Beccaria e os Direitos Humanos
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Beccaria e os Direitos Humanos
Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 1 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. LÍVIO SILVA Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 1ª Edição Recife Livio Paulino Francisco da Silva 2013 2 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Direitos Autorais Reservados Livio Paulino Francisco da Silva Copyright © 2013 By Lívio Silva 1ª Edição © 2013 www.escrevologoreflito.wordpress.com [email protected] Ilustração da capa por Emerson Fialho www.emersonfialhoartblog.blogspot.com ADVERTÊNCIA O autor da presente obra, único detentor de seus direitos morais e patrimoniais, autoriza apenas o uso pessoal e privado, vedados o uso comercial, a reprodução não autorizada e a distribuição sob qualquer aspecto, ressalvadas as hipóteses de limitação aos direitos autorais previstas no Art. 46 da Lei 9.610/98, sem prejuízo dos demais dispositivos legais de proteção aos direitos autorais. ________________________________________________________ S586b Silva, Lívio. Beccaria e os direitos humanos: dos delitos e das penas no ordenamento jurídico brasileiro. / Lívio Silva. - Recife: Livio Paulino Francisco da Silva, 2013. ISBN 978-85-916666-0-7 1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. Criminologia I. Título. CDD 345.81 ________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. Criminologia CDD 345.81 3 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. SUMÁRIO Apresentação 06 Capítulo I - Uma nova era no Direito Penal 09 Capítulo II - Origem das penas, direito de punir e interpretação das leis 15 Capítulo III - Da Obscuridade das Leis: Idade das Trevas do Direito Penal 30 Capítulo IV - Da Moderação das Penas 40 Capítulo V - Que as Penas Devem ser Proporcionais aos Delitos 57 Capítulo VI - Da Prevenção dos Crimes 65 Capítulo VII - Beccaria Conclui 73 Considerações Finais 77 4 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Dedico este meu primeiro livro na área jurídica a todos aqueles humanos que algum dia na face da Terra sofreram com a tirania dos poderosos. Eu sei muito bem o que é sentir na pele a mão pesada da injustiça que oprime o ser humano e dilacera sua alma. Contudo, mesmo diante desse poder esmagador, nunca pensei em desistir de mim, pois assim estaria exatamente agradando meus perseguidores... 5 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. APRESENTAÇÃO Nenhum outro pensador da área criminal foi tão importante quanto Cesare Beccaria para a humanização das Ciências Penais. Sua obra máxima, Dos Delitos e das Penas 1, que será humildemente comentada e comparada na presente obra, influenciou decisivamente o Direito Penal moderno. Filho de um aristocrata milanês, o Marquês de Beccaria, nascido em Milão a 15 de março de 1738, mesmo sem gostar da experiência, foi educado por jesuítas desde os oito anos de idade. Após concluir seus estudos formais, retornou a sua cidade natal entrando em contato com o Iluminismo, influenciando-se definitivamente pelos ideais de liberdade espalhados por toda a Europa. Ajudou a divulgar os princípios da nova filosofia, sendo um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão, além de fazer parte da redação do jornal Il Caffè, que apareceu de 1764 a 1765. Recheado de ideais iluministas, Beccaria começou a se preocupar com as arbitrariedades praticadas na atuação da justiça de sua época, empreendendo um estudo crítico das leis penais vigentes, culminando na publicação, em 1764, do livro: Dos Delitos e das Penas, livro considerado por muitos como um marco inicial do Direito Penal moderno, dada sua influência na formulação do mesmo. Através de uma apresentação sistemática, apontou as práticas desumanas na aplicação das penas em seu tempo, discorrendo em seu texto de fácil leitura sobre a necessidade urgente de mudanças no regime penal da época. O sucesso de seu livro foi extraordinário e foi logo traduzido para o francês, além de seguidas traduções ao redor do mundo, enquanto Beccaria era saudado pelos grandes pensadores de sua época, sendo alvo das mais vivas demonstrações de simpatia quando de sua visita a Paris, em 1766. Em 1768 ocupou a cátedra de Economia no Colégio Palatino de Milão, onde lecionou por dois anos. Adquiriu grande reputação como um pioneiro na análise econômica, tendo feito parte inclusive, a partir de 1771 do conselho econômico supremo de Milão, continuando funcionário pelo resto de sua vida. No campo da Economia, sua 1 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000. 6 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. obra mais importante foi Elementi di Economia Pubblica, baseada em suas aulas, editada em 1804, após sua morte, que ocorreu na cidade de Milão, em 1794. Beccaria viveu durante os momentos finais da Idade Moderna, contemporâneos à Revolução Francesa. Tal época consistiu em um período de transição entre o sistema feudal e o capitalista, guardando alguns resquícios do primeiro e apresentando algumas características que direcionariam a humanidade para o surgimento do atual sistema econômico. Era uma época onde imperava o Absolutismo, regime político autoritário, resultante da aliança entre o rei e a burguesia em ascensão, onde o crescimento econômico proporcionado pelas práticas mercantilistas criou a necessidade da centralização política, favorecendo a criação de medidas protecionistas que garantissem a expansão das atividades comerciais. A consequência imediata da adoção desse regime político foi o enfraquecimento gradual do poder da igreja, já que a intervenção da mesma na política limitava a expansão comercial. O mundo ocidental começou a vislumbrar uma circulação grande de riquezas e dividi-las com a Igreja não era interesse dos burgueses em ascensão, que achavam melhor equipar os monarcas com exércitos mercenários a fim de garantir a independência política dos “Estados” em formação. Com isso, todo o controle das finanças, dos exércitos, agora nacionais, bem como da Justiça e da Atividade Legislativa passou para as mãos do Monarca, detentor da Autoridade Absoluta em seu território. Apesar de ser um período de grande evolução do conhecimento, em confronto com a estagnação da Idade Média, a era do “Capitalismo Comercial” apresentou quase nenhuma mudança no Direito Penal, já que a origem do “Poder de Punir” continuou divina, mudando apenas o “Representante Terreno” desse poder, mantendo-se o caráter cruel e desumano dos castigos aplicados. A Itália, reduto da Igreja Católica, foi uma das últimas nações da Europa unificadas pelo Absolutismo. Durante a Idade Moderna a Península Itálica era ocupada por cidadesEstado, centros mercantis dominados por pequenas nobrezas. Tais principados, ao contrário do resto da Europa, produziram uma espécie de “Microabsolutismo” onde as famílias que as dominavam exerciam poder de forma ilimitada. A Itália de Beccaria era marcada por uma verdadeira tirania medieval praticada pelas famílias que controlavam os principados. Apesar de apresentar desenvolvimento econômico proporcionado pelo Mercantilismo, as cidades-Estado ainda apresentavam resquícios do Feudalismo, sendo 7 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. influenciadas pelo poder político da “Igreja”, confundindo delito com pecado na aplicação das penas, executando-as de modo completamente desproporcional e ocasionando episódios funestos de pura vingança e manifestação de brutalidade. Foi de encontro a esse arbítrio sem fim que Beccaria manifestou sua crítica sistemática e consistente ao “Antigo Regime”, elaborando um texto muito à frente de seu tempo, influenciando gerações de pensadores e mantendo-se ainda atual. A importância de seu livro (Dos Delitos e das Penas) supera sua época, chegando até o Brasil atual, fazendo parte de nosso Ordenamento Jurídico, tanto nos Direitos e Garantias Fundamentais, bem como no Direito Penal e Processual Penal. A presente obra é direcionada não apenas aos operadores de Direito na sua acepção mais restrita, mas também a toda a sociedade brasileira, para que conheçam a origem dos principais institutos jurídicos existentes no Direito Penal, a fim de que possam valorizar a conquista dos séculos de lutas que a humanidade travou contra toda a injustiça praticada nesse período negro da Humanidade. Mesmo que ainda ocorram muitas injustiças em nossa sociedade atual, nada pode ser comparado às atrocidades praticadas nos tempos do “Antigo Regime”, uma época nefasta, onde imperavam o misticismo, a intolerância, o preconceito, a insegurança e a crueldade na aplicação das penas. O objetivo principal deste singelo estudo é o de interpretar a obra de Beccaria à luz de nosso Direito Penal atual, identificando suas principais ideias presentes em nosso Ordenamento Jurídico, reforçando ainda mais a importância desta obra prima das Ciências Criminais para nossa sociedade, claro sem a mínima prepotência de esgotar a discussão, visto que é na construção dialógica da sociedade que nós, homens e mulheres, tornamonos todos cidadãos humanos. Em meio a esse objetivo principal, em determinados trechos considerados relevantes, geralmente no fim dos capítulos, ou após conteúdos de importância para o Direito Penal, será incluída uma seção oportunamente chamada de “Ponto de Reflexão”, onde serão analisados assuntos relacionados com o conteúdo do trecho e de extrema relevância para a Criminologia atual. Uma ótima leitura, Lívio Silva 8 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. I UMA NOVA ERA NO DIREITO PENAL Em seu prefácio, Beccaria vem nos trazer um pouco da História do Direito, fazendo uma alusão crítica ao Corpus Juris Civilis, principal compilação do direito romano, publicado por ordem do imperador Justiniano, constituindo um conjunto de legislações esparsas, reunindo inclusive todas as constituições anteriores ao reinado de Justiniano, vejamos então: “Fragmentos da legislação de antigo povo conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou em Constantinopla, há doze séculos, combinados depois com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são o antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis; [...]”2 (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) O autor continua sua crítica à referida legislação destacando a influência da mesma no direito de sua época, considerando-a fonte jurídica dos abusos cometidos no “Antigo Regime”, delineando o caminho que será percorrido pelo seu livro, conforme a seguir: “É esse código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros, que desejo examinar nesta obra. Ficarei limitado, contudo, ao sistema criminal, cujos abusos terei a ousadia de apontar aos encarregados de velar pela felicidade pública, sem me preocupar de impor ao meu estilo o encanto que faz a sedução dos leitores comuns.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 2 Como em cada início de capítulo da presente obra será feita referência a quais capítulos do livro de Beccaria pertencem os trechos citados e comentados, não vislumbrei a necessidade de indicar as respectivas páginas. Por conseguinte, a fim de diferenciar das citações de outras fontes, que serão feitas no rodapé, coloquei apenas a autoria e o nome do livro, bem como foi convencionado que as citações da obra de Beccaria seriam formatadas com recuos de 8cm (Esq.) e aproximadamente 0,7cm (Dir.), com o texto escrito sob a fonte Times New Roman, de tamanho 12 e em tipo Itálico. 9 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Inicia sua introdução destacando o caráter segregativo das sociedades, baseadas na concentração de poder e riquezas, onde pouquíssimos têm privilégios, relegando a maioria aos martírios e aos piores frutos, transferindo esse perfil para o âmbito do direito criminal vigente à época, repleto de normas elaboradas para a conveniência da minoria privilegiada, vejamos: “As vantagens da sociedade devem ser distribuidas equitativamente entre todos os seus membros. Entretanto, numa reunião de homens, percebe-se a tendência contínua de concentrar no menor número os privilégios, o poder e a felicidade, para só deixar à maioria miséria e debilidade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Cesare Beccaria continua a introdução falando sobre a origem ideal das leis, que devem ser produzidas a fim de se beneficiar a sociedade como um todo, evitando que sua elaboração fosse animada por sentimentos egoístas da minoria prestigiada com o poder, confiramos portanto: “Percorramos a história e constataremos que as leis, que deveriam constituir convenções estabelecidas livremente entre homens livres, quase sempre não foram mais do que o instrumento das paixões da minoria, ou fruto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido orientar todas as ações da sociedade com esta finalidade única: todo o bemestar possível para a maioria.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Faz-se importante destacarmos que o panorama político-jurídico-social, no qual o livro foi escrito, estava inserido num momento de transição, posterior ao renascimento cultural, onde Política e Economia moldavam-se aos requisitos exigidos pela “Nova Ordem” que se preparava para chegar. Dessa forma, era natural a existência de resquícios do feudalismo operando plenamente nas instituições sociais vigentes, principalmente na resistência à visão do 10 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. homem como indivíduo único, dotado de razão e de vontade própria, ou seja, dotado de personalidade, fazendo com que as pessoas fossem classificadas apenas como nobres e vassalos: como “torturáveis e não torturáveis”3. Nesse sentido, sob a alcunha de “Verdades Filosóficas”, o autor vem nos mostrar o desenvolvimento proporcionado em seu tempo pela nova perspectiva humanista da sociedade, fazendo ressalvas ao atraso na mudança da forma de aplicação das penas, onde, ao contrário de outras áreas do conhecimento, não houve avanço algum, relegando a humanidade à barbaridade bestial praticada nos tribunais, quando da época em questão, conforme veremos a seguir: “As verdades filosóficas que têm sido divulgadas por toda parte pela imprensa, mostraram finalmente as reais relações que unem os soberanos aos seus súditos e os povos entre si. O comércio ganhou incentivo, e entre as nações declarou-se uma guerra industrial, a única digna dos homens sábios e dos povos organizados. Contudo, se as luzes do nosso século já conseguiram alguns resultados, ainda estão muito distantes de ter dissipado todos os preconceitos que alimentávamos. Não houve um que se erguesse, senão fracamente, contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais. Não houve quem se ocupasse de reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislação tão importante quanto descurada em toda a Europa.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) “Contudo, os dolorosos gemidos do fraco, que é sacrificado à ignorância cruel e aos ricos covardes; os tormentos terríveis que a barbárie inflige em crimes não provados, ou em delitos quiméricos; a aparência repugnante dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os desgraçados, que é a incerteza; tantos métodos odiosos, difundidos por toda parte, teriam por 3 Lembrando o diálogo de um personagem do escritor Graham Greene, citado pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco, Luciano Oliveira, em seu livro, “Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura”; no qual o referido personagem anuncia que “apenas os pobres, de qualquer parte do mundo, são torturáveis”. 11 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. força que despertar a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) “Não houve quem se ocupasse de reformar a irregularidade dos processos criminais”, constitui o grande destaque de Beccaria nesse trecho de sua magnífica obra, pois segundo ele, as luzes do seu século (Iluminismo) não haviam sido suficientes para eliminar o sem número de barbaridades praticadas pela justiça daquela época, anunciadas pelo autor em seu valioso livro. Assim, Beccaria traz pra si a missão de denunciar os abusos cometidos no “Antigo Regime”, contraditórios ao novo conceito de humanidade propagado pelos ideais iluministas, que influenciaram as sociedades em desenvolvimento industrial. Portanto, o autor delineou ainda mais especificamente o cunho filosófico e denunciador de sua obra, ocupando-se de estudar o tema profundamente, buscando até mesmo as origens sociais e políticas das práticas comuns da época, questionando a eficácia de tais procedimentos desumanos em confronto à nova Ordem Social que despontava, vejamos: “Contudo, qual a origem das penas, e em que se funda o direito de punir? Quais as punições que se devem aplicar aos diferentes crimes? A pena de morte será verdadeiramente útil, necessária, imprescindível para a segurança a estabilidade social? Serão justos os tormentos e as torturas? Levarão ao fim proposto pelas leis? Quais os meios mais apropriados para prevenir os delitos? As mesmas penas são igualmente úteis em todas as épocas? Qual a influência que exercem sobre os costumes?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, o autor veio convidar a sociedade de seu tempo a refletir sobre as penas praticadas pela justiça, questionando a origem das penas e o fundamento do direito de punir, instigando o debate sobre a justiça e sobre a real utilidade dos métodos brutais utilizados nas sanções, propondo já naquele tempo, que remonta mais de duzentos anos atrás, uma política social de prevenção dos delitos, antes mesmo do surgimento de uma ciência voltada ao estudo do crime em si, antes mesmo da própria Criminologia. 12 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. ________________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO:4 Se tentarmos fazer uma avaliação, na atualidade, dos fundamentos do Direito de Punir do Estado, veremos que apesar do nosso Direito Penal ser largamente baseado nos ideais iluministas defendidos por Beccaria, talvez a realidade atual da sociedade brasileira leve-nos a reflexões muito mais profundas, extensas e complexas do que aquelas realizadas na época do autor de Dos Delitos e das Penas. A primeira delas, e talvez aquela que mais influencia (ou condiciona) todas as outras é a inevitável submissão do ser humano aos ditames do sistema econômico do qual fazemos parte. Tenho consciência de que talvez estas palavras sejam alvos de críticas do tipo: “mais outro que chega pra criticar o Capitalismo” ; ou do tipo: “lá vem o comunista falando”. Contudo, nobre leitor, mesmo que nos consideremos totalmente a favor do capitalismo, ou radicalmente contra, não podemos fugir do fato de que o mesmo constitui uma realidade na qual estamos inseridos, mergulhados, já que, inexoravelmente, fazemos parte dela. Não há nenhuma Matrix, ou seja, não há nenhuma realidade alternativa, estamos caminhando e respirando na nossa própria ilusão, pois somos ao mesmo tempo mão de obra das elites que dominam os modos de produção e potenciais consumidores daquilo que ajudamos a fabricar, tanto em matéria de produtos, bem como de serviços. Assim, falando sobre sociedade, sobre ser humano ocidental (quem sabe também do oriental), qualquer estudo científico, ou reflexão (livre pensamento), que antes de adentrar ao mérito de seu objeto de análise, não leve em consideração o sistema econômico capitalista, e, consequentemente, o processo de globalização da economia, nos quais estamos inseridos, não contemplará em sua plenitude as condições sócio-políticoeconômicas orientadoras dos comportamentos humanos em nossa sociedade 4 Da mesma forma que foi convencionada uma formatação específica para as citações dos trechos da obra de Beccaria, também foi adotada uma formatação diferenciada para os trechos do presente livro chamados de “Ponto de Reflexão”, onde intenta-se formular reflexões críticas ao patamar atual do Direito Penal (Material e Processual) e ao Sistema Carcerário no Brasil, convencionando-se que estes trechos terão recuo de 2cm (Esq.) e de aproximadamente 1,2 cm (Dir.), escritos na fonte Tahoma, tamanho 11 e tipo Normal. 13 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. atual, circunstâncias às quais estão submetidos todos os seres humanos, independente de nacionalidade, credo, orientação sexual, prática política, etc... Nesse sentido, nenhum fato social, nenhum acontecimento que venha ocorrer na atualidade escapa da influência que a Ordem Econômica em vigor impõe, seja de forma direta ou indireta, mostrando-se necessária sua análise ampla, ou no mínimo, a não-negação de sua importância para todos os aspectos da sociedade atual. Conforme diria Hannah Arendt: “Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais” 5. Considerado isto, a título de primeira reflexão sobre a realidade da sociedade atual, condicionadora inexorável dos institutos sociais em vigência, continuemos com nosso estudo da obra de Beccaria. ________________________________________________________ Ao mesmo tempo, consciente da responsabilidade sob o conteúdo de sua obra, diante da ousadia em criticar costumes tão arraigados no inconsciente coletivo, comportouse como um verdadeiro filósofo, preparando seu espírito para a repercussão de seu trabalho, sem esperar frutos imediatos, contentando-se apenas em salvar nem que seja algumas poucas almas das atrocidades praticadas em seu tempo, encerrando sua introdução para iniciar seu estudo, conforme a seguir: Contudo, se, ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas um inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da ventura conforta-me-iam do desprezo do resto dos homens. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 5ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17. 14 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. II ORIGEM DAS PENAS, DIREITO DE PUNIR E INTERPRETAÇÃO DAS LEIS Nos capítulos II a IV, o Marquês de Beccaria vem investigar a origem das penas e do direito de punir do Estado, bem como criticar a má interpretação das lei em seu tempo, que tendia sempre para uma aplicação cruel e desumana. É realmente uma tarefa difícil a do filósofo comprometido com a importância de sua missão, já que seu trabalho consiste muitas vezes em semear em terreno infértil. Não sei se o ser humano atual, aquele que caminha diariamente por nossas ruas, tem consciência da importância da obra de Cesare Beccaria para nossa sociedade e para os Direitos Fundamentais. Os principais institutos jurídicos de toda a legislação penal do mundo ocidental foram inspirados em suas ideias. A maioria dos princípios penais, constitucionais ou não, embora relativamente respeitados pelo sistema prisional vigente, têm clara influência de sua análise crítica e sistemática, externada através de sua pequena grande obra. Com o intuito de investigar a origem do fundamento do direito de punir do Estado, o autor penetra na alma humana a fim de estabelecer o motivo que reside no íntimo de cada um e que o faz abrir mão de um quinhão de sua liberdade para colaborar com a manutenção da “Ordem Social”. Assim, nosso filósofo do direito conclui que a adesão de cada indivíduo ao “Contrato Social” deve-se a uma atitude política alimentada pelo instinto de sobrevivência em sociedade, ou em palavras mais afinadas com o estudo da Sociologia, alimentada pela “Solidariedade Social”, vejamos: “Façamos uma consulta, portanto, ao coração humano; encontraremos nele os preceitos iniciais do direito de punir. Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando ao bem público. Tais fantasias apenas existem nos romances. Cada homem somente por interesses pessoais está ligado às diversas 15 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. combinações políticas deste globo; e cada um desejaria, se fosse possível, não estar preso pelas convenções que obrigam os demais homens.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, segundo o autor, o ser humano não estaria ligado ao conjunto de normas reguladoras da sociedade apenas por nobreza de espírito, como um super-herói dos quadrinhos. Cada um o faz pela pura e simples necessidade de sobreviver em sociedade, diante da qual aquele que não se enquadra em seus parâmetros e não participa de sua manutenção, cumprindo seu papel social, é marginalizado e elencado de seu convívio, seja por cumprir uma sanção jurídica, ou através da sanção velada, da exclusão social. Penetrando um pouco mais fundo nesse raciocínio, Beccaria navega até o momento histórico que marca o início da criação do Estado como ente individual de cada sociedade, onde os homens abrem mão do estado de guerra como único meio de ascensão das nações, para elaborarem leis que vinculem todos entre si, elegendo o soberano representante das vontades do povo que deve guardá-las e administrar a nação, conforme a seguir: “Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do resto com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis do depositário das liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, aproximando-se da visão hobbesiana de Estado, o Marquês de Beccaria nos traz a formação do mesmo como resposta necessária ao caos político característico do “estado beligerante”, ligando este ao direito criminal praticado em seu tempo, mostrando a necessidade da reformulação de tal sistema, a fim de que o mesmo entre em sintonia com o pensamento que começava a se fazer vigente na época. Assim, 16 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. estabelece o processo consensual de sacrifício das parcelas de liberdades individuais, legitimador do Estado de Direito, como “fundamento” do direito de punir, já que o Estado representa a “institucionalização” do consenso das vontades concorrentes na nação, devendo portanto, criar mecanismos de manutenção da mesma, conforme a seguir: “Desse modo, somente a necessidade constrange os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Portanto, nosso sábio elege somente o poder concedido pela reunião das parcelas de vontades individuais como legitimador do direito de punir, pois tal poder externa a vontade da maioria, vinculando entre si os aderentes do “Contrato Social”. Nesse sentido, Beccaria estabelece que todo exercício de poder que se afaste deste “Consenso de Vontades”, fundamentador do direito de punir, constitui um ato arbitrário. Em nosso Ordenamento Jurídico, considerando a lei como manifestação formal e escrita dessa “reunião de pequenas parcelas de liberdade”, encontramos tal raciocínio de Beccaria estampado no mandamento constitucional presente no art. 5º, inc. II, onde dispõe: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” 6. Assim, somente a lei tem o condão de restringir a liberdade das pessoas, obrigandoos a realizar determinados atos. É nesse fundamento elementar de nossa sociedade que se baseia toda a atividade da Administração Pública, pois esta somente pode fazer aquilo que se encontra previsto em lei. Do contrário, qualquer atividade estatal que provoque repercussão na esfera individual do cidadão, restringindo a sua liberdade, tanto física como a de expressão, mas que não esteja baseada em lei, constituirá abuso de poder do Estado. 6 BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 02 jun. 2013. 17 em: Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. ________________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: Nos tempos atuais uma discussão inevitável de ser enfrentada é aquela que versa sobre a configuração hodierna do Estado em confronto com a fragmentação (multiculturalismo) cada vez mais crescente no mundo. Como consequência imediata dessa discussão, diante da realidade multicultural da sociedade brasileira, torna-se indispensável a aplicação dos conceitos de subculturas e estratos sociais a esse contexto. Como todos sabemos, o Brasil é uma nação de nações, pois além das etnias que participaram da miscigenação presente na formação do povo brasileiro, o branco portugûes, o índio nativo e o negro escravizado, somos também formados pela miscigenação de outras matrizes étnico-culturais provenientes do contingente de imigrantes que chegou em nosso território no século passado, proporcionando a composição de um mosaico étnico-cultural de grande magnitude, diante do qual, um indivíduo que se desloca de uma determinada região do país para outra, pode ter a impressão de estar entrando em outro país. Nesse mesmo espírito de diversidade cultural, até mesmo dentro de uma única cidade, tomando o exemplo de metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre, entre outras, encontramos padrões sociais de primeiro mundo, com qualidade de vida altíssima, convivendo ao lado de padrões sociais baixíssimos, completamente desprovidos de direitos sociais como saúde, educação, alimentação e moradia, entre outros 7 (o luxo vizinho do lixo), proporcionando a existência de verdadeiros “Abismos Sociais” em uma mesma sociedade. Portanto, considerando toda essa variedade cultural existente no Brasil, aliada a constatação dessa disparidade de níveis de vida, é comum que nossa sociedade tenha uma característica segregada, onde cada segmento social forma 7 uma cultura própria, com seus próprios mecanismos sociais, “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (CF/88) 18 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. desenvolvendo valores próprios, que acarretarão na formação de uma identidade cultural diferente para cada um desses segmentos. Ou seja, a sociedade brasileira constitui um complexo cultural, uma cultura formada pela união de várias subculturas. Diante desse panorama multicultural, não é difícil constatar que se torna impossível ao Estado atender a todos os cidadãos da mesma maneira, levandonos a inferir que ele não é o mesmo para todos, embora mantido pela maioria e a lei seja para todos (em teoria). O Estado brasileiro atual, suposto consenso do sacrifício das parcelas de liberdades individuais de seus indivíduos, não opera em igualdade de condições para todos os seus “contratantes”. Assim, surge a seguinte pergunta: a ação policial de repressão ao crime, realizada em comunidades suburbanas desprovidas de poder econômico e político (favelas), repletas de atores sociais marginalizados, é realizada da mesma forma que àquela ação policial direcionada às classes mais abastadas (grandes empresários, ou políticos de expressão)? Claro que não, pois a repressão policial de nosso “Estado Democrático” age mais severamente com as classes sociais menos privilegiadas (Labelling Aproach). Ou seja: “na favela, as balas não são de borracha”8. Trazendo Bauman à nossa discussão, diríamos que as ações mais prováveis de serem cometidas pelas pessoas excluídas do convívio social pleno são justamente as mais passíveis de serem rotuladas como “crime” no código penal. Enquanto isso: “Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de promoção do livre comércio; roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio de subsistência é chamado enxugamento ou simplesmente racionalização.”9 Esse quadro social contraditório, proporcionador de exclusão social em larga escala, no qual pouquíssimos aderentes do suposto “Contrato Social” fazem uso de suas benesses, enseja uma revisão dos fundamentos contratualistas da formação da 8 9 Referindo-me à declaração realizada nas redes sociais por uma moradora do Complexo da Maré, sobre a polêmica ação policial realizada naquela localidade no final de junho de 2013, comparando o tratamento que a polícia dá às ações contra grandes manifestações sociais, geralmente cobertas com amplitude pela mídia, com as ações policiais realizadas nas comunidades menos favorecidas, diante da qual a mesma afirmou: "As balas aqui não são de borracha, aqui é fuzil. Para gente que não tem nome nem sobrenome nem mora em lugar nenhum, o tratamento é esse", - AS BALAS aqui não são de borracha. Aqui é fuzil. Por Heloisa Aruth Sturm, do jornal O Estado de S.Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-balas-aqui-nao-sao-de-borracha-aqui-efuzil-,1047054,0.htm>. Acesso em: 11 jul. 2013. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 131. 19 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. sociedade, forçando-nos a no mínimo reavaliar a sua efetiva validade (eficácia). Como esperar que parcelas da população submetidas a condições de vida extremamente precárias, desprovidas de saúde, educação e de outros direitos fundamentais, sintam-se signatários desse suposto “Contrato Social”, sob o qual estaria efetivamente fundamentada toda a relação político-jurídica Estadocidadão? Uma pessoa que já veio ao mundo nestas condições de pobreza e exclusão social extremas, completamente desprovida de oportunidades de emprego e de ascensão social, relegada a viver na marginalidade, sem qualquer perspectiva de melhora de suas condições sociais, sem qualquer capacidade de entender a razão pela qual a sua vida é tão ruim. Como essa pessoa seria capaz de tomar consciência de que teria, supostamente, aberto mão de uma determinada parcela de sua liberdade individual a fim de manter o bem comum da sociedade? A pergunta que essa pessoa faria é: que bem comum é esse que não chega até a minha pessoa? São perguntas como essas que nos direcionam a levantar a necessidade de se reavaliar a real eficácia do “Contrato Social” que estaria em vigor. Feitas as presentes especulações, vamos dar continuidade ao nosso estudo da obra de Beccaria. ________________________________________________________ Diante da análise do poder de imperatividade que o contrato social assume, o autor vem nos brindar com a afirmação que culminou no mandamento básico de nosso Direito Penal, o Princípio da Legalidade, vejamos: “A primeira consequência que se tira desses princípios é que apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade aplicar uma pena que não esteja estabelecida em lei, e a partir do momento em 20 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, somente as leis, segundo o autor, podem fixar as penas, pois caso ocorra o contrário, julgando-se um membro da sociedade com rigor maior do que o previsto em lei, estar-se-á negando a própria natureza do Estado, que representa o consenso da maioria, mediante a efetivação do Contrato Social. Somos imediatamente remetidos ao mandamento constitucional de que “não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, o Princípio da Reserva Legal, um dos pilares de nosso Direito Penal, elaborado ao longo dos séculos por juristas inspirados nas lições de Beccaria. Logo adiante, o autor estabelece a segunda consequência dos princípios orientadores do dever de punir do Estado, sabiamente dissecados pelo mesmo, a generalidade das leis e a autonomia de cada um dos três poderes, no caso o Judiciário, cabendo apenas a este a atividade de julgar, vejamos: A segunda consequência é a de que o soberano, representando a própria sociedade, apenas pode fazer leis gerais, às quais todos devem obediência; não é de sua competência, contudo, julgar se alguém violou tais leis. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Resta por demais óbvia a segunda consequência elencada por Beccaria, tendo em vista que se o Estado é formado pelo consenso das vontades de seus indivíduos, constitui consequência lógica e imediata a submissão de todos às leis elaboradas pelo mesmo, além de sua afirmação já trazer implícitos os princípios da “Separação de Poderes” do “Juiz Natural”. Em seguida, Cesare Beccaria discorre sobre a interpretação das leis, estabelecendo definitivamente a necessidade da limitação da atuação do Magistrado na matéria criminal, conforme a seguir: O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna 21 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. incerto e obscuro. Não há nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, quando o autor fala em silogismo perfeito entre a Lei e a ação conforme ou não a lei, já traz no bojo de sua declaração o conceito de “Tipicidade”, que constitui um dos elementos do delito, de acordo com a Teoria do Crime vigente em nosso ordenamento jurídico. O entendimento presente na parte final do trecho acima pode ser encontrado hoje em dia na proibição da interpretação extensiva da Lei Penal, consequência direta do Princípio da Legalidade. De forma que, diante da subjetividade inerente à personalidade humana, qualquer julgamento fica sujeito a erro se não forem previamente estabelecidos parâmetros objetivadores da aplicação da pena, conforme o autor vem nos trazer no seguinte trecho, vejamos: Cada homem tem sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado de uma boa ou má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, da reunião de todas as pequenas causas que modificam as aparências e transmutam a natureza dos objetos no espírito mutável do homem. Veríamos, desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à mercê de um errôneo raciocínio ou da bile de um juiz. Constataríamos que o juiz interpreta apressadamente as leis, segundo as ideais vagas e obscuras que estivessem, no momento, em seu espírito. Veríamos os mesmo delitos punidos diferentemente em épocas diversas, pelo mesmo tribunal, porque, em vez de ouvir a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à instabilidade enganadora das interpretações ocasionais. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 22 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. A Revolução Francesa, divisor de águas da história das sociedades, varreu o “Antigo Regime Penal”, desumano e cruel, baseado no poder excessivo dos juízes e que segundo Bitencourt, em seu tratado de Direito Penal, era “exercido arbitrariamente, em detrimento da Justiça e a serviço da tirania medieval”10 (grifo nosso). Assim, no trecho acima, Beccaria, muito a frente de seu tempo, já pensava em um Direito Penal onde o Magistrado teria seu poder de julgar limitado pela lei, sem dar margem alguma à especulações e interpretações pessoais do mesmo, vinculando a sua discricionariedade apenas à lei. Mais adiante, continuando esse raciocínio, o autor vem novamente trazer novos conceitos que foram assimilados pelos juristas, aprofundados e transformados pelos legisladores em vários Institutos Jurídicos que conhecemos hoje em nosso Direito Penal. Um exemplo claro disso, é o caso da “Tipicidade”, agora mais claramente delineado pelo autor, vejamos: Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para indicar se esse atos são conformes à lei escrita, ou se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém simples questão de fato, então não se verão mais os cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos[...] (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Ante o exposto, vemos Beccaria propor que para a determinação da prática de crime por um indivíduo, é necessária a existência de leis escritas e fixas, ou seja, que não possam ser mudadas por conveniência dos envolvidos, que reservem ao magistrado apenas a tarefa de determinar se o ato (conduta) praticado pelo acusado enquadra-se, molda-se (tipifica-se) ao comportamento que a lei prevê para que se configure a prática do delito. Dessa forma, o autor inova trazendo os primeiros conceitos que levaram à 10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, volume 1. 13. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 587. 23 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. formulação do instituto jurídico da tipicidade, consequência direta do Princípio da Legalidade e como já mencionado anteriormente, um dos elementos constituintes do instituto jurídico denominado “Infração Penal”, ou como popularmente conhecemos: crime. É no trecho seguinte que o autor vem introduzir o que mais adiante, no próximo capítulo, culminará em uma crítica ao costume de não se redigir as leis em vernáculo, língua do país de origem, pois se as leis não forem claras o suficiente para que todos possam entender os limites que seus atos devem obedecer o cidadão não conseguirá distinguir o que é crime ou não, vejamos: “Com leis penais cumpridas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e de seus bens; e isso é justo, pois que é esse o fim que leva os homens a se reunirem em sociedade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, Beccaria novamente antecipa o que será constatado poucos séculos depois: que a melhor forma de evitar o crime é prevení-lo! De forma que, diante de um panorama onde todos conhecem as ações reprováveis, consideradas crimes, pelo Princípio da Solidariedade Social e da Divisão do Trabalho Social é natural que o homem médio eviteas, a fim de não ser elencado do convívio com a sociedade. _______________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: O caráter preventivo do Direito Penal defendido por Beccaria, que segundo o qual o cidadão, diante da existência de condutas elencadas pelo Estado como danosas à sociedade, dispostas em língua pátria no texto legal, entendendo perfeitamente as consequências de seus atos quando estes coincidirem com a figura típica prevista em lei, tender-se-ia a desviar do crime, parece não se adequar perfeitamente à realidade extremamente complexa de nossa sociedade. Assim, pegando um gancho no que foi destacado um pouco 24 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. acima11, perguntamo-nos se um indivíduo, que vive em condições de pobreza e exclusão social extremas desde que nasceu, levando uma vida completamente desprovida de oportunidades de emprego e de ascensão social, relegada pelo descaso do Estado a viver na marginalidade, sem nenhuma perspectiva de melhora de suas condições sociais, seria capaz de tomar consciência de que teria aberto mão de uma determinada parcela de sua liberdade individual a fim de manter o bem comum da sociedade. Manter o bem comum da própria sociedade que “nega a sua existência”! Seria esse indivíduo capaz de se sentir vinculado à sociedade, a ponto de entender (aceitar) que determinadas condutas são reprováveis e se ele não as praticar “gozará com segurança de sua liberdade e de seus bens”. Pergunto: que liberdade? Que bens, se o referido indivíduo NÃO EXISTE para o Estado, se sua presença é indesejável? Por isso, se observamos a presente questão, passando através de uma abordagem pautada nas teorias macrossociológicas da sociedade, em especial a teoria formulada por Robert Merton12, perceberemos que essa consciência nem sempre é suficiente para afastar o homem da prática delituosa, posto que existem indivíduos inclinados a não fazer uso, seja por completa impossibilidade ou por mera conveniência, dos meios legítimos que a sociedade elege para que um indivíduo possa alcançar os objetivos que Merton convencionou chamar de metas culturais. Diante dessa constatação, Merton terminou por classificar as formas com as quais os indivíduos, diante desse conflito entre seus objetivos culturais e os meios que a sociedade considera como legítimos para se atingir os mesmos, partindo desde o completo conformismo (Conformidade) com as metas culturais e com os meios institucionalizados até o outro extremo, que se expressa através do inconformismo total (Rebelião) com as metas e com os meios considerados dominantes, onde se busca uma nova configuração da ordem social, como por exemplo “os movimentos de revolução social” 13. Óbvio que essa 11 12 13 Trecho deste presente estudo (página 20) no qual se questiona a real eficácia do “Contrato Social” em vigor na nossa sociedade. Robert King Merton, sociólogo americano desenvolvedor da Teoria Estrutural-funcionalista da Anomia, inicialmente introduzida nas Ciências Sociais por Durkheim, revolucionária na Criminologia, diante da qual se defende que a escassez de meios legítimos para a obtenção das metas culturais levaria determinados indivíduos a abandonarem as “regras oficiais do jogo social”, adotando o que o mesmo convencionou chamar de comportamento desviante. SABADELL, Ana Lucia. In: CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p. 72. 25 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. classificação, que conta com cinco modos de adaptação (Conformidade, Inovação, Ritualismo, Evasão e Rebelião), não se mostra suficiente para abranger todos os comportamentos que podemos encontrar na sociedade, servindo muito mais como escala de referência para se analisar os “comportamentos desviantes”, como Merton convencionou chamá-los. Diante do acima exposto, restando constatado que a consciência da reprovabilidade da conduta e de suas consequências jurídicas nem sempre é suficiente para afastar o homem da prática delituosa, somos autorizados a concluir que as especulações de Beccaria sobre este assunto talvez tenham sido pensadas para um ser humano de sua época, participante da sociedade existente naquele período histórico, não se ajustando ao dito “homem médio” que circula por nossas ruas de hoje. Em outras palavras: a prevenção de certa forma ingênua de Beccaria não mais se aplica à realidade da sociedade atual, fragmentada e multicultural, especialmente à sociedade brasileira, que se encontra imersa nessa nova faceta do capitalismo que chamamos globalização. Nesse sentido, chamamos novamente a atenção para um ponto já discutido anteriormente, aquele diante do qual se entende que qualquer estudo científico, ou reflexão (livre pensamento), que tenha por objetivo contemplar a total plenitude das condições sócio-político-econômicas orientadoras dos comportamentos humanos em nossa sociedade deve antes de tudo levar em consideração o sistema econômico capitalista, e, consequentemente, o processo de globalização da economia, dentro dos quais estamos todos inseridos. Assim, sem abandonar a Teoria da Anomia, mas deixando de lado o foco da causa da criminalidade exclusivamente no indivíduo, estendemos este raciocínio a um ponto de origem além do mesmo, no qual o indivíduo passa de agente inteiramente responsável pelo crime a receptor dos efeitos oriundos do grande sistema econômico de escala global no qual estamos inseridos, a Globalização. É nesse momento, onde o ser humano passa a ser mera coisificação do sistema, que se torna necessária a construção de uma teoria do crime mais abrangente, que leve em consideração a submissão dos indivíduos a um sistema muito maior do que um “simples Estado Soberano”, pois agora o que parece estar surgindo (ou já ter surgido) é um “Estado Global”, onde as 26 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. fronteiras dos países são atenuadas para darem lugar a uma economia globalizada, onde os grandes blocos de poder econômico dominam o planeta, impondo suas condições aos países, quer dizer, às “Economias Periféricas”, que não podem fazem outra coisa senão seguir esses ditames. Diante disso, uma economia mundial largamente estendida precisa de muitos consumidores que dêem suporte à mesma, mediante o que, aqueles que não se encontram em condições de figurar com tais são excluídos socialmente, através do uso dos mecanismos de controle social existentes. É o que nos traz Sérgio Salomão Shecaira, que alerta: “Assim, por mais paradoxal que possa parecer, excluir faz parte dessa reordenação imposta pela sociedade global. Diferentemente de uma sociedade inclusiva, a globalização afirma o fenômeno da sociedade excludente”14. Dessa forma, a nova criminologia (Criminologia Crítica), constatando o uso dos mecanismos de controle social previamente existentes na sociedade para criminalizar os socialmente excluídos, vem se preocupar em investigar as condições sócio-político-econômicas que proporcionam esse processo de criminalização. Nesse sentido, trazemos as considerações de Lélio Calhau, sobre o surgimento da Teoria Crítica na Criminologia, vejamos: “De qualquer modo, é quando o enfoque macrossociológico se desloca do comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele, em especial para o processo de criminalização, que o momento crítico atinge sua maturação na Criminologia, e ela tende a transformar-se de uma teoria da criminalidade em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal.” 15 Portanto, nosso ilustre filósofo foi extremamente genial em seu tempo, mas apesar de continuar atual em muitos aspectos, nos tempos atuais, a previsão legal (tipificação) de uma conduta como reprovável pela sociedade e sujeita a uma sanção (pena) não se mostra mais inteiramente suficiente para fins de coibir a prática dessas condutas delitivas, por dois motivos. Primeiramente, considerando a Teoria da Anomia, a alta complexidade da sociedade atual, que proporciona uma grande quantidade de subculturas e estratos sociais, dentre os 14 15 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 29. CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p. 81. 27 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. quais existe uma grande diversidade de valores e princípios morais, faz com que haja uma grande variedade de metas culturais a serem atingidas e como consequência disso, os indivíduos (que agora são multiculturais) elegem os mais diversos modos de adaptação à tensão criada pelo conflito entre as metas e os meios legítimos de obtenção das mesmas. Em segundo lugar, a magnitude do poder alcançado pelo sistema capitalista diante da globalização, onde só existe para o mundo quem pode consumir, operando em conjunto com os mecanismos de controle social formal e informal fazem com que se desenvolva um processo de criminalização das camadas menos favorecidas (os torturáveis) da sociedade, fazendo com que aqueles nos quais a “Etiqueta Social do Crime” cola sejam sempre alvo da persecução penal eficiente, incorrendo inevitavelmente na existência de “criminosos” na sociedade, pois o próprio sistema sócio-políticoeconômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos indesejáveis” através dos mecanismos de controle social. A conclusão que podemos tentar extrair de tudo isso, é que, dadas as condições sócio-político-econômicas apresentadas, entendemos que em sua maioria, as pessoas que se encontram sujeitas às referidas condições, justamente o contingente de excluídos sociais, não dependem exclusivamente de sua consciência-vontade de delinquir para praticarem ações consideradas “infrações penais”, pois o efeito provocado neles pela economia global deve ser considerado como elemento constitutivo da prática supostamente delituosa, prejudicando assim a eficácia social do sistema jurídico-penal praticado na atualidade, já que na prática, a prevenção penal estaria baseada muito mais na determinação de indivíduos socialmente perigosos do que na construção de condições sócioeconômicas que não permitam a existência de panoramas extremos de exclusão social. Ou seja, a prevenção penal eficaz depende necessariamente da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantidora de desenvolvimento nacional, com o objetivo firme de se erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação16. 16 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil[...] (CF/88) 28 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Após as presentes considerações, continuemos com nossa análise da obra de Beccaria. ________________________________________________________ Ciente do peso de sua obra, o autor encerra o capítulo com algumas considerações, a seguir: Esses princípios irão sem dúvida desagradar aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que suportam. Eu poderia temer tudo, se tais tiranetes se lembrassem um dia de ler o meu livro e compreendê-lo; mas, os tiranos não lêem. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Novamente, com muito desprendimento, característica dos sábios, vem nos mostrar a consciência do impacto que sua obra causaria na sociedade da época. Mesmo assim, não deixou de alfinetar os calcanhares dos tiranos contra quem lança sua denúncia. 29 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. III DA OBSCURIDADE DAS LEIS: Idade das Trevas do Direito Penal A partir do capítulo V, até o XIV, o autor começa a discorrer sobre o processo penal de sua época, criticando as prisões arbitrárias, as acusações secretas, as torturas, entre outras agressões à dignidade humana encontradas nesse procedimento. Porém, inicia comentando a ausência das leis escritas em língua natural do país, já que em vários países eram mantidos os códigos antigos, escritos em outra língua que não as suas, mantendo-se o texto legal distante do entendimento dos homens comuns, fazendo com que o conhecimento das leis ficasse sob o domínio de poucos, facilitando a distorção tendenciosa de suas interpretações, vejamos: Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, como um catecismo, enquanto elas forem redigidas em língua morta e não conhecida do povo, e enquanto forem, de maneira solene, mantidas como oráculos misteriosos, o cidadão que não puder aquilatar por si próprio as consequências que devem ter os atos que praticam sobre a sua liberdade e sobre os seus bens estará dependendo de um pequeno número de homens que são depositários e intérpretes das leis. Ponde o texto sagrado das leis nas mãos do povo e, quanto mais homens o lerem, menos delitos haverá; pois não é possível duvidar que, no espirito do que pensa um crime, o conhecimento e a certeza das penas coloquem um freio à eloquência das paixões. Que pensar dos homens, ao se refletir que as leis da maior parte das nações estão redigidas em línguas mortas e que esse uso bárbaro subsiste ainda nos países mais esclarecidos da Europa? (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Diante do exposto, podemos ver também mais um indício da preocupação especial de Beccaria com a prevenção dos delitos, já que segundo ele, se os homens souberem os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a certeza da 30 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. punição evitará a ocorrência de mais crimes (grifo). O autor vem em seguida reforçar a importância da existência de leis escritas em vernáculo e o papel da imprensa escrita na divulgação das mesmas, cumprindo a função de controle social sobre as atividades da justiça, antes reservadas ao conhecimento de poucos, conforme veremos a seguir: Por aí se observa, do mesmo modo, a utilidade da imprensa, que pode, ela somente, fazer todo o público, e não apenas alguns particulares, depositário do sagrado código das leis. A imprensa dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intrigas, que, não suporta a luz e finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme. Se atualmente na Europa, são em menor número esses crimes horrendos que assombravam nossos pais, se deixamos finalmente esse estadode bárbarie que fazia de nossos antepassados ora escravos ora tiranos, à imprensa o devemos. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, estando as leis escritas na língua local, de fácil compreensão e sendo divulgadas através da imprensa, passando a serem conhecidas por um grande número de pessoas, a sociedade não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo pelos tiranos. Por outro lado, com o intuito firme de destacar o panorama macabro pelo qual a humanidade passou durante a “Idade Negra” do Direito Penal, buscando fixar na memória de todos, para se evitar que aconteça de novo, Beccaria descreveu magnificamente sua visão do “Antigo Regime Penal”, vejamos: A humanidade sofria o jugo da inexorável superstição; a avareza e a ambição de um reduzido número de homens poderosos enchiam de sangue humano os palácios dos senhores e os tronos dos reis. Haviam traições secretas e morticínios públicos. O povo tinha na nobreza apenas opressores e tiranos; e os que pregavam o Evangelho, enoadoados na carnificina e com as mãos cheias de sangue, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus misericordioso e de paz. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 31 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Assim, como todos sabemos, o “Antigo Regime”, sob a desculpa de agir em nome da divindade, oprimiu um sem número de pessoas, submetendo-as a um Direito Penal monopolizado e interpretado por poucos, à sua conveniência, aplicando a lei através de práticas extremamente desumanas e cruéis. Nesse sentido, o autor começa a falar da consequência desse sistema penal monstruoso, evidenciada através do comportamento proporcionado pelo poder dado aos magistrados da época, conforme a seguir: “Concede-se, em geral, aos magistrados incumbidos de fazer as leis, um direito que contraria o fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao direito de prender, de modo discricionário, os cidadãos, de vedar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e, consequentemente, de deixar em liberdade os seus protegidos, apesar de todas as evidências do delito. Como se tornou tão frequente um erro tão prejudicial? Ainda que a prisão seja diferente de outras penalidades, pois deve, necessariamente, preceder a declaração jurídica do delito, nem por isso deixa de ter, como todos os demais castigos, o caráter essencial de que à lei cabe indicar o caso em que se há de empregá-la. Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatóio.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, Beccaria vem falar sobre o poder sem limites dado aos magistrados pelo sistema penal de seu tempo. Foram muitas as prisões arbitrárias e os julgamentos secretos praticadas em seu tempo e apesar do conteúdo presente na Magna Carta de João sem Terra (que data do ano de 1.215) inspirar legislações de vários países há séculos, a época aludida desprezava completamente o instituto jurídico milenar do habeas corpus, levando o autor a criticar sistematicamente tais práticas, apontando a lei como única fonte geradora da ordem de prisão de uma pessoa e das condições que devem ser atendidas para se realizar tal procedimento. Nossa Carta Magna detém em seu rol de Garantias Individuais, art. 5º, normas jurídicas reguladoras dessa atividade estatal, vejamos algumas delas que denotam uma influência inegável do pensamento de Beccaria, a seguir: 32 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. “XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;[...]” (grifo nosso) Assim, nosso autor está mais presente do que podemos imaginar em nossas vidas, pois seu pensamento, externado através de sua análise sistemática do Direito Penal e Processual Penal de seu tempo, tem influenciado juristas de todo o mundo ao longo de pouco mais de dois séculos, que baseados em seus ensinamentos criaram os institutos jurídicos que servem de base para a doutrina penal atual. Quando nossa Constituição nos diz que a ordem de prisão deve ser fundamentada, ou seja, baseada em critérios definidos em lei, identificamos nela os trechos da obra de Beccaria. Quando ela diz que o preso deve saber quem são os responsáveis e o motivo de sua prisão vemos os comentários do autor sobre as acusações secretas e os interrogatórios forjados. Quando nossa Lei Maior diz que a prisão ilegal deve ser relaxada, remetemo-nos a passagem em que Beccaria fala dos motivos frívolos usados pelos magistrados para prender os inimigos. Enfim, a obra desse grande homem está espalhada por toda a nossa legislação, que tem a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito. Um dos princípios existentes em nosso Ordenamento Jurídico e de grande importância para o Direito Processual Penal é o Princípio da Verdade Real, onde se exige que o julgador e as partes se empenhem no processo de tal forma a atingirem a “Verdade Real”, a fim de determinar os acontecimentos exatamente como aconteceram, com o intuito de que seja atingida a justiça. Nesse sentido, Beccaria mencionou a importância da 33 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. independência da origem das provas e indícios, seguida de sua interligação, como meio de se atingir a verdade real no processo penal, vejamos: “Quando, porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) É nesse sentido que a confissão do réu deve ser relativizada, passando a ser vista como prova comum, a teor do art. 197, do Código de Processo Penal, que dispõe: "O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância" (grifo nosso). Da mesma forma, destacamos o disposto no art. 158, também do CPP, onde se prevê que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.” (grifo nosso) Continuando na formulação do princípio da verdade real, o autor nos traz outra demonstração de sua posição à frente de seu tempo, teorizando o Direito Penal que será praticado séculos adiante de seu tempo, conforme a seguir: Não se admirem de ver-me empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que, para merecerem um castigo, devem ser comprovados; pois, a rigor, toda certeza moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu consentimento, por uma espécie de hábito natural que advém da necessidade de agir que é anterior a qualquer especulação. A certeza que se instrui todos os homens nos seus mais importantes negócios. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) É a pura essência do Princípio da Verdade Real, do qual o Princípio do In Dubio Pro Reo é corolário, desprezando-se as especulações e o “Achismo” sem fim, na busca da real 34 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. autoria da prática de um crime, a fim de que se prevaleçam (ou pelo menos aproximem-se) os fatos como eles ocorreram realmente, sem máscaras de injustiça. Em seguida, após fazer algumas considerações importantes sobre as testemunhas, dentre as quais a afirmação de que “Todo homem razoável, isto é, todo homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens (grifo), poderá ser recebido em testemunho.” (presente em nosso Ordenamento na figura do art. 202, CPP: “toda pessoa poderá ser testemunha”), o autor vem tratar de uma das questões mais delicadas do Direito de sua época, as “Acusações Secretas”. Em um tempo no qual a pessoa que acusava e a pessoa que julgava eram as mesmas, nosso autor já elencava a necessidade da divisão dessas funções, a fim de se evitar a manipulação das acusações que favorece apenas a quem tem a intenção de tiranizar, vejamos: “Pode existir, contudo, um delito, isto é, uma ofensa à sociedade, que não esteja no interesse de todos punir de modo público? Respeito todos os governos; não falo de nenhum em particular e sei que existem circunstâncias em que os abusos parecem de tal maneira próprios da constituição de um Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o corpo político. Contudo, se eu tivesse de ditar leis novas em alguma parte isolada do universo, minha mão trêmula recusar-se-ia a autorizar as acusações secretas: pensaria ver toda a posteridade atirando sobre mim a responsabilidade pelos males terríveis que elas provocam. Montesquieu já o afirmou: “as acusações públicas estão de acordo com o espírito do governo republicano, no qual o cuidado do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos”. Nas monarquias, onde o amor pela pátria é muito débil, pela própria natureza do governo, é sábia a instituição de magistrados que têm o encargo de acusar, em nome do povo, os que infringem as leis.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Não fica difícil de identificar a figura do Ministério Público no texto acima, demonstrando a posição à frente de seu tempo do pensamento de Beccaria e a sua 35 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. compatibilidade com nosso Ordenamento Jurídico. O nosso festejado autor vem novamente lançar os princípios que viriam estabelecer os conceitos fundamentais das legislações que se sucederam, sendo inclusive o precursor no tratamento de tortura como algo humilhante, degradante e, acima de tudo, anti-humano, conforme poderemos constatar nos trechos seguintes: “Esse meio infame de chegar à verdade é um monumento da bárbara legislação de nossos avós, que honravam com o título de “julgamento de Deus” as provas de fogo, aquelas da água fervente e a sorte horripilante dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, a origem da qual reside no seio da Divindade, pudessem ser desunidos ou partir-se a cada momento, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos humanas! A única diferença que existe entre a tortura e a prova de fogo é que a tortura apenas prova o delito quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas que queimam deixavam uma marca exterior, tida como prova do crime. Contudo, tal diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era antigamente de obstar, sem fraude, os efeitos do fogo e da água fervente.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, vemos o caráter bárbaro que Beccaria dá à tortura, dando como provável origem dessa prática as provas de fogo e outras práticas cruéis da antiguidade, filhas do misticismo e das supertições, que se aplicavam às pessoas para provar a sua inocência. A monstruosidade de tal prática por si só já é causa de reprovação imediata da mesma. Porém, além de desumano, tal procedimento é inútil na apuração da verdade, conforme vemos nos trechos supracitados, onde o autor inicia suas considerações sobre a inutilidade da tortura, comparando sua eficiência com a da bárbara prova da água fervendo, onde esperava-se que ao por a mão na água fervendo o inocente não se queimasse... Beccaria continua suas considerações acerca da tortura provando claramente sua ineficiência, já que diante da agonia do sofrimento físico, a tendência natural que qualquer um tem de evitar a dor obrigará o infeliz torturado a confessar qualquer coisa, vejamos: 36 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Todos os atos de nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se faz muito forte para assenhorar-se de todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre qualquer outra atividade que exercer a não ser tomar, no momento, a via mais curta para obstar os tormentos atuais. Assim, o réu não pode mais deixar de responder, pois não poderia fugir às impressões do fogo e da água. O inocente gritará, então, que é culpado, para que cessem as torturas que já não aguenta; e o mesmo meio usado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer qualquer diferença entre ambos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, o autor vem mostrar que até mesmo um inocente confessará qualquer crime diante de dor que não possa suportar, dando por ineficaz a prática de tortura para a apuração da verdade sobre a prática de crime, se é que diante de uma suposta eficácia a tortura deixaria ser menos hedionda. É nesse sentido que nossa Carta Magna vem nos informar em seu art. 5º, inc. III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O autor não acaba aqui o seu intuito de provar a monstruosidade de tal prática, mostrando em seguida a desigualdade de tratamento proporcionada pela tortura, conforme a seguir: A tortura é frequentemente um meio certo de condenar o inocente débil e de absolver o criminoso robusto. É esse, comumente, o resultado terrível dessa barbárie que se considera capaz de produzir a verdade, desse costume próprio de canibais, e que os romanos, apesar da dureza de seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tantos elogios tem recebido. Entre dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, o mais robusto e corajoso será absolvido; o mais débil, contudo, será condenado[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 37 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Assim, Beccaria vem condenar definitivamente a tortura, elencando-a como prática que serve apenas para favorecer as intenções maléficas dos poderosos que pretendem culpar inocentes, infringindo-os sofrimentos insuportáveis, a fim de obter confissão. Seguindo esse entendimento, além de outros crimes semelhantemente impactantes, nossa Carta Política estabelece em seu art. 5º, inc. XLIII, que “a lei considerará crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura,[...] por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. ________________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: Todavia, mesmo diante do brilhantismo das concepções de Beccaria sobre a tortura, que influenciaram gerações de juristas, bem como da sua proibição constitucional expressa (art. 5º, inc. III, CF/88), fica a pergunta: por que ainda pratica-se tortura em nosso país? É também sobre o que deve ter se questionado Adriana de Andrade Roza, em seu estudo crítico sobre o tema, onde a mesma afirma que apesar de encontrar-se formalmente extinta, a tortura ainda tem sido praticada, principalmente nos países periféricos, vejamos: “No entanto, são poucos os casos de tortura oficialmente registrados no Brasil, uma vez que quem é torturado sente-se quase sempre intimidado para denunciar os culpados; não é tão-somente uma questão de falta de coragem, mas também de medo de represálias por parte dos torturadores ou de membros das organizações/corporações da qual estes últimos, normalmente, fazem parte”17. Não vou precisar recorrer à imagem deplorável do suplício de Damiens 18, nem a imagens de instrumentos de tortura medievais para ilustrar o significado da tortura no presente texto. Tenho certeza que o Nobre Leitor do Século XXI tem noção de que a tortura massacra, humilha e constrange, levando a vítima ao desespero, fazendo com que confesse qualquer coisa para se ver livre daquele sofrimento, demonstrando a covardia extrema daquele que a pratica. Covardia 17 18 ROZA, Adriana de Andrade. Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 40 n. 158. abr/jun 2003, p. 330. Personagem com o qual Michel Foucault inicia a sua obra clássica (Vigiar e Punir), descrevendo o martírio do pobre infeliz, sentenciado pela justiça criminal que vigorava na França antes da reforma do sistema penal então vigente, proporcionada pelo advento dos ideais iluministas, dos quais foi signatário o Marquês de Beccaria. 38 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. ainda mais acentuada pela ocultação recorrente dessas práticas grotescas pelos torturadores, conforme destaca o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Luciano Oliveira: “Esse costuma ser um dos traços marcantes que caracterizam o uso da tortura no mundo moderno: sua indizibilidade”19. Portanto, além de ser cruel e covarde, a prática da tortura é mascarada na sociedade, primeiro porque muitos torturados têm medo de revelar a verdade, preferem conviver sozinhos com essa dura verdade a correr o risco de passarem por tudo de novo, ou pior, de serem mortos como represália dos torturadores. Depois porque os torturadores tratam de esconder as suas barbaridades muito bem, já que não deixam rastros, além de contarem com a proteção do corporativismo. Em relatório sobre a tortura no Brasil, a Pastoral Carcerária, organização mantida pela CNBB (a entidade faz uso da garantia constitucional da prestação de assistência religiosa aos presos 20 para acompanhar a situação das cadeias brasileiras), revela um dado destacável, de que o corporativismo dos “Agentes do Estado” constitui uma grande barreira para a erradicação da tortura no Brasil, pois haveria um desinteresse em apurar casos de tortura contra presos, já que as autoridades competentes para este exercício, como os juízes, delegados de polícia e promotores de justiça, entre outros, estariam demonstrando pouca ou nenhuma motivação em apurar, denunciar ou processar tais casos e complementa sua denúncia, vejamos: “Nos casos de tortura envolvendo agentes do Estado a produção de provas é frágil o corporativismo policial interfere diretamente nesta fase, não há muito empenho do Ministério Público nas denúncias e eles raramente utilizam os mecanismos internacionais contra a tortura ratificados pelo Brasil. Há uma grande desqualificação da fala da vítima durante o processo, que é colocada em dúvida diante das alegações de seu agressor, agente do Estado. Nas sentenças é comum encontrar questionamentos quanto às lesões constatadas na vítima, colocando em dúvida não somente a palavra da vítima, mas também a autoria do crime. Chega-se ao ponto de dizer que a própria vítima teria sido responsável pelos ferimentos. Esses posicionamentos revelam que a tortura ainda é, em grande medida, aceita e tolerada, inclusive por aqueles que deveriam condená-la e punir esse tipo de prática. Mesmo as corregedorias, de polícia e do judiciário, atuam geralmente mais em defesa dos agressores do que das vítimas.”21 19 20 21 OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história. A “vitória simbólica” dos vencidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 75, 2011, p. 10. “É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva” (Inc. VII, Art. 5º, CF/88) CNBB - Pastoral Carcerária. Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para a prevenção da tortura. São Paulo: 2010, p. 44. 39 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Então, diante da constatação de que os agentes públicos, que deveriam zelar pela garantia de respeito aos direitos humanos, expressamente positivada em nossa Constituição e nos Tratados Internacionais dos quais nosso país é signatário, não demonstrariam interesse em apurar os casos de tortura contra os presos, surge novamente a pergunta: por que, mesmo diante do repúdio expresso em nossa legislação ainda acontece tortura no Brasil? A resposta é simples, pois de acordo com o que já foi defendido nesta obra, o sistema penal tem característica seletiva, orientando sua atuação contra os excluídos sociais, os indesejáveis, os torturáveis... É o que parecem propor Flávia Piovesan e Fernando Salla, em artigo muito interessante, publicado na revista Ciência Hoje, vejamos: “O que faz com que essas práticas pareçam não ter fim? Várias razões. A mais importante, talvez, é que, no Brasil, as vítimas de tortura e maus-tratos provêm, em sua maioria, das camadas mais pobres da população. Nos períodos autoritários de nossa história, a tortura ocorre como recurso de combate à oposição política, quando então as vítimas são predominantemente da classe média ou da elite. Fora desses períodos, ela é praticada rotineiramente contra os autores ou suspeitos de crimes comuns provenientes das camadas pobres. A significativa diferença é que esses não têm os mesmos recursos para protestar e pressionar para que a tortura não mais ocorra, como em geral têm os perseguidos políticos. Assim, não podem contratar advogados capazes de impedir a prática de arbitrariedades. Da mesma forma que não contam com uma rede de relações pessoais articuladas com as esferas de poder que possam interceder em seu favor.” 22 Dessa forma, considerando o caráter seletivista de nosso sistema penal, trazemos o estudo realizado por Maria Gorete Marques de Jesus, onde a mesma analisa os processos judiciais no âmbito da justiça paulista nos quais foram julgadas supostas práticas de tortura. Segundo a autora, há uma distinção entre os julgamentos nos quais figuram como réus agentes do Estado daqueles onde são réus os não agentes do Estado, conforme poderemos verificar adiante, vejamos então: “Quando analisamos o desfecho processual de cada um dos réus, temos que dentre os 181 agentes do Estado acusados por crime de tortura, 127 foram absolvidos, 33 foram condenados por crime de tortura e 21 foram condenados por outro crime (lesão corporal ou maus tratos). Dentre os 12 civis acusados, 22 PIOVESAN, Flávia; SALLA, Fernando. Tortura no Brasil: pesadelo sem fim? Revista Ciência Hoje, vol. 30, nº 176, out. 2001, p. 32. 40 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. três foram absolvidos, seis foram condenados por crime de tortura e três foram condenados por outro tipo penal[...] São especialmente relevantes o testemunho, a conduta do agressor e a vulnerabilidade da vítima quando os acusados são pessoa comum. Isso fica evidente na sentença quando verificamos quais foram os argumentos realçados pelo magistrado para basear sua decisão. Quando analisamos os processos envolvendo os agentes do Estado como agressores, foi possível perceber que a avaliação realizada durante o julgamento não tem como foco o acusado do crime de tortura, como nos casos envolvendo pais, mães, padrastros ou madrastas, mas sim a vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade[...] A condição da vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita criminosa, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda a credibilidade, principalmente por ser ele um agente do Estado[...] Não são raras expressões tais como: 'a vítima ostenta vasta lista de antecedentes criminais, o que demonstra que sua personalidade é voltada para a prática reiterada de crimes contra o patrimônio e contra a vida'[...] [...]em que a defesa pode utilizar argumentos baseados na conduta do acusado para viabilizar sua defesa, alegando que o réu é trabalhador, bom pai, bom filho, bom marido, provedor do lar, etc. Da mesma forma pode desclassificar a vítima dizendo que a mesma não é digna de confiança porque é um condenado da justiça, um preso que apresenta 'vasta lista de antecedentes criminais', ou um adolescente autor de ato infracional que apresenta antecedentes criminais e que sua palavra de nada valeria como verdade[...] Outra diferença entre o julgamento dos processos envolvendo civis daqueles envolvendo agentes do Estado diz respeito à forma como esses casos são apurados e encaminhados para a justiça. Os primeiros são investigados num intervalo de três a seis meses, período em que são reunidas provas orais e periciais do crime[...] O número de testemunhas é bastante equilibrado, as de defesa correspondem ao equivalente ao número de testemunhas de acusação[...] Em praticamente todos os processos, existe exame de corpo de delito que indica as agressões presentes na vítima. Em relação aos processos envolvendo agentes do Estado como acusados, temos que a investigação pode demorar anos para ser finalizada, o que interfere sensivelmente no andamento do processo. Essa morosidade prejudica, principalmente, as provas orais[...] Muitas vezes, apesar das provas periciais comprovarem as agressões sofridas pela vítima, a autoria é desconsiderada porque o número de testemunhas que confirmam a prática de tortura é reduzido, de forma que o crime se torna quase irrelevante diante dos depoimentos das testemunhas de defesa e do acusado[...]”23 Assim, analisando-se o que foi acima exposto, oriundo desse brilhante estudo, nota-se uma clara tendência nos processos que julgam denúncias de tortura nos quais figuram como réus agentes do Estado em manter-se das mais variadas formas a estigmatização dos apenados (supostas vítimas), utilizando 23 JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal. Um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2009, pp. 229-232. 41 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. isso em seu prejuízo no processo, dando a entender a existência de dois pesos e duas medidas no julgamento dos referidos processos, reforçando ainda mais a tese aqui defendida nesta obra de que o sistema penal tem como caráter principal a sua seletividade, atuando como mecanismo de controle social máximo, com foco maior nos excluídos sociais e destinado a fortalecer as relações de desigualdade inerentes à ordem social mundial em vigor (globalização), diante da qual apenas existirá para o mundo aquele que tem capacidade de consumo. Nesse sentido, de posse dos mecanismos de controle social, entre eles o monopólio da força legítima pelo Estado, o sistema sóciopolítico-econômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos indesejáveis”, incorrendo em um processo de criminalização das camadas menos favorecidas, que são sempre alvo da persecução penal eficiente. Assim, realizadas as presentes considerações, devemos continuar com nosso estudo da magnífica obra de Beccaria. ________________________________________________________ Fonte inesgotável de princípios básicos do Direito Penal, Beccaria nos traz também a essência dos procedimentos processuais praticados em nossa época, vejamos: Quando o delito é constatado e as provas são certas, é justo que se conceda ao acusado o tempo e os meios para se justificar, se lhe for possível; é necessário, contudo, que tal tempo seja bem curto para não atrasar muito o castigo que deve acompanhar de perto o delito, se se quer que o mesmo seja um útil freio contra os criminosos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Nota-se que o autor tem imensa influência em vários institutos jurídicos presentes em nosso ordenamento. Por exemplo, vemos aqui de forma embrionária os conceitos de ampla defesa e contraditório, bem como do duplo grau de jurisdição, além da razoável duração do processo, juntamente com os prazos processuais. Nesse sentido, Beccaria vem dissertar 42 sobre a prescrição dos crimes, Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. estabelecendo como necessária a determinação por lei do período de investigação e de julgamento a fim de que não se demore na aplicação do jus puniendi, tornando assim inócua a atuação do Estado em seu direito de punir, conforme podemos ver a seguir: Apenas posso apontar aqui princípios gerais. Para a sua aplicação exata, é necessário ter em vista a legislação existente, os costumes do país, as circunstâncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo que aceitasse as vantagens das penas moderadas, se as leis encurtassem ou aumentassem a duração dos processos e o tempo em que prescrevem de acordo com a gravidade do crime, se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem computados como parte da pena que o culpado merece, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos leves para um grande número de crimes. O tempo, porém, que é empregado na investigação das provas e o que determina a prescrição não devem ser aumentados em virtude da gravidade do delito que se persegue, pois, enquanto um crime não está provado, quanto mais atroz, menos verossímil. Será necessário, portanto, às vezes, reduzir o tempo de duração dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, segundo Beccaria, não é a gravidade do crime e sim a lei que deve determinar o tempo investido na investigação e o que deve decorrer para a prescrição do crime. Todos esses prazos devem estar previamente dispostos na lei para serem cumpridos, submetendo todos acusados às mesmas condições, a fim de que não se cometa injustiça na apuração da infração penal. Da mesma forma, quando o autor nos informa que é preciso reduzir o tempo dos processos, podemos encontrar inserido nos trechos acima o Princípio da Razoável Duração do Processo. É também interessante notarmos a influência de Beccaria no regime de progressão das penas presente em nosso Sistema Legal, bem como no instituto penal da “detração”, vejamos então: 43 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. [...]se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem computados como parte da pena que o culpado merece, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos leves para um grande número de crimes. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, a proposta feita por Beccaria há séculos, pode ser identificada hoje em nosso Código Penal, na figura presente no art. 42, onde se estabelece que “computamse, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.” 44 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. IV DA MODERAÇÃO DAS PENAS Nestes capítulos (XV ao XXII), Cesare Beccaria vem apresentar algumas espécies de pena que eram praticadas em sua época, iniciando sua explanação com um comentário sobre a necessidade da moderação das penas impostas na época, vejamos o seguinte trecho: “Quanto mais terríveis forem os castigos, tanto mais cheio de audácia será o culpado em evitálos. Praticará novos crimes, para subtrair-se à pena que mereceu pelo primeiro. Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos. O mesmo espírito de ferocidade que ditava as leis de sangue ao legislador, colocava o punhal nas mãos do assassino e do parricida. Sobre o seu trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos somente imolavam os tiranos para arranjarem novos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Nesse trecho o autor recorre aos exemplos históricos para provar que nos regimes políticos mais bárbaros e ferozes ocorriam os piores crimes, já que este era o espírito que animava as sociedades da época. Em seguida, Beccaria vem tentar nos mostrar o efeito que tais tratamentos provocam nas pessoas, endurecendo suas almas, tornando-as menos sensíveis à violência, conforme a seguir: “À proporção que os tormentos se tornam mais cruéis, a alma, idêntica aos fluidos que sempre ficam no mesmo nível dos objetos que os circundam, enenrijece-se pela renovação do espetáculo da barbárie. A gente acostuma-se aos tormentos atrozes; e, após cem anos de crueldades renovadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão. A fim de que o 45 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. castigo surta o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal vá além do bem que o culpado retirou do crime. Devem ser contados ainda como parte do castigo os terrores que antecedem a execução e a perda das vantagens que o delito devia produzir. Qualquer excesso de severidade torna-se supérflua e, portanto, tirânica.” (Beccaria Dos Delitos e das Penas) Nota-se que nesse ponto Beccaria começa a formular a idéia da proporcionalidade entre as penas e os crimes correspondentes, de forma que uma pena excessivamente cruel não contribuiria de forma alguma para a apuração da verdade e para a adequada sanção do delito, visto que tornaria quem pune tão cruel quanto quem está sendo condenado. Seguindo o raciocínio, o autor nos mostra a necessidade do caráter das penas seguirem o avanço da humanidade, vejamos: “São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito rude de um povo que abandona o estado selvagem. Para dominar o leão em fúria, é preciso o raio, cujo ruído apenas faz irritá-lo. Contudo, à medida que as almas se tornam mais brandas no estado social, o homem faz-se mais sensível; e, se se quiser conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação, as penas precisam ser menos rigorosas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, segundo o autor, o novo espírito que surgia com o avanço proporcionado pela evolução da sociedade deveria estar presente também nas penas, tornando-as mais humanas, a fim de acompanhar o caráter humanista das novas concepções da época. A partir de agora o autor nos mostra as penas mais injustas praticadas em sua época. Apesar de serem todas importantes, limitaremo-nos apenas às mais interessantes para nosso estudo, iniciando pelos trechos nos quais nosso autor fala sobre pena de morte, vejamos então: “Diante do espetáculo dessa imensidade de tormentos que jamais tornaram melhores os homens, desejo examinar se a pena de morte é 46 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. realmente útil e se é justa em um governo sábio. Quem poderia ter conce dido a homens o direito de fazer degolar seus iguais? Tal direito não tem por certo a mesma origem que as leis que protegem. A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrifícar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Beccaria questiona a real utilidade da pena de morte, destacando tal prática como um grande exagero do direito de punir do Estado, visto que este foi criado justamente como resposta necessária ao caos político fundamentado sob um processo consensual de sacrifício das parcelas de liberdades individuais. Assim, admitindo-se que o Estado seria um consenso de vontades, dar a alguém, o direito de tirar a vida de outrem, segundo proclma o autor, é uma incoerência com a própria origem do Estado, pois não se pode crer que pessoas façam sacrifício de suas parcelas de liberdade, mediante um “acordo” (Contrato Social) no qual incluam o risco às suas próprias vidas. Mais adiante, analisa a ineficácia da pena de morte, conforme a seguir: “O rigor do castigo faz menor efeito sobre o espírito do homem do que a duração da pena, pois a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente atingida por uma impressão ligeira, porém frequente, do que por abalo violento, porém passageiro. Todo ser sensível está dominado pelo império do hábito; e, como é este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer as suas necessidades, também é ele que inscreve no coração humano as ideias morais por de impressões reiteradas. O espetáculo atroz, porém momentâneo, da morte de um criminoso é um freio menos poderoso para o crime, do que a exemplo de um homem a quem se tira a liberdade, tornado até certo ponto uma besta de 47 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. carga e que paga com trabalhos penosos o prejuízo que causou à sociedade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, mesmo sendo rigoroso, o caráter transitório da pena de morte não produz o efeito esperado na punição do delito. Segundo Beccaria, sabendo que vai morrer, o criminoso não se sentiria tão coagido a não praticar delitos quanto se soubesse que seria forçado a uma pena longa a ser cumprida. Apesar de se mostrar de acordo com a pena de trabalhos forçados, incoerente com nosso Ordenamento Jurídico, Beccaria mostra que mesmo quando se propõe a punir o culpado por crime, a pena de morte mostra-se ineficaz. Nesse sentido o autor complementa, reforçando a contradição entre o fundamento do Estado e a autorização pelo mesmo da pena de morte, vejamos: Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral, que detestam e punem o homicídio, autorizem um morticínio público, para desviar os cidadãos do assassínio? Quais são as leis mais justas e mais úteis? Aquelas que todos proporiam e desejariam cumprir, nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse público. Qual é o sentimento da maioria sobre a pena de morte? Está definido em caracteres indeléveis nos movimentos de indignação e de desprezo que nos causa apenas a visão do carrasco, que não é senão o executor inocente da vontade do povo, um cidadão honesto que contribui para o bem geral e defende a segurança do Estado no interior, do mesmo modo que o soldado cuida da sua defesa no exterior. Qual é, portanto, a origem de tal contradição? E porque esse sentimento de horror afronta a todos os esforços da razão? É porque em uma parte abscôndita de nossa alma, na qual os princípios naturais não foram ainda alterados, encontramos um sentimento que nos diz que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a existência de outro homem, e que apenas a necessidade, que por todos os recantos estende seu cetro de ferro, pode dispor da nossa vida”. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) 48 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Assim, Beccaria encerra sua análise da inutilidade da pena de morte mostrando a incoerência que surge do fato de se punir o crime de assassinato com outro assassinato, agindo em contradição com os fundamentos do direito de punir do Estado. Mais adiante, Beccaria vem comentar as confiscações, prática comum naquela época, vejamos: “O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa, e faz o inocente sofrer os castigos que estão destinados aos culpados. Ainda pior, as confiscações podem tornar o homem de bem um criminoso, pois o arrastam ao crime, por reduzi-lo à indigência e ao desespero. E, além disso, não existe espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia, imersa nos horrores da indigência pelo delito do seu chefe, delito que essa família, submetida à autoridade do culpado, sujugada, não poderia prevenir, mesmo que dispusesse de meios para isso.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, tentando sempre analisar os institutos jurídicos sob a perspectiva utilitarista, construindo assim uma abordagem pollítico-sociológica, o autor põe em cheque a real eficácia de tal procedimento, visto que a tendência de uma pessoa que perdeu todos os seus bens e encontra-se manchado com a marca da infâmia, desmerecido pela sociedade, é de aproximar-se cada vez mais do crime. Nossa Carta Magna tem como direito fundamental o mandamento presente no inciso do artigo 5°, onde se estabelece que ninguém será privado de seus bens, da mesma forma que as penas de multa tem limites estabelecidos na legislação penal e sua aplicação obedece a lógica da razoabilidade e da proporcionalidade. Em seguida, Beccaria vem voltar sua atenção rapidamente para outra prática antiga, conforme o trecho a seguir: “A Infâmia é uma marca de desaprovação pública, que retira do culpado a consideração, a confiança que a sociedade depositava nele e essa espécie de irmandade que une os cidadãos de uma mesma nação. Como os efeit1os da infâmia não dependem, de modo algum, das leis, é 49 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. necessário que a vergonha que a lei inflige esteja baseada na moral, ou na opinião pública. [...]As penas de infâmia devem ser raras, pois o emprego muito frequente do poder da opinião debilita a força da própria opinião. A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo, pois a infâmia de um grande número não é mais, em breve, a infâmia de ninguém.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Todos sabemos que a reputação de uma pessoa, mesmo hoje, em um tempo de maiores garantias individuais, é algo que se bem preservado facilita a convivência em sociedade. Situação que era diferente na época na qual o autor viveu, onde além das penas dolorosas e desumanas a que era submetido, o culpado tinha seus bens confiscados e ainda vivia marcado pela infâmia, uma pena de base absurdamente injusta, manifestada através de um controle social extremo, que dependendo da rejeição praticada contra o indivíduo, poderia até mesmo ser pior do que a própria pena, visto que relegava a pessoa a uma vida de humilhação e desconsideração, derrubando cada vez mais a moral do indivíduo, sem oportunidade alguma de recuperação social. Um princípio presente em nosso Ordenamento Jurídico que evidencia a preocupação do sistema com a aplicação justa da pena, nem pra mais, nem pra menos, é o Princípio do Non Bis In Idem, onde não se pode condenar alguém duas vezes pelo mesmo fato. Se consideramos Beccaria atual pela repercussão de sua obra e a influência da mesma em nosso Sistema Criminal, no trecho seguinte ele será considerado atual por dissertar sobre um problema que parece não ter evoluído muito de sua época pra cá, vejamos então: “Se a prisão constitui somente uma maneira de deter o cidadão até que ele seja considerado culpado, como tal processo é angustioso e cruel, deve, na medida do possível, amenizar-e o rigor e a duração. Um cidadão preso deve ficar na prisão apenas o tempo necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos têm o direito de ser julgados em primeiro lugar. O réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de fugir ou de esconder as provas do 50 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. crime. O próprio processo deve ser levaso sem protelações. Que contraste tremendo entre a preguiça de um juiz e o desespero de um acusado! De um lado, um magistrado sem sensibilidade, que passa os dias no bem-estar e nas delícias, e de outro um desgraçado que definha, chorando no fundo de uma cela abominável. Os efeitos do castigo que acompanha o crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para aqueles que o testemunharam; existirá, contudo, necessidade de que esse castigo seja tão cruel para aquele que o sofre? Quando os homens se reuniram em sociedade, foi apenas para se sujeitarem aos mínimos males possíveis; e não há país que possa negar esse princípio incontestável.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Não precisamos de um exame muito detalhado do trecho supra para que passemos a identificar uma realidade semelhante a que encontramos em nossas cadeias nos dias atuais. Presos cumprindo prisões provisórias, aguardando um julgamento que parece nunca acontecer, muitos encarcerados há anos, mesmo tendo praticado crimes de pouco potencial ofensivo ou envolvendo valores financeiros insignificantes, submetidos a um sistema penal lento e ineficaz, protagonizando cenas que não estão muito longe do que narra Beccaria no trecho acima grifado. Pois que, mais de duzentos anos depois de escrito, as palavras contidas no pequeno livro do Marquês amoldam-se ao panorama atual de nosso Sistema Processual-prisional. ______________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: Sobre a perspectiva das condições de nosso sistema penitenciário, um dos instrumentos da política criminal, creio que nenhum de nós que não tenha experimentado na pele a dura realidade das prisões brasileiras possua condições de ter plena consciência da falácia que é vendida como promessa de ressocialização dos apenados. Uma parte sombria de um todo injusto chamado de “Sistema Penal” (o nome em si já diz o seu intuito), que não cumpre outra 51 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. função (não social) senão a de “selecionar” aqueles que expiarão os pecados da sociedade, pelo bem da comunidade. Ou seja, na prática, o sistema penal em vigor não cumpre outra tarefa senão a de tirar do convívio da sociedade aqueles nos quais se consegue colar com eficiência a etiqueta de “criminoso”, de “não consumidor”, pois nessa sociedade globalizada onde só existe no mundo quem tem poder aquisitivo, quem não dispõe desse “atestado de boa conduta” está sempre correndo o risco de ser alvo da mira da lei. É a essa essência seletivista do sistema penal a que se refere Maria Lúcia Karam, no volume 1 de seu brilhante livro, conforme a seguir: “A função real do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução de estruturas dominantes já bastaria para demonstrá-lo. A seleção dos indivíduos que, processados e condenados, vão ser demonizados e etiquetados como 'criminosos' – assim cumprindo o papel do 'outro', do 'mau', do 'perigoso' e, agora, do 'inimigo' – necessariamente se faz de forma preferencial entre os mais vulneráveis, entre os desprovidos de poder, entre os marginalizados e excluídos.” 24 Portanto, conforme as palavras da juíza aposentada do TJRJ 25, o sistema penal existe como instância máxima de controle social, mas de um controle direcionado aos já excluídos pela própria “regra do jogo” da sociedade. É nesse sentido que a autora complementa mais adiante, vejamos: “No Brasil, isso é evidente; as estatísticas são até dispensáveis. De todo modo, vale mencionar que os censos, periodicamente realizados pelo Ministério da Justiça do Brasil, têm classificado como absolutamente pobres entre 90 e 95% dos internos no sistema penitenciário brasileiro.”26 Diante do exposto, Nobre Leitor, tomo a liberdade de fazer uso de um jargão popular: só não vê quem não quer! Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político (coautor de Elite da Tropa), traz em seu último livro um exemplo muito claro da ineficácia social, pra não dizer da injustiça, que esse sistema penal praticado em nosso país pode proporcionar, através da estória de dois rapazes 24 25 26 KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade: recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. v.1 Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 25. A autora assina vários livros sobre política criminal. É presidente da filial brasileira da Law Enforcement Against Prohibition, organização internacional que defende a legalização das drogas mediante um sistema de regulação e controle. Atuou durante 08 (oito) anos como juíza de direito na justiça criminal, segundo seu histórico pessoal, disponível em: http://www.leapbrasil.com.br/quem-somos/diretores. KARAM, ibid, p. 26. 52 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. que portavam droga no mesmo local (apenas com uma diferença, um deles pobre, negro e mal vestido e o outro rico, branco e bem vestido), ele reproduz um contexto social sobre o qual muitos de nós já devemos ter ouvido falar de algo parecido, vejamos então: “Dois adolescentes de 15 anos[...] estão em uma padaria no momento em que uma senhora dá pela falta de sua carteira, deduz que a furtaram e pede socorro: 'Déus do céu, levaram meu dinheiro!' Um policial que toma café com lei, pão e manteiga, à paisana, puxa a arma e ordena, com a boca cheia mas ansioso por cumprir seu dever: 'Ninguém sai.' Dirige-se à porta, passa os olhos de sobrevoo pelos fregueses e escolhe o suspeito. Não preciso lhe dizer quem foi brindado pela sorte, ou pelo azar. Todos os fregueses se retiram do estabelecimento, enquanto o sargento revista o jovem negro e malvestido. O outro rapaz escapa lívido, trêmulo, mas sem dar bandeira. Carrega no bolso várias trouxinhas de maconha que acabara de comprar no morro próximo à padaria para servir aos convidados em sua festa de aniversário, que estava marcada para o próximo sábado. [...]O rapaz malvestido não furtara a carteira da senhora. Quem levou o dinheiro? Ninguém jamais descobriria. [...]Na porta da padaria acontece o flagrante. O menino tenta explicar, mas as trouxinhas são numerosas e permitem seu enquadramento no crime de tráfico. [...]Levado para a delegacia, encaminhado ao juiz, o menino acaba sendo internado em uma instituição para cumprir 'medida socioeducativa'. [...]Tudo o que o cerca (espaço, temperatura, higiene, abordagem, alimentação, atividades ou o ócio tedioso) lhe envia a mesma mensagem, em diferentes registros, por meio das estranhas linguagens silenciosas dos objetos e dos gestos: 'Ei cara, você não presta; você nada vale. Se está em um lugar que parece depósito de gente, se está na lixeira, é porque você é igual aos demais que ali estão e é mesmo o lixo da sociedade.' Aos poucos, com a insistência dessa mensagem, reproduzida dia e noite, o jovem começa a assimilá-la, inconscientemente. [...]Vestindo a máscara que a experiência punitiva confeccionou, o jovem volta ao convívio da sociedade, repleto de ódio, mágoa, ressentimento, com a autoestima devastada e, não raro, disposto a merecer o estigma que a Justiça carimbou em sua testa.Já que o supõem violento, criminoso, irrecuperável, o adolescente prepara-se para agir em conformidade com o que esperam dele. [...]O que terá acontecido ao rapaz de classe média que escapou à 'dura' policial na padaria? Ele desceu da favela ao lado daquele que foi capturado. Tinha no bols a mesma quantidade de maconha. Graças ao seu jeito mauricinho, filhinho de papai, passou impune. Salvou-se porque não correspondia ao esteótipo do traficante.” 27 A estória acima, parecida com a história (grifo) de milhares de brasileiros, que são penalizados por serem pobres, traz em seu bojo a essência do sistema penal em vigor: a seletividade. São histórias como essa que nos fazem perguntar por que um empresário, que nega direitos trabalhistas 27 SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, pp. 50-57. 53 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. fundamentais a cidadãos que dependem desse dinheiro para sustentar suas famílias, não são levados à Justiça para responder por esse “crime”. São fatos como esse, corriqueiros em nosso dia a dia, que nos fazem questionar por que fabricantes de bebida alcóolica, que bombardeiam a mídia com campanhas publicitárias diárias, nunca são responsabilizados por conduzirem subliminarmente o consumidor à dependência do álcool, com sua eficácia publicitária, que sabemos é real. São histórias como essa que nos fazem perguntar por que os corruptos (vejam que não limitei a corrupção aos políticos), dos quais o país está repleto, não respondem a processos criminais por provocarem estragos enormes às finanças públicas, desviando dinheiro que faz falta para a melhoria das escolas públicas e o aparelhamento da saúde pública. Talvez a resposta seja mais simples do que parece. Exatamente porque a “sociedade” (pra não dizer os poderosos) decidiu rotular como crime apenas as condutas que têm o potencial de serem praticadas pela grande massa socialmente excluída (em especial aqueles tipos penais mais frequentes nos noticiários – furto, receptação, etc...), deixando de fora da definição de crime, portanto de fora do alcance do Judiciário, as condutas geralmente praticadas por pessoas pertencentes às classes dominantes, por pessoas de grande influência política e econômica. Na prática, o sistema penal é feito pra tirar de circulação aqueles que não têm poder de consumo, com um sistema penitenciário planejado para falhar de propósito, a fim de “estocar” pessoas indesejáveis. Assim, consultando novamente as palavras do professor da UFPE Luciano Oliveira, expressas em seu artigo: “A fé e a montanha: notas sobre a ideia de ressocialização penal”, podemos entender a contradição que se encontra na falaciosa finalidade da ressocialização penal frente à característica mais evidente das nossas prisões, que funcionam como verdadeiras universidades do crime, pois sem nenhum critério “amontoam-se” num mesmo lugar prisioneiros de difícil recuperação junto àqueles que cometeram um único crime, criando juntamente com as péssimas condições de alimentação, higiene e sáude um ambiente desfavorável à ressocialização. Ademais, a maior contradição talvez esteja na própria essência do sistema penal, conforme alerta o professor: “Quem se faz essa pergunta a sério constata que a prisão, pelo menos como lugar de 54 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. ressocialização, é uma ideia às voltas com uma incongruência fundamental: como seria possível reinserir alguém na sociedade segregando-o dela?” 28 Eu, dentro de minha humilde concepção, perguntaria mais ainda: por que falamos em ressocializar, reinserir, ao invés de reconhecer que aqueles a quem se convencionou chamar de criminosos são parte da sociedade? Que o que chamamos de crime é inerente à sociedade, pois sua distribuição desigual de renda favorece a sua ocorrência e é mais honesto criar condições que acabem com as desigualdades sociais, tornando a vida mais justa pra todos do que insistir em banir do nosso convívio pessoas inadequadas socialmente? Manter um sistema prisional nessas condições, sem qualquer respeito ao mandamento constitucional da individualização da pena 29, onde pessoas são simplesmente jogadas dentro de uma caixa de concreto, sem critério nenhum, sujeitas à influência de criminosos mais experientes, formando uma espécie de sociedade paralela, funciona apenas como um meio de perpetuar ainda mais a dita criminalidade, conforme assevera mais adiante o professor Luciano Oliveira, a seguir: “E aqui o paradoxo é total: como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio da sociedade e o incapacita, por essa forma, para as práticas da sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a sociedade dos cativos, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária?”30. Assim, enquanto não houver um mínimo de vontade política (honesta) em mudar esse sistema prisional excludente para um sistema verdadeiramente inclusivo e pedagógico, reservando a privação da liberdade apenas aos casos mais graves e de difícil recuperação, não conseguiremos sequer começar a pensar em mudança desse patamar extremamente ineficiente de nosso sistema penal atual. 28 OLIVEIRA, Luciano. A fé e a montanha: notas sobre a ideia de ressocialização penal. Versão escrita da intervenção oral no painel Violência e Sistema Prisional realizado na Universidade Católica de Pernambuco em 29/05/2008. Disponível em: <www.quecazzo.blogspot.com.br/2008/07/f-e-monyanha-notas-sobre-idea-de.html>. Acesso em: 11/07/2013. 29 “A lei regulará a individualização da pena[...]” (Art. 5º, Inc. XLVI, CF/88) 30 OLIVEIRA, op. cit. 55 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Portanto, consideradas as especulações acima, continuemos com nossa análise da obra de Beccaria em confronto com nosso ordenamento. ________________________________________________________ Em seguida, encontraremos mais alusões à necessidade da celeridade processual e eficiência do sistema prisional, conforme poderemos ver a seguir: O rigor do suplício não é o que previne os delitos com maior segurança, porém a certeza da punição[...] Às vezes, abstemo-nos de punir um crime pouco importante, quando o ofendido perdoa. É um ato benevolente, porém contrário ao interesse público.[...] O direito de castigar não pertence a qualquer cidadão em particular; é das leis, que são o órgão da vontade geral. Um cidadão ofendido pode deixar de valer-se de sua parte desse direito, porém não tem qualquer poder sobre as dos outros. Quando as penas se tiverem feito menos cruéis, a clemência e o perdão serão menos necessários.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, Beccaria vem nos trazer novamente a origem do Direito de Punir para estabelecer o caráter público do mesmo. De forma que, segundo o autor, a humanização das penas, em conjunto com a atividade estatal que convencionamos chamar de jus puniendi constituem a maneira mais eficaz de punir devidamente os criminosos pela prática de seus atos. É aqui que o autor trabalha o efeito coercitivo da lei, diante do qual a certeza da “punição” pela prática de condutas delituosas, sendo submetido a um aparato estatal protegido por leis elaboradas em acordo com a vontade pública darão um efeito muito mais eficaz do que as penas cruéis e extremas. Assim, o autor vem novamente trazer idéias que influenciaram juristas ao longo dos séculos, operando mudanças significativas na forma como o mundo ocidental tratava dos Delitos e das Penas, tendo seu pensamento presente nos Princípios Gerais e Institutos Fundamentais de nosso Sistema Legal. 56 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. V QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONAIS AOS DELITOS Nos capítulos XXIII, XXIV e XXV o autor estabelece a necessidade de se atribuir penas proporcionais aos delitos, além de que os mesmos devem ser divididos de acordo com a gravidade de sua ameaça à sociedade. É exatamente neste ponto que chegamos à essência do pensamento de Beccaria, que balançou toda a estrutura do “Antigo Regime”, trazendo uma nova perspectiva para o Direito Penal, os Processos Criminais e a Aplicação das Penas, influenciando várias constituições, inclusive a nossa Carta Magna, repleta de institutos jurídicos baseados em suas ideias. Nesse sentido, o autor vem invocar a ameaça ao “Bem Público” como medida da gravidade dos delitos, devendo as penas serem mais ou menos severas em função dessa gravidade, vejamos então: “O interesse geral não é apenas que se cometam poucos crimes, mas ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para impedir os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, segundo o autor, por ser o delito uma ameaça ao bem comum, uma conduta reprovável pela sociedade, seu impacto deve ser medido de acordo com o grau de ameaça que a conduta produz à coletividade e aos principais valores que norteiam a sociedade, estabelecendo-se penas mais rigorosas para aquelas condutas que oferecem uma maior ameaça ao bem-público e penas menos rigorosas para as de menor potencial ofensivo. Não é preciso ser especialista em Direito Penal para perceber a influência de tal pensamento em nossa Ciência Criminal, visto que as penas presentes no código penal são previamente cominadas obedecendo uma proporção entre elas e os delitos que se destinam a prevenir e punir. Baseado nisso, Beccaria estende seu raciocínio, observando mais um indício da ineficácia na maneira de punir do “Antigo Regime”, pois, devido sua 57 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. postura meramente vingativa, assumia um caráter paleativo, temporário e isolado, sem se preocupar com o efeito secundário que as práticas ocasionariam, vejamos: “Se o prazer e o sofrimento são os dois grandes motores dos seres sensíveis; se, entre as razões que guiam os homens em todas as suas atitudes, o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e os castigos; se dois desses crimes que afetam desigualmente a sociedade recebem idêntico castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo de recear uma pena maior para o crime mais hediondo, resolver-se-á com mais facilidade pelo crime que lhe traga mais vantagens; e a distribuição desigual das penas fará nascer a contradição, tanto notória quando frequente, de que as leis terão de castigar os delitos que fizeram nascer.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, aplicar a mesma pena a dois delitos de características completamente diferentes provocaria uma contradição de difícil reparação, já que diante da certeza da mesma pena para qualquer um dos delitos, o homem com traços de personalidade voltados para a delinquência não hesitaria em praticar o crime que maior vantagem possa proporcionar. Em vários trechos vemos a preocupação do autor em mostrar que o Estado não deveria apenas “punir”, mas ao mesmo tempo proporcionar um corpo de leis no qual seus efeitos também servissem como forma de prevenção dos delitos, trabalhando no sentido de coibir a prática dos mesmos. É seguramente uma crítica ao “Antigo Regime”, onde priorizava-se a vingança pessoal, aplicando-se rigor máximo (grifo) a qualquer delito, por menor que fosse a ameaça que representasse. Portanto, havendo uma proporção clara entre cada pena e o crime para o qual se destina, evita-se punir dois crimes diferentes com a mesma pena. Assim, a lei, além de determinar os crimes e suas respectivas penas, deveria ser escrita de forma que causasse um efeito coercitivo, fazendo com que o destinatário da norma conseguisse entender claramente o caráter delituoso de determinada prática, evitando assim realizá-la. Vários são os críticos das Teorias Preventivas, apontando inúmeras lacunas nas mesmas. Nossa humilde crítica a essa teoria, em especial às idéias 58 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. de Beccaria, reside no fato de que foram direcionadas para um homem “Racional” dentro da concepção iluminista, ou seja, um ser humano em sua plenitude de liberdade, que faz um uso extremamente crítico da razão, completamente livre de preconceitos e dogmas, com condições de avaliar de forma cristalina todos os efeitos de suas ações, evitando o caminho que a luz da razão aponte como errado. Ocorre que tal concepção, apesar de influenciar nossa sociedade atual, não previu os efeitos futuros do Capitalismo Industrial sobre a humanidade, sendo pensada apenas para uma sociedade linear, ao contrário do caráter estratificado que presenciamos hoje em dia. As inúmeras classes sociais existentes e seus respectivos valores formam um imenso mosaico de meio ambientes, várias subculturas onde em cada uma delas um indivíduo encontrará diferentes motivações para a prática do delito. Nesse momento, a melhor pergunta a ser feita é como um “bicho-homem”, que nasceu na miséria e foi criado nela, sem acesso a nenhuma vantagem da sociedade, tratado desde sua mais tenra idade com descaso e indiferença, como tal indivíduo pode ter condições de entender o caráter delituoso de sua conduta, já que para ele aquilo é normal, pois foi apenas isso que ele testemunhou em toda a sua vida? De qualquer forma, apesar das críticas à “ingenuidade” de Beccaria, as suas considerações são de importância histórica para nossa sociedade, pois constituem as primeiras preocupações bem elaboradas de prevenção ao crime, consubstanciando-se em uma das primeiras intenções de se elaborar uma Política Criminal, não merecendo serem abandonadas totalmente, mas sim adaptadas à realidade atual. Nesse sentido, o autor continua sua reflexão beneficiado pela sua visão ampla de economista, apontando as contradições da visão que imperavam no Direito Criminal daquela época, vejamos: “Se for estabelecido um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para aquele que mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um documento importante, em pouco tempo não se procederá mais nenhuma diferença entre esses crimes; serão destruídos no coração do homem os sentimentos da moral, obra de muitos séculos, cimentada em ondas de sangue, firmada muito lentamente através de mil obstáculos, edifício que 59 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. apenas se pode erguer com o auxílio das mais excelsas razões e o aparato das mais solenes formalidades.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, utilizando-se de uma análise histórica da construção dos principais valores morais presentes no inconsciente coletivo, o autor vem sugerir que a falta de critério na proporcionalidade das penas em relação aos delitos poderia gerar uma espécie de Anomia (num sentido puramente durkheimeano – ausência de regras), já que, de acordo com o autor, tal situação poderia acarretar a banalização dos crimes, eliminando aos poucos todo o conceito moral por trás do delito, destruindo lentamente a solidariedade social, de forma que a proporção entre os delitos e as penas mostra-se extremamente necessária para a manutenção da Paz Social. Em seguida, chegamos ao ápice da pequena grande obra de Beccaria, onde o autor vem concluir seu exame da necessidade da proporção entre penas e delitos, estabelecendo como argumento principal, o mesmo embasamento filosófico que dá suporte ao Direito de Punir do Estado, além de eleger o legislador como o responsável por atribuir as proporções adequadas entre delitos e penas, de forma a evitar injustiças, conforme veremos a seguir: “Tendo-se como necessária a reunião dos homens em sociedade, de acordo com convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular, encontrar-se-á uma progressão de delitos, dos quais o maior será o que tende à destruição da própria sociedade. Os crimes menores serão as ofensas cometidas contra particulares. Entre essas duas extremidades ficarão compreendidos todos os atos que se opõem ao bem público, desde o mais criminoso até o menos passível de culpa. Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário estabelecer e buscar uma progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das 60 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. penas proporcionadas aos crimes e que, principalmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Portanto, considerando que o Direito de Punir é fruto direto do consenso entre os indivíduos que fazem parte de uma nação, segundo o autor, as mesmas parcelas de liberdade que os homens em estado de natureza concordaram em sacrificar para a manutenção da Ordem Social (Contrato Social) dão suporte à necessidade da progressão das penas e dos crimes, atribuindo valores aos delitos, determinando que a sanção deve ser proporcional à gravidade da ameaça que a conduta oferece à sociedade. A importância do pensamento de Beccaria para o nosso ordenamento Jurídico é inegável, haja vista a fixação da pena presente em nosso Código Penal ter sofrido influência de suas ideias, já que o art. 68, CP, estabelece que a pena-base será fixada e individualizada, aplicando-se a mesma de forma necessária e adequada à necessidade da retribuição à sociedade e da prevenção de delitos futuros, atendendo-se ao critério do art. 59, de nosso Código Penal, conforme a seguir: “Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”31 (grifo nosso) Diante do exposto, a fixação da pena, sem desprezar o efeito de reprovação (Controle Social), considera fatos subjetivos, individualiza-a e aplica a lei adequadamente a cada caso concreto, tornando mais justa a atividade punitiva do Estado. O caput do art. 59, CP, abriga em sua redação os Princípios Gerais do Direito Penal inspirados nas ideias do sábio Marquês, de forma que podemos identificar em atuação neste diploma legal princípios como o da Legalidade Penal, da Dignidade da pessoa Humana, da Intervenção Mínima do Direito Penal, entre outros. Ao final, resta completamente manifesta a sintonia com o pensamento de Beccaria do trecho no qual se prevê que a pena será estabelecida 31 Art. 59, Código Penal Brasileiro. 61 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. conforme seja “necessário e suficiente” para reprovação e prevenção do crime, caracterizando a devida proporção entre os delitos e as penas a eles atribuídas. ______________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: A proporcionalidade das penas constitui acima de tudo a essência do pensamento de Beccaria e um dos princípios cruciais do Direito Penal em nosso Ordenamento Jurídico. Conforme visto acima, a aplicação da pena imprescinde de seu estabelecimento na medida exata para se garantir a reprovação e a prevenção do crime, manifestando assim, um juízo de proporcionalidade e de individualização da pena. Muitas vezes a leitura dessas expressões que a lei transporta em si tem a capacidade de inspirar em nós um sentimento de justiça, diante do qual a previsão legal por si só de um critério de proporcionalidade na aplicação da pena tem o potencial de nos fazer crer que o sistema penal alcança a equidade plena, pois o juiz teria simplesmente a tarefa de adequar o caso concreto aos critérios de aplicação da pena previstos em lei. Portanto, quando a lei fala em pena, quantidade de pena e regime de cumprimento conforme seja necessário e suficiente (grifo), vem nos fazer acreditar que o juiz, ao sancionar a pena em concreto estará realizando justiça, aplicando de forma proporcional a sanção adequada ao delito praticado. Contudo, atrevo-me aqui a supor que esse critério de proporcionalidade pode estar mascarando a real injustiça por trás de nosso sistema penal, já que na aplicação da pena, apesar de representar o Estado, o magistrado atua apenas dentro do Judiciário, não atingindo a totalidade complexa e multicultural de um Estado (Democrático) de Direito como o nosso, resumindo a proporcionalidade na aplicação da pena a critérios formalmente legais, praticando uma visão positivista do Direito. A pena apenas condena formalmente o condenado a cumprir um período de privação de sua liberdade em um estabelecimento mantido pelo Estado, sem considerar a crescente superpopulação carcerária, a 62 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. falta de critério na convivência entre criminosos habituais e condenados por apenas um crime, a atuação humilhante e (re)estigmatizadora dos agentes públicos que agem com excesso na execução da pena, enfim, todas as condições desumanas e cruéis às quais os apenados são submetidos. Ou seja, na prática, a execução da pena aplicada ao condenado possui um leque de condições ambientais nocivas e práticas desumanizadas que acompanham a mesma e terminam por agravar aquilo que o juiz, baseado em critérios legais, havia definido como necessário e suficiente para reprovar e prevenir os crimes, descaracterizando a proporção entre o delito praticado e a pena imposta. Luiz Eduardo Soares vai um pouco mais além, pois considera todo esse excesso velado de punição um crime do Estado contra os condenados, conforme alerta em seu livro, a seguir: “Observemos mais de perto o que ocorre no Brasil hoje. A imensa maioria dos presos é submetida a todos esses excedentes de pena descritos no parágrafo anterior. Claro que isso constitui uma ilegalidade. Afinal a sentença judicial está sendo descumprida. Esse descumprimento representa uma transgressão legal. E quem comete o crime, nesse caso, é o próprio Estado, especialmente o Executivo, responsável pela execução da sentença que o Judiciário determina. Imagina que situação complicada e contraditória: ao punir crimes o Estado comete outros.”32 Ouso ainda adicionar ao pensamento do ilustre sociólogo a prática de abuso de poder pelo Estado, o que nos remete novamente ao caráter de seletividade da Legislação Penal brasileira, que prevê como crime apenas condutas que têm o potencial de serem praticadas pelas massas excluídas da sociedade. Ficando ausentes da tipificação como crimes as condutas praticadas pelas classes dominantes. Por que isso? O Estado também não pode cometer crimes? Esse descaso com a execução efetivamente proporcional da pena não seria um crime do Estado contra os condenados? O autor complementa seu raciocínio: “O problema é que vigoram dois pesos e duas medidas. O peso da mão do Estado sobre o indivíduo que transgride é incomparavelmente mais ágil do que a intervenção que a Justiça e o Ministério Público promovem contra o representante do poder Executivo que contraria a legalidade. São raros os juízes das varas de execução que cumprem com rigor seu dever e efetivamente fiscalizam o sistema penitenciário. Se o fizessem, estes juízes se 32 SOARES, op. cit., p.115. 63 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. veriam com frequência diante da necessidade de determinar remoção de presos, a libertação de outros e a interdição de cadeias públicas e penitenciárias.”33 Difícil acreditar que essa situação tenha alguma perspectiva de mudança, pois como já debatemos acima o Estado não cumpre nem mesmo o mínimo de garantias a direitos fundamentais dos condenados que a Constituição determina34, quem dirá pensar em mudar a visão de toda a sociedade sobre a problemática do sistema penal brasileiro? Assim, diante de tais considerações, passemos a dar continuidade ao nosso estudo comparativo da obra “Dos Delitos e das Penas”, marco sem precedentes dos alicerces de nosso Direito Penal. ________________________________________________________ 33 SOARES, ibid, p. 115. pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do 34“A apenado e é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” (Art. 5º, incs. XLVIII e XLIX, CF/88) 64 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. VI DA PREVENÇÃO DOS CRIMES Dado o caráter utilitarista de suas colocações, presentes no livro em comento, Beccaria não poderia terminá-lo sem enfatizar a importância da prevenção dos crimes para a sociedade, vejamos: É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bemestar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, o autor vem nos trazer um verdadeiro “Postulado” de nossa Ciência Criminal, inevitavelmente presente em qualquer teoria que se preze a estudar Política Criminal, ensejando a formulação da máxima de que é melhor prevenir o Crime do que ter que arcar com os gastos gigantescos que a repressão do crime enseja. De forma que o autor já em sua época parecia prever o que aconteceria dois séculos depois em vários países do mundo, as mazelas sociais causadas pelo crescimento sem freios da economia mundial, que desprezou completamente as limitações do ser humano e da natureza em prol de um progresso que não atingiu a todos equitativamente, relegando muitos à marginalização, sem dar oportunidade alguma de participarem dos benefícios da sociedade. O efeito disso todos sabemos, seres humanos transformados em “Animais”, pois que a razão de sermos humanos é o fato de sermos dotados de cultura, do contrário seríamos apenas bichos, repetindo a programação biológica que a natureza impõe. Portanto, prevenir não se resume apenas a evitar que os crimes ocorram pura e simplesmente, constitui-se na tarefa de criar um ambiente que proporcione o convívio social saudável, onde as pessoas vivam em condição de igualdade de oportunidades, com o suporte de uma “Legislação Justa e Eficaz” para se atingir tal objetivo, haja vista a lei ser a manifestação jurídica da vontade 65 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. geral. Nesse sentido, o autor vem complementar o raciocínio, alertando sobre o cuidado que deve ser tomado no exagero da lei, vejamos, então: “Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se houvesse necessidade de proibir-lhe tudo o que pudesse lhe ser ocasião de praticar o mal? Seria preciso começar por tirar-lhe o uso dos sentidos. Para uma causa que impele os homens a cometer um delito, existem mil outras que os impelem a ações indiferentes, que apenas são delitos perante as leis más. Ora, quanto mais se estender a esfera dos delitos, tanto mais se fará com que sejam praticados, pois se verão os crimes aumentarem à proporção que as razões de crimes especificados pelas leis forem mais numerosas, especialmente se a maioria de tais leis não forem mais do que privilégios de um pequeno número de senhores.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Dessa forma, o cuidado na formulação das leis penais também contribui para a prevenção, haja vista seus mandamentos limitarem os atos dos indivíduos da sociedade. De forma que, se a Lei Penal for extremamente ampla, elegendo um número sem fim de condutas como delituosas, os indivíduos da sociedade encontrar-se-ão quase todos delinquentes, haja vista não sobrarem mais condutas que não constituam crimes para serem praticadas. Essa é uma prática comum dos tiranos, proibir tudo a todos (grifo), como forma de castrar o indivíduo, de torná-lo impotente perante a perversidade de quem impõe o Poder. Nesse sentido, o autor vem novamente invocar a necessidade da elaboração de leis que todos os indivíduos possam ler e compreender, vejamos: “Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruílas. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma 66 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. fonte nefasta de delitos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, Beccaria vem nos mostrar novamente a importância de uma legislação de fácil entendimento por todos, tendo em vista o fato de que passando-se as leis a serem conhecidas por um grande número de pessoas, já que segundo ele, se os homens souberem os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a certeza da punição evitará a ocorrência de mais crimes, da mesma forma que a sociedade não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo pelos tiranos. Após investigar os meios de se prevenir os crimes, o autor finaliza este capítulo alertando sobre a maneira mais eficaz de evitar os descaminhos sociais, a “Educação”, conforme poderemos ver a seguir: “Finalmente, a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos propensos à prática do mal, é aperfeiçoar a educação. O assunto é muito vasto para caber nos limites que me prescrevi. Ouso, contudo, dizer que está tão intimamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo árido e cultivado só por um pequeno número de sábios, até chegarem os séculos ainda distantes em que as leis não terão outra finalidade senão a felicidade do povo. Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido, desenvolveu as máximas principais de uma educação verdadeiramente útil. Fez ver que ela consistia muito menos na confusa multidão dos assuntos que se apresentam às crianças, do que na escolha e na precisão com as quais se lhes são expostos. Provou que é preciso trocar as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre enseja ao espírito do aluno. Ensinou a encaminhar as crianças para a virtude, pela estrada arejada do sentimento, a afastá-las do mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que acompanham a má ação. Demonstrou que o método incerto da autoridade 67 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. severa teria de ser posto de lado, pois produz apenas uma obediência hipócrita e passageira.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Ante o exposto, Beccaria vem eleger a Educação como o meio mais seguro de se prevenir a ocorrência de crimes, destacando sua importância no esclarecimento dos indivíduos, haja vista sua falta favorecer a tirania dos governos, manifestada através do monopólio do conhecimento por poucos, privando as pessoas das oportunidades e de seus direitos. Nesse intuito, vem fazer alusão a Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista que fora duramente perseguido em virtude de um trecho seu sobre a “Profissão de Fé do Vigário Savoiano” presente em sua obra Emílio, ou da Educação, um ensaio filosóficopedagógico sob a forma de romance que procura orientar a educação da criança, evitando que se torne “má”, seguindo a teoria iluminista do homem naturalmente bom, desenvolvendo as potencialidades inerentes desta fase da vida humana de forma progressiva, no sentido da adaptação das necessidades individuais ao desenvolvimento do cidadão humano. Tal livro hoje é considerado por muitos como o primeiro Tratado sobre a Filosofia da Educação no mundo ocidental. Dessa forma, o autor nos traz que o autoritarismo e a violência geram ainda mais autoritarismo e violência, visto que é baseado apenas na força, que a obediência devida a regimes assim é hipócrita e apenas se sustenta durante o tempo no qual a tirania atua, pois afastando-se o medo do tirano, encerra-se a influência que o mesmo exercia anteriormente. Portanto, segundo o autor, o conhecimento liberta as pessoas, visto que se a educação atuar de forma que todos conheçam claramente seus direitos e deveres, a sociedade se sustentará justa por mais tempo, proporcionando iguais condições a todos, criando portanto ambiente favorável a prevenção do crime, sem necessidade de repressão. É uma “Utopia”, mas quantos sonhos considerados impossíveis já não se realizaram em nossa humanidade? _______________________________________________________ PONTO DE REFLEXÃO: Viver em uma sociedade na qual não se precise mais de aparatos estatais 68 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. repressores atuando no controle social não deixa de ser um sonho distante, uma utopia, que cada um de nós guarda com carinho em seus desejos mais profundos, mesmo que a convivência com a realidade social e política trate de deixar esse sonho cada vez mais distante de nossos corações. Aproveitando o gancho da utopia, não custa conferir as palavras de Maria Lúcia Karam sobre a utopia da abolição do sistema penal, vejamos: “De todo modo, não parece que a abolição do sistema penal seja tão somente uma utopia. A abolição do sistema penal é muito mais uma consequência lógica do caminho a percorrer nos esforços da humanidade por concretizar e aprofundar o modelo do Estado de direito democrático, por concretizar e aprofundar os direitos fundamentais.”35 Contudo, mesmo considerando os avanços que nosso Estado de Direito (Democrático?) alcançou, se compararmos com o período negro da ditadura que surgiu do golpe militar de 64, devemos ter em mente que ainda existe um caminho muito longo a ser trilhado. A atuação de nossas polícias em meio às manifestações que ocorreram durante e logo após a copa das confederações deste ano (2013) é um indicador claro disso. A perspectiva de Beccaria sobre os fins da pena (é preferível prevenir os crimes do que punir) encerra a teoria dos fins da pena chamada de Prevenção Geral da Pena, da qual foram adeptos Feuerbach e J. Bentham. Todavia, a configuração do atual sistema penal, orientado acima de tudo para a punição retributiva, parece contradizer sobretudo a sua própria origem, supostamente preventiva. Nesse sentido, apesar de já se falar em “Nova Prevenção” (miscigenação dos mecanismos de controle social formais e informais – patrulha no bairro, UPPs, etc...), o paradigma da “Prevenção Penal”, parece recair sempre na ingenuidade, atuando mediante a expectativa de uma atitude negativa do cidadão (proibição de condutas), de aplicação duvidosa à realidade fragmentada e multicultural da sociedade atual, especialmente nossa sociedade brasileira, que se encontra completamente imersa nos efeitos da globalização. A seletividade do sistema penal é a sua marca registrada, tudo isso baseado em um discurso convicente, pois utiliza-se do medo da população, mas que na prática aponta apenas para determinados grupos sociais (os excluídos do 35 KARAM, op. cit., p. 50. 69 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. mercado formal de trabalho) como grupos que “supostamente” teriam maior propensão à prática do crime. Entretanto, um olhar mais atento para essa perspectiva talvez possa revelar uma das maiores, senão a maior dentre as contradições presentes no sistema penal em vigor. Façamos por um momento o breve exercício de supor que a prevenção preocupa-se realmente em evitar que os “criminosos em potencial” realizem alguma conduta delituosa e que o fundamento da “Prevenção Geral” teria como finalidade exclusiva “tutelar os bens jurídicos de maior importância para a sociedade”, assumindo assim uma importância maior diante dos outros ramos do Direito Público. Ora, se fosse esse realmente o seu principal objetivo (prevenir crimes), o Estado trataria de cumprir os diversos institutos garantidores dos diversos direitos fundamentais presentes em nossa Constituição. Contudo, não é isso que vemos na prática, pois a educação continua uma falácia e a saúde pública um instrumento de humilhação social. Conforme nos assevera Maria Lúcia Karam, que revela: “O sistema penal que só atua negativamente – aliás, em todos os sentidos, mas, aqui, no sentido de atuar proibindo condutas, intervindo somente após o fato acontecido, para impor a pena como consequência criminalizada – é contraditoriamente apresentado como um instrumento de atuação positiva. As supostas obrigações criminalizadoras são extraídas de uma leitura distorcida da Constituição. O que os dispositivos garantidores da proteção de direitos fundamentais, assentados nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, ordenam ao Estado são intervenções positivas que criem condições materiais – econômicas, sociais e políticas – para a efetiva realização daqueles direitos, o que, mesmo para quem ilusoriamente acredita na reação punitiva, não implica em intervenção do sistema penal.” 36 Portanto, dessa leitura distorcida da Constituição mencionada pela autora, nascem os pressupostos fundamentadores de nosso sistema penal, diante dos quais se passa a superestimar a necessidade da manutenção de um sistema penal baseado em controle social previsto em lei e na punição como expiação para “mau comportamento”, subestimando a necessidade da criação pelo Estado de condições econômicas, políticas e sociais que dêem suporte à promoção da equidade para todos, sem distinção. Eis que surge uma incoerência gritante em nosso Estado de Direito (Democrático?), pois é fácil constatar que a “Lei” é rigorosamente obedecida quando se quer punir quem pratica crimes, mas é 36 KARAM, op. cit., p. 29. 70 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. desobedecida no momento de se promover bem-estar e justiça social para todos, conforme preceitua muito claramente nossa Carta Política. 37 Nesse sentido, frente às intervenções positivas destinadas a garantir a existência e a proteção aos Direitos Fundamentais Karam complementa: “São ações como essas, de natureza positiva, promotoras de direitos, e não ações negativas, proibitivas de condutas, que se fazem obrigatórias e eficazes na atuação do Estado para proteção dos direitos fundamentais ditos de natureza social.”38 Do exposto, surge a pergunta: qual é a prioridade, vigiar e punir ou criar condições sociais verdadeiramente justas para a população? Afinado com essa perspectiva, a exemplo de Foucault, Luiz Eduardo Soares elege nosso sistema penal como um monumento ao fracasso civilizatório, vejamos: “Submeter uma pessoa ao regime de privação de liberdade é uma declaração de impotência ou de fracasso de nossa parte. Como não sabemos o que fazer diante desses desafios, recuamos ao instrumento rudimentar e primitivo, ao mecanismo medieval e obscurantista do aprisionamento. Prisões são testemunhos de fracasso civilizatório e prova de nosso atraso em matéria de procedimentos judiciais.”39 Dessa forma, se realmente fosse intenção do Estado, mediante o sistema penal em vigor, assegurar a proteção aos bens mais valiosos à sociedade (vida e liberdade – pelo menos em teoria), existiriam também aparatos estatais de eficácia plena na garantia dos Direitos Fundamentais portadores da mesma eficiência com a qual o sistema penal em vigor, na prática, rotula e exclui socialmente. Portanto, desfazendo a ilusão da ressocialização, se o Estado não fornece dignidade humana aos cidadãos através de políticas públicas eficientes, garantidoras de “Educação e Saúde”, dentre outros Direitos Fundamentais, como esperar que seja seu interesse prevenir crimes e reinserir dignamente os apenados à sociedade? Não sei para o respeitado leitor, mas para mim está claro que o sistema penal, da forma como se encontra em nosso ordenamento, cumpre muito mais a função de legitimador da exclusão social do que de protetor 37 38 39 “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (grifei).” (Art. 193, CF/88) KARAM, op. cit., p. 31. SOARES, op. cit., p.103. 71 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. dos bens mais sensíveis da sociedade. Feitas as presentes considerações, continuemos com nosso estudo da obra de Beccaria. ________________________________________________________ 72 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. VII BECCARIA CONCLUI Após contemplar-se o conteúdo extenso, sistematizado e valiosíssimo do livro de Beccaria, aqui destacado por meio de seus trechos de maior importância e afinidade com o nosso Ordenamento Jurídico, é natural imaginarmos que a conclusão do competente autor seria extensa e detalhada. Todavia, como para o autor não faltaram argumentos para embasar sua obra, acabou dizendo tudo que tinha pra falar, reservando apenas poucas linhas para a conclusão, a seguir: “De tudo o que acaba de ser exposto, pode-se deduzir um teorema geral de muita utilidade, porém pouco conforme ao uso, que é o legislador comum dos países: É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Entretanto, conforme podemos constatar acima, não é necessariamente o tamanho do texto que indica sua qualidade e sim o conteúdo. Assim, finalizaremos nosso estudo com a análise de trechos dessa conclusão de Beccaria à luz dos Princípios do Direito Penal e Processual Penal, dos Direitos e Garantias Fundamentais e demais dispositivos existentes em nosso Ordenamento Jurídico, conforme será constatado nos trechos seguintes, vejamos: “É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, [...] ” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) No trecho destacado, percebemos claramente a intenção de se evitar o exagero na aplicação da sanção penal, a fim de se tratar o condenado como qualquer ser humano 73 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. deve ser tratado, com respeito e dignidade, fazendo-o pagar apenas pelo crime que cometeu, baseado nas sanções impostas por lei, pois o Direito Penal e o Processo Penal não devem constituir meios de manifestação da injustiça, posto que seus objetivos mínimos são os de nomear as condutas delituosas e fornecer os meios para o julgamento das mesmas, além de regulamentar a execução das sanções. A partir do momento que Beccaria, animado pelo espírito do Iluminismo, define que a violência na aplicação das penas deve ser evitada, antecipou um dos princípios basilares de nosso Ordenamento Jurídico, o da Humanidade, mandamento republicano presente no art. 1º, inc. III, de nossa Carta Magna, aqui estabelecido como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito: “a dignidade da pessoa humana”. Tal princípio, assim como outros presentes em nosso ordenamento, desdobra-se em vários outros mandamentos, como por exemplo, o disposto no inc. III, do art. 5º, CF, onde se estabelece que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante", bem como o previsto no inciso XLIX, do art. 5º, da mesma Carta, que assegura "aos presos o respeito à integridade física e moral", mandamentos protetores do reconhecimento da “dignidade inerente a todos os membros da família humana”, conforme nos informa a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Seguindo os ensinamentos de Beccaria, constataremos que muitos foram os julgamentos secretos realizados a fim de mascarar a injustiças praticadas pelos tiranos, vejamos: “a pena deve ser, de modo essencial,[...] pública[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Assim, nosso autor vem nos trazer, séculos antes de nossa Carta Magna ser promulgada, o “Princípio da Publicidade dos Atos Processuais”, norma constitucional presente no art. 5º, inc. LX, determinando que “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.” Como uma das garantias individuais em nosso ordenamento, tal princípio vem criar uma proteção no sentido de se evitar a prática de abusos, exageros e omissões na atuação dos órgãos julgadores, constituindo uma ferramenta eficaz de controle social sobre tais órgãos do Poder Judiciário, a fim de se evitar acusações secretas, prisões arbitrárias, perseguições a 74 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. inimigos políticos, entre outras ilegalidades na aplicação da pena. Nesse sentido, nossa Constituição tem em seu texto um dispositivo regulador da atividade do Magistrado, presente no art. 93, inc. IX, onde se determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade[...]”, de forma que não devem existir atuações secretas e obscuras do Judiciário, em virtude do caráter Democrático de nosso Estado de Direito. Além de nos adiantar a publicidade dos julgamentos, Beccaria traz em sua pequena conclusão outra característica essencial da pena, vejamos então: “a pena deve ser, de modo essencial,[...] pronta[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Em suas sábias palavras o autor vem redigir a célula-mãe do “Princípio da Reserva Legal”, constante do inc. XXXIX, art. 5º, de nossa Carta Política, o qual nos diz que “[...]não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, somente a lei pode prescrever penas aos delitos elencados por ela, ilegitimando qualquer forma de punição que não seja determinada pela mesma, submetendo todos os cidadãos, de acordo com o Princípio da Igualdade, à mesma fonte de aplicação da pena. Da mesma forma que a pena deve ser determinada por lei, o autor vem nos trazer também o caráter necessário da mesma, conforme a seguir: “a pena deve ser, de modo essencial,[...] necessária[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Portanto, sendo a pena necessária, sua aplicação deve ser realizada na medida exata da culpabilidade do condenado, nada mais do que isso, a fim de que a pena cumpra sua função jurídico-social. Dessa forma, vemos aqui a pré-formulação do Princípio da Fragmentariedade do Direito Penal, visto que este limita-se a condenar apenas as ações mais graves, previstas em lei, que lesem efetivamente os bens jurídicos mais relevantes, excluindo de sua atuação aquelas condutas que não oferecem perigo aos bens acima referidos. Em seguida, nosso grande “Filósofo do Saber Criminológico” nos traz outra consequência inevitável dos Princípios da Legalidade e da Reserva Legal, vejamos: 75 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. “a pena deve ser, de modo essencial,[...] a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Temos diante de nós o “Princípio da Intervenção Mínima”, pois quando Beccaria nos diz que “a pena deve ser, de modo essencial, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas” ele intenta dizer que para a obtenção do equilíbrio da ordem jurídica ameaçada somente devem ser utilizadas as sanções penais se todas as outras medidas não incriminadoras falharem em sua atuação, determinando assim o caráter de ultima ratio do Direito Penal. Fechando sua conclusão, Beccaria vem nos trazer a essência de seu trabalho escrito, os Princípios da Legalidade, da Proporcionalidade e da Individualização da Pena, vejamos: “a pena deve ser, de modo essencial,[...] proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas) Portanto, ao determinar que a pena deve ser proporcionada ao delito, Beccaria vem indicar o Princípio da Proporcionalidade, estabelecendo o caráter biunívoco da pena, onde cada conduta reprovável deve corresponder a uma pena cominada, obtendo como corolário dessa relação a individualização da mesma, já que se a conduta reprovável é praticada por um indivíduo e a pena é a prevista em lei para a conduta, aplicada na medida de sua culpabilidade, extrai-se que a pena é individualizada, levando em consideração o crime praticado, a pessoa do agente e a pena prevista em lei, além de outras circunstâncias também previstas em lei. Encontramos a individualização da pena em nossa Carta Magna no art. 5º, incs. XLV, onde é previsto que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado” e XLVI, onde se determina que “a lei regulará a individualização da pena”. Ao informar que a pena deve ser determinada pela lei, o autor encerra o Princípio da Legalidade Penal, presente em nosso Ordenamento Jurídico no art. 5º, inc. XXXIX, de nossa Constituição Federal e art. 1º, caput, de nosso Código Penal, onde se prevê que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. 76 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final, após estudarmos esta Pérola da Doutrina Jurídica, concluímos sua inestimável importância para nossas Leis e Processos Criminais atuais. O conteúdo presente nesta obra revolucionou o modo de se pensar a aplicação das penas, levando juristas e legisladores a reformular as leis e os processos penais, eliminando as práticas desumanas que eram “legalmente” empregadas até então. Acreditamos que ainda falta muito para a espécie humana atingir o panorama ideal nas relações sociais, a fim de se criar um mundo seguro para todos, repleto de solidariedade, harmonia e felicidade. Muitos dirão que isso é uma utopia, mas será que não foi justamente isso que Beccaria ouviu de alguns diante da nova concepção que propunha? O certo é que a racionalidade, a versatilidade e a persistência do autor, traços comuns aos grandes ícones da Humanidade, permitiram que Cesare Beccaria nos brindasse com seu livro, influenciando gerações, mostrando que nem tudo é impossível. Beccaria é sem dúvida um dos seres humanos mais importantes para a história de nossas sociedades, pois produziu uma obra muito à frente de seu tempo, fornecendo-nos um verdadeiro tratado sobre o estudo dos crimes e das penas. Superado por pouquíssimos, seu livro mudou a concepção do Direito Penal, inserindo a abordagem humanista nesse ramo do conhecimento, servindo de referência para o estudo do Direito Penal e dos Direitos Humanos até os dias de hoje, pouco mais de dois séculos após sua publicação. ________________________________________________________ PONTO FINAL DE REFLEXÃO: No sentido de encerrar e sintetizar, apenas no interior desta singela obra, as reflexões acerca dos temas abordados, relacionados ou derivados do conteúdo do livro de Beccaria, chegamos ao último ponto de reflexão deste pequeno livro, com o intuito inevitável de estimular a discussão do presente assunto. 77 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. O Sistema Penal Brasileiro (fazem parte deste conceito o Direito Penal, o Processual Penal, as Políticas Públicas de “Segurança”, etc... - numa visão mais ampla - sistêmica) merece uma reforma urgente, mas não apenas ele, nós brasileiros merecemos uma reforma urgente. Todos os dias reclamamos dos políticos que temos e da sociedade na qual vivemos, mas esquecemos que nós somos a sociedade e nós elegemos os políticos. Apesar de não serem aplicados tanto como deveriam, os valores da cidadania e da dignidade humana estão positivados em nossa Constituição. Apesar de passarmos décadas sem dar importância, a legitimidade do nosso poder encontra-se estampada em nossa Carta Política, onde se estabelece que todo o poder emana do povo. Os políticos são apenas nossos representantes, eles devem trabalhar por nós e não o contrário. De acordo com a Constituição (Art. 1º, Parágrafo único, CF/88), temos a possibilidade de exercer o Poder Político de forma direta, nos termos da mesma Constituição, mas talvez precisemos de “termos melhores”, que nos permitam uma maior participação na vontade do Estado, que nos permitam uma maior participação na decisão do uso dos bens do Estado. Quando deixarmos de aceitar de cabeça baixa os salários e as verbas monumentais que pagamos aos nossos “representantes” com o dinheiro de nossos impostos, poderemos pensar em mudança. Quando não nos dermos mais por satisfeitos com os cargos comissionados que ganhamos dos políticos e que calam nossas bocas, poderemos pensar em ação contra a corrupção. O novo sopro de vida trazido para nossa Democracia pelas manifestações ocorridas durante a copa das confederações mostrou que esses “poderosos” não são tão absolutos assim e que suas estruturas podem ser balançadas. O caminho para um mundo “sem violência”, passa necessariamente pela vontade de construir um mundo sem desigualdades sociais. É extremamente urgente a criação de novos e eficientes mecanismos de participação direta do povo nos negócios do Estado brasileiro. Enquanto continuarmos repassando a responsabilidade do nosso Estado de Direito (Democrático) para outros, assinando um cheque em branco, ficaremos rendidos, à mercê de um sistema corrupto e injusto. 78 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Pensando e agindo assim poderemos mudar o nosso país e consequentemente, junto com outras mudanças, mudaremos o Direito Penal, que não é nada mais do que reflexo da política social do Estado, servindo muito mais como instrumento seletivo de inabilitação dos indesejáveis: os não consumidores. Pensando e agindo assim poderemos finalmente dar o primeiro passo para o objetivo imediato de um Direito Penal mínimo, a fim de se atingir o objetivo mediato de abolição do sistema penal, para que ao invés de conjugarmos o verbo ressocializar passemos a conjugar o verbo reintegrar socialmente40, para que possamos viver em um país que tenha empregos com salários dignos, moradia para todos, saúde e educação gratuitas e de qualidade para todos... Utopia com a qual me dou ao desfrute de continuar sonhando. Devemos atender ao chamado feito por Beccaria em sua obra, onde o mesmo, há mais de dois séculos atrás, já nos alertava sobre a importância do aperfeiçoamento da Educação para a sociedade e do seu papel na prevenção da ocorrência de crimes. Contudo, da mesma forma que alguns dos ideais de Beccaria foram pensados para homens de sua época, a Educação da qual precisamos é outra, mais afinada com nossas necessidades. Precisamos de uma educação que não seja exclusivamente tecnicista e que não se preocupe apenas em formar mão de obra e contigente de consumidores para o sistema econômico globalizado. Urge uma educação que forme cidadãos acima de tudo, preocupados com a dignidade da pessoa humana e com a obtenção da justiça social, mandamento constitucional há muito esquecido em nossas práticas sociais. Uma educação que não seja castradora, que não trate o homem como coisa, que não trate o aprendizado apenas como meta estatística a ser atingida... Precisamos de uma educação que pratique uma formação humanista da sociedade, uma educação que não veja teoria e prática como dicotomias e que passe a vê-las como tese e antítese em diálogo contínuo, que entenda o homem e a mulher como seres inacabados em processo de diálogo constante com o mundo e com a sociedade. Uma educação que não se baseie na ideologia neoliberal desesperançosa, fatalista e antiutópica, criadora de acomodação ao 40 Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Disponível em:<www.egov.ufsc/portal/criminologia-crítica-e-reforma-da-legislação-penal>. Acesso em: 22/07/2013. 79 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. mundo e negadora de transformação social 41 e que não seja mera transferência de conteúdo. Uma educação que entenda o ser humano em “sua interação com a realidade, que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática transformadora”42. Ainda precisamos fazer a sociedade entender de verdade, sem discursos de aparência, que o homem e a mulher precisam de uma educação libertadora, uma educação como prática da liberdade, e não como prática do aprisionamento ideológico. De tudo que foi exposto, diante das considerações realizadas na presente obra, fica a mensagem de paz e esperança, alimentada pelo sonho infantil de um dia vivermos em um mundo sem nenhum tipo de violência, principalmente sem a violência velada, que os tiranos praticam contra os mais fracos, contra os hipossuficientes, que por vezes nem percebem que seus direitos fundamentais são lesados covardemente, que por vezes nem sabem que têm direitos... Fica como mensagem a esperança ingênua, de que um dia viveremos em um mundo repleto de paz e felicidade, onde ninguém se importará com o carro que você anda, com a roupa que você veste ou com as posses você tem; onde todos viveremos como irmãos. Um mundo no qual não mais veremos moralismos, onde não temeremos o outro, nem tampouco exploraremos a mão de obra da maioria... Um lugar no futuro onde não precisaremos mais falar a expressão dignidade humana, pois ela será parte constante do inconsciente coletivo. É essa esperança ingênua sem a qual não vivemos que nos impele a continuar nossa jornada e tentarmos aprender uns com os outros a nos tornarmos “seres mais humanos” a cada dia. Sendo assim, não poderia me despedir sem finalizar essa mensagem fazendo uso das palavras de um dos maiores músicos e compositores que passaram pelo nosso planeta e que foi tragicamente tirado do nosso convívio, mas que sua poesia ainda reside em nossos corações... 41 42 Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 143. Ver FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de oliviera. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 75. 80 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. “...You may say I´m a dreamer, but I´m not the only one I hope some day you´ll join us And the world will live as one” Imagine - John Lennon ________________________________________________________ 81 Lívio Silva Beccaria e os Direitos Humanos: Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro. O AUTOR Nascido no ano de 1973, Lívio Silva é natural de Recife, Pernambuco e tem desenvolvido interesse nas áreas de Ciências Jurídicas, Filosofia, Sociologia, Ciência Política, entre outras. Além de Bacharel em Direito, tem um livro de Ficção Científica publicado e artigos sobre Direito em revistas eletrônicas especializadas, desenvolvendo também atividades na área musical. O livro “Dos Delitos e das Penas”, obra-prima de Cesare Beccaria, é de uma importância sem dimensão para o Direito Penal atual, pois foi a primeira voz a se rebelar contra a tirania da tradição jurídica e a legislação penal de seu período, conhecido como o Antigo Regime. Que formemos a partir de agora uma nova voz contra o sistema penal seletivista e mantenedor de desigualdades sociais. Lívio Silva na Internet: www.naletradalei.wordpress.com Blog Jurídico www.humanoecidadao.wordpress.com Blog sobre Direitos Humanos www.escrevologoreflito.wordpress.com Blog Autoral 82
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censurar o que existia, indicavam os orientadores os novos rumos.” (BECCARIA, 2013, p. 7) Apesar do tempo em que este compêndio de ideias brilhantes foi escrito, continua atualíssimo tendo em vista...
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