seis grupos de caçadores dos 800 Em dezassete jornadas de caça foram abatidos 1052 coelhos (308 dos quais durante o mês de Outubro, em três jornadas de caça). Nos meses seguintes foi diminuindo substancialmente o número diário por grupo de caçador. Estes elementos permitem calcular a seguinte média diária: 43,2 coelhos; 14,5/coelhos/grupo e 2,9 coelhos/caçador e uma receita total de 76 500$00. A estimativa de efectivos existentes rondava os 3 500 coelhos numa área de 270 has. As taxas diárias de 2 000$00 por cada grupo de cinco caçadores, em média de quatro grupos /dia de caça, com autorização para atirarem aos pombos-bravos, tordos e estorninhos. No período de 1982 a 1984, caçaram 653 caçadores, divididos em 128 grupos, que utilizaram um total de 907 cães, atiraram 5215 tiros e abateram 1839 coelhos, 1 pombo-bravo, 17 tordos, 6 raposas, 17 gamos. A receita bruta da ZCC foi de 644 000$00. Resultados de Exploração da ZCC de Vila Viçosa, 1982-83, ASFE. 801 A receita, no valor de 269 000$00, proveio da caça ao gamo, na época de 1983-1984, durante a qual 22 caçadores atiraram 33 tiros e abateram 11 gamos. No ano seguinte, 19 caçadores com 11 tiros abateram 6 gamos e deixaram uma receita bruta de 136 000$00. Refira-se, contudo, a disparidade entre os resultados de exploração do Técnico Agrário Lúcio Pires do Rosário e o mapa anexo que não correspondem entre si. Idem, ibidem. 802 Os setenta caçadores inscritos, após o sorteio, foram assim distribuídos: quatro residentes no concelho de Vila Viçosa, dois no concelho de Borba e sessenta e quatro nos restantes caçadores do país. 373 concelhos de Borba e Vila Viçosa (média de 8,57%) e vinte e oito grupos dos restantes caçadores (91,42%) 803 . Na época venatória de 1988-1989, inscreveram-se noventa e quatro caçadores que abateram 598 coelhos-bravos, 3 raposas e 7 gamos e desembolsaram 314 975$00. No mesmo período, na Contenda, foram concedidas quarenta e oito autorizações para caçadores que abateram 735 coelhos-bravos, 59 javalis e 4 veados. No ano seguinte, aumentaram as inscrições para 191 caçadores (apesar de anuladas 64) das quais, dez eram caçadores residentes no concelho de Vila Viçosa e outros tantos residentes no concelho de Borba, sendo os restantes 107 de outros concelhos 804. A caça aos gamos era autorizada, mediante inscrição prévia, a partir do primeiro domingo de Janeiro de 1984 até ao último domingo de Fevereiro, durante todos os dias da semana, a quem estivesse munido da licença válida para os concelhos de Vila Viçosa e Borba e da autorização para a caça grossa. Cada caçador tinha autorização para abater um animal, que lhe coubesse por sorteio, mediante indicação do guia da DGF que o acompanhava obrigatoriamente. A inscrição para participar nas caçadas era feita através de postal dos CTT, sob registo com aviso de recepção, dirigido à CFE. Na passagem das autorizações especiais era dada preferência aos caçadores que anunciassem que pretendiam adquirir a carcaça do animal abatida. No entanto, cada caçador apenas podia fazer uma inscrição, senão era excluído do sorteio 805. Na caça de aproximação aos gamos, permitia-se unicamente a caça selectiva de fêmeas e jovens indicados por uma guia nomeado pela administração da ZCC, que acompanhava obrigatoriamente cada caçador. Cada caçador unicamente podia atirar a 803 Um total de 170 caçadores disparou 1583 cartuchos e abateram 444 coelhos e 104 tordos, com utilização por todos os grupos de 266 cães, cuja receita foi de 85 000$00. 804 No entanto, a nível nacional, o saldo foi negativo (352 793 $00), proveniente da receita de 2 085 500$00 e despesa de 2 438 293$00 Na época venatória de 1988-1989, as ZCC obtiveram a receita líquida de 3 077 376$00. Mas na ZCC da Serra de Silves o saldo foi negativo (-8 292 956$00), o que originou um prejuízo a nível nacional de 5 568 373$00. É um exemplo da falta de gestão em zonas sem aptidão faunística e fonte de despesa inveterada para o erário público. Mapa do relatório das receitas e despesas das ZCC de Portugal, 1988, ADGF. 805 Como exemplo, cite-se o sorteio público realizado no dia 16 de Dezembro de 1983, pelas 21 horas, na sede da CFE, no qual presidiram à mesa um representante do Governo Civil, outro da DGF e um dos assistentes. O custo de autorização especial de caça, no valor de 2 000$00, era válido para um dia, para os caçadores nacionais e estrangeiros residentes em Portugal e de 5 000$00 para estrangeiros não residentes. Supletivamente seria pago 500$00 pelo abate de um animal até aos dois anos e 1 500$00 pelo abate de fêmeas com mais de dois anos. Pelo abate de machos com mais de dois anos aplicava-se a seguinte fórmula: P <75 – 2 000$00; P> 75 e <90 – 3 500$00; P> 90 – 6 000$00. Sendo P calculado pela fórmula P = C x 0,5 + CPUs+Lp x 1,5, onde C é a média dos comprimentos das hastes; Cp é a média dos comprimentos das pás; Lp é a média da largura das pás. Aditamento ao Regulamento para a ZCC da Tapada de Vila Viçosa, D.R. n.º 269, II-Série, 22-11-1983. 374 um animal, durante um dia de caça, no período entre o crepúsculo da manhã e o fim da tarde. Em 1985, as autorizações especiais para este processo de caça subordinavamse ao pagamento de uma taxa de inscrição no montante de 5 000$00 para caçadores nacionais e estrangeiros residentes ou 10 000$00 para estrangeiros não residentes. Porém, se o caçador desrespeitasse a indicação do guia, ferisse ou matasse outro animal, que não o que lhe fora indicado para abater, além da correspondente autuação pelo abate de espécie proibida, nos termos da lei da caça pagava sempre a importância de 50 000$00, mais o preço do troféu a que tinha direito, no mínimo de 10 000$00. Após cada tiro, procedia-se à sua verificação; no caso de haver ferimento, era obrigatório rastear e, eventualmente, proceder ao remate (neste caso, terminava a caçada); o caçador perdia o direito ao troféu, caso não encontrasse o animal nas 24 horas seguintes ou desistisse antes de o procurar; para rastear os gamos feridos, os caçadores podiam fazer-se acompanhar de um cão apropriado, respeitando, porém, as limitações ao seu uso que lhe fossem indicadas pelo funcionário indigitado. A concessão das autorizações especiais para este processo de caça estava sujeita ao pagamento de uma taxa de inscrição no montante de 10 000$00, para caçadores nacionais e estrangeiros residentes ou 20 000$00 para os estrangeiros não residentes 806. Na caça de aproximação e espera aos gamos apesar de se inscreverem 32 caçadores, apenas foram sorteados dois que abateram uma fêmea e um macho a troco do pagamento de 39 200$00, enquanto na caça exclusivamente de aproximação aos gamos, oito caçadores sorteados abateram quatro fêmeas e pagaram 38 600$00.Durante a caçada, o administrador, apercebendo-se que era difícil localizar os animais, determinou que os restantes fossem mortos pelo guarda, que deste modo abateu quatro fêmeas, cujas carcaças foram entregues aos caçadores mediante o pagamento da quantia de 47 400$00 807. Em 17 de Dezembro de 1998, a CFE divulgou a relação dos caçadores inscritos na caça aos gamos (no total de 116), enquanto na época de 1984 se registaram 146 806 Cada caçador pagava ainda uma taxa adicional pela pontuação do troféu do animal abatido, de acordo com a seguinte tabela: até 166 pontos – 10 000$00; de 166,1 a 171 pontos – 20 000$00; mais de 171 pontos – 50 000$00. Regulamento de exploração cinegética da ZCC da Tapada de Vila Viçosa na época de 1985-1986, Lisboa, 1-06-1985, ADGF. 807 Relatório da CFE sobre a ZCC da tapada de Vila Viçosa, Outubro de 1986, ASFE. 375 entradas de pedidos de inscrição de grupos de caçadores, mas foram eliminados oitenta e três, devido a anomalias previstas nos termos do n.º 1 do ponto 8 do Regulamento 808. Durante a época de caça de troféu ao veado (1988/89), que decorreu de 1 de Setembro a 30 de Outubro, foram abatidos 2 animais, entre os quais um macho com onze anos, 11 pontas e 117 quilos de peso bruto pelo valor de 111 200$00. No dia 26 de Setembro de 1989, foi abatido um macho com a idade de 12 anos, 11 pontas e 147 quilos de peso bruto, que atingiu a pontuação de 148,625 pelo preço de 229 400$00. Na caça de troféu aos gamos foram abatidos três animais pelo preço de 213 160$00 e quatro na caça selectiva ao veado, durante as oito jornadas, pelo valor de 175 250$00. Na caça selectiva aos gamos foram abatidos três animais que renderam 115 550$00 809. Em 1983, António Guerreiro, Eng.º Silvicultor, reforçou a ideia de que a Tapada se devia transformar num centro reprodutor de veados, obrigando, por isso, a reduzir a população de gamos existente. Mas a sua proposta não foi acolhida superiormente 810 . Nesse ano, o Chefe da CFE, Eng.º Francisco Lopes, propôs que os regulamentos para a Tapada de Vila Viçosa e Perímetro Florestal da Contenda, passassem a reservar algumas jornadas de caça para entidades convidadas da DGF, por ser altamente vantajoso, pois facultava um conhecimento directo de realidades e conduzia à resolução de problemas 811. A imprensa, por vezes, assistia às caçadas. Em 1985, o Diário do Alentejo acompanhou uma visita guiada à Tapada de Vila Viçosa, ao tempo que a DGF previa a reintrodução do veado, como núcleo reprodutor, mas reduzindo o número de gamos existentes (cerca de 36 animais), desenvolvendo-se a sua distribuição por intervalos de classe, bem como a respectiva forma de crescimento 812. Passados quatro anos, a DGF voltou a fazer uma estimativa da população de veados existente; calculou-a em cerca de 90 animais, sendo possível após a época dos nascimentos, que viessem a subir para cerca de 120 a 130 cabeças. Por isso, propôs 808 Na Época Venatória de 1988-1989, para a caça aos gamos inscreveram-se 6 caçadores residentes nos concelhos de Vila Viçosa e outros tantos residentes no concelho de Borba; do resto do país inscreveram-se 51 caçadores. No total, inscreveram-se 146 caçadores, mas foram anulados 83 inscrições por não cumprirem com as normas regulamentares, ASFE. 809 Relatório da actividade venatória na Tapada de Vila Viçosa na época de 1989-1990, 14-03-1990. Idem. 810 No ano seguinte, após um censo efectuado, estimou-se a população de gamos na seguinte proporção: 10 machos; 16 fêmeas e 9 crias numa relação macho/fêmea de 1/1,6; relação adulto/ juvenil 1/0,35. Assim, propôs que fossem caçados dois machos adultos e oito fêmeas, sendo dois machos com troféu. Informação n.º 71872 da CFE, 14-11-1983, ASFE. 811 F. Lopes propôs duas jornadas de caça aos coelhos na Tapada de Vila Viçosa e duas no Perímetro Florestal da Contenda. Ofício n.º GCC/110/89 da CFE, 12-10-1989, ASFE. 812 Informação n.º A-188/83 da DGF, 20-06-1983, ASFE. Em 21-02-1986, António Guerreiro, Chefe de Divisão da CFE, sugeriu que o guarda-florestal Manuel Prates abatesse 9 fêmeas e 2 machos até Março desse ano. 376 acabar com a caça aos coelhos-bravos, uma vez que a presença de caçadores com os respectivos cães causava grande perturbação aos cervídeos, quando importunados, podiam ocasionar graves acidentes contra as vedações 813. Em finais de 2000, a Fundação Casa de Bragança assumiu a gestão da Tapada, retirando à Direcção Regional da Agricultura do Alentejo a gestão e exploração da zona de caça. 12.2. Zona de Caça Condicionada da Coudelaria de Alter do Chão A ZCC de Fomento Pecuário do Alto Alentejo (Coudelaria de Alter) foi constituída em 1974 na Herdade denominada Coutada do Arneiro e Anexos, sita na freguesia e concelho de Alter do Chão e integrada na Direcção Regional da Agricultura do Alentejo, ocupando uma área de 781 has. Conjuntamente com a coudelaria, a Herdade do Assumar, situada no concelho de Monforte, ficou abrangida pelo regime de reserva de caça, uma vez que não eram muito abundantes as espécies cinegéticas. O Regulamento foi aprovado pelo Secretário de Estado da Agricultura, em 20 de Novembro de 1974 814 , como modelo de ordenamento cinegético, que tinha em vista, para além da manutenção e preservação das pastagens e sementeiras destinadas ao consumo do efectivo pecuário existente na herdade, a protecção e a regeneração dos povoamentos de azinho e sobro, bem como o aproveitamento dos seus frutos na alimentação do efectivo faunístico. Contudo, a Secretaria de Estado da Agricultura admitia a possibilidade das populações de algumas espécies cinegéticas existentes na herdade, principalmente o coelho-bravo, afectarem os objectivos do ordenamento proposto, quer por competição alimentar com o efectivo pecuário quer por afectação nos renovos de azinho e sobro, por serem vectores de propagação de doenças parasitárias a outras espécies existentes. A iniciativa partiu do Director da Coudelaria, que propôs ao Director-Geral das Florestas rever toda a orgânica do regime de caça, visto tratar-se de uma Estação de Fomento Pecuário, onde se nutriam centenas de espécies pecuárias, particularmente 813 António Guerreiro propôs que se fizessem capturas de coelhos para vender a associações de caçadores. Informação n.º A-132/90 da CFE, 26-04-90, ASFE. 814 Edital do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, 21-11-1974, ASFE. 377 ovinos e equinos, em grande parte pela produção forrageira que a todo o tempo pretendia manter uma equilibrada conservação das espécies cinegéticas 815. Uma das propostas foi a caça condicionada aos coelhos-bravos, espécie considerada daninha, muito particularmente quando atingia infestação, prejudicando as massas forrageiras com elevados encargos. O regime seria feito pelo método de desbaste por mortes e apreensão para repovoamento, como “solução apriorística”, pois a presença de caçadores e respectivas matilhas de cães só acarretava inconvenientes de ordem sanitária, perturbações de maneios na pastorícia, de vigilância por banda dos guardas agrícolas, possíveis acidentes nos tratadores e pessoal de campo que se ocupavam nas suas actividades. O uso do furão seria o melhor agente dos caçadores, mediante autorizações concedidas prioritariamente pela seguinte ordem: caçadores do concelho de Alter do Chão; caçadores limítrofes; caçadores do distrito de Portalegre; restantes caçadores. Os pedidos para ingresso eram formulados por escrito, sob registo e ordenados pelas datas do carimbo dos CTT. Em cada dia de caça era autorizado um máximo de duas linhas de 5 caçadores, apesar da restrição imposta pela Direcção da Coudelaria. Independentemente do número de coelhos-bravos que fossem abatidos por dia, mediante o pagamento da quantia de 2$50 por cada um, no final da jornada de caça, o grupo somente podia apropriar-se de dez coelhos, revertendo os restantes para a cantina do pessoal da Coudelaria 816. As receitas apuradas destinavam-se às obras de assistência social da Casa do Pessoal da Coudelaria. O interesse pela modalidade não atraía sobremodo os caçadores, que preferiam a caça da perdiz-vermelha e lebre. Por exemplo, em 1975, durante 12 jornadas de caça, 100 caçadores abateram 651 coelhos-bravos 817 . No ano seguinte, em dezassete jornadas de caça, 149 caçadores abateram 614 coelhos-bravos. Do número total de autorizações diárias a atribuir, 25% foram destinadas aos caçadores residentes no concelho de Alter do Chão e 75% aos restantes 818. 815 Informação n.º 6240, da Coudelaria de Alter do Chão, 31-10-1974, ASFE. Edital do Serviço de Inspecção da Caça e Pesca, 21-11-1974. Em 1976, aumentou para cinco escudos por cada coelho abatido. Em 1979, o pagamento aumentou para 25$00 por cada coelho abatido. Em 1983, suspendiase o pagamento à peça e opta-se por uma taxa de inscrição de 2 500$00 por cada grupo de 5 caçadores, ASFE. 817 Ofício n.º 848 da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários, 15-01-1975, ASFE. 818 Ofício n.º 588 da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários, 27-01-1976. Idem. 816 378 Os protestos dos caçadores locais contra a existência da ZCC da Coudelaria irromperam no pós-25 de Abril de 1974. Em 15 de Outubro de 1976, em virtude dos avultados prejuízos causados pelos coelhos-bravos nas culturas forrageiras instaladas na Estação de Fomento Pecuário, a Direcção-Geral dos Recursos Florestais, por edital, autorizou a sua caça com auxílio de furão em terrenos daquela estação, durante o mês de Novembro, sem limite de animais a abater, em cada dia, por um máximo de duas linhas de cinco caçadores, ao preço de cinco escudos por cada animal abatido 819. Tal bastou para que a Comissão Venatória Concelhia de Alter do Chão, que representava a maioria dos caçadores da freguesia, se insurgisse contra tal medida junto do Director dos Serviços de Inspecção de Caça e Pesca. Em alternativa, propôs que os coelhos-bravos fossem destinados a repovoar zonas exauridas 820 . Foi secundada pela Comissão Venatória Concelhia de Abrantes que protestou junto da Comissão Administrativa da CVRS, pois a Coudelaria estava em regime de Reserva de Caça. A sua indignação provinha de se caçar com furão: “Fomos testemunhas oculares do facto!” 821. O mais grave, afirmam, era o Estado comercializar a caça, como no tempo das coutadas: “ Como se concebe que num terreno limitado por tabuletas de Reserva Nacional de Caça se leve dinheiro por lá caçar? “ 822 . Este sinal das Comissões Venatórias Concelhias contra a liberalidade do Estado marca, decididamente, o relacionamento institucional que caracterizará, de ora em diante, o diálogo venatório. Na verdade, a atitude discricionária de autorizar a caça com furão numa ZCC, mas impedindo os caçadores de o fazerem no terreno livre, embora com fundamentos para controlo da densidade das espécies, alimentou facilmente as quezílias. No concelho de Alter do Chão partiu um manifesto conjunto, assinado por dezenas de caçadores, pela circunstância da reserva não ter sido respeitada, com alegação de que os coelhos-bravos destruíam as culturas. Porém, os caçadores não consideravam este “argumento válido”, na medida em que a caça não prejudicava os 819 Edital da DGRF, 15-10-1976, ASFE. Ofício da Comissão Venatória Concelhia de Alter do Chão, 17-09-1976, ASFE. 821 “Há qualquer coisa errada! Ou a Coudelaria não é reserva e por conseguinte não pode ter tabuletas (...) Como é que se pode caçar com furão num concelho onde não se pode caçar com ele?”. Ofício da Comissão Venatória Concelhia de Abrantes, 22-11-1976, ASFE. 822 Idem, ibidem. Esta posição marca a idiossincrasia de uma mentalidade venatória que encontrava no Estado a forma suprema de oferecer a caça aos caçadores, sem custos acrescidos, a não ser o pagamento de uma mera licença. 820 379 terrenos incultos em mais de 90% da área 823 . Insurgiam-se, ainda, contra o “especial privilégio dos empregados do Organismo”, a quem era concedido o exclusivo do dia da abertura da caça e mais outro a escolher, o que constituía flagrante afronta numa época em que se pretendia acabar com os “eleitos”. No entanto, os caçadores defendiam a proibição total da caça ao coelho-bravo, devendo os animais ser apanhados e transferidos para outras zonas concelhias exauridas. Este posicionamento em defesa da proibição total de caça na reserva e, em alternativa, a transferência dos coelhos-bravos para terrenos exauridos, sempre marcou a postura dos caçadores locais, pois entendiam que a função da reserva era de repovoamento dos terrenos marginais e não para exercício da actividade cinegética, excepto para a caça à raposa ou controlo de predadores. De nada serviram os protestos. Em 12 Dezembro de 1978, o Secretário de Estado da Agricultura autorizou a caça ao coelho-bravo com furão 824.Face aos prejuízos causados pelos roedores nas pastagens semeadas de aveia forrageira, luzerna e centeio foi ainda mantida a caça com furão durante o mês de Dezembro 825. Em 1977, já o Director da Coudelaria insistira junto dos Serviços Florestais para apurarem os prejuízos causados nas searas de aveia e tremocilha, pois os primeiros “brotos” eram quase na totalidade devorados pelos coelhos-bravos 826 . Contrariamente, os Serviços Técnicos da AFP, após vistoriarem a Coudelaria, afirmam não ter observado quaisquer prejuízos nas searas: era-lhes indiferente a correcção da densidade feita sob a responsabilidade da Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, ou pelos caçadores, desde que efectuada exclusivamente por equipas de captura, usando furões e redes, sob a condição de transferir os animais para repovoamento de áreas mais pobres 827. O paradoxo repetiu-se após a vistoria do Delegado Regional de Caça da AFP à Coudelaria, na qual verificou a impossibilidade de levar a cabo todos os ensaios técnicos de forragens, devido à alta densidade de coelhos-bravos, difíceis de abater pelos meios legais, para evitar os prejuízos. Tratando-se de uma estação de fomento pecuário e havendo coelhos-bravos, os resultados seriam sempre falseados. A sugestão 823 Exposição de um grupo de Caçadores de Alter do Chão à Procuradoria-Geral da República, 25-09-1978, ASFE. 824 Foram admitidos sessenta e cinco caçadores, que abateram 313 peças. Edital da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, 18-12-1978, ASFE. 825 Ofício n.º 264/R.F. da AFP, 4-12-1978, ASFE. 826 Ofício n.º 852/S.A da Coudelaria de Alter do Chão ao Director-Geral dos Recursos Florestais, 6-09-1977, ASFE. 827 Informação Técnica da AFP, 21-09-1977, ASFE. 380 do Delegado era radical: “Quanto a nós, há que terminar de vez com os coelhos-bravos na Coudelaria (...)” 828 . Esta confusão, evidenciada na confusão de pareceres, revela a fragilidade técnica dos Serviços Florestais numa matéria que devia ser coerente e eficaz. Em 1978, novamente o Centro Regional de Reforma Agrária de Évora justifica a utilização do furão na Coudelaria, devido à destruição sistemática das forragens têmporas outonais e outras subsequentes, por deficiente cobertura arbustífera dos terrenos e excesso de povoamento da espécie cunícola brava, que construía cada vez mais galerias subterrâneas. Como consequência, e sendo apenas autorizada a caça com o auxílio de cães, o problema agravou-se, perante o desabafo da instituição: “Semeamos no ano de 1976, cerca de 5 has de luzerna em terreno de regadio e tudo foi devorado pelos coelhosbravos”. Quanto aos milheirais e aveias, todas as manchas marginais foram eliminadas. Apesar de superiormente exposto o problema, as leituras foram letra morta, provavelmente porque as Comissões Venatórias Concelhias vetaram a proibição do uso do furão 829. Em 30 de Novembro de 1979, dado o estado avançado da época venatória, a Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal proibiu a caça ao coelho-bravo na Coudelaria. Em alternativa, os serviços promoviam a sua captura com auxílio do furão, com vista ao repovoamento de outras zonas 830 , contrariando assim, as informações do Técnico Lúcio Pires do Rosário que defendia a caça com furão, após vistoriar o local e comprovar os prejuízos causados na margem esquerda da Ribeira do Freixo 831. Mais uma vez, a Comissão Venatória Concelhia de Alter do Chão compeliu o Director dos Serviços de Inspecção de Caça e Pesca, para que fosse delongada a caça ao coelho-bravo na Coudelaria durante, pelo menos, quinze dias, a fim de permitir o refúgio da perdiz-vermelha criada nas proximidades e evitar o massacre pelos caçadores do terreno livre 832. Este argumento falacioso tinha em vista pressionar os Serviços Florestais de modo a evitar, a todo o custo, a proibição da caça ao coelho-bravo com o uso do furão. 828 Ofício n.º 319 do Delegado Regional de Caça da AFP ao Director dos Serviços de Inspecção de Caça e Pesca, 6-10-1977, ASFE. 829 Ofício n.º 542/S.A do Centro Regional de Reforma Agrária de Évora, 24-08-1978, ASFE. 830 Informação n.º A-111 da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, 30-11-1979, ADGF. 831 Informação Técnica n.º 35 da AFP, 26-10-1979, ASFE. 832 Carta do Presidente da Comissão Venatória de Alter do Chão, 2-07-1979, ADGF. 381 Neste universo de contradições, como prevaleceram as alegações dos prejuízos e a propagação de doenças parasitárias, nesse ano e no seguinte, foi reautorizada a caça ao coelho-bravo com furão, até dez caçadores por dia, ao preço de 25$00 por cada peça abatida, destinando-se a quantia arrecada às obras de assistência social da Casa de Pessoal da Coudelaria de Alter 833. Tal medida causou uma carnificina de difícil avaliação provocado pelo ataque que os animais sofriam simultaneamente dentro e fora da reserva, seu único refúgio. Neste impropério, que se repetia por falta de esclarecimento ou por motivos de desinformação, no dia 14 de Dezembro de 1980, atraiu várias centenas de caçadores junto ao portão de entrada da Coudelaria, aliciados por notícias veiculadas pela imprensa que anunciavam a abertura da caça aos coelhos-bravos com o auxílio de furão 834. Devido à ausência do Director, o substituto, num primeiro desenlace decidiu encerrar a estação e não permitir a entrada de caçadores, mesmo os dois grupos que estavam autorizados a caçar. Mas perante as ameaças de invasão e de insultos, foi compelido a solicitar a presença da GNR, que refreou a “turba excitada”. Por essas razões, apesar da divulgação pela imprensa, o responsável pela Coudelaria considerou inoportuna a abertura de caça ao coelho-bravo 835. Nesse dia, foram expressas manifestações de repúdio por muitos caçadores que condenaram o uso do furão como auxiliar de caça numa reserva do Estado, quando em todo o território nacional estava proibido e nalgumas regiões até comprovada a sua extinção. Deste modo, o Director compreendeu que a medida fora intempestiva e, em alternativa, propôs que fossem substituídas as caçadas com furão pelas operações de recolha e repovoamento em zonas ameaçadas de extinção 836. Outro exemplo irrompeu no Baldio de Arroches na época venatória de 19781979. Posteriormente à autorização do uso do furão, o desabafo do subscritor do 833 Edital da Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, 18-06-1979, ASFE. Veja-se também Informação n.º A-180 da DGF, 10-11-1980, ADGF. 834 Opiniões expressas por caçadores oriundos do Porto, Braga, Oeiras. Relato de João Casquilho Ribeiro, médico veterinário da Coudelaria de Alter do Chão, Informação s.n., 15-12-1980, ASFE. 835 O Jornal de Noticias, na sua edição de 10 de Dezembro de 1980, publicitou a abertura da caça ao coelhobravo com furão na Coudelaria; embora alegando razões de correcção de densidade, os caçadores não aceitaram essa medida “demagógica”. 836 A Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal face às circunstâncias adversas concordou com a proposta. Despacho de 29-12-1980, exarado no ofício n.º 892/S.A, da Coudelaria de Alter do Chão, 18-12-1980, ASFE. 382 protesto foi constrangedor: “Aquela região, que era um paraíso de coelhos-bravos, figura agora como um deserto cinegético” 837. Em 22 de Setembro de 1983, realizou-se o sorteio para a caça aos coelhosbravos na sede da Coudelaria com um total de 189 inscritos 838 . Porém, 24,8% dos caçadores inicialmente inscritos foram suprimidos por vícios de inscrição previstas no Regulamento, alínea 1, do n.º 2 839. Na época Venatória de 1983-1984, em vinte jornadas de caça estiveram presentes 52 grupos de caçadores (252 caçadores no total), que utilizaram 345 cães, atiraram 5219 cartuchos, com os quais abateram 996 coelhos-bravos e 490 pombosbravos 840 . Na época venatória de 1987-1988, inscreveram-se 232 caçadores, com o apoio de 455 cães, atiraram 2 075 cartuchos e abateram 410 coelhos-bravos e 410 pombos-bravos 841. As reclamações, como sabemos, não surgiam apenas devido à caça com furão. Mesmo aqueles que a pretendiam fazer confrontaram-se com o peso da burocracia. Em 1981 e no ano seguinte, um grupo de caçadores de Mouriscas, concelho de Abrantes, não obstante enviarem uma carta ao Director da Coudelaria para autorizar uma jornada de caça aos coelhos-bravos, não obtiveram qualquer resposta. Daí o seu constrangimento: “Tem o grupo conhecimento de facilidades concedidas a outros grupos da terra, ressalvando até certos preconceitos (...).Também é verdade que, por questões temperamentais, não somos pessoas com iniciativa de obsequiar. Consideramos o gesto comprometedor para ambas as partes” 842. Em 7 de Janeiro de 1983, o mesmo grupo escreveu ao Director da Coudelaria, para que o informasse dos motivos porque os serviços utilizaram um comportamento “parcial” para os caçadores, sem que fosse dada a mínima importância às cartas que lhe 837 Carta de um grupo de Caçadores de Macieira de Sarnes-S.João da Madeira, à Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, 29-12-1980, ADGF. 838 Dos quais 19 caçadores residentes no concelho de Alter do Chão e 123 caçadores não residentes no concelho. Foram anuladas 47 inscrições, das quais 7 por constarem um ou mais caçadores inseridos noutros pedidos de inscrição; 12 por não terem feito a inscrição através do bilhete-postal dos CTT em correio sob registo; 10 por não identificarem de forma explícita e legível o grupo de 5 caçadores nos termos da alínea g), do n.º 2 do Regulamento; 18 por não terem formulado por carta ou bilhete-postal enviado dentro do envelope. 839 Diário da República, II Série, n.º 201, 1-09-1983. 840 Apesar da estatística do abate de espécies nem sempre aparecer clara nos arquivos: média de 6,6 cães utilizados por grupo e de 3,5 tiros por cada peça de caça abatida. «Mapa das caçadas na Coudelaria na época venatória de 1983-1884», Alter do Chão, ADGF. 841 «Relatório da Coudelaria de Alter na época venatória de 1987-1988», Alter do Chão, ASFE. 842 «Somos sim um grupo de pessoas idóneas, instaladas na vida pelo seu próprio trabalho, convictos de que o contributo de que damos à causa comum, que é a nossa produtividade, merece sermos tratados como cidadãos, muito especialmente por quem tem a obrigação de praticar bons exemplos». Carta de um grupo de caçadores de Mouriscas ao Director dos Serviços de Inspecção de Caça e Pesca, 10-02-1983, ADGF. 383 eram dirigidas: “Até à presente data não foi dada qualquer resposta. Não pertencemos à onda crítica que agora predomina em todos os sectores, criticando e destruindo tudo sem discriminação” 843. Os cidadãos pretendiam, com toda razão, conhecer os fundamentos que afastaram a sua participação nas caçadas pelo Director da Coudelaria; acusavam-no de ter usado “critérios discriminatórios que comprometiam a democracia” e se assemelhavam à “época do feudalismo” 844 . Mas os problemas na Coudelaria não se ficam por aqui. Em 1984, em Alter do Chão, a GNR local informou o Director de que o guardaflorestal da Coudelaria, no dia 1 de Dezembro de 1984, havia encontrado um furão, que se presumia ter sido deixado por um grupo de caçadores de Montemor, que aí havia caçado; também o alertou de que corriam “boatos” sobre vários grupos de caçadores, que ali faziam caçadas com o uso de furões, em especial os grupos fora do concelho 845. Para evitar situações como estas, o Director da Coudelaria recomendou que, de futuro, no início de cada caçada, as autoridades comparecessem no local e fiscalizassem os caçadores 846. O Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, ao tomar conhecimento da ocorrência, procurou uma explicação junto da AFP que, contudo, se escudou na impossibilidade técnica de operar uma fiscalização eficaz, por falta de pessoal que obrigava a funcionar com quatro guardas 847. Não contente com a atitude do Administrador Florestal de Portalegre, o Chefe da CFE, Eng.º Francisco Lopes, advertiu-o de que “mais uma vez se baralhavam as hierarquias estabelecidas, cujo estabelecimento era alheio, mas que na realidade existiam” 848 . Em suma, o tempo arrastou o processo e a fiscalização da ZCC da Coudelaria de Alter não chegou a ser cumprida. Deploravelmente, o processo só foi 843 Idem, ibidem. A resposta não foi encontrada, por mais que a procurássemos nos arquivos. Tal situação, obviamente denuncia uma atitude inconsequente a que não escapa uma cumplicidade inequívoca pela falta de transparência na selecção dos pedidos de inscrição e, em certa medida, do direito ao esclarecimento. 845 Ofício n.º 547 da GNR de Alter do Chão ao Director da Coudelaria de Alter do Chão, 3-12-1984, ADGF. 846 Ofício n.º 675/S.A do Director da Coudelaria de Alter do Chão, 4-12-1984, ASFE. 847 “Assim se desloco a brigada para a Coudelaria de Alter do Chão, ficam por fiscalizar as restantes áreas do concelho de Alter e de Avis, que estão sob o controle desta brigada”. Ofício D.C./R.F./71 da AFP, 17-12-1984, ASFE. 848 Ofício n.º 139 do Chefe da CFE ao Director Geral das Florestas, 16-01-1985, ASFE. 844 384 concluído depois de terminada a época venatória, de pouco servindo as directrizes transmitidas por Francisco Lopes ao Delegado da Caça de Portalegre 849. Em 1987, voltaram os protestos dos caçadores de Alter do Chão, indignados contra a incompetência dos Serviços Florestais por permitirem a mortandade feita aos coelhos-bravos na Coudelaria, cuja função repovoadora dos arredores “satisfazia (os caçadores) cá de fora”. As críticas dirigiam-se ainda contra o estado de abandono da propriedade que se encontrava “tão desprezada, sem culturas semeadas” 850. Na realidade, a Coudelaria tinha apenas um guarda, com idade avançada e esperando a reforma, que nem se interessava pela guardaria da caça, e mesmo que o quisesse fazer, sozinho, desconhecia qualquer legislação. A ZCC, tão abastecida em tempos, estava na “miséria e destruída pelos caçadores que caçavam com furões e de durante a noite com veículos munidos de espingarda ” 851. Também é expressiva a revolta do cidadão Alexandre Veloso Cortesão, residente em Coimbra, contra o funcionamento da ZCC 852 . Desde meados de Agosto de 1985, que insistia junto da Comissão Venatória Regional de Coimbra sobre a possibilidade de inscrição na ZCC da Coudelaria, mas fora sempre informado de que não havia indicação nesse sentido, estando inclusivamente alguns funcionários interessados na mesma inscrição. Ficou, porém, estupefacto quando o Regulamento foi publicado com data de 26 de Junho de 1985, o que levou o queixoso a perguntar: “Com que objectivo? Quem estava interessado nisto? Porque não se recebia o Regulamento em Coimbra, em devido tempo?” 853. Estas questões, que nunca foram esclarecidas pela Administração, cimentam a dúvida sobre a transparência dos actos da Coudelaria em matéria de caça e conferem uma inqualificável suspeição à presumível falta de seriedade na selecção dos caçadores que antecedia o sorteio. Em 1986 e 1987, a Administração excluiu 69 caçadores 849 Idem, ibidem. De facto, observamos quer em Vila Viçosa, quer em Alter do Chão, os campos, em finais dos anos noventa, estavam praticamente abandonados. 851 Os caçadores de Alter do Chão diante de tal perseguição às espécies venatórias, sentiam-se revoltados pelo estado de desprezo em que se encontrava a dita Coudelaria. Carta de um grupo de Caçadores de Alter do Chão ao Director-Geral das Florestas, 6-08-1987, ADGF. 852 O queixoso prosseguia: «Não quero acreditar que haja favoritismo ou proteccionismo, mas o desenrolar dos factos a essa conclusão me leva». Carta de Alexandre Alberto Veloso Cortesão ao Secretário de Estado da Produção Agrícola, Coimbra, 3-10-1985, ASFE. 853 Refira-se que não encontramos uma única resposta para esta interrogação e outras que fomos registando ao longo do tempo, factos que confirmam o primarismo dos actos da Coudelaria nesta matéria. 850 385 inscritos 854 e encontram-se registos de um sorteio de caçadas aos coelhos-bravos na sede da Coudelaria 855. Os motivos do desequilíbrio dos recursos bravios na Coudelaria, nomeadamente a falta de perdizes-vermelhas, deviam-se ao número exagerado de saca-rabos 856. Enquanto estes problemas se multiplicam no Alentejo, em 1990, a ZCC da Vermelha, contrariando a tendência do deficit, obtém uma receita de 425 522$00 pela venda de caçadas aos coelhos-bravos, cuja quantia foi atribuída na totalidade à Junta de Freguesia 857 . No último dia de caça, em 10 de Dezembro de 1990, a Direcção da ZCC ofereceu uma caçada ao coelho-bravo a todos os agricultores-caçadores, com interesses dentro da zona de caça 858. O maior peso dos caçadores na zona do minifúndio para caçar nas ZCC, contrasta com o desinteresse manifesto no Alentejo. Entre outras razões, possivelmente a satisfação que o caçador local alentejano sentia ao caçar em liberdade e sem constrangimento até ao momento em que o terreno livre foi desaparecendo gradualmente. O caçador alentejano, talentoso na arte de bem caçar, dificilmente se dispunha a pagar as peças de caça, nem essa necessidade o preocupava. Bastava-lhe o terreno próximo da sua aldeia. É uma imagem, quase cíclica, que devemos reter e compreender, expressa nas reclamações e denúncias contra as transgressões de todos os que não respeitavam as regras da caça. 854 Entre os excluídos registavam-se 21 caçadores que não fizeram a inscrição sob registo dos CTT; 19 formularam-na por carta ou bilhete-postal enviado dentro do envelope; 26 caçadores, não identificaram de forma explícita e legível, o grupo de cinco caçadores nos termos da alínea g), n.º 2 do Regulamento; 2 caçadores cuja data de carimbo do correio fora anterior a 1 de Agosto de 1986 ou posterior a 15-09-1986. Acta da Coudelaria de Alter do Chão, 23-09-1986, ASFE. 855 Idem. Deste modo registamos 41 caçadores inscritos no concelho e 24 caçadores residentes. Acta da Coudelaria de Alter do Chão, 23-09-1987. Em 23-09-1983, as inscrições foram as seguintes: caçadores residentes-19; caçadores não residentes-123; caçadores anulados- 47; em 23 de Setembro de 1984, inscreveramse 15 caçadores residentes no concelho, e 153 não residentes e anulados 98. No ano de 1986 inscreveram-se 29 caçadores residentes, 131 não residentes, tendo sido anulados 69. 856 Ofício s.n da Coudelaria de Alter do Chão, 16-08-1988, ASFE. 857 Pela leitura do Relatório e Contas do ano de 1990, a Junta de Freguesia da Vermelha sorteou 93 grupos de caçadores, dos quais 8 grupos eram constituídos por caçadores locais, 1 grupo por caçadores do concelho e 84 grupos de caçadores não residentes. No ano seguinte, 130 grupos de caçadores (total de 650 caçadores) abateram 1627 coelhos com a utilização de 220 cães. Na caça à perdiz-vermelha participaram 34 caçadores, dos quais 26 eram residentes na freguesia e 8 caçadores fora do concelho, atiraram 498 cartuchos e abateram 64 perdizesvermelhas, com utilização de 26 cães, ADGF. 858 Abateram 42 coelhos. Relatório da Circunscrição Florestal da Marinha Grande sobre a caça na ZCC, Marinha Grande, 23-04-1991, ADGF. 386 12.3. Zona de Caça Condicionada da Contenda A Câmara Municipal de Moura 859, dona legítima da Herdade da Contenda, com a área de 5 267,95 has, foi submetida ao regime florestal parcial pelo Decreto n.º 109, de 8/5/1959, do Ministério da Economia 860. A arborização e a exploração dos referidos terrenos competiam ao Estado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 219.º, do Decreto de 24 de Dezembro de 1903, nas condições estipuladas pelos artigos 225.º e 227.º do mesmo diploma. A divisão dos lucros líquidos entre o Estado e a autarquia era feita proporcionalmente às despesas custeadas pelo Estado e, por outro lado, ao valor atribuído aos terrenos concedidos pela Câmara, que se estipulou ser de 2 500$00 por has. Além disso, os Serviços Florestais tinham de pagar anualmente à autarquia a quantia de 125 000$00, que se provou colher desta propriedade, enquanto a quota-parte que lhe viesse a pertencer do rendimento líquido das futuras explorações não fosse superior aquela importância 861 . Não obstante, de acordo com o Art.º 4.º do mesmo decreto, os Serviços Florestais apenas ocuparam uma parcela desta propriedade, com a área de 3 364 has. A CMM entregou-lhes a restante área da propriedade, com 1 903,95 has, que obrigou à respectiva alteração do decreto de submissão, e ao aumento da renda para 405 000$00 anuais, quantia que se provou auferir de rendimentos desta propriedade. A designação de Contenda para uma vasta área dos concelhos de Moura, Arroche e Ensinasola na vizinha Espanha remonta ao tempo da reconquista cristã do Alentejo aos Mouros, no início da nacionalidade portuguesa (século VIII), época em que a área era explorada, por indefinição da fronteira, pelos moradores daqueles três concelhos, o primeiro português e os outros espanhóis, que ao longo dos séculos contenderam sobre os seus direitos, de que quer um, quer os outros afirmavam ser exclusivos proprietários. Desde os princípios do século IV que as Terras da Contenda são um local onde a história regista sucessivas e violentas discórdias entre as populações dos termos de 859 Doravante designada CMM. Publicado no Diário do Governo, n.º 88, II-Série, 13-04-1963. 861 O pagamento tinha efeitos a partir do ano de 1959, cabendo aos Serviços Florestais integralmente todas as receitas provenientes de rendimentos desta propriedade. O Decreto de 8-05-1959 foi anulado pelo Decreto de 1304-1963. 860 387 Moura, Noudar e Ensinasola, estas duas últimas espanholas. A causa directa provinha das pastagens do Campo de Gamos, extensa região a sul do castelo de Noudar. Os conflitos foram temporariamente sanados em 1542, quando foi estabelecida a Concordata de Moura que definiu o uso comum em igualdade de direitos da área pelos habitantes daqueles concelhos e determinou também alguns condicionantes à exploração tradicional da Contenda, baseada até aí na pastorícia, agricultura, caça e apicultura, limitando praticamente a apascentação de gados ao uso da área a partir de então. Actividades como a construção de casas, a agricultura e apicultura, as queimadas de pasto e corte ou derrame de árvores para carvão foram proibidas. No entanto, o convénio não foi aplicado. Em 1886, o Governo espanhol levantou de novo o problema. Nomearam-se então plenipotenciários por Portugal e Espanha para acordarem na divisão do Campo dos Gamos. O Tratado de Madrid, de 27 de Março de 1893 (ratificado em 1894), veio finalmente estabelecer a fronteira local entre Portugal e Espanha, ficando a parte portuguesa da Contenda na posse da CMM (42% da área total, ou seja, 5 280 has). Terminou assim um período de mais de seis séculos, em que a área foi explorada colectivamente por portugueses e espanhóis. Na posse da CMM foi a área dividida em lotes ou cortes, que passaram a ser arrendados a agricultores e seareiro. No entanto, as diferenças de capacidade de uso dos solos eram evidentes. A Contenda Norte portuguesa, na Ribeira do Murtigão, de terrenos menos ondulados com solos mais ricos, com montado de azinho cobrindo toda a zona, permitia uma agricultura e pastorícia relativamente rentáveis; a Contenda Sul, como é actualmente designada a área a sul do Murtigão, com uma topografia mais acidentada e sem coberto arbóreo, foi usada ciclicamente em actividades cerealíferas esgotantes, que sucessivamente foram empobrecendo e degradando os solos existentes. O depauperamento da Contenda acentuou-se de tal modo que, em certa altura, com matagais a dominarem em grande parte a paisagem, apenas uma limitada pastorícia e, em especial, o negócio do contrabando, próspero no período que se seguiu à Guerra Civil de Espanha (1939), permitiram que as rendas fossem pagas por alguns seareiros enquanto a maioria deles, apesar das unidades agrícolas serem baseadas em trabalho familiar não remunerado, ficavam irremediavelmente endividados. Foram assim criadas condições para que, em 1957, os Serviços Florestais interviessem na Contenda Sul, onde se iniciaram trabalhos de florestação, com a 388 introdução de espécies como o pinheiro manso, pinheiro bravo, eucaliptos e ciprestes e a reintrodução do sobreiro e da azinheira, nas áreas que os agricultores e seareiros foram sucessivamente libertando. Em 1963, os Serviços Florestais passaram também a gerir a Contenda Norte, não se desenvolvendo aí quaisquer trabalhos de florestação, já que a área estava quase toda ocupada por montado de azinho. A partir desta altura, verificaram-se alterações significativas na estrutura da exploração da propriedade. Com base no projecto de arborização elaborado em 1958, incrementou-se exclusivamente a instalação e desenvolvimento de povoamentos florestais para a exploração cinegética e silvopastoril, além de suportar a existência de espécies faunísticas raras, que interessava conservar. Estes aspectos passam então a ser condicionantes das práticas silvícolas. A partir desta altura, a Contenda foi coutada pelo Serviço de Caça e passou a ser usada pelo Presidente da República que ali organizou uma ou duas caçadas protocolares anuais. Datam de então o início de alguns trabalhos e estudos de ordenamento cinegético, visando essencialmente a perdiz-vermelha, considerada a espécie cinegética localmente mais importante, assim como a criação de reservas integrais, onde para além da preservação do habitat de algumas espécies selvagens raras, como o lince, se procurou inferir da evolução natural da vegetação nestas condições ecológicas. Em 1974, o Grupo de Trabalho encarregue de se pronunciar sobre a exploração do perímetro florestal da Contenda, em resultado das observações de campo e do largo debate que os diversos problemas surgidos mereceram, considerou a problemática sob quatro aspectos fundamentais: o florestal, o silvo-pastoril, o cinegético e da protecção da Natureza (particularmente, todo o perímetro a sueste da Contenda constituía sob este ponto de vista um dos mais interessantes). Ali se encontravam espécies em vias de extinção, como o lince, o gato-montês, a águia-imperial e o abutre-negro, argumentos que persuadiram o governo a criar um programa de colaboração com Faculdades e Instituições Científicas nacionais e uma zona de reserva, com cerca de 500 has, onde a acção humana era praticamente nula. Pretendia-se que o plano de exploração da Contenda conduzisse à exploração racional e integral da capacidade de meio, satisfazendo a função múltipla da produção, protecção e recreio, nos moldes modernamente aceites em países tecnologicamente 389 avançados, sem perder de vista a função social do meio agrário e o respeito de todos os interesses nacionais em jogo 862. O Estado explorava cerca de 5 200 has a troco do pagamento de uma renda anual à CMM de 406 000$00, obrigando-se, por força de Decreto, a desenvolver um projecto de arborização superiormente aprovado. Do ponto de vista agro-silvo-pastoril, a norte do Murtigão, com uma área com cerca de 1500/1800 has com capacidade para a pecuária, nomeadamente ovinos de raças rústicas, entendeu o grupo de trabalho que podia haver convivência entre a floresta, a caça e o gado, tudo afinal se resumindo em factores de ordenamento, cujo rebanho em pastorícia era de 970 ovelhas adultas. Quanto ao aspecto cinegético, a sua exploração não foi ponderada. Em Portugal, a caça ou fora desprezada alegadamente como bem supérfluo ou, noutras situações, quando cuidada e fomentada destinou-se ao privilégio de poucos. Os Serviços de Inspecção de Caça e Pesca procuraram associar a exploração silvícola (silvo-pastoril ou mesmo agrícola) com a exploração racional da caça. Deste modo, preconizaram as seguintes medidas: - Aplicação do regime de caça condicionada para a caça menor, a qual entraria em funcionamento na época venatória de 1975/1976, com regulamentação adequada; - Activar a caça ao coelho-bravo, por excesso de efectivos; - Estudar as populações do javali e dos cervídeos de modo a definir a possibilidade de, pelo menos, ser igualmente caçado em regime condicionado; - Incrementar as medidas técnicas conducentes a melhoria do habitat para o fomento da perdiz-vermelha. Em 1975, após a abolição das coutadas em Portugal foi ensaiada a criação de uma ZCC na Contenda, circunstância entretanto não entendida pelos caçadores que invadiram a área e destruíram praticamente a população de perdizes-vermelhas a norte da Ribeira do Murtigão. Manteve-se, apesar de tudo, reservada a área de distribuição das espécies cinegéticas protegidas mais importantes, a sul da referida ribeira. O Edital do Serviço de Inspecção da Caça e Pesca, de 18 de Outubro de 1975, limitou o abate diário por caçador de 20 coelhos-bravos, 2 perdizes-vermelhas, 3 galinholas, tordos e pombos-bravos sem limite; interditou todos os caçadores a abater 862 Extraído das Notas sobre a Reunião do Grupo de Trabalho da Exploração do Perímetro Florestal da Contenda, Direcção-Geral dos Recursos Florestais, 1974, ADGF. 390 lebres e javalis; estabeleceu para os caçadores de concelho de Moura (50 % das inscrições por dia de caça, 10 % das inscrições para os caçadores residentes no concelho de Barrancos, 40% para os restantes caçadores fora do concelho); proibiu o uso do furão, mas autorizou a caça de batida ao coelho-bravo; o preço de inscrição por cada caçador/dia fixou-se em 50$00 e as inscrições eram válidas desde que recebidas na Administração Florestal de Moura (AFM), a partir de 23 de Outubro de 1975 863. As novas perspectivas de trabalho no campo da conservação e da cinegética, desenvolvidas no país a partir de 1974, vieram determinar a constituição da primeira grande experiência de uso múltiplo na Contenda com a compatibilização da cinegética e conservação com as explorações florestal, pastoril e apícola da propriedade, de modo que a caça viesse a ser totalmente proibida a partir de 1979,a fim de se reiniciar a exploração cinegética em 1985 864. Em 1978, a CMM sugeriu ao Secretário de Estado do Turismo a instalação na Contenda de uma unidade turística a programar e desenvolver, aproveitando as suas potencialidades nos ramos da caça, equitação e das suas condições naturais, como zona de repouso pleno, aliando-se-lhe ainda com as próximas realidades decorrentes da construção da Barragem de Alqueva no campo piscatório e criação de um lago artificial, que teria cerca de 140 quilómetros de extensão, entre Mértola e Badajoz. Apesar da aceitação plena dos Secretários de Estado do Turismo e das Florestas, o projecto acabou nas gavetas ministeriais. No mesmo ano, João Bugalho, Director de Serviços de Caça, apresentou um plano de fomento de caça ambicioso para a recuperação da Contenda, e que seria a solução para a problemática da margem esquerda do Guadiana, num estádio em que o património cinegético se encontrava depauperado, e por isso devia constituir preocupação da DGF a sua recuperação imediata nos perímetros que administrava. Na parte norte, devia fomentar-se a caça menor, nomeadamente a perdizvermelha, a lebre e o coelho-bravo. Na sua totalidade, os 3 000 has da Contenda Sul destinavam-se prioritariamente à criação de veado e javali. Admitia, ainda, a introdução 863 A Comissão de Gestão da Contenda foi nomeada após a publicação do Regulamento da Caça Condicionada do Perímetro Florestal da Contenda, aprovado por despacho de 23-09-1975, do Director-Geral dos Recursos Florestais, com delegação do Ministro da Agricultura e Pescas. 864 Relatório sobre a Origem e Evolução Histórica da Ocupação da Contenda, Moura, CMM, 1990. Arquivo da CMM. 391 do gamo numa cerca de trinta has, de forma a determinar a sua influência e adaptação ao meio, o seu desenvolvimento e crescimento 865. Em 21 de Junho de 1983, a autarquia, apesar da incongruência da Secretaria de Estado das Florestas, garantiu que estava “profundamente atenta à situação da Herdade da Contenda, não a podendo desligar da situação das populações locais”; renovou o contrato de arborização e exploração; avaliou as carências locais e os recursos do concelho, no sentido de valorizar toda a zona de Stº. Aleixo da Restauração; a Contenda devia assim integrar-se num plano mais vasto para a zona de modo a integrar outras herdades, como Rabo de Coelho e Coutada do Povo, propriedade da Junta de Freguesia de Stº Aleixo da Restauração e de proprietários privados, de modo que as perspectivas de desenvolvimento estivessem integradas num plano de ordenamento e exploração que garantisse o respectivo controlo de execução e reajustamento 866. Nesse sentido, a CMM elaborou um documento sucinto, no qual reconhecia que ao fim de trinta anos de arrendamento aos Serviços Florestais, a arborização fora feita na área de exploração. Na restante área, sem qualquer intervenção, afigurava-se duvidoso, logo não tinham legitimidade para reclamar o direito contratual. Assim, propunha três opções: - Exploração cinegética, englobando as herdades particulares da Junta de Freguesia de Stº. Aleixo da Restauração e a Contenda, para a constituição de uma ZCS administrada em parceria com o conjunto DGF/CMM/Junta de Freguesia/Associação Local de Caçadores/ Proprietários privados, cabendo à DGF a elaboração e respectivo controlo de execução e estabelecendo a administração e as regras de acesso; - Exploração turística, dadas as potencialidades excepcionais raras no país e as características da fauna e flora locais, convinha recuperar casas e montes abandonados e explorar a documentação científica (história, florística, faunística geológica, etc.) escrita e fotográfica; nesta perspectiva constituía prioridade a exploração de uma zona de lazer na Herdade do Rabo de Coelho, através do aproveitamento da Ribeira do Murtigão e o notável convento da Tomina, não englobando em nenhuma das áreas estudadas, mas lindante com a Contenda Sul; 865 Refira-se, a título de exemplo, que uma população de 100 veados, apresentando a relação macho/fêmea de 1 por 1, possibilita a colheita anual de 3 a 4 troféus de qualidade e o abate de cerca de 30 outros animais, entre jovens, fêmeas e machos mal conformados. Contudo, não deverá ser consentida uma densidade superior a 100 animais por 1 000 has. «Programa de Fomento Cinegético da Contenda», Dezembro de 1979, Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, ADGF. 866 Relatório da CMM sobre a Herdade da Contenda, Moura, CMM, 1983, ASFE. 392 - Aproveitamento didáctico, dadas as características naturais da área que lhe conferiam um grande interesse no plano das Ciências da Natureza e das Ciências Sociais: Geologia, Litologia, Botânica, Zoologia, Pedologia, História, Arqueologia; esta potencialidade podia ser explorada ao serviço das escolas médias e superiores, de instituições científicas, de associações com preocupações nos domínios dessas ciências, da ecologia, etc., e mesmo de pessoas que individualmente ou em grupo se dedicassem a esses aspectos, quer profissionalmente, quer como hobby. Na Contenda Sul manter-se-ia um regime de aluguer entre a CMM e o Estado, através da DGF, com valor de renda anual a acordar e a criação de uma cooperativa de interesse público para a exploração turística, cinegética, agro-silvo-pastoril ou florestal do conjunto das áreas englobadas no projecto 867. Tabela 12: Evolução da ocupação do solo na Contenda em has Anos 1957 Área Agrícola sob coberto arbóreo 1185 Montado de azinho Incultos com matos 1410 Novos povoamentos florestais - 2685 1962 520 1350 1700 1710 1980 300 1350 2800 730 Fonte: Arquivo da ASFE Em 1963, em data posterior ao projecto de arborização da Contenda, a propriedade passou a ser utilizada pelo Presidente da República, Américo de Deus Tomás, razão porque as acções técnicas empreendidas procuraram aparentemente favorecer os aspectos cinegéticos. Esta situação, que se manteve até 1974, permitiu, para além de inúmeras intervenções no habitat da fauna, a realização de vários estudos de biologia e ecologia, subordinados quase exclusivamente à perdiz-vermelha 868. Durante o Estado Novo, as peças de caça abatidas são exemplificativas do grande interesse que a perdiz-vermelha despertava para a Presidência da República, cujos efectivos cinegéticos anuais lhe eram integralmente reservados, enquanto as 867 Bases do Acordo prévio entre CMM e a DGF, Moura, CMM, 1990, ADGF. Entre outros aspectos refiram-se os cortes de mato na Contenda Norte, em faixas de mosaico, a instalação de um reticulado de pontos de água, com abertura de fontes e instalação de bebedouros adequados à perdizvermelha, na Contenda Norte; largadas de perdizes-vermelhas criadas em cativeiro; abate de predadores, em especial aves de rapina e mamíferos carnívoros; estudos de alimentação e evolução da população local da perdizvermelha. Veja-se Ordenamento Cinegético da Contenda, Moura, CMM, 1990, ASFE. 868 393 demais espécies, principalmente o coelho-bravo, eram caçadas especialmente por pessoas da região. Tabela 13: Peças de caça abatidas na Contenda (1968-1979) Épocas venatórias Coelhosbravos Lebres Raposas Codornizes Galinholas Perdizesvermelhas 1968/69 1.409 97 - 2 3 1.013 1969/70 2.440 121 - 1 16 943 1970-71 2.440 121 2 5 3 841 1971-72 3.359 121 2 4 2 1.043 1972-73 - - - - - - 1974-75 - - - - - - 1975-76 10. 124 69 - - - 1.725 1976-77 3.573 76 - - - 804 Fonte: ASFE Contudo, tal desígnio esfumou-se após as tensões sociais verificadas em Portugal no pós-25 de Abril de 1974, que ocasionaram o aniquilamento das coutadas no ano seguinte. A Contenda, para além de coutada, era a coutada do regime político deposto, pelo que não houve força política capaz de suster os caçadores que, em 1975, a invadiram. De notar, apesar de tudo, que se conseguiu limitar essas invasões à área da Contenda Norte, ficando protegidas as áreas de distribuição da caça maior e das espécies de fauna mais raras. A época venatória de 1975/76 corresponde à data da invasão da Contenda Norte pela horda de caçadores vindos de todos os pontos do país. Nesse ano, os guardasflorestais procederam a um registo da origem de todas as viaturas e caçadores, bem como do número de peças abatidas 869. As invasões de reservas de Ordenamento Cinegético Nacional de Caça e os actos de vandalismo que se repetiam por todo o país, no dia 16 de Novembro de 1975, não deixaram imune a ZCC da Contenda. Segundo os resultados obtidos pelos guardasflorestais em serviço, invadiram a reserva cerca de 300 caçadores, que abateram 4000 coelhos-bravos, 600 perdizes-vermelhas e 40 lebres. De tal forma correu a informação 869 Pela leitura do gráfico n.º 12, é possível verificar que a maioria proveio dos concelhos de Moura (e freguesias limítrofes Amareleja, Póvoa de S.Miguel), Lisboa, Portimão, Évora, Alcáçovas, Serpa, Vila Verde de Ficalho, Stº Aleixo da Restauração, Grândola, Safara, Barrancos, Sousel, Marmelar, Panóias (Ourique), Sesimbra, Almada, Cova da Piedade, Aldeia Nova de S. Bento, Beja, Fogueteiro, Amora, Moscavide, Montijo, Laranjeiro, Seixal, Setúbal, Cadaval, Sintra, Vendas Novas, Entroncamento, Estoril, Trafaria, Albufeira, Feijó, Marinha Grande, Abrantes. 394 que, nos dias 20 e 23 de Novembro, a coutada foi novamente invadida, agora por um número, cada vez maior de caçadores. Tabela 14: Peças de caça abatidas nos dias da invasão da Contenda (1975). Dias da Invasão N.º de caçadores Coelhos-bravos Perdizesvermelhas Lebres 16/11/1975 300 4000 600 40 20/11/1975 1018 3675 841 28 23/11/1975 1301 1301 233 - 14/12/1975 112 352 17 11 18/12/1975 60 236 11 - 21/12/1975 118 348 14 - 28/12/1975 127 212 9 - Totais 3036 10 124 1 725 69 Fonte: ZCC, Contenda, Moura, 1975. 870 (ASFE). Gráfico 12: Origem dos caçadores identificados que invadiram a Contenda em 1975 35 34 30 30 26 25 20 18 15 10 8 7 6 7 4 5 0 Moura Amareleja Lisboa Portimão Évora Serpa Barrancos Ficalho Stº Aleixo Fonte: Registo da origem dos caçadores no dia da invasão da zona de caça da Contenda em 16-11-1975, Moura, 1975. Após o morticínio, a Direcção-Geral dos Recursos Florestais apoiada pela CVRS e Comissão Venatória Distrital de Beja, fazendo eco dos numerosos protestos que recebiam das Comissões Venatórias Concelhias, apelou aos caçadores para encontrarem os melhores caminhos da prática democrática da caça em Portugal; estivessem alerta e interpretassem o significado dos exemplos referidos e contribuíssem para o esclarecimento dos menos informados, porque só com a “colaboração activa e 870 Comunicado da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, 21-12-1975, elaborado segundo o registo dos guardas-florestais da ZCC da Contenda, durante os meses de Novembro e Dezembro de 1975, ADGF. 395 consciente dos caçadores seria possível desencadear a luta que ia permitir vencer as demagogias fáceis “ 871. Em suma, a multidão de caçadores exauriu uma herdade que o Estado pretendia transformar num exemplo de preservação da fauna e da utilização racional da actividade venatória. A partir daquele momento foi suspenso o exercício da caça na Contenda, enquanto não fosse restabelecida a normalidade que permitia a todos os caçadores usufruir em segurança da caça ordenada. A CVRS reagiu de forma violenta à invasão da Contenda, pois seria a primeira zona piloto do género, impedindo os objectivos que motivaram a sua criação. Por isso, condenou tais actos, que só “o egoísmo ou a ignorância de alguns” consentiu o aproveitamento pelos oportunistas que só beneficiava “a reacção”, induzindo certos caçadores a praticar actos contrários aos seus próprios interesses e da caça democrática em Portugal. Apelou ainda para que os caçadores de todo o país, durante a restante época venatória, se comportassem civicamente, pois todas as infracções, transgressões e excessos eram o melhor “argumento a favor dos ex-couteiros e proprietários de exaramados, que tanto nos tinham caluniado” 872. Posteriormente, por despacho do Secretário de Estado do Fomento Agrário, o Perímetro Florestal da Contenda voltou a ser submetido ao regime de reserva de caça, passando a ser proibido caçar, incluindo a área norte onde sempre fora autorizada. No imenso Sul, o ambiente venatório favorecia o massacre nas reservas de caça e refúgios instituídos com vista ao futuro do ordenamento cinegético, como se prova pela informação do Serviço de Inspecção da Caça e Pesca 873. Em 1978, Rui Ramalho, Administrador Florestal de Beja, propôs ao Director dos Serviços de Caça reservar toda a área da Contenda, com o apoio do Governador Civil de Beja, porque tal medida podia resultar em “convulsão social e daí nova chacina” 874 . Nesse ano, o Secretário de Estado das Florestas, Azevedo Gomes, aproveitou integralmente e uso múltiplo da Contenda, bem como a proibição total da caça, na época de 1979-80, a fim de iniciar o desenvolvimento da fauna 871 875 . Passados dez anos, Idem, ibidem. Comunicado da CVRS, s/d, 1975, ADGF. 873 Nota da DGRF para ser enviada aos meios da Comunicação Social, Outubro de 1974, ADGF. 874 Informação s.n., da Administração Florestal de Beja, 28-06-1978, ASFE. 875 Ofício do Secretário de Estado das Florestas n.º 936/SEF/78, 20-06-1978, ADGF. 872 396 a CMM solicitou à DGF sucessivas entrevistas, a fim de iniciar o processo de revisão das relações contratuais com a Contenda, por constatar falhas e incumprimentos 876. Em 1989, o Presidente da Câmara Municipal sugeriu ao Comando do Batalhão da Guarda-Fiscal recuperar as instalações do posto da Guarda-Fiscal do Vale de Malhão, compostas por moradias e uma área rústica de cerca de 1200 metros quadrados, destacadas da Herdade da Contenda e cedidas pela autarquia ao Estado há cerca de trinta anos. Também o Director-Geral de Turismo se mostrou solidário com a linha de elaboração das futuras ZCT, em resposta à solicitação da CMM para a criação de uma unidade turística na Herdade da Contenda 877 , com a área de 5 267,95 has, aproveitando as suas potencialidades nos ramos da caça, equitação e das suas condições naturais, como zona de repouso pleno, aliando-se a sua ligação com as próximas realidades a obter da construção da barragem do Alqueva no campo piscatório 878 . Em 1974, Nelson Trigo, Secretário de Estado do Comércio Externo e Turismo, empenhou-se na organização das coutadas turísticas e legislação complementar. Em 1977, o grupo de trabalho nomeado elaborou o Projecto-Lei, que ficou em mão do Secretário de Estado dos Aproveitamentos Florestais, mas não chegou a ser discutido na Assembleia da República, porque existiam muitas pressões da política local das organizações de caçadores. Tais problemas deviam ser conduzidos pelos sectores de administração competentes ou, tal como naquele ano, pelas autarquias, “únicos organismos capazes de defender os interesses locais, contra determinadas pressões do exterior” 879. A Contenda, como vimos, encontrava-se arrendada à DGF. Porém, a partir de 1 de Janeiro de 1989 ficou sujeita a novas regras, particularmente a Câmara Municipal de Moura passou a ter um papel mais activo na sua gestão 880. Coincidência ou não, o Director-Geral das Florestas, no mesmo período, requereu ao Comandante-geral da Guarda-Fiscal a cedência das instalações, a título precário, para implementação de uma escola de formação de guardas-florestais e de auxiliares técnicos de maneio. Faústo Reis reforçou o pedido e esclareceu: “para 876 Ofícios n.º 4603 e 5002, respectivamente, de 11 de Agosto e 4 de Novembro de 1988; n.º 5182, 14-12-1988. Ofício n.º 4724 da Direcção-Geral de Turismo, 12-02-1979, ASFE. 878 Ofício n.º 1322 do Presidente da CMM dirigido ao Secretário de Estado do Turismo, 31-05-1978, ADGF. 879 Ofício n.º 24 494 da Direcção-Geral de Turismo, 16-10-1978, ADGF. 880 Ofício n.º 3679 da CMM, 21-07-1989, ASFE. 877 397 alojamento de alguns trabalhadores do Perímetro Florestal da Contenda”, que todos os dias tinham de fazer mais de cinquenta quilómetros, e ainda apoio a caçadores que iam caçar ao perímetro florestal, onde em breve iria ser instalada, por diploma uma ZCN 881 . A Guarda-Fiscal, que havia recusado a transferência das instalações à CMM, garantiu, no entanto, à AFM a cedência nos moldes em que fora solicitada 882. Finalmente, em 1989, foi assinado o protocolo entre a CMM e a DGF, válido por dois anos, renovado automaticamente até 31 de Outubro de 1990, e acordado a criação do Conselho de Gestão dos Recursos Humanos Naturais da Contenda, órgão meramente consultivo em matéria de gestão e exploração dos recursos faunísticos 883. Por seu lado, a DGF responsabilizou-se pela gestão global do Perímetro Florestal da Contenda e a CMM pela execução de programas de carácter pedagógico, cultural e recreativo, pela promoção do acesso dos alunos das escolas de todos os níveis de ensino e de organizações com fins culturais, científicos, cívicos e ambientais (recreio da natureza, passeios, caça fotográfica ou outros). No domínio científico, previa-se a investigação nas diversas áreas de conhecimento relacionadas com os recursos naturais, a História, a Antropologia e demais ciências. Por outro lado, a DGF comprometia-se a criar uma ZCN na Herdade da Contenda, até finais de 1989 e a apoiar activamente a constituição de zonas de caça especiais em terrenos confinantes, de acordo com as propostas dos municípios de Moura e da Freguesia de Santo Aleixo da Restauração. Assim ocorreu em 26 de Outubro de 1989, com a transformação da ZCC do Perímetro Florestal da Contenda em ZCN pelo D.L. n.º 377/89. A DGF pela gestão global da Contenda compensou a CMM em 4 000 000$00 e nos anos seguintes àquele valor acresceu a taxa de inflação. Recebia ainda ingressos para a prática de actos venatórios, sem aplicação de qualquer taxa e com o direito de os negociar livremente, ceder ou utilizar 884. 881 Informação n.º A-316/89 da DGF, 24-08-1989, ADGF. Ofício Priv./1132 da Administração Florestal de Moura, 22-08-1989,ASFE. Francisco Lopes discordou da «gestão a dois» e advogou que as instalações ou eram cedidas à Direcção-Geral das Florestas, ou à Autarquia. Ofício n.º 1578 da CFE, 23-08-1989, ASFE. 883 Constituído pelos seguintes elementos: Presidente da CMM; Director-Geral das Florestas; Presidente da Assembleia Municipal de Moura, Chefe da CFE; Presidente da Junta de Freguesia de Stº Aleixo da Restauração; Presidente da Assembleia de Freguesia de Stº Aleixo da Restauração; Administrador Florestal de Moura, Presidente da Direcção da Associação de Defesa do Património do Concelho de Moura. Veja-se «Protocolo entre o Presidente da CMM e o Director-Geral das Florestas», Moura, CMM, 27-02-1989, ADGF. 884 Na seguinte proporção: javalis – 20% das jornadas com garantia mínima de 30, mas, em caso de excesso a CMM teria direito a 25% do total; veados – 15% das jornadas de caça com garantia mínima de uma de cada tipo; coelhos – 40% das jornadas de caça com garantia mínima de 60, mas se houvesse excesso, a CMM teria direito a 882 398 Em 1985, o Regulamento de Caça da Contenda foi alterado para um máximo de 80 portas em cada montaria, das quais dez eram cedidas à Junta de Freguesia de Penha Garcia (trinta no máximo), uma concedida a cada proprietário de matilhas de cães e ainda cinco reservadas para o mercado internacional, sob a direcção da DGF, exclusivamente a caçadores não residentes. Por sua vez, foi autorizado o uso de seis matilhas por cada gancho, considerando-se como matilha, um grupo de, pelo menos vinte e quatro cães devidamente amatilhados e acompanhados por um matilheiro, o que totalizava cento e quarenta e quatro cães. Do total, em cada gancho, eram cedidas vinte e quatro portas a caçadores, e mais quatro ao Presidente da Junta de Freguesia de Santo Aleixo da Restauração, cuja atribuição podia ceder ou negociar livremente, arrecadando como receitas próprias os valores das taxas competentes; seis portas, como contrapartidas, eram cedidas aos proprietários de matilhas indigitados e outras duas reservadas para comercialização 885. Em 1989, durante uma reunião do Conselho de Gestão, na sede do edifício da Junta de Freguesia de Santo Aleixo da Restauração, o Presidente da CMM procurou saber junto da DGF das razões indeferira o Regulamento de Caça que estava previsto até 26 de Maio e da eliminação da caça aos pombos-bravos, contrariando o combinado, pois pertenciam à autarquia sessenta jornadas de caça, que pretendia oferecer às Associações de Caçadores do Conselho 886. Todavia, não eram só as questões da caça que movimentavam os autarcas. Igualmente, o aproveitamento da mão-de-obra local foi reivindicado pelo Presidente da Junta de Santo Aleixo da Restauração, que se indispôs contra o facto da Contenda se situar perto da Aldeia e existirem poucas pessoas a trabalhar na Herdade 887. Perante um processo negocial complexo para a constituição da zona de caça, que envolveu cedências entre as partes, na Contenda, a espera aos javalis durante as noites de Lua Cheia tornou-se popular, com uma média de seis esperas por associação 50% do total; pombos-bravos -40% das jornadas de caça com garantia mínima de 60, mas em caso de excesso a CMM teria direito a 50% do total; outras espécies -25% das jornadas de caça. Idem, ibidem. 885 Regulamento de Caça da Contenda na época de 1985-86, ADGF. 886 O Regulamento só foi aprovado em 5 de Julho. Como a caça aos pombos-bravos era de opção e sujeita a migrações, ficou assente que a DGF informaria a autarquia da sua efectiva presença na Herdade. Acta n.º 2, do Conselho de Gestão dos Recursos Naturais da Contenda, de 7-07-1989. Veja-se, ainda, Plano de Ordenamento e Exploração Cinegética (que a partir de agora, passamos a designar por POEC) da Contenda na época Venatória de 1989-90, ASFE. 887 O autarca foi informado pelo representante da DGF que sendo o trabalho sazonal não havia possibilidade de garantir postos fixos, embora existissem muitas pessoas a trabalhar na Herdade de diferentes locais. 399 888 . A autorização especial permitia efectuar esperas em duas noites seguidas, apenas sujeita ao pagamento de uma taxa de inscrição no montante de 10 000$00 para os caçadores residentes ou 20 000$00 para os não residentes. De acordo com a tabela estipulada além da taxa de inscrição, cada caçador pagava uma importância adicional que seria determinada em função do animal ou animais abatidos 889. Segundo as quotas de caça da CMM, os ganchos aos javalis realizaram-se com prioridade à chamada dos caçadores do concelho de Moura, dispondo os inscritos do prazo de um mês para optarem entre uma ou outra inscrição. Em duas jornadas de caça, inscreveram-se 115 caçadores, foram anuladas 35 inscrições e admitidos 80 caçadores, que abateram 37 animais 890. Na caça de espera ao javali, inscreveram-se 76 caçadores (9 inscrições, entraram fora de prazo). As jornadas de caça, que se iniciaram no mês de Agosto de 1986, foram interrompidas no período entre Novembro e Fevereiro e reiniciaram-se entre Março a Maio de 1987.Durante seis meses realizaram-se 12 jornadas de caça (86 esperas ao javalis, durante as quais foram abatidos 12 machos e 17 fêmeas) 891. Na caça de aproximação ao veado inscreveram-se 19 caçadores que abateram 3 machos adultos, feriram um animal e falharam outros dois, apesar de todos os caçadores terem oportunidade de abater animais de troféu. Porém, o período da época da brama, e a instabilidade das condições meteorológicas não permitiram a continuação das jornadas de caça 892. A caça selectiva de aproximação ao veado registou 27 inscrições mas foi proibida devido à permanente expansão territorial da espécie, ao ponto de ultrapassar os limites da ZCC da Contenda, pois não sendo vedada nem murada, permitia a circulação dos animais. 888 Ofício n.º 5450 da CMM, 9-11-1989, ASFE. Durante o sorteio público para os ganchos aos javalis, realizado na sede da Administração Florestal de Moura, entraram noventa e dois postais, dos quais sete foram anulados, por fora do prazo estabelecido para as inscrições, e três por não terem sido registados. Regulamento de Caça da Contenda na época venatória de 1987-1988 e Acta da Administração Florestal de Moura de 30-09-1988. Idem, ibidem. 890 O 1.º gancho gerou uma receita de 427 200$00 e o segundo 436 800$00. As despesas para a realização dos ganchos incidiam, sobretudo, no pagamento aos matilheiros que rondou os 144 000$00. Segundo os regulamentos garantia-se aos proprietários de cada matilha participante no gancho a ocupação de um posto. Idem, ibidem. 891 No mês de Setembro foram observadas cinquenta e umas crias; em Maio, quarenta e oito; em Outubro trinta e quatro. A receita total apurada foi de 628 525$00. No entanto, advirta-se, a caça de espera ao javali exige uma maior absorção de despesa e constantes aplicações de meios, sobretudo, a alimentação dos cevadouros. Idem, ibidem. 892 A receita apurada totalizou 705 200$00. Idem, ibidem. 889 400 No que respeita à caça às raposas, na época venatória de 1986-1987, apesar de se inscreverem 21 caçadores, a caçada foi cancelada devido ao controle efectuado no ano anterior e ao baixo número de animais existente. Na caça aos pombos-bravos, inscreveram-se 99 caçadores. Não existindo caçadores inscritos e residentes na freguesia de Santo Aleixo da Restauração, foram chamados quatro caçadores concelhios, todos residentes em Moura 893. Gráfico 13: Jornadas de caça na Contenda (1986/1987): receita ilíquida em escudos 1.337.525$00 1400000 1200000 1000000 705.000$00 628.525$00 800000 600000 400000 200000 4.000$00 0 Caça de espera ao Pombo-bravo Caça de aproximação ao Veado Caça de espera ao Javali Total Fonte: ASFE, Évora, 1988. Gráfico 14: Resultados da caça ao javali e veado na ZCC da Contenda (1983-1987) 80 60 40 20 0 1983/84 1984/85 1985/86 1986/87 javalis 16 16 26 68 veados - - 3 3 Fonte: ZCC do Perímetro Florestal da Contenda, Moura, 1988. 893 No dia da caçada apenas foi abatido um pombo-bravo, que rendeu a receita bruta de 4 000$00, correspondente ao valor 1 000$00 das inscrições e pago antecipadamente por cada caçador. Relatório da Actividade Venatória (1986-1987) na ZCC do Perímetro Florestal da Contenda. Idem, ibidem. 401 Gráfico 15: Estimativa da caça maior na Contenda (1987-1988) 2.438.293$00 2500000 2.085.505$00 2000000 1500000 1000000 500000 353.000$00 36 29 0 Nº de jornadas de caça Nº de peças de caça abatidas Receitas Despesas Receita liquída Fonte: ZCC da Contenda, Évora, 1988, ASFE. Gráfico 16: Receita das montarias realizadas aos javalis no Perímetro Florestal da Contenda (1989-1991) 1.548.000$00 1600000 1400000 1200000 1000000 800000 600000 499.600$00 427.500$00 400000 200000 0 1989/90 1990/91 1991/92 Fonte: Idem. A rentabilidade económica da ZCC da Contenda Sul confirmou os objectivos dos Serviços Florestais – fomento, ordenamento e exploração das populações de veado e javali. Na Contenda Norte mantinha-se a expectativa de exploração de caça menor, em particular da perdiz-vermelha, lebre, coelho-bravo, pombo-bravo e pato 894. 894 A concretização deste propósito impunha várias medidas: aumentar as áreas cultivadas de pasto, através da implementação de pequenas manchas de 1 a 3 has, onde o gado não entrasse; ordenar os matos nas cercas da Contenda Norte, aproveitando os topos das colinas e as áreas com afloramento rochoso; recrear o coberto de azinho nas cercas; concluir a melhoria dos pontos de água; tornar a água acessível à caça maior e à caça menor; semear topinambo, luzerna, aveia, ervilhaca, trevos; aquisição de sementes de trigo, ervilhaca, gramicha, couves e nabos, girassol, mostardal, etc.; tratamento florestal, comedouros, guarda zeladores (1 por cada 1000 a 2000 has) preparação deste pessoal para controlo de predadores e cães vadios. 402 A fiscalização da caça clandestina aos javalis, na modalidade de espera, devia ser intensificada através do combate ao furtivismo por elementos do corpo de fiscalização da Administração Florestal de Beja (AFB). Tal objectivo possibilitaria, nesse caso, a organização de pequenas montarias e a caça de aproximação nas noites de luar 895 . No ano de 1989-90, a CMM publicou as normas de gestão de caça na Contenda: cada caçador ou associação de caçadores só podia fazer um único pedido de inscrição na CMM para cada um dos processos de caça previstos e, nos casos de inscrição colectiva, inscrever-se num único grupo de caçadores. Se um caçador ou associação de caçadores fosse contemplado no mesmo processo de caça com jornadas de caça, quer das quotas de caça da CMM, quer da DGF, devia obrigatoriamente optar apenas por uma delas. Se existissem vagas nas caçadas, a partir das 72 horas que antecediam a sua realização, podiam ser passadas autorizações especiais de caça aos caçadores interessados que, por ordem de chegada, se apresentassem e se inscrevessem na CMM 896. Reservavam-se assim 30% das caçadas aos coelhos-bravos para os caçadores residentes na freguesia de Santo Aleixo da Restauração e nos concelhos de Barrancos e Moura 897 ; como forma de incentivar o associativismo, a CMM apalavrou com as associações de caçadores do concelho de Moura a cedência de sessenta quotas para a caça aos javalis; igual número aos caçadores residentes no concelho para a caça aos coelhos-bravos; na caça grossa, designadamente aos javalis e aproximação selectiva ao veado, a CMM reservou 50% das jornadas de caça para os caçadores residentes no concelho 898. A participação nos ganchos aos javalis subordinava-se ao pagamento de uma taxa de inscrição de 35 000$00 para os caçadores residentes ou 70 000$00 para não residentes em território nacional, valor que obviamente afastou a maioria dos caçadores modestos 899 . A primeira montaria realizada na ZCC da Contenda em 11 de Novembro de 1990 gerou uma receita bruta de 1 502 000$00. 895 Relatório de objectivos a fomentar no Perímetro Florestal da Contenda, Administração Florestal de Moura, 1999, ASFE. 896 Normas Regulamentares de gestão das quotas da CMM na ZCC da Contenda para a Época Venatória de 1989-1990, Moura, 1989, ACMM. 897 Idem, ibidem. 898 Idem, ibidem. 899 Idem, ibidem. 403 As inscrições para o exercício venatório na Contenda não foram pacíficas. Muitas vezes, originavam protestos de monta. Em 1989, por exemplo, um caçador reclamou da decisão que o excluiu, pelo facto da inscrição entrar na DGF fora de prazo. Alegou o reclamante que o Regulamento para a espera aos javalis e caça grossa de aproximação aos veados, apenas fora afixado no dia 31 de Julho de 1989, enquanto o período de inscrição terminara no dia 30 desse mês: “Creio que esta situação é bizarra” 900 . Os serviços aceitaram a reclamação como sendo um lapso de divulgação do edital. Mas seria? Ajuíze-se que a incúria e o desleixo a que temos vindo a assistir, por vezes, oculta algum compadrio que importava averiguar. Em 1987, outro protesto partiu da cidadã Maria Costa, em representação do marido, após ter sido notificada da anulação da inscrição para um gancho aos javalis, sob o argumento da falta de matilhas 901 . Em 1988, foram aceites, e por isso considerados válidos, noventa e dois postais para os ganchos aos javalis 902. A caça dos javalis à espera, nas noites de Lua Cheia, modalidade sem tradição em Portugal, era contudo praticada clandestinamente por furtivos para aproveitamento da carne dos animais abatidos; também, em situações extremas pelos proprietários dos cultivos para sua protecção, conforme previsto no D.L. n.º 354-A/74, aliviando os serviços de indemnizar os lesados, todos os anos 903. Na Contenda, as esperas aos javalis tornaram-se habituais e o habitat do veado, que ultrapassou o espaço físico da Herdade, encontrava-se em franca expansão, aliado às melhores disponibilidades alimentares de bolota das áreas envolventes inexistentes em todo o suporte físico de Contenda Sul. Por essa razão, os Serviços Técnicos acabaram por proceder a dois tipos de caça cumulativa: troféu e selectiva, ou esta 900 Carta de António José de Albuquerque Póvoas ao Director-Geral das Florestas, Porto, 2-08-1989 e telex n.º 495, NR 72/89, 4-08-1989, ADGF. 901 A importância de 20 000$00 paga de antemão foi reenviada à reclamante no dia 28 de Agosto de 1987.Carta de Maria da Conceição Gomes da Costa ao Director dos Serviços de Caça, Estoril, 12-01-1988, ASFE. 902 A Administração Florestal de Moura, em cada sorteio, obrigava-se pela lei civil a garantir a presença de um conjunto de personalidades. Assim, por exemplo, estavam presentes ou representados, a Administração Florestal, um guarda da PSP, e um oficial administrativo, que servia de secretário. Através das actas verifica-se que previamente ao sorteio público se elaboravam listas para a ordem de chamada dos caçadores, cujos pedidos de inscrição fossem válidos, através da conferência dos postais pelo respectivo registo de entrada. Depois, justificavam-se os anulados que não obedeciam aos requisitos. A caça selectiva aos veados, de acordo com o estipulado no Regulamento de Exploração da ZCC decorria em dois períodos: o primeiro, das 6 às 14 horas, através dos percursos efectuados; o segundo, das 15 às 18 horas. Informação da CFE n.º 796, 5-04-1989, ASFE. 903 No entanto, as esperas aos javalis para serem bem sucedidas, exigiam um determinado número de conhecimentos e regras indispensáveis. Podiam ser feitas nos comedouros naturais (nas três noites anteriores à Lua Cheia); cevadouros artificiais (mas nunca a menos de 50 metros da espera e apenas no caso do agricultor); usar carabina equipada com óculo de pontaria, podendo, contudo atirar sem óculos ou com caçadeira (mas a distância não superior a 20-30 metros) e, ainda, em bebedouros naturais ou artificiais. 404 imediatamente a seguir à primeira, embora exigindo o empenhamento de melhores meios humanos 904. O lince, praticamente em vias de extinção em Portugal, encontrou aqui o habitat ideal para a sua sobrevivência. Segundo o relatório do tratador de animais de 2ª classe em serviço na Contenda, durante o mês de Abril de 1985 foi avistado um lince no arrife da habitação do guarda-florestal Barrocas 905. Em finais de 1997, a população de Santo Aleixo da Restauração, freguesia do concelho de Moura, onde se situa a Herdade da Contenda, insurgiu-se contra a constante invasão da propriedade pelos caçadores furtivos espanhóis, durante a noite, para matarem o que queriam sem que ninguém os impedisse 906. A escassez de vigilância foi apontada como o principal motivo porque os espanhóis arrebatavam da Contenda bons exemplares de caça grossa (veados e javalis), afirma outro morador de Santo Aleixo, adiantando que durante a noite o “fogachal mais parecia uma guerra civil”, entre caçadores portugueses e espanhóis em disputa pelos melhores troféus de caça. Os espanhóis justificavam as incursões nocturnas, e às vezes diurnas, com o argumento de que as fronteiras acabaram. Naturalmente, a tentação era grande porque aí existia a maior população nacional de veados: mais de 600 exemplares. De acordo com a legislação cinegética em vigor, a Herdade devia ter três guardas-florestais auxiliares, mas naquele tempo não tinha nenhum, como reconheceu Francisco Lopes 907. A falta de guardas-florestais na Contenda foi, aliás, motivo de agenda política na reunião da Assembleia Municipal no dia 27 de Julho de 1997, suscitada pelo vereador da CDU, Manuel Bravo, pois violava a lei da caça, uma vez que nas ZCN se exigia um 904 Informação C.P./79 da Administração Florestal de Moura, 23-01-1989, ASFE. Muita informação acerca do funcionamento da Contenda devia-se, em parte, ao trabalho de campo dos tratadores de animais, verdadeiros olhos e ouvidos dos recursos bravios. Durante o mês de Novembro, o trabalhador prosseguiu a sua faina, agora na preparação de tabuletas e fiscalização nas zonas de fronteira e Coutada dos Frades. De entre as muitas funções, refira-se a abertura de algumas ruas para melhor acesso às portas dos ganchos aos javalis; recolha de alguns animais abatidos e sua preparação; observação para aguardo dos pombos e escolha dos locais para os ganchos. Em Julho de 1985, além do tratamento dos comedouros e iscagem das armadilhas de ferro, o tratador capturou um corvo, duas pegas, sete raposas e uma fuinha. Relatório do Tratador de Animais de 2ª classe, António Joaquim Alintejano, durante o mês de Abril de 1985 no Perímetro Florestal da Contenda, Moura, 1985, ASFE. 906 Confidência de um morador, que preferiu o anonimato por temer eventuais represálias. Jornal Público, 1-071997, p. 49. 907 O único guarda que existia na Contenda aguardava a reforma. Imprevisivelmente, meteu baixa, por graves problemas de saúde. Francisco Lopes não considerou a vigilância tão negra, pois continuava a ser feita por três brigadas de guardas-florestais de Moura, com orientações para vigiarem de dia e noite. Esperava, ainda, que com a entrada de onze novos guardas, pudesse deslocar um ou dois para a Contenda, embora estivesse ciente da dificuldade em encontrar alguém que quisesse viver na Herdade, apesar das boas condições das habitações. Idem, ibidem. 905 405 guarda por cada dois mil Has. Sabia-se igualmente que o guarda era o tratador de caça, designadamente vigiava as manchas onde todos os anos se realizavam as três montarias (duas ao javali e uma ao veado) organizadas e coordenadas pela Zona Florestal da Margem Esquerda do Guadiana. Apesar de, noutras ocasiões, a caça ser proibida para protecção dos animais ali existentes (javalis, veados, coelhos-bravos, perdizes-vermelhas e outras espécies menores), contudo, era voz corrente em freguesias do concelho de Moura (Amareleja, Safara e Santo Aleixo da Restauração), que caçadores furtivos durante a noite na Contenda se aproveitavam da situação e caçavam veados e javalis. Apesar da Circunscrição Florestal de Moura garantir que assegurava a fiscalização diária por brigadas dos serviços florestais, compostas por quatro elementos, era insuficiente para uma extensão territorial que, para ser eficaz, só podia ser exercido por quem a conhecesse bem e permanecesse a tempo inteiro no local. Para obviar a tal desiderato, o autarca propôs que a Herdade tivesse um aproveitamento turístico-cinegético, incluindo um” aldeamento, um picadeiro, uma piscina” – que induzissem os caçadores a participarem nas montarias a trazer as suas famílias, projecto que devia ser gerido por uma empresa de capitais públicos e privados, com participação do Instituto Florestal, porque se reconhecia o extraordinário trabalho de florestação ali desenvolvido 908. 908 O vereador insistia que o executivo municipal devia reunir urgentemente o Conselho de Acompanhamento da Contenda, em que tinha assento a autarquia e o Instituto Florestal. «Caçadores à Solta», Diário do Alentejo, 4-71997, p. 6 406 CAPÍTULO VI – A REFORMA DA VENATÓRIA (1974-2000) 407 1. Tentativas Após a Revolução de Abril de 1974, o Governo Provisório, como vimos, extinguiu os aramados e no ano seguinte aboliu as coutadas. Passado o clima de euforia, à medida que a destruição dos recursos bravios se consolida, os sucessivos governos adquirem a consciência do estado caótico da venatória. Apesar de se manter em vigência o D.L. n.º 354-A/74, o ordenamento jurídico constituía letra morta, pois quase ninguém respeitava as normas e regras básicas da actividade cinegética. Saliente-se, contudo, que no regime anterior, em 1-02-1973, uma comissão de caçadores portugueses, legitimada por cerca de uma centena de Comissões Venatórias da Regional do Norte e do distrito de Santarém, solicitou audiência ao Presidente do Conselho e Ministro da Economia, com vista a expor-lhe a situação da caça desportiva e dos perigos que ameaçavam a fauna, por falta de uma rígida regulação que limitasse as” chacinas da caça e o seu indiscriminado monopólio” proveniente, por um lado, da falta de fiscalização no terreno livre e, por outro lado, do coutamento abusivo e a expansão desmesurada dos aramados 909. 1.1. Comissão de Revisão da Lei de Caça e o Projecto -A Para combater o arquétipo venatório foi nomeada a primeira Comissão de Revisão da Lei da Caça por despacho do Secretário de Estado das Florestas, de 25 de Maio de 1977. Incumbida de estudar o novo regulamento venatório e de acabar com a desordem que se vivia nos campos, a Comissão criou o Projecto-A 910. 909 «Quem acode à caça», Jornal de Caça e Pesca, n.º 380, 17-01-1974, pp. 1-2. Diário da República, II Série, n.º 132,7-06-1977. A comissão era constituída pelos seguintes elementos: Dr. António Fajardo Pereira Leite, jurista e Coordenador; Eng.º Silvicultor, Ilídio de Figueiredo Ministro – indicado pelo Secretário de Estado do Ambiente; Manuel Amaral – indicado pela Secretaria de Estado do Turismo; Eng.º Agrónomo, Manuel Manso de Brito – indicado pela Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas; Eng.º Silvicultor João Filipe Flores Bugalho, da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, Director dos Serviços de Caça; Dr. José de Mesquita Cannas da Silva, da Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal – membro da União Intersindical dos Biologistas de Caça, encarregado das questões de patologia cinegética; Eng. Técnico agrário, Álvaro da Purificação Barreira, funcionário da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal, indicado para o efeito pela Comissão Administrativa da Comissão Venatória Regional do Norte. Apesar de a Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal ter informado aquela Comissão Venatória Regional de que não considerava conveniente ter sido escolhido um técnico do Serviço para representar os caçadores, foi por esta respondido que o consideravam como a pessoa indicada e o nomearam, não por ser técnico, mas porque além de ser um caçador conceituado na região era o Presidente do Clube dos Caçadores de Bragança; Dr. Alberto Rafael Amorim de Lemos Marques Mano, indicado pela Comissão Administrativa da Comissão Venatória Regional do Centro, ouvidos os representantes distritais dos caçadores; Armindo da Silva Fernandes, indicado para o efeito pelos membros caçadores da Comissão Administrativa da CVRS; Jorge de Andrade Roque de Pinho, Presidente da Delegação Portuguesa do Conselho Internacional da Caça, ADGF. 910 408 Incidentalmente, sete dos membros eram caçadores, mas embora os destinos da caça não dependessem exclusivamente dos caçadores, foi considerada indispensável a participação dos delegados dos três organismos que, no momento, representavam cerca de 200 000 caçadores de Portugal Continental. De imediato, os caçadores protestaram contra esta nova comissão, primeiramente por dela constar João Bugalho, ex-funcionário do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, além de outras figuras “inflexivelmente patrocinadoras dos aramados e coutadas” 911. Consequentemente, solicitaram ao Governo que extinguisse a comissão e nomeasse outra, na qual participassem técnicos, caçadores e agricultores, como órgãos prioritários, porque pretendiam a criação do Serviço Nacional da Caça. Por sua vez, os membros da Comissão de Revisão concluíram que lhes seria impossível trabalhar permanentemente em conjunto. Indicaram então, quais os elementos que deveriam dar um apoio mais próximo ao Coordenador para que este elaborasse os documentos que serviram de base às reuniões plenárias. Seguiram o critério que os membros deviam ser não só os mais conhecedores, mas também os mais disponíveis. A este grupo restrito, que teve composição variada ao longo daquele período, consoante a natureza dos temas em preparação, coube a tarefa da elaboração dos documentos que serviram como tema da discussão em cada uma das reuniões em plenário. Todos os documentos de trabalho foram detalhadamente discutidos pela Comissão; quase todos sofreram profundas alterações até à elaboração do anteprojecto entregue ao Secretário de Estado das Florestas. Deliberou, entretanto, a Comissão que antes do anteprojecto ser apreciado pelo governo não seria eticamente correcto a sua divulgação, condição que não foi aceite por Armindo Fernandes, representante dos caçadores da Região Sul, que divulgou os documentos de trabalho antes de serem discutidos e aceites pela Comissão 912. Os restantes elementos chamaram-lhe a atenção que tal procedimento só servia para confundir e não para esclarecer o público, mas tal não colheu efeito; inclusive, convocaram reuniões de caçadores para se pronunciarem sobre o documento. Os projectos de diploma apresentados ao Secretário de Estado e elaborados ao longo de cerca de cinco meses, apenas tiveram três declarações de voto contra, todas 911 912 Jornal do Caçador, n.º 43, 15-04-1978, p. 7. Idem, ibidem. 409 do representante da CVRS; a primeira, respeitante à reestruturação venatória; a segunda, à criação de regimes especiais de caça; a terceira, pelo facto dos documentos de trabalho a discutir em plenário terem sido preparados por um grupo restrito. Injustamente acusada de querer restaurar os aramados, a Comissão apreciou os princípios jurídicos contidos no Art.º 63.º, do Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967, nomeadamente a disposição que proibia o acto venatório sem autorização dos respectivos proprietários ou possuidores nos terrenos murados ou vedados. O Coordenador sugeriu que, ou se abolia o referido princípio mais ligado ao Código Civil que à lei da caça, ou então havia que considerar igualmente as vedações por rede metálica, que na época substituíram na sua finalidade os muros de outrora. Para o representante dos caçadores da Região Sul, tal princípio devia-se manter para os muros, mas não ser extensivo às redes metálicas, pois restauravam-se os aramados 913 . Indignado por não conseguir valer a sua posição abandonou a reunião, convicto de que o princípio que instituíra os aramados fora repudiado por todos os presentes. Por tudo isto, a Comissão, que considerou a questão jurídica como o principal problema na sua total aceitação ou a sua completa supressão, eliminou tal intento no documento de trabalho. No sábado seguinte, o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca organizou uma reunião em Cascais para elucidar os caçadores sobre o pretenso restabelecimento dos aramados. Constituía, por essa razão, uma grande e justificada preocupação o renascimento de “coutos e os famigerados aramados”, equivalentes a um “verdadeiro racismo desportivo, discriminatório e anti-social” 914 . No final da reunião, os caçadores, por terem sido afastados da discussão da futura lei da caça, dirigiram uma moção de protesto ao Presidente da República e ao Primeiro-ministro, assinada por todos os presentes. Entretanto, a imprensa anunciou que o Projecto propunha a extinção das Comissões Venatórias – desígnio que o Serviço de Inspecção de Caça e Pesca confirmou –, mas sem esclarecer devidamente a opinião pública; em alternativa, seriam criadas Comissões de Caçadores, nascidas dos delegados de freguesia até à Comissão Nacional de Caçadores, passando pelas Comissões Municipais e Regionais, a solicitação de grande maioria dos caçadores 913 915 . Colateralmente, seriam criados os Relatório do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, Lisboa, 8-03-1978, ADGF. 914 Idem, ibidem. 915 Idem, ibidem. 410 Conselhos Cinegéticos, nos quais os agricultores podiam discutir em igualdade numérica com os caçadores os problemas relacionados com a caça; nele teriam assento os representantes dos organismos da conservação da Natureza. No Conselho Cinegético Nacional estariam representados além daqueles, os organismos oficiais com maior interferência nas questões da conservação, fomento e gestão do património cinegético nacional 916 . Os serviços públicos asseguravam o funcionamento das ZCN, o apoio técnico às associações de caçadores que explorassem os “territórios de caça”; realizavam os estudos necessários para atingir esses objectivos; promoviam a formação, disciplina e funcionamento dos corpos de fomento e fiscalização, quando estes existissem; executavam ou controlavam o licenciamento e o exame dos candidatos a caçador, etc. O Serviço de Inspecção de Caça argumentou que em nenhum país do mundo existiam Serviços de Caça conduzidos pelos caçadores, nem o poder de gestão da caça era competência exclusiva destes, como vinham defendendo de forma original os que davam para os jornais entrevistas ou notícias 917 . De facto, aquele Serviço esforçou-se por esclarecer o público sobre as medidas tomadas ou a tomar, no âmbito da sua actividade, garantindo e até mesmo estimulando a participação ou auscultação, pelo menos, dos mais directamente interessados, através de muitas dezenas de reuniões levadas a efeito em todo o país. De outro modo, num momento da maior importância para o futuro da caça em Portugal, que preparava e discutia um projecto de D.L. sobre a reestruturação venatória e um projecto duma nova lei da caça para ser submetido à Assembleia da República, considerava-se essencial submeter à apreciação de todos a documentação que permitisse o esclarecimento com vista à análise crítica e objectiva dos fins que se queriam alcançar, assim como obter contribuições e sugestões para o seu aperfeiçoamento 918. 916 Basta analisar o Art.º 18, n.º 2, para se ajuizar da importância que se reconhecia aos referidos órgãos como participantes activos na gestão dos recursos bravios. Sublinhe-se, no entanto, que o n.º 4 do Art.º 22.º estipulava que o funcionamento das referidas estruturas seria assegurado por uma verba, que podia atingir 25% do total das receitas provenientes da caça. 917 Noticias que foram publicadas de forma contínua nos seguintes jornais diários: Diário de Noticias (28-91977), Diário Popular (29-9-1977); Luta (5-11-1977;30-11-1977); Diário (26-11-1977;30-11-1977), Dia (18-11978;11-2-1978), originadas por comunicações provenientes do pré-conselho dos caçadores da região que abrangia os concelhos de Lisboa, Leiria, Santarém e parte Norte de Setúbal, por informações distorcidas, falsas, ou apenas parcialmente verdadeiras, que poderiam induzir em erro a opinião pública. 918 Relatório do Serviço de Inspecção de Caça e Pesca, Direcção-Geral de Ordenamento e Gestão Florestal, Lisboa, 12-4-1978, ADGF. 411 As acusações mais graves ao Projecto reportavam-se ao impedimento dos caçadores, durante o exercício da caça, de circularem livremente no campo, e a tentativa de restaurar a criação de zonas especiais de caça, “as coutadas de outrora” 919. Nesta circunstância, o Serviço de Inspecção de Caça prontificou-se a esclarecer que “não estavam nem podiam estar tais ideias contidas no espírito do Projecto” 920. A meia verdade colhia facilmente, sobretudo se explorada de forma demagógica, naquilo que continha de verdadeiramente novo para a nossa mentalidade. Os princípios implícitos no projecto assim se ordenavam: - A caça é um recurso natural renovável que constituía património de toda a comunidade, cabendo ao Estado a máxima responsabilidade na sua gestão; - A gestão da caça obedecia às normas de ordenamento cinegético, através das quais se garantia a manutenção do equilíbrio ecológico; - A caça devia ser um factor de valorização da agricultura, contribuindo para o desenvolvimento das zonas rurais e para a melhoria da qualidade de vida de toda a população; - Competia ao Estado facultar o exercício organizado da caça e orientar as actividades venatórias, segundo um regime que todos os caçadores fossem considerados em igualdade de oportunidades e condições mais equivalentes; - Para alcançar estes objectivos de forma justa e segura, o Estado apoiaria organizações de caçadores, de agricultores e de outros cidadãos interessados na conservação e usufruição do património cinegético, promovendo a sua participação, no ordenamento e administração daquele património, e estimulando a participação daquelas organizações quando for acaso disso 921. 1.2. Projecto – B Como o Projecto-A teve muitas resistências dos caçadores e das Comissões Venatórias, o Governo incumbiu a Secretaria de Estado das Florestas de o reformular. Foi assim que apresentou o Projecto-B, cujo objectivo consistia em “conservar, fomentar e gerir os recursos cinegéticos”, pois no pós-25 de Abril todas as medidas se revelaram 919 Idem, ibidem, Idem, ibidem. 921 Idem, ibidem. 920 412 ineficazes ou socialmente injustas, particularmente as “coutadas e aramados “conduziram o país para duas consequências 922 : - A defesa e o fomento da caça em áreas significativas, que nunca se estenderam uniformemente a todo o território nacional, incidindo sobretudo nas regiões de grande propriedade; - A manifestação de uma “classe privilegiada”, assaz limitada, que fruía, sem concorrência, uma parcela significativa dos recursos cinegéticos do país. Entretanto, este panorama mudou “radicalmente”, quando se franqueou os aramados e rematou com a extinção dos coutos. Se é certo que estas medidas conduziram a uma maior igualdade ou fruição da caça, provocaram simultaneamente um “abaixamento drástico” nos seus efectivos, a ponto de fazer perigar o futuro deste património nacional 923 . Reconsiderava-se, deste modo, o compromisso que permitia alcançar um ponto de equilíbrio entre a inteira liberdade de caçar e as restrições exageradas e não equitativas. Para além dela, presidiram à elaboração do Projecto-Lei ainda outros princípios: - A fauna silvestre constituía um recurso natural renovável, com influência no equilíbrio ecológico e na qualidade de vida das populações, razão pela qual o Estado devia assumir a responsabilidade pela sua gestão; - Os agricultores afectados por erros cometidos deviam ter oportunidades de intervenção directa na gestão da fauna; - Aproveitar a boa aptidão cinegética em certas áreas do país, para o Estado concentrar acções e extrair benefícios de carácter socioeconómico e permitir o desenvolvimento das regiões interessadas; - A intervenção de todos os sectores interessados nos problemas cinegéticos através da criação das Comissões de Caçadores e os Conselhos Cinegéticos e de Conservação da Fauna; - O equilíbrio entre a liberdade de caçar e as necessidades de protecção e de fomento da fauna silvestre, mediante a instituição do regime cinegético especial; 922 Projecto-B, Secretaria de Estado das Florestas, Janeiro de 1978, ADGF. Veja-se, passados quatro anos após a Revolução de Abril de 1974, já havia a consciência da desertificação e do erro cometido pelos sucessivos governos. 923 413 No intuito de tornar o sistema flexível e adaptável aos diversos condicionalismos ocorrentes, instituíram-se quatro modalidades de zonas de caça, podendo o Estado, em certos casos, delegar ou conceder a respectiva gestão, a saber 924 : - ZCN (Art.º 16.º), instituídas em áreas integradas em qualquer dos sectores de propriedade dos meios de produção, suportando os encargos com a sua constituição e funcionamento (Art.º 16.º); sempre que as zonas de caça recaíssem em terrenos cuja gestão não coubesse por inteiro ao Estado, as respectivas entidades tinham direito ao recebimento de uma retribuição dos termos do n.º 2 do Art.º 14.º; - ZCS (Art.º 17.º), destinadas a proporcionarem aos caçadores residentes no país o exercício organizado da caça, em condições especialmente acessíveis, localizadas em terrenos integrados em qualquer dos sectores de propriedades, custeando o Estado, em todos os casos, as despesas com a sua constituição e funcionamento; a administração de tais zonas de caça cabia, em exclusivo, ao Estado, mas quando se localizassem em áreas cuja gestão lhe não pertencia exclusivamente, podia delegar aquele direito nas entidades gestoras respectivas, desde que aquelas áreas se integrassem nos sectores público ou cooperativo; - Quando as ZCS não se situassem em terrenos de propriedade estatal, os proprietários tinham direito a receber uma retribuição nos termos do n.º 2 do Art.º 14.º. Se a administração de tais zonas fosse delegada pelo Estado numa entidade não estatal, esta tinha o direito a receber uma retribuição pelo seu trabalho. Nestas zonas de caça, o exercício da caça era reservado exclusivamente a residentes no território nacional; ficava sujeita ao pagamento de taxas estabelecidas oficialmente, segundo critérios de razoabilidade; não podia a receita anual cobrada exceder 80% dos encargos verificados no mesmo período; - ZCA (Art.º 18.º), a explorar por associações de caçadores que nelas se propusessem custear e realizar acções de fomento e conservação da fauna cinegética e o exercício venatório fosse reservado exclusivamente aos seus membros, com a excepção consignada no artigo 20.º, em terrenos pertencentes aos sectores cooperativo ou privado, sendo devido aos respectivos detentores o pagamento de uma retribuição, nas condições do n.º 2 do Art.º 14.º. - A exploração das ZCA por associações de caçadores seria feita por períodos renováveis de 12 ou 6 anos, consoante tivessem ou não aptidão para caça maior; a 924 Idem, ibidem. 414 área de cada ZCA não podia exceder um total correspondente a 30 has por caçador associado; os estatutos de qualquer associação de caçadores que pretendesse explorar uma ZCA deviam prever a existência de um número mínimo de 12 caçadores associados, dos quais um terço era obrigatoriamente reservado para caçadores residentes na região cinegética e outro terço para caçadores residentes no exterior da mesma; cada caçador não podia ser membro de mais de duas ZCA, devendo obrigatoriamente uma delas situar-se na região cinegética da sua residência e a outra fora desta; os estatutos das associações deviam conter cláusulas, excluindo automaticamente os caçadores que não respeitassem esta regra; as associações de caçadores que quisessem beneficiar da faculdade prevista neste artigo ficavam obrigadas a submeter previamente à aprovação da Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal planos de ordenamento e de exploração e a dar execução a tais planos, nas condições em que fossem aprovados; os caçadores previstos no artigo 20.º ficavam sujeitos ao pagamento de taxas, a reverter para o Fundo Especial de Caça e Pesca, idênticas às que lhe fossem fixadas para as ZCN ou ZCS com semelhantes características venatórias. - ZCT (Art.º 19.º), com vista ao aproveitamento turístico dos recursos cinegéticos e constituídas em terrenos dos sectores público, cooperativo ou privado com duração limitada a períodos renováveis de 6 a 12 anos, conforme fossem ou não aptas para caça maior; o somatório das áreas de ZCT de um concelho não podia ser superior a 10% da superfície do mesmo; a criação e exploração de ZCT podia ser custeada e levada a efeito quer directamente pelo Estado ou por empresa pública, quer por empresas privadas ou de economia mista, à qual tal direito fosse concedido (Art.º 20.º). Em qualquer das zonas de caça criadas se previa o exercício da caça a caçadores economicamente mais desfavorecidos, que exercessem actividades profissionais na freguesia ou freguesias nas quais estas se situassem, prioritariamente tratando-se de activos agrícolas; ficava à disposição dos caçadores que preenchessem as condições especificadas, uma quota-parte, não inferior a um décimo, dos contingentes venatórios capturáveis, a fixar em termos a estabelecer em regulamento, a elaborar com a participação dos representantes legais dos caçadores; cabia à comissão ou comissões de caçadores correspondentes, mediante proposta dos delegados de caçadores da freguesia ou freguesias envolvidas, proceder anualmente à listagem dos caçadores a contemplar nos termos dos números ant