Beccaria e os Direitos Humanos

Transcrição

Beccaria e os Direitos Humanos
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
LÍVIO SILVA
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas
no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
1ª Edição
Recife
Livio Paulino Francisco da Silva
2013
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Direitos Autorais Reservados
Livio Paulino Francisco da Silva
Copyright © 2013 By Lívio Silva
1ª Edição © 2013
www.escrevologoreflito.wordpress.com
[email protected]
Ilustração da capa por Emerson Fialho
www.emersonfialhoartblog.blogspot.com
ADVERTÊNCIA
O autor da presente obra, único detentor de seus direitos morais e
patrimoniais, autoriza apenas o uso pessoal e privado, vedados o uso
comercial, a reprodução não autorizada e a distribuição sob qualquer
aspecto, ressalvadas as hipóteses de limitação aos direitos autorais
previstas no Art. 46 da Lei 9.610/98, sem prejuízo dos demais dispositivos
legais de proteção aos direitos autorais.
________________________________________________________
S586b
Silva, Lívio.
Beccaria e os direitos humanos: dos delitos e das penas no
ordenamento jurídico brasileiro. / Lívio Silva. - Recife: Livio Paulino
Francisco da Silva, 2013.
ISBN 978-85-916666-0-7
1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. Criminologia
I. Título.
CDD 345.81
________________________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito penal 2. Direitos humanos 3. Criminologia
CDD 345.81
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
SUMÁRIO
Apresentação
06
Capítulo I - Uma nova era no Direito Penal
09
Capítulo II - Origem das penas, direito de punir e interpretação das leis
15
Capítulo III - Da Obscuridade das Leis: Idade das Trevas do Direito Penal
30
Capítulo IV - Da Moderação das Penas
40
Capítulo V - Que as Penas Devem ser Proporcionais aos Delitos
57
Capítulo VI - Da Prevenção dos Crimes
65
Capítulo VII - Beccaria Conclui
73
Considerações Finais
77
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Dedico este meu primeiro livro na área
jurídica a todos aqueles humanos que algum dia
na face da Terra sofreram com a tirania dos
poderosos. Eu sei muito bem o que é sentir na
pele a mão pesada da injustiça que oprime o ser
humano e dilacera sua alma. Contudo, mesmo
diante desse poder esmagador, nunca pensei
em desistir de mim, pois assim estaria
exatamente agradando meus perseguidores...
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
APRESENTAÇÃO
Nenhum outro pensador da área criminal foi tão importante quanto Cesare Beccaria
para a humanização das Ciências Penais. Sua obra máxima, Dos Delitos e das Penas 1,
que será humildemente comentada e comparada na presente obra, influenciou
decisivamente o Direito Penal moderno.
Filho de um aristocrata milanês, o Marquês de Beccaria, nascido em Milão a 15 de
março de 1738, mesmo sem gostar da experiência, foi educado por jesuítas desde os oito
anos de idade. Após concluir seus estudos formais, retornou a sua cidade natal entrando
em contato com o Iluminismo, influenciando-se definitivamente pelos ideais de liberdade
espalhados por toda a Europa. Ajudou a divulgar os princípios da nova filosofia, sendo um
dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão, além de fazer parte da
redação do jornal Il Caffè, que apareceu de 1764 a 1765.
Recheado de ideais iluministas, Beccaria começou a se preocupar com as
arbitrariedades praticadas na atuação da justiça de sua época, empreendendo um estudo
crítico das leis penais vigentes, culminando na publicação, em 1764, do livro: Dos Delitos e
das Penas, livro considerado por muitos como um marco inicial do Direito Penal moderno,
dada sua influência na formulação do mesmo. Através de uma apresentação sistemática,
apontou as práticas desumanas na aplicação das penas em seu tempo, discorrendo em
seu texto de fácil leitura sobre a necessidade urgente de mudanças no regime penal da
época. O sucesso de seu livro foi extraordinário e foi logo traduzido para o francês, além
de seguidas traduções ao redor do mundo, enquanto Beccaria era saudado pelos grandes
pensadores de sua época, sendo alvo das mais vivas demonstrações de simpatia quando
de sua visita a Paris, em 1766.
Em 1768 ocupou a cátedra de Economia no Colégio Palatino de Milão, onde
lecionou por dois anos. Adquiriu grande reputação como um pioneiro na análise
econômica, tendo feito parte inclusive, a partir de 1771 do conselho econômico supremo
de Milão, continuando funcionário pelo resto de sua vida. No campo da Economia, sua
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BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.
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obra mais importante foi Elementi di Economia Pubblica, baseada em suas aulas,
editada em 1804, após sua morte, que ocorreu na cidade de Milão, em 1794.
Beccaria viveu durante os momentos finais da Idade Moderna, contemporâneos à
Revolução Francesa. Tal época consistiu em um período de transição entre o sistema
feudal e o capitalista, guardando alguns resquícios do primeiro e apresentando algumas
características que direcionariam a humanidade para o surgimento do atual sistema
econômico. Era uma época onde imperava o Absolutismo, regime político autoritário,
resultante da aliança entre o rei e a burguesia em ascensão, onde o crescimento
econômico proporcionado pelas práticas mercantilistas criou a necessidade da
centralização política, favorecendo a criação de medidas protecionistas que garantissem a
expansão das atividades comerciais.
A consequência imediata da adoção desse regime político foi o enfraquecimento
gradual do poder da igreja, já que a intervenção da mesma na política limitava a expansão
comercial. O mundo ocidental começou a vislumbrar uma circulação grande de riquezas e
dividi-las com a Igreja não era interesse dos burgueses em ascensão, que achavam
melhor equipar os monarcas com exércitos mercenários a fim de garantir a independência
política dos “Estados” em formação. Com isso, todo o controle das finanças, dos exércitos,
agora nacionais, bem como da Justiça e da Atividade Legislativa passou para as mãos do
Monarca, detentor da Autoridade Absoluta em seu território. Apesar de ser um período de
grande evolução do conhecimento, em confronto com a estagnação da Idade Média, a era
do “Capitalismo Comercial” apresentou quase nenhuma mudança no Direito Penal, já que
a origem do “Poder de Punir” continuou divina, mudando apenas o “Representante
Terreno” desse poder, mantendo-se o caráter cruel e desumano dos castigos aplicados.
A Itália, reduto da Igreja Católica, foi uma das últimas nações da Europa unificadas
pelo Absolutismo. Durante a Idade Moderna a Península Itálica era ocupada por cidadesEstado, centros mercantis dominados por pequenas nobrezas. Tais principados, ao
contrário do resto da Europa, produziram uma espécie de “Microabsolutismo” onde as
famílias que as dominavam exerciam poder de forma ilimitada. A Itália de Beccaria era
marcada por uma verdadeira tirania medieval praticada pelas famílias que controlavam os
principados. Apesar de apresentar desenvolvimento econômico proporcionado pelo
Mercantilismo, as cidades-Estado ainda apresentavam resquícios do Feudalismo, sendo
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influenciadas pelo poder político da “Igreja”, confundindo delito com pecado na aplicação
das penas, executando-as de modo completamente desproporcional e ocasionando
episódios funestos de pura vingança e manifestação de brutalidade.
Foi de encontro a esse arbítrio sem fim que Beccaria manifestou sua crítica
sistemática e consistente ao “Antigo Regime”, elaborando um texto muito à frente de seu
tempo, influenciando gerações de pensadores e mantendo-se ainda atual. A importância de
seu livro (Dos Delitos e das Penas) supera sua época, chegando até o Brasil atual,
fazendo parte de nosso Ordenamento Jurídico, tanto nos Direitos e Garantias
Fundamentais, bem como no Direito Penal e Processual Penal.
A presente obra é direcionada não apenas aos operadores de Direito na sua
acepção mais restrita, mas também a toda a sociedade brasileira, para que conheçam a
origem dos principais institutos jurídicos existentes no Direito Penal, a fim de que possam
valorizar a conquista dos séculos de lutas que a humanidade travou contra toda a injustiça
praticada nesse período negro da Humanidade. Mesmo que ainda ocorram muitas
injustiças em nossa sociedade atual, nada pode ser comparado às atrocidades praticadas
nos tempos do “Antigo Regime”, uma época nefasta, onde imperavam o misticismo, a
intolerância, o preconceito, a insegurança e a crueldade na aplicação das penas.
O objetivo principal deste singelo estudo é o de interpretar a obra de Beccaria à luz
de nosso Direito Penal atual, identificando suas principais ideias presentes em nosso
Ordenamento Jurídico, reforçando ainda mais a importância desta obra prima das Ciências
Criminais para nossa sociedade, claro sem a mínima prepotência de esgotar a discussão,
visto que é na construção dialógica da sociedade que nós, homens e mulheres, tornamonos todos cidadãos humanos. Em meio a esse objetivo principal, em determinados trechos
considerados relevantes, geralmente no fim dos capítulos, ou após conteúdos de
importância para o Direito Penal, será incluída uma seção oportunamente chamada de
“Ponto de Reflexão”, onde serão analisados assuntos relacionados com o conteúdo do
trecho e de extrema relevância para a Criminologia atual.
Uma ótima leitura,
Lívio Silva
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I
UMA NOVA ERA NO DIREITO PENAL
Em seu prefácio, Beccaria vem nos trazer um pouco da História do Direito, fazendo
uma alusão crítica ao Corpus Juris Civilis, principal compilação do direito romano,
publicado por ordem do imperador Justiniano, constituindo um conjunto de legislações
esparsas, reunindo inclusive todas as constituições anteriores ao reinado de Justiniano,
vejamos então:
“Fragmentos da legislação de antigo povo
conquistador, compilados por ordem de um
príncipe que reinou em Constantinopla, há doze
séculos, combinados depois com os costumes dos
lombardos e amortalhados num volumoso
calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são
o antigo acervo de opiniões que uma grande
parte da Europa prestigiou com o nome de leis;
[...]”2 (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
O autor continua sua crítica à referida legislação destacando a influência da mesma
no direito de sua época, considerando-a fonte jurídica dos abusos cometidos no “Antigo
Regime”, delineando o caminho que será percorrido pelo seu livro, conforme a seguir:
“É esse código sem forma, produto monstruoso
de séculos mais bárbaros, que desejo examinar
nesta obra. Ficarei limitado, contudo, ao sistema
criminal, cujos abusos terei a ousadia de apontar
aos encarregados de velar pela felicidade
pública, sem me preocupar de impor ao meu
estilo o encanto que faz a sedução dos leitores
comuns.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
2
Como em cada início de capítulo da presente obra será feita referência a quais capítulos do livro de Beccaria
pertencem os trechos citados e comentados, não vislumbrei a necessidade de indicar as respectivas páginas. Por
conseguinte, a fim de diferenciar das citações de outras fontes, que serão feitas no rodapé, coloquei apenas a autoria e
o nome do livro, bem como foi convencionado que as citações da obra de Beccaria seriam formatadas com recuos de
8cm (Esq.) e aproximadamente 0,7cm (Dir.), com o texto escrito sob a fonte Times New Roman, de tamanho 12 e em
tipo Itálico.
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Inicia sua introdução destacando o caráter segregativo das sociedades, baseadas
na concentração de poder e riquezas, onde pouquíssimos têm privilégios, relegando a
maioria aos martírios e aos piores frutos, transferindo esse perfil para o âmbito do direito
criminal vigente à época, repleto de normas elaboradas para a conveniência da minoria
privilegiada, vejamos:
“As vantagens da sociedade devem ser
distribuidas equitativamente entre todos os seus
membros. Entretanto, numa reunião de homens,
percebe-se a tendência contínua de concentrar
no menor número os privilégios, o poder e a
felicidade, para só deixar à maioria miséria e
debilidade.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Cesare Beccaria continua a introdução falando sobre a origem ideal das leis, que
devem ser produzidas a fim de se beneficiar a sociedade como um todo, evitando que sua
elaboração fosse animada por sentimentos egoístas da minoria prestigiada com o poder,
confiramos portanto:
“Percorramos a história e constataremos que as
leis, que deveriam constituir convenções
estabelecidas livremente entre homens livres,
quase sempre não foram mais do que o
instrumento das paixões da minoria, ou fruto do
acaso e do momento, e nunca a obra de um
prudente observador da natureza humana, que
tenha sabido orientar todas as ações da
sociedade com esta finalidade única: todo o bemestar possível para a maioria.” (Beccaria - Dos Delitos e
das Penas)
Faz-se importante destacarmos que o panorama político-jurídico-social, no qual o
livro foi escrito, estava inserido num momento de transição, posterior ao renascimento
cultural, onde Política e Economia moldavam-se aos requisitos exigidos pela “Nova Ordem”
que se preparava para chegar.
Dessa forma, era natural a existência de resquícios do feudalismo operando
plenamente nas instituições sociais vigentes, principalmente na resistência à visão do
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homem como indivíduo único, dotado de razão e de vontade própria, ou seja, dotado de
personalidade, fazendo com que as pessoas fossem classificadas apenas como nobres e
vassalos: como “torturáveis e não torturáveis”3.
Nesse sentido, sob a alcunha de “Verdades Filosóficas”, o autor vem nos mostrar o
desenvolvimento proporcionado em seu tempo pela nova perspectiva humanista da
sociedade, fazendo ressalvas ao atraso na mudança da forma de aplicação das penas,
onde, ao contrário de outras áreas do conhecimento, não houve avanço algum, relegando
a humanidade à barbaridade bestial praticada nos tribunais, quando da época em questão,
conforme veremos a seguir:
“As verdades filosóficas que têm sido divulgadas
por toda parte pela imprensa, mostraram
finalmente as reais relações que unem os
soberanos aos seus súditos e os povos entre si. O
comércio ganhou incentivo, e entre as nações
declarou-se uma guerra industrial, a única digna
dos homens sábios e dos povos organizados.
Contudo, se as luzes do nosso século já
conseguiram alguns resultados, ainda estão
muito distantes de ter dissipado todos os
preconceitos que alimentávamos. Não houve um
que se erguesse, senão fracamente, contra a
barbárie das penas em uso nos nossos tribunais.
Não houve quem se ocupasse de reformar a
irregularidade dos processos criminais, essa
parte da legislação tão importante quanto
descurada em toda a Europa.” (Beccaria - Dos Delitos e
das Penas)
“Contudo, os dolorosos gemidos do fraco, que é
sacrificado à ignorância cruel e aos ricos
covardes; os tormentos terríveis que a barbárie
inflige em crimes não provados, ou em delitos
quiméricos; a aparência repugnante dos xadrezes
e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado
pelo suplício mais insuportável para os
desgraçados, que é a incerteza; tantos métodos
odiosos, difundidos por toda parte, teriam por
3
Lembrando o diálogo de um personagem do escritor Graham Greene, citado pelo professor da Universidade Federal de
Pernambuco, Luciano Oliveira, em seu livro, “Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura”; no qual o
referido personagem anuncia que “apenas os pobres, de qualquer parte do mundo, são torturáveis”.
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força que despertar a atenção dos filósofos, essa
espécie de magistrados que dirigem as opiniões
humanas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
“Não houve quem se ocupasse de reformar a irregularidade dos processos
criminais”, constitui o grande destaque de Beccaria nesse trecho de sua magnífica obra,
pois segundo ele, as luzes do seu século (Iluminismo) não haviam sido suficientes para
eliminar o sem número de barbaridades praticadas pela justiça daquela época, anunciadas
pelo autor em seu valioso livro. Assim, Beccaria traz pra si a missão de denunciar os
abusos cometidos no “Antigo Regime”, contraditórios ao novo conceito de humanidade
propagado pelos ideais iluministas, que influenciaram as sociedades em desenvolvimento
industrial. Portanto, o autor delineou ainda mais especificamente o cunho filosófico e
denunciador de sua obra, ocupando-se de estudar o tema profundamente, buscando até
mesmo as origens sociais e políticas das práticas comuns da época, questionando a
eficácia de tais procedimentos desumanos em confronto à nova Ordem Social que
despontava, vejamos:
“Contudo, qual a origem das penas, e em que se
funda o direito de punir? Quais as punições que
se devem aplicar aos diferentes crimes? A pena
de morte será verdadeiramente útil, necessária,
imprescindível para a segurança a estabilidade
social? Serão justos os tormentos e as torturas?
Levarão ao fim proposto pelas leis? Quais os
meios mais apropriados para prevenir os delitos?
As mesmas penas são igualmente úteis em todas
as épocas? Qual a influência que exercem sobre
os costumes?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, o autor veio convidar a sociedade de seu tempo a refletir sobre as
penas praticadas pela justiça, questionando a origem das penas e o fundamento do direito
de punir, instigando o debate sobre a justiça e sobre a real utilidade dos métodos brutais
utilizados nas sanções, propondo já naquele tempo, que remonta mais de duzentos anos
atrás, uma política social de prevenção dos delitos, antes mesmo do surgimento de uma
ciência voltada ao estudo do crime em si, antes mesmo da própria Criminologia.
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PONTO DE REFLEXÃO:4
Se tentarmos fazer uma avaliação, na atualidade, dos fundamentos do
Direito de Punir do Estado, veremos que apesar do nosso Direito Penal ser
largamente baseado nos ideais iluministas defendidos por Beccaria, talvez a
realidade atual da sociedade brasileira leve-nos a reflexões muito mais
profundas, extensas e complexas do que aquelas realizadas na época do autor
de Dos Delitos e das Penas. A primeira delas, e talvez aquela que mais influencia
(ou condiciona) todas as outras é a inevitável submissão do ser humano aos
ditames do sistema econômico do qual fazemos parte. Tenho consciência de que
talvez estas palavras sejam alvos de críticas do tipo: “mais outro que chega pra
criticar o Capitalismo” ; ou do tipo: “lá vem o comunista falando”. Contudo, nobre
leitor, mesmo que nos consideremos totalmente a favor do capitalismo, ou
radicalmente contra, não podemos fugir do fato de que o mesmo constitui uma
realidade na qual estamos inseridos, mergulhados, já que, inexoravelmente,
fazemos parte dela.
Não há nenhuma Matrix, ou seja, não há nenhuma realidade alternativa,
estamos caminhando e respirando na nossa própria ilusão, pois somos ao mesmo
tempo mão de obra das elites que dominam os modos de produção e potenciais
consumidores daquilo que ajudamos a fabricar, tanto em matéria de produtos,
bem como de serviços. Assim, falando sobre sociedade, sobre ser humano
ocidental (quem sabe também do oriental), qualquer estudo científico, ou
reflexão (livre pensamento), que antes de adentrar ao mérito de seu objeto de
análise, não leve em consideração o sistema econômico capitalista, e,
consequentemente, o processo de globalização da economia, nos quais estamos
inseridos, não contemplará em sua plenitude as condições sócio-políticoeconômicas orientadoras dos comportamentos humanos em nossa sociedade
4
Da mesma forma que foi convencionada uma formatação específica para as citações dos trechos da obra de Beccaria,
também foi adotada uma formatação diferenciada para os trechos do presente livro chamados de “Ponto de
Reflexão”, onde intenta-se formular reflexões críticas ao patamar atual do Direito Penal (Material e Processual) e ao
Sistema Carcerário no Brasil, convencionando-se que estes trechos terão recuo de 2cm (Esq.) e de aproximadamente
1,2 cm (Dir.), escritos na fonte Tahoma, tamanho 11 e tipo Normal.
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atual, circunstâncias às quais estão submetidos todos os seres humanos,
independente de nacionalidade, credo, orientação sexual, prática política, etc...
Nesse sentido, nenhum fato social, nenhum acontecimento que venha
ocorrer na atualidade escapa da influência que a Ordem Econômica em vigor
impõe, seja de forma direta ou indireta, mostrando-se necessária sua análise
ampla, ou no mínimo, a não-negação de sua importância para todos os aspectos
da sociedade atual. Conforme diria Hannah Arendt:
“Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo
ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias
condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana,
possuem a mesma força condicionante das coisas naturais” 5.
Considerado isto, a título de primeira reflexão sobre a realidade da
sociedade atual, condicionadora inexorável dos institutos sociais em vigência,
continuemos com nosso estudo da obra de Beccaria.
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Ao mesmo tempo, consciente da responsabilidade sob o conteúdo de sua obra,
diante da ousadia em criticar costumes tão arraigados no inconsciente coletivo, comportouse como um verdadeiro filósofo, preparando seu espírito para a repercussão de seu
trabalho, sem esperar frutos imediatos, contentando-se apenas em salvar nem que seja
algumas poucas almas das atrocidades praticadas em seu tempo, encerrando sua
introdução para iniciar seu estudo, conforme a seguir:
Contudo, se, ao sustentar os direitos do gênero
humano e da verdade invencível, contribuí para
salvar da morte atroz algumas das trêmulas
vítimas da tirania ou da ignorância igualmente
prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas
um inocente reconduzido aos sentimentos da
alegria e da ventura conforta-me-iam do
desprezo do resto dos homens. (Beccaria - Dos Delitos e
das Penas)
5ARENDT,
Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007, p. 17.
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II
ORIGEM DAS PENAS, DIREITO DE PUNIR E INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
Nos capítulos II a IV, o Marquês de Beccaria vem investigar a origem das penas e
do direito de punir do Estado, bem como criticar a má interpretação das lei em seu tempo,
que tendia sempre para uma aplicação cruel e desumana. É realmente uma tarefa difícil a
do filósofo comprometido com a importância de sua missão, já que seu trabalho consiste
muitas vezes em semear em terreno infértil.
Não sei se o ser humano atual, aquele que caminha diariamente por nossas ruas,
tem consciência da importância da obra de Cesare Beccaria para nossa sociedade e para
os Direitos Fundamentais. Os principais institutos jurídicos de toda a legislação penal do
mundo ocidental foram inspirados em suas ideias. A maioria dos princípios penais,
constitucionais ou não, embora relativamente respeitados pelo sistema prisional vigente,
têm clara influência de sua análise crítica e sistemática, externada através de sua pequena
grande obra.
Com o intuito de investigar a origem do fundamento do direito de punir do Estado, o
autor penetra na alma humana a fim de estabelecer o motivo que reside no íntimo de cada
um e que o faz abrir mão de um quinhão de sua liberdade para colaborar com a
manutenção da “Ordem Social”.
Assim, nosso filósofo do direito conclui que a adesão de cada indivíduo ao “Contrato
Social” deve-se a uma atitude política alimentada pelo instinto de sobrevivência em
sociedade, ou em palavras mais afinadas com o estudo da Sociologia, alimentada pela
“Solidariedade Social”, vejamos:
“Façamos uma consulta, portanto, ao coração
humano; encontraremos nele os preceitos iniciais
do direito de punir. Ninguém faz graciosamente o
sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas
visando ao bem público. Tais fantasias apenas
existem nos romances. Cada homem somente por
interesses pessoais está ligado às diversas
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combinações políticas deste globo; e cada um
desejaria, se fosse possível, não estar preso pelas
convenções que obrigam os demais homens.”
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, segundo o autor, o ser humano não estaria ligado ao conjunto de normas
reguladoras da sociedade apenas por nobreza de espírito, como um super-herói dos
quadrinhos. Cada um o faz pela pura e simples necessidade de sobreviver em sociedade,
diante da qual aquele que não se enquadra em seus parâmetros e não participa de sua
manutenção, cumprindo seu papel social, é marginalizado e elencado de seu convívio, seja
por cumprir uma sanção jurídica, ou através da sanção velada, da exclusão social.
Penetrando um pouco mais fundo nesse raciocínio, Beccaria navega até o momento
histórico que marca o início da criação do Estado como ente individual de cada sociedade,
onde os homens abrem mão do estado de guerra como único meio de ascensão das
nações, para elaborarem leis que vinculem todos entre si, elegendo o soberano
representante das vontades do povo que deve guardá-las e administrar a nação, conforme
a seguir:
“Fatigados de só viver em meio a temores e de
encontrar inimigos em toda parte, cansados de
uma liberdade cuja incerteza de conservá-la
tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para
usufruir do resto com mais segurança. A soma
dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao
bem geral, constituiu a soberania da nação; e
aquele que foi encarregado pelas leis do
depositário das liberdades e dos trabalhos da
administração foi proclamado o soberano do
povo.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, aproximando-se da visão hobbesiana de Estado, o Marquês de
Beccaria nos traz a formação do mesmo como resposta necessária ao caos político
característico do “estado beligerante”, ligando este ao direito criminal praticado em seu
tempo, mostrando a necessidade da reformulação de tal sistema, a fim de que o mesmo
entre em sintonia com o pensamento que começava a se fazer vigente na época. Assim,
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estabelece o processo consensual de sacrifício das parcelas de liberdades individuais,
legitimador do Estado de Direito, como “fundamento” do direito de punir, já que o Estado
representa a “institucionalização” do consenso das vontades concorrentes na nação,
devendo portanto, criar mecanismos de manutenção da mesma, conforme a seguir:
“Desse modo, somente a necessidade constrange
os homens a ceder uma parcela de sua liberdade;
disso advém que cada qual apenas concorda em
pôr no depósito comum a menor porção possível
dela, quer dizer, exatamente o que era necessário
para empenhar os outros em mantê-lo na posse
do restante. A reunião de todas essas pequenas
parcelas de liberdade constitui o fundamento do
direito de punir. Todo exercício do poder que
deste fundamento se afastar constitui abuso e não
justiça; é um poder de fato e não de direito;
constitui usurpação e jamais um poder legítimo.”
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Portanto, nosso sábio elege somente o poder concedido pela reunião das parcelas
de vontades individuais como legitimador do direito de punir, pois tal poder externa a
vontade da maioria, vinculando entre si os aderentes do “Contrato Social”. Nesse sentido,
Beccaria estabelece que todo exercício de poder que se afaste deste “Consenso de
Vontades”, fundamentador do direito de punir, constitui um ato arbitrário. Em nosso
Ordenamento Jurídico, considerando a lei como manifestação formal e escrita dessa
“reunião de pequenas parcelas de liberdade”, encontramos tal raciocínio de Beccaria
estampado no mandamento constitucional presente no art. 5º, inc. II, onde dispõe:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” 6.
Assim, somente a lei tem o condão de restringir a liberdade das pessoas, obrigandoos a realizar determinados atos. É nesse fundamento elementar de nossa sociedade que
se baseia toda a atividade da Administração Pública, pois esta somente pode fazer aquilo
que se encontra previsto em lei. Do contrário, qualquer atividade estatal que provoque
repercussão na esfera individual do cidadão, restringindo a sua liberdade, tanto física como
a de expressão, mas que não esteja baseada em lei, constituirá abuso de poder do Estado.
6
BRASIL.
Constituição
Federal
(1988).
Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 02 jun. 2013.
17
em:
Lívio Silva
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PONTO DE REFLEXÃO:
Nos tempos atuais uma discussão inevitável de ser enfrentada é aquela
que versa sobre a configuração hodierna do Estado em confronto com a
fragmentação (multiculturalismo) cada vez mais crescente no mundo. Como
consequência imediata dessa discussão, diante da realidade multicultural da
sociedade brasileira, torna-se indispensável a aplicação dos conceitos de
subculturas e estratos sociais a esse contexto.
Como todos sabemos, o Brasil é uma nação de nações, pois além das
etnias que participaram da miscigenação presente na formação do povo
brasileiro, o branco portugûes, o índio nativo e o negro escravizado, somos
também formados pela miscigenação de outras matrizes étnico-culturais
provenientes do contingente de imigrantes que chegou em nosso território no
século passado, proporcionando a composição de um mosaico étnico-cultural de
grande magnitude, diante do qual, um indivíduo que se desloca de uma
determinada região do país para outra, pode ter a impressão de estar entrando
em outro país.
Nesse mesmo espírito de diversidade cultural, até mesmo dentro de uma
única cidade, tomando o exemplo de metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro,
Recife e Porto Alegre, entre outras, encontramos padrões sociais de primeiro
mundo, com qualidade de vida altíssima, convivendo ao lado de padrões sociais
baixíssimos, completamente desprovidos de direitos sociais como saúde,
educação, alimentação e moradia, entre outros 7 (o luxo vizinho do lixo),
proporcionando a existência de verdadeiros “Abismos Sociais” em uma mesma
sociedade. Portanto, considerando toda essa variedade cultural existente no
Brasil, aliada a constatação dessa disparidade de níveis de vida, é comum que
nossa sociedade tenha uma característica segregada, onde cada segmento social
forma
7
uma
cultura
própria,
com
seus
próprios
mecanismos
sociais,
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
(CF/88)
18
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
desenvolvendo valores próprios, que acarretarão na formação de uma identidade
cultural diferente para cada um desses segmentos. Ou seja, a sociedade
brasileira constitui um complexo cultural, uma cultura formada pela união de
várias subculturas.
Diante desse panorama multicultural, não é difícil constatar que se torna
impossível ao Estado atender a todos os cidadãos da mesma maneira, levandonos a inferir que ele não é o mesmo para todos, embora mantido pela maioria e
a lei seja para todos (em teoria). O Estado brasileiro atual, suposto consenso do
sacrifício das parcelas de liberdades individuais de seus indivíduos, não opera em
igualdade de condições para todos os seus “contratantes”. Assim, surge a
seguinte pergunta: a ação policial de repressão ao crime, realizada em
comunidades suburbanas desprovidas de poder econômico e político (favelas),
repletas de atores sociais marginalizados, é realizada da mesma forma que
àquela ação policial direcionada às classes mais abastadas (grandes empresários,
ou políticos de expressão)? Claro que não, pois a repressão policial de nosso
“Estado Democrático” age mais severamente com as classes sociais menos
privilegiadas (Labelling Aproach). Ou seja: “na favela, as balas não são de
borracha”8. Trazendo Bauman à nossa discussão, diríamos que as ações mais
prováveis de serem cometidas pelas pessoas excluídas do convívio social pleno
são justamente as mais passíveis de serem rotuladas como “crime” no código
penal. Enquanto isso: “Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de
promoção do livre comércio; roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio
de subsistência é chamado enxugamento ou simplesmente racionalização.”9 Esse
quadro social contraditório, proporcionador de exclusão social em larga escala,
no qual pouquíssimos aderentes do suposto “Contrato Social” fazem uso de suas
benesses, enseja uma revisão dos fundamentos contratualistas da formação da
8
9
Referindo-me à declaração realizada nas redes sociais por uma moradora do Complexo da Maré, sobre a polêmica
ação policial realizada naquela localidade no final de junho de 2013, comparando o tratamento que a polícia dá às
ações contra grandes manifestações sociais, geralmente cobertas com amplitude pela mídia, com as ações policiais
realizadas nas comunidades menos favorecidas, diante da qual a mesma afirmou: "As balas aqui não são de
borracha, aqui é fuzil. Para gente que não tem nome nem sobrenome nem mora em lugar nenhum, o tratamento é
esse", - AS BALAS aqui não são de borracha. Aqui é fuzil. Por Heloisa Aruth Sturm, do jornal O Estado de
S.Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-balas-aqui-nao-sao-de-borracha-aqui-efuzil-,1047054,0.htm>. Acesso em: 11 jul. 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar,
1999, p. 131.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
sociedade, forçando-nos a no mínimo reavaliar a sua efetiva validade (eficácia).
Como esperar que parcelas da população submetidas a condições de vida
extremamente precárias, desprovidas de saúde, educação e de outros direitos
fundamentais, sintam-se signatários desse suposto “Contrato Social”, sob o qual
estaria efetivamente fundamentada toda a relação político-jurídica Estadocidadão? Uma pessoa que já veio ao mundo nestas condições de pobreza e
exclusão social extremas, completamente desprovida de oportunidades de
emprego e de ascensão social, relegada a viver na marginalidade, sem qualquer
perspectiva de melhora de suas condições sociais, sem qualquer capacidade de
entender a razão pela qual a sua vida é tão ruim. Como essa pessoa seria capaz
de tomar consciência de que teria, supostamente, aberto mão de uma
determinada parcela de sua liberdade individual a fim de manter o bem comum
da sociedade? A pergunta que essa pessoa faria é: que bem comum é esse que
não chega até a minha pessoa? São perguntas como essas que nos direcionam a
levantar a necessidade de se reavaliar a real eficácia do “Contrato Social” que
estaria em vigor.
Feitas as presentes especulações, vamos dar continuidade ao nosso
estudo da obra de Beccaria.
________________________________________________________
Diante da análise do poder de imperatividade que o contrato social assume, o autor
vem nos brindar com a afirmação que culminou no mandamento básico de nosso Direito
Penal, o Princípio da Legalidade, vejamos:
“A primeira consequência que se tira desses
princípios é que apenas as leis podem indicar as
penas de cada delito e que o direito de
estabelecer leis penais não pode ser senão da
pessoa do legislador, que representa toda a
sociedade ligada por um contrato social. Ora, o
magistrado, que é parte dessa sociedade, não
pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa
sociedade aplicar uma pena que não esteja
estabelecida em lei, e a partir do momento em
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se
torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao
que já está prefixado.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, somente as leis, segundo o autor, podem fixar as penas, pois caso ocorra o
contrário, julgando-se um membro da sociedade com rigor maior do que o previsto em lei,
estar-se-á negando a própria natureza do Estado, que representa o consenso da maioria,
mediante a efetivação do Contrato Social. Somos imediatamente remetidos ao
mandamento constitucional de que “não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, o
Princípio da Reserva Legal, um dos pilares de nosso Direito Penal, elaborado ao longo dos
séculos por juristas inspirados nas lições de Beccaria. Logo adiante, o autor estabelece a
segunda consequência dos princípios orientadores do dever de punir do Estado,
sabiamente dissecados pelo mesmo, a generalidade das leis e a autonomia de cada um
dos três poderes, no caso o Judiciário, cabendo apenas a este a atividade de julgar,
vejamos:
A segunda consequência é a de que o soberano,
representando a própria sociedade, apenas pode
fazer leis gerais, às quais todos devem
obediência; não é de sua competência, contudo,
julgar se alguém violou tais leis. (Beccaria - Dos Delitos
e das Penas)
Resta por demais óbvia a segunda consequência elencada por Beccaria, tendo em
vista que se o Estado é formado pelo consenso das vontades de seus indivíduos, constitui
consequência lógica e imediata a submissão de todos às leis elaboradas pelo mesmo,
além de sua afirmação já trazer implícitos os princípios da “Separação de Poderes” do
“Juiz Natural”. Em seguida, Cesare Beccaria discorre sobre a interpretação das leis,
estabelecendo definitivamente a necessidade da limitação da atuação do Magistrado na
matéria criminal, conforme a seguir:
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior
deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou
não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena.
Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a
mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
incerto e obscuro. Não há nada mais perigoso do
que o axioma comum, de que é necessário
consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é
romper todos os diques e abandonar as leis à
torrente das opiniões. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, quando o autor fala em silogismo perfeito entre a Lei e a ação conforme ou
não a lei, já traz no bojo de sua declaração o conceito de “Tipicidade”, que constitui um dos
elementos do delito, de acordo com a Teoria do Crime vigente em nosso ordenamento
jurídico. O entendimento presente na parte final do trecho acima pode ser encontrado hoje
em dia na proibição da interpretação extensiva da Lei Penal, consequência direta do
Princípio da Legalidade. De forma que, diante da subjetividade inerente à personalidade
humana, qualquer julgamento fica sujeito a erro se não forem previamente estabelecidos
parâmetros objetivadores da aplicação da pena, conforme o autor vem nos trazer no
seguinte trecho, vejamos:
Cada homem tem sua maneira de ver; e o mesmo
homem, em épocas distintas, vê diversamente os
mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois,
o resultado de uma boa ou má lógica de um juiz,
de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade
do acusado, da violência das paixões do
magistrado, de suas relações com o ofendido,
enfim, da reunião de todas as pequenas causas
que modificam as aparências e transmutam a
natureza dos objetos no espírito mutável do
homem. Veríamos, desse modo, a sorte de um
cidadão mudar de face ao transferir-se para
outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à
mercê de um errôneo raciocínio ou da bile de um
juiz. Constataríamos que o juiz interpreta
apressadamente as leis, segundo as ideais vagas
e obscuras que estivessem, no momento, em seu
espírito. Veríamos os mesmo delitos punidos
diferentemente em épocas diversas, pelo mesmo
tribunal, porque, em vez de ouvir a voz constante
e invariável das leis, ele se entregaria à
instabilidade enganadora das interpretações
ocasionais. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
A Revolução Francesa, divisor de águas da história das sociedades, varreu o
“Antigo Regime Penal”, desumano e cruel, baseado no poder excessivo dos juízes e que
segundo Bitencourt, em seu tratado de Direito Penal, era “exercido arbitrariamente, em
detrimento da Justiça e a serviço da tirania medieval”10 (grifo nosso). Assim, no trecho
acima, Beccaria, muito a frente de seu tempo, já pensava em um Direito Penal onde o
Magistrado teria seu poder de julgar limitado pela lei, sem dar margem alguma à
especulações e interpretações pessoais do mesmo, vinculando a sua discricionariedade
apenas à lei.
Mais adiante, continuando esse raciocínio, o autor vem novamente trazer novos
conceitos que foram assimilados pelos juristas, aprofundados e transformados pelos
legisladores em vários Institutos Jurídicos que conhecemos hoje em nosso Direito Penal.
Um exemplo claro disso, é o caso da “Tipicidade”, agora mais claramente delineado
pelo autor, vejamos:
Quando as leis forem fixas e literais, quando
apenas confiarem ao magistrado a missão de
examinar os atos dos cidadãos, para indicar se
esse atos são conformes à lei escrita, ou se a
contrariam; quando, finalmente, a regra do justo
e do injusto, que deve orientar em todos os seus
atos o homem sem instrução e o instruído, não
constituir motivo de controvérsia, porém simples
questão de fato, então não se verão mais os
cidadãos submetidos ao poder de uma multidão
de ínfimos tiranos[...] (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Ante o exposto, vemos Beccaria propor que para a determinação da prática de
crime por um indivíduo, é necessária a existência de leis escritas e fixas, ou seja, que não
possam ser mudadas por conveniência dos envolvidos, que reservem ao magistrado
apenas a tarefa de determinar se o ato (conduta) praticado pelo acusado enquadra-se,
molda-se (tipifica-se) ao comportamento que a lei prevê para que se configure a prática do
delito.
Dessa forma, o autor inova trazendo os primeiros conceitos que levaram à
10
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, volume 1. 13. ed. Atual. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 587.
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Lívio Silva
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
formulação do instituto jurídico da tipicidade, consequência direta do Princípio da
Legalidade e como já mencionado anteriormente, um dos elementos constituintes do
instituto jurídico denominado “Infração Penal”, ou como popularmente conhecemos: crime.
É no trecho seguinte que o autor vem introduzir o que mais adiante, no próximo
capítulo, culminará em uma crítica ao costume de não se redigir as leis em vernáculo,
língua do país de origem, pois se as leis não forem claras o suficiente para que todos
possam entender os limites que seus atos devem obedecer o cidadão não conseguirá
distinguir o que é crime ou não, vejamos:
“Com leis penais cumpridas à letra, cada
cidadão
pode
calcular
exatamente
os
inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é
útil, pois esse conhecimento poderá fazer com
que se desvie do crime. Gozará com segurança
de sua liberdade e de seus bens; e isso é justo,
pois que é esse o fim que leva os homens a se
reunirem em sociedade.” (Beccaria - Dos Delitos e das
Penas)
Assim, Beccaria novamente antecipa o que será constatado poucos séculos depois:
que a melhor forma de evitar o crime é prevení-lo! De forma que, diante de um panorama
onde todos conhecem as ações reprováveis, consideradas crimes, pelo Princípio da
Solidariedade Social e da Divisão do Trabalho Social é natural que o homem médio eviteas, a fim de não ser elencado do convívio com a sociedade.
_______________________________________________________
PONTO DE REFLEXÃO:
O caráter preventivo do Direito Penal defendido por Beccaria, que
segundo o qual o cidadão, diante da existência de condutas elencadas pelo
Estado como danosas à sociedade, dispostas em língua pátria no texto legal,
entendendo perfeitamente as consequências de seus atos quando estes
coincidirem com a figura típica prevista em lei, tender-se-ia a desviar do crime,
parece não se adequar perfeitamente à realidade extremamente complexa de
nossa sociedade. Assim, pegando um gancho no que foi destacado um pouco
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
acima11, perguntamo-nos se um indivíduo, que vive em condições de pobreza e
exclusão social extremas desde que nasceu, levando uma vida completamente
desprovida de oportunidades de emprego e de ascensão social, relegada pelo
descaso do Estado a viver na marginalidade, sem nenhuma perspectiva de
melhora de suas condições sociais, seria capaz de tomar consciência de que teria
aberto mão de uma determinada parcela de sua liberdade individual a fim de
manter o bem comum da sociedade. Manter o bem comum da própria sociedade
que “nega a sua existência”! Seria esse indivíduo capaz de se sentir vinculado à
sociedade, a ponto de entender (aceitar) que determinadas condutas são
reprováveis e se ele não as praticar “gozará com segurança de sua liberdade e de
seus bens”. Pergunto: que liberdade? Que bens, se o referido indivíduo NÃO
EXISTE para o Estado, se sua presença é indesejável?
Por isso, se observamos a presente questão, passando através de uma
abordagem pautada nas teorias macrossociológicas da sociedade, em especial a
teoria formulada por Robert Merton12, perceberemos que essa consciência nem
sempre é suficiente para afastar o homem da prática delituosa, posto que
existem indivíduos inclinados a não fazer uso, seja por completa impossibilidade
ou por mera conveniência, dos meios legítimos que a sociedade elege para que
um indivíduo possa alcançar os objetivos que Merton convencionou chamar de
metas culturais. Diante dessa constatação, Merton terminou por classificar as
formas com as quais os indivíduos, diante desse conflito entre seus objetivos
culturais e os meios que a sociedade considera como legítimos para se atingir os
mesmos, partindo desde o completo conformismo (Conformidade) com as metas
culturais e com os meios institucionalizados até o outro extremo, que se expressa
através do inconformismo total (Rebelião) com as metas e com os meios
considerados dominantes, onde se busca uma nova configuração da ordem
social, como por exemplo “os movimentos de revolução social” 13. Óbvio que essa
11
12
13
Trecho deste presente estudo (página 20) no qual se questiona a real eficácia do “Contrato Social” em vigor na nossa
sociedade.
Robert King Merton, sociólogo americano desenvolvedor da Teoria Estrutural-funcionalista da Anomia, inicialmente
introduzida nas Ciências Sociais por Durkheim, revolucionária na Criminologia, diante da qual se defende que a
escassez de meios legítimos para a obtenção das metas culturais levaria determinados indivíduos a abandonarem as
“regras oficiais do jogo social”, adotando o que o mesmo convencionou chamar de comportamento desviante.
SABADELL, Ana Lucia. In: CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p.
72.
25
Lívio Silva
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
classificação, que conta com cinco modos de adaptação (Conformidade,
Inovação, Ritualismo, Evasão e Rebelião), não se mostra suficiente para abranger
todos os comportamentos que podemos encontrar na sociedade, servindo muito
mais como escala de referência para se analisar os “comportamentos desviantes”,
como Merton convencionou chamá-los.
Diante do acima exposto, restando constatado que a consciência da
reprovabilidade da conduta e de suas consequências jurídicas nem sempre é
suficiente para afastar o homem da prática delituosa, somos autorizados a
concluir que as especulações de Beccaria sobre este assunto talvez tenham sido
pensadas para um ser humano de sua época, participante da sociedade existente
naquele período histórico, não se ajustando ao dito “homem médio” que circula
por nossas ruas de hoje. Em outras palavras: a prevenção de certa forma
ingênua de Beccaria não mais se aplica à realidade da sociedade atual,
fragmentada e multicultural, especialmente à sociedade brasileira, que se
encontra imersa nessa nova faceta do capitalismo que chamamos globalização.
Nesse sentido, chamamos novamente a atenção para um ponto já
discutido anteriormente, aquele diante do qual se entende que qualquer estudo
científico, ou reflexão (livre pensamento), que tenha por objetivo contemplar a
total plenitude
das condições sócio-político-econômicas orientadoras dos
comportamentos humanos em nossa sociedade deve antes de tudo levar em
consideração o sistema econômico capitalista, e, consequentemente, o processo
de globalização da economia, dentro dos quais estamos todos inseridos.
Assim, sem abandonar a Teoria da Anomia, mas deixando de lado o foco
da causa da criminalidade exclusivamente no indivíduo, estendemos este
raciocínio a um ponto de origem além do mesmo, no qual o indivíduo passa de
agente inteiramente responsável pelo crime a receptor dos efeitos oriundos do
grande sistema econômico de escala global no qual estamos inseridos, a
Globalização. É nesse momento, onde o ser humano passa a ser mera
coisificação do sistema, que se torna necessária a construção de uma teoria do
crime mais abrangente, que leve em consideração a submissão dos indivíduos a
um sistema muito maior do que um “simples Estado Soberano”, pois agora o que
parece estar surgindo (ou já ter surgido) é um “Estado Global”, onde as
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
fronteiras dos países são atenuadas para darem lugar a uma economia
globalizada, onde os grandes blocos de poder econômico dominam o planeta,
impondo suas condições aos países, quer dizer, às “Economias Periféricas”, que
não podem fazem outra coisa senão seguir esses ditames.
Diante disso, uma economia mundial largamente estendida precisa de
muitos consumidores que dêem suporte à mesma, mediante o que, aqueles que
não se encontram em condições de figurar com tais são excluídos socialmente,
através do uso dos mecanismos de controle social existentes. É o que nos traz
Sérgio Salomão Shecaira, que alerta: “Assim, por mais paradoxal que possa
parecer, excluir faz parte dessa reordenação imposta pela sociedade global.
Diferentemente de uma sociedade inclusiva, a globalização afirma o fenômeno da
sociedade excludente”14. Dessa forma, a nova criminologia (Criminologia Crítica),
constatando o uso dos mecanismos de controle social previamente existentes na
sociedade para criminalizar os socialmente excluídos, vem se preocupar em
investigar as condições sócio-político-econômicas que proporcionam esse
processo de criminalização. Nesse sentido, trazemos as considerações de Lélio
Calhau, sobre o surgimento da Teoria Crítica na Criminologia, vejamos:
“De qualquer modo, é quando o enfoque macrossociológico se desloca do
comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele, em
especial para o processo de criminalização, que o momento crítico atinge sua
maturação na Criminologia, e ela tende a transformar-se de uma teoria da
criminalidade em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal.” 15
Portanto, nosso ilustre filósofo foi extremamente genial em seu tempo,
mas apesar de continuar atual em muitos aspectos, nos tempos atuais, a
previsão legal (tipificação) de uma conduta como reprovável pela sociedade e
sujeita a uma sanção (pena) não se mostra mais inteiramente suficiente para fins
de coibir a prática dessas condutas delitivas, por dois motivos. Primeiramente,
considerando a Teoria da Anomia, a alta complexidade da sociedade atual, que
proporciona uma grande quantidade de subculturas e estratos sociais, dentre os
14
15
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p.
29.
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 3. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2008, p. 81.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
quais existe uma grande diversidade de valores e princípios morais, faz com que
haja uma grande variedade de metas culturais a serem atingidas e como
consequência disso, os indivíduos (que agora são multiculturais) elegem os mais
diversos modos de adaptação à tensão criada pelo conflito entre as metas e os
meios legítimos de obtenção das mesmas. Em segundo lugar, a magnitude do
poder alcançado pelo sistema capitalista diante da globalização, onde só existe
para o mundo quem pode consumir, operando em conjunto com os mecanismos
de controle social formal e informal fazem com que se desenvolva um processo
de criminalização das camadas menos favorecidas (os torturáveis) da sociedade,
fazendo com que aqueles nos quais a “Etiqueta Social do Crime” cola sejam
sempre alvo da persecução penal eficiente, incorrendo inevitavelmente na
existência de “criminosos” na sociedade, pois o próprio sistema sócio-políticoeconômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos indesejáveis”
através dos mecanismos de controle social.
A conclusão que podemos tentar extrair de tudo isso, é que, dadas as
condições sócio-político-econômicas apresentadas, entendemos que em sua
maioria, as pessoas que se encontram sujeitas às referidas condições, justamente
o contingente de excluídos sociais, não dependem exclusivamente de sua
consciência-vontade de delinquir para praticarem ações consideradas “infrações
penais”, pois o efeito provocado neles pela economia global deve ser considerado
como elemento constitutivo da prática supostamente delituosa, prejudicando
assim a eficácia social do sistema jurídico-penal praticado na atualidade, já que
na prática, a prevenção penal estaria baseada muito mais na determinação de
indivíduos socialmente perigosos do que na construção de condições sócioeconômicas que não permitam a existência de panoramas extremos de exclusão
social. Ou seja, a prevenção penal eficaz depende necessariamente da
construção
de
uma
sociedade
livre,
justa
e
solidária,
garantidora
de
desenvolvimento nacional, com o objetivo firme de se erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação16.
16
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil[...] (CF/88)
28
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Após as presentes considerações, continuemos com nossa análise da obra
de Beccaria.
________________________________________________________
Ciente do peso de sua obra, o autor encerra o capítulo com algumas considerações,
a seguir:
Esses princípios irão sem dúvida desagradar aos
déspotas subalternos que se arrogaram o direito
de esmagar seus inferiores com o peso da tirania
que suportam. Eu poderia temer tudo, se tais
tiranetes se lembrassem um dia de ler o meu livro
e compreendê-lo; mas, os tiranos não lêem.
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Novamente, com muito desprendimento, característica dos sábios, vem nos mostrar
a consciência do impacto que sua obra causaria na sociedade da época. Mesmo assim,
não deixou de alfinetar os calcanhares dos tiranos contra quem lança sua denúncia.
29
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
III
DA OBSCURIDADE DAS LEIS: Idade das Trevas do Direito Penal
A partir do capítulo V, até o XIV, o autor começa a discorrer sobre o processo penal
de sua época, criticando as prisões arbitrárias, as acusações secretas, as torturas, entre
outras agressões à dignidade humana encontradas nesse procedimento. Porém, inicia
comentando a ausência das leis escritas em língua natural do país, já que em vários
países eram mantidos os códigos antigos, escritos em outra língua que não as suas,
mantendo-se o texto legal distante do entendimento dos homens comuns, fazendo com
que o conhecimento das leis ficasse sob o domínio de poucos, facilitando a distorção
tendenciosa de suas interpretações, vejamos:
Enquanto o texto das leis não for um livro
familiar, como um catecismo, enquanto elas
forem redigidas em língua morta e não conhecida
do povo, e enquanto forem, de maneira solene,
mantidas como oráculos misteriosos, o cidadão
que não puder aquilatar por si próprio as
consequências que devem ter os atos que
praticam sobre a sua liberdade e sobre os seus
bens estará dependendo de um pequeno número
de homens que são depositários e intérpretes das
leis.
Ponde o texto sagrado das leis nas mãos do povo
e, quanto mais homens o lerem, menos delitos
haverá; pois não é possível duvidar que, no
espirito do que pensa um crime, o conhecimento
e a certeza das penas coloquem um freio à
eloquência das paixões.
Que pensar dos homens, ao se refletir que as leis
da maior parte das nações estão redigidas em
línguas mortas e que esse uso bárbaro subsiste
ainda nos países mais esclarecidos da Europa?
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Diante do exposto, podemos ver também mais um indício da preocupação especial
de Beccaria com a prevenção dos delitos, já que segundo ele, se os homens souberem
os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a certeza da
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
punição evitará a ocorrência de mais crimes (grifo). O autor vem em seguida reforçar a
importância da existência de leis escritas em vernáculo e o papel da imprensa escrita na
divulgação das mesmas, cumprindo a função de controle social sobre as atividades da
justiça, antes reservadas ao conhecimento de poucos, conforme veremos a seguir:
Por aí se observa, do mesmo modo, a utilidade
da imprensa, que pode, ela somente, fazer todo o
público, e não apenas alguns particulares,
depositário do sagrado código das leis. A
imprensa dissipou esse tenebroso espírito de
cabala e de intrigas, que, não suporta a luz e
finge desprezar as ciências somente porque
secretamente as teme. Se atualmente na Europa,
são em menor número esses crimes horrendos
que assombravam nossos pais, se deixamos
finalmente esse estadode bárbarie que fazia de
nossos antepassados ora escravos ora tiranos, à
imprensa o devemos. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, estando as leis escritas na língua local, de fácil compreensão e sendo
divulgadas através da imprensa, passando a serem conhecidas por um grande número de
pessoas, a sociedade não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo
pelos tiranos.
Por outro lado, com o intuito firme de destacar o panorama macabro pelo qual a
humanidade passou durante a “Idade Negra” do Direito Penal, buscando fixar na memória
de todos, para se evitar que aconteça de novo, Beccaria descreveu magnificamente sua
visão do “Antigo Regime Penal”, vejamos:
A humanidade sofria o jugo da inexorável
superstição; a avareza e a ambição de um
reduzido número de homens poderosos enchiam
de sangue humano os palácios dos senhores e os
tronos dos reis. Haviam traições secretas e
morticínios públicos. O povo tinha na nobreza
apenas opressores e tiranos; e os que pregavam o
Evangelho, enoadoados na carnificina e com as
mãos cheias de sangue, ousavam oferecer aos
olhos do povo um Deus misericordioso e de paz.
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
31
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Assim, como todos sabemos, o “Antigo Regime”, sob a desculpa de agir em nome
da divindade, oprimiu um sem número de pessoas, submetendo-as a um Direito Penal
monopolizado e interpretado por poucos, à sua conveniência, aplicando a lei através de
práticas extremamente desumanas e cruéis. Nesse sentido, o autor começa a falar da
consequência desse sistema penal monstruoso, evidenciada através do comportamento
proporcionado pelo poder dado aos magistrados da época, conforme a seguir:
“Concede-se, em geral, aos magistrados
incumbidos de fazer as leis, um direito que
contraria o fim da sociedade, que é a segurança
pessoal; refiro-me ao direito de prender, de modo
discricionário, os cidadãos, de vedar a liberdade
ao inimigo sob pretextos frívolos, e,
consequentemente, de deixar em liberdade os
seus protegidos, apesar de todas as evidências do
delito. Como se tornou tão frequente um erro tão
prejudicial? Ainda que a prisão seja diferente de
outras penalidades, pois deve, necessariamente,
preceder a declaração jurídica do delito, nem por
isso deixa de ter, como todos os demais castigos,
o caráter essencial de que à lei cabe indicar o
caso em que se há de empregá-la. Assim, a lei
deve estabelecer, de maneira fixa, por que
indícios de delito um acusado pode ser preso e
submetido a interrogatóio.” (Beccaria - Dos Delitos e das
Penas)
Dessa forma, Beccaria vem falar sobre o poder sem limites dado aos magistrados
pelo sistema penal de seu tempo. Foram muitas as prisões arbitrárias e os julgamentos
secretos praticadas em seu tempo e apesar do conteúdo presente na Magna Carta de
João sem Terra (que data do ano de 1.215) inspirar legislações de vários países há
séculos, a época aludida desprezava completamente o instituto jurídico milenar do habeas
corpus, levando o autor a criticar sistematicamente tais práticas, apontando a lei como
única fonte geradora da ordem de prisão de uma pessoa e das condições que devem ser
atendidas para se realizar tal procedimento. Nossa Carta Magna detém em seu rol de
Garantias Individuais, art. 5º, normas jurídicas reguladoras dessa atividade estatal,
vejamos algumas delas que denotam uma influência inegável do pensamento de Beccaria,
a seguir:
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
“XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal;
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele
indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou
por seu interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a
liberdade provisória, com ou sem fiança;
LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar
ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por
ilegalidade ou abuso de poder;[...]” (grifo nosso)
Assim, nosso autor está mais presente do que podemos imaginar em nossas vidas,
pois seu pensamento, externado através de sua análise sistemática do Direito Penal e
Processual Penal de seu tempo, tem influenciado juristas de todo o mundo ao longo de
pouco mais de dois séculos, que baseados em seus ensinamentos criaram os institutos
jurídicos que servem de base para a doutrina penal atual.
Quando nossa Constituição nos diz que a ordem de prisão deve ser fundamentada,
ou seja, baseada em critérios definidos em lei, identificamos nela os trechos da obra de
Beccaria. Quando ela diz que o preso deve saber quem são os responsáveis e o motivo de
sua prisão vemos os comentários do autor sobre as acusações secretas e os
interrogatórios forjados. Quando nossa Lei Maior diz que a prisão ilegal deve ser relaxada,
remetemo-nos a passagem em que Beccaria fala dos motivos frívolos usados pelos
magistrados para prender os inimigos. Enfim, a obra desse grande homem está espalhada
por toda a nossa legislação, que tem a dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito.
Um dos princípios existentes em nosso Ordenamento Jurídico e de grande
importância para o Direito Processual Penal é o Princípio da Verdade Real, onde se exige
que o julgador e as partes se empenhem no processo de tal forma a atingirem a “Verdade
Real”, a fim de determinar os acontecimentos exatamente como aconteceram, com o
intuito de que seja atingida a justiça. Nesse sentido, Beccaria mencionou a importância da
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
independência da origem das provas e indícios, seguida de sua interligação, como meio de
se atingir a verdade real no processo penal, vejamos:
“Quando, porém, as provas independem umas
das outras, isto é, quando cada indício pode ser
provado separadamente, quanto mais numerosos
forem esses indícios, tanto mais provável será o
delito, porque a falsidade de uma prova em nada
influi sobre a certeza das restantes.” (Beccaria - Dos
Delitos e das Penas)
É nesse sentido que a confissão do réu deve ser relativizada, passando a ser vista
como prova comum, a teor do art. 197, do Código de Processo Penal, que dispõe: "O valor
da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para
a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo,
verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância" (grifo nosso).
Da mesma forma, destacamos o disposto no art. 158, também do CPP, onde se
prevê que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de
delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.” (grifo nosso)
Continuando na formulação do princípio da verdade real, o autor nos traz outra
demonstração de sua posição à frente de seu tempo, teorizando o Direito Penal que será
praticado séculos adiante de seu tempo, conforme a seguir:
Não se admirem de ver-me empregar a palavra
probabilidade ao tratar de crimes que, para
merecerem um castigo, devem ser comprovados;
pois, a rigor, toda certeza moral não é senão uma
probabilidade, que merece, porém, ser
considerada como uma certeza, quando todo
homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu
consentimento, por uma espécie de hábito
natural que advém da necessidade de agir que é
anterior a qualquer especulação. A certeza que
se instrui todos os homens nos seus mais
importantes negócios. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
É a pura essência do Princípio da Verdade Real, do qual o Princípio do In Dubio Pro
Reo é corolário, desprezando-se as especulações e o “Achismo” sem fim, na busca da real
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
autoria da prática de um crime, a fim de que se prevaleçam (ou pelo menos aproximem-se)
os fatos como eles ocorreram realmente, sem máscaras de injustiça.
Em seguida, após fazer algumas considerações importantes sobre as testemunhas,
dentre as quais a afirmação de que “Todo homem razoável, isto é, todo homem que
puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os
outros homens (grifo), poderá ser recebido em testemunho.” (presente em nosso
Ordenamento na figura do art. 202, CPP: “toda pessoa poderá ser testemunha”), o autor
vem tratar de uma das questões mais delicadas do Direito de sua época, as “Acusações
Secretas”. Em um tempo no qual a pessoa que acusava e a pessoa que julgava eram as
mesmas, nosso autor já elencava a necessidade da divisão dessas funções, a fim de se
evitar a manipulação das acusações que favorece apenas a quem tem a intenção de
tiranizar, vejamos:
“Pode existir, contudo, um delito, isto é, uma
ofensa à sociedade, que não esteja no interesse
de todos punir de modo público? Respeito todos
os governos; não falo de nenhum em particular e
sei que existem circunstâncias em que os abusos
parecem de tal maneira próprios da constituição
de um Estado, que não parece possível
desarraigá-los sem destruir o corpo político.
Contudo, se eu tivesse de ditar leis novas em
alguma parte isolada do universo, minha mão
trêmula recusar-se-ia a autorizar as acusações
secretas: pensaria ver toda a posteridade
atirando sobre mim a responsabilidade pelos
males terríveis que elas provocam.
Montesquieu já o afirmou: “as acusações
públicas estão de acordo com o espírito do
governo republicano, no qual o cuidado do bem
geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos”.
Nas monarquias, onde o amor pela pátria é muito
débil, pela própria natureza do governo, é sábia
a instituição de magistrados que têm o encargo
de acusar, em nome do povo, os que infringem as
leis.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Não fica difícil de identificar a figura do Ministério Público no texto acima,
demonstrando a posição à frente de seu tempo do pensamento de Beccaria e a sua
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
compatibilidade com nosso Ordenamento Jurídico.
O nosso festejado autor vem novamente lançar os princípios que viriam estabelecer
os conceitos fundamentais das legislações que se sucederam, sendo inclusive o precursor
no tratamento de tortura como algo humilhante, degradante e, acima de tudo, anti-humano,
conforme poderemos constatar nos trechos seguintes:
“Esse meio infame de chegar à verdade é um
monumento da bárbara legislação de nossos
avós, que honravam com o título de “julgamento
de Deus” as provas de fogo, aquelas da água
fervente e a sorte horripilante dos combates.
Como se os elos dessa corrente eterna, a origem
da qual reside no seio da Divindade, pudessem
ser desunidos ou partir-se a cada momento, ao
sabor dos caprichos e das frívolas instituições
dos humanas!
A única diferença que existe entre a tortura e a
prova de fogo é que a tortura apenas prova o
delito quando o acusado quer confessar, ao passo
que as provas que queimam deixavam uma marca
exterior, tida como prova do crime.
Contudo, tal diferença é mais aparente do que
real. O acusado é tão capaz de não confessar o
que se exige dele quanto o era antigamente de
obstar, sem fraude, os efeitos do fogo e da água
fervente.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, vemos o caráter bárbaro que Beccaria dá à tortura, dando como provável
origem dessa prática as provas de fogo e outras práticas cruéis da antiguidade, filhas do
misticismo e das supertições, que se aplicavam às pessoas para provar a sua inocência. A
monstruosidade de tal prática por si só já é causa de reprovação imediata da mesma.
Porém, além de desumano, tal procedimento é inútil na apuração da verdade, conforme
vemos nos trechos supracitados, onde o autor inicia suas considerações sobre a inutilidade
da tortura, comparando sua eficiência com a da bárbara prova da água fervendo, onde
esperava-se que ao por a mão na água fervendo o inocente não se queimasse...
Beccaria continua suas considerações acerca da tortura provando claramente sua
ineficiência, já que diante da agonia do sofrimento físico, a tendência natural que qualquer
um tem de evitar a dor obrigará o infeliz torturado a confessar qualquer coisa, vejamos:
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Todos os atos de nossa vontade são proporcionais
à força das impressões sensíveis que os causam, e
a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora,
se a impressão da dor se faz muito forte para
assenhorar-se de todo o poder da alma, ela não
deixa a quem a sofre qualquer outra atividade
que exercer a não ser tomar, no momento, a via
mais curta para obstar os tormentos atuais.
Assim, o réu não pode mais deixar de responder,
pois não poderia fugir às impressões do fogo e da
água. O inocente gritará, então, que é culpado,
para que cessem as torturas que já não aguenta;
e o mesmo meio usado para distinguir o inocente
do criminoso fará desaparecer qualquer
diferença entre ambos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, o autor vem mostrar que até mesmo um inocente confessará qualquer
crime diante de dor que não possa suportar, dando por ineficaz a prática de tortura para a
apuração da verdade sobre a prática de crime, se é que diante de uma suposta eficácia a
tortura deixaria ser menos hedionda. É nesse sentido que nossa Carta Magna vem nos
informar em seu art. 5º, inc. III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante”. O autor não acaba aqui o seu intuito de provar a
monstruosidade de tal prática, mostrando em seguida a desigualdade de tratamento
proporcionada pela tortura, conforme a seguir:
A tortura é frequentemente um meio certo de
condenar o inocente débil e de absolver o
criminoso robusto. É esse, comumente, o
resultado terrível dessa barbárie que se
considera capaz de produzir a verdade, desse
costume próprio de canibais, e que os romanos,
apesar da dureza de seus costumes, reservavam
exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de
um povo cuja feroz virtude tantos elogios tem
recebido. Entre dois homens, igualmente
inocentes ou igualmente culpados, o mais robusto
e corajoso será absolvido; o mais débil, contudo,
será condenado[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Assim, Beccaria vem condenar definitivamente a tortura, elencando-a como prática
que serve apenas para favorecer as intenções maléficas dos poderosos que pretendem
culpar inocentes, infringindo-os sofrimentos insuportáveis, a fim de obter confissão.
Seguindo esse entendimento, além de outros crimes semelhantemente impactantes,
nossa Carta Política estabelece em seu art. 5º, inc. XLIII, que “a lei considerará crime
inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura,[...] por ele
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
________________________________________________________
PONTO DE REFLEXÃO:
Todavia, mesmo diante do brilhantismo das concepções de Beccaria sobre
a tortura, que influenciaram gerações de juristas, bem como da sua proibição
constitucional expressa (art. 5º, inc. III, CF/88), fica a pergunta: por que ainda
pratica-se tortura em nosso país? É também sobre o que deve ter se questionado
Adriana de Andrade Roza, em seu estudo crítico sobre o tema, onde a mesma
afirma que apesar de encontrar-se formalmente extinta, a tortura ainda tem sido
praticada, principalmente nos países periféricos, vejamos:
“No entanto, são poucos os casos de tortura oficialmente registrados no
Brasil, uma vez que quem é torturado sente-se quase sempre intimidado para
denunciar os culpados; não é tão-somente uma questão de falta de coragem,
mas também de medo de represálias por parte dos torturadores ou de
membros das organizações/corporações da qual estes últimos, normalmente,
fazem parte”17.
Não vou precisar recorrer à imagem deplorável do suplício de Damiens 18,
nem a imagens de instrumentos de tortura medievais para ilustrar o significado
da tortura no presente texto. Tenho certeza que o Nobre Leitor do Século XXI
tem noção de que a tortura massacra, humilha e constrange, levando a vítima ao
desespero, fazendo com que confesse qualquer coisa para se ver livre daquele
sofrimento, demonstrando a covardia extrema daquele que a pratica. Covardia
17
18
ROZA, Adriana de Andrade. Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica. Revista de Informação
Legislativa. Brasília, ano 40 n. 158. abr/jun 2003, p. 330.
Personagem com o qual Michel Foucault inicia a sua obra clássica (Vigiar e Punir), descrevendo o martírio do pobre
infeliz, sentenciado pela justiça criminal que vigorava na França antes da reforma do sistema penal então vigente,
proporcionada pelo advento dos ideais iluministas, dos quais foi signatário o Marquês de Beccaria.
38
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
ainda mais acentuada pela ocultação recorrente dessas práticas grotescas pelos
torturadores, conforme destaca o professor da Universidade Federal de
Pernambuco, Luciano Oliveira: “Esse costuma ser um dos traços marcantes que
caracterizam o uso da tortura no mundo moderno: sua indizibilidade”19. Portanto,
além de ser cruel e covarde, a prática da tortura é mascarada na sociedade,
primeiro porque muitos torturados têm medo de revelar a verdade, preferem
conviver sozinhos com essa dura verdade a correr o risco de passarem por tudo
de novo, ou pior, de serem mortos como represália dos torturadores. Depois
porque os torturadores tratam de esconder as suas barbaridades muito bem, já
que não deixam rastros, além de contarem com a proteção do corporativismo.
Em relatório sobre a tortura no Brasil, a Pastoral Carcerária, organização
mantida pela CNBB (a entidade faz uso da garantia constitucional da prestação
de assistência religiosa aos presos 20 para acompanhar a situação das cadeias
brasileiras), revela um dado destacável, de que o corporativismo dos “Agentes do
Estado” constitui uma grande barreira para a erradicação da tortura no Brasil,
pois haveria um desinteresse em apurar casos de tortura contra presos, já que as
autoridades competentes para este exercício, como os juízes, delegados de
polícia e promotores de justiça, entre outros, estariam demonstrando pouca ou
nenhuma
motivação
em apurar, denunciar ou processar tais casos e
complementa sua denúncia, vejamos:
“Nos casos de tortura envolvendo agentes do Estado a produção de provas é
frágil o corporativismo policial interfere diretamente nesta fase, não há muito
empenho do Ministério Público nas denúncias e eles raramente utilizam os
mecanismos internacionais contra a tortura ratificados pelo Brasil. Há uma
grande desqualificação da fala da vítima durante o processo, que é colocada
em dúvida diante das alegações de seu agressor, agente do Estado. Nas
sentenças é comum encontrar questionamentos quanto às lesões constatadas
na vítima, colocando em dúvida não somente a palavra da vítima, mas
também a autoria do crime. Chega-se ao ponto de dizer que a própria vítima
teria sido responsável pelos ferimentos. Esses posicionamentos revelam que a
tortura ainda é, em grande medida, aceita e tolerada, inclusive por aqueles
que deveriam condená-la e punir esse tipo de prática. Mesmo as
corregedorias, de polícia e do judiciário, atuam geralmente mais em defesa
dos agressores do que das vítimas.”21
19
20
21
OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história. A “vitória simbólica” dos vencidos. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 26, n. 75, 2011, p. 10.
“É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação
coletiva” (Inc. VII, Art. 5º, CF/88)
CNBB - Pastoral Carcerária. Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para
a prevenção da tortura. São Paulo: 2010, p. 44.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Então, diante da constatação de que os agentes públicos, que deveriam
zelar pela garantia de respeito aos direitos humanos, expressamente positivada
em nossa Constituição e nos Tratados Internacionais dos quais nosso país é
signatário, não demonstrariam interesse em apurar os casos de tortura contra os
presos, surge novamente a pergunta: por que, mesmo diante do repúdio
expresso em nossa legislação ainda acontece tortura no Brasil? A resposta é
simples, pois de acordo com o que já foi defendido nesta obra, o sistema penal
tem característica seletiva, orientando sua atuação contra os excluídos sociais, os
indesejáveis, os torturáveis... É o que parecem propor Flávia Piovesan e
Fernando Salla, em artigo muito interessante, publicado na revista Ciência Hoje,
vejamos:
“O que faz com que essas práticas pareçam não ter fim? Várias razões. A
mais importante, talvez, é que, no Brasil, as vítimas de tortura e maus-tratos
provêm, em sua maioria, das camadas mais pobres da população. Nos
períodos autoritários de nossa história, a tortura ocorre como recurso de
combate à oposição política, quando então as vítimas são
predominantemente da classe média ou da elite. Fora desses períodos, ela é
praticada rotineiramente contra os autores ou suspeitos de crimes comuns
provenientes das camadas pobres. A significativa diferença é que esses não
têm os mesmos recursos para protestar e pressionar para que a tortura não
mais ocorra, como em geral têm os perseguidos políticos. Assim, não podem
contratar advogados capazes de impedir a prática de arbitrariedades. Da
mesma forma que não contam com uma rede de relações pessoais articuladas
com as esferas de poder que possam interceder em seu favor.” 22
Dessa forma, considerando o caráter seletivista de nosso sistema penal,
trazemos o estudo realizado por Maria Gorete Marques de Jesus, onde a mesma
analisa os processos judiciais no âmbito da justiça paulista nos quais foram
julgadas supostas práticas de tortura. Segundo a autora, há uma distinção entre
os julgamentos nos quais figuram como réus agentes do Estado daqueles onde
são réus os não agentes do Estado, conforme poderemos verificar adiante,
vejamos então:
“Quando analisamos o desfecho processual de cada um dos réus, temos que
dentre os 181 agentes do Estado acusados por crime de tortura, 127 foram
absolvidos, 33 foram condenados por crime de tortura e 21 foram condenados
por outro crime (lesão corporal ou maus tratos). Dentre os 12 civis acusados,
22
PIOVESAN, Flávia; SALLA, Fernando. Tortura no Brasil: pesadelo sem fim? Revista Ciência Hoje, vol. 30, nº 176,
out. 2001, p. 32.
40
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
três foram absolvidos, seis foram condenados por crime de tortura e três
foram condenados por outro tipo penal[...]
São especialmente relevantes o testemunho, a conduta do agressor e a
vulnerabilidade da vítima quando os acusados são pessoa comum.
Isso fica evidente na sentença quando verificamos quais foram os argumentos
realçados pelo magistrado para basear sua decisão.
Quando analisamos os processos envolvendo os agentes do Estado como
agressores, foi possível perceber que a avaliação realizada durante o
julgamento não tem como foco o acusado do crime de tortura, como nos
casos envolvendo pais, mães, padrastros ou madrastas, mas sim a vítima. O
que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade[...]
A condição da vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita criminosa,
a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é
julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda a credibilidade,
principalmente por ser ele um agente do Estado[...]
Não são raras expressões tais como: 'a vítima ostenta vasta lista de
antecedentes criminais, o que demonstra que sua personalidade é voltada
para a prática reiterada de crimes contra o patrimônio e contra a vida'[...]
[...]em que a defesa pode utilizar argumentos baseados na conduta do
acusado para viabilizar sua defesa, alegando que o réu é trabalhador, bom
pai, bom filho, bom marido, provedor do lar, etc. Da mesma forma pode
desclassificar a vítima dizendo que a mesma não é digna de confiança porque
é um condenado da justiça, um preso que apresenta 'vasta lista de
antecedentes criminais', ou um adolescente autor de ato infracional que
apresenta antecedentes criminais e que sua palavra de nada valeria como
verdade[...]
Outra diferença entre o julgamento dos processos envolvendo civis daqueles
envolvendo agentes do Estado diz respeito à forma como esses casos são
apurados e encaminhados para a justiça. Os primeiros são investigados num
intervalo de três a seis meses, período em que são reunidas provas orais e
periciais do crime[...] O número de testemunhas é bastante equilibrado, as de
defesa correspondem ao equivalente ao número de testemunhas de
acusação[...] Em praticamente todos os processos, existe exame de corpo de
delito que indica as agressões presentes na vítima.
Em relação aos processos envolvendo agentes do Estado como acusados,
temos que a investigação pode demorar anos para ser finalizada, o que
interfere sensivelmente no andamento do processo. Essa morosidade
prejudica, principalmente, as provas orais[...]
Muitas vezes, apesar das provas periciais comprovarem as agressões sofridas
pela vítima, a autoria é desconsiderada porque o número de testemunhas que
confirmam a prática de tortura é reduzido, de forma que o crime se torna
quase irrelevante diante dos depoimentos das testemunhas de defesa e do
acusado[...]”23
Assim, analisando-se o que foi acima exposto, oriundo desse brilhante
estudo, nota-se uma clara tendência nos processos que julgam denúncias de
tortura nos quais figuram como réus agentes do Estado em manter-se das mais
variadas formas a estigmatização dos apenados (supostas vítimas), utilizando
23
JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal. Um estudo dos processos de
tortura na cidade de São Paulo. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de
Mestre em Sociologia. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2009, pp. 229-232.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
isso em seu prejuízo no processo, dando a entender a existência de dois pesos e
duas medidas no julgamento dos referidos processos, reforçando ainda mais a
tese aqui defendida nesta obra de que o sistema penal tem como caráter
principal a sua seletividade, atuando como mecanismo de controle social
máximo, com foco maior nos excluídos sociais e destinado a fortalecer as
relações de desigualdade inerentes à ordem social mundial em vigor
(globalização), diante da qual apenas existirá para o mundo aquele que tem
capacidade de consumo. Nesse sentido, de posse dos mecanismos de controle
social, entre eles o monopólio da força legítima pelo Estado, o sistema sóciopolítico-econômico se encarrega de produzir um contingente de “humanos
indesejáveis”, incorrendo em um processo de criminalização das camadas menos
favorecidas, que são sempre alvo da persecução penal eficiente.
Assim, realizadas as presentes considerações, devemos continuar com
nosso estudo da magnífica obra de Beccaria.
________________________________________________________
Fonte inesgotável de princípios básicos do Direito Penal, Beccaria nos traz também
a essência dos procedimentos processuais praticados em nossa época, vejamos:
Quando o delito é constatado e as provas são
certas, é justo que se conceda ao acusado o
tempo e os meios para se justificar, se lhe for
possível; é necessário, contudo, que tal tempo
seja bem curto para não atrasar muito o castigo
que deve acompanhar de perto o delito, se se
quer que o mesmo seja um útil freio contra os
criminosos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Nota-se que o autor tem imensa influência em vários institutos jurídicos presentes
em nosso ordenamento. Por exemplo, vemos aqui de forma embrionária os conceitos de
ampla defesa e contraditório, bem como do duplo grau de jurisdição, além da razoável
duração do processo, juntamente com os prazos processuais.
Nesse
sentido,
Beccaria
vem
dissertar
42
sobre
a
prescrição
dos
crimes,
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
estabelecendo como necessária a determinação por lei do período de investigação e de
julgamento a fim de que não se demore na aplicação do jus puniendi, tornando assim
inócua a atuação do Estado em seu direito de punir, conforme podemos ver a seguir:
Apenas posso apontar aqui princípios gerais.
Para a sua aplicação exata, é necessário ter em
vista a legislação existente, os costumes do país,
as circunstâncias. Limito-me a acrescentar que,
para um povo que aceitasse as vantagens das
penas moderadas, se as leis encurtassem ou
aumentassem a duração dos processos e o tempo
em que prescrevem de acordo com a gravidade
do crime, se a prisão provisória e o exílio
voluntário fossem computados como parte da
pena que o culpado merece, chegar-se-ia a
estabelecer assim uma justa progressão de
castigos leves para um grande número de crimes.
O tempo, porém, que é empregado na
investigação das provas e o que determina a
prescrição não devem ser aumentados em virtude
da gravidade do delito que se persegue, pois,
enquanto um crime não está provado, quanto
mais atroz, menos verossímil. Será necessário,
portanto, às vezes, reduzir o tempo de duração
dos processos e aumentar o que se exige para a
prescrição.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, segundo Beccaria, não é a gravidade do crime e sim a lei que deve
determinar o tempo investido na investigação e o que deve decorrer para a prescrição do
crime. Todos esses prazos devem estar previamente dispostos na lei para serem
cumpridos, submetendo todos acusados às mesmas condições, a fim de que não se
cometa injustiça na apuração da infração penal. Da mesma forma, quando o autor nos
informa que é preciso reduzir o tempo dos processos, podemos encontrar inserido nos
trechos acima o Princípio da Razoável Duração do Processo.
É também interessante notarmos a influência de Beccaria no regime de progressão
das penas presente em nosso Sistema Legal, bem como no instituto penal da “detração”,
vejamos então:
43
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
[...]se a prisão provisória e o exílio voluntário
fossem computados como parte da pena que o
culpado merece, chegar-se-ia a estabelecer assim
uma justa progressão de castigos leves para um
grande número de crimes. (Beccaria - Dos Delitos e das
Penas)
Dessa forma, a proposta feita por Beccaria há séculos, pode ser identificada hoje
em nosso Código Penal, na figura presente no art. 42, onde se estabelece que “computamse, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão
provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em
qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.”
44
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
IV
DA MODERAÇÃO DAS PENAS
Nestes capítulos (XV ao XXII), Cesare Beccaria vem apresentar algumas espécies
de pena que eram praticadas em sua época, iniciando sua explanação com um comentário
sobre a necessidade da moderação das penas impostas na época, vejamos o seguinte
trecho:
“Quanto mais terríveis forem os castigos, tanto
mais cheio de audácia será o culpado em evitálos. Praticará novos crimes, para subtrair-se à
pena que mereceu pelo primeiro. Os países e os
séculos em que se puseram em prática os
tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles
em que se praticaram os crimes mais horrendos.
O mesmo espírito de ferocidade que ditava as leis
de sangue ao legislador, colocava o punhal nas
mãos do assassino e do parricida. Sobre o seu
trono, o soberano dominava com uma verga de
ferro; e os escravos somente imolavam os tiranos
para arranjarem novos.” (Beccaria - Dos Delitos e das
Penas)
Nesse trecho o autor recorre aos exemplos históricos para provar que nos regimes
políticos mais bárbaros e ferozes ocorriam os piores crimes, já que este era o espírito que
animava as sociedades da época. Em seguida, Beccaria vem tentar nos mostrar o efeito
que tais tratamentos provocam nas pessoas, endurecendo suas almas, tornando-as menos
sensíveis à violência, conforme a seguir:
“À proporção que os tormentos se tornam mais
cruéis, a alma, idêntica aos fluidos que sempre
ficam no mesmo nível dos objetos que os
circundam, enenrijece-se pela renovação do
espetáculo da barbárie. A gente acostuma-se aos
tormentos atrozes; e, após cem anos de
crueldades renovadas, as paixões, sempre ativas,
são menos refreadas pela roda e pela força do
que antes o eram pela prisão. A fim de que o
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
castigo surta o efeito que se deve esperar dele,
basta que o mal vá além do bem que o culpado
retirou do crime. Devem ser contados ainda
como parte do castigo os terrores que antecedem
a execução e a perda das vantagens que o delito
devia produzir. Qualquer excesso de severidade
torna-se supérflua e, portanto, tirânica.” (Beccaria Dos Delitos e das Penas)
Nota-se que nesse ponto Beccaria começa a formular a idéia da proporcionalidade
entre as penas e os crimes correspondentes, de forma que uma pena excessivamente
cruel não contribuiria de forma alguma para a apuração da verdade e para a adequada
sanção do delito, visto que tornaria quem pune tão cruel quanto quem está sendo
condenado. Seguindo o raciocínio, o autor nos mostra a necessidade do caráter das penas
seguirem o avanço da humanidade, vejamos:
“São necessárias impressões fortes e sensíveis
para impressionar o espírito rude de um povo
que abandona o estado selvagem. Para dominar
o leão em fúria, é preciso o raio, cujo ruído
apenas faz irritá-lo. Contudo, à medida que as
almas se tornam mais brandas no estado social,
o homem faz-se mais sensível; e, se se quiser
conservar as mesmas relações entre o objeto e a
sensação, as penas precisam ser menos
rigorosas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, segundo o autor, o novo espírito que surgia com o avanço proporcionado
pela evolução da sociedade deveria estar presente também nas penas, tornando-as mais
humanas, a fim de acompanhar o caráter humanista das novas concepções da época.
A partir de agora o autor nos mostra as penas mais injustas praticadas em sua
época. Apesar de serem todas importantes, limitaremo-nos apenas às mais interessantes
para nosso estudo, iniciando pelos trechos nos quais nosso autor fala sobre pena de
morte, vejamos então:
“Diante do espetáculo dessa imensidade de
tormentos que jamais tornaram melhores os
homens, desejo examinar se a pena de morte é
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
realmente útil e se é justa em um governo sábio.
Quem poderia ter conce
dido a homens o direito de fazer degolar seus
iguais? Tal direito não tem por certo a mesma
origem que as leis que protegem. A soberania e
as leis nada mais são do que a soma das
pequenas partes de liberdade que cada qual
cedeu à sociedade. Representam a vontade geral,
que resulta da reunião das vontades individuais.
Mas quem já pensou em dar a outros homens o
direito de lhes tirar a existência? Será o caso de
supor que, por sacrifícar uma parte ínfima de sua
liberdade, cada indivíduo tenha desejado
arriscar a própria vida, o bem mais precioso de
todos?” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Beccaria questiona a real utilidade da pena de morte, destacando tal prática como
um grande exagero do direito de punir do Estado, visto que este foi criado justamente
como resposta necessária ao caos político fundamentado sob um processo consensual de
sacrifício das parcelas de liberdades individuais. Assim, admitindo-se que o Estado seria
um consenso de vontades, dar a alguém, o direito de tirar a vida de outrem, segundo
proclma o autor, é uma incoerência com a própria origem do Estado, pois não se pode crer
que pessoas façam sacrifício de suas parcelas de liberdade, mediante um “acordo”
(Contrato Social) no qual incluam o risco às suas próprias vidas. Mais adiante, analisa a
ineficácia da pena de morte, conforme a seguir:
“O rigor do castigo faz menor efeito sobre o
espírito do homem do que a duração da pena,
pois a nossa sensibilidade é mais fácil e mais
constantemente atingida por uma impressão
ligeira, porém frequente, do que por abalo
violento, porém passageiro. Todo ser sensível
está dominado pelo império do hábito; e, como é
este que ensina o homem a falar, a andar, a
satisfazer as suas necessidades, também é ele que
inscreve no coração humano as ideias morais por
de impressões reiteradas. O espetáculo atroz,
porém momentâneo, da morte de um criminoso é
um freio menos poderoso para o crime, do que a
exemplo de um homem a quem se tira a
liberdade, tornado até certo ponto uma besta de
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
carga e que paga com trabalhos penosos o
prejuízo que causou à sociedade.” (Beccaria - Dos
Delitos e das Penas)
Dessa forma, mesmo sendo rigoroso, o caráter transitório da pena de morte não
produz o efeito esperado na punição do delito. Segundo Beccaria, sabendo que vai morrer,
o criminoso não se sentiria tão coagido a não praticar delitos quanto se soubesse que seria
forçado a uma pena longa a ser cumprida. Apesar de se mostrar de acordo com a pena de
trabalhos forçados, incoerente com nosso Ordenamento Jurídico, Beccaria mostra que
mesmo quando se propõe a punir o culpado por crime, a pena de morte mostra-se ineficaz.
Nesse sentido o autor complementa, reforçando a contradição entre o fundamento
do Estado e a autorização pelo mesmo da pena de morte, vejamos:
Não é absurdo que as leis, que são a expressão
da vontade geral, que detestam e punem o
homicídio, autorizem um morticínio público, para
desviar os cidadãos do assassínio? Quais são as
leis mais justas e mais úteis? Aquelas que todos
proporiam e desejariam cumprir, nesses
momentos em que o interesse particular se cala
ou se identifica com o interesse público. Qual é o
sentimento da maioria sobre a pena de morte?
Está definido em caracteres indeléveis nos
movimentos de indignação e de desprezo que nos
causa apenas a visão do carrasco, que não é
senão o executor inocente da vontade do povo,
um cidadão honesto que contribui para o bem
geral e defende a segurança do Estado no
interior, do mesmo modo que o soldado cuida da
sua defesa no exterior. Qual é, portanto, a origem
de tal contradição? E porque esse sentimento de
horror afronta a todos os esforços da razão? É
porque em uma parte abscôndita de nossa alma,
na qual os princípios naturais não foram ainda
alterados, encontramos um sentimento que nos
diz que um homem não tem nenhum direito
legítimo sobre a existência de outro homem, e
que apenas a necessidade, que por todos os
recantos estende seu cetro de ferro, pode dispor
da nossa vida”. (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Assim, Beccaria encerra sua análise da inutilidade da pena de morte mostrando a
incoerência que surge do fato de se punir o crime de assassinato com outro assassinato,
agindo em contradição com os fundamentos do direito de punir do Estado.
Mais adiante, Beccaria vem comentar as confiscações, prática comum naquela
época, vejamos:
“O uso das confiscações põe continuamente a
prêmio a cabeça do infeliz sem defesa, e faz o
inocente sofrer os castigos que estão destinados
aos culpados. Ainda pior, as confiscações podem
tornar o homem de bem um criminoso, pois o
arrastam ao crime, por reduzi-lo à indigência e
ao desespero. E, além disso, não existe
espetáculo mais hediondo que o de uma família
inteira coberta de infâmia, imersa nos horrores
da indigência pelo delito do seu chefe, delito que
essa família, submetida à autoridade do culpado,
sujugada, não poderia prevenir, mesmo que
dispusesse de meios para isso.” (Beccaria - Dos Delitos e
das Penas)
Assim, tentando sempre analisar os institutos jurídicos sob a perspectiva utilitarista,
construindo assim uma abordagem pollítico-sociológica, o autor põe em cheque a real
eficácia de tal procedimento, visto que a tendência de uma pessoa que perdeu todos os
seus bens e encontra-se manchado com a marca da infâmia, desmerecido pela sociedade,
é de aproximar-se cada vez mais do crime. Nossa Carta Magna tem como direito
fundamental o mandamento presente no inciso do artigo 5°, onde se estabelece que
ninguém será privado de seus bens, da mesma forma que as penas de multa tem limites
estabelecidos na legislação penal e sua aplicação obedece a lógica da razoabilidade e da
proporcionalidade. Em seguida, Beccaria vem voltar sua atenção rapidamente para outra
prática antiga, conforme o trecho a seguir:
“A Infâmia é uma marca de desaprovação
pública, que retira do culpado a consideração, a
confiança que a sociedade depositava nele e essa
espécie de irmandade que une os cidadãos de
uma mesma nação. Como os efeit1os da infâmia
não dependem, de modo algum, das leis, é
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
necessário que a vergonha que a lei inflige esteja
baseada na moral, ou na opinião pública.
[...]As penas de infâmia devem ser raras, pois o
emprego muito frequente do poder da opinião
debilita a força da própria opinião. A infâmia
não deve cair tão pouco sobre um grande número
de pessoas ao mesmo tempo, pois a infâmia de
um grande número não é mais, em breve, a
infâmia de ninguém.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Todos sabemos que a reputação de uma pessoa, mesmo hoje, em um tempo de
maiores garantias individuais, é algo que se bem preservado facilita a convivência em
sociedade. Situação que era diferente na época na qual o autor viveu, onde além das
penas dolorosas e desumanas a que era submetido, o culpado tinha seus bens
confiscados e ainda vivia marcado pela infâmia, uma pena de base absurdamente injusta,
manifestada através de um controle social extremo, que dependendo da rejeição praticada
contra o indivíduo, poderia até mesmo ser pior do que a própria pena, visto que relegava a
pessoa a uma vida de humilhação e desconsideração, derrubando cada vez mais a moral
do indivíduo, sem oportunidade alguma de recuperação social. Um princípio presente em
nosso Ordenamento Jurídico que evidencia a preocupação do sistema com a aplicação
justa da pena, nem pra mais, nem pra menos, é o Princípio do Non Bis In Idem, onde não
se pode condenar alguém duas vezes pelo mesmo fato.
Se consideramos Beccaria atual pela repercussão de sua obra e a influência da
mesma em nosso Sistema Criminal, no trecho seguinte ele será considerado atual por
dissertar sobre um problema que parece não ter evoluído muito de sua época pra cá,
vejamos então:
“Se a prisão constitui somente uma maneira de
deter o cidadão até que ele seja considerado
culpado, como tal processo é angustioso e cruel,
deve, na medida do possível, amenizar-e o rigor e
a duração. Um cidadão preso deve ficar na
prisão apenas o tempo necessário para a
instrução do processo; e os mais antigos detidos
têm o direito de ser julgados em primeiro lugar.
O réu não deve ficar encarcerado senão na
medida em que se considere necessário para o
impedir de fugir ou de esconder as provas do
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
crime. O próprio processo deve ser levaso sem
protelações. Que contraste tremendo entre a
preguiça de um juiz e o desespero de um
acusado! De um lado, um magistrado sem
sensibilidade, que passa os dias no bem-estar e
nas delícias, e de outro um desgraçado que
definha, chorando no fundo de uma cela
abominável.
Os efeitos do castigo que acompanha o crime
devem ser em geral impressionantes e sensíveis
para aqueles que o testemunharam; existirá,
contudo, necessidade de que esse castigo seja tão
cruel para aquele que o sofre? Quando os
homens se reuniram em sociedade, foi apenas
para se sujeitarem aos mínimos males possíveis;
e não há país que possa negar esse princípio
incontestável.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Não precisamos de um exame muito detalhado do trecho supra para que passemos
a identificar uma realidade semelhante a que encontramos em nossas cadeias nos dias
atuais. Presos cumprindo prisões provisórias, aguardando um julgamento que parece
nunca acontecer, muitos encarcerados há anos, mesmo tendo praticado crimes de pouco
potencial ofensivo ou envolvendo valores financeiros insignificantes, submetidos a um
sistema penal lento e ineficaz, protagonizando cenas que não estão muito longe do que
narra Beccaria no trecho acima grifado. Pois que, mais de duzentos anos depois de
escrito, as palavras contidas no pequeno livro do Marquês amoldam-se ao panorama atual
de nosso Sistema Processual-prisional.
______________________________________________________
PONTO DE REFLEXÃO:
Sobre a perspectiva das condições de nosso sistema penitenciário, um dos
instrumentos da política criminal, creio que nenhum de nós que não tenha
experimentado na pele a dura realidade das prisões brasileiras possua condições
de ter plena consciência da falácia que é vendida como promessa de
ressocialização dos apenados. Uma parte sombria de um todo injusto chamado
de “Sistema Penal” (o nome em si já diz o seu intuito), que não cumpre outra
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
função (não social) senão a de “selecionar” aqueles que expiarão os pecados da
sociedade, pelo bem da comunidade. Ou seja, na prática, o sistema penal em
vigor não cumpre outra tarefa senão a de tirar do convívio da sociedade aqueles
nos quais se consegue colar com eficiência a etiqueta de “criminoso”, de “não
consumidor”, pois nessa sociedade globalizada onde só existe no mundo quem
tem poder aquisitivo, quem não dispõe desse “atestado de boa conduta” está
sempre correndo o risco de ser alvo da mira da lei. É a essa essência seletivista
do sistema penal a que se refere Maria Lúcia Karam, no volume 1 de seu
brilhante livro, conforme a seguir:
“A função real do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos
de manutenção e reprodução de estruturas dominantes já bastaria para
demonstrá-lo. A seleção dos indivíduos que, processados e condenados, vão
ser demonizados e etiquetados como 'criminosos' – assim cumprindo o papel
do 'outro', do 'mau', do 'perigoso' e, agora, do 'inimigo' – necessariamente se
faz de forma preferencial entre os mais vulneráveis, entre os desprovidos de
poder, entre os marginalizados e excluídos.” 24
Portanto, conforme as palavras da juíza aposentada do TJRJ 25, o sistema
penal existe como instância máxima de controle social, mas de um controle
direcionado aos já excluídos pela própria “regra do jogo” da sociedade. É nesse
sentido que a autora complementa mais adiante, vejamos:
“No Brasil, isso é evidente; as estatísticas são até dispensáveis. De todo
modo, vale mencionar que os censos, periodicamente realizados pelo
Ministério da Justiça do Brasil, têm classificado como absolutamente pobres
entre 90 e 95% dos internos no sistema penitenciário brasileiro.”26
Diante do exposto, Nobre Leitor, tomo a liberdade de fazer uso de um
jargão popular: só não vê quem não quer! Luiz Eduardo Soares, antropólogo e
cientista político (coautor de Elite da Tropa), traz em seu último livro um exemplo
muito claro da ineficácia social, pra não dizer da injustiça, que esse sistema penal
praticado em nosso país pode proporcionar, através da estória de dois rapazes
24
25
26
KARAM, Maria Lúcia. Escritos sobre a liberdade: recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo. v.1
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 25.
A autora assina vários livros sobre política criminal. É presidente da filial brasileira da Law Enforcement Against
Prohibition, organização internacional que defende a legalização das drogas mediante um sistema de regulação e
controle. Atuou durante 08 (oito) anos como juíza de direito na justiça criminal, segundo seu histórico pessoal,
disponível em: http://www.leapbrasil.com.br/quem-somos/diretores.
KARAM, ibid, p. 26.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
que portavam droga no mesmo local (apenas com uma diferença, um deles
pobre, negro e mal vestido e o outro rico, branco e bem vestido), ele reproduz
um contexto social sobre o qual muitos de nós já devemos ter ouvido falar de
algo parecido, vejamos então:
“Dois adolescentes de 15 anos[...] estão em uma padaria no momento em
que uma senhora dá pela falta de sua carteira, deduz que a furtaram e pede
socorro: 'Déus do céu, levaram meu dinheiro!' Um policial que toma café com
lei, pão e manteiga, à paisana, puxa a arma e ordena, com a boca cheia mas
ansioso por cumprir seu dever: 'Ninguém sai.' Dirige-se à porta, passa os
olhos de sobrevoo pelos fregueses e escolhe o suspeito. Não preciso lhe dizer
quem foi brindado pela sorte, ou pelo azar. Todos os fregueses se retiram do
estabelecimento, enquanto o sargento revista o jovem negro e malvestido.
O outro rapaz escapa lívido, trêmulo, mas sem dar bandeira. Carrega
no bolso várias trouxinhas de maconha que acabara de comprar no morro
próximo à padaria para servir aos convidados em sua festa de aniversário,
que estava marcada para o próximo sábado.
[...]O rapaz malvestido não furtara a carteira da senhora. Quem
levou o dinheiro? Ninguém jamais descobriria.
[...]Na porta da padaria acontece o flagrante. O menino tenta
explicar, mas as trouxinhas são numerosas e permitem seu enquadramento no
crime de tráfico.
[...]Levado para a delegacia, encaminhado ao juiz, o menino acaba
sendo internado em uma instituição para cumprir 'medida socioeducativa'.
[...]Tudo o que o cerca (espaço, temperatura, higiene, abordagem,
alimentação, atividades ou o ócio tedioso) lhe envia a mesma mensagem, em
diferentes registros, por meio das estranhas linguagens silenciosas dos
objetos e dos gestos: 'Ei cara, você não presta; você nada vale. Se está em
um lugar que parece depósito de gente, se está na lixeira, é porque você é
igual aos demais que ali estão e é mesmo o lixo da sociedade.'
Aos poucos, com a insistência dessa mensagem, reproduzida dia e
noite, o jovem começa a assimilá-la, inconscientemente.
[...]Vestindo a máscara que a experiência punitiva confeccionou, o
jovem volta ao convívio da sociedade, repleto de ódio, mágoa, ressentimento,
com a autoestima devastada e, não raro, disposto a merecer o estigma que a
Justiça carimbou em sua testa.Já que o supõem violento, criminoso,
irrecuperável, o adolescente prepara-se para agir em conformidade com o que
esperam dele.
[...]O que terá acontecido ao rapaz de classe média que escapou à
'dura' policial na padaria? Ele desceu da favela ao lado daquele que foi
capturado. Tinha no bols a mesma quantidade de maconha. Graças ao seu
jeito mauricinho, filhinho de papai, passou impune. Salvou-se porque não
correspondia ao esteótipo do traficante.” 27
A estória acima, parecida com a história (grifo) de milhares de
brasileiros, que são penalizados por serem pobres, traz em seu bojo a essência
do sistema penal em vigor: a seletividade. São histórias como essa que nos
fazem perguntar por que um empresário, que nega direitos trabalhistas
27
SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011, pp. 50-57.
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
fundamentais a cidadãos que dependem desse dinheiro para sustentar suas
famílias, não são levados à Justiça para responder por esse “crime”. São fatos
como esse, corriqueiros em nosso dia a dia, que nos fazem questionar por que
fabricantes de bebida alcóolica, que bombardeiam a mídia com campanhas
publicitárias
diárias,
nunca
são
responsabilizados
por
conduzirem
subliminarmente o consumidor à dependência do álcool, com sua eficácia
publicitária, que sabemos é real. São histórias como essa que nos fazem
perguntar por que os corruptos (vejam que não limitei a corrupção aos políticos),
dos quais o país está repleto, não respondem a processos criminais por
provocarem estragos enormes às finanças públicas, desviando dinheiro que faz
falta para a melhoria das escolas públicas e o aparelhamento da saúde pública.
Talvez a resposta seja mais simples do que parece. Exatamente porque a
“sociedade” (pra não dizer os poderosos) decidiu rotular como crime apenas as
condutas que têm o potencial de serem praticadas pela grande massa
socialmente excluída (em especial aqueles tipos penais mais frequentes nos
noticiários – furto, receptação, etc...), deixando de fora da definição de crime,
portanto de fora do alcance do Judiciário, as condutas geralmente praticadas por
pessoas pertencentes às classes dominantes, por pessoas de grande influência
política e econômica. Na prática, o sistema penal é feito pra tirar de circulação
aqueles que não têm poder de consumo, com um sistema penitenciário
planejado para falhar de propósito, a fim de “estocar” pessoas indesejáveis.
Assim, consultando novamente as palavras do professor da UFPE Luciano
Oliveira, expressas em seu artigo: “A fé e a montanha: notas sobre a ideia de
ressocialização penal”, podemos entender a contradição que se encontra na
falaciosa finalidade da ressocialização penal frente à característica mais evidente
das nossas prisões, que funcionam como verdadeiras universidades do crime,
pois sem nenhum critério “amontoam-se” num mesmo lugar prisioneiros de difícil
recuperação junto àqueles que cometeram um único crime, criando juntamente
com as péssimas condições de alimentação, higiene e sáude um ambiente
desfavorável à ressocialização. Ademais, a maior contradição talvez esteja na
própria essência do sistema penal, conforme alerta o professor: “Quem se faz
essa pergunta a sério constata que a prisão, pelo menos como lugar de
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
ressocialização, é uma ideia às voltas com uma incongruência fundamental:
como seria possível reinserir alguém na sociedade segregando-o dela?” 28
Eu, dentro de minha humilde concepção, perguntaria mais ainda: por que
falamos em ressocializar, reinserir, ao invés de reconhecer que aqueles a quem se
convencionou chamar de criminosos são parte da sociedade? Que o que
chamamos de crime é inerente à sociedade, pois sua distribuição desigual de
renda favorece a sua ocorrência e é mais honesto criar condições que acabem
com as desigualdades sociais, tornando a vida mais justa pra todos do que
insistir em banir do nosso convívio pessoas inadequadas socialmente?
Manter um sistema prisional nessas condições, sem qualquer respeito ao
mandamento constitucional da individualização da pena 29, onde pessoas são
simplesmente jogadas dentro de uma caixa de concreto, sem critério nenhum,
sujeitas à influência de criminosos mais experientes, formando uma espécie de
sociedade paralela, funciona apenas como um meio de perpetuar ainda mais a
dita criminalidade, conforme assevera mais adiante o professor Luciano Oliveira,
a seguir:
“E aqui o paradoxo é total: como pode pretender a prisão ressocializar o
criminoso quando ela o isola do convívio da sociedade e o incapacita, por
essa forma, para as práticas da sociabilidade? Como pode pretender
reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a
sociedade dos cativos, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna
respeitável para a massa carcerária?”30.
Assim, enquanto não houver um mínimo de vontade política (honesta) em
mudar esse sistema prisional excludente para um sistema verdadeiramente
inclusivo e pedagógico, reservando a privação da liberdade apenas aos casos
mais graves e de difícil recuperação, não conseguiremos sequer começar a
pensar em mudança desse patamar extremamente ineficiente de nosso sistema
penal atual.
28
OLIVEIRA, Luciano. A fé e a montanha: notas sobre a ideia de ressocialização penal. Versão escrita da intervenção
oral no painel Violência e Sistema Prisional realizado na Universidade Católica de Pernambuco em 29/05/2008.
Disponível em: <www.quecazzo.blogspot.com.br/2008/07/f-e-monyanha-notas-sobre-idea-de.html>. Acesso em:
11/07/2013.
29
“A lei regulará a individualização da pena[...]” (Art. 5º, Inc. XLVI, CF/88)
30
OLIVEIRA, op. cit.
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Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Portanto, consideradas as especulações acima, continuemos com nossa
análise da obra de Beccaria em confronto com nosso ordenamento.
________________________________________________________
Em seguida, encontraremos mais alusões à necessidade da celeridade processual e
eficiência do sistema prisional, conforme poderemos ver a seguir:
O rigor do suplício não é o que previne os delitos
com maior segurança, porém a certeza da
punição[...]
Às vezes, abstemo-nos de punir um crime pouco
importante, quando o ofendido perdoa. É um ato
benevolente, porém contrário ao interesse
público.[...]
O direito de castigar não pertence a qualquer
cidadão em particular; é das leis, que são o
órgão da vontade geral. Um cidadão ofendido
pode deixar de valer-se de sua parte desse
direito, porém não tem qualquer poder sobre as
dos outros. Quando as penas se tiverem feito
menos cruéis, a clemência e o perdão serão
menos necessários.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, Beccaria vem nos trazer novamente a origem do Direito de Punir para
estabelecer o caráter público do mesmo. De forma que, segundo o autor, a humanização
das penas, em conjunto com a atividade estatal que convencionamos chamar de jus
puniendi constituem a maneira mais eficaz de punir devidamente os criminosos pela
prática de seus atos. É aqui que o autor trabalha o efeito coercitivo da lei, diante do qual a
certeza da “punição” pela prática de condutas delituosas, sendo submetido a um aparato
estatal protegido por leis elaboradas em acordo com a vontade pública darão um efeito
muito mais eficaz do que as penas cruéis e extremas. Assim, o autor vem novamente
trazer idéias que influenciaram juristas ao longo dos séculos, operando mudanças
significativas na forma como o mundo ocidental tratava dos Delitos e das Penas, tendo seu
pensamento presente nos Princípios Gerais e Institutos Fundamentais de nosso Sistema
Legal.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
V
QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONAIS AOS DELITOS
Nos capítulos XXIII, XXIV e XXV o autor estabelece a necessidade de se atribuir
penas proporcionais aos delitos, além de que os mesmos devem ser divididos de acordo
com a gravidade de sua ameaça à sociedade. É exatamente neste ponto que chegamos à
essência do pensamento de Beccaria, que balançou toda a estrutura do “Antigo Regime”,
trazendo uma nova perspectiva para o Direito Penal, os Processos Criminais e a Aplicação
das Penas, influenciando várias constituições, inclusive a nossa Carta Magna, repleta de
institutos jurídicos baseados em suas ideias. Nesse sentido, o autor vem invocar a ameaça
ao “Bem Público” como medida da gravidade dos delitos, devendo as penas serem mais
ou menos severas em função dessa gravidade, vejamos então:
“O interesse geral não é apenas que se cometam
poucos crimes, mas ainda que os crimes mais
prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns.
Os meios de que se utiliza a legislação para
impedir os crimes devem, portanto, ser mais
fortes à proporção que o crime é mais contrário
ao bem público e pode tornar-se mais frequente.
Deve, portanto, haver uma proporção entre os
crimes e as penas.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, segundo o autor, por ser o delito uma ameaça ao bem comum, uma conduta
reprovável pela sociedade, seu impacto deve ser medido de acordo com o grau de ameaça
que a conduta produz à coletividade e aos principais valores que norteiam a sociedade,
estabelecendo-se penas mais rigorosas para aquelas condutas que oferecem uma maior
ameaça ao bem-público e penas menos rigorosas para as de menor potencial ofensivo.
Não é preciso ser especialista em Direito Penal para perceber a influência de tal
pensamento em nossa Ciência Criminal, visto que as penas presentes no código penal são
previamente cominadas obedecendo uma proporção entre elas e os delitos que se
destinam a prevenir e punir. Baseado nisso, Beccaria estende seu raciocínio, observando
mais um indício da ineficácia na maneira de punir do “Antigo Regime”, pois, devido sua
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postura meramente vingativa, assumia um caráter paleativo, temporário e isolado, sem se
preocupar com o efeito secundário que as práticas ocasionariam, vejamos:
“Se o prazer e o sofrimento são os dois grandes
motores dos seres sensíveis; se, entre as razões
que guiam os homens em todas as suas atitudes, o
supremo Legislador colocou como os mais
poderosos as recompensas e os castigos; se dois
desses crimes que afetam desigualmente a
sociedade recebem idêntico castigo, o homem
inclinado ao crime, não tendo de recear uma
pena maior para o crime mais hediondo,
resolver-se-á com mais facilidade pelo crime que
lhe traga mais vantagens; e a distribuição
desigual das penas fará nascer a contradição,
tanto notória quando frequente, de que as leis
terão de castigar os delitos que fizeram nascer.”
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, aplicar a mesma pena a dois delitos de características completamente
diferentes provocaria uma contradição de difícil reparação, já que diante da certeza da
mesma pena para qualquer um dos delitos, o homem com traços de personalidade
voltados para a delinquência não hesitaria em praticar o crime que maior vantagem possa
proporcionar. Em vários trechos vemos a preocupação do autor em mostrar que o Estado
não deveria apenas “punir”, mas ao mesmo tempo proporcionar um corpo de leis no qual
seus efeitos também servissem como forma de prevenção dos delitos, trabalhando no
sentido de coibir a prática dos mesmos. É seguramente uma crítica ao “Antigo Regime”,
onde priorizava-se a vingança pessoal, aplicando-se rigor máximo (grifo) a qualquer
delito, por menor que fosse a ameaça que representasse. Portanto, havendo uma
proporção clara entre cada pena e o crime para o qual se destina, evita-se punir dois
crimes diferentes com a mesma pena.
Assim, a lei, além de determinar os crimes e suas respectivas penas, deveria ser
escrita de forma que causasse um efeito coercitivo, fazendo com que o destinatário da
norma conseguisse entender claramente o caráter delituoso de determinada prática,
evitando assim realizá-la. Vários são os críticos das Teorias Preventivas, apontando
inúmeras lacunas nas mesmas. Nossa humilde crítica a essa teoria, em especial às idéias
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
de Beccaria, reside no fato de que foram direcionadas para um homem “Racional” dentro
da concepção iluminista, ou seja, um ser humano em sua plenitude de liberdade, que faz
um uso extremamente crítico da razão, completamente livre de preconceitos e dogmas,
com condições de avaliar de forma cristalina todos os efeitos de suas ações, evitando o
caminho que a luz da razão aponte como errado.
Ocorre que tal concepção, apesar de influenciar nossa sociedade atual, não previu
os efeitos futuros do Capitalismo Industrial sobre a humanidade, sendo pensada apenas
para uma sociedade linear, ao contrário do caráter estratificado que presenciamos hoje em
dia. As inúmeras classes sociais existentes e seus respectivos valores formam um imenso
mosaico de meio ambientes, várias subculturas onde em cada uma delas um indivíduo
encontrará diferentes motivações para a prática do delito. Nesse momento, a melhor
pergunta a ser feita é como um “bicho-homem”, que nasceu na miséria e foi criado nela,
sem acesso a nenhuma vantagem da sociedade, tratado desde sua mais tenra idade com
descaso e indiferença, como tal indivíduo pode ter condições de entender o caráter
delituoso de sua conduta, já que para ele aquilo é normal, pois foi apenas isso que ele
testemunhou em toda a sua vida?
De qualquer forma, apesar das críticas à “ingenuidade” de Beccaria, as suas
considerações são de importância histórica para nossa sociedade, pois constituem as
primeiras preocupações bem elaboradas de prevenção ao crime, consubstanciando-se em
uma das primeiras intenções de se elaborar uma Política Criminal, não merecendo serem
abandonadas totalmente, mas sim adaptadas à realidade atual. Nesse sentido, o autor
continua sua reflexão beneficiado pela sua visão ampla de economista, apontando as
contradições da visão que imperavam no Direito Criminal daquela época, vejamos:
“Se for estabelecido um mesmo castigo, a pena
de morte por exemplo, para aquele que mata um
faisão e para quem mata um homem ou falsifica
um documento importante, em pouco tempo não
se procederá mais nenhuma diferença entre esses
crimes; serão destruídos no coração do homem
os sentimentos da moral, obra de muitos séculos,
cimentada em ondas de sangue, firmada muito
lentamente através de mil obstáculos, edifício que
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
apenas se pode erguer com o auxílio das mais
excelsas razões e o aparato das mais solenes
formalidades.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, utilizando-se de uma análise histórica da construção dos principais
valores morais presentes no inconsciente coletivo, o autor vem sugerir que a falta de
critério na proporcionalidade das penas em relação aos delitos poderia gerar uma espécie
de Anomia (num sentido puramente durkheimeano – ausência de regras), já que, de
acordo com o autor, tal situação poderia acarretar a banalização dos crimes, eliminando
aos poucos todo o conceito moral por trás do delito, destruindo lentamente a solidariedade
social, de forma que a proporção entre os delitos e as penas mostra-se extremamente
necessária para a manutenção da Paz Social.
Em seguida, chegamos ao ápice da pequena grande obra de Beccaria, onde o autor
vem concluir seu exame da necessidade da proporção entre penas e delitos,
estabelecendo como argumento principal, o mesmo embasamento filosófico que dá
suporte ao Direito de Punir do Estado, além de eleger o legislador como o responsável por
atribuir as proporções adequadas entre delitos e penas, de forma a evitar injustiças,
conforme veremos a seguir:
“Tendo-se como necessária a reunião dos homens
em sociedade, de acordo com convenções
estabelecidas pelos interesses opostos de cada
particular, encontrar-se-á uma progressão de
delitos, dos quais o maior será o que tende à
destruição da própria sociedade. Os crimes
menores serão as ofensas cometidas contra
particulares. Entre essas duas extremidades
ficarão compreendidos todos os atos que se
opõem ao bem público, desde o mais criminoso
até o menos passível de culpa. Se os cálculos
exatos pudessem ser aplicados a todas as
combinações obscuras que levam os homens a
agir, seria necessário estabelecer e buscar uma
progressão de penas que corresponda à
progressão dos delitos. O quadro dessas duas
progressões seria a medida da liberdade ou da
escravidão da humanidade ou da maldade de
cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio
estabeleça divisões principais na distribuição das
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
penas proporcionadas aos crimes e que,
principalmente, não aplique os menores castigos
aos maiores delitos.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Portanto, considerando que o Direito de Punir é fruto direto do consenso entre os
indivíduos que fazem parte de uma nação, segundo o autor, as mesmas parcelas de
liberdade que os homens em estado de natureza concordaram em sacrificar para a
manutenção da Ordem Social (Contrato Social) dão suporte à necessidade da progressão
das penas e dos crimes, atribuindo valores aos delitos, determinando que a sanção deve
ser proporcional à gravidade da ameaça que a conduta oferece à sociedade.
A importância do pensamento de Beccaria para o nosso ordenamento Jurídico é
inegável, haja vista a fixação da pena presente em nosso Código Penal ter sofrido
influência de suas ideias, já que o art. 68, CP, estabelece que a pena-base será fixada e
individualizada, aplicando-se a mesma de forma necessária e adequada à necessidade da
retribuição à sociedade e da prevenção de delitos futuros, atendendo-se ao critério do art.
59, de nosso Código Penal, conforme a seguir:
“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário
e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de
pena, se cabível.”31 (grifo nosso)
Diante do exposto, a fixação da pena, sem desprezar o efeito de reprovação
(Controle Social), considera fatos subjetivos, individualiza-a e aplica a lei adequadamente a
cada caso concreto, tornando mais justa a atividade punitiva do Estado. O caput do art. 59,
CP, abriga em sua redação os Princípios Gerais do Direito Penal inspirados nas ideias do
sábio Marquês, de forma que podemos identificar em atuação neste diploma legal
princípios como o da Legalidade Penal, da Dignidade da pessoa Humana, da Intervenção
Mínima do Direito Penal, entre outros. Ao final, resta completamente manifesta a sintonia
com o pensamento de Beccaria do trecho no qual se prevê que a pena será estabelecida
31
Art. 59, Código Penal Brasileiro.
61
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
conforme seja “necessário e suficiente” para reprovação e prevenção do crime,
caracterizando a devida proporção entre os delitos e as penas a eles atribuídas.
______________________________________________________
PONTO DE REFLEXÃO:
A
proporcionalidade das penas constitui acima de tudo a essência do
pensamento de Beccaria e um dos princípios cruciais do Direito Penal em nosso
Ordenamento Jurídico. Conforme visto acima, a aplicação da pena imprescinde
de seu estabelecimento na medida exata para se garantir a reprovação e a
prevenção do crime, manifestando assim, um juízo de proporcionalidade e de
individualização da pena.
Muitas vezes a leitura dessas expressões que a lei transporta em si tem a
capacidade de inspirar em nós um sentimento de justiça, diante do qual a
previsão legal por si só de um critério de proporcionalidade na aplicação da pena
tem o potencial de nos fazer crer que o sistema penal alcança a equidade plena,
pois o juiz teria simplesmente a tarefa de adequar o caso concreto aos critérios
de aplicação da pena previstos em lei. Portanto, quando a lei fala em pena,
quantidade de pena e regime de cumprimento conforme seja necessário e
suficiente (grifo), vem nos fazer acreditar que o juiz, ao sancionar a pena em
concreto estará realizando justiça, aplicando de forma proporcional a sanção
adequada ao delito praticado.
Contudo, atrevo-me aqui a supor que esse critério de proporcionalidade
pode estar mascarando a real injustiça por trás de nosso sistema penal, já que
na aplicação da pena, apesar de representar o Estado, o magistrado atua apenas
dentro do Judiciário, não atingindo a totalidade complexa e multicultural de um
Estado (Democrático) de Direito como o nosso, resumindo a proporcionalidade
na aplicação da pena a critérios formalmente legais, praticando uma visão
positivista do Direito. A pena apenas condena formalmente o condenado a
cumprir um período de privação de sua liberdade em um estabelecimento
mantido pelo Estado, sem considerar a crescente superpopulação carcerária, a
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
falta de critério na convivência entre criminosos habituais e condenados por
apenas um crime, a atuação humilhante e (re)estigmatizadora dos agentes
públicos que agem com excesso na execução da pena, enfim, todas as condições
desumanas e cruéis às quais os apenados são submetidos. Ou seja, na prática, a
execução da pena aplicada ao condenado possui um leque de condições
ambientais nocivas e práticas desumanizadas que acompanham a mesma e
terminam por agravar aquilo que o juiz, baseado em critérios legais, havia
definido como necessário e suficiente para reprovar e prevenir os crimes,
descaracterizando a proporção entre o delito praticado e a pena imposta.
Luiz Eduardo Soares vai um pouco mais além, pois considera todo esse
excesso velado de punição um crime do Estado contra os condenados, conforme
alerta em seu livro, a seguir:
“Observemos mais de perto o que ocorre no Brasil hoje. A imensa maioria dos
presos é submetida a todos esses excedentes de pena descritos no parágrafo
anterior. Claro que isso constitui uma ilegalidade. Afinal a sentença judicial
está sendo descumprida. Esse descumprimento representa uma transgressão
legal. E quem comete o crime, nesse caso, é o próprio Estado, especialmente
o Executivo, responsável pela execução da sentença que o Judiciário
determina. Imagina que situação complicada e contraditória: ao punir crimes
o Estado comete outros.”32
Ouso ainda adicionar ao pensamento do ilustre sociólogo a prática de
abuso de poder pelo Estado, o que nos remete novamente ao caráter de
seletividade da Legislação Penal brasileira, que prevê como crime apenas
condutas que têm o potencial de serem praticadas pelas massas excluídas da
sociedade. Ficando ausentes da tipificação como crimes as condutas praticadas
pelas classes dominantes. Por que isso? O Estado também não pode cometer
crimes? Esse descaso com a execução efetivamente proporcional da pena não
seria um crime do Estado contra os condenados? O autor complementa seu
raciocínio:
“O problema é que vigoram dois pesos e duas medidas. O peso da mão do
Estado sobre o indivíduo que transgride é incomparavelmente mais ágil do
que a intervenção que a Justiça e o Ministério Público promovem contra o
representante do poder Executivo que contraria a legalidade. São raros os
juízes das varas de execução que cumprem com rigor seu dever e
efetivamente fiscalizam o sistema penitenciário. Se o fizessem, estes juízes se
32
SOARES, op. cit., p.115.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
veriam com frequência diante da necessidade de determinar remoção de
presos, a libertação de outros e a interdição de cadeias públicas e
penitenciárias.”33
Difícil acreditar que essa situação tenha alguma perspectiva de mudança,
pois como já debatemos acima o Estado não cumpre nem mesmo o mínimo de
garantias a
direitos fundamentais dos condenados que
a
Constituição
determina34, quem dirá pensar em mudar a visão de toda a sociedade sobre a
problemática do sistema penal brasileiro?
Assim, diante de tais considerações, passemos a dar continuidade ao
nosso estudo comparativo da obra “Dos Delitos e das Penas”, marco sem
precedentes dos alicerces de nosso Direito Penal.
________________________________________________________
33
SOARES, ibid, p. 115.
pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do
34“A
apenado e é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” (Art. 5º, incs. XLVIII e XLIX, CF/88)
64
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
VI
DA PREVENÇÃO DOS CRIMES
Dado o caráter utilitarista de suas colocações, presentes no livro em comento,
Beccaria não poderia terminá-lo sem enfatizar a importância da prevenção dos crimes para
a sociedade, vejamos:
É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los;
e todo legislador sábio deve antes procurar
impedir o mal que repará-lo, pois uma boa
legislação não é mais do que a arte de
proporcionar aos homens a maior soma de bemestar possível e livrá-los de todos os pesares que
se lhes possam causar, conforme o cálculo dos
bens e dos males desta existência.” (Beccaria - Dos
Delitos e das Penas)
Assim, o autor vem nos trazer um verdadeiro “Postulado” de nossa Ciência Criminal,
inevitavelmente presente em qualquer teoria que se preze a estudar Política Criminal,
ensejando a formulação da máxima de que é melhor prevenir o Crime do que ter que arcar
com os gastos gigantescos que a repressão do crime enseja. De forma que o autor já em
sua época parecia prever o que aconteceria dois séculos depois em vários países do
mundo, as mazelas sociais causadas pelo crescimento sem freios da economia mundial,
que desprezou completamente as limitações do ser humano e da natureza em prol de um
progresso que não atingiu a todos equitativamente, relegando muitos à marginalização,
sem dar oportunidade alguma de participarem dos benefícios da sociedade. O efeito disso
todos sabemos, seres humanos transformados em “Animais”, pois que a razão de sermos
humanos é o fato de sermos dotados de cultura, do contrário seríamos apenas bichos,
repetindo a programação biológica que a natureza impõe. Portanto, prevenir não se
resume apenas a evitar que os crimes ocorram pura e simplesmente, constitui-se na tarefa
de criar um ambiente que proporcione o convívio social saudável, onde as pessoas vivam
em condição de igualdade de oportunidades, com o suporte de uma “Legislação Justa e
Eficaz” para se atingir tal objetivo, haja vista a lei ser a manifestação jurídica da vontade
65
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
geral.
Nesse sentido, o autor vem complementar o raciocínio, alertando sobre o cuidado
que deve ser tomado no exagero da lei, vejamos, então:
“Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se
houvesse necessidade de proibir-lhe tudo o que
pudesse lhe ser ocasião de praticar o mal? Seria
preciso começar por tirar-lhe o uso dos sentidos.
Para uma causa que impele os homens a cometer
um delito, existem mil outras que os impelem a
ações indiferentes, que apenas são delitos
perante as leis más. Ora, quanto mais se estender
a esfera dos delitos, tanto mais se fará com que
sejam praticados, pois se verão os crimes
aumentarem à proporção que as razões de crimes
especificados pelas leis forem mais numerosas,
especialmente se a maioria de tais leis não forem
mais do que privilégios de um pequeno número
de senhores.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Dessa forma, o cuidado na formulação das leis penais também contribui para a
prevenção, haja vista seus mandamentos limitarem os atos dos indivíduos da sociedade.
De forma que, se a Lei Penal for extremamente ampla, elegendo um número sem
fim de condutas como delituosas, os indivíduos da sociedade encontrar-se-ão quase todos
delinquentes, haja vista não sobrarem mais condutas que não constituam crimes para
serem praticadas. Essa é uma prática comum dos tiranos, proibir tudo a todos (grifo),
como forma de castrar o indivíduo, de torná-lo impotente perante a perversidade de quem
impõe o Poder. Nesse sentido, o autor vem novamente invocar a necessidade da
elaboração de leis que todos os indivíduos possam ler e compreender, vejamos:
“Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples
e claras; e esteja o país preparado a armar-se
para defendê-las, sem que a minoria de que
falamos se preocupe constantemente em destruílas. Que elas não favoreçam qualquer classe em
especial; protejam igualmente cada membro da
sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas
diante delas. O temor que as leis inspiram é
saudável, o temor que os homens inspiram é uma
66
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
fonte nefasta de delitos.”
(Beccaria - Dos Delitos e das
Penas)
Assim, Beccaria vem nos mostrar novamente a importância de uma legislação de
fácil entendimento por todos, tendo em vista o fato de que passando-se as leis a serem
conhecidas por um grande número de pessoas, já que segundo ele, se os homens
souberem os limites nos quais suas condutas devem se pautar, o conhecimento e a
certeza da punição evitará a ocorrência de mais crimes, da mesma forma que a sociedade
não mais temerá o monopólio da interpretação de seu conteúdo pelos tiranos.
Após investigar os meios de se prevenir os crimes, o autor finaliza este capítulo
alertando sobre a maneira mais eficaz de evitar os descaminhos sociais, a “Educação”,
conforme poderemos ver a seguir:
“Finalmente, a maneira mais segura, porém ao
mesmo tempo mais difícil de tornar os homens
menos propensos à prática do mal, é aperfeiçoar
a educação. O assunto é muito vasto para caber
nos limites que me prescrevi. Ouso, contudo,
dizer que está tão intimamente ligado com a
natureza do governo que será apenas um campo
árido e cultivado só por um pequeno número de
sábios, até chegarem os séculos ainda distantes
em que as leis não terão outra finalidade senão a
felicidade do povo.
Um grande homem, que esclarece os seus
semelhantes e que é por estes perseguido,
desenvolveu as máximas principais de uma
educação verdadeiramente útil. Fez ver que ela
consistia muito menos na confusa multidão dos
assuntos que se apresentam às crianças, do que
na escolha e na precisão com as quais se lhes são
expostos. Provou que é preciso trocar as cópias
pelos originais nos fenômenos morais ou físicos
que o acaso ou a habilidade do mestre enseja ao
espírito do aluno.
Ensinou a encaminhar as crianças para a
virtude, pela estrada arejada do sentimento, a
afastá-las do mal pela força invencível de
necessidade
e
dos
inconvenientes
que
acompanham a má ação.
Demonstrou que o método incerto da autoridade
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
severa teria de ser posto de lado, pois produz
apenas uma obediência hipócrita e passageira.”
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Ante o exposto, Beccaria vem eleger a Educação como o meio mais seguro de se
prevenir a ocorrência de crimes, destacando sua importância no esclarecimento dos
indivíduos, haja vista sua falta favorecer a tirania dos governos, manifestada através do
monopólio do conhecimento por poucos, privando as pessoas das oportunidades e de seus
direitos.
Nesse intuito, vem fazer alusão a Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista que
fora duramente perseguido em virtude de um trecho seu sobre a “Profissão de Fé do
Vigário Savoiano” presente em sua obra Emílio, ou da Educação, um ensaio filosóficopedagógico sob a forma de romance que procura orientar a educação da criança, evitando
que se torne “má”, seguindo a teoria iluminista do homem naturalmente bom,
desenvolvendo as potencialidades inerentes desta fase da vida humana de forma
progressiva, no sentido da adaptação das necessidades individuais ao desenvolvimento do
cidadão humano. Tal livro hoje é considerado por muitos como o primeiro Tratado sobre a
Filosofia da Educação no mundo ocidental.
Dessa forma, o autor nos traz que o autoritarismo e a violência geram ainda mais
autoritarismo e violência, visto que é baseado apenas na força, que a obediência devida a
regimes assim é hipócrita e apenas se sustenta durante o tempo no qual a tirania atua,
pois afastando-se o medo do tirano, encerra-se a influência que o mesmo exercia
anteriormente. Portanto, segundo o autor, o conhecimento liberta as pessoas, visto que se
a educação atuar de forma que todos conheçam claramente seus direitos e deveres, a
sociedade se sustentará justa por mais tempo, proporcionando iguais condições a todos,
criando portanto ambiente favorável a prevenção do crime, sem necessidade de repressão.
É uma “Utopia”, mas quantos sonhos considerados impossíveis já não se realizaram
em nossa humanidade?
_______________________________________________________
PONTO DE REFLEXÃO:
Viver em uma sociedade na qual não se precise mais de aparatos estatais
68
Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
repressores atuando no controle social não deixa de ser um sonho distante, uma
utopia, que cada um de nós guarda com carinho em seus desejos mais
profundos, mesmo que a convivência com a realidade social e política trate de
deixar esse sonho cada vez mais distante de nossos corações. Aproveitando o
gancho da utopia, não custa conferir as palavras de Maria Lúcia Karam sobre a
utopia da abolição do sistema penal, vejamos:
“De todo modo, não parece que a abolição do sistema penal seja tão somente
uma utopia. A abolição do sistema penal é muito mais uma consequência
lógica do caminho a percorrer nos esforços da humanidade por concretizar e
aprofundar o modelo do Estado de direito democrático, por concretizar e
aprofundar os direitos fundamentais.”35
Contudo, mesmo considerando os avanços que nosso Estado de Direito
(Democrático?) alcançou, se compararmos com o período negro da ditadura que
surgiu do golpe militar de 64, devemos ter em mente que ainda existe um
caminho muito longo a ser trilhado. A atuação de nossas polícias em meio às
manifestações que ocorreram durante e logo após a copa das confederações
deste ano (2013) é um indicador claro disso.
A perspectiva de Beccaria sobre os fins da pena (é preferível prevenir os
crimes do que punir) encerra a teoria dos fins da pena chamada de Prevenção
Geral da Pena, da qual foram adeptos Feuerbach e J. Bentham. Todavia, a
configuração do atual sistema penal, orientado acima de tudo para a punição
retributiva, parece contradizer sobretudo a sua própria origem, supostamente
preventiva. Nesse sentido, apesar de já se falar em “Nova Prevenção”
(miscigenação dos mecanismos de controle social formais e informais – patrulha
no bairro, UPPs, etc...), o paradigma da “Prevenção Penal”, parece recair sempre
na ingenuidade, atuando mediante a expectativa de uma atitude negativa do
cidadão (proibição de condutas), de aplicação duvidosa à realidade fragmentada
e multicultural da sociedade atual, especialmente nossa sociedade brasileira, que
se encontra completamente imersa nos efeitos da globalização.
A seletividade do sistema penal é a sua marca registrada, tudo isso
baseado em um discurso convicente, pois utiliza-se do medo da população, mas
que na prática aponta apenas para determinados grupos sociais (os excluídos do
35
KARAM, op. cit., p. 50.
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
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mercado formal de trabalho) como grupos que “supostamente” teriam maior
propensão à prática do crime. Entretanto, um olhar mais atento para essa
perspectiva talvez possa revelar uma das maiores, senão a maior dentre as
contradições presentes no sistema penal em vigor. Façamos por um momento o
breve exercício de supor que a prevenção preocupa-se realmente em evitar que
os “criminosos em potencial” realizem alguma conduta delituosa e que o
fundamento da “Prevenção Geral” teria como finalidade exclusiva “tutelar os bens
jurídicos de maior importância para a sociedade”, assumindo assim uma
importância maior diante dos outros ramos do Direito Público. Ora, se fosse esse
realmente o seu principal objetivo (prevenir crimes), o Estado trataria de cumprir
os diversos institutos garantidores dos diversos direitos fundamentais presentes
em nossa Constituição. Contudo, não é isso que vemos na prática, pois a
educação continua uma falácia e a saúde pública um instrumento de humilhação
social. Conforme nos assevera Maria Lúcia Karam, que revela:
“O sistema penal que só atua negativamente – aliás, em todos os sentidos,
mas, aqui, no sentido de atuar proibindo condutas, intervindo somente após o
fato acontecido, para impor a pena como consequência criminalizada – é
contraditoriamente apresentado como um instrumento de atuação positiva.
As supostas obrigações criminalizadoras são extraídas de uma leitura
distorcida da Constituição. O que os dispositivos garantidores da proteção de
direitos fundamentais, assentados nas declarações internacionais de direitos e
nas constituições democráticas, ordenam ao Estado são intervenções positivas
que criem condições materiais – econômicas, sociais e políticas – para a
efetiva realização daqueles direitos, o que, mesmo para quem ilusoriamente
acredita na reação punitiva, não implica em intervenção do sistema penal.” 36
Portanto, dessa leitura distorcida da Constituição mencionada pela autora,
nascem os pressupostos fundamentadores de nosso sistema penal, diante dos
quais se passa a superestimar a necessidade da manutenção de um sistema
penal baseado em controle social previsto em lei e na punição como expiação
para “mau comportamento”, subestimando a necessidade da criação pelo Estado
de condições econômicas, políticas e sociais que dêem suporte à promoção da
equidade para todos, sem distinção. Eis que surge uma incoerência gritante em
nosso Estado de Direito (Democrático?), pois é fácil constatar que a “Lei” é
rigorosamente obedecida quando se quer punir quem pratica crimes, mas é
36
KARAM, op. cit., p. 29.
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Lívio Silva
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desobedecida no momento de se promover bem-estar e justiça social para todos,
conforme preceitua muito claramente nossa Carta Política. 37
Nesse sentido, frente às intervenções positivas destinadas a garantir a
existência e a proteção aos Direitos Fundamentais Karam complementa:
“São ações como essas, de natureza positiva, promotoras de direitos, e não
ações negativas, proibitivas de condutas, que se fazem obrigatórias e eficazes
na atuação do Estado para proteção dos direitos fundamentais ditos de
natureza social.”38
Do exposto, surge a pergunta: qual é a prioridade, vigiar e punir ou criar
condições sociais verdadeiramente justas para a população? Afinado com essa
perspectiva, a exemplo de Foucault, Luiz Eduardo Soares elege nosso sistema
penal como um monumento ao fracasso civilizatório, vejamos:
“Submeter uma pessoa ao regime de privação de liberdade é uma declaração
de impotência ou de fracasso de nossa parte. Como não sabemos o que fazer
diante desses desafios, recuamos ao instrumento rudimentar e primitivo, ao
mecanismo medieval e obscurantista do aprisionamento.
Prisões são testemunhos de fracasso civilizatório e prova de nosso atraso em
matéria de procedimentos judiciais.”39
Dessa forma, se realmente fosse intenção do Estado, mediante o sistema
penal em vigor, assegurar a proteção aos bens mais valiosos à sociedade (vida e
liberdade – pelo menos em teoria), existiriam também aparatos estatais de
eficácia plena na garantia dos Direitos Fundamentais portadores da mesma
eficiência com a qual o sistema penal em vigor, na prática, rotula e exclui
socialmente. Portanto, desfazendo a ilusão da ressocialização, se o Estado não
fornece dignidade humana aos cidadãos através de políticas públicas eficientes,
garantidoras de “Educação e Saúde”, dentre outros Direitos Fundamentais, como
esperar que seja seu interesse prevenir crimes e reinserir dignamente os
apenados à sociedade? Não sei para o respeitado leitor, mas para mim está claro
que o sistema penal, da forma como se encontra em nosso ordenamento,
cumpre muito mais a função de legitimador da exclusão social do que de protetor
37
38
39
“A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (grifei).”
(Art. 193, CF/88)
KARAM, op. cit., p. 31.
SOARES, op. cit., p.103.
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Lívio Silva
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dos bens mais sensíveis da sociedade.
Feitas as presentes considerações, continuemos com nosso estudo da
obra de Beccaria.
________________________________________________________
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Lívio Silva
Beccaria e os Direitos Humanos:
Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
VII
BECCARIA CONCLUI
Após contemplar-se o conteúdo extenso, sistematizado e valiosíssimo do livro de
Beccaria, aqui destacado por meio de seus trechos de maior importância e afinidade com o
nosso Ordenamento Jurídico, é natural imaginarmos que a conclusão do competente autor
seria extensa e detalhada.
Todavia, como para o autor não faltaram argumentos para embasar sua obra,
acabou dizendo tudo que tinha pra falar, reservando apenas poucas linhas para a
conclusão, a seguir:
“De tudo o que acaba de ser exposto, pode-se
deduzir um teorema geral de muita utilidade,
porém pouco conforme ao uso, que é o legislador
comum dos países: É que, para não ser um ato de
violência contra o cidadão, a pena deve ser, de
modo essencial, pública, pronta, necessária, a
menor das penas aplicáveis nas circunstâncias
dadas, proporcionada ao delito e determinada
pela lei.” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Entretanto, conforme podemos constatar acima, não é necessariamente o tamanho
do texto que indica sua qualidade e sim o conteúdo. Assim, finalizaremos nosso estudo
com a análise de trechos dessa conclusão de Beccaria à luz dos Princípios do Direito
Penal e Processual Penal, dos Direitos e Garantias Fundamentais e demais dispositivos
existentes em nosso Ordenamento Jurídico, conforme será constatado nos trechos
seguintes, vejamos:
“É que, para não ser um ato de violência contra
o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial,
[...] ” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
No trecho destacado, percebemos claramente a intenção de se evitar o exagero na
aplicação da sanção penal, a fim de se tratar o condenado como qualquer ser humano
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Lívio Silva
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Dos Delitos e das Penas no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
deve ser tratado, com respeito e dignidade, fazendo-o pagar apenas pelo crime que
cometeu, baseado nas sanções impostas por lei, pois o Direito Penal e o Processo Penal
não devem constituir meios de manifestação da injustiça, posto que seus objetivos
mínimos são os de nomear as condutas delituosas e fornecer os meios para o julgamento
das mesmas, além de regulamentar a execução das sanções. A partir do momento que
Beccaria, animado pelo espírito do Iluminismo, define que a violência na aplicação das
penas deve ser evitada, antecipou um dos princípios basilares de nosso Ordenamento
Jurídico, o da Humanidade, mandamento republicano presente no art. 1º, inc. III, de nossa
Carta Magna, aqui estabelecido como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático
de Direito: “a dignidade da pessoa humana”. Tal princípio, assim como outros presentes em
nosso ordenamento, desdobra-se em vários outros mandamentos, como por exemplo, o
disposto no inc. III, do art. 5º, CF, onde se estabelece que "ninguém será submetido a
tortura nem a tratamento desumano ou degradante", bem como o previsto no inciso XLIX,
do art. 5º, da mesma Carta, que assegura "aos presos o respeito à integridade física e
moral", mandamentos protetores do reconhecimento da “dignidade inerente a todos os
membros da família humana”, conforme nos informa a Declaração Universal dos Direitos
do Homem.
Seguindo os ensinamentos de Beccaria, constataremos que muitos foram os
julgamentos secretos realizados a fim de mascarar a injustiças praticadas pelos tiranos,
vejamos:
“a pena deve ser, de modo essencial,[...]
pública[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Assim, nosso autor vem nos trazer, séculos antes de nossa Carta Magna ser
promulgada, o “Princípio da Publicidade dos Atos Processuais”, norma constitucional
presente no art. 5º, inc. LX, determinando que “A lei só poderá restringir a publicidade dos
atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.” Como
uma das garantias individuais em nosso ordenamento, tal princípio vem criar uma proteção
no sentido de se evitar a prática de abusos, exageros e omissões na atuação dos órgãos
julgadores, constituindo uma ferramenta eficaz de controle social sobre tais órgãos do
Poder Judiciário, a fim de se evitar acusações secretas, prisões arbitrárias, perseguições a
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inimigos políticos, entre outras ilegalidades na aplicação da pena. Nesse sentido, nossa
Constituição tem em seu texto um dispositivo regulador da atividade do Magistrado,
presente no art. 93, inc. IX, onde se determina que “todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade[...]”, de forma que não devem existir atuações secretas e obscuras do Judiciário,
em virtude do caráter Democrático de nosso Estado de Direito.
Além de nos adiantar a publicidade dos julgamentos, Beccaria traz em sua pequena
conclusão outra característica essencial da pena, vejamos então:
“a pena deve ser, de modo essencial,[...]
pronta[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Em suas sábias palavras o autor vem redigir a célula-mãe do “Princípio da Reserva
Legal”, constante do inc. XXXIX, art. 5º, de nossa Carta Política, o qual nos diz que
“[...]não há pena sem prévia cominação legal”, ou seja, somente a lei pode prescrever
penas aos delitos elencados por ela, ilegitimando qualquer forma de punição que não seja
determinada pela mesma, submetendo todos os cidadãos, de acordo com o Princípio da
Igualdade, à mesma fonte de aplicação da pena.
Da mesma forma que a pena deve ser determinada por lei, o autor vem nos trazer
também o caráter necessário da mesma, conforme a seguir:
“a pena deve ser, de modo essencial,[...]
necessária[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Portanto, sendo a pena necessária, sua aplicação deve ser realizada na medida
exata da culpabilidade do condenado, nada mais do que isso, a fim de que a pena cumpra
sua função jurídico-social. Dessa forma, vemos aqui a pré-formulação do Princípio da
Fragmentariedade do Direito Penal, visto que este limita-se a condenar apenas as ações
mais graves, previstas em lei, que lesem efetivamente os bens jurídicos mais relevantes,
excluindo de sua atuação aquelas condutas que não oferecem perigo aos bens acima
referidos.
Em seguida, nosso grande “Filósofo do Saber Criminológico” nos traz outra
consequência inevitável dos Princípios da Legalidade e da Reserva Legal, vejamos:
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“a pena deve ser, de modo essencial,[...] a menor
das penas aplicáveis nas circunstâncias
dadas[...]” (Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Temos diante de nós o “Princípio da Intervenção Mínima”, pois quando Beccaria nos
diz que “a pena deve ser, de modo essencial, a menor das penas aplicáveis nas
circunstâncias dadas” ele intenta dizer que para a obtenção do equilíbrio da ordem
jurídica ameaçada somente devem ser utilizadas as sanções penais se todas as outras
medidas não incriminadoras falharem em sua atuação, determinando assim o caráter de
ultima ratio do Direito Penal.
Fechando sua conclusão, Beccaria vem nos trazer a essência de seu trabalho
escrito, os Princípios da Legalidade, da Proporcionalidade e da Individualização da Pena,
vejamos:
“a pena deve ser, de modo essencial,[...]
proporcionada ao delito e determinada pela lei.”
(Beccaria - Dos Delitos e das Penas)
Portanto, ao determinar que a pena deve ser proporcionada ao delito, Beccaria vem
indicar o Princípio da Proporcionalidade, estabelecendo o caráter biunívoco da pena, onde
cada conduta reprovável deve corresponder a uma pena cominada, obtendo como
corolário dessa relação a individualização da mesma, já que se a conduta reprovável é
praticada por um indivíduo e a pena é a prevista em lei para a conduta, aplicada na medida
de sua culpabilidade, extrai-se que a pena é individualizada, levando em consideração o
crime praticado, a pessoa do agente e a pena prevista em lei, além de outras
circunstâncias também previstas em lei. Encontramos a individualização da pena em nossa
Carta Magna no art. 5º, incs. XLV, onde é previsto que “nenhuma pena passará da pessoa
do condenado” e XLVI, onde se determina que “a lei regulará a individualização da pena”.
Ao informar que a pena deve ser determinada pela lei, o autor encerra o Princípio
da Legalidade Penal, presente em nosso Ordenamento Jurídico no art. 5º, inc. XXXIX, de
nossa Constituição Federal e art. 1º, caput, de nosso Código Penal, onde se prevê que
“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final, após estudarmos esta Pérola da Doutrina Jurídica, concluímos sua
inestimável importância para nossas Leis e Processos Criminais atuais. O conteúdo
presente nesta obra revolucionou o modo de se pensar a aplicação das penas, levando
juristas e legisladores a reformular as leis e os processos penais, eliminando as práticas
desumanas que eram “legalmente” empregadas até então.
Acreditamos que ainda falta muito para a espécie humana atingir o panorama ideal
nas relações sociais, a fim de se criar um mundo seguro para todos, repleto de
solidariedade, harmonia e felicidade. Muitos dirão que isso é uma utopia, mas será que
não foi justamente isso que Beccaria ouviu de alguns diante da nova concepção que
propunha? O certo é que a racionalidade, a versatilidade e a persistência do autor, traços
comuns aos grandes ícones da Humanidade, permitiram que Cesare Beccaria nos
brindasse com seu livro, influenciando gerações, mostrando que nem tudo é impossível.
Beccaria é sem dúvida um dos seres humanos mais importantes para a história de
nossas sociedades, pois produziu uma obra muito à frente de seu tempo, fornecendo-nos
um verdadeiro tratado sobre o estudo dos crimes e das penas. Superado por
pouquíssimos, seu livro mudou a concepção do Direito Penal, inserindo a abordagem
humanista nesse ramo do conhecimento, servindo de referência para o estudo do Direito
Penal e dos Direitos Humanos até os dias de hoje, pouco mais de dois séculos após sua
publicação.
________________________________________________________
PONTO FINAL DE REFLEXÃO:
No sentido de encerrar e sintetizar, apenas no interior desta singela obra,
as reflexões acerca dos temas abordados, relacionados ou derivados do conteúdo
do livro de Beccaria, chegamos ao último ponto de reflexão deste pequeno livro,
com o intuito inevitável de estimular a discussão do presente assunto.
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O Sistema Penal Brasileiro (fazem parte deste conceito o Direito Penal, o
Processual Penal, as Políticas Públicas de “Segurança”, etc... - numa visão mais
ampla - sistêmica) merece uma reforma urgente, mas não apenas ele, nós
brasileiros merecemos uma reforma urgente. Todos os dias reclamamos dos
políticos que temos e da sociedade na qual vivemos, mas esquecemos que nós
somos a sociedade e nós elegemos os políticos. Apesar de não serem aplicados
tanto como deveriam, os valores da cidadania e da dignidade humana estão
positivados em nossa Constituição. Apesar de passarmos décadas sem dar
importância, a legitimidade do nosso poder encontra-se estampada em nossa
Carta Política, onde se estabelece que todo o poder emana do povo. Os políticos
são apenas nossos representantes, eles devem trabalhar por nós e não o
contrário. De acordo com a Constituição (Art. 1º, Parágrafo único, CF/88), temos
a possibilidade de exercer o Poder Político de forma direta, nos termos da mesma
Constituição, mas talvez precisemos de “termos melhores”, que nos permitam
uma maior participação na vontade do Estado, que nos permitam uma maior
participação na decisão do uso dos bens do Estado. Quando deixarmos de aceitar
de cabeça baixa os salários e as verbas monumentais que pagamos aos nossos
“representantes” com o dinheiro de nossos impostos, poderemos pensar em
mudança. Quando não nos dermos mais por satisfeitos com os cargos
comissionados que ganhamos dos políticos e que calam nossas bocas,
poderemos pensar em ação contra a corrupção.
O novo sopro de vida trazido para nossa Democracia pelas manifestações
ocorridas durante a copa das confederações mostrou que esses “poderosos” não
são tão absolutos assim e que suas estruturas podem ser balançadas. O caminho
para um mundo “sem violência”, passa necessariamente pela vontade de
construir um mundo sem desigualdades sociais. É extremamente urgente a
criação de novos e eficientes mecanismos de participação direta do povo nos
negócios
do
Estado
brasileiro.
Enquanto
continuarmos
repassando
a
responsabilidade do nosso Estado de Direito (Democrático) para outros,
assinando um cheque em branco, ficaremos rendidos, à mercê de um sistema
corrupto e injusto.
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Beccaria e os Direitos Humanos:
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Pensando
e
agindo
assim
poderemos
mudar
o
nosso
país
e
consequentemente, junto com outras mudanças, mudaremos o Direito Penal, que
não é nada mais do que reflexo da política social do Estado, servindo muito mais
como instrumento seletivo de inabilitação dos indesejáveis: os não consumidores.
Pensando e agindo assim poderemos finalmente dar o primeiro passo
para o objetivo imediato de um Direito Penal mínimo, a fim de se atingir o
objetivo mediato de abolição do sistema penal, para que ao invés de
conjugarmos o verbo ressocializar passemos a conjugar o verbo reintegrar
socialmente40, para que possamos viver em um país que tenha empregos com
salários dignos, moradia para todos, saúde e educação gratuitas e de qualidade
para todos... Utopia com a qual me dou ao desfrute de continuar sonhando.
Devemos atender ao chamado feito por Beccaria em sua obra, onde o
mesmo, há mais de dois séculos atrás, já nos alertava sobre a importância do
aperfeiçoamento da Educação para a sociedade e do seu papel na prevenção da
ocorrência de crimes. Contudo, da mesma forma que alguns dos ideais de
Beccaria foram pensados para homens de sua época, a Educação da qual
precisamos é outra, mais afinada com nossas necessidades. Precisamos de uma
educação que não seja exclusivamente tecnicista e que não se preocupe apenas
em formar mão de obra e contigente de consumidores para o sistema econômico
globalizado. Urge uma educação que forme cidadãos acima de tudo,
preocupados com a dignidade da pessoa humana e com a obtenção da justiça
social, mandamento constitucional há muito esquecido em nossas práticas
sociais. Uma educação que não seja castradora, que não trate o homem como
coisa, que não trate o aprendizado apenas como meta estatística a ser atingida...
Precisamos de uma educação que pratique uma formação humanista da
sociedade, uma educação que não veja teoria e prática como dicotomias e que
passe a vê-las como tese e antítese em diálogo contínuo, que entenda o homem
e a mulher como seres inacabados em processo de diálogo constante com o
mundo e com a sociedade. Uma educação que não se baseie na ideologia
neoliberal desesperançosa, fatalista e antiutópica, criadora de acomodação ao
40
Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Disponível
em:<www.egov.ufsc/portal/criminologia-crítica-e-reforma-da-legislação-penal>. Acesso em: 22/07/2013.
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mundo e negadora de transformação social 41 e que não seja mera transferência
de conteúdo. Uma educação que entenda o ser humano em “sua interação com a
realidade, que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática
transformadora”42.
Ainda precisamos fazer a sociedade entender de verdade, sem discursos
de aparência, que o homem e a mulher precisam de uma educação libertadora,
uma educação como prática da liberdade, e não como prática do aprisionamento
ideológico.
De tudo que foi exposto, diante das considerações realizadas na presente
obra, fica a mensagem de paz e esperança, alimentada pelo sonho infantil de um
dia vivermos em um mundo sem nenhum tipo de violência, principalmente sem a
violência velada, que os tiranos praticam contra os mais fracos, contra os
hipossuficientes, que por vezes nem percebem que seus direitos fundamentais
são lesados covardemente, que por vezes nem sabem que têm direitos...
Fica como mensagem a esperança ingênua, de que um dia viveremos em
um mundo repleto de paz e felicidade, onde ninguém se importará com o carro
que você anda, com a roupa que você veste ou com as posses você tem; onde
todos viveremos como irmãos. Um mundo no qual não mais veremos
moralismos, onde não temeremos o outro, nem tampouco exploraremos a mão
de obra da maioria... Um lugar no futuro onde não precisaremos mais falar a
expressão dignidade humana, pois ela será parte constante do inconsciente
coletivo. É essa esperança ingênua sem a qual não vivemos que nos impele a
continuar nossa jornada e tentarmos aprender uns com os outros a nos
tornarmos “seres mais humanos” a cada dia.
Sendo assim, não poderia me despedir sem finalizar essa mensagem
fazendo uso das palavras de um dos maiores músicos e compositores que
passaram pelo nosso planeta e que foi tragicamente tirado do nosso convívio,
mas que sua poesia ainda reside em nossos corações...
41
42
Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996,
p. 143.
Ver FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de oliviera. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977, p. 75.
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“...You may say I´m a dreamer,
but I´m not the only one
I hope some day you´ll join us
And the world will live as one”
Imagine - John Lennon
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O AUTOR
Nascido no ano de 1973, Lívio Silva é natural de Recife, Pernambuco e tem desenvolvido interesse
nas áreas de Ciências Jurídicas, Filosofia, Sociologia, Ciência Política, entre outras. Além de Bacharel em
Direito, tem um livro de Ficção Científica publicado e artigos sobre Direito em revistas eletrônicas
especializadas, desenvolvendo também atividades na área musical.
O livro “Dos Delitos e das Penas”, obra-prima de Cesare Beccaria, é de uma importância sem
dimensão para o Direito Penal atual, pois foi a primeira voz a se rebelar contra a tirania da tradição jurídica e
a legislação penal de seu período, conhecido como o Antigo Regime. Que formemos a partir de agora uma
nova voz contra o sistema penal seletivista e mantenedor de desigualdades sociais.
Lívio Silva na Internet:
www.naletradalei.wordpress.com
Blog Jurídico
www.humanoecidadao.wordpress.com
Blog sobre Direitos Humanos
www.escrevologoreflito.wordpress.com
Blog Autoral
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