Husserl: significação e fenômeno

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Husserl: significação e fenômeno
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Husserl: significação e fenômeno
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Universidade de São Paulo
resumo O objetivo deste artigo é discutir o modo como Husserl desenha a originalidade da
subjetividade transcendental, frente à sua homônima psicológica. Se é certo que a noção
de “imanência autêntica” pode apontar para as diferentes fronteiras entre o transcendental e o psicológico, resta que por si só ela não permite decidir nada quanto ao “modo de
ser” transcendental, em sua diferença face ao “mundano”. Sendo assim, procura-se reconstituir alguns dos momentos centrais do esforço husserliano para construir um conceito de
“subjetivo” e de “subjetividade” que não se confunda mais com o “psíquico” da psicologia
tradicional.
palavras-chave subjetividade – psique – fenômeno – noema – transcendental
I
Sabe-se que a originalidade da noção husserliana de “subjetividade transcendental” pareceu muito enigmática a discípulos e intérpretes. “A
epoché fenomenológica – escreve Husserl – libera uma esfera de ser nova
e infinita, como esfera de uma experiência nova, a experiência transcendental” (HUSSERL, 1973a, p. 66). Mas, de imediato, não parece ser tão
claro o que haveria de inédito nesta subjetividade chamada de transcendental, face à sua homônima mundana. Os textos repetem à exaustão que
a responsável pela novidade é a redução, única operação capaz de desvelar o “território fenomenológico” (HUSSERL, 1950, p. 145). Mas a
pretensa novidade da subjetividade transcendental face à psicológica
Recebido em 15 de dezembro de 2005.Aceito em 31 de janeiro de 2006.
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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parece indecifrável. A redução, compreendida como “suspensão da tese
geral da atitude natural”, quer dizer, como inibição da validade e da
“crença no mundo”, não parece, por si só, instruir-nos sobre o caráter
inédito da subjetividade que ela promete desvelar. Se essa penumbra, por
si só, já confere ao transcendental uma perigosa indistinção face ao
psicológico, é essa promiscuidade entre ambos que parece ser mais sublinhada do que amortecida pela tese que afirma a existência simultânea
não só de uma diferença, mas também de uma identidade entre o transcendental e o mundano, uma doutrina que parece antes obscurecer a
relação entre eles, além de tornar tenazmente impalpável a pretensa novidade dessa região do transcendental, face ao seu eco mundano.
Assim, por um lado Husserl afirma a existência de uma diferença
necessária e de princípio entre a subjetividade transcendental e a
psicológica. Afinal, seria um contra-senso elementar formular questões
transcendentais sobre a possibilidade do conhecimento objetivo a partir
de uma subjetividade que, sendo “mundana”, faz parte, ela mesma, do
problema a ser resolvido. Para não incorrer em um círculo vicioso
elementar, a subjetividade “pura” alcançada pela redução não poderá ser
aquela do “homem” – o “psicologismo”, na sua forma a mais radical,
sendo justamente o desvio de conduta que consiste em formular questões
transcendentais a partir de uma subjetividade que é, ela mesma, “parte”
do mundo (HUSSERL, 1968a, p. 249). Assim, a redução fenomenológica introduz “uma espécie de cisão do eu”, em que o “espectador transcendental” encontra a si mesmo como “homem”, mas apenas enquanto
correlato de sua vida transcendental (HUSSERL, 1973a, p. 16). Desde
então, se a psicologia pura já exerce a epoché da validade em relação ao
mundo, a fenomenologia exigirá uma redução universal, uma redução
que inclua a própria alma, sempre poupada pelo psicólogo (HUSSERL,
1968a, p. 249). Por isso a vida transcendental não será vida “do homem”
mas sim “do ego”, onde o homem e o mundo têm seu “ser constituído”
(HUSSERL, 1973c, p. 539). Se essa subjetividade transcendental tem
como seus objetos as coisas espaço-temporais, ela mesma não está no
espaço, não está no tempo, não está no mundo. A exposição (Darstellung)
do mundo – dirá Husserl – não está, ela mesma, no mundo, a “vida subjetiva” que percebe, se recorda ou simplesmente visa no vazio não está, ela
mesma, no mundo (HUSSERL, 1973c, p. 644-645). Sendo assim, nenhudoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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ma surpresa em se dizer que o eu obtido pela redução é chamado de
“eu” apenas “por equívoco” (HUSSERL, 1962, p. 188). É em função
dessa diferença de princípio que se falará agora em um “paralelismo”
entre a subjetividade transcendental e a psicológica.
Mas essas subjetividades “diferentes” também são idênticas entre si, e
por isso Husserl sublinhará que a metáfora das paralelas nunca deve nos
extraviar, nunca deve sugerir a ninguém a idéia de uma duplicação da
subjetividade.Afinal, não se deve duvidar de que o Eu absoluto de Fichte,
que se põe a si mesmo, não seja o próprio eu de Fichte (HUSSERL,
1962, p. 205). E se é certo que meu eu transcendental é evidentemente
diferente do meu eu natural, não é menos certo – assegura Husserl – que
ele “não o é como um segundo eu, como algo separado dele no sentido
natural da palavra, assim como, ao contrário, ele não é de maneira alguma
algo de unido ou entrelaçado a ele no sentido natural” (HUSSERL,
1968a, p. 294). Desde então, se é verdade que o ego não é o homem, não
é uma parte do mundo, é verdade também que o eu natural é um eu
transcendental que se desconhece como tal e que “eu sou o mesmo como
ego e como pessoa humana”(HUSSERL, 1973c, p. 540) E se é assim, dirá
Husserl,“... a psicologia e a filosofia transcendental são aparentadas uma à
outra de modo inseparável e peculiar, no modo que para nós não é mais
enigmático, da identidade e da diferença entre o eu psicológico (logo,
humano, mundanizado no mundo espaço-temporal) e a vida egóica e o
operar do eu transcendental” (HUSSERL, 1962, p. 209).
Uma identidade e diferença que não são mais enigmáticas? Mas qual
a natureza da diferença entre o transcendental e o psicológico se eles são
idênticos e não duplos? E como pode haver identidade sem duplicação se
a distância entre ambos é aquela que existe entre o sujeito e o objeto, o
constituinte e o constituído? Da mesma maneira, como não falar em
“separação” entre uma subjetividade que é parte do mundo e um ego
transcendental que, por princípio, sempre estará “fora” do mundo? Agora,
é o próprio sentido e estatuto do “transcendental” husserliano que inevitavelmente se obscurece. E se é assim, Heidegger tinha toda a razão em
suas observações ao artigo que Husserl escrevia para a Enciclopédia Britânica, ao reclamar ali uma explicitação sobre qual seria, no final das contas, o
“modo de ser” dessa subjetividade chamada de “transcendental”, diante
de sua sósia mundana. O que significa, pergunta Heidegger,“o ego absodoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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luto na sua diferença em face ao puro anímico? Qual é o modo de ser
(Seinsart) desse ego absoluto – em que sentido ele é o mesmo que o eu
sempre fáctico; em que sentido ele não é o mesmo?” E, concordando com
Husserl quanto à “evidência” de que a “constituição transcendental” do
mundo não poderia ser elucidada pelo retorno a um “ente” que tivesse o
mesmo “modo de ser” deste mundo, Heidegger se apressava em sugerir
que aquele território inédito poderia muito bem ser o “Dasein
humano”, o “homem concreto”1. Uma “sugestão” que para Husserl,
como se sabe, significava pura e simplesmente reatar com o “antropologismo”, o “psicologismo”, desconhecendo o sentido mesmo da
“redução” e o caráter inédito do território que ela deveria desvelar
(HUSSERL, 1989, p. 164).
É verdade que sempre se pode circunscrever a diferença entre a subjetividade psicológica e a transcendental através da distância existente entre
a imanência “real” (reell) e a imanência “autêntica” ou “transcendental”.
Afinal, é apenas quando nós nos situamos na atitude natural que, espontaneamente, a imanência se identifica à imanência real, a um “interior” do
sujeito psicológico que se opõe a um “exterior” mundano. Pois quando
eu me apreendo como “homem natural” – dirá Husserl – “de antemão eu
já apercebi o mundo espacial, já apreendi a mim mesmo no espaço, no
qual eu já tenho um exterior a mim” (HUSSERL, 1973a, p. 116). A
natürliche Einstellung é o código interpretativo subjacente à doutrina clássica ou cartesiana da representação visto que, sob sua direção, a pergunta
transcendental pela possibilidade do conhecimento vai necessariamente
se travestir na questão “psicológica” de se saber como o homem que vive
no mundo pode obter e legitimar o conhecimento de um mundo exterior
à alma (HUSSERL, 1968a, p. 265). Se em regime de redução todo objetivo se transforma em subjetivo, isso não significa, de forma alguma, que
o novo “interesse” pelo subjetivo se traduza em um interesse pela “representação do mundo” (HUSSERL, 1962, p. 182). Ao contrário, antes de
mover-se no círculo da pura “representação do mundo”, a atitude transcendental será, para Husserl, exatamente o fim da cisão entre mundo e
representação (HUSSERL, 1959, p. 480). É o “entendimento humano
natural” que opõe uma interioridade psicológica a um exterior, assim
como foi sua miopia – dirá Husserl – que fez com que,“durante séculos”,
ninguém, praticamente,“se tenha perguntado se, em relação a essa esfera
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de ser egológica, um ‘exterior’ em geral poderia ter um sentido”
(HUSSERL, 1962, p. 83)2. Bem compreendida, a subjetividade transcendental não tem nada de exterior a si, visto que ela “abarca então a totalidade do subjetivo, no qual se inclui, finalmente, o próprio mundo
enquanto subjetivamente constituído” (HUSSERL, 1973c, p. 288). E
como seria diferente se, em regime de redução, o objeto da consciência
não pode ser nada além da unidade sintética de seus múltiplos modos
subjetivos de doação? (HUSSERL, 1968a, p. 153) Por isso a verdadeira
questão “transcendental” sobre a possibilidade do conhecimento, longe
de se traduzir em uma meditação mundana sobre a relação entre uma
interioridade psicológica e um exterior “místico”, será a de saber como
uma multiplicidade de fenômenos subjetivos pode ser a apresentação,
para a consciência, de um objeto idêntico, e que estruturas de evidência
estão presentes nessa constituição.
Mas é certo também que essa distância entre o psicológico e o transcendental, opondo-os através de suas distintas fronteiras, por si só ainda
não responde em nada ao reclamo de Heidegger por uma explicitação do
“modo de ser” da subjetividade transcendental, diante de sua gêmea
psicológica. Afinal, o que garante que este “transcendental” não seja o
velho “psíquico”, apenas com sua fronteira expandida até abarcar a totalidade do “mundo”? Assim como essa diferença de fronteiras nada
esclarece sobre a identidade entre o eu psicológico e o eu transcendental,
o constituído e o constituinte. Donde as soluções extremas apresentadas
seja pela posteridade de Husserl, seja por seus comentadores. Para que “o
Eu transcendental e o eu empírico possam ser 1) irredutíveis 2) idênticos
– dirá Merleau-Ponty – é preciso que o Eu transcendental seja nada (que
‘não é’) e o eu empírico ser” (MERLEAU-PONTY, 2002, n.92a). Simetricamente, De Boer se pergunta como o eu puro constituinte e o eu real
constituído poderiam ser um e o mesmo se suas propriedades se excluem
reciprocamente e, por isso, não podem pertencer à unidade de um objeto.Assim, concluirá De Boer, apenas se a consciência psicológica for vista
como uma ficção, uma espécie de ilusão transcendental, é que se pode
entender como Husserl pôde sustentar “a identidade da consciência
psicológica e da consciência transcendental” (DE BOER, 1978, p. 465)3.
Essas soluções simétricas e inversas resolvem o problema eliminando um
dos termos em disputa, quer dizer, diluindo o problema. E se é assim,
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tentemos atalhar a questão perguntando, pelo menos, se Husserl fornece
elementos para se discernir qual seria o “modo de ser” da subjetividade
transcendental, em sua diferença frente à região do “psicológico”.
II
Em 1901, nas Investigações lógicas, Husserl circunscrevia a região da subjetividade fenomenológica ou “pura” tomando como ponto de partida os
conceitos da psicologia descritiva, apoiando-se na máxima brentaniana
segundo a qual todos os fenômenos são ou físicos ou psíquicos
(HUSSERL, 1968b, p. 345)4. Neste momento, Husserl considera essa
classificação de Brentano como a “mais notável” e filosoficamente a “mais
importante” (HUSSERL, 1968b, p. 364). E como a oposição brentaniana
não é senão um Ersatz do dualismo cartesiano, não é nada surpreendente
que a subjetividade fenomenológica fizesse sua estréia na cena filosófica
alemã sucumbindo aos mesmos prejuízos que, anos depois, Husserl
censurará em Descartes. Segundo a regra da psicologia descritiva, se a
“consciência” não remete a nada de físico, então ela só pode ser reportada
aos “fenômenos psíquicos”. Ali nas Investigações, Husserl parte dessa
consciência psicologicamente decifrada para empreender a “purificação”
que levará à subjetividade fenomenológica. Mas sabe-se que essa “purificação” – muito distinta daquela que será, posteriormente, a purificação
“transcendental” – se resumirá, na verdade, a um duplo movimento: a
abstração do corpo e a consideração da essência dos vividos, e não destes
vividos como fatos individuais.A consciência fenomenológica – assegura
Husserl – é atingida quando, analisando o eu empírico, nós “excluímos o
corpo do eu, corpo que, como coisa física, aparece como qualquer outra,
e consideramos o eu espiritual empiricamente ligado a ele, e que se
manifesta como pertencente a ele” (HUSSERL, 1968b, p. 361). E se no
plano da psicologia esse eu espiritual ou essa consciência podem ser
definidos como a unidade real (reell) dos vividos de um eu, onde esses
vividos são acontecimentos reais (realen) que, alterando-se e entrelaçando-se entre si,“formam a unidade real (reell) da consciência do indivíduo
psíquico correspondente”, nós podemos passar dessa caracterização
psicológica da consciência à sua delimitação propriamente fenomenolódoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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gica quando, eliminando “toda referência a uma existência empírico-real
(reales) (aos homens ou aos animais da natureza)”, nós apreendemos esses
vividos como essências e não como fatos individuais. Agora, assegura
Husserl, “o vivido em sentido psicológico-descritivo se converte então
em vivido no sentido da fenomenologia pura” (HUSSERL, 1968b, p.
348). Desligada de todo e qualquer indivíduo, essa consciência eideticamente purificada só poderá ser uma consciência em geral, uma subjetividade anônima ou “de ninguém”, e que por esse viés se distancia da
consciência sempre individualizada de que trata a psicologia empírica.
Mas se a subjetividade fenomenológica é obtida pela mera abstração
do corpo, a passagem do fato à essência só nos oferecerá o eidos do
psíquico, essa camada do mundo sobre a qual se debruça a psicologia. A
subjetividade sobre a qual a fenomenologia pré-transcendental trabalha é
apenas um resíduo do mundo, assim como a alma cartesiana era o resíduo
da abstração do corpo. A consciência e o corpo formam uma unidade
psicofísica, ambos são camadas pertencentes ao mundo, separados apenas
metodicamente. Essa idéia de uma justaposição entre subjetividade e
corpo, separados metodicamente por um processo de abstração, será
característica do “modo de pensamento” que, posteriormente, Husserl
atribuirá à atitude natural: nessa atitude a psique e a natureza física, na
qual está incluído o corpo, separam-se como dois componentes de um
mesmo mundo (HUSSERL, 1962, p. 216). E se é assim, essa subjetividade
ainda é uma região interior ao mundo, e não a verdadeira subjetividade
transcendental, “que não é mais uma pura região abstrata no interior do
mundo”(HUSSERL, 1950, p. 394). Por isso, como Husserl reconhecerá
alguns anos depois, a sua primeira fenomenologia era na verdade apenas
uma “psicologia racional”, e as Investigações não podiam libertar-se do
psicologismo “sob sua forma mais essencial e mais universal”
(HUSSERL, 1975, p. 405). Ali, a justa crítica ao psicologismo lógico
ainda não se desdobrava em uma crítica ao “psicologismo transcendental”. A “subjetividade fenomenológica” era apenas a essência de uma das
regiões da “realidade”.
Mas como superar o “psicologismo transcendental”? Nos seus cursos
sobre a lógica e a teoria do conhecimento dos anos 1906-1907, Husserl
ainda não alterava a sua doutrina da subjetividade, a fenomenologia sendo
novamente apresentada como a disciplina que se afasta da psicologia por
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não reportar-se a uma subjetividade individual, mas a uma subjetividade
em geral (HUSSERL, 1984, p. 168). Mas pelo menos ali ele já formulava
com precisão a dificuldade da empreitada, assim como indicava o único
caminho para se superar o psicologismo sob sua forma a “mais essencial”.
Por um lado – dirá Husserl –, se a fenomenologia é uma investigação
sobre a possibilidade do conhecimento, se sua tópica básica é saber como
a subjetividade pode ter acesso à transcendência, então aparentemente ela
só pode ser uma psicologia, já que a subjetividade entra na própria formulação de seu problema, e conceitos noéticos como “perceber” ou “julgar”
referem-se a acontecimentos psíquicos. Nessas condições, como uma
investigação sobre a subjetividade não seria uma psicologia? Mas, por
outro lado, como identificar a teoria do conhecimento à psicologia, se a
questão crítica sobre a possibilidade do conhecimento, tal como a filosofia
a formula, também diz respeito à própria psicologia, enquanto uma ciência da natureza entre as outras, questionável portanto quanto à possibilidade e o sentido de sua validade objetiva? Segundo essa outra ótica, recorrer à psicologia é perder de vista o próprio sentido dos problemas de uma
autêntica teoria do conhecimento, é ingressar em um círculo vicioso
elementar. Donde a formulação que Husserl dará do “dilema” da fenomenologia: por um lado, identificar a teoria do conhecimento a uma
psicologia é um gesto que contradiz o próprio sentido da teoria do
conhecimento; mas, por outro lado, como não identificar teoria do
conhecimento e psicologia se, sob o nome “conhecimento”, o que temos,
na verdade, são atividades psíquicas? Nessas circunstâncias, não é surpreendente que Husserl apresente a questão das relações entre psicologia e
teoria do conhecimento como sendo “o mais importante dos problemas”
situados na porta de entrada da filosofia (HUSSERL, 1984, p. 174).
Como resolver o problema? A única saída estará em descobrir um
conceito de “subjetivo”, de “subjetividade” e de “conhecimento” que não
tenham mais nada a ver com a região mundana do “psíquico”. Mas como
chegar a isso? A primeira condição, ainda negativa, para pelo menos se
começar a vislumbrar uma subjetividade não psíquica, será renunciar ao
pressuposto que comandava a delimitação da região da “consciência” ali
nas Investigações lógicas. Esse pressuposto era o axioma brentaniano segundo o qual todos os fenômenos são ou físicos ou psíquicos. Se essa “evidência” já tinha condenado a Filosofia da aritmética ao contra-senso do psicodoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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logismo lógico, era ela também que destinava a fenomenologia das Investigações lógicas a enraizar-se no “psicologismo transcendental”. As Investigações recusavam a universalidade da alternativa brentaniana no momento de fundamentar a lógica pura, mas preservavam sua ação soberana
quando se tratava de circunscrever a região da consciência: se esta não
designa nada de físico, então ela só pode referir-se à realidade “psíquica”.
Se, em 1901, a divisão brentaniana de todos os fenômenos em físicos e
psíquicos era considerada por Husserl como a “mais notável” e filosoficamente a “mais importante”, em 1906 ele já protestará contra a idéia,
vista agora como “pseudo-evidente”, oriunda do “pensamento natural”,
de que todo e qualquer dado é ou físico ou psíquico. Rompendo com
esse pressuposto, garante Husserl, a redução fenomenológica pode
mostrar como a palavra consciência “perde todo sentido psicológico, e
finalmente somos reconduzidos a um absoluto que não é nem ser físico
nem ser psíquico, no sentido da ciência da natureza” (HUSSERL, 1984,
p. 242). O psicologismo é a identificação sumária do subjetivo ao
psíquico, a confusão apressada da consciência com a alma. Isso pode soar
paradoxal, reconhecerá Husserl, mas é “pensável” uma consciência sem
alma, isto é, um fluxo de vividos onde não se constitui uma alma, onde
os vividos no sentido psicológico não têm apoio nem validade
(HUSSERL, 1950, p. 133). Desde então, o erro fundamental do psicologismo é a realização (Realisierung) da consciência transcendental, e o que
mais importa – dirá Husserl – é reconhecer, contra ele, que “a consciência não é nenhum vivido psíquico, nenhum entrelaçamento de vividos
psíquicos, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado, atividade) em um
objeto natural”5. É esse motivo antipsicologista que levará Husserl a
apresentar os vividos analisados pela fenomenologia como sendo “irrealidades” (Irrealitäten) – e isso, não em virtude da redução eidética, mas sim
por obra e graça da “purificação” transcendental (HUSSERL, 1950, p.
6/7). Frente à realidade, assegura ele, “o subjetivo é uma irrealidade.
Realidade e irrealidade se co-pertencem essencialmente na forma realidade e subjetividade, aquilo que reciprocamente se exclui e, por outro
lado, essencialmente se exige” (HUSSERL, 1952, p. 64)6. Mas, se é assim,
o estatuto e o “modo de ser” do transcendental husserliano parecem
depender do sentido e do alcance dessa caracterização geral do subjetivo
e da subjetividade como “irrealidades”.
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III
Husserl situa por volta de 1908 o momento em que ele superou radicalmente o psicologismo sob sua forma a “mais universal”, chegando, enfim,
a uma diferença nítida entre “a fenomenologia transcendental e a psicologia racional” (HUSSERL, 1975, p. 405). Data deste mesmo período a
introdução, na filosofia, do conceito de “fenômeno” no sentido ôntico da
palavra, um fenômeno que nunca poderia ser visto como parte real (reell)
dos vividos. É claro que não se trata de analisar aqui essa noção tão difícil e debatida de noema, mas apenas de tentar circunscrever a qual
exigência teórica ela vinha preencher, que dificuldade ela deveria
resolver. Se a redução revela, como sublinha Husserl, “uma camada de
subjetivo original”, é porque ela revela “a camada do subjetivo ôntico”
(HUSSERL, 1973b, p. 405). Se existe aqui um “subjetivo original”, é
porque através desse conceito o que se persegue, na verdade, é a dificultosa elaboração de uma noção de fenômeno subjetivo que, todavia, não
tenha mais nada a ver com o “psíquico” da psicologia tradicional. E
exatamente por isso a noção de noema era essencial ao projeto filosófico
do autor, ao dar direito de cidadania a um “fenômeno subjetivo” que, por
princípio, não se confundia mais nem com o “fenômeno físico”, nem
com o “fenômeno psíquico” de Brentano, que por tanto tempo
desviaram a filosofia do bom caminho, condenando-a a sempre perambular no terreno das “realidades”. E já era com esse perfil que a noção
estreava em 1907. Enquanto ciência absolutamente “não objetivante”,
assegura Husserl, para a fenomenologia existe “apenas um ser, o ser dos
fenômenos, e este ser não é nenhum ser real” (HUSSERL, 1984, p. 409).
Ela não trata nem da realidade física nem da realidade psíquica, mas
apenas de “fenômenos” – e os fenômenos no sentido ôntico são significações, uma esfera, garante Husserl, “que reside antes daquela do ser no
sentido dos reais” (HUSSERL, 1984, p. 411). O fenômeno é o meio ideal
pelo qual temos acesso à realidade. O noema, dirá Husserl, não é senão “a
generalização da idéia de significação para o domínio completo dos atos”
(HUSSERL, 1971, p. 89). Desde então, se as significações da linguagem
são idealidades que nunca podem ser vistas como partes reais dos atos,
essa mesma idealidade pertence às significações nos noemas, enquanto
estes são habitados por tais componentes ideais (HUSSERL, 1987b, p.
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217)7. Para escapar das armadilhas do “psicologismo”, é ao modelo da
linguagem que se vai recorrer, como se a fenomenologia, última das
grandes “filosofias da consciência” de nosso tempo, antecipasse o seu
obituário para abrir caminho ao “paradigma da linguagem”.
O vínculo entre o fenômeno no sentido “ôntico” da palavra e o motivo antipsicologista já se atestava nos cursos de 1906-07. Se a fenomenologia não se reportava ali a uma subjetividade individual, mas a uma
subjetividade em geral, compreende-se que seu território não se confunda com aquele da psicologia empírica. Mas por que ele não seria o
mesmo domínio já explorado pela psicologia racional? Essencialmente,
dirá Husserl, porque os atos subjetivos fluentes e temporalmente determinados têm um conteúdo de significação ideal que nunca pode ser visto
como parte real (reell) dos atos (HUSSERL, 1984, p. 169). Por isso, quando Husserl se pergunta ali pelo significado da fenomenologia para a
psicologia, é para reconhecer que ela tem relevância imediata para a
“ciência positiva” apenas enquanto noética ou “fenomenologia dos vividos”, não enquanto “fenomenologia da constituição da objetidade”
(HUSSERL, 1984, p. 240-241). E quando textos posteriores forem
atribuir ao noema algum interesse para a psicologia, tratar-se-á agora de
uma psicologia tão reformada face à tradicional, que não é surpreendente
que, ali no final da Crise das ciências européias, ela termine por perder sua
autonomia para ser pura e simplesmente absorvida pela fenomenologia
transcendental (HUSSERL, 1962, p. 261).
É precisamente por ser a complexa elaboração de uma noção não
psíquica de fenômeno subjetivo que Husserl se preocupará, insistentemente, em sublinhar que o noema não tem nada a ver com a “realidade”.
Através do seu sentido, o fenômeno ôntico se retira da esfera da realidade.
Assim, se é certo que o noético e o noemático estão essencialmente
correlacionados entre si, não é menos certo, dirá Husserl, que eles apontam para duas “regiões de ser” que são “radicalmente opostas”, e que o
noemático é uma “objetidade singular”. Uma objetidade bastante singular, visto que enquanto “os objetos puros e simples (entendidos em sentido não modificado) estão sob gêneros supremos fundamentalmente
distintos, todos os sentidos de objeto e todos os noemas tomados
completamente são por princípio de um único gênero supremo”
(HUSSERL, 1950, p. 314). Por isso, sempre se deve frisar a diferença entre
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noese e noema, tão contrária, dirá Husserl, aos “hábitos de pensamento
psicologistas” (HUSSERL, 1950, p. 263). Afinal, se poderia haver “bom
fundamento” para se caracterizar o lado noético dos vividos como sendo
“psíquico” (HUSSERL, 1950, p. 210), o seu lado noemático não se refere
mais a qualquer “realidade” que se escandiria em diferentes gêneros,
como o “físico” e o “psíquico”. Por isso Husserl sublinhará o “abismo”
existente entre o objeto “puro e simples”, a coisa da natureza, e o “sentido” da percepção desse objeto. Se a árvore “pura e simples” pode queimar
ou dissolver-se em seus elementos químicos, o “sentido” da percepção
dessa árvore “não pode queimar, ele não tem nenhum elemento químico, nenhuma força, nenhuma propriedade real” (HUSSERL, 1950, p.
222).Afinal, o “percebido enquanto tal” não é a coisa “pura e simples”, tal
como esta surge para a consciência situada na atitude natural, sempre cega
para os modos subjetivos de doação dos objetos. O “percebido enquanto
tal”, oriundo da redução fenomenológica, é a unidade sintética de seus
modos de doação, ele é uma “unidade fenomenal de elementos subjetivos” (HUSSERL, 1968a, p. 176). O noema não designa a realidade mas
o fenômeno, quer dizer, o modo como o real torna-se consciente
(HUSSERL, 1950, p. 245). Por isso Husserl dirá que, em regime de
redução, a exclusão do mundo,“do todo das efetividades reais, significa a
inclusão do todo das irrealidades, ao qual co-pertencem todos os correlatos intencionais” (HUSSERL, 1987b, p. 219). Este fenômeno não é
nada de psíquico, visto que aquilo que é próprio aos vividos reduzidos “é
separado – diz ele – de toda natureza e de toda física, e não menos de
toda psicologia, através de um abismo”, e que “mesmo essa imagem,
enquanto naturalista, não é suficientemente forte para indicar a diferença” (HUSSERL, 1950, p. 222).
Mas qual o sentido de dirigir-se à linguagem para elaborar a noção de
“fenômeno subjetivo”, e o que garante ao empreendimento a certeza de
que ele livra este “fenômeno” de toda e qualquer contaminação pelo
“psíquico”? O projeto não teria cabimento no âmbito da doutrina da
significação elaborada nas Investigações lógicas. Afinal, se ali Husserl já
combatia a identificação “psicologista” das significações da linguagem a
imagens ou representações de uma consciência (HUSSERL, 1968b, p.
61-63), resta que em 1901 ele ainda identificava a “idealidade” das significações àquela da “espécie” ou essência do ato de significar (HUSSERL,
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
49
1968b, p. 100). O que inevitavelmente transformava a significação na
essência de um fato psíquico. Mas será diferente quando Husserl reconhecer que a significação não se reporta a atos, a nada de específico nos
atos, mas é algo de objetivo, o correlato do ato de significar (HUSSERL,
1987a, p. 35), o que isolará a significação “ôntica” do domínio psíquico.
Recorrer à linguagem para compreender o que é um fenômeno subjetivo só é estranho para quem identifica, apressadamente, o subjetivo ao
interior, ao psíquico, quer dizer, para quem permanece preso à atitude
natural, com sua oposição entre “mundo” e “representação”. O fenômeno
subjetivo não é o interior, mas sim o modo de doação parcial e variável
dos objetos, e por isso mesmo o subjetivo assim compreendido é anterior
à partilha usual entre consciência e linguagem, e reina soberano nessas
duas esferas que se supõe opostas.Afinal, não estamos em situações essencialmente diferentes quando reconhecemos que um objeto só pode ser
dado à percepção segundo perspectivas parciais e variáveis, ou quando
verificamos que, através da linguagem, só podemos nos referir a determinada pessoa como sendo ou o vencedor de Iena ou o vencido de Waterloo,
ou através de qualquer outra significação, que sempre nos apresentará o
objeto em um como parcial e variável (HUSSERL, 1987a, p. 41). Donde a
certeza de Husserl, expressa na Krisis, de que toda a tradição da filosofia
moderna foi cega para o verdadeiro significado do “subjetivo”, precisamente por contentar-se em localizá-lo na interioridade do sujeito
psicológico, calando-se sobre idéia de “modo subjetivo de doação”8. Mais
ainda, no plano da análise fenomenológica estática, o mesmo princípio
que torna necessária a fenomenalização da experiência para a consciência, faz com que seja inevitável a multiplicação indefinida das significações
com as quais nós nos reportamos ao mundo através da linguagem. Como
não existe objeto absolutamente simples a ser expresso pela linguagem ou
dado a uma intuição, visto que todo objeto estabelece relações com os
demais, relações que são constitutivas de cada objeto, é inevitável a multiplicação indefinida ou mesmo infinita de seus modos de doação9. Por isso
Husserl caracterizará a significação como um objeto categorial, aquilo
que exprime algo em um como determinado e variável, segundo tal ou tal
relação (HUSSERL, 1987a, p. 45). É a significação assim compreendida
que será generalizada para o domínio completo dos atos, atribuindo um
componente “lógico” ao domínio dos fenômenos subjetivos.
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
50
Mas será que essa tentativa de afastar o fenômeno subjetivo do
“psíquico”, assimilando-o às significações da linguagem, não encontraria
um limite bem preciso e bastante decisivo? Vá lá que tanto as significações quanto o fenômeno no sentido “ôntico” da palavra não sejam
nada de “interior” a uma consciência, no uso natural e psicológico do
termo. Mas resta que Husserl sempre protestou contra a assimilação
“psicologista” das significações da linguagem a “representações” privadas
de uma consciência, precisamente para preservar o seu caráter essencialmente público. Os fenômenos subjetivos, sendo a apresentação variável
do objeto a uma consciência, não seriam inevitavelmente um assunto
privado? Por um lado, não faltam textos que possam levantar essa suspeita. Afinal, quando Husserl descrevia o “modo de ser” do noema ali no
primeiro livro de Idéias, era para apresentá-lo como um objeto completamente “dependente”, cujo esse consiste exclusivamente em seu percipi
(HUSSERL, 1950, p. 246). Mais ainda, em um texto de 1912 ele afirma
que, se o mundo circundante é o mesmo para distintos egos, as multiplicidades de fenômenos em que se constitui uma coisa real são diferentes
para cada um deles (HUSSERL, 1971, p. 109-110). O que significa pura
e simplesmente decretar que os fenômenos são estritamente privados,
nunca intersubjetivos.
Mas, sob esse ponto preciso, Husserl fará a sua autocrítica em diversos
textos dos anos 1915 a 1921, textos em que ele atribui aos fenômenos
“uma espécie de objetividade” (eine Art Objektivität) (HUSSERL, 1973b,
p. 285). Se, do ponto de vista da “objetividade da natureza”, os fenômenos
são sempre “fenômenos puramente subjetivos”, Husserl insistirá agora na
necessidade de se reconhecer, todavia, que cada um dos fenômenos tem
sua existência (Dasein) e o seu “ser em si”, enquanto membros de um
sistema que congrega a totalidade dos fenômenos possíveis, que são
apenas “atualizados” nesta percepção singular que é a minha ou a de
outrem.Assim, se é evidente que a experiência de outrem não é a minha,
todavia ele tem acesso aos mesmos fenômenos que pertencem ao meu
sistema de fenômenos, assim como eu terei acesso aos seus fenômenos,
quando ocupar o seu mesmo lugar, quando eu me situar no interior do
mesmo sistema de relações em que atualmente ele se instala
(HUSSERL,1987b, p. 87)10. Afinal, se o objeto é uma idéia situada no
infinito, ele pode atualizar-se em uma percepção que é apenas uma das
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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atualizações possíveis dessa idéia. E é só assim – dirá Husserl – que se
compreende como aquilo que é atualizado por um sujeito pode ser atualizado por um outro como sendo o mesmo. Esses sujeitos reportam-se não
apenas à mesma natureza, garante Husserl, mas também ao mesmo
sistema de “fenômenos perspectivos” (HUSSERL, 1973b, p. 287). Assim,
se toda percepção está individuada por seu lugar na temporalidade
imanente, na verdade ela torna efetivo (verwirklicht) algo que existe “em
si”. Se cada percepção tem seu “sentido” individual, este sentido é algo de
ideal e por isso mesmo duas percepções que coincidem têm idêntico
sentido e idêntico objeto, apesar de sua separação real (reell). Por isso,
ninguém deve dizer que a série de fenômenos que eu atribuo a outrem
seja uma segunda série face à minha. Ela é a mesma série, que eventualmente eu poderia ter, a percepção de outrem torna efetivos os mesmos
modos de manifestação (Erscheinungsweisen) de objetos que estão aí para
mim, mas que atualmente eu não torno efetivos (HUSSERL, 1973b, p.
288). Logo, se todo fenômeno é membro de um circuito aberto e sem
fim de fenômenos, apenas não explicitamente efetivados, então – dirá
Husserl – é preciso reconhecer que “a subjetividade desses fenômenos é
a intersubjetividade aberta” (HUSSERL, 1973b, p. 289). Donde a
correção essencial que, em 1917, Husserl fará à doutrina exposta no
primeiro livro de Idéias: no caso dos objetos transcendentes, não se deve
mais afirmar que seu esse se reduz ao seu percipi (HUSSERL, 2001, p. 192)
E se é assim, o fenômeno subjetivo que se quer circunscrever com o
noema só poderá ser mesmo uma irrealidade, algo que pode se efetivar
em diferentes subjetividades, e que por princípio não é nada de psíquico.
Efetivamente, a exposição do mundo não está, ela mesma, no mundo, essa
exposição não pertence ao domínio da “realidade”.11
Quando Husserl contrasta o “modo de ser” das realidades àquele das
irrealidades, ele o faz em termos estritamente temporais. Uma realidade,
como uma coisa natural, tem sua duração no tempo objetivo e é individuada por seu lugar nesse tempo. Um objeto imanente, como uma
sensação ou um ato, se desdobra na temporalidade imanente à consciência, onde ele tem sua duração e uma individuação temporal. Os irreais, ao
contrário, não têm como forma de sua existência nem o tempo objetivo
nem o tempo imanente, eles não estão em qualquer tempo. Assim, um
irreal não tem situação temporal, não tem duração temporal, ele não é
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individuado em um ponto do tempo, ele está em todas as partes e em
parte alguma (HUSSERL, 1954, p. 313). E se o irreal pode se apresentar
em atos individuais que estão em algum lugar temporal, essa ligação
secundária com o tempo não o torna temporal. Ele só se encontra no
tempo de maneira contingente, a duração não pertence à sua essência, ele
permanece o mesmo que pode se encontrar em não importa qual tempo
(HUSSERL, 1954, p. 314). E Husserl não deixará de frisar que o “experimentado enquanto noema não é momento do ato, passando com este,
mas o idêntico de atos renovados e livremente renováveis...”, ele é “um
supratemporal” e apenas referido a uma “temporalidade”12.Assim, há um
logos fenomenal à disposição dos sujeitos dessa comunidade fenomenológica, pronto para ser atualizado a cada percepção singular, assim
como as significações supratemporais da linguagem estão disponíveis para
nós, para serem “atualizadas” a cada ato concreto de fala. E por isso a
fenomenologia, disciplina cuja biografia já foi tão associada ao “subjetivismo”, na verdade orientou-se progressivamente em direção a uma
filosofia do espírito “objetivo”13.
IV
Qual será o rosto do “transcendental” husserliano, quando se procura
desenhar sua silhueta a partir da oposição entre “realidade” e “irrealidade”? Se o fenômeno no sentido “ôntico” da palavra pode ser apresentado como um “irreal”, assim como as significações da linguagem, resta
que ele é o correlato de um jogo entre sensações e noeses que, estas, se
desdobram na temporalidade imanente à consciência, têm ali o seu lugar
temporal e a sua individuação. Logo, não é neste plano que se torna
“pensável” uma consciência sem alma, um fluxo em que os vividos, no
sentido psicológico da palavra, não têm apoio nem validade. E não era
uma ambigüidade menor do primeiro livro de Idéias prometer delinear
ali a região do “absoluto transcendental”, mesmo confessando deixar fora
de consideração o absoluto “último” e “verdadeiro”, situado na consciência constituinte do tempo (HUSSERL, 1950, p. 198). Mas Husserl faz um
uso funcional de muitos de seus conceitos, o que lhe permitirá discernir,
por exemplo, vários estratos do “subjetivo” (HUSSERL, 1962, pp. 182doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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183). Ele também distinguirá entre duas camadas do transcendental, uma
“superficial” e outra “profunda”. Se a primeira está situada na temporalidade imanente, a camada “profunda” não está nem no tempo objetivo,
nem no tempo fenomenológico (HUSSERL, 2001, p. 184). E sabe-se
que Husserl apresentará a consciência absoluta constituinte do tempo
como sendo, ela mesma,“sem tempo” (HUSSERL, 1966, p. 112). Donde
a sua insistência em sublinhar que ninguém pode aplicar aos fenômenos
constituintes últimos os predicados temporais do constituído. Não tem
cabimento afirmar desses fenômenos da subjetividade absoluta que eles
estariam no “agora”, que eles teriam sido “antes” ou serão “depois”, não
podemos dizer que eles se sucedem temporalmente ou são simultâneos
entre si (HUSSERL, 1966, p. 75). Assim, a consciência do “agora” não
está, ela mesma, no agora; a retenção que está junto à consciência do
agora não é “simultânea” ao agora, visto que “simultaneidade” é predicado de objeto já constituído, de objeto individual no tempo. Por isso, se
posso dizer que uma recordação é “simultânea” a alguma outra coisa, é
porque ela já é um ato da consciência, um objeto imanente que se desdobra no tempo fenomenológico. Mas a retenção não é a recordação, ela
não é nada de situado no tempo imanente, ela é um evento da consciência constituinte do tempo e, enquanto tal, ela é intemporal (HUSSERL,
1966, p. 334). É aqui que estará o domínio dos vividos absolutos que, por
serem pré-temporais, não têm mais qualquer semelhança, nem mesmo
remota, com o “anímico” ou “psíquico”. Por esse viés, novamente, a
subjetividade transcendental não pode mais ser vista como “parte” do
mundo, físico ou psíquico, afastando-se radicalmente da esfera das “realidades”. Esse resultado é uma conseqüência inevitável da lógica que
comanda a doutrina husserliana, que em todos os níveis da “constituição”
sempre parte da identidade dos objetos para regredir às multiplicidades
constitutivas. O fluxo da consciência constituinte do tempo é a multiplicidade última à qual se chega no percurso regressivo. Ela é uma pura
multiplicidade, um puro fluir onde não existe mais nenhuma identidade.
E se é assim, os eventos dessa consciência absoluta são o “subjetivo” no
sentido o mais alto da palavra, eles são os fenômenos no sentido absoluto, os vividos antes de toda e qualquer objetivação, aquilo que é anterior
à esfera dos objetos imanentes situados no tempo fenomenológico.
Assim, não é surpreendente que a análise fenomenológica genética locadoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
54
lize a fenomenalização originária da experiência neste domínio do absoluto, no momento em que um “agora” é empurrado para o passado por
um novo presente, mas também “retido” na impressão do novo “agora”,
que conserva consigo o “perfil” (Abschattung) do momento que se escoou
(HUSSERL, 1966, p. 81). Sendo assim, é entre a retenção e o objeto
temporal imanente que se instalam a cisão e a união originárias entre o
fenômeno e o objeto, entre o subjetivo e o objetivo, entre o transcendental e o mundano, entre o intemporal e o temporal, entre o irreal e o
real, a cisão e a união originárias entre aquilo que reciprocamente se
exclui e, por outro lado, essencialmente se exige14.
Mas Husserl não hesitou quanto a essa caracterização da consciência
“absoluta” como um fluxo “não temporal” de vividos? É certo que, ao
lado da série de textos que decretam a intemporalidade da subjetividade
última, existe toda uma outra série, em que se descreve esse fluxo como
sendo uma ordenação unidimensional “quase-temporal”, ou que tem
como sua “forma” uma temporalidade “pré-fenomenal” ou “pré-imanente” (HUSSERL, 1966, p. 380-381).Assim como Husserl também afirmará que o transcendental da “primeira camada”, o tempo fenomenal, é
possível apenas graças a um “tempo transcendental”, situado no transcendental da “segunda camada”15. Mas resta que essa indecisão doutrinal
relativa à “forma” do ser absoluto não altera em nada aquela que é, no
fundo, a tese husserliana fundamental: quer essa subjetividade última seja
caracterizada como intemporal, quer ela tenha como sua forma uma
outra temporalidade, em qualquer um dos casos será preciso reconhecer
que na região do “absoluto” não pode haver lugar para qualquer duração
– e este é o ponto principal.Afinal,“duração” é a forma de algo que dura,
de um ser duradouro, de uma identidade na série temporal que opera
como sua duração (HUSSERL, 1966, p. 113). Mas a subjetividade absoluta é o domínio das últimas multiplicidades, em que não há mais qualquer identidade, apenas um perpétuo fluir. Neste domínio dos vividos
anteriores a toda objetivação há um puro vir-a-ser (Werden), uma
mudança contínua, enquanto a duração supõe algo de permanente, algo
que perdure sob a mudança. Ali onde a consciência não opera sínteses e
não põe na duração a identidade de algo que dura, não existe nenhuma
duração, apenas um vir-a-ser, um perpétuo fluir (HUSSERL, 1966, p.
296). Desde então, se os fenômenos constituintes do tempo são outro
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
55
tipo de “objetidades” que aquelas constituídas no tempo, é essencialmente
porque eles não são realidades, não são individuados por qualquer lugar
temporal, eles não são objetos individuais nem processos individuais
(HUSSERL, 1966, p. 75).
O ego pré-monádico ao qual a fenomenologia chega através da “última redução”, enquanto ele é o polo idêntico para todas as séries temporais, só poderá ser “supra” temporal (HUSSERL, 2001, p. 277). Donde o
contraste sistemático que Husserl fará entre a mônada e o ego originário.
Se toda mônada tem nascimento e desenvolvimento, uma história, se ela
é uma unidade constituída em um tempo monádico de um mundo
monádico, o ego absoluto é intemporal, ele é o suporte (Träger) de toda
temporalização. Desde então, se em relação ao sujeito humano a mônada
é o transcendental, será preciso reconhecer que o ego absoluto é transcendental em um “segundo sentido” (HUSSERL, 1973c p. 439 e p. 587).
Por isso Husserl não deixará de sublinhar que, enquanto nós falamos em
“presente” e “passado”, enquanto permanecemos no plano das modalidades temporais, ainda não chegamos ao domínio do “transcendental
último” (HUSSERL, 1973c, p. 584). O ego absoluto não começa e passa
como um vivido, ele não pode nascer ou perecer como o homem natural, ele é um eu “permanente e constante” (stehendes und bleibendes), sem
qualquer extensão temporal, um eu “eterno” (HUSSERL, 2001, p. 286;
1973b, p. 157). Por isso, quando Husserl afirma que este ego tem uma
vida “originariamente presente”, ele não deixa de relembrar que este
“presente originário” (Urgegenwart) não é nenhuma “modalidade temporal” (HUSSERL, 1973c, p. 668), mas antes um presente eterno de onde se
assiste à constituição do presente, do passado e do futuro enquanto
modalidades temporais. Assim, se todos os entes são ligados a um lugar
temporal que os individua, então – dirá Husserl – o ego absoluto não é
um ente (Seiende), mas a contrapartida de todo ente, ele não é objeto, mas
o lugar originário (Urstand) de toda objetidade e, se este ego é um indivíduo, ele não é nada de real, mas um indivíduo “omnitemporal”
(HUSSERL, 2001, p. 277 e p. 286). Sendo assim, se o ego monádico pode
relacionar-se a outros egos, é erroneamente que chamamos o ego absoluto de “eu”, visto que diante dele um “alter ego” não tem sequer sentido (HUSSERL, 1973c, p. 586). Propriamente falando, dirá Husserl, esse
eu nem deveria chamar-se “eu”, aliás, ele não deveria chamar-se nada,
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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visto que qualquer nominação o torna objeto, quando ele é necessariamente sujeito absoluto, aquilo que nunca pode ser diretamente objeto, e
por isso mesmo permanecerá sempre anônimo. Ele é o sem nome
(Namenlose) acima de todo apreensível, acima de todo não permanente
(HUSSERL, 2001, p. 278). Desde então, nenhuma surpresa se Husserl for
caracterizar este ego último como um “ideal idêntico”. O ego operante
(fungierende), enquanto presente permanente, só poderá ter o “modo de
ser” daquilo que está em todas as partes e em parte alguma, o “modo de
ser” de um “irreal” (HUSSERL, 2001, p. 280; cf. HELD, 1966, 124). E se
através da monadização o ego absoluto se auto-explicita em uma multiplicidade monádica (HUSSERL, 1973c, p. 589), se por meio de seus atos
este ego adquire uma localização temporal, isso não o torna efetivamente
temporal (HUSSERL, 2001, p. 280), assim como as significações da
linguagem se relacionam com o tempo ao se encarnarem nos signos físicos, sem por isso se tornarem, elas mesmas, temporais. Este ego absoluto
será o sujeito último não apenas de todos os vividos, mas também daquilo que está “onticamente incluído nos vividos” (HUSSERL, 2001, p.
277), quer dizer, este ego será o sujeito último não só de todas as séries
temporais como também daquele logos fenomenal que possui uma “espécie de objetividade” e que é “atualizado” a cada percepção singular.
Se é assim, qual será o “modo de ser” da subjetividade transcendental,
quando a avaliamos a partir da oposição husserliana entre realidade e irrealidade? O resultado a que se chegou é, na verdade, um híbrido. Como
“irrealidades”, temos apenas a primeira e a última multiplicidade, a multiplicidade noemática e supratemporal de que se partiu e a multiplicidade
pré-temporal da consciência constituinte do tempo, a subjetividade absoluta com seu ego puro e “eterno”. É aqui que estamos em domínios que
não se confundem com a alma ou a psique. Mas resta que aquelas multiplicidades são mediadas pela região da consciência no sentido noético,
domínio de sensações e atos que se desdobram na temporalidade
imanente, têm ali o seu lugar temporal e sua individuação e são, por isso
mesmo, “realidades”. Pelo uso funcional que Husserl faz de seus
conceitos, essa esfera noética é aquela do transcendental da “primeira
camada” ou “superficial”. Mas esse mesmo uso funcional permite dizer
que este transcendental da “primeira camada” é, na verdade, a primeira
“mundanização”, a primeira objetivação da “psique”, mesmo que esta
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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psique ainda não seja ligada a um corpo, ainda não se tenha tornado
“empírica”. Afinal, para o próprio Husserl aquilo que experimenta a
“objetivação empírico-psicológica não é a consciência absoluta, mas sim
percepções, recordações, expectativas” (HUSSERL, 1984, p. 421), quer
dizer, o estrato noético da consciência. E não faltam textos em que ele
reconhecerá que os fenômenos noéticos, individuados na temporalidade
imanente, são processos “psíquicos” (HUSSERL, 1929, p. 148; 1950, p.
210). E se é assim, a questão da identidade e da diferença entre o transcendental e o psicológico na verdade se interioriza na própria subjetividade transcendental, e se apresenta bem antes do problema clássico de se
saber como essa subjetividade, que está “fora” do mundo, se “apercebe”
como “parte” do mundo.
O que destinava a fenomenologia, mesmo partindo da exigência
teórica de uma subjetividade transcendental que só poderia ser uma
“irrealidade”, a assentar-se, na prática, naquele transcendental híbrido ao
qual Husserl chegava, misto de realidade e de irrealidade, de psíquico e de
não psíquico? Salvo melhor juízo, aparentemente existem razões históricas na origem desse desfecho. Este resultado parece ser a conseqüência
final dos impasses a que é levado um projeto fundacionista, seja da aritmética e da lógica, seja da possibilidade do conhecimento em geral, que
começa a desdobrar-se no interior de uma filosofia da consciência cuja
certidão de nascimento é empirista, com registro na Psicologia do ponto de
vista empírico de Brentano. Nas suas Lições de 1906-07 Husserl frisava que,
para se chegar à fenomenologia e à teoria do conhecimento, o “ponto de
partida metódico conforme à natureza” é a “psicologia”, a “consciência
natural” (HUSSERL, 1984, p. 212). Mas como compatibilizar um projeto fundacionista radical com esse modelo de consciência? A fenomenologia procura solucionar as evidentes dificuldades do empreendimento através de sucessivas “purificações” de seu “ponto de partida”, mas sem
abandoná-lo jamais. Redução “eidética” para se superar o psicologismo
lógico, redução “transcendental” para se superar o psicologismo sob sua
forma “a mais essencial”, mas sem nunca renunciar, efetivamente, ao
domínio dos “fenômenos psíquicos” dos quais se partira. São eles que
permanecem na cena filosófica husserliana como a região da noética, a
camada de realidade interposta entre as irrealidades. Era o seu ponto de
partida que condenava a fenomenologia a trabalhar com uma subjetividoispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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dade que, na verdade, segundo os seus próprios critérios, só poderia ser
um “duplo” mundano-transcendental, e por isso mesmo já era o seu
ponto de partida que a destinava a desdobrar-se em uma “explicação”
infindável sobre a identidade e a diferença entre o “psicológico” e o
“transcendental”.
1 Carta de Heidegger a Husserl ,de 22 de outubro de 1927(in HUSSERL, 1968a, p. 602).
2 Cf Husserl, 1973a, p. 117: “Querer apreender o universo do ser verdadeiro como algo que
está fora do universo da consciência possível, do conhecimento possível, da evidência possível,
ambos relacionados um ao outro de maneira puramente exterior, através de uma lei fixa, é
absurdo. Essencialmente ambos se co-pertencem, e essencialmente aquilo que se co-pertence
também é concretamente um, um na única concreção absoluta da subjetividade transcendental. Se ela é o universo do sentido possível, então um exterior a ela é um não senso”.
3 Uma “solução” já sugerida por Ingarden, mesmo reconhecendo que Husserl a consideraria
inaceitável. Cf. INGARDEN, R., observações críticas às Meditações Cartesianas, in HUSSERL,
1973a,. 214.
4 Cf. BRENTANO, 1944, p. 92: “O mundo inteiro de nossos fenômenos se divide em duas
grandes classes, a classe dos fenômenos físicos e aquela dos fenômenos psíquicos”.
5 HUSSERL, Manuscrito A I 36, p. 193 a (1920), apud KERN, 1964, 235.
6 Cf. Ibid, p. 325: “O reino da natureza é o reino do ‘fenomenal’, isso significa aqui: das
unidades reais (realen) que se constituem na ou por meio da exposição; o reino do espírito é
o reino das realidades (Realitäten)... dadas através de manifestação absoluta, aquelas que têm
atrás de si apenas o eu puro como irreal (irrealen), suporte absoluto de toda manifestação de
realidade (Realität)”.
7 Esse “sentido” será essencial ao noema, e por isso Husserl dirá que se o noema completo
envolve não só o sentido, mas também outros caracteres e a sua plenitude intuitiva, resta que
esse sentido é a “camada nuclear” em que se fundam todos os demais momentos. Cf
HUSSERL, 1950, p. 223.
8 Cf HUSSERL, 1962, p. 168: “Nunca (quer dizer, nunca antes da primeira abertura da
‘fenomenologia transcendental’ nas ‘Investigações lógicas’) a correlação do mundo (do
mundo do qual nós sempre falamos) e dos seus modos subjetivos de doação tinha provocado o espanto filosófico, se bem que ele já se tivesse feito sentir na filosofia pré-socrática e na
sofística, mas somente como motivo de uma argumentação cética. Jamais essa correlação
despertou um interesse filosófico próprio, que tivesse feito dela o tema de uma cientificidade própria”.
9 Cf. HUSSERL, 1968b, p. 50: “Assim, diferentes significações podem pertencer à mesma
intuição (mas categorialmente apreendida de modo diferente) e com isso ao mesmo objeto”.
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril, 2006
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10 Cf. HUSSERL, 1987b, p. 87:“Os fenômenos, enquanto fenômenos da consciência corres-
pondente... são certamente algo e têm sua existência (Existenz)”
11 Seguindo uma interpretação inaugurada por Fink, De Boer vê nessa série de oposições
entre o noema e a “realidade”, estabelecidas por Husserl desde o primeiro livro de Idéias,
uma nítida recaída no psicologismo (cf . DE BOER, 1978, pp. 425 a 429). O verdadeiro
noema transcendental precisaria ser idêntico ao real e, ao fazer essa série de distinções,
Husserl escorregaria para uma versão psicológica do noema, que seria agora algo de psíquico
que “representaria” o real na consciência. Os textos de Husserl não dão qualquer caução a
essa interpretação. Eles afastam enfaticamente o noema da região do “psíquico” e lhe
atribuem “algo de lógico”. O noema não designa a realidade, mas o fenômeno, o modo
como o real torna-se consciente. E a exposição (Darstellung) do objeto no fenômeno não é
de forma alguma uma “representação”, severamente criticada por Husserl nessas páginas.
12 HUSSERL, Manuscrito A VI 30, pp. 39 a/b e 40 a (entre 1918 e 1921), apud MARBACH,
1974, 318.
13 Rudolf Bernet, em seu artigo sobre “O conceito de noema” (in BERNET, 1994. pp. 65 a
92), declara guerra aberta aos textos de Husserl ao afirmar, sem declinar qualquer razão, que
“há pouco sentido” em se determinar o noema como “algo de idêntico e de supra temporal”(pp. 71/2). Afirmando dogmaticamente essa tese, o autor considera então “como adquirido” que o correlato noemático de um ato “é individualizado temporalmente, exatamente
como o próprio ato” (p. 72). Bernet sublinha a “não independência” do noema, afirmada no
primeiro livro de Idéias, mas omite ou corrige todos os textos em que Husserl apresenta o
noema como a generalização da idéia de significação para o domínio completo dos atos, e lhe
atribui um componente “lógico”. Assim como omite os textos em que Husserl desfaz a
equivalência entre esse e percipi no domínio dos transcendentes, bem como aqueles que
conferem ao fenômeno no sentido ôntico uma espécie de “objetividade”. O resultado desta
hermenêutica em que sistematicamente se omite ou se corrige os textos não se faz esperar: o
noema é contrabandeado para a região do psíquico, visto que o autor o situará na “esfera do
mental” (p. 75). Pior ainda, a fenomenologia assim emendada reata com a doutrina clássica da
representação, expressamente criticada por Husserl: o noema será apresentado por Bernet
como “representante mental da coisa real” (p. 75).
14 Cf. HUSSERL, 1984, p. 430:“Finalmente chegamos à consciência do tempo como à últi-
ma. Entre ela e o objeto posto e legitimamente posto no conhecimento há uma série de objetos ‘ideais’, nós poderíamos dizer de significações no sentido amplo e de fenômenos”.
15 Cf. HUSSERL, 2001, 29.Além da indecisão quanto às teses filosóficas, característica desses
“manuscritos de pesquisa”, Husserl também vacila ali quanto à terminologia. Assim, à p. 184
a expressão “tempo transcendental” será empregada para designar o “tempo fenomenológico”, ou o transcendental da “primeira camada”.
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