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Os Programas Imagéticos na Arte Barroca
Portuguesa e a sua Repercussão nos
Espaços Coloniais Luso-Brasileiros
Dr. Vítor Serrão
Universidade de Lisboa
1. Conceitos operativos para uma
investigação concertada
No actual panorama de conhecimentos sedimentados a respeito da produção artística ibero-americana ao longo da Idade Moderna, torna-se cada vez mais imperioso
reflectir, em termos de conjunto, sobre o sentido, o carácter vernáculo e o encontro de
culturas e de formas assumidos pelos focos de criação, pelos mercados, pelas clientelas
e pelas instâncias de consumo durante os séculos XVI, XVII e XVIII.
Perante um acervo monumental e artístico que em muitos aspectos é revelador
de vincada originalidade, tanto o que remanesce hoje nos espaços hispano-americanos como no caso do espaço luso-brasileiro, é cada vez mais imperioso reformular linhas de conduta metodológica e de pesquisa integrada sobre a essência da
chamada arte colonial ibero-americana e, no caso da arte luso-brasileira, assumir a
prática de uma fortuna crítica adequada à análise tanto quanto possível global de
tais realizações plásticas. São esses os grandes temas que devem suscitar investigação aberta, com constantes problemáticas em cotejo.
O Autor manifesta um especial agradecimento a Adalgisa Arantes Campos, a José Meco, a Eduardo Pires de Oliveira, a Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, a Olinto Rodrigues dos Santos
Filho, a Jaelson Bitran Trindade, a José Manuel Tedim, a Ramón Gutiérrez, a Consuelo Viñuales,
a Luciano Figueiredo, a Percival Tirapeli, a Fernando António Baptista Pereira, a Ana Cannas, a
Sílvia Barbosa Guimarães Borges, a Jorge Victor de Araújo Souza, e a Maria Adelina Amorim,
pelas frutuosas trocas de impressões que conduziram à estrutura desta comunicação.
*
Cfr. a importante síntese de Ramón Gutiérrez (coord.), Arquitectura, Escultura y Artes Útiles
en Iberoamérica, 1500-1825, Cátedra, Madrid, 1995.
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Antes de mais, ao invés de se continuar a enfocar o fenómeno artístico do Mundo Português como um conjunto de testemunhos de dimensão sempre periférica,
com inevitáveis condicionalismos de criação e uma marca inevitavelmente abastardada face ao ‘centro’ de origem (Lisboa e outros pólos europeus de influência), parece-me bem mais interessante e fecundo que, sem perder de vista o caudal de influências que se manifestam no tecido produtor e receptor, o estudo de conjunto a
empreender se posicione em termos de análise da produção autóctone, da mobilidade de obras, da permutas artísticas, da repercussão de correntes estéticas, bem como
sobre os anacronismos, as clivagens, as linhas de vanguarda e as respostas localizadas que se verificam no campo da criação, a fim de melhor prescrutar as suas valências estéticas. E é disso que se trata, sempre: empreender diálogos fecundos com as
obras de arte, sem ideias preconcebidas ou redutoras, mas dentro de um complexo
sistema de redignificação do seu sentido primeiro, sabendo-se que se busca algo que
foi interrompido ou alterado pelas circunstâncias do tempo histórico.
A noção de Arte Ultramarina, explorada com maior ênfase para o caso do
Brasil, mas que abarca também os patrimónios miscigenados dos territórios da antiga Índia portuguesa (Goa, Damão, Diu), estudados por Mário Tavares Chicó e
Carlos de Azevedo, e bem assim do Extremo Oriente, de Macau e de Timor, de
Marrocos e da costa africana, etc, tem dado origem, nos últimos sessenta ou setenta anos, a uma série de estudos que se caracterizaram e continuam a caracterizar
por três vertentes principais e concomitantes:
1) a revalorização do pitoresco (ao nível das ‘artes decorativas’, por exemplo no
caso do mobiliário e da escultura luso-indiana, da arte ‘nam-bam’, dos bronzes do
Benim ou da talha barroca mineira),
2) a subvalorização das expressões locais (sob o estigma de um decadentismo
que seria sempre inevitável, como se outra solução criativa não fosse possível, longe da influência do ‘centro’), e
3) o realce para a contribuição de temas ‘de retorno’ que vêm enriquecer,
numa espécie de mais-valia aberta pela Expansão ultramarina, os novos repertórios
europeus (as figuras híbridas, as representações exóticas da fauna e da flora, as figura do índio e do selvagem, etc).
Essas perspectivas sobre a arte colonial do Mundo Português, testemunho de
um determinado modo de fazer História de Arte (que são por demais simplistas e
redutoras pesem os altos méritos de alguns dos resultados obtidos), têm impedido
Cfr., a respeito do conceito de ‘retorno’, a visão de Pedro Dias, A Viagem das Formas. Estudos sobre as relações artísticas de Portugal com a Europa, a África, o Oriente e as Américas,
Ed. Estampa, Lisboa, 1995.
Não é de desprezar a actualidade dos estudos de Mário Chico, Carlos de Azevedo e Jorge Pais
da Silva sobre a antiga Índia portuguesa, os de Vergílio Correia sobre Marrocos, os de Reynaldo
dos Santos sobre o Benim, os de Pedro Dias sobre Marrocos e, em especial, a série de estudos
altamente especializados de Maria Helena Mendes Pinto, quer sobre lacas e biombos japoneses
(Biombos Nam-ban, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, 1988) ou sobre mobiliário luso
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as várias comunidades de saber olhar para o seu património artístico, de nele desvendarem as verdadeiras qualidades dos focos de produção autóctones e de nele
reavaliarem em exacta contextualização, por entre as redes de influências díspares
que se abriram com os cursos da História, as pulsões originais e a força da criação.
É evidente que, num tão vasto campo de pesquisas como este, se impõe sempre
estudar o ‘retorno’, e avaliar o ‘pitoresco’, mas numa dimensão integrada que, sem
absurdas derivas neo-colonialistas, ou, no pólo oposto, ultra-chauvinistas, esteja
apta a reavaliar os tecidos artísticos, que são sempre fruto das bravuras e das limitações, dos enriquecimentos e dos seguidismos, das ousadias e das retomas anacrónicas, das constantes vernáculas e das fugas rupturais, etc etc, linhas essas que se entrecruzam, por vezes de maneira extraordinária, numa mesma obra e num mesmo
artista. Veja-se o caso de Manuel da Costa Ataíde, o melhor pintor de Mariana na
transição do século XVIII para o XIX e companheiro do célebre António Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, em tantas obras de nomeada, o qual não pode ser subvalorizado como um intérprete anacrónico de moribundas linguagens europeias, antes terá
de ser visto na sua dimensão exacta de artista dotado de carácter autóctone e com
uma alta bitola de originalidade, precisamente porque as rotas de influência que o
marcam são díspares, heterogéneas, misturadas com constâncias e continuidades, e
tudo isso molda uma personalidade francamente acima da mediania, dotado de um
poder sublime de convencimento através da cenografia larga. O mesmo diria do
pintor, também de Mariana, José Nepomuceno Correia e Castro, quando a sua obra
de pincel for finalmente estudada, como creio que ela francamente justifica; neste
caso, a fidelidade a gravuras maneiristas ítalo-flamengas no seu repertório compositivo, de forte orientação católico-tridentina, não exclui, antes destaca, as qualidades
de pincel, o imaginoso de uma linguagem, a adequação de fontes exógenas, e a
busca de um estilo pessoal apto a gerar epigonismos…
Parece-nos que, no campo de estudos da Arte Colonial luso-brasileira, muito
está ainda por se cumprir no terreno, devido não só ao desconhecimento das obras
remanescentes (faltam monografias, listagens de artistas e artífices, catálogos des-
oriental (Os móveis e o seu tempo, MNAA, Lisboa, 1985-87), entre outros.
Embora restrito ao espaço da investigação espanhola e hispano-americana, o livro de Ramón Gutiérrez Historiografia Iberoamericana. Arte y Arquitectura (s. XVI-XVIII), Dos lecturas, Buenos Aires, 2004, oferece amplo material de reflexão sobre os modos como, desde
fins do século XIX até alvores do nosso século, os arquitectos e historiadores de arte analisaram o património artístico da Ibero-América, segundo diversas perspectivas de enfoque,
«una rica experiencia de aciertos y fracasos», diz o autor (p. 42), mas com abertura de novos
caminhos interdisciplinares que «asumirá sin dudas la responsabilidad de una madurez que
supere las coyunturas del desconcierto».
Adalgisa Arantes Campos (coord.), Manoel da Costa Ataíde: Aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos, Coleção História e Arte, Belo Horizonte, 2005.
Este artista pintou (c. 1777-1785) as tábuas que revestem o corpo do Santuário do Bom
Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo. Apenas Hannah Levy (no importante estudo
«Modelos europeus na pintura colonial», Revista do SPHAN, nº 8, 1944, pp. 38-48), dedicou alguma atenção a este pintor, cuja actividade remonta a 1744, e que faleceu em 1795.
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critivos, etc), como à falta de programas de conservação e restauro aptos a devolver
vida a obras que o tempo adulterou e – sobretudo – à falta de uma vertente de trabalho verdadeiramente interdisciplinar que congregue historiadores de arte portugueses e brasileiros no estudo integrado de um património artístico comum, que
impõe o conhecimento conjunto e a discussão alargada; nem o chauvinismo que
extrapola a dimensão regional, negando o estudo do contexto histórico como se ele
fosse inevitavelmente dotado de um estigma do domínio imperial passado, nem a
visão paternalista (e neo-colonialista) de quem vê a ‘arte da margem’ inevitavelmente marcada pelo decadentismo e pela mediocridade, constituem os caminhos
a seguir. Por isso, uma visão micro-artística da produção no espaço português dos
séculos XVI a XVIII me parece ser a via certa para que, sem exclusões redutoras
nem destaques superlativos, as bolsas criativas regionais possam ser melhor iluminadas e re-conhecidas. A visão das artes coloniais da Ibero-América não pode
continuar a ser vista apenas à luz da passagem de bons artistas europeus, do envio
de boas obras europeias, da penetração de fórmulas e modelos europeus, e da
‘viagem de formas’ que, em situação de torna-viagem, influenciam em notas de
pitoresco o grosso da produção artística e da cultura dominante, também esta europeia. Não perdendo nunca de vista a relação existente, impõe-se, todavia, alargar
o enfoque e compreender as respostas autóctones, naquilo que trazem de refrescante e de original a uma visão de modelos e formas que, tantas vezes, chegava já
abastardada aos longínquos espaços colonizados…
Dentro deste âmbito, que é o da defesa de uma História de Arte eficaz para
explicar os problemas e revalorizar o sentido das obras, parti da definição de dois
conceitos operativos que me parecem dever ser considerados basilares no campo
dos estudos do património barroco luso-brasileiro para a prática de uma História da
Arte-ciência não só eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte como,
também, útil e socialmente comprometida para a prática desta disciplina:
a) em primeiro lugar, a noção de Programa Artístico, assente num olhar interdisciplinar com visão globalizante (ou seja, uma visão histórica, estética, ideológica, antropológica, contextual, etc) sobre as obras de arte à luz da compreensão
daquilo a que Aby Warburg (1866-1929), entre outros atentos estudiosos, já definia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, o conhecimento das condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, ideológicas, geográficas, antropológicas, de perduração e de continuidade, etc, etc, para um pleno
entendimento iconológico das mesmas;
As noções de poli-periferismo, avançada por Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo, adequase com grande utilidade programática aos estudos de História da Arte. Cfr. Carlo Ginsburg e
Enrico Castelnuovo, «Centro e periferia», Storia dell’arte italiano, Einaudi, Turim, 1979; trad.
portuguesa, A Micro-História e outros ensaios, de Carlo Ginsburg, ed. Difel, Lisboa, 1989.
Cfr., a respeito desta definição, a recente edição-colectânea de textos de Aby Warburg,
El renacimiento del paganismo. Aby Warburg, tradução de Felipe Pereda e Elena Sánchez
Vigil, ed. Alianza, Madrid, 2005.
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b) em segundo lugar, a noção de Trans-Memória Imagética, conceito proposto
em data recente, que busca (re)conhecer em todas as obras de arte as suas capacidades mais ou menos fortes de perpetuação memorial, tornando-as um elemento
fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-temporal e trans-contextual, sempre aberta e, por isso, de inesgotável fascínio para os
seus fruidores e para os historiadores de arte.
Um estudo dotado de olhar globalizante sobre a arte barroca luso-brasileira e
atento à utilização destes dois conceitos, a nosso ver, permite entender melhor os
tipos de comportamento do mercado nas periferias coloniais da época barroca,
tanto ao nível da repercussão de correntes artísticas que dimanam força do centro
(neste caso, Lisboa), como em termos de afirmação das vias criativas e dos programas estéticos autóctones, sem esquecer a influência veiculada por instrumentos
dotados de informação inovadora, como a gravura italo-flamenga, a estampa de
livro, os debates no seio das organizações de trabalho e encomenda, etc. O fenómeno de miscigenação nos dois sentidos tem de ter em conta, no caso da fixação
de artistas na colónia, aspectos como os condicionalismos geográficos, climáticos
ou alimentares, o novo tipo de relações humanas, os novos hábitos de vestuário, o
maior isolamento, a falta de uma classe mais esclarecida e de um mercado empreendedor, etc. Mas continua a existir toda uma pesquisa de arquivos que urge fazer
de modo sistemático.
A arte luso-brasileira realizada nos séculos a que poderíamos designar por largo
tempo do Barroco permite seguir de um modo especialmente relevante (nas soluções
arquitectónicas ‘chãs’, na pintura, na escultura, na talha, no azulejo e em outras artes)
algumas tendências e modos comportamentais das oficinas, dos mestres, dos circuitos de encomendantes e dos meandros dos públicos destinatários para a definição
dos programas artísticos das obras em apreço e para a sua valorização e fruição coetâneas. A História da Arte do Barroco luso-brasileiro tem algo a ganhar com uma visão de conjunto que, a esta luz, visione os comportamentos estéticos e as suas causas, a força das imagens e das formas e o seu sentido.
2. Um percurso possível para experimentação
de uma análise
O gradual re-conhecimento das bolsas de património artístico luso-brasileiro
que se cria nos séculos XVII e XVIII permite compreender elementos fundamentais
de caracterização e fortes resíduos memoriais conservados pelas obras de arte, que
se tornam instrumento essencial de análise integrada desta realidade artística só
aparentemente ultra-periférica.
Os conceitos operativos utilizados são desenvolvidos no nosso livro A Trans-Memória das
Imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa (séculos XVI-XVIII), Lisboa, ed. Cosmos, 2007.
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Recorrendo às muitas e singulares relações de similitudes que se pode seriar
como adequado exemplo dos mecanismos de funcionamento nos circuitos imagéticos da época barroca no espaço colonial português, é interessante vermos – por
exemplo – como uma fruste imagem em terracota da primeira metade do século
XVIII, pertencente ao Convento de Santa Teresa de Salvador da Baía e hoje no Museu
de Arte Sacra dessa cidade, representando D. João V na figura de São João Baptista
Menino, atesta uma interpretação algo tosca, formalmente ingénua, mas de carinhosa evocação beata e, como tal, poderosa nos seus evidentes simbolismos na interpretação que faz do Poder Imperial lusitano tal como podia ser visto (e sacralizado) em
contexto brasileiro. Este exemplo, dado a conhecer por Luís de Moura Sobral, mostra
bem como a arte religiosa dos séculos XVII e XVIII confunde deliberadamente, muitas
vezes, a dimensão do sublime e a dimensão do sagrado, testemunhando de modo
espontâneo, e eficaz, uma ideia unívoca de gosto vernacular10.
Para se analisar justamente essa tendência dimanada nas periferias, em que a
produção não-erudita e mais ingénua e essa outra vertente mais erudita e clássica
da representação de aparato coabitam, respondendo no mesmo sentido a solicitações de mercados díspares, é sempre interessante saber ver em conjunto, como
pólos de uma mesma atitude de representação, obras de distintos escalões; neste
caso, pode ser útil olhar-se melhor uma tela erudita como a de Giovan Domenico
Duprà com a figuração de D. João V Magnífico, de cerca de 1725, existente na
Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, em cotejo com essa imagem devocional que, no mesmo horizonte temporal, um artista já de si anónimo moldou
em barro para o altar de um convento de freiras de Salvador, dando à simbolização
do poder régio uma ambígua dimensão de culto instituído! Há características e
constantes da arte realizada nos espaços de influência portuguesa no tempo do
Barroco, segundo observou, em oportuna síntese, o historiador de arte Yves Bottineau11: «o lirismo decorativo, a clareza, a simplicidade e a tendência para a geometria unitária» são tópicos que determinam um primado de linguagens sui-generis no
caso da nossa aventura artística. Veja-se, por exemplo, o chamado estilo chão arquitectónico. Desenham-se, comprovadamente, linhas de força comuns a toda a produção
do fazer, do pensar e do sentir na cultura artística portuguesa dentro do espaço cronológico do tempo barroco e que nos colocam, a todos os níveis, perante uma das fases
mais ricas e diversificadas da especificidade patrimonial portuguesa.
A noção acima referida de Programa Artístico torna-se, assim, o objectivo fundamental de estudo por parte de uma História de Arte que se defina como moderna, actuante, útil, operativa, metodologicamente estruturada e socialmente comprometida. A História da Arte, vista sob esta perspectiva, será a investigação
orientada do sabor e do saber encerrado nas obras de arte, partindo de uma base
de análise forçosamente interdisciplinar e visando o entendimento globalizante (ou
Sobre a imagem, cfr. Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na época barroca, ed. Estampa, Lisboa, 1994, fig. 62.
11
Yves Bottineau, «Lyrisme et geometrie dans l‘architecture portugaise», Arquivos do Centro
Cultural Português (da Fundação Calouste Gulbenkian), tomo XI, Paris, 1978.
10
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seja, estético, histórico, ideológico, contextual, etc) das obras de arte particulares à
luz da compreensão dos seus ’pontos de vista’ intrínsecos, isto é, das condições
culturais e políticas, religiosas e espirituais, socio-económicas e laborais, de perdurações e de continuidades, etc – numa palavra, o entendimento iconológico das
obras, tal como Aby Warburg já o definia há mais de um século.
O conceito de História da Arte aqui avançado funda-se numa teoria da memória
e do código imagético articulados com o seu tecido social e ideológico. Para devolver
memória e vitalidade estética a obras que o tempo histórico, a mudança de função e o
esquecimento das gerações forçosamente descontextualizaram, a investigação em História da Arte – e na de contexto luso-brasileiro muito em particular – deve saber focar
esse pano de fundo complexo mas pleno de informações que podem explicar conflitos
tipológicos e mudanças trans-históricas, deixando espaço para se fruírem as obras e se
estudar melhor o que permanece (e não só aquilo que passou) à luz da historicidade
intensiva do princípio da Nachleben, vida póstuma das imagens, conceito que legitima
a sua imensa capacidade de gerar afectos, ontem, hoje e amanhã. Qualquer imagem é
dotada dessa dimensão de vida póstuma e, na sua dinâmica, é produtora de símbolos
descodificáveis. Cabe ao historiador de arte, por isso, empreender essa dimensão iconológica no enfoque das obras na sua essência primeira, estruturada em programas
artísticos como tal reconhecíveis – e fruíveis12... Estudando a teoria de que as Nachleben são sempre imagens dotadas de carga simbólica, Aby Warburg mostrou já que o
símbolo, materializando a tensão entre passado e presente, quebra o continuum da
história e obriga a rever conceitos fixos como os de «atavismo periférico», «centro»,
«vanguarda», etc etc. O conceito de História de Arte que nos pode interessar mais, na
medida em que responde à problemática das obras de arte particulares sem arriscar
desvios substanciais àquilo que são as suas essências funda-se inevitavelmente numa
teoria da memória e do código imagético como bases de trabalho: a investigação deve,
assim, focar conflitos tipológicos e trans-históricos, estudar tudo o que permanece (e
também o que passou) à luz da historicidade intensiva da Nachleben.
O estudo de um período tão fascinante de propostas estéticas e rico de patrimónios remanescentes como é a arte luso-brasileira do largo tempo do Barroco permite
utilizar estes modos de ver e estas primícias de investigação com outros frutos.
2.1. Novidade face a resistências e atavismos
A arte luso-brasileira do tempo barroco constitui um óptimo laboratório de
estudos, dada a sua especificidade de encontro / reelaboração / recriação de fórmulas plásticas comuns, para se analisarem comportamentos criativos sob o tónus
vernáculo. Tomando de novo o olhar da iconologia warburghiana ao visionar a
evolução histórica da humanidade como a história da instituição de um Denkraum
Cfr. V. Serrão, A Trans-Memória das Imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa
(séculos XVI-XVIII), Lisboa, ed. Cosmos, 2007, cit.
12
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– que Warburg definia como o espaço de pensamento que gradualmente insere o
intervalo entre o homem e a natureza, conduzindo-o das formas arcaicas de identidade mimético-corpórea com o mundo até ao estádio científico-racional, ou seja,
da magia à lógica –13, verificamos como a totalidade dos símbolos que as obras de
arte de cada ‘tempo’ representam determina a sua vida social, preservando uma
energia que dá às imagens enorme espessura. A História da Arte, e em especial a
de enfoque luso-brasileiro, deve, assim, saber analisar questões como a modernidade das experiências que se afirmam à margem dos grandes centros, despidas de
acesso aos caudais da informação erudita e à margem das flutuações de gosto que
dominam nesses centros.
Assume-se a abordagem sob uma perspectiva micro-artística e tomando dois
casos de irmandades decoradas a esmero em anos concomitantes, uma em Santarém, outra no Recife: contrariando a tese de que o centro é sempre lugar privilegiado de criação artística e a periferia significa afastamento geográfico em relação
àquele (ou seja, atraso), o estudo dos paradigmas de conhecimento estético deve
ser empreendido sob diversas facetas de produção e recepção. O regionalismo de
muitas manifestações de arte luso-brasileira que nascem em contexto de periferia
(mas que nem sempre serão de gosto retardatário) constitui manancial cativador
para uma História de Arte que se defina pelo estudo em globalidade do facto artístico e esteja apta a sensibilizar-se pela resposta que brota dos contextos de
produção regional. O caso da célebre Capela Dourada, anexa à igreja da Ordem
Terceira de São Francisco, no Recife, assume um especial testemunho de boa
utilização por uma irmandade encomendante do conceito de bel composto na
arte religiosa do seu tempo14. Esse conceito, fixado no século XVII pelo famoso
tratadista romano Gianpietro Bellori e alvo de estudos por autores como Germain
Bazin, Flávio Gonçalves, Robert C. Smith, Jorge Henrique Pais da Silva e Natália
Marinho Ferreira-Alves, foi caracterizado nas suas bases conceptuais por Luís de
Moura Sobral, com exemplos equiparáveis, pelo espírito da decoração totalizada
e unívoca, em obras portuguesas mais ou menos coetâneas, como sejam a igreja
do Convento dos Cardais, o ante-coro do convento de Nossa Senhora da Quietação das Flamengas, a Capela de Nossa Senhora da Doutrina na igreja de São
Roque e a igreja da Encarnação das Comendadeiras de Avis, todas em Lisboa,
bem como a igreja de São Vítor e a do Salvador em Braga, o Mosteiro de São
Francisco do Porto, a igreja da Misericórdia de Viana do Castelo, a igreja do Terço de Barcelos, a igreja matriz de Nossa Senhora da Encarnação na Ameixoeira,
a igreja de Nossa Senhora da Ajuda em Peniche, a irmandade anexa à igreja de
Santa Cruz da Ribeira de Santarém, as igrejas de Nossa Senhora dos Prazeres e da
Senhora do Pé da Cruz em Beja, e a célebre Capela Dourada (igreja da Ordem
Cfr. Aby Warburg, El renacimiento del paganismo. Aby Warburg, tradução de Felipe Pereda e Elena Sánchez Vigil, ed. Alianza, Madrid, 2005.
14
Cfr., sobre o conceito de totalidade aplicado à arte barroca nacional, Luís de Moura Sobral, «Un bel composto: a obra de arte total do primeiro Barroco português», in Actas do
Congresso Internacional Struggle for Synthesis. A obra de arte total nos séculos XVII e XVIII
(Braga, 1994), ed. IPPAR, Lisboa, 2000, vol. I, pp. 303-315.
13
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Terceira de São Francisco) no Recife15. Como diz a este propósito o historiador de
arte Luís de Moura Sobral, foi «esta constante tensão entre diversidade plástica e
busca de um sentido unitário» que marcou o «carácter verdadeiramente barroco»
da arte portuguesa do reinado de D. Pedro II e dos alvores do reinado de D. João
V, tanto na metrópole como nas possessões ultramarinas, da Índia ao Brasil, assim
se definindo como «a mais significativa e caracterizada contribuição portuguesa ao
património artístico do Ocidente»16.
O conceito de obra de arte total aplica-se com pleno rigor ao caso do programa decorativo da Capela da Ordem Terceira de São Francisco, anexa à igreja do
antigo Hospital franciscano de Jesus Cristo do Sítio, em Santarém. Este mal conhecido mas absolutamente esplendoroso espaço barroco foi ornado no primeiro quartel do século XVIII por uma equipa de artistas que actua entre 1700 e 1717, mais
ou menos, incluía o mestre entalhador Manuel Álvares, uma série de pintores de
óleo e dourado, e o pintor de azulejos Manuel de Oliveira Bernardes17. No caso
similar da Capela Dourada do Recife, também os vários ‘géneros’ artísticos (talha
dourada, pintura de cavalete, azulejo, escultura, entarsia, etc) casam-se com a sonoridade da prédica de altar e do cântico litúrgico, com o cheiro do incenso, com
os arranjos festivos de flores e com o poder estatutário dos mesários da irmandade
para creditar localmente uma conduta, um exemplo, em suma, uma ideologia de
classe. A história da vila de Santarém ao longo da Idade Moderna justificava a riqueza ímpar de uma peça artística com esta importância – que só se estranha continuar a ser tão pouco conhecida a nível das acções do turismo cultural – e iluminanos sobre os contornos do seu programa decorativo, escolhido ao pormenor,
elaborado e custeado pelas elites da sociedade escalabitana na transição do século
XVII para o XVIII. Um fenómeno em tudo similar ao que ocorre, nos anos de 1696
a cerca de 1710, com a decoração da Capela Dourada da Ordem Terceira de São
Francisco, no Recife, com programa decorativo do arquitecto António Fernandes
de Matos, pinturas de José Pinhão de Matos e azulejos de António Pereira Ravasco,
seguindo como mote inspirador, segundo a documentada, o programa ornamental
da igreja de Nossa Senhora do Loreto, em Lisboa18...
A esse respeito é interessante seguir os passos do capitão e pintor José Pinhão
de Matos, mais um desses casos de artista, ainda mal estudado, com acção ambulatória pelo Império, entre Goa e Lisboa, Pernambuco e Salvador, ora agindo como
militar, ora como negociante, ora como cartógrafo, ora como pintor de óleo, bru-
A respeito deste conceito e dos melhores exemplos na arte portuguesa dos séculos XVII
e XVIII, cfr. o recente estudo de conjunto de Vitor Serrão, O Barroco, vol. IV de História da
Arte em Portugal de Ed. Presença, Lisboa, 2002.
16
Moura Sobral, op. cit., p.314.
17
Vítor Serrão, «A Capela Dourada de Santarém. A Capela da Ordem Terceira de São Francisco e o espectáculo da totalidade no Barroco nacional (c. 1700-1717)», Homenagem a
Jorge Henrique Pais da Silva, coord. de Pedro Gomes Barbosa, ed. Esquilo, Lisboa, 2006.
18
Cfr. a esse respeito V. Serrão «A pintura proto-barroca em Portugal (1640-1706) e o seu
impacto no Brasil Colonial», revista Barroco, nº 18, 1997-2000 (Actas do Simpósio O Território do Barroco no Século XXI), pp. 269-292.
15
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tesco e perspectiva… Apurei que seu filho, o escravo pardo Simão Gomes dos Reis,
vivia em Lisboa em 1739 e seguia, já alforriado e liberto pelo testamento paterno,
a actividade pictórica que lhe fora ministrada por seu defunto pai19. O Panorama
da Cidade de Goa (com medalhão da Chegada de S. Francisco Xavier à Índia),
pintado para o Colégio jesuítico da Cotovia e hoje no Museu Nacional de Arte
Antiga em Lisboa, é obra da autoria de José Pinhão de Matos e de seu filho, em
associação, tal como uma grande tela do Panorama de Lisboa (com medalhão da
Partida de S. Francisco Xavier para a Índia), com que emparceira.
2.2. Formas metamorfoseadas, entre resistência,
inovação, busca da novidade e manutenção do
traço vernáculo
Examinam-se algumas peças de arte luso-brasileira que traduzem com toda a
clareza a referida metamorfose de formas e em que só o conhecimento profundo
de realidades distintas que dialogam através de uma determinada encomenda permite devolver outro sentido.
Um desses testemunhos merece aqui uma especial referência: trata-se do extraordinário programa de decoração barroca que preenche a totalidade da capelamor da igreja matriz de Tiradentes (a antiga Vila de S. José), na comarca de Rio das
Mortes, em Minas Gerais, com o seu retábulo principal de talha barroca joanina,
obra dos entalhadores bracarenses João Ferreira Sampaio e Pedro Monteiro de Sousa (c. 1735-1740)20, complementada com o tecto decorado com vasta decoração
pictural de brutesco de ouro, da autoria do pintor António Caldas (c. 1730-1739)21.
Tudo nesta obra atesta uma sedimentação morosa, e segura, de formulários artísticos torna-viagem, em que o desejo de actualização, no caso do figurino escolhido
para a obra de talha, e a fidelidade a soluções decorativas estabilizadas no gosto
regional, no caso da pintura de brutesco, atestam uma atitude de mercado só aparentemente contraditória. Para Myriam Ribeiro, que vê nesta obra «o mais importante
retábulo bracarense da história da talha luso-brasileira», as qualidades de estilo que
o conjunto reflecte, dentro da boa tradição da «talha gorda» do Minho e «sem equivalentes em outras igrejas de Minas Gerais»22, com só podem ser ponderadas à vista
Em 1739, estando à hora da morte, o Capitão José Pinhão de Matos passou carta de alforria,
em notário de Lisboa, a seu filho pardo Simão Gomes dos Reis, pintor (Arquivos Nacionais /
Torre do Tombo, Cartório Notarial nº 12, Lº 459, fls. 68 vº a 72.
20
Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, «Entalhadores bracarenses e lisboetas em Minas
Gerais setecentista», Imagem Brasileira, Revista do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, nº 3, 2006, pp. 141-151.
21
Olinto Rodrigues dos Santos Filho, «Manuel Victor de Jesus, pintor mineiro do ciclo rococó», revista Barroco, nº 12, 1982-83, pp. 231-242, e «A talha da matriz de Tiradentes»,
Minia, 1993, pp. 117-139.
22
Myriam Ribeiro, art. cit., pp. 144-145.
19
1398 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
da obra de Marceliano de Araújo em Braga, designadamente face a trabalhos exactamente contemporâneos, o retábulo da Misericórdia (1734-1739) e a caixa de órgãos da
Sé (1737)23. Aliás, e não por coincidência, esse grande escultor-entalhador bracarense
executou, em 1738, esculturas com destino ao mercado religioso de São José de Rio
das Mortes (actual Tiradentes), as quais, embora perdidas ou inlocalizadas, explicam
bem o peso da sua influência dos seus modelos estilísticos nessa região24.
A verdade é que o próprio conceito de poli-periferismo ajuda a situar uma solução de equipamento retabulístico como a que a fábrica da matriz de Tiradentes entendeu ser a mais adequada e moderna para o fim em vista. Trata-se de um exemplo
óptimo de arte barroca viajeira em que a execução, a cargo de compententíssimos
mestres reinóis, ajuda, pelo peso referencial de modelos que cada um transporta, a
uma reinterpretação de soluções estéticas de origem metropolitana que, sendo exógena, não deixa de acentuar o seu traço de grande modernidade e, no caso da região,
o seu alto valor de obra de viragem.
2. 3. Redimensionação do modelo pictórico do Brutesco
O reconhecimento dos acervos patrimoniais brasileiros tem permitido revelar
nos últimos anos, a par do muito conhecido conjunto de forros de pintura perspéctica, uma série de testemunhos de utilização tardia da linguagem decorativa de
brutesco, que a partir da metrópole se iria espalhar por todo o espaço lusófono, de
Angola a Macau, à Índia e, naturalmente, ao Brasil25. A singularidade desta linguagem, tipicamente vernácula e de exclusiva utilização em espaços portugueses,
abriu o interesse para que, há muito, tentasse uma primeira caracterização artística,
tipológica e funcional deste gosto, o denominado Brutesco Nacional, género exclusivo da arte do Mundo Português.
A partir da reavaliação de uma série de decorações mal estudadas e com a
revelação arquivística de um vasto elenco de contratos de obras de brutesco em
igrejas, conventos, ermidas, colégios, palácios, solares, engenhos e outros espaços
do reino português e do seu território imperial de influência durante os séculos XVII
e XVIII26. Recordo o forro da Capela do Sítio Santo António, em São Roque (São
Paulo), decoração datada de 1681, ou o tecto com nove caixotões brutescados da
sacristia da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Embu, de 1720, onde é curiosíssima a decoração de brutesco com ‘ferronerie’, cartelas com símbolos da Paixão de
Robert C. Smith, Marceliano de Araújo, Porto, Nélita editora, 1970.
Eduardo Pires de Oliveira, «Revisitar Marceliano de Araújo», comunicação ao VIII Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, Porto, 2004 (publicado no Boletim da Santa Casa
da Misericórdia de Braga, 2006).
25
Vítor Serrão, «A Pintura de Brutesco do Século XVII em Portugal e as suas repercussões no
Brasil», revista Barroco, nº 15, 1990-92, pp.113-135.
26
Idem, ibidem, pp. 113-135.
23
24
Víctor Serrão - 1399
Cristo e, ainda, lacados com ‘chinoiserie’, uma obra que pode ter sido patrocinada
pelo Padre Belchior de Pontes, segundo as pesquisas de Percival Tirapeli27. Ao verem-se ciclos de brutesco em igrejas como a já referida decoração da capela-mor e
do corpo da igreja matriz de Tiradentes, por António Caldas28, onde o motivo brutesco se associa tão bem a programas de talha lavrada, órgãos, fingimentos marmóreos e pintura de cavalete ou até de azulejo, observamos que o aparente anacronismo formal se sabe dotar de insuspeitas potencialidades criativas. Recorda, pelo uso
do brutesco de ouro, tectos como o da igreja da Misericórdia de Torres Novas
(1674) ou o da igreja de São João de Deus de Montemor-o-Novo (1672). Prevalece
a consciência moderna no uso do brutesco compacto, numa época em que o centro substituía esse gosto pela pintura de perspectiva arquitectónica, à maneira dos
grandes tectos italianos.
A pintura de brutesco no Brasil oferece excelente barómetro desta questão. Se
nos lembramos como, mesmo em Lisboa, o mercado artístico vai continuar a aceitar
(e a fomentar !) a linguagem do Brutesco até datas avançadas do século XVIII (com
mestres da modalidade como Francisco e José Ferreira de Araújo, António da Serra,
Oliveira Bernardes, Miguel dos Santos, Lourenço Nunes Varela, Santos Marques,
Pedro Peixoto), é certo que a avaliação sobre a impossibilidade de actualização de
modelos tem de ser revista. A unicidade de respostas, o modelo único, nunca existiu
nem existe. O gosto pelo brutesco atingiu o seu o auge com D. Pedro II – época de
estabilidade, em que se procede à renovação de modelos estéticos. O brutesco, tão
afastado da pintura erudita que nesses anos se realiza no «centro» (Lisboa) com Vincenzo Baccherelli e seguidores, mostra decadentismo inevitável; mas é forçoso saber
ver essa bitola para se resgatarem as valências que também existem e que, num confronto reduzido a categorias obsoletas (como a de «património não relevante»), esvaziam o debate científico. A verdade é que a modéstia de recursos que advém da falta
de horizontes coabita com a ousadia de intervenção cenográfica, expressa no modo
como o brutesco preenche largas superfícies, o que tem de ser visto menos como
reflexo de um anacronismo fruto do isolamento cultural, e mais como factor de modernidade possível, ligada a uma resistência à novidade entendida por comunidades
e, como tal, inaceitáveis para a sua sensibilidade.
A questão central que colocam estas linguagens contrastantes (antagónicas)
tem de ser reflectida noutros moldes pela História de Arte: considerar esta deriva
pela decoração brutesca em igrejas e palácios como parcela de uma tendência de
resistência renovada que se mantém nos espaços de periferia como modo de actualizar modelos vernáculos, redimensionados por uma visão mais esclarecida – mais
Cfr. o excelente estudo descritivo de Percival Tirapeli, Igrejas Paulistas. Barroco e Rococó,
UNESP, São Paulo, 2003, pp. 164-168 e 232-235.
28
O muito injustamente desconhecido António Caldas pintou de brutesco de ouro o texto da
capela-mor (c. 1730-1739) e voltou a Tiradentes em 1751-1752, pintando então, segundo a
mesma lógica ornamental do presbitério, o forro de caixotões da nave. A sugestão primeira
remete para obras portuguesas do século XVII, como certas decorações de Lourenço Nunes
Varela no Alentejo ! O grande tradicionalismo desta decoração, com uso de «ferroneries»
maneiristas, é absolutamente singular.
27
1400 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
barroca... Parece-nos que foi precisamente esse o caso, em claro desejo de superar
os limites da linguagem tradicional, tornando-a mais apelativa, sem deixar de corresponder ao gosto dos mercados do vasto espaço lusófono. A realidade é que o
brutesco (tectos de caixotões, forros lisos, abóbadas a fresco) dobra o ano de 1700
e entra mesmo no reinado de D. João V como prática artística, na metrópole e no
Brasil, com energias revitalizadas.
2.4. Um sentido vernáculo de decoração pelo azulejo.
As soluções de padronagem utilizadas pela aplicação integral de azulejo de
cor, ao longo do século XVII e ainda do XVIII, constituem um modo assaz original
de criar uma expressão espacial transfiguradora da rígida espacialidade da arquitectura chã dominante.
Esse figurino tipológico de padronagem organizado em jogos de «tapetes» parietais q ue contribuem para o inexcedível efeito cenográfico desses espaços religiosos e civis assim revestidos, mereceu a atenção especializada de Santos Simões
e de José Meco29 e encontra no Brasil testemunhos de altíssima ousadia. Merece ser
citado como um exemplar testemunho o programa cerâmico que reveste, com azulejos de padronagem, a capela-mor e a cúpula da igreja do Convento de Santo
António, no Recife, obra do início do séc. XVIII, a lembrar soluções metropolitanas
como, por exemplo, a capela de São Sebastião da Ericeira e a igreja do convento
de freiras domínicas de Elvas. A arte do azulejo português dos séculos XVII-XVIII
assume-se assim, na variedade de soluções empregue, e dentro da dimensão de
decorativismo que a caracteriza, como uma exemplo de arte maior, articulada com
a volumetria austera da arquitectura chã numa poética de refulgências de assombrosos efeitos, que sobrevive nos vários espaços do Mundo Português como se fizesse
parte activa de um saber fazer nacionalizado... Que os clientes e artistas de um e
outro lado do Império o sentissem com idêntico frémito, recorrendo a uma unívoca
solução de aplicações, torna óbvia a necessidade de um estudo de conjunto.
2.5. A mobilidade de artistas entre Portugal e
o Brasil no tempo barroco
A farta documentação compulsada tanto em Portugal como no Brasil mostra
que, como seria natural, existiu uma forte mobilidade de artistas, oriundos sobretudo
J. M. dos Santos Simões, Azulejaria Portuguesa do Século XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, 2 tomos, 1971; e José Meco, Azulejaria Portuguesa, Livraria Bertrand, Lisboa, 1985;
e idem, «Lisboa Barroca: da Restauração ao Terramoto de 1755. A Talha e o Azulejo na valorização da Arquitectura», O Livro de Lisboa (coordenação de Irisalva Moita), Lisboa, 1994.
29
Víctor Serrão - 1401
de Lisboa e do Minho (Braga e Guimarães) a tomarem o caminho de Salvador, do
Rio, do Pernambuco e, depois, de Minas30. Sendo o Minho uma das zonas de mais
densa população do reino, a tradição de certas artes como a escultura, a talha e o
dourado, e o excesso demográfico, quando não a necessidade de fugir a perseguições inquisitoriais, foram razão para que muitos artistas, alguns deles de manifesto
primeiro plano, tomassem o caminho do Brasil em busca de mercados prósperos.
Só do Minho setecentista, com destino a Minas Gerais, o historiador de arte
Eduardo Pires de Oliveira recenseou nada menos de oitenta e oito nomes, entre
eles personalidades como o Engenheiro José Fernandes Pinto de Alpoim, que era
de Viana do Castelo, o arquitecto Sousa Calheiros, e o famoso pintor de perspectivas José Soares de Araújo, o Guarda-Mor de Diamantina, que era natural da freguesia de S. Vítor em Braga. Além de entalhadores como Manuel de Brito e de Francisco Xavier de Brito, que de Lisboa seguem para o Rio e daí para Minas, ou do
escultor Simão da Cunha, que era de Braga, conhece-se bem o caso dos pintores
que, de Lisboa, seguem para o Brasil, buscando ambiente onde possam reinar como
pequenos astros, caso de António Simões Ribeiro em Salvador, de João de Deus
Sepúlveda no Nordeste e de Caetano da Costa Coelho no Rio.
Mas o movimento inverso – ainda muito mal estudado – também se documenta: de Sabará vem para Braga aprender pintura e dourado o moço Pedro Perreira,
cuja família tem meios para o pôr a aprender na oficina do prestigiado mestre José
Lopes da Maia, e que por Braga se deve ter quedado depois, com oficina aberta e
fartura de encomendas e dourado e de brutesco31. A presença deste pintor brasileiro de Sabará no seio do melhor Barroco bracarense dá-nos uma ideia precisa de
como a mobilidade artística, nestes tempos, era menos impeditiva do que geralmente supomos; não se sabe, porém, se Pedro Pereira regressou a Minas, já que
não possuímos dados nesse sentido, mas é natural que se quedasse num ‘centro’
que lhe oferecia outras possibilidades de êxito32.
Cfr. Judith Martins, Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, 2 vols., Rio de Janeiro, 1974; e Eduardo Pires de Oliveira, «Artistas minhotos que trabalharam em Minas Gerais (Brasil) no Século XVIII», Estudos sobre o Século XVIII em Braga,
Edições APPACDM, Braga, 1993, pp. 207-228.
31
Yvone da Paz Soares, «Pedro Pintor», Minia , 3ª série, nº 1, 1993.
32
No rol de pintores-douradores publicado por Natália Marinho Ferreira-Alves, «A actividade de pintores e douradores em Braga nos séculos XVII e XVIII», Actas do Congresso
Internacional comemorativo do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, 1990, pp.
313-371, o nome de Pedro Ferreira não aparece, o que pode sugerir que o moço de Sabará
tenha voltado à sua terra findo o aprendizado com José Lopes da Maia, ao tempo um pintor
prestigiadíssimo (Eduardo Pires de Oliveira, A Capela de São Miguel-o-Anjo, Braga, 2006, p.
111, publica um documento de 1783 que dele diz ter sido «celebre pintor morador que foi
na Rua da Praça a cujo pincel deve a posteridade e as aclamações de Apeles»). Ainda não
sabemos o que se passou; a verdade é que nos exaustivos levantamentos de documentação
setecentista bracarense realizados por Eduardo Pires de Oliveira não constam referências a
esse artista mineiro.
30
1402 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
A mobilidade de obras artísticas também se documenta em grande extensão e
envolve artistas de primeira plana. Em 1701, o famoso pintor régio de D. Pedro II,
Bento Coelho da Silveira (fal. 1708), recebe o encargo, que lhe é feito em Lisboa
pelo desembargador Cristóvão de Burgos, de pintar vinte e cinco telas, ao preço de
72.000 rs, para revestimento dos caixotões do tecto da capela de Nossa Senhora do
Rosário no engenho de Paripe, em Salvador. Anos mais tarde, cerca de 1735, André
Gonçalves (1685-1762) pinta na sua oficina de Lisboa, para decoração da boca da tribuna do retábulo-mor da Sé de Mariana, uma magnífica tela de Nossa Senhora da
Conceição, obra que executa a esmero, com preciosismos de pincel, como se se tratasse de encomenda para um espaço nobre da capital, o que indicia o respeito com que
estas obras eram assumidas, prestigiando os mestres escolhidos. Já nas primícias do
século XVII os pintores Simão Rodrigues, Fernão Gomes, António Carvalho Teixelo,
André Reinoso, e outros, tinham trilhado a mesma via laboral. No fim do século XVII,
sabemos que António de Oliveira de Louredo enviou para igrejas e palácios de Pernambuco carregamentos de pinturas para aí serem vendidas33), e que nessa actividade
se seguirá António de Oliveira Bernardes (1662-1732), notável pintor de óleo, fresco e
azulejo. Em Maio de 1727, o pintor fez procuração para cobrar certas dívidas que se
lhe deviam da «venda de painéis nas partes do Brasil», e em Março de 1729 nomeia
procurador seu genro António Correia Barreto para que recebesse o dinheiro devido da
venda de «huma carreguação de Painéis que desta Cidade remeteo para a de Rio de
Janeiro», pinturas a óleo que Bernardes enviava para igrejas não discriminadas dessa
cidade, senão também para outras partes do Brasil. Resta descobrir, entre as centenas
de pinturas anónimas da época barroca que continuam por estudar, restaurar e identificar e se conservam, meio esquecidas, em esconsas sacristias e dependências de igrejas e capelas, ou em depósitos de museus e colecções privadas, obras destes artistas
lisboetas enviadas para a colónia brasileira. Também se enviavam esculturas dos centros portugueses: vimos já que o famoso escultor bracarense Marceliano de Araújo,
autor do triplo retábulo da Misericórdia e das célebres caixas de órgão da Sé de Braga
(1737-1739), enviava para Minas Gerais, em 1738, uma série de imagens por si lavradas, com destino ao mercado religioso de São José de Rio das Mortes34. Embora tais
peças se tenham perdido (ou estejam inlocalizadas), não custa imaginar-se o impacto
que a chegada ao coração de Minas de esculturas com uma qualidade previsivelmente
tão alta provocaria em termos de recepção nos círculos artísticos locais, sugerindo
novas influências e actualizações. Faziam-se então os retábulos da matriz dessa cidade
mineira, curiosamente por entalhadores oriundos do Minho, e é notória o eco, nessas
obras, das novidades do Barroco joanino tal como entretanto era imaginizado pelo
escopro dos melhores mestres bracarenses, caso de Marceliano.
Documentos citados em V. Serrão, «Contributos para o estudo da pintura maneirista e
barroca no Brasil: contactos artísticos entre Lisboa e os centros brasileiros no século XVII»,
Actas do Congresso Internacional de Arte Luso-Brasileira, Ouro Preto-Diamantina, revista
Barroco, nº 17, 1997, pp. 23-30..
34
Eduardo Pires de Oliveira, «Revisitar Marceliano de Araújo», cit ; idem, Estudos sobre os
séculos XVII e XVIII no Minho. História e Arte, Braga, APPASCDM, 1996, pp. 216-224.
33
Víctor Serrão - 1403
É muito elucidativo, em suma, lembrar o que em 1670 escreve o poeta António Leitão de Faria, na Homenagem da Academia dos Singulares feita então ao
pintor Bento Coelho da Silveira, a respeito da procura incessante de boa pintura,
junto aos melhores pintores da corte, para serem enviadas para o Brasil e também
a Índia, assim atestando o valor altamente prestigiante de tais aquisições: «os Estados da Índia e Brasis, despresando as riquezas que têm debaixo do seu domínio e
fazendo pouco cazo do metal luzente que em suas entranhas se cria, só fazem caso
do precioso destes quadros e só se prezam de possuir o sublime destas obras. E
assim destes Estados, como das mais remotas terras, se estão vindo buscar continuamente para se colocarem nos templos e igrejas de melhor fama»35…
2.6. As fontes gravadas
A atitude revelada por artistas e encomendantes luso-brasileiros na época barroca perante a imagem oferecida pela gravura italiana, alemã, flamenga e holandesa foi, salvo em raras circunstâncias, de estrita dependência, dado o papel de indicador iconográfico privilegiado de tais estampas, utilizadas nas nossas oficinas de
pintores, escultores e entalhadores como referenciais temático-compositivos exactos, ademais livres de qualquer contra-indicação em termos doutrinários por parte
de algum visitador da Igreja mais escrupuloso. A listagem de autores e obras que se
inspiram em gravados maneiristas nórdicos, sejam de Cornelis Cort, dos Wierix, dos
Sadeler, de Dirk Coornhert, de vários gravadores segundo Maerten de Vos, ou outros, sem esquecer Durer e Raimondi, que continuarão a ser fonte inspiradora até
ao século XVIII, nem Vorstermann II, P. Pontius e outros difusores da obra de Rubens, é por demais extensa e com ecos importantes na produção conhecida, mas
não esgota as fontes de pesquisa e informação dos nossos artistas.
Resta estudar melhor, entretanto, o circuito das fontes gravadas no mercado
brasileiro, a disponibilidade dos mecenas (confrarias, irmandades e burgueses
abastados), e o papel de mais ou menos consciente modernidade que é lícito tributar aos orientadores de programas iconográficos nas obras artísticas36. A posse de
bons repertórios de estampas era considerada uma mais-valia para um artista: o já
referido pintor marianense João Nepomuceno Correia e Castro, no seu testamento
de 1794, deixava aos seus aprendizes o mais precioso dos bens que lhes poderia
fornecer, ou seja, os seus ‘desenhos’, ‘riscos’ e ‘colecções de gravados’, para assim
poder ser perpetuada a herança escolar desejada. Mas o gravado não era sempre sinónimo de cópia silenciosa: pode observar-se ainda, neste caso, que os melhores
artistas do século XVII e XVIII, fosse no estrito labor anónimo das parcerias e oficinas
Luís de Moura Sobral, Pintura e Poesia na época barroca, cit., p. 139.
Estudo a citar, de novo, é o artigo pioneiro de H. Levy, «Modelos europeus na pintura
colonial», Revista do SPHAN, nº 8, 1944, pp. 38-48. Estudo interessante, recente, é o de
Sílvia Barbosa Guimarães Borges e Jorge Victor de Araújo Souza, «Espelho da fé», Revista de
História da Biblioteca Nacional, nº 13, Outubro de 2006, pp. 62-67.
35
36
1404 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
colectivas, ou no labor mais individualizado de produtores emancipados, e quem
lhes encomendava as obras, fugiram por regra à réplica directa -- evitando que a
«citação» de temas artísticos internacionais se não transformasse em entediantes cópias, com perda da sua originalidade de criação. Estamos perante um campo de
pesquisa que se revela frutuoso, permitindo cruzamentos de dados com outras linhas
de investigação histórico-artística. Era útil reconstituir, por exemplo, os fundos de
bibliotecas conventuais e palacianas, e reflectir sobre os circuitos de estampas e a sua
dominância, por exemplo, em sedes de confrarias e livrarias de ordens religiosas.
Os exemplos são imensos. Vendo-se a série de azulejos executados em 1737
pelos pintores lisboetas Nicolau de Freitas e Bartolomeu Antunes no claustro da
igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, em Salvador, onde são
utilizadas gravuras maneiristas nórdicas de Otto Van Veen, em que os artistas se
inspiraram, é notória a similitude com ciclos metropolitanos37. A tábua da Expulsão
de Adão e Eva do Paraíso, atribuída ao Irmão Domingos Rodrigues (?), de cerca de
1683-1694, nas paredes da Sacristia da igreja do Colégio jesuítico de Salvador,
segue modelo de uma gravura de 1649 pelo francês Nicolas Chaperon (segundo
estampas renascentistas de Tommaso Vincidor e do rafaelesco Giovanbattista Penni), em que se inspirou38; a mesma gravura influencia azulejos bahianos tal como
indfluencia as pinturas do arcaz sacristia da igreja matriz de Vila Alva, em Cuba, no
Alentejo. O tema de Santo António de Lisboa e a Tentação do Diabo, um dos medalhões pintados no tecto da igreja do convento de Santo António de Igarassu, no
Estado de Pernambuco, pelo pintor José Rabelo de Vasconcelos, de 1749, segue
com fidelidade uma gravura de Martin Engelbrecht editada em Aubsburgo em
1740, pertencente a um ciclo também utilizado em decorações metropolitanas
coevas39. O São Miguel e as Almas do Purgatório, pintado por António Simões Ribeiro, c. 1740, num dos caixotões do forro da Sacristia do Convento de Nossa Senhora do Desterro em Salvador, segue fontes iconográficas bem reconhecíveis, a
partir de um gravado maneirista de Hieronimus Wierix, de 1587, muito utilizado
em baixos-relevos e em pinturas retabulares portuguesas do século XVII. A listagem
de gravuras comumente utilizadas nos mercados luso-brasileiros levaria a estruturar um vasto ‘corpus’ de preferências, com dados acaso significativos para se compreenderem tendências e soluções de continuidade.
José Meco, in catálogo The Blue and White Baroque Festival. - The Cloister and Consistory
Tile Panels of the Third Order of São Francisco, São Salvador da Bahia, coord. de José de
Monterroso Teixeira, Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, Lisboa, 2001; e Percival Tirapeli, Barroco Memória Viva. Arte Sacra Colonial, UNESP, S. Paulo, 2001, pp. 139-143.
38
Aliás, toda essa série bahiana de temas vetero-testamentários da Sacristia da actual Sé de
Salvador segue, como bem demonstrou Moura Sobral, sugestões compositivas a partir de
séries de gravados reconhecíveis.
39
Igreja de Santo António de Igarassu. Conservação e Restauro, ed. Fundação Ricardo do
Espírito Santo Silva, coordenação de José Monterroso Teixeira, Lisboa, 2000, pp. 44-46.
37
Víctor Serrão - 1405
2.7. Novas iconografias de convencimento.
Falta estudar no campo da arte brasileira o eco de algumas soluções iconográficas que adquirem, em todo o Mundo Português, grande popularidade. É o caso da
iconografia narrativa de São Francisco Xaver, que como hoje bem se sabe foim definida pela primeira vez com as telas de André Reinoso na Sacristia da igreja de São
Roque, em 1619, três anos antes da santificação de Francisco Xavier, em 1622, e que
serão o principal modelo para tantas representações no Mundo Ibero-Americano, e
na Europa40. Sobre a construção da iconografia do Apóstolo das Índias no Brasil, há
que lembrar também o papel informativo aberto pela difusão das estampas de JeanBaptiste le Barbé e de Philippe Thomassin (1605-1606) e os relatos dos livros de João
de Lucena e de Orazio Torsellino, bem como as cartas de jesuítas no Oriente, o livro
de Linschotten, e ainda os relatos de coevos que conheceram ou ouviram quem conheceu Francisco Xavier. Mas o conhecimento de uma iconografia xavieriana em
pintura, nos Colégios brasileiros, ainda não foi devidamente estudada.
No caso da utilização da linguagem simbólica do bodegón (natureza-morta), em
que a arte portuguesa do século XVII atinge um tão elevado brilho com as obras de
Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) e sua filha Josefa de Óbidos (1630-1684), sabemos que esse ‘género’ também seduziu o mercado do Brasil, desde Olinda (onde
a sacristia de Sã Francisco possui aplicações de floreiros e bodegones na boa tradição
barroca portuguesa)41 a Salvador da Baía, onde trabalha, na transição do século XVII
para o XVIII, o frade Eusébio de Matos, que a tradição diz ser bom especialista nesse
tipo de representação, apto a explorar o naturalismo e o simbolismo dos elementos,
à luz do conceito da ut ars rhetorica divina. Infelizmente, não conhecemos nenhum
quadro deste Eusébio de Matos com figuração bodegonística42.
Como se sabe, a palavra dita e a imagem assumiram nos anos da Restauração,
e nos de D. Pedro II, um papel de grande relevo através da representação – fervor
messiânico, profetismo militante, discurso catequético e nacionalismo anti-castelhano. Na arte de propaganda católica, que o Mundo Português consome em larga
escala durante os séculos XVII e XVIII, a colónia brasileira produziu, tanto por compra na metrópole como, de modo crescente, por produção local autonomizada,
quadros e ciclos de pintura que, sob signo dos cânones moralizantes da Contra-
Cfr. «A iconografia de São Francisco Xavier na pintura portuguesa do século XVII», catálogo da exposição São Francisco Xavier: a sua vida e o seu tempo (1506-1552), V Centenário
do Nascimento de São Francisco Xavier, coordenação de Natália Correia Guedes, Lisboa,
2006, pp. 157-168.
41
Informação de Fernando António Baptista Pereira, que muito agradeço; este ciclo de ‘bodegones’ e ‘floreros’ aplicados a um tecto, raríssimo no Brasil, justifica, só por si, um estudo
monotemático.
42
É certo que no Arquivo Reis-Santos da Fundação Calouste Gulbenkian se assinala, numa
das capilhas organizadas pelo historiador de arte Luís Reis-Santos, uma Natureza-Morta com
Flores, datada de 1692 e atribuída a Frei Eusébio de Matos, mas nem se indicam o paradeiro dessa tela nem as razões da atribuição, parece que baseadas num pretenso monograma
aposto à composição.
40
1406 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Reforma, desenvolviam os conceitos tridentinos de culpa, obediência, pecado, castigo, submissão e arrependimento, explorando também, dentro de verdadeiras estratégias de convencimento pela imagem, diversas formas de expressão da
crueldade e da violência, a saber: – obras em que os temas de martírio reforçam o
sentido da pedagogia tridentina (os temas da Paixão de Cristo e do hagiológio cristão), como em tantas telas lisboetas de André Reinoso, Avelar Rebelo, Marcos da
Cruz ou Bento Coelho, e de pintores activos em Salvador, como António Simões
Ribeiro, e do Rio, como Caetano da Costa Coelho; – obras em que a alegoria moral
legitima o combate sem tréguas ao protestantismo, ao judaísmo, à heresia e ao
grosso das minorias religiosas, como a Alegoria com Nossa Senhora do Carmo e S.
Simão Stock de Pedro Nunes (c. 1620) na igreja do Carmo em Évora, e outras do
mesmo tónus catequético que se produziram em solo brasileiro; – obras em que o
temário de confronto político-militar acentua o valor da ‘guerra justa’ e a afirmação
parenética do combate anti-castelhano, como cenas das Batalhas da Restauração;
– obras em que a flagelação e castigo afirmam uma moral auto-punitiva e um caminho de purificação interior, como as cenas de penitência de arrependimento e
de arrebatamento místico; – obras de testemunho da «guerra santa» sob o signo da
Cruzada, como as cenas da Batalha de Ourique e a Batalha do Salado, de claro
sentido parenético, ou as subtis alegorias à Conquista de Lisboa aos mouros, legitimação do Portugal Restaurado43. As ideias do convencimento cristão e o sentido da
catequização tridentina cruzam-se em todos estes painéis segundo claros pressupostos doutrinários-imagéticos.
2.8. Parenética político-restauracionista
A arte luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII não podia deixar de acentuar a sua
vertente nacionalista e de fortalecimento da união imperial com recurso à sua história e à resistência contra os inimigos espanhol e holandês, entre outros. Numa dependência do Convento de Santo António do Rio de Janeiro, existe uma grande tela que
representa uma Alegoria à Imaculada Conceição pelo Papa Alexandre VII e por D.
João IV, executada em 165644. Peça de apreciáveis qualidades, esta tela demonsta o
alto poder de convencimento das imagens tomadas como símbolo de resistência
política, e deve ser uma encomenda dos franciscanos, campeões do culto imaculista,
nas suas associações ao apoio à causa da Restauração portuguesa. Assim, diversas
figuras de santos e santas franciscanas acompanham as figuras genuflexionadas do
Papa e do Rei, identificado como R. P. Rex Portugalis, adorando a Imaculada, com
uma plêiade de anjinhos e os símbolos das litanias, e um dístico alegórico onde se lê,
em castelhano, «Es mi pureza escogida / De estos braços apoyada / Por el uno pre-
Ainda não se encontrou nenhuma pintura deste tipo de resistência nacionalista no Brasil,
o que não significa que no século XVII não tivessem existido…
44
Hannah Levy, «A Pintura Colonial do Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes e alguns dos
seus aspectos», Pintura e Escultura I, São Paulo, 1978, p. 77-80 e fig. 6.
43
Víctor Serrão - 1407
servada / Por el otro defendida». Difícil seria encontrar-se um tão directo referencial
à protecção do Império português pela Imaculada Conceição, recém-instituída como
Protectora do Reino, nas suas diversificadas significações e objectivos.
Uma pintura como esta mostra que existiram mo Brasil peças de retórica político-parenética, o que não espanta se se lembrar que, com a saga de conflitos militares com o inimigo holandês, era imperioso afirmar a unicidade do império sob
ceptro luso. O mesmo que sucede na metrópole com as numerosas séries de pinturas com Tróia em chamas, da autoria de Diogo Pereira, pintor muito estimado pelos
círculos de poder brigantino, que aí representa Eneias como anti-herói redentor,
em ciclos da Guerra de Tróia muito procurados pelos mais influentes membros do
partido restauracionista, o que indicia claras motivações políticas na opção temática: de facto, o tema assumia funções moralizantes e afirmava o Amor piedoso de
Eneias (precursor de Jesus, nas interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio)
que salva Anquises e os deuses Lares, simbolizando a fraternidade cristã; depois,
justificava a ideia da resistência dos povos face à tirania, a retórica cristã-brigantina
à luz do espírito de 1640; encarnava a tese da ancianidade de Portugal legitimadora da Restauração, através da lenda da fundação de cidades lusas por descendentes
de Ulisses e Eneias, fugidos de Tróia (livros de Gabriel Pereira de Castro e Sousa de
Macedo); enfim, simbolizava as virtudes do monarca tal como a empresa XXVI da
Idea do Principe Cristiano de Diego Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o
cavalo de Tróia à astúcia face ao inimigo e ao alerta contra o perigo da falta de
unidade nos reinos45. É muito possível que tenham chegado ao mercado brasileiro,
trazidos por responsáveis políticos ligados à corte restauracionista, quadros de Diogo Pereira com este singular discurso político-moralizante. Também a este nível,
creio que um reconhecimento de existências por estudar vai revelar, oportunamente, gratas surpresas a quem estuda arte luso-brasileira do tempo barroco.
2.9. Iconoclastia e iconofilia
As obras de arte, durante a Contra-Reforma, eram não só uma mais-valia propagandística em nome da fé e do convencimento, como se viu, mas também uma
ameaça, um instrumento de iconoclasma. O seu uso por parte das clientelas incluía
indicadores por vezes polémicos: na célebre visitação do Santo Ofício realizada
em Salvador em 1591, sendo visitador o Padre Heitor Furtado de Mendonça em
nome da Inquisição portuguesa, foram visados não só os actos de natureza judaizante, de bruxaria, de ’desvario sexual’ ou de erros na prática religiosa cristã, mas
também actos de agressão esconjuratória contra as «imagens sagradas», a exemplo
do que sucedia na metrópole e de que se atestam muitos testemunhos. Em Salvador, foi denunciado nessa altura um colono de nome Álvaro Sanches, cristão-novo,
45
Vítor Serrão, Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 16211684, in Catálogo da Exposição Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77.
1408 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
a quem caía a suspeita de picar com agulhas as imagens de um Flos Sanctorum46.
Devem ter existido no Brasil pinturas como a de Francisco Fernández, de c. 1630
(hoje no Ayuntamiento de Setados, Pontevedra) que representa judeus a vandalizarem a imagem de Cristo, que diz: PORQVE ME MALTRATAN, SIENDO VUESTRO
DIOS VERDADERO?, ou a de Pedro Nunes existente na igreja do Carmo de Évora,
Nossa Senhora do Carmo e São Simão Stock combatendo a iconoclastia, de c.
1625, onde se alude a escândalos de iconoclasma ocorridos contra as imagens,
actos esses ao tempo violentamente reprimidos pela Igreja tridentina47. Para além
do seu grande interesse como discurso político-parenético de combate aos «desvios heterodoxos», quadros como estes constituem um esclarecedor testemunho
dessa arte pedagógica apta a sensibilizar as populações e a reforçar o combate
contra o «falso dogma» dos inimigos da Igreja.
Não pode ter deixado de existir, no Brasil, uma pintura de combate com estas
características; resta descobrir, e identificar, testemunhos remanescentes. Se é certo
que, como afirmou o saudoso historiador de arte e iconólogo Flávio Gonçalves, «os
temas em defesa do culto das imagens e de glorificação do Papado, desnecessários
num país católico, só epigonalmente nos chegaram»48, a verdade é que o discurso
assumido em algumas pinturas do século XVII, como a citada tábua eborense, se
insere precisamente no quadro de uma veraz propaganda em prol das imagens
sacras como instrumento mediador de cultuação e arma de combate aos dogmas
protestantes e às heresias que ameaçavam as estruturas da Igreja. De certo modo, o
conceito tridentino de pittura senza tempo, ou seja, uma arte católica ao serviço do
«fim da História» proclamado pelos teólogos contra-reformistas, encontra nestes
casos um eco incondicional. É de crer, portanto, que as estratégias católicas na
defesa incondicional dos seus valores doutrinários tivessem, também no Brasil,
gerado representações pedagógicas deste teor.
O debate em torno do sentido das imagens e dos seus possíveis desvios estava,
aliás, no auge. Atesta-o, por exemplo, um escândalo ocorrido em 1593 em Pernambuco por causa de uma estampa da Santíssima Trindade que se encontrava no quarto de um denunciado pela Inquisição, Luís Mendes de Thoar, que vem revelar o
grande poder de convencimento que as imagens (pintadas, esculpidas ou gravadas)
assumiam numa política de conquista pela fé. As dúvidas levantadas perante outras
pessoas sobre a identidade e hierarquia, nessa estampa, das três figuras da Santíssima
Ronaldo Fainfas, Confissões da Bahia, Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, São Paulo,
1997.
47
V. Serrão, «Pintura e Propaganda em Évora nos alvores do século XVII: um panfleto contra
a iconoclastia e um caso de repressão», Congresso Internacional Inquisição Portuguesa.
Tempo, Razão e Circunstância, Reitoria da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2004.
48
Flávio Gonçalves, «Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal», sep.
de Belas-Artes, nº 27, 1973, p. 16.
46
Víctor Serrão - 1409
Trindade (acaso uma representação proibidíssima da Trindade Trifonte…49) levaram
o denunciado a ter de depôr no tenebroso tribunal50.
2.10. Um exemplo de moralização pela imagem:
a pintura do forro da igreja jesuítica de Viçosa
do Ceará, no Nordeste do Brasil
Terminamos esta breve viagem de cotejos admirando um forro de pintura
barroca numa esquecida igreja cearense, no Nordeste do Brasil. Dada a conhecer
por José Liberal de Castro51, a igreja matriz de Viçosa de Ceará é um dos poucos
edifícios de interesse patrimonial da região cearense, razão porque o seu estudo se
foi protelando; segundo revelou aquele autor, essa igreja de ‘estilo chão’ preserva
um interessante forro pintado, de cerca de 1720-1730, que pode ter sido programada pelo Padre João Guedes (1660-1743), um membro influente da Companhia de
Jesus que era, ao tempo, destacado membro da milícia no Ceará, tendo sido reitor
do Colégio de Olinda até 1717. O nome do pintor (vindo de Olinda ?) é ignorado,
mas as pinturas têm muito interesse iconográfico, como adiante se verá.
Através de pesquisas realizadas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa,
detectaram-se algumas úteis referências à igreja de Viçosa do Ceará, desde a construção da “igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção”, que ocorre em 1695, em
uníssono com a fundação da aldeia de Ibiapaba, em 170052. Já em 1696 surgem nas
Consulta do Conselho Ultramarino a D. Pedro II notícias sobre a relação do padre
Ascenso Gago e sobre as missões do Ceará53. Em 1698, uma carta de Olinda emitida
pelo Bispo de Pernambuco a D. Pedro II evoca o estado material e espiritual em que
se encontra a capitania do Ceará; a sua situação depois que passou para a jurisdição
Sobre este tema que com a Contra-Reforma se torna heterodoxo, cfr. o ensaio de Flávio Gonçalves «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, 6ª série, ano II, Porto, 1962. Neste
interessantíssimo estudo, revela-se a existência de uma Trindade Trifonte num retábulo seiscentista na igreja de São Martinho do Campo (zona de Santo Tirso), o que mostra como as normas
sinodais nem sempre eram respeitadas, ou, antes, eram inconscientemente desrespeitadas à luz
de fidelidades subterrâneas, trans-memoriais, que nada têm a ver com actos de heresia. Posso
acrescentar que no ciclo de frescos seiscentistas do convento de Santa Mónica de Velha Goa,
na antiga Índia Portuguesa, volta a aparecer uma representada Trindade Trifonte. Resta saber se
também existiu no Brasil a representação do tema da Trindade Trifonte.
50
Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo, Companhia das
Letras, 1986.
51
José Liberal de Castro, Igreja Matriz de Viçosa do Ceará. Arquitetura e pintura de forro, ed.
Cadernos de Arquitetura Cearense, 2001.
52
Agradeço à senhora Doutora Ana Cannas, directora do Arquivo Histórico Ultramarino, as
facilidades e apoios para esta pesquisa.
53
Cfr. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo III, pp. 38-56. Ver Arquivo Histórico Ultramarino-CEARÁ, cx. 1, docs. 42 e 47.
49
1410 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
de Pernambuco e a falta de sacerdotes e de igrejas bem ornamentadas54. De 1708,
uma carta da Ribeira de Jaguaribe, do desembargador Cristóvão Soares Reimão a D.
João V, trata da vistoria feita à terra da aldeia dos tapuias Acoansus e índios Tabajaras
na Serra da Ibiapaba e mostra um incentivo ao povoamento do sertão cearense55.
Uma consulta do Conselho Ultramarino ao rei, de 1709, trata da carta do desembargador Cristóvão Soares Reimão a informar acerca da medição dos padres da Companhia de Jesus, missionários na região da serra da Ibiapaba56. Entre muita outra documentação recenseada deste teor, importa destacar uma consulta de 29 de Agosto de
1727 do Conselho Ultramarino dirigida ao rei D. João V, onde se trata especificamente de um requerimento do padre Alexandre da Fonseca em que pede ornamentos
para a igreja matriz do Ceará, de que é vigário, juntando-se a lista de objectos litúrgicos pedidos para Lisboa e indiciando que o templo tivera grandes obras recentes57.
Estes elementos permitem atestar que a igreja matriz de Viçosa de Ceará foi decorada
nos anos de 1720 a 1730, estando em 1727 pronta para funcionar em termos cultuais, pelo que o seu pároco pedia à corte, na longínqua Lisboa, a doação de peças litúrgicas e outros ornamentos fundamentais para servir a comunidade. Tudo aponta,
pois, que as pinturas se fizeram neste decénio.
Os nove painéis do forro desta igreja, meio perdida em terras do Ceará mostram uma singular derivação de modelos iconográficos europeus, acaso anacrónicos na sua origem (com fontes maneiristas), mas de grande significado no contexto
da sua região, como testemunho de um complexo programa moralizante em imagens, apto a sensibilizar uma comunidade de primeiros colonos, índios e escravos.
Desenvolvem um complexo programa de iconografia das Quatro Virtudes Cardeais, das Três Virtudes Teologais e dos Cinco Sentidos, assente num discurso iconológico de moralização das estruturas de povoamento, com grandes ingenuidades
de factura que levam o artista, por exemplo, na interpretação livre que fez das fontes clássicas de que se serviu, a substituir os ornatos de grottesche por representações ingénuas da fauna e da flora tropical, com frutas e outros pormenores exóticos, de deliciosa factura. Tudo mostra, na força da sua expontaneidade, que no
património luso-brasileiro permanecem nichos de investigação histórico-artística
muito cativadores, que recomendam um franco alargamento da metodologia, dos
conceitos, dos objectivos e dos modos de ver da nossa disciplina.
AHU-CEARÁ, cx.1, doc. 53; AHU_CU_CEARÁ, Cx. 1, D. 40.
AHU-CEARÁ, cx.1, doc. 70; AHU_CU_CEARÁ, Cx. 1, D. 54.
56
AHU_CU_MARANHÃO, Cx. 11, D. 1107.
57
AHU-CEARÁ, cx. 2, doc. 21.AHU_CU_CEARÁ, Cx. 2, D. 93.
54
55
Víctor Serrão - 1411
3. Cinco pistas de análise para um programa
comum de investigação em História da Arte
luso-brasileira
A terminar este balanço de conjunto sobre as artes da imagem dos séculos XVII
e XVIII em espaço luso-brasileiro, avançam-se algumas pistas para um estudo mais
vasto (que terá de ser forçosamente inter-disciplinar, com acento nas pesquisas de
arquivo, de laboratório e de campo58) sobre o poder de comprometimento, de impacto trans-memorial, de dimensão simbólica e de uso social aplicado às obras de
arte colonial do tempo barroco.
A análise da arte luso-brasileira do tempo barroco não pode continuar a ser
limitada à figura sublime do Aleijadinho, pese a sua importância excepcional no
contexto mineiro e não só59, quando o que se impõe cumprir é uma visão de conjunto sobre os aspectos mais importantes que a caracterizam, e de que destaco os
seguintes:
a) O estudo da iconografia da arte barroca no Brasil permite vantajosamente
destacar o conceito de narratividade policénica dos programas artísticos (sejam
hagiológicos, políticos, gratulatórios, ou de temário privado), tendo em conta a
distribuição, estatística, definição de códigos e atributos simbólicos, peso da influência mais ou menos fiel da gravura ítalo-flamenga, e especificidade de artistas e
escolas. A abordagem abre pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, definição de gostos dominantes na época em apreço e caracterização da identidade e,
recorrendo à Iconologia, permite analisa as imagens segundo procedimentos que
iluminam o panorama das estratégias da representação imagética e suas implicações sociais.
b) O estudo dos actos de iconoclastia praticados e das suas razões profundas,
tanto na dimensão pública justificada pelos seus ideólogos (repintura de quadros,
picagem de frescos, destruição de templos pagãos, enterro de esculturas ‘impróprias’, alterações de pinturas e esculturas, proibição de determinadas estampas,
etc), como na dimensão inconsciente e expontânea (casos de imagens, pintura,
A pesquisa de arquivo continua por ser cumprida de maneira sistemática. Um exemplo
do desconhecimento das existências, e do muito que se encontra ainda por desbravar em
termos de cruzamento de informações sobre a vida, a cultura, a história e a arte luso-brasileiras, se vista em perspectiva globalizante, relaciona-se com a recente descoberta no ANTT,
por Maria Adelina Amorim, do códice intitulado Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo
ereta na feegª de N. Sª da Conceição de Villa Rica, Minas Gerais, com belíssimo frontispício
iluminado e datado de 1725, exemplo da utilização da gramática barroca, e estatutos aprovados em 1737, com referência a «obras e ornatos da capela», sendo juiz o Dr. Félix Simões
de Paiva. Este altar ainda existe íntegro, tal como foi concebido e decorado nesta campanha
de obras dos anos 30 do século XVII.
59
Cfr. o recentíssimo estudo de conjunto de Fábio Magalhães e Ana Maria Ciccacio (coord.),
Aleijadinho e seu tempo. Fé, Engenho e Arte, catálogo de exposição, Centro Cultural Banco
do Brasil, Rio de Janeiro, 2006.
58
1412 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
azulejos onde as figuras do demónio e do judeu, por exemplo, são aspadas pelos
fiéis num gesto de esconjuração mágica dos seus inimigos), abre caminho para se
analisarem estratégias de convencimento e linhas de clivagem estético-ideológica.
Explicam-se melhor as razões da manutenção e alteração de códigos imagéticos, à
margem do contrôlo rígido da iconografia oficial, de temas, formas e representações proibidas ou não toleradas, o que coloca a questão de coexistirem mecanismos de continuidade de representação, a par de um mais que provável afrouxamento do contrôlo inquisitorial em muitas zonas rurais, onde as velhas fórmulas
cultuais se mantiveram.
c) O estudo das linhas de estratégia moralizadora utilizadas pela organizada
militância de círculos de propaganda de vigilância da Igreja e da sociedade em
geral, confrarias, irmandades e outros níveis e estruturas, para combater a iconoclastia dos protestantes e judeus, e outras minorias com práticas ancestrais de ritualidades de feitiçaria, bem como de «formosura dissoluta» (imoralidade, pornografia) e as suas manifestações de hostilidade contra as imagens religiosas (como
atestam tantos esclarecidos exemplos de propaganda em larga escala. Os critérios
de censura que presidem a cada ‘tempo’ histórico explicam com nitidez os pressupostos de fortalecimento das imagens à luz do poder vigente.
d) O estudo dos níveis de articulação entre a imagem pintada, a escultura de
culto, a palavra dita, a prédica, a oração, os textos morais e institucionais, as cartilhas devocionais, o cântico devocional, a música sacra e profana, a planimetria dos
locais sagrados, etc, etc, permite caracterizar as razões que levaram a instituir, no
seu conjunto e na ligação entre si, uma linguagem única de apropriação das obras
de arte ao serviço de uma estratégia de catequização (não apenas religiosa) em
larga escala.
e) Enfim, o estudo de determinados tipos comportamentais, como a melancolia, ‘estado de alma’ usado como signo (e símbolo) de trauma, de medo colectivo,
de postura social crítica, de arrebatada espiritualidade, ou seja, uma das matrizes
identitárias do homem da Idade Moderna, época estremada de contradições. A
essa luz pode processar-se com outra perspectiva mais ampla a análise das estratégias visando a renovação do modelo artístico apresentado e os fundamentos dessa
viragem, que explicam o abandono gradual de formas e a opção por linguagens
novas com fórmulas de criação / invenção articuladas com o sentido do convencimento, do apelo à oração e à unidade identitária; e o elogio parangonal da vida
contemplativa, que tende a legitimar poderes instituídos.

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