LEMOS, Igor et al. Uso problemático de jogos

Transcrição

LEMOS, Igor et al. Uso problemático de jogos
Artigo Original
Uso problemático de jogos eletrônicos
em estudantes da Universidade Federal de
Pernambuco
Problematic use of electronic games in Federal University
of Pernambuco’s students
Igor Lins LemosI; Maria Clara Miguel Descendente de Melo SilvaII; César Filipe da Silva Oliveira, Tatiana
Ferreira Lima, Mauricio da Silva JuniorIII; Fernanda Tomie Icassati SuzukiIV
Resumo
Contexto: Os jogos eletrônicos, além de possibilitar ao usuário imergir em um universo lúdico, podem configurar,
segundo a literatura científica, um transtorno psiquiátrico contemporâneo. No Brasil, especialmente, há uma
substancial lacuna de dados epidemiológicos sobre o assunto. Objetivo: Avaliar o uso problemático de jogos
eletrônicos em uma amostra de universitários. Método: Aplicação da escala Problem Video Game Playing (PVP)
em 200 alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) que utilizaram jogos eletrônicos nos últimos 12
meses. Resultados: A maior parcela de jogadores é adulta jovem e do sexo masculino. A partir dos dados
obtidos na escala PVP, observaram-se características de uso problemático de jogos eletrônicos (UP=30.5%),
sendo elas: inquietação, perda de controle, problemas no âmbito familiar ou escolar e sinais de abstinência.
Além disso, foram observados indícios de que, quanto mais cedo ocorre o acesso aos jogos eletrônicos,
maior a tendência ao uso excessivo na vida adulta. Conclusões: A incidência de uso problemático de jogos
eletrônicos entre os estudantes da UFPE é significativa, sugerindo-se uma atenção especial a essa parcela de
usuários. Acredita-se na necessidade de aprofundar os estudos epidemiológicos neste campo no Brasil.
Palavras-chave: Epidemiologia; dependência de jogos eletrônicos; uso problemático, estudantes, escala.
I Doutorando em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
II Graduanda do curso de Psicologia na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
III Graduandos do curso de Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
IV Psicóloga graduada na Universidade de São Paulo (USP)
Endereço para correspondência
Igor Lins Lemos
Rua José de Holanda, 580/603, Torre.
50710-140 – Recife, PE, Brasil.
E-mail: [email protected]
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1
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Abstract
Background: Electronic games, beyond enabling the user to immerse in a playful universe, can set, according
to scientific literature, a contemporary psychiatric disorder. In Brazil, especially, there is a substantial lack of
epidemiological data on this subject. Objective: To evaluate the problematic use of electronic games in a sample
of university students. Method: Application of the Problem Video Game Playing scale (PVP) in 200 students of
Federal University of Pernambuco (UFPE) that used electronic games in the last 12 months. Results: The largest
portion of players are young adults and males. From the data obtained in the PVP scale, some characteristics of
problematic use of electronic games (PU=30.5%) were observed: restlessness, loss of control, family or school
problems, and signs of withdrawal. There were also signs indicating that the sooner the user gets access to
electronic games the greater is the tendency to overuse in adulthood. Conclusion: The incidence of problematic
use of electronic games among UFPE students is significant, suggesting a special attention to this portion of users.
It is considered the need for further epidemiological studies in this field in Brazil.
Keywords: Epidemiology, video game dependency, problematic use, students, scale.
Introdução
A prática de jogos eletrônicos, além de permitir
ao usuário um íntimo contato com o mundo virtual,
possibilita uma relação lúdica com esse modelo
tecnológico. Atualmente, esses jogos possuem
gêneros e títulos que podem ser usufruídos por diversas
faixas etárias, atingindo-as todas, de forma direta ou
indireta1. Além do aspecto da diversão, considera-se
a utilização dos jogos eletrônicos por outras funções:
auxílio terapêutico2, sendo um importante recurso na
recuperação de pacientes acometidos por diversos
tipos de psicopatologias (especialmente no grupo
do transtorno do controle dos impulsos)3; educação,
tornando-se um instrumento de aprendizagem
vinculado à plasticidade cerebral4 e no auxílio na
melhoria das habilidades psicomotoras de futuros
cirurgiões5.
Apesar dos benefícios empíricos que os jogos
eletrônicos propiciam aos seus praticantes, este
artigo retrata, principalmente, o uso problemático6,
tema que, assim como a dependência de jogos
eletrônicos, vem emergindo na literatura científica nos
últimos anos. Esse é um fenômeno relevante, tendo
em vista que esses jogos pertencem a uma indústria
em ampla ascensão7, conquistando, a cada ano,
uma quantidade maior de adeptos e, paralelamente,
aumentando as possibilidades de expansão no
número de jogadores com uso problemático (UP).
Atualmente, os sintomas mais considerados
na composição de um possível diagnóstico para
dependentes de jogos eletrônicos são os sugeridos
por Lemmens, Valkenburg e Peter, na Game
Addiction Scale (GAS)8: saliência (utilização de
jogos eletrônicos como atividade mais importante
na vida do usuário, dominando seus pensamentos,
sentimentos e comportamento); tolerância (tendência
a aumentar o tempo de uso para obter satisfação);
modificação do humor (irritabilidade, tristeza);
retrocesso (emoções negativas ou efeitos físicos que
ocorrem quando o jogador reduz ou descontinua
o uso); recaída (tendência a tentar repetidamente
reverter o padrão de tempo de uso, rapidamente
restaurado após período de abstinência ou controle);
conflito (problemas interpessoais, que podem envolver
mentiras ou decepções) e problemas na área social
(piora no rendimento no trabalho, ambiente de estudo
e socialização).
Importante salientar que o uso problemático de
jogos eletrônicos, que é o foco do presente artigo,
não é necessariamente a dependência de jogos
eletrônicos, mas um indicativo importante de usuários
92 �����������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������Lemos. I.L.; et al.
que estão apresentando dificuldades no uso de jogos
eletrônicos e que, dentre eles, alguns podem estar
apresentando tal dependência.
Pesquisadores apontam que de 10% a 15%
dos usuários de jogos eletrônicos podem apresentar
alterações fisiológicas e comportamentais devido a
sua utilização, caracterizando, dessa forma, uma
possível dependência9. É sugerido, ainda, que esse
adoecimento causa mudanças estruturais no cérebro
do usuário (aumento de massa cinzenta na região
talâmica), de acordo com estudos de neuroimagem
por ressonância magnética estrutural10. Esses
dados podem despertar o interesse de profissionais
que busquem estratégias no tratamento para os
dependentes de jogos eletrônicos, o que reforça a
possibilidade de sua inserção no DSM-V no grupo do
transtorno do controle dos impulsos11 (assim como a
dependência de Internet12).
Em relação aos dados epidemiológicos,
observam-se resultados distintos na literatura
científica, variando de acordo com a localização
e o instrumento utilizado para colher os dados. Um
estudo holandês conduzido com adolescentes entre
13 e 16 anos aponta uma amostra de 3% como
dependente de jogos eletrônicos13, dado semelhante
ao encontrado na Alemanha (3.5%)14.
Um estudo conduzido por Griffiths e Hunt15, em
1998, no Reino Unido, com adolescentes (N=387,
58% homens, 42% mulheres) constatou que 20% da
amostra apresentou sintomatologia condizente com
a dependência de jogos eletrônicos e que pessoas
do sexo masculino jogam significantemente mais que
as mulheres, sendo mais propensos a adquirirem tal
característica. Outro estudo, proposto por Fisher,
indica que 6% da população estudada (N=460,
48% homens, 52% mulheres) eram definidos como
jogadores patológicos e que homens jogavam mais do
que as mulheres, porém não havendo diferenciação
de gênero no grupo de jogadores patológicos16.
Pesquisas com alemães (UP=9.3%)14 e
noruegueses (UP=4.1%)17 obtiveram valores distintos.
Este último estudo ainda apresentou outros resultados:
56.3% da amostra possuía uso adaptativo de
jogos eletrônicos e 0.6% foram considerados
dependentes, segundo eles uma fase posterior ao uso
problemático17. Outra pesquisa neste país revelou
que sujeitos do sexo masculino apresentaram um
maior resultado amostral de usuários com distúrbios
no uso desses jogos18.
No Brasil, poucas informações são conhecidas
sobre o uso problemático ou a dependência de
jogos eletrônicos19. Desta forma, o objetivo do
presente artigo é avaliar o uso problemático de jogos
eletrônicos em uma amostra de universitários.
Métodos
O presente estudo, quantitativo, descritivo e de
corte transversal, foi realizado com 200 participantes,
de ambos os sexos, maiores de 18 anos, de diversas
áreas de ensino (Humanas, Saúde e Exatas), todos
tendo utilizado jogos eletrônicos nos últimos 12
meses e sendo estudantes da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE).
O primeiro passo consistiu em explicar aos
participantes o motivo da pesquisa e seus possíveis
benefícios (coletar dados epidemiológicos sobre o uso
inadequado de jogos eletrônicos e fornecer informações
à população e à comunidade científica sobre esta
possível psicopatologia). Após essa fase inicial, o sujeito
que aceitou participar do estudo assinou um termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE), devidamente
aprovado pelo comitê de ética da UFPE, conforme
os princípios da declaração de Helsinki. Houve
recusa de 61 sujeitos, que não mostraram interesse ou
disponibilidade para participar da pesquisa.
Foi utilizada uma escala anônima e de autopreenchimento na qual constavam nove perguntas
sobre o uso de jogos eletrônicos (com respostas do
tipo “sim” ou “não”), denominada Problem Video
Game Playing (PVP)20, que foi traduzida livremente
para o português uma vez que não há tradução e
adaptação transcultural da escala no Brasil.
A coleta dos dados foi realizada na UFPE,
nos diversos centros que a compõem. A escala foi
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Resultados
aplicada em áreas de jardins, em salas de aula,
em refeitórios e em outros espaços de convívio dos
estudantes. Todos os participantes foram abordados
de forma aleatória. Para a análise dos resultados
foi utilizado o software Statistical Package for the
Social Sciences v.18. (SPSS). Foi realizado um
estudo estatístico para observar como se comportou
a distribuição dos dados levando em conta o
cruzamento entre as variáveis, sendo aplicados os
testes de Fisher e de correlação de Pearson, sendo
considerado p<0.05 para significância estatística.
A
Tabela
1
revela
características
sociodemográficas da amostra. A grande maioria
dos usuários pertence ao sexo masculino (68%), com
idade condizente com a faixa etária de adultos jovens
(M=21.1). A área de ensino abordada com maior
frequência foi a de Humanas (54%) com maioria dos
usuários cursando 5º período ou superior (36%).
abela 1. Características sociodemográficas dos estudantes universitários de acordo com a prática de jogos
eletrônicos
Estudantes que jogaram nos últimos 12 meses (n =200)
N
%
Masculino
136
68,0%
Feminino
64
32,0%
17-19
72
36,0%
20-22
84
42,0%
Sexo
Idade
23-25
35
17,5%
26-28
5
2,5%
29-31
2
1,0%
32 ou mais
2
1,0%
Exatas
51
25,5%
Saúde
41
20,5%
Humanas
108
54,0%
1º
35
17,5%
2º
38
19,0%
3º
22
11,0%
4º
28
14,0%
72
5
36,0%
2,5%
Curso
Período no Curso
5º ou mais
Pós-graduação
94 �����������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������Lemos. I.L.; et al.
A Tabela 2 revela alguns dados relacionados
às pontuações obtidas pelos usuários na PVP e à
época em que começaram a jogar, destacandose os usuários que disseram, no questionário, ter
começado a jogar entre zero e seis anos de idade
(n=47, M=4, DP=1.55), e que tiveram sua norma
entre 3 e 5 pontos, valores superiores aos obtidos
pelos demais grupos.
Tabela 2. Idade em que começou a jogar e sua relação com o uso problemático de jogos eletrônicos na vida
adulta*
Dados obtidos
Faixa Etária
0-6 anos
7-13 Anos
14-17 Anos
18+ anos
Total de Indivíduos
47
108
31
14
Uso Problemático
18
31
11
1
Uso Problemático (%)
38%
29%
35%
7%
Média
4,00
3,19
3,29
1,93
Desvio-Padrão
1,55
1,91
2,15
1,73
Variância (V)
2,34
3,63
4,46
2,78
3,00
1,00
1,00
1,00
5,00
5,00
5,00
2,00
Desvio Quartil (Q1)
Desvio Quartil (Q3)
*baseado na quantidade total de respostas afirmativas aos itens por cada sujeito, sendo considerado uso problemático
escores igual ou maiores a 5 pontos.
Em seguida, a Tabela 3 revela que a maior
parte dos usuários que apresentou uso problemático
(marcação de resposta positiva em pelo menos
cinco itens no PVP) é do sexo masculino. Dos 136
homens que colaboraram com a pesquisa, 34.56%
apresentou uso problemático de jogos eletrônicos
(M=3.55, DP=1.94), contra os 21.88% do sexo
feminino (M= 2.78, DP=1.86).
Tabela 3. Sexo do usuário e sua relação com o uso problemático de jogos eletrônicos*
Dados Obtidos
Sexo
Feminino
Masculino
Total (n)
64
136
Uso Problemático
14
47
21,88%
34,56%
Média
2,78
3,55
Uso Problemático em %
Desvio Padrão
1,94
1,86
Variância (V)
3,70
3,44
Desvio Quartil (Q1)
1,00
2,00
Desvio Quartil (Q3)
4,00
5,00
*baseado na quantidade total de respostas afirmativas aos itens por cada sujeito, sendo considerado uso problemático
escores igual ou maiores a 5 pontos.
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Os resultados da escala Problem Video Game
Playing (PVP) constam na Tabela 4, obtendo-se o
coeficiente de correlação de Pearson de 0.78, com
uma diferença estatisticamente significativa (p<0.05),
e coeficiente alfa de Cronbach 0.65. Considera-se
um score de pelo menos cinco respostas positivas
para que haja uma hipótese de uso excessivo de
jogos eletrônicos20, sendo tal score encontrado nessa
população em 30.5% da amostra (M=3.3, DP=1.9),
parcela que obteve maior marcação nos itens I, III,
VI e IX, que remetem, respectivamente, a inquietação
(83.4%), a perda de controle (78.7% e 91.8%) e
a problemas no âmbito familiar ou escolar (98.4%),
sendo os itens VI e IX de grande incidência também
na população com scores abaixo de cinco (68.3%
e 66.9%). Por outro lado, também foi observada
a baixa marcação no item IV (relativo a sinais de
abstinência) pela população geral do estudo (7%),
sendo que todos que assinalaram essa questão
estavam classificados no grupo de uso problemático
de jogos eletrônicos e possuíam scores médios de
6.75.
Tabela 4. Distribuição de respostas de estudantes universitários na escala PVP de acordo com a frequência de
jogo
I – Quando não estou jogando jogos eletrônicos, fico pensando nos
jogos (relembrando jogadas, planejando o próximo jogo etc).
Escores obtidos na escala PVP*
Até 4 pontos
Acima de 5
pontos
Total
(n=139)
(n=61)
(n=200)
n
%
n
%
n
%
34
24,5
51
83,6
85
42,5
5
3,6
25
41,0
30
15,0
36
25,9
48
78,7
84
42,0
0
0,0
14
23,0
14
7,0
V – Quando estou mal, isto é, nervoso, triste ou bravo, ou quando
estou com problemas, eu jogo mais frequentemente.
42
30,2
34
55,7
76
38,0
VI – Quando perco um jogo ou não alcanço os resultados desejados,
preciso jogar de novo para alcançar meus objetivos.
95
68,3
56
91,8
151
75,5
3
2,2
19
31,1
22
11,0
VIII – Para jogar jogos eletrônicos, já fiz pelo menos uma das
seguintes coisas: faltei em aulas ou no trabalho, menti, roubei, discuti
com alguém.
13
9,4
33
54,1
46
23,0
IX – Devido a jogar jogos eletrônicos já fiz pelo menos uma das
seguintes coisas: fiz menos ou deixei de fazer lição de casa,
trabalhos na faculdade, deixei de comer, fui dormir muito tarde,
passei menos tempo com amigos e família.
93
66,9 153
76,5
II – Tenho gasto um tempo cada vez maior jogando.
III – Já tentei controlar, diminuir ou parar de jogar, ou normalmente
jogo por um período mais longo do que havia planejado.
IV – Quando eu não posso jogar, fico inquieto ou irritado.
VII – Às vezes jogo escondido de outras pessoas, isto é, de meus
pais, amigos, professores...
60
98,4 *baseado na quantidade total de respostas afirmativas aos itens por sujeito
96 �����������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������������������Lemos. I.L.; et al.
Discussão
O presente estudo buscou trazer dados
epidemiológicos à comunidade científica em relação
ao uso problemático de jogos eletrônicos. Os dados
encontrados, de acordo com o preenchimento da PVP,
devem ser analisados atentamente pelos profissionais
de saúde, ainda que não possamos, a partir dela,
diagnosticar um sujeito como dependente ou não de
jogos eletrônicos, servindo a escala como instrumento
de apoio em uma investigação sintomatológica com
o paciente. Apesar da escassez de estudos sobre a
incidência de uso problemático de jogos eletrônicos
no Brasil, acreditamos que a porcentagem encontrada
na presente pesquisa foi maior do que o esperado a
partir dos dados obtidos da literatura científica.
Ao observar a confiabilidade do questionário
PVP, obtivemos em análise estatística um satisfatório
coeficiente de correlação de Pearson de 0.78, e
validade de constructo inferior a 0.05. Quanto ao alfa
de Cronbach encontrado (0.65), considera-se alfa de
0.60 aceitável, desde que os resultados obtidos com
esse instrumento sejam interpretados com precaução
e tenham em conta o contexto de computação do
índice21. Deve-se ter também cautela na análise dos
dados devido ao limitado número de participantes,
que impossibilitou ou não tornou confiáveis algumas
comparações ou o estabelecimento de relações
causais através da sua aplicação22.
Foi observado, inicialmente, que o uso
problemático de jogos eletrônicos (UP=30.5%)
foi superior aos dados encontrados em outras
localidades do mundo, inclusive em Griffiths e Hunt
(UP=20%)20. Porém, acreditamos que essa diferença
significativa se deva a três causas aparentes: um
avanço nos padrões de fidedignidade das escalas
que meçam o uso problemático ou a dependência
de jogos eletrônicos; a diferença de contexto social
onde as pesquisas foram realizadas; a diferença
entre a distribuição da população desse estudo (68%
homens, 32% mulheres) e a dos estudos de Fisher
(48% homens, 52% mulheres16) e Griffiths e Hunt (58%
de homens, 42% de mulheres)20 o qual ainda indica
maior propensão do sexo masculino em apresentar
sintomatologia correspondente ao uso problemático
de jogos eletrônicos, fato este ainda corroborado por
outras pesquisas que sugerem que a dependência de
jogos eletrônicos é predominante em sujeitos do sexo
masculino22,23.
É importante mencionar a possibilidade de
falhas interpretativas, devido a um possível uso
equivocado, pelos autores, de uma concepção de
dependência tecnológica vigente há quase 15 anos,
assim como à modificação do contexto atual, que
possibilita maior acesso a esse tipo de mídia. Os
dados da década de 90, porém, também revelavam
que o sexo masculino apresenta uma maior incidência
de dependentes, dado que se manteve em estudos
atuais.
Não apenas o sexo do usuário parece ser um
fator de maior atenção no desenvolvimento de uso
problemático de jogos eletrônicos na vida adulta. Há
indícios de que, quanto mais cedo o usuário tem contato
com esse universo virtual, maiores são as chances de
desenvolver uso problemático posteriormente, haja
vista os dados obtidos (M=4, DP=1.55) e a norma
entre 3 a 5 pontos, superiores às outras populações
que começaram a jogar tardiamente. No entanto,
tal diferença não foi expressa significativamente
na incidência de usuários com uso problemático
nessas populações, fato que pode ter ocorrido pela
limitada quantidade de participantes. Desta forma,
consideramos que essa correlação deveria ser
estudada com maior ênfase, principalmente pelo
fato de pesquisadores defenderem que o fator crucial
em relação à dependência de jogos eletrônicos é
a prevenção através do monitoramento da prática24.
Foi observado que a população com scores
superiores a 5 apresentaram grande incidência de
marcações nos itens I, III, VI e IX. O item I, referente
à inquietação (83.4%), caracteriza o indivíduo
que pensa no jogo enquanto não tem acesso a
ele. Tal aspecto pode ser preocupante, por poder
desencadear problemas no âmbito acadêmico,
sendo corroborado pelo item IX, relativo a problemas
no âmbito escolar e familiar (98.4%). Esses dois
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itens sinalizam a necessidade de estudos a respeito
do quanto os indivíduos estão abertos para outras
experiências e da possibilidade da utilização de
jogos eletrônicos servir como objeto de fuga de
possíveis conflitos.
No mesmo sentido, observa-se que os itens VI e
IX obtiveram elevada incidência, tanto pelos usuários
com uso problemático (78.7%, 91.8%) como pelo
resto da população (68.3%, 66.9%). Como ambos
os itens se caracterizam pela perda de controle na
relação do usuário com jogos eletrônicos, tal fator
denota um possível efeito de amplo alcance do jogo
no usuário, levando-o a gastar cada vez mais tempo
nele, o que pode ter reflexo posterior sobre os outros
âmbitos da vida do indivíduo. Porém, tal aspecto
necessita de um estudo específico para comprovação.
Também é importante mencionar que, no tocante ao
preenchimento da PVP, compartilhamos a sugestão
dos autores da escala de que o item VI necessita de
avaliação através de uma análise fatorial19.
Por outro lado, observou-se na população total
a baixa incidência na marcação do item IV, relativo
a sinais de abstinência (7%) assinalados apenas
por usuários com indicação de uso problemático
em jogos eletrônicos. Tal fator pode ser um indício
para avaliar maior propensão à dependência
de jogos eletrônicos, corroborado pelos altos
scores encontrados nos usuários que assinalaram
positivamente esse item (M=6.75) e com um valor
próximo ao que foi encontrado em Fisher (6%)16.
Diante do que foi relatado até então, acreditamos
ser fundamental uma análise mais detalhada dos sinais
que são apontados no questionário, especialmente
pelo fato de não ser possível realizar um diagnóstico
apenas através dele. É comum, infelizmente, que
pesquisadores se detenham no uso excessivo como
o critério mais importante na dependência de jogos
eletrônicos. Entretanto, ela só pode ser considerada
quando o sujeito é incapaz de controlar o tempo
despendido no uso e a frequência de uma atividade
que anteriormente fosse considerada inofensiva25.
Conclusão
A maioria dos participantes aceitou contribuir
com o estudo, o que revela um aparente interesse
sobre o tema pelos alunos da UFPE. Contudo, a
pesquisa foi realizada em apenas uma Instituição de
Ensino Superior de Pernambuco, o que impossibilita
generalizar os resultados. Apesar dessa limitação,
constatamos que a incidência de uso problemático
foi elevada entre os jogadores. Através dos resultados
deste artigo, pode-se ilustrar um possível cenário
psicopatológico, onde a existência desse transtorno
psiquiátrico se apresenta como realidade no meio
acadêmico.
Por fim, o uso problemático de jogos
eletrônicos e, em sua manifestação mais debilitante,
a dependência, são aspectos que necessitam
ser visitados por mais pesquisadores brasileiros.
Atualmente, são raros os estudos epidemiológicos
realizados sobre esse assunto no país, o que dificulta
o mapeamento de possíveis usuários adoecidos
pelo uso desadaptativo de jogos eletrônicos,
tornando ainda mais difícil a criação de protocolos
de tratamento em diversos centros universitários do
Brasil. Desta forma, este estudo indica possibilidades
para futuras pesquisas.
Agradecimentos
Agradecemos aos estudantes do curso de
Psicologia da UFPE que auxiliaram na construção e
viabilizaram este estudo. Também somos gratos ao
financiamento da pesquisa através da bolsa REUNI
de assistência ao ensino.
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