A ética no nosso cotidiano - Portal RP

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A ética no nosso cotidiano 1
Um artigo sobre o seu sentido e exercício.
Mariana Seixas Cumming
Manchetes de jornais. Chamadas na televisão. O impressionismo do locutor de rádio. As páginas
da revista. Olhamos esses objetos e freqüentemente nos deparamos com questões políticas,
sociais, culturais e até pessoais. Notícias. As colunas sociais. Os fatos de grande importância. A
maioria deles nos faz refletir sobre a ética. Mas o que é a ética? São esses grandes
acontecimentos que dão significado a ética? Nós, cidadãos comuns, que não estamos nas pautas
de discursão, temos algum papel na construção da ética? Temos, pelo menos, o direito de julgar a
ação de outrem?
Sabemos que constantemente nos deparamos com questões de âmbito prático – moral, segundo
Adolfo Sanches Vázquez, então, refletindo sobre nós mesmos, descobrimos uma teoria da nossa
moral, os nossos princípios éticos.
Nas relações cotidianas entre os indivíduos, surgem continuamente problemas como estes:
devo cumprir a promessa x que fiz ontem ao meu amigo y, embora hoje perceba que o
cumprimento me causará certos prejuízos? Se alguém se aproxima, à noite, de maneira
suspeita e receio que possa me agredir, devo atirar nele, aproveitando que ninguém pode
ver, afim de não correr o risco de ser agredido? Com respeito aos crimes cometidos pelos
nazistas durante a segunda guerra mundial, os soldados que os executaram, cumprindo
ordens militares, podem ser moralmente condenados? Devo dizer sempre a verdade ou há
ocasiões em que devo mentir? Quem, numa guerra de invasão, sabe que seu amigo z está
colaborando com o inimigo, deve calar, por causa da amizade, ou deve denuncia-lo como
traidor? Podemos considerar bom o homem que se mostra caridoso com o mendigo que
bate à sua porta e, durante o dia – como patrão – explora impiedosamente os operários e os
empregados de sua empresa? Se um indivíduo procura fazer o bem e as conseqüências de
suas ações são prejudiciais àqueles a que pretendia favorecer, porque lhes causa mais
prejuízo do que benefício, devemos julgar que age corretamente de um ponto de vista
moral, quaisquer que tenham sido os efeitos de sua ação? (VÁZQUEZ, 2002).
Nós, cidadãos comuns, no nosso cotidiano, também significamos. Somos nós que fazemos a
história. No nosso pequeno mundo, nas nossas pequenas atitudes. Não é preciso estar numa
posição de destaque social para refletir sobre a moral e criar conceitos éticos. Esta é uma
característica das organizações humanas e não simplesmente de quem está no topo. Assim, temos
papel expressivo no que tange a ética e somos construtores da mesma. Esta, por ser própria das
organizações sociais, pode contribuir para fundamentar ou reforçar certos comportamentos.
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Trabalho Apresentado Como Requisito Parcial Para Avaliação da Disciplina Legislação E Ética Das Relações Públicas, Do
Curso De Comunicação Social – Relações Públicas, Da Universidade Do Estado Da Bahia, Sob Orientação Da Professora Zilda
Paim – Salvador/BA, 2003.
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Certamente, muitas éticas tradicionais partem da idéia de que a missão do teórico, neste
campo, é dizer aos homens o que devem fazer, ditando-lhes as normas ou princípios pelos
quais pautar seu comportamento. O ético transforma-se numa espécie de legislador do
comportamento moral dos indivíduos ou da comunidade. Mas, a função fundamental da
ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada
realidade, elaborando os conceitos correspondentes (VÁZQUEZ, 2002).
Explicar. Esclarecer. Investigar. Penso em nosso cotidiano. Explicar! Esclarecer! Investigar!
Quem não realiza todos os dias essas ações? Diariamente nos deparamos com essas e outras
realidades que consideramos normais e as operamos sem nos darmos conta de que estamos
construindo conceitos, desenvolvendo teoria. Estamos criando a ética. Fazemos isso a medida
que refletimos sobre nossas atitudes. E temos assumido este papel de construtores desde os
primórdios da humanidade. Logo que as primeiras sociedades foram se formando e
desenvolvendo seus códigos particulares, até hoje, a ética é fabricada no nosso cotidiano.
Mas se estamos construindo a ética agora, no nosso dia – a – dia, como podemos pensar diferente
dos nossos avós ou bisavós em muitas questões? É certo que ao longo da história esses valores
sofreram mudanças e as reconhecemos tanto nos livros, como nos documentos e registros
históricos, como também nas histórias familiares e nas fotografias antigas. Alguns fatores que
contribuíram para essa transição foram a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento das
sociedades.
Também é certo que muitas doutrinas éticas do passado não são uma investigação ou
esclarecimento da moral como comportamento efetivo, humano, mas uma justificação
ideológica de determinada moral, correspondente a determinadas necessidades sociais, e,
para isto, elevam seus princípios e as suas normas à categoria de princípios e normas
universais, válidos para qualquer moral. Mas o campo da ética nem está a margem da
moral efetiva, nem tampouco se limita a uma determinada forma temporal e relativa da
mesma (VÁZQUEZ, 2002).
A ética é teoria. É a ciência do comportamento moral dos homens no meio social. Assim, toma
como ponto de partida a multiplicidade de morais através do tempo, com valores, princípios e
normas próprios. Deve, portanto, investigar e explicar o princípio que permita compreende-las
no seu movimento e desenvolvimento. Mas a ética se desenrola na prática, no dia – a – dia,
através da moral. E à medida que as sociedades se modificam a ética e a moral começam a
acompanhar este processo.
Por um lado, consideraremos que o debate ético não funciona em torno de idéias eternas,
mas em torno de conceitos historicamente construídos e, por outro lado, que o próprio
debate evolui ao longo da história (FOUREZ, 1995).
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Logo, quando paramos para refletir sobre o que os nossos bisavós pensam sobre a nossa forma
de vestir quando vamos à praia, ou sobre a maneira com que os adolescentes tem lidado com o
álcool, ou até mesmo questões relativas ao casamento, ponderamos as questões normativas e
valorativas presas ao período da sua juventude e toda a formação social vivida por essas pessoas.
Então começamos a compreender a questão ética presente naquela mentalidade e a perceber que
o período da nossa juventude nos trás princípios e normas diferenciados, portanto pensamos de
maneira diversa, porém ambos de maneira ética. Cada qual com o seu julgamento baseado na
sociedade do seu tempo.
Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento
nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria
vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que
prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental
numa época histórica e numa determinada civilização, não é fundamental em outras
épocas e em outras culturas (BOBBIO, 1992).
Culturas diferentes também podem designar princípios éticos diferentes. E sabemos que
indivíduos de culturas diferentes convivem, muitas vezes, no mesmo espaço e tempo. Se um
israelense mulçumano que foi criado dentro da religião e tem aceitação livre dos seus dogmas,
casa-se, por exemplo, com uma católica norte-americana nas mesmas condições de educação
(porém relativo à religião católica), e tem filhos com ela, sob que princípios deverão educar seus
filhos? A religião e as práticas culturais de cada etnia deve ou não influenciar no
desenvolvimento das crianças? Eles devem abrir mão de seus conceitos para acatar o desejo do
outro?
Para solucionar esse tipo de problemática a ética deveria ser universalizada. Será? No exemplo
da família citada acima, quais princípios deveriam ser universalizados? Não parece fácil nem
simples ter de aceitar que os nossos interesses não são melhores que os interesses do outro, nem
tampouco assumir uma posição de imparcialidade, construindo um juízo universalizável. Mas,
segundo Singer (SINGER, 2002) “o aspecto universal da ética oferece uma razão realmente
convincente, ainda que não conclusiva, para a adoção de uma posição amplamente utilitária”. Se,
ao invés de nos debatermos com as dúvidas éticas do momento, se deixarmos de nos prender
apenas às questões e pararmos para pensar nas conseqüências das nossas decisões, certamente
produziremos conceitos úteis, que nos levarão a uma ação moralizada. Porém, se ficarmos
inseguros quanto às nossas ações, provavelmente a nossas ética será derrubada pelos conceitos
pós – modernos. Segundo Luciano Zajdsznajder, se a ética.
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É entendida como um conjunto de deveres e se apresenta como um discurso e uma prática
sem firmeza, é completamente destruída por tais características positivas e negativas da
Pós – modernidade (ZAJDSZNAJDER, 1999).
A sociedade na qual o individuo está inserido também o ajudará a construir valores, pois todas as
sociedades são regidas por normas – inclusive num regime anárquico – e estas exigem que os
indivíduos envolvidos nas mesmas tenham atitudes referentes ao esperando pelo senso social.
Estes padrões normalmente brotam do próprio seio popular ou podem ser exigidos pelas regras
de etiqueta ou ainda transmitidos pelos formadores de opinião. Esta é uma maneira de se
universalizar a ética, através do gosto popular. A grande questão é que as populações de culturas
diferentes possuem gostos diferentes e reagem aos estímulos de padrão de maneira diferente.
Portanto, poderia haver uma universalização da ética dentro de cada cultura, separadamente.
Assim, a construção de ações utilitárias seria mais constante em todo mundo, cada um à sua
maneira.
Mas seria possível cometermos uma ação utilitária sem nenhum interesse? As boas ações.
Caridade. As cestas básicas doadas no Natal. Os presentes enviados para as creches. Porque estes
tipos de atitude são tomados? Será que existe interesse nessas ações? Muitas pessoas consideram
que devemos construir boas obras e ajudar o próximo, mas sem esperar nada em troca. Acaso
isso seria um ato desinteressado? O que seria este interesse?
A noção de interesse opõe-se a de desinteresse, mas também à de indiferença. Podemos
estar interessados em um jogo (no sentido de não lhe ser indiferentes), sem ter interesse
nele. O indiferente “não vê o que está em jogo”, para ele dá na mesma; ele está na posição
de asno de Buridan, ele não percebe a diferença. É alguém que não tendo os princípios de
visão e de divisão necessários para estabelecer as diferenças, acha tudo igual, dá tudo na
mesma (BOURDIEUR, Razões práticas).
Então, se percebemos estas situações, se temos a visão de que ao nosso redor existe um jogo e
interagimos com ele, estamos exercendo ações interessadas. Se notamos que as creches não têm
condições de presentear as suas crianças e nós mesmos cumprimos este papel, estamos entrando
no jogo do interesse e, ao mesmo tempo, fazendo uma boa ação. Mas isso afeta a ética? Creio
que se estamos desenvolvendo conceitos através da investigação e explicação dos fatos, mesmo
que haja interesse, estaremos agindo eticamente.
O problema está quando ocorre um embate de interesses. Não podemos considerar que agimos
eticamente se ferimos o interesse do outro em detrimento do nosso. Nessa situação, então,
devemos nos despir do “eu” e do “você” para fazermos florescer uma ética universalizada e
utilitarista. Porém, só saberemos que estamos invadindo o limite do outro através do seu
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sofrimento pois é ao vermos o sofrimento de alguém que percebemos que algo se partiu dentro
dele, os seus valores foram transgredidos, o seu espaço foi ultrapassado.
Uma reflexão ética particular começa no momento em que alguns são impressionados com
o sofrimento e gritos de dor (cf. Feuerbach, 1845) ou, em outros termos, quando nos
encontramos diante do “rosto” de um outro (Levinas, 1961). Tomando um exemplo
coletivo, foi necessário que se ouvissem os gritos de sofrimento dos escravos negros da
América para que uma reflexão ética se instaurasse a respeito. Diante desse sofrimento,
algumas pessoas tomaram consciência de sua liberdade e disseram: queremos realmente
fazer um mundo como esse? Daí surgiu um debate que colocou em questão as
representações comuns, mas por vezes opostas, as quais se denominam valores (FOUREZ,
1995).
Assim, percebemos que a ética parte da consciência daquilo que chamamos de mal ou erro e
também será ela que determinará o futuro, pois este será de acordo com os nossos atos presentes.
Portanto, vemos como cada decisão ou desejo nosso, no nosso cotidiano, pode tornar-se algo de
extrema responsabilidade e periculosidade.
Isso nos faz pensar na importância do debate ético. Sabemos que no nosso cotidiano precisamos
agir de maneira cautelosa e segura, sem invadir o espaço do outro. Sabemos que é necessário
refletir sobre as nossas atitudes para podermos agir corretamente. E podemos reconhecer também
que esta deve ser uma ação coletiva. Portanto, só através de uma discursão de valores poderemos
chegar a uma atitude legitimamente ética e construir uma sociedade futura com princípios firmes
e embasados na ética para uma convivência moralizada.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOURDIEUR, Pierre. Razões Práticas.
FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. Trad.
Luis Paulo Romanet. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.
SINGER, Peter. Vida ética. Trad. Alice Xavier: Rio de Janeiro: Ouro, 2002.
VÁZQUEZ, Adolfo Sanches. Ética. Trad. João Dell’Anna. 23.ed.Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
ZAJDSZNAJDER, Luciano.Ética, estratégia e comunicação: na passagem da modernidade à
pós – modernidade. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
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CUMMING. Mariana Seixas. A ética no nosso cotidiano. Um artigo sobre o seu sentido e
exercício [online] - Disponível na internet via WWW URL: http://www.rpbahia.com.br/trabalhos/paper/artigos/etica.pdf - Capturado em XX/XX/200X.
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