NARRATIVAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

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NARRATIVAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
NARRATIVAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: RELAÇÕES ENTRE BRASIL,
MÉXICO E ARGENTINA
Coordina: Jacqueline de Fatima dos Santos Morais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
NARRATIVAS DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS NO BRASIL E MÉXICO:
FORMAÇÃO EM REDES E COLETIVOS DOCENTES
Morais, Jacqueline; Gomes da Silva, Aline
Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Instituto Nacional de Educação de Surdos
[email protected]; [email protected]
Resumo
Este trabalho pretende compartilhar parte de nossa investigação focada na narrativa de
professoras que ensinam a ler e escrever em dois países Latino-americanos: Brasil e México.
A escolha se deu pela forte presença, nestes países, de organizações de coletivos docentes
denominados “Redes de professores” ou “Coletivos Docentes”. Nossa investigação buscou
compreender como, professores vinculados a tais coletivos e implicados na participação e
construção de ações cooperativas de formação docente, ensinam a língua materna. Haveria,
em suas práticas alfabetizadoras, algum reflexo da participação em coletivos docentes? As
ações de formação desenvolvidas pelos referidos grupos, em cada país, implicariam práticas
docentes democráticas e coletivas em sala de aula? Que “palavras-mundo” (Freire) estariam
presentes no cotidiano das professoras que se assumem pertencendo a estes coletivos
docentes? Para tal empreitada, compartilharemos narrativas orais e escritas de 5 professoras
brasileiras, vinculas a “Rede de Formação Docente – Narrativas e Experiências” (Rede
Formad) e 5 professoras mexicanas vinculadas a Red de Lenguaje por la Transformación de la
Escuela y la Comunidad. Essas narrativas orais e escritas foram produzidas em contextos de
formação continuada das referidas Redes e nos trazem pistas sobre os limites e possibilidades
de construção de práticas alfabetizadoras (de)coloniais.
Palavras chave: coletivos docentes - práticas docentes democráticas - palavras-mundo narrativas orais e escritas.
Introdução: o temos entendido por redes e coletivos docentes?
Iniciamos nosso texto abordando um aspecto de nosso trabalho que temos buscado
compreender: o conceito de redes docentes. Esta ideia tem sido vivida em vários paises pelos
quais temos transitado na América Latina.
Os grupos, redes e coletivos docentes se inscrevem na América Latina, e no Brasil em
especial, como movimentos instituintes (Linhares, 2013). Praticam, em geral, modos outros de
viver a formação continuada, na medida em que tentam fugir de modos hegemônicos como a
formação de professores/as vem sendo pensada e fabricada historicamente.
Em nossa compreensão, grupos, redes e coletivos docentes se constituem como
possibilidades de temposlugares narrativos para aquelas/es professoras/es que vivem a escola
e dela querem falar, compartilhar, compreender e produzir conhecimentos, em vez de apenas
aceitar com docilidade (Freire, 2011) a relação colonialista que, historicamente, a
universidade, representada pelos seus especialistas, tem produzido sobre a escola. A relação
escola-universidade, por vezes, revela um discurso simplificador do cotidiano escolar e de
seus praticantes (Certeau, 1996), e acaba por fixar uma imagem instituída de acordo com a
qual compete à escola “o locus de aplicação de conhecimentos, e às instituições acadêmicas
os lugares de produção destes conhecimentos a serem aplicados” (Morais, 2012, p. 16).
Na contramão deste paradigma, localizamos os coletivos docentes como grupos
formados por professoras e professores que vêm possibilidades de tessituras entre os saberes
produzidos por ambas as instituições: escola e universidade. Esses coletivos docentes, ao se
proporem viver em grupo o estudo e a pesquisa, fazem um convite a aprendizagem solidária.
Temos acompanhado alguns grupos e visto que muitos deles não intencionam uma relação
submissa ou consumidora das teorias produzidas pela chamada academia, mas, antes, propõe
um diálogo entre as experiências produzidas cotidianamente nas escolas onde atuam, com os
conhecimentos produzidos pela universidade. Buscam, na relação práticateoriaprática,
compreender/discutir/aprender/ensinar coletivamente sobre a complexidade constitutiva do
cotidiano escolar e, em especial, da alfabetização das crianças das classes populares.
Com isso, não queremos cair na armadilha ou na contradição de dizer que à escola
cabem os conhecimentos práticos e à academia os teóricos, mas ressaltar a relação de
retroalimentação entre esses conhecimentos, pois se encontram subjacentes um ao outro;
afinal, seria destituído de teoria o saberfazer da professora no exercício de sua docência? Ou
seria desprovido de conhecimentos empíricos as produções teóricas produzidas pelos/as
pesquisadores/as da academia? O que essa relação nos dá a ver/compreender?
Uma linha de investigação que temos apostado está nas narrativas docentes sobre os
sentidos de pertencer a um coletivo docente. Algumas das narrativas que temos encontrado,
nos permite inferir sobre as relações que atravessam o cotidiano escolar, muitas vezes
marcado pelo isolamento, pela ausência de espaços coletivos para a reflexão dentro da escola.
Esta situação não implicaria também na individualização dos sujeitos e de suas práticas? Não
produziria também a inviabilidade da construção efetiva de projetos educativos coletivos?
Não deveria ser o compromisso das políticas públicas de educação, no que tange à formação
docente, criar condições para que professores, enquanto “sujeitos produtores da história e da
cultura” (Kramer, 1999), tivessem garantido tempolugar para compartilhar coletivamente suas
experiências?
Para não apenas falar sobre mas falar com, trazemos algumas vozes docentes ouvidas
durante a pesquisa de mestrado “Narrar a experiência e reescrever a prática: professoras
alfabetizadoras em processo de formação continuada” defendida em 2014, vinculada ao
Programa de Pós-graduação em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais na
Faculdade de Formação de Professores da UERJ, em São Gonçalo. Estas vozes são parte de
uma investigação de um coletivo docente chamado “Grupo de Estudos e Pesquisa
Professoras/es Alfabetizadoras/es Narradoras/es” (GEPPAN). A primeira professora, Ana
Paula Venâncio, é professora do Colégio de Aplicação do Instituto Superior de Educação do
Rio de Janeiro (CAP/ISERJ), instituição atrelada à Fundação de Apoio à Escola Técnica
(Faetec) do Estado do Rio de Janeiro. A segunda professora que tem sua voz inscrita neste
trabalho é Renata Alves, também professora do CAP/ISERJ. A terceira professora é Denise
Tardan, professora do Colégio Pedro II, instituição federal de ensino, que compreende desde a
Educação Infantil até o Ensino Superior. No momento da pesquisa, Denise era, ainda,
professora do CAP/UERJ e da SME/ Rio de Janeiro.
Ana Paula em sua narrativa defende que a consolidação de um grupo depende da
construção de uma relação de confiança, a qual permita aos sujeitos exporem-se, desnudarem
aquilo que lhes é caro, correndo o risco de ser(em) questionada(as). Todavia, tal exposição
também se torna uma possibilidade de criar liga, de estabelecer vínculos entre as pessoas:
A gente também já construiu ali essa coisa do vínculo; (...) Talvez eu esconda
muitas coisas, mas para expor coisas muito íntimas é preciso que se tenha um laço
de confiança para confiar num grupo grande. (...)Então é a confiança de estar no
grupo; se fosse outro grupo eu não estaria expondo tantas coisas que faço na sala
de aula correndo o risco de ser questionada e ter desnudado algo que eu acho que
é lindo, que foi o máximo e não tomar aquilo como: Pôxa, vim para cá para falar
e aí... Eu não percebo desse modo. Acho que é importante, mas e o outro, como se
sente? Para mim, o vínculo de confiança que existe nesses grupos é talvez – eu
boto no campo do “talvez” porque é tudo muito complexo – talvez seja algo que
também cria liga para as pessoas pertencerem a um grupo, entre outros
sentimentos, entre gostar de estar ali naquele momento, mil outras coisas; mas,
principalmente confiar. (Ana Paula Venâncio, 2013).
Em relação ao sujeito mergulhado nessa relação narrada por Ana Paula, Larrosa
(2002) define-o como “sujeito da experiência”, o sujeito aberto à exposição, o qual se permite
ser “ex-posto”, de modo que:
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira
de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição”
(nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos),
mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de
vulnerabilidade e de risco. (Larrosa, 2002, p. 24).
Ana Paula, ao afirmar que pertencer a um coletivo docente demanda confiança para
expor-se, apesar das possíveis críticas. Trata-se de viver os acontecimentos como uma
experiência. Em consonância com esse pensamento, encontramos em Larrosa (2002) um
modo de pensar a formação coletiva, ele diz: “é incapaz de experiência aquele que se põe, ou
se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’.” (p. 24).
Para algumas professoras pertencer a um coletivo docente possibilita – apesar de não
haver garantia– o fortalecimento das pessoas em suas práticas e concepções, que saibam
sustentar e defender teórica e epistemologicamente suas ações. Neste sentido, Renata, uma
professora com quem temos trabalho e investigado, nos diz:
Eu fico pensando assim: eu pertenço ao grupo porque eu acho que é extremamente
importante para mim... Estar sempre me fortalecendo; sempre em contato com outras
ideias de outras pessoas, isso vai me constituindo, eu vou trocando, vou aprendendo
e vou ensinando nesses grupos e vou transformando coisas dentro de mim a partir
dessas vivências e permanências. Esses grupos são importantes para mim porque me
fortalecem, e hoje eu falo mais... Eu vi que eu fazia coisas, mas eu não sabia porquê
fazia. Hoje eu consigo defender por que eu faço certas coisas e o porquê de não fazer
outras. (Renata Alves, 2013).
Compreendemos, através do dizer de Renata, que a participação em coletivos
docentes, ao possibilitar a interlocução entre as pessoas, contribui para a potencialização dos
sujeitos, na medida em que narrar pode também significar aprenderensinar com o outro.
Trata-se de abrir-se à dialogicidade, à reflexão e a novas compreensões em um movimento
que se faz coletivo.
Para Benjamin (1996, p. 10), “a experiência transmitida pelo relato comum ao
narrador e ao ouvinte” possibilita a construção de uma “comunidade de vida e de discurso”.
Assim, seriam os coletivos docentes tempolugar propício não só à ampliação e partilha de
experiências, mas também à construção de discursos para determinado grupo?
O dizer de Renata revela que a sua participação em coletivos docentes lhe
potencializou a falar mais e defender seus saberesfazeres praticados em sala de aula. Mais
uma vez tomando por empréstimo as palavras de Benjamin (1996), talvez possamos
compreender que junto aos nossos pares construímos discursos capazes de defender aquilo
em que acreditamos e assumimos no cotidiano escolar, enquanto práticas e concepções
emancipadoras em educação.
Quem sabe possamos compreender a importância de tecermos, na escola, discursos
coletivos em vez de um dizer de sujeitos isolados no mundo? Quiçá reconhecermos a
formação a partir de sua dimensão coletiva, como retrata a poesia de João Cabral de Melo
Neto (1994):
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos...
(Melo Neto, 1994).
A indagação /constatação/ provocação de Dina reforça as palavras do poeta e nos
convida a pensar:
A gente acredita na aprendizagem com o outro, na discussão com outro e nos
encontros e na hora de eu fazer e pensar a minha prática eu vou fazer de forma
solitária. Por quê? (Dina Pinho, 2013).
A defesa de Dina por um trabalho que se faça coletivo é um indício que me faz
desconstruir a imagem por vezes congelada da docência e discursos simplificadores (Morin,
2005) que denunciam a inexistência de trabalhos coletivos na escola, por conta da ausência de
vontade das/os professoras/es i. Ao contrário deste discurso, Dina nos provoca a compreender,
que sua trajetória profissional sempre esteve atravessada pelo encontro com o outro, como um
modo compartilhado de viver a formação no exercício da docência. Seja pela busca por novos
conhecimentos, seja pela insatisfação com alguma política pública que chega ao cotidiano
escolar de modo autoritário, sem a devida discussão dos seus praticantes (Certeau, 1996). Daí
que sua postura enquanto sujeito implicado com a história não tem se resumido a constatar os
problemas emergentes na escola, mas o de viver o desafio de não adaptar-se a eles, mas
buscar forças no coletivo docente para compreender e intervir na realidade (Freire, 1996).
Forças que também se revelam, no dizer de Denise, ao narrar se dar no coletivo docente o
fortalecimento do seu trabalho, ou, ainda, ser no coletivo que encontra seus pares – seus
companheiros de luta cotidiana por uma educação outra, a qual se distancie de modos
mecanicistas de ensinar:
Para mim é a continuação do meu movimento de estudo. Quando eu te falei que ir
para lá, para mim, era estar com os meus, era ver que eu não estava sozinha nesta
luta. Então esse é o meu motivo forte para estar no grupo. Se eu saio do grupo e me
distancio de tudo isso, como já aconteceu, por exemplo, da gente ficar 4 meses sem
se encontrar... não foi legal, porque eu estava sozinha.(...) eu estava sem chão, sem
estímulo, sem ânimo. (...) a força maior de estar em um grupo é essa que estando
aqui é um vínculo que eu tenho com as pessoas que pensam igual a mim. E isso é
tudo para uma professora que quer ser pesquisadora. Eu acho que sozinha não dá.
Não digo que seja impossível porque eu acho que deve ter até alguém que faz, eu não
sei, mas para mim é. Se eu ficar sozinha eu não vou ser uma péssima professora,
porque a gente tem nosso compromisso e nosso ideal, mas que vai enfraquecer muito
o meu trabalho vai... (Denise Tardan, 2013).
O dizer de Denise nos provoca a pensar o coletivo docente como responsável pelo
movimento que faz com que as/os professoras/es se percebam e se assumam como
professoras/es pesquisadoras/es de suas práticas. Os fragmentos de narrativas dados a ver
neste texto, trazem pistas importantes sobre o que significa, para algumas professoras,
participar de coletivos docentes enquanto tempolugar de formação continuada e
compartilhada. Neste sentido, coletivos docentes podem ser vividos como lugar onde se cria
vínculos afetivos e de confiança, de fortalecimento de práticas, de ensinoaprendizagem com o
outro, de apropriação de teorias subjacentes às práticas cotidianas, de exposição, mas,
sobretudo, de pensar e discutir a prática coletivamente, no encontro entre os pares... São
muitas as adjetivações possíveis através de uma leitura interessada sobre o que foi dito e todas
elas nos revelam a potência de redes e coletivos docentes.
A seguir trazemos a segunda parte deste trabalho. Nela, nos debruçamos a tentar
compreender narrativas de professoras mexicanas no estado de Oaxaca, recolhidas a partir de
uma investigação de pós doutorado realizado naquele país entre 2013 e 2014 por uma das
autoras deste trabalho. Aqui as narrativas são de natureza escrita e não mais orais, como até
agora. Os textos escritos por professoras mexicanas foram produzidos como parte de um
curso de extensão e representam parte do que vivem e como vivem as profesoras deste pais.
Conhecendo Oaxaca
Oaxaca é um dos estados, portanto um dos contextos, no qual se deu a produção de
textos que compartilhamos neste artigo. Atualmente Oaxaca compõe um dos 32 estados que
formam a República Mexicana. Se localiza na parte sureste do país, fazendo fronteira com os
estados de Veracruz, Puebla, Chiapas e Guerrero. Possui, com isso, uma extensão de quase
600 km de costa, o que lhe dá o 5° lugar do país em tamanho.
Oaxaca se compõe de 570 municípios, quase três quartas partes do total de municípios
de todas as entidades federativas da República Mexicana. É o estado com maior diversidade
étnica e lingüística. Lá convivem 18 grupos étnicos dos 65 que há em todo o país, superando
um milhão de habitantes.
Se tomarmos os dados relativos à educação, estes não serão muito alentadores.
Segundo “Instituto Nacional de Estadística, Geografía e Informática” (INEGI), o que equivale
ao nosso IBGE, a partir de pesquisa realizada em 2010 e divulgadas em 2014, 6 de cada 100
homens e 8 de cada 100 mulheres de 15 anos ou mais não sabem ler nem escrever. Temos,
desta forma, um índice de analfabetismo que atinge 10% das mulheres e 7% dos homens
mexicanos. Pensar em grau de escolaridade exige analisarmos aspectos como gênero, classe
social e grupo étnico.
O mesmo órgão de pesquisa acima citado afirma que, em Oaxaca, de cada 100 pessoas
com 15 anos ou mais, 16 não sabem ler ou escrever. Desta forma, este é o terceiro estado com
maior índice de analfabetismo, seguido apenas por Chiapas e Guerreiro.
Outro dado que nos permite ter a dimensão da grave situação da educação em Oaxaca
é a média de anos escolaridade: 6.9 anos neste estado, enquanto que a média nacional é de 8.6
anos. A concentração deste quadro está, como já era de se supor, nos grupos mais vulneráveis:
mulheres, indígenas e pobres. E se tomarmos os índices de analfabetismo funcional, Oaxaca
chega a proporções que superam os 21 pontos percentuais.
É neste quadro, de baixa escolaridade, altos índices de analfabetismo e analfabetismo
funcional, aliado a pouco investimento em educação pelos governos dos diferentes níveis, que
surge e propõe ações comprometidas com a formação docente, a “Red de Lenguajes por la
Transformación de la Escuela y la Comunidad”. Conta Rodríguez (2012)
Esta es la historia de un grupo de maestros de educación básica y de la Universidad
Pedagógica Nacional convencidos de que la escuela puede cambiar de una manera
que rompe con los estereotipos de las políticas educativas sexenales. Es la historia de
un grupo de maestros convencidos en construir una alternativa para la escuela donde
los protagonistas son los estudiantes, los maestros, los padres de familia y la
comunidad. (Rodriguez, 2012, p. 2)
Uma ação sistemática proposta por este coletivo docente é um curso de extensão,
com temporalidade de um ano, curso que no México é nomeado por Diplomado. Em Oaxaca,
pudemos participar do diplomado que foi levado a cabo entre 2013 e 2014, tendo por tarefa
finalizadora do curso, a apresentação de um texto autobiográfico, cujo conteúdo remetesse
também a sua ação como docente. Os textos, seguindo a dinâmica de construção proposta por
Daniel Suarez em suas diversas publicações, são frequentemente lidos para o grupo de
professores que participa do curso recebendo, desta forma, observações. Para alguns, será a
oportunidade de verem, sob o olhar do outro, pontos de fragilidade, de pouca clareza, de
ausência de coesão ou coerência. Para outros, será a possibilidade de se colocarem no lugar de
seus alunos e reafirmarem a importância de produzirem uma escrita que lhes faça sentido.
Para outros, será a certeza de que escrever é como “quem narra os acontecimentos, sem
distinguir entre os grandes e os pequenos” sabendo que “nada do que um dia aconteceu pode
ser considerado perdido para a história” (Benjamin, 1996, p. 223).
Os textos que trazem as experiências docentes, como os que são aqui compartilhados,
revelam que professores e professoras produzem e são produzidos por mares de histórias.
Docentes são, de fato, narradores de histórias: histórias forjadas em meio às práticas
pedagógicas cotidianas. Essas histórias não apenas revelam memórias individuais mas
representam como as experiências são coletivamente construída. As histórias escritas pelos e
pelas docentes oaxaqueños e gonçalenses nos convidam a escutar os sujeitos da escola e ter
com eles diálogos múltiplos.
As narrativas de professores mexicanos
Todo comenzó a media jornada escolar, mientras Beto, Edwing, Jaciel y Eric
luchaban contra viento y marea por recordar algunas respuestas del examen
bimestral, a pesar de la segunda oportunidad que les di para contestarlo, el examen
seguía casi sin contestar y sus rostros reflejaban una gran incógnita y por supuesto
angustia y desesperación.
- Pero, ¡es todo lo que vimos! Dijo Adolfo Damián enfadado
- Sí, pero a ellos les cuesta más trabajo aprender algunas actividades- respondí.
Miré nuevamente sus rostros y recordé brevemente las actividades hechas en los
últimos dos meses, el timbre del recreo interrumpió mis pensamientos, un poco
desanimada fui por mi almuerzo, pero el rico sabor del caldo de pollo con chile y
limón hizo cosquillas en mi estómago y me reanimó, mientras disfrutaba de ese
suculento manjar, sentada en la galera de la escuela, observaba con atención lo que
hacían mis niños de 2°A; algunos almorzaban, otros jugaban matatenas, a la roña, al
trompo y otros se perseguían con una vara, los veía realmente felices. - ¿Por qué es
tan difícil lograr que los niños se mantengan así de felices en el aula? - Le pregunté a
la maestra Mari - A veces se aburren mucho y pues así ya no aprenden nadaContestó la maestra Mari - ¿No le parece que nosotros como maestros tenemos
mucho que ver en eso? - Le dije. Sí maestra Ana, cuando uno planea actividades
atractivas el tiempo se va volando y a ellos les gustan.
(Ana Cristina Ortiz Díaz)
Aqui uma professora se pergunta qual a razão pela qual os alunos se aboorrecem na
escola. Seu olhar atento acaba por perceber que nem sempre os alunos parecem
desinteressados. Há o recreio, as brincadeiras no pátio com os amigos. Há atividades
realizadas na escola e que despertam prazer. Ana se dá conta, através de uma convesa com
outra professora que a seleção de atividades, realizada através do planejamento docente, pode
ajudar a acompreeder as razões. Aqui, a relexão na prática e sobre a prática são fundamentais
serem feitas com outros sujeitos: crianças e outros docentes.
Al otro día cada uno llevó su taza y su plato, pues por la mañana nos comeríamos el
pastel, la mamá de Ulises llevó al salón tamales de frijol y atole de arroz con leche, la
verdad todo era una verdadera sorpresa porque la partida del pastel coincidió con el
cumpleaños de Ulises, comimos a lo grande y todos los niños permitieron que Uli le
diera una tremenda mordida al pastel, le cantamos las mañanitas y nos la pasamos
muy bien ese día, le mandamos un pedazo grande a la mamá de Jessi en
agradecimiento de acogernos en su casa.
Chavita le escribió una carta con un dibujo muy bonito a la señora Lioba, Antes de
enviarla, me pidió que le corrigiera en donde estaban mal escritas algunas palabras,
aproveché ese momento para hacer una revisión y corrección colectiva del texto,
ayudamos todos para que la carta quedara mejor, ella la pasó en limpio y se la
enviamos a nombre de todo el grupo. (Carmen Maribel)
Neste relato, Carmen compartilha atividades que viveu em sua sala de aula. Depois de
um lanche coletivo, a escrita de uma carta em agradecimento a mãe que enviou os quitutes,
resultou um bom motivo para a discussão de questões ortográficas e relativas a pontuação.
Assim, corrigir, como nos mostra a professora Carmen, pode ser vivido como atividade real,
com sentido social maior.
Conclusões: olhares provisórios
As experiências que vivemos em redes e coletivo docentes não são inaugurais ou
inovadoras mas são prenhes de palavras das professoras-pesquisadoras-narradoras com quem
muito temos aprendido nestes anos de convivência e participação em coletivos docentes. São
palavras de quem busca atribuir sentido ao vivido para melhor compreendê-lo e, ao melhor
compreendê-lo, melhor praticá-lo.
A aprendizagem que fica, entre tantas outras, é a necessidade de criarmos, de
experimentarmos, nos espaçostempos onde atuamos, movimentos legitimadores de nossos
saberes e experiências, na luta por uma educação pública popular. Experiências nas quais
possamos viver o exercício da palavra e da contrapalavra, o exercício da autoria de nossas
falas e pensamentos, compreendendo-nos sempre em devir.
Aprendemos que pertencer, participar, investigar e ser formada por meio de encontros
em coletivos docentes tem sido um diferencial na nossa formação como professoras
pesquisadoras. Não dá para construir uma formação na perspectiva da horizontalidade se não
for pela abertura ao diálogo, com encontros entre os pares, tendo a experiência, tecida
cotidianamente nas escolas, como centralidade das nossas discussões e reivindicações.
Tampouco dá para acreditar que sozinhas vamos conseguir intervir, significativamente, nos
modos como hegemonicamente vêm sendo pensada a educação e a formação docente.
As
ações
vividas
em
coletivos
docentes
são
vistas/compreendidas
como
acontecimentos singulares e únicos - muito embora os princípios que nos movem estejam
entrelaçados a princípios perseguidos por tantos outros coletivos docentes e movimentos
sociais. Desta forma, apesar se inscrever a contrapelo das políticas hegemônicas de formação,
coletivos docentes não podem ser modelos a serem disseminados pelo país afora. Cada
contexto docente tem demandas próprias, vive contradições e, sobretudo, vive processos de
formação continuada muito próprios.
Cada grupo espalhado por este país-continente não constitui um experimento
replicável mas pode ser vivido como inspiração. Inspiração no sentido de provocar, de
inquietar, de mostrar que, sim, outra escola é possível, outra formação é viável... O futuro não
está dado no agora, tampouco as experiências são tecidas por uma relação de causalidade.
Que possamos, pois, tomar a palavra, assumir nosso lugar de professoras pesquisadoras da
própria prática e, não sem luta, tecer outras histórias.
Portanto, em relação à formação docente, ao pensar, e ao compartilhar as nossas
experiências (Larossa, 2002) e com isso nos inscrevermos no mundo de outro jeito, possamos
imitar Diego, personagem criado por Eduardo Galeano, que diante da imensidão do mar,
pediu ao pai: Me ajuda a olhar? Não pretendíamos com este trabalho realizar um esgotamento
do tema. Tampouco almejávamos produzir uma vasta revisão bibliográfica. Nossa intenção
era deixar o pensamento fluir, nos deixar atravessar pela temática do olhar a partir desta,
pensar sobre coletivos docentes.
Os fragmentos das narrativas produzidas por professores de dois países, apesar de suas
diferenças geográficas e culturais, nos permitem ver a escrita docente pode ser um elemento
potencializador da vida e do cotidiano escolar. Os textos mostram pequenos momentos,
alguns acontecimentos que poderiam ser chamados de irrelevantes se tomamos a tradição
mais conservadora de pesquisa e produção acadêmica. No entanto, ao mirarmos estes textos
com olhares menos duros, podemos vê-los como importantes portadores de versões outras da
escola, versões que, muitas vezes, ainda não foram contempladas pela historiografia de cunho
oficial. Cada texto autobiográfico nos ensina que a escola é, sem dúvida, um “lugar de
memória” (Nora, 1993) mas também cada mundo, cada vida, de cada sujeito, pode ser
entendida como um lugar recheado de memórias: individuais e coletivas, sem distinção entre
uma e outra.
A escrita de si não é necessariamente uma estratégia de ação que redunda em
emancipação (Freire, 2005). Esta pode, sim, fazer parte de um mecanismo regulatório. Apesar
disso, fazemos uma aposta na possibilidade da escrita ser um espaço de liberação: quando
tornada desejo, quando vivida com sentido, quando provocadora da ampliação do
conhecimento sobre si e sobre o contexto em que se vive ou sobre o qual se quer refletir,
quando permite a expressão do sujeito em sua inteireza e inacabamento. Afinal, como
defendia Freire (2011, p. 50) “Onde há vida, há inacabamento.”
Os textos aqui compartilhados nos mostram ainda que, boa parte das escritas docentes
não criam oposições entre a vida pessoal e seu percurso profissional. Essas dimensões da vida
humana são, desta forma, narradas de maneira atravessada, revelando também uma concepção
de tempo vivido como não linear. Esse aspecto nos lembra mais uma vez Saramago, para
quem “o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície
oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar” (2003, p. 56).
Temos compreendido que professores e professoras são sujeitos portadores de saberes
pedagógicos e construtores de cultura, capazes de gerar propostas pedagógicas reflexivas. A
partir desta concepção de docente, se faz necessário promover e difundir a prática da escrita,
incluindo o registro das experiências pedagógicas, a fim de que se conheça as histórias das
escolas e dos professores. Neste sentido, o investimento nas ações de formação continuada
que implicam a escrita de textos autobiográficos, tem sido uma rica experiência. A escrita de
si possibilita por a voz docente como protagonista da história.
As escritas que aqui foram socializadas são, antes de tudo, um convite para que
também nós, tenhamos coragem de expor nossa força e nossa voz, nos agregando a luta
“contra o desperdício da experiência” (Santos, 2000, p. 239).
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em Processos Formativos e Desigualdades Sociais) - Faculdade de Formação de
Professores de São Gonçalo/UERJ, São Gonçalo.
Santos, Boaventura de Souza. (2000). A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da
experiência. São Paulo, Cortez.
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Pensamos que, para além deste discurso, estão os interesses das esferas governamentais, que por vezes atuam
para a destruição de projetos coletivos na escola, na medida em que implementam projetos e formas de
avaliação que privilegiam a individualização – e a conseqüente culpabilização – de cada um, profissionais,
alunos. (Collares, Moysés, Geraldi, 2006).