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ISSN 2177-966X I Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deciência Anais 2009 ISSN 2177-966X Anais São Paulo, 2009 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência (1. : 2009 : São Paulo) Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência : Anais / [organizadora] Linamara Rizzo Battistella ; coordenadora editorial Neuza Maria de Oliveira. -São Paulo : Velhos Guerreiros Editores, 2010. ISSN 2177-966X 1. Deficientes - Direitos civis 2. Deficientes - Inclusão social 3. Deficientes Reabilitação 4. Deficientes - Serviços de acessibilidade 5. Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência (1. : 2009 : São Paulo) 6. Inovação tecnológica 7. Qualidade de vida 8. Tecnologia I. Battistella, Linamara Rizzo. II. Oliveira, Neuza Maria de. 10-05950 CDD-362.4045 Índices para catálogo sistemático: 1. Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência : Inclusão : Bem-estar social : Anais 362.4045 Estes Anais contêm os resumos das palestras e sessões do I Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência. A preparação dos resumos constantes deste volume foi realizada de acordo com técnicas especializadas de transcrição e editoração, a partir de gravações das sessões, sendo de exclusiva responsabilidade dos palestrantes as informações e opiniões veiculadas em suas exposições. Governador José Serra Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência Linamara Rizzo Battistella Coordenadora editorial desta publicação Neuza Maria de Oliveira São Paulo, 2009 Apresentação Inovação e tecnologia são dimensões que se integram nas mais avançadas e abrangentes formas de garantia dos direitos da pessoa com deficiência. Os avanços tecnológicos contribuem para a ampliação dos direitos civis e humanos, possibilitando crescentes níveis de participação social. Inclusão social, acessibilidade e pleno exercício da cidadania são os objetivos maiores e mais nobres de quaisquer desenvolvimentos tecnológicos nessa área. Trata-se de propiciar formas inclusivas de comunicação e relacionamentos interpessoais, trabalho, educação, informação e cultura, esporte e lazer, transporte, saúde, autonomia de locomoção e moradia, além de atender a outras necessidades da pessoa humana. As inovações possibilitam crescente superação das deficiências, na medida em que práticas de reabilitação inovadoras e novos produtos acessíveis contribuem para o aumento da funcionalidade, resgatando a dignidade da pessoa, ampliando o leque de suas escolhas autônomas e de vida independente, visando ao mais pleno usufruto da liberdade pessoal. O I Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência contou com a participação de representantes do governo, da sociedade civil, da universidade e da iniciativa privada. Pesquisas, experimentos, novas práticas, serviços e produtos que correspondem aos mais recentes avanços tecnológicos foram apresentados. Com a publicação destes Anais, a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência disponibiliza ao público interessado o conteúdo das sessões do evento, que tenho certeza representa uma valiosa contribuição para as pessoas com deficiência e para todos aqueles que atuam em seu benefício. Dra. Linamara Rizzo Battistella Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo Sumário 8 de dezembro de 2009 ABERTURA OFICIAL DO ENCONTRO Linamara Rizzo Battistella Secretária de Estado - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP 18 Ricardo Tortorella Superintendente do SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – São Paulo, SP 20 Antonino Grasso Secretário Adjunto da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, São Paulo, SP 22 Izabel Cristina Campanari Lorenzetti Prefeita da cidade de Lençóis Paulista, SP 24 Lair Alberto Soares Krähenbühl Secretário de Estado da Habitação de São Paulo, SP 24 TECNOLOGIAS ASSISTIVAS, AJUDAS TÉCNICAS E SEU PAPEL NA SOCIEDADE – MELHORIA NA QUALIDADE DE VIDA Gracinda Tsukimoto (moderadora) Diretora de Serviços de Terapia Ocupacional do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas – Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP Chao Lung Wen Coordenador do Núcleo de Telemedicina e Telessaúde do Hospital das Clínicas – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP 27 Tom Babinszki Diretor da Even Grounds Consultoria de Acessibilidade, Alexandria, Virgínia – EUA 29 Robert Mortimer Coordenador técnico do Laratec – Tecnologia Assistiva para Inclusão da Pessoa com Deficiência Visual – São Paulo, SP 31 Sumário Marcos Pinotti Coordenador do Laboratório de Bioengenharia da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, MG 36 ACESSIBILIDADE, EDUCAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL Alex Vicintin (moderador) Presidente da Plura Consultoria e Inclusão Social, São Paulo, SP José Antonio Borges Coordenador de Projetos de Acessibilidade do Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ 39 Ángel García Crespo Vice-Diretor de Planejamento Docente da Universidade Carlos III e de Responsabilidade Social do Centro Espanhol de Legendas e Audiodescrição de Madri, Espanha 43 Carla Mauch Coordenadora Geral do Mais Diferenças – Educação e Inclusão Social – São Paulo, SP 44 Stella Kochen Susskind Presidente da Shopper Experience – São Paulo, SP 49 TRANSFORMAÇÃO: UMA CIDADE PARA TODOS Milton Jung (moderador) Jornalista e âncora da Rádio CBN – São Paulo, SP Eduardo Flores Auge Secretário Executivo da Comissão Permanente de Acessibilidade – Prefeitura Municipal de São Paulo, SP 53 Luis Antonio A. Silva Vice-Prefeito Municipal de São José dos Campos, SP 56 Mara Gabrilli Vereadora na cidade de São Paulo, SP 58 Osvaldo Franceschi Jr. Prefeito Municipal de Jaú, SP 61 Ailton Brasiliense Presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos – São Paulo, SP 63 Sumário HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NOS MUNICÍPIOS Luiz Baggio Neto (moderador) Assessor da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Fernando Lhata Superintendente de Projetos da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – São Paulo, SP 67 Izabel Cristina Campanari Lorenzetti Prefeita Municipal de Lençóis Paulista, SP 73 Sebastião Misiara Presidente da União dos Vereadores do Estado de São Paulo – São Paulo, SP 77 PROTOCOLO DE INTENÇÕES PARA CRIAÇÃO DO NOTEBOOK DA REABILITAÇÃO E DO NOTEBOOK DA SAÚDE 81 9 de dezembro de 2009 TECNOLOGIAS E SAÚDE - DIAGNÓSTICO E REABILITAÇÃO Daniel Gustavo Goroso (moderador) Coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP Koichi Sameshima Professor Associado do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP 88 André Fabio Kohn Laboratório de Engenharia Biomédica – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, SP 92 Júlio Cezar David de Melo Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Eletrônica da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, MG 95 Marcelo Knörich Zuffo Coordenador do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, SP 100 Sumário Milton Oshiro Coordenador do Laboratório de Bioengenharia do Hospital das Clínicas de São Paulo – Unidade Lapa do Instituto de Reabilitação Rede Lucy Montoro – São Paulo, SP 104 Hermano Igo Krebs Principal Research Scientist & Lecturer – Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Departamento de Engenharia Mecânica Cambridge, MA, EUA 107 MODA INCLUSIVA E CULTURA Daniela Auler (moderadora) Assessora da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo – São Paulo, SP Thaís Tavares Terranova Terapeuta Ocupacional do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro – São Paulo, SP 111 Lara Pozzobon Diretora do Festival de Cinema do Assim Vivemos – Rio de Janeiro, RJ 114 Camila Yahn Diretora do Pense Moda e Editora Assistente da Revista Moda – São Paulo, SP 117 Aline Cristina Fernandes de Nóbrega Analista de Marketing – Vicunha Têxtil S/A – São Paulo, SP 118 A TRANSFORMAÇÃO EM NÚMEROS Cid Torquato (moderador) Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Felícia Reicher Madeira Diretora Executiva da SEADE - Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – São Paulo, SP 121 Felipe Soutello Presidente do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal – Fundação Prefeito Faria Lima – São Paulo, SP 124 José Roberto Sevieri Diretor-Presidente do Grupo CIPA Congressos e Eventos Comerciais – São Paulo, SP 127 Sumário Hélio Zylberstajn Professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP 131 Neyza Furgler Gerente de Pesquisa da Cultura Data – Fundação Padre Anchieta – São Paulo, SP 135 José Eduardo Soler Gestor de Projetos da Secretaria de Gestão Pública do Estado de São Paulo – São Paulo, SP 138 ACESSIBILIDADE NO MOBILIÁRIO URBANO Marco Antonio Pellegrini (moderador) Coordenador de Acessibilidade da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Jorge Gonçalves dos Santos Diretor da Federação Nacional das AVAPES – Associações para Valorização de Pessoas com Deficiência – São Paulo, SP 141 Luciano Marques de Souza Coordenador de Defesa de Políticas para Pessoas Portadoras de Deficiência da Prefeitura Municipal de Santos, SP 149 Daniella Bertini Arquiteta da Assessoria de Projetos da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida – Prefeitura Municipal de São Paulo, SP 153 MERCADO DE TRABALHO João Baptista Cintra Ribas (moderador) Gerência de Desenvolvimento Sustentável – Programa de Empregabilidade de Pessoas com Deficiência – Serasa Experian – São Paulo, SP Vandréia Silva de Oliveira Gerente de Diversidade do Grupo Pão de Açúcar – São Paulo, SP 161 Roberto Siggers Gerente de Sustentabilidade da Cielo – São Paulo, SP 163 João César de Oliveira Lima Júnior PricewaterhouseCoopers – São Paulo, SP 164 Sumário Edson Luiz Defendi Coordenador de Projetos de Atendimento Especializado da Fundação Dorina Nowill para Cegos – São Paulo, SP 165 O MERCADO DE TECNOLOGIAS ASSISTIVAS NO BRASIL Cid Torquato (moderador) Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas – Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Mônica Cavenaghi Diretora Comercial da Cavenaghi – São Paulo, SP 169 Wilson Zampini Diretor Geral da Otto Bock Brasil – São Paulo, SP 170 Ricardo A. Conti Departamento de Engenharia e Desenvolvimento da Ortopedia Jaguaribe Ind. e Comércio Ltda. – Ferraz de Vasconcelos, SP 173 Orlando de Carvalho Diretor Comercial da CARCI – São Paulo, SP 177 AJUDAS TÉCNICAS PARA O ESPORTE E LAZER Vanilton Senatore (moderador) Assessor Técnico de Gabinete – Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Paulo César Marinho Fernandes Proprietário da Mobility Brasil – Goiânia, GO 181 Rivaldo Gonçalves Martins Atleta Paraolímpico – Santos, SP 187 Marco Antonio Guedes de Souza Pinto Ortopedista e Traumatologista – Fundador e Diretor do Centro Marian Weiss – São Paulo, SP ACESSIBILIDADE DIGITAL E GOVERNO ELETRÔNICO Ricardo Kobashi (moderador) Assessor Técnico da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – São Paulo, SP 191 Sumário Tânia Virginia de Souza Andrade Superintendente de Operações do Poupatempo – São Paulo, SP 197 Marco Antonio de Queiroz Consultor em Informática do Centro de Vida Independente Araci Nallin e autor do “A Bengala Legal” – Rio de Janeiro, RJ 199 Vagner Diniz Gerente Geral do Escritório Brasil do W3C – São Paulo, SP 202 SAÚDE E ASSISTÊNCIA Marli Kioyoko Fujikawa Watanabe (moderadora) Responsável Técnica para a Área de Saúde do Deficiente – Grupo Técnico de Ações Estratégicas – Coordenadoria de Planejamento de Saúde – Secretaria de Estado da Saúde – São Paulo, SP Henrique Grego Maia Presidente da Associação Brasileira de Ortopedia Técnica – ABOTEC – São Paulo, SP 205 Júnia J. Rjeille Cordeiro Superintendente do Lar Escola São Francisco – São Paulo, SP 212 Ana Beatriz Proença Médica Fisiatra e Gerente Médica da Unidade da Mooca da Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD – São Paulo, SP 216 Stela Felix Machado Guillin Pedreira |Assistente Técnico de Ações Estratégicas da Coordenadoria de Planejamento da Saúde da Secretaria de Estado da Saúde – São Paulo, SP 219 10 de dezembro de 2009 ECONOMIA DO CONHECIMENTO – TECNOLOGIA E INOVAÇÃO Danilo Piaggesi (moderador) Diretor do Programa Internacional de Economia do Conhecimento (IKEP) 230 Klaus-Peter Wegge Chefe do Centro de Competência em Acessibilidade da Siemens Company – República Federal da Alemanha 234 Sumário David Andrés Rojas Gerente Sênior do Programa de TCI – Diretor da POETA – The Trust for the Americas – Organização dos Estados Americanos - Washington DC, USA 240 Pedro Primo Bombonato Coordenador de Ciência, Tecnologia e Inovação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento – São Paulo, SP 244 Fernando Botelho Diretor da Botelho & Paula Consultoria Empresarial – Curitiba, PR 248 Claudinei Martins Pesquisador – Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações – CPqD – Campinas, SP 253 RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS Tuca Munhoz (moderador) Presidente do Instituto MID para a participação social das pessoas com deficiência Nikola Lafrenz Secretária Executiva do Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais da República Federal da Alemanha – Berlim, RFA 261 Elvira Cortajarena Iturrioz Delegada do Governo Basco na Argentina, representante da Espanha – ES 267 Isabel Cristina Pessoa Gimenes Secretária Municipal da Pessoa com Deficiência – Rio de Janeiro, RJ 271 Vânia Melo Bruggner Grassi Diretora Técnica da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Bauru – APAE – Bauru, SP 275 A COPA DO MUNDO, OLIMPÍADAS E PARAOLIMPÍADAS COMO VETORES DE TRANSFORMAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL Introdução: Linamara Rizzo Battistella Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP Cid Torquato (moderador) Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas – Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência – São Paulo, SP 282 Sumário Alcino Reis Rocha Assessor Especial do Futebol – Ministério do Esporte – Brasília, DF 283 Luis Salles Assessor da Presidência da São Paulo Turismo – SPTuris – São Paulo, SP 286 Roque de Lázaro Rosa Assessor da Presidência do Metrô – São Paulo, SP 291 Nilce Maria Costa dos Santos Assessora da Presidência da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO – Ministério da Defesa – Brasília, DF 297 Andrew George William Parsons Presidente do Comitê Paraolímpico Brasileiro – Brasília, DF 302 Dia 8 de dezembro de 2009 Abertura Oficial do Encontro Mestre de Cerimônia: O objetivo deste evento é promover uma grande discussão sobre a importância das tecnologias assistivas e ajudas técnicas no processo de reabilitação e no dia-a-dia das pessoas com deficiência, com mobilidade reduzida permanente ou temporariamente, idosos e seus familiares, cuidadores, profissionais da saúde, educadores e, em grande medida, de toda a sociedade, cada vez mais diversa e inclusiva. Paralelamente, esta iniciativa visa formatar a fabricação e a oferta desses produtos no mercado nacional, estimulando a inovação, a produção em larga escala e seu barateamento para o público consumidor, garantindo assim uma melhor qualidade de vida para aqueles que deles necessitam. Convidamos para compor o palco a senhora Linamara Rizzo Battistella, Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, representando neste ato o Governador do Estado de São Paulo, José Serra; o Sr. Lair Alberto Soares Krähenbühl, Secretário de Estado da Habitação de São Paulo; o Sr. Antonino Grasso, Secretário Adjunto da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, neste ato representando o excelentíssimo Prefeito Gilberto Kassab; Izabel Cristina Campanari Lorenzetti, Prefeita da cidade de Lençóis Paulista e o Sr. Ricardo Tortorella, superintendente do SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - de São Paulo. Nós gostaríamos de registrar e agradecer a presença dos senhores Gilberto Wachtler, do Primavera, Vereador de Santo André; Marcos Gonçalves, Presidente da FENAVAPE – Federação Nacional das Avapes; Sylvia Cury, presidente da AVAPE – Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais; Valter José Augusto Ferreira, representando o Instituto de Pesquisas Tecnológicas; Roberto Curi, representando a prefeita do Guarujá, Sra. Maria Antonieta de Brito; e Daiane Oliveira de Paula, representando a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Programa Inclusão Eficiente. Para abertura dos trabalhos, ouviremos a Dra. Linamara Rizzo Battistella, Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Abertura Oficial do Encontro Dra. Linamara Rizzo Battistella: Boa tarde. Que prazer estar aqui com vocês para tratar de um assunto tão importante como tecnologia e inovação! Exatamente porque estamos tratando deste tema, não poderia deixar de estar presente conosco nesta solenidade de abertura o Dr. Lair Alberto Soares Krähenbühl. O Dr. Lair inovou na questão da habitação e inovou de forma surpreendente na garantia da adoção do desenho universal nas moradias de interesse social, o que significa uma grande inovação tecnológica e a garantia do direito do uso da habitação por todos. Eu quero agradecer a presença dele aqui. Eu quero cumprimentar o Antonino Grasso, o Secretário Adjunto da Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, representando o nosso querido Prefeito Gilberto Kassab. Quando falamos em inovação, não podemos deixar de lembrar a importância da criação dessa Secretaria, no Município e no Estado, que efetivamente tratam da questão que não é nova, dos direitos humanos, mas exigia um olhar diferente e inovador para garantir que todos os humanos com deficiência fossem assistidos, entendidos e incluídos dentro das políticas do Estado e do Município. Cumprimento a Izabel Cristina Campanari Lorenzetti, Prefeita da cidade de Lençóis Paulista, essa cidade que está realmente “fazendo o planeta tremer”, com todas as mudanças na articulação da saúde e da educação, criando um espaço conjugado e articulado para que as crianças com deficiência tenham o seu turno na escola convencional e o acesso garantido ao sistema de saúde. Cumprimentando a Izabel, eu cumprimento também todos os Prefeitos e Vice-Prefeitos aqui presentes. Quero cumprimentar o Ricardo Tortorella, superintendente do SEBRAE, e dizer da importância de ter o SEBRAE presente. Quando falamos de inovação e tecnologia, imediatamente lembramos da importância do SEBRAE, das nossas incubadoras e da garantia de que podemos transformar cada uma dessas ideias, de inclusão e acessibilidade, em produtos que podem significar uma nova cadeia econômica, um novo potencial de geração de renda para produtores e, certamente, uma oportunidade adicional para que as pessoas com deficiência possam se expressar funcionalmente, na plenitude da sua condição, significando mais acesso ao trabalho, à educação, mais garantia de autonomia e, portanto, maior inclusão social. Cada um dos presentes aqui, o Gilberto, do Primavera, Vereador de Santo André, e a esposa tão simpática, o Marcos Gonçalves, a Sylvia Cury, todos os coordenadores, assessores da Secretaria, mas sobretudo os nossos palestrantes internacionais (e eu quero cumprimentar a todos, cumprimentando o Hermano Igo Krebs, do MITMassachussets Institute of Technology), eu quero dizer para os senhores da nossa 18 Abertura Oficial do Encontro alegria de tê-los aqui. Nesta primeira amostra de tecnologias e inovações, trouxemos o que foi identificado como o que existe de mais importante, de mais expressivo neste momento novo por que passa o Estado de São Paulo e a própria sociedade, entendendo a importância de que se busquem soluções dentro da Universidade, que se permita transformá-las em produtos dentro da indústria e do comércio, para que se efetive esta condição de uma sociedade para todos. É importante observar que cada um dos parceiros desta mostra traduziu o que há de melhor nesta área: uma exposição pequena, com 40 ou 50 expositores, mas que pretende ser o embrião, a ação inicial de uma exposição que vai se repetir anualmente, para trazer as melhores inovações, os melhores trabalhos e garantir que, a partir desse intercâmbio, da conexão entre pesquisadores, entre os pesquisadores e o mercado, possamos efetivar o compromisso de garantir ajudas técnicas de qualidade e certificadas, para melhorar a condição funcional de todas as pessoas e garantir que as pessoas com deficiência tenham uma inclusão, com qualidade, dentro da sociedade. O entendimento sobre esse conceito de inovação, sobre esse mercado que se prepara para receber esses pesquisadores e essas pesquisas, é o foco do nosso encontro hoje. Trouxemos as pessoas que efetivam o conceito de inovação, pessoas que vão discutir as apostas que o Estado e a iniciativa privada têm feito dentro deste setor e trouxemos os pesquisadores, para que eles entendam a importância desse trabalho no governo José Serra. O Governo do Estado de São Paulo tem tido um papel pioneiro desde a era de Montoro. No dia 3 de dezembro, assistimos à aproximação das grandes lideranças do movimento pelos direitos das pessoas com deficiência, que se reuniram no lançamento do Memorial da Inclusão da Pessoa com Deficiência na nossa Secretaria. Foi uma ação pioneira, inovadora, que traduz o registro histórico e o respeito, sem perder de vista a modernidade, as condições que garantem o acesso à informação. Na sequência, esta exposição mostra o que existe de mais importante no mundo de tecnologia e pode estar disponível para as pessoas com deficiência. Estamos falando de um mundo novo, do Estado como articulador, como fomentador de um novo ciclo econômico. O Governador José Serra nos encomendou uma grande ação na área da saúde. É por isso que a Rede de Reabilitação Lucy Montoro já está funcionando. O Governador nos recomendou que não nos esquecêssemos da dignidade e do valor da moradia, razão pela qual o Dr. Lair e eu pudemos assistir à finalização do programa de moradia inclusiva dentro das habitações de interesse social. 19 Abertura Oficial do Encontro Agora, estamos falando da tecnologia que vai perpassar o nosso cotidiano para garantir autonomia, funcionalidade e inclusão social. Cada um dos senhores expositores sintase abraçado pelo Governador José Serra, entendendo que este momento, associado ao SEBRAE, às universidades e ao Governo do Estado, é o momento de celebrarmos uma nova iniciativa. Hoje à tarde, estamos assinando um protocolo com a Microsoft, da aliança pela acessibilidade, para criar um novo produto, que vai significar muito para os profissionais da área da saúde e da reabilitação, mas também para as pessoas com deficiência. Na quinta-feira, faremos o lançamento formal do Núcleo de Inovação e Tecnologia, uma parceria da Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência, com recursos já disponibilizados, para que tenhamos um laboratório de multiusuários e a possibilidade de trazer mais desenvolvimento para esta área. Agradeço a participação de cada um dos senhores; quero dizer da alegria de nós termos a oportunidade de ver isto acontecer. Esta é a primeira edição; as outras serão certamente muito mais atraentes e muito mais ambiciosas, mas “a primeira a gente nunca esquece”. Mestre de Cerimônia: Nós registramos e agradecemos a presença da senhora Mônica Câmara, representando o Vereador Antônio Carlos Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de São Paulo, da Dra. Cristina Müller, representando o Vereador Wadih Mutran, da Câmara Municipal de São Paulo. Ouviremos Ricardo Tortorella, superintendente do SEBRAE de São Paulo. Sr. Ricardo Tortorella: Bom dia a todos, senhoras e senhores aqui presentes. É um prazer e uma honra ter a oportunidade de falar um pouco; cumprimento os nossos secretários, Lair, Linamara. É um prazer mesmo poder estar aqui, parabenizando e cumprimentando. Eu sou testemunha da garra e da energia empenhadas para que este evento acontecesse na cidade de São Paulo. Cumprimento também o Sr. Antonino Grasso, da Prefeitura de São Paulo, a nossa Prefeita Izabel, parceira do SEBRAE de Lençóis Paulista. Em nome do SEBRAE, da micro e pequena empresa do Estado de São Paulo, eu fiz questão de vir dar este testemunho da importância da semente que estamos lançando aqui hoje. É um mercado; sabemos da importância da micro e pequena empresa para a nossa sociedade e para a realidade do Brasil. De cada cem estabelecimentos que abrem a porta diariamente, 98 são de pequeno porte, micro e pequenas empresas, que empregam mais de 60% das carteiras assinadas na nossa sociedade. As micro e pequenas empresas têm alguns grandes desafios, entre os quais inserir-se no mundo de tecnologia e inovação. Inovar processos e produtos é um grande desafio; as universidades, a academia, os recursos, o dinheiro 20 Abertura Oficial do Encontro para a tecnologia ainda estão longe da micro e pequena empresa. Nós temos tentado aproximá-los e isso está mudando no Brasil, particularmente no Estado de São Paulo. Juntamente com tudo isso, a semente que vemos aqui hoje “inibe” o segundo grande problema da micro e pequena empresa: mercado. Várias vezes, o problema da micro e pequena empresa não é ser “micro” ou “pequena”, mas estar sozinha, não ter condições de competição, num mercado altamente competitivo. Estamos falando de um mercado que podemos enxergar com estes 40 stands pequenos, começando no Brasil, no Estado de São Paulo. Salvo engano, é de 14 milhões, oficialmente, o número de portadores de alguma deficiência. Esse número pode ser estendido para 15 ou 20 milhões, dependendo do conceito utilizado, 10% da população brasileira. Além disso, para analisar e fomentar esse mercado, a população brasileira de terceira idade envelhece a cada ano mais tarde e, portanto, tem mais necessidades. Há 20 anos, na média, o brasileiro morria com 65 anos; hoje é com 73 anos de idade. Isso significa adequar o modo de vida dessas pessoas, muitas delas precisarão de banheiros, de acessórios especiais nas suas casas, no escritório, no dia-a-dia, no cotidiano, no acesso, no comércio, nos serviços, no carro, em todas as facilidades. Nós, do SEBRAE, não temos dúvida do mercado que surge: 10% dos brasileiros já fazem parte desses mercados. Se incluirmos os idosos, temos praticamente um terço da população brasileira dentro desse mercado que precisa de produtos específicos. Muitos dos produtos atualmente disponíveis ainda são importados; precisamos nacionalizá-los. Queremos que a micro e a pequena empresa façam parte dessa nacionalização, produza e entenda esse mercado, a força e pujança que ele terá nos próximos cinco ou dez anos. Em nome do SEBRAE, eu queria mais uma vez cumprimentar e parabenizar a nossa Secretária Linamara, que liderou um processo para tornar este evento viável. Em nome do SEBRAE e dos empresários de São Paulo, agradecemos. Conhecemos a força desse mercado e a pujança que ele terá nos próximos anos. Muito obrigado, um bom dia para todos. Mestre de Cerimônia: Ouviremos o senhor Antonino Grasso, Secretário Adjunto da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, neste ato representando o excelentíssimo Prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. 21 Abertura Oficial do Encontro Sr. Antonino Grasso: Boa tarde a todos, eu gostaria de trazer as saudações do Sr. Prefeito Gilberto Kassab, em nome do qual saúdo a excelentíssima Secretária Linamara, o Secretário Lair, o nosso amigo Ricardo, do SEBRAE, e a nossa querida Prefeita de Lençóis Paulista. Eu vou fazer um breve relato da Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida e acho isso importante, porque é um histórico que vem a seguir, depois desses quase cinco anos de criação da Secretaria. Em 2005, depois de um gesto extremamente forte e brilhante que é peculiar do nosso excelentíssimo senhor Governador, na época Prefeito de São Paulo, foi criada por decreto a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida do Município de São Paulo. De lá para cá, ela tem atuado de maneira cada dia mais eficiente. Em 2007, o Prefeito Gilberto Kassab consagrou definitivamente a Secretaria, com um projeto de lei enviado à Câmara Municipal e hoje atua em conjunto com as outras Secretarias do município, em um trabalho diário e contínuo para que se possa, cada vez mais, melhorar a acessibilidade e a inclusão social no nosso município. Trabalhamos muito, inclusive numa parceria cada vez melhor com a Secretaria do Estado, com a nossa queridíssima Secretária Linamara, que nos ajuda muito e com a qual colaboramos em muitas coisas. Eu vou apresentar a vocês alguns dados do nosso trabalho. Temos uma grande atividade, por exemplo, na área de educação, cultura, trabalho e esporte. Hoje nós temos, no campo da empregabilidade, o nosso Programa de Inclusão Eficiente, que já conseguiu pôr no mercado de trabalho mais de 4.600 pessoas. É um serviço gratuito que funciona na Prefeitura, onde existe um banco de dados e se cadastram tanto as pessoas que procuram emprego como as empresas que estão procurando empregados. Hoje, temos nesse banco de dados, mais ou menos 16 mil pessoas cadastradas. Fazemos um trabalho com municípios da Brasil inteiro, que nos contatam cada vez mais para que levemos a qualidade do nosso trabalho, desenvolvida ao longo desses anos. Damos cursos em vários municípios, para que possam ser implantadas lá diretorias, secretarias, órgãos que possam trabalhar na área da acessibilidade. No Governo do Estado, esta é uma prioridade, inclusive por disposição do excelentíssimo senhor Governador, que quer que todos os municípios do Estado 22 Abertura Oficial do Encontro tenham alguém que cuide da acessibilidade. É uma questão muito séria e muito importante. Nós atuamos no Programa Sem Barreiras no Trabalho, que orienta profissionais de RH para a inclusão profissional de pessoas com deficiência. Na realidade é um trabalho árduo, junto com todo o aparato das Secretarias de Município, com as quais temos uma atuação transversal e conseguimos, com isso, desenvolver os trabalhos com uma dinâmica maior. Na área da Engenharia e Arquitetura, nós já formamos mais de 1.700 arquitetos e engenheiros que acessaram os nossos cursos, e hoje têm a qualificação em acessibilidade. Isso é importante porque a Engenharia e a Arquitetura são a vida da cidade e, na criação dos novos espaços públicos, de novas edificações, os técnicos, engenheiros e arquitetos têm que estar sensibilizados e capacitados para que se criem espaços, construções, edificações cada vez mais inclusivas e acessíveis. O Município oferece um serviço altamente capacitado na área da transporte público, com uma frota de mais de 3.600 ônibus acessíveis, bilhetes gratuitos para pessoas com deficiência, enfim, uma série de atuações importantes conduzidas no dia-a-dia do nosso trabalho. Sobre a atividade que está sendo desenvolvida neste evento muito importante, que a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência organizou em São Paulo, este evento internacional, tenho a dizer que tudo o que se refere às conquistas tecnológicas na área de acessibilidade e inclusão social é fundamental para assegurar cada vez mais que a inclusão possa ser sempre melhor, com todas as tecnologias que hoje existem no mundo moderno. Eu queria terminar dando os parabéns a uma pessoa pela qual eu tenho muita estima, admiração e respeito, que é a Secretária Dra. Linamara Rizzo Battistella. A senhora é um exemplo a ser seguido por todos nós. Deus lhe dê muita luz e a abençoe sempre. É um exemplo de vida pública e privada, no que se refere à causa do deficiente físico, que nos inspira profunda admiração. Permita-nos citar uma frase do filósofo Aristóteles: “Felicidade é a ação do espírito que manifesta a virtude.” Nada mais do que a senhora merece nesse momento. Um agradecimento a todos vocês, organizadores e participantes deste evento, e que nos próximos dias possamos ter bastante sucesso. Muito obrigado a todos. Mestre de Cerimônia: Nós gostaríamos de registrar e agradecer a presença do senhor José Oliveira Justino, Presidente do Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa 23 Abertura Oficial do Encontro com Deficiência de São Paulo. Com a palavra a senhora Izabel Cristina Campanari Lorenzetti, Prefeita da cidade de Lençóis Paulista. Sra. Izabel Cristina Campanari Lorenzetti: Sra. Secretária Dra. Linamara, Sr. Secretário Dr. Lair, Sr. Antonino, Secretário e representante do prefeito Kassab, Sr. Ricardo Tortorella, do SEBRAE, é uma honra estar ao lado dos senhores e da senhora nesta abertura do Encontro Internacional que olha para a acessibilidade. É um momento muito importante e, representando os meus colegas, Prefeitos e Prefeitas, acho que é o momento em que nos encontramos e temos a oportunidade de olhar o global e pensar nas nossas cidades e, portanto, no local onde vivemos. Aqui, poderemos ouvir e estamos ouvindo pessoas que trazem de outros países os seus conhecimentos, as suas experiências. Cada um de nós vem e traz um pouco daquilo que vive, daquilo que acredita. Pensar a nossa cidade sem pensar na possibilidade de todos usufruírem de tudo, é pensar um pedaço da cidade. A cidade é de todos. Quando se programa a cultura, quando se pensa em educação, em saúde, no lazer, na habitação, na mobilidade urbana, temos que rever as nossas cidades e pensar se realmente elas são acessíveis a todos os seus cidadãos. Cabe a nós, Prefeitos, pensar a cidade e trabalhar pela acessibilidade na cidade, começando pela educação, acolhendo a todos na escola de ensino regular, mas com responsabilidade, e não apenas transformando os nossos prédios em prédios fisicamente acessíveis, mas tornando as nossas escolas pedagogicamente acessíveis. Cabe a nós uma grande tarefa; temos uma líder do Estado de São Paulo, a Dra. Linamara, que comanda esse processo neste momento e o faz com maestria. Além do conhecimento, a Dra. Linamara tem energia suficiente para nos transmitir a vontade e a coragem para enfrentar os desafios do dia-a-dia. Um evento como este é para ser comemorado. Eu tenho a honra, portanto, de representar meus colegas nesta abertura e parabenizar a todos aqueles que, com o seu trabalho e organização, possibilitam que nos unamos hoje, amanhã e depois para aprender mais e para buscarmos cada vez mais aquilo que é direito de todos: ser feliz, crescer e se desenvolver nos nossos municípios. É lá onde estamos e lá temos que pensar a vida de cada cidadão brasileiro. Muito obrigada. Mestre de Cerimônia: Ouviremos o Secretário de Estado da Habitação de São Paulo, Lair Krähenbühl. Sr. Lair Krähenbühl: Boa tarde a todos. Quero fazer apenas uma saudação e desejar que este momento de reflexão, que está ocorrendo durante o dia e amanhã, possa ser 24 Abertura Oficial do Encontro do maior proveito a todos. Eu tenho o privilégio de ter como amiga e Secretária, colega de governo, a Linamara, que aliás já era Secretária antes de criar a Secretaria. Os que estão sorrindo sabem que ela nunca deixou de lutar por essa causa e, três meses antes de assumir, já estava me cobrando algumas ações. Essas pessoas sorriem porque sabem da garra da Linamara, da vontade e, mais do que tudo, da sua inteligência e da simplicidade com que ela leva um assunto tão complexo. Quero cumprimentar o Dr. Ricardo Tortorella, do SEBRAE, parceiro fundamental nas ações de empreendedorismo da iniciativa pública e privada. Cumprimento também o meu caro Secretário Antonino Grasso, Secretário do Município de São Paulo, que coordena um trabalho novo, uma Secretaria jovem, mas que já vem abençoada com uma energia forte e boa, das coisas mais claras. A Sra. Prefeita de Lençóis também é uma pessoa determinada, que aprendi a admirar por conta das causas da habitação. Nesta singela menção, eu queria dizer que a questão da inclusão é uma política de Estado da habitação. Não é um programa de governo; é uma política de Estado. Nós fizemos uma parceria com a Secretária Linamara e a sua equipe; os nossos técnicos trabalharam por mais de quatro meses; colocamos como política de Estado o desenho universal, a habitação inclusiva. A reflexão sobre o desenho universal é da maior importância, porque temos que aproveitar a escala com a qual o Estado trabalha, com 70 mil unidades em construção, e fazer projetos que sejam totalmente adaptados, desde a escolha do terreno. Quando a prefeitura doa um terreno para a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), temos que verificar que ele seja acessível, senão não o aceitamos. Temos essa preocupação de mudança de paradigma e diretriz. Ela passa também pela questão do transporte: entendemos que não adianta nada morar num conjunto todo adaptado à acessibilidade, se não for possível chegar ou sair dele. Por conta disso, mudamos os projetos. O Dr. Fernando Lhata vai mostrar à tarde como estamos avançando no Governo do Estado. Todas as novas edificações do Estado estão adaptadas, na área da habitação popular. Houve um aumento dos custos; muitas vezes nos perguntamos se teremos que fazer menos unidades, porque custa um pouco mais caro. Realmente, o custo é até 10% maior, mas é uma casa para a vida toda, que não precisa ser adaptada, quebrada. As patologias que vemos na habitação, por falta de um corredor mais largo, por uma porta que abre para dentro, impedindo o acesso de alguém que queira socorrer uma pessoa na cadeira de rodas dentro de um banheiro... Quanto custa a mudança de dobradiça? Quanto custa a mudança de um peitoril, que normalmente tem um 1,10 m, para 80 cm, para permitir que o cadeirante possa enxergar para fora. Quanto custa mudar a altura de um 25 Abertura Oficial do Encontro interruptor, para 20 cm mais baixo? Não custa nada a mais numa habitação. Por conta disso, adotamos como política, com muita honra eu tenho tido a oportunidade de estar com a Linamara mudando esse paradigma, usando o poder de escala da CDHU, que constrói 60 mil unidades por ano, com todos os projetos adaptados. Vamos usar o nosso poder de indução e tentar mudar e entender esse ciclo de vida. Para terminar, tenho a satisfação de informar que vamos inaugurar no dia 22, em Avaré, o primeiro projeto para idosos sós. A política de asilamento é muito triste; o idoso só é mais triste ainda. Assim, estamos inaugurando pequenas vilas, aos modos antigos, como as que haviam na cidade de São Paulo antigamente, mostrando que a figura do idoso pode ser assistida efetivamente. Será uma habitação equipada, na qual a Prefeitura fará a condução. Nós vamos construir e a gestão do Conselho Municipal do Idoso vai garantir a habitação para toda a vida do idoso. Quando o idoso falecer, o Conselho Municipal do Idoso indica outro idoso. É um usufruto vitalício, totalmente adaptado. Eu quero convidar a todos a conhecer e participar de uma nova política habitacional inclusiva. Muito obrigado a todos. 26 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida A busca da qualidade de vida pela pessoa com deficiência é uma constante e repercute não só em seu dia-a-dia, como também no de seus familiares, amigos e colegas de trabalho. As inovações tecnológicas e as ajudas técnicas têm como principal missão contribuir para melhorar, transformar e criar um ambiente mais receptivo para as pessoas com deficiência, mas também, em grande medida, para toda a sociedade. Gracinda Tsukimoto (moderadora) – Diretora de Serviços de Terapia Ocupacional do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP Chao Lung Wen – Coordenador do Núcleo de Telemedicina e Telessaúde do Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP Tom Babinszki – Diretor da Even Grounds Consultoria de Acessibilidade, Alexandria, Virgínia - EUA Robert Mortimer – Coordenador técnico do Laratec - Tecnologia Assistiva para Inclusão da Pessoa com Deficiência Visual - São Paulo, SP Marcos Pinotti – Coordenador do Laboratório de Bioengenharia da Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, MG Chao Lung Wen: Num apanhado muito rápido, enxergamos a telemedicina como um processo que faz a união entre a humanização e a tecnologia, para promover algo muito maior, a chamada “cadeia produtiva de saúde”, ou seja, o desenvolvimento desde a prevenção até a reintegração social das pessoas. Essa tecnologia está acessível a todos. Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Como desenvolver uma rede de relacionamentos? O complexo do Hospital das Clínicas está se conectando ao Instituto Lucy Montoro e, portanto, à Rede Lucy Montoro. Por meio da telemedicina, podem-se interligar os grandes centros, permitindo o compartilhamento de experiências. Com a tecnologia de videoconferência, que está se tornando comum, os grandes centros podem compartilhar experiências entre os seus especialistas para resolver um problema. Do ponto de vista tecnológico, há avanços por este caminho. Para que serve uma rede de telemedicina? Está sendo desenvolvido um centro de convenção digital interativo. O seu propósito é unir os especialistas para desenvolverem atividades entre si, em termos de excelência tecnológica. Por meio do conceito de tele-homecare, consegue-se dar continuidade ao atendimento em domicílio. Utilizando-se um notebook com recursos de webconferência e consultório digital e acessibilidade, o profissional consegue complementar o atendimento em domicílio. Assim, o processo de telehomecare é uma ferramenta complementar. Outra linha de desenvolvimento é o chamado IP-saúde, que consiste em fornecer um conjunto de informações para melhorar a qualidade de vida. Para uma pessoa com deficiência visual, o IP-rádio é um bom mecanismo de transmissão de conhecimento. Outra opção é a IP-TV, e assim por diante. São diversos os tipos de tecnologia, mas o ponto importante é a rede de relacionamentos e vínculos sociais. O IPsaúde tem como propósito formar uma rede de vínculos sociais em que se desenvolve uma parceria, um trabalho em conjunto com os pacientes e seus familiares, para promover a qualidade de vida de uma pessoa com deficiência. Assim, há todo um conjunto de ações tecnológicas: consultórios digitais, telehomecare (apoio em domicílio), IP-saúde e o centro de convenção digital interativo, promovendo a união de especialistas. O notebook da reabilitação é um equipamento que está sendo estruturado para prover a inclusão digital e a acessibilidade. As suas diferentes facetas de serviços incluem os já mencionados IP-saúde e o centro de convenção digital, além de bibliotecas e livrarias digitais. Tudo isso não é ficção; é um fato que já existe hoje e pode ser oferecido a todos. O conceito de telecuidados domiciliares (o tele-homecare) envolve uma equipe multiprofissional de centros de excelência, complementando a assistência e o apoio para a pessoa com deficiência e seus familiares. O conceito de health 28 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida delivery do IP-saúde permite levar conhecimentos e prevenção para dentro da casa do usuário, a partir de um recurso tecnológico simples e interativo. Por último, algumas ações utilizam a computação gráfica para explicar conhecimentos um pouco mais complexos. São animações que fazem parte do acervo do notebook da reabilitação, do projeto “Homem Virtual” de computação gráfica, que permitem compreender mais facilmente aspectos de amputações, deficiência auditiva e deficiência visual. Por exemplo, podemos explicar quais os músculos envolvidos em determinados movimentos que precisam ser desenvolvidos para que a pessoa volte a ter uma marcha normal ao utilizar uma prótese. Outra utilidade desses recursos é nas escolas, que muitas vezes precisam treinar e qualificar professores a apoiar pessoas com necessidades especiais. O notebook da reabilitação também tem esse propósito educacional, com a criação do conceito de “museus educacionais”. A conectividade certamente permitirá uma maior união das pessoas com deficiência aos profissionais envolvidos no seu atendimento, para a melhoria da sua qualidade de vida. Tom Babinszki: Muito se pode obter quando a inclusão e as tecnologias assistivas são bem empregadas, minimizando os efeitos da problemática e proporcionando informações às pessoas com incapacidades. A tecnologia assistiva preenche as lacunas entre as pessoas com alguma incapacidade e as pessoas que não têm aquela incapacidade. A definição é muito vaga, mas entraremos em mais detalhes. Em certos casos, a única possibilidade é fornecer às pessoas com incapacidades tecnologias especialmente desenvolvidas para elas. Por exemplo, no caso da leitura para pessoas cegas, por mais que nos esforcemos, não conseguiremos fazer um cego enxergar. Portanto, precisamos oferecer outro meio para que ele consiga ler. Em relação à leitura, a tecnologia deve ser capaz de assumir esse papel. Outra questão é a da mobilidade. O cego precisa da tecnologia para moverse, mesmo que seja uma simples bengala branca. O mesmo vale no caso de uma cadeira de rodas, para as pessoas que não podem caminhar. É preciso também dispor de alternativas para as informações sonoras. As pessoas que não podem ouvir precisam de algum método alternativo para que as fontes sonoras sejam convertidas em um formato que elas possam compreender, seja por meio da leitura, da linguagem de sinais, etc. Uma tecnologia assistiva 29 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida pode ser necessária também para que a pessoa com incapacidade forneça informações, se ela não puder usar as mãos no teclado do computador, por exemplo. Entretanto, há grandes problemas relacionados ao uso das tecnologias assistivas. O uso de tecnologias específicas deve ocorrer quando é realmente necessário, pois é muito difícil produzi-las e o seu público-alvo é muito pequeno. Há um grande número de pessoas com incapacidades, mas pessoas diferentes têm incapacidades diferentes. Quando se planeja produzir algum tipo de tecnologia assistiva, percebe-se que, em comparação com a população inteira, o público-alvo que dela se beneficiará é realmente muito pequeno. Portanto, a produção desse tipo de tecnologia torna-se muito dispendiosa. É preciso criar a tecnologia, os protótipos, dispor dos equipamentos que permitem criar a tecnologia e depois realmente colocar o produto desenvolvido em produção. Outro problema, ao menos nos Estados Unidos, é o seguinte: como essas tecnologias são dispendiosas, a maioria das pessoas com incapacidades não tem meios para adquiri-las do próprio bolso. Elas precisam de ajuda governamental ou de alguma outra fonte para obter os equipamentos. Infelizmente, algumas empresas têm ciência dessa condição e aumentam artificialmente seus preços, pois o governo é que pagará pelos produtos, tornando-os ainda mais caros. Assim, caso uma pessoa queira comprá-los com recursos próprios, terá que pagar preços nada razoáveis. A solução é utilizar o máximo possível as tecnologias de inclusão para produzir equipamentos de acessibilidade. A vantagem é que, produzindo esses equipamentos para um número muito maior de pessoas, o custo da tecnologia em si é muito mais baixo que a contrapartida em tecnologia assistiva. Há um custo de desenvolvimento desses equipamentos de acessibilidade, mas ele corresponde apenas a uma pequena fração do custo de produção. A título de comparação, um sistema personalizado de GPS poderia custar US$ 900 ou US$ 1.000, enquanto o equipamento de GPS produzido em larga escala custa apenas US$ 100 nas lojas. A mesma disparidade se pode aplicar aos equipamentos de acessibilidade para uso geral e os itens de tecnologia assistiva, voltados para um público-alvo muito mais restrito. 30 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Outro exemplo é o dos telefones celulares. Para um cego utilizar um telefone celular, ele precisa dispor de um “leitor de tela”, muito mais caro que o telefone em si. Quando a Apple lançou o iPhone, o leitor de tela já fazia parte do produto. Podemos também pensar em itens de uso doméstico, como um termostato ativado por voz, que também “fala” com o usuário. É um produto “de inclusão”, que pode ser adquirido numa loja comum. Assim, basicamente, pessoas com diferentes incapacidades podem utilizar esse tipo de produto. Nos sistemas de entretenimento, soluções simples como marcas táteis em botões diferentes permitem reconhecê-los e distingui-los entre si. No final, o investimento em tecnologia assistiva acaba resultando em ganhos. O desenvolvimento da tecnologia assistiva é uma excelente ideia, mas esta deve sempre ser empregada de maneira sensata e produzida quando é realmente necessária. Em certas situações, uma combinação das tecnologias assistiva e de inclusão é a melhor solução. Por exemplo, uma pessoa com incapacidade pode ir a uma loja e comprar um computador normal, mas às vezes necessita de tecnologias específicas para tornar o computador acessível, utilizando-o com algum tipo de equipamento assistivo. No desenvolvimento de produtos de tecnologia assistiva, é muito importante conhecer as pessoas que os utilizarão. O índice de sucesso é muito maior quando se sabe para quem o produto é desenvolvido e quais as suas necessidades. Às vezes, grandes ideias, quando implementadas, não chegam a lugar algum, pois na verdade não são úteis para as pessoas com incapacidades. Robert Mortimer: Os produtos de tecnologia assistiva transformam as sensações do mundo; os sinais e informações são traduzidos para um sinal tátil, sonoro ou visual adaptado, que permite à pessoa com deficiência visual obter informações, entender e evoluir naquele ambiente. A tecnologia assistiva não substitui o olho, de maneira biônica, como por exemplo o implante coclear para uma pessoa com deficiência auditiva voltar a escutar. A tecnologia assistiva para pessoas com deficiência visual não é utilizada para dar acesso direto ao mundo, mas para dar acesso à tecnologia não acessível a essas pessoas. Como todos dependemos cada vez mais da tecnologia, em todas as esferas, as pessoas com deficiência visual enfrentam um desafio muito grande para ter acesso a ela. Esse é o papel da tecnologia assistiva. 31 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Fazendo um histórico rápido, um dos primeiros exemplos de tecnologia assistiva, na verdade milenar, é a bengala. Há relatos bíblicos de cegos que utilizavam bengalas. Provavelmente, ela já era utilizada bem antes. Embora seja um instrumento muito simples, é extremamente eficiente em oferecer à pessoa com deficiência visual informações diretas sobre o mundo. Portanto, a bengala talvez seja uma exceção à regra geral da tecnologia assistiva. A bengala realmente dá informações muito úteis sobre a superfície sobre a qual o cego caminha: permite detectar texturas, se o solo está úmido, obstáculos, desníveis, buracos e outros acidentes que impedem o caminho do cego. Portanto, é uma tecnologia simples e fantástica. Pode-se dizer que o desenvolvimento de produtos de tecnologia assistiva realmente deslanchou na França, no século XVIII, quando um educador, chamado Haüy, viu um espetáculo no qual pessoas com deficiência eram ridicularizadas numa feira pública. Esse evento motivou Haüy a criar a primeira escola de ensino formal para pessoas cegas. Ele adotou um sistema de escrita em alto-relevo, de maneira bem simples e intuitiva. Foi uma das primeiras inovações tecnológicas nesse sentido. Depois disso, diferentes alfabetos mais simplificados foram sendo desenvolvidos em vários países (Inglaterra, França e Estados Unidos, entre outros), para permitir a leitura tátil e uma maior facilidade no reconhecimento e na produção de material para pessoas com cegueira. Pouco depois, um estudante francês adolescente, Louis Braille, adaptou o sistema criado por um militar francês, para permitir que os soldados passassem mensagens à noite no escuro, por meio do tato, evitando que acendessem a luz e, com isso, denunciassem a sua presença. Quando esse militar, Charles Barbier, apresentou o sistema a Louis Braille, que estudava numa escola para cegos, este percebeu a utilidade do produto, simplificou o sistema de Barbier, combinando muitos pontos, e nos legou o sistema braile, utilizado até hoje. Ao longo dos séculos XIX e XX, foram criados sistemas de escrita e produção braile que se tornaram o principal produto de tecnologia assistiva para permitir que pessoas com deficiência visual tivessem acesso à informação, à cultura e pudessem se expressar utilizando a sua própria língua, compreensível a todos. Posteriormente, foram desenvolvidas máquinas de impressão, para produzir material em braile em grande quantidade, como livros e produtos culturais. 32 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Desde então, ocorreram pequenos avanços e ajustes, mas tivemos que aguardar até meados do século XX, depois da II Guerra Mundial, para o advento da informática. A informática representou um ponto fundamental na história dos produtos de tecnologia assistiva para pessoas com deficiência visual. Os primeiros computadores eram enormes, ocupavam uma sala inteira e não eram muito mais poderosos do que uma pequena calculadora eletrônica dos dias de hoje. O Apple II, um dos primeiros computadores pessoais, foi lançado em 1980 e permitiu o acesso de muitas pessoas à informática, incluindo pessoas com deficiência visual. No período de 1968 a 1980, houve um big bang, uma explosão de produtos tecnológicos sofisticados, surpreendentes e inéditos, que plantaram as sementes de um grande número de produtos de tecnologia assistiva que existem hoje. O Optacon permitia a leitura de um documento impresso em tinta, com uma câmera que passava sobre a sua superfície e uma série de 120 pinos vibratórios que formavam uma “imagem tátil” do texto. O sistema foi criado por um engenheiro americano cuja filha era cega. O Instituto Tecnológico de Massachusetts desenvolveu um computador conectado a uma impressora braile, aproximadamente em 1970. Em 1980, surgiu um sistema que permitia a gravação das informações de um texto em fita cassete, que era lida em braile por meio de um sistema eletromecânico, que fazia pinos subirem e descerem em células braile. Em 1976 surgiu o primeiro sistema de reconhecimento óptico de caracteres, que permitia escanear uma página impressa e reproduzi-la em voz sintetizada com os chips desenvolvidos na época. Assim, a informática teve um impacto enorme em todas as esferas da vida das pessoas com deficiência visual, na educação, no trabalho, no acesso à cultura, na vida diária e também no lazer. O advento da informática realmente abriu um leque enorme de possibilidades para a criação de produtos de tecnologia assistiva, como os sintetizadores de voz, displays braile, navegadores para a internet, navegadores GPS, impressoras em alto-relevo, impressoras em braile. As impressoras, por exemplo, permitiram que a produção de materiais pedagógicos para escolas e para uso pessoal fosse muito mais rápida e fácil. Os sistemas de navegação em GPS fornecem uma informação essencial em um produto portátil, para pessoas cegas, complementando o uso da bengala, que continua sendo um instrumento 33 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida fundamental. Os displays braile são produtos essenciais. Aliados a programas específicos, permitem que pessoas com subcegueira também tenham acesso à informática. A informática, por meio dos microchips, também teve impacto em outros produtos mais simples, como relógios, calculadoras, termômetros, medidores de pressão, etc. A informática permitiu que todos esses produtos fossem utilizados por pessoas cegas, graças a chips de voz sintetizada, que verbalizam as informações exibidas pelos equipamentos. São centenas de produtos que atualmente utilizam essa tecnologia. Os ampliadores de tela ampliam a imagem das telas de computadores e celulares e modificam as cores e o contraste, permitindo que as pessoas com baixa visão tenham condições visuais para ler. Uma parte da tela é ampliada várias vezes e as cores são invertidas, aumentando o contraste e facilitando assim a leitura para muitas pessoas com baixa visão, por exemplo. Alguns produtos já vêm de fábrica com esses recursos. Os ampliadores de tela geralmente são comprados pelas pessoas que os utilizam, ao custo de R$ 1.000 ou R$ 1.200, mas a Apple está tomando a iniciativa, em computadores com o sistema Mac OS X, de oferecer a ampliação da tela e a mudança de cores e contraste. O sistema de leitura com voz sintetizada também já está embutido no programa. Os leitores de tela “falam” com a pessoa com deficiência visual, “falam” tudo o que aparece na tela, não somente o conteúdo dos documentos, mas também todas as informações sobre a aparência da tela, a sua estrutura, as janelas que estão abertas, caixas de comunicação, etc. Assim, oferecem uma acessibilidade fantástica, possibilitando acessar a internet, escrever mensagens de e-mail, utilizar processadores de texto, permitindo que as pessoas desenvolvam atividades profissionais altamente sofisticadas, como de programadores, gerentes de rede e muitas outras áreas. Há muitos programas, gratuitos ou não, inclusive para Linux e Apple. Alguns programas gratuitos são muito bons, por sinal. Um dos mais novos é o NVDA, desenvolvido na Austrália. Ele já foi traduzido para o português e outros idiomas e está em constante desenvolvimento. Como já mencionamos, o sistema operacional Mac OS X tem um excelente leitor de tela, embora com algumas dificuldades em termos de navegabilidade, mas de qualquer forma a Apple está recuperando o atraso e oferece um produto com acessibilidade excelente. 34 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Os sistemas de videoampliação, que utilizam câmeras para ampliar material impresso e exibi-los nas telas de computadores ou televisores, antigamente utilizavam câmeras de vídeo. Atualmente, utilizam câmeras fotográficas e depois reformatam o texto, permitindo uma leitura muito mais confortável e econômica do texto por pessoas com baixa visão. O texto pode ser exibido palavra por palavra, linha por linha ou numa página inteira. Existem também sistemas de reconhecimento óptico de caracteres, que captam imagens impressas e as convertem em texto, que podem então ser exibidos na tela com um ampliador ou falados por meio de sintetizadores de voz. O primeiro sistema foi criado em 1976 e desenvolveu-se de tal maneira que, em 2000, já havia modelos com o mesmo tamanho de um scanner de mesa, com botões para acionar o comando de fala e avanço do texto. Em 2005, já havia sistemas portáteis, que cabiam na mão e, desde 2008, há sistemas puramente em software, executados em celulares comuns. Recentemente, houve um lançamento de uma empresa que normalmente não desenvolvia tecnologia assistiva, a Intel Corporation, fabricante dos chips incluídos em muitos dos computadores que utilizamos. Poucas semanas atrás, a Intel lançou um sistema portátil de captação de imagens impressas, que depois são verbalizadas com um sintetizador de voz ou exibidas em altorelevo ou destaque, para auxiliar as pessoas com dislexia. Os sistemas de display braile podem ser de mesa ou portáteis. Existem também sistemas de impressão em tinta, que trabalham muito bem em computadores com Windows. Sistemas muito populares no exterior, apesar do custo elevado, são as agendas e computadores pessoais portáteis com adaptação de teclado em braile e display braile. São muito utilizados no exterior, mas aqui no Brasil raramente encontramos esses produtos, em razão do custo elevado e dos impostos de importação. Infelizmente, a maioria dos produtos para pessoas com deficiência não tem isenção de impostos no Brasil. Como já mencionamos, no último modelo do celular iPhone a ser lançado, com a tecnologia touch, os engenheiros conseguiram produzir um aparelho com acessibilidade fantástica, dando acesso a todos os recursos do telefone e a muitos dos mais de 30.000 aplicativos da Apple. Há ainda programas lançados para aparelhos do tipo Blackberry, para pessoas que precisam ter acesso a e-mail o tempo todo. 35 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Por fim, um desenvolvimento muito importante no acesso a livros é o sistema de livros falados. Inicialmente, as pessoas que ouviam livros utilizavam discos de vinil, depois as fitas cassete, os CDs e aparelhos de MP3. Um problema desses produtos é que a pessoa não tinha realmente um acesso de navegação rápida pelo livro, como o usuário de um livro impresso, que pode passar para qualquer página rapidamente, avançar ou voltar um parágrafo, procurar no índice uma parte específica do livro, etc. Assim, criou-se um sistema chamado DAISY, com aparelhos de MP3 adaptados, que permite uma navegação muito eficiente pelos livros. Esses produtos já estão chegando ao Brasil e a Fundação Dorina Nowill, de São Paulo, está produzindo livros nesse formato e disponibilizando um leitor para computador com download totalmente gratuito no site da fundação. O Kapten é um sistema de GPS portátil, menor do que a maioria dos celulares do mercado, que possui apenas três botões e é ativado pela voz. Diante do acionamento, o aparelho retorna informações sobre a localização e o trajeto, além de permitir que se façam anotações sobre locais de interesse. É um avanço muito importante e há hoje um grande leque de produtos tecnológicos. Esperamos que esses recursos tecnológicos tornem-se realmente itens de tecnologia assistiva e venham, cada vez mais, embutidos nos produtos de uso geral. Marcos Pinotti: O desenvolvimento tecnológico para o auxílio das pessoas com deficiência utiliza recursos de alta tecnologia, mas alta tecnologia não significa necessariamente alto custo. Na verdade, deve-se encontrar sempre uma via para que, ao desenvolvermos essas tecnologias, elas sejam acessíveis ao maior número possível de pessoas. O Laboratório de Bioengenharia da UFMG trabalha com diversas linhas de pesquisa, entre elas a tecnologia assistiva. No laboratório, há seis professores e vários orientandos, que trabalham no desenvolvimento dessas tecnologias. Dentre as áreas de pesquisas, a instituição trabalha com engenharia cardiovascular, tecnologia assistiva, interação da luz e transmissão de calor em tecidos e seres vivos, biomimética, neurovisão e ginecologia. Imaginemos um mamute sendo espetado por várias lanças, surpreso com a melhora da sua dor no pescoço. Este poderia ser o início de uma tecnologia. 36 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida Às vezes, as tecnologias surgem acidentalmente. A prótese de quadril desenvolvida no laboratório da UFMG é dotada de um músculo artificial pneumático. Já existem no mercado vários músculos artificiais desse tipo, mas este é muito barato e opera a uma pressão muito menor do que os outros dispositivos disponíveis comercialmente. O músculo artificial pneumático baseia-se na bexiga de aniversário, daquele tipo alongado, que pode ser moldada na forma de cachorrinhos, etc., envolta numa corda de rapel. Quando colocamos a bexiga dentro da corda de rapel e injetamos ar comprimido, o sistema encurta e faz força, como o nosso músculo. Num experimento demonstrativo, observou-se o encurtamento do músculo artificial sincronizado com o sinal elétrico gerado pelo movimento do braço de um engenheiro do laboratório, que participou do projeto. O sinal elétrico pode ser captado de qualquer músculo e pode ser sincronizado, por exemplo, com o movimento de caminhada. A pessoa que vai utilizar esta órtese muitas vezes tem algum problema e o seu centro de massa não é equilibrado, de forma que é preciso ajustar a órtese para que ela gaste menos energia e seja confortável para o usuário. Assim, comparamos um grupo de pessoas hígidas, em relação a dois parâmetros, de forma a determinar o gasto suficiente de energia em pessoas hígidas. Quando a órtese for aplicada a pessoas com deficiências, pode-se verificar o quanto os parâmetros se aproximam dos valores das pessoas hígidas. Quanto mais próximos, mais confortável a órtese e menor o gasto de energia. O laboratório desenvolveu também uma órtese de mão. Trata-se de uma luva, com tendões na parte dorsal e na parte ventral, ligados a um motor. O motor é bem pequeno e é comandado pelo sinal mioelétrico. Pode-se escolher o músculo que comandará os movimentos. Com os movimentos de abertura e fechamento, devolve-se a função da mão a pessoas com lesão do plexo braquial ou lesão medular, por exemplo. Essa órtese está sendo utilizada também em pessoas que sofreram um acidente vascular encefálico, porém de um modo um pouco diferente. O controle é progressivamente menos sensível, para que o paciente desenvolva as reconexões no sistema nervoso central, por meio da chamada neuroplasticidade, de forma que, depois de algum tempo, possa “desmamar” da órtese. Alguns testes clínicos foram realizados em pacientes com lesão do plexo braquial, nos quais se conseguiu 37 Tecnologias Assistivas, Ajudas Técnicas e Seu Papel na Sociedade - Melhoria na Qualidade de Vida devolver a capacidade de pinça, em uma grande variedade de objetos que podem ser manipulados. Em outra área, o laboratório desenvolveu um sistema para medir a pressão plantar com alta resolução espacial. Hoje, utilizam-se sensores muito precisos em áreas pequenas. A instituição da UFMG desenvolveu um sistema com alta resolução espacial. Quando pisamos sobre uma superfície plana, o peso do corpo cria áreas de isquemia, que podem ser mapeadas, identificando os pontos de maior pressão. 38 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social A educação é um direito de todos e, consequentemente, uma ferramenta de inclusão na sua origem. As escolas, hoje em dia, devem levar em conta não só a acessibilidade no recinto escolar e mobiliário, como também no suporte pedagógico e tecnológico e, acima de tudo, na atitude. Ao tocar neste tema tão relevante, devemos considerar a qualidade do ensino na rede pública, alternativas à educação inclusiva, educação profissionalizante, acessibilidade aos meios audiovisuais e à modalidade de ensino a distância, que facilita o acesso da pessoa com deficiência ao conhecimento, ao saber, ao aprendizado e suas aplicações práticas. Alex Vicintin (moderador) – Presidente da Plura Consultoria e Inclusão Social, São Paulo, SP José Antonio Borges – Coordenador de Projetos de Acessibilidade do Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ Ángel García Crespo – Vice-Diretor de Planejamento Docente da Universidade Carlos III e de Responsabilidade Social do Centro Espanhol de Legendas e Audiodescrição, de Madri, Espanha Carla Mauch – Coordenadora Geral do Mais Diferenças - Educação e Inclusão Social - São Paulo, SP Stella Kochen Susskind – Presidente da Shopper Experience - São Paulo, SP José Antonio Borges: No Brasil, houve uma opção pela inclusão escolar, ou seja, decidiu-se que as escolas deveriam acomodar todas as crianças, independentemente da sua situação física, intelectual, social e emocional. Essa medida decorreu de uma série de acordos que o Brasil fez, originados basicamente de dois grandes encontros internacionais, um deles na Tailândia em 1990 e o mais importante em Salamanca, em 1994. A opção pela inclusão Acessibilidade, Educação e Inclusão Social não é nada fácil; significa que temos que colocar na escola todas as crianças, por exemplo, as crianças deficientes e as superdotadas, as crianças de rua e aquelas que trabalham, as crianças de origem remota, de populações nômades, aquelas que pertencem a minorias linguísticas, que não falam o português, com diferenças étnicas e culturais, que pertençam a grupos em desvantagem social, marginalizadas, etc. O desafio é realmente extraordinário. Particularmente em relação às pessoas com deficiência, a primeira barreira é a arquitetônica. É preciso que a criança consiga entrar na escola, no banheiro, etc. O transporte adequado também é importante. A criança precisa ter acesso às informações que estão sendo veiculadas. Por exemplo, se a pessoa é cega e o professor utiliza um livro, esse livro precisa estar disponível no primeiro dia de aula, numa forma que a pessoa consiga ler: em braile ou num computador com uma versão em áudio daquele livro. Se a pessoa não consegue mexer as mãos, como irá manusear o livro? Para todas essas situações, precisamos de tecnologia. A tecnologia realmente é a chave para tornar o processo de inclusão da pessoa com deficiência mais simples, mais razoável. É claro também que as soluções só são possíveis com a atitude e o desejo dos professores, dos políticos, da sociedade. Atualmente, essas barreiras são as mais complicadas, pois as soluções tecnológicas já conseguem resolver muitas dessas situações. No caso do Brasil, houve um enorme avanço. Primeiramente, há uma grande quantidade disponível de softwares e hardwares, alguns desenvolvidos aqui mesmo no país. Além dos dispositivos desenvolvidos para deficientes visuais, há muitos equipamentos para deficientes motores e para deficientes auditivos. No caso do deficiente visual, podemos mencionar o braile, programas gratuitos como o Dosvox (atualmente utilizado por mais de 30.000 pessoas no Brasil), a produção automatizada de braile, por meio do programa Braile Fácil, a musicografia braile, por meio do programa MusiBraille, e vários programas para leitura DAISY, como o Dorina DAISY Reader ou o Mac Daisy. Assim, uma pessoa cega hoje consegue romper a principal barreira que a separa dos outros: escreve e as pessoas conseguem entendê-la; o que as outras pessoas escrevem ela consegue ler. Portanto, a tecnologia tem cumprido um papel da maior relevância para a deficiência visual. Além desses programas, há uma enorme quantidade de dispositivos, como impressoras braile, leitores de textos impressos por meio de sintetizadores 40 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social de voz, sistemas para ensino de matemática, ampliadores de tela inteligentes, celulares com sistemas de leitores por voz sintetizada, GPS, etc. Toda essa tecnologia permite que o deficiente visual se comporte quase como se não tivesse deficiência. A tecnologia supre de tal maneira as necessidades da pessoa com deficiência visual que ela passa a ter quase tudo o que uma pessoa que enxerga normalmente tem. No entanto, será que a pessoa com deficiência visual terá acesso a esse arsenal tecnológico? Muitas dessas tecnologias são gratuitas e podem ser adquiridas sem dificuldades no nosso país. Outras são bem caras. No caso de deficiências motoras, alguns avanços também são muito rápidos. Primeiramente, pela conscientização da necessidade de um “design universal”. Uma torneira, por exemplo, deve poder ser manipulada por pessoas com dificuldades motoras. Temos uma quantidade enorme de regras em nosso país, a ABNT define normas para a colocação de equipamentos em espaço urbano, é tudo muito bem delimitado. Houve um enorme avanço na área de órteses e próteses. Na área de transportes, o nosso país já vivencia uma era de transportes adaptados de várias modalidades, sistemas de cadeiras de rodas motorizadas, elevadores, etc. As indústrias no Brasil já estão fabricando e/ou instalando esse imenso arsenal de tecnologia para a deficiência motora. Com o sistema Motrix, uma pessoa tetraplégica consegue controlar completamente um computador por meio de comandos de voz. Em situações especiais, com um sistema de eye tracking é possível manipular o computador somente com movimentos dos olhos, ou então somente com movimentos da cabeça. Há uma série enorme de equipamentos para superação das limitações físicas. Parte dessa tecnologia é gratuita, como o sistema Motrix de comando de voz, enquanto outra pode ser bastante cara, com aplicação em casos de extrema debilidade. No caso da surdez, há aparelhos auditivos, o closed caption, o implante coclear, para pessoas surdas com inervação preservada. Um recurso maravilhoso, ao qual as pessoas geralmente não dão tanta importância, que é o celular com SMS, permitindo a comunicação remota da pessoa surda, em substituição ao uso do telefone. Outro ponto importante a considerar é o intérprete para a linguagem de sinais como um direito da pessoa surda. Hoje já se considera que essas opções à língua falada podem ser automatizadas. O closed caption é um exemplo, que pode ser automatizado. 41 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Esta resenha muito breve mencionou diversos itens de tecnologia já existentes, ou que estão sendo desenvolvidos, e ainda há um número enorme de itens que precisariam ser desenvolvidos. Por exemplo, para pessoas com autismo ou com síndrome de Down, há uma quantidade imensa de dispositivos tecnológicos a ser criada. Na sua ausência, o problema acaba recaindo sobre o professor. Se quisermos oferecer ensino a pessoas com deficiência, o professor precisa estar habilitado, conhecer toda a tecnologia e saber utilizá-la, pois isso pode fazer muita diferença na vida da criança na escola. Uma classe inclusiva tem justamente que ser inclusiva para todos, não pode haver exclusão, o professor precisa ser formado convenientemente para lidar com todas as especificidades, saber lidar com as tecnologias e fazer as adaptações necessárias. Infelizmente, esta é uma realidade que ainda não chegou ao nosso país. Outra opção muito interessante é o ensino a distância. Para pessoas com dificuldades de movimentação ou de acesso à informação, o ensino a distância pode ser uma alternativa, especialmente no caso do ensino médio e do ensino superior. No ensino fundamental, a presença física é muito importante, mas no ensino médio e superior, a educação a distância pode realmente minimizar muitos dos problemas clássicos que envolvem a questão do acesso à informação. É importante que haja uma tomada de consciência: o ensino adequado para as pessoas com deficiência não é barato, não se faz com poucos recursos. Primeiramente, é preciso haver um grande investimento na formação humana do professor, no apoio ao aluno e sua família. É preciso formar uma equipe. A escola deve contar com rampas de acesso, portas grandes, equipamento de transporte público adequado. Existem opções tecnológicas de todos os preços. É preciso decidir em quais delas investir. O ideal é que todas as tecnologias necessárias estejam presentes nas escolas, para que a educação se dê de forma mais efetiva, não só em termos de equipamentos, como também programas de computador e conectividade. Para que uma pessoa com deficiência visual possa exercer a cidadania em todo o seu potencial, por exemplo, ela precisa estar conectada. Quem deve pagar por tudo isso? Não resta outra opção: quem paga é o Estado. O Estado brasileiro cumpre o seu papel com o estabelecimento de 42 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social políticas, com a regulamentação. O Brasil tem uma vasta legislação que garante o bem-estar da pessoa com deficiência, pelo uso conveniente de tecnologia, mas a existência da lei não significa que ela seja de fato aplicada. É preciso garantir o acesso de todos, com respeito às diferenças. É preciso existir um fomento responsável, com relação aos projetos educacionais inclusivos e de apoio. Quando se pensa em baratear o custo, é preciso investir na tecnologia criada no próprio país, apoiar a criação e disseminação de soluções para o acesso das pessoas à tecnologia. A capacitação não deve se limitar aos professores, mas estender-se aos familiares e mesmo aos médicos. O médico deve ser um canal de entrada da pessoa com deficiência aos recursos tecnológicos que não vão curá-la, mas tornarão a sua vida melhor. O papel do terapeuta ocupacional também deve ser ampliado. Para uma pessoa com deficiência, a tecnologia realmente muda tudo: o estudo, o trabalho, o lazer podem melhorar drasticamente. Se a tecnologia torna a vida da pessoa sem deficiência mais agradável, no caso da pessoa com deficiência, ela é fundamental. Precisamos todos tomar consciência, produzir tecnologia no nosso país, apoiar políticas que garantam o acesso a essa tecnologia. Ángel García Crespo: O Centro Espanhol de Legendas e Audiodescrição é o centro de referência técnica para ajudar as pessoas com incapacidades sensoriais na Espanha, para as pessoas cegas e surdas. São descritos aqui dois projetos desenvolvidos nesse centro: um sobre a educação de crianças com incapacidades na escola, e outro que procura sensibilizar as crianças para outras crianças que não têm as mesmas possibilidades que elas. A educação e a cultura estão muito unidas; não há educação sem cultura, nem cultura sem educação. A cultura e a educação começam na escola, quando as crianças encontram outras pessoas, diferentes delas. O primeiro projeto a ser mencionado é um sistema para crianças com incapacidade auditiva, para crianças surdas que estão na mesma classe que as outras crianças. O professor fala normalmente e, para a criança, aparece na tela do computador o que o professor está falando na forma de texto, por meio de um sistema de reconhecimento de voz. Por outro lado, a criança pode escrever as suas perguntas no computador e as perguntas são reproduzidas em áudio para todos na sala. 43 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Certamente, a tecnologia ajuda muito na inclusão de todos. Muitas vezes, porém, desconhecemos os problemas das outras pessoas. O que se pretende com o segundo vídeo, feito na forma de um videogame, é que qualquer criança entenda que há outras crianças como ela que não podem desfrutar dos filmes, da cultura, dos desenhos da televisão. O videogame proposto está acessível a todos, crianças surdas ou crianças que podem jogá-lo como se fossem surdas, ou mesmo sem as imagens, como se fossem cegas. Vivemos em uma cultura audiovisual. O que nos chega por meio dos olhos e dos ouvidos é muito importante e sem isso, estaríamos deslocados. Por isso, é tão importante tornar toda essa cultura audiovisual acessível a todos. As crianças com necessidades especiais que frequentam a escola vão adquirindo conhecimentos juntamente com as outras crianças, enquanto as crianças que não têm necessidades especiais se dão conta da existência de outras crianças, diferentes. Carla Mauch: É fundamental que gestores ousados nos coloquem a pensar, aprender e avançar nas questões da inclusão, e que consideremos que a tecnologia pode ser um instrumento para isso. Quando falamos de inclusão, pensamos em aprender outras palavras, outras posições, outras formas. Trata-se de colocar-se em outro lugar, de saber e não saber, de poder aprender com o outro, utilizar palavras que, cada vez mais, todos nós falamos, que saem da nossa boca muito facilmente: inclusão, justiça, respeito à diversidade, igualdade, aprender. Que a gente não esvazie essas palavras. Pensar a inclusão é dar o devido valor às palavras, com tudo o que isso traz de alegria, dificuldade e tristeza. Quando nos propomos a fazer uma sociedade mais inclusiva, uma educação inclusiva, assumimos que esse caminho é difícil, mas é possivelmente o único que respeita os direitos humanos. Embora seja muito difícil pensar em toda aquela listagem de recursos necessários para a inclusão das pessoas com deficiências, e muito possivelmente existem outras listas para pessoas com deficiências diferentes, o desafio é esse. Não se pode pensar numa escola com um princípio educativo, que aprende com as diferenças e nas diferenças e que exclua todas essas pessoas que historicamente não participaram da escola. 44 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Embora o desafio seja muito grande, apesar de precisarmos aprender a utilizar a tecnologia, não temos o direito de esperar mais. Como educadores, militantes dos direitos humanos e profissionais da universidade, ou seja, como sociedade, não podemos mais dizer que ainda não estamos preparados. É verdade que não estamos preparados, mas juntos, vivendo e fazendo, temos o compromisso de nos preparar e de aprender. Inclusão é justamente isso: poder aprender com os outros e assumir humildemente que existem muitas coisas que não sabemos, o que não nos dá o direito de nos desresponsabilizarmos por esse grupo, que é a sociedade como um todo. Não podemos mais seguir dizendo “é, é verdade, não conseguimos, então vamos esperar mais uma geração e talvez então estejamos mais preparados”. Quando falamos e pensamos em inclusão, recuperando a força, a beleza, a singeleza e a dureza que podem haver nessas palavras, estamos falando em enfrentar, em fazer um processo de diálogo e aprendizagem. Aprendermos com a exposição do Antônio, ficarmos encantados com as possibilidades do jogo que o Ángel nos apresentou, podermos pensar no que significa aquele jogo para crianças com deficiência visual ou com deficiência auditiva, mas também para todas as crianças. Como educadores, como mediadores de aprendizagem e conhecimento, podemos pensar como as outras crianças também podem aprender de outras formas, podem inventar e também fazer uma escola mais verdadeira, mais inventiva, que tenha mais sentido. A educação inclusiva trata de construir uma sociedade e uma escola que possam ter sentido, que tenham uma escuta sensível, que possam se emocionar, aprender e pensar, o tempo todo, em como a cultura é potencializadora do processo. Como a magia da literatura, do cinema pode nos ajudar a pensar em uma educação mais humanizada. Como a tecnologia tem um papel fundamental para nos ajudar a humanizar e qualificar a educação. Para isso, sem sombra de dúvida, precisamos pensar também na formação dos educadores. É preciso incluir os educadores na tecnologia e na cultura. Não se pode incluir as pessoas com deficiências na tecnologia e no mundo da cultura se não valorizarmos os educadores e os professores que estão na sala de aula, todos os dias, com os nossos alunos, com os nossos filhos. É preciso pensar em novas formas de trabalhar cooperativamente, a partir da singularidade dos sujeitos, assumir as diferenças, e não negá-las. Temos 45 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social direitos iguais, mas somos todos diferentes. Podemos assumir essa diferença e também aprender com ela, como educadores, gestores, alunos sem deficiências, alunos com deficiências e famílias, cada um de nós é diferente. Pensar numa sociedade inclusiva é poder pensar que precisamos romper com o modelo homogeneizador no qual fomos construídos e criados a ferro e fogo. Todos sabemos o quanto deixamos de aprender nesse modelo que só valoriza o igual, que valoriza uma única forma de aprender e se comunicar com os outros. O que significa ter acesso, participar? É poder garantir e respeitar de fato as diferentes identidades sociais, culturais, afetivas, étnicas, de gênero e físicas de todos os envolvidos. É poder fugir da marca identitária somente, de podermos nos entender de uma única forma. Precisamos pensar nas pessoas com deficiências, mas precisamos pensar que essas pessoas são crianças, jovens e adultos, são pessoas em estágio de envelhecimento, são homens e mulheres, têm uma orientação sexual heterossexual, são gays, homossexuais, lésbicas e por aí afora. Pensar no que há de singular, mas também no que há de múltiplo. Não podemos seguir pensando que as pessoas com deficiências são só pessoas com deficiência. Essas pessoas têm múltiplas composições, múltiplas possibilidades e todos nós também temos essa multiplicidade, essas facetas todas. Portanto, precisamos pensar numa escola e numa sociedade que acolha de fato toda essa complexidade, tanto em termos de políticas transversais como da própria sociedade civil. Precisamos aprender a trabalhar com a diversidade, que não precisemos pensar ora na “parte mulher”, ora na “parte com deficiência”, ora na “parte negra” de um indivíduo, mas possamos pensar de uma forma mais inteira e verdadeira. Precisaremos reconstituir nosso olhar para novas possibilidades, ousar aprender, olhar de outras formas e experimentar. Não se pode fazer a educação e uma sociedade inclusivas sem a coragem e ousadia de experimentar, escutar, aprender com o outro. Há um trabalho em andamento que procura fazer um mapeamento da situação da educação no Estado de São Paulo, em parceria com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, no qual escutamos dos próprios professores e das famílias do deficiente, o que eles estão achando, o que está bom, o que precisa melhorar. Precisamos também escutar as pessoas com deficiência. Sabemos muito como profissionais, como técnicos, mas temos 46 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social muito que aprender. Precisamos sair do “para” e experimentar realmente o “com”. Para dizermos que a audiodescrição é interessante, é preciso assistir a um filme sem a visão e experimentar outras possibilidades, outros acessos. As legendas podem ser utilizadas para pessoas com deficiência, mas uma tradução para diversas línguas permitiria ampliar o seu uso. Como trabalhar com essa perspectiva, de um desenho universal de fato? Para responder, é preciso experimentar. Precisamos articular as dimensões do fazer viver, quer seja aprender o direito de ir e vir, de brincar, de passear, de conviver e de silenciar também. Falamos muito, mas em certas horas precisamos ficar um pouco em silêncio para poder escutar o que o outro tem a dizer. É necessário ousar, produzir novas práticas e formas de trabalho inclusivas, criando espaços de interlocução, escutar e conferir poder aos diferentes atores envolvidos nos processos. Como podemos escutar qual é a demanda de um professor, como podemos trabalhar juntos, quais as estratégias de formação para que o professor possa também ser um ator, exercitar a autoria e sentirse incluído no processo educacional. Temos que conviver com novas possibilidades, com o não-saber, revisitar e ressignificar as práticas instituídas na escola, em outras organizações ou no poder público, aprender com e na experiência. Quando falamos de experiência, referimo-nos a algo que se passa conosco, não apenas à experiência do outro, mas afetarmos e sermos afetados pelo outro, ampliando o olhar sobre os sujeitos, entrelaçando uma multiplicidade de saberes. Podemos partir de conhecimentos fundamentais, mas que têm uma especificidade própria, e criar um terceiro, quarto ou quinto saber, mais articulado. Para isso, precisamos necessariamente pensar, elaborar e implementar políticas públicas inclusivas, precisamos pensar na universalização dos direitos. Infelizmente, ainda não temos universalização de direitos à educação, à saúde, ao transporte, à cultura e ao trabalho para a população com deficiência. Pensar na transversalidade e na articulação das políticas é um grande exercício, um esforço muito grande, mas não podemos abrir mão dele. A 47 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência tem, nesse sentido, um papel fundamental. Ela não institucionalizará todas as políticas, mas trabalhará com os diferentes atores públicos, com a sociedade e com a iniciativa privada, para pensar em conjunto quais são essas políticas transversais e qual o compromisso de cada um desses atores. A garantia de acessibilidade implica pensar no acesso e na permanência em todas as modalidades de ensino. Sem dúvida, apostamos que as nossas crianças, daqui a dez anos, estarão incluídas, concluindo o ensino fundamental e partindo para o ensino médio. Entretanto, o que faremos com os jovens que não tiveram acesso à educação inclusiva? Que estratégias de educação de jovens e adultos podemos propor? Não podemos simplesmente dizer que “eles não puderam ir à escola; deixemos para a próxima geração”. Quais estratégias podemos pôr em prática para que esses alunos cheguem ao ensino médio com qualidade? Educação a distância? Pensar na formação dos educadores do ensino médio agora, para não sermos surpreendidos pela chegada dos alunos da educação inclusiva quando eles chegarem lá? Precisamos pensar em ações de curto, médio e longo prazo com clareza e organização, pensar na qualidade social da educação, de forma radical. Precisamos ainda pensar na educação como um todo, pois não podemos ser injustos e desonestos, assumindo que a grande questão da educação hoje é a criança com deficiência. Este é mais um desafio da transformação da educação, não é o único problema de que os educadores e os gestores não estão dando conta, desse novo universo de pessoas que começa a entrar na escola. Infelizmente, não estamos sabendo educar na sociedade contemporânea; precisamos avançar. Pensar numa educação inclusiva e no ingresso dos alunos com deficiência, garantir o acesso e o direito à educação de qualidade para a população com deficiência é pensar numa educação de qualidade para todos. Para isso, precisamos pensar na formação dos diferentes atores nas comunidades, com um olhar muito atento às famílias. Quando nasce uma pessoa com deficiência, as famílias não têm onde deixá-la, não podem “deixála na geladeira” e procurarem um curso, como muitas vezes nós, educadores e gestores, fazemos. Nós não estamos preparados, então vamos fazer uma formação. As famílias não têm essa escolha; não se prepararam para receber uma pessoa com deficiência e, no entanto, convivem diariamente com o deficiente, muitas vezes assumindo papéis e responsabilidades que não são delas. 48 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Temos uma legislação avançada, mas precisamos pensar na articulação das ações extensivas e intensivas de implementação das políticas públicas. Este é o maior desafio. Como o poder público pensa em garantir essa universalidade, sem esquecer que cada sujeito é único? Precisamos pensar o olhar para cada sujeito, cada escola, cada realidade, cada município, com as suas especificidades. Precisamos debater, ter outros espaços para discutir sobre como garantir o acesso, sem esquecer de olhar para cada um. Como trabalhar com equiparação de oportunidades? Não há como pensar em inclusão se não aprendermos a trabalhar em rede, e ainda temos muito a aprender. É preciso compartilhar oportunidades, construir e fortalecer uma rede de cuidados e atenção, trabalhar na perspectiva do desenvolvimento inclusivo das políticas como um todo, construir indicadores, monitorá-los e avaliá-los. O poder público e a sociedade civil não podem implementar todas essas práticas sem compartilhá-las e sem avaliá-las, verificar o que se está aprendendo, para onde se avança. Que outras possibilidades teríamos? Temos o compromisso ético, estamos num momento de virada e precisamos aprender sobre essas práticas inclusivas, registrá-las, produzir conhecimento e compartilhá-lo. Socializar, portanto, essas informações e conhecimento produzido. O que é ser diferente? O diferente e a diferença são partes da descoberta de um sentimento, armado pelos símbolos de cultura. “Nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou” (frase atribuída a Carlos Henrique Brandão). Stella Kochen Susskind: Abordaremos aqui como vencer obstáculos. Não se trata de uma inovação tecnológica, como a proposta deste encontro, mas de uma inovação cultural, um passo importante. A Shopper Experience é uma empresa de pesquisa de mercado, que transforma dados em conhecimento aplicável ao negócio, ajuda os seus clientes a melhorarem as relações com os seus próprios clientes e auxilia na construção do comprometimento dos clientes com as marcas. A grande expertise da Shopper Experience é com uma solução de pesquisa de mercado chamada cliente secreto, cliente-fantasma ou cliente misterioso. É uma solução que existe há quase cem anos, desde a década de 1920, nos 49 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social Estados Unidos. Os banqueiros mandavam conhecidos irem até o banco para verificarem se os funcionários estavam roubando ou trabalhando direito. Começamos a trabalhar com essa metodologia no Brasil há quase vinte anos. O cliente secreto nada mais é do que um cliente efetivo, com hábito de compras de produtos ou serviços, que visita lojas, se hospeda em hotéis, viaja de avião ou vai a uma agência bancária, na sua situação cotidiana, numa situação de consumo. Ele é treinado para avaliar o serviço, o atendimento, procedimentos e padrões em situações que vivemos todos os dias. Essa solução é e sempre foi um sucesso. São avaliados todos os segmentos: indústria, consumo, varejo, serviços, etc. No Brasil, atualmente há mais de 15 mil clientes secretos cadastrados, atuando em todos os segmentos. Nos Estados Unidos, é uma indústria que movimenta milhões de dólares. Uma verdade pouco falada e muito camuflada é que o Brasil possui 27 milhões de pessoas com deficiência, de acordo com o último censo, o que equivale a 14,5% da população. Além das pessoas que nasceram com alguma deficiência, há pessoas que infelizmente sofreram algum acidente e adquiriram a deficiência durante a vida. Parte significativa desse contingente é economicamente ativa, são consumidores, profissionais, pessoas que lutam pelos seus direitos, vão ao banco, às lojas, etc. e se deparam com despreparo no atendimento. Vivemos hoje numa sociedade individualizada, como descrevem vários livros sobre o assunto, mas as pessoas estão “saindo dos seus casulos”. Um fenômeno recente, muito comentado, foi o da cantora Susan Boyle. Uma dona de casa, que vivia no interior da Escócia, fora de todos os padrões de beleza, tinha uma voz magnífica, saiu e encantou o mundo. Contudo, independentemente da legislação e do apoio, excluindo-se os esforços “de formiga” individuais, governamentais ou de instituições, poucos procuram entender as demandas dos consumidores com deficiência ou procuram meios de se aproximar desse público. Todas as demandas do consumidor exigem proximidade. Não é à toa que uma das maiores instituições financeiras do Brasil tem como principal mensagem publicitária a presença, a proximidade do público. Algum tempo atrás, uma palestra da Sra. Mara Gabrilli sobre superação inspirou muitas reflexões e inquietações. De nada adiantaria estarmos à frente de uma empresa, de uma equipe, somente por motivação financeira, se não 50 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social olhássemos para os lados, se não acreditássemos e divulgássemos o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual todos nascemos livres e iguais. Procuramos então a Sra. Mara e iniciamos um projeto de acessibilidade. Com seu apoio e inspiração, criou-se um projeto inédito de inclusão na Shopper Experience. Foram treinadas 300 pessoas com deficiência para serem clientes secretos e visitarem lojas, agências bancárias, caixas automáticos, hospitais veterinários. Com o passar do tempo, firmaram-se parcerias. Procuramos a AACD - Associação de Assistência à Criança Deficiente -, pois a própria equipe do projeto se emocionava quando treinava os clientes com deficiência. Uma menina que trabalhava em campo teve muita dificuldade de se comunicar com uma pessoa com deficiência auditiva e procuramos superar esse obstáculo. Passamos um dia na AACD, participamos do Teleton e aproximamos a equipe dessa realidade. A Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência está participando do projeto, como também o Lar-Escola São Francisco, o Plura e outros institutos de inclusão. É um projeto que espelha a demanda contemporânea, incorporando redes com uma social media. Muitos dos clientes secretos não precisam sair de casa, podem fazer checagem na internet, sejam deficientes auditivos, visuais ou cadeirantes, podem fazer checagem telefônica, podem preencher o relatório na sua residência. Investiu-se na inclusão e abriu-se caminho para inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho como free-lancers. Mais ainda, o projeto dá voz a essas pessoas, transmitindo às empresas e ao mercado o que esses consumidores estão enfrentando. No website da Shopper Experience, há várias matérias que saíram na imprensa sobre o assunto. Lá é possível também que as pessoas com deficiência se cadastrem como cliente secreto e há um link para itens de responsabilidade social. Os clientes secretos, depois de cadastrados, são enviados a campo. Como foi a sua experiência de consumo? O que se encontrou nesse grande mercado de consumo? Obviamente, inúmeras barreiras físicas, como vagas para deficientes físicos trancadas com correntes, vagas nas quais o usuário estaciona e não consegue sair do carro, pouca sinalização para pessoas com deficiência visual, pessoas que não se expressam em LIBRAS (linguagem brasileira de sinais)... Muito mais impactantes, contudo, foram as barreiras comportamentais. As dificuldades internas, de fazer a equipe da Shopper 51 Acessibilidade, Educação e Inclusão Social entender a deficiência e dar as mãos às pessoas com deficiência, foram observadas na dificuldade de lidar com esse público. Muitas vezes há um constrangimento, pessoas que não sabem lidar com a situação, têm medo, despreparo. O caminho a ser trilhado nesse sentido é gigantesco. É evidente o despreparo e encontram-se “nãos” o tempo todo, de pessoas que dizem que “não podem atender”, de um cadeirante que vai até o caixa automático e não consegue enxergar nada, por causa da altura do equipamento, agências bancárias que não têm uma pessoa que se esforce para entender o que um deficiente auditivo está dizendo, que talvez não consiga se comunicar em LIBRAS, mas que ao menos escreva alguma coisa... Além de todas essas dificuldades, é chocante observar a quantidade de pessoas que compram adesivos falsos nas bancas de jornal, para cadeirantes, e estacionam nas vagas reservadas, por exemplo. Assim, o projeto caminha a passos de formiga, nos dois sentidos: com os clientes secretos e com as empresas. A Shopper lida com quatro mil pontos de venda em todo o Brasil e procura veicular nas empresas a importância do projeto. Os progressos aparecem nas palavras de uma dessas “formiguinhas”, a Mirian, uma cadeirante: “Me sinto muito privilegiada em ser cliente secreto, pois sei que posso fazer a diferença. Sinto-me honrada em saber que hoje as empresas estão interessadas em saber do bem-estar de seus clientes.” A Mirian é um exemplo, que não desiste diante das dificuldades. Ela sobe no ônibus e vai. A Cilmara, uma deficiente auditiva, acrescenta: “Me sinto ajudando a sociedade a ter visão melhor do portador da deficiência auditiva. É importante ver que hoje a sociedade está interessada no bem-estar do deficiente.” Outro depoimento é do Hamilton, um deficiente visual: “Sinto-me muito bem como cliente secreto, pois sei que isso é para melhorar o atendimento. Sei que existem muitos lugares que necessitam dessas pesquisas, pois não há infraestrutura para receber pessoas com necessidades especiais. Ajudo a melhorar o atendimento aos deficientes visuais, pois percebi algumas dificuldades ao entrar nos bancos.” 52 Transformação: Uma Cidade para Todos Atualmente, o verbo mais usado nas políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência é adaptar. O presente painel pretende ampliar esse conceito. O objetivo maior é transformar a cidade em um ambiente onde todos, independentemente de sua condição, possam usufruir do transporte, da saúde, da educação, do simples ir e vir. Uma cidade que adota ações inclusivas transforma-se em um espaço para todos. Milton Jung (moderador) – Jornalista e âncora da Rádio CBN - São Paulo, SP Eduardo Flores Auge – Secretário Executivo da Comissão Permanente de Acessibilidade - Prefeitura Municipal de São Paulo, SP Luis Antonio A. Silva – Vice-Prefeito Municipal de São José dos Campos, SP Mara Gabrilli – Vereadora na cidade de São Paulo, SP Osvaldo Franceschi Jr. – Prefeito Municipal de Jaú, SP Ailton Brasiliense – Presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos - São Paulo, SP Eduardo Flores Auge: A cidade é composta de um mosaico de pessoas: idosos, crianças, famílias... cada uma delas com seus desejos em relação à cidade. Por exemplo, um jovem talvez gostasse de uma cidade alegre, barulhenta; um idoso talvez preferisse uma cidade amigável, onde ele conseguisse comunicar-se e que todos compreendessem a sua deficiência ao ir a uma padaria e pedir uns pãezinhos. Dentro do tema “cidade para todos”, temos que considerar as edificações, as vias públicas, os logradouros e o sistema de transportes. Nesse sentido, a mobilidade urbana é um tema bastante interessante, dentre as preocupações da Comissão Permanente de Acessibilidade. Num passeio público, por Transformação: Uma Cidade para Todos exemplo, para a pessoa com deficiência visual é importante a sinalização do piso, indicando as rotas acessíveis, o chamado piso tátil direcional. Na ausência de outra referência, podemos utilizar esse recurso. É uma tecnologia disponível, bastante simples, para orientar a pessoa com deficiência visual no seu deslocamento. Outra alternativa é o piso tátil de alerta, utilizado para indicar quando há um obstáculo suspenso. A Rua Oscar Freire, em São Paulo, tem um passeio público recém-reformado no qual se utilizou esse recurso, para que a pessoa não bata a cabeça num deslocamento. Na Avenida Paulista, buscou-se a ausência de barreiras e, ao mesmo tempo, sinalizações de piso indicando as rotas acessíveis e os obstáculos suspensos. A ausência da barreiras é muito importante para a pessoa com deficiência visual. No passeio público, ela é obtida, por exemplo, pelas rampas e eliminação da mureta nas orlas das árvores. Muitos pensam que a mureta favorece a pessoa com deficiência visual, mas ela acaba sendo mais um obstáculo para a pessoa dar uma topada. Portanto, na Comissão somos a favor da eliminação das muretas nas orlas das árvores. A sustentabilidade do revestimento do piso também é importante, por exemplo com o uso de placas de concreto, previstas no decreto das calçadas, o decreto nº 45.904, de 2005. Não se pode esquecer que a acessibilidade na verdade é um dos itens de sustentabilidade. São exemplos o passeio da Rua Olimpíadas, na Vila Olímpia, e da Rua Avanhandava, nas quais a ausência de degraus corresponde à ausência de barreiras. Estamos buscando, na reforma dos passeios, que se eliminem os degraus, mesmo nas calçadas de inclinação excessiva, na intenção de garantir a acessibilidade assistida. Se não houver uma rampa, a pessoa com deficiência ou mesmo alguém com um carrinho de bebê ficam dependentes de alguém. A rampa facilita até mesmo a acessibilidade assistiva. No caso da Rua Avanhandava, percebemos que o resultado foi uma via bastante agradável, embora alguns desaprovem, por defenderem a padronização total dos passeios na cidade. Outra solução relativamente simples é o alargamento do passeio público, de forma a estreitar a faixa de travessia. Com isso, encurta-se a travessia, que fica mais segura: a pessoa chega de uma calçada à outra mais rapidamente. 54 Transformação: Uma Cidade para Todos A Rua Oscar Freire apresenta rampas e o alargamento da esquina. De maneira bem simples, as rampas promovem a ausência de barreiras e as esquinas com passeios aumentados proporcionam travessias reduzidas. São medidas simples que ajudam muito na nossa cidade para todos. O objetivo é que todas as esquinas de São Paulo, com ou sem faixa de travessia, possuam rampas. A Comissão defende o uso de uma rampa com características físicas melhores, a aba um pouco mais generosa. A Rua João Cachoeira também foi objeto de reforma, com tijolos de concreto intertravado, alargamento do passeio, com a tentativa de tornar a faixa livre e segura, com ausência de barreiras, tampas de concessionárias alinhadas (pois, infelizmente, muitas vezes não podem ser eliminadas). O Programa Passeio Livre foi estendido a várias Subprefeituras. Por meio de uma portaria intersecretarial, procura-se empregar um padrão que possibilite sustentabilidade, drenagem da superfície e acessibilidade. Citamos ainda a faixa de travessia elevada, vagas reservadas ao cartão DEFIS, o táxi acessível, o Atende, que é um serviço porta a porta para pessoas com deficiência grave de mobilidade. O bilhete único permite que, se um sistema estiver dificultando o deslocamento, o usuário pode mudar de sistema sem pagar a mais por isso. O transporte por ônibus com piso baixo, que garante o acesso da pessoa com deficiência de forma autônoma ou, pelo menos, mais segura, é outro exemplo, assim como os pontos, abrigos e terminais de ônibus adequados, com tudo o que está previsto na norma NBR 9050/2004, da ABNT, que inclusive está sendo objeto de reforma. O metrô conta com mapas táteis, sinalização e primeiro carro reservado. O nosso desejo é uma rota acessível a todos, com ou sem deficiência. O piso em asfalto no passeio público é uma tentativa de buscar novas tecnologias para, inclusive, reduzir o seu custo. Se a calçada é cara, como dizem, devemos buscar alternativas, como no exemplo de Curitiba de piso em asfalto. Quando observamos alguns exemplos dos Estados Unidos, de rampas largas com abas generosas, percebemos que, ao menos no campo das ideias, não estamos muito longe dessas soluções. A título de exemplo, citamos a ausência de obstáculos suspensos em mobiliário urbano com desenho universal, nos Estados Unidos, um mobiliário urbano com ponto fechado e ar condicionado em Dubai, um ponto de ônibus com bancos em Copenhague, na Dinamarca, o mobiliário urbano da lixeira, 55 Transformação: Uma Cidade para Todos que não é um obstáculo suspenso, sanitários públicos adequados em São Francisco, nos Estados Unidos, estacionamentos para bicicletas, orlas de árvores sem desníveis, bancos, luminárias, guarda-corpos, etc. A Comissão Permanente de Acessibilidade foi instituída em 1996 e é dividida em grupos de trabalhos ou GTs, com participação de diversas secretarias e entidades das pessoas com deficiências, entidades do ramo imobiliário, o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, etc. Na Secretaria, temos cursos de educação continuada, softwares de vistoria eletrônica, um sistema de qualificação em acessibilidade, os programas “Sem Barreiras no Trabalho”, “Sem Barreiras na Cultura” e livros que estão à disposição na Internet e na própria Secretaria. Luis Antonio A. Silva: Em São José dos Campos, foi criada neste ano a Assessoria de Políticas para a Pessoa com Deficiência. Inicialmente, fez-se um levantamento do trabalho que já existia, o trabalho das entidades, os serviços implantados, os conselhos criados, tudo o que já existia na região. Já havia, por exemplo, o Programa Calçada Segura, com boas intenções e algumas falhas. Na faixa da travessia faltava a rampa, alguns conceitos precisavam ser introduzidos mais fortemente, motivo pelo qual a lei foi revisada. Os ônibus de São José, de acordo com a licitação, deverão ser 100% acessíveis. Hoje, 70% da frota é acessível e, em seis meses, ela estará totalmente acessível. Outra etapa foi o contato com as pessoas interessadas, um processo de sensibilização e de aproximação com as entidades que já lidam com as pessoas com deficiência. Nesses meses, aconteceram erros e acertos e essa aproximação ocorreu um pouco tardiamente. Eventos como o fórum de esportes que houve em São José são importantes para promover uma mudança dos conceitos. O contato com as próprias pessoas com deficiência e com as entidades é muito rico em insights que norteiam as políticas nessa área. As pessoas da equipe precisam ser sensíveis à causa e criativas. Normalmente, são trabalhos transversais, com poucos recursos. Em São José, procura-se introduzir conceitos e complementar os serviços que já existem, apoiar os conselhos e as entidades, seguindo o planejamento, customizar e inovar, o que é um grande desafio. 56 Transformação: Uma Cidade para Todos Há toda uma experiência pregressa de entidades da região, que pode ser aproveitada. O governo do Estado tem uma política voltada para a pessoa com deficiência, que também deve ser aproveitada. A cidade conta com algumas pessoas com deficiência com uma riqueza muito grande de capacidades e talentos, como o Vítor, um excelente pianista, ou a Dra. Márcia, que já fazia um trabalho muito importante antes da nossa Assessoria. Há um grupo de hip-hop formado por pessoas com síndrome de Down. Descobrimos também que vários funcionários da prefeitura tinham deficiências e queriam participar. Recentemente, realizou-se a entrega de dez cadeiras de rodas para o time de basquete de cadeirantes em São José. Quanto ao Programa Calçada Segura, a lei foi recentemente aperfeiçoada e elaborou-se uma cartilha com informações importantes sobre esse assunto. Há também uma agência de atendimento, adaptada juntamente com a Secretaria de Trânsito da cidade para as pessoas tirarem a sua carteira e passarem pelo exame médico num local acessível. Foram implantadas também botoeiras sonoras na cidade. Neste momento, está em andamento um censo para a pessoa com deficiência na cidade de São José dos Campos, para o qual elaborou-se um questionário específico. O parque tecnológico de São José está aberto a todos e várias empresas estão se instalando na cidade. Há faculdades instaladas nas imediações e o parque já conta com empresas como a Vale do Rio Doce, a Microsoft, a Embraer e a Sabesp. A unidade da rede Lucy Montoro em São José está a todo vapor, suscitando muitas esperanças, numa parceria com a Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência. Assim, São José dos Campos polariza várias ações na área da pessoa com deficiência, beneficiando muitos pacientes dessa população. Contamos com ideias inspiradoras de pessoas que participaram da nossa formação e que levam à frente trabalhos da mais alta relevância. Há um projeto para a construção de um grande centro poliesportivo para pessoas com deficiência. Estamos convencendo quatro secretários a participar, 57 Transformação: Uma Cidade para Todos visando a realização de treinos e competições paradesportivas, olimpíadas, etc., fomentando o esporte na nossa cidade. Constam do projeto uma piscina, quadras e uma área de convivência, entre outros recursos. Além disso, já existem ações na educação, o Secretário de Educação é muito sensível a essa causa, há um grupo de educação que trabalha bastante para uma educação plena, ações na reabilitação, mas ainda há muito que avançar. Na parte política, começamos com um pouco de receio, mas, passada a fase inicial, percebe-se que é possível canalizar os recursos de forma certa. É um privilégio, por um lado, e por outro esperamos aproveitar o tempo que nos resta na administração para levar adiante o máximo possível de avanços para a pessoa com deficiência. Percebemos que essas ações afetam todos nós, a nossa qualidade de vida, as relações interpessoais, a nossa relação com o mundo. É uma área muito gratificante, aberta, de mudança de conceitos. Mais do que construir, fazer prédios ou leis, precisamos modificar conceitos. O líder tem que ser, antes de tudo, um professor e um motivador. Temos na Dra. Linamara uma professora, que ela sempre foi e continua sendo, e uma grande motivadora, que nos inspira e nos leva a lutar cada vez mais por essa causa. Mara Gabrilli: Inicialmente, a vereadora comenta o uso de um microfone pessoal, do tipo lapela, que leva sempre consigo, de forma que pode frequentar todos os plenários na Câmara Municipal de São Paulo. Na sua maioria, as mesas da Câmara são baixas demais para a cadeira de rodas. Valoriza também o recurso da estenotipia, que está sendo utilizado durante as palestras do Encontro, por permitir que pessoas surdas ou com alguma dificuldade acompanhem o que está sendo dito. Destaca como seria importante contar com a audiodescrição na televisão brasileira. Provavelmente, não há outro país com uma NBR incorporada à legislação, como nós temos. Em 1992, São Paulo foi o município pioneiro do Brasil ao incorporar essas normas técnicas ao Código de Obras. A legislação brasileira realmente é invejável. Temos que trabalhar muito para que ela seja cumprida. O Ministério das Comunicações está atualmente chamando a quarta audiência pública para discutir a audiodescrição, como forma de afastar e esquecer 58 Transformação: Uma Cidade para Todos esses assuntos. A TV brasileira não ter audiodescrição chega a ser anticonstitucional, considerando-se o número de pessoas com deficiência visual no Brasil. Por acaso as emissoras não têm recursos para colocar uma audiodescrição na programação? A audiodescrição é uma forma de “legenda para cegos” na televisão, por meio da tecla SAP, assim como há o closed caption para surdos, de modo que todos tenham acesso a toda a programação. É um recurso básico para a comunicação brasileira. Quando falamos em tecnologia, não podemos nos esquecer disso. Na cidade de São Paulo, um único teatro tem recurso de audiodescrição, o Instituto Vivo, além do Centro Cultural, que também tem meios para utilizá-lo; outros casos são muito esporádicos. Assim, é uma conquista pela qual devemos lutar, pois trata-se de uma enorme parcela da população e já existe a lei, que não está sendo cumprida, vai sendo adiada a cada mês, a cada ano. O próprio ministro parece não dar tanta importância ao assunto. É importante lembrar que mesmo a eletricidade é fundamental para o deficiente auditivo, que se norteia muito pela visão. A falta de iluminação, no dia do apagão, gerou muitos transtornos, muitos não conseguiram chegar em casa, mas, no caso dos deficientes auditivos, essa situação chega a ser dramática. A central de intérpretes de LIBRAS para surdos e guias-intérpretes para surdos-cegos começa a ser implantada em algumas subprefeituras de São Paulo. Cidades como Jaú ou São José dos Campos conseguem colocar intérpretes de LIBRAS em todos os equipamentos que demonstrem essa necessidade. Já em uma cidade grande como São Paulo, seria necessário um número muito grande de intérpretes, que ficariam ociosos a maior parte do tempo. Assim, a central de São Paulo é totalmente tecnológica: a tradução pode ser assistida pela webcam. Há câmeras espalhadas por todas as praças de atendimento das subprefeituras, pelos telecentros, pelas unidades básicas de saúde. O surdo chega ao equipamento em que precisa ser atendido, expressa-se na língua de sinais para a câmera e a atendente recebe aquela mensagem on-line, na mesma hora, o mesmo ocorrendo no sentido inverso. A central tem também a função de treinar outros intérpretes, crescer e um dia fazer o atendimento presencial para surdos. É uma tecnologia 59 Transformação: Uma Cidade para Todos fundamental para que nossos surdos tenham direito aos serviços da cidade. Se pensarmos bem, não é constitucional um surdo chegar a um hospital e não conseguir relatar a dor que sente, chegar a uma delegacia e ser preso porque não conseguiu se comunicar. Assim, a tecnologia acaba perpassando todos os nossos desejos, as nossas necessidades e muitas vezes não conseguimos utilizá-la. Um projeto de aviso sonoro em ônibus foi vetado pela prefeitura, por falta até de aprofundamento. Hoje, a prefeitura está tentando minimizar o erro, colocar um equipamento para que haja esse aviso sonoro nos ônibus. Por que os cegos não podem saber exatamente onde estão, qual é o destino, precisam ficar perguntando, quando alguém pode dar uma informação errada ou pode não querer responder? Primeiramente, as pessoas com deficiência precisam ter um atendimento adequado em saúde, para terem a energia inicial, conseguirem abrir a porta, sair da casa e enfrentar a calçada, o segundo grande momento da vida. Para isso, precisam ter para onde ir, por que ir, como ir. Se não houver tecnologia perpassando todas as dimensões, as pessoas com deficiência não vão conseguir chegar e não conseguirão exercer a sua cidadania. Das mais simples às mais complexas, as discussões mudaram. Algum tempo atrás, tentávamos convencer o administrador público da importância de um piso tátil, hoje todos nós já sabemos dessa importância. Fomos evoluindo. Hoje, discutimos onde uma pessoa com deficiência intelectual vai investir o dinheiro que está recebendo no trabalho, obtido depois de muitos e muitos anos de exclusão. As pessoas com deficiência intelectual estão trabalhando dentro das empresas, e precisam aprender como vão investir o seu dinheiro. Para isso, vão precisar de muita tecnologia. Antes de mais nada, precisamos ter a predisposição para utilizar toda essa tecnologia. Tomemos o exemplo mencionado pelo Eduardo, do software para vistoria de calçada. O fiscal vai observar uma calçada ou uma edificação, preencher um check-list com perguntas sobre a altura do vaso sanitário ou do piso daquela calçada ou do degrau, de que forma foi concebido aquele degrau. O fiscal vai preencher esse questionário e o software vai dar o veredicto daquele estabelecimento ou daquela calçada. Esse processo tira a opinião subjetiva do fiscal, não é o fiscal que dá o veredicto da calçada. É um aprimoramento para a nossa cidade, mas eu não vejo os fiscais se utilizando dessa tecnologia. 60 Transformação: Uma Cidade para Todos Com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência em São Paulo, com todas essas tecnologias e a legislação, temos as ferramentas para transformar todas as calçadas e edificações da cidade de São Paulo. Precisamos usá-las, instrumentalizar todas essas dimensões. Por mais que a Secretaria faça cursos para engenheiros, arquitetos da rede e outros, precisamos realmente de ações afirmativas para conseguir a transformação, porque as ferramentas já existem. Agora, precisamos de eventos como este, de extrema importância, pelo qual a Dra. Linamara e o senhor Torquato merecem congratulações. A vereadora comenta o equipamento desenvolvido para sua votação na Câmara Municipal, composto de um monitor instalado à sua frente e um sistema de reconhecimento de íris que identifica a vereadora. O mouse pode ser conduzido com os olhos e, com um piscar dos olhos, ocorre a votação. Relata que a tecnologia a equipara aos outros vereadores, pois não precisa pedir que alguém vote por ela. Portanto, é claro que há barreiras sistêmicas na cidade, que precisam ser quebradas e enfrentadas. Um exemplo é o tempo dos semáforos da cidade, que não foram programados para cadeirantes, para idosos ou para um carrinho de bebê. Foram programados para atletas. É preciso ir mudando aos poucos, convencendo a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) da importância dos semáforos sonoros e outras tecnologias que realmente vão democratizar mais a nossa cidade. Osvaldo Franceschi Jr.: Neste ano, foi criada na cidade de Jaú a Secretaria Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiências e Idosos, um grande desafio para o novo milênio. As políticas públicas para a pessoa com deficiência necessariamente envolvem projetos de acessibilidade e cidadania, uma quebra de paradigmas que encontramos na nossa vida. A primeira medida que a nova Secretaria tomou foi fazer um censo, para verificar realmente qual é o número de deficientes que temos na nossa cidade, quantos são os deficientes visuais, auditivos, e assim por diante. Será a primeira base de informações para a elaboração e o cumprimento de leis voltadas para as pessoas com deficiência. O censo está sendo conduzido em conjunto com a Saemja, a autarquia de águas da cidade. Em cada conta de água haverá um formulário, que servirá 61 Transformação: Uma Cidade para Todos de base para um levantamento das pessoas com deficiência e também dos idosos a partir de 60 anos. Os formulários estão sendo elaborados em coautoria com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência e deverão depois ser aplicados a todo o Estado. A compilação dos dados está a cargo da FATEC (Faculdade de Tecnologia). Na cidade de Jaú, há sete cursos regulares dessa instituição e um deles fará o tratamento estatístico dos dados compilados. Já existe um trabalho de inclusão dos deficientes auditivos, com mais de 800 adolescentes de 14 a 17 anos. Nas secretarias municipais, trabalham atualmente nove deles, como a Jéssica, a Amanda e a Camila. Em algumas empresas da cidade também trabalham deficientes auditivos. Uma das primeiras medidas adotadas refere-se à mobilidade. O terminal rodoviário de Jaú, construído em 1970, centraliza o tráfego de ônibus intermunicipais e inter-regionais e não tinha nenhum dispositivo de acessibilidade. Estão sendo instalados pontos de acessibilidade, com avisos sonoros para as linhas do município, para deficientes, idosos e analfabetos. Além disso, em parceria com a legião mirim da cidade, em cada turno de quatro horas, haverá três mirins para auxiliar na acessibilidade das pessoas que chegam à rodoviária. A cidade de Jaú está no centro do Estado de São Paulo e tem quase 150 mil habitantes. Os serviços de saúde da cidade estão bem estruturados. Há um hospital especializado em oncologia que já realizou mais de mil transplantes de medula óssea. A cidade também foi agraciada recentemente com uma unidade Lucy Montoro. Há um projeto para que a região central da cidade seja um modelo de acessibilidade. Com recursos próprios da prefeitura, serão instalados pisos antiderrapantes, rampas de acesso, modificações no asfalto, semáforos sonoros, avisos sonoros nos ônibus, para os deficientes visuais, e piso tátil. Haverá também “fiscais de acessibilidade”, para que os estabelecimentos comerciais, hotéis, mercados, etc. tenham condições de receber os dispositivos de acessibilidade. A cidade possui ainda o segundo curso de órteses e próteses do país, para o desenvolvimento de tecnologia voltada ao deficiente. Na ETEC (Escola Técnica Estadual), a partir do próximo ano, deverá ocorrer o primeiro curso do interior do Estado de tecnologia voltada para órteses e próteses. 62 Transformação: Uma Cidade para Todos Foram feitas adaptações na grade curricular para permitir o acesso dos deficientes auditivos e dos deficientes visuais à educação. Há também oficinas culturais voltadas para os deficientes, em trabalhos conjuntos das Secretarias de Cultura e de Educação. Em cada escola, há uma professora de LIBRAS para os deficientes auditivos, ampliando a acessibilidade e estendendo a própria cidadania a todos. Na época do Natal, há uma árvore de Natal instalada na cidade com o tema da acessibilidade, na qual são colocadas algumas cadeiras de rodas. Na internet, há um recurso de acessibilidade em tecnologia da informação. Para finalizar, transcrevemos a tradução livre de um poema de Harold Cherney, que se tornou poeta graças aos recursos do software inclusivo: E minhas rodas E minhas rodas continuam girando por aí Na minha cabeça e no solo Elas me deixam imaginando por que aguento Quando a dor, às vezes, parece muito forte Mas, então, eu me lembro que sou como as outras almas E o que meu corpo é, é outra coisa Eu não posso me importar, minha alma quer cantar Minha alma quer cantar Ailton Brasiliense: Como a nossa sociedade trata das pessoas, tenham elas alguma deficiência ou não? Tomemos, por exemplo, a Rua Inglesa, onde fica a estação de metrô Parada Inglesa, com uma declividade de 8%, o que não é tão pouco. O loteamento dessa rua foi feito de tal forma que, a cada cinco metros, há um pequeno sobrado. As calçadas têm cerca de cinquenta centímetros de cada lado da rua. A rua permite o estacionamento dos dois lados da rua, para garantir o conforto das pessoas que utilizam o automóvel. As mulheres que passam pela rua levam uma sacolinha na mão. Costumam andar bem vestidas e, quando chegam à estação do metrô, tiram um sapato de salto alto de dentro da sacolinha e ali guardam o tênis. Ao longo do trajeto pela rua, as pessoas andam inclinadas, pois todos os moradores fizeram a acomodação para que o automóvel entre na sua residência de maneira confortável, o que obriga todos os pedestres a andarem inclinados. Além 63 Transformação: Uma Cidade para Todos disso, a cada cinco metros, os pedestres descem um degrau de aproximadamente 40 centímetros. Ainda não é tudo, pois a cada vinte metros há um poste, diante do qual as pessoas têm duas alternativas: ou descem para a rua ou abraçam o poste e fazem o seu contorno. Dos prefeitos e vereadores, exigimos que pavimentem as ruas. É a maior exigência de qualquer cidade. Já a calçada, como não é nem um pouco importante, fica a cargo do morador, que, evidentemente, não tem nenhuma preocupação com quem passa na sua porta. Imaginemos o traçado de uma pessoa que vá sair normalmente de casa e chegar a outro local, seja para trabalho, saúde ou lazer. Em primeiro lugar, ela vai encarar uma calçada, se é que ela existe. Muitas vezes, elas não são construídas, não são mantidas e servem para depósito de areia, material de construção e outras coisas. Esse cidadão chega a uma esquina, na qual evidentemente a faixa de pedestres não faz parte da previsão de ninguém. Se a rua tiver muito movimento e ele precisar atravessá-la, precisará ser um atleta, porque os nossos motoristas, na nossa cultura, entendem que o pedestre é um cidadão que atrapalha a circulação dos automóveis, portanto não reduz velocidade e muito raramente para o veículo e permite que o pedestre passe. A relação entre o pedestre e o condutor é tão desvirtuada que, embora o pedestre tenha prioridade de cruzamento, quando o condutor permite que o pedestre atravesse, este agradece, pedindo desculpas pelo incômodo. Se o nosso cidadão conseguir chegar próximo a um pedaço de pau espetado na calçada, que nós chamamos de ponto de ônibus, basta ficar ali e deduzir que o ônibus vai passar, a que horas vai passar, faça chuva ou sol. Evidentemente, ele saiu de casa de forma adequada para não sofrer nem com o tempo de espera, nem com o sol ou a chuva. Não há nenhuma informação, inclusive quais os ônibus que passam por ali e, muito menos, de quanto tempo será a espera. Tenha ou não alguma deficiência, esse é o tratamento que qualquer pessoa recebe normalmente. Depois que o cidadão conseguir subir em algum ônibus, se ele conseguir perguntar para alguém e obtiver uma resposta correta, vai ficar sabendo se chegará ao seu destino ou precisa fazer algum transbordo, se há uma integração com uma linha de ônibus, metrô ou trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). 64 Transformação: Uma Cidade para Todos Portanto, tratar pessoas aparentemente normais da pior forma possível tem sido o normal na nossa cultura. As pessoas com deficiência existem na humanidade desde o primeiro casal. Porém, parece até que elas surgiram muito recentemente. Onde é que estava a nossa consciência até então? Ainda que tardiamente, começamos a rever os nossos conceitos sobre o respeito ao próximo. Às vezes, ficamos satisfeitos com alguma publicação, com a ação de um político, algum evento. Rezamos para eleger um vereador, um deputado estadual ou federal, um senador, um governador ou um presidente da República que atente para prioridades milenares. Parece que nos conformamos em esperar que fulano vá resolver os nossos problemas. Rezamos para que apareça um “salvador da pátria”. E parece que os salvadores da pátria estão em falta, não só aqui, como no mundo todo. Consideremos os exemplos expostos aqui, de Jaú, São José dos Campos ou outros lugares, para lembrar que devemos abandonar os salvadores da pátria, aqueles que dizem que sabem o que o povo quer. Não precisamos desse tipo de político, precisamos de uma sociedade que saiba o que quer, invertendo a situação: que ele ouça o que nós queremos. O que realmente a sociedade brasileira quer com respeito às pessoas com deficiência ou não? Qual é o nosso projeto de sociedade? Podemos continuar elegendo políticos e “jogando na loteria”. Quem sabe fulano venha a ser um grande executivo? Normalmente, temos dado aos nossos políticos uma carta em branco, para que eles façam o que bem entenderem. Às vezes, até fazem algumas das coisas que gostaríamos, mas nem sempre. Minha sugestão é que a sociedade civil e ONGs como a Associação Nacional dos Transportes Públicos, mas também muitas outras, com interesses em habitação, saneamento, instituições de engenharia, advogados, arquitetos, etc., venhamos dizer aos candidatos políticos o que realmente a sociedade brasileira quer. Caso contrário, as “Ruas Inglesas” continuarão sendo construídas, os proprietários continuarão fazendo as calçadas como hoje, os cruzamentos não terão faixas de pedestre ou semáforos, sonoros ou não, os pontos de ônibus continuarão sendo como são e as pessoas continuarão sendo tratadas como números, e não como pessoas. 65 Habitação de Interesse Social nos Municípios É consenso que a construção de casas populares, de responsabilidade dos municípios, deve obedecer a critérios de acessibilidade e conceitos do Desenho Universal. Sua adoção é fundamental para proporcionar qualidade de vida para pessoas idosas, com mobilidade reduzida ou com deficiência. Trata-se da possibilidade de acessar e usar, com autonomia e independência, ambientes, produtos, serviços e informações presentes na sociedade, a começar pelo próprio lar. Uma residência ideal é aquela que respeita as diferentes fases da vida dos seus moradores, que deve ser garantida por meio de legislação e de políticas públicas específicas. Luiz Baggio Neto (moderador) – Assessor da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Fernando Lhata – Superintendente de Projetos da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo - São Paulo, SP Izabel Cristina Campanari Lorenzetti – Prefeita Municipal de Lençóis Paulista, SP Sebastião Misiara – Presidente da União dos Vereadores do Estado de São Paulo - São Paulo, SP Fernando Lhata: Descreveremos aqui o que a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo está fazendo com relação à implantação, nos seus empreendimentos, do conceito do desenho universal. O conceito de desenho universal vem desde os anos 1960, nos Estados Unidos, tomou um vulto muito forte e chegou ao Brasil. As incorporações e toda a opinião pública está dando muita importância à acessibilidade. O Governo do Estado de São Paulo, por um decreto estadual de setembro de 2008, criou um grupo de trabalho; uma parceria entre a Secretaria da Habitação e a Habitação de Interesse Social nos Municípios Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O desafio desse grupo era, até o final de 2008, desenvolver as diretrizes para implantação do desenho universal na habitação de interesse social. Foram feitos vários estudos e, no final de 2008, as diretrizes estavam definidas. O conceito de desenho universal refere-se à necessidade de se criar espaços e ambientes para todas as pessoas. Estão incluídas as pessoas que têm dificuldades de locomoção, como idosos, gestantes, crianças e pessoas que tenham algum tipo de deficiência, temporária ou permanente. Em resumo, todas as pessoas, independentemente da situação em que estejam, têm que ter condições de total acesso à sua unidade habitacional. O público-alvo são as pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência, usuários de cadeiras de rodas, pessoas com problemas sensoriais e pessoas com problemas cognitivos. Esse foi o enfoque do grupo de trabalho, para chegar a um projeto de unidade habitacional com o conceito do desenho universal, que pudesse cobrir todo esse rol de pessoas que utilizariam as unidades. O desenho universal, desde a década de 1990, baseia-se em sete princípios. O primeiro é o tamanho do espaço para aproximação e uso. A pessoa que dependa de uma cadeira de rodas deve ter condições de transitar, seja para chegar à sua unidade habitacional, seja para chegar a equipamentos públicos que fazem parte da cidade. As pessoas têm que ter total mobilidade e condições de ocupar esses espaços. O segundo princípio é o uso equiparável, que são produtos que possam ser utilizados por pessoas de diferentes capacidades. As rampas, elevadores, peças sanitárias, lavabos, bacias sanitárias, têm que estar compostos de tal forma que qualquer pessoa, independentemente da sua situação, possa utilizá-los dentro do contexto do empreendimento habitacional. O terceiro é o uso flexível. Se uma pessoa hoje não tem nenhuma deficiência e vier a ter, deve poder usar a unidade habitacional. A flexibilidade está em paredes que podem ser deslocadas, por exemplo, de acordo com as condições do usuário. As paredes se deslocam, podem ser removidas, não são paredes estruturais, podem ser moldadas à necessidade de quem está utilizando a unidade. O uso simples e intuitivo refere-se aos aparelhos fáceis de identificar, que qualquer pessoa pode utilizar e manusear sem dificuldade nenhuma. As 68 Habitação de Interesse Social nos Municípios informações de fácil percepção, por estímulos táteis, visuais ou sonoros, por exemplo, estão em alguns indicadores para pessoas com problemas visuais: na base de uma escada, na numeração das portas dos apartamentos em alto relevo, etc. O princípio da tolerância ao erro procura minimizar ao máximo o risco de acidentes dentro uma unidade habitacional, com elementos de segurança como barras de proteção nos banheiros, corrimão, rampas, etc. O baixo esforço vai desde uma maçaneta de porta que pode ser aberta e fechada com facilidade a evitar degraus para entrar numa unidade, substituindo-os por rampas. A ideia do desenho universal é um espaço para todos e por toda a vida. Atualmente, as famílias dificilmente adquirem uma unidade e ficam nela ao longo de toda a sua vida. Por diversas necessidades, mudam-se e deixam de ocupar a unidade, porque a unidade não atende mais à sua necessidade. Com o desenho universal, procura-se dotar a unidade de uma condição tal que as pessoas possam usá-la a vida inteira, independentemente da situação. O espaço privativo, o espaço condominial e o espaço público devem ter condições de ser utilizados por todas as pessoas. O ser humano apresenta uma enorme variedade de tipos e características, com diversos tipos de deficiências e dificuldades de locomoção. Ao longo do tempo, essas condições também vão mudando. Como um cadeirante ocupa uma área maior que as outras pessoas com alguma deficiência, adotaram-se como módulo de referência, para o dimensionamento dos ambientes, as medidas da projeção de uma cadeira de rodas padrão com seu usuário. Nas unidades que estão sendo desenvolvidas pela CDHU, os vãos internos dos corredores têm no mínimo 90 cm de largura e os vãos de portas, 80 cm, para que uma cadeira de rodas possa transitar entre os ambientes das unidades e não fiquem restritas a um determinado ambiente. Há áreas de aproximação para cadeirantes, que podem entrar na unidade ou aproximarse de uma pia sem dificuldades. Dentro das unidades, há áreas de manobra e espaços de circulação com no mínimo 80 cm, de acordo com o módulo de referência, o que atende a todas as pessoas, em qualquer situação física. Há um espaço de aproximação lateral para o fogão e a geladeira e frontal para os armários de parede e seus utensílios. O mesmo vale para o tanque e a aproximação lateral até a máquina de lavar. O dormitório também conta 69 Habitação de Interesse Social nos Municípios com esse espaço para aproximação. O cadeirante muitas vezes tem dificuldade de locomoção nos dormitórios, não consegue chegar até a janela. No projeto, utilizam-se dimensões mínimas, de 80 centímetros, para que qualquer pessoa possa acessar a janela. A altura da janela está sendo rebaixada para que o cadeirante possa visualizar a parte externa através da janela. Nas unidades horizontais, essas medidas já estão sendo adotadas. Nos prédios, existe uma restrição do Corpo de Bombeiros e ainda se estuda quais poderiam ser as soluções ou alternativas. Trabalha-se com uma área de manobra de 180 graus, para permitir as transposições dos ambientes. A circulação interna, entre os móveis etc., deve ter no mínimo 80 centímetros, sendo no mínimo 90 centímetros nos corredores. Um ponto crucial é o banheiro. O cadeirante deve poder acessar a bacia sanitária e o chuveiro dentro do box. O projeto prevê uma forma de manobra em que ele possa fazer todas esse aproximações, não só para o lavatório, frontalmente, como até o chuveiro e até o vaso sanitário. Outro ponto considerado é o das instalações elétricas. Hoje, todos os empreendimentos da companhia já obedecem à altura de 90 centímetros a 1 metro para os pontos de comandos, de forma que a pessoa na cadeira de rodas, que fica mais baixa, pode acessá-los com conforto e segurança. Isso vale para os quadros de comando de luz, interfones e qualquer tipo de comando que exista dentro das unidades. Em relação às instalações hidráulicas, estuda-se junto ao mercado quais seriam as opções de registros, torneiras e volantes de torneiras, que qualquer pessoa com algum tipo de dificuldade tenha condições de manusear sem dificuldade. Os comandos das janelas também são levados em conta. Além de chegar até a janela, a pessoa precisa ter condições de abri-la. É um ponto importante para a pessoa com deficiência, até por questão de segurança. Os passeios públicos e as áreas comuns estão sendo desenvolvidos com todas as alternativas de acessibilidade. São rampas de acesso, sinalizações, etc. Dentro do projeto, qualquer tipo de pessoa desloca-se do estacionamento até a unidade ou um equipamento público que esteja no empreendimento, sem dificuldade nenhuma. Os projetos elaborados dentro desse conceito devem começar a ser implementados a partir do ano que vem. O trabalho está muito avançado, dentro do conceito que o grupo definiu nas diretrizes. 70 Habitação de Interesse Social nos Municípios Todos esses estudos foram baseados na norma da NBR 9050, que determina especificações para projetos condominiais e públicos. As vertentes conceituais que devem ser consideradas na elaboração dos projetos são a distribuição e a inter-relação dos usos (poder utilizar todos os ambientes dentro do empreendimento), as condições de acessibilidade e os recursos sustentáveis. Em relação aos passeios públicos, estuda-se a possibilidade de colocação de faixas livres para cadeirantes de um lado da calçada, separadas de objetos fixos, como árvores e postes, e de objetos móveis, como bancos, lixeiras, coisas que eventualmente podem ser deslocadas. Inclusive, verifica-se junto às concessionárias a possibilidade de incorporar valas técnicas, onde não há posteamento na calçada, pois toda a fiação e tubulação passa por dentro da chamada vala técnica. Nessas valas técnicas, passaria toda a parte da fiação telefônica e elétrica das concessionárias, a rede de água e esgoto. A iniciativa está no começo, pois envolve as concessionárias, dependendo do município a concessionária tem suas legislações específicas, que estão sendo avaliadas. O rebaixamento das guias é previsto em todos os empreendimentos da companhia. O Estado está implantando recursos sustentáveis e melhorias na qualidade das unidades habitacionais, está desenvolvendo os projetos dentro do conceito de desenho universal e o programa Vila Dignidade, que atende o idoso. Com relação aos recursos sustentáveis, todos os empreendimentos da companhia hoje estão sendo entregues com aquecimento solar, seja a unidade horizontal ou vertical. Produziu-se um protótipo dois anos atrás e, segundo estudo do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), esse recurso representa uma redução de 30% na conta de energia elétrica do mutuário, uma economia bastante significativa. Portanto, todos os empreendimentos da companhia atualmente têm aquecimento solar. Há projetos pré-fabricados modulares, em estruturas metálicas (evitando-se o uso da madeira, dada a sua escassez), medição individual de água e de gás, bacias sanitárias acopladas, iluminação na parte condominial equipada com sensores, caixilhos de alumínio ou aço galvanizado com pintura eletrostática, o que representou um avanço muito grande na qualidade das 71 Habitação de Interesse Social nos Municípios esquadrias (janelas e portas) dentro da unidade de interesse social da Companhia da Habitação. Dentro do espaço da unidade, há vários tipos de topologia, com dois ou três dormitórios, e aumento da área útil. Com a adoção do desenho universal, a área útil da unidade aumentou e o conforto interno é bem maior. Nem todas as casas tinham laje de forro, e atualmente todas têm laje de forro, o que confere um conforto térmico muito melhor, e o revestimento cerâmico. Em toda a unidade, seja na sala, cozinha, dormitório ou banheiro, o cadeirante (a pior situação possível, em termos de espaço e dificuldade de acesso) consegue se deslocar por todo o ambiente, ter acesso à janela e aos comandos todos. Esses projetos já estão em fase final de elaboração e vão entrar em licitação. A expectativa é que, a partir do próximo ano, os empreendimentos já comecem a ser construídos. Por fim, o programa Vila Dignidade, que atende especificamente o idoso. São projetos para idosos sós, que não têm vínculo familiar, estão abandonados, e são autônomos, autossuficientes, não dependem de ninguém e estão nas ruas, em hospitais, etc. Essas vilas foram desenvolvidas em parceria com os municípios, por meio de um convênio no qual a companhia constrói a vila e o município, juntamente com o SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), faz a gestão do idoso dentro da unidade. Um desses empreendimentos será entregue em dezembro de 2009, já é uma realidade, todas as unidades estão dentro do conceito de desenho universal. Já foram firmados convênios com dez municípios; o primeiro deles é em Avaré. São vilas totalmente muradas, nesse caso são 22 casas, com um equipamento comunitário, onde os usuários podem fazer seus eventos, até uma festa, é um equipamento de apoio para a vila do idoso. Há também uma sala de atendimento. A prefeitura, que faz a gestão, se precisar fazer um atendimento de rotina dos idosos, conta com um local dentro do equipamento. As unidades são todas com aquecimento solar, com rampas de acesso na parte condominial para qualquer pessoa circular pela vila toda sem dificuldade nenhuma. No equipamento, que está sendo chamado de salão de convivência, há uma área para atividades, como um ateliê de costura ou outra atividade qualquer, e as unidades são geminadas duas a duas. Há escadas, pois existem idosos 72 Habitação de Interesse Social nos Municípios que não dependem só de rampas, mas há sempre uma rampa que permite o acesso às praças da vila e a todos os ambientes. O aquecimento solar tem sinalização de luminosidade. Como os idosos são sós, se algum idoso vier a cair na unidade, há determinados pontos com um botão para acionamento de uma luz de alarme. Todos os idosos são orientados nesse sentido. Se a luz estiver acesa, algum problema aconteceu com o aquele idoso, pode-se chamar a assistência ou mesmo outro idoso pode ajudá-lo. Todas as torneiras têm água quente. Há uma porta balcão que dá acesso para um jardim interno, com um tipo de horta, na qual o idoso pode trabalhar - no interior, principalmente, muitos gostam dessa atividade. Os banheiros são todos com barra de proteção e todo o sistema de segurança. Para a implementação do desenho universal, é necessário aumentar a área da unidade. Em alguns municípios, a legislação restringe a área máxima para enquadramento de uma unidade como habitação de interesse social (HIS). Em São Paulo, esse limite é de 50 metros quadrados. Para a unidade de três dormitórios, o projeto chega a 67 metros quadrados. É um grande desafio modificar essa legislação, de forma a não vincular o enquadramento de uma obra como unidade de interesse social à área construída. Outras regras poderiam ser consideradas. Caso contrário, quando as obras entrarem em processo de licitação, haverá dificuldades na aprovação dos projetos. Um exemplo é o empreendimento do município de Fernandópolis. A legislação municipal desse município não vincula o enquadramento de HIS à área construída, o que está facilitando a implementação do desenho universal no projeto. Izabel Cristina Campanari Lorenzetti: Lençóis Paulista é uma cidade acolhedora, muito boa de se viver, que fica no centro-oeste do Estado de São Paulo. É uma cidade de porte médio, com 62.270 habitantes, 23.036 residências, 808 Km2 de área territorial, a 565 metros de altitude. As iniciativas de acessibilidade e inclusão em Lençóis Paulista começaram mesmo em 2004, com a inclusão na educação. Buscou-se apoio na Universidade e a educação inclusiva foi eleita no ano de 2005 como prioridade máxima da administração municipal. Por conta disso, modificou-se a legislação, os esforços foram voltados para a acessibilidade nas escolas, em 73 Habitação de Interesse Social nos Municípios termos de prédios, mas também pedagógicos, de formação dos professores, organização da escola para receber todas as crianças e jovens. Em Lençóis, todo o ensino infantil é municipalizado e o ensino fundamental é quase que totalmente, mas há ainda algumas escolas estaduais, da quinta à oitava série. Esse movimento foi muito importante, foi desafiador. Muitas vezes diziam que não daria certo, que o lugar daqueles alunos era na instituição. Passados cinco anos, veem-se os frutos de um trabalho que nunca estará pronto, mas que dá muita satisfação e corresponde às expectativas dos alunos e das suas famílias. O trabalho conta hoje com laboratórios de informática em todas as escolas, salas de atendimento pedagógico especializado e professores especializados em educação especial, atendendo em todas as escolas. As escolas muito pequenas, as escolas infantis que não têm a sala fixa, são atendidas por um serviço itinerante de apoio. Os professores recebem formação continuada junto às universidades. Isso tudo não poderia ficar contido dentro dos muros das escolas de Lençóis. O movimento foi muito grande e a acessibilidade passou a ser uma questão de atenção, estudo e trabalho para todos os lençoienses. As calçadas foram modificadas, passou-se a cuidar mais dos projetos e criou-se a legislação que vai exigir que os novos prédios comerciais sejam construídos dentro das normas, com acessibilidade. Os prédios públicos terão que ser reformados e adaptados. Além disso, todos os projetos residenciais passam também pela fiscalização e têm que ser aprovados, dentro de normas que incluem especificações para as calçadas das casas particulares, dos novos projetos residenciais. Há dois meses, foi feita a licitação do transporte coletivo urbano. A empresa vencedora da licitação começa a operar em março e uma das exigências é que todos os veículos sejam acessíveis, com plataformas. É outro passo importante, que a cidade não tinha até o ano passado. Além disso, está sendo elaborado o Plano Municipal de Acessibilidade, com o apoio da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A cidade recebeu a visita de Marcos Pellegrini e Carlos Cruz, numa reunião à qual compareceram entidades representantes da população, engenheiros civis e arquitetos da cidade, para que fossem sensibilizados e tomassem consciência do trabalho sério que há pela frente, se o objetivo é que se tenha uma cidade para todos, que a cidade seja acessível. 74 Habitação de Interesse Social nos Municípios Quanto à construção de casas populares obedecendo a critérios de acessibilidade, a realidade de Lençóis é a seguinte: são 1.786 famílias cadastradas, das quais 71 tem idosos e 145 famílias têm pessoas com algum tipo com deficiência. Estava em construção um conjunto habitacional da CDHU, de 225 casas, sendo 221 na cidade e 24 no distrito de Alfredo Guedes. Entre as 225 famílias que já tinham sido contempladas com as casas, seis famílias tinham deficientes. A prefeitura tomou então a decisão de atender a essas pessoas. Não é o ideal, considerando-se o desenho universal descrito pelo Dr. Fernando, mas era preciso encontrar uma saída dentro da realidade da cidade. Para essas casas, foram escolhidos terrenos de esquina, maiores, com duas frentes e uma topografia adequada. Foi feito o projeto dessas seis casas acessíveis, que não têm o mesmo tamanho das outras casas-padrão, são maiores, por conta da acessibilidade. O projeto foi desenvolvido pela Diretoria de Obras da Prefeitura Municipal e foi aprovado pelo CDHU, para ser colocado em prática. Houve um acréscimo de 6% na área construída total. Houve um aumento de 56% na área útil do banheiro e de 88% na área útil do hall de circulação, com aumento de 13% na largura das portas. Essas modificações resultaram num aumento de 14% no custo da obra. A casa-padrão do CDHU, de 53 metros quadrados, para ser acessível passou a ter 56 metros quadrados. O projeto foi assumido pela Prefeitura, que colocou a sua equipe para trabalhar. As casas têm barras de transferência para banho, vaso sanitário e lavatório, banco para banho, abertura do chuveiro com monocomando, registros e misturadores de alavanca. Os espelhos, tomadas, interruptores, registros, quadro de luz, comandos e maçanetas têm altura e especificação de acordo com a NBR 9050. As casas ficaram mais caras e o CDHU repassaria à Prefeitura um valor fechado, referente à casa-padrão. A diferença dos custos da construção dessas casas acessíveis ficou por conta da administração municipal: uma casa normal custa R$ 39.402,37 e a casa acessível custou R$ 45.000,00, com uma diferença de R$ 5.600,00. Como foram seis casas, a diferença total ficou em R$ 33.600,00. Para fazer isso, em primeiro lugar precisamos de vontade política. Foi preciso também contar com uma equipe comprometida com essa causa. Se o gestor municipal não acredita, não deseja, não passa à sua equipe essa paixão por 75 Habitação de Interesse Social nos Municípios aquilo que faz e acredita, as coisas vão morrendo no meio do caminho. Assim, a equipe comprometida também é responsável por esse sucesso. Foi necessário também um investimento por parte da Prefeitura. Pode parecer pouco um valor de R$ 5.600,00, mas, com tudo o que vivemos na área econômica, foi uma decisão muito séria a ser tomada. A casa pronta é uma unidade aparentemente simples, mas é um orgulho para todos os lençoienses. Em poucas palavras, essa é a experiência de Lençóis Paulista na área de habitação. É comum que prefeitos, governadores, talvez mesmo o presidente sejam procurados para “dar um jeitinho nas coisas”. Um empresário muito forte, ampliando seu negócio no ramo do comércio, teve aprovado um projeto maravilhoso, feito por arquitetos da capital, mas havia um problema. Ele estava usando uma porcentagem do terreno maior do que a permitida, por questão da permeabilidade do solo. O projeto previa 80% e naquela região da cidade seria obrigatório deixar um espaço maior com solo permeável. Depois de muito conversar, encontrou-se uma saída: o piso do estacionamento foi feito com aquelas lajotas que permitem plantar grama dentro. O fiscal da prefeitura percebeu também que, na planta original, havia um banheiro para deficientes, mas na construção não havia e a obra foi embargada, gerando muitos problemas, muitas visitas ao gabinete da prefeita, acompanhadas de vereadores e outras pessoas influentes, e a posição da administração municipal sempre foi muito firme. Numa das conversas, o empresário disse que não tinha clientes deficientes. A resposta foi que, obviamente não poderia ter clientes deficientes, pois a loja não era acessível. Além do mais, os clientes de hoje poderiam vir a ter algum tipo de deficiência amanhã, os clientes vão envelhecer e a loja tem que ser acessível, independentemente de ter ou não ter no momento clientes com deficiência. A legislação exige isso. Essa loja foi inaugurada em Lençóis com muita pompa, desfile, foi maravilhoso, é uma loja muito fina, talvez a melhor da cidade. Às vésperas da inauguração, o empresário insistiu muito numa visita da administração municipal, que foi feita. Ao apresentar o novo banheiro, muito caprichado, no andar térreo, o empresário disse que havia sido convencido pelos argumentos. Foi parabenizado mais uma vez. A cidade é que tem que ser educadora. É possível uma cidade inclusiva? Certamente, mas para que esse objetivo se realize, é preciso haver uma 76 Habitação de Interesse Social nos Municípios mudança em todos, nos comerciantes, nos funcionários da prefeitura, na mãe, que necessita de apoio na escola para educar o seu filho como cidadão, cheio de autoconfiança. Essa mudança é uma mudança educadora. A cidade tem que educar seus habitantes e, à medida que nos educamos e educamos nossos cidadãos, a cidade vai ficando totalmente inclusiva. Provavelmente, este é o único caminho. Sebastião Misiara: A prefeita Izabel trouxe um exemplo maravilhoso. A sua administração em Lençóis Paulista, nestes meses iniciais, demonstra que lá está no rumo certo. O pensador espanhol Ledo Ivo dizia o seguinte: “A cidade precisa ter o tamanho do homem.” O urbanista e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner diz que, para mudar a cidade, é preciso mudar a cabeça das pessoas. A nossa proposta é dirigir uma ação aos vereadores do Estado de São Paulo, para recomendar o olhar crítico a essa situação que hoje já se apresenta como absolutamente reversível: tornar cada município desse Estado um município inclusivo. O Dr. Fernando lançou aqui uma dúvida e um desafio, um caminho tortuoso que nós pretendemos que se abra de uma forma mais clara, de mudar a legislação nos municípios. A legislação municipal dificulta a ação de trazer o desenho universal para dentro do conceito de habitação de interesse social, exatamente porque estabelece uma metragem máxima, como no exemplo citado aqui no Estado de São Paulo. Para a CDHU, que pretende iniciar no ano que vem as construções de interesse social com desenho universal, o tempo realmente está dentro do limite do otimismo, porque é preciso comunicar a todas as Câmaras Municipais que a legislação tem que ser modificada, com a eliminação apenas de duas palavras: metragem máxima. Esta é a missão para a qual a União dos Vereadores foi convocada pela equipe da Dra. Linamara, no trabalho de aproximar o agente público dessa importante missão, que Jaime Lerner já antecipava: precisamos mudar a cabeça das pessoas e, em seguida, mudaremos a cidade. A proposta é mudar, por intermédio do vereador, que é o agente mais próximo do cidadão, a cabeça das pessoas e passarmos a ter no Brasil um olhar crítico, um olhar realmente positivo para as pessoas portadoras de deficiência. 77 Habitação de Interesse Social nos Municípios Um dado indicava que 8% da população brasileira é portadora de deficiência. Se juntarmos a estes 8% os portadores de deficiência transitória ou de sequelas deixadas por problemas cardiovasculares ou vasculares cerebrais, a proporção atinge 35% ou 36% da população brasileira com deficiência, seja temporária ou permanente. É uma população enorme, que precisa de uma resposta imediata. Para fazer justiça, lembremos que a Dra. Ika Fleury, quando presidiu o Fundo Social de Solidariedade, em 1990, iniciou um trabalho para eliminar as barreiras arquitetônicas. A partir de 1992 com a determinação da ONU de se criar o Dia Internacional da Pessoa Portadora de Deficiência, houve uma capilaridade mais acentuada para discutir o problema, analisá-lo em nível global pensar nesse problema com mais seriedade. Alguém começou esse trabalho eliminando as barreiras arquitetônicas. Hoje, fala-se em município inclusivo. Assim, asseguramos que a CDHU pode tocar normalmente seus projetos. Está sendo discutido um projeto para a realização de seminários nas regiões administrativas do Estado de São Paulo, como caminho mais rápido para resolver as questões mais urgentes da administração pública brasileira. Num evento em Marília, que contou com a presença da prefeita Izabel, discutiu-se a importância do agente público municipal no combate à depredação do meio ambiente. O resultado é tão significativo, em pouco tempo, que São Paulo já se destaca entre os outros Estados como aquele que vai dar o “pontapé inicial” para que o Brasil melhore sua posição no ranking de cidades protetoras do meio ambiente, exatamente pela conscientização do agente municipal. A prefeita Izabel oferece uma oportunidade única de se fazer uma apologia do municipalismo, do fortalecimento do poder local como ente federado mais importante deste país. O cidadão que está lá na ponta, esperando uma solução de nossas mãos, dos nossos projetos, do nosso trabalho, não quer saber se o dinheiro é estadual, federal ou municipal; ele quer a solução do seu problema. A exemplo do mosquito da dengue, não adianta discutir se a mordida é federal ou estadual, porque o mosquito morde é no município, não vamos discutir aqui se este trabalho é do município, do Estado ou da União: é um trabalho que temos que fazer. 78 Habitação de Interesse Social nos Municípios O municipalismo prega uma reforma tributária. A Prefeita Izabel pagou a conta e é de praxe: todo mundo paga a conta no município, quando o dinheiro da Federação ou do Estado não é suficiente, porque o cidadão vai bater na porta do prefeito. Para concluir, este trabalho precisa da participação dos municípios. É importante que o agente público se sensibilize, que a população convoque aqueles em quem votaram. A legislação tem que mudar para facilitar esta caminhada, que a Dra. Linamara e toda sua equipe, em tão bom momento, colocam à disposição desses 8% ou até 40% de portadores com deficiência. 79 Protocolo de Intenções para Criação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde Assinatura do protocolo de intenções que entre si celebram o Estado de São Paulo, por intermédio da Secretaria de Estado das Direitos da Pessoa com Deficiência, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a Microsoft Ltda., tendo por objetivo a implantação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde. São convidados ao palco a Sra. Linamara Rizzo Battistella, Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, neste ato representando o Governador José Serra, o Sr. Michel Jacques Levy, diretor-presidente da Microsoft Informática Ltda., o Sr. Marco Antonio Pellegrini, Coordenador de Acessibilidade da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o Sr. Cid Torquato, Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, e o Dr. Wu Tu Hsing, representado a Disciplina de Telemedicina da Universidade de São Paulo. A Dra. Linamara enfatiza o tema, emblemático na vida de todos hoje em dia, com destaque para a pessoa com deficiência, da inclusão digital. Num passado muito recente, as pessoas tinham que se movimentar em direção ao outro, na busca de uma interação e na garantia da conquista de um espaço social e profissional. Hoje, a interação se faz com muita eficiência a partir do meio digital. É uma interação com qualidade, que nos permite reconhecer a importância do espaço e o valor cultural de outro país, por exemplo, ter uma interlocução ampla sobre diversos assuntos, com qualquer personagem, em qualquer parte do mundo. O direito de ir e vir, que está consagrado na nossa Constituição e, antes disso, é o caput da Carta Universal dos Direitos Humanos, certamente hoje tem outra leitura. Esse direito passa necessariamente pela inclusão no mundo digital; as oportunidades de interação se ampliam de maneira surpreendente quando temos acesso a esse universo, transferido a partir de uma tela, que nos dá a oportunidade de conhecer a potencialidade do outro, interagir com o outro, de maneira brilhante, porque ocorre Protocolo de Intenções para Criação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde em igualdade de condições. O que o mundo digital traz hoje para todos, como lição de vida, é a capacidade de nos igualar. Ficamos absolutamente iguais diante de uma tela. O esforço de pensar é mais homogêneo, a produção é exatamente igual. A condição de interação, de colocar a nossa funcionalidade a serviço da causa social, da produção das riquezas do país, torna-se verdadeira. Há um esforço notável, no mundo todo, em busca desse objetivo: incluir de forma absoluta todos – crianças, adultos, idosos, jovens, adolescentes, homens e mulheres de todas as raças e cores, para efetivamente estarem dentro deste planeta, numa única civilização. Esse esforço, agora, em São Paulo, fica mais concreto. A partir da parceria com a Microsoft, que é apenas o início de uma rede de colaboradores, oferece-se a todos a oportunidade de inclusão digital, de uma completa transformação. Para uma oportunidade como esta, de transformação da sociedade, nada mais emblemático do que assinar esse termo de cooperação e iniciar uma nova trajetória, deixando que a inclusão digital alcance as pessoas com deficiência. Não se trata mais de trazer a pessoa com deficiência para dentro de um sistema em que ela precisa encontrar uma forma de utilizá-lo. Ao contrário, trabalha-se para criar condições para que o mundo digital alcance as pessoas com deficiência, produzindo-se um equipamento que efetive essa possibilidade de interação ampla, plena, com qualidade, por meio do sistema digital, da web, essa mídia composta, essa interface composta que é o mundo da web. Nada pode ser mais explícito e mais significativo do que interação entre as pessoas. A interação a partir do mundo digital certamente nos aproxima e nos permite exercer com mais serenidade a nossa relação humana, a interação social. Assim, é um momento de muita alegria, com o início de um processo. Um programa como esse não se conclui, mas se atualiza e está sempre em busca de novas soluções, mas conclui-se uma etapa oferecendo o notebook da reabilitação ou o notebook da saúde, com todas as possibilidades de utilização, com a banda larga e os programas instalados, como uma ajuda técnica para a comunicação. É um momento histórico para a Secretaria, de associação com parceiros de qualidade, que já têm uma tradição na história da inclusão digital e no Governo de São Paulo, no governo brasileiro. Com a associação a este grupo de renomado conhecimento da área e de grande capacidade técnica, certamente os objetivos serão conquistados num tempo mais curto. 82 Protocolo de Intenções para Criação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde A Dra. Linamara conclui agradecendo à Microsoft e à Telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a grande articuladora do projeto, e aos Srs. Cid Torquato e Marco Antonio Pellegrini, responsáveis pela concretização tão rápida do projeto como uma cooperação público-privada. A Secretaria está realizando o que o Governo do Estado ensina: ser mais ágil, chamar os parceiros da iniciativa privada, criar diretrizes e garantir que os cidadãos do Estado tenham garantia de acesso ao novo universo mediado pela web. Uma nova página da história começa agora, desta vez escrita e também gravada, num site ao qual todos terão acesso. O Sr. Michel Jacques Levy cumprimenta a todos os presentes e propõe, para problemas complexos, soluções coletivas. É o que se procura realizar com o protocolo. Participar de projetos que incentivem a inclusão de pessoas com deficiência e ajudem o cidadão de necessidades especiais está muito associado aos objetivos da Microsoft, assumindo o papel transformador que faz parte da sua natureza. Com a parceria hoje firmada, pode-se colocar em prática da forma mais abrangente essa premissa. Juntamente com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a Disciplina de Telemedicina da Faculdade de Medicina da USP, a empresa conseguirá prover ferramentas para que as pessoas com deficiência possam usufruir dos benefícios da tecnologia digital. Ao mesmo tempo, poderá criar condições para que os profissionais de saúde aprimorem as rotinas, ampliem seus conhecimentos e troquem informações, elevando o nível do atendimento às pessoas com deficiência. A Microsoft participa dessa ação, com seu programa mundial de alianças públicoprivadas. No acordo ora assinado, o programa visa a apoiar o governo paulista a otimizar os investimentos em tecnologia, de forma a auxiliar as pessoas com necessidades especiais a atingirem seu pleno potencial. A atuação visa a aumentar o impacto positivo da política pública ora criada, fornecendo gratuitamente programas de capacitação tecnológica, trazendo possibilidade de reinvestir, em conjunto com o governo paulista, e oferecendo produtos e tecnologias voltados à acessibilidade. Além disso, a empresa se esforçará para envolver parceiros e profissionais especializados, incentivando-os a contribuir para o desenvolvimento de projetos, criando um “ecossistema” em torno do tema, um centro de excelência no Estado de São Paulo. 83 Protocolo de Intenções para Criação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde A questão da acessibilidade já faz parte da rotina da Microsoft. A empresa investe pesadamente em pesquisa e desenvolvimento e traz em seus produtos importantes recursos de acessibilidade. Um exemplo está no programa Windows 7, lançado recentemente, que apresenta funções como lupa, para pessoa com deficiência, reconhecimento de fala, narrador e notificador visual, entre outras. Com tudo isso, contribui para que as pessoas com necessidades especiais possam usar a tecnologia e realizar o seu potencial. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas, as pessoas com deficiências representam só 2% da força de trabalho. A Microsoft quer ajudar na inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. A tecnologia pode certamente impulsionar a qualificação, criando as oportunidades para esses cidadãos. Assegurar a melhoraria da qualidade de vida das pessoas com deficiência, bem como de seus familiares, também é um dos objetivos do acordo. O notebook da reabilitação permitirá acesso as conteúdos específicos, destacando os cuidados necessários, e possibilitará a interação com profissionais de saúde. Trata-se de uma tendência na área da saúde. Ao viabilizar o atendimento remoto, não apenas o paciente e sua família, mas também as instituições de saúde são beneficiadas, pois o teleatendimento garante assistência de alto nível sem implicar em custos elevados. Em nome da Microsoft, o Sr. Levy ressalta o orgulho de fazer parte de iniciativa tão importante e reafirma o compromisso com ações de inclusão social e digital. Constitui o projeto do presente protocolo de intenções a conjugação de esforços, entre os partícipes já nomeados, do desenvolvimento das atividades necessárias para implantação do notebook da reabilitação e do notebook da saúde, com o objetivo de pesquisar, desenvolver e adaptar soluções e tecnologias de ensino e aprendizagem, visando beneficiar as pessoas com deficiência e profissionais da área da saúde pública do Estado de São Paulo. A Microsoft, em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a Telemedicina, promoverá o desenvolvimento do objeto deste protocolo de intenções, representados pelos notebooks para pessoas com deficiência e profissionais da área da saúde do Estado de São Paulo, em aliança público-privada, que trabalhará em conjunto com a Secretaria, com o objetivo de promover a inclusão digital em saúde. A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Telemedicina é a responsável pela concepção e construção das diversas aplicações integrantes do notebook da 84 Protocolo de Intenções para Criação do Notebook da Reabilitação e do Notebook da Saúde reabilitação e saúde e pela estruturação dos diversos serviços de apoio à educação permanente em saúde, suporte profissional especializado, telecuidados domiciliares e o Centro Digital de Prevenção de Doenças. A Secretaria, a Faculdade de Medicina, a Fundação e a Microsoft envidarão esforços para implementar o objeto do presente protocolo de intenções, no prazo de 12 meses, a contar da sua assinatura. Assinam o protocolo a Dra. Linamara Rizzo Battistella, Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o Sr. Michel Jacques Levy, diretor-presidente da Microsoft Informática, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a Fundação Faculdade de Medicina. 85 Dia 9 de dezembro de 2009 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Ao se deparar com uma pessoa com deficiência, o profissional da saúde deve estar atento para dois pontos distintos e ao mesmo tempo complementares: o diagnóstico correto e a indicação de reabilitação eficiente. Quais são os avanços nestas duas áreas? Como as novas tecnologias têm ajudado na recuperação desse paciente? Para onde estão indo as pesquisas? Com o que Estado, universidades e fabricantes têm contribuído para desenvolver essas questões? Daniel Gustavo Goroso (moderador) – Coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP Koichi Sameshima – Professor Associado do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, SP André Fabio Kohn – Laboratório de Engenharia Biomédica - Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, SP Júlio Cezar David de Melo – Professor Adjunto do Departamento de Engenharia Eletrônica da Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte, MG Marcelo Knörich Zuffo – Coordenador do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, SP Milton Oshiro – Coordenador do Laboratório de Bioengenharia do Hospital das Clínicas de São Paulo - Unidade Lapa do Instituto de Reabilitação Rede Lucy Montoro - São Paulo, SP Hermano Igo Krebs – Principal Research Scientist & Lecturer - Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Departamento de Engenharia Mecânica Cambridge, MA, EUA Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Koichi Sameshima: “Das Idéias à Prática Terapêutica sob a Perspectiva das (Neuro)Ciências Básicas” No exercício da ciência, é fundamental ter em mente um modelo do problema com o qual se está lidando. Aqui, lidamos com o problema da deficiência, que podemos chamar de “funções cognitivas”. Por que razão aspectos da plasticidade neural, nos problemas relacionados com a deficiência ou com algumas doenças, poderiam ser úteis e nortear o trabalho do cientista? Uma das maiores dificuldades em medicina e na ciência em geral é estabelecer uma relação de causa e efeito. Por muito tempo, por exemplo, afirmou-se que o cigarro faz mal à saúde, mas a comprovação de uma relação de causa e efeito só surgiu muito mais tarde. O problema em si já é cientificamente difícil, mas há ainda o interesse corporativo, que poderia enviesar a descoberta da verdade. Mais importante, a verdade muitas vezes não é única; diversas verdades podem coexistir. Quem trabalha na área da saúde e, mais especificamente, da terapêutica, provavelmente já descobriu isso. Alguns problemas podem parecer bastante óbvios, mas a sua solução não é tão clara. Por exemplo, o uso de computadores no ensino seria realmente efetivo? A resposta óbvia parece ser “sim”, mas a escola pública de Nova York fez um estudo extenso sobre o tema e recentemente os autores chegaram à conclusão de que o uso de computadores no ensino não traz benefícios significativos ao aprendizado das crianças. Essa conclusão pode parecer surpreendente para a maioria, mas se pensarmos em termos de modelo de plasticidade neural, pode fazer algum sentido. Quais os fundamentos relacionados à reabilitação e também ao ensino? Haveria uma diferença muito grande entre o aprendizado motor necessário para o uso da escrita manual e para o uso da datilografia? Há uma tendência, com o uso dos computadores difundido em todos os setores do ensino e das profissões, de se utilizar cada vez menos a escrita manual. Qual seria o impacto desse processo? O uso de material audiovisual através da internet seria realmente efetivo? Em relação à terapêutica, será que de fato o “esporte é saúde”? Mais uma vez, a resposta parece muito óbvia, mas não sabemos se essa relação é tão clara e fácil de provar. Muitas pessoas que nunca praticaram nenhum esporte vivem até os 110 anos de idade; outras, que praticaram esportes em nível 88 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação competitivo, têm uma vida muito curta. São questionamentos que pedem uma reflexão. Outra questão é se o alongamento realizado antes dos esportes realmente preveniria as lesões musculares. Podemos pensar em termos evolutivos. Na selva, quando um veado é perseguido por uma onça, não há tempo para aquecimento. Assim, pensando em termos evolutivos, é pouco razoável imaginar que o alongamento tenha uma função importante. O alongamento poderia até provocar lesões musculares, que se agravariam ao longo da prática dos exercícios. Outras questões referem-se ao uso de suplementos vitamínicos e, mais recentemente, de células-tronco em lesados musculares. Este último é um problema bastante complexo, que exige muita reflexão e muita pesquisa. A mensagem é que o chamado bom senso, na verdade, não existe em ciência. É necessário submeter os problemas a uma pesquisa sistemática. Uma das razões é que há uma grande variabilidade, não somente das pessoas, mas também das doenças e de como elas se manifestam nas pessoas. Uma das perguntas fundamentais da medicina é: “o procedimento que está sendo utilizado é realmente efetivo, ou os efeitos observados são obra do acaso?” Essa é a questão que os profissionais de saúde devem fazer o tempo todo. Na busca pelo conhecimento científico e, particularmente, pelo conhecimento médico, há basicamente duas abordagens: o ensaio clínico (utiliza-se o procedimento em muitos pacientes e observa-se se é efetivo ou não, obedecendo-se a uma sistemática científica) e o experimento (que permite deduzir mecanismos da doença, por exemplo). Os pacientes variam em relação às suas características biológicas, a como reagem na saúde e na deficiência também. Portanto, há incertezas. Um mesmo procedimento terapêutico pode funcionar para uma pessoa e não funcionar para outra. Como se pode melhorar a proporção de situações nas quais o procedimento funciona? É uma questão inerente aos problemas do cientista. A neurociência pode propor um modelo, uma maneira de pensar sobre as questões da reabilitação e do ensino, que podem ajudar a lidar com o problema. Podemos chamar esse modelo de “reorganização do sistema nervoso central (SNC)”, e ele poderia ser aplicado ao aprendizado, ao ensino e à reabilitação. 89 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação O achado fundamental nesse sentido foi feito há cerca de 30 anos, por dois pesquisadores americanos, Michael Merzenich e Jon Kaas. Esses autores demonstraram inequivocamente que mesmo os animais adultos preservam a capacidade plástica do SNC. Ou seja, os velhos também aprendem; “macaco velho também aprende truques novos”. Trinta anos depois, é muito fácil fazer essa afirmação, o conceito já foi incorporado por todos. Entretanto, até a década de 1980, a questão era um tabu, pois dois ganhadores do prêmio Nobel (Hubel e Wiesel) afirmavam que não havia plasticidade neural em animais adultos. No mapeamento cerebral da área somestésica (do tato), em uma pessoa normal, as áreas correspondentes aos dedos da mão são distintas entre si. Entretanto, no trabalho de Merzenich e Kaas, após uma estimulação prolongada, o macaco-coruja não era mais capaz de distinguir se a estimulação havia sido no dedo indicador, médio ou anular. Houve uma mudança da representação topográfica somestésica, sensorial, do animal. Os autores observaram também que era possível mudar a representação do sistema auditivo. O sistema auditivo também é capaz de aprender, mesmo na vida adulta. Por isso, somos capazes de aprender línguas novas. O mesmo se aplica à capacidade motora, como demonstrou um experimento com a tarefa de finger tapping, que consiste em tocar alternadamente as pontas dos quatro outros dedos à ponta do polegar, em ciclos repetidos. Os participantes do experimento aprenderam, tornaram mais rápidos os movimentos até atingirem um patamar. Com a prática, todos foram capazes de melhorar o desempenho. É o que esperamos quando praticamos esportes, treinamos, estudamos, etc. São duas características importantes da plasticidade neural o seu aspecto dinâmico e a adaptabilidade. Estamos nos adaptando a cada dia, a cada hora, o tempo todo, conforme o que fazemos. Essa habilidade estende-se também à percepção visual, conforme demonstrou um experimento no qual o indivíduo avaliado fica em frente a um monitor e deve localizar na tela determinados sinais. Um sistema de câmeras detecta o tempo necessário para que a pessoa localize os sinais com o olhar. Com o treinamento, ao longo de várias sessões, a pessoa melhora o seu desempenho, fica mais rápida, até que atinge um patamar. Essa habilidade específica permanece, mesmo que a pessoa deixe de realizá-la por meses. É como andar 90 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação de bicicleta; uma vez aprendido não se esquece mais. É a chamada memória implícita. Outro aspecto bastante interessante da plasticidade neural é que o ganho de habilidade, seja motora, somestésica ou perceptiva, apresenta uma melhora depois de uma noite com oito horas de sono, sem que a pessoa faça nada nesse período. Algo ocorre durante o sono que melhora o desempenho. Assim, o sono é importante para o aprendizado e para a reabilitação, é importante para o processo de plasticidade neural. Na década de 1980, propôs-se a divisão da memória em uma memória declarativa e uma memória implícita. A primeira seria referente a fatos e eventos. Os exemplos já mencionados, relacionados a atividades, estão relacionados à memória não declarativa ou à memória implícita. Essas capacidades de memória estão localizadas em áreas específicas do cérebro. Há áreas relacionadas com a aquisição de habilidades. Outras áreas, como o hipocampo e o córtex pré-frontal, estão relacionadas com a aquisição da chamada memória declarativa. Quando afirmamos que “a maçã é azul”, o leitor não se esquecerá dessa informação até que termine de ler todo este texto. É um típico caso de memória declarativa. Recebemos uma informação e a guardamos. Para aquisição da memória implícita, por outro lado, é necessária a repetição de um estímulo. É como andar de bicicleta ou chutar a bola para o gol: quanto mais se pratica, melhor fica e, uma vez adquirida a habilidade, não se perde mais. Outro aspecto importante é o papel da motivação e do contexto em que se realiza o processo de reabilitação e aprendizado. A prática é importante, mas o contexto em que se realiza a reabilitação ou a aquisição de uma habilidade é ainda mais importante do que a prática. Talvez o principal trabalho dos terapeutas de reabilitação seja promover um contexto e uma motivação que favoreçam a aquisição ou reaquisição da habilidade. Resumidamente, os fatores moduladores da memória e do aprendizado são a atenção, o contexto, o sistema colinérgico e o sono. Sem atenção não há aprendizado. O sistema colinérgico modula o aprendizado. Um dos núcleos relacionados ao aprendizado é o chamado nucleus basalis. A distonia focal é um exemplo no qual a plasticidade é indesejável. Não se conhece uma terapia adequada para o problema, mas provavelmente o que ocorre na distonia focal é uma fusão das representações somestésicas e 91 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação motoras. A solução seria fazer uma dissolução dessas representações fundidas. A chamada “cãibra de escrivão” deve deixar de existir, pois as pessoas não escrevem mais, somente datilografam. Em músicos, o problema ainda é bastante importante. A introdução de tecnologias em reabilitação requer envolvimento de uma equipe multidisciplinar. A multidisciplinaridade é importante porque há uma barreira de linguagem entre a área da saúde e a tecnologia, portanto é necessário que haja pessoas treinadas em ambas as áreas. Em 1982, John Tuckey dizia que, para se consultar com um químico, é preciso tornar-se um químico. Esse matemático foi o criador da palavra “bit”. Estendendo essa proposição, para se consultar com um engenheiro, é preciso tornar-se um engenheiro, ter a cabeça de um engenheiro. Para se consultar com um terapeuta, o engenheiro tem que se tornar um terapeuta. Para consultar-se com uma pessoa deficiente, é preciso tornar-se uma pessoa deficiente. Somente as pessoas com deficiência realmente entendem os problemas dos deficientes. André Fabio Kohn: “Neurociência Computacional e Experimental como Ferramentas no Estudo de Disfunções do Sistema Motor Humano” A chamada neurociência computacional procura modelar matematicamente neurônios, sinapses e fibras musculares. Se houvesse meios, poder-se-ia simular matematicamente o corpo inteiro. Algumas abordagens experimentais não invasivas, feitas em seres humanos, podem ser úteis na avaliação de pessoas com algum déficit neurológico. Um dos trabalhos desenvolvidos no Laboratório de Engenharia Biomédica da Escola Politécnica da USP é um simulador, desenvolvido por Rogério Cisi no seu doutorado. Realizou-se um trabalho matemático para representar neurônios da medula espinhal. Foram modelados matematicamente, de forma relativamente simples, os comandos descendentes, que provêm do cérebro, a rede de neurônios e sinapses que ficam na região lombar da medula espinhal e os nervos da parte posterior e anterior da perna, simulando músculos como o sóleo, gastrocnêmios medial e lateral e tibial anterior, permitindo assim uma representação matemática da flexão e extensão do pé. 92 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Os comandos descendentes agem sobre neurônios da medula, cujos axônios descem para as fibras musculares, gerando força, atividade elétrica. Tudo isso é representado matematicamente, biofisicamente, num simulador computacional. Incorporou-se ao modelo a opção de simular nervos específicos, na sua parte sensorial ou motora. São representados no modelo os motoneurônios, que controlam as fibras musculares, uma série de interneurônios, que fazem uma computação complexa na medula espinhal. Considerou-se também no modelo a inibição recíproca, uma inibição entre músculos antagonistas. Esse simulador funciona por meio da internet. Não é preciso baixar programa nenhum. Ele já oferece valores de partida para todas as variáveis ajustáveis. Por exemplo, o músculo sóleo pode iniciar com 900 motoneurônios, 600 interneurônios e certa quantidade de sinapses, que o próprio simulador estima, assim como a força muscular desenvolvida como um todo. A simulação pode produzir resultados interessantes. O modelo imita em muitos detalhes o que ocorre no ser humano. Não é possível obter essas informações diretamente nos seres humanos, pois o procedimento seria invasivo. O simulador permite, por exemplo, estudar como seria um movimento preciso, numa pessoa sem déficits neurológicos, e um comando impreciso. No comando impreciso, o comando descendente não seria o único que estaria agindo sobre o músculo. Haveria fontes na medula espinhal, inapropriadas, superpostas à atividade basal. Pode-se também observar o princípio da inibição recíproca. Uma ativação descendente para os músculos sóleos, que levaria a uma flexão plantar. A partir de certo instante, ativa-se o nervo que vai inervar o músculo tibial anterior, o que causa a tal inibição recíproca. A atividade elétrica muscular decai e a força também decai. Portanto, trata-se de uma ferramenta para se procurar diminuir algum grau de espasticidade ou situação similar, por meio de estimulação elétrica funcional. Se quisermos utilizar o simulador, que ainda está num estágio bastante primário, será necessário fazer uma expansão considerável do mesmo, para que de fato se possam estudar lesados medulares. 93 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Um grupo de Viena, que estuda pessoas com lesões medulares, propôs a um paciente que fizesse uma flexão plantar e uma dorsoflexão e observou certo grau de “co-contração” dos músculos apropriados, mas também contrações de outros músculos, que não teriam nenhuma relação com esses movimentos. Por que elas ocorreriam no lesado medular? Quais os déficits nos comandos descendentes da medula? Com uma expansão considerável, muito grande, o simulador do Laboratório de Engenharia Biomédica poderia representar os vários núcleos neurais da medula espinhal, bem como os comandos descendentes e as várias interconexões dos núcleos neurais da medula, relativas aos músculos quadríceps, isquiotibiais, sóleos e tibiais anteriores. Um simulador com esse porte poderia responder a perguntas como esta: onde está o déficit? Se soubermos bem essa resposta, poderemos planejar padrões de estimulação elétrica funcional para restaurar uma parte do movimento e eventualmente inibir contrações musculares indesejadas. Seria assim uma ferramenta para o planejamento de métodos de estimulação elétrica funcional, contemplando inclusive o caso invasivo praticado atualmente em alguns centros. Outro trabalho desenvolvido no Laboratório não está relacionado à modelagem matemática computacional, mas sim experimental. Avaliou-se o sistema motor humano, por métodos não invasivos, somente com pessoas saudáveis. Colocam-se, por exemplo, eletrodos de estimulação em determinada região da perna, eletrodos de captação em diferentes músculos. O estímulo aplicado atinge a medula e, em tempo apropriado, aplica-se outro estímulo, que atinge a medula por meio de outro nervo. Assim, dois circuitos neurais serão conectados, com influências mútuas. A diferença observada entre a estimulação única e a estimulação dupla dá uma ideia do funcionamento dessa alça na medula espinhal. Podem estar envolvidas nessa diferença a inibição recíproca ou a inibição pré-sináptica. São informações interessantes, que permitem averiguar um dado tratamento medicamentoso, por exemplo, contra a espasticidade e sua progressão, pelas modificações nas curvas resultantes dos dois tipos de estimulação. Essa técnica ainda não foi usada para a área clínica, mas já foi utilizada para a área de exercícios físicos. Um grupo fez um exercício físico de alta força, outro fez um exercício de máxima velocidade e um grupo do exército fez um exercício de resistência. O objetivo era detectar plasticidade na medula espinhal, ou seja, modificações nos circuitos da medula espinhal nesses 94 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação indivíduos saudáveis, em decorrência dos exercícios físicos. Realmente, foram detectadas várias modificações nos circuitos da medula espinhal, dependentes do tipo de exercício. Talvez seja um dos primeiros experimentos a mostrar explicitamente a plasticidade neural da medula espinhal humana para exercícios distintos. Trata-se de um trabalho de Eugênia Mattos, que concluiu o doutorado neste ano. Infelizmente, ainda não publicamos o trabalho. A sua relevância atinge as áreas de neurologia, reabilitação, educação física, etc. Outro trabalho desenvolvido no Laboratório de Engenharia Biomédica, também em pessoas saudáveis, sem nenhuma disfunção, procurou obter reflexos simultaneamente nas duas pernas, por meio de estimulação elétrica. A pergunta básica era a seguinte: haveria assimetria entre os reflexos? Os participantes eram todos destros. A cada um segundo se obtinha um reflexo, que variava ao longo do tempo. Portanto, o sistema nervoso vai se alterando dinamicamente. Outra pergunta do experimento foi se haveria uma diferença nessa variação dinâmica, num indivíduo destro. Na pequena população do estudo, não houve assimetria nos reflexos. Em patologias, sabemos que há assimetrias entre o lado esquerdo e o direito. Com tratamentos medicamentosos, por exemplo, dependendo do tipo de lesão, pode-se começar a melhorar o quadro. Esta seria uma técnica proposta para se avaliar a progressão do quadro com o tratamento. A variação dinâmica, temporal, também não apresentou assimetrias entre os lados direito e esquerdo. Pergunta-se: o que ocorreria em patologias quanto a essa variação dinâmica? Enfim, trata-se de uma ferramenta experimental, não invasiva, testada em seres humanos sãos, que muito facilmente poderia ser empregada em estudos de uma série de disfunções neurológicas, com fins de acompanhamento e verificação da melhoria do quadro ao longo do tempo. A sua relevância interessa às áreas da neurologia, fisiatria, fisioterapia e áreas afins. Júlio Cezar David de Melo: “Perspectivas Tecnológicas no Desenvolvimento de Equipamentos Orientados a Tecnologias Assistivas” No desenvolvimento de equipamentos orientados a tecnologias assistivas, uma plataforma muito utilizada em laboratórios de engenharia biomédica, elétrica e outras é um computador pessoal (PC), um equipamento com custo 95 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação acessível, universal e genérico, de alto desempenho, de fácil programação. O maior problema é a falta de mobilidade. Obviamente, os PCs não são orientados para utilização em equipamentos portáteis. Atualmente, há alternativas como notebooks e PDAs, com vantagens no aspecto da portabilidade. Tipicamente, os softwares utilizados para o desenvolvimento dessas aplicações são programas de alto nível (Matlab, LabView, Delphi). Outra plataforma empregada são os chamados sistemas embutidos. Basicamente, é uma placa de pequenas dimensões, com um processador semelhante ao processador de um PC, com desempenho muito inferior, porém ajustado ao objetivo da tarefa específica. O seu custo de desenvolvimento é relativamente alto, pois o volume de produção desses sistemas é relativamente baixo, em comparação com o mercado dos PCs. Entretanto, o seu custo de produção é baixo, o que é interessante para aplicações portáteis. O programa incorporado a esse tipo de dispositivo, chamado de firmware, é geralmente de baixo nível. Não existem ferramentas tão poderosas como aquelas baseadas em PC, que facilitam muito o desenvolvimento dos programas. Os sistemas embutidos são considerados uma tecnologia habilitadora para o desenvolvimento de tecnologias assistivas. São sistemas que permitem o desenvolvimento de equipamentos orientados para tecnologias assistivas. Eles possuem um microcontrolador, dispositivos de entrada e dispositivos de saída de diversas naturezas, conforme o equipamento que está sendo desenvolvido. A abordagem adotada para o desenvolvimento de equipamentos voltados para tecnologias assistivas envolve como primeiro passo uma plataforma de alto nível, como o PC, pela facilidade de programação. Essa plataforma é utilizada para a validação de algoritmos, verificação de funcionalidades, simulação, configuração, determinação de parâmetros de operação. Uma vez feita a simulação numa plataforma de alto nível, faz-se a migração para ambientes de sistemas embutidos. Um software desenvolvido para o PC migra para um sistema baseado em microcontroladores ou FPGAs. Assim, partese de um equipamento como o PC, que tem custo e volume elevados para uma aplicação, para um equipamento portátil, com custo e peso reduzidos, fazendo uso de dispositivos de microeletrônica. Em microeletrônica, houve avanços significativos nas últimas décadas. Os microcontroladores, que são chips semelhantes aos do PC, como o Pentium, 96 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação por exemplo, mas com desempenho inferior. Entretanto, esse desempenho é adequado à tarefa a que se propõe. O custo, a área, o peso e o consumo, em compensação, são muito menores, favorecendo a sua aplicação em equipamentos portáteis. Uma dimensão típica de um chip como esse é de 12 x 12 mm, com um processador e uma série de dispositivos de entrada e saída, que cumprem o mesmo papel dos periféricos de um PC. Assim, pode-se fazer a interface com sistemas de diversas naturezas, em função da interface embutida e mais algum circuito lógico que seja adicionado para uma tarefa específica. Outra classe de processador é o chamado processador digital de sinais ou DSP. É um chip utilizado para operações aritméticas em grande volume, como por exemplo o processamento de imagens. As tarefas desse tipo demandam muito maior desempenho, do que a do acionamento de uma chave e de um motor, por exemplo. Essa classe de processador é otimizada para aplicações desse tipo, como o processamento, compressão e reconhecimento de voz em aparelhos celulares, processamento de vídeo em aparelhos MPEG, controle de processos como o acionamento de motores. Todas essas aplicações existem também em tecnologias assistivas. A chamada FPGA implementa uma lógica digital de altíssima densidade. Um dispositivo com 23 mm de lado contém lógica suficiente para fazer o processamento de voz e imagem em espaços extremamente reduzidos. Entretanto, dispositivos desse tipo sofrem com o problema do desenvolvimento. O custo de desenvolvimento de aplicações com FPGAs é muito mais alto do que aquele envolvido no desenvolvimento de um software para PC, por exemplo, tanto do ponto de vista da construção do sistema (hardware) como da própria programação. Em termos de desempenho, por outro lado, em algumas aplicações os FPGAs chegam a superar um PC. Outro dispositivo, atualmente de uso comum, é a chamada memória FLASH. É uma memória de estado sólido (não tem partes móveis, como o disco rígido, por exemplo), permitindo baixo tempo de acesso, baixo consumo e alta densidade, em relação a discos magnéticos. É utilizado para armazenar grandes volumes de dados em equipamentos portáteis, como os tocadores de MP3 e outros exemplos. Da mesma forma, são apropriados para uso em tecnologias assistivas. Nos últimos anos, sofreu uma variação muito grande em termos de custo e de densidade: em sete anos, o custo de um megabyte caiu de R$ 5,00 para meio centavo, enquanto a capacidade passou de 1 97 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação megabyte para 32 gigabytes, tornando possíveis aplicações que, até cinco ou dez anos atrás, eram inviáveis. Hoje, a memória FLASH é usada no armazenamento de qualquer tipo de mídia: fotografias, músicas, vídeos, arquivos de dados, programas, etc. Outra tecnologia habilitadora é a comunicação por radiofrequência (RF) entre equipamentos, formando uma rede que permite tarefas antes inviáveis, como o reconhecimento de uma pessoa com deficiência em determinado ambiente. Se a pessoa portar um equipamento com transmissor de RF, poderá interagir com o ambiente com maior facilidade. Outro aspecto diz respeito à arquitetura distribuída, na qual a inteligência de um sistema, ao invés de estar concentrada em um único nó, pode estar distribuída em cada periférico ou interface, o que permitirá novas abordagens no desenvolvimento dessas tecnologias assistivas. Um exemplo, desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais, permite que os deficientes visuais possam fazer uso do sistema de transportes coletivos. O dispositivo, que o deficiente porta consigo, contém um transmissor. Há um receptor instalado nos ônibus. O deficiente visual programa no seu equipamento a linha que quer utilizar e aguarda no ponto do ônibus. O transmissor emite o código daquela linha. Quando o ônibus capta aquele código, o seu motorista é avisado da presença do deficiente no próximo ponto. Quando o ônibus para no ponto, um altofalante anuncia ao deficiente qual é o ônibus que parou ali, servindo também como uma referência sonora para que o deficiente caminhe até o ônibus. Nesse sistema, utilizou-se um microcontrolador, responsável por comandar todo o sistema, pela emissão de mensagens (o dispositivo funciona por mensagens de voz, que informam a programação das linhas, a operação do menu, o nível de carga da bateria, etc.). O microcontrolador é extremamente barato. Seus recursos são limitados, mas adequados a essa tarefa. O sistema utiliza também uma memória FLASH de baixa densidade, da ordem de 2 megabytes, um circuito de áudio (para transformar as mensagens de voz, armazenadas em arquivos digitais na memória FLASH, em formato analógico para emissão no altofalante), um circuito de RF (para transmissão do código ao ônibus) e uma fonte de energia, muitas vezes ignorado em equipamentos portáteis. Nesse caso, esse componente é fundamental, pois para o deficiente seria muito trabalhoso, além do custo elevado, ficar abrindo o equipamento 98 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação para trocar a bateria. Por isso, o sistema de energia permite o uso de bateria recarregável. O usuário só precisa, periodicamente, carregar a bateria. Uma das primeiras informações que o sistema fornece ao usuário, quando é ligado, é o nível de carga da bateria. Assim, pode ter certeza de que o equipamento funcionará quando sair para tomar o ônibus. Os trabalhos que estão sendo desenvolvidos pela equipe da Universidade Federal de Minas Gerais estão relacionados a sistemas embutidos para uso em equipamentos voltados às tecnologias assistivas e à educação, e ao estabelecimento de competências em tecnologias habilitadoras, com o uso combinado hardware e software (microcontrolador e FPGA), por exemplo para uma aplicação com reconhecimento de voz. O nível de desempenho de microcontroladores atualmente é insuficiente para fazer o reconhecimento de voz em tempo real. Assim, propõe-se o uso de FPGA, encarregado dos algoritmos mais intensos. Além disso, estão sendo desenvolvidos sistemas de arquivos em memória FLASH. No exemplo já mencionado do equipamento para uso pelos deficientes visuais, a memória FLASH adota um formato proprietário. Imagina-se que, com a maior interação entre equipamentos, será possível tornar a memória FLASH acessível a um computador. Assim, o usuário poderia ter acesso a mensagens, gravar outros tipos de dados naquela memória. Por fim, há um avanço muito grande em redes de RF, que permitem o estabelecimento automático de redes: o próprio sistema reconhece a existência de um novo “nó” e automaticamente o configura para que ele seja “visível” para os outros nós. Hoje em dia, todos utilizam Wi-Fi e outras tecnologias, mas mesmo no “baixo nível”, de comunicação com RF em protocolos não tão elevados quanto as redes Wi-Fi, está havendo uma migração desses protocolos para sistemas de nível mais baixo. Ressalta-se o uso dos sistemas embutidos no desenvolvimento de tecnologias assistivas. Dois exemplos de produtos, apresentados como conceitos nos estandes de exposição deste Encontro, são apropriados para o desenvolvimento com o uso das tecnologias aqui descritas, como os microcontroladores e outros componentes. Um deles é um dosador de medicamentos para deficientes visuais. Muitos deles fazem uso de medicamentos em solução e não têm como saber quantas gotas, qual o volume, como dosar 10 ml, por exemplo. Estudantes do ensino médio, do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), apresentaram o 99 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação projeto de um dosador para deficientes visuais, baseado em PCs, como no primeiro passo mencionado para o desenvolvimento de tecnologias. O próximo passo seria utilizar microcontroladores num equipamento baseado no mesmo projeto. Portanto, alunos do ensino médio e, claro, universitário de cursos de engenharia elétrica, engenharia mecânica ou biomédica deveriam ter uma ênfase maior na formação de recursos humanos para o desenvolvimento de sistemas embutidos, especificamente. Seria interessante também a publicação de editais orientados para o desenvolvimento de tecnologias assistivas, que contemplassem o uso de sistemas embutidos. Marcelo Knörich Zuffo: O Laboratório de Sistemas Integráveis é um laboratório muito tradicional da Escola Politécnica, que há 35 anos atua na questão da integração. Já foram abordados aqui aspectos da eletrônica e da neuroplasticidade. Todos esses conhecimentos precisam ser integrados, com a finalidade de produzir qualidade de vida. Atualmente, todos possuem aparelhos eletrônicos muito sofisticados, como telefones celulares, computadores, etc. Às vezes, eles não funcionam tão bem, inclusive porque até recentemente o foco era mais a tecnologia do que o próprio ser humano. De qualquer maneira, o fato é que, neste momento da humanidade, o volume de componentes eletrônicos disponíveis é enorme. Num grupo de cem pessoas, podemos estimar o uso de até um trilhão de transistores. Poucos anos atrás, a humanidade conseguiu produzir mais transistores do que grãos de arroz. O que se pode fazer com toda essa tecnologia? Quando discutimos acessibilidade e inclusão, não podemos esquecer que toda essa tecnologia é multissensorial: podemos perceber suas respostas visuais, táteis ou vibratórias e auditivas, inclusive de comunicação de voz. Entretanto, o volume de aplicações ainda é muito baixo, voltado sobretudo para necessidades básicas, como a comunicação e o entretenimento. O nosso esforço é tentar utilizar essas tecnologias para aplicações mais nobres, voltadas à vida. É preciso desenvolver novas tecnologias e também embutilas nos equipamentos que todos utilizam. É com esse tipo de visão que o grupo do Laboratório de Sistemas Integráveis dedicou-se, no passado recente, a atividades de integração voltadas para a maioria. 100 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Trabalhamos na definição do padrão de TV digital adotado no Brasil. São 50 milhões de lares, às vezes com dois a três aparelhos de TV em cada lar. Portanto, trata-se de um volume muito grande de equipamentos eletrônicos, que podem chegar a 250 milhões de dispositivos. O Brasil tem 160 milhões de telefones celulares e consome anualmente 90 milhões de novos aparelhos. Quantos desses aparelhos são projetados no Brasil? Nenhum. É preciso reverter essa lógica. Uma das visões da equipe do Laboratório é aplicar esse tipo de tecnologia à saúde, à educação e à acessibilidade. Alguns anos atrás, fomos pioneiros ao desenvolver o primeiro sistema de realidade virtual avançada do Brasil. Fazemos pesquisas muito sofisticadas em computação em grade, estamos definindo a nova geração de padrões da chamada “internet 3D” (as aplicações são muito poucas hoje, mas serão muitas no futuro). Num certo instante, constatou-se que tudo isso poderia ser levado à casa do brasileiro, ao cidadão comum. Assim, muito da tecnologia presente numa TV digital que compramos hoje em dia é brasileira. Num primeiro momento, o foco recaiu sobre o entretenimento, pois esta é a demanda do mercado. No próximo ano, provavelmente se assistirá à final do campeonato brasileiro em 3D, a copa do mundo em 3D. Já se pensa o que pode ser feito para as Olimpíadas de 2016. De quase dois anos para cá, percebendo que esse ciclo se fecha, questionamos o que se poderia fazer para uma grande maioria dos brasileiros, que tem necessidades especiais. Mencionaremos três projetos, considerando que essas tecnologias disponíveis na casa dos brasileiros podem incorporar recursos de acessibilidade. O primeiro projeto é um sistema de reabilitação de membros superiores, com foco em vítimas de acidentes vasculares encefálicos. O objetivo é fazer uma pesquisa que está resultando num software, que pode ser embutido num celular, num laptop ou mesmo numa TV, no futuro próximo, levando-se em conta que todos esses aparelhos têm desempenho computacional e os recursos de interatividade de que necessitamos, como câmeras e microprocessadores avançados. A intenção é investigar se a percepção visual da movimentação é um elemento motivador na reabilitação motora do membro comprometido. Temos tido alguns resultados muito promissores, já temos protótipos experimentais, nos quais pacientes vítimas de AVE recebem instruções para 101 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação realizar movimentos, que eles podem visualizar. Talvez as teorias da plasticidade, já mencionadas, e outras estejam por trás disso. Foram realizados vários exercícios em ensaios experimentais e os resultados preliminares são muito promissores. Testamos em quatro pacientes e agora estamos dimensionando uma segunda população, de controle, sem o uso da tecnologia. Nas mensurações realizadas, há evidências de uma melhoria muito grande no processo terapêutico. Há um entusiasmo por parte dos pacientes, que perceberam aumento da velocidade dos movimentos, diminuição do esforço necessário e redução do padrão flexor de cotovelo. A ideia básica é utilizar nada mais que um computador, com a perspectiva de, no futuro próximo, incorporar esse software num celular ou num laptop. O segundo projeto é um modelo de realidade aumentada, para reabilitação motora e cognitiva, o Genvirtual. Utiliza-se qualquer computador com uma webcam (ou mesmo um celular com uma câmera), imprimindo-se em papel padrões que podem ser reconfigurados pelo terapeuta. Cubos coloridos são sintetizados pelo computador, na chamada “realidade aumentada”. O paciente com necessidade motora e cognitiva pode realizar movimentos por cima dos pedaços de papel, que o computador reconhece, gerando padrões sonoros em resposta. Diga-se de passagem que esses padrões sonoros são bastante sofisticados. O grande benefício é que qualquer instrumento musical pode ser reconfigurado, permitindo o desenvolvimento, por meio da música, de práticas reabilitadoras. Por que a reabilitação precisaria ser chata ou monótona? Por que não associar ao processo um padrão cognitivo de expressividade, criatividade e felicidade? Ao mundo virtual, adicionam-se elementos 3D, que representam instrumentos musicais de sopro, cordas e percussão. O acesso é muito facilitado; basicamente manipula-se com a mão, mesmo com movimentos muito limitados. Essa situação traz uma adequabilidade muito grande à construção de práticas terapêuticas, de maneira muito flexível. Trabalhou-se com várias populações de controle, na área de Terapia Ocupacional, numa parceria com a ABDIM (Associação Brasileira de Distrofia Muscular), com foco na reabilitação de membros superiores de crianças com distrofia muscular de Duchenne. Os resultados são claramente mais positivos, em termos de facilidade; o aspecto motivacional é muito forte e o grau de satisfação também é muito alto, em comparação com outras práticas que não utilizam a tecnologia. 102 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Estabeleceu-se também uma parceria com a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), com foco em musicoterapia. Um grupo da AACD já desenvolve essas práticas há vários anos e introduziu essas tecnologias que nós propusemos. Temos também a intenção de uso domiciliar. Atualmente, para isso é necessário o uso de um computador, mas em breve qualquer TV com uma webcam propiciará o uso dessa tecnologia. Portanto, o seu custo é muito baixo e acessível. Há grupos de controle, cujos pacientes e familiares levam a tecnologia para casa e desenvolvem os procedimentos no domicílio. O terceiro projeto a incorporar recursos de acessibilidade, que mencionaremos, é a própria TV digital. Somente neste Natal, serão adquiridos pelos brasileiros 5 milhões de TVs e 8 milhões de celulares. Quais desses aparelhos têm recursos de acessibilidade? Nenhum. Entraremos num círculo muito virtuoso nesse mercado, com o Dia das Mães, a Copa do Mundo, o Natal, algum tempo depois a Copa no Brasil e depois as Olimpíadas. O IBGE estima que há no Brasil atualmente dois televisores por domicílio. Em 2016, a perspectiva é que tenhamos quatro televisores por domicílio. É muita tecnologia para que não possamos imaginar que esses aparelhos tenham embutidos dispositivos voltados para populações com necessidades especiais. Dentro desse espírito, numa parceria com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de São Paulo, iniciou-se um projeto. Ele se encontra atualmente em fase inicial, de levantamento de requisitos. Alguns exercícios já foram realizados; montou-se um home theater, uma sala de estar com TV, e começou-se a mapear todas as dificuldades possíveis e imagináveis que pessoas com necessidades especiais têm, na realização de um ato muito comum na vida do brasileiro: assistir à TV. Assim, pessoas com os mais diversos tipos de deficiência têm visitado o laboratório montado para esse fim, num levantamento de requisitos que já dura quase vinte dias. O objetivo é desenvolver toda uma nova geração de equipamentos extremamente baratos, chamados vulgarmente de “eletrônica de consumo de massa” e introduzir esse tipo de conceito, não somente na indústria brasileira, mas na indústria de todos os países emergentes que tenham adotado o padrão brasileiro de TV digital. Somente na América Latina, são sete países. Aparentemente, dez países africanos pretendem adotar a tecnologia desenvolvida no Brasil. Temos uma oportunidade muito grande 103 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação de oferecer nossas ideias e a nossa tecnologia, não somente à população brasileira, mas à população de cerca de quinze países que estão adotando o mesmo padrão que o nosso. Milton Oshiro: Em agosto de 2008, a Dra. Linamara, Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, fez uma proposta muito desafiadora, partindo de recursos oriundos do Ministério do Trabalho, para a construção de uma Unidade Móvel de Reabilitação. Havia dois desafios muito grandes: gastar 1 milhão de reais em três meses e concluir o projeto no mesmo período. Ele acabou sendo concluído em quatro meses. A partir do esboço feito para a primeira proposta apresentada, a Dra. Linamara propôs que se construísse uma unidade mais ampla, com maior capacidade de atendimento, considerando-se os recursos disponíveis. Partimos então para um modelo de unidade com uma carreta maior, com diversos layouts propostos. A versão final é uma carreta de 15 metros de comprimento e 2,60 metros de largura. Uma unidade de reabilitação precisa de um consultório médico, uma sala de espera, uma área para fisioterapia e para os atendimentos dos técnicos, nos quais são feitos os moldes, um banheiro adaptado para pessoas com deficiência e uma oficina completa de órteses e próteses. Tudo isso precisava estar integrado no projeto de unidade móvel. Para atender a essas necessidades, foi necessário fazer uma ampliação, com um avanço lateral. Na entrada (no fundo da carreta) há um elevador, capaz de acomodar um cadeirante ou mesmo uma maca, e uma sala de espera. Na área do avanço lateral, há dois consultórios médicos. No interior da unidade, há uma sala de fisioterapia e a sala onde os técnicos tiram os moldes, um banheiro adaptado e a oficina de órteses e próteses, com áreas para montagens, máquinas e modelagem de gesso. Na outra lateral, instalou-se outro avanço com um palco, que pode ser utilizado em eventos, e uma sala de espera para pacientes. Inicialmente, fez-se um modelo virtual do projeto, para a aprovação final. Ao longo do período de quatro meses em que a unidade foi projetada e construída, diversas visitas foram feitas à empresa que construiu a unidade. Em 19 de janeiro de 2009, foi feita a apresentação da unidade e partiu-se 104 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação para a realização dos atendimentos. De janeiro até o início de dezembro, foram atendidas cidades de cinco unidades regionais da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo (os chamados DRS – Departamentos Regionais da Saúde): Taubaté, Jacareí e Guaratinguetá, Avaré, Grande São Paulo (embora esses pacientes não tenham sido atendidos na Unidade Móvel, mas na Unidade Lapa), Sorocaba, Capão Bonito e Piracicaba. Os pacientes de cidades periféricas às cidades atendidas vieram até a cidade visitada pela unidade para ser atendidos. Foram 1.409 pacientes, foram entregues 2.474 equipamentos, há 487 pacientes aguardando, na maior parte atendidos recentemente, em dezembro, com previsão de entrega dos equipamentos a partir de janeiro de 2010. Foram percorridos, nesse período, 4.684 km. Narração do vídeo: O Governo do Estado de São Paulo, por meio das Secretarias de Estado da Saúde e dos Direitos da Pessoa com Deficiência, tem o orgulho de apresentar sua mais nova unidade de atendimento: a Unidade Móvel de Reabilitação da Rede Lucy Montoro. Com 15 metros de comprimento e 2,60 metros de largura, a Unidade Móvel é um moderno caminhão, com carreta totalmente adaptada. Sua principal tarefa é levar a qualidade de atendimento da Rede Lucy Montoro para regiões do Estado de São Paulo em que não haja fornecimento e adaptação de próteses, órteses e cadeiras de rodas. Com uma média de 100 atendimentos mensais, a Unidade Móvel terá uma equipe multidisciplinar para o atendimento dos seus pacientes, compostas por médicos fisiatras, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e técnicos em órteses e próteses, com acesso facilitado e com toda a infraestrutura, a Unidade Móvel é completa e totalmente adaptada. Esta é a sala de espera, onde o paciente aguarda o seu médico. Na sala de consulta, a médica fisiatra avalia os pacientes, prescreve as órteses ou prótese e os encaminha para as próximas etapas do atendimento. Assim como outros ambientes, a sala é climatizada e todas as superfícies são de fácil limpeza, o que mantém a Unidade sempre higienizada. As informações colhidas na consulta são colocadas no computador e enviadas pela internet para a produção das próteses. Elas são entregues aos pacientes na próxima visita à Unidade Móvel. Após todo o processo de montagem e adaptação, é hora de ir para a sala de prova. Com a fisioterapeuta, a paciente inicia o treinamento e são feitas as adaptações para obter a melhor funcionalidade. 105 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Depoimento da paciente: “Nossa, isso aqui tudo é muito bom; nem parece que eu estou aqui dentro de um caminhão.” A terapeuta ocupacional é responsável pela confecção de órteses de membros superiores e inferiores, observando sempre a funcionalidade dos membros. Finalizadas todas as etapas, médicos e técnicos da Unidade estão certos de que o paciente está confortável e bem adaptado. É hora de voltar para casa e começar uma nova fase de vida. Depoimento de funcionária: O atendimento a essas pessoas era feito nos municípios, com um cadastro encaminhado ao DRS, e os equipamentos eram comprados pelo DRS. Quando havia deficiência de recursos financeiros, havia uma fila, que ficou muito grande. Com o atendimento da Unidade Móvel, vamos conseguir “zerar” essa fila. A partir de então, será formada uma fila única da Secretaria da Saúde e da Unidade Móvel, e vamos estudar uma maneira de atendimento, de forma que não se forme uma nova fila. Depoimento do Vice-Prefeito de Jacareí: Este trabalho, em conjunto com a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, é extremamente importante para a nossa população. O município ofereceu toda a estrutura, as pessoas foram comunicadas, chamadas e estão todas aqui. O atendimento está transcorrendo muito bem, tranquilo. Podemos sentir a felicidade dessas famílias que ansiavam e esperavam por isso há muito tempo. É um trabalho muito bonito da Secretaria e o município de Jacareí se orgulha de participar, ser um piloto, oferecer condições e estruturas para a nossa comunidade. Depoimento dos pais de uma paciente: Somos os pais da Natália, moramos em Santa Branca. Nem sabíamos que pegaríamos a cadeira de rodas hoje. Viemos para uma triagem para saber se um dia seria possível conseguir a cadeira. Estamos ido embora muito felizes. Pedimos que essa campanha continue, pois há muitas famílias que ficarão tão felizes como nós estamos neste momento. Depoimento: É uma satisfação imensa ver o trabalho do Governo do Estado de São Paulo, com profissionais médicos, fisioterapeutas e outros ajudando os nossos municípios. Tivemos aqui o atendimento de 56 pacientes e outros que virão receber as próteses do Governo do Estado de São Paulo, que veio até aqui demonstrar o seu compromisso com a saúde 106 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação pública. É uma felicidade muito grande sentir nos olhos dos pacientes a satisfação de receber as próteses. Depoimento: Foi um sucesso; superou todas as nossas expectativas. Para mim, foi uma satisfação muito grande, estou muito feliz, pois acho que o meu trabalho foi muito recompensado. A equipe é ótima, maravilhosa. Todos trabalharam com sucesso, com muito afinco e alegria. Só de vermos que os pacientes saíram daqui satisfeitos, alguns vieram buscar um equipamento e saíram com dois ou três, foi muito recompensador. Agradeço muito a essa equipe, estou muito feliz por estar com vocês e espero estar nas próximas, se precisar. Depoimento da terapeuta ocupacional: Estamos encerrando, pois eu consegui atender os últimos pacientes nos últimos três dias. Todos ficam esperando a T. O. acabar as órteses para podermos ir embora. A sensação é de um trabalho cumprido. Para conseguir isso, eu tive a ajuda de médicos, auxiliares e fisioterapeutas. A equipe multidisciplinar que segue nessa Unidade Móvel varia entre 25 e 30 profissionais. A média de atendimentos é de 60 a 80 pacientes por dia. O tempo de permanência nas cidades varia, dependendo da quantidade de pacientes, geralmente entre um e dois dias. Quando o volume de pacientes é muito grande, o tempo pode ser maior. No primeiro atendimento, com 350 pacientes, permanecemos de segunda a sábado percorrendo as três cidades. Hermano Igo Krebs: “Robótica de Reabilitação – Novas Ferramentas para Terapia e Avaliação do AVC” Obs: O Dr. H. I. Krebs é um dos inventores de patentes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts na área de reabilitação robótica. É também fundador e mantém ações da companhia Interactive Motion Technologies, que comprou a licença dessas patentes do MIT e comercializa produtos com essa tecnologia. A área de reabilitação robótica tem crescido muito nos últimos anos. O número de publicações nessa área tem crescido de forma quase exponencial. Nos últimos anos, foram quase 700 trabalhos acadêmicos na aplicação de robótica à reabilitação. O motivo é muito simples: a população americana 107 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação acima de 65 anos tem crescido de forma constante e deverá continuar a crescer depois de 2030, porém de forma mais acelerada. Depois da Segunda Guerra Mundial, tanto nos Estados Unidos como em muitos outros países, o crescimento da população está ocorrendo de uma forma piramidal: à medida que a população está envelhecendo, está formando uma “pirâmide invertida”. Nesse aspecto, tanto o Brasil como os Estados Unidos estão bem atrás de outros países. Na Coreia, Itália e muitos países europeus, a pirâmide já é invertida, com o topo mais pesado que a base. Em 1989, começou-se a estudar o que se poderia fazer para afetar esse aumento da população de mais de 65 anos de idade. Introduziu-se então uma tecnologia um pouco diferente. Em vez de se utilizar a tecnologia para a assistência da pessoa, de forma que ela pudesse interagir com o ambiente, construíram-se máquinas para auxiliar os terapeutas e os clínicos no tratamento que ministravam. O objetivo era auxiliar o terapeuta na sua profissão. Foi uma modificação no paradigma da terapia. Um exemplo está num dos hospitais com os quais colaboramos, próximo de Nova York, com uma melhora bastante razoável, de ordem significativa, no grupo de 248 pacientes vítimas de AVC (acidente vascular cerebral) tratados com o auxílio da tecnologia robótica desenvolvida no MIT. Diversos outros trabalhos começaram a ser publicados nessa área. Uma metaanálise dos trabalhos de diferentes grupos mostrou resultados semelhantes. A conclusão é que esse tipo de tecnologia pode ser muito benéfico ao paciente. Há grandes estudos em andamento, similares aos grandes ensaios clínicos com produtos farmacêuticos. O Departamento de Administração de Veteranos das Forças Armadas Americanas concluiu no início desse ano e publicará em fevereiro um estudo que incluiu centenas de veteranos que sofreram um AVC, avaliando o impacto do uso desse tipo de tecnologia. Instituições como os Institutos Nacionais de Saúde e o Departamento de Administração dos Veteranos, ambos dos EUA, e grupos industriais como a Toyota e a Pfizer, fornecem apoio financeiro para essas pesquisas. Vídeo com cenas de uma reportagem da emissora de TV CNN sobre a clínica de reabilitação do Burke Rehabilitation Hospital e o uso da robótica desenvolvida no MIT pelos cientistas Hermano Krebs e Neville Hogan. Na academia do Burke há sete robôs. São dois terapeutas, que trabalham normalmente com seis pacientes simultaneamente (três para cada 108 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação profissional). Como já se mencionou aqui, é muito importante que tecnologias desse tipo sejam altamente interativas. O paciente está tentando atingir um objetivo, interagindo e não simplesmente movendo-se de forma passiva. É importante voltar ao início. Um professor da Cornell University, nas suas aulas aos residentes de medicina, parafraseava Voltaire, dizendo que, depois de um AVC, os médicos, os enfermeiros e os terapeutas estavam ali simplesmente para o entretenimento do paciente, enquanto a natureza seguia o seu rumo. Embora houvesse ideias de plasticidade cerebral, não se tinha certeza se era possível influenciar suficientemente essa capacidade, com um real benefício da terapia de movimento. Assim, desde o início, procurou-se resolver essa questão. Se realmente não fosse possível influenciar essa capacidade, não haveria valor para a robótica nesse campo de aplicação. Iniciou-se com um grupo de pacientes agudos e semiagudos do Burke Rehabilitation Hospital, divididos aleatoriamente em um grupo experimental e um grupo-controle. Os avaliadores não tiveram acesso a qual grupo pertencia o paciente. Além da terapia normal, o grupo experimental recebia uma hora diária de terapia robótica. O grupo-controle recebia uma hora semanal desse tipo de terapia, mas no caso o robô não assistia ao paciente. Eles usavam a mão não afetada para levar a mão afetada a fazer os movimentos dos mesmos jogos da terapia robótica. Utilizando escalas clínicas, observou-se como resultado que o grupo experimental melhorou duas vezes mais que o grupo-controle. O experimento mostrou que a terapia de movimento, de forma geral, aplicada com robótica ou não, tinha um impacto sobre a plasticidade e a recuperação do paciente. Depois que saem do hospital, a maioria dos pacientes não recebe uma terapia. Na época, vários estudos, como o Estudo de AVC de Copenhague, postulavam que, 11 ou 12 semanas após o AVC, não haveria mais possibilidade de recuperação. A recuperação obtida nas primeiras 12 semanas seria o máximo possível. De um grupo inicial de 96 pacientes, 31 foram contatados três anos após a alta hospitalar. Não somente o grupo experimental, que recebeu a terapia robótica, havia melhorado mais que o grupo-controle, mas observou-se também que ambos os grupos melhoraram ao longo do período de três anos. Portanto, aquela noção de que não adiantaria continuar com alguma terapia após as 12 semanas iniciais, já na fase crônica, não era correta. 109 Tecnologias e Saúde - Diagnóstico e Reabilitação Nos últimos quinze anos, observou-se que as variáveis envolvidas eram muitas e procurou-se identificar qual seria a influência das diferentes variáveis na reabilitação do paciente; qual seria a melhor terapia para esses pacientes. Um dos modelos utilizados, também já mencionado neste simpósio, foi utilizar conceitos do aprendizado motor como um paralelo para a reabilitação. Não há necessariamente um modelo mais correto, mas esse foi o modelo adotado. Tanto na reabilitação motora como no aprendizado motor, o objetivo é aprender rápido, mas também é manter o que se aprendeu. Dias ou semanas depois, desejamos ser capazes de repetir o que se aprendeu previamente. Foram realizadas diferentes pesquisas, com grupos distintos, procurando observar se haveria um limite de idade, qual a influência do local da lesão (dependendo do local da lesão, o paciente melhora de maneira muito diferente depois de um AVC), da prática e da intensidade dos exercícios (uma ou duas horas por dia). Há cerca de três ou quatro anos, começamos a trabalhar com algumas outras áreas. Uma delas é formada por crianças com paralisia cerebral, outra é a dos membros inferiores, além dos membros superiores, na parte de marcha. Imediatamente após o AVC, antes que o paciente esteja pronto para iniciar a terapia, ainda no quarto do hospital, 48 ou 72 horas após o AVC, inicia-se a terapia com o paciente sentado, de forma mais confortável. 110 Moda Inclusiva e Cultura Debater moda inclusiva é promover a diversidade. O objetivo é chamar a atenção para o tema, ajudando na promoção de uma sociedade mais inclusiva, bem como colaborando para elevar a autoestima das pessoas com deficiência. O crescente ingresso de pessoas com deficiência no mercado de trabalho gera consequente aumento de seu poder aquisitivo e sua demanda por produtos e serviços em geral, como peças de vestuário e programas culturais acessíveis a todos os públicos. Daniela Auler (moderadora) – Assessora da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo - São Paulo, SP Thaís Tavares Terranova – Terapeuta Ocupacional do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro - São Paulo, SP Lara Pozzobon – Diretora do Festival de Cinema do Assim Vivemos - Rio de Janeiro, RJ Camila Yahn – Diretora do Pense Moda e Editora Assistente da Revista Moda - São Paulo, SP Aline Cristina Fernandes de Nóbrega – Analista de Marketing - Vicunha Têxtil S/A - São Paulo, SP Thaís Tavares Terranova: A Terapia Ocupacional considera que a promoção e manutenção da saúde ocorre quando as pessoas são capazes de se engajar em atividades e desempenhar papéis ocupacionais que permitam a sua participação, desejada e necessária, em casa, na escola, no trabalho e na comunidade. Esse conceito baseia-se na Classificação Internacional da Funcionalidade, que encara a condição de saúde/doença como resultante não somente das estruturas e funções corporais, mas, numa visão mais ampliada, da Moda Inclusiva e Cultura participação de fato nas atividades que compõem a rotina e o dia-a-dia da pessoa nesses diferentes contextos. Tudo isso é influenciado, o tempo todo, por fatores ambientais e sociais. Nesse sentido, atividade é o ato ou ação específica de um indivíduo. Por exemplo, cozinhar. Já a participação é o ato de se envolver numa situação real de vida, envolvendo todas as características do ambiente, da atividade que está sendo realizada, a interação com as pessoas e com o ambiente. Daí vem a ideia que temos, na Terapia Ocupacional, da relação entre a atividade, o indivíduo e o meio. Essa tríade define o perfil ocupacional (as ocupações que a pessoa vai assumindo ao longo da vida, os seus papéis em todos esses contextos), o seu desempenho na atividade ou ocupação, as habilidades e padrões necessários, os fatores individuais da pessoa que realiza dada atividade e a identificação de facilitadores e barreiras para o desempenho daquela atividade. As áreas de desempenho ocupacional são as atividades da vida diária (atividades de autocuidado e automanutenção), as atividades instrumentais de vida diária (que complementam as atividades básicas, como o cuidado com a casa, o cuidado com outra pessoa, fazer compras, gerenciamento do dinheiro, etc.), descanso, sono, lazer, trabalho, estudo e brincar. Nesse contexto, vamos nos deter aqui na atividade de vestuário. Trata-se de atividade bastante comum, rotineira, que realizamos várias vezes ao dia, geralmente sem parar para pensar na sua complexidade. As tarefas relacionadas ao vestuário incluem selecionar roupas e acessórios apropriados ao período do dia, ao clima e à ocasião, ir até o local onde roupas e acessórios estão guardados e alcançá-los, o ato de se vestir e despir, ajustar e manusear complementos como botões, zíperes, cadarços, fivelas, etc. As habilidades requeridas para essas tarefas são de natureza motora (amplitude de movimentos, força, equilíbrio, etc.), sensorial (visão, tato) e cognitiva (planejamento, sequência, etc.). Em seguida, há que se considerar o que poderia facilitar e o que poderia representar uma barreira para essa atividade. Pensamos numa pessoa com deficiência, numa gestante que precisa ir várias vezes ao banheiro, um idoso com dificuldades de movimento. As peças de roupa disponíveis no mercado respondem a algumas das demandas dessas pessoas? 112 Moda Inclusiva e Cultura Considerando-se os fatores facilitadores, temos algumas estratégias para adequar as peças de roupa, às vezes de maneira personalizada, como substituir zíperes ou botões por velcro, utilizar calçados com velcro ou elástico em vez de cadarço, argolas que podem facilitar o manuseio do zíper, aberturas laterais na calça, que facilitam o desempenho de atividades como passar uma sonda, colocar ou retirar a prótese, etc. São estratégias que contribuem para o processo de reabilitação. Complementarmente, como uma tendência, há algumas inovações tecnológicas, como elásticos incorporados aos tecidos pouco flexíveis, acabamentos químicos utilizados nos tecidos que promovem hidratação para a pele, ou são cicatrizantes, bactericidas, etc. Essas opções todas estão disponíveis fora do Brasil, particularmente no mercado europeu e americano. Há empresas que produzem peças com design customizado, bastante adequadas às necessidades do cliente. As roupas sem costura já são um pouco mais comuns. Além disso, há tecidos orgânicos, com maior flexibilidade, a texturização e as etiquetas em braile. Um dos vários aspectos importantes relacionados ao vestuário é a funcionalidade (o quanto a roupa permite o bom desempenho das atividades do dia-a-dia). Essa noção não se restringe às pessoas com deficiência. É preciso que a roupa que usamos seja adequada às atividades que realizamos; ela não deve limitar a atividade. O conforto e a segurança das peças de vestuário e calçados (algumas pesquisas mostram que certos tipos de calçado impõem maior risco de queda ou torção do pé) também são aspectos importantes. Os valores, significados e costumes também são fatores importantes, pois a escolha de uma roupa não é mediada somente pela sua funcionalidade. Há que se considerar se aquela estética agrada ao seu usuário, há uma relação com a sua identidade. O vestuário está colaborando para a autoestima? Uma pessoa que nunca gostou de usar uma calça de moleton provavelmente não se sentirá bem ao utilizar uma calça desse tipo agora. Outro aspecto que pode ser levado em conta é o das tendências da moda. A título de exemplo, algumas roupas diferentes para pessoas e atividades diferentes: uma mulher grávida precisa de uma roupa confortável e com certa leveza; para dançar, a roupa precisa ter uma funcionalidade apropriada, mas a estética também é um ponto valorizado; para praticar educação física, a roupa deve ser flexível; um artista circense que utiliza uma perna de pau também precisa de uma roupa adequada para a sua atividade. 113 Moda Inclusiva e Cultura Lara Pozzobon: A produtora relata que seu conhecimento sobre a relação entre as pessoas com deficiência e a cultura provém da sua experiência na condução do Festival de Cinema Assim Vivemos e do diálogo estabelecido com as pessoas que participam do festival. O Festival Assim Vivemos é realizado bienalmente desde 2003, no Rio de Janeiro e em Brasília, no Centro Cultural Banco do Brasil, com patrocínio do Banco do Brasil. A partir deste ano, realiza-se também em São Paulo. O festival recebe inscrições do mundo todo e procura selecionar os mais variados títulos, tanto do ponto de vista geográfico como dos temas abordados. Como em qualquer festival de cinema, o critério é a qualidade dos filmes. Como se trata de um festival temático, sobre pessoas com deficiências, juntamente com a qualidade estética e técnica, considera-se também a adequação e a abordagem do tema. Por incrível que pareça, as pessoas que produzem cinema no mundo todo eventualmente não têm muita familiaridade com a questão da pessoa com deficiência. Por vezes, o festival recebe trabalhos marcados por um perfil preconceituoso, aparentemente sem que o diretor o perceba. A grande maioria das inscrições, entretanto, é de filmes feitos por pessoas entregues, apaixonadas pelo personagem retratado. A grande maioria dos trabalhos é formada por documentários. Há também filmes de ficção, nos quais atuam pessoas com deficiência. Eventualmente, o festival recebe ainda animações sobre o tema. A produtora descreve o primeiro filme produzido por ela e pelo Sr. Gustavo Acioli, o curador do Festival Assim Vivemos. Trata-se de um curtametragem de ficção, cuja personagem principal é uma moça cega. Para fazer o filme, os realizadores conheceram o universo das pessoas com deficiência visual. A atriz que fez o papel da moça cega é vidente e fez uma preparação no Instituto Benjamin Constant, que incluiu aulas de reabilitação vendada. Foi um trabalho universitário, uma produção muito modesta, tecnicamente e na sua proposta. O filme acabou tendo uma carreira muito maior que a inicialmente imaginada e foi convidado para um festival em Munique, na Alemanha. Ao descobrirem que se tratava de um festival temático, somente com filmes relacionados a pessoas com deficiências, tiveram a inspiração de fazer um festival brasileiro nos mesmos moldes. 114 Moda Inclusiva e Cultura A respeito da relação das pessoas com deficiência com a cultura, pode-se pensar em três situações. Na primeira, a pessoa é retratada na obra, seja em filmes de ficção, em documentários ou no jornalismo e, de forma mais ampla, na comunicação audiovisual em geral. Na segunda situação, a pessoa com deficiência é espectadora da obra, com todas as questões da acessibilidade, como a audiodescrição para cegos e as legendas ou a interpretação em LIBRAS para surdos. O ideal é que haja esses dois recursos, pois parte da audiência pode ter deficiência visual e outra parte pode ter deficiência auditiva. A terceira situação é aquela em que a pessoa com deficiência é criadora de arte, de conteúdo cultural. Em relação à pessoa com deficiência como espectadora, os recursos de acessibilidade disponíveis no Festival Assim Vivemos desde a sua primeira edição são a audiodescrição, com uma descrição de todas as cenas e imagens que não podem ser entendidas somente pelo áudio. Tudo o que ocorre entre os diálogos do filme, somente nas imagens, é descrito para que a pessoa que não enxerga entenda a cena: as ações físicas, o cenário, detalhes da atuação, objetos, a movimentação que ocorre no filme, etc. A audiodescrição pode ser feita no cinema, no teatro, em espetáculos de ópera. Ela permite que a pessoa com deficiência visual assista e compreenda uma obra audiovisual ou uma encenação. Em relação às pessoas com deficiências retratadas nas obras audiovisuais inscritas no Festival, observa-se que, mesmo com toda a intenção de retratar aquela realidade com sensibilidade, percebe-se que falta aos realizadores, muitos deles brasileiros, a intimidade necessária com o tema. Os realizadores não estão desarmados do preconceito ou de alguma forma de “susto” em relação à diferença. Assim, há projetos e procura-se divulgar a noção de que uma aproximação com o objeto a ser retratado, seja uma pessoa ou um grupo com deficiência ou ainda outros grupos sociais, necessariamente é preciso ter uma proximidade, uma compreensão daquilo, sem as barreiras de preconceito. Caso contrário, não será possível fazer um retrato mais natural e a pessoa não conseguirá se manifestar claramente ou mais amplamente, inclusive alcançando maior ressonância no público, por se tratar de um retrato mais integral. Na condição de criadores, existem alguns festivais no mundo que recebem filmes feitos por pessoas com deficiências. Ocorre que esses festivais acabam se tornando eventos de assuntos gerais, um festival de cinema que não tem 115 Moda Inclusiva e Cultura um foco temático. Assim, no Festival Assim Vivemos, esse não é um critério de aceitação da inscrição, pois o filme poderia tratar de qualquer assunto. Se o filme for sobre pessoas com deficiência e tiver sido realizado por pessoas com deficiência, naturalmente é possível que desperte maior interesse, mas esse não é um critério. Quanto à acessibilidade nos meios de comunicação e nas produções culturais em geral, a experiência com o Festival levou a uma descoberta óbvia: a acessibilidade é importante em todas as esferas, tanto da cultura e da informação como da mobilidade, por exemplo. Começou-se então a pensar em projetos que não tivessem um foco temático na questão da deficiência, mas que dispusessem de recursos de acessibilidade. Assim, produziu-se recentemente uma peça de teatro, de Tennessee Williams, sem qualquer relação com o tema da deficiência, mas que contou com audiodescrição e também com interpretação em LIBRAS. Não foi possível apresentar legendas, mas o público atendido ficou bem coberto por esses dois recursos. Procurase também fazer com que os produtores culturais em geral percebam que qualquer tipo de produto cultural e artístico precisa ter recursos de acessibilidade, pois esse público quer assistir a todo tipo de espetáculo, e não somente sobre os seus próprios temas. Criou-se também um website que, à medida que foi sendo desenvolvido, descobriu-se tratar de um pioneiro mundial. Trata-se do “Blindtube.com”, um portal de entretenimento com acessibilidade. Ali são apresentados curtasmetragens de todos os temas, principalmente filmes de ficção e alguns documentários, com acessibilidade. A ideia é sinalizar que a acessibilidade é um dado fundamental. Procura-se assim sensibilizar as pessoas, especialmente outros produtores, para a necessidade da acessibilidade em todo tipo de conteúdo cultural. Além do Festival Assim Vivemos, realizado apenas a cada dois anos, em três cidades do Brasil, há tentativas de se levar o Festival para outras cidades. De qualquer forma, continuará sendo um evento pontual, com duração de apenas duas semanas. Por isso, a televisão pública brasileira “TV Brasil” dispôs-se a exibir o programa Assim Vivemos, semanalmente. Atualmente, vai ao ar às quintas-feiras ao meio-dia e meia. É um programa de meia hora, com filmes que já foram exibidos no Festival e outros inéditos. No programa traça-se o perfil de um brasileiro, inserido na nossa sociedade, com a sua vida e a sua autonomia. Em seguida, é exibido um filme, na maioria 116 Moda Inclusiva e Cultura são filmes estrangeiros (de trinta e poucos filmes, apenas três são brasileiros). Assim, trata-se de um grande painel multicultural, a exemplo do Festival. Há trabalhos da Bulgária, da Polônia (por sinal, um grande país produtor de filmes sobre o tema). É um canal que permite exibir, com a ampla divulgação da TV pública aberta. Foi possível também editar um DVD com quatro curtas-metragens dos mais votados pelo público do Festival de 2007, com dois mil exemplares para distribuição gratuita a instituições. Essa iniciativa foi possível graças à entrada da Petrobras como copatrocinadora do Festival. O DVD tem legenda, closed caption e audiodescrição. Camila Yahn: Infelizmente, na moda, estamos muito atrasados. A moda que vemos nas revistas, no cinema e pouco nas ruas, que causa o desejo de se consumir uma roupa, um corte de cabelo, escolhe um padrão e o impõe à sociedade. “A mulher bonita é a Gisele Bündchen.” “A bolsa legal é aquela que custa quatro mil reais.” Infelizmente, a mídia é muito responsável por isso. A moda não é democrática. Pode começar a existir um movimento para “quebrar” um pouco a imagem de perfeição que todos passam a perseguir. As próprias telenovelas contribuem para essa idealização, da beleza cada vez mais jovem. O assunto é vasto. Muitos ainda veem a moda como algo fútil, mas esse é o segundo maior segmento gerador de trabalho em São Paulo. Portanto, o mercado a explorar é gigantesco. Tomemos, por exemplo, a GAP, uma marca americana que não atua no Brasil, e possui uma linha para grávidas, roupa de baixo masculina, roupas masculinas, femininas, para crianças, adolescentes, bebês, todas as estações do ano, de todas as cores e tecidos, roupas amplas, justas ... Por que a GAP não possui uma linha para pessoas com deficiência? Uma empresa que já possui uma boa estrutura poderia formar mais uma equipe, que pesquisasse, envolvendo também as próprias pessoas com deficiências em diferentes níveis, de forma a alcançar uma expertise e poder lançar produtos que sejam úteis, que estejam além de uma moda, que propiciem um momento de inclusão. É muito gostoso ir a uma loja, depois de olhar as campanhas em jornais e revistas, TV ou trailers de cinema, e 117 Moda Inclusiva e Cultura adquirir aquele produto, sentir-se parte daquela moda. Por outro lado, é ruim perceber que não somos bem-vindos, pois não existe ali algo que possamos utilizar. No Brasil, C&A, Renner, Riachuelo, Marisa também teriam muita estrutura para iniciar esse segmento. Se houvesse seções em cada loja voltadas para esse público, isso ajudaria muito na autoestima das pessoas. Uma calça de moleton é muito simples, fácil de usar, não tem zíper ou velcro, é confortável, aquece. No entanto, quem disse que essa seria a opção de uma pessoa com algum tipo de deficiência? Essa pessoa também quer consumir, também quer fazer parte, também olha e acha bonito, poderia consumir produtos de moda. Entretanto, não há disponibilidade de produtos para esse público. Roupas mexem muito com a nossa autoestima. A roupa traduz um pouco o nosso espírito, nosso comportamento, nosso humor. Economicamente, é um mercado a ser explorado, com muitas possibilidades. Para a pessoa com deficiência, há esse aspecto da autoestima, que é muito importante. Além disso, seria um novo espaço de trabalho para pessoas com deficiência. No primeiro concurso de moda inclusiva, realizado neste ano, muitas estilistas desenharam roupas especialmente para pessoas com uma determinada deficiência. A própria pessoa consultada desfilou com a sua roupa. Foi muito inspirador ver estilistas bem jovens, recém-formados, mergulhando numa profunda pesquisa para melhorar o dia-a-dia dessas pessoas, por meio de roupas bonitas, que favorecem a acessibilidade, dão mais independência. Não por acaso, esta discussão está ocorrendo em São Paulo, onde o mercado é muito forte, mas para ocorrer em nível nacional talvez fosse necessária uma iniciativa do poder público. Sem dúvida, uma vez iniciado um movimento nesse sentido, sensibilizando as grandes empresas, que possuem mais estrutura para a criação de segmentos específicos, ele se disseminaria para as marcas menores e eventos de moda, como a São Paulo Fashion Week e a Fashion Rio. É um longo caminho, mas muito promissor. Aline Cristina Fernandes de Nóbrega: Com base no conhecimento de empresas do ramo têxtil e do contato com empresas de aviamentos e outras, pode-se dizer que a criação de um segmento de moda voltado para pessoas com deficiência é perfeitamente possível. O Brasil tem confecções espalhadas 118 Moda Inclusiva e Cultura por todo o país, é uma área economicamente forte. Alguns dados indicam que a área de confecção é a segunda maior do Brasil, em movimento. O país conta com empresas têxteis dos mais diversos tipos de tecido, malharias, tecido plano, empresas de aviamento, confecção, etc. Muitas vezes, a pessoa com deficiência nem mesmo percebe a possibilidade de usar roupas que a satisfaçam mais esteticamente. É preciso despertar para aspectos como estética, beleza e autoestima. São aspectos que fazem parte da vida de todos. Todos querem estar bonitos, bem-vestidos. É preciso também despertar as empresas e profissionais, trazer essa discussão inicial, como o evento de moda inclusiva realizado recentemente, para um âmbito maior. Thaís Tavares Terranova: Observamos no dia-a-dia do atendimento que as pessoas com deficiência procuram soluções específicas e personalizadas para os seus problemas. Faz-se uma barra diferenciada, uma abertura para a passagem de uma sonda, uma bolsa de tecido para colocar o coletor de urina, etc. Com orientação do terapeuta, numa camisa com botões pode-se aplicar o velcro para a função de abrir e fechar, mantendo-se os botões por cima para que a aparência estética seja semelhante à camisa convencional. Assim, aparentemente a camisa está abotoada, mas o que a mantém fechada é o velcro. São medidas muito individualizadas, que inclusive respeitam as preferências do usuário. Algumas pessoas não gostam do velcro, preferem manter os botões. O uso da saia é outro exemplo. Mulheres com alguma deficiência, que gostem de usar saia, têm muita dificuldade e deixam de usar esse tipo de roupa. As calças jeans geralmente possuem bolsos posteriores, numa região sobre a qual a pessoa fica sentada o dia todo. Talvez fosse interessante posicionar os bolsos em outro lugar, facilitando o seu alcance e evitando a agressão da pele pelas costuras, geralmente muito salientes nas calças jeans. As próprias famílias das pessoas com deficiência é que providenciam essas adaptações. Aline Cristina Fernandes de Nóbrega: Percebemos que as medidas citadas são corriqueiras, que exigiriam poucas providências para a sua adoção pela 119 Moda Inclusiva e Cultura indústria, como a mudança de localização de um bolso, uma abertura adicional numa calça, etc. Ressaltamos que é possível criar soluções esteticamente interessantes que a indústria poderia incorporar às suas peças. Daniela Auler: Essas soluções surgem quando os estudantes de moda são convidados a criá-las e levá-las para o mercado, daí a importância de programas como o concurso de moda inclusiva, já mencionado. Alguns participantes do concurso já estão trabalhando no mercado com foco na criação de produtos que contemplem a diversidade, pensando na pessoa com deficiência, fora do padrão estético imposto por certo tipo de sociedade. Assim, programas que promovam uma mudança na forma de os criadores enxergarem a moda, têm um potencial muito grande para chegarem ao mercado têxtil e de confecção. Com a lei de cotas, a crescente autonomia das pessoas com deficiência, cada vez mais presentes, trabalhando, surge um mercado consumidor forte, que também pressiona toda a indústria. Aline Cristina Fernandes de Nóbrega: O estudante tem sempre uma ideia inusitada, original. Se essa visão vem desde a época da faculdade, mais ampla, naturalmente as iniciativas vão surgindo. Camila Yahn: Muitas ações podem ser realizadas. A moda, como qualquer outro segmento, deve explorar também a inclusão profissional da pessoa com deficiência. Quando um profissional recém-formado vai fazer um estágio no mercado profissional, o estilista começa cortando botão, por exemplo. É o relato do Alexandre Herchcovitch, um importante estilista brasileiro. Se entrar um botão com defeito, perde-se a qualidade do produto final. Parece uma questão menor, mas tem a sua importância. Em seguida, passa-se para outra área. Depois de algum tempo, o profissional está mais próximo daquilo que realmente deseja fazer, seja desenhar, modelar ou mexer com tecido. Essas vagas também devem estar abertas para pessoas com deficiência, que podem preencher algumas delas e se profissionalizarem naquilo que gostam de fazer. Poderia haver um portal na internet que levasse as pessoas para o mercado de trabalho. 120 A Transformação em Números No Brasil, os dados do Censo de 2000, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), indicaram um percentual de 14,5% da população com algum tipo de deficiência. Desse total, 16,7% têm deficiência auditiva, 48,0% deficiência visual, 22,9% deficiência motora, 4,1% deficiência física e 8,3% deficiência intelectual. Mais do que estatísticas, esse contingente representa uma importante parcela da população, que requer uma melhor compreensão sobre quem são e do que necessitam para a garantia de sua completa inclusão social. Cid Torquato (moderador) – Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Felícia Reicher Madeira – Diretora Executiva da SEADE - Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - São Paulo, SP Felipe Soutello – Presidente do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal - Fundação Prefeito Faria Lima - São Paulo, SP José Roberto Sevieri – Diretor-Presidente do Grupo CIPA Congressos e Eventos Comerciais - São Paulo, SP Hélio Zylberstajn – Professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo - São Paulo, SP Neyza Furgler – Gerente de Pesquisa da Cultura Data - Fundação Padre Anchieta - São Paulo, SP José Eduardo Soler – Gestor de Projetos da Secretaria de Gestão Pública do Estado de São Paulo - São Paulo, SP Felícia Reicher Madeira: A Fundação SEADE é um órgão ligado à Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo. A área de atuação da A Transformação em Números Fundação SEADE é semelhante à do IBGE: este último faz parte do planejamento em nível federal e a Fundação SEADE é um órgão estadual. O objetivo da Fundação SEADE é justamente trabalhar com números, transformar a realidade em números. Ela capta, organiza e divulga números extremamente importantes, de estatísticas, porque na verdade as pessoas têm um universo de circulação muito pequeno. Elas tendem a ver a realidade segundo esse universo de circulação e, frequentemente, se surpreendem quando os dados dizem respeito a um universo muito maior. Assim, a Fundação SEADE trabalha com indicadores de monitoramento da situação socioeconômica do Estado ou do país. Talvez o indicador mais frequente levantado pela Fundação SEADE seja o das taxas de desemprego, divulgadas todos os meses. Recentemente, divulgou o índice de vulnerabilidade juvenil. Vários órgãos das diferentes Secretarias ou mesmo da sociedade civil procuram a SEADE para desenvolver projetos, para captar as informações de gestão dos programas ou para conhecer a realidade efetiva do fenômeno tratado. A Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ao procurar o SEADE, surpreendeu pela qualidade da interlocução. Normalmente, as pessoas que procuram a SEADE para pesquisa, grosso modo, são de dois tipos. Um deles afirma que os dados disponíveis estão errados, vai levantar os dados, porque já sabe que “a realidade é assim”. O interlocutor que começa com essa postura não está esperando um retrato da realidade, mas que a realidade seja uma projeção do que efetivamente ele quer. Isso é muito comum. Do lado oposto, outro tipo de demandante que procura a SEADE não sabe como resolver o problema, não tem ideia, não tem números e nenhuma informação. É muito difícil organizar informação para quem não sabe o que quer. O diferencial da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, ao procurar a SEADE, é que as pessoas surpreendentemente sabiam o que queriam, de que forma queriam e estavam efetivamente buscando uma instituição que fornecesse informações para a implementação das políticas. O objetivo geral da colaboração da SEADE com a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência é a organização e produção de dados captados junto a instituições e prefeituras, visando a prover a Secretaria de informações para a ampliação de sua atuação e inclusão social das pessoas com deficiência. 122 A Transformação em Números São três projetos. Um deles é a geração de um cadastro de instituições públicas e privadas que atuem na área de pessoas com deficiência. Atualmente, não existe um cadastro com essas características. Uma vez definido o cadastro, um segundo projeto envolve entrar em contato com as instituições, para verificar se o cadastro está correto e levantar uma série de informações sobre essas instituições. Assim, pela primeira vez a Secretaria está organizando um cadastro que não existe atualmente, de instituições que trabalham com pessoas com deficiências. O terceiro projeto é uma pesquisa realizada diretamente com as prefeituras, para descobrir quais os municípios que efetivamente têm programas para deficientes, quais municípios não têm programas e quais são os programas existentes. Para gerar o cadastro único, é necessário consultar todos os cadastros previamente disponíveis. Por meio de um processo de palavras-chave, um avanço tecnológico muito grande, constroi-se o cadastro único. Depois de concluído o cadastro único, pode-se colocar um questionário na Internet, para coletar informações bastante detalhadas de cada uma das instituições. O interessante é que as informações cadastradas ficam num sistema, de tal forma que um gestor pode, por exemplo, quantificar as instituições apropriadas para os deficientes e obter um indicador. Outra informação é o número médio de deficientes nessas instituições. Os dados podem ser organizados por característica das instituições. Assim, não se trata de simplesmente “transformar em números”, como no título deste simpósio, aqui, mas é um instrumento de gestão da maior importância, no qual são baseados repasses de verbas para as instituições. É possível ter um monitoramento efetivo do que está acontecendo nessas instituições. No terceiro projeto, igualmente importante, as prefeituras preenchem um questionário pela Internet sobre o seu trabalho com os deficientes, a natureza do trabalho, se é vinculado a alguma ONG (Organização NãoGovernamental) ou não; é um conjunto grande de questões. O salto de qualidade se deu porque cada um desses trabalhos é feito numa relação muito estreita com a Secretaria, que conhece efetivamente o problema. Cada uma dessas informações é testada em relação à sua consistência. Assim, concluído o projeto, a Secretaria terá dois instrumentos de gestão e organização de informação extremamente importantes. Uma delas é originária das instituições que efetivamente trabalham com deficientes. A outra será um outro cadastro, que diz respeito às prefeituras. 123 A Transformação em Números Felipe Soutello: O CEPAM (Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal) é uma fundação do Governo do Estado de São Paulo, criada para ajudar os municípios no seu desenvolvimento, no seu fortalecimento. Os números que o CEPAM tem a apresentar representam o esforço do Estado e seus municípios no sentido de tornar suas cidades mais acessíveis. Há 42 anos, essa fundação vem prestando consultoria em projetos, desenvolvendo políticas públicas, fazendo a relação entre o Governo do Estado de São Paulo e as prefeituras e ajudando os municípios do Estado de São Paulo a se desenvolverem. No tema específico da acessibilidade, da pessoa com deficiência, por meio do trabalho da Adriana Almeida Prado e outros colaboradores, há 16 anos o CEPAM vem atuando em conjunto com os municípios. A transformação em números é decorrente de uma transformação política; vivemos um momento muito interessante no país e particularmente no Estado de São Paulo. Nunca a causa da pessoa com deficiência, a dificuldade de mobilidade e a acessibilidade tiveram tanta reverberação e tanto apoio político institucional. O Governador, preocupado com essa temática, criou uma Secretaria específica para isso, com uma Secretária que é um ícone do movimento, brilhante, com muita tenacidade, que está fazendo um belíssimo trabalho. Temos que transformar o momento político e não deixar que o movimento retroceda, temos que potencializar esse movimento. O CEPAM, que de alguma forma vem há mais de uma década conversando com as cidades sobre esse tema, está muito satisfeito com esta oportunidade. Desde 1993, promove uma discussão com os municípios sobre as necessidades da pessoa com deficiência. Em 1994, discutiu a participação da pessoa com deficiência na administração pública e, em 2001, houve uma parceria do CEPAM com o SEBRAE (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), chamada “Município Acessível ao Cidadão”. Talvez poucos conheçam um trabalho pioneiro muito interessante, sobre como os passageiros portadores de necessidades especiais com deficiência física devem ser tratados nos trens da região metropolitana. O CEPAM é o parceiro da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos nesse processo. Mais recentemente, o CEPAM desenvolveu com a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência três trabalhos interessantes. Em 2008, um livro reuniu todas as informações para que as cidades possam se tornar mais acessíveis, os próprios públicos, ruas, calçadas, etc. Em 2009, produziu-se um material 124 A Transformação em Números que trata do Plano Municipal de Acessibilidade e uma revista que consolida, de alguma forma, todo o trabalho realizado ao longo dessas décadas, sobretudo com a Secretaria neste último ano, mostrando os avanços da política voltada para a pessoa com deficiência no Estado de São Paulo. Depois deste breve histórico, vale mencionar três princípios de motivação para o trabalho do CEPAM. O seu campo de trabalho é a administração pública municipal. Somente quando todos os serviços públicos, todos os prédios públicos forem acessíveis a todas as pessoas, teremos uma sociedade igualitária e democrática. Este é um princípio norteador do trabalho do CEPAM. Em segundo lugar, lamentavelmente nós, seres humanos, de modo geral somos pouco criativos em incluir; somos mais criativos em excluir do que em incluir. Temos dificuldade em recepcionar e incluir o namorado novo da nossa irmã, o amigo novo na roda do bar. É um desafio muito grande mudar essa cultura, sermos mais criativos em incluir do que em excluir. Em terceiro lugar, consideramos o tamanho dessa questão no Estado de São Paulo: são 4,2 milhões de pessoas com algum dificuldade da acessibilidade. Portanto, é preciso um esforço coletivo de instituições, de empresas, de pessoas interessadas no tema, para que se possa reverter a situação. Essa é a motivação do CEPAM para essa política. Com toda a experiência que o CEPAM vem acumulando, é um grande prazer trabalhar com a equipe da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, para subsidiar a gestão pública e aprimorar a política desse segmento. Dentre os seus vários capítulos, vale destacar neste momento as oficinas de acessibilidade e o observatório. As oficinas da capacitação para elaboração do Plano Municipal de Acessibilidade constituem os instrumentos pelos quais as cidades declaram a determinação de tornar-se mais acessíveis. Há princípios para que esse plano aconteça. Um deles é a participação, para que o plano aconteça de forma democrática e aberta a toda a sociedade. Outro é a inclusão: na discussão do plano devem ser incluídas as pessoas com deficiência, para que elas possam dar o seu testemunho, ajudar e orientar a cidade na direção daquilo que é importante. Os realizadores da política devem ter poder real de transformação, como o Governo do Estado de São Paulo está fazendo com a sua Secretaria, ao menos para quebrar a inércia e colocar a política em movimento. 125 A Transformação em Números É preciso também que a ação seja matricial, que envolva todas as áreas da administração. A acessibilidade não é o mero rebaixamento das calçadas, é também educação inclusiva, é uma questão muito mais ampla. Todas as áreas da administração têm que estar envolvidas com a política de acessibilidade. O quinto tópico é que é preciso ter dinheiro. Discurso e vontade não bastam; é preciso ter dinheiro para realizar a tarefa. O orçamento público deve prever a despesa, o investimento para realização dessa tarefa. O sexto ponto é visão de futuro. O plano municipal é uma expressão de planejamento, não deve levar em conta apenas a situação atual, definir quem são as pessoas com dificuldade de mobilidade ou acesso na cidade e desenvolver um plano para agora. É preciso pensar em perspectiva de tempo. A sociedade está envelhecendo; a proporção de idosos na população aumenta num ritmo bastante acelerado. No futuro, todos teremos alguma dificuldade de mobilidade. A cidade acessível é para todos nós, não só para quem tem deficiência, mas também para quem tem alguma dificuldade circunstancial. O último ponto, mais importante e difícil de acontecer, é a mudança de cultura. O arquiteto, ao projetar a nova escola ou o novo equipamento urbano, precisa incorporar o conceito da acessibilidade desde o projeto. Ninguém precisaria lembrar a ele da necessidade de uma rampa, de um piso tátil ou algo parecido. Essa questão precisa ser incorporada à nossa vida como algo cotidiano. Quando esse dia chegar, não precisaremos mais de um Plano Municipal de Acessibilidade, pois a acessibilidade estará presente em todas as políticas. A partir desses princípios, foram realizadas 18 oficinas, junto com a Secretaria, pelo Estado de São Paulo. Foram contatadas mais de 600 pessoas, entre técnicos públicos, pessoas ligadas a ONGs, membros de conselhos, empresas, do Ministério Público, pessoas interessadas na questão e membros da imprensa. Foram atingidas diretamente 218 cidades no Estado de São Paulo, ou um terço dos municípios paulistas. Mais importante do que essa cobertura territorial é que esse conjunto de cidades significa 64,5% da população do Estado de São Paulo. As conversas envolveram os líderes, as pessoas que fazem a política pública acontecer. Esse é o número bastante significativo do esforço que está sendo feito para levar a mensagem da mudança de cultura para o interior do Estado. As principais conquistas alcançadas foram três. A primeira foi a troca de experiência, os contatos, os laços refeitos, a união para uma causa importante. A segunda foi que a questão dos direitos da pessoa com deficiência foi 126 A Transformação em Números iluminada, passou a ser enxergada com maior impacto. Existe uma cobertura espontânea da mídia em todo o Estado de São Paulo, que cobriu eventos, colocou o assunto nos jornais e no rádio, fortaleceu a causa. Em terceiro lugar, foram plantadas as sementes de que as cidades precisam ter Conselhos Municipais, gestores, algum tipo de estrutura com pessoas preocupadas com essa questão, para que a política possa acontecer. Outro lado do nosso trabalho é a questão do observatório. Trata-se de um projeto complementar ao que a Fundação SEADE e a Secretaria vêm desenvolvendo. Experiências interessantes nessa área estão sendo registradas. Todos estão convidados a fazê-lo, por intermédio de um link na internet. É importante que as pessoas possam conhecer o que está sendo feito de bom, o que há de interessante acontecendo no Estado, que os municípios possam compartilhar e levar aos outros as coisas que já deram certo. É preciso aumentar a escala, precisamos aumentar o número de pessoas que pensam sobre esse assunto. Trocar experiências, disseminar iniciativas é um instrumento muito importante. Já estão catalogadas 73 experiências, que representam iniciativas espalhadas pelo Estado, em acessibilidade, em Conselhos Municipais, em educação inclusiva, em iniciativas na área de transporte, etc. Cabe aqui uma menção elogiosa à Prefeitura de São Paulo, que tem dado um exemplo de política no setor, que pode ser evidenciado no número de calçadas acessíveis, na melhora das calçadas da cidade, na Operação Passeio Livre, no rebaixamento de guias, no volume de ônibus acessíveis, com um aumento de quase dez vezes na frota, ao longo dos últimos cinco anos. Vinte e três das experiências catalogadas estão na região metropolitana de São Paulo, que tem dado um passo importante no sentido de uma política mais inclusiva. Há exemplos em todo o Estado de São Paulo, mas precisamos de mais. Todos estão convidados a participar e a espalhar a informação de que a Secretaria tem um observatório, quer conhecer as ideias e iniciativas e trocar experiências. José Roberto Sevieri: Já se afirmou neste simpósio que é preciso mudar a cultura. Até dez anos atrás, achávamos que não havia deficientes no Brasil, pois não os víamos. Não se pode mudar a cabeça para uma questão que não sabemos que existe. Muitos questionam: por que fazer adaptações se não aparece ninguém? Não aprendemos algo que não sabemos que é preciso 127 A Transformação em Números aprender; temos que ser estimulados para isso. A ReaTech (Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade) procura produzir um impacto e levar à sociedade muitas informações sobre as necessidades das pessoas com deficiência e as necessidades da sociedade, de enxergar melhor essa realidade. Projeção de um vídeo produzido para divulgar a ReaTech 2009, com a seguinte narração: ReaTech 2009 – a maior feira de reabilitação e acessibilidade do Brasil. Venha ver o que há de melhor em equipamentos, serviços e novas tecnologias. A ReaTech 2009 contará com vários eventos, além de uma variada programação destinada à atividade e inclusão social. Centro de Exposições Imigrantes, de 2 a 5 de abril. ReaTech 2009 – Um Mundo Novo em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade. Esse vídeo foi veiculado nos quinze dias que antecederam a feira, em vários canais de televisão, levando informações sobre a feira e também sobre acessibilidade. Na sua primeira edição, em 2002, a feira ocupou uma área de apenas 4.000 metros quadrados, dos quais 2.000 metros quadrados foram ocupados com os estandes, e recebeu 7.600 pessoas. O número estimado para indicar o sucesso do evento seria de 4.000 pessoas, e chegou quase ao dobro disso. Em 2003, foram 10.700 pessoas; em 2004, quase 14.000 pessoas; em 2005, 17 mil pessoas; em 2006, 18 mil pessoas. Em 2007, houve um salto para 30 mil pessoas. Em 2008, imaginava-se que o público seria de 32 ou 33 mil pessoas, mas chegou a 37 mil e, em 2009, voltou para 35 mil pessoas. É a maior concentração de pessoas com deficiência da América do Sul, a segunda maior do mundo. Talvez, a ReaTech perca somente para a feira da Alemanha. Todas essas pessoas juntas acabam conseguindo convergir, falar e passar informações que também não sabemos, precisamos aprender. Por exemplo, um projeto de lei do Deputado Arnaldo Faria de Sá prevê que as pessoas com deficiência aposentadas tenham o direito de suspender a aposentadoria para assumir um emprego. Se o emprego não der certo, a pessoa pode voltar para a aposentadoria. Enquanto a aposentadoria está suspensa, a pessoa não está tomando dinheiro da previdência e ainda recolhe 128 A Transformação em Números dinheiro aos cofres da previdência, mas mesmo assim essa possibilidade não está prevista nas leis previdenciárias. No início do Governo Lula, todos os benefícios fiscais foram cortados, inclusive aqueles das pessoas com deficiência. Em quatro meses, conseguimos aprovar um projeto de lei no Senado, para que retornassem os benefícios a todas as pessoas com deficiência. Participamos também da confusão das vagas nos estacionamentos dos shoppings, que hoje são obrigados a chamar a polícia para tirar um carro estacionado indevidamente na vaga para deficientes. Se o shopping não chamar, pode ser multado. Se a polícia for chamada, tem que tomar as providências. Conseguimos neste ano criar a Carteira Nacional da Pessoa com Deficiência, permitindo que um deficiente estacione o seu carro em qualquer vaga para deficientes no país. Até então, uma pessoa de São Paulo, com deficiência, que estacionasse numa vaga de Santo André, seria multada, porque as vagas de Santo André eram para os deficientes de lá e não de São Paulo. A associação da feira, juntamente com as mais de 35 mil pessoas que a frequentam, mostra caminhos, representando uma massa muito grande de pessoas, buscando o sucesso das políticas e mudando a cabeça das pessoas para esse assunto. A área da feira evoluiu da seguinte maneira: em 2002 a feira ocupou uma área de 2.300 metros quadrados, em 2003 e 2004 a área foi de 3.800 metros quadrados; em 2005 foi de 4.500 metros quadrados. Junto com o crescimento da feira, aumentou a sua importância; as associações e as empresas que trabalham nesse setor foram aderindo. Presenciamos um grande crescimento das empresas do setor, que trouxeram novidades e atendem mais e melhor a todas as pessoas. Em 2006, a área foi de 5.000 metros quadrados, em 2007 foi de 6.000 metros quadrados, em 2008 foi de 7.700 metros quadrados e, em 2009, de 6.400 metros quadrados, dentro de um ambiente de 22 mil metros quadrados. Os valores descritos referem-se às áreas de estandes para atender a pessoas com deficiência. Temos ainda toda a área de esportes, a área das entidades, de artistas, etc. Esses números acabam fazendo com que a feira tenha bastante força para chamar a imprensa, para que a imprensa possa falar à sociedade que a pessoa com deficiência tem importância, precisa de atenção e de políticas. 129 A Transformação em Números Trecho do Jornal Nacional, da TV Globo, que abordou o assunto: Fátima Bernardes: Uma feira em São Paulo apresentou soluções tecnológicas para ajudar milhões de brasileiros que têm necessidades especiais. É o que nós vamos ver agora na reportagem de Alan Severiano. Alan Severiano: O interruptor ficou mais baixo, o corredor é largo e a janela está ao alcance de quem usa cadeira de rodas. Depoimento de uma cadeirante: “É muito bom poder olhar pela janela e ver o que está acontecendo lá fora, sem ter que ficar se erguendo ou fazendo malabarismos.” Alan Severiano: A partir de agora, os conjuntos habitacionais em São Paulo serão erguidos nesse padrão. O custo da casa acessível é 5% mais alto. Depoimento: Isso vale não só para a pessoa com deficiência, mas também para pessoas com mobilidade reduzida: o idoso, a pessoa obesa, a mulher gestante, entre outros. Alan Severiano: Esse equipamento, que parece um aparelho auditivo, promete melhorar a qualidade de vida de quem sofre de gagueira. Depoimento: A pessoa vai usar o aparelho na orelha e terá a sensação de estar falando junto com outra pessoa, de forma que a gagueira é reduzida. O efeito é obtido por meio de um pequeno atraso, ajustado com o uso de um computador. Alan Severiano: Metade do mercado para pessoas com deficiência é de carros adaptados, o que explica a presença maciça de montadoras e fabricantes de peças de adaptação. Aqui, a tecnologia é cada vez mais evoluída. A maior barreira continua sendo o preço. Um carro adaptado custou a este taxista 30 mil reais a mais do que o comum. Para quem tem carro particular, a última tecnologia à disposição do passageiro é um banco que se acopla à cadeira de rodas e custa 40 mil reais. Depoimento: Começando a se disseminar no mercado, o preço será reduzido. Alan Severiano: Foi o que aconteceu com o equipamento comprado por Valdir, que em três anos caiu de 4 mil para 2 mil e oitocentos reais. 130 A Transformação em Números Depoimento: A gente agora pode sair para tudo quanto é lado, balada, praia... Esse equipamento é a nossa liberdade. Uma matéria desse porte no Jornal Nacional custa mais de 450 mil reais. Para custear o conjunto de tudo o que saiu na televisão apenas neste ano, seria necessário mais de 1,5 milhão de reais. No Jornal da Tribuna, saiu uma matéria de página inteira sobre a feira e as necessidades das pessoas com deficiência. O jornal O Estado de Minas e a revista Caras abordaram o mundo das pessoas com deficiência. O Jornal da Tarde destacou a “feira de mobilidade” e os jornais O Estado de São Paulo, Metrô News, São Paulo News, O Dia, o Jornal do Comércio, o Diário do Paraná e muitos outros noticiaram a feira. A revista Época também noticiou a feira. A Folha de São Paulo fez um caderno inteiro, como se fosse o Salão do Automóvel. Na verdade, a ReaTech é a segunda maior feira de automóveis do Brasil, pela participação das montadoras. A ReaTech não é apenas uma feira de automóveis; é uma feira de soluções, com tudo o que se possa imaginar do mundo das pessoas com deficiência. A edição do próximo ano terá sinalização para cegos, com piso tátil em toda a feira e um balcão de informações em cada rua da feira para orientar os visitantes. A quadra mudará de figura, o palco será invertido, com a frente para a parede, para diminuir a quantidade de ruído, a ecoterapia será mantida e, no lugar da fazendinha, faremos a “pet-terapia”. A ReaTech faz o seu papel de apresentar soluções para pessoas com deficiência; é um shopping temporário, um local aonde as pessoas vão se ver e até namorar, inclusive três casamentos já foram realizados no palco da feira, pois os noivos haviam se conhecido lá. É também um local onde as pessoas conseguem buscar um novo emprego, pois há empresas procurando currículos, e conseguem levar as suas dificuldades. Hélio Zylberstajn: O mercado de trabalho finalmente parece que está se abrindo para as pessoas com deficiência, e já podemos medir o grau dessa abertura. O Brasil é um país muito rico em dados do mercado de trabalho e, surpreendentemente, as estatísticas de trabalho separam os deficientes. Portanto, podemos saber exatamente quantos são, quem são, o que fazem, enfim todo o perfil das pessoas que estão empregadas. São informações muito interessantes, das quais faremos uma síntese. 131 A Transformação em Números O Dr. Hélio Zylberstajn menciona que, além de professor de economia da USP, é pesquisador da FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, órgão de apoio à Faculdade de Economia da USP. A Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência contratou a FIPE para montar um boletim periódico sobre a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. O nome do projeto é MODEM – Monitoramento da Inserção da Pessoa com Deficiência no Mercado de Trabalho. As informações são obtidas a partir da RAIS – Relação Anual de Informações Sociais, que todas as empresas devem apresentar anualmente, fornecendo detalhes do seu quadro de funcionários ao Ministério do Trabalho, que divulga as estatísticas resultantes. A RAIS, na verdade, está disponível para qualquer cidadão, no website do Ministério do Trabalho. O que a FIPE fez foi organizar os dados da RAIS com a finalidade de monitorar o trabalho dos deficientes. Em relação ao tipo de deficiência, nos dados de 2008 observa-se uma predominância (56%) do deficiente físico. O deficiente auditivo representa 28% e os outros tipos de deficiência têm uma participação menor. Assim, além de sabermos quantos são os deficientes no mercado de trabalho, podemos observar qual o seu tipo de deficiência no setor formal da economia. Dentre as 20 ocupações mais importantes para os trabalhadores com deficiência, está a ocupação de escriturários, onde atuam 14% dos trabalhadores com deficiência. É uma proporção maior do que a dos escriturários no conjunto total dos trabalhadores. Ou seja, em algumas ocupações há uma propensão maior a aceitar os trabalhadores com deficiência. É possível fazer essa mesma análise para as 585 famílias ocupacionais. Foram selecionadas somente as 20 mais importantes. De maneira semelhante, alguns setores são muito mais receptivos para os trabalhadores com deficiência: 32% dos trabalhadores com deficiência estão na indústria. Nos trabalhadores em geral, essa proporção é de 20%. Esses dados mostram um mapa da ocupação dos trabalhadores com deficiência. Outro setor bastante acolhedor é o de educação: há uma proporção muito grande de trabalhadores com deficiência no setor de educação. Outros setores são menos acolhedores. 132 A Transformação em Números Os dados podem ser regionalizados e até municipalizados. O prefeito de uma cidade qualquer do Brasil pode saber qual a participação dos deficientes no mercado de trabalho da sua cidade. Naturalmente, esse projeto refere-se somente ao Estado de São Paulo. As regiões administrativas mais acolhedoras são as de São José dos Campos, Campinas e Bauru, nas quais a proporção de deficientes é maior do que a proporção dos não deficientes. Provavelmente, esse dado indica uma intensidade maior de políticas públicas para promover a inclusão dos deficientes. Quanto ao gênero, em geral há uma facilidade maior de colocação dos homens do que das mulheres com deficiência. Dos trabalhadores com deficiência, 64% são homens e 36% são mulheres. Nos trabalhadores em geral, a proporção de homens é um pouco menor. Os dados da RAIS mostram também a escolaridade. A proporção de trabalhadores com deficiência e educação superior é muito grande. Aparentemente, o mercado recepciona mais os trabalhadores com deficiência com educação de nível universitário. Nos outros níveis, a proporção de deficientes é menor do que a do restante do mercado, enquanto no nível universitário parece que há uma propensão maior. Os trabalhadores com deficiência são ligeiramente mais idosos do que o restante dos trabalhadores, o que pode indicar diversas coisas. Por exemplo, pode indicar que o jovem com deficiência tem um dificuldade maior para se inserir, por isso a idade média seria maior. É uma possibilidade. Os trabalhadores com deficiência que têm a menor idade média são trabalhadores com deficiência mental. Em relação ao tamanho do estabelecimento, nos dados de 2007 e 2008, há uma predominância dos estabelecimentos de maior porte. É nesses estabelecimentos que os trabalhadores com deficiência estão conseguindo se inserir mais. De um ano para o outro, observa-se também um aumento da participação de estabelecimentos de tamanho médio, o que talvez seja resultado da intensificação da política de inclusão. Sobre os salários, há um achado surpreendente. O salário médio dos trabalhadores com deficiência é maior do que o dos trabalhadores em geral. A distribuição não é igual: os com deficiência auditiva são os que recebem maiores salários e os trabalhadores com deficiência mental recebem menores salários. Provavelmente, estes últimos exercem funções mais mecânicas, mais 133 A Transformação em Números manuais, com reflexos no salário médio. No conjunto, entretanto, os trabalhadores com deficiência recebem salários mais altos que os demais trabalhadores. É difícil encontrar um emprego, mas, quando se consegue incluir o trabalhador, a remuneração é relativamente boa, comparando com o restante do mercado. Os maiores salários estão nos setores de informação e comunicação; os menores em alojamentos e alimentação. A distribuição salarial é bastante heterogênea, refletindo a heterogeneidade do próprio mercado de trabalho. É possível também saber quais setores pagam mais e quais pagam menos aos trabalhadores com deficiência, em comparação com os trabalhadores em geral. Por exemplo, no setor de eletricidade e gás, o salário médio em geral é de quatro mil reais e dos trabalhadores com deficiência é de 1.600 reais. Outra informação fornecida pela RAIS é sobre o tempo de serviço e a jornada. Em média, o trabalhador brasileiro fica 54 meses no seu emprego. O trabalhador brasileiro com deficiência fica 78 meses. Essa duração também varia com o tipo de deficiência. Em termos de rotatividade, surpreendentemente o trabalhador com deficiência está melhor do que os trabalhadores em geral. A jornada média no Brasil é de 41 horas por semana. Essa é uma informação interessante, pois há no Brasil uma campanha para a redução da jornada, mas ela já é relativamente pequena. O Brasil se compara muito bem, em termos internacionais, na questão da jornada de trabalho. O trabalhador com deficiência faz uma jornada menor, em torno de 40 horas. Mais uma vez, esse dado varia de acordo com o tipo de deficiência. O trabalhador com deficiência auditiva faz jornadas de 44 horas, um pouco acima da média. O trabalhador com deficiência física faz jornadas de 36 horas. Esses são os dados produzidos. Na verdade, os dados já existiam; a FIPE apenas os organizou. Há um trabalho em andamento, com outro conjunto de dados, também do Ministério do Trabalho, que é o CAGED – Cadastro Geral de Empregados e Desempregados. Ele mostra a oscilação do emprego no mês (é um dado mensal). Com isso tudo, pretende-se produzir um boletim trimestral, acompanhando o mercado de trabalho no Estado de São Paulo para os trabalhadores com deficiência, em nível municipal. Será possível para qualquer cidadão entrar na Internet e obter informações muito detalhadas, muito ricas e precisas sobre a inclusão dos trabalhadores com deficiência no mercado de trabalho. 134 A Transformação em Números A outra parte do projeto MODEM será realizada no próximo ano, com uma pesquisa de campo, pois os dados atualmente disponíveis dizem muito, mas não dizem tudo. Seria interessante entrar nas empresas em que há trabalhadores com deficiência e realizar entrevistas de campo, para verificar como elas estão no seu trabalho, se estão satisfeitas, em que condições trabalham, como se comparam, em condições de tratamento e de trabalho, com os outros trabalhadores. Essa pesquisa envolverá algumas dezenas de estabelecimentos no Estado de São Paulo. A expectativa é que os resultados sejam positivamente surpreendentes. As notícias descobertas até o momento são muito boas. Imaginava-se que o quadro não fosse muito favorável, mas aparentemente as coisas estão caminhando bem no mercado de trabalho. Neyza Furgler: Informação e conscientização são essenciais para a inclusão da pessoa com deficiência e para o desenvolvimento de ambientes mais integradores e receptivos. Para isso, é preciso primeiramente disseminar a informação e analisar a produção de conteúdos. A disseminação de informação se dá pelos meios de comunicação, por exemplo a televisão, principalmente a televisão pública. A análise da produção de conteúdos é feita por meio de pesquisas. É bem sabido que a abrangência da televisão no Brasil é imensa. A televisão é o meio “horizontal”: 95,1% dos domicílios brasileiros têm televisão. Em todas as regiões do país, esse índice é bastante alto. A TV está em primeiro lugar na lista de itens mais importantes do dia-a-dia: 77% dos brasileiros veem TV. Oitenta e um por cento dos brasileiros passam cerca de quatro horas diariamente na frente da TV. Portanto, a TV é a principal fonte de informação dos brasileiros; praticamente seis em cada dez brasileiros preferem a televisão como meio de informação. Todas essas informações foram obtidas pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística). Em resumo, a televisão é o principal meio de comunicação e informação no Brasil, tem alta abrangência e penetração, está inserida nos hábitos de consumo do dia-a-dia dos brasileiros, é a mídia da maior alcance (talvez 135 A Transformação em Números somente o rádio chegue próximo da TV) e potencializa o impacto e a visibilidade de iniciativas locais. Ela pode contribuir de maneira significativa para a conscientização da população e a disseminação de informações. A TV Cultura, por excelência a TV pública do Estado de São Paulo, atinge diariamente cerca de 3,4 milhões de pessoas. A título de comparação, a circulação dos jornais diários Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, Agora São Paulo e Diário de São Paulo é de 751 mil por dia. Assim, a TV cultura atinge quatro vezes e meia mais domicílios em um dia do que a média das edições dos jornais diários somados em São Paulo. A TV Cultura tem, no Estado de São Paulo, uma cobertura de 93% (mais de 400 municípios) ou 36 milhões de pessoas somente no Estado de São Paulo. Se considerarmos o Brasil, por meio das antenas parabólicas, estimadas em cerca de 15 milhões, cerca de 52 milhões de domicílios ou quase 180 milhões de pessoas são atingidas pelas emissoras públicas em todo o país. Assim, a TV Cultura, como uma TV pública do Estado de São Paulo, tem o papel de usar a sua abrangência e penetração em prol do desenvolvimento social. Um programa chamado “Vida em Movimento” foi ao ar entre novembro de 2008 e março de 2009. Esse programa tratou da inclusão, por meio da prática de atividades físicas, de educação, de trabalho, de esportes, de recreação, de acessibilidade e de tecnologias assistivas. O apresentador do programa era o Dudu Braga, que é também uma pessoa com deficiência. A exibição era feita todos os sábados. Na semana passada houve o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência e a TV Cultura reprisou esse programa de segunda-feira, dia 30/11, até sábado, dia 5/12. O perfil do telespectador, quando da exibição de novembro a março do ano passado, era ligeiramente mais masculino do que feminino, com participação majoritária de pessoas acima de 35 anos, mas com 22% entre 4 e 17 anos de idade. Houve um predomínio das classes A, B e C, com cerca de sete pessoas em cada dez. A audiência média foi de 0,8%, a participação foi de 1,9% e os picos de audiência ocorreram em novembro, com 1%, e em janeiro, com 0,7%. Na região metropolitana de São Paulo, 1% significa cerca de 58 mil municípios atingidos. O alcance do programa, ou seja, o número de pessoas que viram algum programa durante no mínimo um minuto, de novembro de 2008 a até março 136 A Transformação em Números de 2009, foi de mais ou menos 1,2 milhão de pessoas na grande São Paulo. Projetando-se esse dado para o Estado de São Paulo, chegamos a mais de 1,5 milhão de domicílios e mais e 2,3 milhões de pessoas atingidas. A conclusão é que, quando se quer informação e conscientização, essenciais para a inclusão de pessoas com deficiência e o desenvolvimento de ambientes mais integradores e receptivos, é preciso usar esse meio de comunicação que é a televisão. A mídia TV tem um papel relevante nessa conscientização da população brasileira, pelo seu alto índice de afinidade e penetração. Passando para o outro item, de análise da produção de conteúdos por meio de pesquisas, a Fundação Padre Anchieta – TV Cultura, em parceria com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, está desenvolvendo um projeto de pesquisa em três etapas. A primeira etapa é qualitativa, com a população em geral. A segunda etapa, também qualitativa, vai se constituir de entrevistas em profundidade com públicos específicos, empresários, formadores de opinião, e também de discussões em grupo. Por fim, haverá uma etapa quantitativa, pela aplicação de um questionário estruturado, também junto a públicos específicos. O objetivo dessa pesquisa, num primeiro momento é compreender como a população encara a deficiência, esteja ela envolvida ou não com esse assunto. É uma exploração mais conceitual, para saber o que as pessoas pensam, quais são as atitudes, os comportamentos a respeito dos preconceitos, pré-juízos que as pessoas têm, sentimentos, reações diante de uma situação que envolva pessoas com deficiência, que possam nortear o discurso de mudança de atitude com relação a pessoas com deficiência. A pesquisa pretende captar justamente o sentimento mais subliminar das pessoas, ver aflorar os preconceitos e pré-juízos, para tomar decisões a respeito da comunicação. Após esse estudo conceitual, serão avaliadas as expectativas dos jovens com deficiência, em relação ao seu futuro, sobretudo ao futuro profissional, as expectativas das famílias desses jovens e, além disso, o nível de conhecimento de programas direcionados para pessoas com deficiência, de oficinas de preparação para o trabalho em instituições especializadas, e de como se dá o processo de inserção e integração dessas pessoas no mercado competitivo do trabalho. O trabalho pretende também avaliar a opinião dos empresários e dos gestores das empresas públicas sobre o trabalho de pessoas com deficiência e o 137 A Transformação em Números processo e mecanismo de sua inclusão. Essas pesquisas e os demais estudos mencionados previamente permitem a compreensão de como a deficiência é percebida no Brasil, quais são as formas de aprimorar as condições para as pessoas com deficiência, enfim, permitem elaborar um quadro da situação, para que se possa avançar no processo de inclusão. Nesse contexto, a TV tem o papel de potencializar a informação e a conscientização das pessoas em relação a todos os temas abordados neste evento. José Eduardo Soler: A Secretaria de Gestão Pública do Estado de São Paulo é uma Secretaria-Meio, que provê recursos e habilidades para ajudar outras Secretarias. Estão vinculadas a ela a FUNDAP (Fundação de Administração Pública do Estado de São Paulo) e a PRODESP (Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo), onde são executados os programas Poupatempo e Acessa São Paulo. A missão da Secretaria é ampliar a capacidade da administração pública e prover ferramentas tecnológicas de informações gerenciais. A Unidade de Tecnologia da Informação e Comunicação provê a idealização dos recursos de tecnologia para as diversas Secretarias estaduais, políticas de TIC (tecnologia da informação e comunicação) e políticas de acessibilidade nas questões de tecnologia. A solução “Informações Inteligentes” é um projeto que visa a captar, extrair e gerar informações gerenciais para que a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência tenha maior foco e efetividade nas suas ações. Há hoje pessoas com deficiência cadastradas nos diversos órgãos da administração, cada uma de um jeito, cada uma da sua forma diferente. Uma Secretaria não fala com a outra sobre aspectos dos deficientes. Uma pessoa cadastrada na Secretaria de Educação precisa fazer um novo cadastro na Secretaria da Saúde, outro para solicitar um bilhete único, etc. Assim, não se pode mensurar os benefícios que as pessoas com deficiência recebem do Estado. Em parte, este é o trabalho confiado à Secretaria de Gestão Pública. A ideia é unificar as bases de informações das pessoas com deficiência, cadastradas nos órgãos da administração paulista, seja direta ou indireta, com a finalidade da apoiar nas decisões da Secretaria. É um projeto conjunto 138 A Transformação em Números das duas Secretarias, um trabalho em conjunto da Secretaria de Gestão Pública e da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O ambiente da aplicação desenvolvida no projeto, baseado na rede interna do Governo Estadual, tem algumas abas no lado esquerdo da tela, nas quais é possível identificar alguns tipos de visões possíveis do cidadão com deficiência. Temos hoje a base dos servidores públicos com deficiência no Estado de São Paulo, comparada à base do IBGE de 2000. A Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência terá os dados na mão, para manusear conforme a necessidade, seja por região administrativa, por município, programa ou benefício. Na população do Brasil, com 168 milhões de pessoas, 24 milhões são deficientes, ou seja, 14% da população brasileira tem alguma deficiência. A proporção no Estado de São Paulo é de 11,35%. Os servidores públicos do Estado de São Paulo são 603 mil, sem considerar as universidades, instituições e empresas vinculadas. Destes, são deficientes físicos auditivos, visuais ou motores cerca de 11 mil, o que equivale a 1,9%. Como a proporção determinada por lei é de 5%, o Estado ainda tem esse déficit e a próxima ação é tentar mudar esse número. Temos o dado, agora podemos trabalhar em cima desse número. Até pouco tempo atrás, não se sabia qual era a real proporção de deficientes funcionários públicos no Estado. São números importantes, que permitem identificar o que está faltando no Estado para melhorar em termos de servidores, trabalhistas. A aplicação permite identificar a natureza da ocupação, qual é o tipo de deficiência que determinado servidor tem e qual o seu endereço. É um projeto que disponibiliza os dados para que a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência possa organizá-los conforme a sua necessidade. Com base nos endereços das pessoas, podemos determinar o melhor endereço para um centro de reabilitação naquela região ou mesmo deslocar a unidade móvel de reabilitação para perto dessas pessoas. Quando a aplicação dispuser das bases das outras Secretarias e dos outros órgãos, poderemos saber exatamente quais são as pessoas, onde elas estão, quais os benefícios que recebem e quais os benefícios que podem receber. Com a unificação dessas bases, será possível identificar quem é o cidadão com deficiência, que recebe um benefício na saúde, na educação, tem isenção de impostos, tem desconto no DETRAN para o seu veículo, tem uma habilitação diferenciada. Ainda mais: por que aquela pessoa não tem o benefício, por exemplo, do cartão-cidadão? Num caso como esse, seria 139 A Transformação em Números possível fazer uma ação direcionada para aquele grupo de pessoas. Esse é o objetivo do projeto. O grupo de trabalho conta com pessoas da Secretaria de Gestão Pública e da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Inclusive, a própria Dra. Linamara é um membro efetivo da equipe, que atua e discute com os demais. Todos aqueles que disponham de uma base de dados que permita identificar as pessoas com deficiência estão convidados a entrar em contato com o grupo. É preciso que essas bases sejam alimentadas no ambiente do projeto. No encerramento deste simpósio, a Dra Linamara Rizzo Battistella reafirma a importância das informações apresentadas, que têm sido a base de sustentação das políticas da Secretaria, mudando o conceito de que o Estado vai trabalhando sem uma boa dimensão dos números e seus significados. Graças aos esforços do SEADE, da PRODESP, da Secretaria de Gestão, da Cultura Data e da FIPE, pode-se ter uma dimensão do mercado de trabalho, identificar as instituições, saber o que pensam as pessoas com deficiência, entender esse mercado novo descortinado pela ReaTech. Tudo isso é muito importante para subsidiar o governo na definição das políticas que realmente importem e atinjam as pessoas com deficiência. É importante ver o quanto o governo está empenhado, observar o resultado prático de uma política pública muito bem sustentada. A ação do Governador José Serra tem colocado São Paulo numa situação muito diferenciada, certamente como bom exemplo para o restante do Brasil. As pessoas começam a entender a importância de se trabalhar com dados e informação. 140 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Devemos levar em conta a acessibilidade e usabilidade de bens e serviços públicos pelas pessoas com deficiência, com especial atenção ao espaço urbano, às edificações e aos sistemas de transporte. A atual legislação cobre todos esses aspectos, mas sua aplicabilidade ainda é um desafio para os governantes. Contudo, havendo vontade política, é possível desenvolver ações emblemáticas, que resultam na melhora da qualidade de vida para toda a sociedade. Marco Antonio Pellegrini (moderador) – Coordenador de Acessibilidade da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Jorge Gonçalves dos Santos– Diretor da Federação Nacional das AVAPES Associações para Valorização de Pessoas com Deficiência - São Paulo, SP Luciano Marques de Souza – Coordenador de Defesa de Políticas para Pessoas Portadoras de Deficiência da Prefeitura Municipal de Santos, SP Daniella Bertini – Arquiteta da Assessoria de Projetos da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida - Prefeitura Municipal de São Paulo, SP Jorge Gonçalves dos Santos: A Federação das AVAPES foi criada para articular e representar as organizações federadas do movimento AVAPE no Brasil. Ela conta atualmente com unidades licenciadas desse programa e metodologia em dez cidades. A AVAPE é uma organização que atua há 27 anos na área de reabilitação clínica, profissional, capacitação e inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Ao desenvolver um trabalho para inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, percebeu que, nos espaços da empresa, havia uma dificuldade de inserção da pessoa com deficiência. Iniciou assim um programa de análise ocupacional e Acessibilidade no Mobiliário Urbano neurofuncional, para adaptar a função à pessoa e à realidade do ambiente da trabalho. Com esse trabalho, realizado por um grupo de profissionais de várias áreas, cujo responsável é um neurologista, percebeu-se que não somente a empresa precisava se adaptar, mas também os municípios, como está previsto na legislação. A AVAPE desenvolve uma minuciosa avaliação técnica de orientação e mapeamento, quanto às questões da acessibilidade, de forma universal. Em relação às cidades, faz um diagnóstico, um mapeamento da acessibilidade no município e a qualificação para o atendimento das pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Na cidade de Socorro, no interior de São Paulo, desenvolveu-se um projeto nesses moldes porque, coincidentemente ou não, o plano do Ministério do Turismo era um plano de inclusão e não havia nenhuma organização com experiência nessa área para discutir a questão do mobiliário e vencer as barreiras normais, dentro do município, na Associação Comercial, nos conselhos regionais, nas empresas, etc. Os empresários questionavam se as adaptações dariam resultados, se com as mudanças receberiam turistas, se haveria interessados. Um atrativo estava nos recursos propícios para o turismo de aventura. Já existia na cidade uma atividade na área da aventura, de esportes radicais. O processo conduzido pela AVAPE foi exatamente o mapeamento e a qualificação para quem trabalha no atendimento da pessoa que chega à cidade. A convite do Ministério do Turismo, houve um trabalho de qualificação e inserção de pessoas com deficiência na rede hoteleira do Rio de Janeiro. A cidade do Rio tem vários problemas de acessibilidade, como por exemplo a topografia de difícil acesso. Entretanto, a rede hoteleira carioca percebeu que poderia atender à lei de cotas, desde que houvesse pessoas qualificadas. Iniciou-se também um trabalho de qualificação de pessoas sem deficiências, para atender a pessoas com deficiência. Algumas universidades foram parceiras e ajudaram na área da capacitação. No caso de Socorro, a articulação de todos os atores envolvidos foi de suma importância. Inicialmente, esses atores não pensavam nas barreiras a vencer, 142 Acessibilidade no Mobiliário Urbano na questão do ambiente, mas no que iriam ganhar com as mudanças e quais seriam os benefícios a esse público. A necessidade da acessibilidade não se limitava à pessoa com deficiência, mas estendia-se às pessoas com mobilidade reduzida, como o idoso, a gestante, um esportista que eventualmente tenha machucado a perna e apresente por algum tempo uma redução de mobilidade, obesos, etc. Assim, percebeu-se que o público-alvo dos recursos de acessibilidade seria grande e que o trabalho deveria envolver a rodoviária, o fórum da cidade, a igreja (muitas vezes, as igrejas trazem dificuldades de adaptação, por serem edifícios históricos), etc. Começou-se a sensibilizar os meios de hospedagem, a sinalização turística, os portais. Os componentes que fizeram parte da matriz foram muito importantes, mas o elemento fundamental era o empresário, que precisaria investir em adaptações, em mudanças de postura. Além da parte agradável do brasileiro, de receber bem o turista, o empresário precisaria olhar com mais cuidado, conhecer um pouco de LIBRAS e outras questões de acessibilidade. Assim, por meio de um convênio com o Ministério do Turismo, a AVAPE conduziu todo o programa, fez a qualificação do gestor, dos prestadores de serviços turísticos em geral e dos serviços de apoio ao esporte. Vários workshops foram realizados para sensibilizar as organizações envolvidas. A cidade de Socorro é pequena, tem 40 mil habitantes e 5% de habitações acessíveis. Os empresários e o setor público precisavam ser sensibilizados para a questão. Formar uma Comissão Permanente de Acessibilidade, que não havia na cidade, foi um passo importante. O Conselho do Turismo da cidade também poderia participar. Enfim, foi um ano de trabalho intensivo, com vários parceiros e profissionais da área, que apoiaram e ajudaram no desenvolvimento do projeto. Exibição de um vídeo com a seguinte narração: Socorro é conhecida por ser um dos polos do turismo de aventura mais importantes do interior paulista, um local de pura diversão e acessível a qualquer pessoa. Pegar a estrada para viajar, encontrar estacionamento exclusivo, piso tátil, cardápio em braile, acesso a todos os locais e atividades de lazer. Não, essa não é mais uma descrição do que espera uma pessoa com deficiência, mas uma realidade, um exemplo que vem de uma cidade na encosta da Serra da Mantiqueira, com montanhas, 143 Acessibilidade no Mobiliário Urbano rios e cachoeiras. Muito prazer, você está na Estância Turística de Socorro, a 130 km de São Paulo. A acessibilidade mostrada é um projeto-piloto no Hotel-Fazenda Campo dos Sonhos, uma vez que Socorro foi escolhida pelo Ministério do Turismo para ser o primeiro destino totalmente adaptado para as pessoas com deficiência. Além do Ministério e da Prefeitura, faz parte do convênio a ONG AVAPE, que mapeou pontos da cidade a serem adaptados e irá capacitar profissionais para atender ao turista. Depoimento: Nessa capacitação, vamos trabalhar a comunicação alternativa, a parte de LIBRAS para o deficiente auditivo, a comunicação para o deficiente visual, material em braile... Diagnosticar e sugerir mudanças. Foi esse o trabalho que a AVAPE também fez no Hotel-Fazenda Campo dos Sonhos. Depoimento: O cuidado da administração foi muito grande, em propiciar liberdade com autonomia para a locomoção dentro dos aposentos. Eu faço tudo sozinho: o cabideiro está na minha altura, não bato a perna embaixo para acessar [os pontos de interesse], a altura do interruptor de luz, a largura das portas (uma preocupação básica), o banheiro preparado. Não há dificuldades. Você se sente bem, em termos de opções, atividades, atrações. Eu acho que, foi um dos lugares em que eu já estive com maior leque de opções, de atividades para curtir no local, para aproveitar, sem sair dali. É um espaço com lazer para todos os tipos de deficiência: bicicletas adaptadas, passeio de charretes, trator e cavalgada são apenas alguns atrativos do turismo rural. Depoimento: Estou me sentindo bem, posso andar a cavalo, ter mais contato com a natureza... Geralmente, quando eu vou fazendo alguma atividade, o pessoal vai descrevendo para mim... Depoimento: O principal, fundamental, é realmente a questão da segurança, mas não com exagero. Dá liberdade para o deficiente fazer uma atividade como outra qualquer. Socorro é conhecida como a cidade dos esportes de aventura. Então, é hora de ir para o Parque dos Sonhos e conferir a acessibilidade das atividades radicais, feita pela ONG Aventura Especial. 144 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Daqui para a frente, começa a nossa aventura radical em Socorro. Para começar, uma tirolesa de aproximadamente 1 km, que vai terminar numa cidade mineira chamada Bueno Brandão. Confira agora como nossos aventureiros especiais vão se sair nessa. Quem se arrisca primeiro é o André, de 24 anos e com Síndrome de Down. Depois, vem Gerônimo, cego desde o nascimento. Depoimento: Sensação de liberdade, de voar mesmo. Para Márcia, há necessidade de uma adaptação. Depoimento: Esta é uma cadeirinha de paraglider. A intenção é que realmente ela fique sentada e confortável. Ela proporciona uma sustentabilidade de tronco e quadril. Pouso tranquilo em terra, é hora de receber as orientações para descer o rio. Depoimento: É gostoso, divertido, porque a água leva junto. Depoimento: Não saber o que vem pela frente é melhor ainda, porque na hora que você chega lá, dá aquele tranco e você fala “Nossa, olha isso!”. E aí, você tem que pensar rápido para saber aonde vai jogar o cotovelo, para não sair da boia. Depoimento: Deu um pouquinho de medo, mas eu quero repetir. Mais do que promover a inclusão, a cidade cumpre o Decreto nº 5.296 de 2004, que regulamenta a Lei 10.098, onde está prevista a acessibilidade nos estabelecimentos de uso privado e público até dezembro deste ano. Os hotéis e pousadas devem ter 5% de suas acomodações adaptadas. Depoimento: Mesmo antes de concluirmos o projeto de adaptação, ficamos muito surpresos porque mais de 20 pessoas por mês, com deficiência física, passaram a visitar os nossos locais. Todo passo que você dá, em termos de responsabilidade social, reverte imediatamente em termos de resultados para a empresa. Depoimento: O pessoal que está em casa, que acha que o único lazer é o shopping, vir a Socorro, conhecer e participar de tudo isso aqui, uma charrete adaptada, uma tirolesa, um rapel, um rafting, tudo adaptado, é bem bacana. 145 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Esse conjunto de ações contou também com o trabalho da Associação Brasileira de Esportes de Aventura, que cuida da parte da segurança de todos os equipamentos de esporte de aventura, para todas as pessoas, com deficiência ou não. No parque, pessoas de idade bem avançada descem na tirolesa com total segurança. Com base nesse trabalho, a AVAPE foi convidada a participar de um projeto que envolve várias organizações em todo o Brasil, desenvolvendo seminários pelo país. Uma coordenadora tem feito encontros em muitos lugares do Brasil, apresentando esse modelo, no qual se articulam todas as organizações envolvidas no projeto e apresenta os resultados, mostrando que promover a acessibilidade é importante. Dando continuidade ao trabalho de Socorro, haverá uma segunda fase com o próprio Ministério do Turismo, durante a qual serão qualificados mais profissionais. Além disso, o mapeamento da rota de visita da cidade foi ampliado e alguns recursos são necessários para que a cidade possa receber mais turistas, principalmente o turista com deficiência. A partir desse projeto de Socorro, firmou-se uma parceria com a RedeTuris, do Rio de Janeiro, para desenvolvimento de um trabalho nos polos de turismo do Rio. A AVAPE foi convidada para reuniões com os secretários encarregados das Olimpíadas e da Copa, para desenvolver modelos de indicadores de acessibilidade para a cidade do Rio. Sabe-se que, no ParaPan, houve vários problemas de acessibilidade; somente o táxi é que foi acessível na cidade; o restante da mobilidade urbana apresenta grandes dificuldades. No caso do Rio, a demanda veio da iniciativa privada: a Associação Comercial, os polos comerciais do Rio e a RedeTuris iniciaram o movimento, dos empresários preocupados com a questão da recepção dos visitantes do Rio de Janeiro. Essa matriz está sendo divulgada; a AVAPE faz parte do grupo de trabalho reunido pelo Ministério do Turismo, que tem especialistas de várias áreas do turismo, desde esportes de aventura até o turismo rural. É interessante observar que, para uma pessoa com deficiência ir a um ponto turístico acessível, é preciso que o hotel, a farmácia, o hospital e diversos outros pontos de utilização no entorno do ponto turístico sejam acessíveis. Outra questão discutida no Ministério do Turismo é que, no entorno de um ponto adequado para a prática de esportes de aventura, é preciso haver 146 Acessibilidade no Mobiliário Urbano cinema e outras atividades de lazer, pois a família pode não querer fazer aquele tipo de atividade, por exemplo. Se não houver alternativas, ela pode não levar a pessoa com deficiência. Do trabalho com o Ministério do Turismo, resultaram quatro cartilhas que apresentam tudo o que foi feito, desde o mapeamento até a qualificação, todos os protocolos seguidos nesse trabalho. Houve um encontro sobre a segmentação do turismo e as cartilhas foram disponibilizadas. Elas estão no website do Ministério do Turismo e foram impressos mais de cinco mil exemplares, para distribuição no município e para os interessados. Exibição de um segundo vídeo, sobre a atividade do rapel, com a seguinte narração: Mais uma vez os esportes radicais são destaque do programa Sentidos, e quem vive essas emoções é o repórter sobre rodas Ronaldo Denardo. Pendurado pelas cordas do rapel, ele retrata como se sente nessa situação, em que literalmente está “por um fio”. Ronaldo: Em busca de mais uma aventura, nossa equipe foi até a cidade de Socorro, em São Paulo, na Serra da Mantiqueira, próximo ao circuito das águas, a 132 km da capital, pela rodovia Fernão Dias. Lá, quem nos recebeu de braços abertos foi o Parque dos Sonhos, um campo de lazer adequado às atividades de ecoturismo para pessoas com ou sem deficiência. Depoimento: A gente fala que [as atividades] são para pessoas leigas, que nunca praticaram, mas têm vontade de praticar. Elas vêm e praticam, não conhecem, recebem instrução e praticam sem problema algum. Não existe risco. Os esportes de aventura são praticados por pessoas que já praticam aquela atividade, que fazem a sua própria segurança. Ronaldo: A prática das atividades de aventura é segura e saudável. Por isso, eu não recuso nenhum bom desafio. Sob a corda bamba de uma cadeirinha de rapel ou sob os trilhos de uma tirolesa, lá vou eu. Depoimento: Tem aquele risco controlado, mas não existe risco. A pessoa conhecendo bem a técnica, ... No rapel, você desce por uma corda. Há um sistema de redução, o “freio oito”, que é montado na cadeirinha e reduz em média 70% do peso do corpo. Você desce por essa corda. O 147 Acessibilidade no Mobiliário Urbano rapel que será feito agora é o rapel “totalmente negativo”, no qual não há contato nenhum com a rocha. Na tirolesa, é feita a descida com o equipamento chamado de cadeirinha, com dois auto-seguros, mosquetão e polia. A descida é feita de um ponto mais alto ou mais baixo, deslizandose por dois cabos de aço. Ronaldo: Para provar um pouco da adrenalina, também convidamos o Luciano a participar da nossa aventura, um corajoso cadeirante disposto a diferentes emoções. Equipamentos prontos e conferidos, era hora de embarcar num jipe adaptado e subir até o nosso ponto de partida, ou melhor, o nosso ponto de descida. Depoimento: Para uma pessoa com deficiência, nós usamos um equipamento no paraglider, uma cadeirinha acolchoada que proporciona sustentabilidade para o tronco, de forma que a pessoa desce numa posição confortável, sentada, curtindo todo o visual. Estamos aqui trabalhando há algum tempo, é muito prazeroso ver a felicidade estampada no rosto das pessoas. Para nós, isso é fantástico, tudo de bom. Ronaldo: A 180 metros de altura e 50 quilômetros por hora, a tirolesa percorre mil metros em poucos segundos, mas com muita emoção. No mundo das emoções, uma das opções para a pessoa com deficiência e para quem gosta de fortes emoções é a tirolesa. Agora, chegou a hora de o Luciano se jogar num vale de emoções. Depoimento: A primeira vez que eu consegui fazer uma atividade de aventura foi mais ou menos 12 anos depois do meu acidente. Então, eu tinha muita insegurança, em relação ao meu corpo, ao meu equilíbrio. Na primeira vez em que eu fui me soltar sozinho numa tirolesa de 180 metros de altura, a primeira atividade que eu pratiquei, realmente deu uma insegurança muito grande. Logo depois que eu saí, que eu me senti seguro, eu pude curtir a descida inteira e a sensação foi muito boa. Ronaldo: Simulamos a emergência de uma parada sobre os trilhos para testar a segurança. Em poucos segundos, o condutor fez o resgate sem nenhum problema. Depoimento: [É importante] saber que você vai estar no local e praticar uma atividade sem correr risco algum, principalmente. Eu acho que uma pessoa que está na cadeira de rodas já perde a autoconfiança. [Aqui,] 148 Acessibilidade no Mobiliário Urbano você pode curtir o tempo inteiro, sem pensar que estará correndo um risco. Até pouco tempo atrás, era shopping, cinema, teatro... Fazer uma tirolesa ou rapel era totalmente impensável para uma pessoa com deficiência. Depoimento: O praticante desce sozinho. Eu fico em cima, com um sistema de redução também, com um freio oito em cima e uma segunda corda, liberando. Você estará preso a outra corda e o monitor estará fazendo a sua segurança em baixo. Ronaldo: Literalmente, na corda bamba e sustentado por um fio, é hora de experimentar uma nova emoção – descer uma montanha por rapel. Depoimento: A superação de limites é bem maior. Eu já tive oportunidade de praticar vários esportes antes do acidente e, hoje, a sensação é bem diferente. Você começa a curtir um pouco mais, a olhar uma cachoeira de modo diferente, olhar para um lado que você não tinha olhado antes, vai mudando. A sensação sempre é muito boa. Luciano Marques de Souza: Para o tema “Santos – Cidade Inclusiva”, procuramos abordar um aspecto mais geral da palavra acessibilidade e não apenas a questão da mobilidade e do acesso urbano. Não é de hoje que Santos vem investindo na questão da acessibilidade, da inclusão das pessoas com deficiência. Em 2005, no seu primeiro mandato, o atual Prefeito criou a Coordenaria de Defesa de Políticas da Pessoa com Deficiência, justamente na intenção de ter um órgão dentro da organização da Prefeitura para uma articulação transversal entre as Secretarias, um trabalho intersecretarial. A cidade até comportaria uma Secretaria específica, mas a Coordenadoria goza do prestígio e do status de uma Secretaria dentro do governo e tem interagido com todos os Secretários. Santos conta com 52% ou 54% da frota adaptada. A última licitação foi feita em 2005, naquela ocasião garantiu-se uma proporção de 50% e, até o final do mandato do atual Prefeito, a proporção da frota adaptada deve chegar à casa dos 100%, à medida que a frota vai sendo renovada e os ônibus já chegam adaptados, por força de um decreto. Os fabricantes de ônibus já estão fazendo veículos com elevador ou piso baixo. A expectativa é que até 2012, quando 149 Acessibilidade no Mobiliário Urbano termina o mandato deste Prefeito, a frota de transportes coletivos de Santos esteja 100% acessível. Em relação à mobilidade urbana, há duas boas notícias para os moradores e os turistas que visitam a cidade. A primeira é a mudança das calçadas. O código que determina as características das calçadas mudará radicalmente. O piso adotado é de concreto escovado, que já está sendo adotado no centro histórico da cidade e nos canais, que ligam a praia até a região central da cidade. Esse será o piso padrão na cidade de Santos, a partir do ano que vem, quando o decreto das calçadas for modificado a fundo. Até o Natal, deve ser lançado o projeto “Praia Inclusiva”, um projeto perseguido há dois anos, que começou com o trabalho de transpassar os canais. São sete canais em toda a orla da praia de Santos. Os canais eram transpassados através de pontes com degraus; hoje existem passarelas em arco, o que facilita a passagem de um lado ao outro do canal. A passarela fica na parte de areia mais compacta, que permite uma certa circulação de cadeiras de rodas. Faltava ainda vencer o calçadão, o que o projeto Praia Inclusiva faz. Está sendo testada uma passarela que vai beirar os canais e dar acesso ao pontilhão. Assim, os deficientes terão acesso ao mar em cada canal. Até então, era impossível para pessoas em cadeira de rodas ou com mobilidade reduzida chegar bem próximo do mar. Essa era uma ansiedade que havia há muito tempo. A malha cicloviária da cidade vem crescendo assustadoramente, o que tem facilitado a vida das pessoas com cadeiras de rodas em especial, pois é possível andar por toda a orla, num trajeto de 4 quilômetros e meio. Em direção ao centro, o canal 1 também começa a receber a ciclovia e a Avenida Ana Costa também deverá receber uma ciclovia. Portanto, atualmente a pessoa com deficiência, se não quiser ir de ônibus, pode perfeitamente ir da orla até o centro da cidade em 20 ou 30 minutos, tocando a sua própria cadeira. Além do transporte público coletivo, a cidade tem também o transporte escolar público adaptado. São dois ônibus que levam as crianças às escolas inclusivas. São atendidas mais de 2.700 crianças na rede regular de ensino. Existem ainda convênios com entidades, que atendem mais de mil crianças com educação inclusiva. O projeto Inclusão Digital, da Secretaria da Educação, tem softwares para o deficiente visual e um professor capacitado em LIBRAS para ensinar computação para a pessoa surda. 150 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Na área da saúde, a cidade tem 60 unidades recentemente reformadas ou construídas, todas elas seguindo a lei 5.296 ou a lei 9.050, que inclusive está sendo revisada no CEPAM. Algum tempo atrás, a espera para obtenção de uma prótese ou órtese era de quatro anos, hoje é de quatro a cinco meses e o programa atende cerca de 300 pessoas por ano. O Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência, em parceria com a Coordenaria e com as Secretarias de Saúde e Assistência, vem realizando cursos, ao menos duas vezes por ano, para a capacitação de cuidadores ou facilitadores. O Conselho vem trabalhando insistentemente no sentido de treinar profissionais da área da saúde e de outras áreas, para que amanhã possam dar o suporte de facilitador às pessoas com deficiência, até porque as pessoas com deficiência cada vez mais têm acesso ao mercado de trabalho e, conseqüentemente, consomem produtos, vão ao shopping, passeiam, fazem turismo e, em alguns casos, o facilitador é de suma importância para que tudo isso aconteça. Ainda na área da saúde, a cidade de Santos tem um Centro de Referência da Saúde Auditiva. Esse Centro funciona em Santos, com profissionais da cidade, remunerados pela Prefeitura de Santos, mas o serviço é da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e atende a toda a região da baixada santista, de Peruíbe a Bertioga. Em termos de acessibilidade, alguns equipamentos possuem plataformas elevatórias, pois nem sempre é possível construir rampas. Quando é necessário, as plataformas são utilizadas em equipamentos públicos, de esporte, educação, saúde, assistência, facilitando muito a vida dos deficientes, mas também da própria Prefeitura, que teria que ocupar um espaço muito grande para construir uma rampa. A plataforma elevatória não tem um custo tão elevado, talvez um pouco mais que a rampa, e facilita bastante o acesso vertical. Em termos de acesso ao trabalho, até pouco tempo atrás os deficiente não tinham um atendimento, as empresas ainda não sabiam como ou não queriam encontrar os meios necessários. A Prefeitura da cidade foi chamada a colaborar com o Ministério Público. Criou-se um cadastro único, num trabalho iniciado no Conselho Municipal, atendendo ao pedido do Ministério Público. Com o tempo, percebeu-se que das quase 800 pessoas cadastradas, mais de 200 estavam no mercado formal de trabalho. As demais estavam fora do mercado, sem nenhuma qualificação profissional. Uma segunda etapa 151 Acessibilidade no Mobiliário Urbano foi a qualificação dessas pessoas, em parceria com a AVAPE, em três cursos atualmente, mais dois que estão prestes a começar. Assim, serão cinco cursos: garçom, auxiliar de lanchonete, auxiliar administrativo, informática e mais outro de auxiliar administrativo. Conforme o mercado vai pedindo, buscase sempre fazer a capacitação nas áreas mais solicitadas. No período de outubro do ano passado até o presente momento, já foram realizados mais de nove cursos. Inicialmente realizado pelo Conselho, a Coordenadoria acabou herdando esse trabalho dos cursos, com muito prazer. Nos cursos, os monitores são indicados pela AVAPE, que também prepara as apostilas, responde pela parte didática e pedagógica. No esporte, a cidade tem a Secretaria de Recuperação e Fisioterapia na Saúde, a Seção de Valorização da Pessoa com Deficiência na Secretaria de Assistência Social, a Seção de Esporte Adaptado, que trabalha com atletas de alto rendimento, com apoio da Secretaria e da Fundação Pró-Esporte, que participam dos Jogos Abertos Regionais do Interior, competindo pela cidade nas categorias Deficiência Física e Visual, no atletismo e natação. Há também a parte de lazer e recreação, com um projeto da Secretaria da Educação que inclui a surfeterapia para crianças da rede regular de ensino, com ou sem deficiência. Cerca de 400 pessoas e atletas estão envolvidos no projeto. Na Secretaria de Cultura, desde 2004 foi implantada a primeira escola pública de dança em cadeira de rodas. Neste momento, as meninas estão em Juiz de Fora, disputando o VIII Campeonato Brasileiro de Dança de Salão. A atuação é na área de dança esportiva em cadeira de rodas (dança de salão) e também na área de dança artística. São dois professores, um professor de dança de salão e uma professora de dança clássica. São atendidas crianças de 9 anos até adultos de 50 anos. A grande maioria é de meninas. Muitos meninos ainda têm preconceitos em relação à dança, mas também esses tabus vão sendo quebrados. A arte e o esporte têm sido grandes ferramentas de inclusão, não somente de pessoas com deficiência, mas também para quebrar esses tipos de preconceitos. Na Secretaria da Cultura, há também um grupo de teatro inclusivo, no projeto Tantan, que trabalha com doentes mentais, deficientes intelectuais, deficientes com paralisia cerebral, com síndrome de Down, deficientes físicos... O grupo faz várias performances e foi premiado pela Funarte no projeto “Arte Sem Fronteiras”, em 2003 ou 2004. 152 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Em relação à acessibilidade e lazer, o bonde da cidade, que começou puxado por mulas, hoje tem linhas turísticas, cujo percurso atualmente está sendo ampliado: tinha 1,5 km e terá 4,5 km, partindo do centro histórico da cidade, a Praça Mauá, com uma vista privilegiada. O bonde tem tido uma procura grande; as pessoas não acreditam que um bonde tão antigo pode ser acessível, mantendo as suas características históricas. O orquidário está passando por uma reforma, que prevê acessibilidade aos deficientes visuais, com leituras em braile. O projeto Praia Inclusiva original previa estruturas de concreto, mas será feito em madeira, inspirado na cidade de Valência, na Espanha, que possui estruturas semelhantes. O Prefeito solicitou às docas do porto os dormentes de madeira, que estão sendo amarrados com um cabo, para que não sejam removidos, nem pela maré, que é muito forte nessa parte da praia, nem por alguma pessoa malintencionada. Para encerrar, o Sr. Luciano afirma que não é fácil trabalhar no serviço público, depois de 25 anos no movimento pelos direitos das pessoas com deficiência. Pondera que é importante que os militantes do movimento assumam cargos públicos e sejam um pouco “vidraças”. A administração pública é difícil, a máquina pública é engessada, os atores públicos ficam expostos e se esforçam para que as ações aconteçam. As ações descritas são muito importantes, mas não aconteceriam se as pessoas com deficiência não participassem do processo. Não adianta criar lei de Conselho, não adianta criar decreto 5296, NBR 9050, decreto do transporte, etc. se nós, cidadãos com deficiência, não pegarmos as ferramentas e começarmos a trabalhar. Sem a gente, as leis são só leis, muitas não são cumpridas. As pessoas é que as fazem acontecer. Daniella Bertini: Há três anos, a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida propôs o desafio de criar um curso de educação continuada de certificação em acessibilidade, para capacitar profissionais da construção civil, arquitetos e engenheiros, profissionais que lidam com o espaço público, as residências, as edificações de uso coletivo, a criar espaços acessíveis. O curso visa a orientar os profissionais, primeiramente na própria Prefeitura e depois os profissionais autônomos também. Atualmente, cerca de três mil profissionais já foram capacitados, e o curso continua. 153 Acessibilidade no Mobiliário Urbano O curso tem duração de dois dias e é dividido em uma parte teórica, na qual há uma interpretação da NBR 9.050 e das legislações municipais, estaduais e federais, e uma parte de vivência, na qual o aluno convive na prática com as questões de acessibilidade. Assim, pode perceber “na pele” as dificuldades de meio centímetro de desnível, de uma área de alcance, da importância de se usar o desenho universal. No curso, apresenta-se o texto da lei, para que ele seja interpretado, porque isso também é importante. A própria definição de acessibilidade gera controvérsias. Muitas vezes, uma pessoa pode remeter-se somente à cadeira de rodas, ao acesso do cadeirante. A definição é muito mais ampla: é a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de edificações, espaços, mobiliários, vias públicas e equipamentos urbanos de transporte coletivo. Esta é a definição da NBR 9.050. A partir do desenho universal e dos sete princípios apresentados no curso, acaba-se percebendo que cada um de nós tem uma necessidade especial. Mesmo sem considerar a eventualidade de uma pessoa quebrar um braço ou ter que utilizar uma cadeira de rodas temporariamente, ela envelhecerá. Portanto, em pelo menos 20% dos anos vividos por qualquer pessoa haverá algum tipo de incapacidade, mesmo que seja a mobilidade reduzida. Assim, o projeto de acessibilidade também é feito para nós mesmos. O sistema de vias públicas é composto pelo passeio (a calçada), o mobiliário urbano (os orelhões, um ponto de ônibus, um banco para as pessoas se sentarem, a vegetação) e o estacionamento. Em frente ao Shopping Light, um corredor cultural de São Paulo, passam em torno de dois milhões de pessoas diariamente. É muita gente. Imagine-se o nível de organização que precisa existir entre os veículos de transporte e os pedestres. Os cadeirantes fazem parte dos pedestres. A pessoa idosa, a pessoa com mobilidade reduzida também. É preciso haver uma organização de tempo de semáforo, para a pessoa conseguir atravessar a rua e não ter trânsito. Todas essas questões precisam ser analisadas no sistema de vias públicas. O decreto nº 45.904/2005 determina diretrizes para a padronização do passeio público (calçada) dentro do município de São Paulo. O munícipe é responsável pela sua calçada, na cidade de São Paulo e na maioria dos estados brasileiros também. O órgão público tem a função de orientar e, muitas vezes, de participar, dando o exemplo, especialmente em frente às edificações públicas. 154 Acessibilidade no Mobiliário Urbano A definição constante do decreto é a seguinte: o passeio público é a parte da via pública, normalmente segregada e em nível diferente, destinada à circulação de pessoas, independente de idade, estatura, limitação de mobilidade ou percepção, com autonomia e segurança, bem como à implantação de mobiliário urbano, equipamentos de infraestrutura, vegetação, sinalização e outros fins previstos em leis específicas. Vale observar as duas palavras-chave presentes no texto da lei: autonomia e segurança. Não adianta ter uma porta de entrada larga, com rampa, ou seja, acessível, se for necessário pedir para alguém abrir a porta, porque ela está trancada. Assim, não há autonomia para a pessoa com deficiência. Esse é um aspecto muito destacado no curso: autonomia, sempre ligada à segurança. No passeio público, não basta levar em consideração a acessibilidade. É preciso considerar a segurança, a sinalização, a fácil utilização, aspectos estéticos e harmônicos e a diversidade de uso. As nossas legislações não sugerem nada; elas trazem referências de outros países, que já tenham experiências anteriores. Um exemplo é o período do pós-guerra nos Estados Unidos. A norma técnica brasileira, a NBR 9.050, por exemplo, tem como referência normas estrangeiras, como a dos Estados Unidos. São tomados como referências as faixas de travessia de pedestres, a guia rebaixada, o piso tátil de alerta na guia rebaixada, que serve para o deficiente perceber que ali há uma travessia, etc. A Sra. Daniella descreve as fotos projetadas, justamente para as pessoas com deficiência visual: Aqui temos uma foto de Barcelona, onde há uma via pública com faixa de travessia de pedestres larga, com guia rebaixada. A guia rebaixada serve não só para o cadeirante, mas também para uma pessoa com mobilidade reduzida ou mesmo para uma pessoa com deficiência visual, porque tem o piso tátil de alerta. A foto ao lado mostra uma via pública de São Paulo com as mesmas características. Observa-se, inclusive, que a maioria das pessoas acaba utilizando a guia rebaixada, pois é mais fácil atravessar pela guia rebaixada. Como já mencionado, o decreto nº 45.904/2005 refere-se à padronização dos passeios públicos no Município de São Paulo. A NBR 9.050, de 2004, trata da acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. 155 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Há NBRs anteriores, de 84 e 94. A atual, de 2004, está sendo revisada e provavelmente haverá algumas mudanças em breve. O mobiliário urbano é composto por todos os objetos, elementos e pequenas construções integrantes da paisagem urbana, de natureza utilitária ou não, implantados mediante autorização do poder público em espaços públicos e privados. No caso da Avenida Paulista, que possui um passeio bastante largo, em torno de oito metros de largura, a guia de balizamento para o deficiente visual é indicada por um piso tátil direcional no centro. Em passeios mais estreitos, considera-se como guia de balizamento a própria testada do imóvel. Assim, na Avenida Paulista, o deficiente visual tem duas possibilidades: a guia de balizamento pela testada do imóvel e o piso tátil direcional, que conduz sempre a uma guia rebaixada e à faixa de travessia. O piso utilizado nas reformas feitas pela Prefeitura de São Paulo segue um padrão, de concreto moldado in loco ou placas de concreto. Na Avenida Paulista, optou-se pelo concreto moldado in loco, por ser o melhor tipo de piso em termos de atrito e rolamento, para a cadeira de rodas, facilitando inclusive o deslocamento das pessoas com mobilidade reduzida. O decreto determina que a calçada deve ser dividida em três faixas: uma livre, uma de serviço e outra de acesso, quando possível. O decreto refere-se a calçadas com largura média de 2 metros. Sabemos, no entanto, que muitas vezes a calçada não chega a ter um metro de largura. Nesses casos, a prioridade é da faixa livre. Nessa faixa, devemos nos imaginar dentro de um túnel, livres de qualquer interferência, desde uma copa de árvore, a 2,10 metros de altura, até o nível do chão. Essa faixa tem uma largura mínima de 1,20 metro. Fora da faixa livre, foram criadas faixas de acomodação, uma faixa de serviço e uma faixa de acesso, onde ficam a vegetação, o mobiliário, os equipamentos urbanos, tampas de inspeção, de visita, etc. Há outros pisos sugeridos pelo decreto, como o ladrilho hidráulico e o bloco intertravado, por exemplo. A divisão das faixas geralmente é feita por cores diferentes, para permitir que pessoas com baixa visão também possam identificá-las. Assim, além da guia de balizamento e o piso tátil direcional, a cor também é um elemento importante para as pessoas com baixa visão, para o idoso com catarata. Como referências para a guia de balizamento e o passeio dividido em três faixas, o Japão é um ótimo exemplo de acessibilidade. No Japão, quase não 156 Acessibilidade no Mobiliário Urbano existe o SIA (Símbolo Internacional de Acesso – aquela imagem com a cadeira de rodas), porque lá todos os espaços públicos, objetos e ambientes são feitos segundo o desenho universal. Não existe um local específico para as pessoas que têm determinada necessidade; todos os locais são feitos para todas as pessoas utilizarem, de forma autônoma, segura e confortável. Nas calçadas de Tóquio, podemos ver as faixas divididas, com uma faixa livre, de acomodação, e uma para o mobiliário urbano, muito bem organizado, junto à sarjeta, ao leito carroçável. Na faixa de serviço, há elementos de vegetação, que são importantes para manter a permeabilidade do solo, drenando a água pluvial. Em algumas vias de pouco movimento, não há “guia”; o leito carroçável fica no mesmo nível que o passeio. Para diferenciar os dois, há apenas uma sarjeta para escoamento da água pluvial. A questão da cultura da população também é muito importante e é muito discutida no curso. Não adianta nada haver um local acessível, se a pessoa que trabalha naquele local não sabe lidar com a pessoa com deficiência. É a chamada barreira da atitude. Pode ser um saco de lixo, um elemento do mobiliário fora do local... É um trabalho enorme para tornar o local acessível e uma simples lixeira pode tornar-se um obstáculo. Em Washington, nos Estados Unidos, há um exemplo que utilizou concreto moldado in loco. Há quem critique, considere “feio, tudo cinza”... Ocorre que não é somente a estética que está em jogo, existe também a questão da manutenção. As juntas de dilatação são divididas em menores escalas em áreas próximas da área de serviço, da vegetação, para facilitar a manutenção do passeio. Há grelhas de acomodação, também na faixa de serviço, juntas de dilatação com placas menores, para facilitar a manutenção. Os materiais recomendados pelo decreto municipal, que estão sendo utilizados nas reformas do passeio público em São Paulo, são o concreto moldado in loco ou em placas, o ladrilho hidráulico e o bloco intertravado. Lembramos que o ladrilho hidráulico é um revestimento, portanto, se houver muito tráfego de veículos, deve-se preferir o bloco intertravado ou o concreto moldado in loco. O mobiliário urbano que existe dentro do passeio público também é muito discutido no curso. Muitas vezes o mobiliário urbano não compete ao arquiteto, mas outras vezes é preciso colocar um item do mobiliário, como um telefone, por exemplo, dentro da edificação, numa área de uso comum. 157 Acessibilidade no Mobiliário Urbano Por isso, é importante conhecer algumas restrições referentes ao seu uso. Outra situação é que o curso serve também para orientação das concessionárias. Assim, é importante saber que 5% dos telefones públicos devem ser acessíveis a pessoas com deficiência e estar sinalizados. O equipamento deve ter um amplificador de sinal e a botoeira deve estar a uma altura de 1,20 metro do piso, que é uma faixa de alcance confortável para o cadeirante ou uma pessoa que tenha baixa estatura. Uma solução é a cabine telefônica em que o aparelho tem altura regulável, como se encontra na cidade de Washington, nos Estados Unidos. Ela é considerada acessível para qualquer pessoa, com princípios do desenho universal. Em São Paulo, temos um orelhão mais baixo, acessível para o cadeirante ou para a pessoa de baixa estatura. Se por um lado esse equipamento ajuda o cadeirante, por outro acaba atrapalhando o deficiente visual que trafega pela calçada. Isso ocorre porque a solução não atende aos princípios do desenho universal. O semáforo também é um assunto importante em relação ao mobiliário urbano. Existem semáforos sonoros, que emitem um sinal, um bip, quando a pessoa com deficiência visual deve fazer uma travessia, proporcionando mais segurança. Existem muito poucos dispositivos desse tipo no município de São Paulo, próximos às instituições que fazem a solicitação, frequentadas por pessoas com deficiência visual. Os pontos de ônibus acessíveis dispõem de assentos fixos, para pessoas com mobilidade reduzida. Quando se pensa no assento fixo, é preciso considerar um módulo de referência ao seu lado. Esse módulo corresponde ao espaço que a cadeira de rodas ocupa, de 0,80 x 1,20 metro no mínimo. Esse espaço deve ser reservado ao lado do assento fixo, para um cadeirante que esteja esperando o ônibus. Às vezes, observamos que esse espaço acaba sendo ocupado por uma lixeira. Por isso, a orientação é importante. A pessoa responsável pela limpeza, pela manutenção daquele local, não sabe que aquele espaço está reservado, daí também a importância da sinalização. As bancas de jornal têm legislação específica. As bancas devem estar afastadas no mínimo 15 metros das esquinas, têm que preservar uma área de passagem para o pedestre e têm que ter um balcão de atendimento cuja altura permita atender a qualquer pessoa. 158 Acessibilidade no Mobiliário Urbano A vegetação dentro do passeio não pode invadir a faixa livre, as copas das árvores devem ser podadas. Suponhamos que haja uma árvore antiga, digamos uma seringueira com cem anos de idade. Nesses casos, é preciso entrar num acordo com o órgão responsável pela vegetação. O mesmo vale para edificações tombadas pelo patrimônio. Cada órgão deve ceder de um lado. Muitas vezes, é possível fazer a remoção de uma árvore para outro local, para dar acesso ao passeio público. Existem também algumas soluções de isolamento do canteiro de raízes das árvores. Se não for possível remover uma árvore do local, é possível fazer o isolamento da raiz, erguendo-se uma mureta de alvenaria ao seu redor, com uma vegetação rasteira, isolando a árvore e permitindo a passagem de uma pessoa com deficiência visual, por exemplo, que de outra forma poderia tropeçar na elevação do piso provocada pela raiz. Outros aspectos abordados no curso são as grelhas e juntas de dilatação. Às vezes, 1,5 cm faz muita diferença, principalmente numa junta de dilatação e num desnível. Para uma pessoa com mobilidade reduzida, que anda raspando os pés no chão, um desnível de 1,5 cm será um obstáculo. O mesmo vale para a rodinha da cadeira de rodas. Esse foi um breve resumo dos itens abordados no curso. Os interessados podem obter outras informações no website: www.prefeitura.sp.gov.br/pessoacomdeficiencia. 159 Mercado de Trabalho O trabalho representa uma das principais formas de inclusão. Para tanto, é fundamental garantir às pessoas com deficiência o direito à educação de qualidade e à qualificação profissional. O Estado e as empresas têm papel fundamental nesse processo, como mostram experiências bem-sucedidas de valorização da diversidade como vetor de aprimoramento das relações de trabalho. João Baptista Cintra Ribas (moderador) – Gerência de Desenvolvimento Sustentável - Programa de Empregabilidade de Pessoas com Deficiência Serasa Experian - São Paulo, SP Vandréia Silva de Oliveira – Gerente de Diversidade do Grupo Pão de Açúcar - São Paulo, SP Roberto Siggers – Gerente de Sustentabilidade da Cielo - São Paulo, SP João César de Oliveira Lima Júnior – PricewaterhouseCoopers - São Paulo, SP Edson Luiz Defendi – Coordenador de Projetos de Atendimento Especializado da Fundação Dorina Nowill para Cegos - São Paulo, SP Vandréia Silva de Oliveira: Para que a inclusão realmente aconteça dentro das organizações, é necessário um trabalho de muito aprendizado. Sabe-se que há uma determinação legal, que precisa ser cumprida, mas como? Não basta simplesmente cumprir a lei, é preciso realizar um trabalho que se sustente ao longo do tempo, fazer com que essas pessoas que estão começando a trabalhar, que ainda não tenham uma experiência, uma vivência profissional, efetivamente se tornem pessoas competitivas e possam alçar o seu voo profissional. Nesse sentido, o Grupo Pão de Açúcar vem procurando implantar um trabalho sustentável, buscou parceiros no mercado que levassem aos Mercado de Trabalho diretores, gerentes e líderes a importância do tema diversidade, da inclusão social e a importância de incluir pessoas com deficiência. Recebendo conhecimento, informações, essas pessoas responderam que têm dúvidas, não sabem como lidar com essa situação, não sabem como é o diaa-dia. Além da acessibilidade, é importante considerar que há uma pessoa na nossa frente e, historicamente, não fomos educados e não sabemos qual a melhor maneira de lidar com ela. O grupo procurou também ampliar o recrutamento, a seleção e a capacitação desses profissionais. Atualmente, são quatro parceiros em diferentes estados brasileiros, que têm trabalhado fortemente para a identificação desses profissionais. A parceria tem obtido sucesso e tem mostrado que não é fácil. Recentemente, um parceiro do grupo estava realizando um processo de seleção em Brasília. Descobriu-se que, naquela região, o número de pessoas que recebem o benefício do LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) é muito grande, em comparação com o que já se observou em São Paulo, Rio de Janeiro, Nordeste e outras praças. Essa condição inviabilizou uma meta definida para aquela região. É preciso enfrentar essas situações no dia-a-dia, buscar outras formas de encontrar pessoas que tenham disponibilidade e queiram trabalhar no grupo. Ao longo deste ano, por meio da área de comunicação interna, foram divulgados diversos comunicados e informações relacionados à inclusão de pessoas com deficiência, abrindo-se inclusive um canal para que os colaboradores do grupo possam indicar alguém conhecido, uma pessoa do seu relacionamento que tenha uma deficiência. A brincadeira interna foi que, até a chegada das Casas Bahia, o Grupo Pão de Açúcar tinha mais ou menos 87 mil funcionários. Se cada funcionário indicasse uma pessoa com deficiência, não precisaríamos nem da Lei de Cotas, pois rapidamente se atingiria a meta. É interessante quando se procura lembrar quantas pessoas com deficiência havia na nossa sala do colégio ou da faculdade. Percebe-se então que esse número de indicações acaba não sendo tão grande. Aqueles que chegam são muito bem-vindos. Essa ação também acaba envolvendo os colaboradores e faz com que a inclusão não seja um tema do RH (Recursos Humanos) ou da área de diversidade, mas de todos, como deve ser. 162 Mercado de Trabalho Esse tem sido o maior aprendizado no grupo. Há uma determinação legal a atingir, mas quando aprendemos a conviver com a diferença, essa determinação começa a fazer muito mais sentido para o dia-a-dia do trabalho. Roberto Siggers: A Cielo, antes conhecida como Visanet, faz com que uma transação eletrônica, feita com cartão ou por outro meio, seja efetivada. Aquele terminal que utilizamos no estabelecimento comercial onde fazemos uma compra, para passar o cartão e fazer o pagamento, é da Cielo. Por meio dele, a Cielo capta as informações da transação, verifica a possibilidade de se tratar de uma fraude, informa essa possibilidade de fraude ao banco que emitiu o cartão e, se o banco aprovar, emitimos aquele comprovante. Essa explicação serve para que se entenda um pouco do perfil das pessoas que trabalham na Cielo. É um perfil muito avançado nas áreas de tecnologia e finanças, pois é feita também a consolidação financeira da transação. Tratase de um universo de mais ou menos mil e cem pessoas. Na política original da empresa, somente poderiam entrar pessoas de nível universitário na empresa. Quando se começa a pensar na contratação de pessoas com deficiência, é preciso reestudar políticas. As pessoas com deficiência não necessariamente conseguem atender a algumas políticas, por isso é preciso mudar as políticas para poder fazer a inclusão. São políticas de recrutamento e seleção, políticas de treinamento e de educação (para que as pessoas possam melhorar o seu nível educacional) que devem ser modificadas. Muitas empresas queixam-se de não encontrar pessoas qualificadas no mercado. De fato, é difícil. Por que não qualificá-las? Faz sentido a própria empresa qualificar as pessoas quando há um universo de pessoas com o mesmo tipo de qualificação. Por exemplo, os cursos de empresas de auditoria para contadores, às vezes, são melhores que os próprios cursos de contabilidade. Em um ou dois anos, a pessoa se torna melhor contadora do que se tivesse feito um curso de contabilidade. O mesmo não ocorre numa empresa com várias áreas diferentes. Talvez, numa empresa como as Casas Bahia, onde há muitos vendedores, se possa capacitar muitas pessoas para fazer vendas. Quando há uma grande diversidade de naturezas de trabalho, num universo talvez não tão grande de pessoas, é difícil fazer um curso interno de capacitação. 163 Mercado de Trabalho No caso da Cielo, por exemplo, recorre-se a cursos externos de capacitação para atividades administrativas. A Cielo teve a sorte de estar num prédio novo, para o qual mudou em 2004. Na ocasião da mudança, alguém propôs que o prédio fosse adaptado, o que foi feito, principalmente para cadeirantes. Depois, começou-se a fazer adaptações para deficiências de outras naturezas. Em resumo, é necessário fazer adaptações e é o que a Cielo tem procurado fazer nos últimos cinco anos. Ainda há muito que fazer. Pode-se dizer que a própria direção não está ainda satisfeita com o nível de adaptação da organização como um todo alcançado até o momento. João César de Oliveira Lima Júnior: A PriceWaterhouseCoopers, embora seja uma organização de auditoria e consultoria, de cumpridores de regras contábeis, procedimentos contábeis, etc. é de opinião de que infeliz é a sociedade que precisa de muitas regras para definir seu comportamento. Se todos tivessem um comportamento ético, precisaríamos de muito poucas regras. Para que é preciso dizer que é proibido matar? Se ninguém matasse, não haveria essa regra. Uma lei que estabelece um número mínimo de profissionais com algum tipo de deficiência para trabalhar numa organização é, por si só, um mau sinal, é sinal de que alguma coisa não está indo bem. A PriceWaterhouseCoopers trabalha, há mais de dez anos, num processo de inclusão social nos mais diversos níveis. Ela tem um programa para capacitar pessoas com baixa formação profissional, com baixa renda no mercado de trabalho, tem aulas de inglês, tem um programa para capacitação de pessoas jovens recém-saídos de presídios, para colocá-los no mercado de trabalho. Agora, depara-se com a questão legal e o foco passa a ser se a lei está ou não sendo cumprida na organização. Este é um grande desvio. A PriceWaterhouseCoopers, fundamentalmente, é uma organização de conhecimento. Ela treina pessoas às vezes melhor que algumas universidades, tem mais de 170 cursos ministrados internamente, para mais de 15 mil pessoas anualmente. Esse é o negócio da organização: gerar e transferir conhecimento para os seus clientes. Isso é feito a partir da diversidade. Sem diversidade, não há geração de conhecimento. Se todos agissem e pensassem da mesma maneira, a capacidade de gerar conhecimento e, portanto, atender aos clientes seria absurdamente reduzida. A diversidade é parte do dia-a-dia da organização; é isso que se exige de cada um que trabalha na organização. 164 Mercado de Trabalho Mudar esse foco para o cumprimento da legislação pode até servir de estímulo para algumas empresas que não têm essa visão contratarem pessoas com deficiência. Na prática, entretanto, observa-se que as empresas forçadas a praticar a inclusão não têm condições de fazê-lo, porque não sabem como fazê-lo, não têm apoio e cria-se uma iniciativa frustrante para todos. É preocupante quando se observa que uma organização tem que fazer algo, porque se não fizer pode aparecer um fiscal e multar a empresa em 200 mil reais. Isso é um absurdo, pois com esse dinheiro pode-se fazer uma série de investimentos em capacitação profissional e inclusão social. É uma punição desregrada. Um dos momentos mais tristes que já presenciamos na vida profissional está ligado à questão legal. Ligamos para uma pessoa, um profissional com deficiência, para convidá-lo para uma entrevista. Queríamos conhecê-lo para que ele viesse trabalhar na nossa organização. Ele respondeu que não estava procurando emprego, queria ser incluído na lista de pagamento para ajudar a empresa a cumprir sua cota legal, não queria trabalhar. Todo o esforço de mais de dez anos se perde em situações como essa. É um completo absurdo, um total desvirtuamento da questão. Não se trata de querer ser ilegal, mas trazer a questão da inclusão social para um requisito legal, sem o apoio das entidades, é perder tempo. Reforçar que não se deve matar, porque quem o faz vai preso é um caminho errado. Devemos concentrar nossos esforços em capacitar pessoas. Queremos investir o tempo da organização capacitando mais e mais pessoas para o mercado de trabalho, sejam pessoas com deficiência, pessoas que têm algum problema e não tiveram oportunidade, para que elas possam ingressar no mercado de trabalho e ser cidadãos melhores. A determinação legal, infelizmente, é infrutífera e desvirtua o processo de inclusão que grandes empresas, como as que estão participando deste simpósio, praticam. Edson Luiz Defendi: A Fundação Dorina Nowill, que completou este ano 63 anos de atuação, tem como missão oferecer produtos e serviços que proporcionem às pessoas com deficiência visual condições para assumir seu papel de cidadãos, oferecer à sociedade informações e serviços a esse respeito 165 Mercado de Trabalho e participar ativamente de ações voltadas à prevenção da cegueira. Seus valores são a ética, a qualidade, a credibilidade e a transparência. Em maio de 1953, a Helen Keller visitou o Brasil, numa reunião articulada pela Fundação Dorina Nowill. Foi a primeira reunião com um olhar específico para a importância da pessoa com deficiência (no caso, a deficiência visual) no mercado de trabalho. Nessa ocasião, pessoas da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e de órgãos governamentais se uniram para pensar em estratégias de inclusão (na época, falava-se em integração). Desse trabalho, surgiu uma primeira recomendação da Organização Internacional do Trabalho. Foram marcos iniciais para a inclusão das pessoas com deficiência visual. Para quem não conhece, Helen Keller era uma norteamericana que tinha uma deficiência auditiva e visual, e esteve nessa ocasião no Brasil, para selar esse compromisso. A partir de um levantamento dos arquivos da Fundação, encontrou-se um folder criado na década de 1970, mostrando que a Fundação já tinha uma preocupação de inserir a pessoa com deficiência visual no mercado de trabalho. No folder, aparecia uma telefonista – a maior tecnologia da época – sendo treinada para exercer essa função no mercado de trabalho. Não havia lei, nem cota, mas havia uma ideologia que permeava90 o trabalho de inclusão da Fundação: o deficiente pode e deve ser capacitado para o mercado de trabalho. O Sr. Edson descreve algumas fotos, nas quais aparecem pessoas com deficiência visual trabalhando na indústria, na inspeção de rolamentos, na montagem de peças, uma recepcionista, um trabalhador da indústria farmacêutica, na linha de embalagem da Pfizer Química, um bloquista na gráfica do Banco de Boston, numa câmara escura em um hospital e na linha de embalagem de uma indústria cosmética. Era outro conceito, outra forma de entender a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. De qualquer forma, é interessante perceber que já havia uma iniciativa. A inclusão da pessoa com deficiência visual no mercado de trabalho aconteceu há cinquenta anos, logicamente, guardando as devidas especificidades de cada época. Atualmente, a Fundação tem um programa de empregabilidade, baseado no paradigma de direitos, de cidadania e de trabalho. A Fundação trabalha em parcerias com empresas e instituições, promovendo dois eixos: um eixo 166 Mercado de Trabalho de serviço à pessoa com deficiência visual e um eixo de serviço às empresas, com projetos de responsabilidade social, capacitações, orientações, sensibilização, uma série de ações específicas em prol dessa inclusão. Com o avanço tecnológico, houve uma série de mudanças nos postos de trabalho, das quais as pessoas com deficiência se beneficiaram muito, como os softwares de voz para algum trabalho específico. Cada vez mais, os postos estão informatizados, o que é uma grande vantagem, um auxílio grande para a pessoa com deficiência visual. Todos falam em capacitação e, de fato, a Fundação só acredita que a inclusão possa acontecer se for integrada a outras áreas de inclusão, principalmente a educação. A ética deve permear todo o processo. As pessoas devem estar capacitadas, qualificadas para exercerem seu cargos e terem o direito de receber tudo isso. Além dos serviços já mencionados, a Fundação promove essa capacitação por meio dos livros digitais acessíveis. São três produtos: o livro em braile, livros e revistas falados e o livro digital acessível. O livro em braile é extremamente importante para o processo de alfabetização, de construção do conhecimento e de aprendizagem das pessoas com deficiência visual. A Fundação tem a maior gráfica em braile da América Latina. Como a questão da deficiência visual está muito pautada na barreira da comunicação, é preciso transpor essa barreira por meio do acesso à informação. Uma das formas de romper essa barreira é com o livro em braile. Percebe-se que falta uma atenção específica para a questão da produção de material em braile, para o acesso à informação imediata. Os livros falados são gravados na Fundação e possuem algumas características específicas. A revista Veja é distribuída para todo o Brasil, por exemplo. O livro digital acessível foi desenvolvido na Fundação em 2007 e atende à demanda de livros universitários e de pesquisa. Eles possuem uma série de vantagens em relação ao livro em braile e ao livro falado. É um recurso tecnológico extremamente eficaz para a inclusão da pessoa com deficiência visual. Um avanço na produção dos livros digitais é o consórcio DAISY, ao qual a Fundação está conveniada, com a produção do programa Dorina Daisy Reader. 167 Mercado de Trabalho Somos essencialmente produtos de nossas épocas e de nossos contextos sociais. Não escapamos às convenções aí desenhadas. Se nas décadas de 1960, 1970 e 1980 nos deparávamos com uma série de problemas, neste início de século temos outras responsabilidades. Para concluir, uma frase da Dona Dorina: “Navegar é preciso, sonhar é imprescindível.” 168 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil Apenas no Estado de São Paulo, cerca de 4,2 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência. Esse público é consumidor de produtos especiais, que vão desde uma simples colher adaptada a uma sofisticada cadeira de rodas. No Brasil, esse mercado ainda tem grande potencial de crescimento, com a ampliação da produção nacional, o aumento da oferta em um maior número de pontos de vendas e o barateamento desses produtos para o consumidor final. Cid Torquato (moderador) – Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Mônica Cavenaghi – Diretora Comercial da Cavenaghi - São Paulo, SP Wilson Zampini – Diretor Geral da Otto Bock Brasil - São Paulo, SP Ricardo A. Conti – Departamento de Engenharia e Desenvolvimento da Ortopedia Jaguaribe Ind. e Comércio Ltda. - Ferraz de Vasconcelos, SP Orlando de Carvalho – Diretor Comercial da CARCI - São Paulo, SP Mônica Cavenaghi: As estatísticas sobre pessoas portadoras de deficiências no Brasil são pouco consistentes. A produção e comercialização de veículos para pessoas com deficiência constituem um mercado mais maduro e os números disponíveis sobre o setor permitem uma reflexão sobre a população de pessoas com deficiência no Brasil como um todo. Pelos dados do censo, há no Brasil 24 milhões e 600 mil deficientes. Todas as montadoras com fábrica no Brasil têm um programa para pessoas com deficiência. Alguns deles são mais eficientes, outros menos, mas todas procuram treinar sua equipe de vendas. O principal diferencial é a renúncia fiscal, com isenção de ICMS e IPI. Realmente, a pessoa com deficiência tem uma vantagem competitiva para comprar seu veículo. O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil Outro fator importante é a abundância de crédito. O mercado brasileiro não é diferente de nenhum outro. O setor financeiro brasileiro oferece crédito com muito mais critérios, com muito maior rigor que os Estados Unidos. De qualquer forma, é preciso trabalhar com crédito, as pessoas precisam ter acesso às tecnologias com uma facilitação de crédito. Por fim, existem alguns produtos aos quais, mesmo com todos esses recursos, as pessoas não terão acesso. Por exemplo, um veículo totalmente acessível para que um tetraplégico possa ocupar o cockpit do motorista com sua cadeira de rodas e sair dirigindo com um controle por comando de voz. Não seria preciso inventar essa solução; ela já está disponível no mercado, mas é uma tecnologia extremamente cara. Mesmo com a renúncia fiscal, com a inclusão da pessoa deficiente no mercado de trabalho, com receita própria, com um crédito muito facilitado, a pessoa não conseguirá comprar. É uma tecnologia para um público absolutamente restrito. O Estado brasileiro precisa decidir se quer que essa pessoa tenha acesso a essa tecnologia ou não. Se quiser, terá que subsidiá-la. Portanto, mesmo com todas essas facilidades, haverá um conjunto de produtos e serviços, de equipamentos, que caberá ao Estado prover ou não. Se o Estado decidir que essa pessoa deve ser independente e produtiva, terá que proporcionar esses equipamentos. No mercado de trabalho brasileiro, as empresas que desejarem contratar uma pessoa com deficiência têm como concorrente o SUS, que aposenta a pessoa e esta só aceita trabalhar na informalidade, para não perder o benefício. No mercado alemão, por exemplo, quanto mais a pessoa é produtiva, maior é a renúncia fiscal que o Estado faz para a compra de produtos e serviços. Se for uma pessoa que não trabalha, terá um determinado desconto. Se trabalhar, terá um desconto maior. Se for funcionária pública, terá um desconto maior ainda. A política segue o princípio de que as pessoas devem ser produtivas; o Estado não quer uma pessoa gerando despesas, mas gerando receitas. O governo alemão não procede dessa maneira por paternalismo, mas porque prefere que a pessoa seja produtiva, gere riquezas para o Estado. É uma questão matemática bastante simples. Wilson Zampini: No sistema brasileiro de fornecimento de próteses, há três grandes fontes de recursos: o SUS, que atende através de licitações, o INSS e 170 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil os recursos particulares, do próprio paciente ou seus familiares, empresas que doam ou seguradoras que cobrem os custos da prótese em caso de acidente. Esta última fonte, por uma questão social, de poder aquisitivo e outros fatores, representa menos de 10% do total. No setor público, o primeiro desafio é a limitação de recursos. Além disso, há a ineficiência do processo para a utilização dos recursos disponíveis. Quando se pensa em tecnologia nesse segmento, discute-se como fazer a tecnologia chegar à pessoa que pode se beneficiar. A Otto Bock trabalha com componentes que utilizam tecnologia de ponta, com o desenvolvimento de tecnologia, traz para o mercado os equipamentos mais modernos. No momento, como já se comentou, não adiantaria simplesmente trazer a produção desse tipo de equipamento para o Brasil. Cedo ou tarde, chegará o momento da produção local. Por ora, entretanto, é uma questão de volume de mercado, de viabilidade econômica. O que importa é que o preconceito contra o produto nacional ou contra o produto importado já não faz parte das considerações válidas. O importante é fazer com que o produto de qualidade, nacional ou importado, reverta em benefícios para o usuário final. Outro ponto de discussão intensa nos últimos anos é que não adianta trazer tecnologia de ponta se não houver uma capacitação técnica para adaptação e viabilização dessa tecnologia para o usuário. Esse é um gargalo muito importante, que o país precisa enfrentar. Em todos os programas se observa hoje uma atenção muito maior ao atendimento; esta necessidade não está sendo observada com a devida atenção e o devido peso. Há um projeto de financiamento de várias oficinas ortopédicas, especialmente no Norte e Nordeste, onde a deficiência é maior, mas é preciso haver técnicos para que essas oficinas funcionem. Seguindo com os desafios a enfrentar nesse segmento, é preciso pensar na adequação das soluções oferecidas ao indivíduo que será beneficiado pela prótese. Não adianta oferecer uma Ferrari a uma pessoa cuja capacidade de direção está mais para um Fusca. É preciso pensar em uma solução que realmente ajude a pessoa com deficiência a ter uma vida o mais próximo do normal ou com o mínimo possível de limitações. Assim, o indivíduo voltará a uma atividade, a contribuir eficiente e efetivamente para a sociedade. Pode-se discutir a respeito dos prós e contras da política pública alemã de conceder maiores descontos aos deficientes mais produtivos, mas é certo 171 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil que o sistema procura estimular aquele profissional para que volte a ter uma vida produtiva, ao convívio social, a ser um consumidor e contribuinte, o que é benéfico para a sociedade, em todos os sentidos. É uma visão pragmática, uma visão moderna da sociedade. Essa perspectiva precisa estar presente na discussão de políticas e tecnologias para o deficiente físico. Em segmentos do governo brasileiro, essa discussão costuma tomar por base a quantidade “x” de pessoas que precisam ser atendidas, se certa cota de recursos for destinada a essa condição, será necessário deixar de atender a uma quantidade maior de pacientes. É preciso encarar essa questão de maneira mais aberta, abrangente e inteligente. O sistema brasileiro precisa contemplar as pessoas que podem voltar a contribuir com a sociedade e atualmente isso não ocorre. Todos são tratados do mesmo jeito. É preciso desenvolver uma visão mais moderna de sociedade, que permita que essas variáveis sejam consideradas na equação geral. O sistema também não contempla a valorização do resultado final do processo. Este é outro aspecto importante. Grande parte do fornecimento de órteses, próteses e cadeiras de rodas com recursos públicos é feita através de licitações. A licitação tem por finalidade comprar, fazer a aquisição de um bem ou serviço com o menor preço possível, teoricamente protegendo os interesses do governo e os recursos disponíveis para aquele fim. Essa prática pode ser um “tiro no pé”. Quando se trata de uma prótese, um produto totalmente adaptado, customizado especificamente para um indivíduo, com um perfil específico, necessidades específicas, em uma situação específica, em muitos casos há um verdadeiro desperdício de recurso público, e não uma economia de recurso público. No processo licitatório, em muitos casos se compra um serviço por um valor baixo, que no final das contas não fornece o benefício pretendido ao usuário. Segundo levantamentos do próprio governo, muitas dessas próteses acabam penduradas atrás da porta. O próprio governo estima que muitas das próteses fornecidas pelo SUS não estão sendo usadas porque não foram adaptadas, não houve um processo de adaptação da prótese. O sistema precisa contemplar essa adaptação. É preciso pagar de forma justa, que remunere o trabalho fornecido, desde que o benefício realmente aconteça. A título de exemplo, suponhamos o caso de um paciente jovem, de alta atividade, submetido a amputação acima do joelho, que necessite de uma prótese. Com a prótese, o paciente poderia voltar a uma atividade profissional 172 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil plena e a uma boa vida social. Se o processo de preparação do paciente, a colocação da prótese, o treinamento para que a pessoa utilize a prótese forem mal feitos, porque o sistema não contempla a qualidade final do processo, pode ser que todo o investimento feito, toda a possibilidade do paciente de voltar a uma vida boa e produtiva sejam frustrados. Esta é uma mensagem importante para se discutir a tecnologia à disposição das pessoas com deficiência. O amputado brasileiro tem um perfil jovem. O percentual de pessoas mais jovens que sofrem amputação no Brasil é muito maior do que em outros países, basicamente por conta da violência urbana, seja por ação de tiros, do tráfego de veículos ou por outros meios. Logo se pensa que uma prótese para o paciente com um perfil de alta atividade custa muito caro. Com o valor de uma prótese como essas, seria possível protetizar uma quantidade maior de pacientes com próteses mais simples. É verdade, mas, para uma pessoa como essa, esse tipo de prótese seria uma solução, ela poderia voltar a ter uma vida plena, produtiva, com reintegração social. É preciso considerar o potencial de reinserção e de reabilitação total, e não simplesmente o fornecimento da prótese, da órtese ou da cadeira de rodas. A visão precisa ser muito mais ampla. Qualquer empresa ou instituição que atue nesse setor precisa ter esse compromisso, para que todo o processo melhore e o sistema seja mais bem desenvolvido. Outro aspecto importante é que a aplicação dessa tecnologia exige uma estrutura adequada, para que os deficientes possam realmente ser beneficiados. Não adianta trazer equipamentos de ponta ou desenvolvê-los aqui mesmo no Brasil, se não houver toda uma estrutura que permita que o benefício realmente chegue ao deficiente. A tecnologia já está disponível, pode revolucionar o atendimento das pessoas com deficiência, mas precisa ser introduzida de forma responsável, para proteger os interesses do deficiente físico e da sociedade brasileira como um todo. Todos os envolvidos nesse segmento, mesmo uma empresa que, obviamente, vise ao lucro, precisa ter esse compromisso mais amplo, de não fazer somente a sua parte, mas contribuir para o desenvolvimento e o crescimento de todo o segmento. Ricardo A. Conti: Infelizmente, a cultura das indústrias de cadeira de rodas é de não divulgar números, e isso é negativo para a própria indústria, porque 173 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil com números podem-se concentrar os esforços e a dedicação das pessoas, o que é o mais importante. Sem números, ficamos um pouco órfãos nesse aspecto. O Sr. Cid Torquato sugere a criação de uma associação das empresas de tecnologias assistivas no Brasil, talvez com o grupo formado pelos palestrantes do simpósio como núcleo inicial, inclusive para a produção de dados como aqueles cuja falta o Sr. Ricardo Conti menciona. Embora não existam dados oficiais, dá para arriscar alguns números. Nas feiras internacionais, os números aparecem com frequência. Como simples impressão, pode-se supor que a indústria nacional de cadeiras de rodas deva fabricar em torno de 200 a 300 mil unidades por ano, dos diversos tipos: higiênicas, para tetraplégicos, paraplégicos, obesos, idosos. Nos Estados Unidos, há um dado que indica a produção de mais de 600 mil cadeiras motorizadas por ano. Aqui, todos os tipos de cadeiras somariam 300 mil. A produção de cadeiras motorizadas no Brasil é muito baixa. Trata-se de outra população; o número de idosos nos Estados Unidos é maior. A população total é quase 50% maior que a do Brasil: cerca de 300 milhões. Portanto, imagina-se que essa área no Brasil tenha um grande crescimento pela frente. A cadeia produtiva da cadeira de rodas é considerada complexa, porque é preciso investir em metalurgia, que é a base da cadeira de rodas, na indústria de polímeros (injeção de plásticos), na indústria têxtil (assentos, encostos) e de borracha natural (os pneus das cadeiras). Até a década de 1990, a indústria de cadeira de rodas do Brasil viveu uma fase de baixa demanda. Por isso, os processos de fabricação se verticalizaram. Todos os componentes da cadeira eram produzidos dentro da própria indústria. O volume era baixo. A vantagem do processo verticalizado era a independência de terceiros, havia tudo dentro de casa, havia maior autonomia e o controle sobre a tecnologia. Se uma indústria desenvolvia um produto, estava tudo dentro da sua casa. As desvantagens seriam um investimento grande em processos. Era preciso que todo o processo estivesse disponível na empresa, um processo caro e extenso. A flexibilidade era menor, em função do tamanho do processo, e a sua estrutura ia inchando. À medida que a demanda foi crescendo, tornouse necessário ter cada vez mais funcionários. Com a evolução nos últimos 10 anos, ocorreu a horizontalização do processo. As indústrias começaram a desenvolver parceiros no mercado interno e externo, começaram a importar também, para obter rodas, freios, etc. 174 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil Algumas indústrias pintavam os produtos fora, com um parceiro no exterior, ou faziam tecido nas oficinas de costura e a própria confecção da estrutura de alguns produtos mais simples começou a ser terceirizada. As vantagens dessa horizontalização eram que a empresa podia manter o foco no seu negócio, que é comercializar, e no processo mais complexo de preparação da estrutura, de engenharia de desenvolvimento. A outra vantagem de dividir as tarefas foi obter parceiros com tecnologia própria. Assim, a indústria nacional começou a adquirir o know-how dos seus parceiros. Aumentou a capacidade produtiva, com o processo de horizontalização, e obteve-se maior flexibilidade nos volumes. Aumentaram os volumes porque a indústria já tinha um pouco mais de espaço, não estava inchada, começou a terceirizar várias tarefas e aumentou a produção. As desvantagens desse processo de horizontalização incluem o menor controle tecnológico. Um determinado parceiro começa a fornecer para um concorrente, por exemplo. É o que ocorre nos países mais desenvolvidos. Há, por exemplo, uma indústria de componentes para cadeira de rodas. Todos compram desses fornecedores e eles acabam adquirindo tecnologia própria. Começam a homologar o componente que fabricam. Têm laboratórios, fazem testes. Recebe-se o material com garantia para se utilizar na produção da cadeira. Outra desvantagem é a alta dependência de terceiros e uma logística um pouco mais complexa. Tudo tem que estar programado para chegar na hora certa. É o que aconteceu na indústria montadora de veículos. Algumas décadas atrás, elas eram um pouco mais verticalizadas. Hoje são chamadas, inclusive, de montadoras, pois compram os componentes e montam, somente. Quanto à evolução dos produtos, até a década de 1990, os produtos apresentavam mínimos recursos de adequação às necessidades do usuário. Eram muito básicos. Não se mexia na linha de produtos. Com o passar dos anos, principalmente na última década, começaram a aparecer recursos importantes nas cadeiras de rodas. Vários produtos no mercado permitem a regulagem de tilt, que é o ângulo de assento, o deslocamento do centro de gravidade, anteriorizar e posteriorizar a roda traseira, projetos customizados. Hoje, as empresas têm linhas de fabricação que permitem fazer a cadeira sob medida, com largura, profundidade de assento e altura do encosto personalizadas para cada usuário. E houve o desenvolvimento de projetos em parceria com os centros de referência em reabilitação, realmente uma evolução muito grande. Outra evolução é a grande disponibilidade de cores. 175 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil No passado não havia essa variedade; hoje há um mostruário de cores, cada um compra a cadeira na cor de sua preferência. A introdução de módulos para adequação postural foi outro avanço. Muitas cadeiras já saem de fábrica com módulo de adequação postural. E há produtos motorizados, com maior valor agregado de alta tecnologia. A indústria de cadeira de rodas pode seguir algumas normas, como por exemplo a ISO 9001, um sistema de gestão da qualidade aplicável a qualquer processo. É uma norma de alcance mundial. A NBR ISO 13.485, uma norma baseada na ISO 9000, tem características próprias para o processo de fabricação de produtos para a saúde. A RDC 59, da ANVISA, sobre as boas práticas de fabricação, é uma norma aplicável aos países do MERCOSUL. Recentemente saiu a NBR ISO 7.176, com normas que definem os métodos de ensaios para cadeiras de rodas. Há testes de rodagem, de impacto e de estabilidade estática, que é um ensaio muito importante. Essas normas foram homologadas pela ABNT a partir de maio deste ano. O INMETRO usará essas normas para verificar a conformidade dos produtos e será criado um mecanismo de certificação compulsória. Portanto, o INMETRO passará a reger o segmento; dentro de pouco tempo os produtos terão o selo do INMETRO. Haverá uma certificação compulsória na cadeira de rodas, um parâmetro de qualidade para todos os produtos fabricados no Brasil. Essa é uma evolução muito grande no mercado nacional, porque hoje há no mercado cadeiras de rodas das quais não se sabe nem a marca. Alguém entra no mercado, começa a produzir e coloca em risco a segurança do usuário. Com a regulamentação do INMETRO, isso não vai mais acontecer. Na hora de comprar o produto, será possível ver se ele tem o selo do INMETRO. Dentre os fatores que podem incentivar a oferta de produtos, um muito importante é a abertura de linhas de crédito para a ampliação da capacidade produtiva, destinada especificamente a essa finalidade. A população tem um poder aquisitivo muito baixo ainda. Se o país tiver um crescimento econômico, certamente, aumentará a produção. A atuação mais forte do setor público na aquisição e distribuição de equipamentos também é muito importante para a expansão da produção. Quais os outros fatores que podem trazer uma redução de custos e do preço final do produto? A escala está muito relacionada ao custo. Com uma escala maior na produção, o custo diminui. O foco na conquista de novos mercados é uma opção. A indústria nacional exporta muito pouco ainda. A exportação, 176 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil especialmente para os países do MERCOSUL, é muito importante para aumentar a demanda e reduzir custos. Outro ponto é obter o financiamento de equipamentos, processos e projetos voltados para a redução de custo dos produtos. Acelerar o processo de horizontalização, fazer cada vez mais componentes fora, também reduz custos. Outro tópico é a melhoria nos índices de produtividade da indústria. A indústria precisa ter produtividade também para oferecer melhores custos. Para ter produtividade, é preciso investir em sistemas de gestão de produtividade, de qualidade. O desenvolvimento tecnológico talvez seja o maior desafio da indústria de cadeiras de rodas no Brasil. É preciso aumentar o investimento em pesquisa de movimentos, de produtos, de processos. A indústria nacional investe muito pouco nisso. Existem as equipes de engenharia de desenvolvimento, mas ainda há muito que se investir. A indústria precisa ter tecnologia própria, senão realmente as coisas vão ficando cada vez mais difíceis. A regulamentação compulsória do setor, com o estabelecimento de um padrão mínimo de qualidade para a comercialização do produto, está sendo feita pelo INMETRO. O desafio da indústria de cadeiras de rodas é manter-se competitiva no mercado globalizado. Nesse contexto, a qualidade, a produtividade, a inovação e custos competitivos são cada vez mais importantes. Orlando de Carvalho: O Sr. Orlando de Carvalho relata um episódio em que recebeu a visita de umas senhoras que faziam doações de cadeiras de rodas. Queriam saber o valor do produto. Questionadas sobre o problema do futuro usuário, disseram tratar-se de uma criança com paralisia cerebral. Seria o caso de fazer uma avaliação prévia, pois caso contrário se poderia piorar ainda mais o problema. O Sr. Orlando sugeriu a avaliação de um profissional, que foi feita. Quando as senhoras souberam do preço do equipamento proposto, disseram que, com aquele valor, poderiam comprar dez cadeiras de rodas. O Sr. Orlando comentou então, brincando, que elas estavam querendo ganhar o reino do céu pela quantidade, não pela qualidade. Segundo o Sr. Orlando, daquele dia em diante, aquelas senhoras passaram a levar em consideração alguns fatores. Comenta-se que em outros países, como na Alemanha, por exemplo, o governo dá total apoio ao cidadão que precisa de uma cadeira de rodas. 177 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil Houve um período em que havia inúmeros centros de reabilitação na cidade de São Paulo, pagos pelo INPS. O Brasil era um dos países com os mais altos índices de acidentes do trabalho e o Governo deveria manter um cidadão dependente ou investir em fisioterapia para a reabilitação desses indivíduos acidentados. Nesse contexto, é importante buscar políticas públicas de isenção de impostos. Na isenção de veículos, são 2 milhões e 600 mil veículos beneficiados. O Governo reduziu o IPI, mas nunca se pensou em zerar o IPI de um haltere para exercícios. Esse tipo de produto paga 20% de IPI. Houve redução de IPI para produtos da chamada linha branca, para móveis de madeira, enquanto os produtos utilizados na fisioterapia e reabilitação, para melhorar a qualidade de vida de um paciente, pagam 20%, como uma bicicleta ergométrica ou uma esteira ergométrica. Isso tudo porque, quando se criou o conceito de NCM (Nomenclatura Comum do MERCOSUL), estabeleceuse que o condicionamento físico era um luxo, era supérfluo. Tudo o que se podia fazer foi verificado, reduziram o IPI do automóvel, houve períodos em que reduziram também o IPI do liquidificador, de máquinas e equipamentos, mas e os produtos de tecnologia assistiva? O que representaria para a arrecadação de impostos uma isenção na área de reabilitação? A fisioterapia é muito abrangente e o campo envolve também o trabalho de terapia ocupacional. Há impostos diferenciados, uma linha de aparelhos elétricos paga 8%, a mobilização é isenta, outros segmentos pagam 20%. Para importar toda a tecnologia disponível no exterior, primeiramente é preciso submeter-se às exigências da ANVISA. Para importar um produto, é preciso obter antes um registro. O setor importa não por simpatia, mas porque se quer oferecer um padrão de qualidade melhor e a indústria nacional ainda não produz esse tipo de material, no padrão exigido e com o respeito que se pretende em relação ao usuário. Entretanto, para se conseguir um registro, leva-se quase um ano. Não se pode comercializar um produto simplesmente com o protocolo do pedido de registro. Se isso ocorrer e a empresa for flagrada, corre-se o risco de prisão. Em relação às boas práticas de fabricação, com muito boa vontade, recebe-se a auditoria da ANVISA seis a oito meses depois de solicitada. Durante esse período, não se pode comercializar o produto. Portanto, há uma necessidade urgente de mobilização dos homens públicos em Brasília, para que esse estado de coisas seja alterado. 178 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil Cerca de quatrocentas empresas são afiliadas à ABIMO (Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios). Para se obter uma certificação CE, para permitir a exportação para a Europa, para a Ásia ou a África, é preciso contratar uma auditoria externa. Ocorre que essa auditoria não serve para a ANVISA. A diferença é que os auditores da Europa ou dos Estados Unidos são pessoas qualificadas no seu setor de trabalho. Na ANVISA, ocorre o contrário. Sem demérito à ANVISA ou ao enfermeiro por ela enviado, acontece que um profissional de saúde vai à fábrica questionar o engenheiro eletrônico com relação ao PCI utilizado no aparelho, sugere uma alteração no projeto... Portanto, é hora de procurar apoio, de “comprar essa briga” de alguma forma. A Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, comandada pela Dra. Linamara, representa um passo muito importante para que se consiga uma abertura, uma sensibilização da classe política em Brasília. As dificuldades de isenção de impostos são muito claras. Costuma-se dizer que o Governo não sabe o que é um PC, um portador de paralisia cerebral, pois ele não vota. Existem hoje cerca de 4,2 milhões de pessoas no Estado de São Paulo com algum tipo de deficiência. É mais do que a população do Uruguai ou do Paraguai. A deficiência envolve muito mais do que os cadeirantes. Em termos de reabilitação, às vezes um cubo de gelo resolve uma situação crítica. Uma massinha resolve alguma condição, para que se comece a desenvolver um trabalho. Alguns dizem que somente os malucos continuam trabalhando na área da saúde, pois são punidos diariamente. São psicólogos, nutricionistas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e muitos outros profissionais. Para encerrar, considere-se o grande volume de ambulâncias, micro-ônibus e vans que se deslocam de todo o interior do Estado e do sul de Minas com pacientes que vêm a São Paulo para fazer uma avaliação. Eles acordam, quando dormem, por volta das duas horas da manhã, tomam a estrada, arriscando tudo, para chegar aqui ao Hospital das Clínicas, ou a uma clínica de olhos, fazer uma avaliação e retornar à tarde. Quanto custa isso ao Estado? Será que vale a pena? Hoje, felizmente, a Dra. Linamara conduz um projeto para criar centros de reabilitação maiores e o Governador José Serra diz que, em cada município, quer um representante dessa Secretaria. Não importa o tamanho do município, sempre haverá, na área rural ou na cidade, pessoas 179 O Mercado de Tecnologias Assistivas no Brasil necessitadas, mesmo que seja um idoso. Hoje já são mais de 16 milhões de idosos. Daqui a cinco anos, talvez cheguem a 30 e tantos milhões. Não se trata apenas de cadeiras de rodas; são adaptadores para o banheiro, uma barra, tudo faz parte de um contexto pelo qual somos responsáveis e precisamos abraçar a ideia e mostrar ao Governo essa necessidade. 180 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer O Brasil tem se tornado uma verdadeira potência no paradesporto. Além da perspectiva de preparação de uma nova geração de atletas com vistas à Paraolimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, é necessário ampliarmos a participação de pessoas com deficiência em atividades esportivas e de lazer, como importantes vetores de inclusão social, além dos benefícios para o corpo e a mente. O alto custo dos materiais e equipamentos, problemas de acessibilidade e a falta de capacitação profissional adequada precisam ser equacionadas para que tais atividades promovam os resultados esperados. Vanilton Senatore (moderador) – Assessor Técnico de Gabinete - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Paulo César Marinho Fernandes – Proprietário da Mobility Brasil - Goiânia, GO Rivaldo Gonçalves Martins – Atleta Paraolímpico - Santos, SP Marco Antonio Guedes de Souza Pinto – Ortopedista e Traumatologista Fundador e Diretor do Centro Marian Weiss - São Paulo, SP Paulo César Marinho Fernandes: O Sr. Paulo inicia dizendo que é muito difícil separar a sua própria história de uma apresentação como esta, pois ele foi personagem de uma história de inclusão e tecnologia. Em 1976, sofreu um acidente, foi atropelado e ficou paraplégico. A primeira cadeira de rodas que recebeu pesava 36 kg. É cadeirante e ex-atleta da seleção brasileira de basquete em cadeira de rodas, na qual atuou por muitos anos. Por que o Brasil possui mais medalhas paraolímpicas em esportes como atletismo, natação e judô? Ocorre que o equipamento tecnológico não é definitivo para essas modalidades. O basquete, o atletismo, a maratona e o Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer tênis em cadeira de rodas já não têm tantos resultados positivos, justamente porque falta-nos essa tecnologia acessível. Na natação, basta ter uma piscina, um professor e o atleta. Para formar uma equipe paraolímpica de basquete, é preciso considerar que uma cadeira competitiva atualmente não sai por menos de sete mil reais. A manutenção dos equipamentos, a especificidade de cada item, como uma cadeira de corrida, por exemplo, são aspectos tecnológicos fundamentais. Os nossos atletas não despontam em modalidades nas quais o equipamento é decisivo pelos mesmos motivos observados nas modalidades olímpicas, como aquelas que dependem da tecnologia de fibra de carbono, barcos especiais, equipamentos de ginástica. O paradesporto enfrenta os mesmos tipos de dificuldade. Porém, há outro fato a considerar. O homem não foi feito para locomover-se por meio de uma cadeira de rodas; trata-se de uma adaptação de mobilidade. Ergonomicamente, os seres humanos diferenciam-se de outros animais pela posição ereta. Ao observarmos a natureza do alto, nos tornamos seres supremos. Quando o ser humano se levantou e tornou-se bípede, mudou a história da humanidade. Entretanto, logo no início da história humana, a falta de mobilidade já estava presente. Ao caçar, ao descobrir novos territórios, diante das ameaças dos inimigos, quantas pessoas pararam de andar, perderam pernas ou braços nas guerras? Assim, o homem começou a perceber que a perda de mobilidade não significaria a perda da vida. Há muito tempo, procura-se devolver a mobilidade a essas pessoas. Aí começou a história dos profissionais da área e da tecnologia assistiva. Inicialmente, alguém colocou rodas numa cadeira de descanso do idoso, talvez mais como facilidade para o cuidador do que um recurso para a independência do deficiente. Em 1917, criou-se uma pequena carroça puxada por um cão, na qual ia sentada uma pessoa que havia tido poliomielite. Percebemos ali o desenvolvimento da tecnologia: a carrocinha já dispunha de rodas, era de madeira torneada (portanto já havia um torno para produzila) e havia a motivação do seu usuário. Era uma pessoa que queria se movimentar, sem que pudesse caminhar normalmente. Em síntese, todas as tecnologias modernas surgem dessas mesmas condições: tecnologia e motivação. 182 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer Com o desenvolvimento industrial, novas alternativas foram surgindo: o vime, as rodas fundidas (a partir da Revolução Industrial), os carros de luxo emprestaram as capotas da época, surgiram bicicletas adaptadas, híbridas. Até então, não havia “luta pelos direitos da pessoa com deficiência”, mas medidas para garantir a sobrevida das pessoas amadas. A sociedade tolerava esses indivíduos; eles ainda eram um peso na família, recebiam esses artefatos como reconhecimento pela sua luta numa guerra, por exemplo. Os equipamentos eram elitizados; poucos tinham direito a eles. As pessoas menos favorecidas não tinham a mesma sorte e muitas vezes acabavam morrendo. Ainda não havia antibióticos e todos sabemos que o que mata não é a paraplegia em si, mas as consequências urinárias, neurológicas do mau cuidado, a má reabilitação, etc. No início do século XIX, a autonomia começa a ser um objetivo: surgem as cadeiras com aro propulsor. Antes, todos os cadeirantes eram movimentados por alguém. O aro de impulsão representou maior autonomia dentro de casa, maior liberdade. O cadeirante já podia conseguir um copo d’água por si só, se tivesse sede. A ideia de independência começa a se tornar presente. A sobrevida após uma lesão medular também começa a se prolongar, sobretudo com o advento dos antibióticos. Desenvolveu-se um triciclo para duas pessoas, um andante que pedalava e um cadeirante que ia sentado à frente. Com a possibilidade de se movimentar para distâncias mais longas, ampliavam-se os horizontes, o cadeirante podia ver a montanha e o rio que antes não via, e aumentaram também as possibilidades de atividade dos cadeirantes. Essas bicicletas começaram a levar os cadeirantes para passear. Quando as pessoas começaram a ver os cadeirantes na rua, passaram a questionar o que se poderia fazer com eles, pois eram muitos e cada vez havia mais. Surgiram cadeiras em padrão industrializado. Antes, em três anos o paraplégico acabava morrendo, por insuficiência renal, escara, infecção... Assim, a indústria e a tecnologia começam a acompanhar o movimento de inclusão social. O grande divisor de águas no uso da tecnologia para as pessoas com deficiência ocorreu num local da Inglaterra chamado Stoke Mandeville: um centro de recuperação fundado pelo neurocirurgião alemão Ludwig Goodmann, a primeira pessoa que pensou em associar o esporte e a reabilitação, após a Segunda Guerra Mundial. 183 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer Como seria possível reabilitar o enorme contingente de paraplégicos vítimas da guerra, civis e militares, naquela época? O número de profissionais de reabilitação era absolutamente insuficiente para os milhares ou mesmo milhões de pessoas que haviam perdido movimentos. Assim, por meio da prática esportiva, numa quadra de basquete, com uma bola e uma cesta, o médico propôs-se a reeducar e treinar as pessoas para a vida. Inicialmente as cadeiras eram rústicas, tinham as características dos equipamentos usuais da época, com couro e madeira, e utilizavam-se muitas peças de bicicletas. Entretanto, aquele já era o projeto embrionário de uma Paraolimpíada. Essas pessoas começaram a mostrar para a sociedade que eram capazes de jogar basquete. Aqueles que antes as viam como um peso social, dependentes da coletividade, começaram a perceber que elas poderiam ser produtivas, menos dependentes do Estado. Se o esporte pudesse motivá-las, elas sairiam mais rapidamente do centro de reabilitação. O centro de reabilitação não trabalha para que a pessoa volte a andar, mas para que volte a viver. Por isso, as pessoas frequentam essas instituições por anos a fio. E, nesse sentido, nada como o esporte para motivar as pessoas. Os anos se passaram e a tecnologia foi melhorando. Surgiram as cadeiras tubulares, com aço industrial, rodas enraiadas, uma maior padronização. Até então, porém, todos andavam da mesma maneira, nas mesmas cadeiras. Não se levavam em conta variáveis como largura, profundidade do encosto, peso da cadeira, desempenho. Simplesmente, os cadeirantes se reabilitavam por meio da bola de basquete. De qualquer forma, as pessoas da comunidade começavam a não vê-los mais como pobres-coitados. Quando vemos uma partida de basquete jogada por cadeirantes ou uma pessoa sem braço numa prova de natação, não sentimos pena. Pode-se sentir muito mais do que comiseração. Assim, as indústrias começaram a reabsorver a mão-de-obra e esse enorme contingente deixou de ser um peso social e passou a colaborar. Por que o Brasil é tão atrasado em relação às políticas sociais de reabilitação? Quem já viajou para o primeiro mundo, percebe claramente a diferença. Uma das respostas talvez seja o fato de o nosso país não ter entrado em guerras. O americano médio não para na vaga para deficientes porque, enquanto ele assistia a uma partida de futebol americano e comia pipoca, o usuário da vaga estava colocando a vida em risco no Vietnã. Como desrespeitar esse excombatente, que lutou pelo país? Assim, as políticas de reabilitação nos países 184 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer que entraram em guerra fazem parte de outra realidade e de outro respeito. O cadeirante no Brasil foi uma pessoa que teve azar, caiu do andaime, foi atropelado, tomou um tiro porque reagiu a um assalto, deve estar pagando alguma coisa que fez no passado... No restrito círculo das pessoas que têm um pé na inclusão, os direitos das pessoas com deficiência são respeitados, mas num prédio residencial, por exemplo, os moradores pensam apenas: “Coitado daquele rapaz que ficou paraplégico”. Podemos pensar em alguns itens que foram definitivos para que se passasse da fase de “brincadeira de basquete”, de recreação e motivação, para um passo adiante. Primeiro, as competições começaram a se tornar uma realidade no mundo inteiro. O projeto-piloto americano e inglês de reabilitação começou a se espalhar pelo mundo. A vontade de superar desafios e realizar conquistas é inerente ao ser humano. O indivíduo começa a jogar a bola, faz a cesta, joga com outros e não quer perder. Com o tempo, percebeu-se que alguns cadeirantes tinham maior mobilidade e levavam vantagem sobre outros. O amputado tem maior equilíbrio na cadeira do que o indivíduo com lesão medular em T4, T8 ou T10, por exemplo. Daí surgiu a classificação funcional, com a finalidade de equalizar os competidores. O sujeito com uma lesão completa deveria ter a mesma chance de ser um bom jogador de basquete que um amputado bilateral, que funcionalmente é muito mais ágil na cadeira de rodas. Nessa luta pela vitória e pela igualdade de condições de competição, a alta performance passou a ser uma meta. Percebeu-se que itens como um encosto mais baixo, um cinto que prendesse o quadril, um melhor posicionamento de perna, um melhor posicionamento do centro de gravidade do corpo, para a impulsão, poderiam determinar a vitória de uma equipe. Assim, começou a busca por materiais mais leves e resistentes, adequação à cadeira e componentes de alta tecnologia. Essas novidades foram fantásticas, pois as pessoas começaram a querer melhorar o seu desempenho e, automaticamente, testaram os modelos da engenharia que levaram à produção de itens hoje comumente disponíveis. Atualmente, fala-se em cadeiras com largura correta, centro de gravidade e altura do encosto adequados. 185 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer Numa fotografia de uma partida disputada na Paraolimpíada da Espanha, observa-se que vários atletas disputam a bola na área do garrafão e um deles inclina a cadeira sobre uma roda só para fazer o arremesso. Certamente, nessas condições, o eixo das rodas não empenará, a cadeira não pesa 20 kg, o pneu não é aquele pneu meio murcho com o qual se anda pela rua. O atleta dispõe de um material de alta tecnologia para chegar a esse nível de performance esportiva. Se tivermos essa qualidade de equipamento na quadra, certamente um usuário que quer trabalhar, estudar e melhorar a sua condição de vida também vai querer essa tecnologia no seu dia-a-dia. Portanto, as cadeiras esportivas emprestaram toda a leveza das estruturas, o design, o conceito e as técnicas de fabricação para as cadeiras de rodas que milhares de pessoas utilizam para se reinserir socialmente. Atualmente, é possível ver uma pessoa com tetraplegia, antes considerada “intocável”, que não podia fazer nada, participar de jogos paraolímpicos, cair e voltar à sua cadeira sozinha, tomar um ônibus, ir para o seu alojamento, tudo graças à alta tecnologia, a uma cadeira de rodas com comandos de digitação ou voz, que pesa 8 kg. Um tetraplégico que ganha uma medalha paraolímpica certamente não terá dificuldade para conseguir um emprego, reinserir-se, voltar a estudar... Ele próprio poderá criar um ambiente favorável, para que seja feliz, pois já é um vitorioso. Há cadeiras de rodas fabricadas em titânio, um metal presente na natureza, mais resistente e mais leve que o alumínio. Uma cadeira de alta performance, disponível atualmente para jogos de basquete de várias modalidades, é totalmente fabricada em titânio e pesa 8 kg. Se compararmos uma equipe que jogue com cadeiras como essa a outra, que utilize cadeiras de 12 kg, obviamente depois de 40 minutos a primeira estará mais disposta e apta a realizar movimentos de arremesso. A seleção brasileira de basquete em cadeira de rodas, quando jogava com os Estados Unidos, saía-se muito bem no primeiro tempo, o placar ficava equilibrado. No segundo tempo, perdia por 20 pontos de diferença. Não se pode deixar de levar em conta a diferença de tecnologia. Por isso, será mais difícil o Brasil ser campeão mundial de basquete do que conseguir 20 medalhas na natação paraolímpica. Além de toda a dificuldade representada pelo custo em si, para se importar uma cadeira como essas, é preciso registrar, obter aprovação da ANVISA, 186 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer num processo que pode levar um ano. As leis sanitárias qualificam esse tipo de cadeira como equipamento hospitalar. As cadeiras de uso ativo observam técnicas de fabricação específicas, utilizam materiais leves e resistentes, são customizadas e possuem ajustabilidade. São todos frutos da história esportiva aqui descrita. Daí a importância de o Brasil ser um país paraolímpico: para semear novos caminhos para os usuários de cadeiras de rodas, na sua vida social, que representam um número extremamente maior do que o dos atletas que praticam jogos de basquete. Hoje, graças à evolução da tecnologia, existem cadeiras totalmente fabricadas em titânio, sempre com menos de 10 kg, com diversos recursos de ajustabilidade, com os mesmos tipos de rolamentos que as cadeiras usadas nas práticas esportivas, com pneus específicos para cadeiras de rodas (mais leves, que não sujam as mãos e o ambiente), etc. Os usuários podem transpor limites, por exemplo, fazendo uma trilha no meio da floresta ou atuando no mercado de trabalho, totalmente adaptados às suas necessidades de locomoção. Um profissional assim dificilmente estaria atuando se utilizasse uma cadeira de 40 kg. Na primeira vez em que saísse, desistiria. O mesmo vale para outras atividades, como a de médico ou de artistas de várias áreas. Há excelentes competições de dança de salão no Brasil. Tudo isso graças à tecnologia. Nesse sentido, o Brasil é um país privilegiado, pois são bem poucos os países em desenvolvimento que possuem tecnologia própria para oferecer aos seus usuários. Com relação às crianças com deficiência, quanto mais cedo elas tiverem o equipamento mais apropriado, maior será a sua ambientação, maior a sua mobilidade e independência dos familiares, para que possa traçar o seu próprio caminho, estudar, trabalhar e realizar as suas conquistas. O objetivo, afinal, é que não vejamos os homens em suas cadeiras de rodas. Elas devem ser apenas os meios utilizados para que esses homens realizem todas as conquistas a que se propõem. Isso, só com uma cadeira leve. Rivaldo Gonçalves Martins: O Sr. Rivaldo conta que já era professor de educação física e praticava esportes muito antes de sofrer um acidente com amputação de membro inferior, 23 anos atrás e já sabia, por essa experiência prévia, que o esporte pode ajudar as pessoas a vencer na vida e a superar barreiras que precisam enfrentar eventualmente. Descreverá a seguir como a tecnologia o ajudou no desempenho do 187 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer dia-a-dia, no trabalho, no lazer e nas conquistas esportivas. São vinte anos praticando esportes com o uso de uma prótese. Como já se mencionou, o Brasil está bem aquém de muitos outros países em relação aos recursos tecnológicos para as pessoas com deficiência. É o que se percebe claramente nas Paraolimpíadas e nos campeonatos mundiais. O Brasil é uma grande potência paraolímpica, desde que não seja necessário utilizar nenhum equipamento especial. O basquete masculino brasileiro, por outro lado, ainda não obteve classificação para as próximas Paraolimpíadas, completando três edições seguidas sem a participação do país. No atletismo, os resultados dos amputados de braço e dos deficientes visuais são fenomenais, mas não temos sequer um atleta em cadeira de rodas nas Paraolimpíadas. Nas últimas Paraolimpíadas, realizadas na China, tivemos pela primeira vez um garoto que conquistou a medalha de prata com o uso de uma prótese. Nos jogos paraescolares de Fortaleza, o Alan fez a prova de 100 metros e não pode participar da prova de 200 metros, porque a prótese estava machucando. Dali em diante, todo o possível foi feito para que ele conseguisse próteses mais apropriadas, que foram obtidas. Dois anos depois, ele representou o Brasil nos jogos paraolímplicos da China e hoje é um dos destaques mundiais nas provas de 100 e 200 metros para amputados com prótese. O Sr. Rivaldo conta que, até 2004, era o único atleta de toda a delegação brasileira a usar uma prótese. Participou de três Paraolimpíadas na modalidade de ciclismo. Portanto, no campo das próteses o Brasil ainda está muito aquém do seu potencial, que é muito grande. No atletismo em cadeira de rodas, o México “dá um banho” no Brasil, justamente por ter maior facilidade de acesso a toda a tecnologia do país vizinho, os Estados Unidos. O Sr. Rivaldo comenta que se considera um privilegiado, pois a sua carreira esportiva de certa forma acompanhou a evolução tecnológica das próteses, ocorrida no mesmo período. Menciona uma matéria publicada no jornal Correio Braziliense, premiada como melhor matéria esportiva do ano em Brasília. Nela, há um gráfico que indica a melhora progressiva dos tempos nas provas de ironman, obtida ao longo da sua carreira, com o avanço das próteses. 188 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer Amputado em 1986, retornou ao triatlo em 1988 com uma prótese que não era adequada ao esporte e quebrou após dois meses de treinos. Ouviu falar de uma prótese feita para corrida e esportes em geral, a Flex-Foot, entrou em contato com a empresa Össur, nos Estados Unidos, que o apresentou ao Dr. Marco Antonio Guedes, participante do simpósio e médico que o acompanha até hoje. Desde então, tornou-se um atleta da Össur e tem acesso rápido aos avanços tecnológicos que vão surgindo. Além do próprio Alan, procura facilitar a obtenção de próteses especiais para outros atletas brasileiros. Em 1989, iniciou o uso de uma primeira prótese adequada à prática esportiva, feita de fibra de carbono. Utilizava a mesma prótese para pedalar e para correr. Num encaixe adaptado à perna amputada, fixa-se uma lâmina de fibra de carbono que faz um arco para a frente, simulando o pé. A esse arco, fixa-se outra lâmina que simula o calcanhar. Depois, passou a utilizar outro modelo, que possui um amortecedor, muito útil nas provas longas. A prova de ironman dura o dia todo, cerca de 17 horas. É preciso nadar 4 quilômetros, pedalar 180 quilômetros e correr a maratona (42 quilômetros). Portanto, para fazer tudo isso, é preciso utilizar uma prótese muito leve e confortável. Não se pode ficar pensando que a prótese pode causar algum desconforto ou machucar. Mais tarde, a Össur lançou uma prótese chamada Cheetah, usada até hoje. É uma prótese de corrida, leve, com a qual se utiliza uma meia de silicone. Ao longo da história de evolução tecnológica das próteses, os grandes avanços foram a introdução da fibra de carbono e do titânio, que as tornaram muito resistentes e leves, e a introdução do silicone nas meias. As meias utilizadas antigamente, entre a pele e o cartucho no qual a prótese é encaixada, com a transpiração, acabavam provocando alguma bolha ou um incômodo. As meias de silicone mudaram tudo isso. Os atletas de maratona ou ironman, em locais muito quentes e úmidos, normalmente acabam apresentando bolhas nos pés. O atleta que utiliza uma prótese, muitas vezes, termina uma prova com bolhas no pé não amputado, e nenhum problema na perna com prótese, justamente pelo uso da meia de silicone. 189 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer O desenvolvimento das próteses chegou a tal ponto que um corredor sulafricano tentou participar das últimas olimpíadas como atleta olímpico (e não paraolímpico) e não foi autorizado. Realmente, o atleta que utiliza próteses nas duas pernas fica um pouco mais alto que o atleta não amputado, e a amplitude da passada é maior. As próteses não “jogam” o atleta como se fossem molas; a tecnologia não chegou a esse ponto, ao menos por enquanto, mas o Comitê Olímpico considerou a possibilidade de favorecimento do atleta que utiliza as próteses. A diferença é muito grande, em relação às próteses mais antigas. Fala-se que antigamente tínhamos um “pé morto” e que agora temos um “pé vivo”. Atualmente, existem próteses mais apropriadas a provas rápidas de atletismo, a provas longas, que exigem maior resistência, etc. O Sr. Rivaldo relata algumas conquistas esportivas obtidas com o uso das próteses esportivas: campeão brasileiro e vice-campeão mundial de triatlo, três vezes campeão mundial de ironman e quatro campeonatos mundiais em distâncias paraolímpicas. O triatlo será modalidade paraolímpica nos jogos que serão realizados no Brasil, em 2016. A modalidade já existe – o paratriatlo – e é reconhecida pela International Triathlon Union, entidade que prepara o ranking de classificação para as Olimpíadas. Em todos os campeonatos mundiais, já existe o paratriatlo: aos domingos, geralmente, ocorrem as provas de triatlo e, aos sábados, de paratriatlo. Com o desenvolvimento das próteses esportivas, observamos que não apenas as atividades esportivas ganharam muito, mas o próprio andar da pessoa tornou-se mais confortável. A pessoa coloca a prótese às seis horas da manhã e retira somente à noite, sem nenhum desconforto. A vida de um amputado hoje é infinitamente melhor do que era trinta anos atrás. Formavam-se bolhas, que acabavam impedindo o uso da prótese por vários dias. Hoje, o amputado leva uma vida normal, sem nenhum obstáculo significativo. Há uma grande diferença entre a amputação feita na coxa ou abaixo do joelho. A amputação mais alta, no nível da coxa, gerava dificuldades bem maiores, na manutenção do joelho e no próprio encaixe da prótese. Até cinco anos atrás, era bem difícil para um amputado de coxa praticar esportes, exceto com o uso da cadeira de rodas. Atualmente, já é possível praticar muitas modalidades nessas condições, com o uso de próteses. O conforto do encaixe 190 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer atualmente, mesmo para biamputados de coxa, é muito maior. Infelizmente, no Brasil há grande dificuldade de acesso a equipamentos desse nível. Nos Estados Unidos, mesmo os deficientes congênitos são amputados e recebem próteses que permitem uma vida normal, permitem que as crianças brinquem, corram, participem de jogos. Aqui, essas crianças estarão no colo da mãe ou num carrinho de bebê, pois é difícil até mesmo obter a cadeira de rodas. No caso dos amputados de coxa, as próteses mais recentes estão simplesmente eliminando o joelho. O atleta realiza movimentos diferentes, com passadas em arco lateral, como se estivesse “ceifando” o ar com a perna. Um inglês, biamputado de coxa, está completando a maratona em 2 horas e 50 minutos. Quem conhece maratona, sabe o quanto é difícil correr a maratona em menos de três horas, mesmo para corredores amadores “top”, que estão bem próximos dos atletas profissionais. O atleta Rudy Garcia, biamputado de coxa, deve ser o primeiro atleta nessas condições a completar o ironman. Com o desenvolvimento da tecnologia, atualmente está muito mais fácil obter conquistas paraolímpicas e oferecer uma vida ativa para uma criança ou para um adulto. Os esforços agora devem ser voltados para a redução dos custos de importação e da burocracia, para viabilizar o uso dessas próteses para mais pessoas. O Sr. Rivaldo relata que, recentemente, foi presenteado com algumas meias de silicone para a prótese, enviadas dos Estados Unidos. Ao chegarem ao Brasil, a ANVISA quis saber do que se tratava e, para obter a liberação da agência, foram necessários quatro meses. Isso porque as meias eram para uma pessoa conhecida por praticar esportes paraolímpicos. Qualquer outra pessoa talvez tivesse muito mais trabalho. De qualquer forma, são recursos excelentes, que vale a pena conhecer e que deveriam estar ao alcance de mais pessoas. Marco Antonio Guedes de Souza Pinto: O Dr. Marco Antonio conta da expectativa de, um dia, ver no Brasil um trabalho semelhante ao da clínica de San Diego mencionada pelo Sr. Rivaldo, com o uso de próteses de qualidade e um trabalho de educação de pessoas amputadas. Esse exemplo mostra o quanto estamos atrás e precisaremos “correr” para alcançar essa realidade. 191 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer O primeiro elemento de um atleta amputado, visando a uma prótese de alta performance, é o coto de amputação, ou seja, o “motor” da prótese. Quem controla e comanda o aparelho é o coto de amputação. Sem um bom coto de amputação, nenhuma prótese será de alta performance. Quando se remove um membro doente de uma pessoa, é preciso haver uma preocupação com a pessoa que está ficando, e não com o membro removido. O coto de amputação deve ter condições para uma adaptação protética adequada, pois o paciente dificilmente terá chance de uma segunda operação. A deficiência do coto, que impede a adaptação protética adequada, acompanhará o paciente pelo resto da vida. A educação do cirurgião para criar um bom coto de amputação é praticamente nenhuma no nosso país. Essa educação é fundamental a uma melhor qualidade de vida para a pessoa amputada. O coto e o encaixe protético é que fazem a interface com o dispositivo terminal. Se eles não forem bons, a melhor tecnologia mecânica não funcionará naquela pessoa amputada. Relatamos o caso de uma moça que sofreu um acidente de motocicleta, que teve o pé totalmente “desenluvado”. O desenluvamento é o arrancamento das partes moles em torno do esqueleto. No caso mencionado, o cirurgião plástico “forrou” o esqueleto de enxertos e preservou o pé, ao custo de nunca mais ele ser capaz de pisar no chão. Esse é considerado um bom resultado, possivelmente apresentado em congressos de cirurgia plástica. O pé foi preservado, à custa da perda da capacidade ambulatória. Um “mau” resultado seria o biamputado, com dois cotos de amputação feitos com uma técnica chamada de “ponte óssea” entre a tíbia e a fíbula. Se o cirurgião puder enxergar essa situação, é uma oportunidade maravilhosa de criar um novo órgão numa pessoa. Não se trata da remoção de um pé doente, mas a criação de uma extremidade com um planejamento funcional. A fíbula é ligada à tíbia por um fragmento ósseo, a musculatura é toda reinserida e o “mau resultado” poderá correr numa esteira com uma prótese, fazer arborismo ou mesmo correr uma maratona, com as próteses adequadas. O “mau resultado” voltou a viver a sua vida e a ter um grande prazer, que é o de praticar esportes, caminhar e interagir com as pessoas, numa condição bipedal, enquanto o “bom resultado” ficou se arrastando com muletas ou algo assim, pelo resto da vida. Portanto, enquanto existir essa visão na 192 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer cirurgia, não daremos o primeiro passo, que é criar o bom amputado, que possa receber um bom aparelho. Em outro exemplo, a musculatura foi desinserida do esqueleto, com uma ponta óssea protuberante na frente da tíbia. O coto operado mostrava a tíbia arredondada e a musculatura reinserida na extremidade tibial. Trata-se do atleta Paulo de Almeida, atualmente tetracampeão da maratona de Nova York. Depois de uma cirurgia adequada, da construção de um coto de amputação adequado e do aparelhamento com uma prótese de resposta dinâmica, um motorista de empilhadeira mal-sucedido tornou-se um atleta que, quando chega a Nova York, é recebido quase que com um tapete vermelho para participar da maratona. São outros exemplos: um atleta da Costa Rica, que participa das provas mais difíceis de enduro ciclístico, e o Rivaldo Martins, recordista do ironman para pessoas amputadas. Na prótese esportiva, o objetivo é atingir a máxima resistência com o mínimo peso, otimizar a eficiência do braço de alavanca do coto de amputação e tirar o máximo de proveito da energia disponível. Em 1976, enquanto praticava esqui aquático, Van Phillips caiu e ficou com o esqui preso no pé, o que o manteve flutuando. Outra lancha o atropelou, levando à amputação do membro inferior esquerdo. Entre 1976 e 1984, Van Phillips “quebrou a cabeça” para ter um aparelho melhor do que o que ele havia recebido. Foi para a Northwestern University, em Chicago, e fez um curso de protesista. Tornouse pesquisador e desenhou um protótipo que ele acreditava que poderia dar mais conforto ao descer de uma calçada, sem que sentisse o choque transmitido para todo o corpo. Esse foi o desenho do pé modular Flex-Foot. O mais importante para desenhar esse tipo de dispositivo terminal foi se libertar da imagem do pé, no processo de criação, buscando a reprodução da função. Depois de reproduzida a função, se necessário, o técnico protesista poderia tentar cobrir a prótese com uma solução mais cosmética. A cosmética, entretanto, não deve ser a busca inicial ou fundamental do portador de deficiência física, na sua reabilitação, mas sim a melhor reposição possível da função perdida. Os pacientes são como entidades que habitam um corpo; o corpo é um objeto de mobilidade no planeta e deslocar-se pelo planeta é muito bom: poder tomar um avião para a Manchúria, para a Tailândia ou para Sidney, caminhar numa mata, etc. Se não conseguimos que o nosso corpo nos leve aonde 193 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer queremos, ficamos restritos, limitados. Pensando assim, conseguimos criar muito melhor, pois deixamos de buscar um pé bonitinho, com unhas, etc., ao qual nos apegamos tanto. Já é difícil perder fios de cabelo ou uma unha, imagine-se então perder uma extremidade, uma parte importante da nossa imagem corporal. Uma das coisas que o amputado aprende, no seu processo de reabilitação, é se libertar um pouco dessa referência e enxergar a existência de uma maneira um pouco mais nobre, um pouco diferente. A primeira coisa que Van Phillips percebeu é que, na parte ativa da passada, quando deveríamos empurrar o corpo para a frente (nessa fase do desprendimento, os flexores plantares do pé e, finalmente, o flexor longo do hálux empurram o corpo para a frente), com as próteses antigas (o famoso pé Sach comum, que ainda hoje vemos nas licitações para próteses no nosso pobre país), isso não ocorria. Com base nessa falha é que Van Phillips desenhou o projeto em “L” de carbono, com uma lâmina de calcanhar também de carbono. Segundo Van Phillips, o calcanhar ativo verdadeiro é a “linha da vida” de uma marcha natural e da progressão tibial sem que o corpo precise ser empurrado para a frente a cada passo, o que é extremamente desgastante. Assim, na prótese proposta por Van Phillips, o calcanhar é a primeira peça a ser ativada. O peso do corpo deforma a lâmina (com uma resposta de praticamente 100% em milhares de ciclos ao longo do seu uso), que vai sendo dobrada com o peso do corpo e depois “empurra” a pessoa, devolvendo a energia que seria dissipada no solo, no pé comum, em força cinemática. Com o prosseguimento da passada, o peso do corpo desloca-se para o antepé, dobrando a prótese nesse segmento, até que a lâmina da frente, correspondente ao antepé, empurre a pessoa para a frente. Com isso, o inventor conseguiu fazer uma progressão sobre a prótese bastante harmônica e suave, como utilizou todo o comprimento do pé. O peso do corpo, que normalmente seria dissipado no choque sobre o solo, passou a ser usado como força cinética de impulsão. Assim, com essa prótese, é possível devolver à pessoa a fase de impulsão da marcha, como faz o pé normal. O amputado tibial, com essa prótese, é capaz de pular sobre o pé da prótese. Com o pé Sach convencional, isso não era possível, não havia a devolução elástica de energia que permite saltitar, pular sobre o membro adaptado. No esporte paraolímpico, a primeira resposta obtida com o desenho da prótese de Van Phillips foi em 1988, em Seul, com o atleta Dennis Oehler, nas provas de velocidade de 100 e 200 metros. O lema dos amputados que 194 Ajudas Técnicas para o Esporte e Lazer utilizam esse tipo de dispositivo tem sido to close the gap, ou seja, reduzir a diferença entre os atletas amputados e as pessoas normais. Há pouco tempo, foi o que o atleta sul-africano já mencionado quase fez, ao conseguir se classificar para uma prova de Olimpíada, sendo um biamputado de membros inferiores. Nas Olimpíadas de Atlanta, em 1996, o atleta americano Tony Volpentest disputa a prova dos 100 metros. Dennis Oehler também disputa a prova e cai, sofrendo uma lesão. Tony Volpentest, um tetra-amputado congênito, com amputação dos membros inferiores abaixo dos joelhos, “esmagou” o recorde mundial, marcando 11,36 segundos. Chegou com uma vantagem de 7 ou 8 metros em relação ao segundo colocado. Desde então, os atletas paraolímpicos americanos realizaram inúmeras conquistas. O Dr. Marco Antonio descreve as enormes dificuldades para conseguir equipamentos adequados no Brasil, por conta de barreiras alfandegárias altamente injustas para esse tipo de tecnologia, entraves burocráticos na liberação dos equipamentos, etc. Com o tempo, foram desenvolvidos modelos diferentes de próteses esportivas, como o Sprint e o C-Sprint, este último muito confortável para provas de longa distância, como as maratonas. No caso do ciclismo, o pé não é importante; é possível terminar a prótese no cleat, que prende no pedal. O importante é o desenho do encaixe, para que o usuário possa flexionar bastante o joelho e prender o encaixe, para poder puxar o pedal também, e não somente empurrar. O progresso do atleta Rudy Garcia é exemplo de uma grande conquista dos amputados femorais em provas de corrida: a eliminação do joelho. Sem joelhos mecânicos, correndo de maneira ceifada, esse atleta consegue um rendimento fantástico nessas provas. Para terminar, o Dr. Marco Antonio relata o caso de um desarticulado de quadril, com quarenta e poucos anos de idade, que disputava uma prova de salto e ultrapassava a marca de dois metros no salto em altura, sem prótese. Esse, na sua visão, é o conceito de reabilitação do amputado. Reabilitação é reinserção social; não é equipamento tecnológico. O importante não é tanto o que nos acontece, mas o que fazemos com o que nos acontece. 195 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico Um dos principais objetivos do e-Gov é ampliar o acesso da população a dados, documentos, informações e serviços públicos, facilitando a vida do cidadão. No caso das pessoas com deficiência, essa importância é ainda maior, tendo em vista, em muitos casos, suas dificuldades de locomoção e comunicação. Neste sentido, não basta disponibilizá-los na internet. A construção de sites e portais acessíveis é uma obrigação dos governos e um dever de todos, para garantir o exercício da cidadania, incluir o cidadão e, acima de tudo, democratizar a usabilidade desses recursos tecnológicos cada vez mais essenciais nos dias de hoje. Ricardo Kobashi (moderador) – Assessor Técnico da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - São Paulo, SP Tânia Virginia de Souza Andrade – Superintendente de Operações do Poupatempo - São Paulo, SP Marco Antonio de Queiroz – Consultor em Informática do Centro de Vida Independente Araci Nallin e autor do "A Bengala Legal" - Rio de Janeiro, RJ Vagner Diniz – Gerente Geral do Escritório Brasil do W3C - São Paulo, SP Tânia Virginia de Souza Andrade: O Poupatempo é um órgão do Governo do Estado de São Paulo, vinculado à Secretaria de Gestão Pública e administrado pela PRODESP. O primeiro posto implantado foi o Poupatempo Sé, em 1997. Portanto, são doze anos de serviços prestados à população. No mesmo local, são reunidos vários órgãos prestadores de serviços de natureza pública. Hoje, estão disponibilizados para a população mais de quatrocentos tipos de serviços. Entre os mais procurados, estão a emissão da carteira de identidade, da carteira de trabalho, do atestado de antecedentes criminais, licenciamento de veículos, carteira de habilitação, seguro-desemprego, acesso Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico gratuito à internet (Acessa São Paulo) e também o e-Poupatempo, um órgão que presta serviços públicos eletrônicos. Hoje, são 21 postos implantados no Estado de São Paulo, dos quais quinze são fixos e seis são unidades móveis. Há um plano de expansão, já anunciado pelo Governador José Serra, que inclui várias outras cidades e regiões. Desde a inauguração do primeiro posto, foram realizados até hoje 237 milhões de atendimentos, dos quais 22 milhões foram feitos pelo disque-Poupatempo, serviço que oferece informações antes que a população vá até o Poupatempo, incluindo os documentos necessários para efetuar um serviço, por exemplo. A média diária atual é de 104 mil atendimentos em todos os postos. A meta é aumentar esses números com o plano de expansão. Todos os postos possuem rampas, elevadores e cadeiras de rodas. As informações estão disponibilizadas em folhetos e há um serviço de orientação ao cidadão. Para as pessoas que tenham dificuldade de leitura ou que apresentem alguma deficiência, há orientadores, que encaminham o usuário até o atendimento referente ao serviço procurado. O Poupatempo conta hoje com mais de trezentos funcionários treinados na linguagem gestual, que agora atuam como multiplicadores também. Quando se implanta um novo posto, o treinamento conceitual inclui noções de como receber e tratar a pessoa com deficiência. O orientador recebe, encaminha, orienta e acompanha o cadeirante até o final da realização do serviço procurado. No dia 7 de outubro de 2009, foram inaugurados alguns terminais de acesso universal nos postos Poupatempo, com a proposta de expansão para os demais postos. São salas no Poupatempo que dispõem de computadores e funcionários que estimulam os cidadãos a utilizar os serviços pela internet. Todos os monitores que ficam nas salas do Poupatempo tiveram treinamento sobre como auxiliar e orientar pessoas com deficiências a utilizar os serviços públicos disponibilizados pela internet. Os computadores possuem monitores de LCD, as mesas são ajustáveis conforme as necessidades do usuário, inclusive para cadeirantes. Há também um fone de ouvido, caso o usuário vá utilizar o Virtual Vision, e a colmeia para teclado, utilizada por pessoas com deficiência e também por idosos com doença de Parkinson, por exemplo. Os programas utilizados são o Virtual Vision, um leitor de tela, e o 198 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico Headmouse, para pessoas com deficiência física do membro superior, pelo qual a webcam lê os gestos da face do usuário e realiza determinados comandos. O sistema com Headmouse é muito sensível e exige um local afastado da movimentação de pessoas, pois qualquer movimento nas proximidades pode desencadear um comando. Algum tempo atrás, o Poupatempo de Guarulhos fez um trabalho em parceria com a APAE de Guarulhos. Cerca de 30 alunos com deficiência mental leve foram educados sobre a utilização da internet. O trabalho teve o acompanhamento de psicólogos e dos próprios monitores da APAE. O resultado foi extremamente positivo e o trabalho continua, embora em proporção menor. “A questão tecnológica, quando colocada em função do real desenvolvimento humano, é algo extraordinário, chega a emocionar a gente. O Poupatempo está de parabéns porque percebeu isso, essa possibilidade de, na prática, humanizar um trabalho de alta tecnologia...” “Maravilhoso esse trabalho. Tomara que não parem por aí e que outras empresas privadas ou do Estado sigam o exemplo do Poupatempo.” “Trata-se de uma experiência, de uma proposta importantíssima, porque vai além de uma inclusão técnica, do mero uso de uma ferramenta. Acho que esse terminal é uma janela aberta para o mundo. Ele possibilita a redescoberta da própria mente, da própria alma.” Estes são depoimentos de pessoas que utilizaram os terminais de acesso do Poupatempo. Já está bem claro que, quando unimos tecnologia com um atendimento humanizado, não há como dar errado. É uma experiência comprovada no dia-a-dia dos postos do Poupatempo. Marco Antonio de Queiroz: Projeção de um vídeo sobre questões de acessibilidade na internet para deficientes visuais. A psicóloga Leda Lúcia utiliza a internet para ter acesso a jornais e revistas, pagar contas bancárias, participar de listas de discussão profissionais, etc. Cega, Leda comenta que seria muito difícil manter a autonomia que tem no trabalho e na vida pessoal, se não fosse a internet. Relata que nem todos os websites podem ser acessados. Utiliza 199 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico um programa que lê a tela para o usuário. Caso o website não tenha sido feito de acordo com determinados padrões, o programa não consegue ler a tela e o acesso à internet fica muito prejudicado, ou mesmo impossível, para o deficiente visual. Como exemplo, cita um jornal on-line, no qual não consegue ter fácil acesso à manchete. A audição não é sintética como a visão. O programa leitor de tela tem que ler uma coisa de cada vez. Ele lê da esquerda para a direita, de cima para baixo. Como a notícia está no centro da tela, é preciso passar primeiramente por tudo o que vem antes, nessa ordem. Há duas maneiras de se chegar à manchete: pressionando a seta para baixo, para ler tudo o que está na tela (o que é link e o que não é link), ou pressionando a tecla TAB, para navegar de link em link. Em seguida, aparece o depoimento de um profissional da informática, Marco Antonio de Queiroz, conhecido como MAQ. Quando a internet começou a ser difundida no Brasil, ele já trabalhava com informática. Além de lidar com as questões abordadas pela Leda, MAQ queria fazer a sua própria página na internet. MAQ também é cego, queria fazer uma página na qual pudesse navegar e que fosse acessível a todas as pessoas. Para isso, teve que aprender acessibilidade. O vídeo retorna para o depoimento da Leda, que finalmente encontra a notícia na página da internet. MAQ então explica que, para resolver esse problema, basta haver, no início da página, um link direto para o conteúdo. Assim, pressionando-se “enter”, passa-se diretamente para a notícia. O link para o conteúdo pode ser usado também por pessoas que não têm deficiência visual. É o caso de André, que tem muita dificuldade motora e só consegue navegar por meio do teclado. Um site com boa navegação via teclado ajuda muitas pessoas, tornando o site mais acessível, com uso facilitado. Outro problema comum em muitos sites é a falta de acesso a subitens no menu principal. Os subitens são exibidos quando se passa o mouse sobre os itens do menu principal, mas isso só ocorre quando se utiliza o mouse. O MAQ e a Leda, que só podem navegar por meio do teclado, não fazem nem ideia de que os subitens existem. A mesma estrutura de subitens no menu poderia ser acionada pelo teclado. 200 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico Outro exemplo é um site de compras, que tem mais de trinta itens sem descrição em texto. Para quem está vendo, existe um texto. Para o programa leitor de tela, entretanto, os itens são apenas imagens. O máximo que o programa consegue mostrar é o nome do arquivo onde está a imagem ou o endereço para onde o navegador irá se o usuário clicar no link. Muitas vezes, contudo, isso não ajuda. Nesse caso, a solução também é simples: basta colocar um descritor em cada imagem. Esse texto descritor aparece quando a imagem não é exibida e pode ser lido pelo programa leitor. O problema mais sério que Leda enfrenta ao navegar na internet é no site do banco em que mantém a sua conta-salário. Leda é uma internauta experiente e utiliza um leitor de tela de última geração, por isso consegue chegar até essa página, consegue digitar o número da agência e o número da conta. Na hora de digitar a senha, entretanto, é preciso clicar exclusivamente com o mouse num gráfico totalmente inacessível, mesmo para quem utiliza os melhores recursos disponíveis. Trata-se de um recurso contra fraudes. Outro banco encontrou uma solução muito mais acessível, pois no seu website é possível alcançar os dígitos de um teclado virtual, sem necessidade do mouse, e escutar os dígitos selecionados. Outro problema grave é quando os sites de serviços públicos são inacessíveis. Por exemplo, para consultar a restituição do imposto de renda no site da Receita Federal, por medida de segurança, é preciso digitar um código que aparece na tela. Para quem enxerga, o código é formado por letras, mas, para quem usa o leitor de telas, o código é um gráfico sem descrição. É uma imagem que o deficiente visual não tem como identificar. O problema dessa técnica é que ela não só é inacessível para deficientes visuais, como também para a grande maioria das pessoas. Mesmo enxergando perfeitamente, muitos têm dificuldades para entender os caracteres distorcidos, em caixa alta e caixa baixa. Uma solução para resolver esse problema seria substituir as imagens por perguntas simples, como “Quantos dias tem a semana?” ou “Quantos meses tem um ano?” Existem outras barreiras, por exemplo um site em Flash, totalmente inacessível. Num site assim, não é possível ler nenhuma informação, nem navegar para parte alguma dentro do site. As páginas em Flash, além de completamente inacessíveis, têm sérios problemas de usabilidade. Por exemplo, a barra de rolagem é muito fina, com pouco contraste, pouco 201 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico intuitiva, difícil de usar. É preciso ter muita destreza no mouse para fazê-la funcionar. Uma pessoa com alguma dificuldade motora, que utilize apenas um dedo para teclar, não conseguiria usar essa barra de rolagem, de modo algum. Para orientar criadores de sites, existem diretrizes internacionais de acessibilidade, dicas e artigos que podem ser encontrados no site www.acessodigital.net. Acessibilidade na web significa uma internet verdadeiramente inclusiva e com mais oportunidades de acesso e negócios para todos. Nos créditos finais do vídeo, há um agradecimento a todos os participantes e a informação de que a narração do vídeo foi sintetizada pelo programa leitor de tela “Jaws for Windows”. Vagner Diniz: A acessibilidade digital é um tema bastante novo, pois a própria internet é um assunto novo na nossa vida. Na melhor das hipóteses, são vinte anos de existência da rede mundial como a conhecemos, criada por Tim Berners-Lee, também fundador da Fundação W3C. Portanto, não houve tempo ainda de se digerir no cotidiano o impacto que a internet causa a todos. A acessibilidade na web é uma questão mais nova ainda. Todos estão tateando e aprendendo. A discussão sobre acessibilidade na web pode ser colocada num patamar mais geral, de “rede universal” e, mais amplamente ainda, de desenho universal. Para o W3C, um consórcio preocupado com o desenvolvimento de padrões para a web, é importante destacar que a compreensão da web está inserida numa ideia de desenho universal. É preciso ter sempre em mente que os desenhos, os projetos devem ser feitos de uma maneira ampla, global, que pense em todas as pessoas, que pense também na particularidade. A web traz o impacto da globalização mais intensamente. A internet facilita muito esse processo, reúne muito mais gente, muito mais cultura, variedade e diversidade, reúne grupos que antes não se podia reunir com tanta facilidade. Assim, o desenho universal tem que dar conta dessa diversidade existente no planeta, a diversidade da língua, as habilidades que as pessoas têm com diversas técnicas ou tecnologias, as diferenças geográficas, as diferentes culturas. 202 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico Essa noção vale para a arquitetura, para veículos, para qualquer dimensão da nossa vida e, particularmente, para a web. É importante considerar que a web tem que atingir todas as pessoas, em qualquer lugar. A web é, por natureza, ubíqua, ou seja, está em qualquer lugar do mundo. Mais que isso, ela deve estar em todas as coisas, inclusive em outras dimensões da nossa vida. Hoje, podemos pensar em web no telefone celular, para enviar uma mensagem de SMS ou mesmo navegar na rede. Cada vez mais, as pessoas estão em movimento e precisam acessar informações a partir do dispositivo que estão utilizando. Em breve, teremos a internet no carro, no relógio, na geladeira, etc. Essas novidades vão surgindo muito rapidamente e, num futuro muito breve, todos estaremos conectados, para o bem e para o mal. Pensar na acessibilidade digital é pensar numa web que seja universal. Isso é essencial. Além de ser universal, global, ela precisa respeitar também as particularidades, a privacidade, a confidencialidade. É preciso que a web tenha segurança. Não adianta ser uma rede inclusiva, trazer todo mundo para a conexão, se não for possível garantir a confidencialidade e a privacidade. Para o W3C, esses são eixos temáticos essenciais para pensar numa web universal. A acessibilidade na web é uma dimensão extremamente importante. Para isso existe o W3C, um consórcio internacional com mais de quatrocentos participantes. No Brasil, o W3C é um programa do Comitê Gestor da Internet, que vem trabalhando no sentido de construir padrões, normas, regulação, para que a web atenda efetivamente ao conceito de desenho universal. A acessibilidade na web significa acesso para todos, independentemente de qualquer tipo de limitação pessoal. Ela compreende três dimensões: o conteúdo acessível, os desenvolvedores das páginas da web e os usuários, que entram na web para navegar. Em relação ao conteúdo, é preciso que as aplicações geradas, os sítios desenvolvidos na web levem em conta as necessidades das pessoas que vão navegar, de tal forma que as pessoas possam perceber o que existe naquela página, entender o que está escrito e exposto ali (independentemente de poder enxergar e ouvir ou não), ter facilidade para navegar e interagir com o conteúdo. Portanto, o conteúdo é uma dimensão importante da acessibilidade na web, pois precisa ser preparado com essas quatro características: percepção, entendimento, navegação e interação. 203 Acessibilidade Digital e Governo Eletrônico A outra dimensão da acessibilidade na web para o W3C é a dos usuários. Estes precisam ter ferramentas para navegar na web, adequadas às suas necessidades. Os navegadores (os chamados browsers) precisam ser capazes de entender aquele conteúdo para todos os tipos de pessoas que navegam nas páginas e precisam ser capazes de interagir com as chamadas tecnologias assistivas; eles precisam ser interoperáveis com essas tecnologias, de tal forma que as pessoas que precisam das tecnologias consigam usar os navegadores. A terceira dimensão importante para o W3C, com relação à acessibilidade na web, são os desenvolvedores. Estes precisam ter ferramentas de desenvolvimento e novas tecnologias que permitam produzir páginas acessíveis. Nem sempre as ferramentas hoje disponíveis produzem páginas com essas qualidades. Muitas ferramentas de desenvolvimento de páginas para a internet geram páginas rápidas, porém não acessíveis. Às vezes, a empresa que contrata alguém para desenvolver as suas páginas exige muita rapidez. Portanto, os desenvolvedores utilizam programas rápidos. Resultado final: páginas feitas com muita rapidez, às vezes bonitas, porém nada acessíveis. Portanto, é importante compreender que os desenvolvedores são parte de um tripé: conteúdo, usuário e desenvolvedores. Assim, o W3C se preocupa em produzir tecnologia, ferramentas e linguagens que atendam a essas três dimensões da acessibilidade na web. Nesse sentido, para caminhar para um consenso global de acessibilidade, é importante, por um lado, que os governos estabeleçam metas e prazos muito bem definidos, definam marcos regulatórios de acessibilidade na web. É preciso definir o prazo para que os órgãos públicos atendam aos seus marcos regulatórios de acessibilidade na web, utilizando os padrões abertos internacionalmente aceitos, em termos de acessibilidade. O padrão adotado pelo W3C – o WCAG (Web Content Accessibility Guidelines ou Diretrizes para Acessibilidade do Conteúdo da Internet) – é um dos mais aceitos internacionalmente e está hoje na versão 2.0. É importante também exigir a aderência a esses padrões na compra de serviços baseados na web. O Governo compra muito, solicita o desenvolvimento de muitas aplicações por agências digitais, o desenvolvimento de páginas na web por terceiros e tem um grande poder de compra. Pode-se incluir no edital da licitação que somente serão aceitos os serviços baseados na web que estejam dentro dos padrões de acessibilidade internacionalmente aceitos. 204 Saúde e Assistência Como funcionam os serviços de reabilitação no Brasil? Em que estágio estamos comparados com as principais instituições dos países desenvolvidos? Como devem ser as interfaces entre os sistemas públicos federais, estaduais e municipais? Qual o papel das organizações privadas e não governamentais? Em que devemos avançar nas políticas públicas e critérios para o fornecimento de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção? Marli Kioyoko Fujikawa Watanabe (moderadora) – Responsável Técnica para a Área de Saúde do Deficiente - Grupo Técnico de Ações Estratégicas Coordenadoria de Planejamento de Saúde - Secretaria de Estado da Saúde São Paulo, SP Henrique Grego Maia – Presidente da Associação Brasileira de Ortopedia Técnica - ABOTEC - São Paulo, SP Júnia J. Rjeille Cordeiro – Superintendente do Lar Escola São Francisco São Paulo, SP Ana Beatriz Proença – Médica Fisiatra e Gerente Médica da Unidade da Mooca da Associação de Assistência à Criança Deficiente - AACD - São Paulo, SP Stela Felix Machado Guillin Pedreira – Assistente Técnico de Ações Estratégicas da Coordenadoria de Planejamento da Saúde da Secretaria de Estado da Saúde - São Paulo, SP Henrique Grego Maia: No passado, a formação do profissional ortesistaprotesista era precária. Alguns poucos profissionais formados no exterior chegaram ao Brasil para desenvolver esse trabalho, com origem na Alemanha, Suíça, Itália. Foram os pioneiros no Brasil. Há noventa e oito anos instalouse a primeira empresa no país, no Rio Grande do Sul. Assim teve início a Saúde e Assistência fabricação de órteses e próteses no Brasil. Durante muitos anos, não havia nenhuma profissionalização. Os técnicos eram treinados pelas empresas criadas por esses profissionais vindos do exterior. Havia uma escassez de cursos de aprimoramento, matéria-prima de baixa qualidade, o país ainda era muito fechado, não havia acesso a novas tecnologias ou a matérias-primas. Faltava ferramental, qualificação técnica e matéria-prima. Além disso, havia dificuldade para a importação de componentes e ausência de uma indústria nacional de componentes. Os componentes eram feitos artesanalmente pelos profissionais, nas próprias oficinas, utilizando-se madeira, couro e ferro. Faltava também a regulamentação da atividade profissional pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A formação do profissional ortesista-protesista inicialmente era feita nas oficinas particulares. A primeira organização com um curso regular de que se tem notícia foi a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), que formou vários profissionais no país nos últimos trinta anos. Com o tempo, alguns profissionais buscaram formação no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. As matérias-primas mais utilizadas naquela época eram o ferro e aço, madeira, couro, cortiça e tecido de algodão. Era algo semelhante a uma selaria para seres humanos, e não para animais. Muitos dos bons seleiros que faziam artefatos para animais acabaram entrando para essa área, com muito boa vontade e pouca experiência. Era um trabalho de artesão. No sistema de concessão, que provavelmente será o grande responsável por esse mercado no futuro, fazia-se antigamente uma carta-convite e um credenciamento, após a avaliação de uma equipe multidisciplinar (médico fisiatra, fisioterapeuta, ortesista-protesista) para definir o tipo de prótese a ser adotada. Havia o Centro de Reabilitação Profissional, do INSS, e bem poucas oficinas públicas. As primeiras oficinas públicas de órteses e próteses ainda não têm trinta anos. Por fim, havia um pregão presencial, que era a forma de se conceder publicamente a órtese ou prótese aos portadores de necessidades especiais. O processo todo levava vários anos, até ser concluído. Enquanto isso, o quadro do paciente que necessitava do aparelho mudava bastante. O sistema procurava privilegiar a qualidade técnica e a reabilitação, pois havia uma equipe multidisciplinar envolvida, não somente o pregoeiro e a 206 Saúde e Assistência equipe que elabora os editais. A equipe fazia uma avaliação, convidando todos os interessados na reabilitação. Esse sistema funcionava razoavelmente e foi muito bom por um período, mas as coisas foram mudando. Em 1988, houve a fundação da ABOTEC (Associação Brasileira de Ortopedia Técnica) e, com ela, um salto no aprimoramento técnico dos profissionais, por meio de cursos. Eles começaram a buscar as novidades na área de órteses e próteses, em parceria com as empresas fornecedoras. Na época, somente as multinacionais poderiam trazer essa tecnologia. Elas aplicavam os cursos, que iam reciclando os profissionais. Os profissionais mais antigos, com formação no exterior ou com larga experiência na área também mantêm cursos regulares, por meio da ABOTEC, trazendo novas tecnologias, técnicas e matéria-prima para aprimorar o conhecimento dos profissionais. A ABOTEC organizou também o 1º Congresso Brasileiro de Ortopedia Técnica, que facilitou o intercâmbio de profissionais com colegas do exterior, despertando grande interesse das empresas fornecedoras de tecnologia, de componentes e matérias-primas. Até então, essas iniciativas eram muito esporádicas. O intercâmbio profissional foi importante, pois houve um salto de qualidade. O profissional que teria a sua empresa no futuro resolveu se regulamentar e profissionalizar, adquirindo conhecimento e preparação para a sua oficina ortopédica. Depois disso, por meio de um trabalho intenso da ABOTEC, conseguiu-se a primeira regulamentação da categoria, a RDC 192/2002, instituída pela ANVISA, que outorgou à ABOTEC a certificação da capacitação técnica dos profissionais. Anteriormente, essa certificação era feita por comprovação documental, com pelo menos cinco anos de experiência, pelo menos cinco cursos de atualização na área de ortopedia técnica e três profissionais ou empresas que comprovassem a capacitação profissional. O processo foi aprimorado, com a melhor qualidade dos cursos e um controle maior. Uma equipe da ABOTEC, com profundo conhecimento na área de órteses e próteses, verifica a qualidade dos cursos, o seu conteúdo, o palestrante, a carga horária e as provas aplicadas. Como se não fosse suficiente, para o próximo ano foi promulgada uma nova portaria e os profissionais que queiram adquirir pela primeira vez o certificado terão que passar por uma prova realizada na própria ABOTEC, com questões de anatomia, patologia, biomecânica, tecnologia de materiais e a prática 207 Saúde e Assistência profissional. O candidato terá que reabilitar um paciente com uma prótese e um paciente com uma órtese e será avaliado, para que possa ter o reconhecimento técnico da categoria. Tudo isso para trazer maior segurança ao mercado, principalmente para o usuário de órteses e próteses. Quando for atendido por um profissional com reconhecimento da ABOTEC, ele saberá que o mesmo passou por um rigoroso processo de avaliação. Caso contrário, será o profissional chamado “de fundo de quintal”, que não tem reconhecimento, cuja empresa não é regulamentada e que trabalha de boa vontade, apenas. Para a profissionalização, atualmente, há um curso da ABOTEC em parceria com a Universidade Dom Bosco. Trata-se de um curso com duração de dois anos e meio, que aborda aspectos da anatomia, biomecânica, patologia, tecnologia de materiais, prática profissional, administração de oficina e outros. O curso é voltado para profissionais ortesistas-protesistas que comprovem sete anos de experiência na área. A Faculdade Pestalozzi, no Rio de Janeiro, também tem um curso de formação profissional, com duração de três anos, no nível de tecnólogo. Há ainda o curso de aprimoramento técnico, realizado mensalmente na ABOTEC, com tecnologias específicas: um sistema novo de encaixe para próteses transtibiais, um sistema novo para o membro superior, avaliação de um colete, técnicas de moldagem, etc. Tudo o que há hoje de mais moderno e inovador no mundo, a ABOTEC já está aplicando nos seus cursos. Os cursos podem ser feitos por profissionais ortesistas-protesistas, por filiados e não-filiados à ABOTEC e também por profissionais que queiram se aprimorar, como um médico fisiatra ou um fisioterapeuta que queira ter um conhecimento maior da área, para poder fazer a sua prescrição melhor, saber o que está acontecendo no mundo, para se atualizar e ter um contato facilitado com o paciente. Por meio do CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica), um órgão federal, algumas escolas já estão oferecendo cursos de formação de profissionais nessa área, assim como algumas Secretarias Estaduais (Mato Grosso, São Paulo e alguns outros Estados). O problema é que ainda não existe a regulamentação profissional do ortesista-protesista. Além do Congresso Brasileiro de Ortopedia Técnica, a ABOTEC organizou também o Congresso Latino-Americano de Ortopedia Técnica, com 22 países representados, inúmeras empresas e profissionais de todos os cantos do país. 208 Saúde e Assistência A ABOTEC também organiza seminários da própria Associação e de empresas afiliadas. Em relação à matéria-prima, antigamente os coletes eram moldados em couro, com marreta, e fixados com rebites de aço. Hoje existe a facilidade dos termoplásticos. Resinas epóxi e acrílicas, ligas de titânio, aço inox e alumínio, fibra de carbono, kevlar e fibra de alumínio, polímeros espumados (uretanos, utilizados em palmilhas e na combinação de materiais com fibra de carbono) e silicone são outros materiais atualmente facilmente disponíveis no mercado brasileiro. O profissional que quiser aplicar alta tecnologia na produção da sua prótese ou órtese não terá dificuldade. Um avanço já incorporado no Brasil é o uso de componentes modulares. Antigamente, para fazer uma canela, o profissional esculpia a madeira ou usava uma peça de alumínio rebatido sobre o molde, curtia um pedaço de couro e fazia o aparelho. Hoje, os componentes modulares facilitam muito o trabalho, reduzem o tempo e aumentam muito a qualidade e a durabilidade da órtese ou prótese. Foram também introduzidas novas articulações de joelho e tornozelo; não são mais uma articulação simples, de um eixo só. Atualmente, existem joelhos biônicos, muito avançados, com microprocessador incorporado, o que trouxe mais opções de controle da marcha. As técnicas de modelagem por contato total também evoluíram bastante. Quando uma nova técnica é lançada no exterior, rapidamente é assimilada pelos profissionais do país, com cursos específicos. O Brasil está no mesmo nível que qualquer outro país na área de órteses e próteses. Outro recurso cada vez mais usado é a incorporação de eletrônica embarcada nas órteses e próteses. O uso da fibra de carbono em próteses com resposta dinâmica facilitou a marcha e melhorou a qualidade de vida dos pacientes. O grande problema é o sistema atual de concessão, que está trazendo grandes malefícios à área de órteses e próteses em todo o país. O pregão eletrônico é um sistema predatório de uso do dinheiro público e da reabilitação do paciente, pois não visa a qualidade técnica. Alguém pode estar deitado na praia, dando lances num laptop para o fornecimento do produto, sem nunca ter visto o paciente, suas características físicas, peso, idade, sexo, etc. O edital faz uma descrição simples da prótese, que não é elaborada por uma equipe multidisciplinar, não recomenda um joelho eletrônico, hidráulico, multieixo, policêntrico... O menor lance ganha a concessão e o paciente não é reabilitado. 209 Saúde e Assistência Quem oferece o produto ao menor preço não tem recursos para aplicar o produto adequado ao paciente. Esse fornecedor fará uma prótese com um pedaço de madeira e um eixo de ferro, o mais barato possível. Ele encaixará o valor definido no produto e não na reabilitação do paciente. Nem o fornecedor que ganhou a licitação a um preço muito baixo, nem o governo que utiliza esse método demonstram preocupação com a reabilitação do paciente. As informações mais conservadoras indicam que cerca de 60% dos pacientes não são reabilitados. Portanto, 60% dos recursos aplicados nessas concessões são jogados fora. As pessoas voltam para a fila, para ganhar outro produto, mais uma vez não são reabilitadas e assim sucessivamente, até desistirem. Essa situação toda torna o processo muito caro. Depois, houve a introdução da tabela SUS (Sistema Único de Saúde), que representou um pequeno avanço, pois define-se um determinado valor para cada produto adequado à reabilitação. Entretanto, o valor definido na tabela muitas vezes ainda não é suficiente para reabilitar o paciente; trata-se de um valor geral, para todos os casos, embora um paciente necessite de um joelho hidráulico, outro de um joelho pneumático, outro de um joelho mais simples, etc. No futuro, a tendência é a incorporação cada vez maior de eletrônica embarcada. Essas inovações vêm da indústria aeroespacial, da indústria bélica, de grandes empresas que vão desenvolvendo dispositivos para diversos fins e a área de órteses e próteses vai incorporando. Outra tendência é o aumento da eficácia das órteses e próteses, com o aprimoramento profissional e a incorporação da tecnologia para obter um produto mais adequado para as necessidades do paciente. A exigência de conhecimentos técnicos dos ortesistas-protesistas (das tecnologias, das patologias, de biomecânica) também tende a aumentar, com os cursos da Universidade Dom Bosco, em parceria com a ABOTEC, da Faculdade Pestalozzi e outros cursos que devem começar. Só não há mais cursos atualmente porque a profissão de ortesista-protesista ainda não é reconhecida. Vários modelos de implantes, com interação homem-máquina, vêm sendo testados, ainda com pouco sucesso. Outras tendências para o futuro, que de alguma forma já podem ser observadas hoje, incluem o controle da velocidade dos movimentos das articulações, o input sobre as fases do movimento com o uso de sensores eletrônicos e a substituição dos atuadores mecânicos por eletromecânicos. 210 Saúde e Assistência Na empresa Honda, há aparelhos desenvolvidos para os funcionários, para que eles tenham um desgaste físico menor no desempenho das suas funções. Várias pesquisas com um “exoesqueleto” permitem que um paraplégico caminhe e desempenhe algumas funções. É um recurso a ser mais explorado no futuro. O reconhecimento profissional continua sendo aguardado. A da lei que regulamenta a profissão de ortesista-protesista ortopédico (PL 5635/2005) foi aprovada em uma das comissões da Câmara Federal e deverá passar para uma segunda fase. As categorias dos médicos e fisioterapeutas, e também os deputados federais, estão entendendo a suma importância da regulamentação desse profissional. Ele lida com vidas humanas, com perspectivas de vida e reabilitação; é uma injustiça que essa profissão não seja reconhecida. Atualmente, se o ortesista-protesista erra no seu trabalho, não tem como ser cobrado. Se compramos uma torradeira com defeito, recorremos ao PROCON (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) e recebemos o dinheiro de volta. Por outro lado, se o paciente tiver que passar por uma nova cirurgia, tiver a sua esperança destruída, não tem a quem recorrer. Além do reconhecimento da profissão, é necessário criar um Conselho Federal de Ortesistas-Protesistas, implementar novos cursos e promover um maior intercâmbio profissional no mundo todo. Quanto ao sistema de concessão de órteses e próteses, o ideal é que a avaliação seja feita por uma equipe multidisciplinar, seja para pacientes do SUS, segurados do INSS ou qualquer órgão público que vá fornecer a prótese ou órtese. Com base nessa avaliação, define-se o tipo de produto de que a pessoa necessita. Um paciente do interior do Pará necessitava de uma prótese e recebeu um produto com joelho microprocessado, embora não houvesse energia elétrica na casa do paciente. Esse exemplo dá uma ideia do nível dos problemas enfrentados no país. No sistema proposto, o próprio portador de necessidade especial procuraria a empresa ou entidade credenciada que melhor atendesse à sua necessidade de reabilitação. A tabela de valores para o fornecimento dos equipamentos deveria ser unificada em nível nacional e as empresas e entidades aptas a produzi-los seriam credenciadas pelo Governo, fiscalizadas pela ANVISA e demais órgãos competentes. As vantagens de um sistema como o descrito acima seriam o melhor aproveitamento do dinheiro público disponível, os melhores resultados na 211 Saúde e Assistência reabilitação, a redução da demanda reprimida em curto prazo, a geração de empregos, o aumento da arrecadação de impostos e a seleção natural de empresas e entidades com melhor capacidade técnica (pelo usuário). Com uma reabilitação efetiva, o portador de necessidade especial não voltaria à fila para obter uma nova prótese, gerando novos custos, e seria reinserido no mercado de trabalho, voltando a produzir. A capacidade instalada no país é capaz de absorver rapidamente a demanda reprimida, com empresas credenciadas de acordo com a regulamentação da ANVISA e a RDC 192 e com certificação da ABOTEC. Se o sistema mudar, aumentará o interesse das empresas em atuar no mercado de licitações. Atualmente, inúmeras empresas não se interessam, por causa da “briga de preços”, que acaba exigindo a prática de um serviço inadequado. No caso proposto, com empresas credenciadas, quem seleciona o fornecedor é o paciente, que se torna dono da sua reabilitação. Júnia J. Rjeille Cordeiro: O Lar Escola São Francisco é uma instituição filantrópica dedicada a crianças e adultos com deficiências, que visa a recuperação física, educacional e integração social, que prima pela sua excelência humanitária, técnica e científica e procura incessantemente a sua sustentabilidade. Foi fundado em 1943, por Dona Maria Hecilda Campos Salgado, que encontrou treze crianças num abrigo com sequelas de poliomielite, levou-as para casa, depois alugou uma casa e criou um dos primeiros centros de reabilitação da América Latina, na época da epidemia de pólio. A casa primou, desde o início, pela educação e pela reabilitação. A oficina ortopédica faz parte da sua história, chegando a fabricar as suas próprias cadeiras de rodas, próteses e órteses. A partir de 1991, a instituição fez um convênio com a UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), que assumiu a área técnica. Hoje, o Lar Escola São Francisco é um centro de reabilitação ambulatorial. Há alguns anos não existe mais o internato, que era a própria casa das crianças, nem o semi-internato. O foco são os pacientes do SUS; a maior parte dos atendimentos é gratuita, pelo SUS, embora sejam feitos também alguns atendimentos particulares. São realizados cerca de mil atendimentos por dia, com aproximadamente 2.000 pacientes em tratamento. A escola de educação especial continua funcionando, dentro do sistema de ensino do Governo Estadual, regulada pela Secretaria de Educação. Há também um serviço de 212 Saúde e Assistência orientação em empregabilidade, que fornece consultoria a empresas de recrutamento, para a capacitação e inclusão dos pacientes. A oficina ortopédica atende aos pacientes da própria instituição e ao mercado externo. O bazar Samburá é um bazar permanente do Lar Escola São Francisco. A instituição conta com uma equipe multiprofissional, com médicos fisiatras, pneumologistas, reumatologistas, geriatras e toda a equipe terapêutica, com odontólogos especiais, educadores físicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos e assistentes sociais. A diretoria técnica é da UNIFESP, que realiza no Lar Escola atividades de extensão e pesquisa, com nove cursos de pós-gradução lato sensu. Portanto, a instituição presta assistência e realiza formação e capacitação na área de reabilitação. Os programas de formação envolvem as áreas de reabilitação fisiátrica (pacientes com doenças neuromusculoesqueléticas), reabilitação pulmonar (pacientes com doenças pulmonares crônicas), reabilitação gerontológica (pacientes com mais de 60 anos e limitação física para recuperação funcional, com abordagem preventiva) e reabilitação reumatológica (pacientes com idades variadas que apresentam doenças reumatológicas que comprometam o aparelho locomotor). Todos os programas seguem protocolos baseados em evidências científicas e são dirigidos pela UNIFESP, por professores doutores, dando origem a diversos trabalhos de pesquisas e pós-graduação. Os programas buscam a funcionalidade, a qualidade de vida, a inclusão social e o uso de tecnologias assistivas. Com exceção dos trabalhos realizados na oficina ortopédica por solicitação externa, a atenção ao paciente em termos de próteses e órteses é feita dentro do programa. Portanto, a tecnologia assistiva é prescrita e confeccionada na oficina e os pacientes são reavaliados, treinados no seu uso e acompanhados no longo prazo. É dessa forma que as próteses, órteses e outras ajudas técnicas se incluem no processo assistencial da instituição. As dificuldades para incorporação das tecnologias assistivas são de várias naturezas. Primeiramente, há dificuldades de legislação e de coordenação na utilização dos recursos públicos. A instituição atende a pacientes pelo SUS e utiliza recursos públicos. Os códigos do SUS não contemplam todas as tecnologias, como órteses de membros superiores, cadeiras de rodas adaptadas e adaptações para atividades de vida diária. Nesses casos, o paciente tem que pagar ou é preciso encontrar alguma entidade que possa fazer uma doação. Outro problema é a falta de informação dos pacientes 213 Saúde e Assistência sobre os recursos aos quais têm direito. Muitos pacientes não sabiam que tinham direito a um sapato especial ou a uma palmilha. Portanto, é preciso fazer uma divulgação para o grande público a respeito desses direitos, garantidos por lei. Muitas vezes, há prescrições incompletas, recebidas de outras instituições, exigindo contatos com os médicos e outras providências, gerando atrasos ou mesmo algum mal-entendido e a provisão inadequada do equipamento. A cronologia entre a prescrição de um serviço e a sua provisão também pode ser inadequada, causando prejuízo à evolução do paciente ou desperdício de recursos. Já foram atendidos casos de pessoas que precisaram recorrer à justiça para conseguir o fornecimento daquele equipamento e chegam com uma prescrição de dois anos, por exemplo. Outro tipo de dificuldade refere-se à produção e aquisição das tecnologias. O prazo de entrega das cadeiras de rodas, pelas fábricas, para que elas sejam adaptadas é prolongado, atrasando todo o processo de provisão. Há carência de técnicos de órteses e próteses no mercado para suprir as oficinas ortopédicas. O alto custo de tecnologias mais sofisticadas, como próteses mioelétricas, ajudas técnicas em fibra de carbono, etc., não é coberto pelo SUS. Há também um desinteresse da indústria nacional pela produção de adaptações para atividades da vida diária. Um exemplo é a caneca de duas asas para o idoso. No mercado, as canecas de duas asas são somente as infantis. As opções importadas são poucas, difíceis de encontrar e podem ter um custo bastante elevado. São artefatos simples, como uma calçadeira de cabo longo, uma caneca de duas asas, etc. Como não se conhece a demanda, os empresários não se interessam em produzir. Há dificuldades também na produção do conhecimento em tecnologia assistiva. Sem produção de conhecimento e sem gestão, não basta capacitação técnica nessa área. As inovações são geralmente tratadas de forma individualizada e não são registradas como produto para o mercado. A título de comparação, nos Estados Unidos um terapeuta ocupacional pode folhear um catálogo enorme, escolher um produto e solicitar por telefone. Aqui, é preciso fazer adaptações com a ajuda de um marceneiro, de um serralheiro, caso a caso. Às vezes, criações geniais beneficiam somente um paciente, pois falta uma compreensão a respeito das inovações tecnológicas, do seu registro e disponibilização para todo o mercado. Há também carência de estudos científicos para comprovação da efetividade das tecnologias. Numa revisão sistemática da literatura sobre tecnologia assistiva para a artrite reumatoide, 214 Saúde e Assistência somente um estudo cumpriu os critérios de inclusão e concluiu-se que a tecnologia proposta não era efetiva. Portanto, a revisão aponta a urgente necessidade de pesquisas de alta qualidade nessa área. As evidências em reabilitação são muito fracas, em comparação com outras áreas da saúde. Por fim, há dificuldades de gestão e sustentabilidade da oficina ortopédica e do centro de reabilitação. Oficinas muito antigas, como a do Lar Escola São Francisco, já passaram por muitas fases, artesanais, mais profissionalizadas, etc. As instituições filantrópicas, especialmente, podem ter resistências a modificações na gestão, na sua própria cultura, capacitação de pessoal, etc., processos que têm alto custo. Outro aspecto é que o SUS cobre somente 40% dos custos do Lar Escola. Assim, a instituição se vê obrigada a buscar outras formas de autossustentabilidade financeira, como bazares, etc. Levando-se em conta as dificuldades mencionadas, algumas sugestões podem ser feitas. A primeira delas é integrar as instituições privadas e filantrópicas em rede, com suporte financeiro e técnico para garantir a perenidade da parceria com o Estado. Essas instituições cumprem uma parte do trabalho do Estado. Portanto, que o Estado faça a integração dessas entidades. Outra sugestão é que o Estado possa fazer gestões junto ao SUS para ampliação dos códigos de tecnologia assistiva. É importante também promover a elaboração de protocolos assistenciais e de prescrição, com vistas ao custoefetividade dos recursos utilizados nos programas de reabilitação e provisão de ajudas técnicas. Isso facilitaria muito a comunicação, agilizaria o atendimento e eliminaria mal-entendidos. Outra sugestão é incentivar a pesquisa na área, com suporte financeiro e metodológico. O Lar Escola “respira ciência” porque a Universidade está ali dentro, mas quantas instituições filantrópicas não contam com esse lastro científico? Não basta fornecer o dinheiro; é preciso ensinar a fazer as pesquisas. Nas pesquisas em reabilitação, não se lida com amostras de sangue, mas com uma variabilidade enorme de fatores, com a cronicidade, com situações de longo prazo, nas quais é muito difícil comprovar resultados. É preciso, inclusive, estudar a metodologia de pesquisas em reabilitação. Uma sugestão seria a criação de um prêmio de pesquisas na área. É preciso também ampliar a capacitação dos Recursos Humanos, não só de técnicos em órteses e próteses, mas de gestão em geral. Por fim, é preciso incentivar a produção e o registro de inovações tecnológicas. O Estado poderia promover cursos sobre inovação 215 Saúde e Assistência tecnológica, o que fazer com a criação, onde registrar, quais os riscos envolvidos e como encontrar uma indústria para produzir a inovação. Ana Beatriz Proença: A AACD promove a reabilitação de grandes incapacitados e está dividida basicamente em clínicas de adultos e infantil. Na clínica infantil, são atendidas crianças com paralisia cerebral, mielomeningocele, malformação congênita e doenças neuromusculares. Na clínica de adultos, são atendidos casos de traumatismo medular e traumatismos cranianos ou lesões medulares, como acidentes vasculares encefálicos. Todas as clínicas têm seus critérios de elegibilidade, com foco na deficiência física. Os pacientes passam primeiramente por uma triagem médica. Se o quadro se enquadrar no foco da instituição, ele será encaminhado para uma consulta médica inicial e para uma avaliação global com uma equipe multidisciplinar. Como no Lar Escola São Francisco, a AACD também conta com fisioterapeutas, inclusive aquáticos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, pedagogos e enfermeiros. Depois da avaliação global, o paciente é encaminhado para as terapias nos diversos setores, onde são traçadas as metas da sua reabilitação, a curto e a médio prazo. Nesse processo, há protocolos que são seguidos, são realizadas discussões semanais e cada caso é discutido em média a cada três meses. Além dos pacientes da reabilitação, há pacientes internos, em trezes leitos, com casos de pós-operatório, grandes incapacitados submetidos a cirurgia no Hospital Abreu Sodré (que fica dentro da AACD). Diferentemente dos pacientes externos, os pacientes internos têm uma reabilitação bastante intensiva, por um período pré-determinado de três, quatro ou cinco meses. Há ainda reuniões de alta ou desligamento. A AACD possui a certificação ISO 9001, portanto tudo o que ocorre na instituição é protocolado, segue diretrizes, o que é muito importante, já que a instituição conta atualmente com nove unidades e parcerias técnicas em Salvador e no Piauí. Assim, o que é feito na AACD de São Paulo, também é feito na AACD de Joinville, na AACD de Recife, de acordo com os protocolos. Numa comparação entre o trabalho desenvolvido na AACD e em instituições similares fora do país, podemos observar algumas diferenças. Os programas 216 Saúde e Assistência de reabilitação têm maior duração na AACD, pois aqui não conseguimos realizar uma reabilitação tão intensiva, de quatro, cinco ou até seis vezes por semana. Ao invés de permanecer um ano em reabilitação, aqui o paciente fica seis, sete ou oito anos. Em relação aos procedimentos médicos e terapêuticos, não há grandes diferenças. Os médicos e terapeutas da instituição são estimulados a participar de congressos e têm a oportunidade de fazer estágios no exterior. Quanto às cirurgias, infelizmente a lista de espera na AACD é muito grande, com mais de cinco mil pacientes, com óbvias repercussões negativas na reabilitação dos pacientes. Por exemplo, um paciente em treinamento de marcha que evolui com encurtamento muscular, muitas vezes precisa ter alta da reabilitação, aguardar a cirurgia e depois voltar à reabilitação. O mesmo ocorre em relação ao fornecimento de órteses, próteses e cadeiras de rodas. Um paciente com mielomeningocele em treinamento geralmente não consegue ter logo o seu aparelho e recebe alta até que consiga receber a sua prótese ou órtese, o que também atrasa muito a reabilitação. Esses diferenciais explicam, ao menos em parte, a demora dos processos de reabilitação no Brasil. Um paciente amputado poderia ser reabilitado em muito menos tempo, mas, como precisará esperar até receber a sua prótese, a reabilitação acaba sendo muito mais longa do que deveria. Outro diferencial do Brasil em relação aos países desenvolvidos está nas bombas de infusão medicamentosa intratecal, muito difíceis de se conseguir aqui no país, mesmo nas universidades. Alguns pacientes graves, do ponto de vista motor, poderiam ser beneficiados com o uso desse tipo de bomba de infusão, mas aqui não é possível, entre outros motivos por causa do alto custo, que não é coberto pelo SUS. Em relação à interface com órgãos públicos, é importante conhecer os pacientes que a instituição atende. São grandes incapacitados, portanto são pacientes muito peculiares, que não são como o pós-operatório de uma fratura. Às vezes, são necessários dois profissionais ao mesmo tempo para a terapia. É preciso que o SUS leve em conta essas peculiaridades. O paciente com uma grande incapacidade quase que certamente necessitará de aparelhos ortopédicos, cirurgias e terapias. É um paciente caro para o sistema, que necessita de muita terapia, durante muito tempo, necessita de cirurgia e necessitará de uma prótese. Na AACD são atendidos muitos pacientes de outros estados, e não há repasse de verbas de outros estados para isso. Há 217 Saúde e Assistência uma carência de dados estatísticos e epidemiológicos, com maior uso da tecnologia da informação. O papel das ONGs e instituições privadas deveria ser complementar às necessidades do sistema público, mas na realidade não é o que ocorre. Os profissionais acabam fazendo tudo e o retorno financeiro é realmente pequeno. Atualmente, a AACD faz toda a habilitação ou reabilitação dos pacientes. Por mais que haja uma verba do SUS para a cirurgia, a maior parte do custo é bancada pela instituição, que é filantrópica. A capacitação dos profissionais também é feita pela instituição, seja da área técnica, de professores ou médicos. Para as órteses, próteses e adequação postural, há uma verba do SUS, mas a AACD é obrigada a contar com a renda de bazares, doações, cartões de Natal, do Teleton, pois os pacientes têm um custo muito alto. Como sugestões, a AACD propõe a criação de um cadastro único para listas de espera, de fácil acesso aos serviços e que evitaria a duplicidade. Atualmente, com uma prescrição o paciente entra numa lista de espera para receber uma cadeira de rodas no Lar Escola São Francisco, na AACD e outras, permanecendo em várias listas ao mesmo tempo. O paciente acaba tendo um custo elevado para o SUS, pode receber três cadeiras ao mesmo tempo, que ficarão encostadas, pois não terão sido adaptadas adequadamente. O mesmo vale para as próteses recebidas, que talvez não sejam usadas. O cadastro único funcionaria como uma lista de transplantes. Outra sugestão é que o profissional que faz a prescrição precisa saber prescrever e levar em conta uma série de fatores. Não adianta prescrever uma prótese de titânio para uma senhora que ficará em casa o tempo todo. Como a verba é fixa, procura-se retirar alguns itens de uma órtese ou uma prótese, para ganhar em quantidade, sem comprometer a qualidade. Além da correta prescrição, a confecção da órtese ou da prótese deve ser feita corretamente, o que nem sempre se observa. Tanto os profissionais que prescrevem como aqueles que confeccionam as próteses ou órteses precisam conhecer os materiais utilizados. O controle das empresas que participam das licitações é outro aspecto importante. Às vezes, o fornecedor ganha uma licitação em outro estado e, quando o paciente necessita de um ajuste, ele não é feito. A reabilitação acaba sendo interrompida, pois o paciente não tem meios para ajustar a prótese. Portanto, na licitação é importante que o fornecedor se comprometa com 218 Saúde e Assistência um acompanhamento a médio e longo prazo do material que é oferecido. Deve-se também observar as melhores práticas e capacitação para realizar a confecção do aparelho solicitado, ou seja, é preciso um cuidado na prescrição, na confecção, no acompanhamento do uso, tudo com uma reabilitação completa. Stela Felix Machado Guillin Pedreira: Numa época relativamente recente do século passado, os serviços públicos de saúde, não apenas os governamentais, foram instituídos ao longo do processo de industrialização brasileira. Pensava-se na população que trabalhava nas indústrias, que necessitava de um atendimento específico para ter um bom padrão de mãode-obra, que os funcionários tivessem boa produtividade. No começo do século, surgiram os IAPs, que eram grupos de trabalhadores de determinada categoria, aos quais depois juntaram-se os empregadores e o Governo, já no período Getúlio Vargas. O objetivo desses grupos era a proteção daquelas categorias específicas. Assim, havia o IAPI, o IAPTEC, o IAPC, etc. Para cada categoria, havia um financiamento específico e um desconto no salário do trabalhador. No governo Getúlio Vargas, com as leis trabalhistas, implantouse um sistema maior, chamado de INPS, que unificou a previdência social dos trabalhadores. A saúde estava muito vinculada à previdência social. Até aquele momento, havia trabalhadores de categorias diferentes: os trabalhadores formais, que tinham acesso aos serviços de saúde, e aqueles que não tinham acesso, por serem trabalhadores informais ou porque não trabalhavam. As pessoas que não tinham acesso ao serviço de saúde do INPS, ou procuravam as entidades filantrópicas ou recebiam atendimento “por interesse científico”, na condição de verdadeiras cobaias humanas, para tratamentos experimentais. Esse sistema de saúde, extremamente centralizador, tinha grandes hospitais e estruturas que não tinham resolutividade e gastavam muito dinheiro público. Com o tempo, percebeu-se que este não era o sistema adequado para o país. Era um sistema fragmentado, com restrição de acesso e sem participação da sociedade. Durante o período de exceção vivido no Brasil (de 1964 até a década de 1980), São Paulo, que já tinha uma estrutura sanitária diferenciada, começou a capitanear um movimento, movido não apenas pelos sanitaristas, mas 219 Saúde e Assistência também pela população, principalmente as mulheres da Zona Leste da cidade. Esse movimento, que estava acontecendo no mundo inteiro, buscava a saúde para todos. Foi um movimento importante depois das duas grandes guerras mundiais, principalmente com a instalação do welfare state (bemestar social). A noção de que toda a população devia ter acesso aos serviços de saúde começou a se difundir nos países mais desenvolvidos, especialmente na Europa. Com certo atraso, o Brasil também começou a mover-se nesse sentido. Como queria o Banco Mundial, a proposta era de “saúde de pobre para pobres”, com pouca tecnologia. São Paulo teve um papel de liderança nesse processo e conseguiu, mesmo durante o governo Collor, que apresentava certas divergências em relação a essa proposta, implantar o SUS. No SUS, todo cidadão, independentemente da classe, cor, sexo, etnia, condição social e condição de vida, deve ter acesso à saúde. É um sonho, talvez bastante difícil de realizar num país com renda per capita baixa, condições de financiamento difíceis, que não consegue equacionar seus grandes problemas, com grande dependência dos sistemas públicos de saúde para a maioria da população. O SUS está garantido na “Constituição cidadã”, de 1988, e no conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, na administração direta, como também de fundações mantidas pelo poder público. Entretanto, o SUS é complementado pelas instituições privadas, seja por contratação ou parceria. O sistema SUS não é somente governamental; é um sistema publicizado, no qual várias instituições atuam juntas para proporcionar o acesso do público em geral, da população brasileira, aos serviços de saúde. Ele tem como base a promoção, a prevenção e a recuperação da saúde. O SUS não visa a uma área só. Até então, antes do SUS (e como querem alguns ainda hoje), o Estado fazia simplesmente as ações que são atribuições do Estado: vacinação, contagem de doenças, estatísticas e epidemiologia. O SUS se propõe a algo muito maior: atuar sobre a integralidade do indivíduo, desde o nascimento, em toda a complexidade do ser humano, considerando os determinantes e os condicionantes de saúde (não apenas os condicionantes biológicos, mas também os sociais e econômicos). Foi longo o caminho percorrido pelo SUS, com muitos acertos e erros. Com o tempo, foi possível estabelecer uma série de normas operacionais, em 1991, em 1993, em 1996, determinando parceiros, protagonistas e municipalizando os serviços de saúde. Enquanto a sua estrutura era verticalizada, baseada 220 Saúde e Assistência numa lógica em que o Governo Federal determinava as ações, num país com dimensões continentais, era possível prever que não daria certo. As populações são diferentes, assim como os objetivos e as condições de vida, principalmente. Com a NOAS (Norma Operacional da Assistência à Saúde) de 2001 e a NOAS de 2002, começava-se a falar em regionalização, em montar áreas homogêneas, em termos culturais, sociais e nos aspectos da saúde, culminando em 2007 com o “Pacto pela Saúde”. Assim, o Pacto pela Saúde é uma proposta relativamente nova, que muitos ainda desconhecem, que defende exatamente um pacto entre as três esferas de governo, cada uma assumindo o que é capaz de fazer pela saúde. Os municípios muito pequenos, que não têm condições estruturais, assumirão a atenção básica. Municípios maiores, que tenham uma estrutura de saúde, assumirão uma maior complexidade, e assim o pacto é feito e sempre renovado pelos gestores, com objetivos e metas muito precisos. O “pacto pela vida”, que faz parte do Pacto pela Saúde, aborda algumas questões fundamentais: a saúde do idoso, a mortalidade maternoinfantil, o câncer de colo do útero, algumas doenças emergentes, como dengue, hanseníase, tuberculose, influenza e malária, o fortalecimento da atenção básica, a promoção da saúde, a saúde mental, a saúde do trabalhador, a saúde da pessoa com deficiência, a atenção integral às pessoas em situação de violência e a saúde do adulto. Essas ações são todas transversais; não se pode pensar em nenhuma delas como se fosse somente a assistência. O indivíduo, em determinado momento da sua vida, será idoso, ou adulto, ou terá uma doença emergente, um câncer, enfim, é preciso pensar que as pessoas não são a sua doença ou a sua deficiência. São indivíduos completos, que precisam receber o atendimento de uma linha de cuidado, ou seja, desde o seu nascimento até a sua morte, com um acompanhamento em todas as suas doenças, as condições de vida. É um grande desafio, que parece estar sendo bem-sucedido. Os princípios do SUS são muito claros: universalidade (o indivíduo pode ser atendido em qualquer lugar), equidade (diferentemente da igualdade, equidade significa dar mais para quem precisa mais, o que determina incentivos financeiros e de estruturação de investimentos para determinadas áreas) e integralidade (quando se atende um indivíduo, ele é atendido “por 221 Saúde e Assistência inteiro”). Pensando na integralidade, a porta de entrada deve ser a atenção básica, que normalmente fica no município, com uma área adscrita, onde o paciente responde a um médico de família, preferencialmente, ou a uma Unidade Básica de Saúde. Há serviços de média complexidade, com especialistas, e de alta complexidade, nos hospitais. Os serviços de média e alta complexidade, no Estado de São Paulo, estão divididos entre o Estado e alguns municípios. A gestão não é apenas do município, mas compartilhada, porque o Estado de São Paulo já tinha estruturas de saúde muito bem estabelecidas. As redes de saúde representam o sistema de referência e contra-referência. Tomemos por exemplo um paciente que sofre um acidente, é atendido no pronto-socorro e tem um membro amputado. Dali, o paciente retornará ao serviço especializado, que prescreverá uma órtese ou uma prótese. A prescrição será acompanhada pelo gestor local, que dará o apoio necessário para que o paciente utilize o equipamento. Caso contrário, a possibilidade de aquela órtese ficar em cima do armário é muito grande. O mesmo vale caso o paciente precise se deslocar de um município remoto, no Pontal do Paranapanema, por exemplo, até a AACD, na capital. Por isso, as redes municipais precisam estar estruturadas para dar esse suporte. Esse processo só é possível com a territorialização. No Pacto pela Saúde, o Estado de São Paulo foi dividido em 64 territórios – os colegiados de gestão regional – com características muito próximas e que obedecem a essa lógica de saúde, com um serviço de referência e serviços de atenção primária que utilizam os serviços de referência secundários e terciários. São zonas homogêneas socialmente, em termos de cultura econômica, permitindo que esse trânsito ocorra de maneira mais fácil. Os critérios para a definição desses territórios são os contextos socioeconômico e cultural, o território vivo, os fatores de risco e de proteção (sob uma visão epidemiológica), as vulnerabilidades, os dados epidemiológicos, a distribuição dos equipamentos de saúde e os protagonistas no processo (ou seja, quem assume a gestão do quê). O sistema deve ser visto a partir de princípios importantes. Primeiramente, a linha de cuidado – o indivíduo precisa ser visto na sua totalidade. A linha de cuidado prevê uma atenção desde o início até o final da vida, com todas as possibilidades que o indivíduo desenvolverá. Não se pode atender o indivíduo somente na infância, como acontecia muito, nos “postos de saúde”. 222 Saúde e Assistência Outra iniciativa é que os homens também frequentem as Unidades Básicas de Saúde. Quando o homem procura atendimento médico, geralmente é no pronto-socorro ou diretamente para uma cirurgia, por exemplo, porque não fez um acompanhamento prévio do problema. Na cultura brasileira, o aspecto materno-infantil recebe mais atenção e outras faixas etárias e segmentos da população ficam um pouco esquecidos. O Pacto pela Saúde procura reverter essa situação. Um aspecto importante do sistema é o estabelecimento de protocolos clínicos e de regulação. Quando se fala em saúde coletiva, não se pode dispensar medicamentos, insumos e equipamentos de qualquer maneira. Existe um orçamento e é preciso pensar em tudo o que deve ser feito para a maioria da população. Embora seja válido, é muito mais difícil atender a casos isolados. Infelizmente, trata-se de uma “escolha de Sofia”: com o dinheiro disponível é preciso atender à maioria da população, portanto é necessário fazer padronizações. Procura-se fazer essas adequações na rede. É importante considerar que um município com 800 habitantes, por exemplo, que não consegue ter uma estrutura de saúde mais organizada, tenha uma referência, tanto para o atendimento em si quanto para o embasamento técnico. Uma pessoa desse município, que não conta com um fisiatra ou uma terapeuta ocupacional e precisa de uma prótese, irá para um serviço de referência, mas uma enfermeira ou outro profissional disponível no município deverá acompanhar o paciente, para conhecer o trabalho de adaptação. Esse é o chamado “apoio matricial”. A “clínica ampliada” é exatamente a ação advinda do apoio matricial, uma ampliação técnica da clínica a partir da verificação de outros problemas envolvidos. Os grupos de apoio à saúde da família também respondem ao programa de saúde da família, regionalmente, com alguns especialistas. Podem fazer parte desses grupos fisiatras, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, etc., dependendo da situação epidemiológica e do planejamento do município. As redes de atenção à saúde precisam ter uma dimensão técnica, administrativa, financeira e política. Deve-se pensar nelas como redes mesmo, ou seja, como teias, com possibilidade de ir e voltar pelos fios, com interrelações entre os pontos. 223 Saúde e Assistência O sistema de saúde pode ser organizado de duas maneiras. Na forma clássica, a atenção básica é a porta de entrada do sistema e remete seus pacientes para o atendimento de média complexidade, especializado, que pode retorná-los à atenção básica ou encaminhá-los para o atendimento de alta complexidade. O movimento é feito de maneira hierarquizada. Na organização em rede, a atenção primária à saúde relaciona-se diretamente com as diversas esferas, o que confere uma dinâmica maior ao atendimento, mas depende de uma organização dos protocolos e do referenciamento. Se a matriz estiver bem definida, essa dinâmica funciona. No território municipal, propõe-se a autossuficiência em atenção primária à saúde. No território microrregional, com vários municípios, a autossuficiência deve ser no nível secundário e, no território macrorregional, é preciso haver também a atenção terciária. Sabe-se que, no Brasil, cerca de 10% da população é constituída por pessoas com algum tipo de deficiência. Destes, alguns têm limitações funcionais e deficiência. O problema mais importante está relacionado às condições de vida desses pacientes: 70% vivem abaixo da linha de pobreza. No Brasil em geral, 22% da população vive abaixo da linha da pobreza. Portanto, percebese como essa população é vulnerável. Além disso, 33% dessas pessoas são analfabetas, enquanto na população brasileira em geral essa proporção não chega a 20%. Noventa por cento das pessoas com deficiência estão fora do mercado de trabalho. Como referência, numa favela do Rio de Janeiro, os desempregados chegam a 19%; no Estado do Rio de Janeiro como um todo, a proporção é de 9%. Portanto, o aspecto social é talvez mais grave que o próprio aspecto funcional das pessoas com deficiência. O Brasil é um dos países mais inclusivos do mundo, por incrível que pareça. É reconhecido por sua legislação e pelas políticas públicas, inclusive aquelas voltadas para as pessoas com deficiência. O grande fator diferencial do Brasil é exatamente a mobilização da população. A sociedade civil organizada conseguiu um espaço, principalmente nos Conselhos de Saúde, nos quais tem representação e consegue impor suas questões. Até certo tempo atrás, nós não víamos os deficientes, pois eles ficavam confinados em casa e tinham vergonha de se mostrar. Hoje não é mais assim; os deficientes estão cobrando do poder público, das instituições o espaço que merecem. A agenda social do deficiente não pode estar focada somente na questão da sua saúde individual. Ela precisa focalizar o emprego, o ambiente acessível, a escola acessível, o transporte e entorno acessível, a habitação acessível e 224 Saúde e Assistência também as órteses e próteses, pois esses equipamentos possibilitam a sua inclusão social. A política estadual da pessoa com deficiência procura pensar nesses diferentes âmbitos. São Paulo é um dos poucos Estados que possuem uma secretaria específica para os direitos da pessoa com deficiência. Esse é um grande avanço, que visa a reabilitar a pessoa, proteger a sua saúde e prevenir agravos. As diretrizes da Secretaria são a promoção da saúde, a qualidade de vida, a prevenção de deficiências, a assistência integral à saúde, a organização da rede para a pessoa com deficiência, a capacitação de recursos humanos e a estruturação do sistema de informações. Por muito tempo, todas essas questões foram deixadas de lado. Hoje, procura-se rediscutir e reestruturar a rede, rever os parceiros, para que se obtenha uma resposta mais efetiva. Qual seria o papel do Estado na questão dos direitos da pessoa com deficiência? O Ministério da Saúde financia e determina os protocolos, as ações. O município normalmente executa, pois o paciente vive no município e mantém uma relação com os serviços de saúde do município. E o Estado, o que faz? O Estado faz a adequação da política nacional à sua realidade e suplementa as verbas vindas do Ministério e do município. O financiamento do SUS é solidário entre as três esferas de poder. A rede de assistência ao paciente com deficiência obedece aos princípios do SUS: é regionalizada, descentralizada e hierarquizada. A porta de entrada do sistema é a atenção básica, os serviços de emergência ou o prontoatendimento. Sob gestão estadual, nos diferentes níveis de complexidade, estão os ambulatórios de especialidades (AMEs), a rede hospitalar e a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, uma parceria com a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O acompanhamento, a supervisão e o controle dos serviços também é feita pelo Estado, assim como a educação permanente, tanto dos gestores como dos profissionais de saúde. A reabilitação é um aspecto pontual dentro da política da pessoa com deficiência, do conjunto de ações de atenção à saúde, para reduzir o impacto da deficiência. Há níveis de referência: o nível municipal, o nível intermunicipal de reabilitação física, o nível intermediário, o serviço de referência em medicina física e reabilitação e os leitos de reabilitação no hospital geral ou especializado. 225 Saúde e Assistência Com relação à deficiência auditiva, é preciso fazer uma avaliação e a manutenção da rede existente, é preciso mapear os serviços que existem no Estado, que atendem ao deficiente auditivo, em que nível atendem e em qual área atendem, para que se possa referenciar e contra-referenciar os serviços. Implantar a triagem auditiva neonatal universal também é um desafio, pois exige equipamentos e nem todas as maternidades públicas conseguem realizá-la. Haverá um projeto inicial em duas maternidades de São Paulo (Interlagos e Leonor Mendes de Barros), para saber qual será a dimensão do trabalho e como se poderá ampliar essa ação. Quanto ao atendimento à deficiência visual, também será necessário identificar os serviços e implantar a rede. Já existe uma rede de serviços de reabilitação visual, ainda pequena, por falta de adesão dos próprios serviços, que não se motivaram pelos valores que o Ministério repassa. Assim, é uma rede ainda incipiente, mas está sendo ampliada. Com relação à deficiência mental, intelectual e múltipla, os serviços ainda estão sendo identificados e organizados. É uma área difícil, na qual o acesso é muito ruim, há uma certa confluência com os problemas de saúde mental e tem havido uma grande demanda de ações judiciais relacionadas a esses pacientes. No que diz respeito ao deficiente físico, é necessário reorganizar a rede de reabilitação, serviços terciários e serviços de referência, que está nas mãos da Rede Lucy Montoro. Conta-se também com a rede estadual, os serviços municipais e filantrópicos integrados à rede. A rede não se resume a uma prestação de serviços secundários e terciários; ela tem que ter essa conformação de atenção básica, serviços de referência especializados e também de nível mais alto. O Estado financia e suplementa os valores dados pelo Ministério da Saúde, complementando a tabela para aquisição dos equipamentos. No momento, está sendo realizado um mutirão para atender às filas de espera. Um grande número de pacientes “represados”, que não conseguiam seus equipamentos, tanto por problemas de financiamento no próprio Ministério como por questões da prescrição. Duas macrorregiões de São Paulo já foram atendidas e a fila, até o final de 2010, deve ser totalmente atendida dentro dos padrões, com a adequação das prescrições. Realmente, as prescrições até recentemente eram muito ruins, feitas por pessoas que não tinham nenhum conhecimento. 226 Saúde e Assistência Com a demora, às vezes havia problemas na adaptação ao coto, etc. Por isso, todas as prescrições estão sendo reavaliadas, para uma maior adequação. Algumas pessoas da fila estavam credenciadas em várias instâncias, faziam filas paralelas e não havia uma dimensão real de quantos pacientes realmente estavam na fila. Assim, foi criado um sistema, que já está sendo aplicado para o credenciamento, com uma fila única, dentro das necessidades múltiplas. Com relação ao financiamento federal, houve uma mudança na tabela unificada. Antes se pagava por “APAC”, e hoje utiliza-se o recurso MAC (de média e alta complexidade), passado fundo a fundo, do Ministério para o município. O município já não tem que fazer as prestações de contas que antes era obrigado a fazer, mas deve demonstrar, por meio do boletim de produção ambulatorial, coletivo ou individual, que conseguiu prescrever aquela órtese ou prótese. No ano passado, o sistema recebeu muitas críticas, porque muitas APAEs perderam dinheiro, mas ocorre que essas instituições não haviam faturado as órteses ou próteses que tinham dispensado. Portanto, para se conseguir as verbas, é importante preencher o boletim, para garantir que as verbas sejam mantidas. O Ministério percebeu também que o período histórico tomado como média não foi adequado e os valores serão revisados. Até meados do próximo ano, deve ocorrer uma suplementação dos valores, para que as verbas sejam mais adequadas. Entre os serviços existentes no Estado de São Paulo, sob gestão estadual ou municipal, há 34 serviços de nível intermediário e 19 serviços de medicina física e reabilitação, tidos como referência. É importante não deixar que a pessoa com deficiência se torne uma “lenda”. A única lenda em que se vê o deficiente alegre, sem uma perna, é a do SaciPererê. Sabe-se que ainda há vários problemas para a dispensação das órteses e próteses, mas o processo está evoluindo no sentido de uma melhoria de qualidade e do acesso dessa população. 227 Dia 10 de dezembro de 2009 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação O conceito de Economia do Conhecimento (EC) surge da compreensão de que atualmente a economia baseia-se não somente no aproveitamento de recursos naturais, no gerenciamento de recursos financeiros ou na produção industrial, mas cada vez mais no aproveitamento dos recursos do conhecimento. A aplicação simultânea dos cinco pilares que sustentam o conceito de EC – inovação, educação, inclusão social, tecnologias da informação e comunicações e os direitos de propriedade intelectual, uma vez orientada para a satisfação das necessidades, aproveitamento das capacidades diferenciadas e integração na sociedade das pessoas com deficiência, possibilitará a sua utilização como uma estratégia institucional. O fato de a EC agregar um valor ao conhecimento, por considerá-lo um bem de produção como qualquer outro, coloca em evidência o potencial das pessoas com deficiência para que tenham um papel significativo no desenvolvimento social e econômico de uma região. Danilo Piaggesi (moderador) – Diretor do Programa Internacional de Economia do Conhecimento (IKEP) Klaus-Peter Wegge – Chefe do Centro de Competência em Acessibilidade da Siemens Company - República Federal da Alemanha David Andrés Rojas – Gerente Sênior do Programa de TCI - Diretor da POETA - The Trust for the Americas - Organização dos Estados Americanos - Washington DC, USA Pedro Primo Bombonato – Coordenador de Ciência, Tecnologia e Inovação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento - São Paulo, SP Fernando Botelho – Diretor da Botelho & Paula Consultoria Empresarial Curitiba, PR Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Claudinei Martins – Pesquisador - Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações - CPqD - Campinas, SP Danilo Piaggesi: Este painel tem um objetivo bem preciso: introduzir o tema da Economia do Conhecimento, com base nas descrições da literatura internacional, e tentar fazer uma conexão com o tema das pessoas com deficiência, para apresentar uma proposta à consideração da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do estabelecimento de um centro de excelência em inovação e tecnologia em favor das pessoas com deficiência. A melhor maneira de se definir a Economia do Conhecimento é a convergência dos diferentes componentes de uma economia interconectada e globalizada, na qual os recursos do conhecimento (como o know-how, a expertise e a propriedade intelectual) são mais importantes que outros recursos econômicos, como o território, os recursos naturais ou mesmo a mão-deobra, que eram importantes no passado, especialmente na economia mundial baseada na agricultura. Ela reconhece o conhecimento como um elemento de competitividade, uma noção importante no centro que será proposto ao final deste painel. A tecnologia é utilizada aqui como meio, e não como objetivo final. Admite-se que a Economia do Conhecimento tem um considerável impacto no funcionamento dos mercados e na eficiência dos serviços governamentais. Ela capta e representa o valor de tal conhecimento, introduzindo-o como fator na tomada de decisões. Trata-se de uma nova visão da economia. E economia está passando por mudanças dramáticas. Economistas, intelectuais e pesquisadores se reúnem para definir quais poderiam ser os elementos de uma sociedade melhor para as futuras gerações. O conhecimento passa a ser um objetivo. Pode-se perceber o valor agregado pela Economia do Conhecimento nos esforços para se captar, analisar, disseminar e avaliar o conhecimento (institucional, cultural, indígena, etc.) e retroalimentar os investimentos em desenvolvimento e as próprias comunidades. Não se trata apenas da produção e melhora de conhecimento local, mas também da importação do conhecimento produzido em regiões desenvolvidas, que poderia ser adaptado às condições locais. 230 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Já se afirmou que a economia da tecnologia não se constitui num objetivo em si, mas uma abordagem, não se trata de fazer coisas diferentes, mas as mesmas coisas de uma maneira melhor. O conceito nasceu provavelmente quinze anos atrás, na Finlândia, quando o país sofreu uma grave crise na agricultura. Os finlandeses decidiram investir simultaneamente em cinco pilares diferentes: educação, tecnologia da informação e comunicação, inovação, inclusão social e revisão das políticas institucionais. O ciclo de riqueza produzido pelos investimentos nesses cinco pilares converteu o conhecimento numa mercadoria tangível, no coração da nova “economia do conhecimento”. O objetivo passou a ser aumentar o conhecimento e transformá-lo em moeda corrente na sociedade do futuro. A Finlândia iniciou esse movimento e os chamados “tigres asiáticos” (Coreia, Japão e, recentemente, a China) a seguiram. Prevê-se que o Brasil se tornará uma usina, um centro desse novo conceito de economia no futuro próximo. É impressionante observar que as pessoas com deficiência representam um sexto da população mundial em idade produtiva e que ainda apresentam maiores índices de desemprego e subemprego, em comparação com as pessoas sem deficiência. Muitos países estão perdendo a oportunidade de aproveitar o conhecimento que essas pessoas poderiam produzir, numa contribuição para a economia do conhecimento. Com a redução da força de trabalho no mundo, as pessoas com deficiência poderão constituir valiosos elementos da massa de trabalhadores no futuro. Há um novo contexto internacional. Recentemente, realizou-se a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com o objetivo de promover, proteger e garantir o pleno e equitativo gozo de todos os direitos humanos pelas pessoas com deficiência. As principais mudanças sinalizadas na Convenção foram do conceito de bem-estar social para a questão dos direitos humanos, reconhecendo-se que as barreiras e preconceitos sociais são, por si só, incapacitantes, e dos aspectos médicos e individuais da incapacidade para a ênfase no processo de interação da pessoa com deficiência, suas atividades, condições de saúde e fatores contextuais. A Convenção focalizou tópicos específicos: acessibilidade, mobilidade pessoal, saúde, educação, emprego, habilitação e reabilitação, participação na vida política e social, igualdade e não discriminação. Eis a conexão proposta entre a Economia do Conhecimento e as pessoas com deficiência: os instrumentos usados pela Economia do Conhecimento podem 231 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação ajudar muito em questões de acessibilidade, mobilidade pessoal, saúde e educação, emprego, participação na vida política e social, enfim, nos tópicos centrais da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A ótica da Economia do Conhecimento pode conferir um sentido econômico à inclusão das pessoas com deficiência na sociedade. Por que a Economia do Conhecimento seria relevante para essa fonte represada de recursos, das pessoas com deficiência? As pessoas com deficiência constituem um setor da sociedade cujas capacidades especiais e conhecimentos específicos permanecem represados e cujo potencial para contribuição com o crescimento econômico e social é subestimado. Elas podem participar da geração, gerenciamento, utilização e transmissão dos conhecimentos. No novo contexto internacional, a tecnologia da informação e comunicação pode ser uma interface fundamental entre as pessoas com deficiência e seu ambiente. A inovação está na base da pesquisa e desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação. Uma melhor interface significa uma melhor inclusão social. A inclusão requer alterações sociais e revisão de políticas e a maior inclusão social significa maiores possibilidades de melhor educação formal e informal. As vantagens de uma aplicação sinóptica da Economia do Conhecimento às necessidades das pessoas com deficiência são evidentes. Em outras palavras, trata-se de um círculo virtuoso da Economia do Conhecimento e da participação das pessoas com deficiência nessa nova economia. Mais de seis milhões de crianças têm um diagnóstico de deficiência nos EUA e são elegíveis para um programa de educação especial. A tecnologia da informação e comunicação poderia amenizar esse problema. Nos EUA, 29% dos estudantes com deficiência apresentam alguma deficiência no aprendizado, especialmente aqueles que não têm pleno acesso ao conteúdo da internet. Às vezes, os websites criam barreiras para as pessoas com deficiência, o que constitui um tipo de discriminação. O mesmo vale para as oportunidades de trabalho. A tecnologia da informação e comunicação pode melhorar as oportunidades de vida independente, facilitar uma maior autonomia e aumentar a integração social ao dar acesso à comunicação, educação e aprendizado informal, abrindo oportunidades na nova Economia do Conhecimento. 232 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Vale destacar que estar fora da internet significa falta de informações, reforçando padrões de desigualdade. O acesso à internet representa uma porta para o emprego e desencadeará reformas no mercado de trabalho. É claro que, nesse processo de transformação, é preciso realizar certas ações, em nível de iniciativas governamentais, educacionais, modificações institucionais, iniciativas de desenvolvimento econômico e apoio às pesquisas necessárias. Para cada um desses itens, há uma variedade de ações que precisam ser tomadas para conformar a sociedade de forma que ela se adapte às prioridades da Economia do Conhecimento. Em relação às iniciativas institucionais, é fundamental instituir políticas e desenvolver melhores práticas que facilitem o envolvimento das pessoas com deficiência nas equipes que desenvolvem e testam as tecnologias. As pessoas com deficiência devem ser o ator principal, devem estar envolvidas desde o princípio nessas ações. O mesmo vale para as iniciativas de desenvolvimento econômico e para o apoio às pesquisas necessárias. Assim, essas ações estão diretamente ligadas à proposta de criação de um Centro de Excelência em Inovação e Tecnologia em favor das pessoas com deficiência (CEIT-D), em São Paulo, de âmbito e alcance internacionais, capaz de levar adiante todas as ações identificadas anteriormente. Trata-se de uma proposta aberta às sugestões e contribuições de todos. A justificativa para a criação do centro é clara: em áreas novas e inovadoras de aplicação tecnológica, a inclusão social de pessoas com deficiência e a compreensão de suas necessidades tornam-se muito relevantes, especialmente nos países em desenvolvimento, com recursos econômicos limitados, baixo grau de instrução e assimilação limitada da tecnologia. As pessoas sem deficiência já encontram dificuldades para liderar a transformação da Economia do Conhecimento; para as pessoas com deficiência, é ainda mais difícil tornar-se parte dessa transformação. Assim, o papel do centro seria torná-las protagonistas do processo. O centro atenderia às necessidades da Economia do Conhecimento e permitiria que as pessoas com deficiência tivessem acesso a informações do mercado, exigissem melhores serviços, recebessem educação e adquirissem novas habilidades para aumentar sua empregabilidade na sociedade baseada na Economia do Conhecimento. 233 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação A propósito, já estamos numa Economia do Conhecimento, não é algo que está prestes a ocorrer, mas já está presente. Aqueles cinco pilares que mencionamos já são uma necessidade. Precisamos de melhor educação, inclusão social, maior acesso à tecnologia. Precisamos promover a inovação, que por sua vez necessita de um ambiente legal que permita produzir essas modificações. O CEIT-D teria três linhas de ação: inovação industrial para necessidades especiais, um mercado de trabalho inovador para necessidades especiais e adaptações sociais e de infraestrutura para a integração das pessoas com deficiência. A lista das suas atribuições está em aberto, aguardando as contribuições de todos, mas já inclui a identificação de adaptações na interação entre as pessoas com deficiências e a sociedade como um todo, incluindo os aspectos de moradia, infraestrutura, serviços públicos, comunicação social, etc. As prioridades técnicas do centro, com base na literatura pesquisada, seriam o desenvolvimento de tecnologias básicas e aplicadas (microeletrônica, optoeletrônica, tecnologia de materiais, engenharia mecânica e de produção, reabilitação e engenharia biomédica) relevantes para as deficiências. O ideal é que o centro seja, inicialmente, um programa especial da Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de São Paulo. Com base nos resultados, seria institucionalizado como um centro independente. Klaus-Peter Wegge: Os desafios e oportunidades representados pelo desenho universal e pela acessibilidade aplicam-se muito bem aos conceitos de Economia do Conhecimento, pois é cada vez mais desejável que os produtos da indústria sejam acessíveis e úteis para a maioria ou para todas as pessoas. A Siemens atua no mercado global e, de maneira relativamente similar à de muitas outras empresas de grande porte, precisa incorporar o design acessível à produção de maneira eficiente, compreender a situação atual, as perspectivas futuras e os avanços nesse campo. Bjarne Stroustrup, um famoso cientista da computação, disse certa vez: “Eu sempre quis que o meu computador fosse tão fácil de usar quanto um telefone. Esse desejo se realizou, pois já não sei mais como usar o meu telefone.” 234 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Na maioria dos países europeus, na América do Norte, no Japão e, possivelmente, também na América do Sul, observa-se um envelhecimento da população (os países europeus estão adiante do Brasil nesse processo). O número de pessoas com mais de 65 anos na população está aumentando, as pessoas estão vivendo mais e têm menos filhos. A sociedade está envelhecendo e é preciso enfrentar os problemas decorrentes desse fato. Em relação às deficiências na população, observamos que, nos dados alemães, 65% das pessoas têm mais de 60 anos. As causas para uma deficiência, em 83% dos casos, é uma doença ou lesão. Muitas dessas deficiências não se instalam subitamente, mas desenvolvem-se lentamente, com o envelhecimento. Do ponto de vista da empresa, o conceito de acessibilidade é dividido, de maneira simplificada, em vários tipos de clientes. No primeiro grupo estão os consumidores, que compram um produto para si próprios, procuram a melhor solução para a sua situação individual: utensílios domésticos, telefones celulares ou sem fio, sistemas de navegação, etc. O segundo tipo de cliente é representado por autoridades públicas e prestadores de serviços que fornecem soluções para todos, portanto, é preciso incorporar o conceito de acessibilidade aos produtos que esses clientes procuram, como serviços de internet, programas, caixas automáticos de bancos, transporte público, etc. Outro grupo é formado pelas pessoas com necessidades especiais que precisam de itens de tecnologia assistiva, como aparelhos auditivos e outros dispositivos. O quarto grupo é formado por pessoas com deficiências que trabalham. O ambiente de trabalho precisa ser operado de maneira muito eficiente, porque o mercado é competitivo e essas pessoas não podem ficar para trás. Para o primeiro grupo, a Siemens tem dispositivos de uso doméstico com itens de acessibilidade, como comandos de voz, opções automatizadas, etc. No segundo, por exemplo, a empresa produz trens com itens de acessibilidade, como plataformas de acesso para cadeirantes, etc., No terceiro, sistemas de rastreamento ocular, teclados especiais, etc. Por fim, a Siemens tem aplicações que utilizam um sistema operacional “Linux acessível”. O design acessível baseia-se na ampliação do design convencional para pessoas com algum tipo de limitação de desempenho, de forma a aumentar ao máximo o número de possíveis clientes que poderiam utilizar prontamente o produto, construção ou serviço, de acordo com a ISO/IEC uma organização 235 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação internacional de padronização. Essa definição envolve o próprio objetivo das empresas: aumentar ao máximo o número de possíveis clientes. Há três estratégias para criar acessibilidade: desenvolver um “design para todos” ou para a maioria das pessoas, sem modificações do produto; desenvolver um design com fácil adaptação para diferentes usuários, que permita configurar o produto a diferentes necessidades; e, se as primeiras opções não forem suficientes, desenvolver um design que permita a pronta conexão com dispositivos assistivos. Outro aspecto importante é o dos custos. A acessibilidade não deve aumentar dramaticamente o custo dos produtos. A Siemens criou um Centro de Competência em Acessibilidade. Não se trata de uma criação exclusiva; muitas empresas estão seguindo a mesma estratégia. A tarefa desse tipo de centro é participar desde o início da criação do design de um produto. Nesse estágio, é muito mais fácil obter acessibilidade, com uma excelente relação custo-efetividade. Se o produto já estiver quase pronto ou já estiver pronto, qualquer mudança implicará grandes aumentos de custos. Assim, o processo de treinamento é feito dentro da própria empresa. Há engenheiros especializados em acessibilidade, mas não se pode esperar que os mais de trezentos mil engenheiros que trabalham para a empresa sejam especialistas em acessibilidade. Portanto, eles necessitam de informações básicas, de forma que a acessibilidade se torne autoevidente, seja parte da qualidade do produto. Estão sendo incorporados à equipe especialistas em diferentes tipos de incapacidade. Além disso, há um processo de aprendizado a partir das informações dos próprios usuários. Para isso, são realizadas exposições e conferências, os usuários participam de projetos de pesquisa e desenvolvimento e promove-se a cooperação com organizações de pessoas com deficiência e fornecedores de tecnologia assistiva. Esse contato é feito preferencialmente quando um produto está sendo desenvolvido, não necessariamente fabricado. É muito importante que a acessibilidade como estratégia da empresa seja definida como uma meta. A própria direção central da empresa divulgou oficialmente um documento de compromisso corporativo com o design universal e a acessibilidade. Para atingir essa meta, é necessário que haja uma coordenação interna e troca de informações. O Centro de Competência em Acessibilidade é o parceiro de contato com os órgãos reguladores e as 236 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação associações da indústria. Nesse contexto, é crucial a contribuição de organizações como a ISO ou a CEN/CENELEC para uma padronização na acessibilidade. Por fim, é preciso também lidar com as solicitações e queixas dos usuários. É um grande erro considerar as pessoas com deficiências um único grupo de consumidores. O mesmo vale para as pessoas idosas. Os idosos constituem um grupo muito heterogêneo. Esse grupo de consumidores precisa ser muito bem informado sobre as diferentes possibilidades dos produtos. Os revendedores precisam ser informados para fazer uma boa orientação aos seus clientes. O mesmo vale para os arquitetos e os técnicos que instalam os produtos. Um erro de instalação pode tornar o produto inacessível. O cliente deve ser orientado e muitas vezes treinado no uso do produto, com material de instrução apropriado. É preciso levar em conta quem toma a decisão de comprar o produto e a quem o produto se destina. A usabilidade de um produto é percebida de maneira muito individual, dependendo da idade, da experiência, do treinamento ou grau de limitação. Todas essas considerações são válidas também, de maneira individualizada, para as pessoas debilitadas. É interessante observar que as necessidades das pessoas idosas e das pessoas com diferentes tipos de deficiência são quase as mesmas em todos os países, e as empresas produzem para um mercado global. Contudo, há definições e termos incompatíveis entre si, diferentes regulamentos nacionais, padrões nacionais inconsistentes, diretrizes contraditórias e diferentes expectativas dos usuários. A título de exemplo, em relação às deficiências existem na Europa oito diferentes padrões nacionais com definições referentes à acessibilidade. São relatados a seguir alguns princípios e alguns tópicos a evitar para a promoção da acessibilidade na indústria. É preciso que não haja desvantagens para os usuários (a acessibilidade não deve trazer pontos negativos para os usuários convencionais). Não se pode incorrer em discriminação ou estigmatização dos usuários. Por exemplo, um telefone disponível no comércio não deve divulgar que se trata de um produto para pessoas com deficiência ou para idosos; deve-se dizer simplesmente que o produto é fácil de usar. Se for divulgado como um produto para idosos, os idosos não vão comprá-lo e os outros também não. O produto pode ser prontamente utilizado? Quem paga pela acessibilidade? Trata-se de uma decisão do tipo sim ou não? O que significa um website acessível? Na Europa, apenas 9% dos 237 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação websites das autoridades públicas são acessíveis. Isso não quer dizer que os outros 91% dos websites sejam totalmente inacessíveis. Apenas uma pequena parte deles é completamente inacessível. Na indústria, há sempre a discussão sobre um “selo de acessibilidade” para os produtos. A indústria prefere a autodeclaração de conformidade. Quais seriam os instrumentos para a implementação da acessibilidade? Primeiramente, é claro, é preciso compradores. Os usuários precisam descobrir o que atende melhor às suas necessidades. A acessibilidade deve ser incluída como critério em processos de licitação para órgãos públicos. Trata-se de uma estratégia iniciada nos Estados Unidos, que agora está sendo adotada na Europa. Pode não ser a melhor ideia, mas parece ser uma medida muito efetiva. A conscientização dos engenheiros é outra medida muito importante. Em muitos casos, há carência de dados científicos. É preciso ampliar o conhecimento científico de ergonomia em pessoas com deficiências ou idosos. Os termos, definições, necessidades dos usuários e recomendações precisam ser simplificados. Por fim, a harmonização internacional é fundamental. Um exemplo é o documento da ISO, a TR 22411, que apresenta “dados ergonômicos e diretrizes para aplicação do Guia 71 da ISO/IEC a produtos e serviços, de forma a atender às necessidades de idosos e pessoas com deficiências”. O documento fornece muitas informações básicas. Uma sugestão para o Brasil seria traduzir esse documento antes da padronização de termos e definições relacionados à acessibilidade. Por outro lado, os conhecimentos já adquiridos no país poderiam também contribuir para a elaboração de trabalhos como esse. A acessibilidade não é responsabilidade de uma empresa ou de uma agência. Ela está sempre vários anos atrás das tecnologias mais recentes. Portanto, é preciso criar mecanismos para que a acessibilidade seja incluída tão logo as tecnologias surjam no mercado. A chamada ambient assisted living (vivência em ambiente assistido), que está sendo implantada em muitos países, apoia as pessoas com deficiência e os idosos a permanecerem mais tempo em casa, criando serviços especiais acessíveis. Atualmente, o usuário também é responsável pela acessibilidade, pois, com as novas tecnologias baseadas na internet, todos podem contribuir, publicar conteúdos na rede e conversar com outras pessoas, o que deve ser feito de maneira acessível. 238 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Toda a teoria aqui mencionada torna o problema mais compreensível. Podemos citar como exemplos práticos vários utensílios de uso doméstico que “conversam” com o usuário, voltados para as pessoas cegas ou com baixa visão, mas também para pessoas com comprometimento cognitivo leve. Uma norma de padronização estabelecida pela Comissão Europeia, o “decreto 376”, define os requisitos de acessibilidade para a aquisição pública de produtos e serviços na área de TCI. A ideia é utilizar o poder das autoridades públicas para a aquisição de produtos acessíveis. O documento procura harmonizar e facilitar a aquisição pública de produtos e serviços de TCI acessíveis, por meio da identificação de um conjunto europeu de requisitos de acessibilidade para essas aquisições e fornecer um mecanismo de acesso a recursos eletrônicos que permitam aos agentes públicos utilizar os requisitos harmonizados nos processos de aquisição. O processo já está formalizado. As normas foram divididas em duas fases e os dados da primeira delas podem ser acessados na internet. Os resultados da primeira fase incluem um inventário de produtos e serviços de TCI adquiridos pelas autoridades públicas, uma lista de requisitos funcionais de acessibilidade, a identificação de lacunas, para as quais não há definições de requisitos de acessibilidade, uma lista dos padrões já existentes e uma proposta para o desenvolvimento de requisitos e critérios de premiação. O segundo documento disponível é um relato da análise dos testes e esquemas de conformidade dos produtos e serviços que atendem aos requisitos de acessibilidade. Alguns documentos relacionados à padronização dos requisitos de acessibilidade podem ser encontrados nos seguintes websites: – Decreto 376 da Comissão Europeia: http://ec.europa.eu/information_society/activities/einclusion/archive/ deploy/pubproc/eso-m376/index_en.htm - Relatório Técnico ETSI DTR 102 612: “Fatores Humanos (FH); Requisitos europeus de acessibilidade para aquisição pública de produtos e serviços no campo da TCI” http://portal.etsi.org/stfs/STF_HomePages/STF333/STF333.asp – Relatório da CEN: “Análise dos testes e esquemas de conformidade de produtos e serviços que atendem aos requisitos de acessibilidade” 239 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação http://www.econformance.eu/euconformancereport.html – “Europa Digital” - “Relatório técnico governamental sobre eAcessibilidade” http://www.digitaleurope.org/fileadmin/user_upload/document/ document1166614008.pdf – “Europa Digital” - “Manual das Melhores Práticas de Acessibilidade” http://www.digitaleurope.org/web/news/telecharger.php?iddoc=627 A segunda fase do decreto 376 está sendo iniciada atualmente e desenvolverá os padrões europeus, que serão baseados em padrões internacionais. Aguarda-se ansiosamente uma harmonização com as normas norteamericanas e japonesas e, enfim, uma harmonização global nessa área. Criar acessibilidade às vezes exige pesquisas e os trabalhos descritos nos websites www.haptimap.org, www.monami.info, www.easylineplus.com e www.i2home.org são alguns exemplos de esforços nesse sentido. Para finalizar, um exemplo de produto que não foi inicialmente desenvolvido para pessoas com deficiência e cada vez mais é utilizado por elas. Trata-se de um sistema de navegação portátil, muito pequeno, com um sistema completo de síntese de voz e controle por voz. Assim, pode ser totalmente operado por voz. Já está no mercado de alguns países europeus e é excelente para cegos. Além disso, é um rádio e reproduz arquivos de áudio. É um dispositivo voltado para o público em geral, que também tem recursos de acessibilidade. Há muito que fazer. É preciso deixar de discutir e tornar a acessibilidade uma realidade. É preciso pensar na acessibilidade como um critério de qualidade, não somente para pessoas com deficiência, mas que pode ajudar a todos. David Andrés Rojas: A Trust for the Americas é uma ONG afiliada à Organização dos Estados Americanos, que tem trabalhado em diferentes programas na região, procurando reduzir a pobreza e proporcionar mais oportunidades às comunidades carentes. Quase oito anos atrás, a Trust começou a aprender, com base em outros programas, como melhorar o processo de inclusão das pessoas com deficiência. Depois da Convenção Latino-Americana contra qualquer tipo de discriminação de pessoas com 240 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação deficiência, a Trust começou a desenvolver instrumentos e programas, para descobrir como a tecnologia poderia servir de instrumento de inclusão. Em 2004, com um projeto-piloto realizado na Guatemala, começou o programa POETA – Programa de Oportunidades para o Emprego por meio da Tecnologia nas Américas. O programa atualmente está sendo executado em 18 países, com o objetivo principal de proporcionar às pessoas com deficiência acesso e treinamento no uso de tecnologias da informação (TI), aumentando seu nível de educação, seu acesso ao trabalho e sua participação nas atividades da comunidade. O projeto-piloto iniciado em 2004 contou com a participação de dois centros na Guatemala e basicamente um doador: a Microsoft. Nesses cinco anos, o programa foi aperfeiçoado, com a experiência de outros, criando parcerias e aprendendo nos diferentes países em que atua. Atualmente, são 18 países, praticamente 81 centros e uma carteira de doadores que inclui a Microsoft, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Agência de Cooperação do Canadá, a Hewlett-Packard e agências governamentais locais. Já foram treinadas mais de 28 mil pessoas nos centros do programa POETA e quase 110 mil pessoas utilizaram os seus centros. A taxa de colocação póstreinamento, atualmente, é de 17%. Os centros do POETA promovem a inclusão e o objetivo é criar um ambiente solidário. O programa evolui com base no aprendizado obtido com diferentes práticas e na percepção do que ocorre fora do seu campo de ação, especialmente em termos de compreender as tendências globais. A participação de um evento como este, para compartilhar o conhecimento adquirido, é um passo importante. Até 2004, o programa promoveu a acessibilidade em telecentros, em diferentes países, procurando incluir as tecnologias assistivas para facilitar a inclusão de pessoas com deficiência numa tendência comum na criação de telecentros na região. Naquela época, os governos procuravam reduzir a desigualdade digital. Começou-se então a perceber que, além de reduzir a desigualdade digital, era importante reduzir a desigualdade de aprendizado, sobre como utilizar a tecnologia. Esse foi o principal objetivo dos telecentros. O objetivo não era apenas ter acesso a computadores, mas aprender a usálos. Entre 2004 e 2006, percebeu-se que o papel do POETA não era apenas procurar patrocinadores, mas capacitar essas instituições para que elas possam prestar melhores serviços às suas comunidades e criar meios inovadores de engajar 241 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação seus governos e empresas do setor privado. Assim, os telecentros tornaramse um instrumento mais útil para conscientizar o público quanto à inclusão. Passou-se de um nível local, com trabalhos na Guatemala ou El Salvador, para um nível regional: 8 países em 2006, 12 países em 2007 e assim por diante, até chegar a 18 países em 2009. Em 2007, percebeu-se que o papel do POETA não deveria ser trabalhar isoladamente, mas em conjunto com os três setores da sociedade: o setor privado, o governo e a sociedade civil. Os três setores juntos podem criar melhores soluções. Naquele momento, a abordagem mais inovadora passou a ser o estabelecimento de parcerias. Passou-se do nível regional para o nível hemisférico, observando-se o padrão em toda a América Latina. Outras iniciativas foram reconhecidas. A “Década das Deficiências” foi um bom momento para esse trabalho. Em 2008, percebeu-se a importância da informação. As tecnologias da informação e comunicação já eram usadas como um importante instrumento de trabalho, mas começou-se a compreender o poder da informação para acelerar o processo. Compartilhar informações tornou-se um tópico central. As novas tendências de relações entre as organizações, inclusive as redes de relacionamento, tornaram-se importantes nas ações do POETA. Já não se pensava em trabalhar num país isoladamente, mas em compartilhar as informações. Atinge-se assim o nível global de atuação. Uma ONG como o POETA prevê um grande potencial na criação de um centro de excelência e inovação em pesquisas sobre pessoas com deficiência, especialmente no Brasil, que pode aproveitar o comprometimento político deste momento, o empenho da Secretaria Estadual da área. O Brasil pode beneficiar-se de ser uma economia emergente, podendo tornar-se a ponta do iceberg de muitas mudanças. O Brasil pode aproveitar o melhor do mundo desenvolvido e do mundo em desenvolvimento. Há ainda uma coalizão pela responsabilidade social, não somente nas relações com o setor privado, mas também em nível governamental, o que não ocorre em muitos outros países. No Brasil, o setor privado pode imediatamente tomar parte nessa parceria. Do ponto de vista tecnológico, o Brasil tem apresentado muitas inovações tecnológicas e de pesquisas. Considerando-se a experiência do POETA, algumas recomendações poderiam ser apresentadas. Primeiramente, é importante determinar um claro plano 242 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação de ação, com instrumentos de monitoramento e evolução. Num projeto realista, é preciso saber como medir os avanços. Utilizar muito bem as informações disponíveis é fundamental, não somente para pessoas com deficiência, mas para as organizações em geral. Os governos procuram um melhor uso das informações e elas valem ouro hoje em dia. Elas podem pôr em marcha muitas ações, promover muitas parcerias em ações que, de outra maneira, seriam realizadas pelo setor privado e pelo setor público separadamente. Numa economia emergente, é importante conectar a infraestrutura global e regional ao conhecimento local. Pode-se observar o que há lá fora, as necessidades ou vantagens nas tendências internacionais, especificamente na área da acessibilidade para pessoas com deficiência, em termos de treinamento e inclusão cultural e social. É recomendável utilizar os melhores recursos disponíveis para a colaboração “em tempo real”, com a web 2.0, que permite maior interação. O importante é utilizar os instrumentos que permitam engajar os diferentes usuários. Todos os participantes devem ser engajados no trabalho. Não se trata de um trabalho governamental ou do setor privado ou do terceiro setor isoladamente. É preciso aproveitar as vantagens de todos os setores no desenvolvimento do centro, sua experiência e orientações, de forma que os resultados sejam observados mais rapidamente. Podem-se utilizar outras iniciativas já disponíveis, como a G3ict, a Década das Deficiências nas Américas, etc. A ideia é trabalhar em conjunto para se obter um resultado melhor. Outro ponto é a sistematização das melhores práticas. Às vezes, começamos a trabalhar mas nos esquecemos de sistematizar como as informações podem ser compartilhadas. A tecnologia pode facilitar esse trabalho, com kits de instrumentos que permitem criar um verdadeiro banco de dados, que pode ser útil para o setor privado (na inclusão de pessoas com deficiência e nos seus produtos e serviços), para o governo (na promoção da inclusão entre as pessoas com deficiência ou na comunidade em geral) e para o terceiro setor (para subsidiar os criadores de políticas com informações consistentes). É preciso compreender o novo mercado com o qual interagem as pessoas com deficiência. Para isso, devem-se repensar as estratégias, num mercado com grande potencial. As pessoas com deficiência não devem ser encaradas como um mercado isolado, mas podem apresentar muitas vantagens, de muitas formas. O centro de inovação pode ser um processo para conceber 243 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação ideias, combiná-las, incubá-las e produzir resultados. Não se trata apenas de uma ideia, mas de uma realidade. Basta pensar no que já está disponível e incorporar esses recursos em soluções que facilitem a inclusão de pessoas com deficiência. Pedro Primo Bombonato: Vivemos num mundo com crescente demanda por conhecimento, no qual a perspectiva de poder tem mudado bastante. O poder já não está na mão de governos e pessoas; ele se estabelece onde o conhecimento e a informação estão baseados. Nesse sentido, o conhecimento passa a ser um propulsor do desenvolvimento econômico e social. Numa das encíclicas papais de Paulo VI, há uma expressão que marca a nova perspectiva do entendimento do papel da ciência, da tecnologia, da pesquisa e da inovação no mundo moderno: “o novo nome para o desenvolvimento é a paz.” Nesse contexto, algumas mudanças de paradigma são importantes. Sabemos que o capital humano é essencial para a pesquisa e a inovação. No entanto, essa posição deve ser estudada com outros aspectos e com a inclusão de uma série de outras variáveis, que efetivamente possibilitam que a pesquisa e a inovação se tornem produtos, processos e sistemas acessíveis. Vivemos particularmente num Estado em que os números são muito grandes. Entender o Estado de São Paulo é entender uma grande nação, com grande diversidade cultural. O Estado de São Paulo tem como capital humano cerca de um milhão e meio de estudantes de nível superior, possui 73 universidades e centros de pesquisa, utiliza cerca de 13,5 bilhões de reais no processo de desenvolvimento científico e tecnológico, consome anualmente cerca de 4.500 a 5.000 doutores que ingressam no mercado de trabalho, é responsável por 43% da produção científica brasileira, por mais de 30% da produção de doutores e mestres no Brasil. Esse capital humano é responsável pelo desenvolvimento de produtos, processos, sistemas, serviços e mecanismos que tornam a nossa vida mais plausível. O capital humano foi um conceito introduzido na década de 1950 por Theodore Schultz, com uma perspectiva muito importante, que deve ser ponderada ao se tratar de um centro de inovação, particularmente em São Paulo. Formar pessoas capazes de propor soluções, de gerar conhecimento e criar é realmente muito importante, contudo existem vários outros elementos 244 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação tão importantes quanto o chamado capital humano, que chamamos de “capitais intangíveis”. Quando examinamos a ciência e a tecnologia, devemos também incorporá-las. Os capitais intangíveis estão ligados às instituições, às organizações, o chamado “capital sinérgico” (os ambientes nos quais se produzem as articulações entre os diferentes capitais, capazes de produzir ciência e conhecimento), o chamado “capital social” (que busca a cooperação entre diferentes grupos, as ações coletivas) e, finalmente, o “capital humano”, essencialmente positivo e importante para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Um dos maiores problemas das políticas do Estado, que não seria propriamente um erro, mas uma visão míope da produção do conhecimento para a criação de produtos e sistemas acessíveis, é considerar que a simples transferência de recursos seria suficiente para suportar o processo. Não adianta fazer a transferência de recursos financeiros, sem que haja capital humano habilitado a recebê-los. Não adianta ter um grande centro de acessibilidade, que disponha de equipamentos de última geração, de alta complexidade, se as pessoas não forem capacitadas a utilizá-los. A tendência das estruturas de governo, normalmente, é oferecer dinheiro e equipamento, esquecendo-se do capital humano e do capital intangível. Não apenas os governos incorrem nesse equívoco; as empresas também têm essa perspectiva. No setor empresarial, segundo uma equação utilizada até pouco tempo atrás, para o empresário ter sucesso era necessário buscar o máximo lucro e o mínimo custo. Com isso, conseguiria sucesso. Ao aplicar essa formulação, os produtos e processos com adaptações para pessoas com deficiência eram relegados a um plano secundário, pois não trariam sucesso. Num segundo instante, outro modelo de equação se impôs: o sucesso estaria representado pelo somatório do capital humano, dos capitais intangíveis e dos capitais variáveis (de acordo com Theodore Schultz, eles seriam representados pelas questões salariais e outras). As formulações dessas duas equações já não satisfazem mais. Há necessidade de outro modelo, que estabeleça a acessibilidade pelo desenvolvimento de novas pesquisas científicas e tecnológicas. Pode-se dizer que, nessa nova equação, o capital humano seria potencializado e somado aos capitais intangíveis, ao capital fixo (representado pela materialidade, pela instrumentação) e ao capital variável (os salários). Por que o deficiente tem um salário menor que a pessoa sem deficiência? A nova equação do mundo empresarial introduz a questão da inovação e de como a inovação pode ajudar a tornar o mundo mais acessível. Na verdade, 245 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação na equação ideal a inovação, a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico garantirão maior competitividade e, quando aplicados em benefício das pessoas com deficiência, serão inversamente proporcionais às práticas de políticas inadequadas. Estas últimas distanciam a pesquisa e a inovação dos mecanismos que possam promover a acessibilidade. Diante dessa nova realidade, é preciso construir uma nova agenda para a tecnologia do conhecimento. O setor empresarial começa a perceber que essa equação está mudando. A nova agenda passa pela percepção de uma série de ações que precisam se adotadas diante da mudança de paradigma do setor empresarial, do setor governamental e das pessoas que desenvolvem ciência e tecnologia no país. É preciso compreender que o modelo de financiamento do governo para a ciência e tecnologia em geral, não somente aquelas voltadas para as pessoas com deficiência, está chegando à exaustão. No Estado de São Paulo, o gasto anual é de cerca de 13,5 bilhões de reais para a ciência e a tecnologia. É preciso construir um novo modelo, com a participação do setor empresarial, do setor privado, no desenvolvimento tecnológico e científico. É preciso também adotar uma política seletiva responsável, que não se limite à transferência de recursos, mas seja alicerçada na formação do capital humano, capaz de receber e incorporar os recursos financeiros, transformando-os em algo importante. Em terceiro lugar, é preciso compreender que a sustentabilidade é uma necessidade social. Sem compreender esses três novos princípios, não será possível construir uma nova agenda para a economia do conhecimento. É preciso aumentar o risco das pesquisas. Atualmente, pesquisamos e desenvolvemos produtos com público garantido. Desenvolver produtos, sistemas e processos para pessoas com deficiência, ao empresário, causa uma grande interrogação. É preciso incentivar o setor privado e o setor público que desenvolve ciência e tecnologia a aumentar os riscos, focalizando as questões, os conflitos, as divergências. Para cada ação proposta e planejada, é preciso construir um instrumento. Para a proposta de um centro de inovação e tecnologia para o desenvolvimento de produtos, processos e sistemas para pessoas com deficiência, é preciso ter instrumentos adequados, para o seu estabelecimento de fato. É uma regra básica de planejamento: para cada item planejado, é preciso ter um instrumento. É necessário contar com um instrumento que promova a instalação desse centro no Estado de São Paulo. Por fim, é preciso 246 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação adotar ações que forcem a transferência de tecnologia. De nada adianta obter conhecimento, se ele não chegar às pessoas que têm necessidade dele. O conhecimento, por si só, não tem o poder da transformação; ele somente tem esse poder quando é transferido e atinge as pessoas que têm essas necessidades. Assim, é preciso analisar uma questão importante na economia do conhecimento: o chamado “custo da oportunidade”. Trata-se de perceber o quanto cada um dos atores (setor privado, órgãos governamentais e sociedade civil organizada) contribuirá com trabalho, recursos financeiros, investimento e suporte para a criação dessa nova proposta de crescimento. O suporte governamental, nesse processo, passa pela construção de um marco regulatório – legislações que permitam o estabelecimento desse novo modelo da economia do conhecimento – e também, ainda que chegando ao estado de exaustão, pelo financiamento destas ações. Independentemente de qualquer ideologia política, todos devem concordar que o governo é um excelente indutor de ações, mas um péssimo mantenedor das mesmas ações. A indução de um modelo em que pesquisa e tecnologia possam chegar às pessoas com deficiência é uma tarefa do Estado, não somente com a formulação do marco regulatório, mas também com o financiamento. Os ambientes econômicos, políticos e legais são algumas condições importantes para que a ideia frutifique. Nós estamos vivendo um instante desse no país. As pessoas começam a perceber que ciência e tecnologia não são um custo social, mas um investimento social. A melhoria da vida das pessoas passa necessariamente pelas universidades e institutos de pesquisa. A roupa que utilizamos, o carro com o qual nos deslocamos, a comida que comemos, a forma como trafegamos, tudo isso em algum instante passou por um laboratório de pesquisa. Atualmente, a percepção social da importância da pesquisa e do desenvolvimento científico já é notória. No instante em que se propõe a pesquisa, a inovação e a necessidade de uma nova construção para o conhecimento, especialmente voltado para atender às pessoas com deficiência, lembramos da história de uma fazendeira, que estava muito perturbada com a presença de um ratinho na casa grande. O ratinho a infernizava e, certo dia, ela resolveu acabar com o ratinho. Foi à cidade, comprou algumas ratoeiras e espalhou-as pela casa. Quando o ratinho viu que a casa estava cheia de ratoeiras, ficou muito abalado e saiu pela fazenda desesperado, gritando por ajuda. O primeiro animal que encontrou foi uma galinha. Explicou que a fazendeira havia colocado ratoeiras na casa 247 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação grande e que precisavam fazer alguma coisa. A galinha respondeu que nunca havia visto uma ratoeira pegar uma galinha; que aquele não era um problema dela. Deu as costas ao ratinho e foi-se embora. Muito aborrecido, preocupado, desgastado e ansioso, o ratinho encontrou o porquinho e comentou o que estava acontecendo. O porquinho também respondeu que aquele não era um problema dele. O mesmo aconteceu com a vaca Mimosa, que também ponderou que aquele não era um problema dela. Sem sucesso, o ratinho voltou para a sua toca e, no meio da noite, ouviu-se um estalo na sala da casa grande. A fazendeira acordou alegre, achando que havia conseguido pegar o rato. Para seu azar, não era o rato, mas uma cobra, que a picou. Ela ficou preocupada, mas voltou a dormir. Na manhã seguinte, apresentou febre e dores pelo corpo. O marido pensou que um bom remédio para aquele estado era uma canja de galinha. Foi até o quintal, matou a galinha e fez a canja. Não adiantou nada, a região da picadura piorava dia após dia. Os vizinhos perceberam o estado da fazendeira e foram ajudá-la. O fazendeiro, reconhecendo a solidariedade dos vizinhos, resolveu servir a eles um almoço. Matou o porquinho, assou-o e serviu uma boa refeição aos seus vizinhos. Afinal, descobriu-se que a cobra era venenosa e a fazendeira acabou morrendo. Como é hábito em algumas cidades do interior, o funeral recebeu muitas pessoas que vieram de longe e se arrastou por muito tempo, até que o fazendeiro resolveu matar a vaca Mimosa para servir aos parentes e amigos que vieram para o funeral. Assim, quando alguém disser que há uma ratoeira na casa grande da fazenda, o problema não é somente do ratinho, mas de todos nós. Ciência e tecnologia para pessoas com deficiência é um problema para todos aqueles que fazem ciência e tecnologia. Ou se muda o paradigma atual ou não sairemos da inércia e do processo medonho de discriminação e exclusão das pessoas com deficiência. Fernando Botelho: O Sr. Fernando relata ter trabalhado nos Estados Unidos por muitos anos (no setor privado e em uma ONG), na Suíça (em uma agência das Nações Unidas e num banco multinacional) e agora no Brasil, como consultor. No seu trabalho em Genebra, no Centro de Comércio Internacional, a diretoria da organização percebeu que era a primeira vez que viam uma pessoa com deficiência exportando serviços. Sugeriram que ele buscasse outros exemplos, em países da América Latina. Pediram 248 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação que ele identificasse vinte exemplos. Depois de passar pela Costa Rica, El Salvador, Peru, Equador, Argentina e Brasil, levantou 144 exemplos. Esses exemplos enfatizaram um questionamento: por que não há mais profissionais com deficiência em atividade no mercado de trabalho? Percebeu-se um potencial enorme de empregabilidade, mas para que se realize esse potencial é essencial que haja oportunidades educacionais, acessibilidade à tecnologia adequada, etc. É claro que o problema não pode ser simplificado, responsabilizando-se exclusivamente a falta de acesso à tecnologia. Como todo problema social sério, seja a pobreza ou o desenvolvimento econômico, não há uma causa isolada. Assim, entre causas políticas, sociais e econômicas, há também uma causa tecnológica. Nos países em desenvolvimento, 99% das mulheres com deficiência são analfabetas e 90% das crianças com deficiência visual não têm acesso à educação (não se trata de uma educação inferior, mas de nenhum acesso à educação). Nos Estados Unidos, dois terços das pessoas com deficiência que querem trabalhar não conseguem emprego. O dado não é apenas atual, nesta época de crise, mas está estável há mais de dez anos. Na Suíça, 70% das pessoas com deficiência não conseguem emprego. Portanto, há uma falha e ela não se deve à falta de dinheiro, pois os dois países citados possuem muitos recursos. Certamente, os recursos financeiros poderiam ser usados mais efetivamente e seriam necessários mais recursos para melhorar o trabalho, mas é preciso pensar também em mudanças estruturais, na forma de trabalho, em como se incentiva a cooperação entre os setores da sociedade e o desenvolvimento tecnológico. Numa comparação entre os anos de 1997 e 2006, com valores corrigidos quanto à inflação, os preços do programa leitor de tela mais vendido no mundo aumentaram mais de 20%, enquanto os preços do computador básico de boa marca caíram mais de 80% no mesmo período. Percebe-se assim que o grande obstáculo está nos programas, e não no hardware. O foco desta comparação é na área de tecnologias assistivas para a deficiência visual, mas o mesmo se aplica às deficiências motoras. O hardware às vezes pode até ser genérico (de uso geral, para outras finalidades), mas o programa pode ser uma limitação. Mesmo quando o programa é doado e utilizado no ensino de um jovem com deficiência, quando este procurar um emprego, precisará tornar-se altamente competitivo e encontrar o emprego em grandes empresas, pois uma empresa pequena provavelmente não poderá comprar o programa. Assim, em vez de gerar uma situação de auto-suficiência, o programa gera 249 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação dependência. Aquela doação “amarra” a criança a uma coleção de conhecimentos específicos, que depois não a ajudam, a não ser nos poucos casos (1% a 5%) de pessoas cegas que têm acesso à tecnologia de que necessitam e podem competir no mercado de trabalho. Outras restrições importantes são a impossibilidade de instalação em vários computadores, impedindo o seu uso em estágios – uma das maneiras mais efetivas de uma pessoa com deficiência mostrar que é competitiva, produtiva, e de se educar o empregador. Em relação à vulnerabilidade financeira, já se mencionou a situação de uma solução que a pessoa com deficiência, sua família ou seu empregador não conseguem comprar. Depender de caridade geralmente não é uma boa estratégia. Entretanto, há também uma vulnerabilidade tecnológica. Quantos já não despenderam tempo e dinheiro aprendendo a utilizar os programas Wordstar ou Wordperfect? O mesmo valeria, por exemplo, para o primeiro programa leitor de tela feito para Windows, o SlimWare Window Bridge. Dois meses depois que o principal programador da empresa que distribuía o produto sofreu um acidente, a empresa fechou. Assim, todo o investimento feito por pessoas, empresas e governos para o uso desse programa foi perdido. No desenvolvimento de soluções de acessibilidade, o trabalho de toda a sociedade em conjunto é claramente uma necessidade. Nem o setor, nem o setor público ou as ONGs serão capazes de fornecer todas as respostas isoladamente. As tecnologias envolvidas, em geral, são muito básicas, como a de um sintetizador de voz. Quando um “bloco de tecnologias”, com apoio do governo, é disponibilizado como programa livre, que pode ser modificado por qualquer pessoa, sem o controle de uma entidade que pode ou não ter os mesmos interesses da comunidade, muitas empresas aproveitam a tecnologia e desenvolvem produtos finais, como leitores de tela, programas para digitalizar livros, etc. São blocos utilizados na construção de uma solução final para o cliente. As iniciativas realizadas com recursos públicos, em longo prazo, estrategicamente deveriam ser disponibilizadas de maneira livre. Os governos mudam, as empresas mudam, algumas vão à falência, outras têm um interesse estratégico que não convém à sociedade. Diversas vulnerabilidades estratégicas podem ser evitadas quando a tecnologia básica está disponível livremente. Um dos projetos da Botelho & Paula é uma solução completa para deficientes visuais, instalada em um pendrive, que utiliza somente 250 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação programas livres. A metodologia final para criar a tecnologia será distribuída em vários países da América Latina. No Brasil, esse conhecimento começará a ser distribuído por meio de parcerias já firmadas. Um dos maiores contribuintes para essa tecnologia é o leitor de tela Orca, da Sun Microsystems, empresa que está sendo adquirida por outra empresa. Tipicamente, quando se trabalha com tecnologias fechadas, num caso como esse não se sabe se a nova empresa cancelará o projeto, se considerará aquele produto estratégico a longo prazo, se manterá uma filosofia de inclusão... Como se trata de um programa livre, a preocupação neste momento é firmar um contrato para se criar uma versão em árabe do pendrive, mas a eventual perda de interesse não é uma preocupação. Caso o projeto seja abandonado na nova empresa, os seus talentos ligados ao programa trabalharão para outras empresas, que já contribuem para o mesmo projeto. Portanto, trata-se de uma indústria que não é muito bem compreendida pelas instituições atuais. Há muitos monopólios (e novos estão sendo criados). A dinâmica de mercado do mundo digital é muito diferente daquela do mundo de hardware, que as nossas leis conseguem regulamentar e monitorar com maior efetividade. Aparentemente, uma solução para os problemas de tendência ao monopólio seria a mesma proposta que visa a garantir a acessibilidade a longo prazo: todo o esforço governamental regulatório, de incentivo fiscal ou de financiamento de pesquisa e desenvolvimento deve incentivar os padrões abertos: protocolos de comunicação, formatos de arquivos e interfaces. Citamos um exemplo. Nos anos 1990, nos Estados Unidos e em muitos outros países, houve a popularização do e-mail. No final dos anos 1990, houve a popularização do instant messenging (sistemas de mensagens instantâneas). A diferença, não somente para quem é surdo, mas também para quem é cego, é que uma das empresas que desenvolveram programas de instant messenging fez um sistema completamente inacessível. Houve um processo legal, no sistema judiciário americano, lento e caro, não somente para os indivíduos envolvidos diretamente, mas também para a sociedade. Durante aquele tempo, os deficientes não puderam participar das oportunidades sociais, educacionais e de negócios, das quais as pessoas com acesso àquela tecnologia podiam participar. As ONGs, o Governo e as empresas não souberam lidar com aquela tecnologia muito nova. Não se pode criar uma legislação que regulamente o acesso a tecnologias que nem mesmo se sabe como funcionarão. As ONGs já têm problemas suficientes com as suas dificuldades atuais; a maioria não tem 251 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação recursos para olhar o futuro ou novidades recém-lançadas. As empresas têm muitas pressões competitivas; preocupam-se com 85% ou 90% do mercado, pois querem ser as primeiras a chegar com uma solução nova no mercado. No mundo digital, a competição, os monopólios e o controle do mercado compõem uma dinâmica tão radical que aqueles que chegam primeiro têm uma vantagem desproporcional. Assim, nenhum dos três setores foi efetivo em assegurar que a tecnologia de mensagens instantâneas fosse acessível às pessoas com deficiência. Por que o e-mail não teve a mesma controvérsia? Quando o e-mail foi popularizado, nem o terceiro setor, nem o governo, nem o setor privado eram mais efetivos ou conhecedores das necessidades das pessoas com deficiência do que na época em que as mensagens instantâneas foram lançadas. Por que então não houve o mesmo processo legal? Ocorre que, como a maior parte das tecnologias fundamentais da internet, o e-mail está baseado em padrões e protocolos de comunicação abertos. Não é preciso pedir autorização a nenhuma empresa, nenhum governo ou ONG, não é preciso licenciar nenhuma patente para criar um programa que saiba enviar e receber e-mails. No mercado, havia uma enorme variedade de clientes de e-mail. O cego que não podia utilizar um determinado programa simplesmente utilizava outro. Esse é o segredo para a competitividade, para a inovação e para a acessibilidade. Com competição e diversidade, o próprio usuário escolhe o que precisa. Aqueles que forem mais efetivos em escutar a voz do usuário terão mais sucesso na comunidade e evoluirão no seu plano de negócios. Já se identificaram algumas tecnologias interessantes, baseadas em padrões livres: o leitor de tela (Orca) já mencionado, um ampliador de tela, um programa de entrada de dados para pessoas com deficiência motora, como paralisia cerebral, chamado Dasher. Compreendendo as dificuldades do usuário comum, todos esses programas foram instalados e pré-configurados num pendrive. Com uma simples modificação no BIOS do computador, na presença do pendrive o computador carrega o sistema operacional e os aplicativos contidos no pendrive (editor de texto, planilha eletrônica, leitor de tela). Os arquivos do usuário são também gravados no pendrive. Assim, tecnologias gratuitas e livres, em alguns casos de instalação muito complexas, agora estão disponíveis no Brasil, por uma empresa brasileira, em pendrives que podem ser usados por qualquer pessoa. A ideia é produzir versões para alunos que querem ter todos os programas de matemática avançada num 252 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação único conjunto, versões para pessoas com outras deficiências, etc. Outra ideia é aproveitar um projeto da comunidade europeia, que disponibiliza programas livres para pessoas com deficiência. Um programa que será livremente distribuído faz um rastreamento dos movimentos oculares com uma webcam. Trata-se de um dispositivo barato, que permitirá emitir comandos e escrever no computador com os movimentos dos olhos. No momento em que uma das pequenas empresas envolvidas na distribuição das soluções mencionadas aqui tornar-se cara, demorar a atender a uma ligação ou ficar desatualizada na tecnologia, os clientes procurarão outro fornecedor de tecnologia. Essa é a garantia de qualidade, de inovação e evolução, por uma questão de sobrevivência. O mesmo vale para aquele que utiliza a tecnologia para obter um emprego. Portanto, é preciso pensar estrategicamente, em critérios para o apoio a projetos que promovam protocolos de comunicação livres, arquivos padronizados, que qualquer pessoa ou empresa possa melhorar ou incorporar aos seus programas, e interfaces acessíveis. Assim, ninguém dependerá de uma única entidade. Todas as empresas, grandes ou pequenas, mencionadas aqui cometeram erros graves, do ponto de vista de uma visão estratégica e do interesse na acessibilidade. Convém criar um ambiente competitivo e inovador, que funcione a longo prazo. Claudinei Martins: Num instituto de pesquisa ou numa empresa em geral, o ciclo de inovação é um processo interativo, em que as atenções estão voltadas ao mercado, focadas na pesquisa, no desenvolvimento e na entrega do produto ao mercado. Para alimentar o ciclo de inovação, basicamente conta-se com dois tipos de ações: programas de pesquisa e desenvolvimento (P&D), muitas vezes fomentados por instituições públicas e privadas, e ações comerciais. Alguns produtos levam a gerar ações que acabam sendo soluções comerciais. Um novo produto nasce de uma necessidade do mercado. Há uma mobilização por parte de um grupo específico, alguma empresa, algumas pessoas, preocupados com uma situação, acabam procurando centros de pesquisa capacitados naquela área (no caso do CPqD, em telecomunicações inicialmente e, atualmente, em tecnologia da informação e comunicação), promovem ações de P&D. Recursos são captados nas empresas e nos órgãos públicos, que gerem pesquisas em inovações com base nesse fomento. Ocorre 253 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação também a adaptação de um produto, de maneira “natural” ou por percepção da oportunidade. Um produto concebido com determinado intuito acaba sendo inclusivo em outros aspectos. O primeiro grande produto com o qual o CPqD trabalhou foi o telefone para surdos. Na época, em 2002, uma empresa importava esse produto do mercado externo, a custos elevados, sem qualquer incentivo. A proposta era criar um produto nacional. Como já havia uma base instalada do produto estrangeiro, a tecnologia foi mantida, para preservar a compatibilidade entre os produtos que já estavam em uso e aquele que seria criado. O telefone para surdos permite o diálogo entre duas pessoas por meio de texto, com o uso de uma linha telefônica convencional. O processo de produção nacional começou com a solicitação de uma empresa do mercado interno, em 2003. Seguiu-se um período de investigação, no qual a tecnologia foi compreendida, aproveitando-se a expertise da empresa na área de telecomunicações. As normas brasileiras de telecomunicações deviam ser respeitadas. Essas legislações muitas vezes diferem de estado para estado, país para país e em blocos de nações, como a Comunidade Europeia, por exemplo. Num processo relativamente rápido, em 2004 o CPqD apresentou o primeiro protótipo da tecnologia. A etapa final do processo foi a transferência da tecnologia para a indústria. Em determinado momento da pesquisa, o conhecimento permanece somente com a entidade encarregada daquela pesquisa, mas depois é preciso que o conhecimento retorne para a sociedade. Os centros de pesquisa não fabricam produtos, mas as empresas. Assim, o retorno do conhecimento para as empresas é que torna os produtos factíveis. É uma maneira de fazer os produtos chegarem aos setores da população que necessitam daquele recurso. O primeiro produto gerado foi um modelo residencial híbrido, para ouvintes e para surdos. Depois, foi feita a versão pública, que utiliza um cartão magnético indutivo, pois a telefonia pública no Brasil funciona com esse tipo de cartão. Assim, uma pessoa que estivesse na rua, com um cartão telefônico comum, poderia fazer a ligação telefônica orientada ao surdo. Para fechar o ciclo, é preciso criar um “ecossistema”. Não se pode limitar o processo à entrega da ferramenta, simplesmente recomendando o seu uso. É preciso gerar premissas e condições para que a tecnologia seja efetivamente utilizada. Entendeu-se que o mercado precisava de um dispositivo mais eficaz, em relação à maneira como as pessoas são atendidas. No Brasil, houve uma 254 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação migração muito grande para os call centers. Assim, o produto, que nasceu da necessidade de proporcionar acessibilidade nos centros de atendimento telefônico das grandes empresas, pôde ser conectado a um computador pessoal e ser utilizado num connect center. Dessa maneira, procurou-se fechar um ciclo, criar um “ecossistema”, uma cultura disseminada de uso da tecnologia. Não adiantaria fornecer um aparelho a uma pessoa que não poderia ligar a ninguém. Outro produto interessante foi o conversor texto-fala ou sintetizador de voz. É uma tecnologia muito utilizada nos leitores de tela, que não nasceu para essa finalidade. As pesquisas começaram em 1992, época em que a tecnologia não era trivial no Brasil. Em 1995, chegou-se a uma primeira versão, com muitas limitações e uma voz que não era muito clara. Novas versões foram surgindo desde então. Portanto, fomentar uma tecnologia pode trazer resultados num primeiro momento, mas é importante também manter o trabalho e acompanhar a evolução tecnológica. Inicialmente, começou-se a utilizar os sintetizadores de voz nos call centers, nas chamadas “unidades de resposta audível” executadas automaticamente quando ligamos para um telefone equipado com um sistema desse tipo. Esse foi o primeiro foco desse tipo de tecnologia; o segundo foi nas forças de trabalho. Os técnicos das operadoras de telecomunicações em campo carregavam maços de papel; trabalhavam nos postes utilizando as duas mãos e precisavam que as informações fossem utilizadas de forma mais organizada. Assim, as ordens de serviço passaram a ser feitas com sistemas desse tipo. O operador, no alto do poste, liga para a central e ouve a próxima tarefa a cumprir. Já não precisa carregar todo aquele papel e o atendimento ficou mais ágil. Em meados de 2005 começou um projeto dessa natureza no CPqD. Existem atualmente muitos exemplos de leitores de tela; os mais usados são os mais completos. Houve um projeto de fomento do Governo que resultou num produto em 2007, época em que o seu desenvolvimento cessou, pois não houve mais evolução. A tecnologia e os sistemas operacionais evoluíram, os computadores também, e o sistema ficou “engessado” naquele momento. Assim, manter a tecnologia é uma das questões mais importantes para a economia do conhecimento. Assim como uma empresa pode fechar, um produto também pode “morrer” por falta de evolução. O sistema de sintetizador de voz foi utilizado também em caixas automáticos de bancos, até por força de legislação: a pessoa cega conecta o seu fone de ouvido, a tela apaga e, a partir daí, começa a interação com o caixa eletrônico por comandos 255 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação de voz e mensagens de voz sintetizada. Ao contrário do telefone para surdos, o ciclo do sintetizador de voz foi bastante longo. Entre 1992 e 2008 ou 2009, houve um longo período de pesquisa e desenvolvimento. Pesquisas com características muito específicas, como esta, mobilizam profissionais muito qualificados e, portanto, não são baratas. Não se consegue treinar profissionais “a toque de caixa” para o desenvolvimento de certas tecnologias. Assim, a cultura das pesquisas exige um foco em determinada área de atuação. Um terceiro exemplo seria uma tecnologia muito atual, que vem sendo divulgada no último ano. A UNICAMP contribuiu com o processamento de imagens e o CPqD, com a síntese de fala num trabalho conjunto para prover um mecanismo mais universal, que se aproxima do chamado desenho universal. A evolução da tecnologia tem proporcionado isoladamente a interação com equipamentos e pessoas de formas diferenciadas. Ocorre que a nossa comunicação não está somente no que falamos, mas no que vemos de expressão facial, no comportamento do nosso interlocutor, etc. Esse é um dos grandes desafios que temos pela frente: humanizar a comunicação digital. De fato, por telefone ainda se consegue perceber, pelo tom de voz das pessoas, o seu estado de espírito. Num comunicador, pode-se colocar uma “caretinha”, que eventualmente indicará que o interlocutor está bem, mesmo que ele não esteja. São questões que extrapolam o âmbito da tecnologia em si, passando à personalização da comunicação. Estamos cada vez mais imersos num mundo digital; as crianças já estão crescendo em contato com comunicadores, participam de redes sociais, colocam fotos na internet, etc. Entretanto, essas atividades não garantem o relacionamento interpessoal. Há mais de trinta anos, nossa comunicação baseia-se em três elementos: teclado, mouse e monitor. Essa forma de interação perdurou até agora, mas as formas de interação estão mudando. Nos próprios videogames, estamos interagindo com joysticks com movimento. Se o sistema pode interpretar o movimento... Os sistemas de reconhecimento de fala estão cada vez melhores, mais independentes da pessoa que fala. Se qualquer pessoa pode falar e ser reconhecida... Essas mudanças, que estão sendo chamadas de interfaces intermodais ou multimodais significam que o sistema deve aprender a se comunicar da maneira com a qual a pessoa se comunica. Outro centro de pesquisas da região de Campinas trabalha com os poucos movimentos de uma pessoa com paralisias, como suspiros, piscar de olhos, etc. Já é possível utilizar gratuitamente um sistema de rastreamento dos movimentos oculares. As ferramentas devem ser construídas de maneira universal, não devem se 256 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação limitar a uma forma de comunicação, mas entender e retornar ao usuário de maneira que ele entenda. Esse é o grande desafio que temos pela frente. O Sr. Claudinei apresenta uma breve animação demonstrativa do dispositivo de síntese de voz e animação facial, com o seguinte texto: “Olá, participantes do Primeiro Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência. Esta é uma demonstração da pesquisa com animação facial 2D, desenvolvida pelo CPqD em conjunto com a UNICAMP. Obrigada.” Trata-se da foto de uma pessoa com movimentos labiais sincronizados com a fala. O sistema utiliza vários recursos: a voz (para aqueles que não enxergam) e o movimento labial (para aqueles que não ouvem). Esse protótipo movimenta apenas a boca, mas no futuro os movimentos de LIBRAS podem ser incorporados, incluindo mais pessoas aos usuários em potencial. É uma pesquisa ainda inicial. Os sistemas de reconhecimento de face já são capazes de detectar a expressão facial das pessoas. O que ocorre é que as iniciativas estão muito pulverizadas, dispersas. Ainda não há um padrão que garanta que a tecnologia A será compatível com a tecnologia B. Daí a importância de se utilizar protocolos abertos, com uma funcionalidade que proporcione acessibilidade. Essa prática é fundamental para a construção universal. Outra ferramenta é uma solução para ensino a distância. Uma solução desse tipo, geralmente, fornece uma área de vídeo, uma área multimídia (para apresentações, imagens, etc.) e uma área de áudio. Não é necessário fazer nenhuma alteração numa ferramenta desse tipo; basta criar um conteúdo em LIBRAS. Se tivermos o conteúdo em LIBRAS (o áudio e a parte escrita), atenderemos pessoas cegas e surdas, com a mesma ferramenta. Basta que instituições de ensino passem a criar conteúdos (como reforços de aulas, por exemplo), que sejam publicados de forma mais abrangente, sobre os temas das aulas presenciais. Assim, será possível colocar pessoas atualmente excluídas na educação tradicional, numa iniciativa muito interessante que tem sido fomentada pelo Governo: a Escola Para Todos. Para isso, é preciso contar com algumas ferramentas. É aí que entra a tecnologia. A tecnologia é um elemento acessório, que pode dar um suporte, com o qual as pessoas com deficiência podem ter o mesmo nível de aprendizado que as pessoas que não têm essas necessidades. 257 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Um projeto que está em andamento no CPqD é o STID (Soluções de Telecomunicações para Inclusão Digital). Trata-se de uma iniciativa do Governo Federal, em parceria com o Governo do Estado de São Paulo. Dentre as tecnologias disponíveis, estudou-se uma forma de interação com foco no indivíduo. Num mesmo grupo, as pessoas têm necessidades diferentes. O sistema STID foi construído com base em dois componentes muito utilizados pela população geral: marcação de consultas dos serviços de saúde e a previdência social. O sistema conta com um leitor de telas (uma pessoa cega pode usar), tem um “avatar” que se comunica em LIBRAS e, sempre que necessário, uma explicação contextual sobre a área ativada pelo usuário. O sistema reconhece a pessoa, com o uso de webcams e, a partir desse reconhecimento, configura-se automaticamente para as necessidades daquela pessoa, com base num cadastro feito previamente. O sistema STID está instalado em dois telecentros no interior do Estado de São Paulo. Numa pesquisa com os usuários sobre quais recursos seriam mais convenientes, identificou-se outro grupo que inicialmente não estava previsto. Trata-se de uma realidade brasileira: uma parcela considerável da população geral possui baixo letramento (analfabetos ou os chamados analfabetos funcionais). Esse grupo também estava excluído do mundo digital, porque não teve acesso à educação. Uma adaptação do leitor de telas foi batizada de ALFA (Auxílio à Leitura e Fixação do Alfabeto). Com a ajuda dos monitores dos telecentros, as pessoas começam a usar o computador com uma interface mais intuitiva, sem que precisem saber ler e escrever. As explicações não se limitam ao texto na tela; faz-se uma explicação do conteúdo de várias formas, permitindo que a pessoa entenda o que o sistema quer dizer. Uma das interfaces do sistema é o “Previdência Fácil”, que tem vários bonequinhos com características específicas para ajudar o usuário a se enquadrar em determinadas condições previdenciárias (um deles usa uma muleta, indicando acidente do trabalho ou alguma dificuldade física, outro usa um chapéu, indicando o trabalhador rural, etc.). Quando o usuário clica num desses bonecos, o sistema fornece uma série de informações, contando uma história, que pode ser acompanhada por outras pessoas da fila. Essa solução foi sugestão dos próprios usuários do sistema. Os resultados do estudo levam à formulação de recomendações; não têm um caráter regulatório ou de fiscalização, mas orienta para que os conteúdos sejam apresentados de maneira mais aberta, mais clara e acessível. 258 Economia do Conhecimento – Tecnologia e Inovação Lembramos que o ciclo produtivo envolve a participação de diversos elementos, numa interação bastante complexa: indústria, universidade, governo, empresa, pesquisa e tecnologia, produto, cliente e aplicações. Todos esses elementos podem estar concentrados dentro de grandes corporações, mas, fora das grandes empresas, observamos essas ações isoladas. Elas precisam ser coordenadas. Daí a importância das ações regulatórias do governo, dos eventos que acabam unindo as tecnologias e divulgando as informações. Uma solução isolada pode não resolver o problema, mas servir para que outra solução o resolva. A base da economia do conhecimento envolve educação, know-how, expertises, necessidades especiais e regionalidades (incluindo legislação e cultura). A tecnologia não é o fim, mas o meio. Ela dá suporte, incluindo a competitividade, a globalização, as fontes de fomento, as políticas e a propriedade (esta última uma questão complexa: a proteção do conhecimento precisa ser revista). A finalidade é a inclusão digital, que envolve a inovação, novos serviços e produtos, que garantam a acessibilidade e a igualdade. 259 Residências Inclusivas É notória a importância da família na vida das pessoas com deficiência. Na ausência do suporte familiar, o Estado deve oferecer condições para garantir a dignidade desses indivíduos. Existem experiências bem-sucedidas de residências inclusivas que são modelos de serviço público a serem replicados. Tuca Munhoz (moderador) – Presidente do Instituto MID para a participação social das pessoas com deficiência Nikola Lafrenz – Secretária Executiva do Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais da República Federal da Alemanha - Berlim, RFA Elvira Cortajarena Iturrioz – Delegada do Governo Basco na Argentina, representante da Espanha Isabel Cristina Pessoa Gimenes – Secretária Municipal da Pessoa com Deficiência - Rio de Janeiro, RJ Vânia Melo Bruggner Grassi – Diretora Técnica da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Bauru - APAE - Bauru, SP Nikola Lafrenz – Secretária Executiva do Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais da República Federal da Alemanha – Berlim/RFA A República Federal da Alemanha é um país densamente povoado. Sua população é de cerca de 82 milhões de pessoas, numa área de aproximadamente 360 mil quilômetros quadrados, o que corresponde a uma densidade populacional de 200 habitantes/km2. Para fins de comparação, a densidade na Europa como um todo é de 116 habitantes/km2 e no Brasil, salvo engano, é de 23,9 habitantes/km2. É claro que esse valor não vale para metrópoles como São Paulo, onde a densidade é de mais de 7 mil habitantes/ km2, muito mais alta que a de Berlim, com cerca de 4 mil habitantes/km2. Residências Inclusivas Como na maioria dos países industrializados, a geração de jovens alemães é relativamente pequena. Observa-se um contínuo aumento da expectativa de vida, com crescimento proporcional dos idosos na estrutura etária. Em 1950, a maioria da população tinha menos de 20 anos de idade. Atualmente, a proporção entre jovens e idosos é aproximadamente meio a meio e, em 2050, cerca de 30% da população terá mais de 65 anos de idade, enquanto somente 16% terá menos de 20 anos. Na Alemanha de hoje, há mais pessoas com 65 anos ou mais do que jovens de 15 anos ou menos. Por muitos anos, houve uma tendência a famílias menores. São extremamente raros os lares com mais de cinco pessoas e o número de lares com uma pessoa só está aumentando, particularmente nas grandes cidades. Assim, é cada vez menos possível basear-se no papel tradicional das famílias, de prover cuidado e apoio aos idosos e deficientes. Na Alemanha, 8,6 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência, o que corresponde a aproximadamente 10,5% da população total. Lá, faz-se uma distinção entre deficiência e deficiência grave, e o grau de deficiência é medido com uma graduação de dez em dez pontos. As pessoas com deficiência de 50 pontos ou mais são consideradas gravemente incapazes. Se vivem ou trabalham na Alemanha, têm direito a um apoio especial: assistência específica à sua deficiência, folgas extras remuneradas, uma proteção especial contra demissão e atribuição de tarefas especiais. Do total de pessoas com deficiência na Alemanha, 6,9 milhões têm deficiência grave, o que corresponde a 8,2% da população total. Com o aumento da idade, estima-se que a proporção de pessoas com deficiência ou deficiência grave aumente. Somente 5% das pessoas com deficiência nasceram com elas, o que significa que mais de 90% de todas as deficiências são adquiridas durante a vida. É mais uma razão para que todos se preocupem com o assunto. Todos nós podemos sofrer uma deficiência, causada por acidente ou doença, a qualquer momento. Seguindo a tendência demográfica, o número de pessoas com deficiência deveria ser ainda maior, mas, em decorrência da política de extermínio nazista, que resultou no desaparecimento de toda uma geração de pessoas com deficiência mental ou física, não há na Alemanha experiência com o envelhecimento das pessoas com deficiência mental. O grupo atual de 65 anos de idade ou mais constitui a primeira geração de pessoas idosas com 262 Residências Inclusivas deficiência, nascidas após a Segunda Guerra Mundial. Portanto, não há dados confiáveis sobre o desenvolvimento de problemas relacionados à idade. A Alemanha possui uma tradição secular em instituições de atendimento a pessoas com deficiência. A situação começou a mudar somente em 1975. Antes, as pessoas com deficiência mental viviam principalmente em instituições psiquiátricas, pois não havia outros tipos de residências para essa finalidade. Cegos e muitas outras pessoas com deficiência grave estranhamente viviam naquelas instituições. Depois de 1975, um novo conceito se desenvolveu. As enfermarias psiquiátricas foram transformadas em grupos de residência. Centros de atendimento a deficiência foram criados, oferecendo o diagnóstico, tratamento, instalações para moradia, lares abrigados com enfermagem, oficinas de trabalho protegido, escolas para necessidades especiais, opções de lazer e residências adaptadas às necessidades das pessoas com deficiência. Ao mesmo tempo, a condição das pessoas com deficiência também mudou. Já não eram pacientes privados dos seus direitos e responsabilidades, mas residentes nessas moradias, com amplos direitos próprios. Entretanto, o princípio do atendimento apropriado e abrangente continuava insuficiente para atender aos desejos e expectativas das pessoas com deficiência. No início dos anos 1980, novos conceitos de instituições baseadas na comunidade começaram a surgir como alternativa ao atendimento institucional. O principal objetivo era a organização em pequenas residências e o acompanhamento de apoio pedagógico na comunidade local. Em alguns casos, foram organizadas casas de acolhimento de grupos, num conceito que ainda evocava os antigos lares. Em outros, foram criados espaços de convivência, compostos de uma sala de convivência, banheiros e toaletes adaptados e um quarto privativo para cada residente. Alguns projetos incluíam também apartamentos individuais. Contudo, essas novas estruturas estavam disponíveis somente a um pequeno número de usuários, pois inicialmente os fundos para o seu financiamento não eram suficientes. A acomodação em instituições continuava sendo a mais comum. Atualmente, as pessoas com grave ou múltiplas deficiências vivem nessas residências, que necessitam de atendimento especializado, vivem com suas famílias ou nas residências inclusivas descritas. Ainda há mais de cinco mil lares para deficientes na Alemanha, oferecendo um total de 80 mil vagas. 263 Residências Inclusivas Nesse contexto, infelizmente ainda há locais nos quais as pessoas com deficiência particularmente grave são colocadas em lares abrigados para idosos, o que não é adequado. Nesses lares, eles não têm contato com outros jovens e há poucas atividades diárias de rotina. É pequena a porcentagem de pessoas com deficiência grave ou que necessitam de cuidados constantes que, com o apoio necessário, já são capazes de viver de maneira independente em acomodações individuais. A política, contudo, é abandonar a acomodação institucional. Nos últimos dez anos, a política concentrou-se em oferecer às pessoas com deficiência a oportunidade de viver a sua vida com autodeterminação. Este princípio foi incorporado à legislação, garantindo que as pessoas com deficiência tenham o que necessitarem para participar da sociedade. Na reabilitação e nas residências inclusivas, o princípio é “tratamento ambulatorial antes do institucional”. Todas as leis relacionadas estipulam a preferência das medidas ambulatoriais. Na Alemanha, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência deu um novo reforço a esses esforços. Utiliza-se o termo “ambulatorial” para indicar que o indivíduo não está preso à instituição e que os cuidados e a assistência necessários são fornecidos onde quer que a pessoa com deficiência física, mental ou psicológica viva. Para garantir a sua autodeterminação, as pessoas dispõem de diferentes opções: viver com a família, possivelmente uma família escolhida, viver num apartamento individual ou num lar abrigado. É claro que outra opção é viver numa “residência de apoio”. Isso significa que não haverá necessariamente atendimento ambulatorial disponível para as pessoas com deficiência 24 horas por dia, mas de acordo com as necessidades da pessoa. A natureza e a extensão da assistência são determinadas caso a caso. Qual o significado da expressão “residência de apoio”? Nela, as pessoas vivem sós ou com uma ou várias pessoas, em um apartamento individual. Uma ou várias vezes por semana, um atendente vai ao local ajudar nas atividades cotidianas que os residentes não conseguem fazer por si sós. Tudo o mais é de sua própria responsabilidade. Assim, os residentes têm uma vida independente e autodeterminada, até onde suas capacidades permitirem, com todos os direitos, mas também todas as obrigações. 264 Residências Inclusivas O conceito de assistência pessoal, ou seja, uma pessoa que preste o apoio necessário, foi desenvolvido por pessoas com deficiência física, capazes de realizar as tarefas definidas no conceito. Uma pessoa com deficiência física contrata um assistente que, se necessário, presta o apoio até 24 horas por dia. A pessoa com deficiência é o empregador e dá instruções ao seu assistente. Por outro lado, deve arcar com as substituições nas folgas e afastamentos por saúde e agir como um empregador. Nem sempre é fácil. As pessoas com deficiência mental ou com dificuldades de aprendizado podem atuar como empregadores somente até certo ponto. Elas necessitam de assistência e apoio de outras pessoas para viver com autodeterminação numa residência inclusiva. Na Alemanha, há diversas possibilidades para permitir que uma pessoa com deficiência viva fora das instituições. No caminho da vida independente em uma moradia individual, as pessoas com deficiência frequentemente passam por um treinamento ambulatorial em atividades cotidianas, residências de apoio abrigadas ou experiências de vida independente, em apartamentos fornecidos especificamente para esta finalidade. Muitos modelos procuram encontrar novas formas de ajudar as pessoas com deficiência mental a deixarem os lares abrigados e treiná-las para a vida independente. Antes de saírem da instituição, as pessoas precisam aprender a realizar atividades cotidianas, como cozinhar, limpar a casa, cuidar das contas pessoais e arrumar a casa. Esse tipo de apoio deve ajudar as pessoas com deficiência mental a aumentar a sua capacidade de lidar com as atividades da vida diária. As pessoas com deficiência física também podem precisar de treinamento para as atividades cotidianas. As pessoas com deficiência grave precisam ser preparadas para a vida independente, de acordo com as suas necessidades, e devem ter a oportunidade de influenciar as suas condições de vida. Todas essas medidas procuram tornar possível que as pessoas com ou sem deficiência vivam juntas, da maneira mais normal possível, na comunidade. Uma das iniciativas de participação da vida da comunidade são os chamados “grupos de participação local”. Numa atitude natural baseada na parceria, nesses grupos procuram conviver pessoas com e sem deficiência. É crescente a noção na nossa sociedade de que as pessoas com deficiência grave são capazes de viver nas suas próprias casas, desde que recebam o apoio 265 Residências Inclusivas adequado e que se compreenda a necessidade de um ambiente inclusivo para a implementação desse modo de vida. Assim, é preciso trabalhar ainda mais para que sejam criadas na Alemanha estruturas que permitam às pessoas com deficiência viverem de maneira independente na sua comunidade. Isso significa que os seus lares, e também o ambiente ao redor dos lares, devem ser acessíveis e livres de barreiras. Além disso, essas pessoas devem ter à sua disposição uma variedade de escolhas de atendimento e equipamentos. As pessoas com deficiência devem ser integradas à comunidade e pelo menos os edifícios públicos devem ser projetados de forma a serem acessíveis a pessoas com ou sem deficiências. Em relação ao ambiente livre de barreiras e à participação, o governo alemão subsidia mais de quarenta projetos dentro do programa de casa-modelo construída por serviços de assistência aos cidadãos idosos ou com deficiência. Os projetos exploram novas ideias relacionadas à assistência e ao atendimento, mas também à participação e à inclusão. Eles buscam vários objetivos: a qualidade dos cuidados aos idosos deve ser comprovada, mas é necessário também promover o potencial dos idosos, pois a sociedade necessita urgentemente desse potencial. Todos esse projetos buscam modelos inovadores de vivência, que possam ser implementados nas comunidades. Não focalizam somente os idosos, mas consideram também as necessidades especiais de pessoas com deficiência. As chamadas “pessoas sem deficiência” podem muitas vezes aprender talentos e habilidades com as pessoas com deficiência. Esses projetos, portanto, também buscam transformar o conceito de bem-estar social e introduzir o conceito de autodeterminação, participação e inclusão. A ideia é participar da vida diária da comunidade, estabelecer uma vida autodeterminada e redes sociais, com o envolvimento de todos os serviços disponíveis. É realmente importante que a assistência administrativa e os serviços de enfermagem, bem como as pessoas de contato nas prefeituras persigam os mesmos objetivos que as pessoas com deficiência, de forma que todos os esforços sejam efetivos e coordenados. Em muitos municípios, as agências de assistência foram organizadas recentemente. Essas agências devem proporcionar melhor assistência às pessoas com deficiência e seus familiares, com serviços seguros, flexíveis, ajustados às necessidades individuais. 266 Residências Inclusivas Viver na comunidade não significa apenas viver no próprio apartamento. O sonho de maior independência para muitas pessoas inclui também um emprego fora das oficinas de trabalho protegido para as pessoas com deficiência. O acesso ao mercado de trabalho regular é também um objetivo definido atualmente. Criou-se o modelo de apoio ao emprego, que proporciona apoio à pessoa no local de trabalho, até que ela possa lidar com as suas tarefas sem auxílio. Assim, a conscientização é realmente cada vez maior. As pessoas estão percebendo que mesmo as pessoas com deficiência grave ou que necessitam de cuidados de enfermagem merecem o mesmo respeito e têm os mesmos direitos que todos os outros. É uma noção que encontra apoio no princípio constitucional de que “ninguém pode sofrer discriminação por conta de sua deficiência”. A palavra alemã wohnen, que significa “viver, residir”, no idioma antigo originariamente significava “estar em paz, contente, e protegido contra danos e ameaças”. Este significado também deve ser respeitado nesse processo. Ter o próprio apartamento ou, ao menos, o próprio quarto privativo numa acomodação protegida significa que todos devem fazer um esforço especial e tornar-se parte ativa do processo. A política atual da Alemanha defende que todas as pessoas com deficiência devem viver na sua própria moradia. Assim, foram criados diferentes instrumentos de apoio ambulatorial. Durante o processo, aprendeu-se também que os medos expressos inicialmente pelas pessoas com deficiência, de sair das instituições e viver em estruturas com apoio ambulatorial eram exagerados. A chamada “equipe profissional” teve que aprender muitos conceitos novos: organizar a transição das instituições para uma moradia própria e deixar que as pessoas com deficiência sejam independentes. Elvira Cortajarena Iturrioz: Na Espanha, em certo sentido, a situação era muito semelhante à da Alemanha. Sem entrar nos aspectos históricos dos trinta anos da democracia espanhola, mas pode-se garantir que o início foi tão duro como os inícios de qualquer política social, quando se sai de um sistema no qual os direitos sociais não fazem parte da agenda política. Parece importante levar em conta que há pessoas com deficiência desde o nascimento, mas os casos de deficiência congênita não chegam a 5% do total. 267 Residências Inclusivas Cada vez mais, a deficiência é decorrente de acidentes do trabalho e do trânsito. As motos e automóveis fazem estragos na juventude: lesões cerebrais, paraplegias, tetraplegias, etc. Vale a pena comentar o desenvolvimento da política social em relação à deficiência na Espanha. Em primeiro lugar, a linguagem não é neutra. Quando se começou a trabalhar com as incapacidades, as habilidades eram reconhecidas pela sua anormalidade. Graças à coletividade das pessoas com deficiência, deu-se um salto e elas passaram a ser chamadas de menos-valia. Depois, passou-se a chamá-las de deficiências e atualmente, com reconhecimento das Nações Unidas e de organismos internacionais, de incapacidades. A linguagem não é neutra e esses saltos na denominação representam uma nova situação da sociedade e da cidadania, uma nova forma de encarar as pessoas afetadas. A verdade é que, dentre as deficiências mais comuns, as incapacidades físicas, psíquicas e sensoriais, estas últimas apresentaram grandes melhoras em termos de autonomia pessoal e determinados tipos de apoios para as pessoas permanecerem em suas comunidades, em uma moradia tradicional. Para as pessoas com deficiências físicas, a tecnologia, os programas, as ajudas técnicas e os serviços de apoio estão evoluindo muito rapidamente. Restam as pessoas com deficiência psíquica. Quais seriam os programas e as residências inclusivas para essas pessoas? O exército voluntário de mulheres, em sua maioria mães, de 45 a 65 anos, está deixando de funcionar como serviço de apoio a essas pessoas na nossa sociedade. Elas estão sendo incorporadas ao trabalho remunerado e, ademais, essa função deve ser uma responsabilidade de caráter social das instituições e de toda a sociedade, em seu conjunto. Quais seriam as necessidades dos espaços de convivência? Há muitos modelos que podem ser escolhidos. Na Espanha comete-se um erro quando se inicia na política social, deve-se reconhecer, de se pensar que, quanto maior a residência, mais equipamentos ela tiver, com todos vestidos de branco, imitando aspectos de caráter sanitário, mais próximo se está do ideal. As pessoas vivem 24 horas por dia numa residência, 365 dias por ano. A residência não pode ser uma alternativa de caráter hospitalar, pois as atividades sanitárias configuram uma porcentagem muito pequena da vida diária neste tipo de centro. Portanto, é muito importante que a direção dos 268 Residências Inclusivas centros leve em conta que o âmbito sanitário seja uma parte, mas não ocupe o eixo central da atenção. O eixo central deveria ser o residente, o usuário. Nos estatutos de uma residência, não há uma carta de direitos do residente, não há uma carta de deveres da residência para com o residente. É preciso criar essa carta. Outro aspecto fundamental é que as residências devem funcionar como guarda-chuvas que deem cobertura a determinados modelos alternativos de vida institucional. Programas de ajuda domiciliar, como os da Alemanha, realmente evitam institucionalizações desnecessárias, pois esse tipo de ajuda pode servir a muitas pessoas, para que elas vivam em suas próprias casas. Não devemos nos esquecer que todos, inclusive as pessoas com deficiência, querem viver na sua própria casa. Um segundo modelo seriam moradias configuradas com viúvas, por exemplo, ou outras pessoas que tenham tempo livre que queiram dedicar ao cuidado de terceiros. Há convênios de colaboração entre essas pessoas e as pessoas com deficiência, para programas dirigidos pelas residências, que estão dando resultados muito interessantes. Outro tipo de projeto são moradias de caráter público, para as quais pessoas com deficiência se inscrevem. Elas são adequadas às necessidades de vivência e convivência das pessoas, que recebem ajuda domiciliar e a visita de um psicólogo ou médico, uma ou duas vezes por semana. As ações de caráter sanitário são oferecidas em função das necessidades. São programas com custos muito mais baixos que a criação de uma residência tradicional. A construção de uma residência consome recursos equivalentes a três anos de gestão. A partir do quarto ano, o custo de manutenção é muito alto. Quanto maiores e mais bonitas, mais cara é a sua manutenção. Nada desumaniza mais a vida das pessoas que um centro com 100 ou 150 vagas, sobretudo no âmbito das deficiências. Nas deficiências psíquicas muito graves, pode-se considerar a existência de residências com números maiores de vagas, em módulos. Contudo, para haver boa qualidade assistencial, de convivência, de serviços e de vida, 80 a 100 vagas seria o número máximo em uma residência. Outro elemento interessante é que alguns centros educativos localizados no centro das cidades já não têm clientela, pois na Espanha há poucas crianças. Está claro que, na política social e assistencial, a responsabilidade deve ser 269 Residências Inclusivas pública. Na década de 1990, discutiu-se muito a divisão das atribuições entre os setores público e privado. Se a gestão pública é muito cara, que se recorra ao sistema privado, mas sempre com responsabilidade pública. Não se pode esquecer que os usuários dessas residências são pessoas que têm a sua vida nas mãos de um equipamento e dos profissionais daquele centro. Essa situação deve ter um controle, uma assistência técnica e uma avaliação. Não se pode deixar que as residências façam o que quiserem. Na Espanha, alguns centros tiveram que ser fechados. Abriam uma casa, um “centro residencial” para pessoas com demência, em condições sub-humanas. Portanto, a responsabilidade pública é muito grande. Outro tema importante para os centros residenciais seria a concessão de “férias”. Se há duas residências em províncias diferentes, os residentes de uma podem passar as férias na outra, voluntariamente, é claro, e vice-versa. É uma maneira de arrumarem a mala, conhecerem outras pessoas, passarem um tempo em outro local, fazerem novos relacionamentos, mudarem seus mundos, suas vidas. Às vezes, a institucionalização é produzida pelos próprios gestores, que não conseguem imaginar alternativas, não tão institucionalizadas. À medida que se acomodem as dinâmicas de atenção às pessoas com deficiência às necessidades que possam apresentar, que se dá a elas o protagonismo da sua vida cotidiana, se escuta e vê as possibilidades que as instituições oferecem, outras alternativas podem ser desenvolvidas. Muitas vezes, na vizinhança, é possível encontrar pessoas dispostas ao trabalho voluntário de um dia por semana, ir à casa e levar alguém ao cinema. Essas pequenas medidas podem mudar a vida da pessoa que vive num centro. Não são medidas que exigem recursos muito elevados. Trata-se de acumular cada equipamento, no seu âmbito local, com a sua cultura. A residência é a alternativa e o lugar das pessoas que ali vivem. É preciso usar a imaginação, oferecer solidariedade, novos modelos existentes e que podem ser criados. Nem tudo está inventado. Assim, seria possível dar um grande salto. Tudo aquilo que pode ser feito na coletividade, na sociedade, tende a funcionar melhor. Quando se criaram “jornadas de reabilitação” de dois dias por semana a outro tipo de centro, estas foram muito mais eficazes que a proposta de novas residências específicas para tetraplégicos, paraplégicos ou outras pessoas com deficiência. 270 Residências Inclusivas Outro elemento importante são as pesquisas permanentes, não identificadas, sobre a qualidade, a assistência, o grau de conforto, as ideias dos residentes. Muito se pode aprender quando os residentes sabem que suas opiniões serão ouvidas. Todos os elementos aqui descritos devem ser valorizados, devem ser levados em conta numa reflexão sobre as instituições, que podem melhorar de muitas maneiras, tornando-se mais versáteis e permeáveis. Isabel Cristina Pessoa Gimenes: A Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro começou em 1920, com um abrigo para meninas órfãs. O trabalho tinha esse viés assistencial, mas estava voltado para essas meninas que não tinham vínculo familiar, naquela época. Em 1983, houve uma mobilização intensa de pais, funcionários e familiares pela municipalização do Lar-Escola Francisco de Paula, que realmente tornou-se uma fundação municipal e muitos talvez conheçam por Funlar-Rio. Em 2004, foi criada a Secretaria Extraordinária do Deficiente Cidadão. A instituição deixava de ser a Fundação Municipal Lar-Escola Francisco de Paula para ser uma Secretaria Municipal. Em 2007, a secretaria deixou de ser extraordinária, passou por um processo de reorganização diretiva e passou a ser a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência. Portanto, como Secretaria, na realidade, a SMPD existe somente há dois anos, mas como instituição que presta atendimento à pessoa com deficiência, a sua história é bem longa. As primeiras ações realizadas em unidades da Secretaria, de grande porte, localizam-se nos bairros de Vila Isabel e Campo Grande e foram ações centralizadas. Na unidade de Vila Isabel, há gerências voltadas ao desenvolvimento das pessoas com deficiência, que chegam desde bebês, desde os três meses de idade, até a faixa etária adulta. Nessas unidades de grande porte, há uma gerência de desenvolvimento global inclusivo, que inclui uma das maiores creches do Brasil atualmente, com quase 300 crianças, com e sem deficiência, convivendo num cotidiano de muita diversidade e muito respeito. Dentro dessa mesma gerência, há um serviço de estimulação ampliada, onde são atendidas crianças com e sem deficiência, porque, na realidade, a unidade de Vila Isabel se localiza dentro do Morro do Macaco, com uma população bastante vulnerável. Assim, a estimulação ampliada atende crianças com deficiência e crianças em situação de risco social iminente. 271 Residências Inclusivas Ainda nas grandes unidades, a gerência do mundo do trabalho atende a pessoas acima dos 14 anos de idade, com a perspectiva de incluí-las, de trabalhar para que elas sejam de fato incluídas no mundo do trabalho. E, obviamente, há um serviço de reabilitação também, pois a missão da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência é reabilitar para incluir. Essa é a sua principal missão, desenvolvida num eixo de articulação e num eixo de execução. A SMPD executa o atendimento da pessoa com deficiência, mas também tem a missão de induzir a política, no município do Rio de Janeiro, para que de fato as pessoas com deficiência tenham seus direitos garantidos. No ano de 1992, inaugurou-se mais uma unidade de grande porte, em Campo Grande, com os mesmos serviços, as mesmas ações e as mesmas gerências. Em 1995, foi lançado o programa de Reabilitação Baseada na Comunidade, o RBC, a primeira ação descentralizada da SMPD. Hoje, o RBC está em mais de 600 comunidades do Rio de Janeiro e é composto por profissionais da área da reabilitação e da assistência que, em parceria com o Programa de Saúde da Família, vão até as casas e batem à porta das pessoas com deficiência, levantando as suas demandas e encaminhando essas pessoas para as políticas setoriais. É um trabalho em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, que tem tido bastante êxito no sentido de incluir as pessoas com deficiência, que muitas vezes não conseguem sair das suas comunidades e chegar ao asfalto, para que essas pessoas possam de fato ter garantidos os seus direitos, seu atendimento em reabilitação, a sua inclusão nas políticas sociais. Há dez anos, com a inauguração da primeira Casa-Lar, iniciava-se um trabalho em parceria com o Instituto Franco Basaglia, na lógica da desospitalização de pessoas que viviam em condições sub-humanas, numa instituição do Rio de Janeiro, o Centro Educacional Deolindo Couto. A intervenção foi feita por imposição do Ministério Público, pois as pessoas viviam ali em situação degradante, asiladas, em total exclusão. Com essa ação, nascia a primeira Casa-Lar, retirando as pessoas daquele espaço excludente e sub-humano para um espaço de residência, onde os moradores tiveram garantidos seus direitos de residência, de frequentar uma escola, espaços de reabilitação, atividades de cultura, esporte e lazer. Assim, a primeira Casa-Lar foi inaugurada em 1999, no bairro do Grajaú. É um trabalho no qual são atendidas dez pessoas em cada equipamento, pois é preciso preservar o espaço de convivência, de moradia. Pode parecer pouco para uma política pública, mas é preciso garantir que os usuários convivam num 272 Residências Inclusivas espaço de moradia, portanto não seria adequado utilizar um espaço de dimensões muito grandes. Também no ano de 1999 passou a ser concedida, em parceria com o Instituto Franco Basaglia, a bolsa-cidadã. As pessoas que estavam no Centro Deolindo Couto e tinham algum vínculo familiar puderam retornar ao convívio das suas famílias e passaram a receber um recurso, pago até hoje, para desospitalizar aquelas pessoas. Atualmente, o recurso se expandiu para as pessoas que vivem situações de iminente asilamento. A bolsa-cidadã e o projeto Casa-Lar protegem e previnem o asilamento das pessoas com deficiência. Em 2002, surgiu outra proposta, em parceria com o Consulado da Itália: a Casa-Dia, cujos usuários têm vínculos familiares preservados, com certo esgarçamento e a iminente possibilidade de asilamento. A Casa-Dia surge também com finalidade preventiva, para que a pessoa tenha um espaço de garantia dos seus direitos, permanecendo oito horas diárias, na escola, nos espaços de reabilitação, de esporte, cultura e lazer. A responsabilidade é da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência, de ir e vir com a pessoa para os espaços em que ela precisa estar inserida. Há atualmente três CasasDia no município do Rio de Janeiro, cada uma com 20 pessoas incluídas. A lógica é garantir direitos, é a lógica da inclusão. Se aquela pessoa está com riscos severos, a família não dispõe de recursos, de ferramentas para estar com a pessoa em casa, seja por qual motivo for, o equipamento surge para prevenir o asilamento. Há ainda o Passe Livre, que garante o transporte gratuito à pessoa com deficiência, um marco na concessão de gratuidade do sistema de transporte rodoviário às pessoas com deficiência. Outro marco bastante importante para a Secretaria foi a inauguração do Centro Integrado de Atenção à Pessoa com Deficiência, em 2003. É bom frisar que os usuários da Casa-Dia, da Casa-Lar e da República frequentam todos esses espaços da Secretaria da Pessoa com Deficiência. É um trabalho marcado pela intersetorialidade: o CIAD dá concretude a essa lógica da política macro; são cinco secretarias dentro do mesmo espaço, responsáveis pela política de inclusão da pessoa com deficiência no Rio de Janeiro: Secretaria de Trabalho, Secretaria de Esporte e Lazer, Secretaria de Educação, Secretaria de Ciência e Tecnologia e SMPD. Há uma vertente dentro desse espaço, de execução direta pelo Centro Municipal de Referência, para o atendimento a crianças e 273 Residências Inclusivas adolescentes com autismo. O CIAD Mestre Candeia fica na Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro. Em 2004, foi inaugurada a primeira República. O projeto surgiu a partir da necessidade de intervenção na fazenda-modelo, um espaço que abrigava população de rua. Ali, o trabalho entre as secretarias aconteceu de forma bastante interessante. A Secretaria de Assistência Social, juntamente com a Secretaria da Pessoa com Deficiência e a Secretaria de Saúde, por meio do Serviço de Saúde Mental, retirou as pessoas que ali estavam, também em condições precárias. Na República, as pessoas já podem prover seu próprio cotidiano, têm um nível de autonomia maior. Cuidam da higiene da casa, da alimentação. É um espaço também bastante interessante. São quatro Repúblicas hoje, uma feminina e três masculinas. A quarta Casa-Dia foi inaugurada na Rocinha, no Centro de Cidadania Rinaldo De Lamare. Além de Casa-Dia, é também um espaço cultural com ações de reabilitação baseadas na comunidade, atividades socioculturais das pessoas com deficiência, por ação da equipe de RBC. A SMPD existe não só para realizar o atendimento das pessoas com deficiência, mas também para induzir a política de inclusão dessas pessoas e garantir então os seus direitos. São resultados dessa atuação a rede básica de transportes, o ônibus adaptado e manual de transporte de deficientes, a regulamentação da paridade do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o CONDEF-Rio, telefones públicos para pessoas com deficiência, a Rede Cidadania e Trabalho, a participação nos Jogos Parapanamericanos, a orientação para adaptação de prédios residenciais, cursos para síndicos e administradores de imóveis, a capacitação de trabalhadores do sistema de transporte coletivo, do Metrô Rio, da SuperVia, da rodoviária e empresas aéreas, a capacitação dos profissionais da área de turismo, entretenimento e restaurantes, a Mostra de Arte Eficiente do RBC, uma mostra que mobiliza toda a cidade (os usuários das comunidades aguardam ansiosamente por esse momento), o manual de acessibilidade para a rede hoteleira, seminários de tecnologias assistivas, do esporte, inclusão social, cidadania e trabalho, o Congresso Internacional de Acessibilidade, o Carnaval da Inclusão, a capacitação de profissionais da cooperativa de táxi, o nosso website acessível, o Prêmio Parceria Eficiente (entregue todos os anos àqueles que se destacam na área das pessoas com deficiência) e os Jogos da Inclusão. 274 Residências Inclusivas Todos os moradores, todos os usuários fazem parte da proposta de trabalho da SMPD, que é uma proposta de inclusão, de garantia de direitos. Ela ainda não atende a uma quantidade tão considerável de pessoas, que merecem estar incluídas, residirem, ir e vir, mas já é um começo. O desafio atual é ampliar esses serviços, num processo de construção. Vânia Melo Bruggner Grassi: Segundo o site da Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com Deficiência, residências inclusivas são moradias providas de ajudas técnicas para abrigo de pessoas com deficiência, de baixa renda, que necessitam de apoio externo para algumas de suas atividades da vida diária, conferindo-lhes ampla autonomia, cidadania e inclusão. A primeira definição foi um passo positivo na reflexão sobre o trabalho da APAE de Bauru, pois a experiência está de acordo com este conceito. No Fórum de Residência Inclusiva, a proposta de minuta entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Desenvolvimento também conceitua a residência inclusiva. Esses serviços seriam casas inseridas na comunidade destinadas à moradia de pessoas com deficiência, internadas por longa permanência, ou em risco de institucionalização, por não possuírem laços familiares ou suporte social de maneira inclusiva. Mais uma vez, nessa reflexão sobre a APAE de Bauru, pode-se concluir que ela está no caminho certo. Em novembro de 2009, a tipificação dos serviços socioassistenciais do Brasil cita as residências inclusivas, mas não as conceitua. Fala-se da importância e da necessidade de se criarem esses serviços, mas não há uma conceituação, não se definem as características e as provisões necessárias. A Casa-Lar da APAE de Bauru, “Lar, Doce Lar”, é um convênio com o Estado de São Paulo, financiada pela Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social, que tem por finalidade a execução de programas de proteção social especializada. O acompanhamento em Bauru, pela Secretaria, se dá por meio das Diretorias Regionais de Assistência e Desenvolvimento Social (DRADS). Há um acompanhamento, um monitoramento constante, periódico, da DRADS Bauru. De um lado está o Estado, a SEADS, a DRADS, e do outro a APAE de Bauru, que gerencia o serviço. Todo o serviço de acolhimento (hoje não se fala mais em “abrigo”) é de responsabilidade de uma guardiã, que é a presidente da instituição. A presidente da APAE de Bauru, Olga Bicudo, é a responsável legal e cabe a 275 Residências Inclusivas ela toda a assistência material, moral e educacional das pessoas que residem na casa. A supervisão é feita pela diretora técnica. A Casa-Lar é uma experiência muito nova, pontual, que surgiu porque três anos atrás, em 2007, a DRADS fez o convite para sua criação, por motivos similares aos já mencionados neste painel. Havia duas instituições muito grandes na cidade, com sete pessoas, numa condição de asilo. O convênio havia sido encerrado. As pessoas seriam transferidas para outros serviços, não se sabe para onde, no Estado de São Paulo. A APAE de Bauru ficou muito preocupada e aceitou o desafio, pois uma das sete meninas já estudava na APAE. A casa da APAE é uma casa de convivência, acolhedora e simples. É um lar, no aspecto físico, mas essencialmente educativa nos seus ambientes, na sua dinâmica. Estimula o contato e a preparação para o mundo, para a vida, para a família, em alguns casos, e para comunidade. Para aceitar o desafio, a APAE impôs algumas condições para a própria DRADS. Por exemplo, o acolhimento daquelas meninas teria que ser diferente. A equipe da APAE gostaria de preparar e sensibilizar as residentes, quando entrasse alguma usuária nova e, ao mesmo tempo, quando alguma menina fosse indicada para o acolhimento da casa, a APAE iria até a cidade da menina. É o que está sendo feito. A APAE já foi a Taquarituba, a Valinhos, para preparar essa pessoa para vir para o lar da APAE, para que nada aconteça de forma traumática, como é a experiência por elas vivida até então. Outra coisa muito importante é a participação da comunidade na vida dessas pessoas. Teria que ser uma casa na comunidade e as meninas teriam que fazer parte da comunidade local. Assegura-se a garantia da escolarização, da profissionalização, do atendimento à saúde. Outro ponto foi o BPC – Beneficio de Prestação Continuada. Algumas dessas meninas, vulnerabilizadas, têm direito a esse benefício, e uma das condições estabelecidas pela diretoria da APAE é que esse recurso fosse empregado totalmente em beneficio das residentes. A proposta foi iniciar com um grupo pequeno, de dez pessoas, e a pretensão é crescer, mas sempre com residências para pequenos grupos de dez pessoas. Sempre fazendo aquilo que é a obrigação da instituição: respeitar a individualidade, a diversidade, e promover a vida das meninas com dignidade. Outro ponto, já levantado aqui, é a participação das meninas no planejamento e na avaliação. As regras são discutidas com elas, juntamente com as cuidadoras e com as responsáveis, e elas participam do planejamento e das decisões da casa. Muitas delas chegam sem história de vida, se perderam 276 Residências Inclusivas numa sucessão de transferências, de instituição para instituição. Portanto, um princípio seguido é mantê-las atualizadas, manter a história de vida delas. O objetivo principal, como é um serviço de acolhimento especial para meninas fragilizadas, meninas que têm o vínculo familiar rompido ou fragilizado, é acolher e garantir a proteção integral. É resgatar um ambiente de família, oferecendo uma oportunidade de convivência afetiva, equilibrada e saudável, favorecer a convivência comunitária, favorecer o desenvolvimento de aptidões, habilidades, sempre buscando a autonomia e a participação das meninas no processo. Um item muito difícil, mas que se procura seguir, com certo sucesso, é preservar os vínculos com a família de origem, salvo determinação judicial em contrário. E o trabalho visa sempre à independência, autonomia e autocuidado. Trata-se de uma casa simples, acolhedora, inserida na comunidade, num bairro de classe média de Bauru. Em termos de características fisicofuncionais (é uma casa alugada), não é acessível ainda, mas sofreu algumas adaptações. Em Bauru, uma cidade do interior do estado, é difícil conseguir uma sala que acolha dez pessoas. As casas são muito pequenas ou estão num bairro mais privilegiado e não de classe média. A casa da APAE é um pouco antiga, foi reformada, mas tinha que ter algumas características iniciais. Possui duas salas de estar, com mobiliário adequado para o conforto e a comodidade. A decoração e a escolha da cor partiu das meninas. Elas escolheram o sofá vermelho. Os dormitórios ainda não proporcionam a individualidade e a privacidade ideais. Seria muito bom poder contar com um dormitório para uma ou duas pessoas, mas não é possível ainda. Os dormitórios têm três a quatro residentes cada um. A copa e cozinha contém todos os equipamentos, liquidificador, micro-ondas, tudo para que elas realmente tenham condição de executar as atividades domésticas. As instalações sanitárias não são acessíveis. Neste primeiro momento, todas as residentes são deficientes com deficiência intelectual. Há uma área de lazer, uma área de serviço, churrasqueira, enfim, os recursos necessários para oferecer uma boa qualidade de vida para as meninas. Busca-se garantir a segurança e a funcionalidade. Embora a casa ainda não atenda às normas de acessibilidade, há um projeto na SEADS totalmente adaptado, dentro das normas da ABNT, aprovado pela Vigilância Sanitária, que aguarda financiamento. Decidiu-se não contar com uma perua para o transporte. Há um automóvel comum para o transporte, para levar uma residente ao médico, a algum atendimento na comunidade. 277 Residências Inclusivas A dinâmica das meninas na casa envolve todas as atividades da vida prática, levantar, dormir, cuidar da casa, fazer seu leite, arrumar sua mesa. Como a casa está inserida no bairro, na comunidade, as meninas estão em escola de educação especial, ensino comum e também em cursos profissionalizantes. Das dez residentes hoje acolhidas, três já foram colocadas no mercado de trabalho desde o momento em que vieram para a casa. Uma que trabalha numa universidade, como auxiliar de cozinha, uma numa loja de confecção, é atendente, e a outra no supermercado do bairro, com a função de empacotadora. Há uma menor de 18 anos, sete têm entre 18 e 30 anos e duas têm mais de 30 anos. O diagnóstico é de deficiência intelectual, com algumas comorbidades, e uma apresenta transtorno invasivo do desenvolvimento. Os graus de apoio na casa são diferenciados. Não são todas intermitentes, têm desde o apoio limitado a até o pervasivo, de acordo com a avaliação da equipe. É importante ressaltar as circunstâncias antes do acolhimento. Três delas passaram por abandono físico, afetivo ou psicológico, duas são órfãs e nove passaram por violência doméstica, vitimização física, psicológica, sexual ou negligência. O tempo de acolhimento é de três anos (o tempo de existência da casa), mas algumas meninas foram institucionalizadas por mais de vinte anos. A quantidade de transferências é outro ponto a ser considerado. Algumas meninas passaram por sete instituições diferentes durante a vida. Três delas estão no mercado de trabalho, como já se mencionou, duas estão no curso de educação profissional, três em escola de educação especial, duas em centro de convivência e uma no ensino comum. Sete delas conseguem manter o vínculo familiar, mas no caso de três delas a família permanece institucionalizada. Alguns pais, que vivem na comunidade, visitam a residente, e outros apenas telefonam. Todas estabelecem um vínculo afetivo com a equipe. Quatro delas estão namorando e duas recebem amigos da comunidade. O serviço oferecido pela APAE é caro. É difícil mantê-lo. Optou-se por não oferecer a mãe social, mas há uma assistente social e uma psicóloga diariamente no lar, que funcionam como mãe social e possuem um vínculo afetivo muito grande com as meninas. Há quatro cuidadoras para o período diurno, quatro para o período noturno e uma auxiliar de limpeza. Há ainda uma equipe de retaguarda: o atendimento na área de saúde é feito no 278 Residências Inclusivas ambulatório da instituição fora da casa, que conta inclusive com um neuropsiquiatra e toda a equipe multidisciplinar. Está clara atualmente a necessidade de uma melhor definição dos papéis do Estado, do Ministério Público e da sociedade civil, não somente em relação a esses lares, aos serviços de acolhimento, mas principalmente no serviço de apoio e assistência às famílias vulneráveis pela pobreza que tenham uma pessoa com deficiência que necessite de assistência. Novos modelos de acolhimento, mais humanos e inclusivos, são necessários. O desafio maior é a emancipação das residências. Como fazer para que essas meninas realmente sejam incluídas e saiam deste lar? Um dos meios propostos é restabelecer vínculos, que já foram bastante fragilizados, mas o grande desafio da APAE de Bauru é o estabelecimento de novos vínculos. As meninas já estão namorando, estão querendo casar, formar uma nova família. Os namorados também são deficientes intelectuais. É para esses novos desafios que a APAE está se preparando a partir de agora. Com certeza, não se pode mudar o passado de exclusão e violência a que essas pessoas foram submetidas nas instituições, mas nós, Estado e sociedade, temos o dever de construir um presente digno, com perspectiva de um futuro de inclusão, onde a humanidade transcenda o discurso e assuma atitudes concretas. Ou seja, é preciso parar com discursos, leis, e realmente partir para a ação. 279 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social É notório o legado que os maiores eventos esportivos – Copa do Mundo, Olimpíada e Paraolimpíada, deixam em seus países-sede. O Brasil terá, nos próximos anos, uma oportunidade ímpar de promover desenvolvimento e importantes transformações sociais no processo de preparação para sediar essas competições. Toda a sociedade se beneficiará desse processo. Contudo, para as pessoas com deficiência, trata-se de um momento particularmente especial, já que as normas e critérios de acessibilidade deverão pautar, inclusive por força de lei, todo o planejamento e execução das obras e ações necessárias, tanto nos locais das provas como no restante do País. Introdução: Linamara Rizzo Battistella – Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Cid Torquato (moderador) – Coordenador de Articulação Institucional e Políticas Públicas - Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência - São Paulo, SP Alcino Reis Rocha – Assessor Especial do Futebol - Ministério do Esporte Brasília, DF Luis Salles – Assessor da Presidência da São Paulo Turismo - SPTuris - São Paulo, SP Roque de Lázaro Rosa – Assessor da Presidência do Metrô - São Paulo, SP Nilce Maria Costa dos Santos – Assessora da Presidência da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária - INFRAERO - Ministério da Defesa - Brasília, DF Andrew George William Parsons – Presidente do Comitê Paraolímpico Brasileiro - Brasília, DF A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social Introdução: Linamara Rizzo Battistella: Uma palavra muito rápida de agradecimento aos nossos expositores. A ideia desse encontro de tecnologia era realmente juntar pessoas com vocação para o desenvolvimento tecnológico, para a inovação, e traduzir o encontro, de maneira sinérgica, em novas oportunidades para o mercado e para as pessoas com deficiência. O tema deste bloco é muito interessante: como a cidade se organiza, ou como o país se organiza, para dois eventos que terão destaque mundial, que são a Copa do Mundo e a Olimpíada. O Estado brasileiro tem um papel relevante no sentido de descobrir ou vocacionar os jovens para que comecem agora a se preparar para o momento olímpico, que é tão importante. Costuma-se dizer que o Brasil do paradesporto tem sido melhor que o Brasil do desporto convencional. É preciso continuar mantendo essa marca. O novo cenário exige que as cidades se adaptem, que as instituições se tornem mais acessíveis, que o mobiliário urbano, o transporte, os hotéis, os centros de convenções tenham efetivamente uma condição de acessibilidade que permita incluir a todos. Quando se fala em acessibilidade na Copa do Mundo e nas Olimpíadas, fala-se no transporte sobre rodas, no transporte sobre trilhos, nos aeroportos, nos portos marítimos e fluviais, em uma série de serviços que precisam ser implantados. É uma grande oportunidade, do ponto de vista mercadológico, um novo ciclo econômico que o Brasil passa a liderar e para o qual muitos poderão contribuir. Essas ações devem receber o devido destaque dentro das políticas governamentais, efetivar-se em produtos que tenham significado para as pessoas com deficiência. Não é demais desejar que, a partir desse esforço, São Paulo se coloque como um paradigma na inclusão das pessoas com deficiência, na construção de uma sociedade para todos, e que se chegue a 2014 e 2016 como um marco de acessibilidade e inclusão social. Mas, para que isso aconteça, além das discussões que ajudarão a refletir sobre esse novo momento, há um papel importantíssimo daqueles que estão dentro dessa área de desenvolvimento, que fazem deste um mercado extremamente promissor. Registramos aqui o nosso agradecimento muito especial a cada um dos expositores, sejam da universidade, dos institutos de apoio à pesquisa ligados às fontes de financiamento do governo federal ou das instituições do mercado. A cada um deles, à UFMG, à ITS, Ecomed, BBZ, Cajumoro, Espaço Dumont, 282 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social Borrachas Daud, Lógica Soluções, Geraes, All 4 All, Aureside, Mais Diferenças, Phonak, Fundação Veritas, Andaluz, Tecassistiva, WG / Efeito Visual, Cavenaghi, Laratec e Agillize, o nosso agradecimento por tornarem a vida mais inclusiva, por possibilitarem que as pessoas com deficiência se expressem com a melhor e a mais completa funcionalidade, que as diferenças se constituam em oportunidades, que a eficiência seja um fator de relevância capaz de introduzir cada um dos brasileiros dentro deste cenário. Registramos nossos agradecimentos pelo esforço da inovação e nosso desejo de que este grupo continue unido, constituindose num bloco uniforme para que as pessoas com deficiência tenham oportunidades justas. Fica ainda o agradecimento à Instrucom, Brava, Tempur do Brasil, Terra Indústria Eletrônica, Ansett, Fundação CPqD, Centro Paula Souza, Mandic, Carci, Guldmann do Brasil, Click, Touch Bionics / OSSUR, Fundação Otorrinolaringologia, Bengala Branca, Blumenthal Importadora e Distribuidora, KF Veículos Especiais, IMREA/ Telemedicina da USP, Bonavision, Rea Team, Interactive Motion, Freedom, Expansão, Altra, Signo Sinal, THK Brasil, Antarq, Hocoma AG, Supereficiente, Universidade Estadual de Londrina, SENAI, Otto Bock, Prokinetics e Proaid. Foi uma incrível oportunidade para rever velhos amigos, identificar novas oportunidades. O mais importante agora é não nos dispersarmos. Vamos continuar juntos. O agradecimento de todos nós, do Cid Torquato, do Marco Antonio Pellegrini, de todos que integraram esse esforço, aos organizadores, ao Banco de Projetos, aos nossos colaboradores diretos da Secretaria, como a Graça Santos e a Maria Alice Cerello, por esse esforço, pela sinergia que oportunizou este grande momento. Somente por meio de uma intensa colaboração se consegue chegar a esses resultados, e essa colaboração não pode acabar aqui. Mais uma vez, vamos continuar juntos; não vamos nos dispersar. Alcino Reis Rocha: Os três grandes eventos abordados neste painel, a Copa do Mundo de Futebol, as Olimpíadas e as Paraolimpíadas, mostram os resultados de uma nova política que o nosso país adotou no cenário internacional. Não é gratuita a presença do Brasil, com opinião própria e uma política específica, nos grandes eventos internacionais. Ela faz parte da estratégia de ocupar uma posição mais apropriada ao tamanho e à 283 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social importância do nosso país no continente e no mundo. No entanto, para desenvolver essa política, é preciso que o país seja uma referência na realização de grandes eventos internacionais. Mais recentemente, houve o Pan-americano e o Parapan-americano no Rio de Janeiro em 2007. Cúpulas internacionais acontecem agora rotineiramente no nosso país, em especial em Brasília, com a presença cada vez maior de chefes de Estado. A possibilidade de realizar esses três grandes eventos coroa a decisão de nos tornarmos uma grande vitrine para o mundo. Não se trata, simplesmente, de grandes eventos esportivos. Nenhum outro evento, de qualquer natureza, consegue reunir tantas pessoas de todo o mundo em um único país, ou atrair tanta atenção, através das transmissões pela televisão e outros meios de comunicação, como os eventos citados. A Copa da Alemanha, realizada em 2006, conseguiu mobilizar dois milhões de pessoas somente para assistir às competições em território alemão, além dos turistas tradicionais que visitam aquele país. Aqui, a final da Copa do Mundo de Futebol reúne o maior número de pessoas no mesmo dia e no mesmo horário como expectadores de um único evento. Não existe nada comparável, em termos de audiência mundial, a uma Copa do Mundo de Futebol. Portanto, temos uma oportunidade de ouro para mostrar ao mundo a capacidade do Brasil de adotar determinadas soluções que sirvam de referência internacional e, acima de tudo, deixem um grande legado para a nossa população. Este é o desafio: tentar tornar esses eventos mais presentes na vida dos brasileiros após a sua realização, por meio de boas práticas, de novas tecnologias, da compreensão correta de determinados direitos. O nosso grande desafio é traduzir a realização desses eventos em grandes legados. Muitas vezes, quando se fala em legado, pensa-se única e exclusivamente em obras físicas, na construção de estádios, metrôs, VLTs, estradas, rodovias. Na concepção do Ministério dos Esportes, legado quer dizer também determinadas condutas, comportamentos e atenções a direitos que, com a Copa e as Olimpíadas, nosso país começa a assumir. Nas Olimpíadas da China, a imprensa do mundo todo deu destaque ao hábito do chinês de cuspir no chão, e o governo chinês preparou toda a população para que não fizesse mais aquilo. Aquele comportamento era incabível para uma cidade que estava sediando as Olimpíadas e, portanto, deveria ser abandonado, não somente durante a realização das Olimpíadas, como também depois do evento. Essa é uma demonstração simples de 284 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social determinados hábitos culturais que podem ser modificados. No Brasil, não temos a prática de respeitar o assento quando compramos ingresso para assistir a determinado jogo no estádio. Compramos o ingresso para um determinado assento numerado e ninguém ocupa o respectivo assento. Isso vai ter que mudar, porque no mundo todo isso é respeitado, em especial nos grandes eventos. É uma prática corriqueira que terá que mudar e queremos que a mudança fique como legado. A Copa do Mundo de Futebol será realizada em doze cidades brasileiras. Em cada uma dessas cidades, haverá intervenções para recepcionar o evento, em especial a construção de um grande estádio de futebol, respeitando rigorosamente todas as determinações da FIFA. Além de se obedecer à legislação nacional, no que diz respeito à construção, serão respeitados também todos os parâmetros de qualidade que a FIFA exige para a realização da Copa do Mundo. O Governo Federal e o Comitê Organizador têm acompanhado o desenvolvimento dos projetos e foi lançada recentemente uma linha de crédito do BNDES, da ordem de 5 bilhões de reais, específica para os estádios. Alguns estádios serão construídos, outros demolidos e reconstruídos e outros reformados. Um bom exemplo é o Morumbi, em São Paulo, que será o estádio da Copa de 2014. Paralelamente à realização dessas obras, terão destaque as obras de mobilidade urbana. Essa foi uma decisão do próprio Presidente da República: privilegiar os recursos de mobilidade urbana nas doze cidades que sediarão a Copa do Mundo de Futebol. Outro grande destaque de infraestrutura serão as obras necessárias aos aeroportos dessas cidades. É de conhecimento geral que boa parte dos nossos aeroportos já está mais do que esgotada em termos de capacidade de atendimento ao público. O próprio crescimento da economia brasileira tem gerado um público em condições de ter acesso a esse meio de transporte. Quando se associa essa situação à realização de grandes eventos como a Copa e a Olimpíada, a situação fica bem mais difícil. Portanto, em todos esses aeroportos foram programadas obras de intervenção para, justamente, aumentar a capacidade de atendimento. Assim, os três grandes vetores de intervenção com obras são os estádios, a mobilidade urbana e os aeroportos. Em relação à mobilidade urbana, o Governo Federal apoia um projeto apresentado pelo Governo do Estado de São Paulo, que é a construção de um monotrilho, também chamado de VLT, que ligará as estações São Judas/Jabaquara, o aeroporto de Congonhas e o 285 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social estádio do Morumbi, justamente para facilitar a locomoção das pessoas que acessem a rede pública do metrô e mesmo o aeroporto, para que cheguem mais facilmente ao estádio do Morumbi. A obra deve ser iniciada já no ano que vem e pretende-se que esteja concluída até o final de 2013. Além dessas grandes obras, o governo brasileiro está se preparando para adequar o seu ordenamento jurídico, ou seja, criar leis para que os eventos sejam realizados da melhor forma possível. No que diz respeito à Copa, está se desenhando uma lei geral da Copa do Mundo de Futebol, que tem como pressuposto o cumprimento de algumas garantias apresentadas à FIFA para a realização desses eventos. Propõe-se um tratamento privilegiado a determinadas necessidades da FIFA, ou mesmo do COI, para a realização da Copa. Nessa legislação, pretende-se ir além, abordando as já referidas boas práticas, as boas condutas, para que permaneçam como um legado ao país. Nesse momento, teremos uma possibilidade privilegiada de debater essas questões, em especial a sensibilidade a grandes intervenções urbanísticas, não somente ao que diz respeito aos estádios. Nesse sentido, nosso país pode dar um bom exemplo ao mundo. Discute-se a questão da promoção do turismo nacional, procura-se dar oportunidade ao cidadão ou ao turista que venha ao Brasil, para conhecer o país de Porto Alegre a Manaus, passando por Cuiabá e pelo Nordeste. Discutem-se políticas específicas de sustentabilidade ambiental, a questão do carbono, a possibilidade de mostrar a biodiversidade brasileira, e também devem ser incluídas a pauta da acessibilidade e a garantia de preservação dos direitos das pessoas com deficiência, como um grande exemplo na realização desses eventos, em especial da Copa do Mundo, já que será realizada em doze cidades. Luis Salles: O Sr. Luis inicia a apresentação reproduzindo uma gravação de áudio, com a seguinte narração: “Estádio do Pacaembu. Não há lugar melhor para deixar a emoção a mil. Tradicional palco de grandes disputas, o estádio do Pacaembu, o Paulo Machado de Carvalho, foi sede do empate entre Brasil e Suíça na Copa do Mundo de 1950. Assim como os estádios do Morumbi, Canindé e Palestra Itália, é um templo para sentir a paixão brasileira que é o futebol. Consulte a tabela de jogos e faça parte dessa festa. 286 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social [depoimento]: Quando eu entrei no estádio fiquei muito, muito, feliz. Foi ótimo, um sonho que se tornou real. A sensação é de fazer parte do jogo, como se estivesse lá, junto com os jogadores. As pessoas sentem a partida com o coração. Quando o time fez o primeiro gol, eu fiquei impressionado com todas aquelas pessoas gritando: Goooooooooooool! Que boa impressão! Foi a primeira vez que estive numa partida de futebol no Brasil e foi um grande momento para mim.” Esta pequena gravação faz parte do mapa das sensações, um projeto pioneiro no Brasil, desenvolvido pela São Paulo Turismo e pela Prefeitura Municipal de São Paulo, no qual se ouvem turistas nacionais e estrangeiros, de várias partes do mundo, falando sobre vinte locais escolhidos como mais emblemáticos da cidade de São Paulo, do ponto de vista da sensação que ele causa. Ela pode ser auditiva, visual, degustativa, ou seja, é a análise dos cinco sentidos determinando o posicionamento do turismo na cidade de São Paulo. O trabalho gerou um mapa, disponível na internet no seguinte endereço: www.omapadassensacoes.com.br - website em que se tem acesso aos vídeos e ao áudio. De acordo com o último censo consultado, o maior índice de deficiência é o visual, portanto fez-se questão de criar um link específico de áudio, por meio do qual fosse possível transmitir um pouco da sensação que esses locais causam. Em relação à Copa do Mundo, em São Paulo foi criado um comitê executivo, formado basicamente por secretarias municipais e estaduais de vários segmentos. Desde 2007, quando o Brasil foi indicado como sede de Copa do Mundo, a SPTuris tem participado de muitos debates e palestras sobre o assunto. No início de 2008, foi convidada pela Polícia Militar a apresentar o planejamento da cidade de São Paulo para a Copa, aos oficiais que irão dirigir a polícia em 2014 e queriam, desde já, estar preparados para esse planejamento. Em alguns dias, haverá uma reunião com a Comissão Permanente de Acessibilidade da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, para que as providências necessárias sejam tomadas desde já, basicamente em duas vertentes: a pessoa com deficiência como expectadora e como colaboradora. A Comissão Permanente de Acessibilidade passa a fazer parte do comitê executivo de preparação da cidade de São Paulo para a Copa do Mundo. O comitê tem basicamente seis núcleos. O núcleo de infraestrutura abordará uma série de itens já mencionados, que envolvem a realização de obras. O 287 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social núcleo de integração cuidará da ação de governo em cada um dos itens desenvolvidos para a Copa do Mundo. Haverá uma troca de Governo Municipal, uma troca de Governo Estadual e uma troca de Governo Federal. O núcleo de integração vai trabalhar justamente para que não se perca o fio da meada. O terceiro núcleo é o de eventos e oportunidades. A cidade de São Paulo tem essa característica: um evento pequeno em São Paulo tem dois milhões de pessoas, ou seja, embora a cidade seja um pouco rígida em alguns momentos, também é bastante elástica do ponto de vista da organização de eventos. O núcleo de legislação cuidará de toda a compatibilização legal. O núcleo de turismo é autoexplicativo. Para o núcleo de comunicação e dados, a CPA está sendo convidada justamente a ajudar, para que se entenda o que é esse segmento e como abordá-lo. É extremamente difícil fazer este trabalho, por isso a CPA está sendo convidada. O núcleo de integração tem responsabilidade socioambiental e de legado. O de infraestrutura cuida das dezenove grandes obras que estão sendo realizadas na cidade de São Paulo. O Governo Municipal e o Governo Estadual, com a ajuda do Governo Federal, estão investindo 37 bilhões de reais em obras de mobilidade, sistemas de transporte, novas vias, no rodoanel, ou seja, a cara de São Paulo mudará totalmente até 2014, com saneamento, tecnologia e governança. O núcleo de legislação é fundamental, porque a cidade precisa se adequar a uma série de exigências da FIFA e tem que compatibilizar essas exigências com as leis existentes. Um exemplo: hoje nos estádios de São Paulo é proibido vender bebida alcoólica, mas na Copa do Mundo tem que ser permitido, por razões comerciais, de um evento privado. Em São Paulo temos o programa “Cidade Limpa”; será feito um estudo de abrandamento do “Cidade Limpa” para a época da Copa, porque a FIFA faz uma exploração comercial desses espaços. Então tem que haver uma grande compatibilização de normas e legislações. O núcleo de turismo cuidará basicamente de como o setor privado vai lidar com esse grande evento, da criação de produtos e da capacitação. Mais importante que o legado físico da Copa do Mundo é a condição que o Brasil passa a ter no pós-Copa. O núcleo de eventos e oportunidades, ou seja, todo e qualquer tipo de evento que aconteça durante a Copa e antes da Copa, o calendário definido de julho de 2010 a julho de 2014, todo o calendário de eventos será organizado nesse núcleo. No núcleo de comunicação e dados, que envolve pesquisa, imprensa, comunicação visual e voluntariado, as pessoas com deficiência física podem vir a ter um papel fundamental, inclusive no fornecimento de mão-de-obra. 288 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social O estádio do Morumbi, como se sabe, possui uma arquitetura antiquada que está sendo adaptada. Ainda haverá um grande processo de adaptações que a FIFA tem exigido, principalmente porque há uma expectativa de que a abertura da Copa poderia ser realizada nesse estádio. É preciso compatibilizar a área que não está disponível com a área que a FIFA exige para realização de Copa do Mundo. Além do estádio do Morumbi, serão utilizadas as instalações do clube do São Paulo, toda a área social, e também a Praça Roberto Gomes Pedrosa, que fica bem em frente ao estádio, para que sejam montadas as áreas de hospitalidade que serão exploradas pela FIFA. Hoje o estádio tem 75 mil lugares, mas esse número cairá para perto de 62 mil. Será um estádio 100% coberto, independente da abertura da Copa. O investimento do São Paulo Futebol Clube (pelo acordo firmado com os Governos Estadual e Municipal, toda obra a ser realizada dentro do estádio ou do perímetro privado será paga pelo próprio clube). A Prefeitura, o Estado e a FIFA arcarão com as despesas provisórias de adaptação para a Copa do Mundo, num orçamento de 300 milhões de reais. Ainda há muitas dificuldades pela frente, o limite da responsabilidade se aproxima e alguns gargalos estão sendo enfrentados. No caso do São Paulo Futebol Clube, são as obras e a ausência de área para hospitalidade. No caso da cidade, do Governo do Estado, a definição do projeto da Praça Roberto Gomes Pedrosa e da Linha Ouro. A FIFA tem uma série de exigências que devem ser atendidas, inclusive algumas de acessibilidade que, felizmente, no caso do Morumbi já estão sendo providenciadas. No caso do Governo Federal, falta a definição dos projetos que serão financiados pelo BNDES, de aeroportos, etc. Este é um tópico particularmente importante: segundo dados de agosto de 2009, 71% de todos os voos internacionais do Brasil têm relação com os aeroportos de São Paulo. A INFRAERO tem sido bastante acessível, já demonstrou a sua preocupação com relação a essa questão também no passado, mas essa realidade pode comprometer em parte o evento, se não for tomada uma providência agora, pois infraestrutura aeroportuária não é algo que se faz do dia para a noite. Essa é uma concentração muito perigosa. Já hoje, sem a Copa do Mundo, a Agência Nacional das Águas fez um balanço e informou que é necessário um investimento de 27 bilhões de reais nos próximos anos para que não haja problema de abastecimento de água e problemas com esgotos em todas as regiões metropolitanas, as quais já consomem mais água do que têm capacidade de gerar. Portanto, se o investimento não for feito, além do apagão, haverá falta d’água também. 289 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social Voltando à questão das pessoas com deficiência e às duas vertentes apontadas, lembramos que a pessoa com deficiência física de qualquer grau participa do evento Copa do Mundo como expectadora e também como colaboradora. Em termos de inclusão social e profissional, é importante contar com planos de capacitação, de reciclagem, de atualização profissional, que as pessoas com algum tipo de deficiência participem também, pois esta é uma grande oportunidade de geração de emprego. O turismo, diferentemente de outros setores, é eminentemente utilizador de mão-de-obra. Ou seja, quando aumenta a produção do turismo, aumenta naturalmente a necessidade de interação com o ser humano. Eventos como esses têm essa capacidade, essa força motora e o comitê não trata os eventos Copa do Mundo, Olimpíada e Paraolimpíada como um objetivo final, mas como ponto inicial que capacita o Brasil para voos mais altos e outros eventos. É importante ter essa visão, principalmente do ponto de vista de formação de mão-de-obra. O que esperamos que aconteça no Brasil no pós-Copa? Primeiro, a eliminação de gargalos históricos de transporte. O investimento de 37 bilhões é bastante expressivo e vai realmente resolver alguns problemas históricos. No caso dos estádios, teremos doze arenas qualificadas, doze estádios em condições de receber qualquer tipo de evento, o que em si já constitui uma mudança cultural. No caso de serviços, obteremos um índice de qualificação que nunca conseguimos alcançar. E, no caso da promoção internacional, a cidade passará a receber mais eventos. Todos esses fatores proporcionarão melhor mão-deobra para atender às pessoas, melhor infraestrutura, melhor sistema de transporte, ou seja, é um jogo em que dificilmente o Brasil perde. A cidade de São Paulo realiza atualmente 90 mil eventos por ano, um evento a cada 6 minutos. Este próprio Encontro está engrossando essa estatística. Quem trabalha com eventos sabe da sua importância, da capacidade de geração de empregos, de manutenção das pessoas em suas comunidades, ou seja, o evento hoje é fundamental. Uma breve observação dos eventos mais importantes programados para a cidade de São Paulo nos próximos anos destaca a Fórmula 1, já garantida na cidade até 2014. Em 2013 temos Copa das Confederações. Em 2014, a Copa do mundo. Em 2015, teremos Congresso Mundial do Rotary, em São Paulo. A expectativa é de 50 a 60 mil pessoas que virão à cidade, do exterior, para participar do evento. Teremos os Jogos Olímpicos em 2016, considerando que os jogos de futebol das Olimpíadas serão em São Paulo, Brasília, Salvador 290 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social e Belo Horizonte. As finais é que serão no Rio de Janeiro. Haverá ainda os Jogos Paraolímpicos. Entre 2018 e 2020, pretende-se realizar uma “Expo” aqui no Brasil. Em 2010 haverá a Expo Shangai, em 1998 houve a Expo em Lisboa. Já houve diversas exposições desse tipo em vários países do mundo e São Paulo está se candidatando a fazer uma grande exposição mundial a partir de 2018. O horizonte de planejamento da cidade termina em 2022, com os 200 anos da Independência, que foi proclamada aqui no estado de São Paulo, que vai ser um grande evento também, sem contar a rotina desses 90 mil eventos anuais. Assim, a Copa do Mundo não é um ponto final, mas um pontapé inicial. Se for possível utilizar a força catalisadora da Copa do Mundo, um evento de muita expressão, para qualificar nossa mão-de-obra e nossa infraestrutura como se deve, poderemos tirar maior proveito de todos esses eventos. Em 2010 haverá também em São Paulo a C40, uma reunião com prefeitos das quarenta maiores cidades do mundo. Virão chefes de estado e grandes delegações. O horizonte de eventos na cidade de São Paulo é muito grande. Se conseguirmos capacitar a mão-de-obra e fazer os investimentos corretos, prever tudo que é necessário para uma atuação de inclusão, não esquecendo de nenhum tipo de público, mormente as pessoas com deficiência, resolveremos questões estruturais básicas, com rampas, solo tátil, esse tipo de equipamento. A título de exemplo, o Museu do Futebol, um projeto desenvolvido pela São Paulo Turismo, juntamente com a Fundação Roberto Marinho e o Governo do Estado, obteve um selo garantindo que a instituição é 100% acessível para qualquer tipo de público. Foi uma vitória para a qual se trabalhou muito, foram feitas várias adaptações no projeto. É um equipamento qualificado, que passou a ser o padrão de todos os equipamentos culturais da cidade de São Paulo. Roque de Lázaro Rosa: Inicialmente, cabe mencionar que a Linha 4 – Amarela do metrô de São Paulo terá a estação Morumbi, no ponto final da Linha Ouro, que deve começar a operar no próximo ano. Em 2011, a estação Morumbi deverá estar operando. O metrô de São Paulo faz parte de um grupo de benchmarking de metrôs, que procura as melhores práticas para os metrôs. É um grupo de 12 metrôs, do qual fazem parte os metrôs de Pequim, Shangai, Berlim e Londres, que estão enfrentando, ou enfrentaram, o 291 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social problema de grandes eventos, sejam a Olimpíada e a Paraolimpíada, seja a Copa do Mundo. O grupo desenvolve trabalhos a respeito de como o sistema de transporte pode atender a esses grandes eventos. Obviamente já existe alguma experiência em São Paulo com eventos de porte, como o Carnaval, a Parada Gay e vários outros, que carregam bastante o sistema de transportes. Além disso, há muito tempo se trabalha no sentido de prover a acessibilidade, garantir que todas as pessoas possam circular de forma autônoma no metrô. O início da operação do metrô de São Paulo foi em 1974. Naquela época, dobrou a quantidade de escadas rolantes do país. Só em 1981 começou o treinamento de empregados para o atendimento de pessoas com alguma dificuldade de mobilidade. Não havia elevadores, inicialmente; apenas escadas rolantes e escadas fixas. A circulação vertical era feita somente por esses meios. Em 1994, foram instalados nas Linhas 3 e 2 elevadores e cancelas nas estações. Antes de existirem as cancelas, as cadeiras de rodas tinham que ser carregadas por cima dos bloqueios. Na sequência, vieram as normas de edificação e de transporte público e a Lei 10.048. No ano 2000, o Conselho das Pessoas com Deficiência reuniu um grupo de pessoas e fez uma visita técnica, uma avaliação da acessibilidade no metrô. Em 2002, a partir desse trabalho, feito em parceria com as pessoas que efetivamente entendem do problema, apresentou-se um plano de ação institucional, que entrou em vigência naquele ano, com algumas obras. Desenvolveu-se um protótipo na estação Marechal Deodoro. A estação Marechal Deodoro é muito próxima da Instituição Lara Mara, que tinha uma afluência bastante grande de deficientes visuais naquela ocasião. Depois, veio a revisão da lei de acessibilidades e edificações, o decreto de regulamentação da lei, a revisão da norma de acessibilidade e um planejamento estratégico do metrô que incluía a parte de acessibilidade. A meta era implantar equipamentos, adequar as instalações para tornar acessíveis as estações e trens da rede existente e dos edifícios administrativos até dezembro de 2010. A data prevista na legislação, de 2012, em alguns casos até 2014, foi antecipada. Segundo a norma, desde o entorno da estação até o trem deve haver uma acessibilidade autônoma e, em situações de anormalidade nas entrevias (em caso de parada, por exemplo), a acessibilidade deve ser parcial, ou seja, assistida. Nesses casos, é necessária a presença dos funcionários. Esses são os princípios que estão sendo adotados atualmente no metrô de São Paulo. O planejamento estratégico prevê a implantação de equipamentos e a 292 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social adequação das instalações para tornar as estações de trens da rede acessíveis até 2010. Na primeira fase, de 2002 a 2007, havia um plano e uma verba do orçamento do Estado para esse fim. Investiu-se na estação Deodoro e algumas outras, mas ainda com muitas limitações. A partir de 2007, a acessibilidade passou a ser parte integrante do planejamento estratégico e hoje a previsão orçamentária já faz parte do orçamento do Estado e foi aprovada pela Assembléia, de mais de 63 milhões de reais. Um dos pontos críticos na acessibilidade do metrô, da CPTM e de todos os outros sistemas de transporte é a circulação vertical. Há elevadores nas linhas 3 e 2, mas não havia na linha 1. Hoje, há uma série de elevadores novos e, até 2010, todas as estações do metrô terão elevadores. Na Linha 3, o elevador ligava a área da rua à plataforma, ou seja, uma área não paga à área paga. Atualmente, o problema está sendo resolvido de outra forma. As escadas fixas e rolantes estão sendo adequadas, com recursos de sinalização e escadas novas. Alguns recursos de segurança foram necessários, porque algumas escadas eram lisas: atualmente, a escova do rodapé está implantada em quase todas as escadas do metrô. Na época da Copa, em todas as estações do metrô serão instalados totens para comunicação do usuário com uma central. Serão 450 equipamentos. Nesses totens, existe um vídeo, botões em braile e som, ou seja, há uma comunicação sonora e visual. Uma câmera pode captar a imagem do usuário e, o que é interessante, a comunicação será multilíngue, em português, inglês, espanhol e LIBRAS. Quanto aos bloqueios, haverá torniquetes mais largos para permitir a passagem de cadeiras de rodas. Haverá também um equipamento de redução do vão entre trem e plataforma. Há um protótipo, ainda em fase de desenvolvimento, que diminui a distância nas estações curvas, cujo vão está acima do valor especificado pelas normas. O monitoramento é um serviço prestado pelo metrô há muito tempo, em todas as estações, mediante solicitação. A pessoa com deficiência ou dificuldade solicita auxílio na entrada, é conduzida até o local de embarque e o centro de controle rastreia o passageiro até o seu destino. No destino, alguém já estará esperando para levá-la até o acesso de saída. Em 2005, foram 124 mil usuários assistidos; em 2008 chegou-se a 395 mil usuários, dos quais a grande maioria eram pessoas com deficiência visual. Em 2009, são 430 pessoas por milhão de passageiros transportados. O número 293 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social de passageiros transportados atualmente é de 3 milhões e meio por dia. Portanto, são cerca de 1.500 pessoas assistidas a cada dia. Há um trabalho de comunicação visual, sinalização e piso tátil. Foram instalados pisos antiderrapantes, sinalização de alerta nos degraus das escadas fixas e pintura de faixa branca para delimitar a plataforma. A faixa amarela atualmente é uma faixa tátil e serve também para manter as pessoas longe do trem enquanto ele está chegando. O piso tátil de alerta já foi instalado em todas as estações do metrô. Ele evita que as pessoas atinjam obstáculos ou corram riscos. O piso direcional pode levar uma pessoa com deficiência visual desde o acesso até o trem. Nos elevadores há câmeras, um painel permite que o usuário se comunique com o centro de operação da estação e há também uma botoeira em braile, para inicializar o contato. Dentro do elevador a sinalização é toda em braile e há comunicação por voz. Quando se chega a uma estação do metrô, todos querem se localizar na região. O metrô tem um mapa de arredores em todas as estações. São mapas muito interessantes, e há um mapa tátil de arredores, com sinalização em braile dos nomes das ruas e algumas instituições, alguns locais de interesse, por exemplo a Santa Casa, a FESP, a Biblioteca Monteiro Lobato, etc. Hoje existe apenas um desses mapas, na estação Santa Cecília, mas teremos esse mapa em todas as estações. Outro ponto é a veiculação de informação em tempo real. A nova comunicação visual utiliza recursos para veiculação em tempo real, por meio de vídeos em painéis de LCD, mostrando as mais diversas mensagens. As mensagens visuais são sincronizadas com mensagens sonoras. A nova comunicação visual vai ser bilíngue, em inglês e português. Provavelmente, será incluído também o espanhol. Outro tópico interessante é a representação por ícones, que facilita mais o entendimento geral do que palavras escritas. A adequação dos sanitários públicos às pessoas com deficiência está sendo feita e deve terminar ainda este ano ou no começo do próximo ano. São apoios de mão, o vaso na posição indicada pela norma, o caminho até o sanitário todo sinalizado. Tudo o que é necessário num sanitário público acessível estará disponível. Como nem todas as estações do metrô têm sanitário público, mas todas têm o sanitário do pessoal administrativo, todos os sanitários internos também estão sendo adequados, para que uma pessoa com deficiência possa ser atendida. Quem viaja de metrô já observou que todos os corrimãos foram trocados. São quilômetros e quilômetros de 294 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social corrimãos trocados, para que eles fiquem adequados à norma também. No caso de rampas, há corrimãos com dois níveis, para que as pessoas com cadeira de rodas possam utilizá-los. Outro ponto são os assentos para obesos. Todos os trens, em todas as estações, já têm assentos para obesos, como exige a legislação. Não tem havido grande uso, muito pouca gente usa. Pode ser utilizado por qualquer um, sem problema, mas é preferencial para o obeso. Há ainda os assentos preferenciais nos trens, para pessoas com mobilidade reduzida. Em cada carro, aumentou o número de assentos preferenciais. Todas as estações do metrô de São Paulo já têm telefones acessíveis para surdos e pessoas em cadeira de rodas. Para os surdos, na verdade, há um terminal com display e teclado e a pessoa pode se comunicar com a Telefônica. A Telefônica tem essa facilidade, inclusive para interconectar a ligação com um telefone comum. Já o telefone mais baixo facilita o uso do cadeirante. Desde 1981, os funcionários do metrô são treinados para a condução e o atendimento a pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Eles estão sendo requalificados. Foram 2.000 funcionários treinados em 2008 e mais 2.000 estão programados para 2010, para a condução de cadeira de rodas motorizada, outros 2.000 foram treinados em 2009, além da produção de vídeo e material didático de treinamento. Novos trens estão sendo adquiridos e toda a frota de trens do metrô está sendo modernizada, não somente por questões de acessibilidade, mas por outros motivos também. Há trens em circulação há 35 anos e, apesar da qualidade muito boa, as peças são antigas e já não existem no mercado. Portanto, é preciso realmente modernizar. Além disso, estão sendo incluídas várias facilidades e o vagão está sendo remodelado. O novo trem que está circulando na Linha 2 é o padrão que circulará em todas as linhas. Atualmente são 16 novos trens para a Linha 2 e 17 novos trens para as Linhas 1 e 3. Já foi contratada a modernização de todos os trens existentes nas linhas 1 e 3. Outro item implementado no metrô é o embarque preferencial. Em algumas estações, em alguns horários específicos, o carro-líder, que vai à frente, fica reservado aos idosos, às pessoas com deficiência e às gestantes. Um dos pontos críticos é a segurança. O grupo de benchmarking já mencionado ajudou bastante nesse sentido. Inclusive, a equipe de Londres veio ao Brasil; já haviam feito uma análise profunda da situação lá e ajudaram bastante a 295 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social equacionar a segurança aqui. Achava-se que a segurança era muito boa, porque não havia tantos problemas, mas aprendeu-se muito, houve mudanças e muita evolução. Atualmente, o metrô está terminando a implementação de um sistema de monitoração de segurança bastante amplo, que possibilita uma série de recursos. Houve ampliação da área de cobertura, até mesmo fora das dependências do metrô, há câmeras com zoom, com rotação, equipamento que permitem, inclusive, a identificação de imagens, etc. Todas as bilheterias estão blindadas. O público em geral não conhece os detalhes, mas a diminuição da quantidade de assaltos dentro do metrô é muito significativa. Hoje, o metrô de São Paulo tem um dos melhores indicadores de segurança do mundo. Por fim, sabe-se que São Paulo tem pouco metrô. O transporte público realmente carece de uma ampliação, na nossa visão. Espera-se que a Linha 2 até março tenha mais três estações em operação, até a Vila Prudente, integrando-se à CPTM, em Tamanduateí. Um sistema monotrilho ligará a Vila Prudente à Cidade Tiradentes, numa substituição do antigo Fura-Fila. A Linha 4 começa a operar parcialmente no ano que vem e, no ano seguinte, deverá estar operando totalmente, da Luz até Vila Sônia. A Linha 5, que hoje é apenas um apêndice, do Largo 13 até o Capão Redondo, até o final de 2010 deverá ter mais uma estação e, até 2013, todas as estações, passando por Moema, Vila Mariana, cruzando a estação Santa Cruz, da Linha 1, e terminando na estação Chácara Klabin, na Linha 2. Uma nova Linha é a 6; vai de São Joaquim até a Zona Norte. A Linha 15 será uma extensão da Linha 2. É uma linha nova, que se iniciará na Vila Prudente e cruzará a Linha 3 na Penha e a CPTM em Tiquatira. Vale lembrar que o transporte público não é só o metrô. Tudo deve estar integrado: metrô, CPTM, ônibus, etc. A CPTM está transformando 140 quilômetros de suas linhas em metrô, operando as linhas da CPTM como se fossem metrô, com baixo intervalo, regularidade, estações adequadas para atender à alta demanda. O Expresso ABC da CPTM utilizará o mesmo leito da linha turquesa, mas será um expresso, parando somente em algumas estações. A Linha 11 (Expresso Leste) será ampliada, haverá o Expresso Aeroporto, permitindo o transporte até o aeroporto de Guarulhos por trem, e o corredor de Guarulhos liga o Tucuruvi ao Aeroporto de Guarulhos por ônibus. Há ainda o corredor Itapevi e o corredor São Mateus/Jabaquara, que já existe, mas será expandido até o Brooklin, juntando-se à CPTM. Haverá 296 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social um VLT na Baixada Santista e o Corredor Noroeste na região metropolitana de Campinas. Novas frotas, 60 trens novos para a CPTM e 47 para o metrô, reforma e modernização de todos os trens da CPTM e do metrô. Enfim, a proposta é que o metrô tenha o mesmo padrão dos países que já abrigaram eventos como a Copa do Mundo, a Olimpíada e a Paraolimpíada. Nilce Maria Costa dos Santos: A INFRAERO é uma empresa pública, criada em 1972, com 31 mil empregos diretos e indiretos. É uma das maiores administradoras de aeroportos do mundo, responsável por 98% dos pousos e decolagens da aviação regular em solo brasileiro. Administra 67 aeroportos, 34 terminais de carga aérea, 68 grupamentos de navegação aérea e 50 unidades técnicas de aeronavegação. Quando se pensa na INFRAERO, geralmente se pensa em administração de aeroportos, mas a empresa também é responsável por grande parte do tráfego aéreo, inclusive em aeroportos que ela não administra. A empresa tem por missão prover infraestrutura e serviços aeroportuários com segurança, conforto e eficiência, e a sua visão de futuro é ser reconhecida pela excelência da infraestrutura e dos serviços aeroportuários. Não se pode imaginar a busca de excelência em infraestrutura se esta não for totalmente acessível e se as pessoas não estiverem adequadamente capacitadas para prestar um bom atendimento. Dentro dessa visão, a empresa criou uma política de acessibilidade que trata do assunto dentro de uma visão estratégica. A política de acessibilidade faz parte do planejamento empresarial. Ela é calcada em sete macro-objetivos que permeiam todas as vertentes de acessibilidade do aeroporto. Nos 16 aeroportos existentes nas 12 cidades que vão sediar a Copa do Mundo, há diversos investimentos previstos. No caso de Confins, em Minas Gerais, o terminal tem uma capacidade instalada para 5 milhões de passageiros e está prevista a ampliação e reforma do mesmo, passando para 8,5 milhões, com investimento da ordem de 383,5 milhões de reais. Diz-se que os aeroportos estão com a demanda de passageiros superior à sua capacidade. Realmente, é o caso de alguns deles, mas a empresa calcula a capacidade instalada em função do conforto do passageiro (1,5 m2 por passageiro) e, segundo essa projeção, vários aeroportos não estão totalmente saturados. No caso de Cuiabá, a capacidade instalada é 297 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social de 1,6 milhões de passageiros e passará para 2,3 milhões com um investimento de 85 milhões de reais. Em Curitiba, a ampliação do terminal de passageiros levará sua capacidade para 8 milhões, com um investimento de 70 milhões de reais. Em Fortaleza, a capacidade do terminal é de 3 milhões e, realmente, a demanda é de 4 milhões. Em 2014, a capacidade passará a 6 milhões, com um investimento da ordem de 156 milhões. No caso de Manaus, a capacidade do terminal dobrará com um investimento de 193 milhões. Em Porto Alegre também dobrará a capacidade do terminal, com a reforma e ampliação do terminal já existente e do pátio de aeronaves, com um investimento de 360 milhões de reais. O aeroporto de Recife já tem uma capacidade instalada de 8 milhões. A previsão para 2014 é uma demanda de 7,3 milhões de passageiros. Haverá uma ampliação na parte de pontes, com mais 4 pontes de embarque, com um investimento de 19,7 milhões. O aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, tem hoje uma capacidade instalada de 18 milhões de passageiros, opera 11,4 milhões. Com a reforma do terminal 1 e a finalização do terminal 2, essa capacidade passa para 26 milhões e a previsão é que, em 2014, a demanda de passageiros seja de 16,4 milhões. O investimento previsto para o aeroporto do Galeão é de 648 milhões de reais. Em Salvador, também haverá um investimento para construção da torre e reforma do terminal de passageiros, de 43 milhões. Em Congonhas, São Paulo, haverá um investimento de 250 milhões de reais. A capacidade hoje é de 12 milhões de passageiros, o aeroporto opera um volume de 13 milhões e terá uma capacidade de 15 milhões de passageiros. Já o aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, tem uma capacidade instalada de 20,5 milhões de passageiros, a demanda atual já é de 20 milhões e passará, em 2014, para uma capacidade de 30 milhões de passageiros, com a implantação, adequação, ampliação e revitalização dos sistemas de pistas e pátios e a construção do terceiro terminal. O investimento em Guarulhos é da ordem de 1,389 bilhão de reais. Em Campinas, a reforma do terminal de passageiros existente terá um investimento de 40 milhões e a construção de um novo terminal, um investimento total de 740 milhões. A capacidade atual, de 3,5 milhões passará a 11 milhões de passageiros. Estes são os investimentos que a INFRAERO realiza nos aeroportos das cidades que sediarão a Copa, totalizando 4 bilhões e 614 milhões de reais. Haverá também grandes investimentos em outros aeroportos, como Florianópolis, Goiânia, João Pessoa, Macapá. Diversos investimentos estão 298 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social sendo feitos nos aeroportos, além daqueles das cidades que sediarão a Copa, da ordem de 1,308 bilhão de reais. No aeroporto de Guarulhos, está sendo revisada uma obra específica de acessibilidade para tornar o aeroporto de Guarulhos totalmente acessível, com um investimento de 2 milhões de reais específico para a acessibilidade. A expectativa é que o aeroporto esteja totalmente acessível já no ano de 2010. A acessibilidade é um elemento indutor da inclusão social. Todos os requisitos de acessibilidade estão sendo rigorosamente cumpridos nos projetos de ampliação, reforma e construção de novos aeroportos. A empresa está indo além do que prevê a NBR 9050, em termos de conforto para o passageiro, no que se refere à questão da acessibilidade. Nos aeroportos, conforme determinação estabelecida pela área de engenharia, nos termos de referência da INFRAERO, todos os aeroportos com grande movimento terão banheiros com uma melhor adaptação, inclusive com bancadas para facilitar o uso em alguns tipos de deficiência, quando a pessoa necessita trocar uma fralda ou mesmo tomar um banho. Tudo isso já está previsto nos novos projetos. Contudo, não basta atingir a excelência em infraestrutura aeroportuária. É essencial incorporar o elemento humano, para que se possa garantir o acesso de todos. O fator humano é o aspecto principal em todo esse processo de acessibilidade. Pode-se ter o aeroporto totalmente acessível, mas as pessoas precisam estar treinadas para dar um bom atendimento. O aeroporto é um equipamento urbano importante, com processos complexos, o próprio embarque dos passageiros é complexo. Dificilmente haverá autonomia total aos diversos tipos de deficiência, em alguns momentos o passageiro precisa de assistência, portanto o atendimento é essencial. Sem um pessoal adequadamente treinado, os esforços dos arquitetos, engenheiros e planejadores tornam-se infrutíferos. O aeroporto do Galeão é antigo, foi construído numa época em que não havia todas essas exigências de acessibilidade, e adequar um aeroporto é muito mais difícil do que construir um aeroporto já acessível. Durante os Jogos Pan-americanos, para vencer as dificuldades de edificações que ainda não tinham sido totalmente adequadas, foi preciso fazer um trabalho muito forte de preparação de toda a comunidade aeroportuária, para atender aos 1.300 atletas com deficiência que vieram para os Jogos Parapan-americanos. Os funcionários do aeroporto de Guarulhos também foram capacitados, pois 299 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social diversos voos passavam pelo aeroporto, por conexão. No aeroporto do Galeão foram 800 pessoas, e realmente foi um sucesso. O pessoal do comitê organizador do Rio também foi capacitado para dar apoio, tanto no aeroporto quanto na Vila Olímpica. Foi uma experiência importante, inclusive para os próximos grandes eventos (Copa do Mundo, Olimpíada e Paraolimpíada). Foram capacitadas inclusive as pessoas que trabalham nos banheiros do aeroporto, porque muitas vezes o primeiro local aonde o passageiro quer ir, quando chega, é o banheiro. Os atletas chegavam com aquela cadeira de basquete, que tem a roda bem aberta; mesmo com a porta na dimensão estabelecida pela NBR 9050, a cadeira não passa. As pessoas já estavam treinadas para montar e desmontar as cadeiras. O atleta chegava, já tiravam a roda, entravam com o atleta, davam todo o atendimento. Foram treinadas as pessoas dos restaurantes e das lanchonetes, para que dessem apoio aos atletas, no momento de servir a comida. Todos os agentes da Polícia Federal, os agentes da Receita Federal, companhia aérea, concessionários, todo o pessoal da INFRAERO também foi treinado para prestar esse atendimento, e foram diversos os relatos dos atletas e elogios do próprio Comitê Olímpico Internacional, segundo o qual sempre ocorrem problemas nos aeroportos das Paraolimpíadas e não houve nenhum problema no Galeão. Um episódio que vale mencionar foi a chegada de atletas da Venezuela. Foi um voo fretado que chegou às duas horas da manhã. Não havia sido contratada uma empresa no Brasil para dar apoio no desembarque dos atletas. Chegaram 58 atletas usuários de cadeiras de rodas e a tripulação do avião simplesmente foi embora, deixou ali os 58 atletas dentro do avião. Dois colegas da INFRAERO e uma agente da Polícia Federal é que tiraram todos os 58 atletas da aeronave. As cadeiras vieram totalmente desmontadas e sem numeração. Não se sabia qual era a peça de uma cadeira e qual era de outra, foram três horas para montar todas as cadeiras e tirar os 58 atletas da aeronave. Pode-se imaginar o que teria ocorrido se o treinamento para manusear as cadeiras e dar o atendimento não tivesse sido realizado. Portanto, a experiência do Parapan foi muito rica, hoje sabe-se que o atendimento é essencial. No aeroporto em Sidney, na Austrália, existe um terminal doméstico e um terminal internacional, é preciso pegar um ônibus ou uma van para se deslocar de um terminal ao outro. Se Sidney conseguiu fazer uma Olimpíada, nós também, com os nossos aeroportos, com certeza vamos conseguir. Um consultor de Sidney ressaltou que o ponto principal é a preparação das 300 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social pessoas para o atendimento. É claro, há todo um trabalho de logística da administração aeroportuária com as companhias aéreas, com o comitê organizador, mas a parte do atendimento é essencial. Com base nessa experiência do Parapan, a INFRAERO estruturou um curso de atendimento a pessoas com deficiência que já está sendo levado aos aeroportos de todo o Brasil. Esse treinamento já foi feito em 38 aeroportos, com 5.200 colaboradores já treinados, são 990 pessoas treinadas para falar na língua brasileira de sinais, até 2011 todos os aeroportos da rede já terão esse curso e até 2014 os aeroportos das cidades-sedes da Copa do Mundo passarão por um treinamento anualmente. A meta é chegar a um contingente de 20 mil pessoas. A importância do curso de atendimento vai além da comunidade aeroportuária, especialmente em localidades mais distantes. Em Boa Vista, o SAMU havia sido criado 30 dias antes e a equipe do SAMU solicitou a participação no treinamento. Todo o pessoal do SAMU e do CREA, inclusive, foi treinado, na parte de atendimento. Em outros aeroportos, a própria Polícia Rodoviária Federal também solicitou a participação e o treinamento foi inclusive filmado, para que eles possam levar como proposta para capacitar o pessoal da Polícia Rodoviária Federal de todo o Brasil, porque eles dão também atendimento nos postos das estradas. Portanto, a INFRAERO faz um trabalho de transformação. O aspecto principal para o sucesso das ações voltadas para a acessibilidade, para as pessoas com deficiência, é mesmo essa transformação, uma mudança de consciência, uma mudança na forma de pensar e agir, e o curso está fazendo uma grande diferença. O quadro de instrutores já foi ampliado, com o apoio de uma empresa de São Paulo, a AME, do hospital Sara Kubitschek, que também treinou os colaboradores para lidar com a questão da deficiência física. Além da infraestrutura aeroportuária e das pessoas treinadas para o atendimento, é importante que haja uma boa conexão com outros meios de transporte. A viagem do passageiro não termina no aeroporto e, por isso, a interligação com os demais meios de transporte acessíveis é essencial. Há relatos de companhias de turismo que trazem grupos de pessoas para a cidade de Socorro, uma cidade desenvolvida como turismo acessível, e as pessoas conseguem desembarcar no aeroporto, mas não há um táxi adaptado, uma van adaptada ou um ônibus adaptado para levar o grupo até a cidade de Socorro. Para chegar ao aeroporto uma pessoa com deficiência deve ter a possibilidade de escolher entre os diversos meios de transporte existentes, 301 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social aplicando os mesmos critérios pessoais de custo, de tempo e de qualidade que qualquer outro indivíduo. Não basta o aeroporto estar totalmente adequado. É muito importante que os demais meios de transporte também estejam. Sem dúvida nenhuma, a Copa do Mundo, a Olimpíada e a Paraolimpíada são grandes oportunidades de transformação e inclusão social, e a INFRAERO está totalmente inserida nesse contexto. Além da responsabilidade com a integração nacional, a INFRAERO também tem um papel de agente de transformação que, com os demais fatores, contribui para a construção de um mundo melhor. Andrew George William Parsons: Comentando o episódio do desembarque dos atletas venezuelanos para os Jogos Parapan-americanos, realmente a INFRAERO resolveu toda a questão antes que o Comitê Paraolímpico Brasileiro tivesse que tomar qualquer medida, de maneira muito eficaz. Destaque-se que, em novembro de 2009, o Comitê Paraolímpico e a INFRAERO assinaram um contrato de patrocínio para o judô paraolímpico. A INFRAERO é a primeira empresa brasileira, que patrocina especificamente uma modalidade na versão olímpica, a estender o seu patrocínio à versão paraolímpica da mesma modalidade. A INFRAERO patrocinava a Confederação Brasileira de Judô e hoje patrocina também o judô paraolímpico brasileiro. Isso é integração, é encarar o atleta com deficiência da mesma forma que o atleta sem deficiência. Agora, passemos aos Jogos Paraolímpicos Rio 2016. Já se falou aqui em “legado”. Qualquer megaevento esportivo deve deixar um legado esportivo e não-esportivo para a cidade e para o país que o organiza e que o recebe. É preciso aproveitar a oportunidade da realização do evento para promover o desenvolvimento e a transformação, que podem ser de naturezas diversas. Para o movimento paraolímpico brasileiro e para as pessoas com deficiência, a oportunidade é de natureza esportiva. Trata-se de um evento esportivo e, acima de tudo, social. É uma oportunidade que nunca tivemos na história desse país. Por isso, o Comitê Paraolímpico Brasileiro se engajou desde o início nesse processo, desde o planejamento da candidatura, num processo muito extenso, voltando ao ano de 2001, quando se iniciou a candidatura para o Pan de 2007, que foi, obviamente, um dos caminhos para se chegar a 302 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social organizar os Jogos Olímpicos de 2016 e os Jogos Paraolímpicos de 2016. Desde o início, a proposta foi organizar, já em 2001, seis anos antes, os Jogos Pan e Parapan-americanos. O Brasil saiu na frente, mostrando uma visão mais inclusiva, com um pouco mais de integração, mesmo antes do chamado boom do esporte paraolímpico, do momento da virada do esporte paraolímpico, que foi o ano de 2004. Por isso, vale destacar alguns aspectos do planejamento para 2016. Primeiramente, o conceito dos jogos. Existe uma frase, um conceito, uma filosofia dos jogos Paraolímpicos de 2016: “Integração e mudança, através da igualdade”. Ou seja, a mudança está no conceito dos jogos, está no DNA do planejamento de 2016. Portanto, os jogos paraolímpicos têm que representar mudança. O movimento paraolímpico brasileiro empenhará todos os seus esforços para que esta não seja uma festa puramente esportiva. E quando se diz “através da igualdade”, é porque é dessa forma que os jogos serão realizados, com um só Comitê Organizador para Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. Isso significa que o departamento que planeja, por exemplo, o transporte, planejará o transporte dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, ou seja, o serviço prestado aos atletas com deficiência será do mesmo nível, com a mesma qualidade, com a mesma eficiência, que o prestado aos atletas olímpicos. Essa é a maneira como os jogos serão organizados: cada departamento cuidando sempre dos dois jogos. Entretanto, haverá ali um Departamento de Jogos Paraolímpicos, capitaneado pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro, dentro da estrutura do comitê organizador, para garantir essas entregas. O Departamento de Jogos Paraolímpicos terá uma visão que permeará todas as outras áreas funcionais: transporte, segurança, alimentação, vila, marketing, promoções, revezamentos das tochas olímpica e paraolímpica, todos esses departamentos, que são inúmeros dentro de um comitê organizador. O Comitê Paraolímpico Brasileiro, por meio do Departamento de Jogos Paraolímpicos, terá uma visão transversal, porque muitas vezes é fácil perder o foco dos Jogos Paraolímpicos. O escopo dos Jogos Olímpicos é maior, temos que admitir, os Jogos Olímpicos vêm antes, então são dois desafios que às vezes se impõem, mas em nenhum momento se pode perder de vista que os Jogos Paraolímpicos ocorrem um pouco menos de 10 dias depois, contando a chegada das delegações. A candidatura brasileira, a candidatura do Rio, baseou-se em sete conceitos, dos quais mencionaremos alguns. O dossiê de candidatura, além de ser uma 303 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social publicação que detalha ao Comitê Olímpico Internacional como pretendemos entregar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, é um documento de compromisso. Não se pode escrever no dossiê e submeter ao Comitê Olímpico Internacional um planejamento que não será cumprido. O que se escreve ali é um compromisso perante o Comitê Olímpico Internacional. Muitos falam que no Pan e no Parapan muita coisa foi prometida, mas não se deve confundir a ODEPA com o COI. O escopo dos Jogos Olímpicos é diferente do escopo dos Jogos Pan-americanos. O que foi proposto terá que ser cumprido. Um dos conceitos-chave, que está escrito no dossiê, é a acessibilidade universal. Além das instalações esportivas, ruas, espaços públicos, o modelo de transporte da cidade do Rio de Janeiro terá que ser transformado para garantir benefícios de longo prazo, ou seja, o modelo de transporte da cidade do Rio de Janeiro vai sofrer uma intervenção para os Jogos, e o novo modelo foi concebido para ser acessível desde o seu início. Como já mencionou a Nilce, é mais barato projetar e construir algo acessível do que reformá-lo depois. É dessa forma que o sistema de transporte da cidade do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos e paraolímpicos foi concebido. Outro conceito é a inspiração. Novos atletas com deficiência vão surgir, novos herois, novas referências. Eles vão ajudar a educar a população brasileira e a inspirar a delegação brasileira. É a cultura inclusiva. A educação será um ponto fundamental nos jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. Toda uma geração de jovens e crianças no Brasil será educada para respeitar e compreender o universo das pessoas com deficiência, para que a pessoa com deficiência seja respeitada e entendida como um igual, com uma característica diferente daquela criança, que não tem deficiência, mas que deve ser respeitada e ter igualdade de direitos e oportunidades. É um legado tangível. Nesse caso, um legado tangível esportivo. As instalações esportivas serão todas acessíveis para os atletas e o público. O Centro Olímpico e Paraolímpico de treinamento será construído na Barra da Tijuca, na região do autódromo. O Centro Olímpico, o coração dos Jogos, que será na Barra, depois se tornará um centro de treinamento para atletas olímpicos, mas também para atletas paraolímpicos. Onze modalidades paraolímpicas poderão utilizar aquele centro, na Barra da Tijuca, para preparar as equipes paraolímpicas futuramente, após 2016. Além disso, há um legado esportivo intangível, que é a força de trabalho. Os profissionais treinados no esporte paraolímpico, que hoje participam dos eventos, das 304 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social delegações, que trabalham no Comitê Paraolímpico, nas federações e nos clubes paraolímpicos, foram treinados e formados durante o Parapan. O mesmo acontecerá durante os Jogos Paraolímpicos. Teremos uma infraestrutura esportiva melhor para o esporte paraolímpico e o desenvolvimento do desporto no Brasil. O sistema de transporte é hoje um dos maiores desafios na hora do recrutamento, na hora do treinamento de atletas paraolímpicos. Se um atleta não consegue chegar ao seu local de treinamento, obviamente ele não treina. Se um atleta não consegue se deslocar até aquela praça esportiva aonde vai competir, obviamente ele não compete. Por incrível que pareça, o transporte ainda hoje (São Paulo tem uma situação privilegiada diante do resto do país) é um dos maiores obstáculos para a pessoa com deficiência iniciar a sua carreira esportiva. E esse será um dos legados. O modelo de transporte do Rio de Janeiro foi concebido para ser absolutamente acessível, já em 2014. Existe um decreto no Rio de Janeiro, segundo o qual já na Copa do Mundo todo o sistema de transporte terá que ser acessível. Com isso, espera-se que não só os visitantes possam se movimentar para as praças desportivas durante os jogos, mas depois os atletas ou pessoas com deficiência do Rio de Janeiro também possam se deslocar de uma forma mais livre. A acessibilidade não abarca só a pessoa com deficiência, mas outros segmentos, e esses segmentos somados totalizam um número bastante considerável da sociedade brasileira, que também se beneficiam das obras de acessibilidade no meio de transporte. Em termos de hotelaria e acomodação, os novos hotéis que serão construídos no Rio de Janeiro para os jogos Olímpicos e Paraolímpicos estarão dentro dos padrões estabelecidos pelo comitê paraolímpico internacional, ou seja, com 5%, pelo menos, de quartos adaptados acessíveis. O objetivo é atingir, pelo menos 1% de quartos acessíveis em todo o Rio de Janeiro, considerando os hotéis que já existem. Infelizmente, muitos dos hotéis que já existem não têm nenhum quarto adaptado. A ideia é fazer com que haja um balanço, colocando-se mais quartos adaptados nas novas construções para suprir de alguma forma os hotéis hoje existentes que não têm qualquer tipo de quarto adaptado. Em termos de acessibilidade, será formado um painel nacional de especialistas para trabalhar junto com o gerente de acessibilidade do comitê organizador e com o painel internacional de acessibilidade. São experiências internacionais 305 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social capitaneadas pelo Nick Morris, o consultor mencionado pela Nilce. Reunindo essa experiência internacional, com bons exemplos dos Jogos Paraolímpicos, à experiência nacional, serão revisados todos os projetos, sejam eles esportivos ou de infraestrutura. Já temos bons exemplos de mudança positiva com os Jogos Paraolímpicos. Em Pequim, a cidade se transformou, não somente nos hábitos. Os chineses realmente pararam de cuspir no chão, mas na China havia um aspecto cultural muito peculiar, a pessoa com deficiência era vista de outra forma: se você tem uma deficiência, o problema é seu. Essa mentalidade, com os Jogos Olímpicos, se transformou. Também se transformou a cidade, no que diz respeito a barreiras arquitetônicas, à acessibilidade no metrô, que mudou de forma significativa com o advento dos Jogos. Atenas é sempre um exemplo não muito positivo em termos de organização de Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. A Olimpíada e Paraolimpíada de Atenas não foi bem organizada. Poucos anos antes dos jogos, o COI ameaçou retirá-los de lá, mas no que diz respeito à acessibilidade, o programa ERMIS de Atenas é uma referência internacional. A cidade de Atenas mudou, ela tem uma topografia difícil, assim como o Rio de Janeiro. Uma intervenção numa favela que fica num morro, em termos de acessibilidade, é difícil e tem que ser feita, pois hoje uma pessoa usuária de cadeira de rodas numa favela é praticamente um prisioneiro da sua casa, do seu barraco. Atenas não tem esses morros, mas é uma cidade com muitas ladeiras e fez um programa bastante interessante de acessibilidade. A Olimpíada e Paraolimpíada de Atenas foi o momento da virada. Havia uma frase dentro do Comitê Paraolímpico Brasileiro, um dito, que era o seguinte: os atletas paraolímpicos brasileiros sempre ganharam medalhas e tiveram bons desempenhos internacionais, desde 1972, só que ninguém sabia. Eles iam para o exterior, competiam, ganhavam medalhas, muitas vezes de ouro, voltavam ao Brasil e nada acontecia. Um exemplo muito bom é o do Antônio Tenório, um judoca medalhista de ouro em Atlanta 1996, Sydney 2000, Atenas 2004 e Pequim 2008. Seria interessante perguntar ao Antônio Tenório o que cada medalha de ouro daquelas representou em mudança na sua vida. Quando ele voltou de Atlanta, não havia ninguém no aeroporto para esperá-lo. Quando voltou de Pequim, já era um atleta patrocinado, com um nível de vida e uma possibilidade de treinamento bastante melhor, um atleta conhecido e reconhecido no Brasil. Essa diferença tem uma explicação muito simples, na verdade. Em 2004, o Comitê Paraolímpico Brasileiro 306 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social resolveu fazer com que o Brasil vivenciasse os Jogos Paraolímpicos de Atenas. Comprou os direitos de transmissão dos jogos pela televisão, e sublicenciouos, sem custo nenhum, para as redes de televisão nacionais. Muitos disseram que o CPB não devia gastar dinheiro em comunicação, mas no treinamento de atletas. O CPB respondeu que “os atletas nós temos; o Brasil tem grandes atletas. O Brasil precisa entender que o esporte paraolímpico é de alto rendimento”. Não é um festival ao qual as pessoas com deficiência vão com o objetivo de estarem juntas, um grande momento de congraçamento. Não. Trata-se de esporte de alto rendimento. O Clodoaldo Silva, por exemplo, treinava 6 dias por semana, 8 horas por dia. Ele não queria ir confraternizar, queria ganhar o maior número de medalhas de ouro possível e bater todos os recordes mundiais que pudesse. Tinha os mesmos objetivos que um atleta convencional. O CPB sabia que, até que o Brasil visse os jogos ou acompanhasse as transmissões pela televisão, essa mentalidade não mudaria. Éramos muito confundidos com o Special Olympics, um movimento bastante interessante, mas que visa a participação. O esporte paraolímpico visa a qualquer coisa, menos a participação. Já de início, o recorde mundial de transmissão foi batido, com 168 horas de transmissão ao vivo para o Brasil. Praticamente toda a Paraolimpíada, mais as cerimônias de abertura e encerramento, foram transmitidas ao vivo. A emissora que transmitiu todo o evento foi o SporTV, que não é de TV aberta, mas tem um grande público e acabou despertando o interesse das outras redes de televisão que estavam em Atenas. Assim, conseguiu-se que o Brasil visse, vivenciasse e entendesse os jogos paraolímpicos. No primeiro dia de competição pela televisão, ouviram-se dúvidas sobre a classificação funcional (“Por que aquele chinês que não tem os dois braços, na natação, está competindo com aquele menino do Brasil que não tem um braço e não tem uma perna?”) A partir do segundo ou terceiro dia, o sentimento, principalmente nas crianças, já era outro. “Eu quero que o brasileiro ganhe. Eu quero que ele ganhe do argentino. Eu quero que ele pegue aquele americano, quero que o Tenório jogue aquele americano no chão. Eu quero que a Adria Santos vença aquela chinesa, vença a espanhola.” E esse é o sentimento que todos nós temos quando a gente acompanha Olimpíada. Provavelmente, ninguém que conheçamos é especialista em badminton, em tiro com arco ou pentatlo moderno, mas, na Olimpíada, todos viram especialistas nessas modalidades. Falamos: “Esse menino do Brasil não está treinando direito o badminton” - porque queremos ver o Brasil ganhar algo. 307 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social O brasileiro gosta das modalidades nas quais o Brasil ganha, como o tênis com o Guga, a Fórmula 1 com o Senna, o vôlei com a seleção vitoriosa há muitos anos. E somos ótimos no esporte paraolímpico. O Brasil ainda tem muito a caminhar quanto à inclusão social e ao respeito à pessoa com deficiência, mas somos uma potência paraolímpica. Estamos entre os dez melhores do mundo. Temos um longo caminho ainda, mas somos uma potência. Esse sentimento, essa transformação será um dos maiores legados que o Rio 2016 poderá deixar. Quando uma pessoa sem deficiência se pega tendo como ídolo, se pega sendo fã de um menino como o Daniel Dias, por exemplo, que tem uma malformação congênita, de certa forma grave, muda o conceito daquela pessoa. O esporte tem essa capacidade, Talvez só o esporte consiga esse tipo de fenômeno. O esporte tem o momento da conquista muito evidente, você tem o pódio, a medalha, o recorde mundial. Quando se vê um atleta como o Clodoaldo, o Daniel Dias ou o André Brasil ganhando 6 medalhas de ouro, Lucas Prado ganhando medalha de ouro nos 100, 200, 400 metros, um cego que diz que vai ser o primeiro cego do mundo a correr os 100 metros abaixo de 11 segundos, tudo isso muda a perspectiva das pessoas. Só é possível mudar a realidade a partir do momento em que muda a perspectiva que a pessoa tinha antes sobre determinado assunto. Como exemplo, o vice-presidente do Comitê Paraolímpico é o Mizael Conrado, bicampeão paraolímpico do futebol de 5. Ele é totalmente cego desde o início da adolescência. Antes de perder a visão, como bom sãopaulino, era fã do Careca, daquele time campeão brasileiro de 86, e o seu sonho era ser jogador de futebol. Quando perdeu a visão, achou que o seu objetivo de vida havia sido eliminado, até que descobriu um instituto em São Paulo, o Padre Chico, onde ouviu uma algazarra e perguntou à irmã (que o levava pela mão) que barulho era aquele. A irmã disse: “São os meninos jogando bola”; ele perguntou, “Mas aqui não é um instituto para cegos?” e ela respondeu: “Mas são eles que estão jogando”. Mizael começou a jogar futebol e tornou-se campeão mundial. No primeiro mundial, em 98, foi eleito o melhor jogador do mundo, foi bicampeão paraolímpico em 2004 e 2008. Hoje, o menino que fica cego aos 12, 13 anos de idade não precisa sonhar em ser o Ronaldo ou o Kaká. Ele pode sonhar em ser Mizael Conrado. Ele tem um modelo real, alguém que tem uma deficiência como ele, um exemplo ao qual ele pode sonhar em ser igual no futuro. E isso, sem dúvida nenhuma, 308 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social tem um efeito multiplicador muito grande. O circuito Loterias Caixa de Atletismo e Natação aconteceu em Curitiba, dois anos atrás, num final de semana na Universidade Positivo. Na semana seguinte, de segunda à sexta, só na academia de natação de um dos treinadores da cidade, mais de 60 pessoas com deficiência procuraram a natação. Foi o efeito multiplicador de um evento de dois dias. Sente-se na pele a demanda que os Jogos Paraolímpicos ou Parapan-americanos geram com o exemplo. Cada vez mais pessoas com deficiência saem das suas casas para fazer esporte. Isso não quer dizer que elas serão campeãs paraolímpicas ou vão integrar a seleção paraolímpica do Brasil, mas, sem dúvida nenhuma, melhorarão a sua qualidade de vida. O esporte integra, não é um jargão ou uma frase feita. No esporte se encontram boas amizades, amigos com interesses positivos. Não é à toa que o esporte é um dos melhores instrumentos no trabalho com comunidades em situação de risco, para retirar o jovem da criminalidade. O esporte parece um remédio universal, uma panaceia. Coloque-se o esporte na favela e tudo mudará. É uma das formas de exercício de cidadania que agrega mais fatores positivos. Além disso, tem um aspecto muito interessante de convencimento do potencial da pessoa com deficiência, porque quando a pessoa sem deficiência se pega fã de uma com deficiência, começa a entender que essa pessoa com deficiência pode ser feliz, pode produzir e consumir. A pessoa com deficiência usa celular. Os cegos adoram telefone, usam celular, tomam refrigerante, comem em lanchonete, usam cartão de crédito. Uma fatia enorme dos consumidores brasileiros está ficando à margem, quando automaticamente se pensa que a pessoa com deficiência é um cidadão de segunda classe. E o esporte convence as pessoas do contrário. Um dos sentimentos, talvez, mais perversos é quando alguém sem deficiência olha uma pessoa com deficiência e fala: “coitado”. Classifica-a automaticamente, separa-a da sociedade de alguma forma. Ou: “Essa pessoa está sobrevivendo. Ela é cega, mas que bacana, faz isso ou aquilo; sobrevive.” Não. Existem pessoas com deficiência felizes e existem pessoas sem deficiência felizes, existem pessoas com deficiência tristes e pessoas sem deficiência tristes. Pessoas amarguradas com e sem deficiência, pessoas eficientes com ou sem deficiência, pessoas que produzem com ou sem deficiência. O esporte tem esse grande poder transformador. 309 A Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas como Vetores de Transformação e Inclusão Social Se antes os atletas brasileiros iam às competições, ganhavam medalha e ninguém sabia, em Atenas e Sidney souberam, em Atenas viram e no Rio 2007 vivenciaram. Havia mais gente no Maria Lenk no Parapan do que no Pan. No primeiro e no segundo dia havia muitos estudantes da escola pública, mas no terceiro, quarto e no penúltimo dia de competição, havia uma fila quilométrica do lado de fora, pois as pessoas queriam ver o Brasil ganhar. Foram no primeiro dia, viram Daniel Dias, Clodoaldo, André Brasil e falaram: “Eu vou voltar. Esse esporte é entretenimento, ele é emocionante. O Brasil ganha, eu vejo um brasileiro no topo do pódio, escuto o Hino Nacional, isso aqui é esporte. Eu vou voltar amanhã”. Esse é o grande legado não tangível que o esporte paraolímpico pode proporcionar no Rio 2016. Se o Parapan foi muito importante por ser no Brasil, em 2016 teremos um momento único na história para fazer com que, de uma vez por todas, se entenda que a pessoa com deficiência é uma pessoa que tem suas características, que a sua deficiência pode limitá-la em algum aspecto da vida, mas não a limita em todos os aspectos. Pessoas sem deficiência têm aspectos muito mais limitantes, às vezes. 310