dança e identidade entre imigrantes peruanos no Rio de Janeiro

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dança e identidade entre imigrantes peruanos no Rio de Janeiro
Entre huaynos, marineras, festejos e tonderos: dança e identidade entre imigrantes
peruanos no Rio de Janeiro
Camila Daniel
Professora da UFRRJ
Doutoranda em Ciências Sociais da PUC/RJ
Introdução
Carla chegou ao Rio de Janeiro em 2007 para cursar o mestrado em Biologia,
com a expectativa que um mestrado no exterior abrisse novas oportunidades para o
futuro. Em 2009, ela tomou a iniciativa de reunir pessoas para formar um grupo de
danças folclóricas peruanas no Rio de Janeiro, o objetivo de "representar o Peru" na
festa do Dia da Hispanidade1. Carla nunca tinha dançado profissionalmente, ou em
algum grupo de dança folclórica, nem mesmo amador, mas estava preocupada com o
desempenho que o Peru teria frente aos outros países e a imagem de seu país que seria
transmitida para o público. Foi a partir de sua iniciativa que surgiu o grupo Sayari
Danzas Peruanas.
A circulação de pessoas, imagens e informação pelo mundo é um fenômeno que
caracteriza a modernidade, sobretudo na sua fase globalizada. A expansão do acesso aos
meios de comunicação de massa, à internet e aos transportes de alta velocidade têm
permitido que cada vez mais indivíduos encontrem possibilidades para estabelecer
relações e construir laços com outros com quem, embora fisicamente distantes,
compartilham afinidades, sentimentos e identificações. É neste contexto de compressão
espaço-tempo (Harvey, 1998), que o local é produzido em estreita ligação com o global
pelo trabalho de imaginação e de construção material do social pelos indivíduos
(Appadurai, 2003).
Para os peruanos que, como Carla, saíram do país rumo ao Brasil, o
deslocamento internacional e a vida cotidiana entre dois países se configuram como um
terreno fértil para se (re)pensarem como sujeitos que agem segundo determinadas
condições e tomam decisões sobre seu futuro. Em contato com brasileiros, peruanos no
Brasil e no Peru e estrangeiros de outras nacionalidades, eles são impulsionados a
refletir sobre seu lugar no mundo e a elaborar formas particulares de atribuir sentido ao
"ser peruano" no exterior.
1
A festa do dia da Hispanidade celebra a difusão de língua e da cultura espanhola pelo mundo. Seu dia
oficial é 12 de outubro, mas a festa costuma acontecer na última quinzena do mês e conta com a venda de
comidas típicas dos países participantes e a apresentação de danças folclóricas. Entre os países que se
apresentam na festa estão Peru, Bolívia, Chile, Alemanha, Portugal, Espanha e Brasil.
Neste contexto, as danças folclóricas serão um importante elemento na
construção de um sentimento de pertencimento e de comunidade entre os peruanos no
Rio de Janeiro. Através delas, eles (re)inventam um passado que remete a uma origem
em comum que justificaria uma identificação entre os peruanos, mesmo fora do país e
apesar de todas as diferenças regionais, culturais, sociais e políticas que os caracterizam.
Entendendo a identidade como "um lugar que se assume, uma costura de posição e
contexto" (Hall, 2011, p. 16) e não uma essência imutável e perene, neste artigo, analiso
os sentidos das danças denominadas como "folclóricas" no processo de afirmação de
uma identidade peruana. Ao mesmo tempo que elas se referem a um passado que deve
ser reproduzido e preservado, se (re)inventa no contexto migratório na relação que
estabelece entre os dançarinos, o público que assiste e suas expectativas.
Este trabalho se baseia na pesquisa etnográfica realizada entre maio de 2011 e
dezembro de 2012, que incluiu minha assídua participação em eventos públicos
organizados ou frequentados por peruanos, o intenso contato com peruanos via
facebook e a realização de entrevistas semi-estruturadas. Meus interlocutores foram
peruanos oriundos das classes médias e médias baixas peruanas de diferentes partes do
país, principalmente das cidades de Lima, Arequipa e Trujillo que chegaram ao Rio de
Janeiro como estudantes universitários. As reflexões que deram origem a este artigo se
referem principalmente a minha participação- primeiro como observadora, mais tarde
como integrante- no grupo Sayari Danzas Peruanas, no qual ingressei em outubro de
2011 e do qual continuo fazendo parte.
1. A Dinâmica dos Grupos de Danças folclóricas peruanas no Rio de Janeiro
O grupo Sayari Danzas Peruanas é um grupo de dança amador formado em 2009
que tem como objetivo apresentar danças folclóricas peruanas no Rio de Janeiro. Apesar
da maioria de seus membros ser peruana, o grupo está aberto a qualquer interessado,
sem nenhum tipo de restrição.
O Sayari sempre contou com a participação de
estrangeiros- brasileiros ou não-, geralmente filhos/as, amigo/a ou namorado/a de
peruano/a2. Além do grupo Sayari, no Rio de Janeiro há ainda outro grupo de danças
folclóricas peruanas, o Hijos del Sol. Este é o grupo mais antigo na cidade, porém ele
não mantém suas atividades continuamente. Em 2011, alguns dos membros do Sayari
começaram a participar também do Hijos de Sol, o que no início provocou um mal-estar
entre as diretoras dos dois grupos.
2
Em 2012, os grupos chegaram a pensar na
Atualmente, tem duas integrantes não-peruanas: eu e uma italiana.
possibilidade de se unir, no entanto, dificuldades de entendimento sobre a questão
fizeram com que eles continuassem separados.
Tanto o Sayari como o Hijos de Sol são majoritariamente compostos por peruanos
que chegaram ao Rio de Janeiro como estudantes universitários. Alguns já se formaram,
mas continuam a morar na cidade, agora como profissionais qualificados. Quando ativo,
o grupo Hijos del Sol ensaia nas dependências do Consulado do Peru aos sábados a
tarde, sob supervisão de sua funcionária mais antiga. Até 2012, o grupo Sayari ensaiava
no ginásio da PUC-RJ, às quintas-feiras, a partir das 19h. Este ano, os ensaios têm
acontecido em Vila Isabel, na casa de duas integrantes. Além do Sayari e do Hijos del
Sol, o Rio de Janeiro já contou com um terceiro grupo que se dedicava à dança
folclórica peruana: o grupo Encanto Peruano. Este era um grupo formado por
imigrantes, alguns deles membros da mesma família, oriundos de classes populares. Por
dificuldades de conciliar a agenda dos integrantes com os ensaios, o grupo não se
apresenta mais. Quando ele terminou, uma de suas integrantes ingressou no grupo
Sayari, participando ativamente dele até 2012, quando engravidou.
Entre Serra, Selva e Costa: a seleção das danças folclóricas
O Sayari Danzas Peruanas é, portanto, o grupo que se consolidou no papel de
apresentar em público danças tipicamente peruanas. Por ter se tornado uma referência
em apresentar danças folclóricas peruanas no Rio de Janeiro, o grupo recebe diversos
convites. Anualmente, ele tem sempre dois eventos cuja participação é esperada: as
Fiestas Patria- festa pelo dia da independência do Peru, que é dia 28 de Julho- e a
celebração de Sr. de los Milagros- comemoração ao Santo Padroeiro do Peru, em
outubro. Alguns dos integrantes participam do Dia da Hispanidade- ainda que nem
sempre levem o nome do grupo.
Além de conseguir se manter ativo desde sua criação, o grupo também se esforçar
para renovar seu repertório, incluindo uma variedade de ritmos que os outros grupos não
apresentavam. Atualmente, o repertório do Sayari inclui ritmos como o vals, a
marinera, o festejo, o tondero e o huayno. Realizada em casal, o vals tem inspiração na
valsa europeia. Os dançarinos adotam uma postura ereta, alinhada e elegante e,
diferentemente da valsa original, movimentam suavemente os quadris durante toda
dança. A postura na dança é complementada por um figurino formal: os cavalheiros
geralmente usam terno e gravata e a as mulheres, um vestido longo e salto alto.
A marinera é considerada uma dança mestiça, tendo influências principalmente
negras, indígenas e espanholas. Denominada anteriormente como "chilena" por ter
influências da dança chilena cueca, a dança peruana recebeu o nome de marinera depois
que o Peru perdeu a Guerra do Pacífico para o Chile, em 1879. Ambas, a marinera
peruana e a cueca chilena têm fortes influências da zamacueca, ritmo afroperuano
dançado em casal. Sendo o seu nome uma homenagem aos marinheiros que lutaram na
Guerra contra o Chile, a marinera se tornou um símbolo nacional (Moquillaza, 1998).
Uma das danças mais aclamada pelos peruanos no Rio de Janeiro, a marinera é
composta por passos aos mesmo tempo vigorosos e elegantes. Ela é praticada em casal,
porém solto, que simulam um flerte. Cavalheiro e dama mantêm uma postura
imponente, ereta. Com o peitoral exageradamente aberto, as costas estufadas para frente
e o pescoço esticado, os dois mantém a cabeça levantada e os olhos sempre mirando
avante, num sinal de triunfo. O figurino também é elegante como no vals, porém mais
vistoso e chamativo.
O tondero é uma dança do litoral norte peruano que tem uma dinâmica similar à
da marinera. Ela é praticada em casal, que dança solto. A dança começa com os dois se
deslocando frente a frente, formando um círculo imaginário. Ao longo da exibição,
dama e cavalheiro se intercalam entre se aproximar, se deslocando juntos para o centro
do círculo, e se afastar, indo em direção a sua borda. O Tondero também simula o
processo de flerte e sedução, como a marinera, mas de uma maneira rústica. Como uma
dança de origem camponesa, o tondero simula a sedução do galo e da galinha. Dama e
cavalheiro dançam descalços, com os joelhos semi-flexionados e as costas ligeiramente
inclinada para frente. Os braços, estendidos ao longo do corpo, são mantidos próximos
ao chão, simulando o contato dos camponeses com a terra. Neste aspecto, o tondero se
difere muito da marinera, que exige uma postura e um figurino que remete ao requinte
da aristocracia e das elites.
O festejo também é ritmo da Costa, porém não é considerada mestiça, como o
tondero e a marinera. Ele é uma dança de raízes afroperuanas caracterizada por
movimentos vigorosos de braços, ombros, peitoral e quadris. Entre o festejo, o grupo
Sayari apresenta um número de alcatraz e de valentina. O alcatraz é um tipo de festejo
que tem como principal característica os casais dançarem segurando uma vela acessa e
um pedaço de tecido preso na parte de trás de sua cintura. Enquanto dançam, cada um
tenta queimar o tecido de seu parceiro, que se esforça para escapar do fogo requebrando
os quadris. A valentina é um tipo de festejo instrumental, muito vibrante, dançado
exclusivamente por mulheres. A dança se desenrola como uma competição entre os
músicos e as dançarinas, que têm que coordenar o movimento do corpo- principalmente
quadris, ombros e braços- ao ritmo da percussão.
O huayno é o único ritmo não típico da Costa que atualmente está representado
no repertório do grupo Sayari. Ele é considerado como o mais ilustre símbolo da cultura
indígena andina, estando associado à manifestações culturais incas e pré-hispânicas. O
huayno também costuma ser praticado em casal, que se reveza entre dançar soltos e de
braços dados, lado a lado. Existem vários tipos de huayno, de acordo com a região dos
Andes onde é praticado. O grupo Sayari coreografou uma canção de huayno
denominada Valicha, que é típica de Cusco, serra sul do país. A dança é caracterizada
por pequenos saltos e, na parte do refrão, sapateados mais intensos. Atualmente, o grupo
está preparando uma coreografia da canção Mambo de Machahuay, que tem origem no
interior do departamento de Arequipa.
Na construção de seu repertório, o Grupo leva em consideração um sistema de
classificação que, apesar de criticado como reducionista, vigora ativamente no cotidiano
peruano: a divisão entre Serra, Costa e Selva. Esta divisão se fundamenta em princípios
geográficos, considerando a extensão da cordilheira dos Andes como a Serra, a área que
margeia o oceano pacífico a Costa e a região amazônica como a Selva. Assim como no
âmbito da sua geografia o Peru é entendido como dividido em três partes, ele também é
compreendido como tripartite na sua composição étnico-racial, dividido entre o criollo
branco, ou seja, aquele que, mesmo nascido em solo peruano, tem origens europeias; o
índio, o nativo peruano, e o mestizo, ou seja, a miscigenação entre o índio e o criollo
(Degrogori, 2012). Enquanto o criollo habitaria principalmente a costa do país, o índio
teria como lugar de origem a serra. Já o mestizo que estaria tanto na costa quanto na
serra. Nesta classificação étnico-racial das regiões do Peru, a Selva raramente é
lembrada, assim como os afroperuanos.
As danças folclóricas peruanas são também classificadas geográfica e
étnico-racialmente, divididas entre danças da Serra, da Costa e da Selva. O grupo
Sayari se esforça para diversificar seu repertório, porém, até o presente momento, ele
nunca contou com nenhuma dança da Selva. Além disso, grande parte das danças que
compõem seu repertório são danças da Costa, classificadas como mestizas. A
predominância de ritmos costeiros entre as danças apresentados pelo grupo está
estreitamente relacionada com o fato do coreógrafo (amador) do grupo- o único
integrante que já tinha feito parte de um grupo de dança folclórica no Peru-, ser oriundo
de uma cidade da costa norte do Peru e seu antigo grupo se dedicar a estes ritmos.
Na sua reflexão sobre a prática da marinera por imigrantes peruanos nos EUA,
Busse (2006) discute o peso que esta dança assume como expressão de uma identidade
étnica peruana marcada pela mestiçagem, em oposição à racializada sociedade
norte-americana. Um aspecto interessante no caso do grupo Sayari é que, apesar dos
negros serem preteridos no imaginário nacional peruano, o grupo apresenta diferentes
números de festejo. A escolha das danças é realizada a partir da avaliação de um
conjunto de elementos: o grau de dificuldade da dança e a disponibilidade de alguém
que ensine; a disponibilidade de adequar o figurino com o limitado orçamento do grupo;
as preferências de cada integrante; o público que irá assistir. O grupo considera, por
exemplo, que as danças afroperuanas são muito apreciadas pelo público brasileiro, pois
ela se assemelha às danças brasileiras. Assim como acontece com os peruanos nos
EEUU, os peruanos no Rio de Janeiro dialogam com a sociedade local para escolher o
que dançar.
2. A danza folclórica: sua forma e seus sentidos
Para os peruanos, a dança é um elemento que faz parte da sua vida cotidiana e
que remete à situações de festas e comemorações com familiares e/ou amigos. A
presença da dança nessas ocasiões é um costume que caracteriza as formas de
sociabilidade dos peruanos, que se surpreendem quando descobrem que, no Rio de
Janeiro, a dança não ocupa o mesmo espaço na vida social carioca (Daniel, 2013).
Apesar da importância da dança para a sociabilidade, não são todos os peruanos que se
interessam pelas danças folclóricas a ponto de se tornar um dançarino amador do grupo
Sayari. As danças populares praticadas nas festas peruanas são aprendidas de maneira
informal, quando, ainda criança, o indivíduo repete os passos executados pelos mais
velhos, que se encarregam de ensiná-las as técnicas corporais socialmente prestigiadas
(Mauss, 2003). Ao longo do processo de treinamento, as pessoas incorporam
determinados passos, que são executadas ao som de uma canção, sem uma ordem
prévia. Assim, estas danças se tornam parte do dia a dia dos peruanos.
Para dançar no grupo Sayari, as pessoas passam por um processo de preparação
e treinamento formais antes se apresentar em público. O número que será apresentado é
montado como uma coreografia, uma sequência de passos que deve ser rigorosamente
repetida pelos dançarinos nos ensaios e reproduzidos na apresentação pública. Enquanto
o grupo se apresenta, outro, a plateia, assiste sem dançar. Mesmo sem fazer parte do
grupo dos que se apresentam, a plateia também participa da apresentação, esboçando
diferentes expressões, como uma aprovação entusiasmada, uma crítica atroz, ou um
desdém, estabelecendo assim uma relação com os dançarinos. Para se apresentar em
público, os dançarinos vestem um figurino particular, previamente escolhido, específico
para cada estilo de dança, que remete à sua origem e que distingue uma dança cotidiana
da dança como um espetáculo.
O trabalho do Sayari de apresentar danças consideradas típicas do país assume
características de um ritual3 (Turner apud Dawsey, 2005) que separa momentaneamente
os indivíduos que dançam e quem assiste da rotina da vida cotidiana no Rio de Janeiro.
Como ritual, a dança folclórica é composta por três fases: 1) o aprendizado dos passos
básicos e da postura de cada estilo de dança; 2) a preparação da coreografiasincronização da execução dos passos aprendidos na fase anterior com o ritmo da
música escolhida e a construção de uma sequência de passos que deve ser memorizada e
repetida pelos dançarinos ao som de determinada canção e 3) a apresentação pública.
As danças que recebem o nome de folclóricas pretendem trazer para o presente
um passado imortalizado na dança, se remetendo à uma origem nacional autêntica,
particular, que se distingue da brasileira. Através delas, o grupo tem a expectativa de
"expressar e difundir a arte e o folclore peruanos", o que está vinculado à ideia de que
as danças são uma expressão de uma identidade, baseada numa herança de origem, que
o grupo se encarrega de reproduzir, como divulga no seu blog: "Orgulhosos de suas
raízes, Sayari deseja manter viva parte dos costumes peruanos tentando levar um
pouquinho da cultura do Peru através das danças e da música"4.
3
Inspirado no clássico trabalho de Van Gennep (2011), em que o autor analisa os ritos de passagens em
sociedades tradicionais como compostos de 3 fases- 1) separação, 2) liminaridade e 3) agregação.
Através do rito de passagem, os indivíduos têm a chance de transitar por diferentes posições na estrutura
social, Victor Turner (apud Peirano ,2006; apud Dawsey, 2005) tomou de empréstimo esta análise para
refletir sobre aspectos do mundo moderno, enfatizando a experiência reflexiva que os rituais propiciam
aos indivíduos ao afastá-lo momentaneamente da estrutura social.
4
http://sayari-dancasperuanas.blogspot.com.br/
Se o objetivo de grupo é "manter viva parte do costumes", o que está implícito é
que estes costumes correm o risco de morrer ou desaparecer se não for colocados em
prática. Ao mesmo tempo, esta afirmação deixa claro que as danças executadas pelo
Sayari não são uma invenção dos seus integrantes, mas uma recuperação de danças
existentes no Peru, que são reproduzidas no Brasil. Além disso, a dança tem uma
finalidade que não se encerra nela. Ela é, na verdade, um instrumento para alcançar um
objetivo maior: "levar um pouquinho da cultura do Peru". As danças podem ser
compreendidas como uma performance que apresenta as características de uma conduta
restaurada. Segundo Schechner (2000), a conduta restaurada se refere a manifestações
em que seus participantes partem do princípio que existem determinadas condutas
prévias que devem servir como guia para sua atuação naquela manifestação. A ação dos
indivíduos será, portanto, recuperar, recordar ou mesmo reelaborar as condutas bases.
Nas palavras do autor:
De hecho, la conducta restaurada es la característica más importante
de la performance. Los practicantes de artes, ritos y curaciones suponen que
algunas conductas -secuencias organizadas de sucesos, acciones con guión,
conocidas como textos o partituras de movimientos- existen aparte de los
actores que las "realizan". Por estar separadas de quienes las realizan, esas
conductas se pueden guardar, transmitir, manipular y transformar
(Schechner, 2000, sem página).
Para toda conduta restaurada, como as danças folclóricas peruanas no Brasil
podem ser interpretadas, os ensaios são centrais para aproximar o máximo possível a
conduta dos atores da conduta original ou daquela imaginada como tal, neste caso, a
dança como se faz no Peru. Nos ensaios, primeiramente treinamos os passos básicos de
cada dança e as postura que ela exige. No tondero, por exemplo, os dançarinos devem
manter os joelhos flexionados e mover o quadril em movimentos de "8" durante a
execução de todos os passos. Já a marinera exige uma postura ereta e imponente, com o
peito exageradamente aberto e o queixo sempre apontando para cima, que remete ao
heroísmo dos marinheiros na guerra.
Depois de alguns ensaios treinando os passos, começamos a montar e praticar a
coreografia, ou seja, a preencher de passos determinada canção. Os passos devem ser
escolhido de acordo com cada estilo de dança e música. Para os integrantes do grupo,
montar coreografias que respeitem a particularidade de cada ritmo e dança é uma
preocupação constante. Eles veem com bastante receio a ideia de executar passos que
indiquem alguma mistura de gêneros ou a invenção de movimentos que eles nunca
viram executados por outros grupos de danças folclóricas peruanas. Eles, portanto,
alimentam a preocupação de se manter "fiéis" a cada estilo.
Para alcançar este objetivo, os ensaios são fundamentais para que o grupo
aprenda cada dança da forma mais parecida possível de como se dança no Peru. Assim,
"los ensayos funcionan para construir una partitura y esa partitura es un "ritual por
contrato": conducta fija que todo el mundo que participa está de acuerdo en hacer
(Schechner, 2000, sem página). Em outras palavras, é pelo ensaio- através da repetição
contínua dos movimentos- que os dançarinos podem interiorizar no corpo a
particularidade de cada estilo de dança, dando aparência de natural aos movimentos
aprendidos.
Entre os membros do grupo, há o reconhecimento coletivo de que os ensaios
constituem uma de suas atividades principais e há a expectativa que todos estejam
presentes neles. Por isso, é comum que quando algum integrante não possa ir ao ensaio,
ele avise aos outros ou o ausente, quando não se justifica anteriormente, seja indagado
pelos companheiros a razão de sua ausência. Como o grupo é composto
majoritariamente por peruanos estudantes de pós-graduação, as faltas são muito
frequentes nos períodos de prova, apresentação de trabalhos em congressos acadêmicos,
na fase de qualificação do projeto ou de defesa - de dissertação ou tese.
Apesar de compartilhar o entendimento de que os ensaios são vitais para que as
danças sejam bem apresentadas, ou seja, que esteja de acordo com as apresentação dos
grupos de danças folclóricas peruanas mais tradicionais e profissionais, são nas semanas
que antecedem uma apresentação que o grupo ensaia com mais intensidade, entusiasmo
e concentração. É neste momento também que ele revisa seu figurino e se organiza para
aprimorar as coreografias ou preparar coreografias inéditas. Quando não há uma
apresentação agendada para uma data próxima, os ensaios não têm uma definição clara,
uma organização definida e uma planejamento mais esquematizado.
As apresentação de danças folclóricas pelo grupo Sayari podem, portanto, ser
interpretadas como rituais, que, no seu sentido clássico, representa uma atividade
pecuiliar e especial (Peirano, 2006), que no caso da dança, distingue as danças
folclóricas das danças populares.
Diferentemente de outras danças, as folclóricas
exigem um treinamento nos ensaios que funciona como uma preparação técnica, em que
os integrantes aprendem os passos e a postura corporal que cada estilo exige. Os ensaios
funcionam também como uma preparação cultural e afetiva, quando os dançarinos são
lembrados do significado das danças folclóricas para os peruanos, sobretudo num
contexto de migração e ainda, da importância de apresentar a diversidade cultural
peruana para os brasileiros, aqueles que sabem pouco, ou nada, sobre o Peru. Toda esta
preparação culmina na apresentação, o momento mais esperado pelo grupo.
2.1 Dançando para o público: a (re)afirmação de uma identidade peruana
Todo trabalho de ensaio e treinamento realizado pelo grupo ao longo dos meses
têm como ponto máximo as apresentações públicas. São nelas que o objetivo de
"representar o Peru" se manifesta de maneira mais elaborada e nítida. Neste momento,
as motivações individuais que levam os integrantes a participarem do grupo convergem.
As apresentações são feitas a partir de um convite geralmente encaminhado para a
diretora do grupo. Ela leva a proposta para os integrantes avaliarem sua a
disponibilidade de tempo e seu interesse. O convite para que o grupo exiba um número
é um prática muito costumeira nos eventos mais tradicionais da comunidade.
A
apresentação de danças folclóricas são sempre aguardadas com entusiasmo pelos
peruanos e são consideradas indispensáveis para as festas do Dia da Independência e do
Señor de los Milagros. Muitos peruanos fazem questão de estar presentes no momento
da exibição das danças folclóricas, considerando esta a principal atração das festas,
juntamente com a comida. Alguns brasileiros e hispano-americanos também gostam de
assistir as danças peruanas, principalmente os que já conhecem o grupo e gostam do seu
trabalho ou mantém uma relação próxima com peruanos.
Em 2012, o Dj Rayado 5 organizou uma festa em celebração ao dia da
Independência e convidou o Sayari para se apresentar. A primeira dança executada foi o
vals. Na primeira parte da apresentação, o casal apresentou a coreografia previamente
preparada. Na segunda, cada um deles convidou uma pessoa do público para dançar de
improviso. Outras duas danças também foram organizadas desta maneira: o festejo e o
alcatraz.Grande parte do público assiste as danças com muita concentração. Porém, é
quando pessoas do público são convidadas a dançar que há mais empolgação e
5
Peruano que organiza a festa noturna Noches de Sol, em que grande parte das músicas tocadas é em
língua espanhola, muitas delas de grande sucesso nos países hispano-americanos. Segundo os peruanos
no Rio de Janeiro, esta é uma festa igual as que os peruanos costumam frequentar no Peru.
entusiasmo na festa. Neste momento, o público tem a chance de deixar o papel de
espectador para se tornar também um dançarino. Mesmo aqueles que não são
selecionados para dançar com os dançarinos acompanham a apresentação com mais
animação quando veem alguns espectadores deixar a plateia. Esta inversão dos papéis
inclui a dimensão do improviso e do inesperado, transmitindo espontaneidade a num
evento previamente calculado. O improviso tem um momento exato para acontecersempre depois da exibição da parte coreografada-, e antes de começar a apresentação, os
dançarinos observam quem do público irá tirar para dançar- eles geralmente chamam
amigos ou pessoas já conhecidas. Esta dinâmica mantém a dança folclórica como um
ritual, organizado segundo regras que lhes impõe uma ordem que os indivíduos devem
seguir, que aproxima e envolve mais a plateia.
O público que assiste as danças folclóricas têm noção de que o grupo passa por
uma preparação que antecede à apresentação. Convidar o público para dançar é um
elemento que inova o ritual tradicional da exibição das danças folclóricas, como aquelas
que são apresentadas para um público espectador que assiste de fora. Isto não significa
que o público não interaja com o grupo de dança quando está assistindo. Enquanto
assiste, a participação do público se dá através de olhares, comentários, gestos- de
aprovação, reprovação, crítica, solidariedade, admiração. Mas, quando uma pessoa do
grupo de espectadores é levada a dançar no palco, ela se torna o centro das atenções,
reforçando a função ritual das danças folclóricas como acessível a todos. Quando o
convidado é peruano, o convite é avaliado como uma mostra de como "todo peruano
sabe dançar", mesmo se ele não faz parte do grupo de danças folclóricas. Quando ele é
brasileiro (ou de outras nacionalidades), o convite representa a comprovação de que os
peruanos podem ensinar e os estrangeiros, por sua vez, podem aprender as danças
folclóricas peruanas.
Alguns peruanos assistem a dança com um olhar crítico, avaliando se os
dançarinos estão dançando "bem", ou seja, "como se faz no Peru". A presença de um
público peruano reforça a exigência do grupo em reproduzir as danças da maneira mais
fiel possível da que se faz no Peru. Para alcançar este objetivo, seus integrantes acionam
diferentes práticas transnacionais que conectam o Peru e o Brasil. Como o grupo é
formado por dançarinos amadores, voluntários e não existe no Rio de Janeiro nenhuma
escola ou professores de danças peruanas no Rio de Janeiro, nem apoio financeiro
externo, o grupo elabora diferentes estratégias para lidar com estas carências. Entre elas
estão pesquisar vídeos no youtube de grupos e aulas de danças folclóricas peruanas para
aprender passos e montar as coreografias; fazer o download pela internet de músicas
tradicionais do cancioneiro peruano para ser coreografado; ir ao Peru para pesquisar e
comprar figurinos; fazer aulas de dança no Peru com professores especializados para
aprimorar as danças peruanas praticadas no Brasil. Esta conexão com o Peru se
constitui, ao mesmo tempo, um processo de (re)construção de um passado transmitido
pelo corpo na dança; de manutenção de laços com o país de origem e de fazê-lo presente
no cotidiano no Rio de Janeiro e ainda, de despertar para o aprendizado coletivo das
danças e seus significados no Peru e no exterior.
Para os integrantes do Sayari, se tornar dançarinos que se apresentam em
público tem consequências na (re)construção da sua subjetividade no contexto de
migração. Nas fases de preparação, eles constroem entre si uma afinidade que ultrapassa
os objetivos formalmente estabelecido pelo grupo, o que o torna mais do que um grupo
de dança, mas também um grupo de amigos. Os integrantes também encontram um
terreno fértil para (re)elaborarem uma identidade individual que, através da dança,
também fundamenta a construção de uma identidade coletiva que valoriza o Peru como
o lugar de origem, dentro do próprio grupo. Esta identidade, por sua vez, leva em
consideração a classificação étnico-racial do Peru e de suas danças, reforçando o caráter
plural da sociedade peruana, que se difere a ideia que muitos brasileiros têm de que o
Peru é um país completamente indígena.
Nas apresentação públicas, o Sayari exibe o trabalho de preparação técnica e
corporal, mas também cultural e simbólica de afirmação de uma especificidade peruana,
como um país mais rico e diverso do que imaginam os (muitos) brasileiros que o
desconhecem - processo nem sempre evidente ou conscientemente problematizado
pelos dançarinos. A inclusão de danças afroperuanas no repertório, além de reconhecer
a importância dos negros na cultura peruana, também reforça que as culturas negras são
um exemplo de similaridades entre o Brasil e o Peru. Por outro lado, o grupo tem a
chance de estabelecer uma identificação com o público peruano, através do sentimento
de que aquelas danças são um patrimônio imaterial que eles têm em comum e que
constitui um dos elementos que os fazem peruanos. Esse sentimento, o pano de fundo
para um possível identificação entre os peruanos que dançam e os que assistem, se
manifesta nas formas emocionadas através do qual o público reage às apresentações,
que inclui fortes aplausos, sorrisos, olhos marejados e cumprimentos afetuosos aos
dançarinos, que, assim, se sentem orgulhosos em receber reconhecimento pelo seu
trabalho.
Considerações Finais
As "danças folclóricas" são assim chamadas pois os peruanos atribuem a elas o
lugar de legítimas representantes da cultura de seu país de origem. Elas seriam um
exemplo do que de mais original a cultura peruana teria, em comparação e em distinção
a outras culturas de dentro ou fora do continente latino-americano. Estas danças seriam
também a expressão de um elo que manteria os peruanos conectados uns aos outros,
através do compartilhar desta tradição, o que é reforçado pela exibição pública.
É importante notar que o “folclórico” dessas danças está referido ao contexto no
qual são praticadas e não à uma condição imanente. As danças que fazem parte do
repertório do grupo Sayari Danzas Peruanas são definidas como “folclóricas”, pois
apresentam características rituais que propiciam aos envolvidos uma experiência que
foge do cotidiano porque elas: têm como objetivo a apresentação pública; incorporam
um passado que se exibe no presente; (re)produz nos movimentos da dança uma
partitura corporal socialmente construída; têm como base uma origem em comum que é
sempre (re)inventada. As danças folclóricas se propõem a representar algo que
transcendem os indivíduos que a praticam, tanto em termos técnicos (de execução dos
passos e coreografias) como em termos simbólicos (de relações de poder diante das
manifestações culturais estrangeiras). A danças folclóricas peruanas no Brasil se
tornam, assim, um importante elemento na construção de uma identidade étnica.
A designação "folclórico" atribuída às danças apresentadas pelo grupo Sayari
apresenta um caráter relacional: uma dança que no Rio de Janeiro é assim denominada
pode não ser igualmente “folclórica” no Peru, ainda que a dança seja a mesma. Ou seja,
o termo “folclórico” pode ter seu significado transformado no contexto de migração. O
que torna uma dança peruana "folclórica" no Brasil é o caráter ritual que ela assume.
Algumas danças que no Peru são populares e fazem parte da vida cotidiana de alguns
peruanos antes de imigrar, como o huayno e o festejo, se tornam folclóricas no Rio de
Janeiro quando apresentadas por um grupo específico, no palco, com um figurino
especial, a partir de ensaio prévios e exibidas para um público.
Nesta dinâmica, o grupo Sayari pretende ser um representante do Peru através das
danças folclóricas. Neste processo, o grupo abre um espaço para a construção uma
identificação entre seus integrantes, que se manifesta em três níveis: individual, grupal e
coletivo. No plano individual, cada membro tem motivações particulares para participar,
que vai desde o gosto por dançar, saudades do país de origem ou o desejo de receber
reconhecimento público; no interior do grupo, no contato contínuo nos ensaios, reuniões
e mensagens virtuais, os integrantes ativam um sentimento de unidade e de
compromisso como pessoas que, em certa medida, têm no grupo um objetivo em
comum, com o qual desenvolve alguma afinidade. O âmbito coletivo se manifesta na
relação com os espectadores. Quando este público é majoritariamente peruano, o grupo
parte do princípio que entre eles há uma origem em comum compartilhada que deveria
ser preservada e fielmente apresentada, dançando "como se faz no Peru". Quando o
público é de estrangeiros, o esforço gira em torno de realizar uma apresentação bonita,
para "representar o Peru".
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