Obama, como comandante-em-chefe, na crise síria

Transcrição

Obama, como comandante-em-chefe, na crise síria
2013/09/15
Obama, como comandante-em-chefe, na crise síria
Alexandre Reis Rodrigues
Para
vários
especialistas
e
comentadores internacionais, quase
todos “pesos pesados” nos jornais e
revistas de maior circulação mundial,
a Síria constitui hoje um “case study”
de como a política externa americana
não deve ser conduzida.1 De facto, o
que é conhecido da forma como a
administração americana tem lidado
com o conflito sírio, incluindo a
possibilidade de uma intervenção militar, revela um processo demasiado
inconsistente para ser verdade, estando a falar da maior potência mundial.
O assunto é importante porque, no final, é a imagem dos EUA e do seu atual
Presidente que sai fragilizada. Falta ver, no entanto, como o político brilhante que é
Obama vai conseguir sair do imbróglio em que se deixou envolver e alterar a
perceção de líder indeciso e pouco afirmativo, que tem hoje, principalmente aos
olhos árabes. Para já conseguiu tornear com sucesso os problemas que tinha para o
curto prazo, evitando, pelo menos nos tempos mais próximos, uma intervenção
militar que, contra os seus desejos, se estava a tornar inevitável e suspendendo
uma votação do Congresso que tinha alta probabilidade de lhe não ser favorável
(segundo uma sondagem, na Câmara dos Representantes não se esperavam mais
de 203 “sins”, quando o mínimo necessário para a resolução passar seriam 217. No
Senado, Obama ficaria mais longe do seu objetivo; conseguiria 22 votos a favor
quando precisaria de 50).
Vamos ter que esperar para ver como vai funcionar na prática o acordo conseguido
em Genebra entre Kerry e Lavrov, segundo o qual um grupo de inspetores
internacionais procederá, durante o mês de novembro, a uma inventariação de todo
o arsenal de armas químicas, a partir de uma listagem inicial a ser facultada pelo
regime sírio até 21 de setembro. A destruição de todo o material relacionado, ainda
segundo o acordo, deverá estar concluída até meados de 2014. Como será possível
concluir esta tarefa num cenário de guerra civil que obrigará garantir a segurança
dos inspetores e será, muito provavelmente, interferida pela oposição que esperava
uma intervenção militar dos EUA para enfraquecer o regime? Conseguirá a ONU
obter colaboração para reunir o número necessário de inspetores?
São cerca de 1000 toneladas de material espalhadas por mais de 50 locais, alguns
dos quais situados em zonas de guerra. Será possível reunir as condições
necessárias para que o processo decorra de forma rápida, verdadeira e verificável
1
Incluo, como anexo deste artigo, um breve resumo das declarações mais significativas feitas neste
âmbito.
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como Kerry exigia, em declarações iniciais? («It has to be swift, it has to be real,
and it has to be verifiable») ou estará os EUA sob o risco de ver mais uma vez as
suas exigências ignoradas? Até que ponto estará o regime sírio disposto a encarar
as suas obrigações com seriedade? Segundo o general Selim Idris, líder do Free
Syrian Army, as forças governamentais terão começado a mover parte das armas
em questão para o Líbano e Iraque, numa tentativa de evitar o seu controlo pelos
inspetores das Nações Unidas. Se esta acusação é verdadeira ou apenas uma forma
de a oposição síria alimentar o ceticismo que grassa entre os ocidentais quanto à
vontade de Assad fazer “jogo limpo” é algo que falta ver.
Para já, o Presidente Putin conseguiu oferecer ao Presidente Obama uma
alternativa que evitou a intervenção militar americana. Se vai resultar ou não é
assunto que não preocupa Moscovo. Não faltarão bodes expiatórios para apontar
como responsáveis pelo falhanço. Se está ou não a contribuir para o prolongamento
do conflito também não é assunto relevante. Putin não tem como objetivo principal
proteger Assad, muito embora com a sua iniciativa, esteja a ajudá-lo a reforçar a
sua posição e a proporcionar-lhe um sopro de vida na sua capacidade de resistir. O
que move Moscovo são interesses estratégicos: regressar ao grande jogo
geopolítico com um estatuto semelhante ao dos EUA, tornar-se indispensável na
procura de soluções para o conflito sírio, disputar áreas de influência dos EUA e
dividir os seus aliados, etc.
O mais extraordinário aspeto deste processo é o facto de a ideia de eliminação das
armas químicas sírias pertencer a Obama, quando, há um ano atrás na Cimeira do
G-20 no México, apresentou uma proposta que Moscovo rejeitou. Não se
compreende como os EUA não voltaram ao assunto, na sequência dos ataques
empreendidos por Assad em março e agosto, para exigir a colaboração de Putin.
Caso Moscovo continuasse a recusar, os EUA teriam uma base mais sólida para
intervir militarmente, podendo assim alegar ter esgotado todas as possíveis
iniciativas diplomáticas. Acabaram por conseguir a saída por que Obama ansiava
mas com o custo elevado de perda de iniciativa a favor de Moscovo, às mãos de
quem ficam nos tempos mais próximos no que respeita à Síria. Curiosamente, no
dia nove de setembro, em resposta a um jornalista que o interrogava sobre se
haveria alguma coisa que Assad pudesse fazer para evitar a intervenção, Kerry
respondia do seguinte modo: «Sure. He could turn over every bit of his chemical
weapons to the international community in the next week». Mas como esclareceu o
Departamento de Estado logo a seguir, Kerry não estava a fazer qualquer proposta.
Quem fez a proposta foi Moscovo no dia seguinte! Não se compreende a inépcia dos
EUA, a menos que existam factos de bastidores que expliquem este desenlace.
O presidente Obama é quase o oposto do seu antecessor. A imagem de Bush era a
de um Presidente que depois de tomar uma decisão nunca voltava atrás e
esforçava-se sempre por mostrar não ter dúvidas, mesmo quanto decidiu recorrer
ao uso da força, sem consenso internacional nem autorização do Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Obama conduziu as suas campanhas eleitorais e
tem orientado a sua presidência sob uma clara preocupação de se demarcar da
postura de Bush. Os seguintes extratos de declarações suas, no passado recente
sobre a crise síria, retratam muito claramente o seu pensamento:
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«I was elected to end wars, not to start them. I’ve spent the last four and a half
years doing everything I can to reduce our reliance on military power as a means of
meeting our international obligations and protecting American people».
«My goal is maintain the international norm on banning chemical weapons. I want
that enforcement to be real».
«I am not itching for military action … and if there are good ideas that worth
pursuing, then I’m going to be open to them».
«I fervently hope that this can be resolved in a nonmilitary way».
Aparentemente, o caminho que traçou é o que a opinião pública americana
esperava, em especial no que respeita ao emprego de tropas no terreno em
conflitos prolongados e de desfecho incerto. Ao contrário de Bush, Obama mostrase extremamente relutante em intervir neste tipo de conflitos mas não hesita, de
novo em oposição ao que fazia Bush, em envolver-se nas chamadas “guerras
secretas” com intervenções em territórios estrangeiros, através do emprego de
“drones” armados, que tem conduzido à revelia de vários tipos de escrutínios
internos a que se devia ter sujeitado mas que, afinal, tem ignorado.2
Esta situação mostra que, ao contrário das acusações que lhe fazem alguns
opositores, nomeadamente o senador republicano Bob Corker - um insistente
defensor da intervenção militar - Obama não é um comandante-em-chefe que se
sente desconfortável no seu papel. Apenas não quer envolver-se em operações de
contra-insurreição exigindo prolongados e dispendiosos empenhamentos militares
no terreno. Rege-se, sobretudo, por princípios de pragmatismo que também têm
pouco ou mesmo nada a ver com preocupações com questões de Direito
Internacional ou de obtenção de concordância do Congresso para intervir
militarmente. Usou estes expedientes no caso da Síria apenas porque lhe convinha
ganhar tempo para a procura de uma saída não-militar. Escudou-se em declarações
do general Dempsey, Chefe da Junta de Chefes de Estado Maior, que considerou
que a operação não era «time sensitive», isto é, que não precisaria de ser
executada imediatamente3 e tentou passar o ónus da decisão de intervir para o
Congresso.
Lamentavelmente, também não foi consistente ao impor “linhas vermelhas” quando
não tinha qualquer intenção de intervir. Errou desastradamente na gestão do “bluff”
que fez com a questão do emprego de armas químicas pelo regime sírio ao partir
do princípio de que era muito baixa a probabilidade de Assad tomar qualquer
iniciativa que pudesse desencadear uma intervenção externa. Pôs em causa a
credibilidade dos EUA e não conseguiu evitar que entre os seus mais diretos
colaboradores, em especial, os Secretários de Estado e da Defesa, deixassem
2
Quando Obama tomou posse como Presidente dos EUA, o emprego de “drones” estava limitado ao
Paquistão e era relativamente reduzido (44 “sorties” em cinco anos). Com Obama o emprego “drones”
alargou-se a pelo menos cinco países (Afeganistão, Iémen, Iraque, Líbano e Somália) e quadruplicou em
número de utilizações.
3
Aliás, Dempsey foi mais longe ao mostrar-se, de forma muito transparente, nada entusiasmado, senão
relutante, sobre a ideia do recurso à força. Não é normal que, num país democrático, o chefe militar se
pronuncie publicamente de forma tão assertiva sobre uma possível intervenção militar em processo de
decisão política. No entanto, neste caso, isso serviu exatamente a pretensão do Presidente, que
procurava ganhar tempo.
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transparecer para o exterior flagrantes diferenças de discurso. Pode, em teoria,
argumentar que foi graças à pressão militar que fez que acabou por conseguir uma
saída diplomática. Mas o que fica é uma imagem negativa de uma postura apenas
reativa e levada ao extremo de se deixar “empurrar” por Moscovo para uma
solução que deveria ter explorado.
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Extrato de algumas opiniões de especialistas e comentadores
Fareed Zakaria, num comentário para a CNN antes do ponto de viragem que levou
à suspensão da ideia de uma intervenção em função da proposta russa,
considerava que o Presidente Obama tinha acabado por perder-se numa retórica
que o deixou sem qualquer saída senão intervir, malgrado a sua evidente relutância
em recorrer ao uso da força. A questão da “linha vermelha” que estabeleceu para a
hipótese de virem a ser usadas armas químicas, logo que se começou a aventar
essa possibilidade, transformou-se numa espécie de “armadilha” criada por si
próprio. Deixou-o sem qualquer saída senão intervir se o limite imposto fosse
violado, o que acabou por acontecer. Há dois anos, Obama tinha declarado que
Assad deveria abandonar o poder mas nada fez diretamente dirigido a esse
objetivo. Na verdade, nunca mostrou ter uma estratégia desenhada para esse fim.
(Comentário do autor: A credibilidade da sua postura começou a ser posta em causa ainda antes do 21
de agosto, a data dos ataques que alegadamente mataram mais de 1400 pessoas, quando em março
houve um primeiro ataque de menor dimensão. Por essa altura, torneou o problema com a promessa de
apoio em armamento à oposição, mas essa promessa só começou a concretizar-se há apenas duas
semanas.)
Richard N. Hass, também muito crítico do caminho seguido por Obama, realça, em
especial, dois aspetos: 1. O facto de o Presidente não estar a garantir que o que
anuncia em público é para ser acreditado por todos, amigos e inimigos; 2. A falta
de uma estratégia clara, tendo em conta que não fazer nada é uma opção política
com sérias implicações. Hass considera que a estratégia a seguir não pode limitarse à questão da intervenção militar mas que esta, a verificar-se tem que ser mais
do que simbólica; tem que ter em custo para Assad que o desencoraje a repetir.
Kenneth Pollack, tem uma posição em parte semelhante quanto à necessidade de
uma intervenção minimamente robusta. Se for para fazer algo muito limitado,
como anunciou o Presidente, então será preferível não fazer nada («Go big or stay
home»). Pollack chamava também a atenção para o facto de o Presidente estar a
querer tudo ao mesmo tempo mas sem passar de meias medidas que afinal o
estavam a envolver cada vez mais no conflito sem lhe permitirem avançar o que
quer que seja. (Comentário do autor: Algumas declarações do Secretário da Defesa e outras notícias
vindas a público por essa mesma altura, referindo que o Pentágono estaria a rever os seus planos4 para
garantir que a intervenção não será apenas simbólica, foram associadas à necessidade de desfazer a
perceção que entretanto se tinha instalado sobra a natureza limitada e pontual da intervenção.)
Elliott Abrams abordava, em especial, a decisão de submeter ao Congresso um
projeto de resolução a autorizar formalmente uma intervenção militar. Chamava a
atenção para a inconsistência de o Presidente não ter dado esse passo por ocasião
da intervenção na Líbia, em Março de 2011, caso em que estiveram empenhados
doze navios de guerra, 75 aviões, incluindo bombardeiros B-2, possivelmente mais
do que então se calculava irem ser empregue na Síria. Abrams considera que não
pode tratar-se de uma questão de princípio, à luz do processo de decisão seguido
no caso da Líbia. (Comentário do autor: É preciso reconhecer que há uma diferença importante que
Abrams não referiu. A intervenção na Líbia foi coberta por uma Resolução do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, o que não acontecerá no caso da Síria, mesmo que houvesse um consenso
relativamente amplo sobre a responsabilidade do regime).
4
Referia-se que a lista original de alvos a atingir (50) estava a ser alargada e o general Dempsey
admitia a hipótese de “follow-up strikes” (7 de setembro).
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