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PARTE VIII
DTI 8
Recepção
e Consumo na
Comunicação
A segunda tela como extensão da televisão digital
The second screen as an extension of digital tv
D aya n n e C r i s t i n e
Ta c i a n a
de
de
Oliveira Leite1
Lima Burgos2
Resumo: Este artigo tem com objetivo analisar as interações sociais que ocorrem
nos dispositivos móveis e que configuram o hábito de usar a segunda tela
enquanto se assiste televisão. Os resultados mostraram que a audiência conectada
estende e amplia na segunda tela sua experiência com a TV. A interação entre
receptores e emissores de conteúdo, ou entre a própria audiência tem inovado
a experiência dos telespectadores com a televisão. Concluímos que o uso de
um dispositivo móvel não substitui a mídia tradicional, pelo contrário, ratifica
e complementa. Utilizamos a teoria das Hipermediações de Scolari (2008)
associada ao método da etnografia digital e aplicamos no campo empírico do
aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão.
Palavras-Chave: Segunda tela. Televisão Digital. Aplicativo. Interação.
Abstract: This paper analysis the social interactions that occur on mobile devices
and that form the habit of using the second screen while watching tv. The results
showed that the audience connected extends and expands on the second screen
your experience with TV. The interaction with receptors and content issuers, or
between the audience itself has innovated the viewer’s experience with television. We conclude that the use of a mobile device does not replace traditional
media, on the contrary, confirms and complements. We used the theory of Hipermediations of Scolari (2008) associated with the method of digital ethnography
and applied in the empirical field Globo app, of Rede Globo de Televisão.
Keywords: The second screen. Digital Television. Application. Interaction.
INTRODUÇÃO
CRESCENTE POPULARIZAÇÃO e apropriação das tecnologias digitais, especial-
A
mente da internet, tem favorecido a participação do telespectador no processo de
produção de conteúdo pelo fato de que ele não mais apenas recebe, mas também
compartilha, assim como produz e critica conteúdo midiático num processo de interação
em tempo real. Este hábito, proporcionado pela troca de informações entre telespectadores, potencializado pelas mídias digitais, enseja novas estratégias de retenção de
1. Mestranda do Programa de Pós - Graduação em Estudos da Mídia. PPGEM/UFRN, dayufrn@yahoo.
com.br.
2. Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social da UFRN e membro docente permanente
do Programa de Pós - Graduação em Estudos da Mídia, PPGEM/UFRN, [email protected].
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público, e, por conseguinte, novos produtos midiáticos. “Os novos consumidores são
mais conectados socialmente. Se o trabalho de consumidores de mídia já foi silencioso
e invisível, os novos consumidores são agora barulhentos e públicos” (JENKINS, 2009,
p.47), um comportamento que para Lévy (1999, p.11) “é resultado de um movimento
internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação
diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem”. Segundo o autor, cabe aos
atuais produtores de conteúdo explorar as possibilidades e os recursos que surgem nos
diversos campos, entre eles, o econômico, o político, o cultural e o humano. Sem alternativa, a televisão da era digital tenta adaptar-se aos hábitos da audiência conectada e
acompanhar o ritmo das transformações. Essas novas práticas culturais se configuram
no ciberespaço por meio das mídias digitais interativas. Lemos (1997, p. 2) afirma que
“podemos dizer que os novos media digitais vão proporcionar uma nova “qualidade”
de interação, ou o que chamamos hoje de “interatividade”: uma interação técnica de tipo
“eletrônico-digital””, ou seja, uma ação dialógica entre homem e máquina. Uma nova
forma de relação que envolve, especialmente, a televisão.
Nesta fase de convergência da mídia tradicional com os novos meios, Gosciola
(2013) destaca que é fundamental absorver o processo da transmidiação, ou seja, a
narrativa adotada para as novas mídias em que uma história é dividida em várias
partes e distribuída para plataformas mais adequadas ao seu objetivo, sem ser essencial
para a compreensão de nenhuma delas. Segundo o autor, as estratégias de mídia pouco
progridem em comparação aos meios digitais convergentes porque estes estão em rede,
são portáteis, ubíquos e pervasivos. A cultura participativa fomentada no ciberespaço
potencializa a transmidiação porque tudo está interconectado e as atividades cotidianas
incorporadas à rede. “Penso que as narrativas vão se permeando a partir da evolução dos
recursos e procedimentos de comunicação, promovida principalmente pela convergência
e miniaturização das mídias” (GOSCIOLA, 2013, p. 285). Para Immacolata e Gomes (2014,
p. 260) o objetivo da narrativa transmídia “é criar uma experiência de entretenimento
unificada e coordenada, ampliando a narração ou agregando novos detalhes ao que
já é conhecido”. A televisão digital brasileira se insere nesse contexto adicionando à
exibição da sua programação aplicativos para interação, tais como: Aplicativo Globo,
BBB15, Medida Certa, entre outros. Tais aplicativos, instalados em smartphones ou tablets
interligam a navegação na internet com o conteúdo televisivo e passam a atuar como
segunda tela. Uma conjunção que amplia a participação e interação dos telespectadores
com o conteúdo televisivo. Nesta pesquisa, foi verificado o empenho em estender a
transmissão dos conteúdos televisivos para a plataforma virtual e que a narrativa
transmídia foi essencial na produção e distribuição do conteúdo, além da tentativa de
fidelizar os espectadores que estão em rede, navegando na internet por influência de
conteúdo televisivo. Segundo Scolari (2008)
Não só muda o processo de produção: o produto também é diferente. As hipermediações
se caracterizam por gerar metaprodutos que combinam linguagens e meios tradicionais
dentro de um formato interativo. A hipertextualidade, a multimedialidade e a interatividade
são alguns dos traços distintivos desta produção (Scolari, 2008, p 287. Tradução nossa). 3
3. Pero no sólo cambia el proceso de producción: el producto también es diferente. Las hipermediaciones
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A teoria das Hipermediações de Scolari (2008) nos traz a base para tratar da comunicação digital interativa e o atual ecossistema de meios. De acordo com a teoria, a
distribuição muitos a muitos está transformando o principal e tradicional modelo de
distribuição da indústria audiovisual, o sistema broadcasting. Desde que a comunicação
se tornou interativa e multimídia as pessoas criaram novas rotinas produtivas mantendo
o usuário/consumidor em constante atuação, colaboração, criação e compartilhamento
de conteúdo e ideias.
Neste sentido, o presente artigo visa analisar como ocorrem as interações firmadas
entre os conteúdos veiculados pela televisão digital brasileira e os usuários de aplicativos
móveis de programas de TV, mais especificamente entre os utilizadores do Aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão, durante as transmissões dos jogos da copa do
mundo, de 2014, tendo em vista a aplicação do conceito de segunda tela. Como método,
empregamos a Etnografia Digital associada à técnica da observação não participante.
Este artigo faz parte da pesquisa de mestrado em andamento intitulada A segunda
tela como extensão da televisão digital: uma reconfiguração do hábito de ver TV, a qual
integra o Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia, da UFRN, Brasil, na linha
produção de sentido.
UMA NOVA FORMA DE VER TV
O já habitual consumo de conteúdo na internet, principalmente por parte do público
jovem, desencadeou uma tendência verificada nas últimas pesquisas: é crescente o uso
de duas mídias simultaneamente. De acordo com Immacolata e Gomez (2014), graças à
expansão dos serviços de banda larga e tecnologia 3G, além dos pacotes de dados ofertados pelas operadoras de telefonia móvel, em 2013, o Brasil tinha mais de 102 milhões de
usuários de internet, destes, 43 milhões estavam on-line via dispositivos móveis. Ainda,
segundo os autores, 60 milhões de pessoas, em média, acessam conteúdos televisivos
via internet. Hábito que tem sido sempre mais incentivado pela indústria audiovisual
como estratégia para reter a audiência que migrava para a internet.
O consumo simultâneo de mídias, sendo consumo aqui considerado como apreensão tangível e intangível de ideias e produtos, especialmente os da grade de programação televisiva, prova o que vários teóricos, tais como Scolari (2008), Cannito (2010) e
Jenkins (2009) haviam previsto: os meios de comunicação tradicionais não estão sendo
substituídos, mas aprimorados, reprogramados para convergir com outras tecnologias.
Diante deste cenário, convém refletir
Como a difusão de novas práticas midiáticas interativas (como navegar na internet, viver
em Second Life, ou jogar videogame) afetam os meios tradicionais. Esta experiência de fruição hipertextual tem construído um tipo de leitor acostumado à interatividade e às redes,
um usuário expert em textualidades fragmentadas com grande capacidade de adaptação
a novos meios de interação. Os meios de comunicação estão tendo que adaptar-se a estes
novos espectadores. Isso não significa, convém repetir, que vão desaparecer as formas
se aracterizan por generar metaproductos que combinan los lenguajes y medios tradicionales dentro de un
formato interactivo. La hipertextualidad, la multimedialidad y la interactividad son algunos de los rasgos
distintivos de esta producción. (Scolari, 2008, p.287)
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televisivas anteriores, senão que passa para um segundo plano ou se combinam com as
novas para dar lugar a formatos híbridos (Scolari, 2008, p. 5, tradução nossa).4
Esta cultura digital junto às práticas midiáticas interativas deu origem a um hábito
popularmente denominado segunda tela. O termo, que não tem autoria definida na
literatura acadêmica, se convencionou utilizar quando o telespectador faz uso de um
dispositivo eletrônico móvel, como smartphone ou tablet, enquanto assiste à primeira
tela, ou tela principal, que neste estudo é a da TV. Cannata (2014) reforça que segunda
tela é quando a navegação na internet é direcionada por conteúdo televisivo.
Considerar, portanto, o smartphone a segunda tela, significa dizer que, naquele momento, a
navegação feita pelo usuário nesse dispositivo sofreu a influência ou a orientação, intencional
ou não, do conteúdo exibido na primeira tela, no caso, a televisão. Portanto, a definição de
primeira ou segunda tela diz sobre a atenção inicial e o foco de concentração do usuário
no momento que dispõe de duas telas. Se a televisão não exercer qualquer influência sobre
os rumos da navegação na rede, a experiência não é de segunda tela (Cannata, 2014, p. 75).
Esta conjuntura exige pensar as formas de consumo de conteúdo midiático, especialmente no que concerne às relações do público com a televisão mediante a convergência digital. Nesse sentido Braga (2012) exorta que as interações sociais são o lugar
de ocorrência da comunicação. Corroborando este pensamento Martín-Barbero (2001)
sugere investigar as interações comunicativas culturais, ele acrescenta que “a recepção
não é apenas uma etapa do processo de comunicação. É um lugar novo, de onde devemos
repensar os estudos e a pesquisa de comunicação” (SOUSA, 2002, p. 39). Estes conceitos
embasam nossa fundamentação teórica sobre a análise das interações no ambiente de
mídias digitais. Partimos do pressuposto de que é por meio da tela de dispositivos
móveis que o telespectador conectado está interagindo com conteúdo televisivo e com
outros atores sociais.
METODOLOGIA
O campo empírico para análise das interações sociais em dispositivos móveis é o
Aplicativo Globo, da Rede Globo de Televisão. A pesquisa foi realizada de 12 de junho e
13 de julho, período de realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Com o objetivo
de diagnosticar como ocorrem as interações na referida comunidade virtual, foi utilizado
como método a Etnografia Digital associada à técnica da observação não participante, que
traz subsídios para refletir sobre as interações que ocorrem entre a audiência conectada
e os produtores de conteúdo audiovisual. “Uma vez que pensemos o ciberespaço como
um lugar onde as pessoas fazem coisas, nós podemos começar a estudar exatamente
o que é que elas fazem e por que, nos seus termos, elas o fazem” (HINE, 2000, p. 21).
4. Cómo afecta la difusión de nuevas prácticas mediáticas interactivas (como navegar en la web, vivir en
second life, o videojugar) a los médios tradicionales. Esta experiência de fruición hipertextual ha construido
un tipo lector acostumbrado a la interactividad y las redes, un usuário experto en textualidades fragmentadas con gran capacidade de adaptción a nuevos entornos de interacción. Los medios de comunicación
han debido adaptarse a estos nuevos espectadores. Esto no significa, conviene repetirlo, que desaparezcan
las formas televisivas anteriores sino que pasan a un segundo plano o se combinam con las nuevas para
dar lugar a formatos híbridos (Scolari, 2008, p. 5).
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Seguindo este conceito pretende-se descobrir como estão sendo exploradas as possibilidades interacionais entre audiência online e conteúdo televisivo disponibilizado por
meio de aplicativos móveis, tendo em conta a interatividade e o modelo de TV Digital
no Brasil. Enquanto ocorriam as transmissões dos jogos de futebol os dados eram coletados, a partir de um smartphone Samsung Galaxi S4 e por um Iphone 4S, em forma
de print da tela do app. Capturamos textos, vídeos e imagens dos chats, comentários,
palpites, enquetes, quizes e seus resultados. As observações ocorreram duas horas por
dia (o tempo de duração das partidas de futebol) e foram anotadas em diário de bordo.
Nosso conceito de aplicativos móveis como segunda tela segue a definição de Frederick e Lal (2011) que explicam que aplicativos são programas (softwares) que auxiliam
seus usuários no desempenho de tarefas específicas. Outra definição diz que aplicativo é o “conjunto de estratégias de expansão da trama ficcional desenvolvidas para
plataformas como Blackberry, Android, IPhone, IpodTouch e Ipads por meio das quais
são disponibilizados conteúdos da grade de programação das emissoras (mobile TV)”,
(IMMACOLATA;GOMEZ, 2014, p.83).
APLICATIVOS PARA SEGUNDA TELA X TV DIGITAL
Com frequência, novos produtos midiáticos, autointitulados interativos, são lançados
com a finalidade de estreitar o laço social com o público. Neste sentido, os aplicativos
têm sido bastante difundidos com a pretensão de expandir conteúdo televisivo para
outras plataformas permitindo interação entre receptores e emissores de conteúdo, e
entre a própria audiência. Praticamente todas as emissoras de TV possuem aplicativos,
colaborativos e repositórios de conteúdos, específicos para os diversos programas das
suas grades, onde há persistentes convites à participação via segunda tela com incentivos
a fazer download dos apps. O objetivo quase sempre é reter a audiência imergindo o
telespectador no ambiente do programa, seja jornalístico, de entretenimento ou esportivo, como acontece nos campeonatos de futebol exibidos pelas emissoras de tv Band e
Globo, por exemplo. Esta prática é uma tendência prevista há alguns anos pelos teóricos
de comunicação, tais como Flusser (2008) e Scolari (2008).
Desde o momento em que os nativos digitais – uma geração crescida em torno de interações digitais – desenvolveram novas competências perceptivas e cognitivas (e, como
bem apontaria McLuhan, destruído outras) a partir de suas experiências hipertextuais, os
meios tradicionais devem adaptar seu discurso a estes novos espectadores. Não é o mesmo conquistar uma audiência formada no rádio, no impresso ou na mesma televisão que
produzir para novas gerações com competências interpretativas geradas em experiências
hipertextuais como a navegação na web, o uso de software ou os videogames (Scolari, 2008,
p.2, tradução nossa).5
5. Desde el momento em que los nativos digitales – uma generación crecida entornos digitales interactivos- han desarollado nuevas competencias perceptivas e cognitivas (y, como bien apuntaría McLuhan,
han narcotizado otras) a partir de sus experiencias hipertextuales, los medios tradicionales deben adaptar
su discurso a estos nuevos espectadores. No es lo mismo conquistar uma audiencia formada em la radio,
la prensa o en la misma televisión que producir programas para nuevas generaciones com competencias
interpretativas generadas en experiencias hipertextuales como la navegación en la web, el uso del software
o los videojuegos. (Scolari, 2008, p.2)
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Contudo, o modelo de negócios prevalecente entre as emissoras de televisão no
Brasil não prioriza os aspectos interativos da TV digital. O modelo japonês de TV digital adotado no Brasil desde 2006 prevê um sistema que favorece a inclusão digital e o
acesso à internet, além da convergência das tecnologias de comunicação. Porém, Não
há investimentos em programas informativos interativos. Prevalece o temor da possibilidade de a TV digital provocar queda de audiência e que isso venha a impactar o
mercado publicitário, devido ao aumento da oferta de canais, da multiprogramação, e
ainda pela oferta de serviços audiovisuais gratuitos. Schlitter (2011, p. 121), alerta que
“a interatividade na TV deve permear todos os aspectos da experiência televisiva na
era digital, mas o que vemos é a repetição do mesmo modelo funcional, catalogado e
hierárquico”. Consequência desta postura da indústria audiovisual brasileira é que as
tecnologias que estão sendo produzidas têm dado preferência à produção e distribuição de conteúdos já estabelecidos pelas emissoras, de forma a não ameaçar o mercado
já consolidado. As construções discursivas e os programas com novos formatos têm
se capilarizado em subprodutos da televisão na internet. Um exemplo é o programa
jornalístico Globo Esporte. As ferramentas interativas deste programa com o público e
entre o público são o site Globoesporte.com e o aplicativo Globo, desenvolvido pela Rede
Globo para ser acessado via Tablets e Smartphones, e não pela TV digital. Percebemos,
com isto, que a interatividade na TV digital é programada para funcionar como internet
e que falta uma linguagem específica, própria para ela. Segundo Schlitter (2011, p. 19)
“do ponto de vista do consumidor as mudanças têm sido mais evolucionárias do que
revolucionárias”. O resultado é uma TV digital reativa e não interativa. Em sua dissertação de mestrado, Canatta (2014) observa
Embora a televisão digital tenha mudado a realidade analógica ao oferecer novas possibilidades de interação, como o acesso permanente a conteúdos extras ou a consulta à grade
de programação, e na combinação com a internet permita a navegação e a interação nos
sites de rede social na própria tela da TV, acredita-se que a conversa em torno da televisão
seguirá acontecendo em outras telas. A pouca usabilidade do controle remoto para aplicações
interativas, a inexistência de um canal de retorno plenamente estabelecido para a solução
de interatividade no sistema brasileiro de televisão digital e, principalmente, o fato da tela
da TV ser coletiva e compartilhada por todos que dividem o mesmo ambiente, enquanto
os smartphones e tablets possuem telas individuais, são fatores que colaboram para esta
característica. Por outro lado, a popularização de dispositivos móveis com acesso a internet
leva cada vez mais a conversa para fora do ambiente da televisão (Canatta, 2014, p. 64).
Desta forma, a segunda tela vai se consolidando como alternativa ao modelo
tradicional de TV, tendo em conta que a TV Digital ainda não se estabeleceu com todos
os recursos que pode oferecer a audiência conectada.
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APLICATIVO GLOBO
O aplicativo Globo funcionava como uma rede social, em que as pessoas comentam,
criticam e discutem com outros interagentes interessados no mesmo conteúdo. Funcionava
também como repositório de informações com notícias atuais, históricas e curiosidades
sobre os jogos. Para ter acesso ao app era necessário fazer o download a partir do
endereço http://app.globoesporte.globo.com/aplicativoglobo/. Dentro do aplicativo, o
torcedor tinha a possibilidade de dar palpites sobre lances do jogo (Figura 1), participar
de quiz (Figura 2) e enquetes em tempo real (Figura 3), conversar com outros torcedores
(Figura 4), além de obter informações adicionais sobre o jogo, como escalação (Figura
5), estatísticas, replays dos melhores momentos (Figura 6) e assistir às jogadas por outro
ângulo (Figura 7).
Figura 1. Palpite sobre lances
Figura 2. Quiz
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Figura 3. Enquete.
Figura 4. Bate papo.
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Figura 5. Escalação.
Figura 6. Replay dos melhores momentos.
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Figura 7. Outros ângulos.
ANÁLISE DO APLICATIVO GLOBO COMO SEGUNDA TELA
Durante o Mundial de 2014 realizado no Brasil, a Rede Globo de Televisão utilizou o
aplicativo Globo como extensão das transmissões esportivas. A interação se dava somente
durante as transmissões dos jogos de futebol pela emissora, deixando o app de funcionar
no restante dos dias e horários que não havia jogo. Ao iniciar a cobertura esportiva das
partidas, os narradores da emissora convidavam os telespectadores a baixar o aplicativo
disponível no site do programa Globo Esporte para os sistemas Android e IOS. Durante
as transmissões dos jogos o aplicativo alcançou a marca de 1 milhão de downloads.
O hábito de usar a segunda tela era reforçado continuamente durante as transmissões
televisivas dos jogos, pois ao mesmo tempo em que o telespectador assistia TV era
levado a manter atenção sobre que acontecia no dispositivo móvel, devido às constantes
atualizações e novidades no software. As interações sociais dentro do aplicativo Globo
durante a transmissões dos jogos da Copa do Mundo de 2014 envolveram pessoas dos
mais diversos estados federativos brasileiros. O volume de conversas no chat bate papo
eram extensos ao ponto de se tornar impossível acompanhar. Quem participava das
enquetes online e respondia aos quizzes ia automaticamente para o ranking (Figura
8) do aplicativo que concedia como premiação uma visita a Central da Copa, na rede
Globo de Televisão a quem acumulasse a maior pontuação.
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Figura 8. Ranking.
Segundo a Teoria das Hipermediações de Scolari (2008) as características da televisão da era digital, denominada pelo autor de hipertelevisão, são a convergência de
linguagens e meios em uma única mídia, além da fragmentação do relato na tela, o
ritmo acelerado, e o desenvolvimento de estruturas narrativas cada vez mais complexas,
entre elas a transmídia. O estudo das interações sociais no aplicativo de segunda tela
denominado Globo ratifica as constatações do autor no momento em que temos um
software desenvolvido para dispositivos móveis imergindo o espectador no cenário
de um estádio de futebol, simulando as câmeras da televisão, oferecendo ângulos de
visualização de lances diferentes dos oferecidos pela TV, possibilitando conversar online
sobre o conteúdo exibido nas duas plataformas, mas que ao mesmo tempo só existe em
função do que é transmitido na TV.
RESULTADOS ALCANÇADOS
Do ponto de vista da audiência, percebemos que o telespectador observado nesta
pesquisa estende para a internet e amplia na rede sua relação com a televisão. As análises dos dados observados mostram que a interação entre receptores e emissores de
conteúdo, ou entre a própria audiência por meio da segunda tela tem inovado a experiência dos telespectadores com a televisão e que o uso de um dispositivo móvel não
substitui a mídia tradicional, pelo contrário, ratifica e complementa. Observamos ainda
que os usuários do aplicativo Globo efetuaram engajamentos, participaram de jogos,
interagiram discursivamente e aproveitaram tudo o que foi disponibilizado pelo app.
A nosso ver, as interações sociais no app Globo acontecem de forma a tornar a
segunda tela uma extensão da televisão sempre conectada a internet. Entretanto, também
percebemos que a interação via app Globo ainda é incipiente devido à sua natureza de
controle de conteúdo e à limitação de trocas simbólicas disponibilizadas no software.
Toda a interatividade é limitada a votação em modelo de sim ou não, ou escolha entre
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três opções disponíveis, e chat. Mas a despeito de tudo isso, a possibilidade de interagir
com telespectadores de locais diversos e com os produtores de conteúdo audiovisual
via dispositivos móveis enquanto se assiste ao conteúdo televisivo cria uma experiência
jamais vivenciada pela audiência da televisão brasileira, e traz novamente a TV para o
centro das discussões acadêmico-científicas.
REFERÊNCIAS
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da Comunicação, no XXI Encontro Anual da Compós. Juiz de Fora: Universidade Federal
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Telenovela como matriz cultural:
recepção, discursos e formas de consumo
H e l e n E m y N och i S u z u k i 1
M a r i a C r i s t i n a Pa l m a M u n g i o l i 2
Resumo: O artigo analisa a produção de sentidos de identidade brasileira nos
discursos de imigrantes brasileiros no Japão a partir do enfoque dos temas
e discursos da telenovela Amor à Vida (Globo, 2013/2014), considerando a
telenovela como matriz cultural (Martín-Barbero, 2008). Nos discursos coletados
de imigrantes brasileiros, observamos sentidos que remetiam a experiências
de vida e de consumo cultural fortemente marcadas pela intensa negociação
de sentidos de identidade brasileira em contexto estrangeiro. O estudo de caso
com observação participante teve como quadro teórico as discussões de Hall
(2006, 2009, 2012), Bhabha (1998), Martín-Barbero (2008) e Bakhtin (2003, 2010). A
pesquisa de campo observou etnograficamente imigrantes brasileiros radicados
no Japão havia mais de cinco anos em sua rotina de assistir à telenovela Amor
à Vida de setembro a dezembro de 2013. O estudo demonstrou a centralidade
da telenovela como elemento de construção identitária tanto em nível pessoal
quanto coletivo. Os embates de valores e a própria reconfiguração de identidades
(individual e coletiva) se manifestaram nos discursos que se referiam à telenovela
que, por sua vez, produzia sentidos não apenas como entretenimento, mas
principalmente como matriz cultural brasileira frente à cultura oriental.
Palavras-Chave: Telenovela. Produção de sentidos de identidade. Consumo
cultural. Imigrantes brasileiros no Japão.
Abstract: The article analyzes the production of sense of Brazilian identity in the
discourse of Brazilian immigrants living in Japan from the focus on the themes
and discourses of Amor à Vida soap opera (Globo, 2013/2014), considering it as
cultural matrix (Martín-Barbero, 2008). In the speeches collected from Brazilian
immigrants, we have observed senses that refer to life experience and cultural
consumption strongly marked by the intense negotiation of sense of Brazilian
identity in foreign context. The case study with participants’ observation had as
theoretical basis the discussions of Hall (2006, 2009, 2012), Bhabha (1998), Martín-Barbero (2008) and Bakhtin (2003, 2010). The field research ethnographically
observed Brazilian immigrants living in Japan for more than five years during
their routine of watching the Brazilian soap opera Amor à Vida from September
to December 2013. The research showed the centrality of the soap opera as an
1. Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – ECA/USP. E-mail: helenochis@
usp.br.
2. Professora Doutora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP.
E-mail: [email protected].
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Telenovela como matriz cultural: recepção, discursos e formas de consumo
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element of identity construction that works on personal as well as collective
levels. The clash of values and the identity reconfiguration (individual and
collective) were showed in the discourse referring to the soap opera which in
its turn produced meaning not only as entertainment but mainly as Brazilian
cultural matrix against the Eastern culture.
Keywords: Soap Opera. Production of senses of identity. Cultural consumption.
Brazilian immigrants in Japan.
INTRODUÇÃO
PRESENTE ARTIGO discute alguns resultados da pesquisa que culminou com
O
a dissertação de mestrado A telenovela e a produção de sentidos de identidade brasileira no discurso de imigrantes brasileiros no Japão, apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação.3 A pesquisa teve por objetivo analisar a
produção de sentidos de identidade brasileira nos discursos de imigrantes brasileiros
que moravam no Japão havia mais de cinco anos, em 2013 - momento da coleta de dados.
O corpus da pesquisa se constituiu por meio dos discursos que giravam em torno dos
temas apresentados na telenovela Amor à Vida (Globo 2013/2014). A pesquisa de campo foi realizada de setembro a dezembro de 2013, utilizando como técnica de coleta a
observação participante por meio da qual foram acompanhadas seis famílias ao longo
de uma semana durante a assistência das telenovelas brasileiras transmitidas no Japão
pelo canal por assinatura da IPCTV, afiliada da Globo no Japão.
Neste trabalho, a telenovela foi considerada como matriz cultural segundo os estudos de Martín-Barbero (2008). Sob essa perspectiva, a telenovela constitui-se de maneira
dialética por meio das relações sociais e culturais, ancorando a construção de sentidos
de memória e imaginário social. A coleta de dados em campo por meio da pesquisa
participante permitiu-nos observar a presença da telenovela - e, mais precisamente, dos
temas por ela abordados –, para além de sua manifestação verbal nos discursos. Foram
observados usos e práticas envolvidos na recepção desses programas nas discussões
e vivências familiares considerando o cotidiano desses brasileiros no contexto de um
país estrangeiro. O quadro teórico ancora-se nas discussões de Hall (2006, 2009, 2012),
Bhabha (1998), Martín-Barbero (2008) e Bakhtin (2003, 2010).
BRASILEIROS COMO IMIGRANTES NO JAPÃO
Em meados dos anos 1980, o Brasil vivia o processo de redemocratização com o
fim da ditadura militar e no plano econômico passava por uma grande crise marcada
por recessão econômica, inflação e desemprego. No cenário internacional, com o fim do
comunismo e a abertura de novos mercados, alguns países como o Japão, cuja tecnologia
avançada competia no mercado internacional, necessitavam urgentemente de mão de
obra para suprir as necessidades da indústria. Esse conjunto de fatores culminou com
a criação, no Japão, de uma legislação regulamentando a contratação de trabalhadores
3. A pesquisa foi realizada por Helen Emy Nochi Suzuki sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Palma
Mungioli e foi apoiada pelo Programa Santander de Bolsa de Mobilidade Internacional e pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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estrangeiros o que levou ao aumento da população de brasileiros no Japão. No final da
década de 1980, o movimento migratório de brasileiros para o Japão, então designado
como movimento dekassegui4, intensifica as relações já existentes entre Brasil e Japão.
Em 2008, a grande crise econômica registrada no Japão e no mundo levou à diminuição
drástica do número de brasileiros no Japão, mesmo assim, de acordo com as estimativas
referentes a 2013 sobre a distribuição de brasileiros no mundo, o Japão é o terceiro destino
mais procurado pelos brasileiros. Em primeiro lugar estão os Estados Unidos (1.066.842),
seguidos pelo Paraguai (459.760), Japão (186.051), e Portugal (162.190)5.
Muitos imigrantes brasileiros que estão no Japão são descendentes ou estão ligados
à ascendência japonesa no Brasil por parentesco ou casamento. Isso porque a legislação
para contratação de trabalhadores no Japão, promulgada em junho de 19906, buscava
recrutar descendentes japoneses para trabalhar em fábricas e principalmente nas médias
e pequenas empresas do setor eletrônico em expansão. Conforme explica Kawamura
(2003), essa resolução foi uma tentativa de amenizar as dificuldades e diferenças culturais.
Embora a integração dos descendentes nikkeys (segunda geração) parecesse menos problemática aos japoneses, ela também foi marcada por um longo processo de estratégias
de sobrevivência em terras japonesas por parte desses imigrantes. Processo migratório
marcado por fases que vão desde a primeira ideia de permanência temporária até o
enraizamento e a aceitação da sua própria condição como imigrante, implicando nessa
trajetória muitas adequações de experiência pessoal e coletiva e seus desdobramentos
em consequentes negociações de sentido de identidade pessoal e coletiva. Conforme
Bhabha (1998, p. 21), essa situação acarreta a formação de uma arena de negociações
em que “os embates de fronteira acerca de diferença cultural têm tanta possibilidade
de serem consensuais quanto conflituosos”. Nesse cenário, situam-se a dificuldade de
compreensão da língua japonesa, a saudade das práticas da vivência brasileira, comidas,
a cultura e valores brasileiros, e modos de ver o mundo. Redimensionam-se pequenas
coisas e diferenças culturais que precisam ser acomodadas numa situação emergencial
para que se torne possível a convivência em terra estrangeira. Parte dessa reconstrução
identitária surge nos discursos coletados como poderemos ver mais adiante.
A TELENOVELA COMO MATRIZ CULTURAL
Consideramos com Martín-Barbero (2008), a telenovela como uma matriz cultural
latino-americana que se constitui sobre o rico e popular cimento do melodrama - não
mais considerado sob o rígido e empobrecedor olhar da ideologia da Indústria Cultural.
Essa mudança de perspectiva, para o autor, permite que esse produto cultural possa
ser analisado considerando seu papel na constituição da cultura, da memória e do
4. O termo “dekassegui” refere-se ao descendente de japonês, portanto, trabalhador brasileiro que se dirige
ao Japão com intuito de trabalhar buscando maiores recompensas financeiras que aquelas encontradas no
Brasil. Trata-se, portanto de um projeto de permanência temporária no Japão. O termo foi muito utilizado
desde o início do fenômeno das migrações de brasileiros ao Japão, mas tornou-se datado. Com a permanência
de brasileiros como residentes fixos no Japão, passou-se a utilizar a denominação “imigrante”.
5. Fonte: Ministério das Relações Exteriores do Brasil, 2013.
6. Em junho de 1990 foi promulgada a Lei de Controle de Imigração do Japão que concede visto de residência
de longo prazo para os descendentes de japoneses (nikkeis) sul-americanos até a terceira geração (sanseis).
Fonte: Ciate. Centro de Informação e Apoio do Trabalhador no Exterior (2014). Recuperado de www.ciate.
org.br/informacao-geral-sobre-japao/a-comunidade-brasileira-no-japao/.
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imaginário social. O melodrama, nessa concepção, configura-se como uma forma de
ressignificação no espaço do cotidiano, de ativação da memória, “um intercâmbio que é
confusão entre narrativa e vida, entre o que faz o ator e o que se passa com o espectador,
sinal de identidade de uma outra experiência literária que se mantém aberta a reações,
desejos e motivações do público” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 309).
A questão da identidade e da cultura são pontos importantes quando se trata das
configurações sociais e, na sociedade brasileira, as telenovelas possuem um papel fundamental, já que “essas histórias narradas pela televisão são, antes de tudo, importantes
por seu significado cultural” (LOPES, 2004, p. 125). Nesse, sentido também é importante pensar na difusão dos meios de comunicação vistos da perspectiva, cada vez,
mais intensa dos processos de migrações de pessoas. Os enunciados das telenovelas
ganham novas significações em outros territórios físicos e simbólicos7 estabelecidos
para além das fronteiras físicas do território brasileiro e confluem para a constituição
de culturas híbridas (Canclini, 2000). Dessa forma, falar de telenovela brasileira, sobretudo a partir de sua assistência por brasileiros no Japão, apresenta-se para nós como
uma maneira de estudar as relações de construção de identidade brasileira a partir
de um “material precioso para entender a cultura e a sociedade de que é expressão”
(LOPES, 2004, p. 125).
Nesse cenário, é preciso considerar, para além do produto telenovela propriamente
dito, a importância que a televisão e a telenovela propriamente dita adquire na sociedade
brasileira.8 Wolton (1996, p. 154) afirma que a consolidação da televisão brasileira como
meio de comunicação de massa tem lugar por meio de um processo em que a televisão
privada assume para si um “papel social, nacional e cultural” e passa a ser “a vitrina”
do país. Para o pesquisador francês, a televisão no Brasil serviu como “[...] fio condutor
para uma sociedade confrontada com o problema da modernização” (WOLTON 1996,
p. 156). Fortaleceu o laço social na medida em que atingiu todas as classes sociais que,
de alguma forma, viram-se representadas em uma televisão de caráter geralista. As
telenovelas já com grande sucesso dentre os programas televisivos, por seu alcance em
termos de audiência, organizam a grade televisiva da maior emissora do país, expandindo e, à vezes, determinando a audiência para os programas anteriores e/ou posteriores a elas. Dessa forma, a teledramaturgia funciona como um elemento articulador
da grade da Globo. A telenovela é um elemento que define a grade de programação e
traz o público para perto da emissora, com tramas que discutem valores e problemas
da sociedade brasileira.
7. De acordo com Haesbaert (1997, p. 41), “o território deve ser visto na perspectiva não apenas de um
domínio ou controle politicamente estruturado, mas também de apropriação que incorpora uma dimensão
simbólica, identitária e, porque não dizer, dependendo do grupo ou classe social a que estivermos nos
referindo, afetiva.” (HAESBAERT apud MONDARDO; GOETTERT, 2008, p. 295).
8. É interessante, para o desenvolvimento desse raciocínio, levar em conta as discussões efetuadas a respeito
do sentimento de nacionalismo e de integração nacional (sobretudo na América do Sul) efetuadas por
Martín-Barbero (2008) principalmente na terceira parte do livro Dos meios às mediações: comunicação, cultura
e hegemonia. Também devem ser considerados os textos pioneiros acerca das telenovelas brasileiras e suas
inter-relações com o sentimento de nacionalidade apresentados no livro de Renato Ortiz, Sílvia H. S. Borelli
e José M. O. Ramos (1988) Telenovela: história e produção. Além de livros como: O carnaval das imagens, de
Michele & Armand Mattelart (1998); Elogio do grande público, de Dominique Wolton (1996); Os exercícios do ver,
de Jesus Martin-Barbero e German Rey (2004); Ficção e Política: o Brasil nas minisséries, de Narciso Lobo (2000).
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Martín-Barbero (2008) afirma que o melodrama é o gênero preferido na América
Latina. Talvez essa ligação com o melodrama tenha um pouco do que o autor apresenta
como uma identidade que se reconhece pelo outro. É nesse sentido, de se reconhecer
pelo outro, que o autor apresenta o “drama do reconhecimento” na narrativa melodramática. Já que “o que move o enredo é sempre o desconhecimento de uma identidade e
a luta contra as injustiças, as aparências, contra tudo o que se oculta e se disfarça: uma
luta por se fazer reconhecer” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 306). Nessa linha, Martín-Barbero (2008) afirma ainda que nos conhecemos pelo que afeta a nós e à nossa família.
Dessa forma, a família e a vizinhança também fazem parte da história da minha vida
que está na história local, então, é o tempo da família que faz a mediação do tempo da
vida (do indivíduo), com o tempo da história (tempo da nação e do mundo). O autor
aponta que “começamos a suspeitar que o que faz a força da indústria cultural e o que
dá sentido a essas narrativas não se encontra apenas na ideologia, mas na cultura, na
dinâmica profunda da memória e do imaginário” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 308).
Nessa perspectiva, pensar o melodrama e “pensar o popular a partir do massivo não
significa, ao menos não automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um novo modo de funcionamento da hegemonia” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 311).
Considerando as dimensões que a telenovela e a televisão assumem entre os brasileiros, ao acompanhar famílias brasileiras em seu cotidiano no Japão, buscamos investigar a produção de sentidos de identidade nacional e individual. As emoções que
a telenovela suscita e que são vivenciadas dentro do cotidiano familiar, além de
marcar as tramas da narrativa, também são associados a um determinado momento
da vida desse sujeito, que também se articula de maneira dialética na constituição
de um horizonte social (Bakhtin-Volochínov, 2010). Dessa forma, consideramos, de
acordo com Martín-Barbero (2008), que acompanhar os sujeitos da pesquisa em seus
desdobramentos discursivos frente à narrativa da telenovela também demarca o
universo real e particular do indivíduo. Fator amplamente discutido em termos de
telenovela brasileira e um dos seus diferenciais em relação a outras produções do gênero
no espaço latino-americano é a sua inter-relação com a realidade cotidiana do brasileiro
(Motter, 2003). O que se distingue dentro da narrativa da telenovela é a releitura de
uma realidade do contexto brasileiro na qual ações/comportamentos dos personagens
frente aos problemas fazem-nos refletir acerca do mundo em que vivemos e das relações
sociais e de poder que nele atuam. No contexto de nossa pesquisa, foi preciso levar em
conta essas características da telenovela brasileira frente aos olhares construídos por
pessoas que negociam valores e costumes de duas culturas: a brasileira e a japonesa.
Como se dá o ato de assistir à telenovela brasileira no Japão? Quais são os discursos
produzidos a partir da telenovela? Quais são os usos e práticas dessa recepção? De que
forma se concretiza o consumo televisivo no cotidiano dos brasileiros que moram no
Japão? Como o imbricamento dos elementos matriciais da telenovela brasileira acima
discutidos permite observar as construções identitárias dos sujeitos da pesquisa? Tais
questionamentos nos impulsionaram a refletir sobre a recepção da telenovela brasileira
entre os imigrantes brasileiros que moram no Japão.
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RECEPÇÃO, DISCURSOS E FORMAS DE CONSUMO DA TELENOVELA
A intenção primeira da pesquisa de campo foi acompanhar as famílias na assistência
da telenovela. Quando imaginamos a realização da pesquisa, pensamos em famílias
como a conhecemos, mais comumente, no nosso núcleo familiar brasileiro e, na telenovela
como um dispositivo de aglutinação, em que todos se juntassem para vê-la. Mas as famílias encontradas no Japão nos mostraram possibilidades diversas dessa compreensão que
tínhamos de início. Por vezes, “a família” era “uma pessoa só”, visto que alguns sujeitos
moravam sozinhos e, pelo menos até então, não tinham constituído família. Talvez nem
o fizessem, uma vez que sua orientação homoafetiva e o trabalho acelerado na dinâmica
de suas vidas no Japão, assim não lhes permitiam. Outra constatação foi que, mesmo nas
famílias heterossexuais com filhos no Japão, nem sempre a telenovela era um motivo
de aglutinação da família. Todos viviam suas vidas separadas, com interesses e gostos
distintos. Nesse sentido a antropóloga Lili Kawamura (2003) explica essa dinâmica de
vida baseada no trabalho, pois, como a maioria dos brasileiros trabalhadores no Japão
mantém-se ligados à ideia do retorno ao Brasil depois de alcançar o sucesso financeiro
no exterior, é a dedicação ao trabalho que acaba por pontuar o âmbito da vida privada
desses imigrantes9.
Ou talvez, essa dinâmica entre os brasileiros que moram no Japão em relação às preferências distintas e à falta de um momento “aglutinador” no dia-a-dia, como ocorre nas
famílias de classe média do Brasil, seja influenciada pela cultura das famílias tradicionais japonesas, nas quais os momentos de “aglutinação” são as refeições. Mesmo assim,
no Japão, cada membro da família preserva à sua maneira suas próprias preferências
em termos de lazer, aí incluídos os programas televisivos. Entre os japoneses, há uma
grande diferenciação por algo que chamarei aqui de “categorias”, que são marcadores
ou diferenciações aceitas socialmente e reproduzidas na convivência social: por idades
– os gostos de cada um, a sua turma; por gênero – o que se entende como uma tarefa
do universo masculino ou feminino; por status dentro da família – o que se entende
que é função do pai, da mãe, do primogênito ou do caçula. Considerando que as famílias brasileiras que vivem no Japão acabam por misturar a sua cultura brasileira e seu
modo de viver com o modo local do Japão. O presente estudo considera a família com
base nessas dinâmicas de vivências misturadas. Pois, segundo Kawamura (2003), essas
vivências partilhadas10 configuram um processo de concepção das relações sociais de
um lado e de outro, ou seja, do estrangeiro e do nativo, em que a base cultural do ser,
seu background cultural se cruza e se mescla.
Considerada essa especificidade na seleção dos sujeitos da pesquisa, neste tópico
trataremos efetivamente dos usos e das práticas de assistir à telenovela em nosso estudo
de caso; as implicações culturais compreendidas por meio da telenovela que traduzem
9. Cf. Kawamura (2003, p. 156), “A maior parte da vida dos imigrantes brasileiros é dedicada ao trabalho,
situação que se acentua em épocas de abundância de horas extras. [...] O tempo livre, reduzido, é usado
para cuidar da sobrevivência (comer, fazer compras, dormir, cuidar dos afazeres domésticos, cuidar dos
filhos etc.), e restam poucas horas diárias para o lazer, principalmente considerando-se o sábado como
um dia de trabalho normal”.
10. As vivências partilhadas são consideradas por Kawamura (2003, p. 167) como parte de um processo
cultural, ou seja, como “encontros e desencontros culturais, expressos em acomodações; distanciamentos;
conflitos; e na emergência de novas formas culturais decorrentes da miscigenação de aspetos de ambas as
culturas, como estratégias para enfrentar a vida cotidiana”.
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em significados para o cotidiano de Momi; a linguagem da telenovela que funciona
como um ativador de instâncias para a compreensão da palavra no âmbito da construção
do sentido para Xande; as práticas de consumo possíveis por meio da telenovela como
percebemos nos discursos de Mariana. A seguir, descrevemos brevemente os sujeitos
da pesquisa:
• Momi tem 35 anos, é japonesa e cantora. Mora com o esposo na cidade de Shizuoka, na província de mesmo nome. Quando solteira, ela morou nove meses no
Brasil onde conheceu seu atual esposo, um afrodescendente brasileiro que migrou
para o Japão e ganhou concursos de músicas começando uma carreira promissora
nessa área naquele país. Porém, até hoje ele não é fluente em japonês, mas Momi
fala e entende razoavelmente bem o português. Quando estava no Brasil, ela
aprendeu a gostar de telenovela e, assiste sempre no Japão pela IPCTV11, afiliada
da Globo. Ela, às vezes, tem dificuldade para entender as expressões utilizadas
pelos personagens da telenovela e sempre que isso acontece, precisa da ajuda do
marido para compreender o significado da palavra utilizada.
• Xande tem 42 anos e nasceu em São Paulo. No Japão, mora sozinho em um
apartamento pequeno na cidade de Yokohama, província de Shizuoka. Xande
estudou até o Ensino Médio no Brasil e, em 1990, com 18 anos, foi para o Japão
pela primeira vez. É descendente japonês e trabalha como cuidador de idosos
ou de pessoas com necessidades especiais. Adora telenovela e sempre assiste
a todas. Hoje em dia já é fluente em japonês e se sente bem adaptado ao estilo
de vida local.
• Mariana é filha de mãe descendente de japonês e pai não descendente. Tem 39
anos e mora há 22 anos no Japão. Sua casa é própria, nova e confortável. Ela mora
na cidade com maior concentração de brasileiros do Japão, Hamamatsu, na província de Shizuoka. A casa possui dois andares e uma decoração com influências
do Oriente Médio. Seu esposo é paquistanês e muçulmano e não fala muito bem
o idioma japonês, tampouco entende a língua portuguesa, enquanto Mariana só
fala português e entende muito pouco de japonês. A comunicação entre eles é
caracterizada por muitas confusões linguísticas já que ambos se comunicam numa
mistura de japonês e português, mas sempre com bom senso e muita boa vontade.
Significados do cotidiano
Para falar de Momi, lembramos as palavras de Certeau (2008, p. 93): “assim uma
vez analisadas as imagens distribuídas pela TV, e os tempos que se passa assistindo
aos programas televisivos, resta ainda perguntar o que é que o consumidor fabrica
com essas imagens e durante essas horas.” Para Momi, a telenovela é como se fosse
11. O canal Globo Internacional foi lançado em 1999 e está presente em 118 países. A programação do
canal internacional é direcionada para brasileiros, portugueses e lusófonos espalhados pelo mundo. Sua
transmissão acontece via satélite, cabo e IPTV (Internet Protocol Television), com qualidade digital que abrange
os cinco continentes: África, América, Ásia, Europa e Oceania, atingindo no total 620 mil assinantes, segundo
site da Globo Internacional (Recuperado de http://tvglobointernacional.globo.com). No Japão, a Globo
Internacional está presente através da IPCTV, uma afiliada (que repassa o sinal da geradora, mas também
acrescente seu conteúdo local) da Rede Globo cuja programação, no Japão, pode ser acessada através da
operadora SKY Perfect TV! (via satélite) ou através da operadora FiberTV (via IPTV).
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uma escola onde se aprende palavras, gírias e expressões da língua portuguesa. Mas
também a telenovela funciona, em particular para ela, como um minissistema que
possibilita compreender os valores de seu marido. Pois, muitas coisas no comportamento do marido, que não é um descendente de japoneses e sim um afrodescendente,
ela entende por meio da telenovela. Ela percebe que alguns gostos e preferências
dele, são particularmente, gostos e preferências que os brasileiros traduzem como
sendo de “bom tom”. Isso se explica quando ele prefere que ela use roupas de sedas e
adereços que estão na moda no Brasil e que são mostrados na telenovela, como foi o
caso do figurino da personagem Helô (Giovanna Antonelli) na telenovela Salve Jorge
(Globo 2012/2013). Essa personagem utilizava camisas de seda com muita estampa
e calças de tecido num estilo social chique. Ou seja, para os padrões de seu esposo,
roupas de seda são roupas mais caras e elegantes. Porém, na cultura local japonesa, o
fashion é exatamente o contrário, mas a percepção dele é uma percepção social do que
se apreende de bom gosto. Nesse sentido, precisamos considerar que seu marido já
possui uma cultura matriz consolidada e os processos de aderência quando submetido
a outra cultura diferente da sua serão ancorados nas percepções adquiridas da sua
matriz original brasileira. Segundo explica Benedict (2013, p. 173), “a imensa maioria
dos indivíduos nascidos numa sociedade adota o comportamento prescrito por essa
sociedade, sejam quais forem as idiossincrasias de suas instituições”. Dessa forma,
a telenovela apresenta-se como um fator importante de narrativa para a formação,
e no caso de Momi, do entendimento da identidade pessoal e social de seu esposo.
Bhabha (1998, p. 199) propõe a construção cultural de nacionalidade “como uma forma de afiliação social e textual”, como uma estratégia de “identificação cultural e de
interpretação discursiva”. Segundo esse raciocínio, a produção cultural representa
a nacionalidade, pois “a força narrativa e psicológica que a nacionalidade apresenta
na produção cultural e na projeção política é efeito da ambivalência da ‘nação’ como
estratégia narrativa” (BHABHA, 1998, p. 200).
Então, Momi não procura com a telenovela apenas compreender como ou por que
tais ações e comportamentos dos personagens ocorrem de determinada maneira, mas
também busca compreender as ações e os comportamentos mostrados para entender a
ação e o modo de se pensar de seu marido, uma vez que isso se reflete no seu cotidiano
diretamente. Para Momi, o interesse não é pela narrativa propriamente dita, mas o que
se encerra nela de peculiar, o que dela se traduz como ação em sua vida particular. E,
a telenovela, por retratar a sociedade brasileira e sua cultura, permite que nela estejam inseridos elementos que conjugam os comportamentos e ações dos personagens
de acordo com os comportamentos aceitos/não aceitos na sociedade brasileira. Então,
segundo Lopes (2009, p. 22) “falar hoje de cultura no Brasil é falar necessariamente da
telenovela brasileira”. Aqui, pensaremos a cultura segundo Eliot (2011), para quem os
termos indivíduo, grupo ou classe e conjunto da sociedade devem ser considerados para
se entender a cultura. Pois, “a cultura de um indivíduo é dependente da cultura de
um grupo ou classe, e que a cultura de um grupo ou classe é dependente da cultura
do conjunto da sociedade à qual pertence aquele grupo ou classe” (ELIOT, 2011, p. 23).
Segundo o autor, a cultura do indivíduo é contrastada com o background da cultura
do grupo e da sociedade. Logo, o conjunto do que é a formação individual do ser é
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composto do conjunto social em que ele está inserido. Portanto, quando Momi observa
os personagens e sua ações na telenovela comparando com as ações, comportamentos,
gostos e preferências do seu esposo, o que na realidade ela está fazendo é apreendendo
a cultura do outro. “A cultura de um indivíduo não pode ser isolada daquela do grupo,
e que a cultura do grupo não pode ser abstraída daquela do conjunto da sociedade”
(ELIOT, 2011, p. 26).
A compreensão da palavra
Já Xande assiste à telenovela para não esquecer o idioma. Ele também acha que os
enredos e a língua falada que é mostrada na narrativa, por ser algo vivo, são construídos
no entendimento social coletivo enquanto acontece. Por isso, vários termos, gírias ou
expressões são renovados e disseminados através da telenovela.
- Eu assisto telenovela porque não quero esquecer o idioma, a linguagem que vai mudando.
No Brasil, quando eu fui, ouvi um monte de gírias, umas coisas que não dava para
entender e eu pensava: O que significa? O que ele está querendo dizer com isso?
Então ver telenovela é uma forma de se manter atualizado com o modo de expressão dos brasileiros. Segundo Bakhtin-Volochínov (2010), a compreensão do discurso só
pode se dar em um contexto preciso. Isso implica dizer que, para o estudioso russo,
cada enunciação é como ato único e irreproduzível - embora circunscrito social e ideologicamente pelo quadro social mais amplo - constitui-se como enunciado próprio
repleto de sentidos vivenciais.12 Para Xande, não era o problema de entendimento da
língua em si, mas, do que aquela determinada palavra estava significando para aquele
contexto. Vemos, nessa utilização do discurso da telenovela por Xande, a ocorrência de
uma atitude responsiva (BAKHTIN, 2003). Para Bakhtin, quando o interlocutor percebe o
significado (linguístico) do que se está falando, simultaneamente se posiciona como um
interlocutor em posição responsiva, ou seja, concorda ou discorda do que ouve.13 Dessa
forma “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente
responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é
prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2003, p. 271). Visto dessa forma, a assistência que Xande
faz da telenovela brasileira não se configura apenas como um momento de assimilação
das falas das personagens (gírias ou expressões verbais e gestuais), mas principalmente
por uma atitude que envolve reflexão e análise em torno dos significados construídos
pelo enunciado da telenovela.
12. Cf. Bakhtin-Volochínov (2010, p. 99), “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”.
13. Cf. Bakhtin (2003, p. 271), “[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do
discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda
dele (total e parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do
ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e compreensão”.
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Percepções sobre o consumo
Outro sujeito da pesquisa, Mariana, considera que a telenovela impulsiona o
consumo material, principalmente das tendências e escolhas de moda para as mais
jovens. Em Hamamatsu, cidade japonesa com grande concentração de brasileiros e que
possui um comércio voltado a esse público, as roupas que aparecem na telenovela são
consumidas pelas adolescentes que pagam caro por essa moda importada do Brasil.
- No Japão, as brasileiras assistem à novela e pedem, nas lojas brasileiras, roupas de
novela. Hoje os brasileiros já compram coisas do Japão, é claro, mas as meninas, elas
ficam de olho. A minha filha olha na novela e fica de olho nas roupas do Brasil. Também
olha no site da Globo.com e, como não é uma coisa tão diferente, quer dizer, no Brasil,
os vestidos de “periguete” de lá, serão usadas aqui como blusa!!
Mariana relata, nesse caso, um fenômeno que já se sabia existir desde a época do
crescimento da presença dos brasileiros no Japão. Com a presença maciça dos brasileiros e a necessidade de produtos que lembrem a sua terra natal, cresce também
o número de estabelecimentos comerciais e redes de distribuição desses produtos
por todo o Japão. Principalmente nos primeiros anos da década de 1990, quando as
recompensas financeiras eram bem mais acentuadas, o comércio étnico para brasileiros
não ficou restrito aos locais onde se estabeleceram as lojas, pois, as lojas encontravam
meios de ir até os brasileiros. Utilizando caminhonetes (tipo Van) que percorriam os
lugares em que os brasileiros moravam, as lojas e outras formas de comércio ambulante
levavam seus produtos de consumo: desde comidas e enlatados até livros, revistas
e programas televisivos. Além disso, aproveitando a eficiente rede de entregas de
empresas particulares japonesas que realizam o serviço com a facilidade de hora
marcada e contam com sistema de refrigeração para produtos perecíveis, essas lojas
brasileiras distribuíam seus produtos encomendados por telefone (ainda não existia
internet) para todo o Japão. Muitos brasileiros conseguiram abrir frentes de negócios
no Japão, primeiramente visando ao atendimento do público brasileiro. Porém, depois
de mais de vinte anos de integração Brasil-Japão, as influências também refletiam no
Brasil. Principalmente em São Paulo, com maior concentração de descendentes de
japoneses, e especificamente no bairro da Liberdade que, já no início dos anos 2000,
apresentou estabelecimentos como padarias com influências claras da leva de brasileiros que retornaram do Japão e abriram seus negócios no Brasil nos mesmos estilos
existentes hoje no Japão.
Assim, houve um intercâmbio de negócios proporcionado pela migração de pessoas
e a ampliação de culturas, tanto no Japão quanto no Brasil. Os brasileiros que retornaram
ao Brasil trouxeram consigo a cultura apreendida nas terras japonesas, assim como os
brasileiros que permaneceram por lá, sentiram a necessidade de criar redes de lojas e
abastecimentos dos mais diversos que lhes trouxesse lembranças da pátria, praticidade
ou simplesmente o costume e o gosto pela preferência por produtos brasileiros.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4428
Telenovela como matriz cultural: recepção, discursos e formas de consumo
Helen Emy Nochi Suzuki • Maria Cristina Palma Mungioli
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão e análise da recepção da telenovela no Japão por brasileiros buscou
relacionar os discursos captados durante a observação participante com as formas de
usos e práticas de consumo a partir da telenovela brasileira. Os resultados mostraram
como territórios geográficos e simbólicos se imbricam por meio das telenovelas cujos
discursos e temas acabam se constituindo não apenas como fonte de entretenimento,
mas principalmente como espaço para reflexão, discussão de costumes e valores. Enfim,
como espaço privilegiado para a negociação de identidades pessoais, sociais e étnicas;
cada uma delas guardando suas especificidades em relação à construção de um imaginário do que é ser brasileiro e do que é ser brasileiro no Japão. Mais especificamente
sobre a construção de sentido das telenovelas, observamos que, em nossa pesquisa,
determinada ação, seus dilemas e comportamentos de personagens retratados na telenovela descortinam uma série de respostas (no sentido Bakhtiniano) marcadas pela
heterogeneidade constituinte de toda e qualquer pessoa, incluindo os sujeitos de nossa
pesquisa. Assim, podemos perceber diferentes usos e percepções a partir da telenovela. Momi utiliza a telenovela para entender o sistema de pensamento do seu marido.
Para ela, a telenovela funciona como uma espécie de “manancial” de informações que
ela precisa compreender para viver melhor. Já Xande atualiza sua maneira de falar e
também usa a telenovela para perceber um Brasil que fisicamente está distante da sua
realidade. Então, para Xande a telenovela ativa uma construção identitária de sua pessoa
em relação à sociedade brasileira e, de certa forma constrói também seu lugar no espaço
japonês local. Através de Mariana podemos perceber como a telenovela funciona como
um parâmetro social de difusão de percepções que impulsionam o consumo local entre
os imigrantes brasileiros que moram no Japão.
A análise realizada desvelou que os brasileiros que assistem à telenovela no Japão
manifestam em seus discursos sentidos e valores que foram construídos com base em
sua matriz cultural brasileira. Porém esses sentidos e valores são sistematicamente
reconfigurados pela situação em que se encontram, divididos entre dois lugares, o de
nascimento e o de moradia. Também foi possível identificar nos discursos produzidos
pelos entrevistados como foram negociados diversos aspectos que envolvem as grandes diferenças que marcam a cultura japonesa e a cultura brasileira. Constatamos que
o processo de vivência em território japonês necessitou de uma adequação, fato que é
comum a todo estrangeiro em terras que não são as suas. Essa adaptação é um processo
de “ganhos e perdas”, um jogo de negociações para se acomodar à nova cultura local.
Essas análises são valiosas para entendermos como a cultura do outro nos influencia,
como a nossa cultura nos aproxima e como ela se hibridiza formando uma nova “outra
cultura”, nem melhor nem pior, mas diferente.
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4429
Telenovela como matriz cultural: recepção, discursos e formas de consumo
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4430
Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento
de classe origina diferentes leituras da mídia?
Social class, media and women: how belonging to
a class leads to different media readings?
Lírian Sifuentes1
Resumo: Este trabalho apresenta um estudo comparativo do consumo de mídia
por mulheres de diferentes classes sociais para compreender de que forma o
pertencimento de classe acarreta em diferentes leituras midiáticas. Entendemos
que a classe social exerce papel fundamental na organização e no funcionamento
das sociedades contemporâneas, daí a importância de estudá-la como categoria
central. Três diferentes classes são investigadas, sendo aqui denominadas classe
média, batalhadora e raladora. O grupo estudado inclui 12 mulheres, quatro de
cada estrato, moradoras da Grande Porto Alegre, com idade entre 27 e 37 anos. A
pesquisa de campo, que teve iniciou em 2012 e foi concluída em 2014, fez uso dos
instrumentos entrevista semiestruturada, formulário e observação. Os resultados
apontam para a diferença substancial das análises da mídia de acordo com os
habitus. Por meio da comparação, foi possível captar características importantes
de cada grupo, em relação a seus modos de viver e de ver a mídia e a telenovela.
Palavras-Chave: Consumo midiático. Classe social. Mulheres. Telenovela. Estudo
comparativo.
Abstract: This paper presents a comparative study of media consumption by
women of different social classes to understand how belonging to a class leads
to different media readings. We understand that social class plays a fundamental role in the organization and functioning of contemporary societies, hence
the importance of studying it as a central category. Three different classes are
investigated, and here called middle-class, “battler” and “fighter”. The study
group includes 12 women, four of each stratum, living in the Greater Porto
Alegre, aged between 27 and 37 years. The field research, which had started in
2012 and was completed in 2014, made use of semi-structured interview, form
and observation. The results point to the substantial difference of the analysis
of media according to the habitus. By comparison, it was possible to capture
important characteristics of each group, in relation to their ways of life and the
way they see media and telenovela.
Keywords: Media consumption. Social class. Women. Telenovela. Comparative
study.
1. Doutora em Comunicação. Realiza Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
PUCRS. E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4431
Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
NQUANTO MUITOS aboliram a classe social do vocabulário e da prática acadêmica,
E
outros seguem caminho inverso e reivindicam a centralidade da classe em pesquisas sociais. Incluímo-nos no segundo grupo, para o qual a classe social permanece
exercendo papel fundamental na organização e no funcionamento das sociedades contemporâneas. “A classe pode ter sido abolida retoricamente em muitos textos, mas uma
quantidade impressionante de evidência empírica confirma que ela permanece como uma
força essencial para modelar a maneira como vivemos hoje” (MURDOCK, 2009, p. 33).
Na perspectiva da Comunicação, Murdock (2009, p. 32) analisa que há uma “recusa
em reconhecer que a classe permanece sendo um importante princípio estrutural de
cada aspecto da vida no capitalismo recente”. Para ele, deixar de pensar a classe social
como estruturante das relações comunicativas – seja no âmbito da produção, do texto
ou da recepção – “bloqueia uma visão abrangente das condições contemporâneas”.
Nossa concepção de classe é de que sua definição não está atrelada à renda ou à
quantidade de bens que possuem, exclusivamente, mas sim a visões de mundo e práticas que conformam modos de ser e de viver, e, por consequência, de se relacionar com
produtos midiáticos. Isso quer dizer que entendemos que o principal distintivo quando
se fala em classe é a cultura. Assim, a respeito das três classes aqui consideradas – classe
média, batalhadora e raladora – poderíamos demarcar que: a) a classe média é aquela
que possui capitais, tanto cultural quanto econômico e social, em quantidade significativa para permitir a reprodução de sua classe ao longo de outras gerações; b) a classe
batalhadora, muitas vezes chamada de “nova classe média”, pode ser identificada como
aquela que a ascensão se deu como fruto do empenho pessoal, pela disciplina e por
outras pré-disposições básicas que permitiram a ela se diferenciar da “ralé”; c) a ralé2,
por sua vez, é uma classe desprovida dessas pré-disposições básicas que permitem a
organização familiar, o sucesso escolar e profissional, em um ciclo em que a primeira
é pré-requisito para os demais. Essas noções, fundamentais para esta pesquisa, têm
origem no pensamento de Pierre Bourdieu e Jessé Souza.
Buscaremos compor um mapeamento comparativo do consumo de mídia e, especialmente, verificar as leituras da telenovela realizada por cada grupo. Assim, o estudo
de consumo midiático serve como antessala para a análise envolvendo o folhetim. Não
estamos em busca das respostas acerca de uma trama em específico ou de uma gama
de personagens, por exemplo, e é por isso que propomos aqui a realização de um estudo
de consumo, mais abrangente que o estudo de recepção, e que serve ao nosso objetivo
de investigar as relações das classes com o produto telenovela, e não de compreender as
decodificações efetuadas, como entendemos ser o objetivo dos estudos de recepção. De
tal modo, entendemos, resumidamente, os estudos de consumo midiático como aquele
que focaliza a relação do público com os meios ou com um gênero, sem atentar para a
decodificação de mensagens específicas.
2. Apesar da clara inspiração em Jessé Souza para a divisão e nomenclatura das classes apresentadas,
não chamaremos o grupo pesquisado de “ralé”. Concordamos com a denominação de Souza, que usa
o termo provocativamente, mas fazemos uma adaptação, designando as mulheres desse grupo como
raladoras, enfatizando o trabalho árduo sem recompensas, sem deixar de atentar para seu esquecimento
e marginalização.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4432
Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
Sobre a metodologia de pesquisa, vale apontar que a opção por desenvolvermos um
estudo comparativo se deve ao entendimento de que esse método permite colocar em evidência, através das diferenças entre os grupos sociais, características centrais de cada um.
Embora não haja consenso sobre a classificação das classes sociais, optamos por
tomar como ponto de partida para identificação das classes a estratificação por ocupações, pois essas carregam consigo aspectos econômicos, educacionais e de reconhecimento social. Assim como Costa (2013, p. 52), pensamos que o “trabalho condiciona a
posição social ao agregar não apenas a renda, mas as condições de vida e segurança dos
trabalhadores”. De acordo com a classificação de Quadros, Gimenez e Antunes (2013),
as mulheres que compõem essa pesquisa podem ser classificadas como pertencentes a
média classe média, baixa classe média e massa trabalhadora, que, de acordo com Souza
(2009, 2010), corresponderiam a classe média, batalhadoras e raladoras, respectivamente.
As mulheres pertencentes à classe média são assistente social, fisioterapeuta, tradutora e publicitária; as batalhadoras são técnica em gestão, manicure, assistente administrativa e vendedora por telemarketing; e as raladoras são, em dois casos, diarista, em
um, auxiliar de serviços gerais e, em outro, desempregada.
A pesquisa de campo ocorreu, em uma fase inicial, nos meses de maio, junho e
julho de 2012 e, posteriormente, de agosto a dezembro de 2013 e nos meses de janeiro
e fevereiro de 2014. Foram, no mínimo, três encontros com cada uma das informantes.
Como instrumentos de coleta de dados, fazemos uso de entrevista semiestruturada,
formulário e observação. Todos eles foram aplicados com as 12 entrevistadas, quatro
pertencentes a cada grupo. Elas têm entre 27 e 37 anos e residem em Porto Alegre ou
região metropolitana.
RECEPÇÃO OU CONSUMO?
Podemos verificar que, sob o guarda-chuva dos estudos de recepção, pesquisas díspares são enquadradas. O que vemos costumeiramente é uma indistinção entre termos.
No campo da Comunicação, Jacks e Escosteguy (2005, p. 15) observam que os estudos
propriamente de recepção priorizam parte da problemática da pesquisa qualitativa de
audiência, sendo aquela que “diz respeito à relação das pessoas com meios ou veículos
de comunicação, com programas, gêneros, mensagens ou momentos particulares, abarcando a complexa configuração de elementos e fatores que caracterizam o fenômeno
como um todo”. Haveria, nesse escopo, um interesse maior pelas leituras e decodificações de uma mensagem.
Jensen e Rosengren (1990) caracterizam os estudos de recepção por uma análise
comparativa dos discursos dos meios com os discursos das audiências, que leva em
conta o contexto sociocultural em que os sujeitos se encontram.
Análise de recepção desenvolve o que se pode chamar de análise de audiência-com-conteúdo, que é tanto qualitativa quanto empírica. Ao mesmo tempo em que produzem dados
empíricos sobre o público por meio de entrevistas em profundidade e de observação, esses
estudos normalmente aplicam métodos qualitativos numa análise comparativa entre aqueles
dados que se referem aos públicos com aqueles que se referem aos conteúdos. (JENSEN;
ROSENGREN, 1990, p. 214).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
Escosteguy e Sifuentes (2011) empreenderam uma diferenciação entre análise de
recepção e estudo de consumo, na qual assinalam que a recepção tem como propósito
a compreensão de um momento específico na interação com a mídia, a partir de um
texto motivador da investigação. Nos estudos de consumo, essa relação é menos direta,
e o interesse recai em um contexto.
A distinção que Ronsini (2007, p. 78) faz entre estudos de recepção e de consumo
indica que a preocupação do primeiro seria “reconstruir como uma dada mensagem
dos meios de comunicação é decodificada, entendida e vivenciada por um grupo de
pessoas”, enquanto, para o segundo, o foco não estaria na “apropriação de mídias, programas ou gêneros específicos, mas o entendimento do sentido geral das tecnologias
da comunicação na experiência cotidiana do receptor”. Esse entendimento se aproxima do que pondera Cataño (2012, p. 96), para quem, nos estudos de consumo, há um
“deslocamento da análise centrada nas mensagens como estruturas ideológicas”, que se
encontraria nos estudos de recepção. Em outro momento, Ronsini (2010, p. 3) expõe que
nos estudos de consumo, diferentemente dos de recepção, existe uma “uma pluralidade
de textos e não um texto específico para ser decifrado” e que “não há preocupação em
considerar teoricamente as mediações que constituem o processo de dar sentido à mídia
e tampouco os detalhes empíricos que envolvem o conhecimento do papel delas”.
Por sua vez, Toaldo e Jacks (2013, p. 7) avaliam que as pesquisas de estudo de consumo midiático se interessam em saber “o que os indivíduos consomem da mídia (meios e
produtos/conteúdos), a maneira com que se apropriam dela (do que consomem – como
a utilizam) e o contexto em que se envolvem com ela (lugares, maneiras, rotinas...)”.
Diferentemente da recepção, “essa dimensão não envolve, porém, a análise de respostas dos receptores aos conteúdos de um programa específico”. Além disso, conforme
as autoras, os estudos de consumo observam aspectos mais amplos do fenômeno da
relação com a mídia que os estudos de recepção, uma vez que focalizam a relação com
os meios e não com mensagens específicas.
Segundo Martín-Barbero e Téllez (2006), deslocar-se do conceito de recepção ao de
consumo cultural, como ocorre na década de 1990, ajuda a superar diversos desentendimentos. Para os autores, investigar o consumo cultural significa entender como os
grupos competem pela apropriação de produtos sociais, distinguindo-se uns dos outros,
e compartilham sentidos por meio de rituais cotidianos.
Assim, temos:
a) análise de recepção: interessa-se pela relação do público com as mensagens e as
respostas a um texto específico (que pode ser um programa ou gênero), sendo importante
a análise dessa mensagem a que a leitura se refere;
b) consumo midiático: focaliza a relação do público com os meios ou com um gênero,
sem atentar para a decodificação de mensagens específicas. Preocupa-se em estudar como
o contexto do receptor afeta a experiência midiática e como essa impacta o indivíduo.
Nesta pesquisa, portanto, fazemos um estudo de consumo midiático, visto que o
objetivo é compreender a relação de mulheres de distintas classes sociais com a mídia,
de modo geral, e com o gênero telenovela, de forma mais específica.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
MODOS DE VIVER
Buscaremos, agora, sintetizar características de cada uma das classes estudadas
empiricamente, com foco nas categorias família e escola e trabalho, importantes constructos identitários e, consequentemente, formadores das visões de mundo e das leituras e
apropriações da mídia.
Iniciando por aquela que é o princípio da estruturação de qualquer indivíduo, a família, como reflete Bourdieu (1983), percebem-se as consequências da história familiar na
conformação das identidades das entrevistadas. Um elemento que se revela significativo
para entendermos determinadas trajetórias diz respeito à separação dos pais durante
a infância ou a adolescência de algumas pesquisadas. Na classe média, Gaia, a única
entrevistada desse grupo cujos pais são separados, não perdeu contato com nenhum
dos lados da família, e relata que o processo se deu de forma relativamente harmônica.
Por outro lado, as consequências foram mais severas para batalhadoras e raladoras.
Nenhuma das batalhadoras e apenas uma das raladoras têm pais casados. O “culpado”
pela separação, em quase todos os casos, são os pais, pelo envolvimento com outras
mulheres e o alcoolismo. Acerca das implicações, nos casos de duas batalhadoras e uma
raladora, a separação foi considerada o estopim para saírem de casa, e teve consequências
financeiras, pois o rendimento familiar caiu. No caso da raladora Mirela, ela, seus dois
irmãos e sua mãe passaram por severas dificuldades após o pai sair da casa da família
e ir viver com outra mulher. Sem ter onde morar, precisaram se mudar diversas vezes
em busca de um local onde pudessem ficar. Como a mãe de Mirela expõe, foi por isso
que a filha não conseguiu estudar – “Como é que tu vai ter um colégio certo, se tu não
tem nem um paradeiro, uma casa, uma lugar pra morar?”.
Assim, podemos perceber que há uma ruptura importante, não só do casal, mas da
organização familiar, no sentido emocional e financeiro. Outros fatores colaboram para
uma vida familiar conturbada nas classes de batalhadoras e raladoras, especialmente
no que se refere ao vício dos pais em drogas e álcool, relatados por duas batalhadoras,
três raladoras e nenhuma componente da classe média3. Assim, entendemos que a
constituição familiar e, consequentemente, os habitus, são afetados. Como expõe Freitas
(2009, p. 283), essa conjuntura está na origem de famílias desestruturadas, entendidas
pela autora como “o tipo de configuração familiar marcada pela desorganização da
vida econômica e moral de seus membros. A família desorganizada é aquela que não
consegue cumprir a função de garantir o desenvolvimento satisfatório da segurança
afetiva entre seus membros”.
Outra diferença expressiva que se percebe entre as famílias nas distintas classes
refere-se aos principais valores transmitidos a elas pelos pais. Sintetizamos esses ensinamentos da seguinte forma: honestidade, entre as raladoras – “Eles passaram os melhores
valores possíveis: não roubar, não matar, não mentir.” (Adriele); esforço, entre as batalhadoras – “Ensinaram a correr sempre atrás do que a gente quer. Trabalhar muito [...],
e tu sempre batalhar pelo que tu quer, tu trabalhar, tu ir atrás. [...] Isso o pai sempre nos
ensinou, embora de uma maneira bem grosseira.” (Lidiane); e estudo, na classe média
3. Três mulheres da classe média, uma com 27 e outras duas com 29 anos, permanecem morando na casa
dos pais, casados.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
– “O que meu pai e a minha mãe, os dois, diziam era estudo, assim: ‘tem que estudar,
tem que estudar, tem que estudar, tem que se formar, tem que trabalhar, tem que ser
independente’, isso era o que eles mais nos passavam.” (Cíntia).
No que se refere à categoria escola e trabalho, conforme a descrição da rotina das
mulheres de classe média, nota-se que a dupla jornada – trabalho e estudo – é realidade
para elas tanto quanto para os outros grupos. Cabe, no entanto, ressaltar algumas diferenças, especialmente no que se refere às causas e às consequências da dupla jornada para
batalhadoras e classe média. Na classe média, o estudo faz parte da busca por realização
pessoal ou pela concretização de ambições profissionais, não representa o princípio de
uma carreira ou a realização de um sonho, como se verifica entre as batalhadoras, que
conciliam a faculdade com o trabalho. As mulheres da classe média puderam se dedicar
integralmente ao ensino superior, assim que concluíram o ensino médio, ingressando
no mercado de trabalho apenas após a conclusão do curso. Camila cursa doutorado. A
titulação, quando obtida, permitirá um aumento de 75% sobre o salário-base. Já Cíntia
buscava um curso que lhe propiciasse satisfação pessoal, o que não encontra com a
Fisioterapia – “Pra mim não era uma satisfação pessoal fazer isso [...]. Hoje, nessa graduação, eu entendi que não, que é possível pra um crescimento meu”. Gaia diz que tem
o costume de “dar tiro para tudo quanto é lado”, por isso teria ingressado na segunda
graduação. Sua condição, sustentada pela mãe, permite. Milena estuda para concursos
com um foco claro: ter um salário superior a R$ 10 mil.
As batalhadoras têm, em geral, mais horas de trabalho – a classe média tem, no
máximo, 40 horas de carga de trabalho semanal, enquanto entre as batalhadoras esse é
o mínimo4 –, e o estudo não é para “se encontrar”, ou seja, visando a satisfação pessoal,
ou para ter um nível salarial elevado. O ensino superior foi uma possibilidade construída, não o “caminho óbvio”. Para a classe média, percebe-se que ele é entendido como
fundamental. Inclusive, para Cíntia, que levou dois anos após o fim do ensino médio
para ingressar na faculdade, a situação já estava angustiante: “todos os meus colegas já
estavam na faculdade”. É diferente da batalhadora Ruth, que já trancou vários semestre do curso por não ter dinheiro para a mensalidade; ou de Rafaela, que só conseguiu
ingressar na faculdade desejada após 15 anos da conclusão do ensino médio, pois só
agora ganha um salário que a permite arcar com a mensalidade; ou de Diná, filha de
empregada doméstica, que nem imaginava ingressar na universidade, fez um curso
técnico buscando se qualificar para o mercado de trabalho e, graças a um auxílio governamental, conseguiu se graduar no ensino superior – com o reconhecimento dos dois
principais prêmios oferecidos pela faculdade, de melhor amiga da turma e de melhor
coeficiente de notas entre os formandos.
Para as raladoras, a necessidade de escolha, de sacrifício da escola, ou o desinteresse
e desilusão com o sistema de ensino, ocorreram ainda na educação básica: Xaiane é quem
vai mais longe, porém para na metade do ensino médio; Adriele, Fátima e Michele, ainda
no ensino fundamental não seguiriam adiante. A escola, para jovens e adultos da ralé,
4. Sobre a rotina diária, vale observar que as mulheres da classe média conseguem se dedicar mais àquilo
que mais importa para elas, que é trabalho, estudo e lazer. Diferentemente das raladoras, e assim como
as batalhadoras, com uma exceção, elas não precisam se dedicar aos filhos. Não cuidam da casa, pois há
quem faça isso, e gastam menos tempo se deslocando de casa para o trabalho e vice-versa.
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Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
Lírian Sifuentes
aparece atrelada a um sentimento de frustração, um fracasso pessoal, de quem teve a
oportunidade de estudar e não foi bem sucedido por um demérito individual. “Ai, eu
não era muito estudiosa, eu já não gostava muito de estudar, ia na escola mesmo pra ter
um, terminar um pouco os estudos, mas no fim eu nem terminei, né?” (Adriele). Assim,
a escola pública “apenas ‘confirma’ e legitima com o ‘carimbo’ do Estado um destino já
montado desde muito antes”. (SOUZA, 2009, p. 427).
Mesmo no cenário apresentado, muito mais positivo, as mulheres da classe média se
mostram insatisfeitas com as posições profissionais que ocupam. Batalhadoras e raladoras, por outro lado, consideram-se bem sucedidas. Percebe-se que essa perspectiva está
relacionada às expectativas construídas por cada classe. As mulheres da classe média
estão aquém do que almejam. As batalhadoras aspiram mais, mas estão satisfeitas, têm
mais do que esperavam, afinal, são a “nova classe”, a classe que ascendeu. Já as raladoras
tinham expectativas muito restritas, são a classe sem futuro, como afirma Souza (2009),
e assim permanecem. Não fazem planos para si, o foco está nos filhos. Elas, ainda na
primeira metade da vida, não enxergam muitas possibilidades para si, embora o sonho
de uma “transformação mágica” não deixe de estar presente. “A ilusão de que ‘tudo
pode acontecer’ é apenas um recurso necessário a quem vive numa condição social em
que somente a aposta na sorte pode manter viva a esperança na possibilidade de fugir
do ‘destino’” (ROCHA; TORRES, 2009, p. 239).
MODOS DE VER A MÍDIA
Na infância e na adolescência das mulheres, a diversificação de meios consumidos
era significativamente menor do que a que temos hoje. A televisão foi o meio consumido pelos diferentes grupos nas diferentes fases da vida. Rádio, revista e internet, essa
última somente na classe média, surgem durante a adolescência. A maior diferença que
se percebe entre as classes é o papel que ocuparam rádio e internet na adolescência.
Se, para as batalhadoras e raladoras, o rádio era quase unanimidade; a internet passou
a fazer parte da vida de todas as integrantes da classe média durante a adolescência,
quando o meio chega para consumo doméstico no Brasil, na década de 1990.
Quanto ao consumo de meios atualmente, a televisão é consumida diariamente em
todas as classes, excetuando-se Gaia, da classe média, que não assiste à televisão todos
os dias. O rádio, pode-se afirmar, é mais popular na classe mais baixa, visto que todas
o consomem várias horas cotidianamente. As emissoras e programas favoritos variam
conforme a classe. Enquanto a classe média prefere programas musicais, o consumo das
batalhadoras inclui programas de variedades, jornalísticos e musicais. Entre as raladoras,
chama a atenção a preferência pelo programa Love Songs, da rádio Cidade – constituído por músicas românticas, tradução de letras de músicas do inglês para o português,
opinião do apresentador sobre atualidades e recados românticos –, referido por todas, e
também citado em vários casos na classe batalhadora, e nenhuma vez pela classe média.
O jornal é lido esporadicamente por todas as classes, todavia, enquanto a classe
média escolhe a Zero Hora, as raladoras optam pelo Diário Gaúcho, ambos do Grupo
RBS, e esse último destinado às classes populares. Além disso, destaca-se como seção
favorita do jornal, entre as raladoras, a editoria policial, resumos de novelas, informe
sobre signos e, também citado, um espaço sobre “corações solitários”. Sobre o gosto pelos
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Classe social, mídia e mulheres: como o pertencimento de classe origina diferentes leituras da mídia?
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relatos policiais, Sunkel (1999) já destacava que esse pode ser atribuído à proximidade
de suas respectivas vidas com o ambiente violento.
Detendo-nos no produto telenovela, no que toca à temática de relações de gênero,
identificamos a classe média como a menos conservadora nas leituras feitas acerca da
representação feminina, especialmente no que se refere à sexualidade. As leituras da
classe média e, em certa medida, também das batalhadoras, convergem com a análise
de Messa (2006) sobre o seriado Sex and the City, “as mulheres só querem ser salvas”.
Elas avaliam que, nas novelas, a prioridade e a solução para as mulheres é sempre o
casamento. Gaia, da classe média, diz que a mulher da novela, em diversos sentidos,
não aparece como agente quando o assunto é sua felicidade. A classe média indica que,
em relação à sexualidade, é como se a mulher não tivesse a sua, como se ela não pudesse
existir e atuar nesse âmbito. As batalhadoras dão atenção à independência feminina
nas tramas, mas se dividem quando duas consideram que as mulheres nas novelas são
independentes, como na vida real, e outras dizem que deveriam ser mais independentes,
tanto no folhetim quanto na realidade.
De outro lado, as raladoras relacionam a sexualidade feminina na novela à promiscuidade. Fazem uma análise conservadora ao focarem em aspectos comportamentais
femininos, expondo que consideram as personagens femininas muito “vulgares” e
“interesseiras”. Sobre sexualidade, Mirela faz sua avaliação a partir do ponto de vista
da religião (evangélica), preponderante em sua visão de mundo: coloca no mesmo nível
o problema das novelas mostrarem assalto, muita briga, gays e lésbicas: “nada contra, mas
tu só vê lésbica, gay e assalto, briga, só isso que tu vê.”.
Divergindo do que o senso comum poderia esperar, são as mulheres de classe média
que fazem a leitura mais opositiva ao modo de representação das classes baixas, que
mascararia as diferenças sociais, fazendo-se pensar que há harmonia nas relações entre
as classes e que os pobres não só são felizes, como são os mais felizes, não sofrendo da
mesquinhez característica dos ricos.
Os pobres é a coisa mais [...] a festa, é sempre o churrasco, a festa e aquela coisa exagerada,
assim, daquela coisa de fazer fiasco. [...] Eu acho que é bem isso assim, ‘que a gente é pobre mas
é alegre’, então não tem problema ser pobre. Mesmo com pouco a gente consegue se feliz. Eu acho
que a novela acaba mostrando que sempre ser pobre é mais legal do que ser rico. Que os rico tão
sempre sofrendo, tem sempre os problemas, assim, e os pobres são o núcleo onde as pessoas
sempre são alegres... (Gaia)
As novelas, segundo as integrantes da classe média, permitiria uma interpretação
conformista de que tudo vai bem. Muitas vezes, esse é o julgamento das raladoras,
que entendem a novela como realista nos seus modos de retratar as classes sociais,
seus membros e suas relações. As batalhadoras fazem, em certa medida, uma análise
aproximada à da classe média, embora de uma forma menos elaborada. Elas são “meritocráticas para si” em suas leituras, visto que acreditam que seu empenho pessoal trará
frutos, mas percebem que para aqueles de classe abaixo da sua, faltam, antes de tudo,
oportunidades. Ou seja, entendem, de certo modo, as mazelas que sofrem as classes
inferiores, sem notar de que maneira elas próprias são subjugadas.
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Por fim, assinalamos que as batalhadoras se reconhecem parcialmente nas novelas,
uma vez que se identificam direta ou indiretamente com as personagens guerreiras e
lutadoras que dizem ser apresentadas nas tramas. Embora pouco se identifiquem com
os personagens, as entrevistadas da classe média – que gostam das novelas de Manoel
Carlos, que elas mesmas destacam tratar de uma elite pouco ou nada representativa do
Brasil – são, de certa forma, quem está mais proximamente representada nas tramas.
A ralé, por sua vez, não aparece nas novelas. Essa classe não pode ser mostrada nas
novelas porque tal representação escancararia o grave problema social brasileiro, que
os churrascos nas lajes na favela não revelam. Talvez por isso as raladoras, mesmo sem
articularem suas ideias mais “criticamente”, achem a novela uma “baboseira”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pertencer a uma classe social origina modos de vida específicos e, por consequência,
diferentes formas de entender o mundo. A mídia é parte desse mundo, e, portanto, ela
é interpretada de uma forma específica dependendo da classe social a que se pertence.
Os princípios para essa interpretação podem ser encontrados em Bourdieu, que
assinala que se, por um lado, cada habitus é único, um coletivo individualizado, pois cada
indivíduo possui uma trajetória singular, vivendo experiências em uma ordem própria e,
por consequência, de forma distinta; membros de uma mesma classe estão sob as mesmas
condições de existência e, assim, “a história do indivíduo nunca é mais do que uma certa
especificação da história coletiva de seu grupo ou de sua classe” (BOURDIEU, 1983, p. 80).
É na família que está o princípio da estruturação do habitus, que continuará sendo
formado na escola, mas já com as restrições impostas pelo arcabouço familiar. Essa
formação oriunda de família e escola estará no princípio de todas as experiências ulteriores. Por isso, buscamos mostrar um pouco da trajetória de vida das mulheres das
três classes consideradas – média, batalhadora e raladora. Os contrastes são visíveis,
deixando claro como suas histórias, relacionadas a uma classe específica, as constituiu
de forma semelhante dentro de uma mesma classe, mas de modo significativamente
divergente em relação às demais.
O habitus, um habitus de classe, será determinante para as escolhas e, principalmente,
para os sentidos dados aos produtos midiáticos. O gosto, assim, seja por uma pessoa ou
por um programa televisivo, por exemplo, mais do que uma inocente e natural preferência individual, envolve o pertencimento de classe. Como indica Cook (2000, p. 100),
“nós gostamos do que gostamos não apesar da classe, mas porque isso expressa nossas
diferenças de classe dos outros”.
Seguramente, classe não explica tudo, até porque as fronteiras entre uma classe
e outra não são tão nítidas e estanques. Todavia, explica muito, e nosso esforço foi no
sentido de compreender o consumo midiático com a perspectiva de classe. Para nós, fica
clara a validade e a importância dessa categoria para o estudo do consumo midiático.
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva
das identidades de gênero: um olhar sobre a
produção stricto sensu da última década
Brazilian telenovela reception studies regarding the
perspective of gender identities: a discussion about
the academic production in the last decade
V a l q u i r i a M i ch e l a J oh n 1
L o u r d e s A n a P e r e i r a S i lva 2
Felipe
da
Co sta 3
Resumo: Este artigo discute o panorama das pesquisas de recepção tendo como
materiais de análise as teses e dissertações desenvolvidas nos PPGs em Comunicação na última década aproveitando o corpus já estudado por Jacks et al (2014).
Analisou-se especificamente os estudos de recepção da telenovela desenvolvidos
a partir da perspectiva das relações e identidades de gênero, aspecto pouco
enfatizado nas pesquisas desenvolvidas na última década sobre a mais importante narrativa de ficção seriada brasileira. De um universo de 209 pesquisas
analisadas, 24 se dedicaram à recepção da telenovela, das quais apenas quatro
sob a perspectiva de gênero, embora as mulheres sigam sendo as informantes
mais enfocadas na problematização da recepção desse conteúdo.
Palavras-Chave: estudos de recepção. telenovela. gênero. Estado da arte.
Abstract: This paper discusses the reception researches panorama having
analyzed the thesis and dissertations developed in the Communication Post
graduation Programs in the last decade, taking the corpus already studied by
Jacks et al (2014). We analyzed specifically the studies of brazilian telenovela
recepction developed from the gender relations and gender identities perspective. Aspect with little emphasis on researches developed on the last decade about
the most important Brazilian serial fiction narrative. From the 209 researches
analyzed, 24 were dedicated to reception of brazilian telenovelas, in which only
four were about the gender perspective, even though women continue being
the most focused informants of the problematization in these content reception
studies. Among the results of this research, we highlight the fact that the majority
1. Doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS. Professora do curso de Jornalismo da
Universidade do Vale do Itajaí - Univali. Pesquisadora doa grupo Monitor de Mídia. [email protected]
2. Doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS. Professora do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro e dos cursos de Jornalismo e Publicidade e
Propaganda da mesma IES. [email protected]
3. Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Mestrando
em Jornalismo no Posjor/UFSC. [email protected]
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
Valquiria Michela John • Lourdes Ana Pereira Silva • Felipe da Costa
of the researches we analyzed, more so those with a sociocultural approach
emphasizing the social, political and cultural aspects, make the effective study
of the receptor as a subject of a cultural process possible.
Keywords: reception researches. brazilian telenovela. gender. art state.
INTRODUÇÃO
FUNDAMENTAL, PARA o desenvolvimento de qualquer pesquisa, conhecer o que
E
já foi produzido sobre seu objeto. Essa conduta possibilita estabelecer o diálogo
com outros estudos que se debruçam sobre o mesmo objeto, tema ou, ao menos,
sobre o mesmo cenário. Apesar da importância desse mapeamento, como reforçam
Jacks, Menezes e Piedras (2008), nem sempre essa prática é contemplada nos estudos
realizados na área da Comunicação. Escosteguy (2008) enfatiza esse aspecto ao afirmar
que “Não temos o hábito de produzir ‘estados da arte’, ao contrário do que acontece em
outros contextos geográficos e disciplinares. [...] a pesquisa feita no campo acadêmico da
comunicação é com frequência invisível aos próprios pesquisadores em comunicação”.
Muitas pesquisas desenvolvidas nos PPGs da Comunicação, apesar de lidarem com
objetos, cenário empírico e/ou enfoque teórico metodológicos similares, quando não
os mesmos, raras vezes estabelecem o diálogo entre si.
Mapear o que foi produzido na área é, então, uma forma de se colocar em diálogo,
de estabelecer análises de continuidade, reforço ou contestação de resultados, processo
salutar para o desenvolvimento do conhecimento. Naturalmente, não é possível mapear
todas as análises realizadas, mas ao menos estabelecer um recorte que possibilite um
panorama mínimo da área em que se atua e se desenvolve a pesquisa. Portanto, aqui
se fez um recorte que enfatiza a produção na área específica da Comunicação, ciente
de que isso deixa lacunas. Assim, o principal recorte para mapear o estado da questão
aqui proposto foram as teses e dissertações desenvolvidas nos PPGs em Comunicação
da última década aproveitando o corpus já estudado por Jacks et al (2014).
O “estado da questão” aqui proposto refere-se, de modo ainda mais específico, às
pesquisas de recepção de telenovela, particularmente, aquelas que estabeleceram análise e reflexões sob a perspectiva das relações de gênero, aspecto pouco enfatizado nos
estudos desenvolvidos na última década, como se verá a seguir.
PROCEDIMENTOS ADOTADOS PARA A ANÁLISE
A abordagem metodológica deste trabalho consiste na realização do estado da
arte, ou seja, mapear e discutir os estudos de recepção em telenovela que trabalham
com identidade de gênero. O recorte do campo de conhecimento feito é o da comunicação stricto sensu, na última década, especificamente as teses e dissertações produzidas
no intervalo de 2000 a 2009, aproveitando o corpus mapeado e discutido por Jacks et al
(2014). Segundo Jacks et al (2014), no período de 2000 a 2009, foram desenvolvidas 5.715
pesquisas nos atuais 44 Programas de Pós Graduação em Comunicação brasileiros.
Desses, 4.249 se deram no âmbito do mestrado e 1.466, no doutorado. Desse conjunto
de trabalhos, “[...] somente 209 tratam dos processos e práticas de recepção dos meios
de comunicação de forma empírica, os chamados estudos de recepção”. Os conteúdos
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mais estudados foram o jornalismo, com 54 pesquisas, e a telenovela, eleita em 24 dos
209 estudos de recepção desenvolvidos.
Esta análise é, portanto, um novo olhar a partir do material discutido pelos autores
na referida obra, da qual participaram os autores deste artigo. Os procedimentos metodológicos adotados, tanto para a produção do livro que deu base documental quanto
para esta análise específica, consistiram basicamente em três etapas:
A 1ª etapa diz respeito ao mapeamento dos trabalhos.4 Esta etapa do processo da
pesquisa evidencia o reconhecimento do aspecto cumulativo do conhecimento científico
produzido. Neste artigo, o corpus5 compreendeu especificamente os estudos de recepção
da telenovela desenvolvidos no intervalo de 2000 a 2009 a partir da perspectiva das relações e identidades de gênero, estabelecendo, portanto, o diálogo entre as 24 pesquisas
sobre telenovela conforme analisado por Silva (2014) e as 30 sobre mulheres e/ou relações
de gênero, seguindo a análise feita por John e Costa (2014). A ênfase maior da discussão
recai, porém, sobre as 24 pesquisas de recepção que enfocaram a telenovela. Destas, 15
são dissertações e nove são teses. A produção dessas teses se deu nos seguintes estados
brasileiros: São Paulo (16), Rio Grande do Sul (04), Minas Gerais (02), Rio de Janeiro (01)
e Distrito Federal (01).
A 2ª etapa consiste na leitura integral das teses e dissertações e no fichamento das
mesmas; Os trabalhos são classificados a partir de abordagens. Neste artigo optou-se por
trabalhar somente com a abordagem sociocultural, entendida “como o modo de tratar
o objeto, a visão do pes­quisador sobre o assunto, isto é, seu ponto de vista teórico e a
maneira ou método de enfocar, ou de interpretar o fenômeno” (ESCOSTEGUY, 2004, p.135).
A 3ª etapa refere-se à produção da pesquisa em si, visando a realização de um panorama que possibilite contribuir com a sistematização e análise da temática, evidenciando
avanços e lacunas sobretudo no que diz respeito aos aspectos teóricos metodológicos
da pesquisa. Os resultados são discutidos a seguir, primeiramente uma apresentação
geral dos estudos de telenovela, depois dos estudos de gênero e, em seguida, a ênfase
nos estudos de telenovela sob a perspectiva de gênero.
TELENOVELA E IDENTIDADE, ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS
Um dos aspectos importantes a destacar no panorama das pesquisas sobre recepção de telenovela é o processo histórico que caracterizou a trajetória desse objeto de
pesquisa nos estudos de recepção no campo da comunicação. Mais de meio século de
veiculação de telenovela no Brasil a transformou em um fenômeno de grande impacto
no cotidiano de milhares de pessoas e a legitimou como um ícone da cultura de massa
e como um dos produtos de maior consumo da televisão brasileira.
No contexto da década analisada, a de 2000, a telenovela ultrapassa a função de
mero entretenimento devido às inúmeras transformações pelas quais passam a esfera
da produção e da recepção, reconfigurando desse modo a teledramaturgia nacional. Na
4. O Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e, em
alguns casos os bancos de teses e dissertações das universidades, constituem-se nas principais fontes
documentais desta pesquisa.
5. Cabe ressaltar que do universo de 209 já estudado por Jacks et al (2014), elegemos o corpus de 24 trabalhos conforme já descrito.
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
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ótica da produção, as mudanças vão desde a inclusão veloz de novas tecnologias e da
concorrência aguerrida entre emissoras até o alto nível artístico e estético das narrativas.
Quanto à recepção, pode-se ressaltar as transformações caracterizadas pelos modos
diversificados de assistir à telenovela – devido, sobretudo, ao maior acesso à internet
– e pela exigência das audiências de querer sempre mais verossimilhança entre ficção
e realidade social – consequência de uma competência técnica dos telespectadores,
acumulada ao longo de mais de seis décadas de convivência com esse produto.
Apesar disso, não se pode esquecer que, durante um bom tempo, a telenovela
permaneceu à margem da academia e só começou a despertar seu interesse, enquanto
objeto de estudo, a partir dos anos 1980, consequência da hegemonia frankfurtiana que
caracterizou a pesquisa midiática brasileira nas décadas de 1960 e 1970. Assim, o tema
só despertou o interesse acadêmico na década posterior, coincidindo de algum modo
com o esgotamento do regime militar e com a atenção que a mídia começou a dar ao
fenômeno. Nesse cenário, as pesquisas realizadas foram de cunho histórico sobre o
gênero de ficção televisiva, a exemplo do inventário da memória da telenovela brasileira,
feito por Ismael Fernandes em 1982, e da análise da evolução do formato telenovelesco,
organizada por Renato Ortiz e equipe em 1988 (MARQUES DE MELO, 2004).
Além desses aspectos históricos permitirem identificar as condições sociais de produção do conhecimento sobre esse objeto de estudo, possibilitam também afirmar que
a identidade é a temática mais recorrente na última década quando se trata dos estudos
de recepção na área da comunicação. Essas iniciativas têm agrupado um conjunto de
trabalhos que refletem sobre os estudos de recepção de telenovela a partir de distintos
aspectos e enfoques, e que possibilitam assegurar, que apesar de a telenovela ter sido
considerada tardiamente como objeto de estudo na academia, a trajetória feita dos anos
1980 até os dias atuais demonstram que se trata de um objeto de estudo consolidado.
Considerando o corpus, as pesquisas que trabalharam na perspectiva da abordagem
sociocultural, tiveram por objetivo estudar a identidade enquanto fenômeno, verificando
seus processos de constituição, como mediação constitutiva da interação entre audiência
e televisão/telenovela. O que significa dizer que tais pesquisas situaram essas narrativas
para além dos sentidos das mensagens, isto é, se preocuparam com o que transborda
delas e, desse modo, ampliaram a inter-relação entre comunicação e cultura, posicionando a problemática do estudo de telenovela na complexidade do discurso social
mais amplo e não restringindo ao discurso ideológico. Desse modo, os trabalhos que
abordaram essa temática expressam heterogeneidade nas denominações identitárias
e evidenciam que os processos culturais encontram-se vinculados às relações sociais.
Verificou-se que a temática das identidades foram estudadas em suas mais variadas
especificidades: étnicas (afro, indígena, europeia), rural, regional, cultural, familiar,
racial, de gênero (feminino) e de orientação sexual.
Além da temática da identidade, esses trabalhos de recepção de telenovela se
dedicaram a estudar a produção de sentidos, memória, relações de gênero, consumo,
comportamento, merchandising e experiência cultural. A multiplicidade de recortes feitos nesses trabalhos demonstra como um objeto pode se re-configurar continuamente,
dada a dinamicidade dos contextos e problemáticas que o mobilizam, dinamizam e o
subvertem, com sua natureza necessariamente histórica.
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
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Outro aspecto que cabe ressaltar, trata-se dos teóricos mais utilizados, repetem
o que foi registrado na década anterior6: Jesús Martín-Barbero, seguido por Nestor
García Canclini, Guillermo Orozco Gómez e Stuart Hall. Observa-se, desse modo, que
os estudos de recepção de telenovela fazem adesão, principalmente, ao pensamento de inspiração teórica latino-americana, não chegando ainda a incorporar autores
brasileiros.
Quanto aos aspectos teórico-metodológicos desses trabalhos, verifica-se ainda que
estes nem sempre são explicitados, ou ao menos em que dimensão se deu o método, as
técnicas e os procedimentos, todavia, pode-se perceber que em se tratando de modelo, o
mais empregado é o das mediações, sendo Jesús Martín-Barbero a principal referência.
Na maioria dos casos, tais pesquisas carecem de explicitação teórica conscientes da
metodologia utilizada (SILVA, 2014). Urge teorizar os métodos, técnicas e instrumentos
de pesquisas, evidenciar os procedimentos analíticos e interpretativos, considerando
que eles são fundamentais para construir o objeto e contribuir para a resolução do problema. Com isso, algumas vezes fica evidente que, quando os autores não têm clareza
do objeto de pesquisa, consequentemente isto se reflete na metodologia, resultando a
descrição lógica e cronológica do método, a exemplo de amostras mal construídas ou mal
explicitadas nos relatos de pesquisa; dos procedimentos e técnicas não problematizados
à luz do objeto e do problema de pesquisa. Essa lacuna se torna evidente também na
estrutura geral da produção de algumas pesquisas e na ausência de referências específicas sobre metodologia.
ESTUDOS DE RECEPÇÃO PELA PERSPECTIVA DE GÊNERO:
CONSIDERAÇÕES GERAIS
John e Costa (2014) mapearam, entre os 209 trabalhos que integram o corpus da
pesquisa realizada por Jacks et al (2014), 307 deles com ênfase em mulheres e/ou na
questão das relações de gênero. Ou autores ressalvam que a expressão “ou” se deve ao
fato de que nem sempre houve essa correlação. “Há pesquisas que adotaram mulheres
como sujeitos do estudo, sem, no entanto, passar pela questão de gênero e há trabalhos
que abordaram essa temática a partir de homens (2) ou de homens e mulheres (4)”. No que
se refere aos procedimentos para mapear esses trabalhos “[...] o objetivo inicial eram as
pesquisas com as mulheres, mas, também, os trabalhos que abordavam a temática da
identidade de gênero, daí a presença do público masculino” (JOHN, COSTA, 2014, p. 218).
Do total de estudos que focaram exclusivamente em mulheres (24), pode-se dizer
que 158 deles discutiram a recepção sob a ótica das relações de gênero. Houve, assim,
um crescimento em relação à década de 1990 quando foram realizados apenas sete trabalhos seguindo essa perspectiva9. É importante destacar, entretanto, que o número de
pesquisas desenvolvidas nos programas de Pós Graduação em Comunicação também
6. Ver Jacks, Menezes e Piedras (2008).
7. “Vale destacar que dos 30 estudos aqui analisados, apenas quatro foram desenvolvidos por pesquisadores
homens, evidenciando que a preocupação com a identidade de gênero continua sendo majoritariamente
das mulheres” (JOHN E COSTA, 2014)
8. Vale a ressalva que esses trabalhos não necessariamente abordaram a problemática das relações de
gênero e sim estabeleceram uma breve reflexão sobre isso.
9. Para maior detalhamento da década de 1990, ver Jacks, Menezes e Piedras (2008).
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
Valquiria Michela John • Lourdes Ana Pereira Silva • Felipe da Costa
foi significativamente maior, o que revela um crescimento relativo. Dessas 15 pesquisas,
apenas uma foi desenvolvida no âmbito do doutorado, 13 são socioculturais.
A recepção por parte das mulheres tem como foco os conteúdos televisivos, de revista,
rádio e um estudo que relaciona TV e jornal. Portanto, nenhum estudo de recepção sob a
perspectiva das identidades de gênero teve como foco a internet. É importante destacar
a prevalência do conteúdo televisivo na recepção feminina sob a ótica de gênero, 11 no
total. Contudo, se levarmos em conta que, no intervalo analisado foram realizados 111
estudos de recepção com ênfase nesse meio (JACKS et al, 2014), esse número acaba por
ser ainda bastante tímido.
O gênero televisivo mais estudado sob essa perspectiva foi a telenovela. Se levarmos
em conta, porém, que dos 24 estudos de recepção que se dedicaram a esse gênero televisivo (SILVA, 2014), apenas quatro o fizeram sob a ótica das relações de gênero, o número
pode ser considerado baixo, notadamente por conta das várias referências a esse gênero10
como sendo algo da preferência das mulheres e que, possivelmente, poderia ser melhor
compreendido e/ou problematizado ante a ótica dos papéis e identidades de gênero.
As pesquisas que destacaram a recepção feminina e discutiram as relações de gênero são provenientes, majoritariamente, do Rio Grande do Sul, com seis dos 15 estudos,
seguido por São Paulo (três trabalhos) e Minas Gerais (dois), além de Bahia, Pernambuco,
Distrito Federal e Goiás, com um trabalho cada.
Os autores mais referenciados nesses estudos não diferem do padrão encontrado no
conjunto dos 24 estudos de recepção da telenovela já apontados, com a predominância
dos teóricos latino-americanos Jesús Martin-Barbero, Néstor Garcia Canclini e Guillermo
Orozco, bem como a presença significativa de Stuart Hall. Nas pesquisas sobre recepção
e mulheres, Martin-Barbero e Stuart Hall foram os mais utilizados, presentes em sete
trabalhos cada. Há também a presença de algumas pesquisadoras ligadas aos estudos
sobre gênero. Autores brasileiros estão praticamente ausentes dessas discussões, sendo Ana Carolina Escosteguy, Silvia Borelli e Vera Veiga França as pesquisadoras mais
citadas, em um trabalho cada. 11
Parte desse cenário pode ser explicada pelo fato de os autores mais citados serem
os mais diretamente ligados às escolhas teórico-metodológicas dos trabalhos. Há de se
destacar, porém, a importância de se estabelecer um diálogo mais interdisciplinar entre
os teóricos dos estudos de recepção e as autoras das pesquisas sobre gênero, sobretudo
na discussão dos resultados. Embora autores dos estudos de gênero tenham sido utilizados, esses estão muitas vezes restritos a um capítulo teórico e/ou histórico sobre o
tema, sem efetivamente estarem articulados à análise da recepção propriamente dita,
o que leva a sua quase invisibilidade na lista dos mais citados. Outro possível motivo
para a evidência dos autores mais citados pode estar ligado ao fato de a temática mais
recorrente ter sido a questão da identidade.
10. Ressalta-se que o termo gênero aqui se refere ao conteúdo midiático. Embora a palavra seja recorrente ao
longo deste capítulo em referência às identidades femininas e masculinas e seus atributos sociais e culturais,
o termo, justamente por não ser específico, pode ter mais de uma acepção, como é o caso neste momento.
11. Curiosamente, apesar de os estudos sobre mulheres serem desenvolvidos majoritariamente por mulheres
(inclusive no corpus aqui analisado), elas figuram como minoria na lista de autores mais citados.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
Valquiria Michela John • Lourdes Ana Pereira Silva • Felipe da Costa
RECEPÇÃO DA TELENOVELA SOB A ÓTICA DE GÊNERO
Desses 15 estudos sobre identidades de gênero, como dito no tópico anterior, 11 deles
têm a televisão como seu objeto de estudo. Especificamente sobre telenovela, foram quatro
pesquisas12, dos quais três realizam a efetiva discussão sobre as identidades de gênero.
São os estudos de Gonçalves (2002)13, Tonon (2005), Gomide (2006) e Sifuentes (2009).
Tonon (2005) e Gomide (2006) discutem a homossexualidade feminina a partir da
recepção de telenovelas. A primeira discute a homossexualidade tendo como ponto de
partida os dispositivos da sexualidade e as políticas das diferenças, fazendo um diálogo
entre Michel Foucault (1926-1984) e Stuart Hall (1932-2014). Depois, apresenta a trajetória
dos movimentos homossexuais, a homossexualidade feminina e sua representação na
mídia. Discute, além da telenovela, outros gêneros como música. Gomide (2006) apresenta a história do movimento gay e lésbico, com ênfase nos estudos de gênero e a teoria
queer nos Estados Unidos, e sua influência nos estudos brasileiros, para então discutir a
formação da identidade lésbica a partir da telenovela Senhora do Destino exibida pela
Rede Globo em meados da década passada. Esses trabalhos evidenciam aprofundada
discussão teórica sobre sexualidade e os papeis de gênero a ela relacionados, com destaque para a homossexualidade feminina.
São inovadores em relação ao panorama da década de 1990 ao abordarem uma
temática que não havia sido tensionada pelos pesquisadores, possivelmente porque as
próprias telenovelas raramente apresentavam esse tema em seus enredos. Esse aspecto
foi ficando mais evidente ao longo dos anos 2000, com a temática da homossexualidade
sendo explorada por seguidas narrativas, embora com mais destaque para a homossexualidade masculina. Tonon (2005) e Gomide (2006) articulam seus resultados empíricos às
discussões sobre gênero, notadamente, às questões que envolvem a temática enfatizada
– os papeis e estereótipos relacionados ao exercício da sexualidade.
O terceiro estudo desenvolvido no período, a abordar a temática das identidades de
gênero na recepção de telenovela foi o de Sifuentes (2009). A autora também explora a
proposta das mediações de Martin-Barbero (2003) para a análise que realiza. Sifuentes
(2009) problematiza a correlação entre as identidades de gênero e de classe como articuladoras de toda a pesquisa sobre a recepção de telenovela Caminhos das Índias14.
O estudo, realizado com 12 mulheres de classes populares da cidade de Santa Maria/
RS, teve como objetivo “[...] compreender como os embates e complementaridades entre
a audiência da telenovela e os demais elementos do cotidiano – família, escola e classe social – conformam a identidade feminina de jovens mulheres de classe popular”
(SIFUENTES, 2009, p. 5). Há evidência de exaustivas leituras sobre gênero e busca frequente de relacionar esses escritos ao resultado de seu trabalho de campo, que evidencia,
entre outros resultados, um processo de projeção dessas jovens mulheres às narrativas
e personagens da telenovela. Ou seja, a identificação se dá, enfaticamente, a partir de
um processo de correlação entre os enredos e sua vida cotidiana.
12. Outras três pesquisas estudaram o conteúdo jornalístico, além de Publicidade, Série Americana, Variedades e Talk Show, com um trabalho cada e uma pesquisa que não focalizou nenhum conteúdo em particular.
13. A divergência no número, antes citado três e aqui quatro deve-se ao fato de que o trabalho de Gonçalves
não chega a efetivamente a realizar discussão sobre gênero, motivo pelo qual não foi destacada nesta
apresentação dos estudos que articulam a problemática enfocada nesta pesquisa.
14. Exibida pela Rede Globo no período de janeiro a setembro de 2009.
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
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Além desses três estudos com ênfase na relação entre telenovela, mulheres e identidade de gênero, o corpus contempla ainda o estudo de Souza (2009), que não tem como
foco específico a telenovela, mas que chega a discuti-la brevemente na perspectiva de
um conteúdo midiático que trata da homossexualidade. O estudo tem como objetivo “[...]
descrever a interpretação que alguns indivíduos da comunidade gay fazem a respeito de
como a mídia de massa interpreta a mesma; e também como entendem a possibilidade
da existência de um segmento de mercado específico para eles” (SOUZA, 2009, p. 63).
A identidade de gênero é o tema condutor da dissertação, entretanto a autora não o faz
pela ótica das relações entre masculino e feminino, apesar de ter como entrevistados
homens e mulheres. Souza (2009) fala sobre os papéis sociais de cada um para discutir a
homossexualidade, mas não tem como foco o que diferencia gays e lésbicas, e sim suas
visões sobre a sexualidade, consumo e a representação dos personagens homossexuais
nas telenovelas. Na análise dos resultados, a autora discute o entendimento dos entrevistados sobre o que é ser homossexual, as dificuldades de aceitação e consumo.
Em relação à mídia, a autora afirma que “[...] o papel dos meios de comunicação é
fornecer, entre outras coisas, subsídios para mudanças culturais [...]” (SOUZA, 2009, p.
81). Entretanto, a maioria dos entrevistados não se sente representada nas telenovelas.
Segundo eles, há poucas personagens lésbicas e os gays são estereotipados e pouco
diversificados, o que não contribui para a redução da homofobia. Apesar disso, outros
entrevistados acreditam que ajuda a dar visibilidade ao tema.
Os estudos que têm uma reflexão mais completa são os de Tonon (2005) e Gomide
(2006). O da primeira começa a discutir a homossexualidade a partir dos dispositivos
da sexualidade e políticas das diferenças, fazendo um diálogo entre Foucault e Hall.
Depois, apresenta a trajetória dos movimentos homossexuais, a homossexualidade feminina e sua representação na mídia. Aborda não só as telenovelas, mas também outros
gêneros como música. Apesar do número restrito de trabalhos, ao contrário da maioria
dos estudos discutidos por John e Costa (2014), os quatro trabalhos sobre recepção da
telenovela sob a perspectiva de gênero discutem a temática de modo aprofundado e
articulado à análise dos dados.15
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como dito, foram priorizadas as teses e dissertações produzidas no âmbito da
Comunicação, mas tem-se ciência de que muitos outros estudos sobre este objeto podem
ter sido realizados em outras áreas e que há pesquisas realizadas em outros âmbitos
que não estão aqui contempladas. O que se buscou não foi esgotar o que já foi dito
sobre recepção de telenovela e identidade de gênero, e sim tentar situar esta pesquisa
no cenário da área em que ela é produzida.
Constata-se que conjugação entre os temas identidade de gênero e telenovela ainda
é bastante restrita, com apenas quatro trabalhos que realizaram tal tensiosamento, sendo
a maioria deles a partir da perspectiva da sexualidade. Ainda que, como já dito, esse
panorama seja restrito, evidencia-se um campo a ser explorado.
15. De um modo geral, pode-se dizer que as discussões sobre sexualidade ocuparam e ocupam papel central
nas reflexões feministas, motivo pelo qual, possivelmente, também os estudos de recepção que adentraram
a esse universo o tenham feito com maior propriedade.
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
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Destaca-se que, além dos quatro trabalhos aqui discutidos, outros entre os 24 que
se dedicaram à recepção da telenovela adotaram o público feminino como sujeitos
da pesquisa sem, contudo, estabelecer discussões relacionadas às identidades de
gênero. Esse aspecto não constitui, a priori, uma problemática. Entende-se que uma
vez explicitadas claramente as decisões metodológicas para a escolha dos informantes e não havendo o aparecimento dessa temática do campo de pesquisa, não há
problema em trabalhar com mulheres sem que se faça discussões sobre sua identidade
de gênero. Toda pesquisa, principalmente quando se trata da dissertação, dado seu
curto período de execução, necessita de recortes e nem sempre é possível abordar
todos os aspectos que dizem respeito à complexidade dos sujeitos participantes.
Porém, faz-se necessário sempre realizar a explicitação teórico-metodológica sobre as
escolhas quanto ao público receptor, o que nem sempre foi encontrado nos trabalhos
que adotaram mulheres como informantes sem, no entanto, estabelecerem discussão
sobre identidade de gênero.
De certo modo, nas pesquisas de recepção de telenovela sob a ótica das relações de
gênero, aparentemente continua-se a trabalhar em um modelo binarista, tão criticado por
outras disciplinas, notadamente a Antropologia. Aparentemente, continua-se a entender
gênero como uma questão do “feminino”, quando na verdade se trata da relação inter
e intra sexos. A realização de pesquisas sobre identidade de gênero e telenovela a partir
de receptores homens constitui-se ainda uma lacuna o que, de certo modo, reforça o
estereótipo de que esse conteúdo é do interesse exclusivo das mulheres.
Sobre os estudos de recepção de telenovela de um modo geral, para além das questões relacionadas às identidades de gênero, considera-se que é de fundamental importância começar a considerar alguns aspectos, a exemplo da convergência midiática. A
partir desse crescente fenômeno, é possível perceber que já não é suficiente estudar a
recepção de telenovela somente a partir do meio televisão.
O estado da arte aqui realizado não se limita a conhecer o passado, mas em elucidar o presente buscando identificar as diferenças e as semelhanças dos trabalhos em
questão, almejando instigar mudanças efetivas nas pesquisas que estão por vir. Desse
modo, almeja-se que o estado da arte feito possa contribuir significativamente na constituição dos aportes teórico-metodológicos dos futuros estudos de recepção, uma vez
que buscou-se identificar os avanços, desafios e lacunas daqueles que se propuseram a
avançar nesta área do conhecimento.
REFERÊNCIAS
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
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São Paulo: USP, 2002. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação), Escola de
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BARBOSA, Luciene Cecilia. As representações das relações raciais na telenovela brasileira – Brasil
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Estudos de recepção da telenovela sob a perspectiva das identidades de gênero: um olhar sobre a produção stricto sensu da última década
Valquiria Michela John • Lourdes Ana Pereira Silva • Felipe da Costa
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Retratos do brasileiro no imaginário feminino
equatoriano: um estudo de recepção
Brazilian portraits in the ecuadorian feminine
imaginary: a study of reception
L i z b e t h K a n ya t 1
Resumo: Esta pesquisa se propôs a realizar um estudo para investigar qual é
a imagem do brasileiro construída pelos equatorianos a partir da recepção de
telenovelas brasileiras. Tendo como objetivo principal analisar os imaginários
a respeito do brasileiro construídos a partir da recepção da telenovela Avenida
Brasil, foram definidos os seguintes objetivos secundários: a) identificar as
variedades de representações do brasileiro na telenovela; b) identificar as
representações do brasileiro presentes nos discursos dos sujeitos pesquisados;
c) relacionar as representações encontradas reincidentemente nesses discursos
analisados para estabelecer quais são os imaginários sobre o brasileiro e suas
possíveis relações com as imagens presentes na telenovela. A pesquisa toma
por base os Estudos Culturais ingleses, os Estudos de Recepção e a Teoria das
Mediações. Mediante a estratégia metodológica visou-se mapear as múltiplas
mediações que atuam na construção de sentidos a partir da recepção. Para isso,
foram entrevistadas mulheres (avós, mães e netas) das classes AB e CD da cidade
de Guayaquil e suas respostas foram estudadas através da Análise de Discurso
de linha francesa. Os resultados apontam, em primeira instância, a telenovela
brasileira como sendo um porta-voz da igualdade de gênero.
Palavras-Chave: Comunicação e Consumo. Telenovela. Estudos de Recepção.
Teoria das Mediações.
Abstract: This research aimed to conduct a reception study of Brazilian telenovelas in Ecuador. The research problem, that guided its development, is: what is
the image of the Brazilian built by Ecuadorians from the reception of Brazilian
telenovelas? Its main goal was to analyze the imaginary of the Brazilian built by
the reception of the telenovela Avenida Brasil. The secondary objectives were: a)
to identify the varieties of representations of the Brazilian in the telenovela; b) to
identify the representations of the Brazilian presents in the discourses of the people
surveyed; c) to relate the representations found several times on those analyzed
discourses to establish the Brazilian imaginaries and their possible relationships
with the representations presents in the telenovela. The research is based on the
British Cultural Studies, the Reception Studies and the Theory of Mediations. And,
through the methodological strategy we aim to map the multiple mediations that
act on building senses from the reception. To do that, the research was conducted
with women (grandmothers, mothers and granddaughters) of AB and CD classes
and their answers analyzed by the French Discourse Analysis. The results show,
in first instance, the Brazilian telenovela as a spokesman of gender equality.
1. Mestre, professora no Centro Universitário Adventista de São Paulo, [email protected].
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Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
Keywords: Communication and Consumption. Telenovela. Reception Studies.
Theory of Mediations.
INTRODUÇÃO
S ESTUDOS latino-americanos entendem a telenovela como um formato do gênero
O
ficcional que, além de entreter, tem a capacidade de informar, ensinar, questionar
e por em discussão temas importantes a favor da cidadania plena. Por se valer
da razão e da emoção, a ficção é considerada um efetivo meio para influenciar a opinião
dos telespectadores, introduzir mudanças e participar na formação de cidadãos menos
preconceituosos e mais democráticos, participativos e críticos. O estudo da telenovela
não só procura investigar quais temas ela apresenta aos telespectadores e como eles
influenciam seu cotidiano. Mais do que isso, se estuda a telenovela como manifestação
dos interesses da sociedade, como retrato da nação imaginada, como expressão da
cultura de um povo, isto é, como fruto da cultura.
Escolheu-se concentrar a análise nas ressignificações elaboradas pelos espectadores
no processo de recepção. É sabido que a pesquisa de recepção de ficção televisiva tem
sido amplamente praticada na América Latina e a ela têm se dedicado qualificados pesquisadores que participam de instituições internacionais de pesquisa em Comunicação,
tais como Alaic, Obitel, Clacso e Flacso. Em contrapartida, pesquisas de recepção de
telenovelas brasileiras no exterior são menos frequentes. Chegou-se a esta conclusão
mediante a realização de um mapeamento nos países membros do Obitel Internacional
e nas principais bibliotecas dos mesmos. Foram encontradas pesquisas relevantes desta
natureza apenas em Portugal e no Uruguai.
A pesquisadora Ma. Rosario Sánchez Vilela pesquisou sobre as significações e leituras produzidas por espectadoras uruguaias sobre personagens femininos de telenovelas
brasileiras. Este estudo deu origem ao livro Sueños Cotidianos: Telenovela y Oralidad (2010)2.
Em Portugal, a pesquisadora Dra. Isabel Ferin Cunha, da Universidade de Coimbra, coordenadora do Obitel Portugal, tem-se dedicado à análise dos media tendo como
área de interesse as migrações, a ficção e a comunicação política. Ao longo de décadas ela tem analisado a recepção de telenovelas brasileiras em Portugal procurando
identificar os indicadores de aceitação e mudança da telenovela brasileira em terras
lusitanas3. Compartilhando do mesmo interesse encontram-se outros pesquisadores
dos quais destacamos Catarina Duff Burnay4, Verónica Policarpo5, Diana Gualberto de
2. SANCHEZ VILELA, Rosario. Sueños Cotidianos. Telenovela y Oralidad. Montevideo: Ed. Taurus, 2000.
3. FERIN CUNHA, I. Telenovelas brasileiras em Portugal: indicadores e aceitação e mudança In: Lopes, M.
I. Vassalo (org.). Telenovela: Internacionalização e Interculturaliade, São Paulo, Ed. Loyola, 2004, 169-204. FERIN
CUNHA, I. Domestic Soap Opera Overtake Brazilian Imports In: 2001 Eurofiction, Television Fiction in
Europe: Report 2002, Edited by Milly Buonanno, Hipercampo - Fondazione Toscana di Comunicazione e
Media, 127-144 (capítulo em co-autoria com Francisco Rui Cádima). FERIN CUNHA, I. As “agendas” da
telenovela brasileira em Portugal. In Actas do I Congresso de Ciências da Comunicação. Lisboa, 1999. FERIN
CUNHA, I. Audiências e recepção das telenovelas brasileiras em Portugal. Revista Comunicação, Mídia e
Consumo. v.7, n. 20, p. 91-118, nov. 2010.
4. Coordenadora do Obitel Portugal. BURNAY, Catarina. Identidade e identidades na ficção televisiva
nacional 2000-2006. Comunicação & Cultura. n. 1, p. 57-71, 2006.
5. POLICARPO, V. Telenovela brasileira: apropriação, gênero e trajectória familiar. Dissertação de Mestrado em
Sociologia apresentada à Universidade de Coimbra, 2001.
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Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
Macedo, Denise de Oliveira Freire6, Josefina Tranquilin7, Fernanda Castilho Santana
e Marcia Tondato8.
Assim, o interesse do presente trabalho recaiu sobre as representações do brasileiro no imaginário popular equatoriano por haver apenas um estudo de recepção de
telenovelas brasileiras no país , e também pelo fato do Equador ser um dos países da
América do Sul que mais consome teleficção brasileira. Ao longo do ensaio se responderá
à seguinte problemática: qual é a imagem do brasileiro construída pelos equatorianos a
partir da recepção de telenovelas brasileiras?, assim como se apresentará a metodologia
da pesquisa entrelaçada com a fundamentação teórica, seguida da análise e conclusões.
Contexto audiovisual equatoriano
De acordo com o Anuário do Obitel (2013) são sete as principais estações de televisão
aberta com cobertura nacional. O gráfico um ilustra o share de cada uma das emissoras.
Gráfico 1. Share das principais emissoras de TV aberta do Equador
Fonte: Ibope Media. Elaboração: Obitel Equador – Anuário 2013.
São quatro canais privados: Televisora Nacional Ecuavisa, Teleamazonas, Red
Telesistema (RTS) e Canal Uno. E três canais públicos: ECTV, TC Televisión e Televisión
del Pacífico (Gama TV)9. A emissora que detém o maior share é Ecuavisa, e a ela se
seguem TC Televisão e Teleamazonas.
6. Pesquisou a construção de identidade nacional no ciberespaço por brasileiros residentes em Portugal em
função da recepção da telenovela Caminho das Índias. A sua dissertação de mestrado se intitula “Telenovela
e identidade nacional no ciberespaço: explorações metodológicas da recepção internacional de Caminho das
Índias em comunidades virtuais”, 2010.
7. No seu doutorado debruçou-se sobre a recepção de telenovelas brasileiras em Portugal. A tese intitula-se
“O erótico em Senhora do destino: recepção de telenovela em Vila Pouca do Campo, Portugal”.
8. Ficção televisiva e publicidade no prime time brasileiro e português.
9. Antigamente Gama TV e TC Televisión eram emissoras privadas, mas o estado equatoriano as confiscou
em 2008, pela dívida que mantinha seus antigos proprietários. Apesar de atualmente serem consideradas
como empresas de economia mista, sua programação não caracteriza inteiramente um meio público. O
jornalismo obedece à pauta governamental, mas eles mantêm autonomia na programação de entretenimento.
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Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
No gráfico dois vê-se que o gênero mais exibido é o ficcional, seguido pelo informacional e pelo de entretenimento (programas de auditório, realities shows, etc.). A ficção,
nacional e importada, é um gênero que tem estado presente na televisão equatoriana
desde seus primórdios, na década de 60. A análise de Mora mostra que em 1970 a
telenovela era o terceiro programa com maior presença nas grades de televisão, sendo
responsável por 9% dela. Atualmente o principal formato de ficção visto pelos equatorianos segue sendo a telenovela, representado 93,5% das horas de ficção ofertadas no
país. A ele segue a série com 6,5% da oferta (HERRERA et al., 2013).
Gráfico 2. Gêneros de programas oferecidos pela TV
Fonte: Ibope Media. Elaboração: Obitel Equador – Anuário 2013.
A produção de ficção nacional tem sido pouco documentada e pouco estudada.
Antonio Santos (2013) – ator de teatro, rádio e televisão, pioneiro da televisão equatoriana
– concedeu uma entrevista exclusiva para esta pesquisa e, ao falar do inicio da televisão
equatoriana, afirma que a produção de ficção nacional surgiu por iniciativa do dramaturgo, pianista e bailarino cubano Emilio Días Bejarano. Como no resto da América Latina,
os atores de radionovelas e de teatro foram os primeiros atores de televisão. O início das
produções se deu em 1960: eram telenovelas diárias, ao vivo e em preto e branco. Os
primeiros títulos de que se tem registro foram Ni al amor ni al mar, El derecho de nacer, La
Chola María e Narcisa de Jesús. No início da televisão equatoriana a produção de ficção
nacional era abundante. Além de telenovelas diárias, aos sábados eram transmitidos
unitários, tais como Rapsodia Ecuatoriana e aos domingos eram televisadas peças de teatro, tais como La Mal Querida de Jacinto Benavente, Yerma de García Lorca, entre outras.
Por falta de registros oficiais acerca do número de telenovelas produzidas no Equador, foi feito um levantamento10 em livros, sites e por meio de entrevistas para listar os
títulos produzidos no país ano a ano. Dessa forma percebeu-se que foram produzidas
10. O lista levantada pode ser consultada no anexo A da dissertação de mestrado de Lizbeth Kanyat,
titulada Retratos do Brasileiro no Imaginário Equatoriano: um estudo de recepção da telenovela Avenida
Brasil em Guayaquil.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4455
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
oito telenovelas na década de 60, uma nos anos 70, cinco nos 80 e 14 nos 90. No primeiro decênio do atual século foram produzidas 16 e, no atual decênio, cinco. Segundo
Medina (2013), Ecuavisa tem sido pioneira na produção nacional, inclusive de ficção.
Atualmente a produção do canal está apostando nas sitcom, com um humor bastante
próprio da idiossincrasia equatoriana.
Santos (2013) comenta que a estagnação da produção nacional foi ocasionada pela
chegada dos enlatados estrangeiros, em 1968. Naquela época, assim como que na atualidade, as emissoras argumentaram que a produção nacional era muito cara e por isso
iriam priorizar a importação. Uma das primeiras telenovelas estrangeiras transmitidas
foi a mexicana Un Color para esta Piel, protagonizada por Olga Guillot.
O BRASIL NA TELA EQUATORIANA
A emissora que transmite telenovelas brasileiras no Equador é Ecuavisa, uma
emissora de televisão comercial de sinal aberto. Por iniciativa do seu fundador, Xavier
Alvarado Roca, em 1976 a emissora iniciou uma parceria com a Rede Globo que perdura
até hoje. Em 2013 Ecuavisa importou Avenida Brasil, telenovela que se iniciou no 12 de
junho de 2013 e findou em 17 de janeiro de 2014, transmitida no horário nobre. Esta que
é a telenovela mais exportada do Brasil, foi escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Ricardo Waddington, Amora Mautner e José Luiz Villamarim. No Equador a
telenovela foi líder de audiência, com média de 16 pontos (MEDINA, 2013).
Segundo dados do Ibope, a maior parte da audiência concentrava-se na cidade de
Guayaquil (LUZURIAGA, 2013), onde era assistida principalmente por mulheres maiores
de 18 anos. Este grupo representou 49% da audiência. Homens também assistiam à
telenovela, porém em menor proporção, representando 29%. Embora a telenovela tivesse
sido classificada para maiores de 12 anos, 13% da audiência era composta por crianças
entre três e onze anos. Os 9% restantes referem-se a jovens entre 12 e 17 anos, conforme
ilustra o gráfico três.
Gráfico 3. Composição da audiência de Avenida Brasil
Fonte: Ecuavisa, 22 de outubro de 2013.
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4456
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
O estudo apresentado permitiu confirmar a escolha da telenovela Avenida Brasil
como ponto de partida para mapear as representações do brasileiro nos imaginários
populares. Era importante interpelar os sujeitos pesquisados a partir de um referente
televisivo em exibição, para que, a partir daí, eles possam evocar memórias mais antigas
que também tenham participado na construção dos seus imaginários acerca do brasileiro.
Tendo a telenovela Avenida Brasil como ponto de partida para analisar as representações do brasileiro presentes no imaginário popular equatoriano – objetivo geral desta
pesquisa – foi necessário primeiramente identificar na própria telenovela as variedades
de representações do brasileiro. Em seguida, se procedeu à identificação das representações do ser brasileiro presentes nos discursos dos sujeitos pesquisados. E, por fim,
relacionaram-se as representações encontradas reincidentemente nos discursos das
entrevistadas para estabelecer quais imaginários do ser brasileiro encontram-se presentes no imaginário popular e suas possíveis relações com as imagens presentes na
telenovela Avenida Brasil.
CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DAS ENTREVISTADAS
No processo de recepção de telenovelas, a mediação é entendida como um processo
estruturante que configura e reconfigura a produção de sentido feita na interação do
público com os meios. Para tornar este conceito metodologicamente manejável serão
considerados três princípios estabelecidos por Lopes et al. (2002):
1. A relação entre os receptores e a televisão é necessariamente mediada, através
das múltiplas mediações.
2. A recepção é um processo e não um momento: a recepção vem antes e prolonga-se
ao ato de assistir à televisão. Assim, o primeiro sentido do qual o receptor se apropria
é levado por ele a outros cenários onde circula habitualmente. Isso quer dizer que a
mensagem da telenovela é reapropriada várias vezes.
3. O significado televisivo é negociado pelos receptores: não há garantia de que os
significados sejam apropriados da mesma maneira por todos os receptores, de modo
que os sentidos e significados da telenovela são produtos das diversas mediações.
Portanto, esta pesquisa adotará uma metodologia que permitirá localizar a recepção
de telenovelas em diversos lugares de mediação no tempo de consumo: posição social,
gênero e faixa etária. Todas elas são mediações referenciais, que segundo Orozco Gómez
(1996, p. 118, tradução nossa), “vão conotando, fazem estar na realidade e desde a forma
de estar interatua – no caso da recepção – com os meios de comunicação”.
Nível socioeconômico: O grupo socioeconômico configurou-se um critério para esta
pesquisa, pois é entendido como um elemento de distinção que articula a construção da
subjetividade. Segundo Baccega (1995, p. 24) “toda subjetividade configura-se portanto,
a partir do, com e no universo do grupo e/ou classe”. Com isso, buscou-se identificar
se há diversidade nas construções destes grupos, quais seriam elas e que ideologias
estão implícitas. Para organizar a amostra foi aplicada a Encuesta de Estratificación del
Nivel Socioeconómico.
Gênero: Segundo Orozco Gomez (1996), o gênero constitui uma mediação de
referência importante na interação com a TV, pois tem influência a partir do gosto e do
horário de ver televisão até a forma de apropriação do que é visto. Embora seja sabido
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4457
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
que homens e mulheres assistem a telenovelas, esta pesquisa se restringirá a entrevistar
pessoas do gênero feminino por constituírem a maior parte da audiência no Equador,
conforme apresentado o gráfico 5.
Faixa etária: A faixa etária constitui-se uma mediação de referência, pois de acordo
com a maturidade, as experiências vividas, a trajetória e época da vida que se está
vivendo (juventude, fase adulta e velhice), as pessoas podem ter percepções distintas
a respeito do mesmo assunto, ou podem destacar questões diferentes do mesmo
referencial televisivo. Serão escolhidas mulheres de três faixas etárias – 60-70 anos
(avós), 40-50 anos (mães) e 20-30 anos (filhas) – para mapear diferenças e semelhanças
nas construções de sentidos formuladas por gerações distintas. Reconhecemos também
que é discutível tomar tal distribuição de faixas como indicador geracional visto
que a problemática de gerações responde a questões mais amplas e complexas, que
não podem ser reduzidas à questão da idade. No entanto, para fins operativos de
delimitação, assumimos que pode fornecer um indicativo para nortear a diversificação
de idades das pesquisadas.
Para fazer uma delimitação mais precisa da amostra era necessário determinar
em que cidade se iria escolher a amostra, uma vez que o Equador apresenta diferenças
culturais, históricas e socioeconômicas bastante marcadas nas suas distintas regiões. A
cidade de Guayaquil se mostrou ser a mais indicada por ser a mais populosa do país;
por ser ela a cidade onde foi fundada Ecuavisa, a emissora que detém os direitos de
transmissão das telenovelas da Rede Globo; e, principalmente, por concentrar o maior
número de espectadores da telenovela usada para interpelar as entrevistadas.
Além disso, tomou-se como critério entrevistar mulheres que não tivessem visitado
o Brasil, nem que tivessem cônjuge brasileiro. Está-se ciente de que os imaginários
do brasileiro não são construídos exclusivamente pela recepção da teledramaturgia
brasileira, mas também pela competência cultural dos entrevistados. Porém, escolheuse aplicar este critério para evitar entrevistar mulheres que efetivamente conviveram
ou convivem com brasileiros. Outro critério para a seleção dos sujeitos pesquisados foi
o de que eles assistissem à telenovela Avenida Brasil assiduamente, pelo menos três
vezes por semana.
TÉCNICA DE COLETA DE DADOS
Sánchez (2004) ensina que a serialidade da telenovela propicia a sua integração aos
discursos cotidianos, portanto o estudo de recepção de telenovelas supõe introduzir-se
nos discursos da cotidianidade, em que os sentidos produzidos se tecem e circulam na
oralidade. Está-se falando de uma atividade narrativa na qual os espectadores fazem
e refazem histórias e ao fazê-lo falam de si mesmos, da sua vida, de outras histórias
ouvidas ou vistas. Assim, a pesquisa de recepção de telenovelas funciona como um ponto
de partida que permite o acesso aos repertórios culturais e aos mapas de significação
presentes em uma sociedade. A escolha da entrevista como técnica de pesquisa na
recepção de telenovelas sustenta-se na proximidade da prática discursiva cotidiana
com a atividade narrativa que ela exige do sujeito entrevistado, conforme explica a
pesquisadora:
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4458
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
A entrevista em profundidade promove uma atividade narrativa que funciona de forma
similar à narrativa ordinária. Em segundo lugar, a análise da produção narrativa em situação de entrevista permite o acesso à malha de significações que circulam na cotidianidade,
produzidas na recepção de telenovelas (SÁNCHEZ, 2004, p. 4)11.
Conforme ilustra o quadro um, as mediações serão estudadas por um conjunto
de procedimentos metodológicos composto por entrevistas semiabertas e fechadas
descritas a seguir.
Quadro 1. Técnicas qualitativa e quantitativas de coleta de dados
Técnica Qualitativa
Entrevista sobre o brasileiro
Técnicas Quantitativas
Mapa do consumo cultural
Questionário de estratificação socioeconômica
Fonte: Quadro elaborado pela autora.
Entrevista sobre o brasileiro: Para aquecimento da atividade narrativa na primeira pergunta foi pedido às entrevistadas que relatassem do que se tratava a telenovela Avenida
Brasil. Em seguida, foram interpeladas a respeito das representações do brasileiro nessa
telenovela em particular. Logo, as perguntas iam-se distanciando do folhetim de João
Emanuel Carneiro para telenovelas brasileiras em geral. E, por fim, as últimas perguntas encorajavam uma descrição mais livre do brasileiro e da brasileira, possibilitando a
verbalização dos seus imaginários.
Mapa de consumo cultural: O questionário será usado para conhecer dados sobre o
consumo cultural e o material. Estes dados não receberam tratamento estatístico, mas
serviram de suporte para analisar as respostas dos sujeitos à entrevista sobre o brasileiro. Foi mapeado o consumo de televisão, telenovela, rádio/música, internet, revista,
jornal e publicidade.
Questionário de estratificação socioeconômica: Foi aplicado para organizar a amostra em
dois grupos socioeconômicos (AB e CD). O questionário foi desenvolvido pelo Consejo
Nacional de Estadísticas y Censos do governo equatoriano em 2011 como instrumento
para uma adequada segmentação do mercado de consumo. A segmentação ocorre pelo
levantamento de tipo de moradia, acesso à tecnologia, posse de bens, hábitos de consumo, nível de educação e atividade econômica. ~
COLETA DO MATERIAL EMPÍRICO
As entrevistas foram realizadas em Guayaquil - Equador, entre 10 de setembro e
10 de novembro de 2013.
O lugar onde aconteceram as entrevistas foi de escolha das entrevistadas, sendo
geralmente suas casas. As entrevistas ocorreram sem a presença de terceiros para evitar
11. La entrevista en profundidad promueve una actividad narrativa que funciona de forma similar a la
narratividad ordinaria. En segundo lugar, el análisis de la producción narrativa en situación de entrevista
permite el acceso a la urdimbre de significaciones que circulan en la cotidianeidad producidas en la
recepción de la telenovela. Recorrer algunas características de este tipo de entrevista pondrá de manifiesto
su potencialidad en estas direcciones (SÁNCHEZ, 2004, p. 4).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4459
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
situações inibidoras. Tiveram duração média de 40 minutos e foram registradas num
gravador digital de voz e posteriormente foram transcritas para análise.
Foram realizadas três entrevistas piloto e, decorrentes dessa experiência, foram
redigidas algumas perguntas em busca de uma melhor compreensão por parte dos
sujeitos entrevistados. Além disso, foi necessário entrevistar 16 pessoas para formar
os grupos etários e socioeconômicos e, finalmente, selecionar as 12 entrevistas foram
analisadas. Isto ocorreu porque somente foi possível verificar o estrato socioeconômico
das entrevistadas mediante o questionário de estratificação socioeconômica, que foi
aplicado por último para evitar que as entrevistadas se sentissem constrangidas ou
criassem resistência à participar da pesquisa.
Houve a preocupação de que o ser brasileiro fosse algo distante do interesse das
entrevistadas e dessa forma as respostas resultassem forçadas ou mesmo vazias. No
entanto, conforme diagnosticado enquanto se ponderava acerca do potencial desta pesquisa, o Brasil goza de muita simpatia e popularidade no Equador. Portanto, os imaginários acerca do brasileiro acabaram emergindo fluentemente nas falas das entrevistadas. Ter usado a telenovela Avenida Brasil como ponto de partida no contato com as
entrevistadas foi uma estratégia bem sucedida. As memórias mais recentes construídas
pela telenovela em exibição puxaram lembranças mais antigas de outras telenovelas
brasileiras e também de outros produtos midiáticos brasileiros.
TÉCNICA DE ANÁLISE
Como mencionado anteriormente, o objetivo desta pesquisa é relatar como as moradoras da cidade de Guayaquil constroem a imagem do brasileiro e da brasileira através
da recepção da telenovela Avenida Brasil. Para alcançar esta finalidade as entrevistas
foram analisadas utilizando os preceitos interpretativos da Análise de Discurso de linha
francesa. Para isso, criou-se um dispositivo de análise que teve por objetivo:
[...] colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito
em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir,
naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos
de suas palavras (ORLANDI, 2005, p. 59).
Foram identificadas seis categorias analíticas no roteiro da entrevista sobre o
brasileiro: 1) caraterísticas típicas de um brasileiro; 2) como o homem trata a mulher;
3) cotidiano de um brasileiro; 4) caraterísticas típicas de uma brasileira; 5) como a
mulher trata o homem; 6) cotidiano de uma brasileira. Por meio destas categorias foram
selecionados trechos das entrevistas que serviram como superfície linguística, isto é,
ponto de partida da análise. Analisando o dito com o não dito e as condições de produção
foram percebidas subcategorias que descreveram os retratos do brasileiro no imaginário
feminino guayaquileño.
Orlandi (2005, p. 72) ensina que uma vez “feita a análise, não é sobre o texto que
falará o analista, mas sobre o discurso, a compreensão dos processos de produção de
sentidos e de constituição de sujeitos em suas posições”. Assim, pode-se perceber que
os imaginários do brasileiro e da brasileira descritos pelas entrevistadas foram majoritariamente positivos e elogiosos. Os discursos apresentados refletem uma posição de
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4460
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
fã e a adesão à ideologia de que o estrangeiro é melhor do que o nacional. Além disso,
o gênero se mostrou uma mediação influente nos processos de produção de sentidos.
Chega-se a essa conclusão por perceber que houve uma descrição mais fluida e detalhada dos personagens femininos e da figura da brasileira do que dos personagens
masculinos e seus deslocamentos para o ser brasileiro. Outro fator que conduziu a essa
reflexão foi que não houve menção ao erotismo da mulher brasileira, algo tão pregado
pelo Carnaval carioca, comumente falado pelos homens e retratado na personagem
Suellen. No seu lugar houve discursos feministas e de admiração. Por outro lado, a
idade e a posição social não se mostraram mediações incidentes nas construções dos
imaginários de brasileiro, pois não houve caraterizações exclusivas de faixa etária ou
estrato social.
Notou-se também que os imaginários das equatorianas acerca do brasileiro em
parte convergem e em parte divergem dos imaginários que brasileiros têm a respeito
do olhar estrangeiro sobre si. O brasileiro sorridente, alegre e simpático foi encontrado
nos imaginários das equatorianas entrevistadas, assim como o imaginário do brasileiro festeiro, divertido e que aprecia bons momentos de lazer. A mulher exuberante,
sensual e que sabe sambar foi menos recordada pelas entrevistadas e também menos
promovida pela telenovela Avenida Brasil, ponto de partida desta pesquisa. O brasileiro impontual, descompromissado, que busca atalhos para resolver as coisas não
foi sequer percebido pelas entrevistadas. O jeitinho brasileiro parece então não ser
apenas brasileiro, mas comum às culturas latino-americanas e, como algo corriqueiro,
passou despercebido, dando lugar ao imaginário do brasileiro trabalhador e esforçado. As traições, mentiras e segredos, tão comuns no melodrama, em vez de falarem
de mulheres mau caráter e inescrupulosas, foram ressignificadas pela maioria das
entrevistadas como qualidades de mulheres livres do conservadorismo e moralismo
e determinadas nas suas escolhas.
Como já apresentado no decorrer deste capítulo, a tríade do Brasil: futebol, Carnaval
carioca e mulher bonita, se revela nesta pesquisa. O samba é visto como sinônimo de
Carnaval, pois a gama de estilos desse gênero musical não é conhecido amplamente no
exterior. E o samba foi mencionado em referência ao caráter festivo do povo brasileiro.
O futebol também foi lembrado pelas constantes referências na trama da telenovela ao
esporte. Portanto, foi pregada e houve aderência à ideologia do Brasil como terra do
futebol. A beleza das mulheres também foi intencionalmente trabalhada na telenovela
e teve sucesso ao reforçar o imaginário da beleza feminina brasileira.
No entanto, fica a curiosidade em saber se os imaginários acerca do brasileiro serão
assim de otimistas se vindos de mulheres da região serrana do país, a região tida como
mais conservadora.
Mediante os resultados desta pesquisa, se pode inferir que a telenovela brasileira
é um importante incentivo ao turismo. Foi visto que elas têm semeado há 39 anos no
Equador imaginários de respeito à alteridade, alegria e hospitalidade.
Para encerrar as reflexões vale mencionar que Avenida Brasil provocou certa apropriação da moda, especialmente no público jovem. Mas, acima disso, em nível de incorporação, se pode dizer que ela contribuiu para o longuíssimo processo de emancipação
feminina. Visualiza-se aqui a dimensão política da telenovela não só nos temas tratados
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4461
Retratos do brasileiro no imaginário feminino equatoriano: um estudo de recepção
Lizbeth Kanyat
intencionalmente na sua produção, mas nas diversas ressignificações por parte dos
receptores. No caso estudado, as telespectadoras encontram na telenovela um porta-voz
de ideias maiores e altamente politizadas, tais como a igualdade de gênero e o fim do
abuso moral e psicológico contra a mulher.
Enquanto construtora de imaginários, a telenovela brasileira tem alimentado desejos
de libertação apresentando alternativas a uma sociedade patriarcal, ilustrando outras
formas de vida onde a mulher tem voz audível e milita no cotidiano por direitos iguais.
Se essa é a realidade do Brasil é outra discussão. O que interessa apresentar é que a
“construção de sentidos sobre os discursos da vida pública e da vida privada brasileira
passam pela telenovela” (LOPES, 2003, p. 17) e se esse Brasil imaginado influenciasse
as nossas sociedades, seria um grande progresso.
REFERÊNCIAS
BACCEGA, M. A. (1995). O Campo da Comunicação. In: GOMES, C. T. (Org.). Comunicação
para o mercado: instituições, mercado, publicidade. (pp. 51-62). São Paulo: EDICON.
HERRERA, C.; AYALA, A. (2013). Ecuador: la ficción y el humor se transladan a la web. In:
LOPES, M. I. V.; OROZCO GÓMEZ, G. (Coords.). Memoria Social e Ficción Televisiva en
Países Iberoamericanos: Obitel 2013 (pp. 241-278). Porto Alegre: Sulina.
LOPES, M. I. V. (2003). Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação &
Educação, n. 26, p. 17-34.
LOPES, M. I. V.; BORELLI, S. H. S.; RESENDE, V. R. (2002). Vivendo com a telenovela. São
Paulo: Summus.
LUZIRIAGA, C. Christian Luzuriaga: depoimento [out. 2013]. Entrevistador: Lizbeth Kanyat.
Quito: Ibope, 2013. Entrevista concedida à pesquisa de mestrado “Retratos do brasileiro
no imaginário equatoriano: Um estudo de recepção da telenovela Avenida Brasil em
Guayaquil”.
MEDINA, K. Karina Medina: depoimento [out. 2013]. Entrevistador: Lizbeth Kanyat. Quito:
Ecuavisa, 2013. Entrevista concedida à pesquisa de mestrado “Retratos do brasileiro
no imaginário equatoriano: Um estudo de recepção da telenovela Avenida Brasil em
Guayaquil”.
ORLANDI, E. (2005). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes
Editores.
OROZCO GÓMEZ, (1996). La investigación en comunicación desde la perspectiva cualitativa.
Buenos Aires: Ediciones de Periodismo y Comunicación.
SÁNCHEZ, R. (2004). Técnica, método y teoría: La entrevista en profundidad en la investigación de la recepción. Anais do VII Congreso Latinoamericano De Investigadores de La
Comunicacion – ALAIC, La Plata, Argentina.
SANTOS, A. Antonio Santos: depoimento [set. 2013]. Entrevistador: Lizbeth Kanyat. Guayaquil: Casa de la Cultura, 2013. Entrevista concedida à pesquisa de mestrado “Retratos
do brasileiro no imaginário equatoriano: Um estudo de recepção da telenovela Avenida
Brasil em Guayaquil”.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4462
Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo
comunicacional da prática do branded content
Advertising, digital media and reception: analyzing the
communicational process of branded content practice
André Bomfim
do s
Santos1
Resumo: O encontro da publicidade com a internet gerou um tipo específico de
produto midiático: o branded content. São conteúdos com formatos e linguagens
diversos, baseados numa dinâmica de consumo e circulação espontâneos. O
ponto central são as transformações trazidas para o processo comunicacional
publicitário, com ênfase no papel da recepção. Para investigá-las, desenvolveu-se
uma abordagem baseada em três instâncias: a produção, o contexto tecnológico
e a própria recepção. A primeira analisa o processo de adesão estética através
de conceitos oriundos da estética da recepção (ISER, 1996; JAUSS,1976). A
segunda, trata da relação entre a prática e o contexto tecnológico. E a terceira,
analisa a produção espectatorial, através dos estudos sobre o comportamento
dos fãs (FISKE, 2001; JENKINS, 2001; STAIGER, 1992). O corpus é composto
de seis campanhas vencedoras na categoria branded content e subcategoria
user-generated content do festival internacional Cannes Lions (2012/2013).
Como aspectos conclusivos, revelam-se uma hipertrofia da dimensão estética,
a substituição da mercadoria pela marca e as proposições de colaboração criativa
como vetor de engajamento da recepção.
Palavras-Chave: Audiovisual. Publicidade. Mídias digitais. Recepção. Estética.
Abstract: The meeting of advertising and internet generated a specific type of
media product: the branded content. That is content with different formats and
languages, based on a spontaneous consumption and circulation. The central
point is the changes brought to the advertising communication process, emphasizing the role of the reception. To investigate them, was developed an approach
based on three points: the production, the technological context and the reception
itself. At the first point, was analyzed the process of aesthetic adherence through
concepts from aesthetics of reception (ISER, 1996; JAUSS, 1976). The second point
deals with the relationship between the practice and the technological context.
And at the third, was analyzed the spectatorial production through studies on
the behavior of fans (FISKE, 2001; JENKINS, 2001; STAIGER, 1992). The corpus
is composed of six winning campaigns in the branded content category and
user-generated content subcategory from the international festival Cannes Lions
(2012/2013). As conclusive aspects, were revealed a hypertrophy of the aesthetic
1. Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo POSCOM/UFBA. Bolsista da CAPES
proc. nº 23066.045262/14-95. E-mail: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4463
Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
André Bomfim dos Santos
dimension, the replacement of the goods by the brands and the propositions of
creative collaboration as reception engagement vector.
Keywords: Audiovisual. Advertising. Digital Media. Reception. Aesthetics.
INTRODUÇÃO
ARA LANÇAR uma nova linha de relógios, uma marca mundialmente conhecida
P
convocou o público a participar de um inusitado festival, enviando vídeos de 1
segundo de duração. Já um fabricante de chocolates, conclamou a sua base de seguidores no Facebook para enviar histórias de amor, utilizadas como base para a criação
de um longa-metragem. Um periódico nova-iorquino usou histórias pitorescas sobre a
metrópole e seus habitantes como base para a criação de uma exposição de artes, uma
websérie e uma montagem teatral2. Abrigadas sob a lógica do branded content - conteúdos de marca criados com o intuito de entreter e engajar o público (CANNES LIONS,
2012) - as campanhas publicitárias acima mencionadas têm uma outra particularidade
em comum: a integração de conteúdo gerado pelo usuário ou CGU3.
O presente estudo parte da análise de seis campanhas baseadas em esquemas de
integração de CGU, empreendida por seu autor durante sua pesquisa de mestrado,
visando obter uma visão do processo comunicacional da prática do branded content.
Como um dos vetores de análise do referido trabalho, foi investigado a atividade dos
sujeitos-receptores e sua importância enquanto principal motor de circulação dos conteúdos derivados de cada campanha. Essa mobilização espectatorial foi analisada sob
o prisma dos estudos sobre fãs empreendidos por Jenkins (2001), Fiske (2001) e Staiger
(1992). A pesquisa porém, não prescindiu de um olhar sobre os polos da produção e do
contexto tecnológico que permeia o encontro dos produtos em questão com o público.
Em relação à produção, observa-se a preponderância da dimensão estética4 (ALVES,
2003) e a quase invisibilidade da dimensão promocional. O processo de adesão estética é
visto aqui como o ponto de contato inicial com o público e uma das chaves para a fruição
voluntária. Em relação ao segundo polo, sugere-se uma relação de interdependência
entre a prática e o contexto tecnológico que lhe serve de suporte, mais notadamente as
tecnologias de participação social (CHAKA, 2010) em um cenário de convergência midiática
(JENKINS, 2009).
Como produto resultante da fusão entre publicidade e entretenimento, o branded content inverte a lógica da inserção de produto ou product placement. Aqui não
é a marca que se integra ao conteúdo, mas o conteúdo é que passa a ser criado em
função da marca. O resultado é sempre um produto audiovisual de entretenimento,
que calibra um arsenal poético em sintonia com o universo simbólico da respectiva
marca. Não há argumentos de venda. A aparição da marca é sempre muito sutil e a
sua ligação com o conteúdo é de ordem estético-simbólica, amparada na ludicidade,
2. Referimo-nos, respectivamente, às campanhas The beauty of a second, lançada pela Mont Blanc em 2012;
Love in the end, da Lacta em 2013; e New York writes itself, 2012, do periódico The Village Voice.
3. Do inglês user-generated content ou UGC.
4. O conceito de dimensão estética da publicidade proposto por Alves engloba os recursos poético-narrativos
tomados de empréstimo de outros variados gêneros que os conteúdos de marca intentam mimetizar.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4464
Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
André Bomfim dos Santos
no humor e na emoção. O ambiente em que a prática floresce é a internet, mais notadamente as plataformas sociais. Liberto dos parâmetros de custo elevado e duração
reduzida impostos pela televisão, o audiovisual publicitário assume novos formatos e
linguagens. O alargamento do horizonte criativo trazido por essa descompressão5 trouxe junto consigo grandes desafios. Dentre os quais destacamos a fruição voluntária e
a circulação espontânea. Ao sair da lógica interruptiva do intervalo comercial, esses
produtos dependem da atenção e interesse do espectador em apreciá-los e, não menos
importante, em compartilhá-los.
O desafio seguinte à definição do desenho metodológico foi a delimitação de um
corpus analítico. Coincidentemente, em 2012, mesmo ano de início desta pesquisa, o
festival internacional Cannes Lions6, considerado pelo mercado mundial a instância
máxima de consagração da criatividade publicitária, inaugurava uma categoria de
premiação exclusiva para a nova prática: Branded Content & Entertainment Lions. Uma
subcategoria nos despertou um interesse particular. Tratava-se da subcategoria A04
ou Best use or integration of user-generated content, que premia campanhas que têm como
premissa o uso ou integração de conteúdos gerados por usuários. A partir da subcategoria em questão foram selecionadas 6 campanhas, de acordo com os critérios de
elaboração estética, estratégia de engajamento e quantidade de prêmios conquistados
no festival. As campanhas selecionadas a partir do cruzamento destes critérios, são
listadas na tabela 1.
Tabela 1. Corpus analítico
5. O conceito de descompressão do audiovisual publicitário, criado para a referida dissertação de mestrado,
remete ao movimento de diversificação de linguagem e duração dos conteúdos publicitários, a partir de
seu encontro com as mídias digitais.
6. <www.canneslions.com>.
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André Bomfim dos Santos
AS CAMPANHAS
Mais conhecida por seus instrumentos de escrita, a Montblanc precisava atrair a
atenção para uma nova linha de relógios de pulso. A solução da sucursal italiana da Leo
Burnett foi o festival de vídeos The Beauty of a second, que impressionava pela duração
dos mesmos: 1 segundo. O festival foi ciceroneado pelo cineasta alemão Wim Wenders,
que premiou os ganhadores numa cerimônia de gala, em março de 2012, em Berlim.
Já a campanha New York writes itself, criada pela JWT para o periódico nova-iorquino
The Village Voice tem como epicentro o website newyorkwritesitself.com, uma plataforma
colaborativa em que moradores da cidade podiam narrar microestórias de até quinhentos
caracteres, que envolvessem personagens encontrados nas ruas da cidade. A produção
gerada por usuários serviu de base para a exposição de cartazes tipográficos New York
Types; a websérie The Chairman; e a montagem teatral 8 Million Protagonists.
The Beauty Inside é um conteúdo ficcional em formato de websérie, com seis episódios de sete minutos em média. Narra a história de Alex, um sujeito acometido por uma
anomalia que o faz acordar todo dia em um corpo absolutamente diferente, variando
em biótipo, idade e até mesmo sexo. Para manter controle sobre as constantes mutações
físicas, Alex utiliza o seu laptop para fazer registros em vídeo diários da sua aparência.
Esse procedimento do personagem é a brecha pela qual os usuários participavam do
produto final. Através da página da campanha no Facebook, era possível enviar vídeos
em que qualquer um podia fazer o papel de Alex, atuando como se fosse o próprio em
um de seus registros.
Através do site zaoche.com7, duzentos e sessenta mil pessoas expressaram suas ideias
sobre como seria o carro ideal, utilizando os recursos interativos da plataforma. Na
segunda fase, especialistas da Volkswagen selecionaram as 104 melhores ideias, que
serviram de base para o reality show Building the People’s Car. No programa, seis equipes
de estudantes de design automotivo disputavam entre si a criação do projeto que melhor
atendesse às necessidades do povo chinês.
Em 2012, a parceria da loja de departamentos Macy’s e agência JWT levou o musical
Yes, Virginia para os palcos de todo o país em uma estratégia de criação colaborativa. No
website da campanha, equipes escolares podiam encontrar todo o material conceitual,
bem como as diretrizes de montagem do espetáculo musical, incluindo roteiro, trilha
instrumental, croquis de cenários e figurinos, além do registro de uma montagem-guia.
Escolas de todo o país reproduziram a montagem utilizando os recursos oferecidos
como facilitadores.
Os seguidores da Lacta na Grécia foram convidados a contar, através do website
loveintheend.gr, experiências de amor não correspondido. Três das histórias foram
escolhidas como base para o roteiro do longa-metragem lançado no dia dos namorados
de 2013, porém com um detalhe: no filme, ganharam um final feliz.
PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA
A ideia de uma dimensão estética atribuída aos produtos da cultura de massa, onde
se inclui a publicidade, tornou-se possível a partir de uma linhagem teórica, representada
7. Pode-se traduzir como embuscadocarro.com
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fundamentalmente por autores da escola de Constança (JAUSS, 1979; ISER, 1996), que
compreendem a experiência estética como o fenômeno comunicacional oriundo da relação dos fruidores com as obras. É amparada nesses autores, que Meigle Alves (2003, p.
222) define a dimensão estética da publicidade como um “programa” que tem “a intenção
de se apropriar da matéria cultural, de modo fragmentário e com base em procedimentos
analógicos que permitem associar virtualmente qualquer aspecto do universo cultural
ao produto anunciado.” Ainda segundo Alves (2003, p. 222, grifo nosso), essa dimensão
estética construída através da manipulação de signos culturais, “é seu modo próprio [da
publicidade] de rearranjo simbólico, fundado no apelo ao reconhecimento sensorial que
conduzirá à adesão, e não ao convencimento.” Eduardo José Marcos Camilo (2010, p. 112,
grifos nossos) observa, por sua vez, o crescente predomínio de um modelo discursivo
baseado no pathos (apelo emocional) em detrimento do logos (argumentação racional),
resultando na “adesão ao publicitado a partir de um deleite estético, espirituoso, humorístico
e de uma transferência dos valores microeconômicos das mercadorias para os da própria
sociedade de consumo.” A preponderância de uma dimensão estética enquanto fator de
adesão é um consenso entre teóricos e analistas da publicidade. E a prática do branded
content representa o ponto mais extremo até o momento desse processo, uma vez que a
adesão estética assume um papel fundamental quando se busca a fruição e o compartilhamento voluntários. Trata-se de uma publicidade ancorada sobretudo nas marcas
em detrimento dos produtos, o que amplia potencialmente o leque de significações e
possibilidades narrativas. E que constrói sua estrutura poética através da apropriação
de material cultural circulante, sejam produtos da indústria cultural massiva ou, até
mesmo conteúdos amadores compartilhados na internet.
A relação do branded content com o contexto tecnológico em que a prática floresce
é de interdependência. O processo de descompressão do audiovisual publicitário ainda
é incompatível com o modelo econômico e de regulamentação das mídias de massa,
como o rádio e a televisão, seja pelo alto custo por segundo de veiculação, pelos formatos pré-definidos em torno dos 30 segundos, como pela distinção obrigatória entre
conteúdos editoriais e publicitários. Pela ausência destes parâmetros, a internet se tornou
naturalmente um vetor de expansão para o setor publicitário, tanto do ponto de vista
econômico, quanto criativo. Ainda que no ambiente digital também sejam utilizadas
práticas intrusivas, baseadas na exibição compulsória de conteúdo, o branded content
inverte essa lógica, baseando-se na fruição e engajamento voluntários. Tais intentos
são alcançados em grande medida pela utilização dos recursos de compartilhamento
e conversação das tecnologias de participação social e pela multiplicação dos pontos de
contato com o espectador através de plataformas diversas.
Já no terceiro polo investigativo, busca-se o entendimento dessa produção espectatorial, incluindo seu comportamento e motivações. Para tanto, reinterpretamos o conceito
mercadológico de engajamento como um fluxo que envolve a já citada adesão estética,
a interatividade e a participação. Os dois últimos conceitos são tensionados a partir da
distinção proposta por Jenkins (2009), que interpreta a interatividade como uma atividade
ainda restrita às normas impostas pelas instâncias produtoras. E a participação, como
uma atividade mais autônoma, baseada nos propósitos dos próprios consumidores.
É no campo do consumo midiático que se situam os estudos sobre fãs: espectadores
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
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articulados em comunidades, capazes de transformar o seu consumo em uma produção cultural. Utilizamos os estudos sobre fãs e suas motivações para compreender a
produção espectatorial intensa que circunda nossos objetos de estudo e revelar como
ela se torna fator fundamental para a circulação dos mesmos.
ANÁLISE DOS CASOS
A atividade espectatorial gerada em torno das campanhas de branded content e a
adesão às suas propostas colaborativas têm sido associadas pela literatura do marketing
e pela academia ao comportamento de fã8. Faz-se necessário ressaltar que o espectador
que adere às dinâmicas propostas pela integração de CGU possa não se enquadrar em
alguns pontos importantes do conceito de fã. Faltam-lhe a devoção e o comprometimento
mais intenso com a atividade interpretativa a partir do objeto de culto, característicos
desta parcela de espectadores. Em nossos casos, nota-se um interesse mais efêmero e
utilitário, baseado no divertimento simples e descomplicado. Mas ainda assim a analogia tem sido sustentada por semelhanças comportamentais, assim como pelos usos
que fazem destes produtos. Como observamos da presente análise, os produtores destes
conteúdos arquitetam estratégias já com um conjunto previsto de possibilidades de produtividade espectatorial, controlando dessa maneira o comportamento do espectador
que adere ao jogo participativo. Dessa forma, a publicidade revela o desejo de um fã
domesticado, que age dentro dos parâmetros estabelecidos, potencializando a circulação
dos conteúdos, sem chegar a deturpar os seus significados, tampouco os objetivos mercadológicos. Feitos estes esclarecimentos preliminares, podemos nos debruçar sobre o
trabalho de reconstrução dessa atividade espectatorial. Tanto a projetada nos próprios
textos audiovisuais, quanto aquela advinda da reconstrução dos modos de consumo,
uso e apropriação, através dos vestígios desse ato receptivo encontrados nas plataformas
digitais analisadas.
Em todos os casos analisados, a principal forma de ativação da recepção advém
das proposições de co-criação. Nesse aspecto, torna-se comum a todos o uso de um
mesmo instrumento: o que aqui definimos como vídeo-convocação. Com uma média
de 1 minuto de duração, esses materiais apresentam um texto-provocação, espécie de
conclame ou convocatória, que ao mesmo tempo incentiva o engajamento e expõe as
regras de participação. Em The Beauty of a second, o cineasta Wim Wenders explana:
Tudo o que você tem a fazer é capturar a beleza em um vídeo de 1 segundo de duração [...]
Qual o tema? Qualquer coisa que você considere belo: um sorriso, o rosto de uma criança,
uma flor, sua árvore preferida, uma vista deslumbrante, um beijo, um pedaço do mundo
e da vida.
E então conclama: “Envie o seu vídeo hoje! Cada segundo conta!” Já em New York
Writes Itself, o ator Kevin Conway expõe a proposta: “Se o mundo é um palco, não existe
um teatro melhor do que o povo de Nova Iorque. Qualquer que seja seu personagem, [...]
Nova Iorque é um palco e somos todos parte dele. New York Writes Itself: uma produção
8. Kevin Roberts (2010) se refere a um envolvimento emocional entre marcas e consumidores. Jenkins (2009)
ressalta que dentro de uma lógica da economia afetiva, marcas querem mais do que consumidores, fãs.
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
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feita pelo povo de Nova Iorque.” A Lacta convoca seus “fãs” a participarem da criação do
seu longa-metragem, enviando relatos de caso amorosos mal-sucedidos. Já os chineses
são convocados a participar do projeto para “o primeiro Volkswagen criado em parceria
com o povo da China”, participando do reality show produzido pela marca. The Beauty
Inside convoca o público a participar do “primeiro filme em que qualquer um pode
atuar no papel principal”. As “audiências” eram realizadas na fan page do Facebook.
Mais de cem participações desses usuários foram inclusas nos seis episódios da série.
As convocações eram sempre seguidas de uma sentença do tipo “tudo o que você tem
a fazer é...”, à qual se seguiam orientações que conduziam a ação dos participantes. Do
ponto de vista da criação publicitária, essas estratégias demandam dos profissionais que
as elaboram um senso de antecipação das possíveis reações dos seus espectadores. Do
ponto de vista da recepção, esse rol de possíveis reações representa o acesso à dinâmica
participativa proposta pelos produtos. A reação fora do previsto, pode até gerar uma
outra dinâmica criativa baseada na subversão da intenção da instância produtora. Para
melhor esclarecer a questão da autonomia, seus limites são aqui analisados através dos
conceitos de interação e participação propostos por Jenkins. Para o autor, a interação é
a atividade subordinada ao script previsto pela instância produtora. Enquanto a participação diz respeitos às dinâmicas autônomas de significação e apropriações pelos
consumidores.
Como vimos mais acima todas as campanhas analisadas são formadas por um
conjunto de produtos derivados – vídeos-apresentações, websódios, filmes, videocases
etc. – que trazem em seu bojo as pré-orientações para o engajamento. À primeira vista
poderia se afirmar que esse público apenas age de acordo com as normas definidas
pelas instâncias produtoras, o que nos aproximaria do conceito de interatividade. Mas
ao mesmo tempo observa-se que, no caso específico das campanhas baseadas em integração de CGU, as lacunas oferecidas pelo texto são amplas o suficiente para oferecer a
esse receptor uma margem de autonomia criativa maior do que a interação puramente
tecnológica dos games ou de outros produtos do branded content, como vídeos interativos,
por exemplo. Afinal, a relação desse participante com a atividade criativa proposta nos
projetos dos casos analisados não é mediada por scripts eletrônicos, mas por diretores,
roteiristas e realizadores que se utilizam dessa atividade como base para o desenvolvimento ou complementação dos conteúdos. Essa mediação humana já é por si um
avanço na direção do conceito de participação. Em New York Writes Itself, por exemplo, as
microestórias narradas pelo público na plataforma central se constituem no ponto de
partida para a criação dos produtos derivados, como a websérie, cartazes tipográficos e
até uma montagem teatral.
Ainda que o público não participe de forma direta da elaboração destes produtos,
seus textos ali se apresentam como fonte de inspiração. Ainda que trabalhando sobre
proposições muito limitadas do ponto de vista artístico e poético, não se pode descartar
a intencionalidade individual de cada prossumidor, mesmo ao elaborar um registro
de 1 segundo ou replicar uma montagem teatral em sua escola, via Yes, Virginia - the
musical.. Em The Beauty Inside, as performances de usuários diversos engajados na tarefa
de viver o protagonista Alex, revelam atuações surpreendentes, que de fato expandem
as possibilidades criativas e poéticas do texto original. Em uma dessas atuações, um
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
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espectador usa anotações em papel para suas falas, dando a ideia de que uma em uma
das suas transmutações físicas, Alex acordou mudo (figura 1). O que dá uma nova perspectiva ao drama do personagem.
Atuações como essas foram selecionadas e integradas ao produto não de forma
randômica, mas pelo olhar do diretor Drake Doremus. Ainda que a elaboração dos
produtos audiovisuais derivados seja controlada essencialmente pelos seus realizadores,
a mediação humana destes com um público que reage às suas proposições criativas
apresenta-se como um diálogo, que não pode ser visto simplesmente pela ótica automatizada da interatividade. Mas que também, não atinge a autonomia plena ou mesmo
subversiva proposta por Jenkins como o paradigma da participação.
Figura 1. Fotogramas das performances dos usuários no papel de Alex
(thebeautyinsodefilm.com)
Desta forma, propomos aqui uma relativização da dicotomia interatividade x
participação proposta por Jenkins, a partir de uma perspectiva subjetivista. Afinal,
nem todos têm a intenção, interesse, motivação ou talento para elaborar seus próprios
materiais audiovisuais, com todo o trabalho de roteirização, filmagem e edição que
isso requer. Na verdade, apenas uma parcela reduzida dos internautas em geral revela
essa disposição. A grande maioria consome silenciosamente conteúdos e, no máximo,
reverbera esse consumo através do compartilhamento em suas redes sociais. Para estes,
o simples fato de sair da zona da pura e simples apreciação e se engajar em alguma
atividade criativa já representa um enorme ganho em termos de participação. Seja o
estudante que replica o musical da Macy’s em sua escola, seja o amador que envia o
registro de 1 segundo feito com seu celular para a Montblanc. Para um roteirista profissional, narrar o cotidiano de sua cidade em 500 caracteres pode ser uma experiência
pueril. Mas para o indivíduo ordinário no que diz respeito ao talento narrativo, pode
ser uma atividade que demanda até mesmo a superação das suas limitações em relação
à linguagem escrita.
A análise mais sistemática da subjetividade do ato receptivo certamente foge dos
nossos limites e possibilidades. Mas ainda cabe aqui o olhar sobre os vestígios desse
ato registrados através nas tecnologias de participação social utilizadas pelas campanhas.
O ideal de auto-expressão revelado nestes rastros aponta para o fato de que ao se
engajar nas pré-orientações propostas nos UGCs, os receptores visam satisfazer seus
próprios interesses e não os da corporação por trás do produto. Seja exercer seu potencial
criativo em uma performance teatral ou textual, seja agregar pontos ao capital cultural
acumulado em suas redes sociais via compartilhamento de conteúdos interessantes.
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
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Ainda que dentro de uma faixa interpretativa e performativa prevista pela marca, existe
um movimento de apropriação ou, como explica Certeau (1998), “uma arte de utilizar”
os produtos que lhes são impostos.
Em todos os casos analisados pode-se observar que os conteúdos são compartilhados por interesses individuais ou comunitários, como o dos pais que exibem
orgulhosos seus filhos nas montagens de Yes, Virginia; indivíduos que publicam seus
supostos dotes de videomaker em The Beauty of a Second ou, simplesmente, aqueles
que compartilham episódios de The Beauty Inside a fim de ganhar pontos em suas
redes sociais como garimpeiros de conteúdos interessantes. Dessa forma, os produtos
aqui definidos como User-generated content são elaborados tanto para aderir ao fluxo
multi-plataformas do ambiente de convergência, como às práticas socioculturais do
público. Compartilhar, “curtir”, comentar, recomendar, analisar, discutir. Em última
instância são as ações do público que fazem os conteúdos circularem pelo contexto
tecnológico em questão.
Com a proposta da montagem de um musical, a Macy’s se integra ao cotidiano de
milhares de estudantes americanos e ao seu universo escolar. Para os participantes,
remontar o espetáculo significava também se inserir em uma grande rede nacional
de escolas, envolvidas em um mesmo trabalho. Essa sensação fica evidente através
das comparações entre as montagens, nos comentários de pais e alunos de diferentes
escolas. Na montagem-guia publicada pela marca em seu canal do YouTube, esse senso de pertencimento revelava-se em comentários como: “I going to bet Charlotte!!!”, “Im
playing Virginia in my school play! Wish me luck:)”. A relação estética do consumidor com
os produtos revela-se também nos comentários que demonstram como os primeiros
veem os segundos como uma legítima fonte de entretenimento. Os episódios de The
Beauty Inside podem ser encontrados no YouTube, não publicados pela marca, mas por
usuários/consumidores. Os comentários revelam o êxito da série em ser fruída como
entretenimento: “why was this taken down it was really good”, reclama MS sobre a suspensão da exibição pelo canal da marca9; “where is the rest of it? and when was this made? is it
a movie?”, elogia AJ, revelando a incerteza sobre a natureza do conteúdo.
Em um ambiente de autonomia de escolhas e ações, enxergar esse espectador
engajado como vítima ou um trabalhador involuntário das corporações midiáticas,
parece-nos uma visão reducionista. A produção espectatorial aqui analisada, assume
formas variadas: textos, vídeos, montagens teatrais, além dos compartilhamentos,
comentários e discussões. E mesmo girando em torno de proposições publicitárias, está
ligada sobretudo aos interesses individuais e sociais dos usuários. Entre essas motivações,
podemos destacar o desejo de auto-expressão, o anseio por participar da elaboração de
conteúdos midiáticos e o acúmulo de capital cultural nos ambientes on-line, dentro da
lógica apontada por Fiske (2001). As comunidades formadas em torno das campanhas
que compõem nosso corpus são tão efêmeras quanto o é a própria criação publicitária.
Porém, são suficientemente significativas para revelarem algumas das habilidades táticas
das audiências do branded content, incluindo aí alguns dos seus propósitos e motivações.
9. Comentários transcritos na íntegra, mantendo suas grafias originais. Nomes de usuários substituídos
por iniciais por questões de privacidade.
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
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As múltiplas táticas presentes no engajamento entre espectadores e as obras analisadas
revelam, portanto, que uma obediência dos primeiros às normas de interatividade e
participação propostas pelos segundos caminha lado a lado com “economias simbólicas
constituídas por públicos que se apropriam a seu modo dos produtos comerciais, nunca
se deixando enganar por completo” (ESQUENAZI, 2005, p. 107).
ASPECTOS CONCLUSIVOS
A empreendimento analítico demonstra que os três polos propostos são instâncias
tão interdependentes que, mesmo na etapa de fundamentação teórica, já davam amostras de imbricações. As interseções ficaram ainda mais intensas na fase analítica. Já na
instância produtora, onde se opera a atividade da criação publicitária, a recepção se faz
presente, através da preconização das possibilidades de atuação do público. Associamos
esse exercício de antecipação da atividade espectatorial ao conceito de leitor implícito de
Iser (1996). E também ao conceito aqui proposto de fã domesticado, que se refere ao anseio
da publicidade por um espectador ativo e engajado, porém com uma atuação restrita
àquela prevista em seus textos midiáticos. Quando pensamos no contexto tecnológico,
também torna-se inviável dissociá-lo da recepção. Uma vez que o processo comunicacional flui através das tecnologias de participação, de acordo com as motivações, desejos
e anseios - pessoais ou coletivos - dos sujeitos-receptores. Sem dúvidas, nada foi mais
evidenciado na análise do que o protagonismo do receptor em todo o processo. Se a
fruição e o engajamento são voluntários, todo o processo depende da sua motivação em
apreciar, interagir, participar, compartilhar e espalhar.
É preciso ressaltar ainda, o desafio de se trabalhar com propostas metodológicas
voltadas para a recepção. Uma vez que o estudo deste polo muitas vezes não prescinde
da análise estruturalista. Estabelecer essas conexões torna o horizonte de pesquisa
extremamente horizontal, demandando esforços de exploração e articulação intensos.
Porém, a visão dinâmica sobre o objeto de estudo é sempre recompensadora. Cabe ainda
lembrar que pretende-se aqui também contribuir para o fortalecimento da publicidade
enquanto tema de estudos mais amplos, indo além das análises de cunho técnicomercadológico. Como ressaltam Piedras e Jacks (2006, p. 59),
[...] cabe desenvolver esquemas conceituais e estratégias metodológicas para uma abordagem
da publicidade que articule as instâncias de seu processo comunicativo (textos, produção e
recepção), considerando as suas relações com diferentes dimensões do mundo social (como a
economia, a política e a cultura) e a sua natureza multifacetada e ambígua (sendo instituição
cultural e mercadológica, sistema comercial e mágico, arte e indústria).
Vivemos uma realidade onde conteúdos publicitários são parte cada vez mais intrínseca do consumo cultural. Fato que amplia e complexifica as suas interseções com a
sociedade e a cultura, e ao mesmo tempo, demanda abordagens que ultrapassem “a
dicotomia entre a perspectiva crítica denuncista e a abordagem econômico funcional”
(PIEDRAS; JACKS, 2006, p. 57). Esperamos que nossos esforços sejam mais uma contribuição nesse aspecto.
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Publicidade, mídias digitais e recepção: analisando o processo comunicacional da prática do branded content
André Bomfim dos Santos
REFERÊNCIAS
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4473
Do jornalismo à publicidade:
aplicação das teorias de gatekeeping e
gatewatching através de outro viés
From journalism to advertising:
theories application of gatekeeping and
gatewatching through another perspective.
B runa Sei b e rt M ot ta 1
Resumo: Neste estudo buscaremos defender uma abordagem das teorias de
gatekeeping e gatewatching através não apenas do viés jornalístico, comumente
teorizado, mas também pelo olhar da publicidade. Afinal, trata-se de uma teoria
da comunicação e, portanto, pode e deve ser utilizada pelas suas diferentes
áreas. Além disso, propomos a utilização destas duas teorias distintas como
complementares e interdependentes através da discussão de seus usos práticos
embasados nas teorias pré-existentes.
Para a realização desta discussão, observamos especialmente as novas práticas
sociais propiciadas pela internet a qual chamamos prossumerização. A partir
desta observação, foi possível contrapor o referencial teórico utilizado (Bruns,
2011; WOLF, 2001; WHITE, 1950; SHOESMAKER, 1991) para a elaboração desta
proposta que resultou uma discussão exemplificada para um assunto que vem
conseguindo aceitação nos congressos onde é apresentado e ainda há de
se disseminar e enriquecer.
Palavras-Chave: Gatekeeping. Gatewatching. Jornalismo. Publicidade.
Abstract: In this study, we defend the approach of gatekeeping and gatewatching
theories by advertising view besides the journalist view, generally used. After
all, those are Communication Theories, then, should be used by the different
areas. Furthermore, we propose the use of those distinctive theories as complementary and interdependent theories through discussion of their practical uses
grounded in theories already existent.
To realization of this discussion, we observed specially the new social behaviors
afforded by internet that we call prosumption. By those observations, we could
oppose the used theoretical framework (Bruns, 2011; WOLF, 2001; WHITE, 1950;
SHOESMAKER, 1991) to the elaboration of this proposal that results a sampled
discussion to this subject that has gain acceptation when is presented
and have a huge potential of dissemination and earnings.
Keywords: Gatekeeping. Gatewatching. Journalism. Advertising.
1. Doutoranda e Mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em Ciências
da Comunicação e bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela
UNIFRA. E-mail: [email protected].
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4474
Do jornalismo à publicidade: aplicação das teorias de gatekeeping e gatewatching através de outro viés
Bruna Seibert Motta
DO GATEKEEPING AO GATEWATCHING
NECESSIDADE DE conter ou direcionar as notícias que deveriam ser veiculadas
A
à cada edição nos veículos jornalísticos foi denominada gatekeeping em 1950
por White (1950). Entretanto, o termo surgiu em 1943, por Lewin, referindo-se
à seleção de alimentos que deveriam ser dispostos à mesa para cada refeição. Neste
sentido, Lewin determinou que o trabalho do gatekeeper seria filtrar, dentro de uma
gama de opções, quais seriam as mais interessantes, segundo determinado critério.
White, entretanto, apropriou-se do termo para contextualizá-lo no sentido da comunicação e, a partir de 1950, gatekeeping passou a ser o termo utilizado para designar a
função de filtragem de notícias que seriam publicadas em cada edição de um veículo
jornalístico. Para tal seleção, o critério utilizado baseia-se do valor-notícia (WOLF,
1995, p. 176) defendido de acordo com as necessidades (políticas, sociais, econômicas,
ideológicas, etc.) de cada veículo.
Canavilhas (2010, p.4) resume a função do gatekeeper à: reduzir a informação que
lhe foi dada ao espaço editorial existente, ou seja, dentro de um universo de centenas ou
milhares de notícias, é necessário escolher as mais pertinentes de acordo com critérios
pré- determinados e ainda adaptá-la ao espaço físico existente. Filtrar e adequar, ou seja,
ser o “porteiro” das informações (ver figura 1).
Figura 1. Processo de gatekeeping (MOTTA; BATISTA, 2013)
É inconcebível imaginar um único veículo que não passe por este processo. Mesmo
os veículos online nos dias de hoje necessitam tal filtragem, afinal, em um contexto
onde qualquer pessoa está apta a publicar suas opiniões online, desde que tenha a seu
alcance os aparatos técnicos necessários. Neste sentido possibilidades que a internet
oferece, surgiu o termo gatewatching.
A teoria do gatewatching surgiu no contexto propiciado pela internet no sentido
que, graças a possibilidade do cidadão poder postar suas opiniões online em canais
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4475
Do jornalismo à publicidade: aplicação das teorias de gatekeeping e gatewatching através de outro viés
Bruna Seibert Motta
abertos, que não dependem da aceitação de editores – os gatekeepers –, pesquisadores
perceberam a necessidade de uma nova conceituação adaptada as novas realidades.
Essa nova realidade diz respeito justamente a grande quantidade de informação
que existe quando a possibilidade de escrever não apenas matérias informacionais de
forma oficial – via veículos de comunicação formais – quando publicar opiniões, resenhas, textos críticos, etc. em formatos diversos, da forma que o cidadão julgar pertinente.
Diante a explosão de possibilidades de fonte de informação, Canavilhas (2010, p.
5) chama o gatewatcher de indicador de pistas de leitura, ou seja, ele evolui do filtro
para o criador de alertas.
Bruns (2003) afirma que
“Estas atividades de gatewatching não são nada novas – os próprios jornalistas utilizam
práticas semelhantes quando escolhem as matérias com valor como notícias daquelas fornecidas pelas agências noticiosas nacionais e internacionais, por exemplo – porém, ao fazer a
transição de uns poucos jornalistas seletos com acesso privilegiado às fontes chaves para
um esforço difundido com fontes múltiplas envolvendo uma multidão de usuários com
interesses diversos, se pode tratar uma faixa muito mais ampla de temas, e se pode destacar
um número muito maior de matérias com valor potencial como notícias.” (IDEM, p.124-125)
Bardoel e Deuze (2001) defendem o gatewatcher no papel de guia que, a partir de
uma notícia direciona quais são as opções que possuem maior valor informativo, ou
melhor conteúdo (ver Figura 2). Portanto, “o gatewatcher tem função legitimadora da
informação, é um vigia que colabora na construção de opiniões àqueles que terão acesso a notícia” (MOTTA; BATISTA, 2013), direcionando o olhar do leitor que busca
informações e endossando a informação dos veículos nos quais confia.
Figura 2. Processo de Gatewatching (MOTTA; BATISTA, 2013)
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No cotidiano daqueles que fazem uso da internet, o gatewatching está intrínseco
através das possibilidades de ranqueamento de notícias (através de notas ou atribuição
de estrelas, por exemplo), da opção “curtir”, cada vez mais difundida e aceita nas diversas
atividades sociais online. Além disso, a opção do usuário deixar um feedback textual,
comentando e interagindo com a notícia é um avanço muito relevante e um modificador
da forma como o consumo de notícias acontece hoje, possibilitando que cada usuário
seja, além de consumidor, um fiscal do que está sendo informado.
AGREGANDO SIGNIFICADO: GATEKEEPING + GATEWATCHING
A partir do contexto que já apresentamos, “o gatewatcher emerge assim como um
elemento central num ecossistema mediático onde a fragmentação motivada pela multiplicação de fontes e o excesso de informação obrigam os media a disputarem a atenção
dos leitores” (CANAVILHAS, 2010, p. 5). Com isso, os pesquisadores das teorias jornalísticas passaram a defender que hoje o gatewatcher substituiu o gatekeeper ao passo
que, segundo McQuail (1994), o gatekeeper tem um papel limitado visto que a notícia
chega pronta ao leitor, sem uma problematização mais profunda, apenas de acordo com
o viés do veículo que a publica.
Este argumento se repete ao longo dos trabalhos que problematizam ambas as
teorias. Entretanto, o objetivo deste estudo é demonstrar que as teorias não precisam e
nem devem ser substitutivas, mas complementares. Afirmar que o papel do gatekeeper
simplesmente não existe mais é uma visão restrita sobre sua funcionalidade. Vivemos
um contexto bastante diferenciado desde sua criação, entretanto, a adaptabilidade não
só das mídias como das formas como seu conteúdo é feita acompanha esses processos, bem como devem acompanhar suas teorias. Afirmar que o gatewatcher substitui
o gatekeeper sugere que as teorias dizem respeito a uma mesma prática o que não
parece sensato tendo em vista suas particularidades já citadas e destrinchadas mais
detalhadamente à frente.
Inicialmente é possível ressaltar as razões pelas quais um veículo filtra suas informações e contrapô-las às motivações pelas quais outros usuários praticam o gatewatching.
Até é possível que algumas das motivações se repitam, entretanto, seus fundamentos
são diferenciados, onde no primeiro caso, o gatekeeper retém informações que não são
relevantes ou não estão de acordo com o posicionamento (político, social, ideológico, etc.)
do veículo; já no segundo caso, ao invés de filtrar/reter as informações, o gatewatcher
direciona o olhar do leitor apontando não só os caminhos possíveis, mas os caminhos
em que ele – que pode ser jornalista mas não o é, necessariamente – confia e endossa.
Este processo, mesmo que não possua fundamentalmente um vínculo institucional com
o meio que divulga informações, sofre as consequências dos vieses políticos, sociais,
ideológicos, identitários, dentre outros, afinal, cada indivíduo possui suas singularidades
de pensamento e procura defender seu ponto de vista. Todavia, está livre (ou deveria
estar) para demonstrar sua opinião pessoal, especialmente quando há a possibilidade
de se mascarar via uso de apelidos e avatares na rede, o que teoricamente o isenta de
prestar satisfações aos seus conhecidos, diretamente.
Como forma de elucidar o que foi dito, é possível citar um exemplo bastante
atual sobre abordagem dos veículos de acordo com as ideologias defendidas por casa
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instituição. O Brasil passa por um momento de fragilidade política e, como não poderia
deixar de ser, a mídia faz a cobertura dos fatos. Entretanto, cada veículo seleciona o
tipo de abordagem que irá utilizar. Recentemente a Folha de São Paulo noticiou um
evento que ocorreria em repúdio a atual presidente do Brasil (ver figura 3) sendo que,
apenas 2 dias antes haveria um ato a favor do mesmo governo e nenhuma nota sobre
o assunto foi divulgada. Não cabe aqui discutir a relevância de cada evento muito
menos posicionamentos políticos. O caso é apenas elucidar como cada veículo ainda possui o processo de gatekeeping, independente dos avanços e possibilidades
trazidos pela internet.
Figura 3. Recorte do Jornal Folha de São Paulo (10/03/2015)
Entretanto, quem possui acesso à esta informação, veiculada em um dos jornais
mais importantes do país, restringe-se àqueles que possuem, de qualquer forma, acesso
ao seu exemplar físico, seja por assinatura, compra em bancas ou compartilhamento
do exemplar com os pares. Logo, o filtro agiu sobre as pessoas que leram este evento
e, caso a pessoa não tenha outra forma de acesso à informação, o outro evento será
sumariamente retirado do conhecimento do leitor da Folha de São Paulo. A partir do
momento que a notícia é posta em rede, seja pelo veículo em suas redes sociais ou site,
aí sim os indivíduos estão aptos a debater, julgar e responder o que está sendo dito, seja
através de textos opinativos, ranqueamentos, uso de hiperlinks que contraponham a
informação ou qualquer outra forma de interação que recebe o nome de gatewatching.
Bardoel e Deuze afirmam que:
“Com o aumento explosivo das informações em uma escala mundial, a necessidade de
oferecer informações se tornou uma adição crucial às habilidades e tarefas do jornalismo
[...]. Isto redefine o papel do jornalista como um papel de anotador ou de orientador, uma
mudança do cão de guarda para o “cão guia”. (Bardoel; Deuze, 2001, p.94).
Entretanto, conforme dito anteriormente, ainda não é possível que o papel de “cão
de guarda” seja esquecido, pois de fato ele não é. O filtro existe e caminha em paralelo ao
papel de guia que não só o jornalista oferece quanto todo e qualquer cidadão que sentir
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necessidade de interagir com o conteúdo distribuído. Além disso, “em face da diversidade de fontes e notícias tanto é importante selecionar alguns temas (gatekeeping) que
possam ser de interesse do público, como é socialmente importante a difusão de alertas
que devem receber atenção (MOTTA, 2015, p.44)”.
O papel do jornalista não deve ser filtrar ou guia. Ele filtra, pois sem o filtro os veículos estariam aceitando que precisam publicar toda e qualquer informação de forma
imparcial e sem juízo de valor; mais que isso, devem noticiar todo e qualquer acontecimento, o que além de ser impossível no sentido físico – seria inconcebível um jornal
com tantas páginas sendo executado diariamente –, quanto no sentido de produção.
Cada veículo precisaria de um número imenso de mão de obra que pudesse cobrir os
fatos, revisores que identificassem a imparcialidade da notícia, etc.
Por outro lado, além do fato de ser inconcebível, não é nem sequer interessante. Quando o consumidor escolhe um veículo para consumir, ele escolhe a partir do
que o veículo oferece a ele: seja o posicionamento crítico, seja o viés defendido, o tipo de
conteúdo, etc. Logo, o veículo filtra o conteúdo que pretende dispor aos consumidores
e o consumidor escolhe a partir das opções ofertadas. Existe um mercado vasto de
veículos informativos e se não fosse o filtro que cada um faz, a escolha seria baseada
simplesmente em questões práticas como preço e atributos físicos.
O gatewatching, portanto, amplia as possibilidades informativas e busca garantir
que a informação seja difundida de forma mais ampla, seja através da oferta de formas
de complementar a leitura, quanto através das possibilidades de interação com o usuário, não substituindo de forma alguma a filtragem do conteúdo a ser veiculado seja na
mídia que for.
O FILTRO E O GUIA PELO VIÉS PUBLICITÁRIO
Apesar das teorias de gatekeeping e gatewatching serem usadas para retratar uma
ferramenta jornalística, é possível perceber que seu uso estende-se também às práticas
publicitárias. Não há nenhuma necessidade de criar um novo nome para designar a
função de filtros e guias que existem no cenário publicitário se já existem tais designações dentro das Ciências da Comunicação. Portanto, este estudo defende seu uso como
teorias da comunicação e não apenas através do viés publicitário.
Embasamos a teoria no sentido noticioso até o momento para que houvesse uma
revisão bibliográfica seguida da discussão da adaptação e reelaboração das teorias, deixando de vê-las como se fossem uma mesma coisa porém em contextos distintos.
Na publicidade, o gatekeeping está presente no mesmo sentido que no jornalismo:
as informações devem ser filtradas para então designadas ao consumidor. No momento
do briefing de uma campanha, a empresa divulga ao responsável pelo contato entre
a agência de publicidade e a empresa quais são os atributos que a campanha deverá
ressaltar, quais produtos devem aparecer, quais as cores, etc. Já inicia desde então o
processo de filtragem de informações (ver figura 4).
Mas o gatekeeping pode também ser realizado por consumidores que podem ser
experts ou não, mas que buscam selecionar algumas marcas e apresenta-las aos demais
consumidores que tiverem acesso as suas opiniões. Neste caso, o que mais difere o processo de gatekeeping e gatewatching é que o processo de gatewatching sempre vai partir
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de pessoas não-vinculadas (pelo menos em teoria) à marca/veículo que divulga seja a
informação – no caso do jornalismo – seja o produto ou serviço – no caso da publicidade.
Figura 4. Folhetos de mercado: o filtro das promoções
Fonte: acervo pessoal
Por exemplo, uma atividade bastante difundida nos dias de hoje são os blogueiros e blogueiras que divulgam seus textos ou vídeos (então chamados de vlogueiros
e vlogueiras) com conteúdo pessoal. Existem milhares de blogues somente no Brasil
onde consumidores comuns passaram a expor suas opiniões sobre produtos e serviços,
inicialmente de forma espontânea e, hoje, já são patrocinados por milhares de reais a
cada postagem expondo marcas que se interessem por este tipo de publicidade.
É difícil afirmar quais são os que divulgam as marcas de forma espontânea e quais
são os patrocinados. Teoricamente, toda vez que a postagem tiver cunho publicitário, o blogueiro ou blogueira deveria sinalizar de alguma forma que está recebendo
para fazer tal divulgação. Entretanto, de fato, isso nem sempre ocorre e aí acontece dos
seguidores do blog agirem como gatewatchers e criticarem o blogueiro ou a blogueira
através de denúncias tanto no próprio blogue ou nas redes sociais, viralizando o alerta.
Para exemplificar tal diferença, selecionamos algumas postagens que elucidam tais
ações (ver figura 5 e 6).
Ambas referem-se (teoricamente) a atitudes de gatekeepers, pois, dentro de uma
gama de batons da marca MAC que é importada e possui preço elevado no Brasil, as
pessoas podem obter outras marcas nacionais por um preço mais baixo e que ofereça
cores semelhantes.
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Figura 5. Filtro por preço e cor estabelecido no blogue Keep Calm and DIY
Figura 6. Filtro de destinos no nordeste brasileiro pelo blog Viajando com Pouco
A blogueira filtrou algumas das cores mais semelhantes e disponibilizou para
conhecimento das suas leitoras. Já no segundo caso, o blogueiro filtrou, dentro dos seus
parâmetros quais seriam os melhores destinos no nordeste, direcionando o seu leitor a
aceitar sua opinião, ou não.
Por outro lado, o gatewatcher auxilia no direcionamento,
“É responsável pelo processo de guia, onde o usuário está apto a responder através de
feedbacks, “likes”, comentários, e ranqueamentos acerca e um produto/serviço. É sempre
espontâneo, não parte de nenhum desígnio pré-determinado, exceto quando há intenção
de alerta (malefícios do produto, engodo, etc.)” (MOTTA, 2013, p. 46)
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Os ambientes que mais propiciam a propagação do gatewaching são aqueles desenvolvidos especificamente como canais de contato com o cliente final: Reclame Aqui,
O Reclamão, aplicativos de turismo como Foursquare, TripAdvisor e Decolar.com,
por exemplo.
Nestes sites/aplicativos, o consumidor dá o feedback sobre o produto ou serviço
guiando a escolha de novos consumidores conforme as figuras 7 e 8 onde ambos cidadãos
estão insatisfeitos e levam às redes sociais suas insatisfações, sendo o primeiro pelo site
Reclame Aqui e o segundo viralizando um vídeo no YouTube e postando uma faixa em
frente a sua casa.
O storytelling é muito utilizado no caso do gatewatching pois acaba apelando ao
emocional dos consumidores. As reclamações, quando publicadas por consumidores
insatisfeitos, relatam sua experiência com os detalhes necessários para tentar convencer
demais cidadãos a não consumirem determinada marca, ou seja, os guiando contra a
marca X, assim como guiaria contra uma notícia errônea no caso do jornalismo.
“No jornalismo keeping significa o filtro/seleção de valor-notícia que indica quais informações são passíveis de veiculação em determinado veículo e, na publicidade, as marcas que
possuem recomendação de compra para ajudar na escolha do consumidor. Já o watching,
resumidamente, significa aglomeração de opções, levantamento de dados que tanto alertam
sobre veracidade do conteúdo divulgado quanto direcionam as melhores opções (aos olhos
do emissor), no meio jornalístico e no meio publicitário.” (MOTTA, 2015, p. 48)
Figura 7. Alerta sobre problemas com a marca Qbex no site Reclame Aqui
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Figura 8. Consumidor insatisfeito com Brastemp
CONSIDERAÇÕES
Percebemos que o uso das teorias de gatekeeping e gatewatching não apenas devem
ser usadas de forma complementar para embasar as técnicas do jornalismo, como são
também embasamento à publicidade representando o comportamento do consumidor,
novas tendências da área (patrocínio de blogueiros/vlogueiros e outros líderes de opinião via redes sociais) e até mesmo as funções básicas da criação, através da seleção de
produtos, serviços, características, etc. que devem ser usadas na campanha.
Pensar o mundo sem o papel do gatekeeper, cuja função segundo Shoesmaker (1991)
apud Soroka (2012) é reduzir bilhões de mensagens em centenas, facilitando a possibilidade de encontrarmos os materiais que nos são relevante, é praticamente impossível.
Necessitamos de filtros tanto quanto necessitamos de guias que nos direcionem o olhar,
que nos apontem caminhos e que nos alertem perante informações enganosas, produtos de má qualidade, etc.
REFERÊNCIAS
Bardoel, J.; Deuze, M. (2001) Network journalism: Converging competencies of old and new
media professionals. Australian Journalism Review, v. 23, n. 3, p. 91-103.
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para o Jornalismo. Brazilian Journalism Research – Vol. 7, Nº 11, p. 119-140. Recuperado
em 20 de março, 2015, de: http://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/342/315
Canavilhas, J. (2010) Do gatekeeping ao gatewatcher: o papel das redes sociais no ecossistema
mediático. In: Congreso Internacional Comunicación 3.0, 2, Espanha. Recuperado em 20
de março, 2015, de: http://novosmedios.org/xornalismo/wp- content/uploads/2014/01/
mudanzas-gardabarreiras.pdf
Lewin, K. (1943). Forces behind food habits and methods of change. Bulletin of the
National Research Council n. 108, p.35-65.
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Bruna Seibert Motta
McQuail, D. (1994) Mass communication theory: An introduction. 3hed., Sage, London.
Motta, B. S. (2014). Prossumidores: o novo papel dos consumidores na era da informação e sua
influência na decisão de compra. Dissertação de Mestrado, Escola de Comunicações
e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado em 2015-03-22, de http://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-26022015-163707/
Motta, B. S.; Batista, L. (2013) Gatekeeping e gatewatching como teorias jornalísticas diferenciadas e adaptadas à Publicidade. In: IV PROPESQ – PP, São Paulo. Recuperado em 20 de
março, 2015, de: http://www2.eca.usp.br/propesq/downloads/ebook_IV_Propesq_pp.pdf
Shoesmaker, P. (1991) apud SOROKA, S. N. The Gatekeeping Function: Distributions Of
Information In Media And The Real World. The Journal Of Politics, Vol. 74, Nº 2, Abril
2012, 514 – 528.
White, D. M. (1950). The Gatekeeper: A Case Study in the Selection of News. Journalism
Quaterly, vol. 27, n. 4, p.382-394.
Wolf, M. (1995). Teorias da Comunicação. Editorial Presença. Lisboa.
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Gender images publicized in ad magazines
D e n i s e Te r e s i n h a
da
S i lva 1
Resumo: Apresentaremos um recorte de uma pesquisa em andamento que
compreende a análise de anúncios publicitários nas revistas Men´s Health, Women´s
Health, Vogue, GQ, discutindo as relações de gênero que se fazem presentes, a fim
de vislumbrar um debate sobre a equidade destas relações. A pesquisa trabalha
a partir de uma perspectiva quanti-qualitativa. Aqui abordaremos a abordagem
quantitativa. Para a análise destes anúncios foi usada uma grade de dados que
visa identificar como as personagens foram construídas. Esta grade é dividida
em dois eixos de análise, o Fora-de-Campo e o Campo. Com base em Aumont
e Dubois o primeiro é tudo que não está representado visualmente, mas que
contextualiza estas peças, sendo as variáveis de análise nome da revista, edição,
periodicidade, localização e tipo do anúncio. O Campo está relacionado à imagem
que se encontra no enquadramento delimitado pela moldura da peça publicitária,
o que é visível. Aqui as variáveis foram tipo de produto ou serviço ofertado, as
personagens representadas quanto ao gênero e faixa etária, raça/etnia, contexto,
posição, aspecto, expressão do rosto, relação de poder aparente, tipo de ação,
enquadramento, presença de texto e sua função, marca e slogan.
Palavras-Chave: Publicidade. Relações de gênero. Fotografia. Revista.
Abstract: Present a part of a research in progress that includes the analysis of
advertisements in the magazines Men’s Health, Women’s Health, Vogue, GQ,
discussing gender relations that are present in order to envision a debate on
equity these relationships. The research works from a quantitative and qualitative perspective. Here we discuss the quantitative approach. For the analysis
of these ads was used a data grid which aims to identify how the characters
were built. This grid is divided into two axes of analysis, the Off-Field and the
Field. Based on Aumont and Dubois the first is all that is not represented visually, but that contextualizes these parts, and the name of the magazine analysis
variables, editing, timing, location and type of ad. The course is related to the
image that is in the framework defined by the frame of the advertising piece,
which is visible. Here the variables were type of product or service offered,
the characters represented in terms of gender and age group, race / ethnicity,
context, location, appearance, facial expression, apparent power ratio, type of
action, framing, presence of text and its function, brand and slogan.
Keywords: Advertising . Gender relations. Photography. Magazine.
1. Doutora em Ciências da Comunicação, Professora Adjunto IV na Universidade Federal do Pampa –
UNIPAMPA Campus São Borja, [email protected].
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
A
LINGUAGEM UTILIZADA pelas pessoas como meio de comunicação adquiriu
significações próprias e diferenciadas na história da humanidade. O conjunto de
palavras e expressões (linguagem) usada por uma nação compõe a sua língua
com suas regras específicas. Com a mídia acontece o mesmo. Sua forma de comunicar
é adequada ao seu canal de transmissão da mensagem (rádio, jornal, revista, televisão,
internet, etc.). Ao encontro disto, a linguagem publicitária também cria a sua própria
lógica para transmitir a sua mensagem.
Através de um todo significante, que faz parte do processo cultural, a publicidade cria um sistema de significações que permite a representação e a transmissão da
mensagem. Guaura (1992) define o mundo publicitário como um complexo sistema de
significações no qual operam simultaneamente códigos de distinta natureza. O discurso
publicitário projeta um conceito de representação intelectual do objeto a comunicar,
com toda a sua carga denotativa e conotativa, estabelecendo um conjunto de associações mediante as quais se propõe um posicionamento determinado e se engendram
mecanismos de raciocínios que tornem razoavelmente aceitável a proposta básica do
plano ou estratégia comunicacional. Ele procura reproduzir as principais aspirações do
pensamento do sujeito receptor, tendo um papel decisivo como instrumento de comunicação social. De los Ríos Porraz e Martínez Rodríguez (1997) afirmam que a publicidade
é capaz de configurar modelos coletivos de valores e comportamentos, oferecendo ao
público, não só produtos, mas também modelos de atitudes, formas de vida e imagens
paradigmáticas que orientam e, em muitos casos, definem as necessidades e o desejo
de quem consome.
A publicidade apresenta uma imagem que tenta comover o destinatário, é uma
imagem de intimação de ordem. Personagens dessa imagem apresentam gestos seguros,
indicativos, demonstrativos. Inicialmente, a imagem pretende reproduzir fielmente o
produto ou serviço e informar sobre suas principais características e funções. Em segundo plano, ela pretende não só ter essa objetividade, mas criar um ambiente, evocar um
sentimento, uma emoção. Conforme concordam publicações da área, ela faz com que o
sentido conotativo suplante o denotativo.
Uma imagem publicitária deve ser redundante não só com relação ao texto, mas
também, em relação à sua estrutura, requerendo a utilização de vários signos para
transmitir uma mesma idéia. Por este motivo, a publicidade trabalha com a imagem
sistematicamente, regulada aos diferentes códigos espaciais e visuais. O tipo de imagem
(impressa, eletrônica ou virtual) influencia diretamente no estilo do trabalho que deve
ser produzido.
A investigação da qual trata este trabalho ainda está em sua fase inicial. Desta
forma, aqui trabalharemos com a análise quantitativa de quatro anúncios publicitários
das oito edições das revistas, a Vogue e a Women’s Health, direcionadas ao público
feminino, e a Men’s Health e a GQ, direcionadas ao público masculino. O objetivo, assim,
é apresentar as contribuições teóricas iniciais e a metodologia que está sendo aplicada
neste primeiro momento2.
2. Para entender onde se insere este projeto, cabe esclarecer que ele integra o Grupo de Pesquisa Fos ligado às
atividades do NEPFOTU – Núcleo de Estudos e Produção em Fotografia da Unipampa, que inclui atividades
de ensino, pesquisa e extensão que necessitam da imagem fotográfica para a realização de seus trabalhos.
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
A Revista Vogue é uma das revistas de moda mais influentes do mundo no seu
segmento, basta acessarmos blogs, consultorias, editoriais, notícias sobre o assunto, que
ela é referência sobre comportamento, tendências e padrões de moda. Apresenta sessões
de beleza, saúde, bem-estar, estilo, publicada pela Conde Nast Publications desde 1892.
No Brasil começou em 1975, passando depois de algumas décadas do Grupo Carta aos
Grupos Conde Nast e Globo. Atualmente, circula mensalmente por vários países.
A Revista GQ é outra revista publicada no Brasil pelos Grupos Conde Nast e Globo.
Trata de vários assuntos ligados ao universo masculino, a quem é direcionada, como
gastronomia, tecnologia, estilo, sexo, veículos, esporte, entre outros.
A Revista Men’s Health é uma das revistas mais importantes do gênero para homens,
presente como fonte de referência em muitas publicações de moda. Apresenta materiais
com dicas de fitness, com temas que discutem sexo, carreira, alimentação, estilo, moda,
viagens, finanças, tecnologia. Tem circulação mensal e está presente em vários países.
Iniciou no Estados Unidos em 1987 e no Brasil é publicada pela Editora Abril desde 2006.
A Editora Abril também é a responsável pela Revista Women’s Health no Brasil.
Com circulação mensal, seu conteúdo contém dicas de exercícios, alimentação, sexo,
moda e beleza. A maioria das leitoras são mulheres (76%) da classe B (55%) entre 25 e
34 anos (43%) da região sudeste (55%) conforme o IVC (jan-dez/2013).
A problemática investigada, portanto, compreende a análise dos anúncios destas
quatro revistas nos meses de novembro dos anos de 2013 e 2014 discutindo as relações
de gênero que perpassam a produção destes anúncios. A escolha destes meses foi uma
opção dado o início da elaboração do projeto. Para isto, será realizada uma análise
com base em uma grade de dados que servirá como guia para examinar os anúncios
constantes nestas quatro edições. Depois desta parte quantitativa, iniciaremos a análise
qualitativa, buscando compreender se existem relações de poder nas relações de gênero
presente nas imagens fotográficas destas peças publicitárias e se encontradas, como são
publicizadas. O poder será estudado no sentido de Foucault (2007) como um conjunto de
relações, que produz assimetria entre os indivíduos, como formas de enfrentamentos,
disputas, criação de estratégias.
A imensa maioria dos anúncios de revista utiliza a fotografia, foco de nossa análise.
Sabemos que a imagem possui várias significações, podendo quem lê eleger algumas e
descartar outras. Em nível denotativo, o texto facilita a identificação da cena, contribui
para a correta retenção da mensagem, e em nível conotativo, ajuda a interpretar a cena.
Nos dois casos, tem a função de orientar o público na direção pretendida do anúncio.
Todavia, como diz Batey “embora as empresas criem identidades de marca, o significado da marca é criado pelas pessoas” (BATEY, 2010, p. 13). Ela ajuda os indivíduos a
se definirem nos locais onde transitam, mas não de maneira estática e sim de forma
aberta às negociações e às interpretações, a reafirmarem suas identidades. Perceber o
que se encontra nestes diferentes níveis de significação, significa compreender como
a imagem reflete as relações de gênero e como trata as assimetrias, as estratégias de
criação conceitual e as disputas simbólicas do objeto a informar.
Às atividades de extensão e pesquisa estão aliadas às de ensino com os componentes curriculares ligados
à fotografia, configurando um espaço de estudo e produção.
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
As imagens chegam ao público consumidor de forma desordenada e é ele quem vai
organizar a mensagem de acordo com o seu universo, ou seja, conforme seu conteúdo
cultural, político e social. Percebemos então, afirma García Canclini (1999), que o
consumo é essencialmente simbólico, um processo em que os desejos se transformam
em demandas e em atos socialmente regulados.
Comprar objetos, pendurá-los ou distribuí-los pela casa, assinalar-lhes um lugar em uma
ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar
o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é
tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. (GARCÍA CANCLINI, 1999, p. 83)
Aqui estamos falando especificamente de imagens fotográficas, que desempenham
um papel fundamental na nossa vida. Dificilmente é possível encontrar uma atividade
que não a empregue de um jeito ou outro. Para Freund (1995), ela é o meio de expressão
típico de uma sociedade hierarquizada, assente no universo tecnológico, tornando-se um
instrumento de primeira ordem. O fato de ela reproduzir exatamente a realidade exterior,
emprestá-lhe um caráter documental, fazendo-a aparecer como uma reprodução fiel e
imparcial da vida social. No entanto, alerta Freund (1995), a fotografia tem a capacidade
de exprimir o pensamento das camadas dominantes e de contar à maneira delas os
acontecimentos cotidianos, pois sua objetividade é fictícia. O seu olho pretensamente
imparcial (a objetiva), permite todas as deformações possíveis da realidade, uma vez
que seu produto é determinado pelo modo de ver de quem a opera e pelas exigências de
quem a encomenda. Todavia, algo de importante ela conclui, que é o fato da fotografia
não ser apenas uma criação e sim um dos meios mais eficazes de moldar nossas idéias
e comportamentos.
A utilização de fotografias publicitárias em anúncios tem uma grande força em
profissionais que fazem do conceitual o seu diferencial. Em outras palavras, o importante
é a imagem na publicidade de marca que vende uma atitude, que evoca um mundo
construído cuidadosamente, não o produto ou serviço de forma clara e objetiva. O
fundamental é evocar os sentimentos pelo sensorial através do visual inferindo numa
estética da gratuidade.
Neste contexto, as representações sociais, as variedades de práticas que envolvem
a relação com a roupa, a aparência e a sexualidade são identificadas pelos significados
construídos pela moda. Os padrões de beleza, feminilidade, masculinidade, a relação
com o corpo adquirem significações próprias orientando a produção das aparências,
a personalização e a sedução. A publicidade de moda parece estar imbuída no conceito de que tudo é possível, avessa às preocupações de mercado, aos valores éticos
e morais, desconstruindo inclusive noções básicas da área, como informar sobre o
produto ou serviço. Neste jogo da permissividade continuam trabalhando matrizes
distorcidas sobre gênero, conforme foi constatado na investigação de Silva (2013). Por
isto a preocupação desta pesquisa reside em analisar como estas imagens de gênero
estão representadas pela publicidade em quatro revistas do segmento de moda e estilo, verificando os lugares que ocupam os corpos masculino e feminino na fotografia
dos anúncios.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
O ato fotográfico desvenda um cenário de um mundo comum composto pela
polifonia de possibilidades estéticas. O uso da fotografia traz importantes desafios
epistemológicos e metodológicos a serem superados, conforme referências citadas neste
projeto. Ela acaba trazendo à tona paradoxos em qualquer área que seja examinada. Aqui
estudamos a fotografia aliada à publicidade e à moda para compreender as relações de
gênero e nestas as relações de poder.
Sabemos que a construção do sujeito acontece dentro de uma relação social. Saffiotti
(1995) lembra que devido ao fato de sujeito e objeto serem uma diferenciação no interior desta relação social, conforme posição ocupada nos seus polos, não há distinção
substantiva entre um e outro, apenas uma diferença adjetiva. A diferença, segundo a
autora, é historicamente situada e socialmente construída. Dessa forma, para a autora,
o gênero participa do processo de construção do sujeito, da mesma forma que a raça/
etnia e a classe.
As relações de gênero se tornam um tema importante na realização de um estudo
dentro desta complexa relação social na qual a cultura atua como o elemento de mediação mais importante, concordando com Martín-Barbero (2000). Ela baliza as nossas
percepções sobre as coisas da vida e assim nos fornece argumentos para construirmos
nossa forma de pensar. As relações de gênero, dentro deste processo, são geradas e
aceitas como formas tipicamente masculinas e formas tipicamente femininas de agir
que, entretanto, estão dissociadas do fato de ser homem ou de ser mulher. Se existem
muitas diferenças entre ser mulher e ser homem, existem ainda as diferenças entre as
mulheres e entre os homens. Todas as relações de gênero são dinâmicas e podem ser
complementares, mas não hierarquizadas. Entretanto, muitas investigações não constatam na publicidade estas transformações que vem acontecendo na sociedade na forma
de ver homens e mulheres, por isso interessa saber como o fazer desta área representa
os gêneros e que forma está articulado ou não com a realidade social.
A importância que recai sobre a imagem, principalmente no mundo publicitário,
é porque ela reproduz um conjunto de informações no qual está imbuída toda uma
gama de significações que designam a mensagem pretendida por quem a emite. Ao
mesmo tempo em que pode denunciar uma sociedade provinciana, pode permitir que
a mesma ofereça uma imagem própria completamente distorcida de valores morais e
comportamento ético, diferentemente do que deveria ser.
Devemos levar em conta que a imagem atua sobre as motivações mais profundas,
estando aí o seu poder de persuasão. Victoroff (1980) afirma que o êxito dos anúncios
consiste em saber aproveitar toda essa potencialidade da imagem para vender seus
produtos. Logo, é importante saber que a publicidade mistura o pensamento lógico,
o afetivo e o estético, ou seja, o anúncio dirige-se tanto aos desejos conscientes, às
necessidades reais de quem consome, como também, às aspirações inconscientes, aos
sentimentos recônditos e aos seus desejos proibidos. Desse modo, atribui-se uma função
à imagem muito maior e mais importante do que aquela de simplesmente reter um
olhar. Ela tem o poder de transmitir significações complexas mediante uma só olhada,
não se limitando a reter a atenção sem pretender significar.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
Essencialmente, o que se pretende, portanto, ao analisar a fotografia publicitária
nas revistas Vogue, GQ, Women’s Health e Men’s Health é observar as representações
de gênero contidas nos anúncios. Decorrentes desse objetivo principal aparecem os
seguintes objetivos específicos caracterizar as revistas; analisar como os processos identitários, publicizados pela fotografia, são construídos; observar como são apresentados
os corpos femininos e masculinos nos anúncios; verificar como a imagem fotográfica
contribui na preservação e ressignificação das relações de gênero; refletir sobre o papel
das relações de poder presente nas imagens de gênero contidas nos anúncios.
A pesquisa foi desenvolvida em dois eixos de análise das fotografias, o Campo e
o Fora-de-Campo, buscando a identificação dos elementos constituintes das imagens
veiculadas nos anúncios publicitários selecionados nas revistas já citadas. Consoante
Aumont (2011) e Dubois (2001) o Campo está relacionado ao tempo-espaço em que a
imagem foi executada, ao que foi retido dentro do corte espaço-temporal fotográfico,
ou seja, à imagem que se encontra no enquadramento delimitado pela moldura da peça
publicitária, o que é visível, quer no papel ou na tela digital. O Fora-de-Campo é tudo
que não está representado visualmente, mas que aparece nas falas que remetem para
estas imagens e ao contexto em que foram criadas.
A partir destes dois conceitos foi criada uma metodologia de análise de fotografias
(SILVA, 2008). Estes dois eixos, embora necessitem de instrumentos de análise diferenciados, têm a significação (efeito total produzido pelo signo no seu intérprete para chegar
ao resultado interpretativo, à compreensão) obtida no entrelaçamento dos significados
(efeito direto produzido no intérprete pelo signo no ato da interpretação, do reconhecimento) de cada uma delas.
O Campo, portanto, consiste em um processo de interpretação da arquitetura da
imagem, com o objetivo de descobrir os elementos constitutivos da imagem e as informações técnicas do espaço compreendido no enquadramento, no qual está organizada e estruturada a sua composição, ou seja, a forma de organização e disposição dos
elementos na imagem fotográfica, característica dos lugares e cenários, personagens,
enquadramento e disposição das pessoas e objetos nos planos, etc.
Os anúncios que serão analisados a seguir são:
Figura 1: Vogue
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
Figura 2: Men’s Health
Figura 3: Women’s Health
Figura 4: GQ
Para compreender o Fora-de-Campo foram investigados temas que surgiram a partir
do Campo, mas que extrapolaram a moldura da fotografia e que são fundamentais para
compreendê-la, em duas perspectivas diferentes. Neste caso, diz respeito à produção,
como qual a linha de comunicação adotada pela marca e seu contexto empresarial, os
estilos e contextos de profissionais da moda, entre outras informações. Conforme a
grade de análise a seguir elaborada em conjunto com a Profª Dra. Maria João Silvestre
Cunha do Centro Internacional de Estudos de Gênero (CIEG) da Universidade de Lisboa.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
Tabela 1: Grade de dados
VARIÁVEIS
VALORES
FORA-DE-CAMPO
Revista
1. Men’s Health
2. Vogue
3. Woman’s Health
4. GQ
Edição
1. Novembro 2013
2. Novembro 2014
Periodicidade
1. Mensal
Localização do Anúncio
1. Página ímpar
2. Página par
3. Verso de capa
4. Contra-capa
5. Verso de Contra-capa
6. Dupla
Tipo
1. Anúncio
2. Editorial várias páginas
CAMPO
Produto/serviço
1. Alimentação/Bebida em Geral/Para Adulto
2. Serviços/Comunicações
3. Cosmética/Perfumes/Higiene pessoal
4. Joias/Relógios/Óculos/Acessórios
5. Vestuário/Calçado
6. Produtos Casa – Limpeza
7. Esportes
8. Veículos
9. Marketing Social/Saúde
10. Alimentação/Bebida – Para Bebé
11. Produtos Casa – Decoração e Acessórios
12. Equipamentos/ Material/Produtos Escolares
13. Outro
Figura Representada
1. Criança, sexo masculino (até 13 anos)
2. Criança, sexo feminino
3. Adolescente, sexo masculino (até 17 anos)
4. Adolescente, sexo feminino
5. Jovem, sexo masculino (até 30 anos)
6. Jovem, sexo feminino
7. Adulto, sexo masculino (até 59 anos)
8. Adulta, sexo feminino
9. Idoso, sexo masculino (acima dos 60 anos)
10. Idosa, sexo feminino
Raça/Etnia
1. Branca (caucasiana)
2. Negra
3. Parda
4. Oriental
5. Árabe
6. Indígena
Contexto
1. Familiar
2. Esporte
3. Praia
4. Trabalho
5. Exterior Urbano
6. Exterior Campestre
7. Indiferenciado
8. Interior/Casa
9. Escolar
10. Saúde (hospital, consultório, gabinete)
11. Lazer (cinema, teatro, concertos, restaurante)
12. Compras (lojas, supermercado, shopping)
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
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VARIÁVEIS
VALORES
Posição Relativa das Figuras
1. Mulher deitada
2. Homem deitado
3. Mulher e homem deitados
4. Mulher de pé
5. Homem de pé
6. Mulher e homem de pé
7. Mulher sentada
8. Homem sentado
9. Homem e mulher sentados
10. Mulher ajoelhada
11. Homem ajoelhado
12. Homem e mulher ajoelhados
13. Homem de pé e mulher sentada
14. Mulher de pé e Homem sentado
15. Homem de pé e mulher deitada
16. Mulher de pé e Homem deitado
17. Homem de pé e mulher ajoelhada
18. Mulher de pé e homem ajoelhado
19. Outra posição
20. Indeterminada
Aspecto
1. Sofisticado
2. Sedutor/Atraente
3. Descontraído/Esportivo
4. Descuidado
5. Ágil / Focado/ Concentrado
6. Outro
Expressão do rosto
1. Séria
2. Risonha/Alegre
3. Sonhadora/Pensativa
4. Sensual/Sexy
5. Triste
6. Irada/Raivosa
7. Apática
8. Outra
Relação de Poder Aparente
1. Domínio
2. Submissão
3. Inexistente
Tipo de Ação das Personagens
1. Sedução
2. Brincadeira/Alegria
3. Violência/Agressividade
4. Romance
5. Apática
6. Utilitária ou pragmática (por ex. compras)
Enquadramento Dominante
1. Plano de Expressão
2. Plano de Ação
3. Ambiente
Marca
1. Sim
2. Não
Slogan
1. Sim
2. Não
Tipo de Texto
1. Utilitário
2. Informativo
3. Apelativo
4. Emotivo
5. Assinatura
6. Sem texto
Função do Texto
1. Âncora
2. Substituição
3. Sem texto
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
Abaixo um exemplo do quadro preenchido com a análise de quatro anúncios, um
de cada revista para dialogar sobre a metodologia utilizada:
Tabela 2. Quantificação dos dados
1. Vogue
2. Men’s
Health
3. Women’s
Heath
4. GQ
Edição
1
1
1
1
Periodicidade
1
1
1
1
localização do anúncio
1
1
1
1
Tipo
1
1
1
1
4,5
4
3
4
figura representada
8
7
6
5
raça/etnia
1
1
1
1
contexto
7
5
7
4
posição relativa das figuras
7
8
4
5,8
aspecto
2
3
1
3
expressão do rosto
4
2
2
1,2,6
relação de poder aparente
3
3
3
3
tipo de açao das personagens
1
2
2
2,3
enquadramento dominante
1
1
1
2
marca
1
1
1
1
slogan
2
2
1
1
tipo de texto
5
5
3
5
funçao do texto
1
1
2
1
Revista
Fora-de-campo
produto/serviço
Campo
No fora-de-campo, os anúncios apresentam a mesma configuração. Já no campo, muitas diferenças podem ser observadas, como o produto, óculos, pasta de dente,
vestuário, calçados e acessórios. Nas figura representada, temos jovem do e adulto de
ambos os sexos. A determinação da faixa etária foi motivo de reflexão quanto à definição
entre jovem e adulto, pois a imagem trabalhada com editores nem sempre garantem a
fidelidade da representação da idade do/a modelo, mesmo assim, colocamos que até
os 30 anos seria considerado jovem e desta idade até 59 anos, adulto, como a Nicole
Kidman. O contexto indiferenciado serviu para definir fotos que não podemos identificar o fundo. Para o show de rock (GQ) utilizamos o item trabalho, uma vez que os
personagens protagonistas são os músicos. Alexandre Borges na moto (Men’s Health),
definiu o exterior urbano. A posição das figuras ou personagens está entre em pé ou
sentada, identificando o sexo pelo público da revista (na revista feminina é mulher, na
masculina homem), com destaque para o anúncio da GQ que aparecem três homens
em pé e dois sentados.
Os aspectos sofisticado, sedutor e descontraído foram os que mais se aproximaram
das representações das personagens. A expressão do rosto está ligada ao item anterior,
como no caso do aspecto sedutor que normalmente se alinha com o sensual, comum
na publicidade de Jimmy Choo (Vogue), assim como o descontraído muitas vezes está
risonho, alegre (Men’s e Women’s Health). No da Ray-Ban (GQ) encontramos sérios,
alegres e agressivos por termos mais de uma personagem. Além deles, encontramos
alinhados os tipos de ação, como sedução (Vogue), alegria (Men’s e Women’s Health) e
agressividade e brincadeira (GQ). O enquadramento dominante é o plano de expressão,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imagens de gênero publicizadas em anúncios de revistas
Denise Teresinha da Silva
pois está direcionado às personagens sem um movimento aparente, como acontece no
plano de ação do show de rock (GQ).
Entretanto, algumas caracterizações de repetem. As pessoas presentes nas peças são
todas brancas, não apresentam relações de poder aparente entre elas, e o ponto forte do
texto é a marca, embora um deles (Women’s Health) tenha acrescentado frases apelativas,
nos demais o texto serve para indicar o site ou alguma informação fora do anúncio.
Como já dissemos, estamos na fase inicial da pesquisa cuja análise dos anúncios
terá uma abordagem quanti-qualitativa. A quantitativa diz respeito aos dados classificados na grade acima e sua quantificação, conforme o exemplo explicitado acima. A
perspectiva qualitativa procurará entender, não verificar, como faz a quantitativa; seu
processo se caracteriza pela interpretação, pela busca do sentido do que se está investigando, diz Orozco Gómez (1997, p. 71). Para esse autor, quem investiga qualitativamente
deve se envolver com o objeto de pesquisa e aos poucos descobre novos elementos,
novas relações, sempre cuidando para que sua compreensão não seja exclusivamente
objetiva. Portanto, a qualitativa estará relacionada à interpretação destes dados que
visavam identificar os elementos constituintes dos anúncios das quatro edições das
revistas para examinar os signos visuais representados no que diz respeito às relações de gênero. Assim, depois de terminada a análise quantitativa, será realizada a
escolha dos anúncios que serão analisados qualitativamente tendo presente o foco
nas relações de gênero.
REFERÊNCIAS
Aumont, J. (2011). A imagem. 16. ed. Campinas : Papirus.
Batey, M. (2010) O significado da marca: como as marcas ganham vida na mente dos consumidores. Rio de Janeiro : Best Business.
De Los Ríos Porras, M. J. & Martínez Rodríguez, J. (1997). La mujer en los medios de comunicación. COMUNICAR, 9, 97-104.
DUBOIS, P. (2001) O ato fotográfico. 5. ed. Campinas : Papirus.
FOUCAULT, M. (200/) Microfísica do poder. 23.ed. Rio de Janeiro : Graal.
GARCÍA CANCLINI, N. (1999) Consumidores e cidadãos : conflitos multiculturais da globalização. 4. ed. Rio de Janeiro : UFRJ.
GUAURA, A. (1992) Semiótica y publicidad. In: PASANTÍA. Fundação Carlos Eduardo Frias.
4. 12-23.
MARTÍN-BARBERO, J. (1987). De los medios a las mediaciones. México : Gustavo Gilli.
SAFIOTH, H. I. B. (1995). Diferença ou indiferença : gênero, raça/etnia, classe social. In:
ADORNO, S. (org.). A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade. Porto Alegre
: UFRGS.
SILVA, D. T. da. (2013). A fotografia publicitária de moda e a glamourização da violência contra a
mulher. São Borja : Faith.
SILVA, D. T. da. (2008). Fotografia que revelam imagens da imigração: pertencimento e gênero como
faces identitárias (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo. Recuperado em 23 de outubro, 2014, de:
http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=585
VICTOROFF, D. (1980). La publicidad y la imagen. Barcelona : Editorial Gustavo Gili.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção
da comunicação publicitária na temática científica
Advertising and science: notes on the reception of
advertising communication with scientific content
Ja n e A . M a rqu es 1
Weverton R aiol2
Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar e tensionar os resultados
obtidos sobre o uso da temática científica na programação televisiva
(MASSARANI, 2014), com discussões teórico-metodológicas das pesquisas
de recepção da comunicação publicitária (PIEDRAS, 2014), buscando perceber
caminhos de análise das trocas simbólicas feitas pelos jovens a partir do seu
consumo midiático. Foi feita pesquisa de observação da programação televisiva
de duas emissoras de circuito aberto de Belém do Pará (TV Liberal e Record
Belém), em duas “semanas construídas” (WHITELEGG et al., 2008). Constatouse a recorrência da temática científica em diversos formatos televisivos, com
destaque às peças publicitárias encontradas em todos os horários. Na segunda
etapa do projeto foram feitos quatro grupos focais com alunos do Ensino Médio
de Belém, para avaliar a percepção desses jovens sobre alguns programas
televisivos que abordavam a temática. Como resultados, percebeu-se que a
propaganda está presente na vida das pessoas, haja vista os adolescentes tecerem
e trocarem experiências e opiniões sobre graus de credibilidade e criatividade
em relação aos conteúdos publicitários.
Palavras-Chave: Propaganda. Ciência. Divulgação da Ciência. Televisão.
Recepção.
Abstract: This work aims to present and explore the results obtained on the use
of scientific content in television programming (MASSARANI, 2014) through
theoretical and methodological discussions about researches on reception of
advertising communication (PIEDRAS, 2014), and seeks to perceive analysis
paths of symbolic exchanges that teenagers make from their media consumption.
We conducted an observation research on television programming of two free-to-air channels from Belém, in the state of Pará (TV Liberal and Record Belém),
1. Mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e Livre Docente em Comunicação e Marketing pela Universidade de São Paulo. Professora do curso de Pós-Graduação em Estética
e História da Arte e do curso de Graduação em Marketing, ambos da Universidade de São Paulo. Professora
convidada da Universidade Federal do Pará, compondo o quadro permanente do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected].
2. Mestrando em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e
Amazônia da Universidade Federal do Pará. Bolsista de Desenvolvimento Tecnológico Industrial do CNPq
– Nível C. Colaborador do Laboratório de Pesquisa e Experimentação em Multimídia da Assessoria de
Educação a Distância da UFPA e integrante do Grupo de Pesquisa em Processos de Comunicação (Pespcom).
E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4496
Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
in two composite weeks (WHITELEGG et al., 2008). We verified the recurrence
of scientific content in several television formats, with emphasis on advertising
material found at all the time intervals studied. In the second stage of the project, we defined four focus groups of high school students from Belém, to assess
their perception on a number of television programs that addressed the theme.
Based on the results, we noticed that advertising is present in people’s lives,
given that teenagers create and exchange experiences and opinions on degrees
of credibility and creativity regarding advertising content.
Keywords: Advertising. Science. Science communication. Television. Reception.
INTRODUÇÃO
ODA ATIVIDADE humana está imbricada no contexto histórico e social. A ciência
T
é um exemplo, afinal o hábito de buscar explicações para o mundo tem uma longa
trajetória – surge com os mitos, séculos antes de Cristo, que não só deram sentido
à vida e aos fenômenos naturais e sociais, como também foram as primeiras percepções
da razão (ANDERY; MICHELETO; SÉRIO, 1988). Saltando no tempo e passando pela
ascensão da razão como elemento de transformação do mundo, hoje temos a ciência
no contexto de uma sociedade em rede, na qual a informação, como conhecimento e
dados, é designada economicamente como produto. A brevidade dos fatos citados não
dá conta da relação histórica da ciência com a sociedade. No entanto, é necessário lembrarmos que a busca pelo conhecimento, principalmente o científico, foi se tornando
um importante vetor na perspectiva do desenvolvimento. Caso que é intensificado pelas
neotecnologias e o armazenamento e distribuição de grandes volumes de dados, que
possibilitam maior troca de informações.
Relacionado ao aprimoramento dos sistemas de transmissão, Sodré (2012) afirma
que a “midiatização” da sociedade cria uma nova esfera da vida, chamada por ele de
“bios midiático”. O que pode ser entendido é que o desenvolvimento dos meios de informação e comunicação permeia de diversas formas a vida do homem, transformando,
por exemplo, as relações de trabalho, como a ciência. Ou seja, tem-se um panorama que
possibilita mais intercâmbios e divulgação do conhecimento a partir dos meios que se
configuram como uma nova esfera da vida humana.
Nesse contexto, somado aos estudos de divulgação científica, Caldas (2011) ressalta
a importância da mídia no fomento do interesse público em participar dos processos
decisórios que envolvem o cotidiano da sociedade, além da formação de uma “cultura
científica” importante para o exercício crítico. Vogt (2011, p. 7) considera que essa cultura
é constituída por um “[...] conjunto de fatores, eventos e ações do homem nos processos
sociais voltados para a produção, a difusão, o ensino e divulgação do conhecimento
científico”. Entende-se, portanto, que a construção do conhecimento só pode ser coletiva
e resulta em um processo comunicacional. Assim, pretende-se neste trabalho verificar
o significado de campanhas publicitárias divulgadas em Belém do Pará, no segundo
semestre de 2013, com foco na temática de divulgação científica.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4497
Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
OBJETO
A pesquisa tem a comunicação publicitária como segmento que cria e mantém um
sistema próprio, tanto em seu viés estratégico e mercadológico, quanto em sua constituição como produto midiático inserido no cotidiano.
Neste estudo, aplicou-se, primeiramente, um protocolo adaptado da Rede IberoAmericana de Monitoramento e Capacitação em Jornalismo Científico (MASSARANI;
RAMALHO, 2012) para se verificar por meio de análise de conteúdo (BARDIN, 2007)
quais gêneros televisivos com temas científicos constavam da programação local de duas
emissoras de televisão aberta, de Belém do Pará, durante duas semanas construídas. Do
total de 1.579 peças selecionadas, 818 eram campanhas publicitárias.
Em um segundo momento, teve-se o interesse em observar, por meio de pesquisa
de recepção, de cunho qualitativo, os usos e apropriações que os jovens estudantes de
Ensino Médio têm das peças publicitárias selecionadas na primeira etapa, que foram
veiculadas na grade local de emissoras de Belém do Pará.
QUADRO TEÓRICO
É inegável que a comunicação publicitária possui objetivos econômicos e comerciais,
já que sua constituição original é essencialmente de viés funcionalista (COVALESKI,
2010; GOMES, 2008). Por isso, é possível encontrar definições que considerem que as suas
práticas são exclusivamente mecanismos de venda e lucro. Inclusive, entre as produções
bibliográficas da área, não é incomum encontrar manuais práticos de como planejar e
elaborar peças publicitárias que promovam e construam grandes marcas.
Destaca-se que há diferença conceitual entre Publicidade e Propaganda,
principalmente por conta dos seus respectivos objetivos. Enquanto a Propaganda se
associa à promoção de bens e serviços com interesse comercial, a Publicidade tem caráter
mais ideológico, com fins de cunho político, institucional, social, religioso, entre outros.
Os termos se assemelham, no entanto, enquanto práticas de comunicação, o que torna
esse tensionamento entre conceitos mais complexo que uma dicotomia entre mercado
e ideologia (GOMES, 2008; PIEDRAS, 2014).
As características da Propaganda atual se assemelham ao movimento de anunciantes
que surgiu após a Revolução Industrial, momento no qual se intensificou o uso dos meios
de comunicação disponíveis, adaptando-se ao contexto de avanços na tecnologia e no
conhecimento, e apropriando-se de elementos persuasivos, tais como cores, sons, cenários
e outros (GOMES, 2008). Baseadas nesse movimento, atualmente as peças publicitárias
são reconhecidas pela sua constituição imagética e metafórica e relacionam elementos
do cotidiano às satisfações físicas e psicológicas em abordagens racionais e emocionais.
Acerca das abordagens, a emotividade se tornou essencial às marcas contemporâneas,
como abordado por Raiol (2014). Mas a racionalidade e emoção são complementares,
visto que, por exemplo, qualquer argumento predominantemente racional também
apela ao desejo. Ou seja, mesmo envolvendo informações de fins práticos, o cenário
atual da publicidade está ligado às satisfações pessoais. Um exemplo é a publicização
de alimentos funcionais, vendidos como eficazes e benéficos à saúde, mas que também
oferecem bem-estar, beleza e até felicidade.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
Compreende-se que as propagandas possuem uma dimensão mercadológica e
persuasiva intrínseca. Mas, como qualquer outra estratégia midiática, é essencial observar
que as peças publicitárias delineiam processos comunicacionais, baseadas em relações
diversas de usos e apropriações atreladas a um sistema que tem interfaces com questões
sociais, como a política, a tecnologia e a cultura. Trindade (2012) considera que o “sistema
publicitário” está para além de um esquema que envolve somente publicidades e vendas,
ele abrange os locais que as marcas alcançam na vida das pessoas, gera experiências,
lembranças e fomenta o imaginário.
Considera-se, então, a Propaganda como a articulação de mensagens de caráter
persuasivo com o mundo social de publicitários e consumidores. De forma complementar,
há noção de que tudo que é comunicacional tem como premissa o encontro, a relação, o
compartilhamento com o outro (WOLTON, 2006; MARTINO, 2011). Assim, acredita-se
que a comunicação publicitária está presente nas trocas simbólicas e nas experiências
que permeiam o cotidiano contemporâneo, tanto na produção, quanto na recepção.
Rogério Covaleski (2010) indica a atuação social da Publicidade e Propaganda no
comportamento e no consumo, o que as tornam alvo de crítica e reconhecimento, respectivamente, pela vulgarização de informações e pela promoção do conhecimento.
O autor também propõe, entre outras coisas, um consumidor mais participante, tanto
no processo de produção e consumo, quanto nas narrativas utilizadas atualmente: “[...]
a comunicação publicitária precisa então estabelecer uma relação não entre marca e
produto, mas entre marca e conteúdo de interesse do consumidor” (COVALESKI, 2010,
p. 48). Logo, pensando a ciência como temática em campanhas publicitárias, acredita-se que o interesse pelo conteúdo é um fator de aproximação que deve ser analisado,
para além da dimensão mercadológica, como uma janela para aproximação do conhecimento científico.
A temática científica utilizada pelas propagandas dá a elas um caráter mais racional, mas toda mensagem publicitária é caracterizada também pela persuasão e sedução
(CITELLI, 2004). Complementando essa ideia, ainda que de forma crítica à matriz funcionalista da Publicidade e Propaganda, Sodré (2012) ratifica que toda campanha de produtos
e/ou serviços é interpelativa, gera desejo e, portanto, torna-se central na manutenção do
“bios midiático”, que tem como uma das bases a urgência da satisfação de desejos.
No Brasil, uma enquete sobre a percepção pública da ciência pelos brasileiros,
realizada em 2006 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pela Fiocruz, já apontava
o interesse da população pela temática científica e a confiança em relação às informações
dadas por cientistas (MASSARANI; MOREIRA, 2009). Dados do Ministério de Ciência
Tecnologia e Comunicação (MCTI, 2014) indicam que o investimento nacional em Ciência
e Tecnologia, desde os anos 2000, aumentou mais de 90%, atingindo o valor de R$ 76.466
milhões em 2012. E isso tem sido notado também pela presença da temática nos meios de
comunicação, assim, neste artigo pretende-se investigar como adolescentes estudantes
do Ensino Médio percebem esse tema a partir de peças publicitárias selecionadas que
foram transmitidas em duas emissoras de TV aberta em Belém do Pará.
As referências diretas e indiretas à ciência na programação televisiva aberta, a partir
da amostra deste estudo, representam aproximadamente 11% do tempo total analisado.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
Ou seja, guardadas as devidas proporções, a ciência como tema está presente em diversos
momentos do dia a dia das pessoas, solicitando um olhar mais atento à configuração
dos produtos de comunicação como fenômenos que perpassam a sociedade.
Tal percepção é um dos pontos da proposta desta pesquisa, justamente por considerar as apropriações como uma instância do processo comunicacional, e ter como
perspectiva o estudo de Elisa Piedras (2014)3 sobre dissertações e teses que estudaram
a recepção de publicidades nas duas últimas décadas no Brasil. Nesse estudo, a autora
aponta que é possível classificar o seu corpus de análise em três abordagens: a sociocultural, que se propõe a observar as mediações e os processos que envolvem a audiência,
os meios e as peças publicitárias; a comportamental, que não desconsidera as negociações,
porém foca mais nos processos de aceitação e rejeição, privilegiando condicionamentos
psicológicos, por exemplo, efeitos e influências; e a sociodiscursiva, que provoca primeiramente o enfrentamento das mensagens midiáticas com a interpretação do receptor.
De forma geral, esse estudo aponta que
O processo de recepção é entendido [nos estudos analisados] como práticas complexas de
produção de sentido, que transcendem o contato com os meios e confundem-se com a vida
cotidiana. Essas práticas são permeadas pelas mediações, onde se estabelece um processo de
interação e negociação entre anunciantes consumidores, relativizando o poder de influência
da publicidade (PIEDRAS, 2014, p. 176).
Tendo como base os estudos citados propõe-se uma articulação entre consumo
midiático e a percepção que os estudantes de Ensino Médio têm das propagandas com
temática científica, a partir de uma abordagem processual e sociocultural permitindo,
portanto, ampliar a visão sobre a dinâmica complexa existente entre publicitários, anúncios e receptores – todos como fonte de dados para a análise que será apresentada por
conta da elaboração, da negociação, do descarte, da reelaboração, enfim, das apropriações
da comunicação publicitária.
Outro aspecto importante que Piedras (2014) aponta é a ascensão nos estudos que
consideram as propagandas como delineadoras de processos comunicacionais. No
entanto, dos trabalhos analisados pela autora, nenhum deles abrange a Região Norte.
Isso leva a pensar na importância que se tem de pesquisar a Propaganda sob o olhar
local, assim como refletir como ela acontece no contexto dessa região.
Cabe ressaltar que as questões apresentadas relacionadas à Publicidade e Propaganda
são resultados de desdobramentos de dois projetos de pesquisa: “Representações da
Mulher Cientista na TV Brasileira e no Imaginário de Adolescentes”, aprovado no Edital de
Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq (nº 32/2012), coordenado pela Prof. Dra. Luisa Massarani,
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); e “Jovens em Tempo de Convergência: pesquisa
exploratória de recepção dos usos e apropriações de recursos multimidiáticos no ParáAmazônia-Brasil”, aprovado na faixa B do Edital Universal do CNPq (nº 14/2012), cuja
responsável é a Profa. Dra. Maria Ataide Malcher, da Universidade Federal do Pará
3. Destaca-se a autora tem como referências os esforços de mapeamento dos Estudos de Recepção no Brasil
realizado pela Professora Dra. Nilda Jacks, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
(UFPA). Esse último projeto derivou do envolvimento da equipe da UFPA com a Rede
Brasil Conectado, Coordenada pela Profa. Dra. Nilda Jacks, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
METODOLOGIA
A pesquisa sobre processos de comunicação delineados pelo uso da temática
científica na televisão aberta brasileira considerou abordagens quantitativas e qualitativas
como constituintes de reflexões e contribuições a respeito da divulgação científica e
recepção. Os dados e observações sobre a propaganda foram se constituindo em etapas,
visando identificar e analisar a presença de representantes da ciência nos canais de
televisão aberta do país, especialmente Rede Globo e TV Record Belém.
A fase de composição da amostra foi dividida em dois momentos: a opção metodológica de semanas construídas (WHITELEGG et al., 2008) e a elaboração dos critérios
de seleção das peças que apresentavam em sua narrativa a temática científica, a saber:
reportagens jornalísticas; quadros de programas; cenas de telenovelas, séries, minisséries, filmes, desenhos; peças publicitárias; e product placement em diferentes programas.
No primeiro momento, como já ressaltado, considerou-se o estudo de Whitelegg e
colaboradores (2008) sobre representações de gênero de cientistas, tecnólogos, engenheiros
e matemáticos na televisão do Reino Unido para crianças, a partir do UK Resource Centre
for Women in Science, Engineering and Technology (UKRC). Na busca de resultados, os
autores propõem a construção de duas semanas de amostra para análise, que neste
estudo se constituiu a partir da seleção de datas aleatórias entre junho e novembro de
2013 (Tabela 1).
Tabela 1. Duas “semanas construídas” para seleção de amostras.
DIAS DA SEMANA
1ª Data selecionada
2ª Data selecionada
Domingos
22 de setembro
29 de setembro
Segundas-feiras
19 de agosto
16 de setembro
Terças-feiras
18 de junho
29 de outubro
Quartas-feiras
18 de setembro
13 de novembro
Quintas-feiras
12 de setembro
24 de outubro
Sextas-feiras
04 de outubro
29 de novembro
Sábados
31 de agosto
14 de setembro
A seleção das peças se consistiu a partir da gravação e assistência dos 14 dias
de programação da TV Liberal (afiliada Rede Globo) e Record Belém (filiada da TV
Record). Ao todo, foram 672 horas de programação assistida, com base no documento
metodológico de composição da amostra, derivado do protocolo da Rede Ibero-americana
de Monitoramento e Capacitação em Jornalismo Científico (MASSARANI; RAMALHO,
2012). O documento estabelecia os seguintes critérios de seleção das peças: a) presença
e/ou menção direta à ciência, cientistas, pesquisa, pesquisadores ou acadêmicos; b)
presença e/ou menção de especialistas; c) menção de dados e termos científicos; d)
presença de ilustração/animação/efeitos especiais como representação da ciência; e)
menção à política de ciência; f) divulgação da ciência.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
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A partir da composição da amostra, iniciou-se a análise a partir do protocolo,
dividido em sete eixos: características gerais; temas; características de formato e conteúdo; presença de cientistas; narrativa; tratamento; atores. O protocolo foi adaptado
de Massarani e Ramalho (2012), incluindo as campanhas publicitárias e os diversos
formatos de programas televisivos de entretenimento e de informação. Nessa etapa
de análise, o protocolo foi aplicado nas 1.579 peças selecionadas da programação local
de Belém do Pará, totalizando aproximadamente 73 horas de gravação dos diferentes
gêneros televisivos. Do total de peças selecionadas, 818 eram de campanhas publicitárias (6 horas, 23 minutos e 39 segundos) e é sobre essas campanhas que este estudo se
propõe analisar como a ciência é percebida por jovens estudantes do Ensino Médio e
qual a relação entre ciência e gênero para esses participantes da pesquisa.
Foram realizados quatro grupos focais com estudantes do 2º ano do Ensino Médio,
sendo dois de escolas públicas e dois de escolas particulares de Belém. Esse método
foi apoiado por observação, com o objetivo de refletir e perceber como os adolescentes
constroem sentido a partir das peças selecionadas. Cada grupo de foco foi constituído
por no mínimo 8 e no máximo 12 alunos, com equilíbrio entre meninos e meninas,
totalizando 36 participantes.
A respeito do consumo midiático dos adolescentes participantes, aplicou-se um
formulário antes dos grupos a fim de verificar os hábitos de assistência, leitura, acessos, entre outros. 24 adolescentes afirmaram ter contato diariamente com a televisão,
ou, pelo menos, ter contato algumas vezes por semana com esse meio. O aparelho no
qual os participantes mais assistem à televisão foi o próprio aparelho de TV, indicado
por 30 respondentes, o segundo mais usado foi o notebook/netbook, porém por apenas 4
participantes. Sobre a finalidade com a qual os participantes assistem TV, em Belém, o
motivo mais indicados foi o de se informar, seguido por aprender novos conhecimentos
e, em terceiro, entreter-se.
Nessa perspectiva, a proposta deste estudo traz o foco para o cerne de um estudo
de recepção: uma análise dos fluxos de comunicação a partir de uma abordagem sociocultural (PIEDRAS, 2014). Da mesma forma, este tipo de pesquisa, desloca o olhar para
a observação e análise das dinâmicas de consumo e produção de sentido experienciadas, ou seja, é por meio do estudo de recepção que se mostra possível perceber como a
negociação acontece, como se dá a circulação, como acontece o diálogo e a experiência
de indivíduos com marcas/ produtos.
A dinâmica dos grupos se deu a partir da mediação de dois pesquisadores e um
roteiro semiestruturado, tendo como um dos eixos a ciência como argumento/incentivo de
compra em campanhas publicitárias. Além disso, participaram também dois pesquisadores como observadores, a fim de registrar pontos relevantes sobre a atividade. Todos
os registros, inclusive de áudio e vídeo, foram reunidos e sistematizados e estão apresentados a seguir. O cruzamento e interpretação dos dados e observações ressaltam
caminhos metodológicos que sempre se renovam. Essa inquietação surge, por exemplo,
com a temática científica, a recepção e os processos de comunicação que se envolvem
na comunicação publicitária.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
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ANÁLISE
Destacam-se que as propagandas televisivas costumam ter entre 15 e 45 segundos,
sendo o tempo de 30 segundos o mais adotado, ou seja, no total de tempo dos anúncios veiculados é possível uma quantidade significativa de inserções. O levantamento
feito no período das duas semanas identificou 109 peças de 53 anunciantes diferentes,
identificados a seguir em ordem alfabética: Acnase, Activia, Asepxia, Avon, Pop Dents,
Borton Medical Group, Canal Futura, Cataflam, Celpa, Chevrolet, Cicatricure, Clear,
Colgate, Danoninho, Densia, Dove, Elséve, Fiat, Flanax, Floratil, Ford, Friboi, Goicoechea,
Governo Federal, Head Shoulders, Imecap Hair, Indaiá, Listerine, Lóreal, Medicasp, Mr.
Músculo, Neutrogena, Oral B, Oxitrat, Pantene, Pepsi, Petrobrás, Pointts, Prefeitura de
Ananindeua, Prêmio Jovem Cientista, Qiar, Respire Melhor, Shell, Shot B, Targifor C,
Tiguvon, Tio Nacho, Top Therm, TRESemme, Tylenol, Varicell, Vanish e Veja.
Apesar de parecer pouco tempo diante do tempo total analisado, a recorrência
pode ser percebida quanti e qualitativamente se for considerada a lógica da grade de
programação televisa: há presença de propagandas com temática científica em todas
as faixas de horário (madrugada, manhã, tarde e noite) em todos os dias investigados.
Ou seja, há uma programação que possibilita o contato diário e em diversos momentos
com as propagandas que envolvem o tema da ciência.
Este estudo também possibilitou, por meio de grupos focais com adolescentes de
Belém, identificar observações gerais sobre a constituição da Propaganda, a importância da criatividade e da credibilidade e a indicação que, para os jovens, o uso de
cientistas e especialistas contribui positivamente na percepção do produto anunciado.
Logo, os jovens entrevistados se constituem como público importante para a pesquisa
por conta das suas apropriações das peças publicitárias, visto que, nas discussões realizadas, foi observado que ora gostam, ora não gostam, por motivos como bom humor
e conteúdo. Além disso, eles lembram e trocam opiniões sobre as peças, revelando
interesse pelas propagandas.
Após a exibição de cada campanha, descritas a seguir, os moderadores estimulavam a
discussão a partir de um roteiro de perguntas semiestruturado, que permitia ser alterado
ao longo da realização de cada grupo focal, de acordo com a discussão que se estabelecia
entre os participantes. As questões permitiam que os integrantes dos grupos apresentassem
suas percepções sobre o conteúdo apresentado e sobre os profissionais que apareceram nos
anúncios publicitários e sobre suas concepções acerca de ciência e tecnologia e de cientistas
em geral. Os mediadores utilizavam, sempre que possível, as menções que dos próprios
integrantes durante a discussão. Caso as palavras “ciência” e “cientista” não fossem citadas,
os mediadores apresentavam esses termos ao final da discussão.
Para as discussões de grupo foram utilizadas peças de diferentes gêneros televisivos, mas três eram de campanhas publicitárias e, por limitações de espaço, são essas
que são apresentadas a seguir. A primeira propaganda selecionada era a inserção de
um produto/ marca no programa Mais Você, da TV Globo, com duração de 1 minuto,
prática conhecida por product placement, mas que comumente no mercado denomina-se
merchandising. A apresentadora (Ana Maria Braga) apresentava um shampoo indicando
que esse produto podia alterar a idade do cabelo, e comentava que esse produto foi
desenvolvido por cientistas e que trazia novidades e benefícios para quem o utiliza.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
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De modo geral, na discussão gerada a partir dessa primeira peça houve pontos
comuns em todos os grupos. Diante da exposição do shampoo, praticamente nenhum
jovem se sentiu atraído por comprar o produto. Muito questionaram a necessidade de
um cabelo “mais jovem”, possivelmente por não enfrentarem ainda problemas capilares,
assim como a comprovação de que o fenômeno pode ser real. Nesse aspecto, os adolescentes acreditam que dicas são aceitas preferencialmente de pessoas que eles conhecem
e já tenham comprovado a eficácia da indicação.
Pelo menos pra mim, eu sempre compro um produto baseado em resenhas mesmo, de outras
– pessoas que usaram o produto e falam “– Hum, ele é muito bom. Funciona pra mim”. Eu nunca
compro um produto por causa da propaganda. (ESTUDANTE 01, Escola particular, i.v., 2014).
Mesmo não interessados pelo produto em um primeiro momento, os adolescentes
acreditam que o uso de cientistas/especialistas contribui positivamente na comunicação.
Entre os motivos, a credibilidade se destacou.
Porque tipo assim... para eles poderem divulgar, eles testaram bastante. E isso a gente
pode ter noção: “– Eles provaram. Está provado.” Vai da pessoa se gostou ou não, aí dá a
opinião. Mas para eles divulgarem, eles têm certeza de que o produto deles vai dar certo.”
(ESTUDANTE 02, Escola pública, i.v., 2014).
Em seguida, mostrou-se aos participantes dos grupos de foco, uma campanha do
governo federal sobre a campanha Jovem Cientista, com 30 segundos de duração. A peça
possuía jovens de ambos os sexos em um laboratório e apresentava o tema do prêmio
naquela edição e incentivava à participação. Nesse ponto da discussão, o roteiro previa
perceber a proximidade da figura do cientista no cotidiano dos adolescentes. Um dos
principais questionamentos era quem pode ser cientista. Os alunos, tanto os de escola
particular quanto os de pública, afirmaram que todos podiam ser cientistas, independente
de raça, gênero ou posição social. Contudo, há alguns requisitos mencionados pelos
participantes, como gostar da profissão e buscar sempre o conhecimento.
Depende... Esse negócio é algo que a pessoa tem que gostar. A pessoa tem que estar lá o
tempo inteiro normalmente confinado em algum lugar para pesquisar aquilo. Eu recomendo
para as pessoas que gostam daquilo, qualquer um pode fazer mais é melhor para pessoas
que simpatizam com essa área. (ESTUDANTE 03, Escola particular, i.v., 2014).
A última propaganda apresentada aos participantes dos grupos focais era de um
automóvel, o Ecosport, também com 30 segundos de duração. Tratava-se de uma simulação
de realidade, pois apresentava um cientista utilizando um capacete que captava o que
ele está pensando ao dirigir um carro, enquanto outros cientistas observavam o que
ele estava imaginando. Entre as diversas atribuições dadas ao novo veículo, o cientista
finalizava o momento imaginativo chegando em casa e a única cientista mulher da
equipe era apresentada de forma “sexy” esperando-o chegar.
Apesar do papel de liderança exercido pela personagem cientista, os jovens afirmaram que a imagem de “objeto sexual” se sobressaiu e isso não os agradou, mesmo
que ao final da exibição praticamente todos tenham sorrido. Um ponto interessante da
observação nos grupos é que mesmo pensando de uma forma divergente em relação
ao uso que é feito da mulher nas campanhas publicitárias, de alguma forma elas se
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
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revelam interessantes para os adolescentes. A partir disso, a discussão seguiu sobre as
possibilidades de homens e mulheres serem cientistas, surgindo em alguns momentos
opiniões que reforçam, de algum modo, o que eles diziam não concordar.
Acho que é mais procurado por homens mesmo. O homem tem mais vontade de ser cientista, mulher não. Por exemplo, nenhuma amiga minha quer ser cientista. Agora se for
perguntar para algum amigo, pelo menos um deles vai falar que quer. (ESTUDANTE 12,
Escola pública, i.v., 2014).
Os estudantes de todos os grupos focais apresentaram opiniões similares e as discussões possibilitaram identificar que a ciência está em diversos gêneros televisivos e os
alunos indicaram, pelos seus exemplos, quais lhe chamavam mais atenção, quais gostavam mais. Majoritariamente, os adolescentes tinham algumas opiniões estereotipadas
sobre a imagem do(a) cientista e demonstraram que a ciência é uma carreira que não
é fácil, mas que pode ser atingida por quem tiver interesse e dedicação, independente
das dificuldades relacionadas a questões de gênero, raça, entre outras.
RESULTADOS
Para explorar a programação das duas emissoras, a partir do plano metodológico
buscou-se, portanto, tensionar os resultados obtidos na análise das peças sob observações
de cunho qualitativo. Um exemplo disso são as propagandas, que mesmo com o tempo
reduzido (característica desse formato) estão presentes em todos os períodos do dia.
Este estudo também possibilitou, por meio de grupos focais com adolescentes de
Belém, identificar observações gerais sobre a constituição da Propaganda, a importância
da criatividade e da credibilidade e a indicação que, para os jovens estudantes, o uso de
cientistas e especialistas contribui positivamente na percepção do produto anunciado.
Logo, os entrevistados se constituem como público importante para a pesquisa por conta
das apropriações das peças publicitárias, considerando que nas discussões realizadas foi
observado que ora gostam, ora não gostam, por motivos como bom humor e conteúdo.
Além disso, eles lembram e trocam opiniões sobre as peças, revelando interesse pelas
propagandas. O estudo suscita questões como: o que as pessoas pensam acerca da ciência
apresentada nas propagandas? O que elas fazem com as propagandas? Ao mesmo tempo,
o contato com os jovens estudantes de Ensino Médio revelou outros conceitos e percepções
do que há de comunicacional no cotidiano desse público que, por limitação de espaço,
e restrição ao tema proposto, pode vir a ser complementado em publicações futuras.
Este estudo considera, portanto, a percepção de que a Comunicação deve relacionar
a busca das relações entre marcas e consumidores por meio da propaganda atual, que
possibilita perceber que ela está mais do que presente, está inserida no cotidiano e,
assim, deve ser dada como fenômeno contemporâneo complexo.
O que se percebe é que há interesse de compreender as relações e negociações entre
a comunicação publicitária, os jovens, a divulgação científica, o consumo midiático, as
especificidades locais enquanto região e outros fatores envolvidos no contexto dessa
proposta. Admite-se o desafio de buscar ainda mais algumas respostas, mas com a
certeza de que com elas sempre virão novas inquietações. Afinal, o conhecimento é
sempre um processo comunicacional, no qual há apropriações e reelaborações.
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Propaganda e ciência: apontamentos sobre a recepção da comunicação publicitária na temática científica
Jane A. Marques • Weverton Raiol
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4506
Atenção no processamento de marcas anunciantes:
um ensaio teórico sobre os níveis de atenção
e suas implicações em termos de influência
na memória do indivíduo receptor
Attention in advertisers brand processing:
a theoretical essay on the attention levels and its implications
in terms of influence on the individual consumer memory
Ta í s Pa s q u o t t o A n d r e o l i 1
A n d r e s R od r i g u e z V e l o s o 2
Resumo: A maioria das exposições a anúncios de marcas ocorre sob mera exposição, quando esses estímulos estão disponíveis no ambiente, mas não são processados de forma consciente pelo individuo, mas sim inconscientemente, pela pré-atenção. Apesar disso, os estudos acerca dos efeitos da exposição a anúncios têm
focado os processos conscientes de recepção, bem como a mensuração explícita
desse registro. À luz do exposto, esse ensaio teórico tem como objeto de estudo o
processo de atenção no processamento de marcas anunciantes, recorrendo-se a
uma revisão da literatura centrada nas seguintes bases conceituais: perspectivas
de processamento;processo da atenção como constructo complexo (pré-atenção e
atenção); e registro das informações (memória explícita e implícita). Evidencia-se
que diferentes níveis de atenção dirigidas no processamento resultam em formas
díspares de registro dos estímulos, influenciando não só a forma como eles são
percebidos e armazenados, mas também como são interpretados e valorados.
Palavras-chave: Tipos de processamento. Processo da atenção. Pré-atenção.
Abstract: Most of the exposures to brand ads take place under mere exposure
when these stimuli are available in the environment, but they are not processed
consciously by the individual, but unconsciously, through the pre-attention.
Nevertheless, studies on the effects of exposure to ads have focused the reception
of conscious processes as well as the explicit measurement of this record. In light
of the above mentioned, the study target of this theoretical essay is the attention
process in the brand advertisers processing, involving the use of a literature
review focused on the following conceptual foundations: processing perspective;
attention process as a complex construct (pre-attention and attention); and record
of information (explicit and implicit memory). It becomes evident that different
levels of attention addressed to the processing, result in different ways of the
stimuli record, influencing not only the way they are perceived and stored, but
also the way they are interpreted and valued.
Keywords: Types of processing. Process of attention. Pre-attention.
1. Mestre em Administração (USP), [email protected]
2. Doutor em Administração (USP), [email protected]
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4507
Atenção no processamento de marcas anunciantes: um ensaio teórico sobre os níveis de atenção e suas implicações
Taís Pasquotto Andreoli • Andres Rodriguez Veloso
1 INTRODUÇÃO
MAIORIA DAS exposições a anúncios de marcas ocorre sob condições de mera
A
exposição, ou seja, quando esses estímulos estão disponíveis no ambiente, mas
não são necessariamente processados de forma ativa pelo individuo, ao nível
consciente (FANG, SINGH & AHLUWALIA, 2007). Nessas condições, os estímulos ainda assim são processados, mas de forma automática, sem o esforço e/ou consciência
do indivíduo receptor, processo denominado de pré-atenção (JANISZEWSKI, 1993).
Exemplos desse contexto ocorrem diariamente na vida dos indivíduos: lendo artigos
de revistas, mas processando também os anúncios; navegando na internet em busca de
páginas de interesse, mas processando também os anúncios (banners) expostos em suas
regiões perimetrais; entre outros.
Isso pode ser justificado por três motivos principais. Primeiro, em muitas situações,
a atenção das pessoas está voltada para outros lugares (objetos-alvo) que não nesses
anúncios, o que caracteriza esses estímulos em informações secundárias ou simplesmente informações que não estão sendo buscadas pelos indivíduos (Janiszewski, 1993).
Segundo, a capacidade limitada dos recursos cognitivos exige que a atenção seja direcionada e focada apenas em estímulos-alvo, deixando os demais estímulos disponíveis no
ambiente para um processamento de segundo nível, com capacidade inferior (SHAPIRO,
MACINNIS & HECKLER, 1994). E, por último, devido à revolução e disseminação dos
meios de comunicação, que diversificam as fontes de informações bem como ampliam
exponencialmente sua capacidade de propagação (maior rapidez, maior facilidade e
menor tempo), é cada vez mais constante o contexto de saturação de estímulos, que
competem pela atenção do receptor (BAUMAN, 2001).
Apesar disso, os estudos acerca dos efeitos da exposição a anúncios têm sido realizados dentro do domínio dos modelos cognitivos de processamento de informação,
focando-se, prioritariamente, nos processos conscientes de recepção de estímulos (YOO,
2005). Sendo assim, a atenção costuma ser erroneamente abordada apenas como processo exclusivamente consciente, voltada apenas para a perspectiva da atenção seletiva,
não considerando, assim, o processo pré-atentivo. Como consequência, encontra-se
também uma equivocada avaliação dos efeitos provenientes da recepção de estímulos,
analisados principalmente em relação à memória explícita dos indivíduos receptores,
em detrimento dos efeitos implícitos desse processamento, como memória implícita e
julgamento de valor (MILOSAVLJEVIC, 2007).
À luz do exposto, esse ensaio teórico tem como objeto de estudo o processo de
atenção na recepção de estímulos. Para tanto, recorreu-se a uma revisão da literatura,
permitindo a construção de um arcabouço teórico centrado nas seguintes bases conceituais: perspectivas de processamento (consciente, subliminar e pré-atenção); processo
da atenção como constructo complexo, subdividido em pré-atenção e atenção; tipos de
memória (explícita e implícita) e suas diferenças em termos de influência no indivíduo
receptor de acordo com o nível de atenção dirigido.
2 PERSPECTIVAS DE PROCESSAMENTO
Com a evidência de que estímulos não atendidos de forma consciente são de fato
processados, inconscientemente, o modelo tradicional de processamento apresenta-se
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como insuficiente para o estudo da recepção de estímulos (JANISZEWSKI, 1993). Desse
modo, evidencia-se a necessidade de esforços de pesquisa direcionados a compreender
e distinguir o processamento consciente dos estímulos do inconsciente.
Com o propósito de esclarecer essa questão, Shapiro, MacInnis e Heckler (1994) propõem uma classificação de três grandes perspectivas do processamento de informações:
consciente, subliminar e pré-atentivo.
Shapiro, Heckler e MacInnis (1997) propõem uma classificação de três grandes
perspectivas do processamento de informações: consciente, subliminar e pré-atenção.
No processamento consciente os indivíduos dirigem seus focos de atenção a determinados estímulos em específico. Dessa forma, os indivíduos têm pleno conhecimento
das informações que estão sendo emitidas, assim como do conteúdo que estão recebendo. Os estudos realizados dentro dessa perspectiva geralmente analisam os efeitos de
diferentes tipos de abordagem nas respostas dos consumidores aos anúncios, considerando variáveis como o apelo utilizado (humor, drama, etc.), a forma de disposição de
mensagens, o critério de adoção de cores, entre outras (YOO, 2005).
As outras duas perspectivas acontecem de forma inconsciente, ou seja, sem que os
indivíduos tenham consciência dos estímulos recebidos. Dentre as perspectivas inconscientes, tem-se o processamento pré-atentivo. Esse processamento trata dos estímulos
que são processados quando o foco de atenção do indivíduo não está direcionado a
eles, mas sim em outras informações do ambiente (JANISWESKI, 1993). Isso acontece
geralmente com estímulos considerados secundários, isto é, que não despertam o interesse ou não têm a devida relevância para o indivíduo receptor. Dessa forma, pode-se
observar que, nesses casos, todos os estímulos estão disponíveis para a recepção e o
processamento consciente por parte dos indivíduos, mas são eles que decidem em quais
estímulos querem focar suas atenções, processando-os de forma consciente, e deixando
os demais a serem processados pré-atentivamente.
Também caracterizado como uma perspectiva inconsciente, o processamento subliminar consiste na apresentação dos estímulos intencionalmente abaixo da capacidade
de percepção do indivíduo receptor. Para que isso seja possível, a fonte emissora deve
exibir o estímulo ou de forma muito rápida ou de forma muito distorcida, inviabilizando
o processamento consciente. Sendo assim, mesmo que o indivíduo receptor queira processar a informação, decidindo por dirigir seu foco de atenção a ela, ele não consegue, já
que a emissão não permite que as informações sejam processadas de forma consciente
(BORNSTEIN, 1989). Nesse sentido, diferente do processamento pré-atentivo, no qual
os indivíduos decidem em quais estímulos dirigir seu processamento consciente, diz-se
que a falta de consciência acerca dos estímulos recebidos, nesses casos, é de responsabilidade da fonte emissora, que propositalmente divulga estímulos subliminarmente,
para que nem a emissão nem os estímulos se tornem de conhecimento dos receptores.
Por esse motivo, mais importante do que testar os efeitos no público receptor, encontra-se na literatura uma grande discussão ética acerca dessa emissão (YOO, 2005). Tendo
esse dilema ético em vista, optou-se por não incluir a perspectiva de processamento
subliminar no escopo de estudo desse trabalho, focando-se, assim, na perspectiva consciente e pré-atentiva, discutidas em termos do processo de atenção.
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3. PROCESSO DA ATENÇÃO
Muito do que é potencialmente passível de recepção pelos órgãos sensoriais não
é claramente percebido ou mesmo detectado. Isso significa que, ainda que exista um
mundo de estímulos disponíveis, duas situações são corriqueiras quando se trata da
recepção de estímulos: muitas informações não entram sequer em nosso processamento,
sendo não detectadas pelos órgãos sensoriais; e outra grande parte é detectada e recebida, mas processada de forma inconsciente (SHAPIRO, HECKLER & MACINNIS, 1997).
Nesse sentido, Wolfe (1994) estima que, a cada segundo, a visão humana recebe cerca
de 100 milhões de dados sensoriais que são transmitidas ao nervo óptico. Entretanto, Rigo
(2008) aponta que dentre essas milhões de fixações realizadas diariamente, apenas uma
ínfima porcentagem se fixa conscientemente. Ou seja, frente a um contexto de saturação
de estímulos - que se amplia ao considerar a recepção pelos demais órgãos sensoriais
– e à capacidade limitada dos recursos cognitivos dos indivíduos, torna-se impossível
o processamento consciente de todas as informações disponíveis (STERNBERG, 2000).
Dessa forma, faz-se necessária uma seleção dos estímulos mais relevantes, para que
sejam processados de forma mais lenta e com maior profundidade, com a tomada de
atenção (YOO, 2008). Os demais estímulos, não selecionados de modo consciente, são
varridos de forma inconsciente e involuntária, processo denominado de pré-atenção
(SHAPIRO, HECKLER & MACINNIS, 1997).
Sendo assim, o processamento dos estímulos pode ocorrer, basicamente, em duas
etapas diferentes (NEISSER, 1967; TREISMAN & GELADE, 1980). A primeira refere-se
à pré-atenção ou processamento pré-atentivo, quando uma varredura rápida e geral
de todos os estímulos presentes no ambiente é realizada, caracterizando-se por uma
extração em paralelo e sem a mobilização de recursos atentivos (ROSSINI & GALERA,
2008; RODRIGUES, JABLONSKI & ASSMAR, 2008). Em seguida, inicia-se o processo
atentivo, que emprega a mobilização serial do foco da atenção a fim de desempenhar uma
varredura mais lenta e específica do ambiente, exigindo, para isso, recursos cognitivos
superiores (ROSSINI & GALERA, 2008; RODRIGUES, JABLONSKI & ASSMAR, 2008).
3.1 Pré-atenção
O estudo da pré-atenção começou a ser desenvolvido devido à evidência de que
informações que estão disponíveis aos indivíduos, mas são ignoradas por eles, podem
de fato ser processadas, mesmo que de forma não consciente (SHAPIRO, HECKLER &
MACINNIS, 1997). Ou seja, o fato do individuo decidir não prestar atenção em determinada informação não significa que ela não seja processada por ele, mas sim que ela será
processada mesmo sem o conhecimento dele, de forma pré-atentiva. Mais importante,
surgem evidências de que o processamento pré-atentivo dos estímulos pode influenciar no julgamento e valoração dos individuos, podendo impactar ainda mais do que o
processamento consciente (BORNSTEIN & D´AGOSTINO, 1994; JANISZEWSKI, 1993;
YOO, 2008).
Nesse sentido, antes mesmo que a atenção seja ativada, o processamento de estímulos pelos indivíduos já ocorre, de forma pré-atentiva. Assim, previamente à tomada
de atenção, o processamento pré-atentivo realiza uma varredura geral de todos os
estímulos disponíveis, de forma rápida e automática (JANISZEWSKI, 1993). Na verdade,
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a pré-atenção não só antecede a tomada de atenção, como fornece a base de análise
para sua direção e seu foco de seleção (RODRIGUES, JABLONSKI & ASSMAR, 1992).
Isto é, o processo pré-atentivo é responsável por investigar todos os estímulos disponíveis no ambiente, identificando quais deles são relevantes para futuro detalhamento.
Munida desses resultados, a atenção pode ser ativada, direcionando e concentrando
seus esforços nos estímulos selecionados. Por isso Wolfe e Horowitz (2003) sugerem
que o processo pré-atentivo deveria, na verdade, ser denominado de processo pré-seletivo da atenção.
De acordo com Janiszewski (1993), o processo pré-atentivo se caracteriza por um
processamento em paralelo, isto é, a pré-atenção realiza uma análise geral e em conjunto
de todos os estímulos disponíveis aos órgãos sensoriais. Nessa fase de processamento,
não há uma preocupação em distinguir os estímulos relevantes dos irrelevantes, sendo
todos processados ao mesmo tempo (JANISZEWSKI, 1993). Além disso, o processamento
pré-atentivo ocorre de forma automática, não havendo nenhum esforço intencional dos
indivíduos nem possibilidade de controle por parte dos mesmos (WOLFE & HOROWITZ,
2003). Dessa forma, a pré-atenção se caracteriza por um processo de codificação mais
rápido, que demanda poucos recursos cognitivos (YOO, 2005).
Uma abordagem bastante recorrente na literatura voltada ao estudo dos processos
pré-atentivos se baseia na teoria da mera exposição, proposta inicialmente por Zajonc,
em 1968 (MANDLER, NAKAMURA & VAN ZANDT, 1987; JANISZEWSKI, 1993; LEE,
2001; YOO, 2008; FANG, SINGH & AHLUWALIA, 2007). De acordo com essa teoria, a
mera exposição de um indivíduo a um determinado estímulo, ou seja, a simples disponibilização desse estímulo em um ambiente para que possa ser futuramente percebido
(mesmo sem que ele seja atendido pelo foco da atenção), é capaz de causar efeitos,
sejam eles implícitos ou explícitos (ZAJONC, 1968). Nesse sentido, a teoria da mera
exposição afirma que, independente da forma de processamento ocorrida na recepção
desses estímulos, ou mesmo se eles chegarão a ser processados de forma ativa pelo
cérebro, os estímulos que se encontram disponíveis para acesso impactam e influenciam
o indivíduo receptor. De forma similar, alguns autores utilizam-se do termo exposição
incidental (SHAPIRO, 1999; ACAR, 2007) a fim de estudar os efeitos da mera exposição
a um determinado estímulo.
O processo pré-atentivo, ao varrer o ambiente visual como um todo, levantando tanto
os estímulos relevantes quanto os irrelevantes, grava e armazena um registro de todas as
informações analisadas, que pode ser utilizado para referência futura (JANISZEWSKI,
1993). Dessa forma, MANDLER, NAKAMURA & VAN ZANDT (1987) defendem que o
processo pré-atentivo interfere em qualquer julgamento posterior ao estímulo, influenciando a maneira como ele é percebido, valorado e interpretado, bem como a forma pela
qual seu registro será armazenado.
Há um consenso na literatura em relação aos efeitos de fluência da pré-atenção no
processamento subsequente (SHAPIRO, HECKLER & MACINNIS, 1997; STERNBERG,
2000; MONIN, 2002; YOO, 2008). De acordo com JANISZEWSKI (1993), ao realizar uma
varredura geral do ambiente, o processamento pré-atentivo registra uma representação
mental dos estímulos analisados, que funciona como uma certa preparação do cérebro
para processar estímulos futuros.
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Os efeitos de fluência (perceptual e conceptual fluency) em tarefas subsequentes à
prévia exposição se caracterizam pela facilitação do estabelecimento e da ativação do
estímulo na memória, incrementando também as chances de futuro processamento ou
resgate em uma situação posterior (MONIN, 2002). Isso significa dizer que, por ter sido
exposto ao estímulo de forma pré-atentiva antes, o cérebro armazenará um registro
desse estímulo (representação mental) e, na próxima vez que se deparar com ele, terá
maior facilidade em processá-lo.
Essa fluência tem como base o efeito priming, que denota o aumento da capacidade
ou da facilidade dos indivíduos em processar demais estímulos devido a uma prévia
exposição, ou mesmo desempenhar tarefas subsequentes com a utilização do estímulo visto previamente (STERNBERG, 2000). Um exemplo de priming utilizado pela
literatura é a facilitação encontrada nas tarefas de completar palavras (semelhante ao
jogo da forca): os indivíduos acabam utilizando-se de palavras às quais foram expostos anteriormente, mesmo sem ter consciência disso (SHAPIRO & KRISHNAN, 2001;
LEE & LABROO, 2004). Nesse sentido, os efeitos de fluência e priming não só atuam no
sentido de facilitar e agilizar os demais processamentos subsequentes, como também
aumentam a probabilidade e eficácia desses processamentos (YOO, 2008).
Complementarmente, Tversky & Kahneman (1974) empregam o termo Heurística da
Disponibilidade (availability heuristic) para denotar a facilidade com a qual o estímulo
pode ser trazido à mente. Os autores explicam que, quando deparados com tarefas
mais trabalhosas, que demandam maior nível de processamento, os indivíduos acabam
empregando um número limitado de princípios heurísticos a fim de simplificar esses
julgamentos. Esse princípios decorrem de aprendizados com base em experiências
pessoais passadas, geralmente resultantes de diversos processos de tentativa e erro.
Desse modo, a Heurística da Disponibilidade consiste na simplificação do processamento por meio da utilização de um atalho: confia-se no conhecimento que é
facilmente acessível ao invés de procurar e examinar demais alternativas (TVERSKY
& KAHNEMAN, 1974). Nessa linha de pensamento, Lee & Labroo (2004) afirmam que
os indivíduos geralmente baseiam a valoração de um estímulo não apenas nas informações que estão disponíveis sobre o mesmo, mas também – e principalmente – na
acessibilidade desse estímulo, ou seja, com base na facilidade com que associações ou
interpretações surgem à mente.
Como resultado desses efeitos de facilidade no processamento, o estímulo passa a ser
valorado como mais positivo, mesmo que isso ocorra de forma implícita, sem a intenção
ou consciência por parte do indivíduo (ZAJONC, 1968). Como consequência, o estímulo
passa a ser interpretado como mais atrativo ou agradável, condição pré-requisitada para
uma futura preferência (JANISZEWSKI, 1993).
Além disso, por ter sido previamente exposto ao estímulo anteriormente, o individuo, na próxima vez que se deparar com ele, acaba desenvolvendo sentimentos de
intimidade e proximidade, devido ao senso de familiaridade atribuído ao mesmo
(JANISZEWSKI, 1993). Essa familiaridade se torna ainda mais evidente já que, sem ter
consciência da prévia exposição, o indivíduo não consegue justificar essa sensação do
estímulo lhe parecer familiar (YOO, 2005).
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Esse senso de familiaridade, somado à preferência pelo estímulo, facilita a incorporação do estímulo no conjunto de consideração do indivíduo, aumentando as chances
dele ser acatado em um momento futuro de tomada de decisão (SHAPIRO, HECKLER
& MACINNIS, 1997; HOLDEN & VANHUELE, 1999). Assim, os autores propõem que,
ao ativar o estímulo na memória e facilitar seu acesso, aumenta-se a probabilidade de
que esse estímulo seja incluído no conjunto de consideração do indivíduo. Isso decorre
da tentativa de minimizar os esforços envolvidos na tomada de decisão: ao escolher um
estímulo que parece mais positivo, contribui-se tanto para agilizar o processo decisório
(diminuindo o tempo gasto) quanto para torná-lo mais eficaz (fazendo menor uso dos
recursos cognitivos) (MCDONALD & SHARP, 2003).
Campbell & Keller (2003) argumentam que, quando expostos a estímulos familiares,
os consumidores têm maior propensão em atualizar o prévio conhecimento armazenado no cérebro. Além disso, segundo os autores, nesses casos o risco percebido pelos
consumidores é menor, tornando maior a probabilidade de um processamento mais
favorável do estímulo, ou seja, esses estímulos familiares são processados com menor
disposição de resistência ou contra-argumentação por parte dos indivíduos receptores.
Enquanto a resistência trata da capacidade de um individuo de reagir e/ou se defender
de possíveis tentativas de persuasão, a contra-argumentação se refere ao engajamento
ativo dos indivíduos em produzir ou levantar argumentos que enfraqueçam ou rejeitem
essas tentativas (EAGLY & CHAIKEN, 1993).
A baixa disposição de resistência ou contra-argumentação por parte dos indivíduos
receptores também se evidencia pela forma de recepção e processamento pré-atentivo
dos estímulos. Isto é, como a pré-atenção ocorre de maneira inconsciente, automática e
incontrolável, o individuo fica incapacitado de ignorar ou mesmo se defender dos estímulos processados pré-atentivamente, estando à mercê dos efeitos desse processamento
(JANISZEWSKI, 1993; YOO, 2008).
3.2 Atenção e Atenção seletiva
A atenção é conceituada, de forma geral, como uma resposta conscientemente orientada a um determinado estímulo específico (YOO, 2008). A atenção consiste na tomada
de posse pela mente, de forma clara e vívida, de algumas das muitas informações
disponíveis no ambiente para futura recepção por parte do indivíduo (JAMES, 1890).
Também para De Weerd (2003), a atenção refere-se ao tipo de processamento pelo qual
uma quantidade limitada de informação frente a muitas presentes no ambiente é processada ativamente e conscientemente.
Dessas definições, infere-se automaticamente o caráter de seletividade da atenção,
conceituado como atenção seletiva: focar-se ativa e efetivamente em algumas informações implica em afastar-se dos demais estímulos (STERNBERG, 2000; DE WEERD, 2003).
Assim, frente à capacidade limitada dos recursos cognitivos, Sternberg (2000) discute
que o fenômeno da seletividade da atenção possibilita uma melhor utilização desses
recursos pelos indivíduos: ao diminuir a atenção sobre muitos dos estímulos – tanto
exteriores (sensações) como interiores (próprios pensamentos e memória) – o individuo
consegue focar nos estímulos considerados relevantes. Com esse foco dirigido, é maior
a probabilidade de que uma resposta rápida e precisa seja produzida para os estímulos
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considerados relevantes, aumentando também a probabilidade de que esses registros
sejam armazenados e futuramente acionados na memória (DE WEERD, 2003).
Recorrente na literatura é a utilização da metáfora do holofote para explicar o modo
como a atenção seletiva atua: a luz (atenção) pode ser focada ou dirigida totalmente
para uma área de interesse, deixando todo o resto do ambiente na sombra, não focados
(STERNBERG, 2000). Trata-se de realçar os estímulos considerados mais interessantes,
em detrimento dos demais estímulos disponíveis, que são ignorados ou processados
com menor ênfase (EYSENCK, 1995). Além disso, a metáfora auxilia na proporção de
atenção dirigida, isto é, quanto mais focado em determinados estímulos, particulares
e bem definidos, maior a força da luz (atenção); por outro lado, quanto mais amplo o
campo objeto de foco, mais difusa e fraca a iluminação (atenção) a ele dirigida (EYSENCK, 1995). Torna-se necessário pontuar que esses estímulos não focados, ainda que não
captem o alvo da atenção consciente, podem ser processados de forma pré-atentiva,
conforme discutido em tópico anterior.
4 REGISTRO DAS INFORMAÇÕES
Estudos realizados no âmbito da memória sugerem que o registro das informações
depende do tipo de tarefa realizada pelo indivíduo, diferenciando o armazenamento
de acordo com a complexidade do processamento empregado e da forma de resgate
requerido: explícito ou implícito (YOO, 2008).
A memória explícita se caracteriza por um resgate consciente de alguma lembrança
de um momento passado, quando o indivíduo intencionalmente inicia um processo
de recuperação de informações previamente armazenadas (SHAPIRO & KRISHNAN,
2001). Sendo assim, as métricas utilizadas para mensurar a memória explícita geralmente empregam métodos diretos, ou seja, são utilizadas medidas que fazem referência
direta a um evento passado, exigindo dos indivíduos uma intenção consciente para
demonstrar que conseguem se lembrar de determinada lembrança (YOO, 2005). No
contexto da recepção de estímulos, a memória explícita é geralmente investigada por
meio da capacidade dos indivíduos em evocar o estímulo anteriormente apresentado
ou reconhecê-lo frente a estímulos distratores (MILOSAVLJEVIC, 2007).
Por se tratar de um resgate consciente, a memória explícita é atribuída a processamentos mais detalhados, que demandam capacidade cognitiva superior, como
é o caso do processamento consciente, com foco de atenção dirigido (YOO, 2008). Já
em processamentos com menor capacidade cognitiva, como é o caso da pré-atenção,
espera-se que essa memória não seja evidente, já que o registro acontece de maneira
inconsciente.
A memória implícita diz respeito ao resgate automático de informações previamente
armazenadas, não demandando, para isso, a lembrança consciente da informação ou
o retorno explícito da experiência (SHAPIRO, 1999). A memória implícita é inferida
quando há um aprimoramento no desempenho do indivíduo em determinada tarefa
subsequente relacionada à prévia exposição e registro do estímulo, ou uma facilitação
para que isso ocorra (YOO, 2005). Outra inferência possível é a maior probabilidade de
posterior utilização de informações vistas anteriores, que podem resultar até mesmo
em mudanças nas preferências dos indivíduos (SHAPIRO & KRISHNAN, 2001).
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Como não há um esforço intencional nem consciente de resgate direto da lembrança,
nesses casos, são comumente utilizadas métricas sem referência direta à prévia exposição,
investigando possíveis efeitos de fluência ou priming ou analisando mudanças nas atitudes do indivíduo perante o estímulo-alvo (SHAPIRO, HECKLER & MACINNIS, 1997).
Nesse sentido, a literatura sugere que ocorra o efeito priming devivo à prévia exposição em ambos os níveis de processamento, tanto com a tomada de atenção consciente,
quanto com o processamento pré-atentivo.
Em relação à valoração do estímulo de forma geral (positivo, familiar e intenção
de compra), a literatura defende que o julgamento do indivíduo receptor seja melhor
quando não há consciência dos indivíduos acerca da prévia exposição (processamento pré-atentivo) do que quando eles têm conhecimento dela (processamento atentivo)
(BORNSTEIN & D´AGOSTINHO, 1994). Isso acontece porque no caso da pré-atenção,
por se tratar de um processo inconsciente, o indivíduo não consegue atribuir a facilidade sentida ao processar o estímulo à sua prévia exposição, falhando em justificar o
porquê de considerar o estímulo mais positivo ou familiar (ZAJONC, 1968; JANISWESI
1993; SHAPIRO, HECKLER & MACINNIS, 1997). Já no caso do processamento atentivo,
os indivíduos, tendo consciência do estímulo e de sua prévia exposição, engajam em
um processo de correção consciente da valoração positiva, interpretando e revisando a
fluência no processamento do estímulo.
Além do processo de correção consciente, o indivíduo receptor também se utiliza
de dois outros mecanismos para se defender da emissão que está recebendo: resistência
e contra-argumentação. A resistência trata da capacidade de um indivíduo de reagir e/
ou se defender de possíveis tentativas de persuasão, resistindo à ou rejeitando a informação que está recebendo (EAGLY & CHAIKEN, 1993). Já a contra-argumentação se
refere ao engajamento ativo dos indivíduos em produzir ou levantar argumentos que
enfraqueçam ou refutem essas tentativas (EAGLY & CHAIKEN, 1993). A baixa disposição
de resistência ou contra-argumentação por parte dos indivíduos receptores também se
evidencia pela forma de recepção e processamento pré-atentivo dos estímulos. Isto é,
como a pré-atenção ocorre de maneira inconsciente, automática e incontrolável, o indivíduo fica incapacitado de ignorar ou mesmo se defender dos estímulos processados
pré-atentivamente, estando à mercê dos efeitos desse processamento (JANISZEWSKI,
1993; YOO, 2008).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O registro das informações processadas pelo indivíduo depende da complexidade
do processamento empregado, variando de acordo com a capacidade cognitiva destinada
à tarefa. Diferentes tipos de processamento (de acordo com a atenção alocada) resultam
em formas díspares de registro das informações processadas. Mais especificamente, o
nível de atenção direcionado aos estímulos disponíveis no ambiente influencia não só
a forma como eles são percebidos e armazenados, mas também como são interpretados
e valorados pelos indivíduos (ANDREOLI, VELOSO & BATISTA, 2013).
Nesse sentido, o constructo da atenção deve ser trabalhado sob uma perspectiva
complexa, não discutindo apenas o processo exclusivamente consciente, da tomada de
atenção, mas abrangendo também o processamento pré-atentivo, suas características
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e seu papel na recepção de estímulos. Seguindo esse raciocínio, também a análise dos
efeitos decorrentes do nível de atenção dirigido deve ser ampla, não voltada apenas à
memória explícita dos indivíduos, mas considerando também a memória implícita e a
valoração dos estímulos.
A mera exposição a determinados estímulos é capaz de influenciar os indivíduos
receptores também em relação aos seus julgamentos afetivos, mesmo que não haja a
consciência deles acerca desse processo . Dessa forma, a importância da pré-atenção não
se restringe à sua influência no posterior processo de tomada de atenção e direcionamento do foco aos estímulos considerados relevantes . Mais do que isso, a pré-atenção,
ao varrer todo o campo visual disponível em uma prévia exposição, é capaz de criar um
viés de julgamentos subjetivos acerca dos estímulos, proporcionando registros equivocados e falsas inferências, como maior atratividade ou familiaridade, que influenciam
na valoração atribuída ao estímulo. Comprovações desses efeitos da pré-atenção foram
anteriormente detectados em artigos da área, nos quais os participantes dos estudos
passaram a considerar o estímulo ao qual foram previamente expostos em: estímulo
mais atrativo (MORELAND & ZAJONC, 1976), mais agradável (LEE, 2001) ou mais
familiar (YOO, 2005).
Alguns autores defendem, ainda, que o processamento pré-atentivo consegue impactar mais os indivíduos receptores do que quando o processamento ocorre com maiores
níveis de atenção. Isso acontece porque, no primeiro caso, os indivíduos não têm consciência da prévia exposição e, por isso, não conseguem interpretar a valoração positiva
atribuída ao estímulo. Nos casos de maior nível de processamento, entretanto, com a
consciência da prévia exposição, a valoração positiva atribuída ao estímulo pode passar
por um processo de correção, no qual a facilidade/fluência experienciada pelos indivíduos no processamento é revisada e interpretada (BORNSTEIN & D´AGOSTINO, 1994).
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4518
Telas em toda parte:
reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria
de
A r ruda1
Resumo: O presente trabalho reflete os principais resultados de uma investigação sobre o processo de consumo/recepção da telenovela brasileira exibida
por uma nova categoria de mídia digital móvel – a out of home – no transporte
público da cidade de São Paulo. Por meio da observação etnográfica e da coleta
de dados primários, procurou-se conhecer como se dá a relação entre essa mídia
digital móvel e suas audiências; salientando que essa nova forma de produção
da telenovela (de fato, pós-produção) é exibida de forma condensada, sem áudio
e com legenda. Os resultados demonstram que, nesse novo lugar de recepção da
telenovela, a mesma é deliberadamente utilizada como “recurso comunicativo”,
pois inúmeros passageiros do transporte coletivo compartilham e interagem
sobre variados temas que fazem parte do contexto social e que estão inseridos
nas novelas, a partir do momento em que são exibidas no ambiente de dentro
acionando assim dispositivos de comunicação e de reflexão. Enquanto isso, a
modalidade de recepção silenciosa nos chamou atenção pelo fato de ser o ônibus
um espaço público que, embora fechado, também um é ambiente de rotatividade, com ruídos e confrontos, mas muitos passageiros recepcionam a narrativa
transmídia como se estivessem em um ambiente exclusivo, único.
Palavras-chave: Consumo/recepção; narrativa transmídia; telenovela brasileira;
novos lugares/espaços de comunicação
Abstract: This work reflects the main results of an investigation into the process
of consumption / reception of the Brazilian soap opera displayed by a new
category of mobile digital media - the out of home - on public transportation
in the city of São Paulo. Through ethnographic observation and primary data
collection, we tried to know how is the relationship between this mobile digital
media and its audience; stressing that this new form of production of soap operas (in fact, post-production) is displayed in a condensed form, without audio
but with subtitles. The results show that, in this new place of reception of soap
operas, they are deliberately used as a “communicative resource”, since many
public transportation passengers share and interact on various topics that are
part of the social context and that are inserted in the soap operas, from the
moment they appear on the inside environment, activating communication and
reflection devices. Meanwhile, the silent reception mode caught our attention
because the bus is a public space which, in spite of being closed, is also a turnover
environment with noise and discussion, but many passengers receive transmedia
narrative as if they were in an exclusive, unique environment.
Keywords: Consumption / reception; transmedia narrative; Brazilian soap opera;
new places / spaces of communication
1. Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), Graduada em
Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Casper Libero (SP) e em Relações Públicas pela Escola
Superior de Relações Públicas (PE), Professora na FMU – FIAM /FAAM. E-mail: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
É
CADA VEZ mais comum o aparecimento de novos tipos de mídia eletrônica, tor-
nando mais complexo o ecossistema midiático. E, simultaneamente, a circulação
de conteúdos por meio de diferentes plataformas está permitindo o surgimento
de novas comunidades de receptores/consumidores. Priorizando este novo olhar para
os vínculos entre comunicação, cultura e sociedade, este artigo apresenta os principais
resultados de uma investigação sobre o processo de consumo/recepção da telenovela
brasileira exibida por uma nova categoria de mídia digital móvel – a out of home2 – no
transporte público da cidade de São Paulo.
O fio condutor das investigações que propomos neste trabalho está nas proposições
teóricas de Martín-Barbero (1997, 1998, 2004); Lopes (1996, 2001, 2009) conectadas com
outros autores, nos estudos da recepção. Além disso, nas propostas teóricas de Canclini
(1983, 1990), Ferin (2002), Caiafa (2007) e Magnani (2002, 2009), entre outros, no que
concerne aos estudos da cultura popular, hibridização, identidade e consumo culturais,
comunicação e cultura do cotidiano, e pesquisa etnográfica. A proposta é, então, detectar
e refletir sobre o complexo vínculo entre telenovela e “telas em toda parte”, com os
múltiplos níveis das audiências/usuários a partir das diversas interações que ocorrem
com as telas midiáticas.
A escolha do objeto desta pesquisa – a recepção/consumo da telenovela dentro
de ônibus deu-se pelo fato de ser a primeira experiência desse novo lugar de recepção
no país. Em concordância com Martín-Barbero (2004, p.18), que afirma que “se já não
se escreve, nem se lê como antes, é porque tampouco se pode ver, nem expressar como
antes”, buscamos conhecer e compreender como a recepção da narrativa transmídia
ficcional acontece nesse novo espaço/tempo e qual tipo de influência exerce no dia a dia
das pessoas. Segundo Jenkins (2009), “a convergência representa uma transformação
cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e
fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos”.
Nossa justificativa pela escolha do estudo da recepção da ficção televisiva, em especial a telenovela como narrativa transmídia dentro do transporte coletivo, deu-se pelo
fato de ser o gênero e o formato de um produto cultural de grande relevância para
o País, com a maior audiência dentro da grade de programação da televisão. Outra
justificativa que lançamos mão foi a de que, nesse novo espaço/lugar da mídia digital
móvel (a plataforma ônibus) seria possível conhecer como a telenovela brasileira com
narrativa transmídia é recepcionada e como acontecem as interações comunicativas e
de sociabilidade no ambiente quando a telenovela torna-se um recurso de comunicação.
O objetivo geral do trabalho foi detectar os caminhos que a narrativa da teledramaturgia brasileira passa a percorrer no cotidiano do brasileiro, marcado pela ubiquidade
dos meios e a presença cada vez mais constante das mídias digitais em convergência.
O objetivo de natureza empírica deu-se por meio da observação etnográfica e da coleta
de dados primários, buscando descobrir como se dá a relação entre essa mídia digital
móvel e suas audiências; como se processa a recepção da telenovela nesse novo espaço e
se ela apresenta algo de diferente. O objetivo teórico consistiu em relacionar as práticas
de comunicação de consumo/recepção da teledramaturgia brasileira diante das novas
2. Fora de casa: monitores de vídeo instalados em lugares fechados e de intensa circulação de pessoas.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
mídias digitais com novas vertentes dos estudos de Comunicação. Principalmente, investigar de que forma essas práticas podem ser entendidas como decorrentes da atuação
da telenovela como recurso comunicativo.
O enfrentamento do desafio em busca das respostas nos conduziu à estratégia metodológica do modelo apresentado por Lopes (1997) em todas as suas fases: 1. A definição
do objeto (o problema da pesquisa, o quadro teórico de referência e as hipóteses); 2. A
observação (a amostragem como o universo de investigação, e as técnicas de observação/
investigação, como observação etnográfica, entrevistas, histórias de vida, etc.); 3. A descrição dos dados observados e a construção do “objeto empírico”; e 4. A interpretação
dos dados obtidos. Isto porque, numa nova perspectiva da pesquisa de recepção, faz-se
necessário combinar várias modalidades de técnicas de pesquisa, além de procedimentos
de análise de discurso da narrativa.
Para atender às necessidades que um estudo de recepção/consumo exigiu, o trabalho
foi norteado por uma metodologia multidisciplinar para análise das diversas dimensões da recepção de telenovela, com narrativa transmídia, realizando-se uma pesquisa
empírica (Lopes, 1997-2009). Temáticas como condições de produção, gêneros ficcionais,
cotidiano e tecnologias de comunicação estão presentes para assegurar a perspectiva
da recepção. No que diz respeito à comunicação dentro de ônibus, levamos para nossas
observações etnográficas conceituações de Caiafa (2007, p.89), que define esse como “um
espaço muito singular de comunicação. São desconhecidos, completamente uns aos
outros, que se deslocam – às vezes por um longo período – juntos, lado a lado. Podem
também estar em situação de proximidade excessiva, nos veículos lotados”.
Para compreender essa dinâmica cognitiva, lançamos mão, como etapa exploratória
da pesquisa, da observação etnográfica, já que uma das primeiras questões que buscamos responder é se, a partir da narrativa ficcional transmídia, haveria algum grau ou
tipo de proximidade ou comunicação entre as pessoas que fazem uso do ônibus. De
acordo com Caiafa, “o desconhecido é uma variedade muda, num espaço demarcado
de identidades bem definidas” (2007, p. 89).
Na segunda etapa da pesquisa de campo, incluímos o “olhar etnográfico: De perto
e de dentro” de Magnani (2002), com a proposta de “identificar, descrever e refletir sobre
aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques que, para efeito de contraste”, são
por ele qualificados como “de fora e de longe”. Com essa perspectiva vivenciamos por
vários dias o cotidiano de pessoas que fazem uso diário de um ou mais de um transporte
coletivo. Iniciamos conversações, compartilhamos espaços, ouvimos suas opiniões sobre
vários aspectos, em particular, a recepção da novela exibida no ônibus.
Na opinião de Jenkins (2009, p.29) “no mundo da convergência das mídias, toda
história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por
múltiplas plataformas de mídia”. O autor ainda acrescenta que “a circulação de conteúdos
– por meio de diferentes sistemas de mídia, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras – dependem fortemente da participação ativa dos consumidores”.
A passagem de conteúdo de um meio de comunicação convencional para outras
plataformas, tendo como suporte a mídia digital móvel – como acontece hoje no transporte coletivo de São Paulo e de outras cidades do País – pode ser considerada um
fato recente. Isto porque surgiu como resultado de uma busca para solucionar as
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
dificuldades enfrentadas pelo tradicional segmento publicitário de outdoor no maior
mercado consumidor do País, a cidade de São Paulo3, quando entrou em vigor a Lei
Cidade Limpa4, há mais de oito anos. A procura por alternativas criativas para diversificar os negócios e alcançar o consumidor em locais internos de grande concentração
foi inevitável. Experimentos em diversos formatos, como painéis, totens, quiosques e
telas de LCD, provocaram a intensificação de intercâmbio que hoje também abarca o
transporte público.
Dentro desse ecossistema midiático (SCOLARI, 2009; MARTÍN-BARBERO, 1997),
desde o ano de 2007, uma nova categoria de mídia eletrônica é incorporada no cotidiano
de quem usa transporte público de São Paulo, mais especificamente, o ônibus. Trata-se
da Mídia Digital Móvel constituída por dois monitores digitais de LCD com 22, 24 ou
26 polegadas, instalados estrategicamente no interior de 400 ônibus de linha5, que não
possuem áudio e sim legenda nos programas exibidos – um mix de informação, cultura,
esporte e lazer. A TV Bus Mídia/Via TV Mídia6 – exibe com exclusividade parte da programação da TV Globo, composta por resumos dos capítulos das novelas da emissora,
matérias do Fantástico e do Jornal Nacional, dentre outros programas.
“TELENOVELAS COMO RECURSO COMUNICATIVO”
E SUA TRANSMIDIAÇÃO
Reconhecida como produto cultural hibrido, por herdar do folhetim, do romance
literário, do cinema, das radionovelas etc, até chegar às mídias eletrônicas de tecnologias
avançadas, a telenovela brasileira conduz no seu contexto interseções (visíveis ou não)
por acompanhar a dinâmica da sociedade que hoje tem o poder de programar o quê e
quando ver. O fato das telenovelas, na sua grande maioria, abordarem temas presentes
no cotidiano social brasileiro faz delas um eixo-condutor de comunicação de extrema
relevância para o dia a dia de uma grande parcela da população. Lopes (2009) conceitua
que a telenovela brasileira é um “recurso comunicativo” e explica que,
Abordar a telenovela como recurso comunicativo é identificá-la como narrativa na qual se
conjugam ações pedagógicas tanto implícitas quanto deliberadas que passam a institucionalizar-se em políticas de comunicação e cultura do país. Em outros termos, é reconhecer a
telenovela como componente de políticas de comunicação/cultura que perseguem o desenvolvimento da cidadania e dos direitos humanos da sociedade (LOPES, 2009, p.32).
3. Daqui para frente: São Paulo.
4. A Lei Cidade Limpa está em vigor desde o dia primeiro de janeiro de 2007. Os responsáveis por anúncios
fora das regras seriam multados em 10 mil reais, mais mil reais por metro quadrado excedente. A prefeitura
da cidade de São Paulo, regulamentou, através de um decreto publicado no Diário Oficial da Cidade em
6 de dezembro de 2006, a lei que criou o projeto Cidade Limpa. A nova legislação (lei nº 14.223), que tem
como objetivo eliminar a poluição visual proíbe todo tipo de publicidade externa, como outdoors, painéis em
fachadas de prédios, backlignts e frontlights. (...). O decreto nº 47.950/06, que regulamenta a lei esclarece alguns
desses procedimentos e as características que os anúncios devem atender. O texto detalha especialmente
como deveriam ser os anúncios indicativos, que tiveram até 31 de março de 2007 para se adaptar às novas
exigências.
5. Um ônibus de linha tem capacidade para transportar uma média de 1.020 passageiros por dia. – Fonte
Via TV Mídia.
6. A empresa que nasceu levando programas de TV para monitores instalados em ônibus, estendeu seus
serviços para trens, estações e terminais e passará a se chamar Via TV Mídia. Fonte: Jornal Folha de S.
Paulo - Caderno Ilustrada, de 03.10.2011.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
Enfatizando a telenovela como produto cultural de relevância para a nossa sociedade
e refletindo sobre o alcance, apropriação e ressignificação desse objeto, Lopes discorre
sobre várias leituras que faz da telenovela como “recurso comunicativo”; entre elas,
está a de que “a telenovela passou a incorporar uma “ação pedagógica explicita”, que se
apresenta de alguma forma deliberada e cujo discurso traz explicações, conceituações
(...), forma opinião a cerca dos temas sociais abordados (LOPES, 2009, p.33).
Canclini (1983, p.12) afirma que “a redefinição do que é hoje a cultura popular requer
uma estratégia de investigação que seja capaz de abranger tanto a produção quanto
a circulação e o consumo”. No nosso entender a telenovela como produto da cultura
popular, não só está inserida no cotidiano da sociedade como também representa uma
identidade de cultura nacional e, hoje, promove e estabelece um melhor entendimento
da condição sociocultural do País, a partir do momento em que contextualiza na sua
narrativa temas que expressa uma realidade. “O enfoque mais fecundo é aquele que
entende a cultura como um instrumento voltado para a compreensão, reprodução e
transformação do sistema social, através do qual é elaborada e construída a hegemonia
de cada classe” (CANCLINI, 1983, p.12 ).
Em nossa pesquisa de campo, por diversas vezes, detectamos a telenovela como
“recurso comunicativo” gerador de muitos debates e interações sobre enredos que podem
ou não ser vistos como uma realidade do contexto social do país, ou apenas como uma
realidade social imaginada. O que não se pode negar é que a telenovela enquanto produto
televisivo, há muito deixou de ser apenas um produto destinado ao entretenimento e
ao lazer, ou mesmo um produto dirigido para os menos letrados. Assim também como
o meio televisivo já não é mais visto como veículo manipulador.
Entre o que foi detectado em nosso trabalho de campo, está o fato de que as conversas
sobre as telenovelas, muitas vezes, começavam antes mesmo das pessoas entrarem no
ônibus, começavam na fila que aguardava a chegada do transporte para os passageiros se
locomoverem aos seus destinos. Quase sempre, algumas dessas conversas continuavam
dentro do ônibus e o número de pessoas envolvidas, também aumentava.
Por outro lado, constatamos também que as conversações dependiam muito das
histórias que se desenrolavam nas telenovelas, principalmente do que os enredos traziam de possíveis realidades ou de realidades imaginadas por cada indivíduo. Outra
constatação foi a de que a ritualização cotidiana de assistir e de falar sobre telenovela, há
muito, ultrapassou o espaço privado, como sempre foi considerado o lar e, hoje, marca
presença em novos lugares e espaços onde existem telas exibindo ficções televisivas.
Outro achado interessante em nosso trabalho de campo foi que, além de diminuir a tensão existente no espaço público, no ambiente dentro do ônibus – onde o
desconforto com a superlotação, o encontro com estranhos, a insegurança/medo e o
transtorno provocado pelos congestionamentos, quase sempre predomina o espaço –,
o fato das telenovelas serem exibidas nesta plataforma, mesmo sendo apenas resumos
que correspondem a 10% do que é apresentado diariamente na televisão, levam muitos
dos passageiros a fazer uso do “recurso comunicativo” da teledramaturgia para iniciar
conversações neste ambiente. E mais: as interpretações das narrativas constituídas neste
local, em defesa de heróis e/ou na condenação de vilões das histórias, são muito variadas, levando alguns participantes das conversas a rever posições do que consideram
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
ser realidade e/ou ficção, durante acaloradas discussões que aí transcorrem, enquanto
o transporte cumpre seu trajeto.
Ancorando nosso entendimento no poder que a oralidade exerce neste espaço
público quando se trata das narrativas das novelas e das interpretações que cada indivíduo faz das mesmas, retomamos o que diz Lopes (2003, p. 30) quando afirma que,
“os telespectadores se sentem participantes das novelas e mobilizam informações que
circulam em torno deles no seu cotidiano”. Também concordamos com Martín-Barbero,
quando diz que:
Desenvolvendo a oralidade secundária (...) e nela se apoiando, a telenovela ou o seriado
televisivo misturam a longa duração do relato primordial – caracterizado pela ritualização
da ação e pela topologia da experiência, que impõem uma forte codificação das formas e
uma separação cortante entre heróis e vilões, obrigando o leitor a tomar partido – com a
gramática da fragmentação do discurso audiovisual predominante na televisão. (MARTIN-BARBERO, 2004, p.149).
Constatamos que a própria cidade, tal como é vivida nesse momento, vê-se transformada nos ritmos e nas ocupações dos seus espaços (AGIER, 2011, p. 99). Notamos
também que por meio da recepção da telenovela que acontece neste espaço, cria-se um
novo ambiente que, embora de grande rotatividade, permite a interação e o compartilhamento de realidades imaginadas, como um território simbólico propício à exploração
de novas experiências sociais, uma espécie de novo lugar, que multiplica a capacidade
de circulação de informações e altera a noção de espaço e tempo.
Em nossa observação, o diferencial para um maior número de conversações, sem
dúvida, está no fato de existir a mídia digital móvel dentro do ônibus exibindo resumos
de uma parte da programação da TV Globo, principalmente do produto cultural mais
popular da nação, a telenovela. Verdadeiros fóruns são criados aí durante as viagens,
principalmente nas mais longas. Outro fato interessante que chamou nossa atenção
foi quando detectamos que, a partir do momento em que esse produto começava a ser
exibido, o número de conversações sobre o assunto aumentava, ativando inclusive o
exercício da memória coletiva sobre temáticas de telenovelas exibidas no passado, muito
antes da introdução da mídia digital móvel na plataforma ônibus.
Ou seja, além da existência de conversações sobre os mais variados assuntos, incluindo aí problemas de congestionamento no trânsito, a deficiência no transporte coletivo
com superlotação e sobre fatos que, de alguma forma, afetam o cotidiano, detectamos
que a visibilidade das novelas nesse lugar/espaço, através da mídia digital móvel no
ambiente, serve também como gatilho do “recurso comunicativo” (LOPES, 2009, p. 31).
Este conceito mostra o porquê de a telenovela brasileira provocar tanta mobilização no
cotidiano da sociedade, criando assim uma “verdadeira rede de comunicação, através
da qual se dá a circulação de seus sentidos e gera a chamada ‘semiose social’”. Por
outro lado constatamos também que uma grande parcela de pessoas viaja em silêncio,
principalmente no período da noite. Talvez a demora na chegada do transporte que vai
conduzi-las para casa ou para novo destino, o congestionamento de veículos e o aglomerado de pessoas nas paradas de ônibus, etc., sejam algumas situações que levem as
pessoas a se isolarem no silêncio. Para Caiafa, “as conversações num veículo coletivo
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
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acontecem contra o silêncio que tende a imperar entre estranhos. Trata-se de desconhecidos que não vão se falar o tempo todo”. Ela avalia “o silêncio nos ônibus como uma
proteção contra a grande intensidade da conversação que ocorre nas grandes cidades”.
Uma das experiências interessantes que vivenciamos dentro do ambiente do ônibus foi a da observação silenciosa. Observar o “Outro”, ser esse “Outro” para outros, o
estranho, o desconhecido com que se cruza nos espaços públicos, ser essa diversidade ou
estar inserida nesta diversidade, foi um atrativo estimulante para nossa investigação. Por
outro lado observamos que o fato de existir no ambiente dentro do ônibus a mídia digital
móvel exibindo na sua grade de programação o conteúdo de quatro telenovelas, tornou
possível detectar muitas vezes passageiros iniciando conversações, a partir do momento
em que as mesmas eram exibidas. Isso nos levou a constatar que esse não é só um novo
lugar de recepção da telenovela, é também um espaço de interação, de compartilhamento
e de sociabilidade, que tem como fio condutor o discurso da narrativa transmídia, que
aqui nos atrevemos a qualificar também como um “dispositivo conversacional” – noção
alinhada principalmente ao conceito de “recurso comunicativo” de Lopes (2009).
A recepção/consumo da telenovela nesse ambiente nos permitiu conhecer como
ela está profundamente incrustada no dia a dia das pessoas; como essas pessoas interpretam essa narrativa a ponto de alterar sua audiência, quando o enredo não se afina
com seus imaginários. Sintetizando, mesmo com a ocupação do espaço em movimento,
envolvendo também um confronto com o desconhecido e distribuindo de alguma forma
a população que faz uso desse tipo de transporte, nossa observação etnográfica mostra
que aí existe um novo lugar de interação e de recepção desse produto da cultura popular
e que o mesmo também aguça a memória individual e coletiva.
Quando contextualizamos a plataforma ônibus como um novo lugar de recepção da
telenovela, nos deparamos com algumas conceituações que definem o que é considerado
“lugar e o “não lugar”. Para Martín-Barbero (1998, p. 63), “ao crescimento da insegurança, a cidade virtual responde expandindo o anonimato que possibilita o não lugar: esse
espaço no qual os indivíduos são liberados de toda carga de identidade interpeladora
e exigidos unicamente na sua interação com informações ou textos”.
Augé (1994, p.74) afirma que “o lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias:
o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente –
palimpsestos em que se reinscreve sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da
relação”. Em síntese, no nosso entender, a representação dos atores sociais que utilizam
o transporte coletivo como forma de se locomoverem, parece indicar, em potencial, a
existência de uma nova configuração dos processos de recepção que sugere o “não-lugar”
ocupado pelos mesmos e/ou um novo lugar.
Como esclarece Thompson (2008, p.16) “nesse novo mundo de uma visibilidade
mediada, o fato de tornar visíveis as ações e os acontecimentos não é meramente uma
falha nos sistemas de comunicação e informação, cada vez mais dificeis de serem controlados”. O sujeito receptor/consumidor está em todos os lugares e também “novos/
outros” cenários interpretativos, dentro dos quais “uma estratégia explícita por parte
daqueles que bem sabem ser a visibilidade mediada uma arma possível no enfrentamento das lutas diárias” pode vir a ser construída por todos nesse novo mundo de
visibilidade (p.16).
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
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Para Ferin (2002), “o estudo dos usos e as formas como as pessoas singulares e
as coletividades assimilam as ofertas ao seu alcance deslocam a investigação dos media
(gestão, produção e organização) para os receptores que produzem o seu sentido”. O
número de investigações e de estudos voltados para compreensão da recepção com
um olhar qualitativo vem mostrando que o receptor não deve ser concebido como um
mero decodificador.
Grande número de investigações tem abordado a recepção numa óptica qualitativa, perspectivando uma redefinição da cultura através da compreensão da sua natureza comunicativa e
acentuando seu caráter produtor de significações, no qual o espectador não é mero decodificador, mas adquire, também, o estatuto de produtor (FERIN, 2002, p.147).
Na definição de Martín-Barbero (2004, p. 240), a recepção é o espaço relacional “dos
conflitos que articulam a cultura, das mestiçagens que tecem, das anacronias que a
sustentam e, por último, do modo em que trabalha a hegemonia e as resistências que
mobiliza”. No que se refere a mediação no processo de recepção de telenovela, Lopes (1996,
p.5) afirma que ela “deve ser entendida como um processo estruturante, que configura e
reconfigura tanto a interação dos membros da audiência com os meios como a criação
por parte deles do sentido dessa interação”.
Mauro Porto propõe que a pesquisa sobre a recepção e os efeitos da mídia tenha um
enfoque integrado e, no estudo sobre a mídia e suas audiências acrescenta que “em lugar
de tratar as duas perspectivas como posições antagônicas “é importante” identificar suas
contribuições e consolidá-las em um projeto de pesquisa comum” (PORTO, 2003, p. 14).
Partindo da hegemonia que a mídia televisiva tem na formação da cultura nacional
e dentro das indústrias culturais do país, a investigação traçou dois objetivos paralelos:
o primeiro foi observar de que forma estão sendo criadas novas relações das audiências
com as mídias digitais móveis, através de uma pesquisa de recepção da telenovela em
ônibus; o segundo foi detectar se a narrativa da teledramaturgia pode potencializar a
sua condição de produto cultural mais importante da televisão brasileira, migrando
para novas plataformas de circulação, ao se tornar uma narrativa transmídia.
Assim, consideramos útil o entendimento de Motter (2003) quando enfatiza que
“ignorar uma produção cultural capaz de controlar, dentro do seu horário, as emoções
de milhões de brasileiros e de produzir a ressonância de que é capaz a telenovela, seria
fechar os olhos à própria realidade cultural do país em que esse fenômeno se verifica”.
Partindo dessa consideração a autora acrescenta:
A telenovela ocupa um espaço tão ou mais importante que os telejornais na programação
diária das emissoras, pois se os relatos sobre o mundo satisfazem a necessidade de orientação do telespectador para sua vida prática, o capítulo diário da ficção seriada satisfaz a sua
curiosidade com relação ao desdobramento da narrativa que se tece diariamente durante
meses num processo de produção/diluição da ansiedade. Se o início do capítulo acalma a
ansiedade produzida no dia anterior, o final irá recuperá-la para satisfazê-la no dia seguinte
como estratégia para integrar-se às rotinas, garantir a audiência e impor-se como hábito
(MOTTER, 2003, p.22).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
ENCONTRANDO NO CAMPO: ALGUNS “ACHADOS”
Iniciamos a análise sobre resultados da pesquisa tomando junto a Martín-Barbero
(2004, p.47) um fato cultural incontornável que as maiorias da América Latina estão
se incorporando à, e se apropriando da, modernidade sem deixar sua cultura oral, (...)
a partir dos gêneros e das narrativas, das linguagens e dos saberes, da indústria e da
experiência audiovisual”. Estamos, pois, diante do fenômeno da envergadura antropológica conseguida pelos meios de comunicação e suas influências no cotidiano da
sociedade contemporânea.
Observamos que o movimento rotineiro de casa para o trabalho ou para qualquer
outro lugar, assim como o movimento inverso, mostra que a casa e a rua interagem e
completam num ciclo que é cumprido diariamente por homens e mulheres, velhos e
crianças. Não importa se o percurso é feito a pé ou por meio de algum transporte, o
que importa é que “todos fazem e refazem essa viagem que constitui, de certo modo, o
esqueleto da nossa rotina diária” (DAMATTA, 1986, p.15).
Caiafa dialoga com DaMatta ao afirmar que “em contraste com o meio familiar e
do pequeno povoado, nas ruas da cidade produz-se um fluxo imprevisível de gente de
diferentes procedências, estranhos que passam por nós em grande variedade” (CAIAFA,
p 2007, p.117). Essa grande variedade é diferente nas inúmeras configurações urbanas,
mas a experiência com o inesperado, que a exposição à descontinuidade nos impõe
continua como marca da cidade.
Estar junto, vivenciar de alguma forma o cotidiano de terminados grupos de atores
sociais de uma cidade grandiosa e cheia de contrastes como é São Paulo, foi sem dúvida
uma experiência gratificante. No mesmo instante que observamos, também fomos observados. No mesmo momento que olhamos para o desconhecido como sendo o “Outro”,
também fomos o “Outro” desse desconhecido. Compartilhamos espaço e conversações
descontraídas, também compartilhamos o sentimento de medo e insegurança que a
cidade nos proporciona. Foi um “experimentar outros mundos”, como escreve Caiafa
(2007, p.117), ao definir eloquentemente o trabalho etnográfico no ambiente dentro de
um transporte coletivo.
Outra constatação nossa é a de que a recepção acontece de forma heterogênea, onde
se fazem presentes diversas práticas de assistir ao folhetim, que vão desde recepcionar
o conteúdo em silêncio até recepcionar e em seguida iniciar conversações sobre o enredo e/ou os personagens, ou recepcionar com aquela olhada passageira e de imediato
iniciar conversações. Por outro lado, não temos dúvida de que telenovela brasileira é
um produto cultural que está inserido no cotidiano da nossa sociedade, que os enredos
e histórias que muitas vezes misturam ficção com realidade levam essa mesma sociedade a repensar de alguma maneira seus valores e costumes. Quando nos referimos à
telenovela como produto da cultura nacional, consideramos serem as culturas nacionais
ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar,
constroem identidades (...).
Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.
Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma “comunidade
imaginada” (HALL, 2002, p.51).
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
Por outro lado, observamos que essa modalidade de lazer e entretenimento possibilitada pela plataforma é praticada em variadas formas. Foi possível distinguir diversas
modalidades de recepção: a silenciosa, a recepção com interação e compartilhamento e
a recepção que lança mão do “recurso comunicativo” (LOPES, 2009).
• Consideramos recepção silenciosa aquela onde o passageiro permanece alheio às
conversações, interações e aos compartilhamentos que acontecem no ambiente dentro do
ônibus – e não são poucos os ruídos nesse ambiente –, recepcionando a narrativa transmídia como se estivesse em um ambiente exclusivo, único. A modalidade de recepção
silenciosa nos chamou atenção pelo fato de ser o ônibus um espaço público que, embora
fechado, é também um ambiente de grande rotatividade, com ruídos e confrontos.
• A recepção com interação e compartilhamento é muito frequente e se aproxima da
recepção que lança mão do “recurso comunicativo”. A diferença está no fato de que ela
geralmente acontece quando o conteúdo que está sendo exibido no momento passa a
ser do interesse de determinados passageiros, iniciando-se assim, várias conversações
e compartilhamentos sobre o assunto, que pode ser o conteúdo de uma novela, de uma
matéria jornalística ou de qualquer outro programa.
• Já a recepção que lança mão do “recurso comunicativo”, conforme observamos, é uma
exclusividade da recepção dos conteúdos da telenovela. Este dispositivo para a comunicação é muito ativo e o mais frequente no ambiente dentro do ônibus, quando observamos e constatamos ser a telenovela o conteúdo preferido exibido na plataforma. E
este recurso de comunicação não é só ativado durante a exibição da telenovela como
narrativa transmídia, ele se faz presente dentro e fora do ônibus, conforme verificamos
nos pontos de paradas e terminais. Não temos dúvida de que a proximidade da telenovela brasileira com a realidade do cotidiano da nação traz uma função pedagógica que
transcende para o contexto social como cultura, isto é, como narrativa da nação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além da comprovação de que plataforma ônibus constitui sim, um novo lugar de
recepção da telenovela e que essa diferença de cenário – assistir o folhetim fora de casa –
se constitui, por sua vez, em um espaço público de grande rotatividade, com embarques
e desembarques de passageiros, em que a programação diária de narrativas transmídia
se repete por quase 24 horas. Indicadores das práticas dos atores sociais que fazem uso
do ônibus, conforme apresentamos em nossa pesquisa de campo dão conta de que a
telenovela com narrativa transmídia, exibida nesse novo lugar, é um dos principais
“recursos comunicativos” que induz a conversações, interações, compartilhamentos
de sentido e sociabilidade.
A dinâmica das regras que presidem o uso do tempo/espaço desses agentes vai além
da mera necessidade de se locomoverem e é feita também de exercícios de sociabilidade,
conversações, entretenimento e encontros, engajados que estão na programação exibida
nos monitores do ambiente dentro do ônibus. Consideramos de grande relevância esse
novo espaço de recepção, um espaço de platéia complexa, porém ainda encantada com
uma narrativa que distrai e neutraliza as dificuldades da realidade vivida pela maioria
dessas pessoas. Também é fato que as tecnologias estão promovendo cada vez mais
diferentes modos de ver qualquer programa de TV, dentro ou fora de casa. Isso significa
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
Neide Maria de Arruda
também dizer que os enredos de novela deixaram de ser assunto restrito ao espaço do
“lar”, dado que hoje as telas estão em todos lugares.
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4529
Telas em toda parte: reflexões sobre a recepção da telenovela brasileira
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4530
A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a
apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
A nova Geração Brasil: the aesthetics of reception and
imaginative appropriation in a soap opera fanfiction
Maria Clara Bezerra
Afra
de
de
A r a ú jo 1
Medeiros Soa r es 2
K e n i a B e a t r i z F e r r e i r a M a i a3
Resumo: Escrita por Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, Geração Brasil foi uma
produção da Rede Globo de Televisão veiculada de 5 de maio a 31 de outubro de
2014, na faixa das 19h. A novela abordou o uso de novas tecnologias, propondo
ao público uma maior participação através de recursos da convergência midiática
e da transmídia (JENKINS, 2009). O presente trabalho analisa qualitativamente
a fanfiction A Nova Geração Brasil, disponibilizada no portal Nyah Fanfiction.
A partir das ideias de Lopes (2009) sobre novela como “recurso comunicativo”,
investigamos como se dá a apropriação e a participação da telespectadora autora,
utilizando como metodologia a análise comparada entre as duas ficções e se
baseando nos trabalhos de Iser (1979; 1983) e Jauss (1979) sobre estética da recepção.
Percebemos que houve uma modificação da narrativa original, constituindo
um caso de Universo Alternativo, ou “AU” (as siglas em inglês de alternative
universe). Fazemos referência também aos conceitos de star system (Morin, 1989),
fotonovelas (SKALZO, 2011) e fanzines, contextualizando historicamente alguns
aspectos da cultura de fã, que existia anteriormente à internet. A análise aponta
para uma transformação do que é representado não como imitação, mas como
ato de recriar através da participação imaginativa do receptor.
Palavras-Chave: Fanfictions. Cultura da participação. Estética da recepção.
Telenovelas. Geração Brasil.
Abstract: Written by Philip Miguez and Izabel de Oliveira, Geração Brasil was
one Rede Globo de Televisão’s production displayed from May 5 to October 31,
2014. The soap opera dealt with the use of new technologies, offering the public
greater participation through the means of media convergence and transmedia
(Jenkins, 2009). This paper analyzes qualitatively the fanfiction A Nova Geração
Brasil, available on the portal Nyah Fanfiction. From Lopes (2009) ideas about
soap operas as “communication resource”, we investigate how is the ownership
and participation of telespectadora author, using methodology as the comparative analysis between the two fictions and based on the work of Iser (1979;
1. Mestranda, UFRN, [email protected]
2. Mestre, UFRN, [email protected]
3. Doutora, professora UFRN, [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
Maria Clara Bezerra de Araújo • Afra de Medeiros Soares • Kenia Beatriz Ferreira Maia
1983) and Jauss (1979) on the aesthetics of reception. We realized that there was a
modification of the original narrative, constitute a case of Alternative Universe,
or “AU” (the acronym of the expression). We also make reference to the star system system (Morin, 1989), fotonovelas (SKALZO, 2011) and fanzines, historically
contextualizing some aspects of fan culture, which was before the internet. The
analysis leads to a transformation of what is represented not as imitation, but as
an act of turning through the imaginative participation of the receiver.
Keywords: Fanfictions. Culture of participation. Aesthetics of reception. Soap
operas. Geração Brasil.
TELENOVELAS COMO RECURSOS COMUNICATIVOS
TELENOVELA GERAÇÃO Brasil foi ao ar na Rede Glodo de Televisão no dia cinco de
A
maio de 2014 com uma proposta ousada, articulada com o mundo globalizado e
conectado digitalmente. Ela tinha como tema principal o uso de novas tecnologias,
mas também falava sobre celebridades, reality shows e outros elementos da cultura pop.
A família Parker-Marra, um dos núcleos centrais da novela, representava bem isso.
Jonas Marra, interpretado por Murilo Benício, era um ícone da computação. De certa
forma, fazia referência à figura de Steve Jobs, pois era responsável por uma grande
empresa de tecnologia, a Marra Corporation, assim como Jobs estava ligado à Apple.
A esposa do Jonas, Pamela Parker-Marra, vivida por Cláudia Abreu, era uma atriz
americana de sucesso, considerada uma das “queridinhas” da América. Já a filha, Megan
Lily Parker-Marra, interpretada por Isabelle Drumond, fazia o papel de uma patricinha,
sempre envolvida em confusões divulgadas em publicações de fofoca, a exemplo de
personalidades como a atriz americana Lindsay Lohan.
Com uma temática contemporânea e as problematizações amorosas e sociais típicas
das telenovelas brasileiras (LOPES, 2009), Geração Brasil vinha com a expectativa de
repetir o sucesso de Cheias de Charme, veiculada também no horário das 19h, em 2012,
e criada pelos mesmo autores, Filipe Miguez e Izabel de Oliveira. No entanto, não foi
o que aconteceu. A novela chegou ao fim em 31 de outubro de 2014, com o registro de
uma média final no Ibope da Grande São Paulo de 19 pontos. O índice foi um dos mais
baixos para a faixa horária da Rede Globo. A anterior, Além do Horizonte, havia registrado
20 pontos, já considerado um índice fraco. Cheias de Charme, de 2012, havia sido a última
novela do horário a obter uma média final de 30 pontos em São Paulo4.
Alcançando maior ou menor sucessso, talvez nenhum outro gênero mantenha uma
relação tão forte com o público do país quanto as telenovelas, atingindo diferentes classes
sociais e regiões geográficas brasileiras. Segundo Lopes (2009), a novela converteu-se em
uma figura central da cultura e da identidade do Brasil, criando um repertório comum
de referências por meio do qual as pessoas se identificam e reconhecem umas às outras.
Dessa forma, compartilha representações de uma ‘comunidade nacional imaginada’,
captada, expressa e atualizada de forma permanente. A autora refere-se às telenovelas
como “narrativas nacionais”, mas também como um “recurso comunicativo”, já que se
4. Disponível em <http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2014/10/31/geracao-brasil-falhou-aosubestimar-o-folhetim-tradicional/>. Acesso em 28 de fev. de 2015.
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A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
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converteu em um espaço público de debate de temas representativos para o país e sua
modernidade, tendo como objetivo a inclusão social, a responsabilidade ambiental, o
respeito à diferença, a construção da cidadania e outros.
Lopes (2009) fala ainda de uma vocação da novela, representante da modernidade
brasileira, em mimetizar e em renovar as imagens do cotidiano de um Brasil que se renova.
De acordo com a autora, depois de Beto Rockfeller, da emissora Tupi, transmitida em 1968,
as tramas foram sendo cada vez mais envolvidas com os universos contemporâneos das
grandes cidades, constituindo-se como“recurso comunicativo”. Uma das características
disso é o fato de trazerem sempre uma novidade, um fato que as diferencie das demais.
Geração Brasil não poderia estar mais conectada com esse paradigma, ao abordar
um tema tão central na vida contemporânea quanto a presença da tecnologia. Além do
mais, como citado, a novela buscou se integrar ao paradigma digital atual de convergência midiática e de cultura participativa. Para Jenkins (2009), nesse contexto, velhas e
novas mídias convivem em troca contínua. Ainda segundo ele, a convergência refere-se
ao “fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre
múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos
meios de comunicação (JENKINS, 2009, p. 29).
Aparentemente integrados a essa realidade, os produtores de Geração Brasil propuseram a participação direta do público da novela em um reality show que escolheria o novo
diretor da Marra Corporation. A disputa tinha entre os candidatos os personagens de
Davi e Manu, interpretados por Humberto Carrão e Chandelly Braz, respectivamente.
Chegando à final, os personagens exigiram que os dois fossem contratados, do contrário, o que fosse escolhido não aceitaria a vaga. A empresa aceitou a exigência contanto
que, nos dias que faltavam para o final da disputa, eles transformassem o aplicativo
de vídeo que desenvolveram, o Filma-e, em um grande sucesso. Abriu-se espaço então
para a participação do público, que enviava pequenos vídeos através do aplicativo para
serem transmitidos durante os capítulos.
Além disso, a produção da novela desenvolveu uma série de estratégias de transmidiação, considerando aqui a definição de Fechine et al (apud Resende, 2014, p. 9):
“um modelo de produção orientado pela distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos associados entre si”. O público de Geração Brasil podia
expandir o seu contato com a telenovela através de conteúdos disponibilizados em vários
websites oficiais, desde o da própria novela até espaços específicos, como o produzido
para a Marra Brasil e um outro para a Parker TV, grupo televisivo com maior destaque
no mundo da telenovela.
Tais estratégias dão materialidade ao que Lopes (2009) se refere como experiência
comunicativa, que aciona mecanismos de conversação, de compartilhamento e de participação imaginária. Como destaca a autora, a novela é tão vista como falada. A pesquisadora comentava, em 2009, que o mais novo espaço ocupado por essas conversações
era a internet, que permitiu interligar máquinas e pessoas, como também materializar
e ampliar as ações de conversa, compartilhamento e participação.
Mesmo com todas essas estratégias e abordando uma temática central e
contemporânea, a novela atingiu baixos níveis de audiência, levando-nos a considerar
que não agradou muito o público. Foi nessa perspectiva que nos chamaram atenção as
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
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fanfictions divulgadas na rede mundial de computadores sobre a telenovela. Além de
produção de fãs, enxergamos nelas espaços de conversação e de participação direta do
público que podem nos apontar traços da recepção à produção televisiva. Desse modo,
decidimos fazer uma análise comparativa entre o enredo da novela e o da fanfiction A
Nova Geração Brasil, disponibilizada no site Nyah Fanfiction.
FANFICTIONS COMO UMA “NOVA” GERAÇÃO DE FICÇÕES
Segundo Vargas (2005), fanfictions – junção de fan e fiction, ou ficção de fã, traduzido do inglês – são obras de caráter ficcional que resultam do trabalho e da dedicação
espontâneos de seus autores fãs. Essas obras, também chamadas fanfics ou fics, quase
sempre são publicadas em websites construídos e gerenciados por internautas que também escrevem histórias.
As novas narrativas, assim, envolvem cenários, personagens, tramas anteriormente
desenvolvidos no original, no entanto, sem o objetivo de obter lucro com essa prática
nem tampouco quebrar direitos autorais de seus criadores. Elas expandem o universo
narrativo original de filmes, séries televisivas, livros e outros objetos do entretenimento, seja continuando a história do ponto interrompido, procurando explicar algumas
brechas na narrativa, ou até mesmo modificando a caracterização dos personagens e
os seus rumos.
Em relação à origem, Vargas (2005) credita à elaboração de fanzines, também relacionados às práticas de fãs, mas, dessa vez, associados a magazines. Essas publicações
são feitas de forma artesanal, com estrutura caseira e circulação modesta, envolvendo
os fãs de seriados televisivos, filmes, bandas etc. Uma das primeiras séries a movimentar grupos e atividades de fãs teria sido Star Trek – Jornada nas Estrelas, no Brasil. De
acordo com Vargas (2005), o site Fanfiction: the force.net aponta que o primeira fanzine
dedicado à série data de 1967, o Spockanalia, em referência a um dos principais personagens de Star Trek, o doutor Spock. A publicação já trazia fanfictions em seu conteúdo.
Mas antes daquela época já eram realizadas convenções de fãs. A internet, por sua
vez, teria dado mais impulso a essas práticas, agregando um número cada vez maior de
pessoas envolvidas com as atividades de fãs, o que fez crescer a produção de fanfictions,
movimento que se intensificou nos Estados Unidos na década de 1990, de acordo com
Vargas (2005). No Brasil, as publicações da série de livros de Harry Potter, da escritora
J.K. Rowling, parecem ter sido um marco para o desenvolvimento da prática. O primeiro
livro da série foi publicado no país em 2000 e, segundo a pesquisadora, são raros os
websites de fanfiction em português brasileiro anteriores a esse período.
A união de fãs em torno de um objeto comum de admiração traz à tona um outro
termo importante para se discutir as fanfictions: o fandom – comunidade ou domínio de
fãs. Em sua dissertação de mestrado, Siqueira (2008) aponta, baseado em uma definição do
Oxford English Dictionary, que o termo já era utilizado no começo do século XX relacionado
a esportes e ao teatro. No entanto, a partir da década de 1930, com a publicação do
primeiro fanzine de ficção científica, The Comet, e com a realização, em 1939, da primeira
Convenção Mundial de Ficção Científica de Nova York, a palavra passou a ser associada
à comunidade de fãs de ficção científica e de fantasia.
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A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
Maria Clara Bezerra de Araújo • Afra de Medeiros Soares • Kenia Beatriz Ferreira Maia
Segundo Siqueira (2008), há indícios de que a prática das fanfictions, no entanto,
seja anterior à publicação de fanzines, estando ligada também ao desenvolvimento da
literatura. Obras clássicas como Dom Quixote, Alice no País das Maravilhas, Orgulho
e Preconceito e a série Sherlock Holmes teriam inspirado sequências e versões não
autorizadas logo após seus lançamentos.
Outra aposta editorial que contribuiu para o desenvolvimento de um público de fãs,
neste caso mais diretamente relacionado ao objeto de análise deste artigo, foi a fotonovela.
Segundo Skalzo (2011), invenção dos estúdios Cinecittá na Itália na década de quarenta,
as fotonovelas ganhavam o mundo em formato de revistas, propondo aos seus leitores a
ideia de “cinema em quadrinhos”. O sucesso de vendas era tão expressivo que a invenção
logo foi copiada por outros países. No entanto, com a popularização da televisão, tanto
as revistas de fãs quanto as fotonovelas foram perdendo espaço para os guias de TV,
que, além das novidades da programação, também traziam notícias sobre celebridades.
Como já pontuado, a internet veio a ampliar em muito todas essas práticas relacionadas ao mundo dos fãs, inclusive as de fanfictions. Um dos maiores sites mundiais de
compartilhamento de fics, o Fanfiction.net, possui mais de 1,5 milhões de usuários cadastrados, que podem postar e ler histórias em mais de 30 línguas (SIQUEIRA, 2008, p. 25).
Exclusivamente em Português, o Nyah Fanfiction é um dos que possui maior popularidade
no Brasil. Criado em novembro de 2005, em maio de 2013 possuía 160 mil histórias e 300
mil usuários cadastrados, dados do próprio site5. Nele, na categoria “Seriados / Novelas
/ Doramas6”, encontramos um total de 95 fanfictions escritas sobre a telenovela Geração
Brasil7. A maioria, mais de 50 delas, expressa uma trama com foco no romance entre
Davi e Megan, o que não acontece na narrativa original, na qual os dois se envolvem
amorosamente, mas como um empecilho ao casal principal, formado por Davi e Manu.
Humberto Carrão e Isabelle Drummond haviam feito par romântico em outras duas
telenovelas do mesmo horário das 19h: Sangue Bom e Cheias de Charme, o que parece ter
construído um fandom em torno dos atores como casal romântico, independentemente dos
personagens que eles viessem a contracenar. Os atores, assim, parecem ter mais importância que seus personagens, o que nos lembra o conceito de star system (MORIN, 1989).
Com a chegada do cinema em 1895 e a sua popularização na década de 1910,
Hollywood apresentaria ao mundo o que viria a ser chamado o star system, uma estratégia
que tinha nascido no teatro em 1820, com a ideia era dar maior atenção aos intérpretes.
No teatro, os divulgadores costumavam produzir os cartazes das peças dando destaque
à imagem dos artistas. Na indústria cinematográfica, essa ideia evoluiu, glamourizando
ainda mais os atores e atrizes, promovendo-os a grandes estrelas.
A constelação de estrelas e astros cinematográficos elevou o conceito de celebridade
à dimensão mítica e ao mesmo tempo à condição de mercadoria valiosa. Segundo Morin
(1989), o star system poderia ser compreendido como um fenômeno multidimensional,
que reunia: caracteres fílmicos da presença humana na tela e a questão do ator; a relação
espectador-espetáculo; a economia capitalista e o sistema de produção cinematográfica;
e a evolução sócio-histórica da civilização burguesa.
5. Disponível em <http://fanfiction.com.br/imprensa/>. Acesso em 3 de jan. de 2015.
6. Dorama é a definição generalizadas para as séries televisivas orientais.
7. Disponível em <http://fanfiction.com.br/categoria/3214/geracao_brasil>. Acesso em 12 de mar. De 2015.
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Desse modo, visualizamos nas fanfictions de Geração Brasil um novo espaço para
observar as relações de vínculo e de recepção do público com a telenovela e com os
seus atores-personagens. Isso investigado dentro da perspectiva dos fãs, os quais são
citados por Jenkins (2009) como o grupo mais atuante, hoje, com relação aos conteúdos
divulgados pelas mídias. Tais aspectos serão observados na análise de A Nova Geração
Brasil. Mas antes, falaremos um pouco sobre o papel da imaginação para a recriação.
IMAGINÁRIO COMO PALCO PARA A RECRIAÇÃO
A relação da estética da recepção, direcionada à crítica ao texto literário, com o
estudo de fanfictions pode se mostrar na caracterização que Iser (1983a) faz do texto de
literatura como discurso ficcional. Desse modo, mesmo para os que não consideram as
fanfics como obras literárias, seu caráter de ficção não pode ser negado, uma vez que se
encontra na própria definição do termo.
Assim, Jauss (1979b) apresenta suas considerações sobre a experiência estética,
baseado nas três funções da Poiesis, Aisthesis e Katharsis, relacionadas, respectivamente,
às atividades produtivas, receptivas e comunicativas. Além disso, destaca o prazer
estético como orientação fundadora, característica das três funções. Sobre o prazer, ele
lembra os sentidos de “participação e apropriação” e o de “alegrar-se com” presentes
nos significados da palavra na língua alemã.
Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que de si mesmo: experimenta-se na
apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua própria
atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível
de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer estético que, desta forma, se realiza
na oscilação entre a contemplação desinteressada e a participação experimentadora, é um
modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro, capacidade a nós aberta pelo
comportamento estético. (JAUSS, 1979b, 98).
O pensador afirma ainda que a experiência estética não se caracteriza pela
compreensão e interpretação de uma obra de arte, nem tampouco da tentativa de entender
as intenções do autor, mas sim com seu efeito estético e sua compreensão fruidora. Assim,
Jauss (1979b) procura compreender o processo dinâmico de produção e recepção e a
relação, também dinâmica, entre autor, obra e público, utilizando a hermenêutica da
pergunta e da resposta.
Desse modo, a hermenêutica literária teria a tarefa de interpretar a “relação de tensão entre texto e atualidade como um processo” (JAUSS¹, 1979a, p. 79). Em tal processo,
o diálogo entre autor, leitor e novo autor refaz a distância temporal através de um vai e
vem de pergunta e resposta, também entre uma resposta original, uma pergunta atual
e uma nova solução de sentido, concretizado de outro modo e, por essa razão, segundo
Jauss (1979¹), sempre mais rico.
Nesse mesmo sentido, Iser (1979) aponta que autor, texto e leitor são interconectados,
configurando uma relação em um processo em andamento caracterizado pela produção
de algo que antes não existia. Tal visão entraria em conflito com a ideia tradicional de
representação, na qual a mimese faria referência a uma realidade pronta, definida, e que
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estaria sendo representada. O autor recupera o sentido aristotélico de representação,
que seria duplo: apresentar os objetos da natureza e completar o que ela teria deixado
incompleto. Segundo Iser (1979), o imaginário seria explorado de forma mimética, mas
não no sentido de pura repetição, mas de uma repetição transformadora.
Iser (1983b) aponta que não é o sentido a dimensão final do texto, mas sim o imaginário, que direciona à origem do texto ficcional. Ao passo que a semântica (o sentido) teria
um objeto determinado, o imaginário não, tendo caráter difuso. É esse caráter difuso
que permite assumir diversas configurações na ficção, na qual o que é representado tem
a qualidade do “como se”, diferente do real e também do imaginário.
No entanto, os textos fictícios não seriam de todo isentos de realidade, sendo a
ficção uma preparação para o imaginário. A partir disso, Iser (1983b) propõe a substituição do par opositivo ficção-realidade por uma tríade do real, fictício e imaginário, o
que permitiria confirmar o fictício dos textos de ficção, nos quais há também uma boa
parcela de realidade, não só social, mas também emocional e sentimental. No texto
ficcional, há, portanto, uma mediação entre o real e o imaginário, relação que pode ser
observada também nas fanfictions, o que observaremos se condiz com a comparação de
A Nova Geração Brasil à trama na qual se inspira, a novela Geração Brasil.
APROPRIAÇÃO IMAGINATIVA DA TRAMA
Mesmo com o final da telenovela que a inspira no dia 31 de outubro de 2014, até 17
de março de 2015, A Nova Geração Brasil não havia sido finalizada. A última postagem da
autora (identificada no portal como “Cíntia”8) tinha acontecido nessa mesma data, sinal
de que a narrativa não foi abandonada e continua sendo produzida e compartilhada.
A fanfic possuía nesse dia 33 capítulos, 166 comentários e 14 indicações como favorita
do público leitor. Desse público, três pessoas (“Isadora”, “Neide” e “Laryssa”, como se
identificam) recomendam a leitura, com texto disponibilizado também na página inicial
da fanfiction9.
Esse primeiro dado sobre a continuidade na postagem dos capítulos confirma um
traço das fanfictions que apontamos antes como “expansão”. Desse modo, ela não acontece
apenas com relação aos fatos da trama, ou do universo narrativo, como anteriormente
destacamos, mas também quanto ao tempo de consumo e de contato com tal universo.
Cinco meses após o encerramento da telenovela, seus personagens continuam sendo
objeto para novas construções, ou apropriações, por parte dos telespectadores. É o que
pode ser observado na recomendação de leitura escrita por “Neide”, quando ela fala
em “reviver”:
Super bem escrita e com uma narrativa rica de detalhes, é uma excelente recomendação de
leitura para quem quer reviver todas as emoções geradas por seus personagens preferidos
de Geração Brasil e melhor ainda, sentir outras emoções se deliciando com acontecimentos
que gostaria de ter visto na novela e não viu.
8. Vargas (2005) chama as identificações usadas pelas autoras nas redes de compartilhamento de fanfiction
de pen-name.
9. Disponível em <http://fanfiction.com.br/historia/554394/A_nova_Geracao_Brasil/>. Acesso em 17 de
mar. 2015.
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Apesar de nosso objetivo aqui não ser a análise dos comentários das leitoras da
fanfic, essa mensagem em especial nos permite visualizar tanto a expansão do contato
com o mundo narrativo desenvolvido a partir dos personagens quanto as mudanças
estabelecidas pela autora da fanfictions. A existência de mudanças foi confirmada também
pela indicação de leitura de “Isadora”, por meio da qual ela disse que pôde perceber
“muitas características da novela, só que muito melhor, na minha opinião, já que Geração Brasil deixou muito a desejar”. O comentário indica uma insatisfação parcial com a
novela (“deixou a desejar”) e o fato de ter havido modificação na trama desenvolvida
na fanfiction, a qual ela considerou “muito melhor”.
Mas quais foram essas mudanças? No final da sinopse disponibilizada na primeira
página da história, já fica claro: “com personagens e acontecimentos um pouco diferentes
ou não, coloco essa nova história baseada na novela Geração Brasil, A nova Geração Brasil”.
Assim, podemos classificar a história, conforme indica Vargas (2005), como AU, conforme
linguagem utilizada pelos praticantes de fanfictions. As letras são a sigla para Alternative
Universe (universo alternativo), termo aplicado a narrativas que modificam fatos da
história original, mesmo que seja em menor grau, como na fic analisada. As histórias
que seguem os acontecimentos e traços originais dos personagens são classificadas como
cânones. Na sinopse da A Nova Geração Brasil podemos ler:
No Rio de Janeiro, Verônica Monteiro acaba de perder o pai, tendo como apoio o irmão Davi
e seu filho Vicente... Refletindo sobre a vida, ela resolve seguir a sua vocação e profissão de
jornalista, abandonada muitos anos antes. Davi Monteiro é um jovem de futuro promissor,
considerado um gênio da computação, hacker nas horas vagas, recém- formado e contratado
por uma empresa, ele esperava seguir uma carreira normal, mas a morte do pai que o adotou, e o acolheu há 14 anos, abala suas convicções e o faz pensar sobre um antigo projeto e
sonho pessoal, um computador que ensina as crianças a programar, o Júnior.
Nesse trecho, uma importante modificação já pode ser percebida. Verônica e Davi,
que eram apenas amigos, unidos por relações sociais e de amizade na Gambiarra, bairro
de periferia na novela, passam a ser irmãos – Davi é adotado pelos pais de Verônica
logo no primeiro capítulo da fanfiction. Com isso, a autora-espectadora se apropria dos
personagens para uni-los em um núcleo mais próximo. Esse aspecto será importante
para o desenvolvimento dos casais centrais da narrativa que, em A Nova Geração Brasil, além de Verônica e Jonas Marra, como na história original, serão também Davi e
Megan, esta que, na telenovela, é par opositivo ao casal principal, Davi e Manu, não
mencionada na fic.
Além disso, percebe-se uma propensão a dramatizar mais as relações e as vivências
dos personagens. Verônica, que na novela havia ficado viúva e largado a carreira de
jornalista para cuidar do filho Vicente, na fanfic é abandonada pelo pai do filho depois
de descobrir que está grávida. Ela cursava Jornalismo e ele, que era de uma família de
importantes empresários da Comunicação, fazia Publicidade e Propaganda. A família
exigiu que o filho encerrasse a relação com a estudante pobre e negra, como pontuado
na fanfic. Os pais de Verônica ficam decepcionados com a situação e ela, que era a aluna
com o melhor desempenho acadêmico na turma (o que não é citado na novela), precisa
desistir da profissão para criar Vicente.
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Na nova história, Davi tinha de sete a oito anos e morava na rua quando foi
encontrado pelo pai de Verônica, sendo logo depois adotado pela família da estudante
de Jornalismo. Em Geração Brasil, ele é órfão, mas foi criado pelos tios e é apenas um
amigo de Vicente. A autora da fic ainda faz com que, depois da morte dos pais, Verônica,
Vicente e Davi passem a morar na mesma casa, aproximando mais os personagens. Além
disso, na trama original, o sobrenome de Davi é Reis e não Monteiro.
No entanto, a modificação mais acentuada talvez se dê na personagem Megan. Na
narrativa original, ela é uma patricinha envolvida em várias confusões divulgadas em
veículos de comunicação de fofoca. Na fanfictions, Megan passa a ter uma identidade
virtual secreta. Ela, além de apaixonada por informática e altamente capacitada, é uma
hacker conhecida internacionalmente e invade sistemas de informação mundiais como
forma de promover justiça. Ou seja, os conhecimentos em tecnologia da personagem
Manu, que não aparece na nova narrativa, são transferidos de forma amplificada para
a de Megan, que passa a substitui-la, também, como par romântico principal de Davi.
Essa ação pode ser explicada pelo poder que certas estrelas exercem sobre o seu
público fã, como já citado e relacionado ao conceito de star system (Morin, 1989), quando
os atores passam a ser mais importantes que os personagens que eles encarnam. Dessa
forma, parece ter se desenvolvido um fandom em torno do casal Humberto Carrão e
Isabelle Drumond. O público deseja que eles fiquem juntos, independentemente das
circunstâncias, o que pode ser verificado na fanfiction analisada e no número de histórias
que aproximam o casal, “shippado10” como “Megavi”, entre as fanfics de Geração Brasil
disponibilizadas no portal Nyah Fanfictions, mais de 50% do total.
Poderíamos falar em outras mudanças operadas pela autora, mas, em razão do
limite de espaço, por ora nos ateremos a esses pontos. A discussão pode ser retomada
em outros trabalhos, inclusive porque, como também já indicado, a fanfiction ainda não
chegou ao fim e a autora continua no processo de reescrita da narrativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos com a análise comparativa das duas narrativas um certo sincretismo entre
ficção e realidade. Na novela, personagens são claramente inspirados em personalidades
reais e famosas, como Steve Jobs e Lindsay Lohan. Há também o lançamento de reality
show que atravessa a ficção e envolve diretamente o público da telenovela, que envia
imagens reais para serem transmitidas nos capítulos.
Já na fanfiction, as personagens de Humberto Carrão e Isabelle Drummond são
reescritas a fim de desenvolverem um dos romances principais da trama, como já
aconteceu entre os dois em outras novelas e como se a relação amorosa fosse algo
intrínseco aos dois. Isso nos lembra o que disse Morin (2009) sobre o sincretismo, ao falar
de indústria cultural, como algo que tende a unificar a informação e o romanesco. Assim,
teríamos um “duplo movimento do imaginário arremedando o real e do real pegando as
cores do imaginário” (MORIN, 2009, p. 37). A ficção se converte então no “como se” citado
10. O termo é utilizado no mundo das fanfictions para se referir aos casais formados nas narrativas. Os
nomes dos personagens (que podem ser também pessoas reais) são aglutinados e se transformam em uma
nova palavra, o que é referido como ação de “shippar” (Megan + David = Megavi; (Humberto + Isabelle
= Humbrelle).
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por Iser (1983b), envolvida em um contexto de produção de fãs – cultura participativa
–, convergência midiática e transmidiação. Sendo assim, a história sai da tela da TV
para percorrer outros espaços na rede mundial de computadores e, principalmente, no
imaginário de seu público. Como também citou Morin (2009), existe aqui uma dialética
entre produção-consumo.
Na reescrita de Geração Brasil, identificamos portanto o poder de se apropriar e
de ressignificar os produtos da indústria do entretenimento, entre eles, as narrativas
de telenovelas. Confirmamos assim o conceito de mimese trabalhado por Iser (1983b)
como uma representação recriadora. Isso é feito a partir da ficção, entendida como uma
representação não totalmente falsa, pois também inspirada em fatos reais, e que abre
caminho para o desenvolvimento do imaginário. Em A Nova Geração Brasil, tal imaginário se configura em uma nova ficção.
Identificamos então a ideia de prazer estético definida por Jauss (1979b) quando ele
fala em um resultado das ações de “participação e apropriação” do texto ficcional. A
autora não se limita a assistir à novela, mas participa diretamente da trama no momento
em que se apropria da narrativa e a expande, inclusive modificando alguns pontos que
parecem não ter lhe agradado. Não só ela, mas as leitoras da fanfic também se agregam
a esse prazer estético. Elas assistem e leem as tramas, tecem comentários, indicam a
leitura e também fazem críticas, seja a novela ou à fic. Não é então uma questão de
interpretação, mas de fruição estética, como coloca Jauss (1979b).
Dessa forma, enxergamos a dinamicidade citada pelo autor no processo entre
produção e recepção e, também, na relação entre obra, autor e público. Temos então a
materialidade de um diálogo entre autor, leitor e novo(s) leitore(s), o que se reflete em
novas soluções de sentido à trama, buscadas através de dinâmicas de perguntas e respostas. Por que a personagem de Isabelle Drummond, tão querida do público, precisa
se restringir a ser uma patricinha problemática? Por que ela e Humberto Carrão não
formam um casal, como já aconteceu e o público aprovou? Por que, dadas as relações
entre o personagem dele e a de Thaís Araújo na novela, os dois não compõem um
núcleo mais próximo? As soluções, segundo Jauss (1979b), são sempre mais ricas que
o próprio texto.
Em um artigo já citado, Nilson Xavier11 comenta que Geração Brasil “falhou ao mirar
demasiadamente em tecnologia: arregimentou o telespectador mais jovem e antenado,
mas desprezou quem não liga para o assunto”. Com nossa análise, não temos subsídios para dialogar com a afirmação, uma vez que o público das fanfictions é formado
essencialmente por jovens. Seriam necessários outros estudos. No entanto, podemos
dizer que houve sim um descontentamento com a narrativa, compensado com os novos
sentidos (recriações) desenvolvidos na fanfic. Como Xavier também comentou, talvez
tenha mesmo havido, por parte dos produtores/roteiristas da novela, uma subestimação
ao folhetim tradicional, o que gerou novos arranjos nos personagens, com mais dramaticidade e um casal romântico mais de acordo com o que as telespectadoras autora
e leitoras da fanfic esperavam.
11. Disponível em <http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2014/10/31/geracao-brasil-falhou-aosubestimar-o-folhetim-tradicional/>. Acesso em 28 de fev. 2015.
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A nova Geração Brasil: a estética da recepção e a apropriação imaginativa em uma fanfiction de telenovela
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O trabalho aqui iniciado, portanto, abre espaço a outros questionamentos, que
podem também ser respondidos e ressignificados. Poderíamos relacioná-los às complexas
relações entre realidade e ficção, como também entre produção e recepção, além do
relacionamento entre fãs e seus objetos de admiração. Consideramos assim que, como
recurso comunicativo (Lopes, 2009), a telenovela se configura em um espaço de produção
e recepção e, como tal, de circulação de sentidos, muitos deles ligados ao imaginário
nacional, em que essas questões podem ser discutidas e desenvolvidas.
REFERÊNCIAS
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estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Iser, Wolfgang. (1983a) Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa.
Teoria da Literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: F. Alves.
Iser, Wolfgang. (1983b) Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos
chaves da época. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. 2 ed. Rio
de Janeiro: F. Alves.
Jauss, Hans Robert. (1979a) A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa. A
literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Jauss, Hans Robert. (1979b) O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis
e katharsis. In: LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Jenkins, Henry. (2009) Cultura da convergência. Trad. Susana Alexandria. 2 ed. São Paulo:
Aleph.
Lopes, M. I. V. de. Telenovela como recurso comunicativo. MATRIZes, ano. 3, dez. 2009. Recuperado em 10 de março, 2015 em: http://www.matrizes.usp.br/ojs/index.php/matrizes/
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Morin, Edgar. (1989) As estrelas: mito e sedução no cinema. [Tradução Luciano Trigo]. Rio de
Janeiro: José Olympio.
______ . (2009) Cultura de massas no século XX: neurose. [Tradução Maura Ribeiro Sardinha].
9. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Resende, Vitor Lopes. Estratégias de transmidiação na novela Geração Brasil: perspectivas para o
cenário nacional. Anais do VIII Simpósio Nacional da ABCider, ESPM-SP, dez. de 2014.
Recuperado em 7 de março, 2015 em http://www.abciber.org.br/simposio2014/anais/
GTs/vitor_lopes_resende_164.pdf .
Siqueira, Márcio André Padrão de. A Desconstrução da Fanfiction: resistência e mediação
na cultura de massa. Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, 2008.
Scalzo, Marília. (2011) Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto.
Vargas, Maria Lucia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio
eletrônico. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005.
Xavier, Nilson. Geração Brasil falhou ao subestimar o folhetim tradicional. Recuperado
28 de fevereiro, 2015 em <http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2014/10/31/
geracao-brasil-falhou-ao-subestimar-o-folhetim-tradicional/>.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4541
Audiência transmídia:
reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Transmedia audience:
reflexions about brazilian telenovela consume
M a rc e l a Co sta 1
Resumo: O cenário atual de convergência induz a televisão por novos caminhos,
forçando-a a experimentar o processo de distribuição de sua programação por
diversas plataformas. Assim, é imperioso observar que a TV passa por um
momento de reconfiguração em relação à sua produção, afetando diretamente
a recepção. Essa fase, denominada TV transmídia (FECHINE et al, 2013), aposta
não só mais na maneira tradicional de consumir televisão, mas tenta atingir uma
audiência segmentada e dispersa. Dentre tais conteúdos televisivos transmídias,
destacam-se as telenovelas da Rede Globo de Televisão, que paralelamente às
suas exibições planejam e executam estratégias para além da TV. Nesse sentido,
nosso objetivo é entender como o consumo da telenovela ocorre, considerando
que se trata de um projeto transmídia direcionado para uma audiência
igualmente transmídia. Para tanto, além da discussão teórica tomando como
base, Fechine et. Al (2013), Orozco (2005) e Napoli (2011), desenvolvemos um
questionário relacionado à audiência transmidiática de telenovela. É um estudo
inicial que assume um papel de pré-teste para a pesquisa de doutoramento em
desenvolvimento. Portanto, o trabalho é composto de dois momentos: um que
se refere à revisão bibliográfica sobre o tema e outro que pretende compartilhar
algumas considerações iniciais importantes através de questionário aplicado.
Palavras-Chave: Televisão. Telenovela. Audiência. Audiência Transmídia.
Abstract: The contemporary landscape induces television in new ways, forcing
the medium to experience the process of programming distribution across multiple platforms. Thus, it is imperative to note that the TV is going through a time
of reconfiguration in relation to its production, directly affecting the reception.
This phase, called Transmedia TV (Fechine et al, 2013), not only bet on more
traditional way to consume television, but try to reach a targeted and dispersed
audience. Among such transmedia TV content, there are telenovelas of Globo TV,
which along with its plan and execute strategies views beyond the TV. In this
sense, our goal is to understand the telenovela’s consume, considering that it is
a transmedia project directed to an equally transmedia audience. Thus, besides
the theoretical discussion on the basis, Fechine et. Al (2013), Orozco (2005) and
Napoli (2011), we developed a questionnaire related to transmedia audience. It
is an initial study that takes a pretest role for doctoral research in development.
1. Doutoranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsita Facepe.
E-mail: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4542
Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
Therefore, the work consists of two stages: one that refers to the literature review
on the subject and the other one, which pretend to share some important initial
considerations through the questionnaire.
Keywords: Television. Telenovela. Audience. Transmedia Audience.
INTRODUÇÃO
TV TEM passado por reconfigurações tanto no que diz respeito à sua produção
A
como também em relação à sua distribuição e recepção. O atual cenário de convergência midiática, proporciona transformações mercadológicas, tecnológicas,
culturais e sociais, tensionando as relações entre e as instâncias de produção e recepção,
levando as emissoras de TV a lançar mão de novas estratégias de conteúdo considerando
não apenas a televisão, mas sim um conjunto de mídias. Além disso, como o cenário de
convergência estimula a cultura participativa, as emissoras convidam e tentam despertar o interesse da audiência em participar e em se engajar com o conteúdo expandido
para além da TV.
No que diz respeito à televisão brasileira, percebemos que, as emissoras, sobretudo a Rede Globo, têm empregado a transmidiação2 como estratégia para atingir uma
audiência que não está única e exclusivamente na TV e que não consome o conteúdo
televisivo na sua mídia original. Isso porque um projeto transmídia parte da instância de
produção e só se manifesta na instância receptora. Assim, podemos dizer que embora a
instância de produção crie um projeto que utiliza multiplataformas de mídia com cada
uma oferecendo algo novo para o todo, é a partir da audiência que o projeto acontece de
fato. Como exemplo da utilização da transmidiação, podemos citar as telenovelas globais, como, Cheias de Charme, Avenida Brasil, Gabriela, Lado a Lado, Guerra dos Sexos,
Salve Jorge, Sangue Bom e Amor à Vida, Em Família, Geração Brasil, O Rebu e Império.
O fato é que o objetivo da Rede Globo ao utilizar a transmidiação, como estratégia,
é ampliar os pontos de contato com a audiência, incentivando o consumo do conteúdo
televisivo em outras plataformas, além de atrair novas audiências. A audiência não se
comporta como outrora e no modelo de negócios da televisão é preciso ter bons índices de
consumo televisivo para atrair investimentos publicitários e assim, subsidiar à produção
televisiva. Também é preciso considerar que a audiência está cada vez mais dispersa
uma vez que, hoje, não só dispõe do controle remoto, mas também de aparelhos como
o Digital Video Recorder (DVR), além de poder assistir ao programa televisivo pela web.
Somado a isso, vale salientar que a atenção está cada vez mais segmentada. Assistir
à televisão não significa prestar atenção exclusivamente ao que está sendo veiculado
na tela do aparelho televisivo. A audiência tem consumido o conteúdo da TV enquanto
realiza outra atividade, como por exemplo, navegar nas plataformas de redes sociais e
produzir conteúdo relacionado ou não ao que está assistindo na televisão. O que não
significa dizer que se deixou de ver TV. “Há mais gente assistindo do que há dez anos,
mas em outras telas. A audiência está se diluindo e os conteúdos originalmente feitos
para a TV estão em múltiplas plataformas” (LOPES et al., 2010, p. 131).
2. Mais adiante discutiremos o conceito.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4543
Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
Sob essa ótica, o presente trabalho visa refletir como a audiência consome a “nova”
TV, especialmente no que diz respeito ao consumo da telenovela, considerando que, hoje,
temos uma televisão que se apropria da transmidiação na sua produção, distribuição e
recepção. Para tanto, num primeiro momento recuperaremos o trabalho desenvolvido
para Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL), a fim de discutirmos
sobre as reconfigurações da TV e da telenovela. No segundo momento, apresentamos o
conceito de audiência e de audiência transmídia e através do resultado do questionário
aplicado entre os meses de fevereiro e março, procuramos entender como a audiência tem
consumido as telenovelas. Desse modo, entendemos que esses três vetores conseguem
responder às inquietações que geraram a reflexão proposta neste artigo: como a audiência
consome a telenovela? Podemos falar, de fato, de uma audiência transmídia?
TV E TELENOVELA TRANSMÍDIAS
A televisão, a partir de Williams (2003), é caracterizada por obedecer ao sistema
broadcasting, ou seja, um modelo de transmissão centralizado, unidirecional que visa
atingir o maior número de pessoas ao mesmo tempo. Somado a isso, o autor também
entende que a televisão apresenta um fluxo contínuo e sequencial o qual subsume a
grade de programação linear constituída por unidades discretas, programas de distintos
gêneros. No entanto, a partir dos anos 80, com a proliferação de canais e a segmentação
da audiência, a televisão começa a sofrer algumas transformações.
Para Scolari (2009) e Carlón (2009), tais transformações são decorrentes da mudança
da paleo-televisão para a neo-televisão3. A paleo-televisão era caracterizada pelo
aparelho televisivo como soberano na sala de estar dos lares de maneira que a família se
reunia em torno da TV. Além disso, apresentava um contrato pedagógico entre o pouco
número de emissoras e o público, entendido como uma grande massa, uma vez que
ao obedecer ao sistema broadcasting, o objetivo era atingir o maior número de pessoas
possível ao mesmo tempo. O contrato era pedagógico porque se fazia necessário instruir
os telespectadores a respeito da grade de programação que oferecia programas com
gêneros específicos e direcionados para telespectadores específicos. Em paralelo, a paleotelevisão voltava-se para o mundo exterior, a informação, vista como representação da
realidade, era totalmente separada do entretenimento, entendido como ficção (CARLÓN,
2009; SCOLARI, 2009). Desse modo, era preciso ensinar os telespectadores a consumir
os programas ofertados assim como entender que ao mesmo tempo em que a televisão
funcionava como uma janela para o mundo, informando sobre a realidade tal como ela,
também oferecia programas ficcionais para o entretenimento da família.
Já na neo-televisão, o sistema broadcasting permanece ditando à lógica de produção
e distribuição, no entanto, com multiplicação dos canais e de emissoras, sobretudo, a
partir da entrada das TVs a cabo, vemos a recepção começar a se segmentar. O aparelho
televisor, com preços mais acessíveis no mercado, multiplica-se pela casa, além de dividir
o espaço doméstico com outros dispositivos como o videocassete. Na neo-televisão, a
separação entre realidade e ficção acaba e os programas passam a apresentar gêneros
3. Paleo e neotelevisão aparecem pela primeira vez, em 1983, no trabalho de Umberto Eco, TV: a transparência
perdida. Scolari e Carlón retomam o trabalho de Eco para traçarem as transformações sofridas pela televisão.
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
que se misturam. Acrescenta-se aí o fato de que contrato estabelecido entre emissoras e
público perde seu caráter didático. O foco não é mais o da pedagogia para o consumo,
direcionado para instruir a demanda sobre a oferta, mas sim, para o contato que se
estabelece com o público, que permanece sendo entendido como massa, contudo, a
preocupação em atrair telespectadores para os programas ganha força. Isso ocorre
porque com a multiplicação de canais é preciso ter audiência para conseguir inserções
publicitárias e assim, ter verba para produzir os programas. Por fim, a neo-televisão
volta-se para si mesma. O mundo exterior é deixado de lado e a televisão “abre ao público
seu dispositivo técnico de enunciação, por exemplo, mostrando aos espectadores os
microfones, as câmeras e as salas de redação” (SCOLARI, 2009, p. 195).
Com as tecnologias digitais, a televisão entra numa nova fase, definida por Scolari
(2009) como hipertelevisão, por Carlón (2009), como metatelevisão, e por Piscitelli (1998)
como pós-televisão, entre outros. Aqui, chamamos essa nova fase da televisão de TV
transmídia (EVANS, 2011). Para entendermos o estatuto dessa TV, é preciso compreendermos o que consideramos transmidiação. Por transmidiação, entendemos como
um modelo de produção de conteúdo, que sempre parte de uma instância produtora,
alicerçado pela distribuição em múltiplas plataformas de mídia, as quais corporificam
conteúdos associados entre si e pela articulação orientada por estratégias e práticas
possibilitadas pelo ambiente de convergência midiática e pela cultura participativa.
O primeiro uma vez que é condição sine quan non para o modelo de transmidiação a
articulação de plataformas midiáticas. A cultura participativa por sua vez porque é a
instância de recepção, chamada, aqui de consumidores ou audiência, a grande responsável por materializar os conteúdos resultantes da transmidiação (FECHINE, et. Al, 2013)
As estratégias configuram-se em propostas de engajamento da instância produtora
para a instância receptora. Já as práticas correspondem à resposta positiva da instância
receptora às propostas positivas da instância de produção. Somado a isso, é fundamental
a articulação de pelo menos duas plataformas de mídia para que o modelo de produção
origine conteúdos transmídias. Isso significa dizer que, são conteúdos produzidos a
partir da articulação entre diferentes plataformas e na proposta de engajamento feita
pela instância produtora para uma instância receptora (idem).
Além da articulação mínima de duas plataformas, na transmidiação, uma das
plataformas assume o papel de predominante, cuja responsabilidade é de reger todo
o processo de produção do conteúdo. Nesse sentido, é a mídia regente que permite a
categorização do conteúdo transmídia. Desse modo, se temos um conteúdo transmídia
com o rádio sendo a mídia predominante, temos conteúdos radiofônicos transmídias,
se temos o cinema como mídia predominante, temos conteúdos cinematográficos
transmídias, se temos a TV como mídia regente, temos conteúdos televisivos transmídias.
Em paralelo, o conteúdo também contribui para sua classificação. Em outras palavras,
o gênero do conteúdo igualmente determina que tipo de conteúdo transmídia estamos
falando. Assim, podemos ter dentro da chave dos conteúdos televisivos transmídias, a
telenovela transmídias, o telejornal transmídia, entre outros.
Nesse sentido, a TV transmídia corresponde à incorporação da transmidiação no
processo de produção do conteúdo televisivo, da cadeia criativa da TV. Isso implica não
apenas em reconfigurações na produção televisiva, mas também no modelo broadcasting
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
e as definições de audiência e do seu comportamento. Na verdade, tais reconfigurações
não são frutos da apenas da incorporação da transmidiação ao processo produtivo do
conteúdo da TV, o que “tensiona” o modelo broadcasting, especialmente se considerarmos
o modelo de negócios arraigado pela venda de espaço publicitário. Diante disso, alguns
pesquisadores e estudiosos falam da crise do broadcasting, que perde espaço para o
sistema narrowcasting, isto é, o modelo unidirecional e centralizado, tem dado lugar à
transmissão segmentada. Assim sendo, na TV transmídia, o broadcasting se depara com
outras maneiras de produzir, distribuir e consumir televisão.
Explicada a TV transmídia, podemos prosseguir com a reflexão sobre um dos seus
conteúdos, a telenovela transmídia. Para tanto, incialmente vamos considerar as reflexões de Machado (2000) sobre gêneros televisivos. Em primeiro lugar é preciso entender
que os gêneros sempre estão se atualizando e para entendê-los, é preciso considerar
a natureza dos enunciados e sua relação com os ouvintes. No que diz respeito à TV,
para Machado (2000), os capítulos de um programa, um programa, uma transmissão
ao vivo, um comercial são entendidos como enunciados, apresentados aos telespectadores de diversas maneiras e são produzidos a partir de uma esfera intencional a fim
de abordar um determinado acontecimento. Todavia, as esferas de intencionalidade
não são necessariamente as mesmas, apesar de que podem existir esferas de intenção
com características definidas nas quais são encontrados enunciados que podem ser
decodificados pelos produtores e telespectadores. Mas, tais esferas podem sofrer um
processo inevitável de metamorfose, originando novas e variadas possibilidades. Consequentemente, pensando na televisão, podemos chamar de gêneros televisivos esses
modos de trabalhar o conteúdo os recursos dentro das esferas (idem).
Os gêneros televisivos são diversos e cada um apresenta suas especificidades e
linguagem. Por essa razão, é equivocado entender que a telenovela, o programa de
auditório, o evento esportivo, o telejornal num mesmo pé de igualdade, pois, “os gêneros
são fundamentalmente mutáveis e heterogêneos (não apenas no sentido de que são diferentes entre si, mas também no sentido de que cada enunciado pode estar “replicando”
muitos gêneros ao mesmo tempo)” (MACHADO, 2000, p. 71). Somado a isso, partimos
do princípio de que se os gêneros televisivos são diferentes, consequentemente, a transmidiação dos mesmos acontecerá obedecendo às suas características.
Em paralelo, como pontuamos anteriormente, para entender os gêneros é preciso
considerar a relação entre os enunciados e os ouvintes, ou seja, no caso da TV, é preciso
considerar a relação entre os enunciados e a audiência. Essa audiência, vale salientar, é
heterogênea e o modo como ela vai se relacionar com o gênero televisivo, vai depender
de vários fatores. Desse modo, é necessário entender a audiência e considerá-la ao
analisarmos um conteúdo televisivo transmídia como a telenovela transmídia. Afinal,
são as práticas da audiência que materializam o conteúdo televisivo transmídia já que
a instância produtora lança mão de estratégias que convidam a audiência a participar,
seja na articulação dos conteúdos associados entre si em distintas plataformas, seja
como participantes, de fato, no desenvolvimento dos conteúdos.
A partir disso, entendemos que um conteúdo transmídia é direcionado para uma
audiência igualmente transmídia. Ora, se a audiência não articula ao menos uma outra
plataforma com o TV, o projeto transmídia não se manifesta. Em outras palavras,
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
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para que uma telenovela transmídia, de fato ocorra, é necessário que a audiência da
telenovela seja transmídia e, pelo menos faça a articulação do conteúdo para além
da televisão. Obviamente, a articulação é uma das possíveis práticas que a audiência
transmídia pode desempenhar. Dependendo da estratégia, a audiência transmídia
pode também responder às enquetes, comentar no site e/ou na fanpage da emissora,
da telenovela, etc.
Com efeito, aqui nosso propósito não é discorrer sobre a instância de produção
e quais são as estratégias propostas para a telenovela transmídia. Essa discussão foi
realizada anteriormente, tanto no Obitel, como em outros artigos. Desse modo, vamos
nos concentrar na audiência transmídia refletindo, primeiramente sobre os conceitos de
audiência e de audiência transmídia, para em seguida, apresentarmos os resultados da
pesquisa realizada através de questionário, cuja metodologia será explicada no tópico
relacionado à mesma.
DEFINIÇÕES E REFLEXÕES SOBRE A AUDIÊNCIA
E A AUDIÊNCIA TRANSMÍDIA
Independentemente se estamos falando do jornal, do rádio, da revista, da televisão
ou da internet e suas plataformas, todos os projetos de mídia tanto no que diz respeito
ao seu conteúdo como nas questões mercadológicas são direcionados para uma audiência. Sem esta, conforme Bornman (2009), o conteúdo midiático se torna sem sentido.
Para tanto, é fundamental conhecer as características culturais, econômicas, sociais e
de consumo da audiência. Soma-se aí o fato de conhecer a audiência significa para os
negócios da indústria midiática, que opera a partir do modelo broadcast, atrair investimentos publicitários para o financiamento da produção do conteúdo. No entanto, ainda
segundo a autora, o problema é que a “audiência é geralmente indescritível, geograficamente dispersa e escondida em casa, negócios e/ou carros (...) é somente através da
pesquisa que essa audiência se torna visível” (idem, p. 02).
A audiência que Bornman (2009) fala está relacionada não apenas aos telespectadores de televisão, mas também aos ouvintes de rádio, aos leitores de jornal e de revista e
aos usuários de internet. SchrØder (2011) amplia o conceito, entendendo que audiência
inclui todos os tipos contemporâneos do engajamento do usuário com as mídias, considerando tanto sua produção de sentido como também sua participação. Tal ampliação
do entendimento da audiência é bastante pertinente porque o cenário atual exige uma
perspectiva de consumo de conteúdo midiático em múltiplas plataformas, mesmo que
o objetivo seja entender a audiência de uma única mídia.
O fato é que uma das principais concepções do que é audiência é regida pelo ponto de vista mercadológico e se relaciona com as organizações de mídia, agências de
publicidade e institutos de pesquisa de mídia. Nesse sentido, para Napoli (2011, p.03) “o
conceito de audiência é construído e definido para refletir a economia e as estratégias
imperativas das organizações de mídia” de maneira que audiência se configura em um
resultado da mensuração do consumo de produtos midiáticos, considerando aspectos
sociais, demográficos e psicográficos, e obedecendo aos interesses, às necessidades das
próprias instituições.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
O fato é que a partir da concepção mercadológica da audiência é preciso compreender,
nas palavras de Napoli (2011), que a audiência representa um dos pilares para a economia
e a lucratividade das indústrias midiáticas. Não por acaso, o autor afirma que o conceito
mercadológico de audiência tem “repercussões dramáticas para a produção, distribuição
e veiculação de uma ampla gama de produtos de entretenimento e informação das
organizações midiáticas” (idem, p. 03). No entanto, embora se configure na grande
preocupação principalmente dos veículos de comunicação sobretudo no cenário atual por
tencionar velhos paradigmas, tal conceito é limitado por não problematizar as produções
de sentido nem o estatuto da audiência em si. Na tentativa de problematizar essas questões tomamos como base o Enfoque Integral da Audiência, abordagem teórico-metodológica para os Estudos de Recepção
proposta por Orozco Gomez. Tal abordagem se preocupa em como se realiza a interação entre audiência, e televisão, colocando em jogo o processo de recepção televisiva.
Orozco (2005) propõe o estudo da interação porque campos de estudos anteriores,
voltavam-se para tentar responder ou o que a TV faz com o telespectador ou o que o
telespectador faz com a TV. O Enfoque Integral da Audiência, não considera um dos
pontos do processo, mas abrange tanto a instância produtora como a instância receptora, e o que media tais instâncias.
Nessa abordagem teórico-metodológica, Jacks (1996) afirma que é preciso entender,
em primeiro lugar que a audiência como um sujeito “em situação” frente à TV, que se
constitui como tal a partir da interação com a televisão e das mediações que são postas
no processo de recepção televisiva. Desse modo, Orozco (2005) entende que o sujeito não
nasce audiência, mas se faz, torna-se audiência e isso se dá não só a partir do ato de ver TV,
mas também considerando outros processos e aspectos do sujeito individuais e coletivos.
Na verdade, a própria TV exerce grande influência na constituição do sujeito em
audiência. Tão somente porque a televisão é simultaneamente um meio de produção
e distribuição de entretenimento e informação, e uma instituição social imbuída de
significados, alicerçada por fatores culturais, políticos e econômicos. É justamente esse
caráter da TV que permite que o Enfoque Integral da Audiência entenda como inseparável na constituição do sujeito enquanto audiência e na sua interação com o meio televisivo (idem). A TV tem recursos técnicos, lança mão de estratégias de apelo emocional,
recursos conativos e denotativos para atrair a atenção do sujeito para que ele se torne
“partícipe de uma sequência interativa que implica diversos graus de envolvimento e
processamento de conteúdo televisivo” (OROZCO, 2005, p. 31).
Já em relação à audiência transmídia, também podemos falar de uma audiência que
se constitui no ato do consumo. Nesse caso, da articulação das plataformas de mídia
empregadas para ampliar o conteúdo televisivo e/ou a participação da própria audiência
produzindo conteúdo nos espaços que fazem parte do projeto transmídia. Somado a
isso, entendemos que a audiência transmídia é a audiência considerada modelo pela
instância de produtora. É aquela que vai dar vida ao projeto transmídia, que vai permitir,
por exemplo, que a telenovela transmídia saia da abstração e se manifeste.
Todavia, é válido destacar que a audiência transmídia não vai consumir o conteúdo
televisivo transmídia de forma homogênea. A partir de Palacios (2010) e sua reflexão
sobre as narrativas transmidiáticas, normalmente podemos encontrar três formas de
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
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consumo do conteúdo transmidiático: casual, ativa e entusiasta. O primeiro relaciona-se
com o fato de que a audiência vai interagir com o conteúdo apenas na TV. A partir do
momento em que articula outra plataforma integrante do conteúdo transmídia, temos
a forma de consumo ativa. Por fim, quando a audiência, além da articulação, participa
e colabora nas estratégias do projeto transmídia, que buscam tais participação e colaboração, a audiência consome o conteúdo transmidiático de forma entusiasta. Entretanto,
como entendemos que a audiência transmídia é aquela que é planejada pela instância
de produção e se constitui ao aceitar a proposta de engajamento, fazendo ao menos a
articulação mínima entre a TV e outra plataforma do projeto transmídia, não consideramos o consumo, definido por Palacios (2010), como casual. Ora, o consumo casual é
o consumo com o conteúdo televisivo apenas na televisão, não fazendo parte e nem
materializando o projeto transmídia. Em outras palavras, a audiência que consome
apenas a TV não é considerada audiência transmídia.
A partir dessas reflexões, ainda preliminares, sobre audiência e audiência transmídia,
entendemos como fundamental buscar entender se temos, de fato uma audiência
transmídia e de que forma o consumo da telenovela ocorre, entendendo esse gênero a
partir da transmidiação do mesmo.
PESQUISA SOBRE A AUDIÊNCIA TRANSMÍDIA – INSIGHTS INICIAIS
Discutido os conceitos, que serviram de base para o desenvolvimento do presente
trabalho, podemos então, apresentar os dados e analisarmos os resultados da pesquisa
quantitativa realizada para entendermos como ocorre o consumo da audiência transmídia em relação à telenovela, também transmídia. A amostra tinha condição sine qua non
o consumo televisivo. Ou seja, o respondente precisava assistir à televisão para poder
responder ao questionário.
O questionário, tinha como problema de pesquisa “Como a audiência consome a
telenovela brasileira?”, portanto, o objetivo geral da pesquisa quantitativa realizada era
entender como a audiência consome a telenovela brasileira. Decidimos optar por esse
tipo de pesquisa porque visamos obter o maior volume possível de dados. Pretendemos,
posteriormente, realizar uma pesquisa qualitativa para entendermos, de forma mais
profunda, o consumo da audiência.
Vale destacar que, além do objetivo principal, traçamos quatro objetivos específicos
para a realização da pesquisa quantitativa: descobrir se a audiência conhece a transmidiação da telenovela; compreender o que leva a audiência consumir a telenovela transmídia; entender qual o papel que a audiência atribui à televisão em relação à telenovela
transmídia e identificar quais plataformas de mídia são consumidas pela audiência no
que diz respeito à telenovela (site da emissora, fanpage oficial, revistas, blogs, etc). Como
nosso espaço aqui é curto e a pesquisa continua sendo aplicada, vamos apresentar os
resultados, de forma ainda preliminar.
Em primeiro lugar, buscamos qualificar a amostra. Dos 380 respondentes, 85% são
mulheres, 79% estão na faixa etária entre 18 e 35 anos; 70% possuem ensino superior
incompleto/completo e 32% possuem pós-graduação, mestrado e/ou doutorado. Tais
percentuais não podem ser entendidos como o perfil da audiência transmídia, uma
vez que, a divulgação foi feita por meio das redes sociais da autora, na qual boa parte
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
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faz parte do ambiente acadêmico. Daí o percentual elevado no que diz respeito à pósgraduação. Desse modo, os dados percentuais citados indicam apenas apresenta as
características da amostra.
Após a qualificação da amostra, perguntamos, de forma aberta, como o respondente
assistia à televisão. A maioria das respostas aponta que assistir à TV se tornou uma
atividade ligada à outra. É comum encontrar expressões da seguinte ordem: “vejo TV
enquanto almoço”, “assisto à televisão e fico olhando as minhas redes sociais”, “só vejo
TV com o computador para aproveitar melhor o tempo”. Com efeito, percebemos que a
atenção destinada apenas à TV, no momento do seu consumo, não é tão exclusiva como.
Em paralelo, vale destacar que foi recorrente nos entrevistados apontar que ao mesmo
tempo em que veem TV, estão “fazendo buscas na web no computador”, “conversando
com os amigos através do celular” e “comentando o que está sendo visto na TV através
das mídias sociais”. Daí, observamos como a internet é utilizada em concomitância com
a TV, apontando que pensar em estratégias de segunda tela, é bastante positivo porque
temos uma audiência propícia a isso.
No que diz respeito à telenovela, 65% afirmam que, para eles, a telenovela tem seu
conteúdo reproduzido apenas na TV, e 35% apontam que além da TV, a telenovela hoje
também tem seu conteúdo expandido para outras plataformas como as digitais. A partir
de tais percentuais, podemos perceber que a telenovela ainda é vista nos moldes “tradicionais”, como um programa veiculado apenas na televisão. Soma-se aí o fato de que os
65% representam que a maior parcela desconhece que a telenovela, hoje, é transmídia,
uma vez que, compreendem o gênero televisivo considerando apenas a mídia regente,
a televisão. Em paralelo, se o respondente afirmasse que tinha conhecimento de que a
telenovela é ampliada para outras plataformas, ele teria que exemplificar quais plataformas são essas. Os 35% que reconhecem a transmidiação da telenovela, afirmaram
em sua totalidade, que a internet era uma das plataformas empregadas para expandir
a telenovela para além da TV. Revistas foram a segunda resposta com mais incidência
entre tais respondentes.
No que diz respeito ao conhecimento da audiência em relação às estratégias propostas pela instância produtora, perguntamos se a amostra tinham conhecimento
sobre o site, fanpage, aplicativos, enquetes, blogs e jogos relacionados à telenovela.
Apenas 5% afirmaram que sabiam de tais estratégias, o que nos mostra que, de fato,
os respondentes desconhecem as estratégias mais comuns utilizadas pela telenovela transmídia. Assim, além do percentual de 65% que acreditam que a telenovela é
reproduzida apenas na TV, 95% não têm conhecimento sobre como a ampliação da
telenovela ocorre. Desse modo, não temos, de fato, uma audiência transmídia. Afinal,
se a audiência se comportasse como tal, reconheceriam tanto o fato de que além da
TV, a telenovela utiliza outras plataformas de mídia, como também, reconheceriam
alguns exemplos de estratégias.
Igualmente perguntamos o porquê da amostra em procurar mais informações sobre
a telenovela em outras plataformas de mídia, como a internet. Dos 60% que afirmaram
procurar mais informações sobre a telenovela, os motivos mais citados foram: “por
interesse em ter mais conhecimento sobre a telenovela”, “para estar por dentro do que as
pessoas estão falando sobre a telenovela”, “para saber sobre a vida das celebridades que
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
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participam da telenovela”. Além disso, perguntamos onde os respondentes buscavam
mais informações sobre a telenovela. Todos responderam que a internet era a mídia
utilizada para ampliar o conhecimento em relação à telenovela. Esse resultado nos
mostra que há uma predisposição dos respondentes em associar à web como mídia de
complemento em relação ao conteúdo televisivo.
Perguntamos também de que forma os respondentes participariam, se a emissora os
convocasse. Demos três opções: produzindo conteúdo (comentando no site da emissora,
na fanpage oficial, respondendo a enquetes, jogando); articulando o conteúdo (buscando
conteúdo da telenovela no site oficial, na fanpage oficial, etc); e produzindo e articulando
o conteúdo. Do total da amostra, 25% responderam que participariam produzindo
conteúdo, 63% articulando o conteúdo e 12% em ambas as práticas. Fazendo um paralelo
com as duas grandes categorias de estratégias propostas pela telenovela – propagação e
expansão –, como explica Fechine et. Al (2013), se pensarmos em práticas correspondentes,
a estratégia de propagação está mais propensa ao engajamento da amostra, uma vez
que diz respeito, especialmente à articulação das plataformas e conteúdos ampliados.
Ao mesmo tempo, observamos que temos uma audiência disposta a se engajar no
projeto transmídia de maneira que podemos concluir que temos a possibilidade de
uma audiência, de fato, transmídia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora de forma bastante preliminar, o presente artigo serviu para atentarmos
para o fato de que os esforços direcionados pelas emissoras de televisão – entendendo
aqui a predominância da Rede Globo de Televisão – ainda temos uma audiência que
desconhece a transmidiação do conteúdo televisivo. Obviamente, nossa amostra é
irrisória diante do universo da audiência de telenovela e da audiência de TV mensuradas
pelos institutos de pesquisa. Mesmo assim, acreditamos que os resultados apontados pela
pesquisa são significativos no nosso objetivo de definir e identificar o comportamento da
audiência transmídia no que diz respeito à telenovela, pesquisa que está em andamento
no doutoramento da autora.
Concomitantemente, é válido atentar sobre o papel da televisão. A Pesquisa Brasileira
de Mídia, na sua edição de 2015, mostra que a TV é o meio de comunicação dominante
entre os brasileiros (BRASIL, 2015). Por mais que haja discussões tanto no mercado
como na academia sobre o fim da televisão, a TV continua soberana e goza de boa
saúde (CÁRLON, 2009). Não apenas pelos índices fornecidos pelas pesquisas de mídia,
que justificam seu poder, mas também porque a televisão, culturalmente, faz parte do
cotidiano brasileiro, que tem contato com esse meio de comunicação desde a década
de 1950. Não queremos entrar no âmbito da história da TV no Brasil e sua influência
nas gerações, ao longo dos anos, todavia, é fundamental entender que a televisão se
faz presente no cotidiano do brasileiro em várias searas. A televisão é uma das práticas
sociais do país. Falamos e repercutimos os assuntos e as histórias que vemos, tecemos
comentários, tanto no ambiente offline como também no ambiente online e com as novas
tecnologias, conseguimos interagir e participar dos programas televisivos.
Assim, mesmo sem respostas definitivas, entendemos que as reflexões iniciais sobre
a audiência transmídia correspondem a um esforço inicial para o desenvolvimento de
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Audiência transmídia: reflexões sobre o consumo da telenovela brasileira
Marcela Costa
uma nova proposta para o entendimento dessa audiência e seus hábitos de consumo de
mídia, pensando a partir da telenovela transmídia. Some-se aí o fato de que os estudos
de audiência não são tão volumosos dentro do universo acadêmico como ocorre com
os estudos sobre a produção televisiva, muito menos se tomarmos como pontapé a
audiência de uma TV reconfigurada. Com esses estudos, talvez consigamos mostrar
novas possibilidades para profissionais das mais distintas áreas que trabalham com
os números e/ou comportamento da audiência, estabelecendo um diálogo ainda maior
entre a academia e o mercado.
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4552
Ficção televisiva no YouTube:
um estudo de recepção
Television fiction on the YouTube:
a reception study
F e r n a n d a C a s t i l ho 1
Resumo: Por muito que ainda persista nos lares portugueses, a TV – rainha do
mundo midiático (Traquina, 1997) – começou a dividir o seu reinado. Somos
contrários à ideia de um desfecho apocalíptico para a televisão, porém a
consulta dos conteúdos de ficção noutras plataformas apresenta-se como uma
forte tendência. A internet tem sido apontada como a principal responsável por
esse novo consumo midiático em regime de multitarefas (Livingstone e Bovill,
1999) e o YouTube como um dos protagonistas numa cultura da convergência
(Jenkins, 2009). Neste trabalho, apresentamos um estudo de recepção que propõe
a análise dos comentários dos fãs de duas séries – Conta-me como foi (RTP)
e Morangos com Açúcar (TVI) – e uma telenovela – Laços de Sangue (SIC) –
no YouTube. Em termos metodológicos, as principais abordagens selecionadas
foram a análise de conteúdo (estatísticas textuais) em conjunto com a análise
das redes semânticas. Como resultados, apresentamos alguns dados sobre o
crescimento e desenvolvimento da cultura fandom (Booth, 2010) no YouTube.
Palavras-Chave:Transmedia storytelling; Estudos de recepção; Cultura fandom;
YouTube.
Abstract: As long as it still persist in the portuguese home, the TV – queen of
mediatic world (Traquina, 1997) – started to divide their kingdom. We are against
of apocalyptic finish of a television as we know, however the consult of fiction
content in other platforms shows up a strong tendency. The internet has been
appointed as the main responsible for the new consume of media in a multitasking system (Livingstone, 2011) and the YouTube one of the main actors in the
convergence culture (Jenkins, 2009). In this work, we present a reception study
that propose the content analysis of fan comments about two series – Conta-me
como foi (RTP) and Morangos com Açúcar (TVI) – and one telenovela – Laços de
Sangue (SIC) – on the YouTube. In methodological terms, the main approaches
that have been selected were the content analysis (textual statistics) and also
the semantic network analysis. As results, we present some data on the growth
and development of a fandom culture (Booth, 2010) on YouTube.
Keywords: Transmedia storytelling; Reception studies; Fandom culture; YouTube.
1. Pós-doutoranda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Doutora
em Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra. Pesquisadora do OBITEL (Observatório IberoAmericano de Ficção Televisiva) e do CETVN (Centro de Estudos de Telenovela). Membro do CIMJ (Centro
de Investigação Mídia e Jornalismo). Email: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Ficção televisiva no YouTube: um estudo de recepção
Fernanda Castilho
INTRODUÇÃO
IANTE DAS alterações da nova ecologia midiática, crescem os desafios da indús-
D
tria televisiva, sobretudo no tocante à multiplicação dos ecrãs, digitalização dos
conteúdos e fragmentação das audiências (BUTLER, 2006; FORD et al., 2011; JOST,
2011). Estas mudanças reclamam uma nova identidade da TV, fundamentada em novas
práticas interacionais e produtivas que desafiam a lógica de programação linear e em
fluxo, tencionando seus modelos de negócio (ROSS, 2008; JENKINS, 2009; DOYLE, 2010).
Os conteúdos, como a ficção, obedecem esta nova lógica cultural e económica, de estreitamento da relação entre público e TV por meio de diferentes formas de interatividade e
participação, para além da liberdade de escolha oferecida pela TV por demanda. Todas
estas transformações, em conjunto com as plataformas de livre acesso e partilha de
conteúdos disponíveis no online, tais como o YouTube, solicitam uma dupla abordagem
destes campos para análise das novas formas de acesso e relacionamento com a ficção
produzida pelas emissoras de TV de sinal aberto. Assim, o notável impacto das TIC
revela-se na adoção de novas estratégias de produção e distribuição destes conteúdos,
pois atualmente quase todos os programas de ficção televisiva experimentam o online,
produzindo variados tipos de brand extensions, atraindo os leitores para estes paratextos
infinitos (LACALLE, 2010, p. 98).
Em Portugal, os dados ainda apontam a predominância da assistência televisiva no
modo “clássico”, com o perfil das audiências de ficção predominantemente feminino,
maior de 64 anos e pertencente às classes C e D (CUNHA et al., 2012). No entanto, com
as mudanças dos hábitos de consumo midiático, sobretudo dos mais jovens, estes números enfraqueceram nos últimos anos. Isso acontece porque a juventude experiencia os
conteúdos televisivos de forma mista – em regime de multitarefas – utilizando janelas
alternativas como smartphones, tablets e computadores (LIVINGSTONE e BOVILL, 1999;
MÜLLER, 2009). Neste cenário, 5,4 milhões de portugueses com 15 ou mais anos têm
acesso ao computador2. Conforme os dados da Marktest3, os portugueses que frequentam as redes sociais online admitem dedicar, em média, 88 minutos por dia para visitar
estes sites, com oscilações mediante à idade dos participantes – os mais jovens, entre os
15 e 24 anos, destinam 116 minutos para navegar nestes espaços, enquanto este período
diminui para 62 minutos na faixa etária entre 35 e 44 anos. Em termos comparativos,
de acordo com um relatório da Eurostat4, os portugueses são os europeus mais ativos
nas mídias sociais – 75% dos internautas admitiu publicar mensagens nestes meios em
2012, média superior aos outros Estados da União (52%). Para além disso, destaca-se
o crescimento do acesso aos conteúdos audiovisuais na internet, em plataformas de
assistência em streaming5, resultado do efeito YouTube (BUCKINGHAM e WILLETT, 2009).
2. “5,4 milhões de portugueses utilizam computador”, Estudo Bareme Internet da Marktest, 30 de abril de
2013, [Disponível em] www.marktest.com/wap/a/n/id~1b68.aspx
3. “88 minutos por dia em redes sociais”, Marktest, 12 de fevereiro de 2013, [Disponível em] www.marktest.
com/wap/a/n/id~1b11.aspx
4. “More than half of internet users post messages to social mídia...and over 60% read news online”, 18 de
dezembro de 2012, Eurostat (gabinete de estatísticas da União Europeia), [Disponível em] http://europa.
eu/rapid/press-release_STAT-12-185_en.htm?locale=en
5. “YouTube, streaming e downloads a crescer – exposição às grelhas programadas diminuiu segundo estudo
TV & Video Trent Report”, Meios & Publicidade, 13 de janeiro de 2012.
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Por outro lado, em termos de ficção televisiva, para além dos hábitos de visionamento,
modificam-se também as preferências dos jovens em direção ao consumo privilegiado
de séries, em detrimento das narrativas “longas” como as telenovelas (CUNHA, 2011).
TV DO FUTURO: INTERATIVIDADE E PODER
DE DECISÃO DAS AUDIÊNCIAS
Diante destas alterações, numa cultura midiática convergente (JENKINS, 2009), a
incerteza sobre o futuro da televisão é dos grandes assuntos discutidos atualmente na
academia (BUONANNO, 2008; BUTLER, 2006; JOST, 2011). Será o fim da TV ou uma
revolução drástica dos modos de produção e recepção televisiva?
Durante os anos 1990, as previsões sobre o impacto das TIC no consumo midiático
previam, antecipadamente, a oposição da filosofia das redes de computadores – que
operam tanto enquanto fonte, como destino – e das redes de televisão que pressupõem
uma hierarquia de distribuição (NEGROPONTE, 1995, p.191). Por isso, o caminho
para uma “evolução” da TV conjeturava a aliança destas duas filosofias, deslocando a
inteligência do emissor para o receptor (idem, 1995, p.27).
As reflexões sobre o futuro da TV neste período apontavam para o desdobramento
multisuporte dos conteúdos televisivos em Portugal, representando uma alteração dos
fluxos para um sistema de estoque e webcasting (CÁDIMA, 1999, p.102). Neste sentido,
imaginava-se a extinção do espartilho da grelha televisiva e oferta dos programas em
função do perfil do assinante, disponíveis numa diversificada gama de suportes (idem,
1999, p.102). À medida que as revoluções se intensificam, arriscar um palpite sobre os
novos rumos da TV é, cada vez mais, considerada uma missão espinhosa. A maioria
dos intelectuais permanece numa zona de conforto ao pontuar as alterações observadas
nestes tempos de indefinição.
“O que será da televisão em 10 anos? Terá ainda canais ou todos os conteúdos passarão pela internet?”(JOST, 2011, p.107). Mesmo admitindo a dificuldade de responder
estas questões, François Jost aponta que, de forma mais ou menos conflituosa, convivem
estas duas hipóteses: tanto a aproximação da TV à interatividade possibilitada pelas
técnicas digitais, como a tela do computador adotada como televisão. Assim, a chegada doutros aparelhos permite o acesso aos programas a partir de plataformas como o
YouTube, promovendo formas de recepção e consumo dos programas mais interativas
e participativas (JENKINS, 2009). No mesmo sentido, Jeremy Butler aponta o aumento
da interatividade e do poder de decisão das audiências, além da possível produção de
conteúdos pelos públicos, como principais resultados da postnetwork television (2006, p.12).
No entanto, ao observar o YouTube como espaço cultural de participação, é importante
considerar que sites de partilha de vídeos online não são completamente opostos ao
sistema de televisão broadcast, pois constituem formas diferentes de institucionalização da
televisão, onde o poder das indústrias midiáticas pode modelar as formas de participação
nesses espaços (MÜLLER, 2009, p.59). De acordo com Eggo Müller, a romântica metáfora
de Jenkins sobre a convergência dos meios, independente de qualquer mecanismo de
distribuição específico, representando uma mudança de paradigma assente em relações
mais complexas entre os meios corporativos, de cima para baixo (top-down), e a cultura
participativa, de baixo para cima (bottom-up), em certa medida, deve ser considerada como
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uma perspectiva utópica, devido à estruturação institucional e cultural da TV interativa
e dos sites de partilha de vídeos (MÜLLER, 2009, p.59). Como podemos observar, cada
teórico refere, nestas abordagens, a sua ideia sobre o futuro da TV, de forma mais ou
menos arrojada. No entanto, apesar da preocupação com as mudanças nas formas de
produção e consumo, poucos acreditam no fim apocalíptico da televisão.
Como resultado destas alterações, assentes na migração do eletrónico para o digital
(VILCHES, 2003), notamos o surgimento de confusões terminológicas, tanto na academia, como no senso comum. Tal como refere Scolari, os públicos continuam a nomear
a atividade de acompanhar as narrativas em diferentes plataformas com o verbo “ver”
ou “assistir”: As pessoas dizem, por exemplo, “eu vejo Lost” ou “eu vejo Big Brother”,
mas esse “ver” é, em muitos casos, radicalmente diferente do velho “ver” televisivo”
(SCOLARI, 2011, p.128-129).
No âmbito da ficção televisiva, a interação e a participação das audiências no YouTube
manifesta-se em práticas que assumem especificidades bastante diferenciadas, tanto do
ponto de vista formal, como no tocante aos conteúdos. Neste novo contexto cultural, o
YouTube assume o papel de “Ourtube”6, como espaço para novas práticas coletivas (e.g.
atividades de entretenimento, manifestações de caráter político, religioso, etc.), de grupos
geograficamente dispersos, mas unidos pelas conexões de vídeos (JENKINS, 2010). Essas
comunidades mantêm-se por meio da produção mútua e troca recíproca de conhecimentos e servem como locais de discussão e partilha de conteúdos. No caso específico da
ficção televisiva no YouTube, a participação dos fãs ocorre em duas vertentes distintas:
tanto por meio da publicação de vídeos, como das diversas reações a estes conteúdos.
METODOLOGIA
A proposta deste trabalho7 centra-se em observar as interações e comentários publicados no YouTube dos fãs de títulos de ficção (telenovelas e séries) que tiveram destaque
de audiências na TV aberta em Portugal entre 2008 e 2012. Para dar conta da natureza
interdisciplinar do estudo, escolhemos os métodos mistos de análise8 como referencial
metodológico. A adequação desta linha metodológica ao objeto de estudo confirmou-se em duas frentes: em primeiro lugar, pela consulta à vasta bibliografia de referência;
em segundo, pela dificuldade de trabalhar com um objeto dinâmico como a internet.
Assim, as abordagens habitualmente utilizadas na etnografia virtual (KOZINETS, 2010),
na análise de conteúdo (BARDIN, 1979; HERRING, 2003) e na análise do discurso (CHARAUDEAU, 2007) foram os principais métodos de trabalho utilizados na investigação,
para além de uma abordagem assente na análise de redes semânticas (DRIEGER, 2013).
6. “How YouTube became OurTube”, 18 de outubro de 2010, blogue Confessions of an Aca-fan (http://
henryjenkins.org/2010/10/how_youtube_became_ourtube.html)
7. Este trabalho resulta de uma parte da Tese de doutorado “Teletube – Novo Passeio pelos Bosques da Ficção
Televisiva”, defendida em 2014 no âmbito do programa de doutoramento em Ciências da Comunicação da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/26010
8. Relativamente à mixed research, cada escola intitula esta metodologia da sua maneira, conforme a
abordagem dos teóricos. Por isso, é possível encontrar designações distintas, mas com perspectivas bastante
semelhantes. Estas diferenças resultam, ainda, da pluralidade de combinações possíveis dos métodos de
pesquisa qualitativa e quantitativa, como referem David Deacon, Alan Bryman e Natalie Fenton (1998).
Alguns autores chegam mesmo a identificar onze diferentes modos de integração entre estes métodos
(DEACON et al., 1998).
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Para o presente artigo, optamos por descrever os resultados da análise de conteúdo
(estatísticas textuais) em conjunto com a análise das redes semânticas, ambas realizadas a partir do conteúdo dos comentários dos fãs das séries Conta-me como foi (RTP) e
Morangos com Açúcar (TVI) e da telenovela Laços de Sangue (SIC) no YouTube. O corpus
de análise abrange 2341 comentários publicados em 228 páginas do YouTube que possuíam conteúdos das ficções analisadas9. Importa referir que agrupamos as mensagens
dos fãs no YouTube em quatro blocos textuais, reunindo os textos das mensagens na
totalidade e dividindo por ficção. A proposta era aferir, através da análise sistemática
do conteúdo, pormenores como as ocorrências de vocábulos e repetição de palavras.
As principais ferramentas utilizadas foram: o programa Iramuteq (Interface de R pour les
Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), o aplicativo para incorporação
ao Microsoft Excel NodeXL e o Gephi – software de código aberto para análise de redes.
RESULTADOS
Conforme o modelo proposto por BARDIN (1979), subdividimos a amostra textual
em unidades de vocabulário, selecionando apenas as palavras portadoras de sentido,
classificadas pela autora como palavras plenas – conjunto composto por substantivos,
adjetivos e verbos (1998, p.82). Adicionamos também à análise os nomes próprios, dada
a repetição da referência às personagens no conteúdo das mensagens. Ao cotejarmos a
distribuição do número total destes vocábulos nos comentários das quatro ficções, notamos semelhanças na organização lexical, indicando que a proporção do uso de adjetivos,
substantivos e verbos é essencialmente a mesma em todos os textos. Neste sentido, as
conversas sobre a ficção obedecem mais ou menos ao mesmo padrão, notando-se apenas
um ligeiro aumento no emprego total de verbos, em detrimento dos substantivos, nas
mensagens relacionadas à série Conta-me como foi.
A partir dos resultados das estatísticas textuais clássicas, a primeira evidência
transparece quando observamos a relação entre ocorrências e vocábulos (O/V), pois
este indicador traduz o número médio de repetições por vocábulo do discurso considerado (BARDIN, 1979, p.84). Comparativamente, o número desta relação O/V assinala
que o repertório de base é mais limitado nos comentários da série Morangos com Açúcar
(7.51), pois a repetição de palavras revela a pobreza do vocabulário empregado por
estes jovens nas conversas sobre a ficção. Por outro lado, nos comentários da telenovela
Laços de Sangue este número é igual a 6.19, pouco menos do que o dobro nas mensagens
da série Conta-me como foi – 3.8. Assim, a ficção do canal público registou um número
bastante inferior de palavras repetidas, assinalando a riqueza do repertório utilizado
pelos participantes nas caixas de comentários das páginas do YouTube.
Se compararmos as trinta palavras plenas mais frequentes utilizadas nos textos dos
quatro títulos, por ordem decrescente, registramos tanto semelhanças, como diferenças
importantes. Em primeiro lugar, nos três contextos, as palavras mais frequentes indicam
um posicionamento claramente positivo, sobretudo nos comentários dos vídeos de Contame como foi. Os fãs desta série dizem adorar os conteúdos desta ficção televisiva, pois
9. No estudo integral também analisamos a presença da série Diário de Sofia (RTP2) no YouTube, mas para
a análise das estatísticas textuais a série foi excluída do corpus inicial, em virtude da reduzida quantidade
de comentários.
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são de excelente qualidade. Assim, os termos adorar, melhor, parabéns, excelente, qualidade,
bom, gostar e amar exemplificam estas opiniões favoráveis em quase todas as páginas,
revelando que a satisfação destas audiências é uma das principais razões para publicarem
mensagens no YouTube.
Por outro lado, as personagens são figuras centrais no conteúdos das mensagens,
sobretudo nos comentários sobre a telenovela da SIC e a série juvenil. A repetição
dos nomes Diana, Inês, João, Sara, Rita, Ana e Bryan, manifesta o enfoque nos casais e
triângulos amorosos das histórias, principalmente se atentarmos para a repetição da
palavra namorado e para adjetivação destas personagens com termos como lindo. No
entanto, esta característica não se verifica nas opiniões sobre a série histórica, pois os
fãs referem constantemente apenas o nome de José Cid – cantor e compositor do título
Vinte anos, música da abertura desta ficção.
A trilha sonora consiste noutro tema de grande destaque, especialmente nas
mensagens sobre Morangos com Açúcar, onde a palavra música figura em primeiro lugar
em termos de frequência. O uso constante do termo assinala a importância do assunto
para a juventude, nomeadamente na participação ativa e coletiva do debate sobre os
programas favoritos. No entanto, em menor destaque, os fãs de Conta-me como foi também
publicaram mensagens com o mesmo objetivo dos mais jovens: perguntar o nome das
músicas que fazem parte da banda sonora de determinado episódio exibido no YouTube.
Consideramos igualmente importante assinalar que nalgumas páginas os assuntos
discutidos extrapolam os assuntos relacionados à ficção e aludem temáticas que geram
discussões agressivas, sobretudo nos vídeos da telenovela Laços de Sangue e da série
Conta-me como foi. No YouTube, estas mensagens começam por revelar certo discurso
nacionalista, nomeadamente em defesa das ficções produzidas em Portugal. Isso se
comprova pela frequência dos termos Portugal e português em ambas ficções.
Ainda em termos de frequência das palavras plenas, o agradecimento das audiências
dos canais do YouTube pela partilha de conteúdos revela-se na repetição do vocábulo
obrigado nos títulos Laços de Sangue e Morangos com Açúcar. Nestas páginas, notamos a
participação comunitária dos usuários, empenhados em manter as rotinas de partilha
de conteúdos, bem como a preocupação com a retribuição em forma de agradecimento.
No entanto, como havíamos observado, os fãs da série do canal público foram os que
demonstraram menos sentido de comunidade no YouTube. É provável que isso aconteça
porque pressupomos que o público de Conta-me como foi, inclusive na internet, seja mais
velho e, naturalmente, está menos habituado à lógica das redes sociais.
Notadamente, os comentários sobre Conta-me como foi levantaram menos tópicos
de discussão, enquanto os fãs de Laços de Sangue foram o que diversificaram mais os
assuntos abordados nas mensagens do YouTube. Entre eles, estão as conversas sobre
Morangos com Açúcar. Poderíamos apontar o número de posts como razões para este
indicador, pois, como é óbvio, quanto maior o número de páginas analisadas e respetivos
comentários, cresce a probabilidade de novos temas de discussão. No entanto, por
vezes, este indicador quantitativo não traduz os conteúdos destas interações, visto que
o número de comentários da série juvenil (1534) é superior aos da telenovela (574), porém
as classes de palavras não correspondem a esta relação. Desta forma, percebemos nos
fãs da telenovela maior tendência para levantar temas mais diversificados.
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Redes semânticas no YouTube
Embora os métodos da AC revelem informações fundamentais sobre o conteúdo
dos textos, o estudo da relação estabelecida entre as palavras revela-se uma metodologia
complementar com enfoque nos sistemas de significação (DOERFEL e BARNETT, 1999,
p.589). Os três grafos que podemos observar na Figura 1 representam as redes dos
comentários das ficções no YouTube, onde cada cor simboliza um grupo de palavras
organizadas conforme a modularidade da rede10. Ao compará-las, a estrutura topológica
sugere importantes diferenças que podemos compreender através de métodos e métricas
próprias da ARS.
Figura 1. Grafos das três redes semânticas - Rede I: Conta-me como foi; Rede II: Laços de Sangue;
Rede III: Morangos com Açúcar
Fonte: dados e elaboração da autora.
Para Drieger (2013), estes são os elementos básicos de análise de redes semânticas,
que podem ser reunidos para elaboração de um método de exploração e análise das SN
(semantic network). De acordo com o autor, a estrutura da rede indica visões topológicas
globais utilizadas como ponto de partida para exploração detalhada e navegação até os
pontos de interesse da rede (idem, 2013, p.12). Em primeiro lugar, pretende-se examinar
a estrutura geral de cada uma das três redes para responder à hipótese sobre a possível
existência de diferenças na troca de mensagens dos fãs das ficções analisadas. Assim
como na AC, levamos em consideração apenas as palavras plenas (adjetivos, verbos e
substantivos) dos textos e descartamos os vocábulos de menor importância semântica
para a rede, permanecendo apenas as palavras produtoras de sentido no texto.
Ao compararmos o número de comentários e vértices, observamos certo nivelamento
das mensagens em termos de vértices nas três redes, ou seja, revela-se uma redução
da decalagem dos dados na amostra. Apesar da quantidade reduzida de comentários
sobre a série Conta-me como foi face às demais ficções, o conteúdo destas mensagens é
qualitativamente superior, pois são textos mais longos e densos, compostos por palavras
semanticamente mais relevantes. Observa-se que no YouTube estes fãs discutem alguns
temas de forma mais analítica, expressando opiniões em tom argumentativo e crítico
sobre questões políticas, económicas e sociais do país.
10. Quando um grafo pode ser decomposto em grupos, a modularidade mede estes agrupamentos conforme
a importância na rede.
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Em contrapartida, tanto as conversas publicadas sobre a telenovela Laços de Sangue,
como sobre a série Morangos com Açúcar, aparecem em maior quantidade em termos de
posts, mas menores em extensão e significação. Notamos o agravamento deste indicador na
série juvenil da TVI, pois o conteúdo das 1534 mensagens (quase o triplo de participações
em relação aos vídeos da ficção da SIC e o sêxtuplo relativamente ao primeiro canal)
é traduzido em apenas 302 nós na rede semântica. Estes dados comprovam que para
além da pobreza do vocabulário utilizado nestas conversas sobre o produto juvenil no
YouTube, estes fãs comentam a série favorita de maneira ligeira, com uso intenso de
elementos típicos da CMC, tais como ícones emotivos e expressões como “hahaha”. Ao
inferir sobre o perfil destes fãs, observamos que a linguagem empregada os aproxima
do perfil das audiências da TV. Comparativamente, das três ficções, os fãs de Conta-me
como foi aparentam ter mais idade e escolaridade, enquanto os admiradores de Morangos
com Açúcar são os mais jovens e menos letrados. Por sua vez, ao contrário dos textos dos
fãs de MCA, onde é recorrente encontrar erros ortográficos, os fãs de Laços de Sangue
parecem ter mais escolaridade, porém publicam mensagens mais curtas relativamente
aos comentários de Conta-me como foi.
No âmbito das redes complexas, a distribuição de graus é uma propriedade importante para o estudo da topologia da rede. No modelo de livre escala (scale-free), (BARABÁSI e BONABEAU, 2003), a distribuição de graus aproxima-se de uma lei de potência, ou
seja, alguns nós possuem um número altíssimo de arestas (RECUERO, 2009), conforme
verificamos nas três redes analisadas. Esta especificidade assinala que poucas palavras
possuem alto grau de conexão e estão agrupadas em clusters, relativamente às demais.
Desta forma, as palavras-chave nos comentários dos fãs podem ser identificadas com
recurso à esta métrica que revela a presença de grande intensidade na discussão em
torno de poucos temas.
Sendo o nosso corpus textual grupos de comentários publicados em diferentes páginas
por diversas pessoas, mesmo que os temas de conversa sejam, a priori, semelhantes,
os assuntos em torno deste tema podem variar conforme a rede. Um indicador desta
tendência são as formas de agrupamento das palavras, pois enquanto na rede I temos 14
comunidades com conexões de intensidade mais uniforme, a rede II apresenta 18 grupos
com maior variação de intensidade entre os laços e na rede III, dentre os 19 conjuntos,
algumas palavras possuem laços muito mais fortes dos que outras dentro da rede. Desta
forma, temos indicadores que comprovam que os comentários publicados pelos fãs de
MCA e Laços de Sangue abordam temas mais variados de conversa, apesar de adotarem
vocabulários menos elaborados do que os admiradores de Conta-me como foi.
Palavras centrais nas conversas sobre a ficção
As redes semânticas podem ser decompostas em subgrafos – partes da rede que
indicam os principais pontos de interesse do discurso. Estes pontos representam os
assuntos mais ou menos relevantes nos comentários. Os temas de destaque aglomeramse em subgrafos denominados como clusters e no centro de um cluster está um hub
(conector) – palavra que define o tema do debate. Assim, a análise complementar dos
clusters e dos hubs revela os tópicos semânticos e problemáticas abordadas nos textos,
conforme a interligação das palavras (DRIEGER, 2013, p.12).
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A análise da estrutura geral das três redes proporcionou a clara identificação destas
características, evidenciando-se determinados hubs que representam as palavras-chave,
ou seja, o centro das temáticas dos comentários sobre as ficções no YouTube. Estas
medidas de centralidade das palavras mais importantes na rede semântica são calculadas
através do valor de hub. No caso dos comentários dos fãs de Conta-me como foi as palavraschave foram: adorar, ano e viver, indicando que estão mais fortemente conetadas a outras
palavras. Como vimos, estes fãs mostraram uma grande satisfação em rever episódios
na internet, bem como a época histórica retratada é motivo de interação entre estas
pessoas, tanto para os mais velhos, quanto para os mais jovens.
Outras medidas de centralidade, como a intermediação e a proximidade, indicam
que as palavras-chave também funcionam como pontes para outros clusters (aglomeração
de vocábulos) e passam por poucos caminhos para interligarem-se ao restante na rede.
Ainda no âmbito dos comentários sobre Conta-me como foi, as palavras Portugal e português
destacaram-se em termos de centralidade de proximidade, mostrando estarem muito
próximas de palavras importantes no texto, como os vocábulos adorar, melhor, bonito, belo,
excelente, rir, fixe e prazer. O discurso argumentativo dos fãs, em defesa da qualidade da
produção nacional do canal público, é a principal razão desta evidência, denotando
certo discurso nacionalista nestas participações.
Nos textos dos fãs de Laços de Sangue, apesar da popularidade do verbo adorar, o papel
deste termo enquanto conector é menor do que os vocábulos diana, melhor e português.
As palavras-chave (hubs) mais importantes nos aglomerados de palavras (clusters) nesta
rede semântica são português e obrigado, utilizados pelos fãs com objetivos diferentes.
Muitas vezes a palavra português surge no âmbito da discussão entre portugueses e
brasileiros sobre as autorias produtivas.
A repetição e a importância do termo obrigado denota o agradecimento pela partilha
dos vídeos no YouTube, indicando fundamentalmente que estas práticas simbólicas na
internet são regidas por uma lógica económica própria do digital que assenta na partilha
voluntária que Paul Booth (2010) denomina como free-labor.
A centralidade da palavra Diana, na rede semântica dos comentários da telenovela
Laços de Sangue, revela o destaque desta personagem nos temas discutidos pelo público
no YouTube. Esta palavra-chave interliga as demais palavras que expõem, tanto opiniões
positivas como negativas, sobre o comportamento desta personagem na trama.
Em conjunto, o cálculo das medidas de centralidade, popularidade e conetividade
do termo música endossam a relevância deste assunto nos textos dos fãs de Morangos
com Açúcar. Contudo, talvez mais importante do que isso, assinala a partilha de conhecimento de forma coletiva através da CMC, como apontam as teorias de Lévy (1994) e
outros autores como Jenkins (2009). Assim, a procura por informações no YouTube e
o conhecimento partilhado, neste caso sobre programas de ficção, fortalecem a ideia
do uso criativo da internet pelos fãs. Obrigado e minuto são outras palavras centrais
no discurso dos fãs de Morangos com Açúcar que articulam-se com o termo música. As
personagens também estão representadas pela popularidade do termo Sara nos textos
dos admiradores desta série.
Por último, apesar das diferentes formas de emprego do termo adorar, importa
considerar que a repetição deste vocábulo nos comentários dos vídeos das três ficções,
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poderá indicar um comportamento padrão de satisfação e admiração destas audiências,
corroborando a ideia da formação de comunidades de fãs no YouTube.
CONSIDERAÇÕES
Em resumo, a análise lexical do conteúdo dos 2341 comentários revelou que o
vocabulário utilizado nestes textos tende a alterar-se mediante a ficção. Isso significa
que, por um lado, as mensagens dos fãs da série Morangos com Açúcar gozam dum
repertório mais limitado, com forte utilização de gírias e expressões comuns ao universo virtual. Em contrapartida, os admiradores da série Conta-me como foi constroem
textos com maior riqueza lexical e, por conseguinte, de melhor qualidade, pois são
textos comparativamente longos e densos, compostos um número maior de palavras
detentoras de sentido. Os dados revelaram que as mensagens postadas pelos fãs da
telenovela Laços de Sangue possuem um léxico menos denso que a ficção histórica,
porém maior que a série juvenil.
As palavras mais frequentes no conteúdo de todas mensagens indicaram, tanto
pela repetição, quanto pelo posicionamento e importância na rede de palavras, um tom
claramente positivo, nomeadamente nos comentários dos vídeos de Conta-me como foi.
Os resultados desta etapa investigativa reforçaram a fase anterior, fortificando a ideia
que as personagens são figuras centrais nos textos publicados pelos fãs no YouTube.
Esta comprovação verifica-se, sobretudo, nos comentários das páginas da telenovela da
SIC e da série da TVI.
Para além das personagens, a discussão permaneceu em torno de poucos temas,
identificados por meio das palavras-chave que indicaram forte propensão para o debate
em defesa da portugalidade das ficções. De forma semelhante, há uma grande apetência
pelos assuntos ligados ao universo musical, sobretudo nos textos dos indivíduos que
pressupomos serem mais jovens.
Acima de tudo, a possibilidade de partilhar as emoções com os outros fãs e
sentirem-se integrados numa comunidade de pessoas que possuem os mesmos gostos,
são elementos que contribuem para transformar o YouTube num espaço privilegiado
de recepção dos programas televisivos.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4563
Novos caminhos da produção ficcional
brasileira na era da hipertelevisão
The new brazilian fictional production
directions in the era of hipertelevision
To m a z A . P e n n e r 1
Resumo: A partir da percepção de Latitudes inserida no cenário da hipertelevisão
brasileira, realiza-se - com o estudo de caso - uma pesquisa qualitativa embasada
na análise documental dos conteúdos da obra e na revisão de literatura. A reflexão se configura a partir da imersão do projeto transmídia Latitudes (disponível
no YouTube e distribuído pelo canal pago TNT e nos cinemas brasileiros) no
contexto da hipertelevisão e de outros conceitos trazidos para elucidar novas
formas de produção, distribuição e consumo de obras ficcionais. Desse modo,
busca-se esclarecer quais modelos mercadológicos e sociais regem a distribuição
em diversas plataformas e apontar Latitudes como uma tendência na produção
de conteúdos ficcionais brasileira.
Palavras-chave: Transmidiação. Hipertelevisão. Latitudes. Ficção televisiva.
Novas tecnologias.
Abstract: From the perception of Latitudes inserted in the Brazilian hipertelevisão scenario, we propose – with a case study - a qualitative research based on
document analysis of the production content and literature review. The reflection
is configured by the immersion of the transmedia project Latitudes (available on
YouTube and distributed by the pay channel TNT and in Brazilian movie theaters) in the context of hipertelevisão and other concepts brought to elucidate new
forms of production, distribution and consumption of fictional contents. Thus, we
seek to clarify marketing and social models directing the distribution on various
platforms, what makes Latitudes a trend in the brazilian fictional production.
Keywords: Transmidiation; Hipertelevision; Latitudes; Television fiction; New
technologies.
HIPERTELEVISÃO: UM NOVO CENÁRIO MIDIÁTICO
TELEVISÃO, COMO produto direto das inovações tecnológicas que a Humanidade
A
constrói, passa por diversas transformações conforme o desenvolvimento material ao qual é submetida. No intuito de entender essas transformações e “fases”
pelas quais a TV passa, muitas terminologias e categorizações foram elaboradas. Neste
artigo, trabalharemos com os conceitos de Paleotelevisão e Neotelevisão desenvolvivdos
1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, Brasil. Pesquisador do CETVN - Centro de Estudos de Telenovela e
do OBITEL - Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. E-mail: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4564
Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
por ECO (1983), que tiveram, no final dos anos oitenta, bastante popularidade na campo
científico (Scolari, 2014).
Baseada em um contrato pedagógico, a Paleotelevisão é resultado de um projeto popular de educação (Scolari, 2014), no qual os profissionais de televisão atuavam como propagadores de informações e saber, enquanto a audiência se reduzia a receptora desses
conteúdos. Essa estrutura pressupõe uma hierarquia muito clara entre os detentores do
conhecimento e aqueles aos quais esse conhecimento precisa ser transmitido. Para que se
desenvolvesse, também foi necessário durante muito tempo que se considerasse o público
como massa homogênea, que estaria disponível para consumir a produção televisiva.
Uma característica marcante da Paleotelevisão é a segmentação da programação em
repartições muito claras, que facilitem a assimilação do contrato de comunicação estabelecido. Além dos programas específicos para crianças, idosos, musicais, automobilísticos
e de outros gêneros bem definidos, a grade horária também era montada para seguir
essa segmentação. Cada canal tinha horários e dias específicos para atender a determinado público: o dia e hora do entretenimento, do esporte ou do cinema, por exemplo.
Ainda de acordo com Eco (1983), a Neotelevisão opera de outra maneira, garantindo mais centralidade à audiência no processo de consumo de conteúdos televisivos.
Casetti & Odin, (1990) afirmam que três grandes papéis são atribuídos ao público nessa
nova estrutura televisiva: o de “contratante”, com possibilidade de votar pelo telefone e
interferir nos títulos exibidos; o de “participante”, com a audiência definindo desenvolvimentos e desfechos da trama, também por meio da intervenção pelo telefone; e o de
“avaliador”, por meio de enquetes e sondagens partindo da produção para o público.
Percebe-se, nessa nova estrutura, a descentralização da TV no apresentador, enquanto
representante da produção, e uma abertura maior à participação do telespectador, que
passa agora a atuar na programação televisiva. “Ela [a televisão] não é mais um espaço
de formação, mas um espaço de convívio” (CASETTI & ODIN, 1990, p. 11). Sobre esse
cenário dicotômico entre paleo/neotelevisão, Scolari esclarece:
A oposição entre paleo/neotelevisão – que não negamos, foi muito útil no momento e entender
as mudanças no meio e retrabalhar, a partir da semiótica, o conceito de fluxo desenvolvido
por Williams (1975) – não pode ser isolada das condições sociais de produção de um determinado discurso teórico. A neotelevisão, como já vimos, surge quando os canais privados
colocaram em discussão o monopólio da Radiotelevisione Italiana (RAI), durante o governo
Bettino Craxi. De certa forma, pode-se dizer que a série teórica paleo/neotelevisão é um efeito
colateral da irrupção no ecossistema midiático italiano de um novo ator, Silvio Berlusconi,
no início dos anos 80. E depois da neotelevisão, o que vem? (SCOLARI, 2014, p. 41).
Essa pergunta de partida proposta por Scolari é respondida pelo próprio autor em
seguida: ele propõe que a contemporaneidade é o momento da hipertelevisão Scolari, 2006,
2008a, 2008b, 2008c). Rejeitando o termo pós-televisão – por considerar que não estamos
inseridos em uma era depois da TV, mas em uma sequência do seu desenvolvimento –,
Scolari apresenta a hipertelevisão compatível à ascensão da sociedade em rede (Castells,
1999). Nesse contexto, há a migração da concepção massiva de TV para uma idéia
mais fragmentada da audiência, diluída tanto em relação aos conteúdos quanto aos
dispositivos.
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
Pode-se dizer que, pela primeira vez, a audiência assume certo protagonismo,
interferindo diretamente no desenvolvimento das narrativas televisuais e escolhendo
não apenas uma gama infinitamente maior de conteúdos, mas também a hora e o lugar
nos quais deseja fruí-los.
Dada a crise do broadcasting, a fragmentação das audiências e o avanço de uma televisão
reticular e colaborativa, marcada pelas experiências interativas de seus novos espectadores,
propomos o conceito de hipertelevisão para definir essa nova configuração do meio televisivo
(SCOLARI, 2014, p. 44).
O que se pode apreender das novas experiências interativas é que o consumo da
TV não mais necessita do aparelho de televisão. Este se tornou, na verdade, mais um
dispositivo a partir do qual é possível fruir os conteúdos televisivos. A tendência mundial
na produção é cada vez mais inclinada a considerar vários suportes para veiculação,
principalmente levando em conta as plataformas online.
Sob essa nova perspectiva, um dos aspectos mais defasados da TV tradicional é a grade
horária. Frente a uma produção cada vez mais diluída e acessível on demand, o público
se mostra menos disponível a se submeter aos horários fixos da programação televisiva.
De acordo com Eliseo Verón, a televisão deixou de estar centrada em si mesma para deslocar-se rumo ao telespectador, agora, convertido em usuário. O sucesso dos reality shows ou a
chegada das tecnologias que facilitam a interação com os conteúdos audiovisuais são alguns
dos sintomas dessa mudança. Se acrescentarmos a isso a crise da programação (a televisão
é dividida em diferentes telas, horários, situações de consumo e público) e a diferença entre
oferta/demanda, paira uma sensação de que algo acabou (SCOLARI, 2014, p. 37).
Ao falar sobre o fim de algo, Scolari se refere à televisão como conhecemos. O
autor deixa claro que não concorda com a profecia apocalíptica de alguns setores mais
pessimistas dos estudos da Comunicação que defendem o fim da televisão enquanto
fenômeno midiático sócio-cultural. O que o autor traz com o conceito hipertelevisão
é precisamente uma nova fase da TV, talvez já não mais centrada no aparelho que
tradicionalmente ocupa nossas salas. Scolari se atém menos à plataforma escolhida
para a fruição e mais aos conteúdos transmitidos, que não deixarão de ser televisivos
simplesmente por não serem veiculados em um aparelho de televisão.
Dada essa contextualização, temos como objetivo desse artigo entender o momento
da televisão no qual estamos inseridos e fazer uma análise das produções que compõem
esse novo cenário, por meio do estudo de caso de Latitudes, uma obra que inova em sua
produção e distribuição no mercado de audiovisual ficcional brasileiro.
Levando em conta as características descritas acima, se percebe Latitudes como
uma obra que se insere na realidade da hipertelevisão, disponibilizando seus conteúdos
diluídos em várias plataformas e permitindo a fruição de vários deles à vontade e
possibilidade do espectador.
LATITUDES: UMA OBRA TRANSMÍDIA
Como discutimos anteriormente, a distribuição de conteúdos ente várias telas é a
tendência desse momento na produção de conteúdos televisivos. Nesse cenário, os
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
produtores têm de se adaptar a novos modelos de distribuição que não centralizem mais
à programação exclusivamente na TV. Buscando aprofundar essa discussão, trazemos
para análise a obra ficcional Latitudes, dirigida por Felipe Braga e produzida pela Los
Bragas e House Entertainment.
Latitudes é uma narrativa concebida para circular entre três plataformas principais:
YouTube, televisão e cinema. Estudos anteriores (Mungioli e Penner, 2014) apontam
que a nave-mãe (Jenkins, 2008) de Latitutes2 está centralizada na narrativa do YouTube.
A versão online é composta por oito episódios que foram ao ar antes da televisão e do
cinema e concentram todo o conteúdo ficcional exibido nas outras plataformas. Com Alice
Braga e Daniel de Oliveira como protagonistas, Latitudes conta a história de encontros e
desencontros de um casal ao redor do mundo, sendo cada episódio nas versões seriadas
(YouTube e televisão) ambientado em uma cidade diferente.
A versão para o cinema, resultado da montagem dos episódios em um longa-metragem, foi distribuída pela O2 Play e estreou em fevereiro de 2014 (Latitudes já estava
disponível no YouTube desde setembro de 2013 e já havia sido exibida na TV paga, pela
TNT, um pouco depois, mas ainda no mesmo período – entre setembro e outubro de 2013).
O interessante de perceber no modelo de narrativa estabelecido em Latitudes é
a centralidade na internet. Além de ter sido disponibilizada antes, a versão online
concentra a integralidade ficcional da obra: ela é “autossuficiente” no sentido de não
precisar recorrer a outras plataformas para total compreensão. A televisão, por sua vez,
traz o mesmo conteúdo disponível na internet, mas com sequências extas de produção,
revelando detalhes da feitura da obra. Essas cenas extra-diegéticas são detalhadas e
categorizadas em estudos anteriores (Mungioli e Penner, 2014) e representam novas
ferramentas fornecidas do âmbito da produção para interpretações do público, como
ensaios, leituras dramáticas e descrição dos sentimentos das personagens.
Adotando esse modelo de produção híbrido, Latitudes contou fortemente com as
redes sociais para divulgação e propagação de seu conteúdo. Além disso, uma rede social
específica foi central na distribuição da obra: o YouTube. Esse fenômeno insere Latitudes
na hipertelevisão proposta por Scolari. Sobre essa interação cada vez mais estreita dos
produtores com a rede, é interessante observar que:
Um modelo baseado puramente em produtores e público não pode explicar de forma adequada os diversos pontos de interseção entre as várias partes interessadas nesses sistemas
de valor híbridos. Yochai Benkler afirma em seu livro The wealth of networks (2006) que o
surgimento das plataformas Web 2.0 resulta em uma ecologia de mídia, na qual os produtores de mídia comercial, amadora, sem fins lucrativos, governamental e educacional interagem de formas cada vez mais complexas, muitas vezes empregando os mesmos canais de
mídia (e textos particulares) para propósitos muito diferentes. Por exemplo, com barreiras
relativamente pequenas de acesso, o YouTube apoia muitos tipos de usuários, que variam
desde participantes casuais até produtores independentes, instituições culturais, partidos
2. Uma característica peculiar de Latitudes é a localização da nave-mãe em uma plataforma online (YouTube).
Normalmente, em relações de transmidiação que envolvem internet e televisão ou internet e cinema, a
narrativa central se concentra nos filmes ou nas produções de ficção televisiva, de modo que a internet
atua como satélite para concentrar conteúdos que complementam as histórias contidas em outras mídias.
Nesse caso, observa-se o caminho oposto.
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
políticos, produtores profissionais e uma miríade de categorias entre eles. De fato, o sucesso do site se deve, em parte, a certa flexibilidade que o torna acessível e valioso para essa
base de usuários diversificada. Com poucos limites reais sobre o que pode ser enviado via
upload para o site (com exceção das restrições em torno de material pornográfico, violação
de direitos autorais e algumas categorias que infringem as “normas das comunidades”), o
YouTube é uma plataforma que oferece um alcance potencialmente grande para quase todos
os que chegam. O site incentiva os usuários a pensar em si mesmos como uma espécie de
moeda, com os participantes ganhando prestígio social através do número de visitas que
atraem (JENKINS, FORD e GREEN, 2014, p. 126).
Consideramos que o modelo adotado por Latitudes pode assumir a posição de uma
experimentação na produção ficcional brasileira, representante de uma nova tendência
de distribuição e consumo. O que ainda é comum observar em projetos transmídia no
país é a centralidade narrativa estar na televisão ou no cinema, sendo legada à internet
a função de trazer conteúdos extras sobre uma obra “principal”. O que se vê em Latitudes, no entanto, é a construção de uma narrativa transmídia que deposita todas as
suas fichas na internet, em uma plataforma que por natureza serve como repositório
de conteúdos e os disponibiliza on demand: o YouTube. “(...) abandonar o telecentrismo e
manter um olho observando a evolução de outros nichos próximos à televisão, como,
por exemplo, os jogos, as interfaces web e os dispositivos móveis” (SCOLARI, 2014, p. 47).
Esse modelo refuta primordialmente algo extremamente tradicional na televisão
como a conhecemos até agora, o que tem gerado grande debate acerca dos rumos da
televisão na contemporaneidade: a grade de programação. Disponibilizando sua narrativa principal online, Latitudes quebra a necessidade de a audiência acompanhar a
obra de acordo com os dias e horários nos quais ela é exibida na televisão. O conteúdo,
entretanto, constituído por uma narrativa linear e episódica, não deixa de ser televisivo
só por estar em outro suporte. Observemos que:
(...)a hipertelevisão é o reino do audiovisual gravado registrado em servidores e discos rígidos. Concordamos com Carlón e outros pesquisadores com a ideia de que a “programação”
em breve, será parte da arqueologia televisiva – a frase “não perca o próximo episódio, no
mesmo horário e no mesmo canal”, não fará sentido para os nossos netos –, mas isso não
significa que o gravado passe desta para uma vida melhor. A hipertelevisão, em todo caso,
privilegia o conteúdo gravado sob demanda (SCOLARI, 2014, p. 48).
Posto isso, consideramos que Latitudes inaugura, no Brasil, um momento que aponta
o crescimento da produção transmídia nesse novo cenário estabelecido pela hipertelevisão.
Talvez ela seja o resultado de uma adaptação que as obras televisivas tradicionais precisam
fazer para atender novas demandas de uma audiência cada vez mais exigente. Faz alguns
anos, as produções de ficção nacionais dialogam com plataformas online (Fechine, 2014),
mas nunca se tinha observado a centralidade delas nas narrativas de grandes projetos.
A aparição de novas espécies no ecossistema midiático, tais como jogos de vídeo ou a web,
estão mudando o ambiente, obrigando as velhas espécies (televisão, imprensa, rádio etc.)
a adaptar-se para sobreviver. Por outro lado, estamos testemunhando o nascimento de
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
espécies bastardas, ou seja, meios híbridos que adotam ou simulam gramáticas e narrativas
de outros meios (SCOLARI, 2014, p. 49).
Latitudes se configura, desse modo, como uma “obra bastarda” que desvenda os
novos caminhos da produção audiovisual ficcional brasileira, associando gramáticas
e narrativas televisuais ao YouTube e trazendo para a televisão conteúdos que seriam
tradicionalmente referentes às plataformas online – os conteúdos extras de produção
supracitados. A partir dessa análise de Latitudes no contexto da hipertelevisão, passaremos
a discutir um pouco sobre a audiência formada nesse novo modelo e como se deu a
inserção mercadológica da obra analisada nesse cenário.
FRAGMENTAÇÃO DOS MEIOS
Dado esse contexto, percebe-se que a televisão vive um processo de adaptação para
sobrevivência. Ela precisa se espalhar entre várias telas e atender a públicos cada vez
mais segmentados. Sobre o atual cenário da TV, Orozco esclarece que:
“(...) temos uma TV em transição, que está deixando de ser uma tela dominante para ser uma
tela a mais entre muitas outras que, rotineiramente, atingem amplos setores da audiência.
Nesse sentido, a TV compete, e tem competido, principalmente, por meio de canais pagos que
se especializam para satisfazer os gostos particulares do público” (OROZCO, 2014, p. 103).
Muito se fala sobre a “morte” da televisão, em uma predição de seu fim inevitável.
Percebemos, entretanto, opiniões diversas entre os autores e tendemos a nos alinhar
aos que defendem a transformação da TV e sua inserção em novos cenários, como a
hipertelevisão descrita por Scolari.
Esse fenômeno tem influência direta nas e das audiências, que estão cada vez mais
fragmentadas. Elas se dividem entre números crescentes de mídias, plataformas e canais
e têm possibilidade de fruir conteúdos mais especializados. O avanço tecnológico, que
caminha ao lado dessas novas experiências culturais relacionadas à televisão, têm influência direta nos modelos de distribuição que vêm surgindo. A popularização de plataformas on demand propicia novas formas de recepção e participação mais individualizadas
(Machado & Vélez, 2014). Nesse contexto, não apenas a audiência, mas principalmente os
produtores de conteúdos de televisão estão sendo desafiados a inovar em seus processos
que se mostram defasados frente às inovações nas quais estão inseridos.
A televisão, no entanto, ainda domina como um modelo de produção, distribuição e recepção – um modelo que muda ao longo do tempo para uma versão mais móvel em relação à
norma dominante” (MILLER, 2014, p. 93).
A morte da televisão não está decretada. Como afirma Orozco, “... temos uma TV em
transição, que está deixando de ser uma tela dominante para ser uma tela a mais entre
muitas outras que, rotineiramente, atingem amplos setores da audiência” (2014, p. 103).
De acordo com dados do Anuário 2014 do Observatório Ibero-americano da Ficção
Televisiva, cerca de cerca de 60 milhões de pessoas acessam conteúdos da televisão
pela internet e já há cerca de 4,4 milhões de usários de serviços on demand no Brasil.
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
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Para os que profetizaram a sua “morte”, o fim dessa televisão capaz de reunir cotidianamente milhões e milhões de espectadores em torno de um programa, foi decretado pela
multiplicação das telas (computadores, tablets, celulares), pela fragmentação das audiências
em canais temáticos, pelas inúmeras plataformas de distribuição de vídeos por demanda.
A possibilidade de acessar conteúdos televisivos em outras plataformas, quando e onde
quiser, permite agora ao espectador assistir a programas completos ou a seus fragmentos
descolados da programação, “montando”, assim, sua própria grade. É inegável, certamente,
que esse desprendimento do fluxo televisual implica novos modos de produção de sentido.
Mas será que, diante da emergência de formas assincrônicas e personalizadas de consumo
dos conteúdos televisivos, essa TV que se organizou como sistema broadcasting de comunicação, a partir de fluxo de conteúdos audiovisuais, tende mesmo a ficar apenas no passado?
Com tantas possibilidades de escolhas de dispositivos e conteúdos, ha ainda algum sentido
em assistir à televisão acompanhando sua grade de programação? (FECHINE, 2014, p. 115).
Agora, a pergunta que não quer calar: onde fica o aparelho de televisão nessa história toda? Essa máquina que há tanto ocupa lugar de destaque nos lares brasileiros está
fadada ao desaparecimento? Vamos falar um pouco sobre isso.
O PROTAGONISMO DA TELEVISÃO
No Brasil, apesar do investimento publicitário na internet ter crescido e, em 2013 –
segundo dados do Anuário Obitel 2014 – e já representar 7,3 milhões de reais, a televisão
ainda é o maior foco de investimentos dos anunciantes. Em 2013, as cifras chegaram
a 59 milhões de reais somente na TV aberta, alcançando um crescimento de 18% em
relação ao ano anterior e o maior número desde o início do monitoramento, em 2007.
Esses dados mostram a centralidade que o aparelho de televisão ainda assume no Brasil,
apesar do crescimento de inserção de conteúdos em novos dispositivos. Esse fenômeno
se repete com mais ou menos intensidade em todos os países ibero-americanos conforme
reporta o Anuário Obitel 2014. .
“Com pequenas variações em outros países [da América Latina], a TV e os demais outros
meios massivos (rádio e impresso), ainda são os objetos preferidos do mercado. Dados
recentes mostram, por exemplo, que, nas Américas, o investimento anual nesses meios
cresceu, em 2012, para 2,615 bilhões de dólares” (OROZCO, 2014, p. 97).
O que se percebe ainda comumente na indústria de mídia brasileira e latino-americana é a tendência a “reciclar conteúdos das mídias mais antigas (do cinema e da própria
televisão tradicional” (MACHADO & VÉLEZ, 2014, p. 56) para os veículos que surgiram
a partir da popularização da internet. No entanto, mais recentemente, vem crescendo a
pressão para a criação de novos (e originais) conteúdos mais adaptados e competitivos
para circular nos mercados das novas tecnologias. O que se apresenta é uma grande
variedade de experimentações de formatos e narrativas, onde novos modelos de televisão
são testados e aprovados ou não pelo avaliador final: o público.
Latitudes é um exemplo dessa experimentação, sendo uma produção feita para circular
primeiramente na internet e depois nas plataformas ditas tradicionais. Esse modelo de
distribuição era inédito no Brasil e garantiu ao público acesso online aos conteúdos da
websérie, antes deles serem exibidos na televisão e no cinema.
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
A questão que surge a partir da análise desse modelo é exatamente sobre a razão que
levou Latitudes a sair do universo virtual e ocupar também os veículos ditos massivos.
Estar presente nas novas mídias não permite que uma produção que pretende alcançar
um grande público prescinda dos veículos tradicionais.
(...) a propagabilidade tem expandido as capacidades das pessoas tanto de avaliar como de
circular textos de mídia e, portanto, de dar forma ao ambiente de mídia. Nada disso pressupõe um fim do papel da mídia de massa comercial como talvez a força mais poderosa em
nossa vida cultural coletiva. Em muitos casos, produtores e criadores de marcas decidem
utilizar meios de comunicação mais participativos e meios informais de circulação, mas o
objetivo final deles ainda é a difusão do conteúdo de mídia de massa (...). Em toda parte, o
conteúdo de mídia de massa continua a ser aquele que se espalha para mais longe, da forma
mais ampla e da maneira mais rápida (JENKINS; FORD; GREEN, 2014, p. 315).
Nesse caso, Latitudes esteve presente tanto na internet quanto nas telas das televisões e das salas de cinema. Essa propagabilidade à qual Jenkins; Ford; Green se referem
ocorre em um movimento cíclico e retroativo. Na atual complexidade do mercado e
distribuição de entretenimento, tanto as mídias tradicionais precisam das novas mídias
para propagarem seus conteúdos quanto o inverso ocorre em proporções maiores ou
menores, dependendo da difusão tecnológica (e do acesso a ela) no local de onde se fala.
Essa incerteza dos rumos da televisão e das novas tecnologias na transmissão de
conteúdos de entretenimento leva, além das experimentações da produção e distribuição de conteúdos, a instabilidades mercadológicas. Os profissionais da TV precisam de
meios para repercutirem seus conteúdos na web e os produtores da web não podem
abrir mão do alcance da televisão para projetarem seus conteúdos. Para trazer luz a esse
debate, recorremos novamente a Orozco:
Isso ajuda a entender, entre outras coisas, porque estão ocorrendo em países latino-americanos disputas ferozes entre empresários de diversos meios, sobretudo os da televisão,
com os empresários das televisões e banda larga e telefones celulares, que quiseram e
querem garantir um lugar privilegiado na era digital. O que significa que a TV, até agora,
permanece como um dos principais jogadores no campo em que será definido o futuro
das telecomunicações no mundo. O que não é pouca coisa. Também, não é fácil para a TV
clássica que terá que evoluir de diversas maneiras para sustentar-se nos novos cenários de
comunicação global. (OROZCO, 2014, p. 97).
Desse modo, percebe-se que, apesar das grandes transformações nos modelos de
produção, recepção e consumo dos audiovisuais de entretenimento, especificamente
ficcionais, a televisão ainda é central no mercado e no cotidiano da população brasileira
e latino-americana. É natural que as inovações (principalmente as que dependem de
altos níveis de tecnologia ) demorem mais a chegar em locais com o mercado midiático
controlado por um punhado de empresários e onde a população careça de acesso de
qualidade à internet e seja pobre demais para obter novos dispositivos tecnológicos.
Diante desse cenário, percebe-se que uma produção transmídia que busque alcançar
grandes audiências não pode abrir mão da veiculação nas mídias tradicionais, principalmente a televisão. É precisamente o que ocorre no modelo de distribuição adotado
por Latitudes, sobre o qual faremos uma breve análise adiante.
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
NOVOS MODELOS DE NEGÓCIO A PARTIR DA HIPERTELEVISÃO
A produção de Latitudes enxergou adiante quando acreditou no poder de
monetização das audiências. Colocando nas mãos do público os conteúdos centrais da
narrativa transmídia, a obra pôde ser propagada pelos fãs que cativou, em um modelo
que proporcionou a chegada da série de televisão e do filme nos cinemas com uma
audiência já previamente constituída pela internet.
Pensar em como os investidores irão inserir seus anúncios em uma produção veiculada
em três plataformas diferentes é um desafio que foge dos modelos tradicionais. Latitudes
contou com o apoio da P&G desde o início da produção, que investiu cerca de um milhão
de reais3. Além da P&G, outros investidores de Latitudes são a Fiat e a cerveja Heineken.
As marcas foram apresentadas na obra a partir de inserções roteirizadas, que as
integram à narrativa de maneira mais natural. Esse modelo constitui o product placement,
que insere os produtos anunciados no contexto da trama, com cuidado para anunciar
marcas a situações, personagens e contextos adequados.
José, personagem de Daniel de Oliveira, por exemplo, fotógrafo bem-sucedido e que
trabalha viajando pelo mundo, não deixa de tomar uma Heineken durante suas refeições
ou em bares sofisticados em grandes capitais europeias (a cerveja aparece em quatro
dos oito episódios que compõem as versões seriadas de Latitudes). Alice Braga, por sua
vez, editora de moda influente no mercado de roupas global, dirige um carro da Fiat
compacto, sofisticado e urbano, ditando estilo para mulheres modernas e independentes
que acompanham a obra. Sobre o product placement, Miller esclarece que:
“Existem aproximadamente 35 empresas de product placement nos Estados Unidos. A Entertainment Resources and Marketing Association conecta os fabricantes com seus clientes. Os
visitantes de “erma.org” recebem um exemplo sobre a maravilha que é a integração de seus
produtos na própria cenografia. Os varejistas e os produtores de bens de consumo pagam a
essas empresas cotas de U$50 mil ou mas para que elas vasculhem centenas de roteiros por
ano, nos quais suas marcas e produtos podem ser inseridos. Uma dessas empresas coloca
que “legitimamente é a única forma de pagar uma única vez para uma publicidade que
ficará aparecendo sempre” (MILLER, 2010)” (MILLER, 2014, ps. 90/91).
No Brasil, apesar de esse mercado ainda não estar tão desenvolvido, o product placement passou a ser considerado como um veículo nas medições do IBOPE Media e esse
tipo de publicidade alcançou, em 2013, investimentos que somaram cerca de seis milhões
de reais. Como foi medido tal qual um veículo de comunicação, é possível ver que os
investimentos em product placement ultrapassaram as cifras gastas (em 2013) em publicidade exibida em mídias tradicionais, como rádio, cinema e outdoor (Anuário Obitel, 2014).
Percebe-se, portanto a inserção de grandes empresas nesse mercado que até pouco
tempo era território de usuários e produtores independentes. Sem dúvida, há uma
capitalização da internet e exploração dos modelos de negócio possíveis – e ainda não
muito claros – que suas plataformas possibilitam.
“A lição da nova tecnologia é a mesma de sempre: tal como a imprensa, rádio e televisão,
cada meio é rapidamente dominado por corporações centralizadas e centralizadoras, apesar
3. Fonte: http://propmark.uol.com.br/produtoras/45495:marcas-se-unem-a-projeto-transmidia
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
de seu potencial multidistributivo. Esse centralismo é, obviamente, menos poderoso no
caso no caso da internet do que no caso das tecnologias mais propensas ao hermetismo”
(MILLER, 2014, p. 85).
Latitudes surgiu assim, como uma produção feita com investimentos de grandes
anunciantes – e aí talvez inserção na TV e no Cinema não tenha sido apenas estratégia,
mas necessidade de distribuição para grandes públicos. Com grandes nomes de atuação
nacional e internacional, a obra ocupa um lugar ainda muito habitado por produtores
amadores (a internet, nomeadamente o YouTube) e aponta para a profissionalização
desse ambiente.
Apesar da inovação, Latitudes investe em um campo muito popular na televisão brasileira
e latina: a ficção.
(...) seria bom entender que, ao mesmo tempo que a TV ensaia novos formatos, por exemplo no campo dos reality shows, retorna e refugia-se em seus grandes sucessos do passado,
mas reforçando algumas de suas arestas. E os grandes sucessos da TV ibero-americana se
concentram na ficção: telenovelas e séries. (OROZCO, 2014, p. 104).
É natural que as transformações ocorram a partir da ficção seriada em nosso país,
uma vez que é nesse setor que ocorrem as maiores quantidades de produções e o maior
volume de investimentos. É esse mundo no qual Latitudes está inserido e o qual, sem
sombra de dúvidas, ajuda a transformar a partir da experimentação de novos formatos e modelos de distribuição e consumo desse produto cultural tão tradicional no
Brasil e que não ficaria de fora da onda transmidiáticas e do contexto hipertelevisivo da
contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
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CASTELLS, M. (1999) A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra.
ECO, U. (1983) La estrategia de la Ilusión - TV: la transparencia perdida.
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JENKINS, H; GREEN, J & FORD, S. (2014) Cultura da Conexão. São Paulo: Aleph.
JENKINS, H. (2008) Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph.
LOPES, M. I. V. & OROZCO, G. G. (orgs.). (2014) Estratégias de Produção Transmídia na Ficção
Televisiva. Anuário Obitel 2014. Porto Alegre: Ed. Sulina.
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(2014) O Fim da Televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento.
MILLER, Toby. O Agora e o Futuro da Televisão. In: FECHINE, Y & CARLÓN, M (orgs).
(2014) O Fim da Televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento.
MUNGIOLI, M. C. P & PENNER, T. A. (2014) O universo Narrativo de Latitudes: a reassistibilidade como estratégia de transmidiação. In: Revista GEMInIS. São Carlos, número
2, ano 5, ps. 110-122.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Novos caminhos da produção ficcional brasileira na era da hipertelevisão
Tomaz A. Penner
MUNGIOLI, Maria Cristina; PENNER, Tomaz. (2014) O universo narrativo de Latitudes:
primeiros apontamentos. In: XII Congresso Latinoamericano de investigadores de la Comunicación, Lima, Peru. Anais.
OROZCO, G. Televisão: causa e efeito de si mesma. In: FECHINE, Y & CARLÓN, M (orgs).
(2014) O Fim da Televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento.
SCOLARI, Carlos A. This is The End: as intermináveis discussões sobre o fim da televiseo.
In: FECHINE, Y & CARLÓN, M (orgs). (2014) Fim da Televisão. Rio de Janeiro: Confraria
do Vento.
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook:
notas sobre o cenário brasileiro
Media consumption and youth practices on Facebook:
notes from the brazilian scene
D a n i e l a S ch m i t z 1
E r i k a O i k aw a 2
Resumo: O artigo discute parte dos dados de uma pesquisa nacional da Rede
Brasil Conectado, que se propõe a mapear o consumo midiático juvenil no atual
contexto de convergência tecnológica, cultural e midiática. Os dados aqui tratados referem-se especificamente aos usos do Facebook entre jovens das capitais
mais populosas de cada região do Brasil: Belém, Salvador, Goiânia, São Paulo,
Porto Alegre. O objetivo é vislumbrar nuances em relação às práticas, usos e
apropriações midiáticas nessa rede social à luz dos contextos regionais, partindo-se da perspectiva sociocultural do consumo de Garcia Canclini. Os resultados
indicam que os jovens se apropriam de referenciais midiáticos para dar forma e
fazer circular seus pensamentos e experiências de vida, produzindo conteúdos
que, para serem compreendidos, exigem repertórios culturais e competências
cognitivas afins.
Palavras-Chave: Consumo Midiático. Práticas Juvenis. Facebook. Pesquisa
Comparativa.
Abstract: This paper discusses part of a national research conducted by Brasil
Conectado Network, which aims to map the youth media consumption in the
current context of technological, cultural and media convergence. The results
covered here refer specifically to the uses of Facebook among young people
from the most populous cities of each region of the country: Belém, Salvador,
Goiânia, São Paulo, Porto Alegre. The goal is to discern nuances in the media
practices, uses and appropriations in Facebook, considering the regional contexts,
in the light of Garcia Canclini’s sociocultural perspective of consumption. The
results indicate that young people take ownership of the media references to
form and circulate their thoughts and life experiences, producing content that
require similar cultural repertoires and related cognitive skills to be understood.
Keywords: Media Consumption. Youth Practices. Facebook. Comparative
Research.
1. Pós-doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS),
bolsista PNPD – CAPES. Email: [email protected]
2. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PPGCOM/PUCRS), com bolsa CAPES/FAPERGS. E-mail: [email protected].
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
INTRODUÇÃO
TEXTO DISCUTE parte dos dados construídos em uma pesquisa nacional da Rede
O
Brasil Conectado3, que se propõe a mapear o consumo midiático juvenil no atual
contexto de convergência tecnológica, cultural e midiática. O trabalho de campo
se deu em três etapas: a primeira buscou os dados contextuais (históricos, econômicos,
demográficos, culturais, midiáticos, etc.) dos estados e suas respectivas capitais, incluindo o Distrito Federal. A segunda fase esteve focada nos jovens das capitais e regiões
metropolitanas e combinou um estudo piloto (aplicação presencial de um questionário
com 168 perguntas para 10 jovens de cada estado), com uma pesquisa exploratória
(observação de uma semana de perfis no Facebook de outros 10 jovens de cada estado)4.
Os procedimentos visavam mapear o consumo cultural e midiático de universitários
entre 18 e 24 anos, de classes populares. Já a terceira etapa consistiu na aplicação de um
questionário online, orientado pelos dados construídos nas etapas anteriores, buscando
aprofundar questões e insights, bem como explorar importantes eixos da pesquisa. Este
questionário era composto por 31 perguntas e foi respondido integralmente por 6.471
jovens entre 18 e 24 anos de todo Brasil.
Os dados aqui tratados referem-se mais especificamente aos usos do Facebook
entre jovens das capitais mais populosas de cada região do Brasil, a saber: Norte –
Belém, Nordeste – Salvador, Centro Oeste – Goiânia, Sudeste – São Paulo, e Sul – Porto
Alegre5 e foram construídos, em grande medida, na pesquisa exploratória efetuada
na segunda etapa. Contudo, dados das demais fases da investigação serão utilizados
para contextualizar e compreender melhor os usos do Facebook. Assim, o objetivo é
comparar dados dos cinco estados para vislumbrar nuances em relação às práticas,
usos e apropriações midiáticas desses jovens no Facebook, à luz dos contextos regionais.
CONSUMO MIDIÁTICO E PRÁTICAS DA CULTURA DIGITAL
Nesta pesquisa, parte-se da perspectiva sociocultural do consumo de García Canclini (2006), que toma a apropriação de produtos midiático como uma modalidade dentro
do consumo cultural. Para o autor, a perspectiva sociocultural está centrada na necessidade de lançar um olhar plural, interdisciplinar ao fenômeno. De um modo sintético,
o autor argumenta que o consumo é “um conjunto de processos socioculturais em que
se realizam a apropriação e os usos dos produtos” (2006, p. 80) (traduz-se)6. Na construção de sua argumentação, apresenta seis lógicas a partir das quais as disciplinas o
abordam parcialmente7: “o consumo como o lugar de reprodução da força de trabalho
e de expansão de capital”, “como o lugar onde as classes e os grupos competem pela
apropriação do produto social”, “como lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre os grupos”, “como sistema de integração e comunicação”, “como cenário de
objetivação dos desejos”, “como processo ritual”.
3. A rede é coordenada pela Dr.ª Nilda Jacks e conta com pesquisadores nos 26 Estados brasileiros mais o DF.
4. Nos dois procedimentos buscou-se trabalhar com cinco garotas e cinco garotos.
5. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/08/populacao-brasileira-ultrapassa-marcade-200-milhoes-diz-ibge.html>. Acesso em: 07 mar. 2015.
6. No original: “el conjunto de processos socioculturales em que se realizan la apropriación y los usos de los produtos”.
(GARCIA CANCLINI, 2006, p 80).
7. Muito embora no processo de aquisição, uso e apropriação de produtos estas se articulem.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
Para García Canclini (2006), todo o consumo é cultural, pois o ato de adquirir qualquer bem é muito mais amplo do que a ação de posse. Sendo assim, é o próprio autor
quem lança a questão do porquê da necessidade de se distinguir entre consumo e
consumo cultural – empregado no caso de determinados bens ou atividades, principalmente nas artes e nas ciências. Sua argumentação para tal separação defende que
a independência e autonomia dos campos artísticos e intelectuais na modernidade
acabou criando circuitos independentes para produção e circulação da arte, literatura
e conhecimento. E, para o autor: “Os produtos denominados culturais têm valor de
uso e troca, contribuem para a reprodução da sociedade e às vezes para a expansão de
capital, porém neles os valores simbólicos prevalecem sobre os utilitários e mercantis”
(GARCIA CANCLINI, 2006, p. 88) (traduz-se)8.
O autor não caracteriza o consumo midiático como uma modalidade específica,
pois integra-o ao consumo cultural. Contudo, destaca algumas especificidades do mesmo, pois possui uma determinada autonomia que diz respeito à dinâmica própria de
produção, estilo, circulação e consumo. Portanto, a contextualização de Canclini (2006)
sobre consumo cultural permite pensar sobre o consumo midiático como uma vertente
dele, pois o autor deixa esse entendimento muito claro quando se refere aos meios de
comunicação, nomeando-os e fazendo uma diferenciação a respeito da maior implicação
econômica na produção cultural midiática.
Embora os estudos de recepção e consumo sejam correntes no país há mais de 20
anos9, pouco se discute sobre as especificidades do consumo midiático. Toaldo e Jacks
(2013), numa tentativa recente e discorrer a respeito, ponderam que se trata tanto do
consumo acerca do que a mídia oferece nos grandes meios (televisão, rádio, jornal,
revista, internet, sites, blogs, celulares, tablets, outdoors etc.), quanto dos produtos/conteúdos oferecidos por esses meios (novelas, filmes, notícias, informações, entretenimentos,
relacionamentos, moda, shows, espetáculos, publicidade, entre outros). Nesse contexto,
afirmam as autoras, “a oferta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo,
que se dá tanto através da oferta de bens (por meio do comércio eletrônico e da publicidade), quanto no que se refere a tendências, comportamentos, novidades, identidades,
fantasias, desejos...” (TOALDO; JACKS, 2013, pp. 6-7).
Carrascoza e Rocha (2011) em introdução a uma coletânea de textos sobre consumo
midiático e cultura da convergência dão a esse tipo de consumo um status pouco comum,
pois enumeram três tipos de consumo: material, simbólico e midiático. O midiático tradicionalmente é tomado como consumo simbólico, por se tratar de um produto da indústria
cultural, mas suas particularidades quanto à produção, formato, distribuição, acesso
e principalmente as implicações econômicas inscritas em seus “bens” o distinguem.
Assim como é preciso tomar em conta as particularidades do consumo midiático,
é preciso considerar que sua prática em vias digitais possui peculiaridades, as quais
obtêm espaço privilegiado de discussão e análise dentro dos estudos da cibercultura
e do atual contexto de convergência. André Lemos (2009) define a cibercultura como
8. No original: “Los productos denominados culturales tienen valores de uso y cambio, contribuyen a la reproducción
de la sociedade y a veces a la expansión del capital, pero em ellos los valores simbólicos prevalecen sobre los utilitarios
y mercantiles”. (GARCIA CANCLINI, 2006, p. 88).
9. Vide os estudos sobre o estado da arte de Jacks (2008; 2014).
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
um “território recombinante”, caracterizada principalmente pela potencialização das
formas individualizadas de emissão, pela facilidade da conexão em rede e pela configuração de formatos midiáticos e práticas sociais. O autor ressalta, no entanto, que
não é a recombinação10 em si a novidade da cibercultura, mas a forma, a velocidade e
o alcance global que esse movimento passa a ocorrer nas sociedades contemporâneas.
Essa transformação apontada por Lemos é, em grande parte, possibilitada pela
popularização das tecnologias digitais e da internet, que provocam mudanças tanto no
modelo de produção da informação – que passa a utilizar o processo microeletrônico –,
quanto no seu modo de difusão e circulação, baseado no modelo rizomático das redes,
tendo como uma de suas forças propulsoras os processos colaborativos. Assim, essas
novas formas de produção (de bens, serviço, informação, etc.) implicam também em
uma reconfiguração nas formas de consumo, já que este também é uma forma de produção, que, segundo De Certeau (1994), caracteriza-se por ser astuciosa, dispersa e quase
invisível, configurada segundo interesses e regras próprias do receptor/consumidor.
Jacks et al (2015, no prelo) afirmam, no entanto, a necessidade de se reconsiderar
essa invisibilidade e dispersão nas atuais práticas culturais, pois as “maneiras de fazer”
dos consumidores tornam-se visíveis e rastreáveis na internet. Indo além, defendem
que essa descentralização nas formas de produção e de distribuição de conteúdo no
contexto digital permitiu que os consumidores não apenas produzissem “maneiras de
empregar” os produtos que lhe são impostos, mas passassem a produzir também os seus
próprios produtos, borrando os limites entre “tática” e “estratégia”11, e configurando o
que Jenkins chama de processo de convergência (JACKS et al, 2015, no prelo).
Para Jenkins (2008), a convergência é um fenômeno que extrapola as questões técnicas, envolvendo também a ação e as práticas de produtores e consumidores de conteúdos midiáticos. É, portanto, um processo de mão dupla que ocorre tanto de “cima para
baixo”, no âmbito corporativo, envolvendo “materiais e serviços produzidos comercialmente, circulando por circuitos regulados e previsíveis”, quanto de “baixo para cima”,
à medida que os “consumidores estão aprendendo a utilizar as diferentes tecnologias
para ter um controle mais completo sobre o fluxo da mídia e para interagir com outros
consumidores” (JENKINS, 2008, p. 44). Considerando tais premissas, apresenta-se os
principais resultados sobre o consumo midiático e as práticas de jovens no Facebook.
OS JOVENS E O FACEBOOK
Em função dos limites do artigo, nem todos os dados dos cinco estados serão apresentados, mas sim as singularidades que constituem o consumo midiático, as práticas
e as formas de acesso que cada grupo estabelece com o Facebook. Inicialmente, traz-se
10. Em consonância com a perspectiva de Garcia Canclini sobre o hibridismo cultural, Lemos (2009) ressalta
que a recombinação, a cópia e apropriação de diversos elementos, sejam eles produtivos, religiosos ou
artísticos, é sempre um traço constitutivo de toda formação cultural.
11. Segundo De Certeau (2008), enquanto as estratégias são “ações que, graças ao postulado de um lugar de
poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes
de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem” (p.102), a tática seria determinada
pela ausência de poder e por isso mesmo tem que utilizar “as falhas que as conjunturas particulares vão
abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia” (p.100).
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
dados mais gerais sobre a relação que os jovens instituem com essa plataforma, iniciando
pelo estudo piloto12. Neste procedimento, tem-se um total de 50 jovens contatados nos
cinco estados a que este texto se reporta, dez em cada capital. Destes, apenas um goiano
indica não utilizar o Facebook, a rede social mais utilizada pelos jovens das cinco regiões.
Baianos e gaúchos são os que declaram passar mais tempo conectados, mas paulistas e
goianos estão muito próximos. O maior acesso é à noite (16), contudo, mais jovens (18)
declaram entrar no Facebook várias vezes ao dia e outros estão sempre conectados (11),
com destaque para os do Rio Grande do Sul, que são os que mais possuem smartphones,
facilitando assim essa situação. No Pará, por outro lado, capital com a condição econômica e de acesso à internet mais precária, apenas três acessam diariamente e nenhum
está sempre conectado.
Sobre a finalidade de acesso, as respostas são homogêneas: entretenimento e lazer
são as mais citadas (38), seguido de informação e contato com amigos/familiares (32).
Em nenhum dos estados foram citados contatos profissionais/trabalho como principal
finalidade. As pessoas com as quais se relacionam são amigos (47), familiares (38) e
namorado/companheiro e colegas de trabalho (14), e colegas de aula (13).
Na última etapa da pesquisa, o questionário online13 também explorou a relação
dos sujeitos com essa plataforma. O número de jovens respondentes em cada estado está
assim distribuído: Pará - 510, Bahia - 252, Goiás - 286, São Paulo – 550 e Rio Grande do
Sul – 74014. Nas declarações deste grupo (não mais restrito às capitais, mas ainda jovens
entre 18 e 24 anos15) é possível perceber que os paulistas (89%) são os que mais usam
o Facebook, seguidos dos baianos (61%). Os goianos ficam no meio do caminho (29%) e,
no outro extremo, estão os gaúchos (16%) e os paraenses (13%). Um número menor de
jovens revela que é “um vício”, e eles estão assim divididos: São Paulo (22%), Bahia (15,8%),
Goiás (9,7%), Rio Grande do Sul (5%) e Pará (3,8%). Outros dados corroboram essa mesma posição dos estados nos índices alcançados em cada resposta, conforme a tabela 1.
Tabela 1. Percepção dos jovens sobre o Facebook
São
Paulo
Bahia
Goiás
Rio Grande
do Sul
Pará
Concentra a maioria das minhas atividades na web
51%
33%
16%
10%
6%
É um vício
22%
16%
10%
5%
4%
É a rede que eu mais uso para contatar os amigos
64%
45%
15%
14%
9%
Uso o meu perfil no Facebook em outros aplicativos
(Instagram, Pinterest, Candy Crush Saga, Foursquare, etc.)
58%
36%
22%
9%
9%
Me ajuda em minhas atividades de estudo/trabalho
55%
45%
15%
9%
7%
Bloqueio as atualizações de pessoas que publicam
conteúdos fora do meu interesse
52%
36%
16%
10%
6%
Tira a minha atenção do estudo/trabalho
40%
33%
13%
8%
6%
Sobre o Facebook, você concorda que:
Fonte: dados da pesquisa (2014).
12. Estes questionários foram aplicados em 2013 e 2014.
13. Aplicado nos meses de agosto e setembro de 2014.
14. Ao contrário dos demais procedimentos que focalizaram os jovens das capitais, este instrumento recebeu
respostas do estado todo.
15. Lembrando que nas demais etapas, além do recorte geracional, a renda familiar de até quatro salários
mínimos e a condição de universitário era consideradas.
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
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Discutindo os dados na ordem de apresentação, os índices alcançados na assertiva
“concentra a maioria das minhas atividades na web” podem ser reveladores do tempo
que passam conectados na rede, assim como a declaração de que seu uso seja um vício.
Já as demais respostas são indicadoras de alguns usos e práticas, como a predileção
pelo Facebook para contatar amigos que é maior nos estados que declaram passar mais
tempo conectados, o que pode inclusive justificar o maior tempo de conexão. Esse uso
mais frequente também pode estar implicado no aproveitamento do login desta rede em
outras e também em aplicativos. Algumas práticas, como o auxílio que o Facebook oferece
para as atividades de estudo/trabalho também podem justificar o tempo empregado.
O ato de bloquear as atualizações de pessoas que publicam conteúdos fora do interesse
do jovem pode ser revelador de dois aspectos: a maior competência de manejo na rede
dos jovens que passam mais tempo conectados; a customização da página para receber
conteúdos de maior relevância/importância segundo suas próprias lógicas. Na mesma
ordem em que indicam o maior uso, também estão aqueles que declaram que a rede
tira a atenção do estudo/trabalho. Em uma pergunta específica sobre os espaços de
consumo de informações sobre o país, estado ou cidade, o Facebook é citado por 42%
dos baianos16, seguidos de 37% dos paulistas17, 16% dos goianos18, 9% dos gaúchos19
e 6% dos paraenses20.
Outras assertivas variam um pouco a posição dos estados: a concordância com a
frase “não gosto muito, mas todo mundo usa e eu também”, a posição se mantém, mas
com alguns empates: SP na frente (20%), seguido de BA e GO (5% cada) e RS e PA (3%
cada). Por fim, pouquíssimos jovens indicaram que deixaram de usar a rede porque a
família a está usando demais: nenhum paulista ou gaúcho indicou tal resposta e menos
de 1% dos sujeitos dos demais estados concordou com tal ação.
CONSUMO MIDIÁTICO E APROPRIAÇÕES NO FACEBOOK :
DADOS DA PESQUISA EXPLORATÓRIA
Como já adiantado, a pesquisa exploratória consistiu na observação e coleta de dados
de 10 perfis de jovens de cada estado no Facebook, por uma semana21. O objetivo era
observar os conteúdos disponibilizados e encaminhados, além de captar indícios sobre
as práticas, rituais, consumo midiático e cultural dos perfis observados. Neste trabalho,
apresentam-se os dados referentes a dois grandes grupos de informações coletados
no Facebook22: a) favoritos/curtir23- explicita as preferências dos jovens em relação aos
16. À frente do Facebook estão os portais de notícias e jornais online.
17. Antes do Facebook, os paulistas preferem os portais de notícias, e jornais online e as buscas no Google.
18. Os goianos preferem os portais de notícias e as buscas no Google, o Facebook aparece em terceiro.
19. À frente do Facebook só aparecem os portais de notícias.
20. Os paraenses elegem os sites de notícias, a televisão e as buscas no Google antes do Facebook.
21. Em cada estado, as equipes criaram um perfil próprio no Facebook devido à necessidade de adicionar
os jovens como “amigo” para que a observação ocorresse da forma mais ampla possível e também para
evitar a utilização dos perfis pessoais dos pesquisadores. Por meio desse perfil, foi divulgado o link com
um formulário de triagem online, que continha os dados necessários para identificar os jovens de interesse
da pesquisa. A partir dessas informações, as equipes iniciaram a seleção, o contato e a observação dos
perfis dos jovens.
22. Além desses, foram coletados também os dados pessoais do perfil: locais em que estou e/ou trabalhou,
cidade natal e a atual, religião, preferência política, status de relacionamento etc.
23. No geral, ao curtir uma fanpage no Facebook, o perfil passa a receber as atualizações dessa página, como
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Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
produtos midiáticos (programa de TV, filmes, livros, música, etc.), atividades culturais,
marcas, etc.; e b) posts, que são os textos publicados na timeline do perfil, que, nos oferecem
pistas sobre seus usos e apropriações desta rede. No primeiro grupo, explora-se quatro
categorias – Músicas, Programas de TV, Livros e Filmes24 – por estarem mais diretamente
relacionadas com a questão do consumo midiático (ver TAB. 2).
Tabela 2. Artistas e obras preferidas dos jovens dos cinco estados
FILMEs
LIVROs
MÚSICAs
PROG. TV
PARÁ
• Harry Potter (3) 25
•
Um amor
para recordar (3)
• O Pequeno Príncipe (3) • Banda Rosa de Saron (5) • Pânico (3)
• Romeu e Julieta (3)
• Paula Fernandes (5)
• Os Simpsons (3)
• Todo Mundo Odeia o
Chris (3)
GOIÁS
• Nenhum título em
comum entre os
jovens
• Nenhum título em
comum entre os
jovens
• Adele (3)
• Cambriana (3)
• Coldplay (3)
• Ivete (3)
• Paula Fernandes (3)
• The Walking Dead (4)
RIO GRANDE • Harry Potter (3)
• Harry Potter (3)
DO SUL
• Lord of the Rings (3)
• Adele (6)
• Glee (5)
BAHIA
• Gonzaga – De pai
pra filho (2)
• Harry Potter (2)
• Inception (2)
• Tropa de Elite (2)
• Um amor para
recordar (2)
• Bíblia (2)
• Marley e Eu (2)
• Renato Russo (5)
• Eu, a Patroa e as
Crianças (3)
• Esporte Interativo (3)
• Fantástico (3)
• Futurama (3)
• Two and a Half Man (3)
SÃO PAULO
• Harry Potter (4)
• Amy Winehouse (4)
• Nenhum título em
comum entre os jovens • Lady Gaga (4)
• The Walking Dead (4)
Fonte: dados da pesquisa (2014).25
Nos Filmes, as preferências estão nas produções dos grandes estúdios, com a saga
Harry Potter destacando-se em todos os estados, menos em Goiás. É interessante perceber
que praticamente todos os filmes que encabeçaram a lista de favoritos são baseados em
livros, exceto Inception (no Brasil, A Origem). Entretanto, eles não estão na preferência da
categoria Livros, à exceção de Harry Potter, o mais citado entre os jovens gaúchos, junto
com o Senhor dos Anéis. Embora Harry Potter tenha sido a principal preferência literária
apenas entre os gaúchos, foi citada ao menos uma vez pelos jovens dos outros estados.
Esse fascínio que obras como Harry Potter despertam entre os jovens pode estar
relacionado com a estética transmidiática que envolve tais universos ficcionais, que
permitem uma maior imersão na narrativa, como já foi atentado por Jacks et al (2014).
Além disso, parece ser um produto midiático muito específico de uma geração que
cresceu acompanhando a saga do bruxo de Hogwart por mais de uma década26. Alguns
se fosse uma assinatura de conteúdo.
24. Os nomes das categorias são próprios do Facebook.
25. Importante ressaltar que os números relatados nesta tabela se referem a quantidade de jovens que
declararam preferência a determinado produto midiático, mas não totalidade de referências que tal produto
possui. Por exemplo, apesar de no Pará e no Rio Grande do Sul três jovens indicarem a saga Harry Potter
entre seus filmes favoritos, o número de referência que o termo recebeu em cada estado foi de, respectivamente, seis e oito, pois abarca todas as oito sequências da saga. Portanto, um único perfil pode fazer
várias referências ao mesmo termo.
26. Os livros da série foram publicados entre 1997 e 2007 e os filmes lançados de 2001 a 2011.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4581
Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
falam até de uma “geração Harry Potter”27, que seria formada por jovens que nasceram
em torno dos anos de 1990 e se envolveram com o universo ficcional de J.K. Rowling no
início da puberdade ou da adolescência28. Para concluir a lista de Livros, repleta de best
sellers contemporâneos (além de Harry Potter e Marley e Eu, também foram citados Código
da Vinci, Crepúsculo e A Cabana), chama atenção que dois clássicos sejam os preferidos dos
jovens do Pará (O Pequeno Príncipe e Romeu e Julieta) além da Bíblia estar na preferência
dos jovens da Bahia.
Nos favoritos Músicas, Pará foi o único estado trazer um nome ligado à música
católica (banda Rosa de Saron), e apenas Goiás trouxe uma banda regional (Cambriana).
A lista do Rio Grande do Sul foi a única em que o número de artistas internacionais
superou o nacional, com a cantora Adele na liderança. Bahia, por sua vez, contou
apenas com duas referências internacionais, ambos ícones da música clássica (Mozart e
Beethoven), sendo que em nenhum outro estado houve preferência por esse gênero. Já São
Paulo que apresentou um quadro equilibrado entre artistas nacionais e internacionais,
com o predomínio deste último, a preferência ficou com as cantoras Lady Gaga e Amy
Winehouse. Por fim, vale ressaltar que os jovens paraenses e os baianos foram os que
mais apresentaram, entre os seus favoritos, fanpages dedicadas a divulgar frases de
cantores e trechos de músicas, indicando outras formas de consumo musical, por meio
do compartilhamento de textos e fotomontagens.
Quanto aos conteúdos de TV, os favoritos são as séries norte americanas, que
encabeçaram a preferência em todos os estados (ver TAB. 2). Os programas nacionais
estiveram na lista de favoritos apenas entre os jovens do Pará (programa Pânico) e da
Bahia (Fantástico e Esporte Interativo).
Já sobre as postagens dos jovens, o material foi categorizado em temáticas gerais,
definidas à medida que a leitura e a análise dos posts eram realizadas29. O objetivo era
identificar os principais supertemas30 (JENSEN, 1997) que mobilizavam os jovens. Nos
cinco estados abordados, cinco supertemas31 se sobressaíram, representando mais da
metade dos posts32 coletados:
1) Filosofia ordinária (99 posts) – Reflexões sobre a vida e as vivências no cotidiano.
Muitas vezes trata-se de compartilhamento de conteúdo edificante e até espiritual,
creditado a personalidades famosas, filósofos, poetas, artistas etc. Foi a temática mais
recorrente entre os jovens do Pará e de Goiás.
2) Cotidiano (94) – Abarca o dia a dia do perfil: relatos pessoais, diário, saudação, fotos
pessoais, selfie, vídeos domésticos, etc. Esse tipo de conteúdo predominou em São Paulo.
27. Ver, por exemplo, “A Geração Harry Potter”, reportagem de capa da Revista Época de 13 de nov. 2010.
28. Ver o artigo “Geração Harry Potter”, de Mário Corso, publicado na Carta Capital. Disponível em <http://
www.cartacapital.com.br/educacao/geracao-harry-potter>. Acesso em 20 mar. 2015.
29. Para categorização e análise foi utilizado um recurso CAQDAS (Computer Assisted Qualitative Data
Analisys) chamado NVIVO 10.
30. Os supertemas para Klaus Jensen (1997) são os assuntos mais importantes que levam os sujeitos a entrar
em contato com algum referente midiático, como no caso das postagens em seus perfis.
31. Além desses cinco, havia ainda outros 34, totalizando 39 supertemas identificados no trabalho.
32. Em números absolutos, essas categorias somaram 422 posts. Já o total de publicações das cinco capitais
somaram 775 posts, sendo o Belém com o menor número de postagem, 36, e São Paulo a maior, 256. Goiânia
totalizou 151 posts, Porto Alegre 157 e Salvador 175.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4582
Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
3) Música (92) – Trata dos mais variados âmbitos da temática: videoclipes, letras de
música, informações sobre cantores, lançamentos, compositores, bandas, etc. Representou
a maior parte das postagens dos jovens gaúchos.
4) Humor (86) – Publicações de piadas, cartuns, charges, memes, vídeos engraçados,
etc. Foi a temática mais popular na Bahia.
5) Mídia (51) – Refere-se ao universo da grande mídia e do entretenimento: telenovela,
seriados, notícias (crítica, divulgação/circulação, comentário, etc.), celebridades (fofocas,
paparazzi), revistas em quadrinhos, mangás, desenho animado, animes.
Apesar de Mídia não ter sido a categoria principal em nenhuma dos cinco estados
analisados, permeou outras categorias, como Filosofia Ordinária e Humor, sobretudo
neste último. No geral, as postagens humorísticas se tratavam de fotomontagens que
relacionavam personagens conhecidos a frases e situações engraçadas, muito das quais
viralizaram nas redes sociais, tonando-se memes, como o “Chapolin Sincero”, em alusão à
popular série mexicana Chapolin Colorado, e a “Dona Dorotéia”, personagem interpretada
por Laura Cardoso na minissérie Gabriela (FIG 1).
Figura 1. Fotomontagens de Humor baseadas em personagens da grande mídia.
Em Música, mais da metade das postagens continha links para o Youtube, o que pode
apontar para a importância dessa plataforma nas atuais formas de consumo e circulação
entre os jovens. No Rio Grande do Sul, foi ainda mais representativo, já que 19 dos 21
posts classificados nessa temática eram vídeos dessa plataforma. Conforme o esperado,
a maioria das postagens de Música também se caracterizou como Compartilhada, já que o
Youtube disponibiliza botões que remetem aos principais sites de redes sociais. Mesmo as
postagens classificadas como Própria33 foram, em grande parte, reproduções de trechos
de letras de música e, por isso, foi a que menos apresentou conteúdos autorais dos jovens.
Postagem do tipo Compartilhamento também predominou entre todas as outras
temáticas analisadas, com exceção de Cotidiano, com a maioria das postagens classificadas
como Própria, e com fotos variadas do cotidiano desses jovens: imagens do pôr do sol,
engarrafamentos, livros, comidas, encontro com amigos, selfies etc. Vale ressaltar que a
33. Própria não se refere ao conteúdo autoral, mas aquele que não indica ter sido compartilhado direto
do site, por meio do botão de compartilhamento. Dessa forma, tanto copiar e colar no mural um link do
Youtube quanto copiar trechos de música foram considerados produção Próprias.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4583
Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
Bahia foi o estado que menos apresentou fotos nesse tipo de postagem: dos 14, apenas
dois traziam imagem. As postagens que não continham fotos se tratavam, basicamente,
de saudações, desabafos, atualizações acerca das atividades diárias, enfim, publicações
que respondem à atual pergunta-chave na interface do Facebook – “No que você está
pensando” – e que podem ser considerados textos autorais dos jovens.
Cotidiano também foi a temática que mais contou com postagens realizadas via
dispositivos móveis (21 posts) 34, seguida de perto por Filosofia ordinária (20), o que já
era esperado uma vez que esses aparelhos facilitam o estado de conexão permanente
(always on), permitindo a publicação de conteúdos diversos sobre o dia a dia, quase em
“tempo real”, que talvez não fossem publicados se os jovens não tivessem posse de um
aparelho que facilitasse essa operação.
Em relação à temática Mídia, foram poucas as postagens relacionadas ao mundo das
Celebridades/Entretenimento (desenho animado, programa de TV, novelas, seriados, mangás
e animes), pois a maioria se tratava de compartilhamento de Notícias, especialmente entre
os jovens do Rio Grande do Sul e da Bahia, cada um dos grupos com dez posts sobre a
temática. Como visto anteriormente, os baianos são os que mais declararam o Facebook
como a principal fonte de informação, o que explica de certa maneira serem os jovens
de Salvador que mais compartilham conteúdos noticiosos. Já os gaúchos, que também
elegeram o Facebook como uma de suas principais fontes de informação sobre o país,
estado e cidade,35 acompanham os baianos na liderança de postagens sobre notícias.
Vale ressaltar, também, que os posts classificados em Mídia não esgotaram os
diversos atravessamentos que os conteúdos midiáticos fazem nas publicações desses
jovens, a exemplo dos posts de Humor citados anteriormente, e somente uma análise
mais detalhada acerca dessas postagens poderá elucidar esses diversos atravessamentos
que a mídia faz no cotidiano desses jovens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto traz um breve panorama sobre a relação dos jovens de cinco regiões do
Brasil com o Facebook. O que se pontua aqui são considerações mais gerais que podem
indicar algumas tendências entre os jovens estudados, já que entre as regiões as diferenças foram significativas, a começar pelas condições de acesso, que se mostraram mais
precárias no Norte do país. Tal situação possivelmente esteja relacionada com o fato
dos jovens do Pará terem sido os que menos publicaram conteúdos no Facebook durante
a semana observada – apenas 36 posts –, dado que vai ao encontro dos resultados do
estudo piloto, que mostrou que os jovens paraenses são os que menos se conectam diariamente à internet.
Já os jovens de São Paulo totalizaram 256 posts no Facebook, um número consideravelmente maior de postagens quando comparados aos jovens baianos (175 posts) e
gaúchos (157), que foram os que mais declararam estar sempre conectados. Nesse sentido,
é importante ressaltar essa mudança na preferência em relação ao Facebook: se em 2013
34. É importante ressaltar, no entanto, que esse número não representa a totalidade de posts publicados
por meio de dispositivos móveis, mas apenas aqueles nos quais o próprio sistema do Facebook conseguiu
identificar como sendo “via celular”. Quando não havia identificação, o post era classificado como “via web”.
35. O Facebook só ficou atrás dos sites de notícias entre os jovens gaúchos.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4584
Consumo midiático e práticas juvenis no Facebook: notas sobre o cenário brasileiro
Daniela Schmitz • Erika Oikawa
os gaúchos estavam entre os principais usuários, um ano e meio depois os paulistas
passaram a ocupar tal posição. A popularização de outras redes, como o Instagram e o
Whatsapp36, pode indicar o aumento da dedicação dos jovens a outros sites e aplicativos, além do Facebook, que, ainda sim, foi considerada a rede social mais utilizada pelos
jovens dos cinco estados.
Apesar de contextos situacionais distintos, ao observar as práticas e os conteúdos no
Facebook, foi possível perceber o quanto as referências midiáticas perpassam o cotidiano
e as formas de expressão desses jovens, que se “apropriam de determinados conteúdos
midiáticos para dar outros sentidos a eles, de acordo com as suas experiências midiáticas
e de vida” (OIKAWA et al, 2014, p. 12), como pode ser percebido nas foto/videomontagens
amplamente compartilhados nas redes sociais digitais, a exemplo do meme “Chapolim
Sincero”, citado anteriormente. Tais práticas podem ser compreendidas como sintomáticas também do atual contexto de convergência, na medida em que “[...] cada um de nós
constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações
extraídos do fluxo midiático e transformado em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana” (JENKINS, 2008, p. 28). Exemplo disso é a proliferação de
fanpages, tumblrs, podcasts etc. que os jovens criam para fazer circular conteúdos sobre
suas séries, filmes, livros, artistas favoritos, estabelecendo práticas de sociabilidade que
somente quem partilha do mesmo repertório simbólico podem compreender.
REFERÊNCIAS
Carrascoza, J. A, & Rocha, R. M. (2011) Consumo midiático e culturas da convergência. São Paulo:
Miró Editorial.
De Certeau, M. (1994) A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes.
García Canclini, Néstor. (2006) El Consumo Cultural: uma propuesta teórica. In: G. Sunkel
(org), El consumo cultural en América Latina (pp. 72-95) Bogotá: Convenio Andrés Belo.
Lemos, A. (2009) Cibercultura como território recombinante. In: E. Trivinho, & E. Cazeloto
(Org.). A cibercultura e seu espelho: campo de conhecimento emergente e nova vivência
humana na era da imersão interativa (pp. 38-46) São Paulo: ABCiber; Instituto Itaú
Cultural.
Jacks, N; Toaldo, M & Oikawa, E. (2015, no prelo). Práticas Culturais e Ciberculturais: para
pensar a relação com as tecnologias. In: V. C. Silva, & I. Teixeira (Org) Tecnologias Ciberculturais. Canoas: Editora da ULBRA.
Jenkins, H. (2008) Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph.
Oikawa, E.; Silva, L.A.P. & Feitosa, S.A. (2014, agosto). Cultura da Telenovela: circulação,
apropriação e práticas de consumo da telenovela em redes sociais digitais no Brasil.
Anais do Congreso de la Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación
–ALAIC, Lima, Peru, 12.
Toaldo, M.; Jacks, N. (2013, junho) Consumo midiático: uma especificidade do consumo cultural, uma antessala para os estudos de recepção. Anais do XXII Encontro da Compós,
Salvador, Brasil, 15.
36. No questionário presencial aplicado em 2013, o Instagram e Whatsapp começavam a despontar entre
os jovens investigados.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4585
O consumo de audiovisual na internet
por jovens de Salvador
The audiovisual consumption on the internet
by youth in Salvador
R egina Gomes 1
Resumo: O texto tem como objetivo apresentar alguns resultados, ainda que
provisórios, da pesquisa multidisciplinar dedicada ao mapeamento e análise da
produção audiovisual baiana feita para internet, destacando o consumo dessas
produções por jovens soteropolitanos. Os principais resultados assinalam uma
forma de produção e consumo de webcomédias com fortes traços regionais,
baseadas na improvisação e em temas extraídos de diálogos e situações cotidianas. A análise circunscreveu-se aos canais baianos +1!Filmes, CoringaArt
e Os 10ocupados.
Palavras-Chave: jovem, consumo, audiovisual, internet
Abstract: The text aims to present some results, although temporary, of multidisciplinary research dedicated to mapping and analysis of the audiovisual
production made in Bahia and produced for the internet, focusing on the consumption by the youth in Salvador. The main results show a form of production
and consumption of webcomedias with strong regional features based on improvisation and extracted subjects from conversation and everyday situations. The
analysis was limited to bahia channels +1!Filmes, CoringaArt e Os 10ocupados.
Keywords: youth, consumption, audiovisual, internet
INTRODUÇÃO
S AVANÇOS tecnológicos advindos, principalmente, do cenário de novas mídias,
O
têm reconfigurado as formas de interação social-midiatizada em todo o mundo. Na Bahia, os meios tradicionais de comunicação ainda têm um importante
papel na difusão da informação, embora claramente uma nova configuração midiática
já aponte para a mudança nos hábitos de consumo, sobretudo dos jovens de Salvador.
Desde 2010, canais baianos de produção audiovisual como o +1!Filmes, CoringaArt
e Os 10ocupados apresentam um crescimento vertiginoso, tanto no que diz respeito a
produção quanto ao consumo, com alguns vídeos chegando a ultrapassar a casa de 1
milhão de visualizações. Tal fenômeno está diretamente ligado à conjuntura tecnológica
atual em que tanto a plataforma YouTube quanto as redes sociais parecem hoje ser
imprescindíveis para o consumo midiático, sobretudo, o consumo juvenil. A relação
1. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa) e professora da Faculdade de
Comunicação e do PósCom-UFBA. [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4586
O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
entre estas produções e juventude é evidente e expressa nas temáticas dos vídeos, assim
como no perfil de seus produtores e receptores.
A ideia de investigar tal fenômeno, portanto, se mostrou necessária por sua atualização temática, mas sobretudo porque os resultados podem ajudar a entender melhor a
apropriação social das novas tecnologias, bem como os novos processos de mediação que
delas surgem. Tratando-se de uma pesquisa em curso - Jovens em tempo de convergência:
estudo sobre o consumo de audiovisual e as apropriações de recursos midiáticos por jovens de
Salvador - apontaremos brevemente, alguns procedimentos metodológicos aplicados e
certos resultados que já aparecem como conclusivos nesta fase da pesquisa.
Por fim, convém mencionar que o projeto é parte integrante de uma investigação de
âmbito nacional intitulado Jovens e consumo midiático em tempos de convergência coordenado
pela professora Nilda Jacks (UFRGS) e abrigado na rede de pesquisa Brasil Conectado,
entidade que congrega pesquisadores de mais de 20 estados brasileiros, a qual o Grupo
de Pesquisa Recepção e Crítica da Imagem (GRIM) da UFBA está vinculado.
PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS
O projeto partiu de uma indagação primeira que foi a de compreender o modo
como os jovens de Salvador utilizam, apropriam-se e consomem conteúdos midiáticos
na internet, particularmente aqueles ligados ao universo audiovisual. Procedemos a
um mapeamento inicial desses conteúdos momento em que constatamos uma enorme
produção de vídeos de humor – e em menor número com temáticas LGBT - aqui denominadas de webcomédias. Após a catalogação dessas produções, partimos para uma
pesquisa bibliográfica, fazendo uma revisão de conceitos e autores que já discutiam as
noções de recepção, consumo, práticas culturais, cultura participativa, convergência
midiática (JENKINS, 2009; 2013, GARCÍA-CANCLINI, 2010, CERTEAU, 2013, JACKS,
2013, SILVERSTONE, 2002).
Definimos, então, uma abordagem multidisciplinar que comportou recursos
metodológicos também alargados que combinavam métodos quantitativos e qualitativos
de pesquisa, abaixo relacionados:
– Levantamento analítico da produção audiovisual baiana, utilizando-se das estatísticas
oferecidas pelo YouTube (março a julho de 2013);
– Entrevistas preliminares via email com produtores de conteúdos para internet (julho a
setembro de 2014);
– Aplicação de um grupo focal com cinco representantes desses grupos (setembro de 2014);
– Questionário eletrônico acoplado ao instrumento nacional de pesquisa da Rede Brasil
Conectado (agosto a setembro de 2014).
Como categorias de análise, usamos 4 indicadores designados por Jenkins (2013) para
exame de conteúdos spreadable ou pervasivos, são eles: os atributos do texto midiático
(the atributes of a media text) ou os elementos de linguagem e o motor de engajamento e
compartilhamentos dos conteúdos; a lógica econômica (economic structures), isto é, as
estruturas que dão suporte ou limitam a sustentabilidade da produção e circulação dos
conteúdos; recursos técnicos (techinical resources) que são os dispositivos tecnológicos que
ajudam os processos de circulação dos conteúdos e, por fim, a lógica social (social networks)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4587
O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
ou as redes sociais que engajam receptores nas práticas de consumo. Para Jenkins (2013),
o próprio ato do compartilhamento altera o cenário midiático transformando a velha
lógica de distribuição em uma lógica de circulação.
Neste texto, iremos nos concentrar na apresentação de alguns resultados conclusivos, particularmente aqueles de que tratam o primeiro e o quarto indicador, a saber,
quais seriam as formas estéticas de engajamento e as lógicas que engendram social e
culturalmente o consumo dessas webcomédias, sobretudo nas produções dos canais
+1!Filmes, CoringaArt e Os 10ocupados.
O CONSUMO DAS WEBCOMÉDIAS
O YouTube oferece ao audiovisual um contexto extremamente rico em termos de
dinâmicas de recepção. Lançado em 2005 como um repositório de vídeos com suporte de
compartilhamento, a plataforma tem uma importância fundamental na criação, produção
e circulação de conteúdos audiovisuais dos mais diversos gêneros. Mais democrático,
o YouTube tornou-se também um suporte alternativo de mídias já estabelecidas como
o rádio, a TV e o cinema. E é por meio desta plataforma que os jovens baianos ativam
as suas práticas de consumo.
Convém observar que entendemos o consumo como uma atividade constitutiva do
ser humano que tem dimensões históricas, sociais, culturais e estéticas, não se resume
ao mero consumismo e, portanto, deve estar longe da monolítica “racionalidade econômica” como enfatiza Canclini (2010, p.62) ao aproximar os estudos sobre consumo de
uma “racionalidade sociopolítica interativa”, em que sejam considerados os “aspectos
simbólicos e estéticos da “racionalidade consumidora”. Com efeito, Canclini tem o grande
mérito de trazer a razão para a dimensão estética da relação entre obra e consumidor,
removendo do palco de debate o postulado eminentemente mercadológico e trazendo
complexidade ao campo. Afinal, o consumidor é aquele que experimenta ativamente a
mídia compondo “processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos
dos produtos” (Canclini, 2010, p. 60).
Trata-se aqui de um consumo midiático, definido como uma especificidade do
consumo cultural ou um conjunto de estudos que tem na mídia uma instância capital em
que se examinam as relações entre receptores e produtos em uma dada configuração de
contexto (TOALDO; JACKS, 2013). Em última instância, consumo midiático é o consumo
do que é oferecido pela mídia, em nosso caso, a internet (enquanto ambiente abrigador
de mídias) e os produtos audiovisuais nela disponibilizados.
Esta midiatização do consumo discutida também por Laan Mendes (2012) prevê um
receptor criativo e articulado com o processo comunicacional, ator de seu próprio saber:
No universo da comunicação midiática o receptor é constantemente desafiado a empreender
nova poética no exercício da estética. As dimensões lúdicas e oníricas de muitos produtos
midiáticos convidam os receptores a preencherem os vazios, ao exercício da imaginação e
construção de novos sentidos. E isso se torna ainda mais evidente no contexto da interconexão midiática, sustentada por aparatos e sistemas digitais, que facilitam a apropriação e
reelaboração de conteúdos, sua manipulação em operações colaborativas e sua redistribuição
em redes de relacionamento (Mendes, 2012, p. 100).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
Jenkins (2009) argumenta que as mudanças mais significativas estão ocorrendo
principalmente nas comunidades de consumo, isto é, o consumo individualizado e
personalizado está sendo substituído pelo “consumo como prática interligada em rede”
(2009, p. 327). Estas práticas de consumo, moldadas pela convergência, intensificam a
interação e contribuem com novas formas de participação e colaboração.
Os canais de webcomédias +1!Filmes, CoringaArt e Os 10ocupados são agrupamentos de produtores independentes baianos que disponibilizam periodicamente vídeos
de humor no YouTube. Do ponto de vista da produção, a pesquisa apurou que o surgimento dos canais se deu de forma pouco planejada e que seus integrantes trabalham
coletivamente em regime de divisão e revezamento de tarefas e funções, atuando como
produtores, diretores, roteiristas, fotógrafos ou editores, a depender da ocasião. Eles
estão entre os canais mais citados pelos jovens baianos na pesquisa2 e têm um grau de
popularidade enorme entre eles, haja vista o número de visualizações que alcançam no
YouTube, caso do +1!Filmes que assume expressiva liderança com aproximadamente 46
milhões de visualizações que é seguido por Os 10ocupados com perto de 12 milhões
de visualizações3.
Os produtos oferecidos pelos canais são, essencialmente, vídeos populares de humor
calcado em traços da cultura regional (sotaque, vocabulário e personagens estereotipados) e da cotidianidade. Têm em comum a referência ao teatro do besteirol que marcou
a cena soteropolitana na década de 1980 e que trazia em sua estrutura esquetes com
piadas retiradas de fatos e situações corriqueiras. Estes traços recorrentes podem ser
vistos nos vídeos com a criação de cenas cômicas, geralmente realizadas de improviso,
extraídas do cotidiano dos jovens de Salvador.
A pesquisa traçou o contorno desses consumidores jovens - a partir do questionário
online – que tem entre 18 e 24 anos, nascidos e residentes em sua maioria em Salvador,
que acessam a internet de sua residência utilizando para isso o notebook ou smartphone.
Refira-se que mais da metade desses internautas tem acesso ao YouTube pelo notebook,
tablet ou smartphone e que uma das principais razões de utilização dessa plataforma é
para assistir a vídeos divertidos.
Os produtores deixaram claro, nas entrevistas e particularmente no grupo focal,
a exploração planejada de temas de humor ligados ao cotidiano urbano-periférico de
Salvador. A comédia produziria maior engajamento com o público e é o que “gera mais
acesso”, afirmou o integrante do CoringaArt. O diretor +1!Filmes destacou que a comédia
é um gênero de linguagem universal e, por isso, se comunica melhor com a audiência.
Já o produtor de Os 10ocupados ressaltou que “com tanta coisa ruim acontecendo no
mundo, o humor é necessário”. Além disso, segundo eles, “o baiano teria um feeling
para o humor”, colocando em debate uma espécie de “naturalização” do humor baiano.
De fato, o gênero se estabelece como forte fator de adesão e contribui para o reforçar a
atividade espectatorial do público.
Mas, importante que se diga, este humor regional não necessariamente foge daquilo
a que Canclini (2010) chamou de “desterritorialização cultural”, vez que este consumo
2. A pesquisa trabalhou com um universo de 159 jovens respondentes do questionário eletrônico aplicado
de agosto a setembro de 2014.
3. Os números são relativos ao mês de junho de 2014.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
cultural e midiático local convive harmoniosamente com outras formas de consumo. Isto
ficou evidenciado na pesquisa com o enorme percentual de jovens (cerca de 94%) que,
em primeira instância, usam o YouTube para assistir e compartilhar vídeos musicais
(ou videoclipes) quase sempre estrangeiros.
A criação e o desenvolvimento de personagens-tipo revelou-se também como uma
constante nestas produções, suscitando no espectador um forte poder de identificação.
São tipos populares como o malandro da periferia, o rastafári, o flanelinha, o surfista,
o estudante suburbano, o machão medroso e outros que são encarnados na pele de Psit
Mota (+1!Filmes) Dibicá Labonga (CoringaArt) e Leozito Rocha (Os 10ocupados). Ademais, o comportamento, o léxico regional e as gags, quase sempre extraídas de diálogos
de rua, ajudam na caracterização dos personagens com seus discursos carregados de
malícia e estereótipos. No vídeo Tatoo (+1!Filmes), que tem sozinho perto de um milhão
e setecentas visualizações4, o protagonista entre em pânico diante do som da agulha
de sua tatuadora. O vídeo exagera no vocabulário coloquial regional, como “velho” “tá
ligado”, “massa” e “vai ficar o bicho”. Já Esconde esconde dos Os 10Ocupados, quarto
lugar do ranking, com 773.348 visualizações, traz um grupo de jovens da periferia de
Itinga, que se envolve em situações nonsense na típica brincadeira de criança.
Outro traço comum é o improviso, sobretudo as produções da +1! Filmes e as de
Os 10Ocupados que rejeitam o roteiro e seguem apenas alguns temas escolhidos por
antecipação. Herdada do teatro, a técnica do improviso deixa o ator livre do texto,
mas isso não quer dizer que não exista um plano de ação, ainda que secundário. No
grupo focal os produtores assinalaram que “não existe a ideia de um roteiro fixo” e no
máximo “o roteiro surge 10 minutos antes de gravar” e o improviso seria “a ferramenta
de linguagem” dos atores. Assim, os vídeos são efetivamente construídos na mesa de
edição. O fato é que esta técnica ajuda a sustentar o humor, abrindo mais um canal na
comunicação com público.
Observamos ainda que os vídeos seguem um padrão estético de linguagem baseado na linearidade narrativa que fundamenta-se em enredos simples, até certo ponto
pedagógicos, cujas temáticas exploradas geralmente partem de situações cotidianas
e banais5. Não há, portanto, qualquer ambição para inovações de estilo ou traço de
experimentação de linguagem. Contudo existem variações no grau de investimento
técnico, notadas a partir de eixos como o perfil de formação dos grupos e os recursos
empregados. Assim, por exemplo, ressaltamos diferenças entre as produções da +1! Filmes e as do canal Os10ocupados. Enquanto este último enfrenta precariedades de toda
ordem, da pré-produção à pós-produção, aqueles têm uma estrutura semi-industrial
já garantida, superando as dificuldades técnicas e investindo em equipamentos novos
e profissionais. De qualquer maneira, ambos têm em comum padrões de linguagem
simples e descompromissados.
A linearidade narrativa dos produtos investem-se de uma forma fragmentada, por
sua serialização, fato que contribui para o consumo continuado dos vídeos. Os esquetes
atuam de forma episódica e, embora compondo unidades narrativas independentes, elas
4. Os números são relativos ao mês de junho de 2014.
5. Como uma discussão a partir de um jogo de dominó, uma entrevista de emprego ou uma consulta ao
dentista.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4590
O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
se ligam por meio de elementos invariantes como os personagens e as cenas cômicas
que tornam familiares as situações dramáticas ao espectador. Este tipo de recepção em
série passa a ser também uma estratégia com dupla função: por um lado, esteticamente,
estabelecendo um programa de efeitos em que a narrativa gera expectativa em relação
aos próximos episódios e faz com que o espectador se identifique, sobretudo, com os
personagens que sempre retornam em episódios posteriores, com mudanças sutis em
torno de um eixo temático comumente estático.
Por outro lado, a lógica econômica da “velha TV” com seus intervalos comerciais
e ganchos para o próximo capítulo, aqui aparece de maneira renovada uma vez que o
YouTube oferece um espaço livre de produção com lógicas próprias de consumo e circulação dos vídeos. Dentre essas particularidades, há uma que diz respeito à duração
dos vídeos. Enquanto na TV tradicional as séries possuem entre 30 e 60 minutos, no
YouTube dificilmente as webséries ultrapassam os 5 minutos.6 Trata-se, sem dúvida, de
uma estratégia que se articula com o tempo de fruição mais ágil da audiência na internet.
Contudo, observadas essas diferenças, ainda podemos falar de modelos de produção
e recepção que se reproduzem tanto num contexto como no outro. Em ambos – TV
tradicional e YouTube – o modo de operacionalização e a lógica que rege a estrutura
econômica de manutenção do negócio é a mesma, ou seja, quanto maior o número de
visualizações (ou espectadores na TV), maior será o investimento ou a receita trazida
com a monetização dos vídeos (Google Adsense).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, consideramos uma dupla tensão vigente nesta fase exploratória desta
pesquisa sobre o consumo dos jovens. Por um lado, uma intensificação da atividade
espectatorial traduzida na prática do compartilhamento dos videos de humor, por outro,
notamos que os produtores dos canais ainda permanecem presos a uma racionalidade
fundada em práticas não colaborativas.
Sobre o primeiro ponto de tensão, o compartilhamento pode ser aqui transcrito
como um ato intencional de apropriação expresso no desejo de, não apenas assistir, mas
de curtir, comentar e compartilhar os vídeos, em um fenômeno da cadeia de circulação
definido por Jenkins (2013) como spreadability ou propagabilidade.
Fora do âmbito puramente mercadológico o ato de compartilhar adquire força
criativa e o internauta além de experimentar esteticamente os produtos, de certo modo,
faz o trabalho poético da execução auxiliado por ambientes de interconexão midiática
que integram várias plataformas e multiplicam os pontos de contato com os receptores.
A força da ideia de consumo se constitui no próprio ato do compartilhamento dos vídeos
nas redes sociais, sobretudo no Facebook, que na pesquisa assumiu uma proeminência,
mas o WhatsApp, aplicativo mobile apareceu como forte tendência.
Contudo, os produtores no grupo focal nos surpreenderam ao não demonstrarem
interesse em manter uma relação colaborativa com os consumidores ou mesmo com os
fãs. Embora na entrevista declarassem que os comentários sempre são lidos e respondidos
6. As produções da +1!Filmes, o canal campeão de audiência entre os pesquisados, trazem uma duração
média de 5 minutos. Vale destacar que o tempo gasto com a visualização dos vídeos nem sempre chega
ao fim da exibição.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4591
O consumo de audiovisual na internet por jovens de Salvador
Regina Gomes
(via email e facebook) com rapidez, ficou claro que não há projetos ou sequer disposição
para aproveitar a criatividade dos jovens receptores de seus vídeos. O ideal de um
trabalho colaborativo proporcionado pela internet, defendido por Jenkins (2009), não
parece se aplicar neste modelo de produção, uma vez que não é dada ao consumidor a
possibilidade de interferir de forma direta no processo criativo das obras, restando-lhe
apenas tecer comentários sobre os produtos.
Na verdade, percebemos que a lógica de centralização do processo de criação
permanece (como nas mídias tradicionais) nas mãos dos realizadores e caberia apenas ao
consumidor acompanhá-la. Entretanto, os produtores de webcomédias baianas parecem
esquecer que o público é um ator essencial que integra a cadeia de trânsito desses
conteúdos, pois é também através dele que os vídeos entram no sistema de circulação
das obras, muitas vezes fazendo o papel de multiplicador e divulgador.
Resta-nos apontar que a pesquisa trabalhou uma articulação integrada entre as
instâncias de produção, contexto e consumo, mas que neste texto foi considerada a
última, o que não significa dizer que as estruturas tecnológicas e econômicas que moldam
o contexto de apropriação e uso desses vídeos tenham deixado ser apreciadas. Pelo
contrário, mais do nunca hoje os jovens consumidores e produtores de audiovisual na
internet têm suas práticas conformadas pela cultura e pelos condicionantes históricos,
tecnológicos e econômicos.
REFERÊNCIAS
Barros, L. M. (2013). Recepção, mediação e midiatização: conexão entre teorias europeias e
latino-americanas. In: Matos, M. A.; Janotti Jr, J.; Jacks, N. (Orgs.) Mediação&Mediatização.
Salvador: Edufba, p. 79-105.
García-Canclini, N. (2010). Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: UFRJ.
Certeau, M. (2013). A invenção do cotidiano. Petropólis: Vozes.
Jenkins, H. (2009). Cultura da convergência. São Paulo: Aleph.
Jenkins, H.; Ford, S.; Green, J. (2013). Spreadable media: creating value and meaning in a
networked culture [e-book]. New York: New York University Press.
Silverstone, R. (2002). Por que estudar a mídia?. São Paulo: Loyola.
Toaldo, M.; Jacks, N.(2014). Consumo Midiático: uma especificidade do consumo cultural,
uma antessala para os estudos de recepção. Anais do XXII Encontro Anual da Compós.
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 04 a 07/ 06/2014.
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Música serve para pensar: produção de sentido e
apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Music is used to think: production of meaning and world
appropriation through the juvenile musical consumption
Dulce Mazer1
Resumo: O artigo apresenta uma contribuição teórica sobre os estudos de
consumo, especialmente o musical, entendido como o conjunto de processos
socioculturais através do qual se realizam usos e apropriações de produtos
musicais, um modo para conhecimento do mundo e produção de sentido por
meio da música. Canclini defende a articulação seis racionalidades: cultural,
dos desejos, dos aspectos simbólicos e estéticos, de interação sociopolítica, de
integração social (CANCLINI, 1991; 1995). Para este autor, “pensar2” seria a
reflexão sobre as condições de consumo e cidadania, bem como a construção
de um subcampo de estudos. O texto aborda as origens epistemológicas do
consumo para entender teoricamente seus aspectos cognitivos.
Palavras-Chave: consumo musical; produção de sentido;juventude
Abstract: This article is a theoretical contribution for the Consumption Studies,
specially the musical ones, which are understood as the group of sociocultural
processes in which musical products are used and appropriation take place
(CANCLINI, 1991), a path for the world comprehension and the production of
meaning. Canclini advocates the articulation between six rationalities: cultural,
desires, symbolic and aesthetic aspects, sociopolitical interaction and social
integration (CANCLINI, 1991; 1995). For the author, “to think” is the reflection
over consumption and citizenship conditions, as well as the construction of a
subfield of studies. The paper approaches the epistemological origins of consumption to understand theoretically its cognitive aspects.
Keywords: Musical consumption ;Production of meaning ;Youth
INTRODUÇÃO
OMUNICAÇÃO E Consumo convergem de diversas maneiras na sociedade con-
C
temporânea, principalmente quanto aos aspectos simbólicos e materiais presentes
nestes campos. O intercâmbio de significados entre os dois âmbitos se apresenta
como um modo bastante rico para se ponderar as relações entre cultura e comunicação.
1. Doutoranda do PPGCOM/UFRGS, Brasil, bolsista CAPES. Email: [email protected].
2. O título deste trabalho deriva inicialmente do projeto de tese em construção durante o ano de 2014,
baseado nas leituras sobre a perspectiva sociocultural do consumo. No entanto, em recente levantamento
bibliográfico, encontrou-se referência ao título do livro da pesquisadora Gisela Grangeiro da Silva Castro,
lançado em São Paulo, em 2014. Música serve pra pensar: comunicação em rede, consumo e escuta musical
é uma compilação dos principais textos sobre consumo de música na web.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4593
Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
Diz-se que o estudo dessa intersecção permite conhecer a dinâmica social. A partir do
estudo das práticas socioculturais mediadas em processos de consumo se pode compreender melhor a sociedade. E afinal, espera-se contribuir para a hipótese de que o
processo de consumo musical culmina, ele próprio, no entendimento do mundo, considerando as questões cognitivas de produção de sentido, imbricadas na apropriação e
usos dos produtos culturais.
As mediações comunicativas da cultura apontam a produção de sentido nos usos e
apropriações de meios e bens simbólicos (MARTÍN-BARBERO, 2009). Na relação entre
consumidores/receptores e meios, nas articulações entre as práticas de comunicação e
sujeitos sociais, os usos são “inalienáveis” da situação sócio-cultural e os meios, suporte
de apropriações onde os receptores “reelaboram, ressiginificam e ressemantizam” os
conteúdos de acordo com suas experiências culturais (ESCOSTEGUY & JACKS, 2005).
Sob esse viés, a apropriação é compreendida como a “apreensão do sentido possível
que os atores sociais dão às práticas sociais e culturais produzidas na relação com
os meios de comunicação tecnológicos” (RONSINI, 2010). Assim, o consumo cultural
estaria focado nos processos (como, quando, onde) e no que é consumido (material e
simbólico), enquanto o conceito de usos está mais próximo de uma “ação” em relação
ao que é consumido (SCHMITZ, 2013).
O artigo é uma reflexão teórica e tem como objeto os estudos de consumo, especialmente o musical, entendido como processo de expressão cultural e conhecimento do
mundo que abrange a produção de sentido por meio da música. A ideia esmiuçada aqui
se origina com a leitura do texto O consumo serve para pensar (CANCLINI, 2010), mas se
baseia em uma retrospectiva teórica da proposição de Canclini e sobre os estudos sociológicos e antropológicos de consumo. O artigo toma como pressuposto a centralidade da
cultura desde intersecções entre indivíduo e sociedade (ESCOSTEGUY, 2010) e aponta
abordagens que podem colaborar para a compreensão do consumo em suas relações
com o campo da Comunicação, especialmente quanto ao consumo midiático de música.
OS ESTUDOS DE CONSUMO PARA UMA TEORIA SOCIOCULTURAL
Parte-se das perspectivas sociológica de Campbell (2001) e antropológica de Douglas e
Isherwood (2004), convertendo-se na teoria sociocultural do consumo elaborada por Canclini
(2010), para entender o consumo cultural como um modo para conhecimento do mundo
e para produção de sentido. Nesse esforço, a cultura é interpretada e a formas sociais
são relacionadas a partir do viés do sujeito.
O consumo como questão simbólica, que define práticas sociais, é um fenômeno típico
da experiência social da modernidade. Com ele, cresce uma cultura do consumo que para
alguns autores é “cada vez mais proeminente” (FEATHERSTONE, 1995, p.31). Ela define
as relações entre cultura, economia e sociedade. É verdade que a cultura do consumo
resulta da “expansão da produção capitalista de mercadorias” (FEATHERSTONE, 1995,
p.31). Mas se complexifica, à medida que vai se construindo uma epistemologia do
consumo ancorada na cultura. De forma que a cultura do consumo vai sendo entendida
também a partir de prazeres emocionais e estéticos, considerando as mercadorias como
geradoras de satisfação e criadoras de vínculos para a distinção social (FEATHERSTONE,
1995, p.31).
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Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
No “discurso fundador” (BACCEGA, 2014, p.59) da perspectiva sociológica, Veblen
apontava que as práticas de consumo (rituais, usos, e processos distintivos, como a
ostentação dos bens) resultariam em identidade de classe. Deriva de Veblen a herança
teórica de Bourdieu quanto às práticas e rituais de consumo de sujeitos vinculados a
classes, a comunidades de gosto e a percepções de associação identitária (BACCEGA,
2014, p.59). Desse viés, os sujeitos expressam culturalmente seu pertencimento a um
campo social. Na visão antropológica, o consumo é entendido como código cultural.
Até os anos 1970, o quadro teórico era dominado pelo viés econômico. Douglas e
Isherwood (2004) reivindicam uma antropologia do consumo, desvendando seus significados culturais. Com O mundo dos bens3, os autores questionam as teorias reducionistas, explicando o consumo para além de usos hedonistas, moralistas ou naturalistas,
tópicos presentes na interpretação economicista da re/produção e no uso instrumentalista dos bens. Tais questões indicam uma guinada do entendimento de consumo
para a construção de valores e identidades, para a condição ritual do consumo, para as
relações sociais reguladas por ele e para a atividade sociocultural do consumidor, já
que “a função essencial do consumo é sua capacidade para dar sentido” (DOUGLAS &
ISHERWOOD, 2004, p.108).
O uso hedonista, expresso no exercício do prazer, no entanto, é retomado nos anos
1980 por Campbell (2001), em uma posição menos rígida, quando ele afirma ter havido
um deslocamento do sentido do hedonismo na ética Romântica, elemento ativo “no
nascimento do consumismo moderno” (CAMPBELL, 2001, p.288). Referindo-se aos
estudos da poesia romântica, Campbell aponta que o prazer revela sua função nobre,
pois é o “instrumento da verdade do poeta, seu meio de conhecer a beleza do universo
e sua maneira de dar expressão à dignidade essencial do homem” (2001, p.267). Sobre a
relação entre produção de sentidos, aspectos cognitivos do consumo cultural de música
e prazer, Campbell afirma ainda: “o prazer é, com efeito, o grande princípio elementar
através do qual o homem conhece, e sente, e vive, e move-se” (2001, p.267).
É a partir das discussões até aqui apresentadas que Canclini propõe explorar as
visões de consumo e cidadania na América Latina, tomando os processos culturais
para tratar de diversidade e do multiculturalismo. Para ele, estava superada a ideia de
que o consumo é um ato individual, irracional, impulsionado pelo desejo e investido
de preconceitos. Suplantava-se, principalmente, o entendimento de consumismo4 como
única forma de consumo (BACCEGA, 2012). Canclini critica o economicismo, recusa a
noção naturalista de necessidades e a instrumentalista dos bens (1991), pois o consumidor
não estaria sujeito a forças naturais ou estritamente econômicas.
Para Canclini (1991; 1995), os estudos de consumo devem articular seis racionalidades:
o aspecto cultural, a partir dos ritos, a esfera dos desejos, o compartilhamento de aspectos
simbólicos e estéticos, uma interação sociopolítica e uma integração social. Também
contrários à teoria utilitarista, Douglas e Isherwood (2004) consideraram que o fluxo
3. The world of goods: towards an anthropology of consumption foi publicado originalmente pela editora
Routledge, em Londres (1979).
4. O mal do consumismo impregna os estudos sobre o consumo e acaba por tratar de forma indiferente os
cidadãos críticos, capazes de construir outras formas de consumir, viver. As práticas socioculturais são
entendidas como direitos que permitem ao sujeito o sentido de pertencimento social (CANCLINI, 2010).
“El consumismo há sido asumido como única forma del processo de consumo” (BACCEGA, 2012, p. 85).
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Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
padronizado de bens mostra um mapa de integração social. Na perspectiva antropológica
de crítica à moralidade anticonsumista, o consumo precede a interação social, pois é
visto como mediação. Nesse entendimento, todos os atos de consumo são feitos culturais.
Consumo midiático – uma especificidade
Um conceito que merece ser discutido para o aprofundamento do consumo
musical é o de consumo midiático. Este é entendido como uma vertente do cultural,
compreendendo meios, produtos e conteúdos relacionados à cultura. O consumo
midiático seria “preâmbulo para conhecer outras formas de relação com os dispositivos
digitais, uma vez que se dá simultaneamente e de forma entrecruzada a partir da
convergência midiática” (TOALDO & JACKS, 2013, p.8). Os estudos sobre o consumo
cultural e midiático podem mapear características do cotidiano que imprimam sentido,
demonstrem usos e apropriações de conteúdos e produtos musicais. Podem também
permitir um aprofundamento sobre a recepção musical midiática, pois a pesquisa de
recepção possibilita especificar os sentidos produzidos a partir da audiência de um
gênero ou produto midiático (SCHMITZ, 2013).
Como novo enfoque da recepção, Terrero (2006) afirma que o consumo cultural se
transforma em reflexão teórica e eixo de investigação que explora hábitos, comportamentos
ou gostos no consumo de meios e a relação entre ócio, práticas e consumos culturais. Assim,
o consumo midiático é um acesso para os Estudos de Recepção. O primeiro envolve os
estudos de “ordem da relação mais ampla com os meios de comunicação” (TOALDO &
JACKS, 2013, p.8). Os estudos de recepção detalham aspectos do fenômeno midiático e
das práticas e ressignificações dos receptores “na dimensão de seus conteúdos, fechando
o foco de observação” (TOALDO & JACKS, 2013, p.8). Os estudos de recepção seriam,
portanto, uma perspectiva teórico-metodológica, apoiada no consumo cultural, “para
chegar ao mix de comunicação que configura a relação da audiência estudada com a
mídia5” (TOALDO & JACKS, 2013, p.3).
Janotti Jr. destaca que a “poética do processo de recepção é o reconhecimento do
ato do consumo como produtivo” (2003, p.15), valores que relacionam o processo de
fruição estética e os objetos culturais ao processo interpretativo e à produção de sentidos.
Estes processos envolvem condições de produção e reconhecimento, que permitem as
expressões e construções identitárias através de práticas discursivas (JANOTTI JR., 2003).
A produção de sentido nos produtos musicais atravessa as cenografias dos gêneros, as
performances, o texto e a melodia, as narrativas específicas de um artista, seu contexto
midiático e até mesmo a vida cotidiana publicizada dos ícones musicais.
Em busca de um conceito para consumo musical
Ao refletir sobre o consumo de música entre os jovens, toma-se a afirmação de
Canclini (1991) sobre o consumo como “o conjunto de processos socioculturais em
que se realizam a apropriação e os usos dos produtos” (CANCLINI, 2010, p.60). Daí a
necessidade de se conceituar o consumo de música para além do senso comum. Depois
5. A mídia é considerada uma ambiência comunicacional massiva (TOALDO & JACKS, 2013), entrecortada
pela cultura digital.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
de realizada uma investigação teórica na perspectiva dos estudos culturais, nota-se que
a questão ainda deve ser aprofundada para esboço de um conceito. Assim, num primeiro
momento, sem prejudicar o raciocínio apontado até aqui, o consumo musical, como
fenômeno cultural articulado, seria o processo de expressão cultural que se dá pelos
usos e apropriações de música para a produção de sentido, resultando em apropriação
e conhecimento do mundo.
No consumo cultural, o valor simbólico prevalece sobre o de uso e de troca (CANCLINI, 1991). Da mesma maneira, observa-se que, como na apreciação da poesia e da
fotografia, a música envolve aspectos estéticos e simbólicos essenciais para a compreensão dos sentidos carregados em seus produtos e apontados pelos sujeitos a partir da
fruição. Dessa forma, questiona-se: seria o consumo musical uma especificidade do
cultural ou do cultural midiático? O consumo midiático de música poderia ser entendido
como uma nova forma de consumir e entender as relações do sujeito com as mídias e
com a própria sociedade? Na tentativa de refletir sobre essas questões, as práticas musicais devem ser observadas, já que “o consumo musical pode ser realizado por diversas
formas: shows ao vivo, vinil, CDs, TV, rádio e pelas plataformas digitais, como é o caso
do formato streaming (execução online) que está ganhando espaço em todo o mundo”
(ARAÚJO & OLIVEIRA, 2014, p.123).
As práticas musicais podem ser um meio social através do qual se identificam e se
distinguem simbolicamente seus atores, a partir de elementos socializadores praticados
pelos consumidores (BAYONA, 2012, sem p.). Além disso, como apontado, tais práticas
de consumo constituem um meio simbólico da qual fazem parte o gosto, o prazer e a
participação coletiva. O estabelecimento de práticas musicais de interação converge em
surgimento, fortalecimento ou legitimação de modelos culturais, de identidades baseadas
no gosto, nos significados partilhados e apreendidos (BAYONA, 2012). Esse consumo se
configura por traços de interação, comunidades de gostos, modos de compartilhamento,
difusão em tempo real, online ou off line, de forma que a materialidade dos meios de
consumo está intimamente relacionada aos usos e formas de apropriação musical:
Estamos vivenciando novas práticas de consumo da música popular massiva, com novos
mediadores, novas plataformas de escuta e formatos de distribuição. É necessário entender
como essas dinâmicas se apropriam e constroem novas formas de consumo, marcadas por
um desenvolvimento no formato da escuta, contribuindo para uma maior difusão cultural.
Nesse sentido, é essencial compreender a carga comunicativa que esses produtos representam no contemporâneo e de que forma podem contribuir de maneira fundamental no
estabelecimento de padrões, hábitos e costumes. (Araújo & Oliveira, 2014, p.123).
Tradicionalmente, produção e circulação cultural são processos distintos e
complementares. No entanto, os consumidores passaram a se envolver mais ativamente
na estrutura midiática em um cenário de convergência (JENKINS, 2009) que amplia as
interações de jovens com conteúdos musicais (CANCLINI, 1998). As cenas musicais6, como
6. A cena musical se refere às práticas sociais, econômicas, tecnológicas e estéticas dos modos como
determinado gênero musical se faz presente nos espaços urbanos, incluindo processos de criação,
distribuição, circulação e consumo, além das relações sociais, afetivas e econômicas decorrentes desses
fenômenos (JANOTTI JR., LIMA & PIRES, 2013).
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Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
forma de mediatização do consumo (JANOTTI JR., & PIRES, 2013), articulam “práticas
sociais, econômicas e afetivas” na ocupação de espaços urbanos e virtuais por meio
de processos midiáticos (JANOTTI JR.& PIRES, 2013, p. 1660). Em geral, as cenas vêm
sendo atravessadas por diversas apropriações das novas tecnologias e das redes sociais,
o que gera uma reconfiguração das comunidades que circulam ao redor de um gênero7
musical. “O aumento da penetração da Internet e a crescente utilização de tecnologias
digitais na produção e distribuição de bens simbólicos nos levam a constatar, no caso da
música, significativas transformações em suas práticas de consumo”. (CASTRO, ano, p.63).
Em um cenário de segmentação cultural, o consumo midiático de música é
caracterizador da cultura (JANOTTI Jr., 2003) e organizador policêntrico de gêneros e
cenas musicais. Os produtos musicais se tornam objetos culturais, pois o ato de consumir
produtos midiáticos é uma forma de posicionamento (JANOTTI Jr., 2003). Transformados
pelo homem, os objetos perdem seu estado natural, atingindo um patamar cultural em
uma perspectiva de construção e reconstrução de valores ao longo da história.
A apreciação musical diz respeito também a práticas culturais, políticas, sociais e
econômicas que envolvem os consumidores, entre os quais os fãs, músicos, produtores,
distribuidores, críticos, entre outros agentes. Os distintos modos de consumir cultura e
música, de acordo com seus contextos socioculturais, resultam, portanto, em diferentes
formas de apreensão do mundo.
CONSUMO MUSICAL JUVENIL E IDENTIDADE
Inegável nas culturas urbanas contemporâneas, o consumo musical aponta
subjetividades (LUNT & LIVINGSTONE, 1992) e distingue as subculturas juvenis (FEIXA,
1999). Diversa, heterogênea, a juventude é inscrita em contextos complexos (FEIXA, 1999;
JACKS & TOALDO, 2013), vinculados a instituições como a família, a escola e o Estado, mas
não limitados a elas. Enquanto construto, a juventude não tem uma existência autônoma.
Coletivamente, pertence a uma rede de relações sociais complexas, um enfoque importante
para o estudo das relações sociais a partir dos usos e apropriações musicais. Para entender
a enorme diversidade na categoria de juventudes, é preciso situar o sujeito empiricamente
em um contexto, analisando, além da história cultural da juventude, as interações e
configurações que assumem os grupos de jovens.
A escolha pelo termo juventudes aponta a plural condição juvenil. As identidades
grupais juvenis permitem entender a interação dos sujeitos com o mundo social
(REGUILLO, 2013), enquanto concebem vivências, pensamentos, etc. Embora os limites
da juventude não sejam naturais, mas reforçados socialmente através de ritos entre
a infância e a vida adulta, há uma condição física e uma condição social, entendidas
como moratórias vital (crédito temporal) e social (MARGULIS & URRESTI, 1996) que
marcam a esfera juvenil. Elas são efeito da energia corporal, emocional, da capacidade
produtiva e outras características socioculturais transitórias importantes para definir as
juventudes, como gênero, condição familiar e a relação com as instituições reguladoras
(MARGULIS & URRESTI, 1996).
7. O gênero musical desempenha um papel importante na definição de gostos, formação de grupos
identitários e marcadores do processo comunicativo da música popular massiva (PEREIRA DE SÁ, 2009).
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Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
O consumo cultural de música está também marcado pelo consumo de bens como
vestimentas e discos, atravessados por referenciais simbólicos, músicas, shows, ou até
mesmo um estilo de vida, fazendo parte de uma importante mediação para a construção
identitária juvenil (REGUILLO, 2013). Enquanto consome música, o jovem entende o
espaço ao seu redor e toma deste os elementos que vão definir sua identidade, seu lugar
no mundo e na cultura. O sujeito jovem, investido da capacidade (condições e direitos,
ainda que consideradas as disparidades socioeconômicas) de consumir, apropria-se,
usa e dá sentido aos meios, produtos e conteúdos midiáticos, encontrando ainda no
consumo a condição de construir sua identidade, bem como experiências de resistências
e consciência política (LUNT & LIVINGSTONE, 1992).
A articulação entre o público, o consumo midiático de música e a construção identitária juvenil aponta para o conjunto de processos para usos e apropriações como âmbito
de aspectos cognitivos da comunicação. O consumo como produtor de sentido “propicia
um ambiente que permite captar modos de vida de outros sujeitos” (BAYONA, 2012,
sem p.).
Canclini destacou a importância do consumo e da cultura urbana para a formação
identitária e cidadã (2010). A primeira referência teórica de Canclini ao “consumo
cultural enquanto um espaço fundamental na constituição da identidade cultural
das classes sociais” é de 1985 (ESCOSTEGUY, 1997). O autor destacava o fenômeno
como cenário de disputas entre grupos e classes, como um sistema de integração e de
comunicação, como lugar de objetivação de desejos e por seus aspectos econômicos.
Somente na década seguinte ele inclui a perspectiva dos ritos e finalmente apresenta,
naquele momento de crise latino-americana, sua teoria sociocultural articulada em seis
racionalidades (CANCLINI, 2010), com o propósito de “estudar as estruturas particulares
de comunicação, consumo, recepção dos bens culturais8” (CANCLINI, 1991, p.1):
• Sócio-politica interativa (lugar onde as classes e grupos competem pela apropriação do produto social);
• Econômica (lugar de reprodução da força de trabalho e expansão do capital);
• Simbólico-estética (consumo como diferenciação de classes sociais, distinção
simbólica e material entre grupos);
• Integrativa e comunicativa (integração social por sistemas culturais e de comunicação, mesmo mantendo certas distinções);
• Racionalidade do desejo (objetivação dos desejos com base psicanalítica) e
• Cultural (perspectiva antropológica de processo ritual).
Com essa hipótese, as racionalidades do consumo poderiam ser pensadas
conjuntamente em relação ao compartilhamento, produção e apreciação de música,
esferas perpassadas pela cultura digital. Assim, Canclini, “pensar” seria a reflexão
sobre as condições de consumo e cidadania, entre Cultura e Comunicação, bem como a
construção de um subcampo de estudos. A identidade se constrói na cultura de consumo
contemporânea também pela aquisição de bens e experiências.
8. Tradução da autora.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4599
Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
As práticas de consumo se convertem em um mecanismo de integração/desagregação
social (racionalidade integrativa e comunicativa/ simbólica e estética). A dimensão
política do consumo também revela, entre os mais jovens, novos atores sociais, novas
formas de cidadania. Para o exercício cidadão do jovem na cultura, no entanto, devem
ser considerados três pontos essenciais, segundo Baccega (2012): a definição do sujeito
de direitos, o conhecimento e a garantia de direitos.
A partir da racionalidade sócio-política interativa, uma cena musical se converte num
“cenário de disputas” e espaço de interação complexa “entre produtores e consumidores,
entre emissores e receptores” (CANCLINI, 2010) com diferentes estratégias de circulação
e consumo de demos, samples ou videoclipes, por exemplo, que enriquecem o consumo
cultural e midiático de música.
Economicamente, a música move um mercado de shows, discos, compartilhamentos pagos e gratuitos na internet, que implicam em relações de trabalho e no acesso ao
gozo e ao ócio. Como distinção, jovens de diferentes classes sociais podem aceder a
conteúdos, formatos, programas e produtos musicais de valorações estéticas múltiplas,
caracterizando também as diferentes condições simbólicas e materiais de consumo. Ao
passo que, a partir da integração, o consumo de música pode ser um fator de união em
torno de movimentos, estéticas, gêneros musicais, etc, para além do bem de consumo,
ou seja, transculturalmente. Quanto à objetivação do desejo, tratando-se de música, o
consumo pode ser insaciável, esteticamente ilimitado, especialmente quando se trata
da apreciação quase livre em plataformas de acesso quase irrestrito.
Da perspectiva antropológica, o consumo como racionalidade cultural mostra
significados para além de necessidades e desejos. Por rituais, os jovens tornam explícitos
seus interesses e entendimentos comunitários. Através da expressão ou apropriação
musical, usos de aplicativos, plataformas, aparatos, os jovens praticam a função de “dar
sentido aos acontecimentos” sociais (CANCLINI, 2010), tornando o mundo inteligível.
Para os jovens, a música serviria, portanto, para pensar.
TEORIA SOCIOCULTURAL: O CONSUMO COMO MODO DE PENSAR
Se por um lado a sociedade de consumo permite que o jovem conheça, se aproprie
do mundo e produza sentidos - um mundo cada vez mais “acessível”, que interliga os
ambientes local e global - por outro, a presença ou a falta de determinados bens culturais
apontam para a necessidade de aprofundamento em contextos sociais juvenis, bem
como a compreensão das condições de consumo midiático, referentes importantes na
construção da realidade social.
Para Canclini, na década de 1990, o pensar seria a reflexão sobre as condições de
consumo, entre Cultura e Comunicação, bem como a construção de um subcampo de
estudos. Valendo-se da manifestação do autor, em O consumo serve para pensar, o consumo
é um “lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar, significativa e renovadoramente,
na vida social” (CANCLINI, 2010, p. 72). Canclini se fundava em Douglas e Isherwood,
para desenvolver os estudos de consumo na América Latina, em um contexto cultural
específico. Dai advém a contribuição das perspectivas da antropologia e da sociologia
para os estudos de cultura (CANCLINI, 1991):
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4600
Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
Esqueçamos a ideia da irracionalidade do consumidor. Esqueçamos que as mercadorias
são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a
noção de que as mercadorias são boas para pensar: tratêmo-las como um meio não verbal
para a faculdade humana de criar. (Douglas & Isherwoord, 2004, p.108)
Se a teoria sociocultural orientou os estudos de consumo nas últimas décadas como
um modo de pensar no conjunto de processos onde se realizam usos e apropriações de
bens e produtos, aponta também para o entendimento de produção de sentido como
a forma que parte do consumo para o entendimento do mundo e das esferas sociais
mediadas. “O consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo
incompleto dos acontecimentos” (DOUGLAS & ISHERWOORD, 2004, p.112), sendo que
o objetivo do consumidor é construir um mundo inteligível.
Nas acepções de que o consumo serve para pensar: deve-se “tomar a prática cultural
de escutar música não como algo imaterial, mas como uma conduta que transforma
as próprias capacidades perceptivas do ouvir, que educa o corpo e cultiva a audição”
(CARDOSO FILHO, 2013, p. 3578). Escutar música leva aos estágios de entendimento e
de compreensão de uma realidade que só pode ter seu sentido construído pelo próprio
sujeito, em um contexto de mediações com outros sujeitos. Os significados produzidos
na canção só ganham sentido quando interiorizados e ressignificados. De forma que a
prática cultural de escutar música exerce uma força fundamental na produção de sentido
e no entendimento do mundo apresentado nas letras de músicas, no ritmo e no próprio
contexto/ambiente de fruição estética:
Os próprios modelos da canção gravada e do álbum acabam sendo incorporados por consumidores e criadores através das mediações sensíveis, tecnológicas e sociológicas. Isso
significa que instituições como a crítica, as rádios, plataformas digitais de consumo da
música, o circuito de música ao vivo, e mesmo, a produção caseira de música são elementos
fundamentais para a produção de sentido da música (Gomes & Janotti Jr, pp. 138-139).
Considera-se, que o consumo de música é uma forma de consumo cultural que serve
para pensar, expressar identidade, delinear ritualidade, ressignificar, produzir novos
conteúdos, experiências, resistências, novos usos e práticas em espaços multimidiáticos.
É portanto, no consumo musical, em diversos meios e plataformas, considerando as práticas de apropriação de meios, bens, produtos, conteúdos musicais, considerando ainda
os aspectos cognitivos do consumo cultural de música e o prazer da fruição estética, que
resulta o entendimento do mundo, de uma realidade social e a oportunidade do sujeito
inserir-se como cidadão. O acúmulo de informações a partir da apreciação, o conhecimento de mundo, permite ao jovem construir um capital cultural, (FEATHERSTONE,
1995, p.38), um lugar cidadão, um estilo de vida.
Embora tenha sido bastante problematizado em diferentes contextos e disciplinas,
o consumo musical como âmbito para apropriação de mundo pode ainda ser um tema
fértil entre os estudos de consumo e cultura. A discussão aponta para a teoria sociocultural como principal aporte teórico para pensar o consumo de música, refletindo sobre
a articulação teórico-metodológica de Canclini (2010). Para ele, “pensar” seria a reflexão
sobre as condições de consumo e cidadania, bem como a construção de um subcampo
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4601
Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
de estudos. A expressão ou fruição musical permite que o sujeito dê sentido aos acontecimentos sociais (CANCLINI, 2010), tornando o mundo compreensível. O consumo
é, portanto, um âmbito de valor cognitivo, que pode ser útil para reflexão e ação sobre
os aspectos da vida social.
Buscou-se discutir as origens dos estudos de consumo para entender teoricamente
seus aspectos cognitivos, embora predomine a necessidade de se analisar os contextos
socioculturais empiricamente. Ainda que bastante conhecida entre os estudiosos
da cultura, a teoria articulada de Canclini não foi suficientemente desenvolvida em
pesquisas empíricas. Acredita-se que a análise de cenas musicais em ambientes online e
offline (espaços urbanos), seu fluxo de consumo, produção, circulação musical, bem como
sua relação com movimentos9 culturais, práticas e identidades juvenis possa colaborar
para a compreensão do processo de consumo musical como apropriação de mundo e
construção da realidade social.
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9. Baseando-se em análises empíricas, Reguillo (2013) distingue as organizações juvenis em: grupos (reunião
de vários jovens onde não se observa organicidade, mas uma conexão no tempo e no espaço); coletivos
(reunião em torno de um projeto, que requer certa organicidade); movimentos (organização de atores em
torno de um conflito social) e identidades juvenis (modo genérico de descrever uma proposta identitária).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4602
Música serve para pensar: produção de sentido e apropriação do mundo pelo consumo musical juvenil
Dulce Mazer
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4603
Recepção, jovens e representações midiáticas
no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Reception, youth and media representations
scenario in school in Blumenau, SC, brazil
O f e l i a E l i s a To r r e s M o r a l e s 1
C h i r l e i D i a n a K oh l s 2
Resumo: O texto analisa o universo jovem e a construção de suas subjetividades, no cenário escolar, abrangendo o seu relacionamento com os contextos
midiáticos, visando entender o uso, consumo e apropriação dos meios de comunicação, a partir das ‘mediações’, na perspectiva de Martin-Barbero, como processos de significação. A pesquisa utilizou de métodos mistos, com abordagem
quantitative e qualitativa, e foi realizada com jovens de 13 a 19 anos, de forma
presencial, em pesquisa de opinião, com 212 estudantes, além de 66 jovens, a
partir de grupos focais e entrevistas em profundidade, em escolas públicas e
particulares em Blumenau, Santa Catarina, região sul do Brasil. Percebem-se
mudanças no comportamento dos “nativos digitais”, seus hábitos, suas formas
de compreensão e suas redes de sociabilidade. Observa-se mudança significativa
no relacionamento de consumo da TV e da internet. Palavras-Chave: Recepção; Jovem; Educação; Comunicação; Representações
midiáticas.
Abstract: This paper analyzes the young universe and the construction of their
subjectivities in the school setting, including the relationship with the media
contexts, in order to understand the use, consumption and ownership of the
media, from the ‘mediation’, with a view Martin-Barbero, as meaning processes.
The research used mixed methods, with qualitative and quantitative approach,
and was carried out with young people, 13-19 years old, in person, in survey, with
212 students, and 66 young people from focus groups and interviews in depth,
in public and private schools in Blumenau, Santa Catarina, southern of Brazil.
Changes have been made in the behavior of “digital natives”, their habits, their
ways of understanding and their social networks. It is considered a significant
change in consumer relationship of TV and the Internet.
Keywords: Reception; Youth; Education; Communication; Media representations.
1. Pós-doutora em Comunicação Social pela Cátedra UNESCO da Comunicação e Universidade Metodista
de São Paulo - UMESP. Doutora em Jornalismo e Mestre em Rádio e TV pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Graduação em Ciências da Comunicação, com habilitação
em Cinema, Rádio e TV pela Universidade de Lima, Perú. Produtora audiovisual, pesquisadora e professora
universitária. Autora e organizadora da Coleção Imagética: lições de fotografia e fotojornalismo e da Coleção
Mídias Contemporâneas. Contato: [email protected]
2. Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-graduada, com
especialização em Novas Mídias, Rádio e Tevê pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Jornalista
graduada pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior (IBES)/Sociedade Educacional de Santa Catarina
(SOCIESC). Contato: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
INTRODUÇÃO
TEXTO ANALISA o universo jovem e a construção de suas subjetividades, no
O
cenário escolar, abrangendo o seu relacionamento com os contextos midiáticos,
visando entender o uso, consumo e apropriação dos meios de comunicação.
Dessa forma, compreender a opinião dos jovens, no universo da escola, relacionada
aos contextos midiáticos como televisão, rádio e as possibilidades oportunizadas pela
Internet e as redes sociais digitais (RSD). Nesse sentido, partimos dos pressupostos
relacionados as ‘mediações’, definidas por Martín-Barbero (2014), para aproximar-mos
desses contextos midiáticos, considerados como espaços de práticas, negociações, conflitos e negociações de sentidos e significações, nas suas diversidades culturais e espaços
vivenciais como a escola e a família.
Para tanto, desenvolveu-se perspectiva investigativa, a partir dos métodos mistos, para complementar os indicadores encontrados. Realizou-se pesquisa qualitativa
e quantitativa, de forma integrada, objetivando aproximação da opinião dos jovens em
relação aos meios de comunicação e sobre como eles percebem a representação dos
jovens nessa mídia, no ambiente escolar. A proposta considera a escola como espaço
de significativo para entender aos cotidianos juvenis e espaço de convivência relevante
para compreender como os jovens estão interagindo com as mídias, quando relacionadas
com a ambiência hipermidiática oportunizada pela Internet e as RSD, disponibilizando
processos cognitivos e de compreensão da realidade diferenciadas, criando-se redes de
sociabilidade multifacetadas.
REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS DOS JOVENS NO CENÁRIO ESCOLAR
Toma-se como prerrogativa a perspectiva de Martín-Barbero (2014), quando afirma
que as ‘mediações’ são processos de sentido ou “modos de estar no mundo e de interação”.
O lugar da cultura na sociedade muda quando a mediação tecnológica da comunicação
deixa de ser meramente instrumental para espessar-se, adensar-se e converter-se em
estrutural. Pois a tecnologia remete hoje não à novidade de uns aparatos, mas sim a
novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escrituras. [...] (Martin-Barbero, 2014, p. 79)
Compreende-se, então, que, pensar a comunicação a partir da cultura, nas palavras
de Martín-Barbero (2014), significa mergulhar na complexidade e conflito das leituras e
olhares da vida social dos sujeitos. O contexto social e histórico, o espaço-tempo, faz parte
das relações cotidianas, portanto, são mediações que impactam nas ideias e comportamentos dos jovens, sendo espaços sociais e culturais de conflito e sentido. O conceito de
‘mediação’ toma como pedra angular a ‘relação’, ou seja, o relacionamento dos diversos
contextos nos quais os jovens estudantes convivem: com as mídias, a família e a escola,
entre outros. As representações midiáticas vinculam-se às formas de relacionamento
que os jovens estabelecem num ambiente da convergência. Toma-se como prerrogativa
o conceito de Moscovici quem indica que as representações sociais:
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4605
Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
[...] não são apenas “opiniões sobre” ou “imagens de”, mas teorias coletivas sobre o real,
sistemas que têm uma lógica e uma linguagem particulares, uma estrutura de implicações
baseada em valores e conceitos, e que determinam o campo das comunicações possíveis, dos
valores ou das idéias compartilhadas pelos grupos e regem, subseqüentemente, as condutas
desejáveis ou admitidas. (Moscovici apud Alves-Mazzotti, 2008, p. 22-3)
Essas mediações estão inseridas num espaço e tempo, no caso, na atual sociedade
pós-moderna, num paradigma “líquido”. Nesse contexto, a educação ocorre não somente
no cenário escolar formal mas na informalidade, numa espécie de mosaico de saberes
advindos dos meios de comunicação tradicionais, como a TV, além das novas mídias,
inseridos no mundo da Internet e dos dispositivos móveis. (SANTAELLA, 2013). Existem
contextos diversificados de experiências dos jovens, focalizando o seu relacionamento
cotidiano com as mídias e escola, atualmente inseridas em cenários móveis e líquidos.
O tempo pós-moderno é não-linear, em termos de vivências experienciais, espalhadas
em rede, as quais ocorrem em temporalidades da mobilidade, compartilhamento de
conhecimento e no paradigma colaborativo, num tempo e espaços líquidos. (BAUMAN,
2007; CASTELLS, 2008) A convergência midiática oferece a oportunidade dos jovens se
manifestarem a partir de diversas práticas sociais.
O que a trama comunicativa da revolução tecnológica introduz em nossas sociedades não
é, pois, tanto uma quantidade inusitada de novas máquinas, mas um novo modo de relação entre os processos simbólicos – que constituem o cultural – e as formas de produção e
distribuição de bens e serviços. A “sociedade da informação” não é, então, apenas aquela
em que a matéria-prima mais cara é o conhecimento, mas também aquela em que o desenvolvimento econômico, social e político encontra-se intimamente ligado à inovação, que é
o novo nome da criatividade e da invenção. (Martin-Barbero, 2014, p. 79)
A presença do sujeito é pulverizada, em cenários individualistas, e tempos não-lineares, isto é, nos quais realizam-se atividades ao mesmo momento. Da mesma
forma, os cenários não são únicos, mas, móveis, por isso, líquidos, como bem apontam Bauman (2007) e Castells (2008). Os dispositivos móveis oportunizam que o ser
humano não esteja sozinho, mas sempre com a possibilidade de interagir com outros,
simultaneamente.
Os adolescentes criam seus espaços, ora como indivíduos sujeitados, ora como indivíduos
singulares, expressando comportamentos e visões de mundo particulares; eles se apropriam
de bens culturais que estão e, circulação na sociedade, em um jogo de recriação e ressignificação, como consumidores e produtores. (Alves 1993 apud Jacks; Menezes; Piedras, 2008, p. 182)
Nesse sentido, os jovens vitalizam espaços de convivência e interação comunicativa, inclusive como lugares de sentido, de uso, consumo e apropriação disponibilizadas
pela ‘convergência midiática’ termo que, segundo Jenkins (2009, p.30), refere-se não
somente a união das tecnologias ou aparelhos mas, sobretudo, a processos cognitivos oportunizados pela multiplicidade midiática e “em suas interações sociais com
outros”.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
ABORDAGENS E ESTRATÉGIAS
O objeto de estudo visa compreender o uso, consumo e apropriação dos meios de
comunicação e das novas mídias pelos jovens estudantes blumenauenses, no cenário
escolar. Em relação ao tratamento metodológico da pesquisa, optou-se pela abordagem quantitativa e qualitativa no cenário escolar, em Blumenau, Santa Catarina, região
sul do Brasil, tomando-se como base estudos anteriores. (TORRES-MORALES et al.,
2002; TORRES-MORALES, 2008; TORRES-MORALES et al., 2014; TORRES-MORALES
et al., 2015) Para tanto, foi necessário propor um método misto, combinando pesquisa
quantitativa e qualitativa, para melhor compreender as nuances do objeto de estudo
proposto. O método misto refere-se às “múltiplas maneiras de ver e ouvir” (GREENE,
apud CRESWELL; CLARK, 2013, p. 19). Ou seja, uma indagação plural na abordagem
de olhar o mundo social, o qual
ativamente nos convida a participar do diálogo sobre múltiplas maneiras de ver e ouvir,
múltiplas maneiras de extrair sentido do mundo social, e múltiplos pontos de vista sobre o
que é importante e deve ser valorizado e apreciado. (Greene apud Creswell; Clark, 2013, p. 22)
Essa visão integrada é utilizada em todas as etapas do desenvolvimento da pesquisa de métodos mistos a qual “é definida como aquela em que o investigador coleta e
analisa os dados, integra os achados e extrai inferências usando abordagens ou métodos qualitativos e quantitativos em um único estudo ou programa de investigação”.
(CRESWELL; CLARK, 2013, p. 22)
Identifica-se que o estudo aplicou-se, na sua totalidade, a sujeitos pertencentes à
geração dos “nativos digitais”, o qual marca uma diferenciação significativa nos achados analisados, como se pode notar no Quadro 1, a seguir, com classificações ligadas às
recentes gerações. O estudo considerou estudantes de escolas públicas e particulares,
de 13 a 19 anos, no período de 2010 e 2011. A pesquisa quantitativa aplicou-se, de forma presencial, a partir de questionários, com 212 jovens, sendo uma amostra aleatória
simples, porém, representativa do universo escolar blumenauense. (NOVELLI, 2005) A
pesquisa qualitativa (FLICK, 2004; BAUER; GASKELL, 2005) foi realizada a partir de
grupos focais e entrevistas, no intuito de revelar opiniões e depoimentos sobre o uso dos
meios de comunicação tradicionais, novas mídias e redes sociais digitais, totalizando
revelações de 66 estudantes. O estudo foi coordenado pela professora doutora Ofelia
Morales e teve a participação das pesquisadoras e jornalistas Eliane Pereira e Chirlei
Kohls, contando com o apoio do Instituto Blumenauense de Ensino Superior/Sociedade
Educacional de Santa Catarina (IBES/SOCIESC) e da Cátedra UNESCO da Comunicação
e Universidade Metodista de São Paulo – UMESP.
Sendo assim, o campo de observação considerou jovens os quais pertencem a uma
geração, conceitualmente definida como “um grupo de pessoas dentro de uma população que experimenta os mesmos eventos significantes em um determinado período
de tempo.” (GABRIEL, 2013, p. 85). Borelli et al. (2009, p.51) observam, a partir da divisão
das gerações que “as temporalidades conectam-se diretamente com a reflexão sobre
os jovens e sua condição de nomadismo [...]. O presente, para os jovens, vincula-se, no
geral, ao aqui e agora”. A revista Época, em 08 de Julho de 2013, No. 789, considera-se o
ano de 1989, data na qual começaram a nascer os identificados como ‘nativos digitais’.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
Quadro 1. Classificação de gerações, nos últimos 50 anos.
Geração
Anos
Descrição
Baby boomers
Nascidos de 1946 - 1964
É a geração que nasceu após a Segunda Guerra Mundial. Foi
marcada por um aumento das taxas de natalidade.
Geração X
Nascidos entre 1960 e 1980.
Nos anos 70, apenas profissionais com mais de 30 anos
tinham acesso às tecnologias de ponta.
Geração Y
Nascidos entre 1980 e início da
década de 2000.
Também conhecida como Millennials, Generation Next e
Echo Boomers.
Geração Z
Nascidos a partir do início da
década de 2000.
Também conhecida como Generation, Generation@,
Generation AO (Always on), Generation Text e Nativos Digitais.
Fonte: A partir dos dados de GABRIEL (2013).
O cerne da questão é entender como os jovens estudantes estão interagindo com
os meios de comunicação, numa etapa de transformação e reconfiguração das mídias.
Toma-se como prerrogativa que diante da reconfiguração dos meios de comunicação,
os jovens adaptaram-se e usufruem desses meios de forma simultânea, inclusive, numa
alfabetização midiática como parte do processo cognitivo e de compreensão da realidade
(PASSARELLI; AZEVEDO, 2010). Seguindo essa linha de pensamento, parte-se também
do pressuposto de que as redes de sociabilidade dos jovens estudantes mudaram, quando relacionadas com a ambiência hipermidiática oportunizada pela Internet e as RSD.
CONTEXTOS MIDIÁTICOS E REPRESENTAÇÕES JOVENS
Apontamentos advindos da pesquisa qualitativa sinalizam achados relevantes relacionados às representações midiáticas. Há um conceito comum a todos os participantes
sobre o fato dos jornais, prioritariamente, mas também sobre a televisão não ouvir a
opinião dos jovens mantendo estereótipos sobre sua imagem. Por um lado, enfatizando
o pré-conceito desses meios que relacionam os jovens à transgressão, drogas e violência
e os consideram como “vagabundos” ou “drogados”, entretanto, as atividades positivas
realizadas pelos adolescentes não aparecem na mídia impressa e televisiva.
Menina - É só isso que a gente escuta na televisão, nos jornais porque, os jovens usam drogas, saem
antes de casa... todas as meninas parece que ficam grávidas mais cedo, ou resolvem se prostituir. E
não é só isso, muito jovens gostam de estudar, procuram emprego...
Menina - Tem aquele negócio de que o jovem está envolvido nas drogas. Nossos próprios pais, querendo
ou não, involuntariamente, acabam perdendo a confiança na gente porque pensam ‘eles vão fazer e
capaz do meu filho fazer também. Então, com isso, eu estou protegendo’. E às vezes não é assim, né.
Tem muitos casos que os pais prendem até os 18 anos e, daí, quando soltam, o primeiro lugar que o
filho vai é pras drogas, não conhece nada, não sabe nada como é o mundo lá fora...
Em relação à imagem que a mídia apresenta sobre os jovens existe unanimidade
entre os alunos das escolas públicas e particulares de que os meios de comunicação
apresentam uma imagem com sérias deficiências, consideram o discurso midiático
sobre os jovens como negativo e superficial e percebem que os jornais e a televisão nem
sempre falam da sua realidade, contudo, fazem cobranças sobre as atitudes e responsabilidade dos jovens.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
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Por outro lado, os jovens expressam vontade de serem mostrados nas diversas
mídias, nas suas atividades comuns na escola, no seu lazer e, sobretudo, no auxílio
no campo do futuro emprego, informações que ajudem no vestibular e na escolha de
profissão, entre outras. Ao se referir sobre o discurso midiático da geração jovem, os
jovens enfatizam que têm muitos aspectos positivos para mostrar, contudo, a mídia
nem sempre revela isto nem contribui na discussão de valores éticos. Nesse sentido,
fica o questionamento em relação a uma pauta jornalística que revele em profundidade
o perfil desse jovem inserido numa visão integral.
Menina - Uma coisa que a gente poderia trazer pro jovem agora, são valores, acho que muitas vezes
os jovens estão perdendo seus valores, valor ético, essas coisas que se a gente é o futuro como colocam
pra gente... Nós temos que buscar isso, buscar os valores e não só reclamar das pessoas, então, a gente
tem que retomar nossos valores, pra sociedade e pro nosso bem-estar também, né?! Para as pessoas
serem éticas terem uma motivação na vida acreditarem em alguma coisa.
Belloni (2009) afirma que as imagens reveladas pela mídia têm significância na
construção dos valores, cultura e das ‘normas sociais’, e ela impacta outras mediações
como a família. Assim, a partir dos depoimentos obtidos nos grupos focais, os jovens
enfatizaram que gostariam de expressar sua opinião e, se pudessem falar na TV, eles
opinariam o seguinte:
Menina - Eu ia dizer que nem todo jovem é mau, assim, e que jovens também têm o seu lado bom.
Menina – Tem jovens que se salvam!
Menino – É, nós somos um exemplo disso, né.
Menino – Eu diria pra eles prestar mais atenção nos dois lados, não só ver o que passa na TV.
Os jovens indicam que, sim, é fundamental a influência dos meios de comunicação
e sua repercussão nos pais e, reivindicam mais diálogo entre pais e filhos. Reconhecem
que os meios de comunicação impactam no consumo e para adquirir status social. Nesse
sentido, observa-se que os meios de comunicação tradicionais obtêm, ainda, a credibilidade dos jovens, em termos de confiança como guia de orientação e formador de
opinião, porém, essa mídia não percebeu a importância de aproximar-se do seu jovem
leitor, telespectador ou rádio ouvinte.
Menina - As notícias que eles falam é para os pais dos jovens e não para os jovens.
Menino – Sempre influenciou e vai sempre influenciar, depende do foco de quem está com a informação. Por isso que quem só lê a Veja acaba influenciado por aquela informação, quem só vê TV acaba
sendo influenciado por ela, quem só vê Blog vai acabar adquirindo a mesma informação do redator...
daí vem o saber filtrar novamente.
Menina – Eu acho que por causa de poucos eles acabam estragando os bons. Porque eu já dei entrevista para um jornal ..., e daí eles colocaram mentira sobre mim no jornal. Eu fiquei muito brava.
Aproximando-se a essa linha de pensamento, os participantes revelaram que gostariam de ter meios de comunicação como jornal e rádio dentro do universo escolar.
Quando questionados sobre a pauta temática desse jornal escolar eles referem que
deveria ser:
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
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Menina - Um jornal que orientasse, que falasse do dia a dia do jovem que trabalha, vai para a escola,
se esforça, que faz coisas boas assim e que contribua com a sociedade, não só que aqueles que usam
droga, que se prostitui e tal.
Menina - Seria interessante uma revista de política que fale para o jovem, o jovem quer ler...
O principal motivo é escutar sua opinião, na linguagem mais próxima de sua realidade, de forma compreensível. Em algumas escolas a experiência com rádio no universo
escolar não funcionou por questões de infraestrutura. Alguns jovens gostariam de
rádio escolar com programação musical nem sempre com informação, em combinação
com humor e programas culturais, cinema e baladas, além de informações dos acontecimentos da região.
A televisão foi mencionada entre as preferências nos hábitos comunicacionais nos
depoimentos dos jovens, relacionada ao atrativo e impacto que exerce, a partir das
imagens em movimento, nos sujeitos-receptores gerando empatia com o telespectador.
Independentemente do gênero, seja telejornalismo ou ficção televisiva, as mensagens
televisuais não interpelam à lógica da razão, mas, à lógica do emocional. Contudo, os
jovens reivindicaram maior a participação na televisão. Os dados da pesquisa quantitativa sinalizam que 41% dos jovens assistem até três horas diárias de TV, sendo que 37%
assistem até uma hora diária de TV, conforme mostra o Gráfico 1, a seguir.
Gráfico 1. Número de horas de consumo de televisão, pelos jovens, de
13 a 19 anos, em Blumenau, SC, Brasil, em percentagem.
Até uma hora diária
37%
Até três horas diárias
41%
De 4 a 8 horas diária
8%
Mais de 8 horas diárias 3%
Uma vez por semana
8%
Não assiste
2%
Fonte: As autoras, 2015.
Já nos depoimentos nos grupos focais os jovens reivindicaram maior a participação
dos jovens na televisão. Indicadores da pesquisa quantitativa assinalam que 43% dos
estudantes qualificaram como regular a qualidade da programação televisiva brasileira,
42% qualificaram como boa e somente 7% dos respondentes a avaliaram como ruim.
Sobre o relacionamento com a família e a televisão, percebeu-se que os hábitos
mudaram, já que também mudou a rotina da vida contemporânea, entre eles, fatores
como trabalho, estudo, dupla jornada, entre outras. Mudanças de comportamentos atuais
fizeram que hábitos que eram preservados, como encontros familiares, por exemplo,
também mudaram.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
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Menino - Família se vê assim, na hora do almoço, janta, café, normalmente está com a TV ligada, e
cada um no seu quarto com a sua TV ligada. Antigamente na hora de jantar era toda a família reunida
sentada assim. Hoje, já dentro de casa, um sai e o outro nem vê. Perdeu a estrutura sabe.
Menina – Agora é assim, eu vou pro meu quarto assistir o que eu quero.
Dados encontrados nessa investigação reforçam esse comportamento, sinalizando
que 54% dos jovens blumenauenses assistem à televisão sozinhos e 39% junto à família.
Entre os principais motivos que os jovens referem para assistir TV; 31% entretenimento,
25% informação, 23% para passar o tempo e 18% para instrução/educação.
Em relação ao uso da Internet, entre os 212 estudantes 96% utilizam Internet e 4%
não utilizam. Essa plataforma oportuniza ampla difusão de opiniões e informações,
em variadas camadas sociais e faixas etárias. Isto tem reforçado a utilização, consumo
e apropriação dos jovens dessa nova mídia. Os resultados indicam que entre os jovens
a Internet é utilizada em 33% para o entretenimento, 25% informação, 24% passatempo
e 16% para instrução/educação. Outros motivos são o fato de poder expressar suas
ideias e a instantaneidade do veículo. Vale ressaltar as múltiplas possibilidades que ela
disponibiliza.
Menina - Pela internet a gente tem a possibilidade de colocar a nossa opinião, ela é ouvida aceita. E
pelos outros meios de comunicação já não têm muito espaço. Na internet é tudo mais fácil.
Menina - Claro assim, eu quero uma coisa específica, eu quero uma notícia específica, eu vou lá e
coloco no Google vou lá e busco e vem a notícia, em vez de assistir o jornal, que vai passar tudo... é
muito mais rápido entendeu?!
Menino – Além de ser tudo instantâneo, neh?! Na internet tem tudo 24hs., toda hora sendo atualizado, num momento, não preciso tocar aquela musiquinha chata (TV) que todo mundo sabe qual
é, tu tem tudo lá... é só apertar o F5 e já tem a notícia nova, já tem gente comentando e colocando a
notícia para discutir... a internet tem toda essa agilidade das notícias.
Em relação à utilização de TV e Internet pelos jovens, percebe-se uma maciça presença e deslocamento para a plataforma hipermidiática, em detrimento do meio televisivo. Dados sinalizam que 35% dos jovens blumenauenses utilizam de 4 a 8 horas e
22% utilizam até três horas diárias de Internet como se pode notar no Gráfico 2, abaixo.
Gráfico 2. Número de horas de consumo de Internet, pelos jovens, de 13 a 19 anos,
em Blumenau, SC, Brasil, em percentagem.
Até uma hora diária
Até três horas diárias
De 4 a 8 horas diárias
Mais de 8 hs diárias
Uma vez por semana
Não utiliza
13%
22%
35%
12%
11%
2%
Fonte: As autoras, 2015.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
Deve-se destacar um dado extremamente relevante: quando comparados os resultados dos gráficos 1 e 2 sobre utilização de TV e Internet pelos jovens, percebe-se uma
maciça presença e deslocamento para a plataforma hipermidiática, em detrimento do
meio televisivo. Esse dado conclusivo traz uma série de desdobramentos em termos de
reflexão, sobretudo, quando consideramos que foram 212 jovens blumenauenses, de 13
a 19 anos, os quais revelaram que existe um deslocamento em termos de preferências,
assim como de maior acesso à plataforma da Internet, além da reflexão a partir do espaço
proporcionado por este meio para que os jovens possam expressar suas opiniões. Em
contrapartida, segundo as opiniões reveladas nos grupos de discussão, todos os jovens
concordaram que a televisão ocupa significativo espaço nas suas conversações.
Percebe-se também hábitos de consumo específico deste público diante da mídia
digital. O uso, consumo e impacto da Internet entre os jovens geram novas formas de
interação e sociabilidade.
Menina - Na verdade, a internet ela aproxima e separa, porque a gente pode conversar com pessoas
que estão super longe, a gente pode conhecer pessoas que não teria como conhecer se não fosse pela
internet. Mas ao mesmo tempo se a gente não tá com a cabeça no lugar, não só isso, mas querendo
ou não a gente acaba se afastando das pessoas que estão realmente próximas. Cheguei ao cúmulo de
conversar com a minha irmã, ela no quarto dela e eu no meu pelo chat.
Menina - É o cúmulo, mas daí a gente pega e diz vamos conversar decentemente e ai vamos pra sala.
Essa situação de diálogo, presencial – ao vivo – através da mídia e da plataforma
Internet, gera relações de sociabilidade diferenciadas. Um jovem destacou sua ansiedade
pela resposta o mais breve possível, seja pelo de bate-papo ou pelas RSD, apesar de ter
menos ansiedade nesse espaço, já que a resposta tem mais tempo para ser processada.
Um outro jovem, que utiliza chat desde os dez (10) anos de idade, relata sua ansiedade
nessa interação da convergência midiática, a sua dificuldade em esperar uma interação,
enquanto está realizando outra atividade simultânea como carregar algum vídeo, por
exemplo. A sensação de ansiedade, vivenciada pelos jovens entrevistados, foi reveladora, o que pode caracterizar também uma dependência dos meios diante dos hábitos
e rotinas sociais.
Menino - o sentimento é de frustração. Tu fica naquela “tá tu vai demorar muito”... tu vai ser mais
rápido... daí fica naquela agonia, o ruim é quando essa agonia não cessa. Chega ali e trava. Ai começa
a gerar até uma raiva. Fica ruim pra todo mundo.
Menina - Eu falo com as minhas amigas só pelo Twitter.... se eu vou num lugar que tá sem área e que
não pega a internet, e eu preciso falar com alguém, me dá até palpitações.
Ainda em relação à convergência midiática e seu impacto nas relações familiares e
sociais, os jovens percebem mudanças nos seus relacionamentos, sobretudo relacionados
ao significativo número de horas de Internet. A convergência midiática está presente
na vida dos jovens, os quais assistem televisão, escutam rádio e usam computador para
trabalhos da escola, tudo ao mesmo tempo.
Menino – Eu fico mais na internet. Porque ela engloba tudo. Se tu quiser ligar pra alguém tu consegue, se
tu quiser ver televisão tu consegue... se quer falar com alguém... tu não precisa da TV, na internet tem tudo.
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Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
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Na escolha entre TV e Internet, os jovens dividiram suas opiniões. Eles relatam que
a televisão está direcionada à publicidade enquanto que na Internet os adolescentes têm
acesso a uma diversidade de informações. Os jovens manifestam ‘laços de amizade’ e
empatia quando se referem ao universo da Internet, sendo que muitos jovens utilizam
ela como meio de informação.
Os jovens estabelecem vínculos de sociabilidade com a própria Internet considerando ela como integrante do seu cotidiano vivencial, interligando o virtual e o experiencial, percebendo-se o relacionamento de amizade entre os jovens e a plataforma
hipermidiática.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebem-se mudanças no comportamento dos “nativos digitais”, seus hábitos, suas
formas de compreensão e suas redes de sociabilidade. Os jovens aprendem o mundo,
num contexto de convergências midiáticas. A pesquisa desenvolvida, de abordagem
qualitativa e quantitativa, junto aos jovens estudantes blumenauenses, de 13 a 19 anos,
indica alguns caminhos sobre o uso, consumo e apropriação dos meios de comunicação
e novas mídias.
Por um lado, uma questão de destaque é que existe unanimidade na opinião dos
jovens que o discurso midiático, na imprensa e na televisão, mostra representação social
de forma negativa sobre os jovens. Os jovens opinam que a representação midiática sobre
eles sobrecarrega a questão do jovem violento, drogado e superficial. Por outro lado,
resultados conclusivos da pesquisa indicam que os hábitos comunicacionais dos jovens
blumenauenses mudaram, se relacionados o número de horas de assistir TV e conectar-se na Internet. 41% dos jovens assistem até três horas diárias de televisão enquanto
que 35% dos estudantes blumenauenses utilizam a Internet, de 4 a 8 horas diárias. Na
ambiência da convergência, é possível que essa situação estará, cada vez mais, mediada
significativamente pelos dispositivos móveis.
As RSD desenvolvem a sociabilidade dos jovens de forma polêmica: aproxima e
separa. É significativo o grau de empatia que os jovens têm em relação à Internet como
mostram expressões como ‘meu amigo Google’, ou o nível de ansiedade que eles manifestam quando carregam os dados e arquivos com lentidão e até quando demora em obter
a resposta nos chats pela Internet. As mediações nas culturas dos jovens concretizam-se nessa ambiência hipermidiática, numa cultura convergente, a qual oferece formas
diferenciadas de vivência e cognição. O estudo trouxe dados iniciais relevantes sobre
os cotidianos juvenis e modos de relacionamentos dos jovens com a mídia, no cenário
escolar, contudo, ainda há muito a ser investigado, nesse sentido, em futuras pesquisas.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4613
Recepção, jovens e representações midiáticas no cenário escolar em Blumenau, SC, Brasil
Ofelia Elisa Torres Morales • Chirlei Diana Kohls
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em: 21 mar. 2015.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4614
Niñas y niños ante el consumo/producción
de contenidos cross-media
Childrens’ relationship with consumption/
production cross-media contents
A n dr e a L a fau r i e 1
Resumen: Ubicados en una coyuntura histórica en la que la TDT ha traído
consigo promesas de interactividad, al tiempo que la convergencia mediática ha
consolidado fenómenos como el de la producción/consumo cross-media, este
trabajo se enfoca en las transformaciones que están ocurriendo en las prácticas
productivas de contenidos, así como de los consumos y apropiaciones que de
ellos hacen las audiencias infantiles. Concretamente, la investigación exploró la
interlocución que tiene lugar a partir de la oferta interactiva cross-media en TDT
e Internet del canal infantil Super3 de Televisió de Catalunya. Entre los resultados
del estudio se encuentra la identificación de una oferta de interactividad basada
en prácticas productivas dispuestas para provocar la participación de niñas
y niños a través de opciones que facilitan una comunicación reactiva, o de
opciones que incentivan el intercambio nutrido que reivindica su estatus como
comunicadores. Se concluyó con el establecimiento de dos categorías conceptuales
emergentes relativas a la interlocución controlada o abierta ejercida por niños y
niñas tras el aprovechamiento de espacios de participación; las colaboraciones
y contaminaciones que realizan a la producción textual y la amplificación que
de ellas hacen los productores en el flujo mediático de contenidos.
Palabras clave: Interlocución. Interactividad. Niñas y niños. Cross-media.
Consumo/producción.
Abstract: At a point in time when DTT has brought promises of interactivity,
while simultaneously media convergence created such a phenomena as the
cross-media production/consumption, this work focuses on the ongoing changes in content production and consumption practices, as well as how the childrens’ audience appropiate that content. The research explored the dialogue
that takes place from the cross-media interactive TDT and Internet offer made
by the children’s channel Super3 of Catalonia Television. Findings include the
identification of an interactivity offer based on production practices disposed
to cause the participation of boys and girls through options that facilitate a
reactive communication or options that encourage extensive exchange claiming
their status as communicators. It was concluded with the establishment of two
emerging conceptual categories related to controlled or open dialogue exerted
1. Doctora en Contenidos de Comunicación en la Era Digital; Profesora e investigadora de la Universidad
del Norte (Barranquilla, Colombia); [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4615
Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
by boys and girls after using spaces of participation; collaborations and contaminations that perform textual production and the amplification of those by
producers in the media content flow.
Keywords: Interlocution. Interactivity. Children. Cross-media. Consumption/
production.
PLANTEAMIENTO
TRAVÉS DE esta comunicación quiero compartir los resultados de una investi-
A
gación que realicé entre los años 2009 y 2012 en la ciudad de Barcelona (España)
con el propósito de analizar las actuales formas de producción de contenidos
que vinculan opciones de interactividad para sus audiencias, así como los usos que de
ellas se hacen los niños y niñas caracterizando la interlocución que se produce a partir
de tales ofertas de contenidos cross-media.
Asumir el reto de desarrollar una investigación de estas características estuvo sustentado en tres situaciones. En primer lugar, el hecho de que en España se estaba viviendo
el denominado apagón de la televisión analógica que daba la bienvenida a la televisión
digital terrestre (TDT) la cual traía consigo varias promesas, entre ellas, la integración
de servicios interactivos que propiciarían la participación de las audiencias. En segundo
lugar, la observación de un fenómeno cada vez más creciente de producción y consumo
cross-media, que hace diluir fronteras entre medios y nos sitúa frente a una convergencia no sólo tecnológica sino también cultural. Y por último, una inquietud personal
relacionada con la participación de niños y niñas dentro de procesos de comunicación,
pues se han ido extendiendo conclusiones no sustentadas empíricamente de que ellos
y ellas se encuentran casi naturalmente dispuestos a asumir la interactividad, sólo por
el hecho de pasar muchas horas con los medios y tecnologías, trasladando el consumo
de una pantalla a la otra. Con frecuencia se encuentran menciones a “generaciones
interactivas” (Aguaded, 2011; Bringué & Sádaba, 2009) como si fuese una relación causal
entre consumo y participación.
La literatura revisada permitió identificar que frente a la relación interactividad y
niños/niñas han predominado estudios centrados en: 1) el estudio de la efectividad de
la comunicación interactiva para la consecución de objetivos educativos (Masterman &
Rogers, 2002; Chang et al., 2010; Dezuanni & Monro-Hernandez, 2012); 2) la identificación
de opciones de interactividad en las ofertas de contenidos infantiles (Aikat, 2005) ; 3) el
consumo infantil de medios y tecnologías, incluyendo la interactividad como categoría
particular de análisis (Livingstone et al., 2005; Bringué y Sádaba, 2009).
Sin embargo, no se encontraron estudios que caracterizaran el uso que los niños y
niñas hacen de esas ofertas interactivas, implicando su ciudadanía y recepción activa
en el ejercicio del derecho a la comunicación, este último en el sentido propuesto por
autores como Saffon (2007) y Martín-Barbero (2005) que enfatizan en la posibilidad de
producción, y no sólo de recepción, que tenemos todas las audiencias.
Ahora bien, esta problemática implicó una consideración más, relacionada con
la realidad mediática y tecnológica en la que se sitúan las opciones de interactividad,
pues se reconoce que hoy priman contextos de convergencia mediática y producción
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4616
Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
cross-media de contenidos. Es decir, es visible la existencia de un “ecosistema comunicacional” (Martín-Barbero, 1999) caracterizado por la presencia de ofertas cross-media
orientadas a la distribución de contenidos a través de múltiples medios y plataformas.
Dichos contenidos son realizados por organizaciones que han alterado sus lógicas de
operación y han transformado sus estructuras, culturas y prácticas profesionales para
intentar estar a tono con los retos tecnológicos y satisfacer las necesidades y deseos de
unas audiencias cada vez más acostumbradas al multiconsumo y la migración, decidiendo y controlando su acceso a informaciones, contenidos y servicios.
La investigación fue desarrollada a partir de un caso de estudio único con unidades
de análisis integradas. Dicho caso fue Super3, un canal infantil y autonómico (Comunidad
Autónoma de Catalunya), dirigido a niños entre 0 y 14 años, con un horario de emisión
entre las 6:00 y 21:00 horas. Está adeherido a la Corporació Catalana de Mitjans Audiovisuals
(CCMA) y gestinoado por la empresa Televisió de Catalunya (TVC) que tiene como
definición editorial del mismo un canal multiplataforma (televisión, Internet, club,
acontecimientos y móviles) que promueve la participación de los niños y las niñas
amparado en el lema “Tots som súpers”, que quiere decir: todos somos súpers.
Así las cosas, los objetivos que guiaron la investigación fueron: 1) identificar la oferta
de interactividad presente en contenidos cross-media de producción propia del canal
Super3 para TDT e Internet; 2) establecer cual es la propuesta editorial implícita en la
producción de esos contenidos; 3) caracterizar la interlocución ejercida por los niños y
niñas a partir de tal oferta de interactividad.
REFERENTES CONCEPTUALES
Este trabajo estuvo sustentado en referentes conceptuales alrededor del fenómeno
cross-media y la interacividad. Alrededor de lo primero, se consideró el planteamiento
de la convergencia cultural de Jenkins (2008), quien considera las dimensiones tecnológicas, culturales, sociales e industriales que inciden en las transformaciones simbólico-culturales de los modos de consumo y producción de medios; así como la propuesta
de Erdal (2011) que introduce una perspectiva textual para analizar las estrategias de
producción y distribución de contenidos cross-media.
En relación con la interactividad, se adoptó la aproximación teórica de las hipermediaciones propuesta por Scolari (2008) en función de las nuevas mediaciones que tienen
lugar alrededor de los medios digitales, dada la participación y colaboración textual
que devienen del consumo y producción de medios interactivos; así como referentes de
teorías de la recepción activa.
Una convergencia que trasciende de lo tecnológico a lo cultural
Jenkins (2008) usa el término convergencia para referirse a cambios tecnológicos,
culturales, sociales e industriales. Para él, en la convergencia se entrecruzan los nuevos
y viejos medios, los medios corporativos y populares, y los poderes de productores y
consumidores, quienes interaccionan entre sí. Por tanto, la convergencia no depende de la
tecnología tanto como de la participación activa de los consumidores y de la implicación
de los productores de medios. “La convergencia implica un cambio tanto en el modo
de producción como en el modo de consumo de los medios” (JENKINS, 2008, p. 27).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
En ese sentido, enfatiza que la convergencia no se limita al cambio tecnológico/
mediático ni a la inserción de aparatos por más sofisticados que éstos puedan llegar
a ser, pues ésta también se produce en el interior de cada uno de los consumidores
individuales, en sus interacciones sociales con otros y en la producción corporativa
de medios.
Es enfático al señalar que la convergencia no está dada, sino que va construyéndose
a través de procesos corporativos que inciden en los consumidores, así como por medio
de procesos en los que los consumidores inciden en la producción de medios. O sea,
que resulta de un aprendizaje y accionar mutuo entre ambos que implica relaciones de
arriba-abajo y abajo-arriba al asumirse roles que modifican los modos de producción:
flujo de contenidos por distintos canales; y los modos de consumo: establecimiento de
conexiones entre contenidos diversos/dispersos, y puesta en circulación de producciones propias.
Por su parte, Erdal (2011) propuso un modelo en el que coexisten dos ejes simultáneos:
el de trabajo (perspectiva organizativa) y el de contenidos (perspectiva textual). A partir
de este último describe las formas en las que los contenidos son distribuidos en diferentes
plataformas sea por re-publicación, re-combinación o re-versión.
Las hipermediaciones como aproximación teórica
Scolari (2008) propone algunos elementos que permiten delimitar el territorio de una
posible teoría de las hipermediaciones, sustentada en algunos diálogos interdisciplinarios,
que a su juicio, rodean las transformaciones y fenómenos como la hipertextualidad, la
interactividad, la reticularidad, la digitalización, la multimedialidad, la convergencia
y la hipermedialidad.
Entre tales elementos señala los procesos de producción, los cuales se transforman
a partir de la adaptación de la filosofía de producción abierta que acepta la colaboración de usuarios en la generación de contenidos y el intercambio de información de
muchos-a-muchos.
También hace referencia a los productos, pues las hipermediaciones generan productos hipertextuales, multimedia e interactivos que combinan lenguajes y medios.
Además, la convergencia permite la integración de diferentes lenguajes y medios en
un único entorno, favoreciendo que un mismo contenido multimedia pueda aparecer
en diferentes formatos en las distintas pantallas.
Por último, hace referencia al consumo, pues las hipermediaciones implican nuevas dinámicas en las que el concepto de audiencia pierde sentido, ya que los entornos
permiten la personalización de contenidos, el consumo asincrónico, el intercambio bajo
modelos de muchos-a-muchos y la creación y distribución de contenidos propios.
Audiencias, ususarios, interlocutores
Además de la reconocida denominación de audiencias activas, actualmente es
posible encontrar en la literatura otras denominaciones alternativas, entre las que se
cuentan: usuarios, emisores, productores, creadores e interlocutores.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
El concepto de audiencia elaborado por las teorías de la comunicación de masas cada día
pierde algo de su sentido en entornos digitales marcados por la personalización de los
contenidos, el consumo asincrónico y el intercambio muchos-a-muchos. Las tecnologías
participativas profundizan aún más este proceso al ofrecer al usuario la posibilidad de
crear y distribuir sus propios contenidos. (Scolari, 2008, pp. 288-289).
Así, se apunta a la necesidad de trascender la denominación de audiencias no sólo
desde el sentido de su supuesta pasividad frente a la comunicación, sino también desde
su actividad , destacando especialmente sus modos de actuar “como usuarios y emisores,
en la producción comunicativa, donde la creación y la interactividad predominan”
(OROZCO, 2010, p. 22).
Fueron las posibilidades de participación las que comenzaron a ser valoradas en
torno a esta mutación terminológica. Orozco et al. (2012) hacen énfasis, siguiendo a
Jensen (2005), en que la interactividad modificó el estar como audiencias al implicar una
diferencia cualitativa a partir de la concepción de usuarios, los cuales tienen posibilidades
de personalizar su consumo, significar, crear, producir, poner en circulación, compartir
y realimentar los flujos de comunicación masiva. En ese sentido, se involucra su agencia,
que en el sentido de Giddens (1996) apunta tanto a la actuación como a la reflexión sobre
el actuar para que ésta no sea reducida a simple reacción.
También Aparici & Silva (2012) recalcaron que con los “nuevos medios” se propició
un ecosistema comunicativo en el que todos los individuos podían ser potencialmente
emisores, por lo que el término usuario aún reflejaba limitaciones para las realidades
de la comunicación masiva actual, pues continuaba perpetuando diferenciaciones entre
productores y consumidores. Al ser valoradas en primer término las capacidades de
expresión de cada uno de los participantes de los procesos comunicativos, la denominación
de productores o emisores sería más justa y meritoria que la de usuarios o audiencias
para todos aquellos que ponen sus creaciones simbólicas en circulación a través de los
flujos mediáticos.
Sin embargo, una posición tan totalizante resulta un tanto utópica si se tiene en
cuenta que el ser audiencias desde la posición tradicional de la recepción no es excluyente
sino que más bien cohabita con el ser audiencias desde las posibilidades de creación,
producción y emisión. Ser audiencias hoy implica diferentes grados y dimensiones,
es un proceso que se va completando continuamente a través de las relaciones con los
medios masivos y las tecnologías más personalizadas.
Sumado a ello, tampoco es recomendable una posición tan radical si se tiene en
cuenta que las relaciones horizontales de comunicación a través de las redes de comunicación, así como las opciones de colaboración de los usuarios/consumidores con los
productores/emisores, dependen también en muchos aspectos de las relaciones verticales
ejercidas por estos últimos (Jenkins, 2008).
En ese sentido, valdría la pena enfocarse en una denominación que subraye las
posibilidades de expresión e intercambio en la comunicación y que, además, implique a
otros en el proceso. Que se valore la posibilidad de que los participantes de la comunicación puedan decidirla y propiciarla, no sólo reaccionar ante las iniciativas que se lancen
desde el polo de la producción profesional de los medios, como afirma Calvelo (1998).
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
De esa manera se estimó necesario usar el término interlocutores para hacer
referencia a todos aquellos que tienen la posibilidad de situarse como comunicadores
ante ofertas de interactividad y con ello cuestionar relaciones esquemáticas de emisión
y recepción. Es en este último sentido que se utilizaron los términos interlocución e
interlocutores en la investigación.
METODOLOGÍA
La investigación fue desarrollada utilizando un enfoque cualitativo para un tipo de
investigación exploratoria basada en el método de estudio de caso único con unidades
de análisis integradas. El caso de estudio estuvo constituido por Super3; y las dos unidades de análisis integradas correspondieron a dos de sus contenidos de producción
propia: Tags2 e Info K3. De cada uno de ellos se recolectó información concerniente a
los contenidos en las plataformas TDT e Internet, la producción y distribución de los
mismos, y los niños y niñas como audiencias potenciales. Se utilizaron com técnicas
el análisis cualitativo de contenidos, entrevistas (a productores) y grupos focales (con
niños y niñas).
Dada la novedad que representó la investigación de la interactividad desde la perspectiva propuesta4, es decir, desde la exploración de la interlocución que ejercen niños
y niñas ante una oferta interactiva en contenidos cross-media, no se partió del establecimiento de categorías rígidas sustentadas en una sola propuesta teórica, sino del
planteamiento de dos categorías generales basadas en los distintos referentes teóricos
y conceptuales trabajados.
• Oferta de interactividad: se consideraron las estrategias de producción y distribución de contenidos cross-media que promueven la interactividad; las opciones
de interactividad explícitamente formuladas en los contenidos cross-media; y la
concepción de la interactividad en la producción propia.
• Interlocucion de niños y niñas: se implicó la participación a partir de contaminaciones y colaboraciones en la producción textual; la amplificación de la interlocución ejercida por niños y niñas; y las características del consumo de medios
frente a la interactividad.
Tales categorías implicaron la recolección de información a partir de tres elementos
que permitieron una aproximación holística al fenómeno estudiado: los contenidos, la
producción y las audiencias infantiles, que se correspondían con elementos señalados
por Scolari (2008) en su apuesta teórica: los productos, los procesos de producción y el
consumo.
2. Tags es un programa centrado en el entretenimiento a partir de la estructura de magazín que cubre
informaciones relativas a música, deporte, cine, vídeos, juegos, mundo del espectáculo, entre otras. En la
plataforma de Internet, Tags cuenta con el website www.tags.cat.
3. Info K es informativo de actualidad internacional, nacional y local; también cubre actividades y eventos
destinados al público infantil de la comunidad autónoma de Cataluya. En la plataforma de Internet cuenta
con el website: www.infok.cat.
4. La interactividad ha sido estudiada a partir de los atributos de medios, tecnologías o procesos de
comunicación; percepciones de los usuarios, uso que los usuarios hacen de los atributos identificados
y producción de contenidos y servicios interactivos. Además, ha sido investigada a partir de medios o
tecnologías concretas, sin considerar su presencia en contenidos cross-media.
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
RESULTADOS
La investigación permitió identificar una oferta de interactividad a partir del uso
de estrategias de promoción de contenidos. En televisión, esa oferta estuvo referida a:
la solicitud de recursos, el establecimiento de contacto para incidir en la producción
textual, o invitaciones a participar de concursos, encuestas, votaciones, chat o dejar
comentarios. Ahora bien, las acciones relacionadas a partir de estos llamados sólo podían
ser materializadas en las páginas web correspondientes.
Por su parte, las opciones de interactividad presentes en la plataforma de Internet
coincidían con la producción hecha en los contenidos televisivos y estaban constituidas
por las opciones de: establecer contacto para incidir en la producción textual, participar
de concursos o sorteos, votar o valorar contenidos, realizar comentarios y participar
de chat o foros.
En síntesis, la oferta de interactividad estudiada se caracterizó por estar vinculada
a la producción de contenidos cross-media, integrándose estrategias textuales, las cuales
devienen de una práctica productiva dispuesta en el sentido de provocar la participación
de niños y niñas. Dicha oferta se caracterizó por transitar entre opciones que promueven, más que nada, una comunicación reactiva y otras que incentivan la interlocución
a partir del intercambio nutrido que reivindica el estatus de los niños y niñas como
comunicadores. Alrededor de la primera opción se considera la existencia de una oferta
de interactividad controlada que se materializa en opciones como participación en concursos, resolución de encuentas, valoraciones de contenidos o respuesta a llamados. La
segunda opción implica la existencia de una interactividad abierta que contempla opciones
relacionadas con el establecimiento de contacto para incidir en la producción textual de
contenidos, el envío libre de recursos para ser integrados en el flujo de información y la
participación en chat, foros y comentarios.
Imagen No. 1. Ejemplo de llamado a la interactivicad desde la TDT: invitación a mandar
recursos por correo electrónico. Fuente: emisión del 18 de marzo de 2012 del canal Super3
Imagen No. 2. Ejemplo de llamado a la interactivicad desde Internet: formato para incidir en
la producción textual. Fuente: captura de la página web de Super3 (25 de marzo de 2012)
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
Ahora bien, en relación con la propuesta de interactividad implícita a la producción
propia se encontró que los profesionales de los equipos de producción de contenidos
coinciden en su definición con la identificación realizada a partir de los análisis de
contenidos y distinguen los siguientes rasgos característicos en torno a tal oferta:
• La promoción de un tipo de interactividad “más pasiva” adherida a opciones de
consumo de juegos, por ejemplo, y un tipo de interactividad “más activa” ligada
a acciones que implican mayor participación.
• El deseo de aproximarse a los niños y niñas para vincularlos como protagonistas
de los contenidos a través de una apuesta de entretenimiento que combina un
énfasis informativo, cultural y de formación en valores.
• El entendimiento de la oferta de interactividad como oportunidad de feedback,
fidelización o participación que toma lugar en la realización de actividades, respuesta a llamados o asistencia a eventos programados; aunque también como
oportunidad para la co-creación de contenidos, a pesar de que esta última opción
se reconozca como una iniciativa aún incipiente.
• La concepción de la oferta de interactividad ligada al club infantil, sustento de
su producción propia, aduciendo a que la interactividad no es algo surgido con
Internet o los soportes digitales. Para ellos, la oferta de interactividad se remonta
a las estrategias de correo postal, llamadas o mensajes de contestador telefónico
que vienen desarrollando desde hace más de veinte años, asociadas a la propuesta
del Club Super3 y anclada en el concepto de feedback.
• La concepción de la interactividad como uno de los valores fundamentales de la
cultura organizacional, interiorizado en los profesionales que, desde su práctica
productiva diaria, vinculan acciones para su favorecimiento y promoción.
En otro sentido, se encontró que la interlocución que ejercen niños y niñas se evidencia en: el aprovechamiento de los espacios de participación dispuestos en las páginas
web y blog asociados a ellas; las colaboraciones y contaminaciones que realizan a la
producción textual de contenidos; y la amplificación que de ellas hacen los productores
en el flujo televisivo y de Internet.
El aprovechamiento de los espacios de participación fue analizado a partir de las
evidencias existentes en torno a la misma, notándose que la interlocución se produce bien sea por el establecimiento de comunicación entre niños, niñas y productores,
principalmente como respuesta a llamados, o por las iniciativas tanto individuales y
colectivas que toman ellos para sugerir temáticas u ofrecerse como protagonistas de
contenidos. Este tipo de interlocución suele ser de carácter individual y privado que,
sin embargo, toma sentido colectivo tras la amplificación de sus productos. En relación
concreta con los comentarios realizados en los espacios dispuestos para ello se observó
que los niños y niñas dejan ver un fuerte deseo por expresarse y hacer públicas sus
opiniones, intereses y preferencias.
Ahora bien, los niños y niñas participantes de los grupos focales negaron haber
participado de las opciones de interactividad propuestas en la oferta estudiada, lo cual
puede tener relación con lo expresado en torno a las principales actividades que, dicen,
realizar en Internet, dirigidas al consumo y no a la participación, interlocución o creación.
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
También contrasta con el deseo y la ilusión que manifiestan ante la posibilidad de
participar o sostener intercambios con productores, personajes y contenidos. Es decir, que
la información suministrada por los niños y niñas participantes de la muestra permite
interpretar que quieren hacerlo, pero no saben cómo o existen factores que les generan
prevenciones e impedimentos. De hecho, sus testimonios dejan ver que no tienen claridad
acerca de las opciones de interactividad de las que disponen y cuando mencionan
posibilidades de participación se suelen mostrar avergonzados o citar experiencias de
sus padres, como si se tratase de actividades pertenecientes al mundo adulto.
A pesar de ello, sus testimonios también permitieron evidenciaron que entre las
transformaciones simbólico-culturales que rondan su consumo de medios se cuentan:
un consumo multiplataforma, sobre todo, en televisión e Internet; demostrando un fuerte
interés por la búsqueda de informaciones y el consumo contenidos a través de diferentes
medios, el establecimiento de conexiones entre ellos y la expresión de un fuerte deseo
de participar de actividades propuestas en televisión e Internet.
En síntesis, se pudo determinar que la interlocución de niños y niñas en relación con
la oferta de interactividad puede ser agrupada a partir de las siguientes dos categorías,
que por demás, se corresponden con las establecidas en torno a la oferta: interlocución
controlada, que se produce como reacción, y si bien implica un nuevo tipo de consumo
al permitir la interacción con la oferta y otros, la mayoría de las veces no trasciende la
respuesta mecánica (acciones de participación en sorteos y concursos, valoraciones y
votaciones de contenidos y envío de recursos para ser incluidos en la producción textual, todas ellas como respuesta a llamados realizados por los productores); interlocución
abierta, referida al empoderamiento de los niños y niñas como interlocutores que se
relacionan con las ofertas y con otros para contaminar el flujo mediático a partir de
sus propuestas y creatividad simbólica (establecimiento de contacto para proponer o
protagonizar contenidos, realizar comentarios u opiniones y participar de chat o foros).
CONCLUSIONES
Transformaciones en la producción: una oferta de interactividad cross-mediática
El análisis realizado a los contenidos permitió reconocer una apuesta por la producción y distribución cross-media que incentiva la interactividad de niños y niñas. La
identificación de estrategias de producción cross-media fue reafirmada por los testimonios de la mayoría de profesionales para quienes la interrelación de contenidos entre
las plataformas TDT e Internet constituye una filosofía o valor de trabajo interiorizado
dentro la práctica productiva, tanto así que al generarse un nuevo contenido para televisión se piensa inmediatamente en su repercusión o presencia en Internet; señalan
que tal situación está relacionada con la voluntad de tener presencia permanente en
las diferentes plataformas que presentan un alto consumo entre los niños y niñas. Es
decir, corresponde a una necesidad de dar respuesta a un modo de consumo mediático
infantil que se consolida diariamente y ejerce poder en la configuración de ofertas. De
manera especial, hacen referencia a que el desarrollo de estrategias y contenidos cross-media corresponde a una necesidad de potenciar la interacción de los niños y niñas
como miembros del Club Super3, reconociendo que las páginas web constituyen la
plataforma idónea para que esto ocurra.
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Niñas y niños ante el consumo/producción de contenidos cross-media
Andrea Lafaurie
A partir de lo anterior, se puede notar que la generación de contenidos cross-media
y, por ende, la integración de estrategias que propician la interactividad responden a
una manera de “hacer las cosas” que se instaura en las prácticas productivas.
Para nosotros no hay ningún proyecto que si no lo vemos que va por televisión, web y con
posibilidades de tener alguna acción presencial no nos interesa (…) Nosotros esto ya lo
tenemos asumido, nuestras redacciones son multiplataforma, tanto escriben para televisión,
tanto escriben para papel, tanto escriben para web. Esto es un proceso de formación que
llevamos haciendo unos años, insistiendo mucho en eso. Entonces, esto para nosotros es
vital (entrevista, comunicación personal, 14 de septiembre de 2011).
Se interpreta que este tipo de producción obedece, en buena medida, al fenómeno
referido por Jenkins (2008) de que son los mismos consumidores quienes plantean retos
y exigencias que inciden en transformaciones de los modos de producción.
Transformaciones en el consumo: la interlocución de niños y niñas como “súpers”
El aprovechamiento que hacen niños y niñas de una oferta como la de Super3 permitió
reconocer que transitan entre una posición de consumidores reactivos ante ofertas que
direccionan y controlan su interacción; y un empoderamiento dentro de dinámicas
que afirman su ciudadanía comunicativa, en el sentido de Rincón (2008), a través de
las posibilidades que su activismo expresivo genera dentro de la producción de nuevas
narraciones y estéticas. También en el de Jenkins (2008), quien aduce a una creciente
configuración de una cultura participativa que re-escribe, transforma y diversifica la
oferta mediática existente y reintroduce dichas re-significaciones dentro de su mismo flujo.
Ejemplos de este último tipo de interlocución lo constituyen contenidos como: Info
reproters, en el que los niños y niñas proponen noticias que desean sean tratadas en el
informativo, o ejercen ellos mismos como reporteros de las mismas. También El món dels
súpers, en el que los niños y niñas crean su propia historia considerándose a sí mismos
como protagonistas.
Es decir, que la interlocución transita constantemente entre la participación, colaboración y expresión que hace visible el estatus comunicativo, creativo y productivo de niños
y niñas y la apatía o deseo no consumado de participar o ejercer como interlocutores,
reconociendo que principalmente la interactividad se da por respuesta a llamados e iniciativas de los productores. También se enmarca en una fluctuación constante de voluntades
de la organización por amplificar dicha interlocución o resistirse al influjo de la misma.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4625
Cultura e consumo do livro intermediados pelas
interações dos leitores no ambiente digital
Culture and book consumption intermediated
by readers on digital environment
Alessandra
de
Castro Barros Marassi1
Resumo: Esse estudo traz análises sobre os processos comunicacionais e as
interações de leitores em torno do consumo do livro no ambiente digital. O
objetivo do trabalho é analisar como as dinâmicas comunicacionais das redes
sociais digitais e do comércio eletrônico influenciam o leitor em direção ao
consumo do livro. A escolha dos três estudos de caso se deu principalmente pela
pertinência com o reconhecido crescimento das interações de leitores com foco
no consumo de livros que acontece nas redes sociais e no comércio eletrônico:
a Amazon no âmbito do comércio eletrônico, a rede social digital Goodreads
focada nos leitores e o projeto Google Books. A metodologia envolve pesquisa
bibliográfica multidisciplinar, de característica exploratória na análise das
interações desses leitores. Os resultados apresentados demonstram que tais
interações dos leitores no ambiente digital alavancou adaptações de empresas
consolidadas a fim de se manterem em contato com esse público consumidor
de livros. As práticas da Amazon e do Google Books reforçam essas adaptações
no mercado de livros.
Palavras-Chave: Comunicação. Consumo. Interatividade. Ambiente Digital.
Abstract: This study provides analysis of communication processes and interactions of readers around book consumption in the digital environment. The
aim of the work is to analyze how the communication dynamics of online social
networks and e-commerce influence the reader into the book consumption. The
choice of the three case studies was mainly caused by the relevance to the recognized growth of readers interactions focusing on consumer books that happens
in social networks and e-commerce: the Amazon in the e-commerce, digital
social network Goodreads focused the readers and the Google Books project.
The methodology involves multidisciplinary bibliographic research, exploratory
feature in the analysis of the interactions of these readers. The results show that
such interactions readers in the digital environment leveraged consolidated
companies adaptations in order to keep in touch with books buyers. The Amazon and Google Books practices reinforce these adaptations in the book market.
Keywords: Communication. Consumption. Interactivity. Digital Environment.
1. Doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUSP. Docente no curso de Publicidade
e Propaganda da FAPCOM – Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação e Docente no curso de
Comunicação e Multimeios da PUCSP. Publicitária e membro do Grupo de Pesquisa CCM da PUCSP.
E-mail: [email protected].
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Cultura e consumo do livro intermediados pelas interações dos leitores no ambiente digital
Alessandra de Castro Barros Marassi
INTRODUÇÃO
PARTIR DA interatividade de leitores conectados no ambiente digital, compreende-
A
-se que consumir envolve, entre outras práticas e não somente, o empréstimo,
as recomendações, a publicação nas redes sociais digitais, o compartilhamento
de informações, a sugestão de um livro (podendo ocorrer de pessoa para pessoa ou de
empresa para pessoa) que se relacionam em rede. Segundo Zygmunt Bauman (2008,
p. 8-9), “a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida, e a maior parte
do tempo se passa na companhia de um computador, um iPod ou um celular, e apenas
secundariamente ao lado de seres de carne e osso” (BAUMAN, 2008, p. 8-9).
Diante dessa colocação, levar uma vida social eletronicamente, não é mais uma
questão de escolha para aqueles (principalmente os jovens) que evitam enfrentar a
rejeição social. Com isso, as vidas estariam cada vez mais expostas a outras pessoas
por meio das redes sociais digitais e menos nas atividades presenciais. Dessa forma, o
consumo on-line seria um dos elementos presentes nessa gama de atividades virtuais.
A utilização de redes sociais digitais mantem seu crescimento entre os usuários
brasileiros que utilizam algum tipo de rede social em seu cotidiano por meio de diferentes dispositivos eletrônicos. A interatividade de usuários/leitores nesse ambiente,
impulsiona mudanças no mercado de livros motivadas pelas práticas de leitura em
dispositivos móveis e pela disponibilização e distribuição de livros na internet. A partir
desse cenário, a questão que norteia esse estudo é: como as dinâmicas comunicacionais
de leitores presentes nas redes sociais e de empresas interessadas no mercado de livros
influenciam o consumo desse produto no ciberespaço. Apresentando as práticas das
dinâmicas comunicacionais das redes, é possível notar como a sociedade organizada
em rede se movimenta, comunica e consome livros.
A coleta de dados e informações é composta por pesquisa bibliográfica multidisciplinar de característica exploratória e inclui observação de usuários de dispositivos
móveis na prática da leitura.
1. CULTURA DIGITAL E NOSSA RELAÇÃO COM OS LIVROS
As interações dos leitores presentes nas redes digitais em torno do livro e a formação de grupos nesse ambiente promovem a troca de títulos entre os membros do
grupo. Essa troca é feita, na maioria das vezes, gratuitamente, facilitando a circulação
e aquisição de livros por parte de leitores que são mais sensíveis a oscilação dos preços,
principalmente dos impressos. O intercâmbio de livros nesses grupos favorece a leitura
e a discussão sobre os títulos dentro e fora desse ambiente.
Segundo André Lemos (2004, p. 19), “vivemos na era da conexão” e essa realidade
se fortalece cada vez mais se pensarmos que as pessoas estão cada vez mais habituadas
a ter mais de um ponto de conexão ao mesmo tempo. Computadores pessoais, tablets,
televisores, celulares, carros (com a utilização de GPS) e, em breve, câmeras fotográficas
(pois sem isso elas perdem o sentido uma vez que as câmeras dos celulares são aprimoradas dia após dia) são dispositivos de conexão que permitem a comunicação imediata
e desterritorializada entre pessoas na sociedade midiática e tecnológica contemporânea.
Com a cultura digital, o livro se mantem presente, ainda que sua forma e composição tenham sido alteradas. Temos ainda a tinta marcando o papel, só que dividindo
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4627
Cultura e consumo do livro intermediados pelas interações dos leitores no ambiente digital
Alessandra de Castro Barros Marassi
espaço com o texto codificado em bits na tela dos diversos suportes eletrônicos, como
celulares, tablets, computadores e por fim os e-readers.
Nossa relação com os livros também vem se adaptando, principalmente quando
falamos dos livros digitais – os e-books. Nosso hábito de leitura conta com mais essa
alternativa, não só para ter um livro em mãos, mas principalmente para ter acesso a
eles via celular, tablete ou qualquer outro dispositivo eletrônico.
O projeto do Google, conhecido como Google Book Search, tem por objetivo digitalizar milhões de livros e torná-los acessíveis por meio de seu sistema de busca. O
argumento da empresa é colaborar com a disseminação do conhecimento e facilitar o
acesso à informação. Ao anunciar o projeto, o Google ganhou a revolta da comunidade
de autores e editores - a Authors Guild2 - que julgou o projeto uma violação da lei de
direitos autorais – o copyright. Iniciou-se então uma briga judicial que durou nove anos
– até o fim de 2013.
O processo tramitou na justiça americana contra o Google e teve sua sentença anunciada no The New York Times3, quando o juiz Denny Chin, da corte dos Estados Unidos,
rejeitou a ação que os autores do Authors Guild moveram contra o Google anunciando
que “o projeto de digitalização de livros é um avanço para o progresso das artes e das
ciências, mantendo respeitosa consideração pelos direitos dos autores e outros indivíduos criativos”.
Com essa decisão, o Google tem a oportunidade de dar continuidade ao processo
de digitalização de livros cuja atividade nunca parou. No decorrer destes anos, o Google
digitalizou mais de 20 milhões de livros, a maioria dos quais estão fora de catálogo,
sem compensar os detentores de direitos autorais. A respeito desses livros, eles estão
parcialmente disponíveis no Google Books e não na íntegra.
O projeto do Google Book Search é ambicioso e promete criar a maior biblioteca do
mundo, alterando inclusive a relação entre editoras e consumo de livros. Numa visão
mais positiva, isso parece ser um sonho, ter acesso a todos os livros do mundo a partir de
qualquer lugar, contudo é temeroso saber que toda a informação e produção intelectual
estarão sob o domínio de uma única empresa.
Desde sua fundação, a principal missão do Google é “organizar as informações do
mundo e torná-las mundialmente acessíveis e úteis”. Com o acordo, passará a controlar
também o acesso aos livros de seu banco de dados em prol de seus interesses. O que
acontecerá se o Google der preferência à lucratividade aumentando o valor da assinatura
para fornecer esse acesso? Segundo Darnton (2009, p.34), “filósofos do século XVIII encaravam o monopólio como um dos principais obstáculos à difusão do conhecimento”.
O posicionamento da empresa está focado em promover o acesso à informação e não
exatamente no monopólio.
2. A Authors Guild é uma associação dos autores americanos defensora dos interesses dos escritores em
proteção de direitos autorais. Fundada em 1912 oferece assistência jurídica entre outros serviços a seus
membros. Mais informações estão disponíveis em <https://www.authorsguild.org> Acesso em 19/03/2014.
3. O artigo completo intitulado: Siding With Google, Judge Says Book Search Does Not Infrige Copyright está
disponível em <www.nytimes.com/2013/11/15/business/media/judge-sides-with-google-on-bookscanning-suit.html?_r=0> Acesso em 19/03/2014.
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Cultura e consumo do livro intermediados pelas interações dos leitores no ambiente digital
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2. COMUNICAÇÃO, CONSUMO E A EXPERIÊNCIA DO LIVRO
Comunicação e consumo caminham de mãos dadas. Não se pode falar em consumo
sem falar em comunicação e principalmente em tecnologias midiáticas. Ligia Barbosa
(2004, p. 13), reflete sobre os pensamentos de teóricos como Zygman Bauman e Jean Baudrillard que discutem o consumo, a cultura do consumo ou a cultura de consumidores
é a cultura da sociedade pós-moderna. “Consumo é central no processo de reprodução
social e de qualquer sociedade, ou seja, todo e qualquer ato de consumo é essencialmente
cultural” (BARBOSA, 2004, p. 13).
Contudo, ao pensarmos o consumo no âmbito das necessidades básicas, ele não
é somente cultural, mas também o combustível da indústria da mídia que por meio
de da sua comunicação, prometem suprir carências emocionais trazendo felicidade,
segurança e prazer. O consumo cultural é um importante fator no processo que faz a
mediação entre as relações sociais e as práticas sociais que relacionam as pessoas com
a cultura material. Neste sentido, podemos compreender como a cultura material atua
no desenvolvimento da subjetividade humana. O consumo conecta as experiências
humanas à medida que funciona como uma linha de ligação com as práticas sociais.
As interações entre os consumidores de livros, as conversas, ou mesmo apenas o
clique, o “like” das redes sociais, conectam leitores em torno do consumo de experiência
que é a própria leitura. A relação leitura/interpretação da produção textual do livro
é a consumação da experiência. As dinâmicas comunicacionais dessas redes atuam
no processo das práticas culturais ao escolher um determinado livro para ler. Nesse
sentido, um livro, dependendo de seu conteúdo pode nos afetar e até criar sensações.
O leitor, é afetado em sua individualidade, contudo compartilha essa experiência com
suas relações e conexões no ciberespaço.
Na sociedade de consumo, onde o que se consome determina o estilo de vida, a
cultura e a “existência” em um determinado grupo social. Antes consumíamos o que
era produzido, hoje produzimos e consumimos (BAUMAN, 2008. p. 71). Mas onde fica
nossa liberdade de consumir? Para obter reconhecimento da sociedade como indivíduo,
temos que nos sujeitar a consumir produtos que irão determinar nosso estilo de vida,
nossa personalidade e até mesmo se teremos aprovação para tal pertencimento.
Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou
outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a
posição social que desejam, desempenhar suas obrigações sociais e proteger a autoestima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso –, consumidores de
ambos os sexos, todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes
e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. (BAUMAN,
2008, p. 74)
Bauman (2008, p. 74) aponta que, na sociedade de consumo, precisamos ser aprovados no teste do consumidor para admissão na sociedade. Segundo o autor (2008, p. 74),
“consumir significa investir numa afiliação social de si mesmo, o que, numa sociedade
de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades das quais já existe
numa demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui, transformando-as em mercadorias para as quais a demanda pode continuar sendo criada”. Indivíduos se tornam
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a própria mercadoria. “Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios
mercadorias de consumo” (BAUMAN, 2008, p. 76). Ao consumir, o indivíduo investe
no valor social e em sua auto-estima.
Consumo cultural é composto por vertentes que envolvem os processos comunicacionais da recepção e produção, as frentes culturais que compreendem os aspectos
culturais como pontos de força. Uma outra vertente muito discutida é a influência
cultural e a integração da audiência. E a vertente ligada aos estudos de Jesus Martin-Barbero sobre o uso social dos meios (JACKS, 1996, p. 46).
Em direção às práticas de consumo, Rose de Melo Rocha (2012, p.26), discute que
“consumir, hoje, é consumir cultura midiaticamente mediada, digitalmente interligada, imaginariamente compartilhada, imageticamente realizada” (ROCHA, 2012, p. 26).
Esse é o conceito de consumo que utilizo para discorrer sobre o consumo de livros em
tempos de tecnologias digitais, mobilidade e conectividade.
No consumo do livro digital, a aquisição do livro não é a mesma que uma compra
de um livro impresso. Sobre o volume impresso, o leitor é totalmente proprietário do
livro. Já no caso do livro digital, o leitor adquire o direito de leitura daquele livro, ele
não é totalmente proprietário do livro. A Amazon, por exemplo, tem condições de excluir
um livro diretamente do Kindle de um cliente se assim achar necessário.
Falar de consumo nos leva aos discursos que envolvem a formação da identidade
cultural e aos processos midiáticos que determinam as relações sociais. Segundo Veneza
Ronsini (2005, p. 122), “identidade é um processo de fazer-se, individualmente e coletivamente, na experiência social com os repertórios disponíveis que são confrontados
ou abandonados de acordo com a circunstância e a convivência”.
Para a Ronsini (2005, p.122), os processos sociais que formam a identidade são
determinados pela estrutura social, assim como a identidade não pode ser avaliada em
termos absolutos e sim pelas relações com outros grupos. A partir desse pensamento,
a identidade é vivida pelo grupo e pelo indivíduo.
Em grupos de leitores organizados em plataformas digitais como o Goodreads, é
possível identificar características de alguns indivíduos que atuam como curadores de
livros e, ao exteriorizarem suas opiniões, não só promovem como lideram debates com
outros leitores.
3. AS INTERAÇÕES DE LEITORES EM TORNO DO CONSUMO DO LIVRO
No âmbito do consumo do livro, as redes sociais desempenham um papel fundamental na comunicação e na interação entre usuários-leitores. O Google Books e o
Goodreads atuam como redes sociais digitais e são utilizados para o armazenamento de
livros para usuários/leitores que buscam e trocam informações sobre textos lidos ou que
desejam ler. Ao ter acesso às informações publicadas por outros usuários a respeito de
um livro, o discurso comunicacional das redes sociais pode influenciar o leitor atuante
em grupos e listas no processo de decisão de aquisição de livros.
Michel Maffesoli (1987, p. 194) discute a constituição das tribos, o que ele chama de
microgrupos que pontuam a espacialidade que se faz a partir do sentimento de pertença
nas redes de comunicação. O autor utiliza a metáfora “aldeia” para definir territórios de
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uma cidade ou rede onde pessoas se juntam, se ajudam, se opõem e se entrecruzam na
busca de abrigo e segurança. As redes sociais digitais não deixam de ser aldeias formadas pelos grupos de interesses comuns. Como Maffesoli (1987, p. 194) aponta, “grupos
que não deixam de lembrar as estruturas arcaicas das tribos e dos clãs das aldeias. A
única diferença notável, característica da galáxia eletrônica, e a temporalidade própria
dessas tribos”. Nas redes sociais digitais é possível encontrar tribos/grupos com diferentes características, tais como: leitores interessados apenas em livros em inglês, grupos
com interesse específico em fanfics4, mitologia ou ficção, estudantes, pesquisadores e
assim por diante. Maffesoli (1987, p. 194) trata da pluralidade de valores presentes nas
tribos e discute o relativismo, que é a junção de valores, crenças e culturas diferentes.
As diferenças ideológicas são presente entre indivíduos, cuja relação entre as mídias e
as “tribos” humanas, relaciona-se com o desenvolvimento tecnológico.
O intercâmbio de informações pessoais nas redes sociais sugere certo interesse em
obter notoriedade. E, ao serem vistos, esses usuários estão em evidência tornando-se
ao mesmo tempo consumidor e produtor. Para adeptos desse comportamento, publicar
fotografias ou informações do cotidiano proporciona uma sensação agradável ao saber
que outras pessoas viram seu conteúdo, compartilharam e fizeram algum comentário
a respeito. Maffesoli (1987, p. 121), no mesmo livro anteriormente citado, discute a socialidade de indivíduos em grupos:
A temática da vida quotidiana ou da socialidade, em compensação, destaca que o problema
essencial do dado social é o relacionismo, que pode traduzir-se de forma mais trivial, pelo
ombro-a-ombro de indivíduos em grupos. Fica entendido que a “realiança” é mais importante do que os elementos que são ligados. (MAFFESOLI, 1987, p. 121)
A participação em grupos e a relação do consumo do livro com as dinâmicas comunicacionais das redes sociais colaboram com o leitor no contato com a obra, sugerindo o
interesse em conhecer o texto, direcionando a decisão e escolha do livro. No Goodreads,
por exemplo, o usuário da rede pode comentar e classificar um livro publicando sua
opinião. Essa atividade em rede é vista por outros membros do grupo e pode influenciar
no consumo ou não daquele livro comentado.
Como ações características das redes sociais com comunicação mediada pela internet, podemos apontar as conexões dos integrantes ponto a ponto, o surgimento de
comunidades por afinidade, como os clusters (conjunto de computadores, que utiliza
um tipo especial de sistema operacional classificado como sistema distribuído. Muitas
vezes é construído a partir de computadores convencionais (PCs), os quais são ligados
em rede e comunicam-se através do sistema, trabalhando como se fossem uma única
máquina de grande porte), fluxo livre da comunicação entre os integrantes, comunicação
multidirecional, a reedição autônoma e voluntária da informação, audiências ativas, o
fenômeno da emergência e as relações laterais.
4. Fanfic é a abreviação do termo em inglês fan fiction, ou seja, “ficção criada por fãs”, mas que também pode
ser chamada do Fic. Trata-se de contos ou romances escritos por terceiros, não fazendo parte do enredo
oficial dos animes, séries, mangás, livros, filmes ou história em quadrinhos a que faz referência, ou uma
história inventada por eles. Os autores dessas Fics são chamados de Ficwriters.
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4. AS REDES SOCIAIS DE LEITORES
As dinâmicas de comunicação utilizadas pelo Goodreads, a fim de estimular as
interações entre seus usuários, incluem a constante atualização, que é informada ao
usuário a cada ação. Toda vez que um usuário recebe um novo seguidor em sua rede de
relacionamento ou que algum membro avalia um determinado livro, o usuário recebe
um e-mail convidando-o a voltar à rede e fazer sua interação.
Cada membro integrante do Goodreads pode ser considerado um ator, cuja conexão
é a definição das diversas formas de atuação ou interação. A rede social permite que
leitores ou atores atuem criando grupos por classificação de interesses, avaliando livros
lidos, comentando livros que outros membros estão lendo e recomendando livros a mais
pessoas dentro e fora da rede.
As interações dos leitores que atuam nas redes sociais digitais tem chamado a
atenção de empresas do mercado de livros. Um exemplo foi a compra da rede Goodreads
pela Amazon5, que entendeu que 30% dos usuários da rede possuem o Kindle.
Com isso, a Amazon pode acessar dados dos leitores e colocá-los frente à possibilidade
da compra do livro cujo interesse foi sinalizado na rede, com o objetivo final de claro,
de aumentar suas vendas. Segundo Castells (1999, p.565), vivemos na era da conexão,
no qual “o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder”, neste sentido,
a informação e a rede estão intimamente associadas e determinam mudanças em todo
o âmbito da sociedade. Os diálogos informais com o vizinho até as negociações das
grandes empresas, compreendidas como formas de interação social foram transformadas
pela lógica das redes interligada às denominadas tecnologias da informação.
A configuração em rede aumentou o potencial da informação e a possibilidade de
conectar pessoas e conteúdos. Cada vez mais é possível reconhecer uma difusão de
ferramentas de interatividade que colaboram com um usuário, antes somente receptor,
que hoje é um agente de comunicação que desempenha papéis adicionais de produtor
e disseminador de conteúdo. Segundo o autor, a rede é a estrutura atual de organização da sociedade em que vivemos e tem como base a tecnologia da informação onde a
experiência social é modificada por meio dos fluxos informacionais.
Outras redes sociais estão direcionando sua atenção aos consumidores de livros.
O Facebook alterou sua interface incluindo a possibilidade dos usuários adicionarem e
organizar seus livros de interesse, além de outras preferências, como músicas e filmes.
O usuário pode configurar seu perfil da rede social informando os livros que já leu e
os que deseja ler. Para adicionar novos títulos, a rede oferece sistema de integração com
listas disponíveis no Goodreads e no Skoob, ou seja, com apenas um clique todos os livros
do Goodreads ou Skoob passam a compor a lista de livros no Facebook, com a possibilidade
de compartilhar com a rede os livros de interesse, ampliando o alcance do estímulo ao
consumo de livros.
Ao clicar na imagem do livro na lista do Facebook, o usuário é levado, neste caso,
para a rede de leitores Goodreads.
5. Disponível em: <http://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/digital/retailing/article/56575amazon-buys-goodreads.html>. Acesso em:30/04/2013.
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Os livros digitais ainda não possuem um preço tão menor em comparação ao preço
dos livros impressos. Por conta disso, é possível encontrar grupos no Facebook que foram
criados com o objetivo de trocarem e-books. Um usuário troca com o outro seus títulos
de interesse sem custo algum.
Neste ponto, pode-se relacionar as ideias de Maffesoli (1987, p. 9), que define tribos
como microgrupos que se deslocam dentro de uma massificação crescente. Segundo o
autor, “a metáfora da tribo permite dar conta do processo de desindividualização, da
saturação da função que lhe é inerente, e da valorização do papel que cada pessoa é
chamada a representar dentro dela”. Essas tribos não são estáveis, são mutantes, pois
são compostas por pessoas, que naturalmente mudam, evoluem. Uma pessoa pode ser
por toda a sua vida de uma mesma tribo, mas essa tribo com certeza terá pessoas que
a deixarão, ou a encontrarão ao longo dos anos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O consumo do livro analisado a partir das interações de leitores nas redes sociais e
das mobilizações do comércio eletrônico permitiu compreender como as transformações
digitais modificaram a prática da leitura e as formas de aquisição de livros.
A Amazon, o Google Books e o Goodreads se mostraram estar enfrentando um momento
de adaptação no que tange a produção, comercialização e distribuição de livros, principalmente os digitais, no intuito de acompanhar as práticas de consumo dos leitores.
Algumas dessas adaptações podem ser exemplificadas: quando a Amazon apresenta ao
mercado novas versões do Kindle, ou ainda quando, vez ou outra, anuncia promoções
nos preços dos livros digitais. Outro exemplo que pode ser citado em relação a essas
adaptações é a integração do Goodreads com a interface do Facebook. Essa interação permite
que usuários da primeira rede organizem seus livros listados numa timeline do Facebook.
O papel comunicacional das redes favorece o consumo do livro quando analisamos
as interações dos leitores conectados. Percebe-se que esses leitores dispensam um esforço
na divulgação do que se está lendo e na colaboração com outros leitores a partir da troca
de livros digitais. Informações sobre livros, classificação e comentários feitos por membros do Goodreads, promovem a interação entre os participantes. Publicação de resenhas
no Google Books colabora para a construção do conhecimento e interação com o livro.
A atenção de empresas, como o Google, Amazon, o Goodreads, e até mesmo do Facebook
voltada para as práticas de consumo do livro e para os processos comunicacionais das
redes, sugere algumas das mobilizações do comércio eletrônico e das redes sociais apontadas no decorrer da pesquisa. Nesse contexto, fatos como a compra do Goodreads pela
Amazon, a inclusão de uma área para “guardar” livros na timeline do Facebook, a vitória
judicial do Google na conquista do direito de digitalizar livros de importantes bibliotecas e o lançamento da loja on-line do Google, o Google Play. Todos esses acontecimentos
sinalizam o enorme potencial que as interações dos leitores têm no ambiente digital.
A atividade dos leitores no ambiente digital induz mobilizações comerciais dessas
empresas na tentativa de conquistar a atenção desses consumidores de livros. Neste
sentido, empresas buscam encontrar uma forma de aproximação dos leitores, tomando
como principal fonte de informação os próprios diálogos em rede.
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Cultura e consumo do livro intermediados pelas interações dos leitores no ambiente digital
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A análise dos estudos de caso elucida uma classificação dos diálogos que ocorrem
nos ambientes digitais estudados (redes digitais e comércio eletrônico) em torno do
consumo do livro.
Observou-se que não existe um caminho linear para diálogos dos leitores nas redes.
Esses podem se iniciar a partir de qualquer local da rede. Por exemplo, um depoimento
publicado nos comentários do livro na própria Amazon, uma consulta nos grupos de
leitores das redes sociais digitais: “Que livro de ficção científica vocês recomendam?”,
uma pesquisa no Google, um alerta do aplicativo do Goodreads no celular do que outra
pessoa acabou de ler. Ou seja, a narrativa das redes pode se iniciar em qualquer ambiente
do ciberespaço e terminar também em qualquer outro lugar. Este é um dos desafios
para os atuantes no mercado de livros. Estar justamente onde o consumidor de livros
está e captar sua atenção neste momento.
A questão que fica ainda sem resposta, está ligada ao sonho da biblioteca mundial
projetada inicialmente pelo Projeto Gutemberg e depois pelo Google. Como será o acesso
aos livros nos próximos anos? Se o objetivo é disseminar o conhecimento disponibilizando livros no ambiente on-line, como esse conhecimento chegará a pessoas que não
podem pagar uma assinatura para ter direito ao acesso? Em 2011 a Biblioteca Pública
Digital (Digital Public Library of America6) possuía cerca de mais de 2,4 milhões de
itens7e ainda oferece acesso gratuito, sem a exigência de cadastro prévio, ao banco de
dados composto por arquivos de museus e bibliotecas dos Estados Unidos que estão
sob Domínio Público.
Ainda não é possível prever o que acontecerá em relação ao projeto do Google.
Com o acordo já definido judicialmente, o que poderemos acompanhar é o avanço para
digitalização de livros de bibliotecas de outros países que ainda não estão inclusos do
projeto e aguardar para as possibilidades de acesso que serão fornecidas.
Observou-se no decorrer desse estudo, que interações dos leitores nas redes sociais
incluem, ainda de esteja fora das questões legais de direitos autorais, a troca de livros
dentro de grupos presentes nas redes. As plataformas permitem a criação de grupos com
possibilidade de upload e download de arquivos sem atentarem para a origem dos livros.
REFERÊNCIAS
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BAUMAN, Z. (2012). Nós Hipotecamos o Futuro. Entrevista. Recuperado em 03 de julho, 2013
em: http://www.youtube.com/watch?v=POZcBNo-D4A.
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em 27 out. 2012.
6. Digital Public Library of America – disponível em <http://www.dp.la/> Acesso em 20/03/2014.
7. Dados extraídos da matéria: Uma Nova Alexandria – Revista Época, n. 778 de 22 de abril de 2013. Autora:
Amanda Polato.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4635
WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
WWE: a match universe that invaded the Brazil
Carlos Cesar Domingos
do
Amaral1
Resumo: Esse estudo mostra o histórico da empresa de Pro-Wrestling chamada
WWE, a transmissão dela no Brasil e uma breve pesquisa com fãs sobre a
transmissão da WWE por aqui, o resultado se mostra positivo.
Palavras-Chave: Brasil. Esporte. Jornalismo Esportivo. Luta livre. Pro-Wrestling.
WWE.
Abstract: This study shows the history of pro wrestling company called WWE,
the transmission of it in Brazil and a brief survey of fans on the transmission of
WWE here, the result shown positive.
Keywords: Brazil. Sport. Sports Journalism. Luta Livre. Pro-Wrestling. WWE.
INTRODUÇÃO:
WWE - World Wrestling Entertainment é um show de lutas ligadas ao entreteni-
A
mento. A empresa foi fundada nos EUA na decáda de 1950. No início, o respectivo
nome era bem distinto do atual. A empresa era denominada por NWA Capitol
Wrestling, após o jovem Vincent K. McMahon adquirir a empresa do pai Vincent J.
McMahon que sempre foi fascinado por esse estilo de luta. Os anos se passaram e novamente o nome foi mudado, agora para World Wrestling Federation (WWF), a partir daí
Vincent K. McMahon. compra a organização de seu pai, onde até hoje é o presidente, o
que fez a então WWF crescer muito no território mundial. O grande salto da empresa
acontece em 1997, com a WWFATTITUDE, a epóca mais lembrada e criticada da companhia, pois grandes combates e lutadores que depois foram para o cinema como Hulk
Hogan e The Rock, se defrontavam em diversos segmentos, mas também pelas bebidas
alcoolicas e depredamento dos bons costumes americanos. Em 2002, a última troca de
nome e assim nasce a WWE, mas o intuito das lutas continuava, mas bem diferente da
Era da Atitude da WWF. As lutas da WWE estão enquadradas no estilo Pro-Wrestling
que no Brasil é conhecida como Telecatch ou simplesmente Luta Livre.
A comunicacação, o jornalismo esportivo e a WWE são os pontos centrais desse
artigo, com todo o trabalho de campo do mesmo, para isso se foi feita uma entrevista
via email aos locultores brasileiros da WWE, Marco Alfaro e Roberto Figueroa. Em uma
pergunta se foi levantado a opinião dos fãs em páginas especializadas no assunto pela
rede social Facebook sobre a transmissão dos shows da empresa no Brasil. Além de se
1. Mestrando em Comunicação na Universidade de São Caetano do Sul (USCS); Jornalista formado pela
Universidade de Uberaba (UNIUBE); Especializado em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte na
FMU. E-mail: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4636
WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
saber o número total de páginas das redes sociais Facebook e Orkut que trabalham com
o assunto em questão.
As diferentes historias concordam que, nos EUA, Wrestling Profissional surgiu como um
esporte legítimo. Tal como acontece em outros esportes, a falta de um centro de organização
resultou em lutadores e promotores contratantes partidas em uma organização independente
base, o que de origem a uma variedade de locais diferentes , regras, estilos, campeonatos e
títulos (LIPSCOMB III: 2005, p. 12, tradução livre).
O objetivo é contar o que é WWE, os desafios a serem enfrentados nos Brasil em
busca da consolidação. Além de saber o que os fãs pensam sobre a transmissão da mesma no páis.
Mesmo sendo um esporte de entretenimento praticado com grande predomínio
nos EUA, a WWE invadiu o Brasil com uma forma diferente de se praticar lutas e fazer
espetáculo. Porém todo esse sucesso não rendeu nenhum trabalho acadêmico2 em nosso
país e América Latina ou ao menos publicado na internet. Esse artigo é o primeiro em
analisar os caminhos a serem traçados pela companhia em busca de sucesso em um
país especifico, no caso o Brasil. Justificando a construção desse trabalho. É importante
debater esse tema, pois essa entidade possui fãs por todos os cantos do mundo. A Luta
Livre ainda existe no Brasil junto a várias empresas, mas não vamos falar disso aqui.
O Brasil é considerado nos bastidores como a “bola da vez”. Para os fãs que acompanham a WWE desde os tempos de SBT, Esporte Interativo e Fox Sports, apenas consolida
essa paixão. Para a nova geração de torcedores e apreciadores de lutas, esse artigo trará
um pouco da história da entidade e do que esperar da WWE para os brasileiros.
A luta livre é um esporte que distribui medalhas em todos os jogos olímpicos, desde 1896.
As mulheres competiram pela primeira vez nas Olimpíadas de 2004. A luta livre profissional surgiu nos EUA, no começo do século XX. O resultado final foi a criação em 1963,
daquilo que viria a ser a Federação Mundial de Wrestling (WWF, atualmente WWE) A
WWE supervisionou o apogeu de eventos como a Wrestlemania em 1980 – 1990, lutas teatrais protagonizadas por estrelas que apresentavam shows de entretenimento e também
de esporte (STUBBS, p. 216, 2012).
POR DENTRO DO SHOW
A proposta desse artigo é falar sobre esse esporte de que é praticado pela WWE,
que a cada dia tem mais adeptos no Brasil. “Existem sim redatores das histórias, mas
as lutas são 100% de verdade”, afirma o comentarista brasileiro contratado da WWE,
Roberto Figueroa (2013)3. O sucesso da WWE pelo mundo é tão grande que eles têm
uma campanha denominada: “Fique seguro, não tente isso em casa, na escola ou em
qualquer lugar” (Don’t Try This at Home, School or Anywhere), para que as crianças e jovens
não tentem repetir os golpes executados no ringue. Os vídeos de adversão são passados
durante os shows semanais e são os próprios lutadores que pedem para não repiterem
2. O Google Acadêmicos e o Capes Periódicos não trazem nenhum artigo escrito sobre WWE na América
Latina.
3. Entrevista realizada por esse autor, em 10/04/2013.
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
aqueles movimentos. Enquanto muitos julgam a WWE como um esporte falso, os fãs da
empresa ou mesmo do wrestling tem a certeza de que tudo é real, principalmente as lutas.
O cenário da WWE é muito intenso e o inesperado sempre pode acontecer. Fraturas e lesões
são frequentes mesmo com todo os cuidados e treinamentos. Até por isso que sempre alertamos os fãs da WWE para não tentarem o que se faz no ringue em casa, ou qualquer outro
lugar. Em um dos casos mais recentes, Kofi Kingston acertou um chute na testa do The Miz
e este ficou com uma cicatriz permanente. Algo terrível para o Miz que é vaidoso, e estava
escalado para aparecer no filme Mariner 3. O chamado storyline4 é parte importante na
paixão que todos os fãs da WWE, entre os quais eu me incluo, temos por este universo. Se
você conversar com um wwista da antiga saberá que as rivalidades históricas muitas vezes
aparecem como um espelho de nossa sociedade ( atualmente as posições anti-imigrantes de
Zeb Colter e Jack Swagger refletem o grande debate sobre reforma de imigração nos Estados
Unidos) e a narrativa da evolução de um Superastro, passando por momentos bons e ruins,
lembra muito o que acontece em nossas vidas (FIGUEROA, 2013).
Diversos shows são feitos pela empresa e transmitidos cada um em um dia da
semana: Raw, NXT, Vintage, Main Event, SmackDown e Total Divas. Apenas o Monday
Night Raw é exibido ao vivo na segunda-feira pelo canal Fox Sports 2, empresa essa que
é a detentora das transmissões da WWE no Brasil. O Raw esteve no Esporte Interativo
de 2011 a 2015, o contrato chegou ao fim e não foi renovado. Os outros são apenas transmitidos nos EUA. WWE Superstars é uma atração feita na quinta-feira, mas é disponibilizado apenas no site de hospedagem de arquivos, Hulu Plus. Programas esporádicos
como o Classics on Demand que difere do Vintage apenas na exibição de lutas antigas
sem nenhum tipo de corte. Ao fim de cada ano a WWE promove o evento Tribute to the
Troops, onde o objetivo é promover lutas para os soldados das tropas americanas que
estão na arquibancada, sendo esse evento como uma forma de agradecer os trabalhos
prestados por eles durante os meses do ano. Além dos vários pay-per-views que acontecem uma vez por mês, Royal Rumble; Fast Lane; TLC Tables Ladders & Chairs; Payback;
Battleground; Money in the Bank; Summer Slam; Night of Champhions; Hell in a Cell; Survivor
Series; Extreme Rules e a Wrestlemania que é o evento mais importante e aguardado pela
companhia e pelos fãs de WWE, denominados WWE Universe ou wwístas. Existiram
outros 24 pay-per-views durante os 50 anos da WWE5.
Para 2014 a WWE iniciou um grande investimento que é a WWE Network que é uma
plataforma totalmente online que tem inúmeros programas que a entidade transmitiu
durante sua história e com a finalidade de uma assinatura mensal. Aparelhos como o
Samsung Galaxy, Sony PlayStation 3 e 4 e outros dispositivos também poderão acessar
4. Storyline são as histórias em que os lutadores da WWE participam. O mesmo tem vários segmentos
assim como as novelas. Uma storyline geralmente termina após um grande combate.
5. Foram pay-per-vies da WWE: Armageddon (1999 - 2008), Backlash (1999 - 2009), Bad Blood (1997) e
(2003 - 2004), The Big Event (1986), Bragging Rights (2009 - 2010), Breaking Point (2009), Capitol Punishment
(2011), Taboo Tuesday (2004 - 2008), December Dismember (2006), Fatal 4 Way (2010), The Great American
Bash (2004 - 2009), Invasion (2001), Judgment Day (1998 - 2009), King of the Ring (1993 - 2010), New Years
Revolution (2005 - 2007), No Mercy (1999 - 2008), No Way Out (1998 - 2009), One Night Stand (2005 - 2008),
Over The Limit (2010 - 2011), SWS / WWE Supercards (1990 - 1991), This Tuesday in Texas (1991), Unforgiven
(1998 - 2008), Vengeace (2001 – 2011) Elimination Chamber (0000 - 2014).
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
ao conteúdo. O acesso do usuário é dedicado ao universo de inúmeros combates e
lutadores que fizeram história por lá. Além de assistir todos os pay-per-views ao vivo.
Os brasileiros tiveram acesso em agosto do mesmo ano.
A “escola” de wrestling da WWE e que também promove um show semanal é a
NXT, a sigla significa Next que é a tradução da palavra Próximo para o português. Com
o contrato feito junto ao Fox Sports o show do NXT também foi para a programação.
John Leland escreve que a World Wrestling Federation (WWF) televisão show, Raw is War,
é visto por mais de 5 milhões de famílias. Em 10 dias, o Guia TV Online lista mais de 31
horas deprogramação de wrestling, incluindo repetições de pay-per-views. Além disso,
milhares de pessoas comprar ingressos para assistir a eventos de lutas ao vivo (LIPSCOMB
III: 2005, p. 1, tradução livre).
Os lutadores da WWE são chamados de Superastros. Ao todo o número de funcionários da WWE é de 721 empregados, dentre esses 92 estão ligados diretamente
com os shows. Os superastros mais conhecidos e queridos pelo público são The Rock,
John Cena, The Undertaker, Brock Lesnar, Triple H, Daniel Bryan, Ryback, Sheamus,
Kane, Big Show, Randy Orton, The Miz, entre outros. A companhia tem vários títulos
em disputa. O Campeão Mundial Pesos-pesados da WWE (WWE World Heavyweight
Champion) é Brock Lesnar; A Campeã entre as Divas (WWE Divas Champion) é Nikki
Bella; O Campeão Intercontinental (WWE Intercontinental Champion) é Bad News Barret;
O Campeão dos EUA (WWE United States Champion) é Rusev; Os Campeões de Duplas
(WWE Tag Team Champion) são Tison Kidd e Cesaro. As disputas que valem cinturão
acontecem na maioria das vezes nos pay-per-views, pois são vendidos separadamente
da TV aberta. Além dos 166 cinturões que existiram e depois forma retirados da programação. A maioria deles foram se unifacando a outros títulos e por isso não fazem
mais parte das storylines, o último a ser unifacado foi o WWE World Heavyweight Champhionship ao WWE Champhion durante o pay-per-view TLC em dezembro de 2013, onde
Randy Orton venceu John Cena.
Em meados de 1990, wrestling das mulheres tomou conta da WWE que começou a promover
suas mulheres como ‘divas’ e os usarem como colírio para os olhos mais que os lutadores.
Muitas das mulheres foram usados como gerentes ou manobristas e tinha pouco talento
wrestling. No entanto, isso mudou no novo milênio, quando WWE realmente empurrou
divisão das mulheres, inclusive com uma partida evento principal entre Trish Stratus e Lita
para o campeonato das mulheres. Desde então, a divisão das mulheres tomou um banco
traseiro na WWE, mas as mulheres continuam a realizar e a maioria delas tem um monte
de experiência de wrestling (BRETON: 2009, p. 19, tradução livre).
6. Durante os quase 50 anos da entidade em funcionamento, Esses são os antigos títulos em disputa na WWE:
ECW Championship (2006 - 2010), Cruiserweight Championship (1991 - 2007), European Championship
(1997 - 2002), Hardcore Championship (1998 - 2001), Junior Heavyweight Championship (1997 - 2001),
North American Heavyweight Championship (1979), Women’s Championship (1956 - 2010), Women’s
World Tag Team Championship (1983 - 1988), World Heavyweight Championship (2002 - 2014), World
Martial Arts Heavyweight Championship (1978 - 1989), World Tag Team Championship (1971 - 2010), World
Wide Wrestling Federation International Heavyweight Champhionship (1959) e (1982 - 1984), World Wide
Wrestling Federation International Tag Team Championship (1969 - 1971) e (1985), World Wide Wrestling
Federation United States Heavyweight Championship (1963) (1967 - 1971), World Wide Wrestling United
States Heavyweight Championship (1963 - 1967), The Wrestling Classic (1985).
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
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Em todos os shows, as arquibancadas estão lotadas e repletas de cartazes com fotos,
desenhos, nomes e gritos de guerra dos superastros. Eles gritam, xingam, vibram muito
durante as lutas. Não existem publicos pequenos como nos jogos de futebol no Brasil,
lá a “casa” está sempre com lotação máxima. Existem homens, mulheres, crianças e
senhores de idade na torcida, não existe nenhuma distinção. Os shows acontecem em
todos os estados dos EUA, mas também nas excursões pelo mundo. Em 2012, a cidade
de São de Paulo recebeu o evento aqui no Brasil.
Tal como o atleta dá a sua imagem por um clube desportivo, assim também o wrestler dá a
sua imagem pela companhia onde trabalha. Assim sendo, a WWE, implementou políticas
rigorosas de monitorização de conduta imprópria, uma vez que os wrestlers são o cartão-de-visita da instituição e, especialmente desde há alguns anos para cá, desenvolveu-se uma
maior consciencialização acerca da influência destes modelos nas crianças e nos jovens
adultos. Como é evidente, o wrestling, que nos é mostrado nos programas de televisão de
companhias como a WWE, pouco tem a ver com o wrestling enquanto modalidade olímpica. De fato, o wrestling televisivo constitui uma exibição de demonstração de força e de
agilidade, que teve origem em feiras itinerantes e espetáculos de variedades (...). Posto isto,
são as demonstrações de força e agilidade dos wrestlers, combinadas com a capacidade de
representação de várias personagens, que os põem em destaque. Uma performance menos
conseguida ou uma conduta imprópria do wrestler pode levar ao seu despedimento, ou seja, ao
seu desaparecimento de cena, caindo no esquecimento do público (ROCHA, 2011, p. 42 e 43).
A WWE estreia na TV brasileira em 1987 no SBT, ainda conhecida como WWF,
apenas com filmes que foram produzidos pela WWE Studios. Os programas semanais
da entidade vieram dez anos depois na TV Manchete e Michel Serdan, Presidente da
GDR – Gingantes do Ringue que se localiza na capital São Paulo, foi procurado para
ser comentarista dos combates, mas não participou dessas transmissões, pois não era
amigo do narrador que tinha sido contratado pelos americanos. Pouco tempo depois, os
programas saem do ar na extinta emissora e vão para o SBT e dessa vez Michel Serdan7
participou e conta sobre esse período de implementação da empresa no Brasil.
Eu consegui uma maneira de apresentar um projeto da minha Luta Livre para se veicular
no SBT e quando falei com o Sílvio Santos, ele disse que não poderia fechar comigo, pois
tinha assinado com a WWE um dia antes. E pediu junto as pessoas que ele tinha firmado o
contrato que me procurassem para eu participar dessas transmissões. Encontrei a pessoa
com quem o Sílvio tinha me indicado e ele falou sobre o capricho que a entidade pede nas
narrações e como eu tinha o narrador que era o Jarbas Duarte que foi aprovado na hora.
Então o Vince McMahon pediu que fossemos fazer um estágio na WWE para conhecer o
que eles querem durante os eventos, assim como o que podia e não ser dito nas narrações.
Ficamos lá por um mês e com tudo pago por eles. O horário para os programas Raw e SmackDown eram de duas horas, uma hora para cada show, das 20hs até as 22hs aos sábados,
quando faltava um dia para voltamos dos EUA tudo tinha mudado e um dos chefes da
companhia avisaram que o Sílvio tinha mudado para as 18hs até as 20hs ainda aos sábados
(SERDAN, 2013).
7. Entrevista realizada por esse autor, em 13/02/2014.
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
Com esse horário de TV definido para as transmissões dos programas, a WWE
sentia que isso não ia durar muito tempo, pois mesmo os EUA que a censura era bem
menor esse horário não chamava público, então no Brasil, tudo poderia complicar. Foi
exatamente isso que aconteceu e logo o que já tinha chamado a atenção de várias pessoas
foi tirado do ar.
Naquela época era muita violência nos combates, cadeiradas, sangue, além da marreta que
o Triple H sempre usava, com isso a edição recortava muito o programa e colocar em preto
e branco as cenas com sangue não estava ficando bom e com o Ministério Público na ‘cola’
do Sílvio, aí ele decidiu tirar porque mesmo a TV sendo dele, ele não podia fazer o que bem
queria, não ligando para patrocinadores e ninguém. O indice de audiência era grande. Já vi
muitos jovens dizendo que a Fox e TNT passaram WWE, mas o recebimento de TV fechado
no Brasil ainda é muito novo, então não acredito nisso (SERDAN, 2013).
Shields e Sullivan (2012, p. 44 e 45) afirmam que a WWE Studios é um dos setores
da empresa que tem por objetivo produzir filmes onde alguns dos Superastros da
companhia participam, porém nem em todos. Já foram criados 258 filmes.
Shields e Sullivan (2012, p. 76 e 77) completam que a parte de merchandising da WWE
é repleta de artigos, entre eles estão camisetas, bonés, colares, pulseiras, bermudas,
brinquedos, DVD’s com as melhores lutas do ano, como dos próprios programas payper-vies e da vida de alguns dos wrestlers da companhia.
Possívelmente a WWE volte ao Brasil em uma nova oportunidade, assim como foi
em 2012, mas mesmo assim os meios de comunicação de massa brasileiros não noticiam
nada sobre Luta Livre, mesmo com os lutadores se arriscando de verdade, ainda se
encontra aqueles que chamam de “luta de mentira” ou “marmelada”. Esse destrato em
ajudar na divulgação de outros esportes também é vivido pelos demais desportistas
que são apenas lembrados em suas respectivas competições.
Um olhar atento sobre a cobertura esportiva revela equívocos formidáveis. Em primeiro
lugar, há uma preocupação quase exclusiva com o futebol, como se não existissem interessados e praticantes de outros esportes, ou ainda como se o Brasil não tivesse competência
explícita e reconhecida em muitas outras áreas. Não se pode negar que a técnica e a arte
de chutar a bola representam o esporte das multidões em nosso país, mas há desproporção
entre o número de praticantes das diversas atividades esportivas e o espaço (e o tempo) a eles
dedicados pela mídia. Em geral, a mídia só contempla determinados esportes no instante das
grandes competições internacionais (as Olimpíadas e os Jogos Pan-americanos), penalizando
os que deles se ocupam com dedicação, quase sempre solitários ou empreendedores. Dessa
maneira egoísta e mesquinha, só reconhece os vencedores (os medalhistas), relegando os
demais só esquecimento, deixando de cumprir o seu papel de estimular as novas vocações
e de valorizar o espírito de competição. Em segundo lugar, a cobertura esportiva limita-se
8. Os filmes citados são: No Holds Barred (1989), The Marine (2006), See No Evil (2006), The Condemned
(2007), Behind Enemy Lines: Colombia (2009), 12 Rounds (2009), The Marine 2 (2009), Legendary (2010),
Knucklehead (2010), The Chaperone (2011), Inside Out (2011), That’s What Iam (2011), The Reunion (2011),
Bending The Rules (2012), The Day (2012), Barricade (2012), No One Lives (2012), Leprechaum: Origins
(2013), Dead Man Down (2013), Queens of the Ring (2013), The Call (2013), The Marine 3 Homefront (2013),
12 Rounds 2 Reloaded (2013), See No Evil 2 (2014), Scooby-Doo: WWE Wrestlemania Mystery (2014).
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
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a um espaço de atuação limitada, que se confunde, quase sempre, com o antes, durante e
depois dos jogos e competições. Não há vida fora dos torneios, e, por isso, as pautas ficam
pobres, endereçando-se para a fofoca e a intriga, quando há temas absolutamente fundamentais para serem tratados (CAMARGO, CARVALHO, MARQUES:2005. p. 20 e 21).
Michel Serdan afirma que existe muita diferença em trabalhar com Luta Livre
nos EUA e no Brasil, pois lá o profissionalismo no esporte está acima de tudo. “Eles
são artistas e na WWE ainda os chamam de superastros que é para deixar bem longe
qualquer tipo de comparação com a designação lutador, assim como para ringue que
eles denominam como palco. Aqui no Brasil é qualquer coisa, eu tento fazer uma coisa
melhor, mas o círculo desse esporte é pequeno e falta dinheiro. Aqui no Brasil é futebol,
futebol e futebol” (SERDAN, 2013). Michel explica que a maior dificuldade desse esporte
por aqui é não estar em um bom canal e com um bom tempo no ar.
Hoje a WWE está em 140 países e é transmitida em várias línguas e estão no ar por mais
de 30 anos. O ringue não possui uma publicidade, já o meu tinha propraganda para todos
os lados e até os lutadores vestiam camisetas com anunciantes, tudo isso para poder fechar
as contas ao fim do mês. As cadeiras que a WWE vende próximas ao ringue tem o carimbo
da entidade e eram vendidas na época que estive lá por U$ 250,00 e eles compravam por
U$ 5,00, mas no fim do show o espectador que comprou pode levar a cadeira de recordação, quando se está no auge isso é bom de se fazer, mas por aqui é muito dificil sobreviver.
Mas não é muito dinheiro para se manter a Luta Livre no Brasil, em vista a maioria dos
programas que existem hoje, mas é preciso de um grande patrocinador nos ajude, porque
já fomos líderes na programação da TV Gazeta com o programa Gigantes do Ringue – A
Nova Geração (SERDAN, 2013).
Nas lutas existem algumas regras a serem seguidas, caso sejam quebradas o lutador
é desclassificado por norma não legal. Os chutes devem serem feitos com as solas dos
pés, os socos apenas com a mão aberta. Não se pode dar golpes na area dos olhos ou
morder. São permitidos nos combates levantar os oponentes, derrubá-los ou os jogar na
lona do ringue. Uma das manobras mais arriscadas é feita da seguinte forma: Você pega
o adversário com as pernas para cima e bate a sua cabeça no chão. Esse golpe é chamado de tombostone piledriver, nos combates semanais ele é proibido, mas em grandes
combates ele é liberado. No Brasil ficou conhecido como Pilão, graças as narrações de
Michel Serdan e Jarbas Duarte.
Todos os golpes aplicados e recebidos nas lutas são reais mas a finalidade deles jamais é
de colocar o oponente fora de combate. As lutas são disputadas por atletas de uma mesma
equipe, os quais são, geralmente, amigos uns dos outros. Por isso os golpes mais violentos
são exaustivamente treinados e ensaidos pelos praticantes, de modo a assegurar que ninguém saia de uma apresentação ferido gravemente. Contudo, acidentes – e vários incidentes
pitorescos – acontecem. (DRAGO, 2007, p. 16).
O site Wwe no Brasil (2013) conta que existem cerca de 70 tipos diferentes de combate,
desde uma luta simples até um estilo onde o vencedor é aquele que colocar o adversário
dentro de uma ambulância. Em muitas lutas são liberadas o uso de cadeiras, mesas e
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
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escadas, principalmente no evento pay-per-view TLC, Tables, Ladders & Chairs.
Vince McMahon o dono da World Wrestling Entertainment (WWE) deu grandes passos nos
últimos dois anos para garantir a saúde de seus atletas. Atualmente a WWE tem um extenso
programa de Bem-Estar de Talentos, que administra testes de drogas aleatórios para seus
atletas, bem como testes para os suspeitos de possível uso. O teste procura por todas e
quaisquer substâncias proibidas, bem como alguns medicamentos de balcão. Quando nada
for encontrado no sangue e / ou urina são tomadas medidas adicionais. Existe investigação
sobre a razão da droga com alguns banidos, algumas substâncias podem ser receitadas por
razões terapêuticas legítimas. Para o primeiro teste com resultado positivo, de acordo com
a WWE irá resultar em uma suspensão de 30 dias sem remuneração. Em um segundo teste
com o resultado positivo são 60 dias de suspensão sem remuneração, bem como a possibilidade de ser obrigado a participar de um programa de reabilitação de drogas no paciente,
se for considerado pelo médico da WWE. Além de uma nova política de drogas, a WWE
também acrescentou um componente de saúde cardiovascular de seu plano de bem-estar.
Este teste envolve atletas dando um teste de esforço cardíaco para garantir que eles são
fisicamente capazes de executar(MARTEL: 2007, p. 4 e 5, tradução livre).
O elenco de superastros da WWE não é composto apenas por americanos, na
verdade é uma grande miscigenação. Kofi Kingston é africano, Cesaro é suíço, Sheamus
é celta, Wade Barret e Paige são ingleses, Sin Cara e Kalisto são mexicanos, entre outros
estrangeiros. Não existe nenhum brasileiro no quadro de atletas da WWE. “Acho mais
fácil vir uma Diva...acho que daria super certo!” (FIGUEROA, 2013).
Em nossas reuniões sempre falamos da importância de termos um Superastro, ou por que
não uma Diva brasileira na WWE. Acredito que isso venha a acontecer em conjunto com o
crescimento da WWE no Brasil. No ano passado (2012) tivemos a primeira visita da WWE
ao Brasil, com um show em São Paulo, e assim como as presenças do Alberto Del Rio e Sin
Cara são motivos de orgulho para os mexicanos, a entrada de um brasileiro seria algo tremendo para nós brasileiros. A resposta do público à WWE no Brasil tem sido espetacular e
graças ao apoio de tantos fãs a WWE continuará crescendo em nosso país (ALFARO, 2013).
Segundo Ramos (1984, p. 35 e 36) o governo de Médici queria mudar sua imagem
frente a população e usaram o futebol e o carnaval como objetos de aproximação. Além do
então presidente frequentando os jogos de futebol, como se ele fosse o torcedor número
um do país. Com isso a Luta Livre no Brasil perdeu força e patrocínios, pois o futebol
era visto como o esporte número um do país. Essa queda ajudou esse segmento a cair
bastante, o que contribuiu a WWE nunca ter tido um lutador brasileiro em seu roster,
mesmo com quase 20 anos de Luta Livre na TV brasileira. Argentinos e Uruguaios já
lutaram na companhia.
Drago (2007, p. 43 - 45) conta que a estratégia de usar toda a perfomance do telecatch9
para suprir os problemas de transmissão na TV foi bem sucedida, pois a mesma prendia
os patrocinadores e fãs, com essas luta sendo transmitidas pela televisão que o nome
telecatch se fixou ao espetáculo. A dúvida se as lutas eram reais ou encenadas era
9. Nome de como ficou conhecido os combates de Luta Livre na TV brasileira.
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dúvida que alimentava a audiência, onde recordes eram quebrados a cada show, nenhum
programa da época igualava a audiência alcançada pelo telecatch. Algumas lutas tinham
os lutadores sangrando, o que fez o coronel Aloysio Muhlerthaler que era Chefe do
Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal expedir
as emissoras de TV que as lutas do telecatch fossem exibidas após as 23 horas, o que fez
os patrocinadores deixarem de investir nesse esporte. Algo que não era diferente a WWE
nos EUA, a então WWF. Vince McMahon, presidente da entidade teve que declarar que as
lutas do Pro-Wrestling são encenadas, o que acabou com o maior segredo desse esporte
e ainda teve que mudar a sigla WWF para WWE, para se adequar ao entretenimento e se
diferenciar da WWF que cuida da vida selvagem. No Brasil, a censura calou a Luta Livre,
as TV’s atenderam ao pedido, nos EUA a WWE conseguiu comprar pequenas empresas
do segmento. Sua rival americana é a TNA (Total Nonstop Action), agora com contrato
de televisão junto ao Esporte Interativo, mas o dinheiro que a WWE movimenta é muito
superior, possivelmente seja a que mais ganha dinheiro com isso em todo o mundo..
Existem cinco forma de se definir um vencedor em uma luta da WWE: Nocaute que
é quando um dos lutadores não tem mais nenhuma condição de seguir lutando, mesmo
conseguindo ficar de pé; Submissão que acontece na hora que o oponente desiste da luta,
principalmente após um mata-leão, chave de perna e braço. A terceira forma é o Pinfall
que se caracteriza com o oponente com os dois ombros na lona por três segundos; O
count out que na ocasião um dos lutadores fica por dez segundos fora do ringue; Por
fim, a desqualificação que acontece quando um dos lutadres usa um movimento ilegal
ou usa uma escada, cadeira ou mesa para bater no outro.
Wrestling profissional acontece em uma praça chamada de ringue em oposição a faculdade e
colégio luta que ocorre sobre um tapete. O ringue é de quinze metros quadrados. A estrutura
do corrente é apoiado por aço enquadrado coberto de madeira e espuma. Tudo é coberto
por uma lona. O que permite que o choque dos corpos dos lutadores para ser absolvido
pela entrada de ar no ringue. O ringue também é suportado com quatro postos no ringue.
Além disso, o ringue funciona como um grande tambor, amplificando os ruídos que são
feitos sobre o tapete para adicionar à ação. As cordas em torno do perímetro são cerca de
uma polegada de expessura e coberta de plástico. Eles estão pendurados horizontalmente
e se conectam a cada um dos pontos do ringue (BRETON: 2009, p. 14, tradução livre).
Para cultivar e preservar a história e os lutadores, a WWE criou em 1º de fevereiro de
1993, o WWE Hall of Fame (Hall da Fama WWE), ao todo mais de 90 pessoas fazem parte
do mesmo. O Hall se iniciou após a morte de um dos grandes ídolos da instituição, André
The Giant. Depois disso muitas indicações foram acontecendo e o salão ficando cada vez
mais cheio. Os últimos ingressantes foram Alundra Blayze, Arnold Schwarzenegger,
The Bushwhackers, Randy Savage e Rikishi.
Em 2013 a WWE criou o site wwecommunity.com onde são expostos algumas ações
da instituição em apoio a entidades que trabalham com crianças em estados terminais,
mulheres com câncer de mama, crianças com Síndrome de Down, entre outras. Um
dos objetivos do site é trabalhar a diversidade, educação, esperança e o militarismo. Os
superastros da WWE visitam essas pessoas e com eles promovem palestras, conversas
individuais, fotos e abraços as crianças que os têm como heróis.
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
A WWE quer expandir o seu mercado por aqui, tanto para shows como para
contratação de lutadores. E Michel acabou sendo procurado por uma pessoa que queria
falar sobre a empresa com ele, mas não dizia qual a finalidade da conversa.
Pedi que ele se abrisse comigo, pois me recusava a responder, ele então disse que estava a
mando da WWE em busca de saber quem era que ‘mandava’ nesse esporte aqui no Brasil.
Marcamos uma reunião e ficou decidido que teremos essa parceria, onde eu devo arrumar
quatro lutadores bons de 1,90 de altura e 100 kilos para fazer parte da equipe deles. Esses
quatro brasileiros farão uma experiência por três meses lá com tudo garantido, treinamentos,
roupas, moradia e até inglês para os que não falam o idioma e por fim fazem um teste, se
passarem assinam contrato, se não são dispensados e voltam para o para cá. Dando tudo certo
e eles contratarem os quatro lutadores, o acordo se encerra dessa maneira (SERDAN, 2013).
O grande problema que Michel Serdan vem enfrentando é que o nosso país não
tem tantas pessoas que trabalham com Luta Livre com essa altura, somos extremamente
baixos em relação a isso, um lutador de 1,80 já considerado grande por aqui. Michel
visitou em academais de Porto Alegre e Rio de Janeiro e nada de encontrar lutadores
dessa maneira.
Então fizemos um acordo que se eu arrumar dois lutadores como eles pedem e que sejam
bons, então eu poderei mandar outros dois de altura menor, mas que também faça ‘o show’
no ringue. Desde que anunciei isso em minha conta do Facebook, mais de 200 lutadores
entraram em contato comigo. Estou tendo muitas dificuldades para encontrar esse tipo de
lutador que me foi pedido, mas não estou fazendo isso por dinheiro e sim pela nossa Luta
Livre (SERDAN, 2013).
Michel conta que após suas visitas as academias tomou conhecimento de que não
temos lutadores como a WWE deseja, mas que ele conhece apenas um lutador para
mandar e que foi formado na GDR. “O lutador que eu estou me referindo é o Xandão
da BWF, pois nunca escondi dele que o considero como o melhor lutador de Luta Livre
do Brasil” (SERDAN, 2013). Contudo isso não deu certo, pois Xandão se mudou para
trabalhar como lutador no México.
Os diálogos entre os lutadores são traduzidos pois não são todos os brasileiros que
possuem uma fluência em inglês. Os golpes também são traduzidos e aí entramos em uma
grande polêmica, pois muitos fãs que acreditam não gostam disso. No filme brasileiro
Dois na Lona (1968), onde o lutador Ted Boy Marino e Renato Aragão participam. A
sínopse do filme está no namoro dos rapazes com duas mulheres ricas. O sonho de
Ted Boy é se tornar um lutador, após o convite de um empresário e os treinamentos
ele mostra talento e entra em um campeonato. Os combates fazem parte do mesmo
e o nome dos golpes não são tão diferentes dos que são empregados na tradução dos
realizados na WWE. Os nomes ditos no filme são: Chicote, Chave de braço e perna,
Cabeçada, Extrangulamento, Gravata, Pontapé e Tesoura. O que demonstra que os nomes
dos golpes devem ser fáceis de falar o que ajuda na memorização. Então dizer Attitude
Adjustment, AA ou Ajuste de Atitude não podem ser encarado como errado, mesmo que
pareça ser estranho no início ao fã de WWE. As duas vozes da WWE no Brasil explicam:
“É procedimento da WWE a tradução dos golpes”, afirma Roberto (2013).
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
Assim como aconteceu com o nosso futebol, importado da Inglaterra, foi necessário criar
uma linguagem brasileira para o esporte. Eu cresci nos anos 60 quando se dizia ‘o jogador
está off-side ou uma cobrança de corner’ algo que naturalmente se transformou em termos
unificados, independente de região do Brasil, como impedido ou escanteio. Eu, junto com
outros colegas da ESPN, fiz o mesmo trabalho na implantação dos chamados ‘Esportes
Americanos’ no Brasil. Na NFL (liga de futebol americano), por exemplo permaneceu o
touchdown (gol no futebol americano) mas o ato de derrubar o Quarter-back deixou de ser
Sack para ser ‘sacado’, ou arremessado no chão. Isso é importante por dois motivos: Boa
parte dos telespectadores brasileiros não dominam o idioma inglês e nos momentos de
grande impacto é preciso ter certeza que a reação do telespectador será imediata. No caso
da WWE os golpes seguem esta linha. Quando o Undertaker bota um adversário de cabeça
para baixo e o solta para quase quebrar o pescoço chamamos de Tombstone (pois o golpe da
‘lápide’ não teria o mesmo impacto) No caso do John Cena, quando ele coloca o adversário
sobre os ombros e o arremessa feito um trapo velho para o lado o “Attitude Adjustment”
não teria o mesmo impacto de dar um ‘Ajuste de Atitude’ no sujeito (ALFARO, 2013).
Procedimento esse que Michel Serdan também teve que passar. “Quando estive na
WWE conversamos sobre tradução de golpes e ficamos fechados em fazer o seguinte,
os golpes que não existiam por aqui nós narraríamos como eles queriam” (SERDAN,
2013), são exemplos o Pedrigree de Triple H e o RKO de Randy Orton, mas os golpes que
existiam no país, seriam chamados por nomes conhecidos pelos brasileiros.
São poucos os trabalhos sobre WWE em anais de congressos ou palestras
internacionais, no Brasil ou América Latina não existe nada. Os que existem nos EUA
e Europa em sua maioria traz os pontos negativos, como a violência e anabolizantes.
Para Martino (2010, p. 245) os Estudo Culturais são determinantes para novos objetos
sejam integrados à pauta de pesquisa, pois apenas assim temas como a música, futebol,
telenovelas entre outros assuntos tornam-se parte da prática cultural de um grupo.
“Por muito tempo esses produtos culturais foram considerados ‘menores’ e indignos
de estudo em alguns círculos acadêmicos” (MARTINO, 2010, p. 245). O que explicaria
o porque de não existir na América Latina nenhum estudo sobre a WWE.
METODOLOGIA:
Após a escolha do tema, a pesquisa bibliográfica foi o primeiro passo para a
construção desse trabalho. Livros e artigos serviram como base para o aprofundamento
no tema. Os sites para descobrir outras curiosidades importantes de serem expressas
no artigo.
As redes sociais Facebook e Orkut foram consultadas para se levantar um número
de comunidades que se relacionam com WWE. O Facebook também foi usado para se
falar com os fãs por perguntas.
Um levantamento de números gerais em redes sociais sobre WWE nunca foi feito,
existem 839 páginas de conteúdo informativo, humorístico e de debate na rede social
Orkut. Atualmente no Facebook existem 662 páginas sobre WWE na rede.
Com o levantamento de todos esses trabalhos, a pesquisa de campo se iniciou com
uma entrevista por e-mail com os locutores brasileiros, Marco Alfaro e Roberto Figueroa
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4646
WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
que são empregados da WWE e que vivem na cidade sede da empresa, Hartford ,Connecticut. Marco é jornalista e Roberto é Biólogo, eles trabalham juntos há algum tempo,
foi Marco que indicou Roberto a WWE, ambos se conheceram no canal esportivo ESPN.
Foram escolhidos os dois, pois além de serem as vozes da WWE no Brasil, eles são os
únicos brasileiros que a conhecem por dentro, em suas particularidades e objetivos.
Marco é quem narra e Roberto é o comentarista, mas ambos traduzem os diálogos dos
lutadores.
Michel Serdan participou como comentaristas dos programas da WWE durante
as exibições no SBT e agora novamente volta a trabalhar com a empresa, mas como
empresário, pois busca quatro lutadores brasileiros para fazerem parte da equipe de
entretenimento.
RESULTADOS:
Em números gerais, existem 839 páginas de conteúdo informativo, humorístico e de
debate na rede social Orkut. Tudo isso começou com a “febre” de WWE no SBT, algo que
se manteve até hoje com as transmissões do Esporte Interativo, Fox Sports e dos streams
da internet que a cada dia cativam mais gente. Atualmente no Facebook existem 662
páginas sobre WWE na rede. Esse levantamento foi feito para se conhecer até que ponto
a paixão por essa empresa e por esse esporte chegavam nas redes sociais, já que esse é
o local onde muitas pessoas se comunicam e expõem suas opiniões. Pelo visto isso só
tem a crescer gradativamente. Porém é necessário que se tenha paciência, pois a introdução de um novo esporte se deve muito a participação do país em questão na mesma.
Ainda hoje, apesar de todas as dificuldades que esse gênero de espetáculo enfrenta, o Brasil
ocupa lugar destaque, em nível mundial, ficando em quarto lugar, no tocante à identificação
do público com o esporte e a uma tradição na formação de excelentes lutadores – nativos
ou estrangeiros. À nossa frente estão apenas os EUA, em primeiro lugar, seguidos de perto
pelo México e pelo Japão. Porém, embora atualmente o Brasil conte – como sempre pôde
fazê-lo, aliás – com lutadores de elevado nível técnico, empresários e profissionais de apoio
extremamente qualificados e experientes, ainda há uma enorme distância separando o país
de seus concorrentes quando se trata da organização de torneios e exibições, da divulgação dos espetáculos do acesso à grande mídia e da expressividade das verbais que fazem
circular.(DRAGO, 2007, p.28).
A pedido do autor desse trabalho foi feita a seguinte pergunta nas páginas: Fanáticos por Wrestling, Impact Trolling e WWE Notícias Atuais. “O que você acha sobre a
transmissão de WWE no Esporte Interativo?”. Ao todo foram 25 respostas. Ao todo foram
12 respostas positivas que consideram a WWE no Esporte Interativo como importante
para a disseminação do esporte no Brasil. Duas respostas foram negativas, pois creem
que o canal brasileiro junto a narração traduzida, acaba com os segmentos das lutas.
Duas respostas nem elogiaram e nem são contras a exibição dos shows na emissora.
Nove respostas não acrescentaram em nada a pergunta feita. Esse levantamento feito
em 2013 visava entender se os fãs aprovavam a na WWE naquele canal em questão.
Agora em 2015 a pergunta foi modificada para “Oque você acha da transmissão da
WWE no Fox Sports?” e feita em dois grupos do Facebook, “Humor Wrestling” e “pw”, isso
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
porque as três páginas usadas em 2013 não existem mais ou pararam de ser atualizadas.
Ao todo foram 55 respostas, onde 25 ficaram explicando aos amigos como poder assistir
a WWE mesmo sem a TV a cabo, quatro disseram que não aprovam a ida da empresa
para o Fox Sports, os motivos apontados foram por eles não terem como assistir e por
não gostarem da narração em português, contudo 26 se mostraram favoráveis a mudança
de canal e principalmente pela transmissão ao vivo do Raw na segunda-feira. Os que
apontam como fator positivo a WWE no novo canal pedem que também encontrem um
acordo da veiculação dos PPV’s, o que seria considerado ao olhar deles como perfeito.
CONSIDERAÇÕES
Após toda a construção desse trabalho, a certeza que fica é que esse esporte está
sendo muito bem vindo ao Brasil, já que existe um universo segmentado que aprecia
isso, o que fará crescer esse número de fãs, junto ao empenho da WWE em nosso país.
A participação de um brasileiro será sim importante, pois ele pode se tornar em
um ídolo, mas é preciso de pessoas e de imprensa que acreditem nisso. Mas se fosse
criado uma filial brasileira da WWE, isso cresceria com maior facilidade. É sensacional
os trabalhos feitos pelas entidades de Wrestling de São Paulo, como a GDR - Gigantes
do Ringue de Michel Serdan, a BWF - Brazilian Wrestling Federation de Bob Júnior, entre
outras que buscam aumentar o leque da modalidade. É ruim ver o destrato com o prowrestling, como é feito com os outros esportes, algo que já faz parte da cultura do Brasil,
mas isso deve mudar com a paixão das pessoas.
Por si só, o brasileiro gosta de rivalidades desportivas é assim principalmente no
futebol, mas ao se conhecer as storylines da WWE e a luta feita por eles, o esporte vai
crescer ainda mais. Não tenho dúvida disso! Nos anos de 1960, o Telecatch que era a Luta
Livre veiculada na TV era tão grande como o futebol e o boxe, os três esportes dividiam
as preferências dos brasileiros.
Após a construção desse artigo percebe-se que falta espaço nos meios de comunicação
em mostrar Pro-Wrestling, seja da WWE, da GDR, da BWF ou de outras companhias. O
agendamento da imprensa em cobrir apenas futebol ainda é muito grande.
Por tudo isso é muito mais, observa-se que o esporte praticado pela WWE se aproxima
ainda mais da população, pois ao fim do espetáculo, os fãs vão embora pensando e
debatendo qual poderá ser o segmento da história.
Todos nós que trabalhamos em meios de comunicação social e as empresas deste meio tem
uma responsabilidade social, incluindo que tipo de mensagem que estamos transmitindo
para as pessoas, especialmente as crianças. A WWE é um espetáculo que as famílias podem
assistir juntas, que reforça os ensinamentos positivos e nas quais mensagens como Batalha,
Lealdade e Respeito são lemas de um Superastro como John Cena. A WWE, e digo isso não
por promoção mas como orgulho para cada integrante do Universo WWE, é a entidade
esportiva que mais contribui em causas sociais nos Estados Unidos. Da visita dos Superastros
e Divas à hospitais infantis, a parceria com a Fundação Make a Wish (que realiza um desejo
de crianças com doenças terminais), a campanha anti-Bullyng nas escolas, o trabalho junto
as Nações Unidas para a coletas de fundos destinados a compra de rede mosquiteiras contra
a malária na África, só para citar alguns. Quanto ao calibre dos Superastros da WWE nem
é preciso referencia (ALFARO, 2013).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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WWE: um universo de lutas que invadiu o Brasil
Carlos Cesar Domingos do Amaral
A cultura de um modo em geral engloba diversas formas de expressão, música,
arte e esportes. Então a WWE está buscando esse espaço dentro do Brasil, porque seu
intuito é levar os esportes de entretenimento as pessoas, além de implementar junto ao
Pro-Wrestling valores morais e ainda ajuda instituições de caridade, assim como Marco
Alfaro disse logo acima. Esse é o Universo WWE. Que a invasão ao Brasil continue e
que nunca tenha fim.
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4650
Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Fer r eir a1
Resumo: A pesquisa analisa as apropriações do rádio em situação de convergência
midiática, pelos jovens comunicadores de contextos populares do programa
Jovens Semeando Conhecimento, em Triunfo no Sertão de Pernambuco. A
fundamentação teórica apoia-se nos Estudos Culturais, via Martín-Barbero
(2008) e García Canclini (2005). A discussão sobre rádio e convergência midiática
está ancorada nas abordagens de Jenkins (2009) e Bianco (2012). No processo
de investigação foram utilizados roteiros de entrevistas semi-estruturadas.
O estudo evidenciou que os jovens de contextos populares se apropriam do
rádio em situação de convergência midiática articulando essa mídia com outros
suportes midiáticos.
Palavras-Chave: Rádio. Convergência midiática. Estudos Culturais. Juventude
rural.
Abstract: The research analyzes the radio appropriations in mediatic convergence situation, by population contexts communicators young people the program
Young People Sowing Knowledge, in Triunfo the backwoods of Pernambuco.
The theoretical framework is based on Cultural Studies, through Martín-Barbero
(2008) and García Canclini (2005). The discussion on radio and mediatic convergence is anchored in Jenkins approaches (2009) and Bianco (2012). In the research
process semi-structured interview scripts were used. This study showed that
youth such contexts is the radio appropriated for mediatic convergence situation
coordinating this media with other mediatic supports.
Keywords: Radio. Mediatic Convergence. Cultural Studies. Rural Youth.
INTRODUÇÃO
OBJETIVO DESTA pesquisa é analisar as apropriações do rádio em situação de
O
convergência midiática pelos jovens comunicadores do programa de rádio Jovens
Semeando Conhecimento do Centro Sabiá, em Triunfo no Sertão do Pajeú, Pernambuco. Especificamente, o que se quer compreender é como esses jovens de contextos
populares utilizam o rádio em convergência com outros suportes midiáticos na execução
das atividades do projeto Riachos do Velho Chico.
O programa de rádio Jovens Semeando Conhecimento é produzido no âmbito do
projeto Riachos do Velho Chico, financiado pela Petrobrás através do Programa Petrobras
Ambiental e acompanhado pelo Centro Sabiá - organização que trabalha na promoção
1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local da Universidade
Federal Rural de Pernambuco, Departamento de Educação, Universidade Federal Rural do PernambucoUFRPE, Recife-PE, Brasil. E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4651
Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
da agricultura familiar dentro dos princípios da agroecologia a partir do sistema agroflorestal. Além da sede na Capital, a entidade possui escritórios regionais em Rio Formoso
(Zona da Mata), Caruaru (Agreste) e Triunfo (Sertão do Pajeú).
O projeto Riachos do Velho Chico tem como proposta revitalizar os riachos Frazão,
em Triunfo, no Sertão do Pajeú, e Queimadas, em Parnamirim, no Sertão do Araripe.
Neste último município, conta com a parceria da organização Caatinga.
Em todas as etapas do projeto, o rádio é utilizado como estratégia de comunicação por
meio do envolvimento e a participação de jovens comunicadores. É a partir do programa
Jovens Semeando Conhecimento (transmitido todas as quintas-feiras, das 12h30 às 13h,
na Rádio Triunfo FM) que os jovens divulgam as atividades do projeto, comunicam-se
com as suas comunidades e interagem com outras mídias para propagar suas ações.
Desde sua origem, o rádio voltou para as causas sociais, mobilização e prestação de
serviço. Ao surgir no Brasil, em 1922, tinha a missão de “levar a cada canto um pouco
de educação, de ensino e de alegria” (ROQUETTE-PINTO apud TAUK SANTOS, 1982).
Esse veículo trazia ampla possibilidade para promover a educação e a cultura do povo,
tornando-se “a grande mestra dos que não sabiam ler”. Para Roquette-Pinto, “todos os
lares espalhados pelo imenso território do Brasil receberão livremente conforto moral
da ciência e da arte, transformando em cinco ou seis anos a mentalidade popular da
minha gente” (TAUK SANTOS, 1982, p. 8).
Bem antes desse período, as emissoras radiofônicas já operavam em sistema de “clube rádio” ainda não eram em broadcasting (a transmissão para vários receptores), assim
como a Rádio Clube de Pernambuco, em 1917, e a Rádio Sociedade, no Rio de Janeiro,
que eram organizadas em “clubes” com sócios dos veículos. Nasceram com os anseios
educativos e de divulgação da cultura. E até 1955, as emissoras de rádio se constituem
em sociedades e clubes cujas programações eram, sobretudo, de cunho erudito e lítero-musical (FEDERICO, 1982 apud ORTIZ, 1999).
As primeiras experiências radiofônicas no Brasil estão baseadas na relação rádio-educação. Nesse processo de afirmação e construção do rádio brasileiro, é marcante
a articulação dos setores progressistas da Igreja Católica em fins da década de 1950.
Neste mesmo período, surgem diversas rádios ligadas a movimentos sociais e outras
sem influência política que visam à democratização da comunicação. Como exemplos
desse movimento no país, em períodos distintos, têm-se as experiências do Rádio MEC
(1936); Escolas Radiofônicas (1960/1970); Movimento de Educação de Base (1961) e o
Projeto Minerva (1970).
A convergência midiática trouxe para o rádio novas possibilidades como um instrumento potencial na perspectiva de chegar, mais do que nunca, a todas as classes sociais
e instrument mobilizador nos contextos populares. Esse veículo como qualquer outra
mídia foi capaz de se adaptar e se inserir nesse processo de convergência. “Deixa de
ser monomídia, que só contava com o som, passa a ser agora em diante multimídia”
(MARTÍNEZ-COSTA, 2001, p.60).
De acordo com Jenkins (2009, p. 30), o fenômeno da convergência não está só ligado
aos processos tecnológicos, que une diversas mídias em um mesmo espaço, mas acima
de tudo, “uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a
procurar informações e fazer conexões em meio a conteúdos dispersos”. Acrescenta ainda
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
que a convergência “não ocorre por meio de aparelhos, [...] ocorre dentro dos cérebros dos
consumidores individuais e em suas interações com os outros” (JENKINS, 2009, p. 30).
Nessa direção, a convergência modificou a lógica da indústria midiática, ao mesmo
tempo, em que se modificaram as formas de consumo de seus produtos. Enquanto que
“os antigos consumidores eram tidos como passivos, previsíveis, individual, silencioso
e invisível, os novos consumidores são ativos, migratórios, conectados socialmente,
barulhentos e públicos” (JENKINS, 2009, p.27).
O crescente fenômeno emergente da convergência midiática vai na contra mão do
paradigma da revolução digital, que presumia a substituição das velhas mídias pelas
novas. Nesse contexto, afirma Jenkins (2009, p. 41-42): “Os velhos meios de comunicação
não estão sendo substituídos. Mais propriamente, suas funções e status estão sendo
transformados pela introdução de novas tecnologias” (JENKINS, 2009, p. 41-42).
Para Bianco (2014, p. 01), “o novo meio se apropria de traços existentes para encontrar, posteriormente, a própria identidade e linguagem. Diante das novas mídias, as
tradicionais normalmente não morrem, mas adaptam-se e continuam evoluindo”.
A convergência midiática implica em uma nova cultura do acesso, de relações e
do protagonismo. Para Henry Jenkins (2009), a convergência midiática é mais do que
uma transformação tecnológica, é uma questão cultural. Trouxe mais empoderamento
dos jovens comunicadores do programa de Rádio Jovens Semeando Conhecimento, no
domínio da operacionalização do rádio “conectado” aos suportes midiáticos e enquanto
sujeitos políticos ativos de suas comunidades.
Segundo Jacks e Escosteguy (2011), a “convergência permite que as pessoas sejam
protagonistas no processo de produção; as quais podem fazer muitas coisas com os
meios de comunicação – do simples consumo a um uso social mais relevante” (JACKS;
ESCOSTEGUY, 2005, p. 39 apud PREDIGER, 2011, p. 17).
Compreendendo o rádio em situação de convergência midiática como possibilidade de transformação e oportunidade para os jovens rurais, de contextos populares,
entendendo-se a juventude rural como uma categoria socialmente construída, tem como
“característica a vida no meio rural a partir do qual constrói suas relações familiares,
as quais alicerçam sua visão de mundo” (ABRAMO, 1997, p.18).
Para Castro (2008), a condição da juventude rural é de desfavorecimento em relação à juventude urbana. A autora ainda elenca algumas dificuldades, entre elas está
a reprodução de hierarquia rural/urbano, alimentada pelo estigma de que morar no
campo é desvalorizado. Morar bem é quem reside nos centros urbanos (CASTRO, 2005
apud CASTRO, 2008).
É preciso considerar as “contingências e limitações no acesso aos bens culturais e
materiais” no universo da juventude rural (TAUK SANTOS, 2001). Tais contingências
afetam mais, segundo a autora, esta parcela da população, jovens rurais.
Apesar de Martin-Barbero (2008) afirmar que “estamos diante de uma juventude
mais objeto de políticas do que sujeito-ator de mudanças” (MARTIN-BARBERO, 2008, p.
12), o estudo tenta compreender essa juventude como sujeitos protagonistas. Até então,
poucos são os estudos que têm demostrado uma preocupação de pensar a juventude
rural como indivíduo ativo, seja na sua comunidade, seja na sua família, seja no seu
grupo de convívio.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
Entende-se protagonista, conforme o dicionário Aurélio (HOLANDA, 2014), como
o indivíduo que tem um papel de destaque, agente principal, dentro de um processo, de
uma ação, de um acontecimento, em que o sujeito é tomado como elemento central da
prática. É um papel ativo na ação, ou seja, atua ativamente no processo de ações através
de uma participação construtiva.
Castro (2008) aponta como uma das dificuldades para o protagonismo juvenil, a
reprodução social dos papeis patriarcais familiares e comunitários. Acrescenta ainda
que: “Pensar a inserção desse jovem no meio rural hoje implica enfrentar o esforço de
analisar a reprodução das relações de hierarquia, onde o jovem ocupa um papel privilegiado nos discursos, mas não nas práticas” (CASTRO, 2008, p.29).
Entretanto, a experiência dos jovens comunicadores envolvidos no projeto Riachos
do Velho Chico traz os jovens como protagonistas nos processos de comunicação com
o rádio. Eles assumem um protagonismo no comando do programa Jovens Semeando
Conhecimento em convergência midiática com outros suportes aumentando ainda mais
as chances do rádio na construção do desenvolvimento local.
A partir dessa perspectiva teórica, o estudo se volta à compreensão das apropriações da proposta dos jovens comunicadores como produtores de conteúdo do rádio em
situação de convergência, por meio dos seguinte questionamento: Como os jovens se
apropriam do rádio em situação de convergência midiática?
Ainda não existem estudos que analisem o rádio em situação de convergência
midiática voltada para os contextos populares. Principalmente, em casos de programas
radiofônicos em convergência midiática produzidos por jovens oriundos do meio rural.
O fato de o rádio em situação convergência midiática aumenta o seu potencial para
incrementar a participação dos atores sociais locais, no sentido de mobilizar e envolver
os jovens em sua operacionalização.
A PESQUISA
O caminho teórico-metodológico trilhado para a construção desta pesquisa teve
por base os Estudos Culturais, elegendo a cultura como centro dos processos comunicativos e privilegiando os contextos populares como espaço para analisar a situação da
convergência midiática.
Para Canclini, o sentido e o valor populares vão sendo conquistados nas relações
sociais. “É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práticas ou representações populares, que confere essa identidade” (CANCLINI, 1983, p.62).
Nesse mesmo caminho, Lopes (1990) aborda que as culturas populares “ocupam
uma posição desnivelada no mundo, porque desnivelada é a distribuição das riquezas
materiais e simbólicas em nossa sociedade. Esta distribuição/apropriação desigual provoca formas desiguais e ambivalentes de estar no mundo” (LOPES, 1990, p. 56).
É nesse cenário de contingência e desigualdade que norteia as culturas populares,
como assinala Tauk Santos (1995), que a pesquisa se volta a compreender as apropriações dos jovens rurais na produção de conteúdos a partir do programa de rádio Jovens
Semeando Conhecimento em situação de convergência midiática.
Para Tauk Santos et al (2001) é fundamental para os estudos de comunicação o
espaço do cotidiano, pois “é onde que se processa e se materializa a ação comunicativa”
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
(TAUK SANTOS et al, 2001 p.22). É nesse contexto de cotidiano que se dá a análise das
apropriações da convergência midiática pelos jovens rurais envolvidos na produção de
conteúdos no rádio em situação de convergência com outras mídias.
A investigação utilizou aportes teóricos metodológicos, como livros, artigos, revistas, dissertações; pesquisa documental em relatórios institucionais do projeto Riachos
do Velho Chico, além de aplicação de roteiros de entrevistas. Os critérios estabelecidos
para o universo da pesquisa foram jovens rurais de 18 a 29 anos, conforme indicação
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e que estivessem envolvidos no
projeto Riachos do Velho Chico há pelo menos um ano.
No processo de investigação, foram ainda elaborados dois roteiros de entrevistas
semi-estruturadas, sendo o primeiro destinado aos técnicos e coordenadores do Centro
Sabiá e o segundo voltado para os jovens comunicadores para analisar as apropriações do
rádio em situação de convergência midiática. O primeiro roteiro composto pelos blocos
Identificação, Estratégias do projeto Riachos do Velho Chico, e Convergência Midiática e
Desenvolvimento Local. O segundo roteiro dividido em Identificação, Consumo Midiático, Participação no projeto Riachos do Velho Chico, Apropriações da Convergência,
e Convergência e Desenvolvimento Local.
Para a pesquisa, foram entrevistados cinco jovens comunicadores, entre os meses
de julho e agosto de 2014, que atenderam os critérios estabelecidos. No intuito de preservar a identidade dos jovens, optou-se por não revelar o nome e, sim, de identifica-los
por números.
TRIUNFO: O LOCAL DA PESQUISA, E A POPULAÇÃO EM ESTUDO
O município de Triunfo localiza-se no Sertão do Pajeú, em Pernambuco. Está a uma
distância de 400km da Capital , Recife. Faz limite com o estado da Paraíba e com outros
municípios pernambucanos, Santa Cruz da Baixa Verde, Calumbi e Flores.
Com 15.006 habitantes (IBGE, 2010), Triunfo é um município rural, a partir da classificação de José Eli da Veiga, no qual “mais da metade da população vive em localidades rurais, isto é, com densidade demográfica inferior a 150 habitantes por quilômetro
quadrado” (VEIGA, 2002, p. 97). Nesse sentido, Triunfo tem características típicas de
um lugar do interior do Estado com 7.062 pessoas vivendo no campo.
Observa-se que é um município que está abaixo da linha da pobreza, com baixo
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 0,58; considerando que o índice satisfatório
é a partir de 1.
O saneamento global ainda é uma realidade distante na cidade. A rede de saúde é
precária, contando apenas com único hospital de pequeno porte para atender a população (IBGE, 2010).
Além de ser uma cidade turística por suas belezas, clima e geografia, Triunfo recebe
em determinados períodos do ano eventos que atrai turistas de vários lugares do Brasil.
Todo o turismo e o artesanato estão voltados para a figura emblemática do município,
os Caretas – mascarado que sai durante o Carnaval.
Triunfo conta também com a captação do sinal de cinco emissoras de televisão
aberta e recebe três jornais diários da Capital pernambucana: Diario de Pernambuco,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
Jornal do Commercio e Folha de Pernambuco (DIAGNÓSTICO DO MUNICÍPIO DE
TRIUNFO, 2005, p.3). Assim, o panorama das mídias em Triunfo evidencia que as emissoras de rádio e jornais são provenientes de outras cidades foram do município. Neste
sentido, a população encontra-se mais exposta às informações da mídia no âmbito
estadual e nacional. Este cenário demonstra a importância de uma emissora local e de
um programa que se volta ao cotidiano e às questões locais como é o caso do Jovens
Semeando Conhecimentos, operado pelos jovens comunicadores. É nesse contexto que
se encontra o espaço da pesquisa.
JOVENS: PERFIL E CONSUMO CULTURAL
Na pesquisa, foram entrevistados cinco jovens entre 19 e 25 anos, conforme critérios estabelecidos, envolvidos no projeto Riachos do Velho Chico como comunicadores
do programa Jovens Semeando Conhecimento. A maioria concluiu o ensino médio.
Somente dois jovens estão cursando o ensino superior, na Universidade Federal Rural
de Pernambuco, no município vizinho (Serra Talhada).
Todos possuem aparelho celular com acesso à internet. Utilizam a telefonia móvel
também para navegar na internet, acessar às redes socais e aplicativos, além de ouvir
música. Ouvem rádio diariamente para se informar e ouvir músicas. Costumam sintonizar as rádios Triunfo FM, Transertaneja FM, de Afogados da Ingazeira-PE; e Vila Bella
e Cultura FM, de Serra Talhada. Os suportes utilizados variam do aparelho receptor
analógico ao celular e à internet.
O acesso à internet, os jovens realizam pelo celular e por computadores em lan house
ou no escritório do Centro Sabiá, em Triunfo. Entretanto, queixam-se que o sinal da
operadora de telefonia móvel não é muito bom na comunidade onde moram, pois há
dificuldade para acessar à rede. Somente um jovem entrevistado utiliza o modem para
acessar a rede de computadores.
Ao usar a internet, além de ouvir o rádio, pesquisam, fazem trabalhos escolares e
acessam o Facebook e e-mail, como afirma um dos jovens entrevistados que usa a internet em casa, pelo sinal do celular e pelo modem da Tim para acessar às redes sociais,
estudar, pesquisar, assistir vídeos e ouvir músicas.
PROJETO RIACHOS DO VELHO CHICO
O projeto Riachos do Velho Chico - cujo objetivo é revitalizar os Riachos Frazão, no
município de Triunfo, no Sertão do Pajeú, e Queimada, em Parnamirim, no Sertão do
Araripe, no semiárido pernambucano - desenvolve ações comunitárias de recuperação e
conservação de recursos hídricos. Estes riachos integram bacias hidrográficas importantes que abastecem o Rio São Francisco, ou Velho Chico, como também é carinhosamente
denominado pela população no Nordeste.
Dentro do projeto Riachos do Velho Chico o rádio é instrumento importante na
difusão das informações e das novas experiências, sendo operado pelos jovens comunicadores. Para a experiência, o veículo é grande aliado na multiplicação de conteúdos,
incentivando a formação dos jovens na comunicação radiofônica e o desenvolvimento
deles enquanto sujeitos da sua comunidade.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
A FORMAÇÃO DOS JOVENS COMUNICADORES
Na formação oferecida pelo projeto Riachos do Velho Chico para atuarem no
rádio, os jovens participaram de duas oficinas sobre pautas, entrevistas, locução, e como
escrever e falar para o rádio. Houve também oficinas de comunicação sobre controle e
democratização dos meios de comunicação. Sobre esses momentos de formação:
Essas oficinas aconteciam duas vezes por ano. Nas oficinas, trabalhávamos sobre como
trabalhar a voz para não gaguejar nem falar errado, montagem de script, produção de
vinhetas. Foi detalhado o programa de rádio (ENTREVISTADO 1).
A partir da participação nos espaços de formação, como oficinas e momentos práticos sobre rádio e comunicação, os jovens comunicadores passavam a operar, produzir
e apresentar o programa de rádio Jovens Semeando Conhecimento.
PROGRAMA DE RÁDIO JOVENS SEMEANDO CONHECIMENTO
O programa Jovens Semeando Conhecimento é transmitido na rádio Triunfo
FM tem 30 minutos de duração, sendo veiculado semanalmente das 12:30h às 13h. Cada
semana uma dupla de jovens comunicadores que apresenta o programa, também era
responsável para produzir o que iria ser apresentado. Sempre ao vivo; raramente gravado.
Em relação aos quadros e formato do programa de rádio, o Entrevistados 5 descreve:
O programa tinha quadros bem definidos. O Agroecologia é Vida sobre a própria Agroecologia. O quadro Tema Principal era um assunto que a gente escolhia para debater. O
Juventude tem Voz, a gente pegava depoimentos de jovens que trabalhavam com coisas
interessantes. Tinha música. E tinha um quadro só com Receita (ENTREVISTADO 5).
Todas as tarefas relacionadas ao programa eram compartilhadas e planejadas previamente entre os jovens comunicadores. A dupla responsável pelo programa era quem
montava o script, e ainda fazia entrevistas gravadas, quando necessário, e escolhia a
trilha musical.
JOVENS, RÁDIO E A CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA
Após o processo de formação para atuar no rádio, os jovens comunicadores passaram a atuar como produtores de conteúdos para as diversas plataformas midiáticas
envolvidas no processo da convergência midiática. Assim, operam com várias linguagens
de acordo com cada suporte midiático, como no jornal Dois Dedos de Prosa, site www.
centrosabia.org.br, Facebook Jovens Multiplicadores da Agroecologia e programa de rádio
Em Sintonia com a Natureza.
Os jovens tem um espaço dedicado exclusivamente para eles no jornal institucional do Centro Sabiá: Dois Dedos de Prosa, chamado de Juventude em Prosa. Escrevem
pequenos textos para o Facebook, cujo nome nessa rede social é Jovens Multiplicadores
da Agroecologia. Neste espaço, postam vídeos, fotografias, pequenos textos e links de
notícias sobre eventos e dicas de assuntos ligados ao contexto deles:
Eles ainda produzem matérias em áudio para o programa Em Sintonia com a
Natureza - outro espaço radiofônico institucional do Centro Sabiá, veiculado todos os
domingos das 06:30h às 7h na Rádio Pajeú AM de Afogados da Ingazeira – PE. Muitas
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
matérias produzidas por eles vão também para o site www.centrosabia.org.br, que é o
espaço virtual e interativo da organização.
Figura 1: Representação da ação dos jovens produtores de conteúdo nos diferentes suportes midiáticos.
Desenho do autor
Referindo-se à mobilidade com essas diversas plataformas midiáticas no âmbito
do programa Jovens Semeando Conhecimento, a jornalista do Centro Sabiá, Laudenice
Oliveira, afirma que:
Além do programa de rádio Jovens Semeando Conhecimentos e do Dois Dedos de Prosa,
eles produzem também para o site e para o Facebook. Tem toda uma dinâmica que eles
conseguem interagir. Os jovens também funcionam como repórter para outro programa
de rádio Em Sintonia com a Natureza, veiculado na Rádio Pajeú de Afogados da Ingazeira
(LAUDENICE OLIVEIRA).
A convergência midiática permite a participação dos jovens interagindo com diversos suportes na produção de conteúdos, agregando texto, som e imagens. A convergência
midiática possibilita o armazenamento das mensagens, criando espaços de hospedagens
e de arquivos de conteúdos:
As matérias são publicadas no Dois Dedo de Prosa, no site e no Facebook. O programa de
rádio também fica armazenado no site do Sabiá (suporte Uol Mais) (ENTREVISTADO 1).
Outra contribuição interativa da convergência midiática é conferir imagens ao rádio:
O programa de rádio chegou a se transmitido ao vivo em vídeo pelo site da emissora Triunfo
FM. O ouvinte pode ouvir e ver, ao vivo, o programa pela internet (ENTREVISTADO 1).
A convergência midiática permite ainda o acesso e a operacionalização dos suportes
pelos jovens sem custo adicional. Eles passaram a produzir conteúdos para os suportes
rádio (Jovens Semeando Conhecimento), internet (Facebook e site) e jornal (Dois Dedos de
Prosa) sem gasto algum, como assinalam:
A gente está no rádio, no jornal, no site e no Facebook ao mesmo tempo, sem tem gasto,
apenas acessando esses meios e produzindo para eles (ENTREVISTADO 5).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
A convergência midiática também exigiu um esforço dos jovens não só na operacionalização dos suportes, mas o domínio das diferentes linguagens nessas diversas
plataformas. A confluência de mídias e as diversas linguagens faz parte também do
ambiente de convergência.
Para o Facebook, além de escreverem textos curtos, postavam fotos, links e pequenos
vídeos. O site www.centrosabia.org.br exige uma escrita leve e direta com poucos parágrafos. No jornal Dois Dedos de Prosa, produzem matérias mais trabalhadas com depoimentos e fotografias. E para o programa Em Sintonia com a Natureza, gravam entrevistas
sobre eventos ou atividades realizadas pelo projeto Riachos do Velho Chico.
Nesse contexto, a dificuldade maior apresentada pelos jovens foi de “falar” a linguagem de cada suporte. Eles destacam esse processo de construção diante do cenário
de convergência:
Não é copiar e colar. A gente tinha que pesquisar, filtrar as informações, pois não era tudo
poderia entrar tanto para os programa de rádio, como na hora de escrever as matérias
(ENTREVISTADO 4).
A convergência midiática permite que os jovens não sejam apenas consumidores
de conteúdos, mas sujeitos ativos no processo de elaboração e construção da notícia.
Promove não só mudanças tecnológicas e mercadológicas, no entanto, acima de tudo,
transformações culturais e sociais na vida e no cotidiano deles.
A convergência midiática colocou os jovens comunicadores como ator central, sujeito ativo, nos processos comunicacionais. Ao mesmo tempo, as energias e os potenciais
locais foram valorizados.
Eu tou mais participativo, não tenho mais vergonha em falar. Para a comunidade eu já sou
um jovem de referência. A comunidade vem me procurar sobre alguns aspectos; quando
posso responder eu respondo, quando não posso procuro uma resposta pra eles (ENTREVISTADO 1).
A convergência também favoreceu o desenvolvimento pessoal e potencializou as
capacidades e habilidades desses jovens rurais para a escrita:
A gente sempre andava com um gravador nos eventos que participava. Antes a gente se
preocupava só com o programa de rádio, depois começamos a fazer matéria. A gente não
tinha noção de como fazer, mas fomos aprendendo e melhorando (ENTREVISTADO 3).
O projeto Riacho dos Velhos envolveu diversas comunidades e também oportunizou
indiretamente outras localidades do município de Triunfo a estarem dentro do processo
por meio das informações que chegavam dos suportes midiáticos da convergência e
ainda através das inserções dos jovens comunicadores nesses lugares:
No programa, a gente divulgava não só nossa comunidade, mas outras também. As pessoas também passaram a se interessar a ouvir o programa pelos temas que a gente tava
trabalhando. (ENTREVISTADA 3).
Essa experiência com jovens rurais vai na contramão do que afirmou Castro
(2008), que “o jovem ocupa um papel privilegiado nos discursos, mas não nas práticas”
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
(CASTRO, 2008, p.29). Como já analisado, essa experiência do rádio em situação de
convergência midiática permitiu aos jovens serem os protagonistas nas atividades e nas
dinâmicas do processo da sua própria comunicação. Foram produtores e construtores
das informações, disseminando para outros jovens e outras comunidades.
Ao mesmo tempo, a experiência dos jovens comunicadores parece indicar que algo
está mudando no cenário no que se refere Martín-Barbero (2008) ao afirmar que “se
depara com uma juventude mais objeto de políticas do que sujeito-ator de mudanças”
(MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 12), na medida em que se observa que a iniciativa mudou
a vida e a forma de estar no mundo dos jovens, trazendo mais perspectiva de futuro e
melhorias para eles, como assinalado no depoimento abaixo:
Minha vida mudou bastante depois que comecei a participar do programa de rádio. Antes
eu parecia um bicho do mato, só vivia na roça. Ficava cismado em conviver no meio de
gente. Depois comecei a me soltar mais. A ver o mundo de outra forma (ENTREVISTADO 5).
A partir dos diversos suportes da convergência midiática, as famílias agricultoras
passaram a ter mais acesso às informações com diversos conteúdos. Tal iniciativa é
um primeiro passo importante para a melhoria de vida e do exercício da cidadania
da população. As informações transmitidas pelo programa são direcionadas paras as
famílias agricultoras, que não têm acesso muitas vezes a informação.
CONCLUSÃO
O objetivo deste estudo foi analisar as apropriações do rádio em situação de convergência midiática pelos jovens comunicadores do programa de rádio Jovens Semeando
Conhecimento do Centro Sabiá, em Triunfo no Sertão do Pajeú, Pernambuco. Especificamente, o que se buscou compreender foi como esses jovens utilizam o rádio - em
convergência com outros suportes midiáticos – na execução das atividades do projeto
Riachos do Velho Chico.
A pesquisa apontou que apesar dos jovens serem oriundos de contextos populares
rurais, diante de todas as limitações e “contingências no acesso aos bens culturais e
materiais”, operam e se apropriam do rádio em situação de convergência midiática,
apesar de toda a complexidade da operacionalização da convergência, bem como o
domínio das diversas linguagens dos diferentes suportes.
O estudo também concluiu que o rádio em situação de convergência midiática contribui para a valorização e a mobilização dos jovens como energias endógenas, fazendo
com eles sejam referências para a comunidade e para a juventude local.
Como foi concluída a primeira etapa do projeto Riachos do Velho Chico, a pesquisa evidenciou um sentimento dos jovens comunicadores de continuidade da ação
do programa de rádio Jovens Semeando Conhecimento em situação de convergência
midiática.
Espera-se que este estudo seja um instrumento para o Centro Sabiá como forma de
contribuir com a avaliação das práticas desenvolvidas pelos jovens comunicadores, no
âmbito do projeto Riachos do Velho Chico. Para a academia, uma contribuição como um
estudo inédito no campo da pesquisa por se tratar do rádio em situação de convergência
envolvendo jovens de contextos rurais.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Rádio, convergência midiática e culturas populares
Daniel Ferreira
Por fim, ao se apropriar do rádio em situação de convergência midiática os jovens
foram protagonistas dos processos comunicativos. Tal iniciativa promoveu a mobilização e
o empoderamento como sujeitos ativos locais.Entretanto, há questões relevantes que devem
se consideradas, como o acesso e operacionalização dos meios de comunicação pela população. São reflexões e questões que não se esgotam para futuras pesquisas no âmbito da
juventude e dos contextos populares tendo como ponto de partida a convergência midiática.
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4661
Harry Potter em Paraisópolis: contribuições para uma compreensão
da recepção da obra no contexto de capitalismo periférico
Harry Potter in Paraisópolis: Contributions to an understanding
of the work’s reception in the context of peripheral capitalism
M a r co P o l o H e n r i q u e s 1
Resumo: O artigo apresenta os procedimentos metodológicos mobilizados em
pesquisa de campo qualitativa, realizada entre outubro e novembro de 2014, com
o objetivo de estudar a recepção da obra Harry Potter por leitores moradores da
comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Traz, ainda, algumas impressões e
observações a partir de evidências encontradas que servem a uma compreensão emergente do objeto investigado. Adotamos a técnica de formação de dois
grupos de discussão com leitores espontâneos delimitados segundo as variáveis
gênero e faixa etária, nos quais realizamos atividades de leitura, escrita, debates, dinâmicas (jogos e brincadeiras), exibição de cenas de filmes e aplicação de
questionário com perguntas abertas e fechadas sobre perfil socioeconômico e
hábitos culturais. Os dados coletados serão confrontados com reflexões pertinentes às áreas de Estudos de Comunicação, Estudos de Linguagem, Estudos
Culturais e de Recepção.
Palavras-Chave: Estudos de Recepção. Estudos de Linguagem. Estudos
Culturais. Estudos de Comunicação.
Abstract: The article presents the methodological procedures employed in a
qualitative field research carried out between October and November 2014,
whose objective was to study the reception of the Harry Potter collection (Brazilian edition) among readers from the Paraisópolis community in São Paulo.
It also presents some impressions and observations based on evidences that
enable an emerging understanding of the object of investigation. We formed two
discussion groups of spontaneous readers delimited by demographics such as
gender and age, with which we carried out reading and writing sessions, group
discussions, group dynamics (plays and games), exhibition of movie clips, and
the application of a questionnaire consisting of open- and closed-ended questions
about their socioeconomic profile and cultural habits. The collected data will
be confronted with reflections concerning the areas of Communication Studies,
Studies of Language, Cultural Studies, and Reception Studies.
Keywords: Reception Studies. Studies of Language. Cultural Studies.
Communication Studies.
1. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação – PPGCOM, da Escola
de Comunicações e Artes – ECA, Universidade de São Paulo – USP. Bolsista CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). E-mail: [email protected].
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4662
Harry Potter em Paraisópolis: contribuições para uma compreensão da recepção da obra no contexto de capitalismo periférico
Marco Polo Henriques
INTRODUÇÃO
NTENDEMOS A série de livros Harry Potter na sua condição de fato relevante da
E
comunicação e da cultura contemporâneas. Nesse sentido, propomos realizar em
três etapas análise que contempla aspectos de produção, linguagem e recepção,
relacionando o contexto em que a obra foi concebida e a sua discursividade com as apropriações realizadas pelos leitores espontâneos de baixa renda moradores da comunidade
de Paraisópolis2, na periferia da cidade de São Paulo.
Ainda que a oportunidade de adentrar os domínios de uma coletividade com
características próprias e de conviver com moradores locais durante a coleta de dados
tenha permitido mapear experiências objetivas desse grupo e de sua condição social
(BOURDIEU, 2007), a busca do entendimento dos mecanismos por meio dos quais a
cultura mundializada e a sua discursividade operam em âmbito local não implicou a
realização de estudo etnográfico. Nossa proposta é, antes, estudar o consumo cultural
como “evento comunicativo” e a obra Harry Potter enquanto “narrativa” ou “discurso”,
que faz sentido ao ser transformada (traduzida ou decodificada) por determinada
audiência (HALL, 2006). O foco recai, portanto, sobre as produções de sentido dos
leitores moradores de Paraisópolis, evidenciando as relações de força e de sentido
que permeiam os processos comunicativos na sociedade contemporânea e a complexa
tessitura comunicacional formada a partir do contato entre dimensões identitárias
distintas (CANCLINI, 1998, 2009).
A primeira etapa, correspondente ao plano da produção, concentra-se em aspectos sócio-históricos, mercadológicos, de produção editorial e de repercussão da obra
junto ao público-leitor (CHARTIER, 1990; HORELLOU-LAFARGE e SEGRÉ, 2010), à
luz de dados secundários e primários dos mercados internacional e nacional e de quadro teórico composto pelas temáticas contemporâneas dos Estudos de Comunicação
(APPADURAI, 1994; BHABHA, 1998; BAUMAN, 2001; GIDDENS, 1991; HALL, 1999;
HARVEY, 1993; JENKINS, 2008). Na segunda etapa, a discursividade da obra é objeto
de análise específica, em que há a operacionalização de conceitos desenvolvidos pelo
filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (2003, 2006), bem como alguns princípios e
procedimentos propostos por Eni Orlandi (2010), que resulta na delimitação do corpus
discursivo utilizado na terceira e última etapa, com trabalho de campo e seleção de
sujeitos de pesquisa cujos pontos de vista compõem amostra para análise da recepção
da obra (CANCLINI, 1998, 2009; CERTEAU, 1994; HALL, 2006; BRANDÃO, 2001; LOPES,
2005; THIOLLENT, 1980).
O presente artigo apresenta os procedimentos metodológicos mobilizados e alguns
dados coletados na investigação qualitativa que ajudarão na interpretação das apropriações do produto cultural em questão realizadas pelos leitores de Paraisópolis. São
dinâmicas que regem esse consumo e a consequente construção de significações decorrentes do contato entre a obra Harry Potter e os referidos consumidores.
2. Dados demográficos sobre Paraisópolis indicam que a comunidade tem entre 80.000 e 100.000 habitantes,
dos quais 12.000 são analfabetos. Os moradores ocupam uma área de 800.000 metros quadrados na zona
sul da capital paulista, onde são atendidos por sete escolas municipais, quatro escolas estaduais, cinco
creches e dois postos de saúde. Disponível em: <http://paraisopolis.org/multientidades-de-paraisopolis/
paraisopolis/>. Acesso em 30 mar. 2014.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4663
Harry Potter em Paraisópolis: contribuições para uma compreensão da recepção da obra no contexto de capitalismo periférico
Marco Polo Henriques
CORPUS DISCURSIVO CONSTRUÍDO
Para a delimitação do material discursivo a ser levado a campo, debruçamo-nos sobre
a produção impressa de cerca de 3.300 páginas, que corresponde ao conteúdo completo
da edição brasileira da série de livros Harry Potter. Conforme as postulações do pensador
russo Mikhail Bakhtin (2003, 2006), estudamos a referida obra enquanto enunciado
concreto, que não pode ser separado do seu contexto sócio-histórico e cujo material
sígnico é produto da interação com sistemas ideológicos objetivos. Particularmente,
levamos em conta os chamados mecanismos de responsividade, os quais dizem respeito
à participação do interlocutor concreto na constituição dos significados – para Bakhtin
(2006, p. 116) “não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum
com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado”, neste caso o leitor préadolescente e adolescente, público-alvo da referida obra.
Com base na perspectiva bakhtiniana sobre como o enunciado se constitui e de que
forma ocorre a construção de sentido, elegemos montagens discursivas relacionadas
ao período de transição entre a infância e a vida adulta, tais como: o ambiente escolar e
suas situações típicas; o confronto com os limites impostos pela autoridade; a conturbada
relação entre os sexos; as cobranças decorrentes do amadurecimento, como a escolha da
profissão; os desvios de comportamento e as atitudes moralmente discutíveis, entre as
quais o preconceito e a prática do bullying; as escolhas e suas consequências etc. De forma
geral, o material discursivo coletado revela uma complexidade de situações que extrapola
os limites do romance de aventura e se aproxima da vida concreta, justamente porque
é nela que a arte está inserida. De acordo com Bakhtin/Volochínov (2006), a atividade
estética refrata o mundo, e é a partir da relação com seu interlocutor, que não está em
outro lugar senão no mundo, que o discurso da obra se constitui enquanto enunciado.
O corpus obtido sugere que é possível refletir sobre a organização da obra Harry Potter
como discurso ancorado na realidade e permanentemente atravessado pelas concepções
de mundo do interlocutor/produtor de sentidos com o qual dialoga, o leitor adolescente.
Apoiados nesse resultado, partimos a campo para a concretização da terceira e última
fase da pesquisa: a realização do estudo de recepção com leitores da obra moradores
da comunidade de Paraisópolis.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A proposta de realização de incursões e coleta de dados em uma região de grande
vulnerabilidade social e de assimetria em relação ao pesquisador demandou de nossa
parte a mobilização de algumas frentes de mediação locais. Identificamos três fontes de
informação habilitadas para essa atividade: Estação do Conhecimento Einstein (ECE),
Espaço Esportivo e Cultural BM&FBOVESPA e Biblioteca Comunitária de Paraisópolis
(Becei), entidades responsáveis pelo desenvolvimento de programas de aprendizagem,
leitura, cultura e esportes.
A princípio, o papel dos mediadores foi auxiliar no rastreamento de leitores espontâneos da série de livros Harry Potter, o que resultou em uma amostra inicial formada
por 30 crianças e adolescentes, com idades entre 10 e 19 anos. Atentos à possibilidade
fornecida pelos procedimentos da pesquisa qualitativa de explorar em maior profundidade as questões levadas a campo, optamos por essa modalidade de investigação, que foi
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progressivamente delineada, considerando nosso objetivo de enfocar contribuições dos
leitores elucidativas para o problema da pesquisa. Assim, nossa escolha metodológica
foi trabalhar em campo por meio de entrevistas grupais ou grupos de discussão, justamente por permitir explorar um espectro maior de impressões e observações pertinentes
a um determinado meio social, assim como os consequentes processos de consenso e
divergência (GASKELL, 2008).
Para a seleção dos participantes, propusemos aos leitores a redação e entrega de um
texto sobre sua experiência de leitura dos volumes da série Harry Potter, não se tratando
propriamente de um “texto-livre”, na terminologia pedagógica, porque não abriu a
possibilidade, por exemplo, de o participante fazer apenas um desenho ou uma pintura.
O objetivo foi que eles mostrassem mínima familiaridade com a prática da leitura e da
escrita, considerando a intenção de propor aos grupos a realização de atividades desse
tipo. Por outro lado, a temática manteve-se o mais ampla possível e não houve definição
prévia de número de linhas, de forma a dirimir a chamada “imposição da problemática
de pesquisa” (BOURDIEU, 1997). Em termos precisos, a solicitação feita foi a seguinte:
Escreva livremente sobre sua experiência de leitura da obra Harry Potter.
Na prática, coube aos mediadores entrar em contato com os leitores identificados e
consultá-los sobre a disponibilidade de participar de pesquisa com temática relacionada
aos livros da série Harry Potter. Não foram fornecidos maiores detalhes aos potenciais
participantes, visando justamente evitar qualquer tipo de direcionamento prévio que
comprometesse o registro do interesse espontâneo pela obra manifesto pelos leitores
em seu meio social.
De posse dos textos redigidos, foi feito o recorte na amostra inicial com base na
variável gênero (leitores do sexo masculino e do sexo feminino) no nível de envolvimento
pessoal explicitado em relação à obra, o que resultou na composição de amostra significativa de 10 leitores selecionados, sendo quatro meninos e seis meninas, de 11 a 19 anos.
Em razão da grande diversidade interna da amostra (LOPES, 2005) no tocante à faixa
etária, optou-se pela formação de dois grupos de discussão distintos, respectivamente
grupo A (leitores de 11 a 13 anos), cujos participantes, para efeito desta análise, são assim
denominados: menino 1 (11 anos), menino 2 (13 anos), menina 1 (12 anos), menina 2 (13
anos); e grupo B (leitores de 14 a 19 anos), integrado por menino 3 (17 anos), menino 4
(19 anos), menina 3 (14 anos), menina 4 (15 anos), menina 5 (17 anos), meninas 6 (18 anos).
O planejamento e a preparação dos encontros com os dois grupos foram necessariamente complexos no que tange ao “desenho” dos procedimentos a serem adotados,
envolvendo desde questões éticas relacionadas à presença do pesquisador em campo
apto a interagir com moradores de periferia em situação de exclusão social e cultural,
passando por critérios epistemológicos considerados por Bourdieu, segundo os quais
toda técnica é uma “teoria em atos” e, portanto, implica uma representação do objeto
investigado (THIOLLENT, 1980), até o pragmatismo imperioso de se promover um
debate aberto e acessível a todos, com temas e assuntos de interesse comum. Especificamente sobre esse aspecto, o material discursivo a ser apresentado já se encontrava
delimitado, conforme descrito anteriormente, tendo sido realizada a partir dele uma
seleção de temáticas para trabalho com os grupos definidos cujo critério foi precisamente
a própria realidade dos participantes. A decisão de enfocar aspectos do cotidiano dos
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entrevistados particularmente interessantes está apoiada na proposta do projeto em
curso, a começar pelo próprio objeto de pesquisa que construímos com o objetivo de
desvendar as inter-relações até então desconhecidas do discurso da obra Harry Potter
com leitores de Paraisópolis. No campo teórico, os estudos sobre identidade cultural,
para os quais o espaço local constitui-se em suporte e condição para a concretização
das produções gestadas em âmbito global, e a perspectiva bakhtiniana que atribui ao
interlocutor concreto um lugar-chave na construção de significados também trazem
importante justificação. A escolha de uma comunidade popular para a realização do
trabalho de campo, por sua vez, não implicou o estabelecimento de compromisso social,
político e ideológico da pesquisa com movimentos sociais locais, conforme sugerem
as diretrizes da pesquisa participante, contudo permitiu a aproximação com um dos
princípios de base dessa modalidade investigativa que acabou nos direcionando a, ao
atuar in loco, procurar:
“partir da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e
coletivos do processo, em suas diferentes dimensões e interações – a vida real, as experiências
reais, as interpretações dadas a estas vidas e experiências tais como são vividas e pensadas
pelas pessoas com quem inter-atuamos” (BRANDÃO, 2007, p. 54).
A faixa etária dos leitores em cada grupo de discussão também foi considerada,
seguindo a proposta da obra de vincular a idade do personagem-título – que amadurece
um ano a cada volume (ao todo, são sete volumes) – à do seu público. Assim, nos livros
originalmente destinados a leitores com idade correspondente aos dos integrantes do
grupo A (de 11 a 13 anos), exatamente do primeiro ao terceiro volumes, identificamos e
selecionamos os temas: (1) dificuldades financeiras; (2) relação com a escola; (3) meninos
X meninas; (4) discriminação/preconceito. Já nos demais volumes, do quarto ao sétimo,
voltados aos adolescentes de 14 a 17 anos e, portanto, adaptados aos participantes do
grupo B (de 14 a 19 anos), as seguintes temáticas foram identificadas e selecionadas:
(1) limites e liberdades; (2) meninos X meninas; (3) escolha da profissão; (4) bullying; (5)
maioridade; (6) discriminação/preconceito; (7) exclusão social3.
Adaptando algumas das diretrizes quanto à quantidade e à duração de reuniões
preconizadas para grupos focais (GASKELL, 2008) para a nossa proposta metodológica,
e considerando também aspectos de ordem prática, como tempo, espaço e recursos
disponíveis para a realização de atividades com os leitores selecionados – por exemplo, a
maior parte dos participantes apresentava horários escolares discrepantes, o que deixou
como única alternativa viável a realização de reuniões aos sábados –, concentramos
nossas expectativas na concretização de quatros encontros de uma hora e meia com cada
um dos dois grupos, em espaço cedido pela Estação do Conhecimento Einstein (ECE),
precisamente nas datas de 25/10/2014, 01/11/2014, 08/11/2014, 14/11/2014 e 22/11/20144,
3. As referidas temáticas foram consideradas significativas na discursividade da obra seguindo a proposta
de selecionar elementos de realidade correspondentes a condições sócio-históricas e sistemas ideológicos
objetivos, conforme a diretriz bakhtiniana. A pertinência em relação ao universo dos leitores de Paraisópolis
se baseia em informações acessíveis sobre a comunidade, bem como sobre o universo do adolescente
contemporâneo, mas durante todo o processo o material textual selecionado foi tratado como uma construção
analítica do pesquisador que não exclui a possibilidade de diferentes abordagens (ORLANDI, 2010).
4. O envolvimento da ECE, assim como dos demais mediadores locais responsáveis pelo rastreamento de leitores
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sempre no período das 14h às 15h30 (grupo A) e das 16h às 17h30 (grupo B). As tabelas
1 e 2 sintetizam a organização do trabalho em campo.
Tabela 1. Trabalho de campo com grupo A (4 leitores de 11 a 13 anos).
TEMAS
ENFOCADOS
DIFICULDADES
FINANCEIRAS
1ª SEMANA
PERÍODO PARA COLETA DOS DADOS
2ª SEMANA
3ª SEMANA
4ª SEMANA
- 1 h para leitura,
exibição de cena de
filme e discussão2
- ½ h metodologia
criativa
RELAÇÃO COM
A ESCOLA
1 tema /
1½h
- 1 h para leitura,
exibição de cena de
filme e discussão
- ½ h metodologia
criativa
MENINOS X
MENINAS
1 tema /
1½h
- 1 h para leitura,
exibição de cena de
filme e discussão
- ½ h metodologia
criativa
DISCRIMINAÇÃO
/ PRECONCEITO
TOTAL GERAL
TOTAL
1 tema /
1½h
- 1 h para leitura,
exibição de cena de
filme e discussão
- ½ h metodologia
criativa
1 tema /
1½h
4 TEMAS / 6
HORAS
4 SEMANAS
Tabela 2. Trabalho de campo com grupo B (6 leitores de 14 a 19 anos).
TEMAS
ENFOCADOS
LIMITES E
LIBERDADE
1ª SEMANA
PERÍODO PARA COLETA DOS DADOS
2ª SEMANA
3ª SEMANA
4ª SEMANA
- 1 ½ h para
leitura, exibição de
cena de filme
e discussão
1 tema /
1½h
MENINOS X
MENINAS
- 45 min para
apresentação,
exibição de filme e
discussão
ESCOLHA DA
PROFISSÃO
- 45 min para apresentação, exibição
de cena de filme e
discussão
2 temas /
1½h
BULLYING
- 45 min para apresentação, exibição
de cena de filme e
discussão
MAIORIDADE
- 45 min para apresentação, exibição
de cena de filme e
discussão
2 temas /
1½h
DISCRIMINAÇÃO/
PRECONCEITO
- 45 min para apresentação, exibição
de cena de filme e
discussão
EXCLUSÃO
SOCIAL
- 45 min para apresentação, exibição
de cena de filme e
discussão
TOTAL GERAL
TOTAL
2 temas /
1½h
7 TEMAS /
6 HORAS
4 SEMANAS
em Paraisópolis, foi imprescindível para a concretização do trabalho de campo. Previamente às reuniões, em
18/10/2014, foi realizado evento de cosplay (caracterização baseada em personagens da obra Harry Potter), que
serviu para aprofundar o contato do pesquisador com a comunidade e marcou o início do trabalho de campo.
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A cada reunião, foi desenvolvido um tópico guia, o qual serviu de referência ao
pesquisador (GASKELL, 2008) e consistiu de um esquema preliminar relacionado
aos temas enfocados, incluindo as questões relevantes para a discussão e a relação
de atividades programadas, precisamente leitura de trechos selecionados da obra e
debates em grupo, exibição de cenas dos filmes da franquia Harry Potter e algumas
dinâmicas (jogos e brincadeiras)5. Em ambos os grupos, houve aplicação de questionário
com perguntas abertas e fechadas visando complementar informações sobre o perfil
cultural e socioeconômico dos leitores e auxiliar na compreensão das diferentes posições
surgidas nas reuniões. Em todas elas, o pesquisador atuou como moderador dos grupos,
responsável pelos comentários introdutórios, sempre em posse do tópico guia e sentado
em círculo com os participantes, encorajando-os ativamente a falarem e a reagirem/
responderem aos pareceres emitidos durante as discussões grupais. Utilizamos
equipamento de áudio e vídeo para registrar na íntegra o conteúdo dos encontros,
além do suporte da rede social Facebook para os contatos com participantes ao longo de
todo o processo e disponibilização de material utilizado nas reuniões (trechos da obra).
Entendemos que os procedimentos descritos possam ter ajudado a criar
condições para o surgimento de uma “autoanálise provocada e acompanhada”, em
que os pesquisados enunciaram de forma expressiva experiências e reflexões latentes
e ainda não manifestadas (BOURDIEU, 1997).
SINGULARIDADES E INTER-RELAÇÕES EMERGENTES EM CAMPO
Primeiramente, é importante reforçar que a compreensão plena da “linguagem
local” de Paraisópolis e dos leitores participantes da pesquisa de campo é uma meta
que perseguimos na condução deste trabalho, contrabalançada pela consciência de sua
inviabilidade intrínseca, considerando os alertas feitos por Bourdieu (2005, 1997) sobre
a natureza impositiva de toda problemática e a impossibilidade do contato direto com
experiências concretas, que, uma vez vivenciadas, são apenas relatadas por seus sujeitos
e, portanto, não passam de versões da realidade. Procuramos aqui triangular diferentes
impressões e observações feitas por nós em campo com esses discursos coletados na
expectativa de que isso nos ajude a penetrar nos interstícios das produções de sentido
que resultam do contato da obra Harry Potter com os moradores da comunidade.
Todos os participantes vivem em famílias de baixa renda, pouca escolaridade e com
profissões não qualificadas do segmento de serviços6. Em sua maioria, o acesso aos
livros da série se deu por meio de canal público (biblioteca) – em relação ao primeiro
contato com a obra, apenas o menino 2 referiu compra em livraria7 –, o que confirma a
disseminação do produto nesse tipo de equipamento, em grande parte impulsionada
por estratégias de marketing e divulgação, ao longo de toda a década de 2000, conforme
constatado na primeira etapa da pesquisa. Por outro lado, a busca pelos livros ocupa
posto secundário em relação a outras mídias da franquia – todos os participantes
tomaram conhecimento da obra por meio dos filmes, à exceção dos meninos 1 (jogo
5. Por uma questão etária, jogos e brincadeiras foram concentrados nas atividades com os leitores do grupo
A (de 11 a 13 anos), enquanto aos participantes do grupo B (de 14 a 19 anos) ofereceu-se a possibilidade de
pesquisa e apresentação de trabalhos livres a respeito dos temas enfocados.
6. Dados obtidos por meio da aplicação de questionário.
7. Dado obtido durante os encontros e confirmado por meio da aplicação de questionário.
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eletrônico) e 2 (livro) e da menina 6 (livro)8, indicando a tendência de declínio da leitura
entre as gerações mais jovens (HORELLOU-LAFARGE e SEGRÉ, 2010).
Apesar das peculiaridades da situação social e das produções de sentido dos leitores
pesquisados, aparentemente, e este é um dado sobre o qual pretendemos nos debruçar
com maior profundidade, a motivação para a procura por Harry Potter não diferiu daquela
constatada por Jenkins (2008), assim como pela editora encarregada da interface com o
público-alvo da obra9 durante o período de lançamento dos sete volumes no Brasil, indicando nível de interesse e apropriação sem precedentes e produção maciça de conteúdos
alternativos (fanfics). A menina 6 referiu já ter participado de debates e reflexões de cunho
filosófico promovido por leitores da obra10, enquanto a menina 2 relatou a produção de
textos envolvendo personagens e situações da obra adaptados conforme o seu ponto de
vista11. A mesma pesquisada reiterou repetidas vezes durante os encontros ter pouco
interesse pela leitura dos livros – posição provavelmente influenciada pelo processo de
alfabetização tardio e o não estabelecimento de relação de confiança com a figura do professor (HORELLOU-LAFARGE e SEGRÉ, 2010) –, diferentemente do que ocorre com os
filmes da série Harry Potter, aos quais relatou assistir diariamente há pelo menos dois anos12.
Na esteira da pergunta central, sobre as especificidades da apropriação feita pelos
adolescentes de Paraisópolis do discurso da obra Harry Potter, estiveram em campo e
foram igualmente postos em debate durante todo o trabalho questionamentos relativos
a contatos de dominação, negociação ou de oposição (HALL, 2006) do universo local
com conteúdos externos massificados, de forma a encontrar, para além dos aspectos
universalizantes, a possível existência de “fios” que mantenham esses consumidores
vinculados ao seu espaço (CANCLINI, 1998, 2009). A coexistência da modernidade
com formas tradicionais derivadas da pobreza e do precário desenvolvimento socioeconômico latino-americano (CANCLINI, 1998, 2009) é exemplificada com precisão, por
exemplo, por evidências coletadas a partir da participação na pesquisa da menina 1, que
embora no questionário aplicado tenha se autoafirmado como consumidora de produtos
relacionados ao personagem Harry Potter e a outras franquias de massa, revelou desconhecer a existência dos centros de compra conhecidos como “shopping centers”. Como
identificar e equacionar as “pequenas astúcias” (CERTEAU, 1994) desenvolvidas por esse
perfil para se movimentar em meio aos interstícios presentes no entrelaçamento entre
a homogeneização massificadora e a evidente situação de exclusão social? A resposta
parece estar num tipo de “ambivalência” (CANCLINI, 2009), que, no caso de sujeitos
periféricos como a menina 1 parece suplantar a oposição dicotômica inclusão/exclusão
e mesclar situações de quem é desigual (não participante) e, ao mesmo tempo e em boa
parte, conectado (CANCLINI, 2009).
8. Idem.
9. Em entrevista ao pesquisador, Anna Buarque, editora responsável pela interface com leitores no período
de lançamento de Harry Potter no Brasil, apontou a obra como precursora de um inédito pacto de leitura,
marcado por alto envolvimento e proliferação de conteúdos paralelos em ambiente virtual.
10. Declaração consta em um dos textos escritos pela leitora a partir de solicitação feita durante a pesquisa
de campo.
11. Declaração consta no questionário respondido e também no material transcrito com base nos encontros
realizados.
12. As declarações foram feitas pela própria menina 2 durante as discussões grupais e pretendemos
compreender esse dado por meio de entrevista em profundidade com o referido perfil típico.
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Em certa medida, essa ambivalência materializou-se diante dos nossos olhos
ao transitarmos por duas Paraisópolis distintas, as quais fomos levados a conhecer
acompanhados por uma das mediadoras locais durante o primeiro contato com
a mesma menina 1, no momento do convite para sua participação na pesquisa. A
estrutura de oportunidades que caracteriza a comunidade em nada difere de outros
centros comerciais da cidade, mas desaparece por completo à medida que avançamos
por vielas cada vez mais estreitas, onde nos deparamos com ausência de saneamento
básico e minúsculos cômodos cujas portas ficam sempre entreabertas. No caminho até a
entidade que a menina 1 frequenta três vezes por semana para reforço escolar, tomamos
conhecimento da desestruturação familiar, do recente incêndio em que perdeu a casa e
todos os pertences, e da residência atual em uma zona de risco dentro da comunidade.
A menina 1 não comentou nada a esse respeito nas reuniões realizadas – provavelmente
refreada por uma espécie de instinto de autopreservação que deu mostras de sua força
logo no primeiro encontro ao confidenciar o incômodo com os olhares alheios enquanto
falava –, mas as limitações teimaram em vir à tona à sua revelia e de forma natural,
como quando ensaiou uma pronúncia inusitada para a palavra “outlook”, provedor de
email do qual é usuária, e no visível déficit de alfabetização evidenciado nas atividades
de leitura e escrita promovidas em grupo.
A presença da menina 1 nas reuniões programadas (o seu comparecimento foi de 100%)
suscitou em nós o questionamento da pré-noção de existência de uma homogeneidade
nos grupos pesquisados: constatamos, ao contrário, a configuração de contextos sociais,
econômicos e culturais diferentes dentro da amostra, que, provavelmente, reflete uma
característica do meio social de Paraisópolis. Em boa medida, isso foi confirmado pelos
participantes da pesquisa nos debates grupais e é um dado com o qual temos que
trabalhar obrigatoriamente na compreensão dos perfis típicos selecionados e das suas
produções de sentido a partir da obra Harry Potter. A heterogeneidade se estende à
constituição de cada perfil em si e se expressa, por exemplo, em visíveis dissonâncias
entre determinantes religiosos e culturais e interações efetivas, como é o caso das
meninas 3 e 4, integrantes da mesma família (são primas), que se declararam evangélicas
e, apesar de alguns senões iniciais, tornaram-se fãs incondicionais da trama ficcional
desenrolada em uma sociedade de bruxos.
A grande variedade de fatores que redunda na diversidade dos perfis selecionados
resultou, como não podia deixar de ser, em um processo ativo e complexo de apropriação
e construção de significados. Quando estimulados à autorreflexão, a maioria absoluta
dos leitores referiu não ter feito até a participação na pesquisa correlações de sentido
entre a obra e sua própria realidade. Uma possível exceção ocorreu no caso da menina
5, que leu todos os livros da série13 e confirmou ter feito ao longo da leitura espontânea
13. A procura espontânea pelos livros da série Harry Potter foi requisito obrigatório para a seleção dos
participantes, mas não a sua leitura integral. Não obstante, do ponto de vista do diagnóstico do nível de
letramento, esse é um dado que merece atenção: à exceção das meninas 5 e 6, nenhum dos participantes leu
a totalidade de volumes que compõem a obra, embora alguns deles tenham demonstrado interesse em prosseguir com a atividade. Outro dado relevante foi a baixa adesão à proposta feita aos participantes do grupo B
de realização de pesquisa e apresentações em duplas sobre as temáticas selecionadas, à exceção das meninas
3 e 4, que chegaram a elaborar um ppt sobre o tema “preconceito”. De uma forma geral, houve desinteresse
e não comprometimento dos participantes com tarefas “extra encontros”, como a leitura de trechos da obra
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associações entre a sua família e a do personagem chamado Rony Weasley, precisamente
aquela que na trama apresenta dificuldades financeiras.
Por outro lado, uma vez diante do material textual selecionado e expostos à situação
de debate em grupo, os participantes se mostraram capazes de fazer correlações
discursivas próprias (de aproximação e divergência) entre a obra Harry Potter e seu
universo vivencial, dentro e fora de Paraisópolis, as quais pretendemos analisar segundo
o seu caráter concreto e social, refletindo e refratando uma realidade na qual esses
leitores estão inseridos, conforme Bakhtin (2003, 2006). Encorajados pelo moderador a
refletirem sobre as temáticas selecionadas da obra à luz do seu lugar sócio-histórico e
estimulados por recursos (dinâmicas e cenas de filmes) utilizados para provocar ideias
e discussão, trouxeram à tona experiências oriundas do meio social que os envolve,
como os conflitos entre bolsistas e não bolsistas nas escolas particulares no entorno
de Paraisópolis motivado pelo preconceito de estudantes de classe média em relação
àqueles oriundos da comunidade (menina 2 e menino 3); as “top 10 de Paraisópolis” –
cyberbullying e violência moral sofridos por adolescentes do sexo feminino moradoras
da comunidade (menina 1); a obrigação do trabalho como meio de sobrevivência antes
do despertar da vocação profissional (menino 4); as limitações sociais resultantes da
imposição do estigma de “favelado” (menina 2, menina 5); o amadurecimento precoce
das crianças e adolescentes de Paraisópolis em comparação aos jovens de classe média
motivado pela condição socioeconômica desfavorável (meninas 3, 4 e 6); entre outros.
CONCLUSÃO
A presença de Harry Potter em Paraisópolis aparentemente confirma o estabelecimento
de relações locais de conexão com redes globais de comunicação, entretenimento e
consumo, entendido como forma de participação social, cuja viabilização se dá por meio
de um processo ambivalente. Os indícios coletados apontam para uma prevalência dessas
ambivalências entre os integrantes da amostra, que se evidenciam por movimentos de
repetição e revisão de conteúdos externos, divisões internas e contradições intrínsecas
à própria constituição de cada um dos perfis identitários.
A pluralidade de referências com a qual vamos trabalhar surgiu de forma progressiva
ao longo dos encontros, revelando apropriações diferenciadas e novos significados dados
pelos consumidores a um produto transcultural que se tornou assim assimilável e,
sobretudo, próprio daqueles que o absorveram. Nesse sentido, parece-nos legítimo
avançarmos na análise de signos e subjetividades oriundos das produções originais dos
dez sujeitos periféricos pesquisados, constituindo um dispositivo discursivo marcado
não por uma “lista de igualdades”, mas por um conjunto de diferenças sobre o qual
cabe nos aprofundarmos, a fim de avançarmos na compreensão das trocas culturais
e da construção de significados no contexto das novas formas de comunicação na
contemporaneidade.
disponibilizados via Facebook e a produção de textos inspirados nos debates (primeiro e segundo encontros)
e de respostas a perguntas específicas (terceiro e quarto encontros). Ressalte-se ainda que somente o quarto
e último encontro contou com a presença de todos os participantes do grupo B (o grupo A esteve completo
no primeiro e quarto encontros), fato aparentemente motivado pela possibilidade oferecida de caracterização
como personagens da obra, atividade realizada com a colaboração presencial de uma cosplayer profissional,
igualmente responsável pelo suporte ao evento que marcou a abertura do trabalho de campo na comunidade.
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“Tô desapegando! Quem acompanha?”: um olhar
etnográfico sobre as dinâmicas de consumo
em um grupo de brechó no Facebook
“Tô desapegando! Quem acompanha?”: an ethnographic look at
the consumption dynamics in a thrift shop group on Facebook
M i l e n a G o m e s C o u t i n ho P e r e i r a 1
Resumo: O aumento dos preços de produtos e serviços no Brasil, e, em especial,
no Rio de Janeiro, têm refletido tanto no bolso dos sujeitos quanto nas dinâmicas
sociais da cidade. Nesse cenário, notamos, entre outras iniciativas, o crescimento
do número de feiras e grupos online de venda e troca de roupas e objetos usados.
Para este trabalho, foi feita observação participante por três meses no grupo
“Hipstrechó”, um brechó virtual que possui quase 11.300 membros, sendo a
maioria de mulheres entre 17 e 27 anos moradoras do Rio de Janeiro. O objetivo da
pesquisa, feita com base no método etnográfico, foi compreender a motivação e a
dinâmica de consumo neste ambiente, que, entre outras características, envolve
contato virtual e físico em uma mesma transação. A estrutura das postagens, o
fluxo do processo de venda/troca, o contato e as tensões entre as participantes
foram analisadas sob a luz de teóricos das áreas de antropologia, comunicação
e consumo. Dentre os resultados obtidos, se destacaram a importância da “palavra” como forma de confiança no grupo, o “desapego” como tipo de consumo
alternativo e a importância do metrô como local de câmbios. Palavras-Chave: Consumo. Etnografia. Brechó. Facebook.
Abstract: The rise in prices of products and services in Brazil, and in particular in Rio de Janeiro, have reflected both in the subject pocket as the social
dynamics of the city. In this scenario, we note, among other initiatives, the
growing number of fairs and online groups sale and exchange of used clothes
and objects. For this work, participant observation was made for three months
in the group “Hipstrechó”, a virtual thrift store that has almost 11,300 members,
mostly women between 17 and 27 years, residing in Rio de Janeiro. The objective
of the research, which is based on the ethnographic method, was to understand
the motivation and the dynamics of consumption in this environment, which,
among other characteristics, involves virtual and physical contact in a single
transaction. The structure of posts, the flow of the sales process / exchange, the
contact and the tensions between the participants were analyzed in the light of
theoretical anthropology of areas, communication and consumption. Among the
results, it highlighted the importance of “word” as a way of trust in the group,
the “detachment” as alternative type of consumption and the importance of the
subway as a place of exchange.
Keywords: Consumption. Ethnography. Thrift Shop. Facebook.
1. Pedagoga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bacharel em Estudos de Mídia pela Universidade
Federal Fluminense e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. E-mail: pereira.
[email protected]
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INTRODUÇÃO
ESDE QUE o Brasil ganhou os holofotes internacionais por conta dos grandes even-
D
tos, muito se tem discutido sobre o aumento dos preços de produtos e serviços.
O Rio de Janeiro, por exemplo, um dos palcos principais dos eventos e uma das
capitais que mais recebe turistas no país, ganhou o apelido de “Rio Surreal” em uma
brincadeira com o nome de nossa moeda (real) associada à arte surrealista, que, entre
outras características, despreza o racional e lógico. Um dos pintores mais famosos desse
movimento artístico, Salvador Dalí, conhecido por seus quadros oníricos, inclusive teve
seu rosto ironicamente estampado em notas2 da fictícia moeda “surreal”.
Diante dessa emergente realidade, os cariocas criaram várias páginas na rede social
Facebook como forma de protesto e denúncia contra estabelecimentos que cobram preços
considerados abusivos. A mídia também comentou o caso e, desde então, fez inúmeras
matérias sobre os altos valores da cidade, denunciando pão com ovo por R$243 em
Ipanema, omeletes de R$994 em Copacabana, e mais uma série de outros produtos
com custos tão inacreditáveis quanto.
Os preços inflacionados refletiram não apenas no bolso, mas também nas dinâmicas
culturais da cidade. Se ir à praia, por exemplo, antes era considerado um programa
barato, com o crescimento do valor de alimentos e serviços esse lazer sofreu algumas
modificações: com fins de evitar pagar R$5 em uma lata de cerveja ou refrigerante, as
pessoas passaram a levar suas próprias bebidas em um isopor, o que rendeu ao movimento
o nome de “isoporzinho”5, que ganhou adeptos em outras cidades brasileiras também.
Outra iniciativa motivada pelo desejo de economizar se dá no aumento do número
de páginas, sites e grupos de venda e troca de produtos usados. Roupas, bolsas, sapatos
e acessórios são os artigos mais vistos nestes ambientes, mas há quem anuncie móveis,
maquiagens e até casas. Para desenvolver este artigo participei de algumas destas páginas, como a “Hipstrechó”, a “Brechó Niterói”, “Bazar das meninas de Niterói” e a “Brechó
roupas, sapatos, acessórios (compra e venda)” com fins de compreender a motivação
e a dinâmica de consumo nestes grupos, que, entre outras características, possuem a
peculiaridade de ter contato online e off-line em uma mesma transação.
METODOLOGIA
O presente trabalho foi desenvolvido com base na netnografia, ou etnografia virtual, que é uma adaptação do método etnográfico tradicional voltado para pesquisas
em ambiente digital. Apesar de ser apresentado aqui algo distante do que Clifford
Geertz (1978) chamaria de “descrição densa” – uma análise profunda e complexa de
determinada cultura e seus significados –, buscou-se, em um movimento inicial, fazer
uma pesquisa de campo em grupos de brechó do Facebook com o olhar voltado para
2. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/01/cariocas-propoem-boicote-precosaltos-e-surreal-como-nova-moeda.html Acessado em 20/01/2015
3. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/blog_gente_boa/posts/2015/01/25/rio-urreal-chega-aopao-com-ovo-559374.asp Acessado em 26/01/2015
4. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/01/precos-surreais-do-verao-do-riotem-omelete-r-99-e-croissant-por-r-25.html Acessado em 20/01/2015
5. Disponível em: http://www.guiadasemana.com.br/noite/noticia/conheca-a-moda-do-isoporzinho
Acessado em 20/01/2015
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a área do comportamento do consumidor. O objetivo foi, então, buscar entender o porquê as pessoas optam por comprar nesses espaços, como consomem e de que forma se
relacionam por lá.
A escolha pelos grupos pesquisados se deu inicialmente no próprio Facebook,
a partir da barra de busca disponível na rede social. Procurei pelas palavras-chave
“brechó” e “bazar” e fiz o pedido para participar daqueles que tinham mais membros
e eram geograficamente mais próximos dos locais que transito. Como todos os grupos
do tipo são fechados e possuem entrada controlada, aguardei a resposta para, só então,
tornar-me um membro deles.
Por ter sido aceita nos quatro grupos que solicitei (mencionados anteriormente),
acompanhei-os todos os dias por três meses, o que me rendeu uma série de registros
e reflexões no diário de campo, que, como diz o antropólogo Yves Winkin (1998), é “o
lugar do corpo-a-corpo consigo mesmos, ante o mundo social estudado” (p.138). Conforme o processo de produção do diário e de leitura do mesmo, notei com mais clareza
as características de cada grupo e, diante disso, optei por analisar o Hipstrechó.
O Hipstrechó é um grupo expressivo, que possui mais de 11.300 membros e grande
fluxo de postagens e de interação. Com fins de fazer uma observação participante nesse
espaço, interagi, comprei e vendi peças lá; entretanto, a participação se deu de forma
diferente conforme as fases da pesquisa: no primeiro mês objetivei compreender o funcionamento básico do grupo, então optei por ter uma participação invisível e “anônima”,
ou seja, sem me apresentar formalmente enquanto pesquisadora; já no segundo mês,
comprei e vendi peças, curti publicações e interagi nos comentários, em síntese, tornei-me
ativa no grupo; e, por fim, no terceiro, apresentei-me como estudante de comunicação
e criei uma aproximação mais específica com alguns membros que me concederam
entrevistas individuais.
No início da ida a campo, procurei ver o perfil dos membros, que tipo de produto
é anunciado e como acontece a interação. Logo no primeiro momento foi possível notar
que o grupo é composto em sua expressiva maioria por mulheres jovens com média
entre 17 e 27 anos. Oriundas de vários bairros da cidade do Rio, com certa predominância
para os bairros da Zona Sul e Tijuca, elas costumam publicar em seus anúncios as fotos
das peças à venda acompanhadas de alguma informação adicional, o que, aliás, é uma
demanda obrigatória feita pelo grupo.
Apesar de ser um espaço de comércio informal, há regras para o funcionamento do
grupo, e estas ficam disponíveis em um post fixo na lateral do grupo para que todos os
membros visualizem com facilidade. Conforme descrição feita pelas administradoras
na postagem, para anunciar é necessário: colocar uma foto do produto acompanhada
de descrição constando preço, tamanho e local de entrega; seguir a fila de preferência;
apagar a postagem após a venda do produto; estipular um limite de três dias na reserva;
ter “bom senso na hora da venda” (embora não fique claro o que especificamente isso
signifique) e apenas anunciar produtos em bom estado e sem defeitos.
Para além, em caso de desistência/imprevisto, é sugerido avisar ao vendedor/comprador em um período de até 24h de antecedência do que fora combinado da entrega;
e ser cordial, não publicar palavrões ou “qualquer tipo de humilhação” sob o risco de
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ter a postagem apagada e/ou ter o caso encaminhado às administradoras, que irão
“analisar e tomar as devidas providências” - providências estas que podem fazer com
que o sujeito seja expulso do grupo.
Apesar do grande fluxo de postagens, não foi possível identificar membros de destaque no grupo, sendo a participação da maioria de frequência e intensidade imprecisas.
Diante disso, e na busca por participantes que aceitassem ser entrevistados e partilhassem um pouco de suas experiências neste modelo de consumo, fiz, no início do mês de
janeiro de 2015, a seguinte publicação:
Figura 1. Primeira publicação feita no grupo Hipstrechó.
O texto foi escrito de forma informal por ser o tipo de linguagem utilizada no grupo, assim como o uso de emoticons (pequenos ícones ilustrativos usados para exprimir
um determinado sentimento ou sensação) se deu pela mesma razão. Após a publicação,
nove pessoas demonstraram interesse em participar da entrevista, das quais duas não
deram continuidade ao contato estabelecido. Para além das meninas que quiseram
participar, duas outras foram especialmente contatadas por serem administradoras do
grupo, sendo que apenas uma aceitou o convite.
Como as meninas desejaram ser entrevistadas, o contato com elas foi bastante amigável. Na dificuldade de marcar encontros (por conta de choques de horário e distância
geográfica), e, ao mesmo tempo, na tentativa de desenvolver uma conversa próxima,
a solução encontrada foi fazer as entrevistas via Whats App, que é um aplicativo de
troca de mensagens (incluindo áudio e vídeo) via smartphone. Para manter contato
por esse aplicativo é necessário trocar números de celular, o que achei que poderia ser
um problema em um primeiro momento – afinal, eu era uma total desconhecida para
elas–, mas não foi.
Durante a observação percebi, com certo estranhamento, que a troca de telefone
é uma prática comum no grupo, e que isso é feito aparentemente sem preocupações,
tanto em publicações abertas quanto em conversas privadas. As principais razões para
o compartilhamento de números no Hipstrechó são: necessidade de acertar detalhes
sobre local e data do encontro para o fechamento da venda/compra, e o interesse em
participar de brechós que funcionam apenas em grupos do Whats App (e que são divulgados no grupo do Facebook). Por fim, e diante da forma natural como os membros
encaram o uso do aplicativo, foram feitas oito entrevistas6; sendo cinco por áudio e três
por mensagens escritas, nesse último caso, a pedido delas.
6. Os termos em itálico que constam nos trechos transcritos das entrevistas, presentes neste artigo, foram
feitos para representar a ênfase vocal dada durante a fala das meninas. Expressões usadas por elas que
vão ao encontro da norma culta da língua portuguesa também foram marcadas.
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ANÁLISE DE RESULTADOS
O post
O primeiro ponto observado na pesquisa de campo foi a postagem feita no grupo.
Não existe um padrão de anúncio, mas, em uma tentativa de classificação, foram notados
alguns modelos mais frequentes de posts, que chamei de: objetivo, isca, busca, empreendedor e terceirizado. O “post objetivo” é aquele em que a pessoa publica uma imagem do
produto e mais algumas informações diretas, como o tamanho da peça, o preço e o(s)
local (is) que costuma fazer entrega. Abaixo seguem dois exemplos:
Figura 2. Exemplos do post objetivo.
O “post isca” é aquele em que não se publica a imagem do produto individualmente nem se menciona as informações dele de maneira direta, mas se oferece alguns
chamarizes com fins de atrair o interesse das potenciais compradoras. Aqui, são dadas
pistas que indicam que tipo de produto está disponível (se têm blusas, saias, vestidos,
etc) e/ou ainda as marcas das peças a venda (sempre de grife). Geralmente, neste tipo
de publicação, é comum ver uma imagem de armário aberto ou uma cama coberta por
roupas e acessórios, ou seja, apelos visuais que atraem pela ideia de volume e variedade.
Figura 3. Exemplos do “post isca”.
O terceiro post é o do tipo “busca”. Como o nome diz, é a publicação que objetiva
encontrar algo. Esses posts são feitos não por quem oferece, mas por quem procura uma
determinada peça. Nesses casos, as meninas perguntam sobre quem vende um produto
“x” e/ou uma marca “y”; há ainda aquelas que publicam imagens do que procuram com
fins de encontrar vendedoras e/ou sugestões de onde comprar o produto em questão.
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Figura 4. Exemplos do “post busca”.
Já o “post empreendedor” é o que é feito por pessoas do grupo que estão interessadas em divulgar seus trabalhos e/ou comercializar produtos novos. Essas pessoas
fazem anúncios de roupas de fabricação própria, réplicas de produtos de marca, artigos
comprados no exterior e até mesmo peças visivelmente compradas em sites chineses
(como o AliExpress, por exemplo) e revendidas com preços mais elevados. Seguem
alguns exemplos:
Figura 5. Exemplos do “post empreendedor”.
Por fim, o “post terceirizado” é aquele em que a pessoa publica um anúncio para
vender o produto de um terceiro, que não participa do grupo. Geralmente esse tipo de
publicação é feito por meninas em favor para as suas mães ou amigos do sexo masculino.
Sobre esse último caso, imagina-se que a venda de tais artigos se dê visando alcançar
mulheres em um primeiro momento (contato e compra) e homens em um segundo (uso
da peça), que seriam os namorados das mulheres do grupo, seus pais, irmãos etc.
Figura 6. Exemplos do “post terceirizado”.
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A grande maioria dos posts do grupo Hipstrechó visa vender. Tal qual a publicidade,
eles são um tipo de narrativa em prol do consumo e, sendo assim, procuram chamar
atenção de quem vê, seja pelo uso de imagens atrativas, incluindo uso de recursos gráficos e composição de cenário, em alguns casos; ou pela adjetivação da peça indicando
seus benefícios e diferenciais, como “nunca usado”, “com etiqueta”, “só grife”. Como
Everardo Rocha (1995) diz: “publicidade e consumo são partes de um mesmo processo.
Em certo sentido, podemos dizer que a publicidade é a narrativa que dá sentido ao
consumo. Ela inscreve os bens de consumo em nossas vidas.” (p.15).
Os termos
Nas postagens também é recorrente encontrar alguns termos próprios do grupo,
como “desapego”, “no precinho”, “Ac” e “Fila”. O primeiro termo significa a prática de
pôr à venda roupas/acessórios usados. Em geral, “desapegar”, segundo o dicionário,
remete uma ideia de corte de afeto, de libertação de algo; no caso, o “algo” trata-se de um
produto menos usado do que se gostaria, um objeto que está ocupando muito espaço,
uma roupa que não serve mais no corpo etc.
O desapego surge, então, como uma ação em resposta a um incômodo. Este tal
incômodo pode ser com a peça em si (“enjoei”, “não cabe mais” etc), com a consciência
individual do excesso de bens (“tem muita roupa entupindo meu armário”, “preciso
abrir espaço no armário” etc) ou ainda com a emergência da percepção acerca da possível lucratividade de se vender o que se tem (“preciso de dinheiro para...”, “a grana tá
curta, então...” etc); ou ainda a mistura de todos esses pontos. No mais, vale dizer que
o ato de desapegar pressupõe uma relação: é necessário que alguém se “apegue” para
que se cumpra o objetivo da ação. Não há uma divisão total do grupo entre os sujeitos
que “desapegam” e os que “apegam”; um mesmo sujeito, na maioria das vezes, alterna
sua forma de participação no grupo conforme seu interesse, assim, em um momento
ele pode ser vendedor e, em outro, comprador.
“No precinho” é uma expressão usada com o intuito de indicar que o produto
anunciado está sendo oferecido por um preço muito abaixo do valor original cobrado
no mercado. A princípio, vender peças a baixo custo é uma característica do grupo, mas
como é bastante discutível o entendimento do que seja “barato”, muitas tensões entre
os membros giram em torno desse assunto. Logo, é comum ver meninas reclamando
sobre os preços cobrados em determinados produtos, principalmente os que são de
grife/marca conhecida.
Eu acho muito injusto tanto pra quem compra quanto pra quem vende essa questão de
preço quando a roupa é de marca. Tipo assim, várias vezes eu queria vender roupas
de marca, tipo Ecletic, Shop126, essas coisas, sabe? Lojas que você compra um vestido por trezentos reais, duzentos e pouco..., e eu vendendo por cinquenta e a menina
reclamando, sabe? Eu acho que, assim, nesses grupos, essas meninas deviam pensar
que, tipo assim, é preço de brechó você comprar um vestido que numa loja é duzentos
e cinquenta por cinquenta. Entendeu? Aí fica de “Ah, tô procurando coisa mais baratinha”, entendeu? Só que ela nunca acharia isso numa loja nesse preço. (Vitória, 16
anos, Copacabana)
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O termo “Ac” é uma abreviação para “acompanhando”. Ele é utilizado quando a
pessoa interessada na peça deseja sinalizar ao anunciante que está observando o desenrolar do post e a publicação de mais peças, produtos e/ou informações nos comentários.
Para além, a abreviação costuma ser usada pelos membros para marcar lugar na “fila”
de interesse na peça. Funciona assim: como a preferência da venda tende a ser daquele
que se manifesta primeiro nos comentários, publicar um “Ac” garante a presença no
topo da lista de potenciais compradores do item. Conforme o interesse pelo produto
anunciado se confirma, algumas pessoas inclusive editam o comentário feito e substituem o “Ac” pelo “Quero”, que é a palavra utilizada quando se deseja fechar a compra.
Por fim, “fila” é o termo utilizado para organizar a ordem da venda, o que funciona
quando mais de uma pessoa demonstra interesse em uma mesma peça. Há anúncios que
possuem dezenas de pessoas na fila. Os membros do grupo escrevem essa palavra na
parte dos comentários e aguardam que os interessados anteriores desistam da compra
para que elas tomem o lugar de preferência.
Diante disso, em caso de desistência, o correto seria o anunciante entrar em contato
com as pessoas conforme a ordem da tal fila, mas isso raramente acontece. Em geral,
como as desistências não costumam acontecer no primeiro momento, ou seja, se dão
apenas após conversa privada e/ou no próprio dia do encontro para a entrega, os anunciantes acabam não salvando os contatos dos membros da fila e, engolidos pelo grande
número de publicação que se sobrepôs ao seu no grupo, se vêem, em nome da praticidade, fazendo novo anúncio da tal peça.
Figura 7. Exemplo de texto publicado após perda da fila.
Ainda sobre a imagem acima, é interessante notar que, na última frase da publicação, a anunciante afirma seguir o critério da fila, mas, ao mesmo tempo, se dá ao direito
de burlá-la conforme seu interesse. Assim como esta postagem, várias outras mostram
certa resistência em relação à fila enquanto critério de ordenamento da preferência.
Há meninas que chegam a publicar em letras garrafais “Sem fila!”, o que deixa claro
também o quanto a adoção de tal prática é flexível, ao contrário do que se solicita nas
regras do grupo.
O fluxo
Nos quatro grupos de brechó online que tive a oportunidade de participar pude
ver que o fluxo de consumo é basicamente o mesmo. Primeiro, o anunciante publica as
peças a venda; em seguida, o primeiro interessado comenta com “Quero!” ou se manifesta de alguma outra forma; depois, como dito anteriormente, faz-se a fila dos demais
compradores em potencial. Em um segundo momento se dá o contato direto entre
anunciante e interessado via inbox (mensagem privada do Facebook). Nesse espaço, eles
conversam sobre a peça e suas especificações, esclarecem dúvidas, trocam impressões
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e fotos do produto. Quando o interesse se confirma, começa o processo para combinar
a entrega. Nesta etapa, os envolvidos citam os melhores dias, horários e locais para
concretizar a compra/troca.
O fator “entrega” acho que é o mais difícil; pra combinar um dia, um lugar que seja viável
pras duas pessoas pra poder entregar. Quando chega no dia, a gente marca um local aproximado e sempre acaba se reconhecendo. A gente acaba sempre trocando telefone, né? Pra
falar pelo Whats App, ou alguma forma de comunicação; se encontra e efetua a compra.
Assim, não é nada muito demorado, nem tem conversa nem nada, é só “entrega o produto,
entrega o dinheiro”. Só isso. (Nayara, 18 anos, Cachambi)
Conforme a fala da Nayara esclarece, chegar a um consenso quanto ao lugar de
entrega é um problema. Como as meninas são de diversos bairros do Rio de Janeiro, os
esquemas de entrega mudam conforme a localidade e a rotina de cada uma. É comum
notar, entretanto, que, para a grande maioria delas, o metrô aparece como local de
preferência para fazer as trocas, seja pela facilidade de locomoção através das linhas ou,
ainda, pela segurança que o lugar oferece devido ao grande fluxo de pessoas.
Então, eu sempre peço pra me encontrar na maioria das vezes do metrô ou em qualquer
lugar público. Eu não gosto que venham até minha casa. E eu já fui duas vezes na portaria
de duas meninas, mas porque elas tinham amigos em comum comigo. Mas eu realmente
tenho um certo medo, não é medo, mas receio, porque a gente não sabe quem é a pessoa
que está do outro lado do computador. Então eu acho que é bem essencial que seja em local
público. (Marília, 19 anos, Copacabana)
O receio pelo encontro, apesar de surgir nas entrevistas, não parece ser um problema
para a continuidade da prática. Quando indagadas sobre o porquê de não encaminharem
as peças pelos correios, foi unânime a rejeição à proposta, aparentemente pela pouca
praticidade do processo. Observei então quatro principais razões que justificam a negação
de tal ideia: (1) foi relatado certo incômodo em enviar produtos quando se tem a possibilidade do encontro, algo definido como uma experiência “desnecessária”, “estranha”;
(2) o envio pelos Correios faz com que haja aumento no preço na peça, o que inviabiliza
a lógica do consumo a preço baixo, que é um dos pilares de sustentação desse tipo de
intercâmbio; (3) o receio da peça se perder a caminho e não chegar ao destinatário; e (4)
o desejo de atestar com os próprios olhos a situação da peça para evitar maus negócios
e possíveis arrependimentos. A seguir, duas falas que exemplificam estas sensações:
Eu sou assim, eu vou ser bem sincera, eu tenho medo também desse negócio de correio.
Sabe? Você depositar na conta e, “pô, cadê a peça?”. E, assim, eu acho que é até mais caro
depositar pelo correio, você ainda tem que pagar mais o Sedex, que é 15 reais. Às vezes até
não vale a pena pelos Correios. (...) Eu prefiro mesmo encontrar, sabe? Eu acho melhor. Até
porque você vê a peça direitinho, se é aquilo e tal. (Ana Clara, Moderadora, 16 anos, Tijuca)
Para além, foi interessante notar que nas falas captadas a mobilidade urbana apareceu como um fator decisivo para o acerto ou o cancelamento da compra, e o metrô
como o principal local de câmbio. Por conta da facilidade de transitar pelas linhas por
diferentes bairros, as participantes dos grupos tendem a preferir marcar encontros lá,
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além das estações também serem locais públicos e possuírem grande fluxo de pessoas,
o que oferece certa segurança. No caso de pessoas que moram em locais mais distantes,
outras alternativas surgem como solução, como incluir terceiros no processo de entrega,
seja ele um membro da família ou o porteiro do prédio.
Como eu moro na Barra, é muito mais longe, então as pessoas não vem tanto pra cá. Principalmente quem vem da Zona Sul. Só que minha vó mora em Botafogo. Aí eu deixo algumas
coisas em Botafogo com minha vó e a pessoa vai lá e busca quando quer, entendeu? Aí eu
falo “ó, a partir de tal dia eu vou entregar lá e você vai lá e busca”. E minha vó entrega pra
essas pessoas. Eu já fiz isso algumas vezes. (Bruna, 18 anos, Barra da Tijuca)
Valores
“O principal é a confiança naquela pessoa que você vai vender ou comprar”, afirmou Ana Clara, a moderadora do grupo Hipstrechó. Essa não é a opinião somente dela,
mas de todas as meninas entrevistadas. Segundo elas, os maiores problemas de fazer
compras em brechós online envolvem a falta de consideração e de palavra (termos usados
por elas), por parte de algumas participantes.
As meninas com as quais conversei comentaram sobre experiências ruins que tiveram por conta dessa quebra de confiança com a negociante. Segundo elas, uma pequena
parte dos membros do Hipstrechó faz ações que, na opinião das entrevistadas, são
condenáveis e atrapalham o bom funcionamento do grupo, como por exemplo: marcar
encontro e não aparecer; reservar peças e depois parar de responder as mensagens inbox,
inviabilizando a continuação da venda; mentir sobre a condição/tamanho do produto
só para não perder a venda; etc.
Como reforça Marília, “o pior mesmo é a falta de consideração com o próximo,
mas isso não é algo que acontece só nesse caso do brechó, mas em tudo que acontece no
mundo.” Ao dizer isso, a menina não dissocia o espaço virtual do real, mas demonstra
entender que ali há uma micro realidade que, como o mundo fora do computador, possui
pontos negativos e positivos.
No geral, as meninas afirmaram considerar altamente benéfica e segura a experiência de consumir em brechós online. O fato de achar peças baratas e novas/seminovas
em bom estado foi o ponto mais valorizado por elas. A mídia7 e alguns pesquisadores
contemporâneos tendem a creditar que a opção por tal experiência vem a ser motivada
pelo desejo de praticar um consumo mais consciente, guiado pela lógica do reaproveitamento e da sustentabilidade. Segundo Fátima Portilho (2005)
As ações e as escolhas individuais motivadas por preocupações ambientais passaram a ser
vistas como essenciais, e o consumidor como o responsável, através de suas demandas e
escolhas cotidianas, por mudanças nas matrizes energéticas e tecnológicas do sistema de
produção. (PORTILHO, 2005, p.3)
A indústria têxtil é considerada uma das mais poluentes. De acordo com uma
pesquisa feita pela Greenpeace Itália, as grifes mais conhecidas do mundo, como Chanel,
Dolce & Gabanna e outras, utilizam “produtos tóxicos que poluem as águas e couro vindo
7. Disponível em: http://vitrine.catracalivre.com.br/blog/moda-brecho/ Acessado em 08/02/2015
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de áreas desmatadas ilegalmente”8. Por outro lado, marcas mais populares como C&A e
Zara foram processadas por utilizarem mão de obra escrava em suas produções9, o que
também compromete a lógica do consumo consciente. Apesar de tal cenário crítico, a
preocupação com o meio ambiente e questões afins, para as entrevistadas, não chega a ser
um ponto de grande relevância para a maioria das pessoas que procuram grupos como
o Hipstrechó. Segundo elas, o preço baixo ainda é o maior motivador de participação.
Ah, eu acredito que existam pessoas que realmente prefiram esse tipo de compra pelo
fato de ser uma forma alternativa de comprar, mas eu acredito que 90% das meninas e dos
homens que compram, fazem isso realmente por causa do preço, que é sempre mais baixo
pela internet, ou em brechós, ou em grupos de Facebook, coisas do estilo. (Marília, 19 anos,
Copacabana)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com Mary Douglas e Baron Isherwood (2013), “estudar consumo significa,
em certo sentido, privilegiar a cultura, o simbólico, experimentando a relatividade dos
valores e a instabilidade nela explícita.” (p.13). Especialmente se tratando de um trabalho
de inspiração etnográfica, a relação de proximidade com uma determinada prática de
consumo faz com que se privilegie e relativize tais pontos com ainda mais intensidade.
Na observação participante feita no grupo Hisptrechó, pude entrar em contato com
uma forma de consumo que une o modelo off-line e online e gera um novo tipo de fluxo. Juntar ambos os modelos significa tanto somar características de cada tipo quanto
ressignificar algumas práticas sob uma nova perspectiva. A confiança, algo importante
nas relações da internet, permanece valorizada nesse tipo de relação, por exemplo; assim
como a mobilidade, relevante para relações de câmbio físico, também é apontada como
fator imprescindível para o tal modelo; mas a proposta de consumo “on-off” possui
características novas e muito próprias.
Nesses espaços, os sujeitos agem como vendedores, mas, ao mesmo tempo, oferecem uma proximidade diferente da que se tem contato em lojas. Alguns membros do
grupo utilizam argumentos do marketing para otimizar suas vendas, outros são mais
pessoais e chegam a comentar sobre sua afetividade com a peça anunciada e a dificuldade de abrir mão dela (“usei em uma ocasião especial”, “amo, mas não cabe mais em
mim”, “estou grávida”).
O contato entre as participantes do Hipstrechó passa por diversas plataformas e
níveis de aproximação: tem início no espaço aberto do grupo e logo migra para o espaço
privado, depois para o Whats app e, em seguida, para o encontro físico. Há tensões no
grupo por mau cumprimento das regras e por uma espécie de traição de valores que,
apesar de não estarem escritos, são implícitos no funcionamento de tal prática, como o
caso da pontualidade nos encontros de troca, por exemplo.
8. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/O-Duelo-da-Moda/ Acessado em
08/02/2015
9. Disponível em: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/6-redes-de-roupas-envolvidas-em-trabalhoescravo-recentemente Acessado em 08/02/2015
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4683
“Tô desapegando! Quem acompanha?”: um olhar etnográfico sobre as dinâmicas de consumo em um grupo de brechó no Facebook
Milena Gomes Coutinho Pereira
É curioso notar também que o fluxo de consumo “on-off” une diversos pontos da
cidade do Rio de Janeiro - primordialmente por conta do transporte público, em especial
metrô e trem - e amplia seu alcance graças a inclusão de pessoas – familiares, porteiros,
amigos - no processo de câmbio que, mesmo fora do grupo Hisptrechó, participam da
sua rede. O desejo da compra e venda também aproxima diferentes realidades sociais,
como é o caso de meninas com melhor condição financeira que anunciam peças de grife
por menos da metade do preço e, assim, possibilitam que outras meninas, menos favorecidas economicamente, consigam ter acesso a marcas e grifes que não conseguiriam
adquirir em uma compra direta da loja, por exemplo.
Sobre a troca, ficou claro que não se trata de prática bem quista nesse grupo; raras
são as meninas que demonstraram interesse em escambo. Para se ter uma ideia, das
oito que conversaram comigo, apenas uma afirmou já ter participado de troca de peças.
O argumento geral é que trocar peças não costuma ser um bom negócio.
É difícil achar gente pra fazer troca. Porque quando você acha alguém pra fazer troca, às
vezes não se interessam pela sua peça; ou então, quando alguém quer fazer troca, as peças
que eles têm não me interessam. Então eu costumo mais comprar. E, assim, eu já vendi
algumas coisas, mas eu não tenho muita coisa pra vender. Então eu realmente costumo
mais comprar. Porque, como tem sempre alguma coisa nova, então sempre quero comprar
alguma coisa diferente. (Nayara, 18 anos, Cachambi)
É interessante observar que muitas meninas confessaram ter entrado no grupo com
o objetivo de vender suas coisas (“esvaziar o armário”, “ganhar um dinheirinho”), mas
acabaram, no fim das contas, admitindo comprar mais do que vendem, o que também
tensiona a ideia de que estamos diante de uma experiência de redução do consumo e
de consequente sustentabilidade.
O consumismo, por fim, se revela um assunto complexo no grupo observado. Por
um lado, grande parte do que se anuncia é feito em prol do esvaziamento, do “desapego”
e da necessidade de, ao livrar-se do que não se usa, “ter menos”; mas, por outro lado, o
imenso número de publicações anunciando peças em bom estado, de marca e a preço
baixo estimula o consumo exacerbado e faz com que a existência do grupo tanto se
justifique quanto de fortaleça.
REFERÊNCIAS
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo.
Tradução: Plínio Dentzien. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas – 1.ed., 13 reimpress. Rio de Janeiro: LTC, 2008
PORTILHO, Fátima. Consumo sustentável: limites e possibilidades de ambientalização e politização
das práticas de consumo. Cadernos Ebape. BR. Edição Temática. FGV, 2005.
ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad,
1995.
WINKIN, Yves. A nova comunicação: da teoria ao trabalho de campo. Campinas-SP: Papirus, 1998.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4684
A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional:
uma reflexão sob a ótica dos receptores
de famílias de classe popular
The stereotyping of poverty in Jornal Nacional News: one
reflection from the perspective of popular class families receivers
Ti s s a n a N o g u e i r a P e r e i r a 1
Resumo: O objetivo desse trabalho é refletir sobre a percepção dos receptores
de três famílias de classe popular, seguindo os critérios de Quadros e Antunes
(2001), residentes na região Oeste de Santa Maria, Rio Grande do Sul, acerca da
estereotipização da pobreza no telejornal Jornal Nacional, da Rede Globo. A
metodologia para observar esta interpretação dos receptores foi a etnografia
crítica da recepção (RONSINI, 2011) realizada na casa das famílias durante o
horário do telejornal. O eixo teórico deste artigo é os Estudos Culturais latino-americanos para analisar a recepção do telejornal. Além dos conceitos de representação social e representação midiática que adequa-se para elucidar como os
receptores percebem a “imagem” da classe popular no telejornal. Os conceitos
de estereótipo conforme Freire Filho (2004) e de representação, alteridade e
diferença de Hall (1997) também serão problematizados nesse texto. Assim, os
resultados apontam que tais receptores acreditam que o Jornal Nacional mostra, na maioria das vezes, a representação da classe popular aliada às notícias
“ruins” como as de catástrofes, acidentes, violência e drogas. Ou seja, para os
informantes, a pobreza é estereotipada e marcada pela diferenciação das classes
mais altas que são mostradas no telejornal.
Palavras-chave: Recepção. Classe popular. Estereótipo. Representação. Telejornal.
Abstract: The purpose of this article is reflect about the perception of tree popular class families, follow the Quadros e Antunes (2001) criteria, which live in West
region of Santa Maria, in Rio Grande do Sul, about the stereotyping of poverty
in Jornal Nacional news, of Rede Globo. The methodology used to observe this
interpretation of the receivers was the critical ethnography of reception, which
was proposed by Ronsini (2010, p. 2) carried out in the families home during the
television program exhibition. For this, the theoretical axis of the research is the
Latin American Cultural Studies for analyze the news reception. Besides, the
social representation and the media representation concepts which are appropriate for elucidate how the receivers realize the “image” of the popular class
on news. The stereotype concept by Freire Filho (2004) and the representation
concept by Hall (1997) are also problematized in this text. Therefore, the results
show that the receivers believes that the news shows mostly the popular class
1. Mestranda, UFSM, [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4685
A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
representation associated with “bad” news such as disasters, accidents, violence
and drugs. In the other words, for the informants, the poverty is stereotyped and
marked by the differentiation of the higher classes that are shows in the news.
Keywords: Reception. Popular class. Stereotype. Representation. News.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
PERSPECTIVA DOS Estudos Culturais latino-americanos considera a relação entre
A
a sociedade e a cultura, sendo esta entendida como “significados e práticas que
move e constitui a vida social” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 26). Reconhecemos ainda
a relação recíproca entre a cultura e a comunicação, e por isso pesquisar esta a partir
da cultura exige uma aproximação antropológica, “pois o cotidiano tem valor histórico
para compreender a sociedade” (JACKS E ESCOSTEGUY, 2005, p. 66). O principal interesse dos estudos culturais latino-americanos é ver e investigar os cruzamentos entre
as estruturas sociais e as formas e práticas culturais, por isso, a análise dos meios de
comunicação é feita problematizando o poder e a hegemonia e sua relação com a cultura
e os processos políticos.
O processo comunicativo é composto pela produção, circulação, distribuição/
consumo, recepção e reprodução2. Porém, optamos por realizar um recorte, ou seja,
por estudar apenas uma das partes desse complexo processo que é a comunicação, por
isso a proposta aqui é refletir a recepção de telejornal. Acreditamos que, em estudos
empíricos, não é possível trabalhar com circuitos inteiros do processo comunicativo,
uma vez que “para analisar a recepção (nas condições materiais com que produzimos conhecimento), precisamos recortá-la, pois, do contrário, teríamos uma pesquisa
sobre as potencialidades da relação entre produção/produto e recepção/consumo”
(RONSINI, 2011, p. 80-81).
O processo receptivo não é apenas o momento em que se está assistindo a televisão,
mas um processo que ocorre antes e depois dessa ação, por isso, deve ser analisado
dentro de um espaço mediado. Cada sujeito lê e interpreta as mensagens dos meios de
comunicação de acordo com sua vivência na sociedade e “os diferentes modos de ler
as mensagens estão muito ligados às tradições, preocupações e expectativas da vida
prática de cada um” (LOPES, 1997. p. 166). Lopes, Borelli e Resende (2002, p.32) afirmam
que “a recepção é [...] um contexto complexo, multidimensional, em que as pessoas
vivem o seu cotidiano. Ao mesmo tempo, ao viveram seu cotidiano inscrevem-se em
relações de poder estruturais e históricas, as quais extrapolam suas práticas cotidianas”.
Os receptores, ao assistirem à televisão, neste caso o telejornal, levam para frente desta
toda a sua cultura, sua posição na sociedade e seus contextos sociais.
Assim, entendemos que a classe social é importante para compreendermos a maneira
pela qual os receptores produzem sentido e elaboram suas representações a partir do
que é veiculado na mídia. Em conformidade com Ronsini (2007, p. 71), “a classe como
quadro de referência segundo o qual o indivíduo representa o mundo e a si mesmo [...]”.
2. Autores como Martín-Barbero e Canclini acreditam que não aconteça apenas a reprodução por parte dos
receptores, existindo também a possibilidade de transformação, de produção de um sentido novo. Assim,
de uma produção simbólica pelo receptor, tendo em vista que ele é ativo.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
A autora (2007, pg. 22) 3 considera que “a posição ocupada por uma classe no espaço
social é definida pela posição que ocupa nos diferentes campos – econômicos, social
e cultural”. O termo classe é “adequado para definir a segmentação socioeconômica e
cultural da sociedade brasileira, que se caracteriza pela extrema concentração da riqueza
e pela desigualdade na distribuição de renda” (RONSINI, 2007, p.23).
Este artigo irá ater-se à classe popular, já que acreditamos, em concordância com
Ronsini (2007), que a partir do conceito gramsciano de hegemonia, a dominação simbólica é consentida e constantemente reproduzida em favor daqueles que dominam,
ou seja, as classes mais altas, com a colaboração daqueles que são dominados, ou seja,
as classes mais baixas ou populares. Considera-se assim, que existe uma luta simbólica em torno de valores de cada cultura de classe, já que estas acabam se relacionando
entre si. Falar em classe popular no Brasil significa abordar questões relacionadas ao
modo de vida, ao cotidiano, às experiências vividas por aqueles menos favorecidos em
decorrência da desigualdade na distribuição de renda causada pela atual fase do capitalismo avançado na qual vivemos. Estamos, então, falando da maioria da população
do nosso país, isso porque, segundo Quadros (2008, p. 2), a classe popular compõe 85,6%
da população brasileira, já que, dos indivíduos que declaram rendimentos, 28,2% são da
“baixa classe média”, 37,3 %, da “massa trabalhadora” e 20,1% da população é formada
por “miseráveis”. Esta classificação foi feita a partir da posição do membro mais bem
situado da família.
Aqui iremos pensar sobre a classe popular e a representação da pobreza no telejornal. O estudo de tal programa é relevante, porque de acordo com a primeira “Pesquisa
Brasileira de Mídia – Hábitos de consumo de mídia pela população brasileira” 4, divulgada em fevereiro do ano passado e encomendada pela Secretaria de Comunicação da
Presidência da República, os telejornais são considerados, em maior proporção, como
a programação televisiva mais relevante, com percentual de 80%. E o telejornal mais
citado é o Jornal Nacional da Rede Globo, veiculado de segundas aos sábados, com
percentual de 45%, sendo que o segundo citado atingiu um percentual de 16%. Esta
importância do telejornal para os brasileiros também é ressaltada por Vizeu (2008, p.
12) quando afirma que “o telejornalismo representa um lugar de referência para os
brasileiros muito semelhante ao da família, dos amigos, da escola, da religião [...]”. O
autor afirma que o telejornal é relevante para a construção social da realidade e causa
uma sensação de segurança, em função do sentimento que as pessoas têm de estarem
informadas do que acontece no mundo.
Compreendemos que as representações midiáticas muitas vezes permitem aos
sujeitos elaborarem, interpretarem e até se apropriarem das inúmeras representações
apresentadas pela mídia. Assim, “as representações que circulam na mídia são construídas a partir de um processo dinâmico em que a mídia influencia e é influenciada pela
sociedade” (SILVA, 2011, p. 47). Quando falamos em representação, estamos também
falando de diferença, alteridade e poder, assim também de estereotipização do outro.
Ou seja, o poder que a representação, segundo Hall (1997), tem de marcar, atribuir e
3. Conceito de classe social a partir de Bourdieu (1987).
4. Pesquisa Brasileira de Mídia – Hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Fevereiro de 2014. http://
de.slideshare.net/BlogDoPlanalto/pesquisa-brasileira-de-mdia-2014
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4687
A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
classificar o outro. Freire Filho (2004) afirma que os estereótipos “contêm julgamento e
pressupostos tácitos ou explícitos a respeito de se comportamento, sua visão de mundo
ou história” (FREIRE FILHO, 2004, p. 47).
Tendo em vista esses apontamentos teóricos, este texto se propõe a refletir sobre
a percepção dos receptores de famílias de classe popular acerca da estereotipização
da pobreza no telejornal Jornal Nacional. Ilustramos as teorias aqui expostas com os
dados obtidos em uma etnografia crítica da recepção realizada durante oito meses com
três famílias de classe popular da Vila Renascença, localizada na região Oeste de Santa
Maria5, no Rio Grande do Sul.
AS REPRESENTAÇÕES E O ESTEREÓTIPO
Conceituar representação é algo complexo, pois esta está intimamente relacionada
com a subjetividade dos indivíduos, com a produção de sentido que eles dão não só as
coisas, mas também às experiências. A representação é algo intangível, “são sentidos
que damos às coisas, posições muito fortes que compartilhamos no coletivo e que nos
afetam reciprocamente” (ESCOSTEGUY, 2006, p. 74). As representações ainda podem
ser entendidas como o “sinônimo de signos, imagens, formas ou conteúdos de pensamento”, a “atividade representacional dos indivíduos”, ou ainda como o “conjunto de
ideias desenvolvidas por uma sociedade” (FRANÇA, 2004, p. 14).
Podemos dizer que o conceito de representação tem uma forte ligação com
as identidades dos sujeitos, como conclui Silva (2011, p. 47), quando afirma que “as
representações estão intimamente ligadas ao processo de constituição de identidades”,
é através das representações que a identidade adquire sentido, além disso, a identidade
está relacionada às atividades sociais em que os indivíduos estão envolvidos.
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos
quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo
que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como um
processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos
nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu
poderia ser? Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2007, p. 17).
Portanto, as representações podem ser entendidas como um conjunto de sistemas
que permitem a constituição, o posicionamento dos sujeitos em relação às coisas e os
outros sujeitos, as convicções desses sujeitos para que possam viver em sociedade. E é por
isso que o conceito de representação social desenvolvido por Moscovici (2003) se torna
indispensável na reflexão sobre representação. Quando Moscovici (2003) pondera sobre
as representações sociais, está preocupado com o dinamismo do processo que envolve
estas representações sociais, com a pluralidade destas porque “as representações sociais
5. A classificação social dos informantes foi definida conforme Quadros e Antunes (2001), na qual as famílias
são classificadas a partir do membro melhor situado economicamente. Neste artigo, consideramos a classe
social não só como um fator socioeconômico evidenciado por indicativos como renda e escolaridade, mas
também como um aspecto sociocultural.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
4688
A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
assumem um caráter móvel, plástico e circulante. Ao mesmo tempo em que elas surgem,
podem desaparecer” (MORIGI, 2004, p. 4). As representações sociais estão relacionadas
com a comunicação, sendo esta um componente fundamental na construção destas,
pois “são [...] fenômenos específicos que estão relacionados com um modo particular
de compreender e de se comunicar – um modo que cria tanto realidade quanto senso
comum” (MOSCOVICI, 2003, p. 49).
Então, as representações sociais podem ser relacionadas aos sentidos que são
elaborados e compartilhados socialmente com o objetivo de construir uma realidade
comum em que os indivíduos possam se comunicar. É por isso que as representações
podem ser chamadas de fenômenos sociais e se deve considerar, sempre, os contextos
onde estas são criadas, reproduzidas e compartilhadas. Moscovici (2003) pontua que
os sujeitos são produtores constantes de suas representações e que estas vão modelar
comportamentos. Morigi (2004, p. 11) valida essa noção, quando complementa que “as
representações sociais estão assentadas em valores e princípios morais nos quais a
sociedade, os grupos e os indivíduos se guiam para construir e reconstruírem os sentidos
de suas ações”. É importante ressaltar que, para os sujeitos viverem em sociedade, eles
precisam compartilhar “quadros de sentido, compreensões e ideias que organizam e
dão coerência à vida social” (FRANÇA, 2004, p. 16).
As representações estão intimamente ligadas a seus contextos históricos e sociais por um
movimento de reflexividade – elas são produzidas no bojo de processos sociais, espelhando
diferenças e movimentos da sociedade; por outro lado, enquanto sentidos construídos e
cristalizados, elas dinamizam e condicionam determinadas práticas sociais. Na sua natureza
de produção humana e social, têm uma dimensão interna e externa aos indivíduos, que
percebem e são afetados pelas imagens (passam por processos de percepção e afecção) – e,
desses processos, as devolvem ao mundo na forma de representações (FRANÇA, 2004, p. 19).
Por isso, refletir sobre a representação social, significa refletir sobre os modos de
pensamento e sobre toda uma lógica de uma sociedade em um determinado momento.
Minayo (1995, p. 108) considera que as representações sociais “se manifestam em palavras,
sentimentos e condutas e se institucionalizam, portanto, podem e devem ser analisadas
a partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais”. Ainda segundo
a autora, as representações sociais podem ser tão abrangentes que podem revelar a visão
de mundo de toda uma época, de uma sociedade como um todo e que, muitas destas
representações podem ser, inclusive, inconscientes.
As Representações Sociais não são necessariamente conscientes. Podem até ser elaboradas
por ideólogos e filósofos de uma época, mas perpassam o conjunto da sociedade ou de determinado grupo social, como algo anterior e habitual, que se reproduz a partir das estruturas
e das próprias categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos (MINAYO, 1995, p. 109).
Com isso, conclui-se que representar pode ser um esforço ininterrupto de atribuição
de sentido a tudo que cerca os indivíduos, ou seja, as coisas, os outros indivíduos, enfim,
a vida em sociedade como um todo. E os meios de comunicação têm grande importância nessa produção de sentidos que transita pela sociedade, conforme Morigi (2004), os
meios tem um papel fundamental para as representações sociais e não são mais apenas
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
transmissores de mensagens e conteúdos, pois “além de veicularem informações aos
cidadãos eles, no processo da comunicabilidade da cultura e seus valores, são responsáveis pela produção dos sentidos que circulam na sociedade” (MORIGI, 2004, p. 3).
Nos dias de hoje, não podemos deixar de levar em consideração as representações
midiáticas, que muitas vezes permitem aos sujeitos elaborarem, interpretarem e até se
apropriarem das inúmeras representações apresentadas pela mídia.
É impossível escapar à presença, à representação da mídia. Passamos a depender da mídia,
tanto impressa como eletrônica, para fins de entretenimento e informação, de conforto e
segurança, para ver algum sentido nas continuidades da experiência e também, de quando
em quando, para as intensidades da experiência (SILVERSTONE, 1999, p. 12).
Portanto, apesar de sabermos, com a evolução dos estudos em comunicação, que
os sujeitos não são passivos em relação às mensagens da mídia, é possível afirmar que
esta ainda colabora para a constituição das representações. De acordo com Silva (2011,
p.47), “as representações que circulam na mídia são construídas a partir de um processo
dinâmico em que a mídia influencia e é influenciada pela sociedade”. Kellner (2001, p.
9) ressalta que “a cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas
constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de
‘nós’ e ‘eles’”. Kellner (2001, p. 52) utiliza a expressão “cultura da mídia” para designar
“tanto a natureza quanto a forma das produções da indústria cultural (ou seja, a cultura)
e seu modo de produção e distribuição (ou seja, tecnologias e indústrias da mídia)”.
Então, estas representações midiáticas são importantes para a produção de sentido
dos indivíduos da sociedade globalizada em que vivemos, pois, a mídia já faz parte do
cotidiano, tanto dos indivíduos quanto dos grupos. Conforme Silverstone (2011, p. 20),
é “uma presença constante em nossa vida diária, enquanto ligamos e desligamos, indo
de um espaço, de uma conexão midiática, para outro. Do rádio para o jornal, para a
Internet”. É a mídia que norteia as realidades cotidianas das pessoas e por isso que ela
é tão fundamental na constituição das representações.
É no mundo mundano que a mídia opera de maneira amis significativa. Ela filtra e molda
realidades cotidianas, por meio de suas representações singulares e múltiplas, fornecendo
critérios, referências para a condução da vida diária, para a produção e a manutenção do
senso comum (SILVERSTONE, 2011. p. 20).
A mídia apresenta uma série de representações que acabam possibilitando aos
indivíduos processos de identificação, estando essa relacionada tanto com a constituição
como até a transformação da identidade das pessoas, é por essa razão que as identidades
estão intimamente ligadas às representações. Kellner (2001, p. 10) afirma que a cultura
da mídia “molda a vida diária, influenciando o modo como as pessoas pensam e se
comportam, como se veem e veem os outros e como constroem sua própria identidade.
Portanto, a presença cada vez mais avassaladora da mídia estabelece a relação entre
comunicação e identidade, identidade esta que não é mais estável, coesa e fixa e sim
instável, fragmentada e mutável.
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
Numa cultura pós-moderna da imagem, as imagens, as cenas, as reportagens e os textos
culturais da mídia oferecem uma enorme quantidade de posições de sujeito que, por sua
vez, ajudam a estruturar a identidade individual. Essas imagens projetam modelos sociais
e sexuais, formas apropriadas e inapropriadas de comportamento, estilo e moda, além
de comportarem engodos sutis que levam à identificação com certas identidades e a sua
imitação, enquanto se evitam outras. Em vez de desaparecer na sociedade pós-moderna,
a identidade está simplesmente sujeita a novas determinações e a novas forças, ao serem
oferecidas novas possibilidades, novos estilos, novos modelos e novas formas (KELLNER,
2001, p. 330).
No entanto é importante ressaltar que os sujeitos não são passivos em relação à
mídia, as práticas cotidianas, as trajetórias pessoais dos sujeitos juntamente com a maneira como se apropriam, constroem sentidos a partir da mídia, são essenciais na construção
dessa identidade. Para Simões (2010, p. 5), “é a experiência que funda as representações,
ao mesmo tempo em que estas podem proporcionar novas experiências aos indivíduos”.
Kellner (2001, p. 11), no entanto, deixa claro que os sujeitos podem resistir às mensagens e
significados expostos na mídia e considerados dominantes, criando assim suas próprias
leituras, interpretações e apropriações de acordo com sua cultura. Ressalta ainda que
“a própria mídia dá recursos que os indivíduos podem acatar ou rejeitar na formação
de sua identidade em oposição aos modelos dominantes”. Entende-se por dominante
neste texto, a concepção de Gramsci de hegemonia, onde a dominação simbólica nas
sociedades é consentida e constantemente reproduzida em favor daqueles que dominam,
ou seja, as classes mais altas, com a colaboração daqueles que são dominados, ou seja,
as classes mais baixas ou populares.
Entre todas as formas de cultura da mídia, destaca-se a televisão como uma das mais
importantes até hoje na constituição das representações e das identidades. Para Kellner
(2001, p. 304), ela “desempenha papel fundamental na reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos. [...] assume algumas
das funções tradicionalmente atribuídas ao mito e ao ritual”. Portanto, a televisão é um
veículo essencial para se analisar as representações midiáticas, a produção de sentido
dos indivíduos a partir da mídia, as significações e ressignificações que fazem dessas
representações com base em suas experiências e também naquelas apresentadas pela
mídia. Morigi (2004, p. 9) assegura que “o ‘real’, socialmente produzido pela mídia é
produto de uma série de interações e movimentos de sentidos”.
O conceito de representação está diretamente ligado ao de estereótipo. Para Hall
(1997, p. 429) os estereótipos reduzem as pessoas a diversas características simples,
essenciais e que são representadas como fixas por parte da natureza. Para Freire Filho
(2004, p. 47) os estereótipos operam como uma imposição de um sentido de organização
ao mundo social, estes
[...] ambicionam impedir qualquer flexibilidade de pensamento na apreensão, avaliação
ou comunicação de uma realidade ou alteridade, em prol da manutenção e da reprodução
das relações de poder, desigualdade e exploração; da justificação e da racionalização de
comportamentos hostis [...]”.
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
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Ainda sobre a correlação entre os estereótipos e as relações de poder, Hall (1997, p.
430) afirma que a estereotipização tende a acontecer onde “existen grandes desigualdades
de poder. El poder es usualmente dirigido contra el grupo subordinado o excluído”. Classifica-se, assim, as pessoas conforme uma norma e constrói-se o excluído como “outro”,
colaborando, assim, com o que Gramsci chamou de luta pela hegemonia. E esta luta é
caracterizada pela constante intenção das classes dominantes de moldar “toda a sociedade de acordo com sua visão de mundo, seu sistema de valores e sensibilidade, de
modo que sua ascendência comande, arregimente um consentimento amplo e pareça
natural, inevitável e desejável para todos” (FREIRE FILHO, 2004, p. 48). Segundo Hall
(1997, p. 430), a estereotipização demarca e mantém a ordem social e simbólica, estabelecendo “uma frontera simbólica entre lo ‘normal’ y lo ‘desviante’, lo ‘normal’ y lo ‘patológico’,
lo ‘aceptable’ y lo ‘inaceptable’, lo que ‘pertenece’ y lo que no ‘pertenece’ o lo que es ‘Otro’, entre
‘internos’ y ‘externos’, nosotros y ellos”. Portanto, a estereotipização exige sempre uma
relação binária, de alteridade, de diferença, sendo estas constantemente demarcadas
em relação ao outro.
O JORNAL NACIONAL E A ESTEREOTIPIZAÇÃO DA POBREZA
Consideramos que o telejornal Jornal Nacional representa constantemente através
de suas notícias6, colaborando assim, aliada à experiência dos receptores, para produção
de sentidos e elaboração das mais variadas representações por parte destes receptores.
A nossa intenção aqui não é realizar uma análise do texto do telejornal ou das
notícias por ele vinculadas, e sim, analisar a interpretação dos receptores acerca das
notícias em que aparece a classe popular.
Quanto à representação da classe popular, classe pela qual pertencem os nossos
informantes, ao longo da etnografia ficou claro que, para eles, tal classe é representada
no Jornal Nacional de maneira não satisfatória porque os “pobres” aparecem pouco
no telejornal, e afirmam que a maioria das notícias do telejornal é sobre as “pessoas
ricas” e com entrevistados pertencentes às classes altas, como advogados, engenheiros,
bancários, políticos, empresários e jornalistas. Muitas vezes, manifestam o desejo de
saber, através do telejornal, “de onde vem a riqueza deles”, pois, para os informantes, os
“ricos” possuem boa condição financeira porque tiveram “oportunidades”, não precisaram trabalhar em detrimento dos estudos ou ainda já “nasceram em berço de ouro”,
repetindo a dicotomia entre “rico” e “pobre” que Caldeira (1984) observou.
Os informantes reforçam a diferença entre os “ricos” e os “pobres”, entre o “nós” e
o “eles”, ou seja, “olhar a sociedade significa perceber imediatamente uma desigualdade
básica: aquela que opõe a nós, os pobres, a eles, os ricos” (CALDEIRA, 1984, p. 150).
Para os informantes, apesar da maioria do Brasil ser composta por pessoas com
menor poder aquisitivo, estas são mostradas no JN apenas associadas às reportagens
“ruins”. Conforme os informantes, estas reportagens são sobre morte, acidentes, miséria,
violência, drogas, problemas relacionados ao SUS, catástrofes naturais: “Assim, quando entrevistam um pobre é quando dá enchente na vila, quando entra água na casa...
6. Utilizamos aqui o termo notícia porque corroboramos com a perspectiva de Jensen (1995, p. 75-90) em
que emprega tal termo para designar esta como o gênero do telejornalismo e que é entendida como instituição
social e forma cultural.
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4692
A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
quando acontece uma desgraça no causo [...] só o pobre na dificuldade mesmo” (Homem,
37 anos, auxiliar de carpinteiro). A maioria dos informantes ainda afirma que muitas
vezes o JN “exagera” quando mostra os “pobres”: “Muitas vezes eles falam mentira, são
injusto com os pobres, e se for negro então pior! Principalmente nessas reportagens de
morte e violência” (Mulher, 44 anos, empregada doméstica). Outro exemplo é a fala de
um jovem, de 21 anos que é auxiliar mecânico:
Por exemplo, assim, quando algum pobre comete algum crime que não é tão grave, mas daí
já aproveitam e aumentam bastante sabe... Dão bem mais destaque para aquilo. Pergunto
que tipo de crime que ele está falando que não acha tão grave. O jovem responde: Sei lá...
digamos que o cara furtou que seje para comer assim...só que daí no caso o cara vai lá furtar
para comer e eles vão lá e aumentam e dizem que agrediu e tal... mascaram sabe? Ou então
mostram a polícia nem sempre do jeito que são... como se chegassem numa boa... só que
eles chegam na boa só quando é para aparecer no jornal e muitas vezes não são assim, eles
chegam estúpidos, agredindo e tal. E tem outra não é só pobre que é envolvido em crime,
tinham que mostrar igual quando tem gente grandona envolvida como políticos (Jovem,
21 anos, auxiliar mecânico).
São justamente essas reportagens sobre violência, acidentes, tragédias e problemas
na saúde do Brasil que mais despertam o interesse dos informantes das três famílias.
Ainda assim, a maioria dos integrantes das famílias afirma que esse tipo de reportagem deve continuar sendo mostrada no JN para “dar exemplo” às pessoas, tanto para
os que sofrem violência, por exemplo, quanto para os que praticam. E acrescentam que
o telejornal só “mostra porque existe, porque é a verdade”. A ambiguidade entre o JN
mostrar a “realidade, a verdade” e “mascarar”, “não mostrar só a verdade” está sempre
presente nas falas de todos os informantes.
Muitos dos integrantes das famílias também ressaltam que os “pobres” ainda aparecem em notícias sobre trabalho, sendo este sempre “manual”, exigindo “força física”
e “superação”, o que é visto de maneira positiva pelos receptores, já que todos exercem
esse tipo de trabalho, são domésticas, trabalhadores da construção civil, mecânicos,
etc. Nesse caso, há uma identificação dos informantes com as notícias que envolvem
trabalho no Jornal Nacional.
A maioria dos informantes ressalta que as pessoas da classe popular deveriam ter
mais espaço no telejornal, aparecendo também associadas às reportagens “boas”, como
por exemplo, aquelas que exaltam o trabalhador brasileiro como “batalhador”, aquele
que tem bons exemplos a dar para a população, que é “feliz”, que “cuida da família”.
Contam ainda que gostariam de ver “as conquistas” da classe popular no telejornal, como
por exemplo, quando conseguem construir a casa própria. Além do mais, gostariam
que os “pobres” dessem mais entrevistas sobre outros assuntos que não os já citados
associados às notícias “ruins”: “Nós não temo voz ativa sabe? Porque é aquilo que eles
falam e pronto! Acho que eles não indagam assim as pessoas para dar sua verdadeira
opinião” (Jovem, 21 anos, auxiliar mecânico). Para uma mulher, de 33 anos, cuidadora
de idosos, o fato do telejornal apenas mostrar as “coisas ruins” não mudará a vida dos
“pobres”: “Eles mostram a desgraça alheia, mas também não ajudam em nada! Deviam
mostrar e cobrar depois, cobrar uma mudança, sabe?”. Os informantes também declaram
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
que gostariam de ver no telejornal mais reportagens informativas que auxiliassem os
“pobres”, como as que tratam “sobre as leis do cidadão, os nossos direitos”.
Apesar de manifestarem esse desejo de serem associados às notícias “boas”, há certa
resignação sobre a condição da classe popular no Brasil e sobre como esta é representada
no JN, corroborando então com a hegemonia, antes explicada. Isto pode ser exemplificado
na fala de uma das informantes quando vai ao ar uma notícia sobre uma investigação
do Ministério Público de São Paulo sobre a compra de tênis de má qualidade para os
alunos de escolas municipais: “Ham, claro né, tinha que ser tênis mal feito para dar para
os pobres, é sempre assim, as crianças não tem o que usar e quando ganham, ganham
essas porcarias mesmo, tá louco!” (Mulher, 38 anos, empregada doméstica). Isto também
pode ser exemplificado na fala de um homem, de 37 anos, auxiliar de carpinteiro:
Não vai adiantar nada pobre ser mais entrevistado no jornal...mas capaz... (Risos). Bei... tu
acha que eles vão dar bola, Tissiana? Pergunto a quem ele se refere quando fala “eles”. O
homem (37) responde: Os políticos mesmo! Não vai adiantar nada... pobre tem que ficar no
lugar dele, no lugar certo dele...não vai adiantar nada tu dar o microfone pro pobre falar...
mas capaz! (Homem, 37 anos, auxiliar de carpinteiro).
Tal sentimento de conformismo dos informantes perante o lugar que o pobre ocupa
na sociedade brasileira também foi descrito por Caldeira (1984, p. 159):
[...] os entrevistados estão falando não do valor das pessoas pobres ou das pessoas ricas
enquanto pessoas, mas do valor dos pobres e dos ricos em geral, tomando como referência
uma instância que é o conjunto da sociedade: o governo. A este nível, quando quem julga
não são mais os pobres, mas o poder da sociedade, eles sabem que não são eles a ter valor,
mas os ricos. E, no caso, não ter valor significa não ter voz, não ser ouvido, não ser atendido
por quem deveria idealmente atender a todos.
A maioria dos informantes ainda relata que grande parte das reportagens do JN são
sobre política, o que, para eles, não é adequado porque pensam que o telejornal deveria
ter notícias “mais variadas”, que mostrassem “lugares bonitos”, “direitos do cidadão”,
“bons exemplos de pessoas que ajudam e são ajudadas” e “mais dicas sobre o dia a
dia”. Justificam que gostariam de ver com maior frequência este tipo de reportagens
porque afirmam que “o jornal influencia muito as pessoas” e, se mostrasse esses assuntos
poderia, “facilitar a vida da gente”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nenhum momento da observação os informantes declaram que a classe popular é representada de maneira estereotipada no Jornal Nacional, eles não utilizam esse
termo, porém, deixam clara a definição de estereótipo quando dizem que os “pobres”
aparecem de maneira negativa no telejornal e que a diferença entre os “pobres” e os
“ricos” é sempre marcada e reforçada pelo telejornal. Entendemos assim, que apesar
de não usarem a palavra estereótipo, os informantes, se valem do conceito para manifestarem como percebem a representação da pobreza no JN. Percebemos também que
essa construção da representação da pobreza de forma estereotipada acarreta também
uma vitimização desses receptores, não só em relação à representação deles mesmos
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A estereotipização da pobreza no Jornal Nacional: uma reflexão sob a ótica dos receptores de famílias de classe popular
Tissana Nogueira Pereira
como pertencentes a uma classe, mas também em relação à “imagem” destes perante
os “outros”, aqueles pertencentes à classe alta. Corroborando com a interpretação dos
nossos informantes, Amaral (2004, p. 64-65) já havia concluído que “as fontes populares são apenas lembradas quando ocorre alguma catástrofe, protesto ou acidente que
as envolva. Somente os grupos formalmente constituídos são terminais rotineiros de
recolha de informação”. A autora afirma que atualmente as fontes populares ganharam
mais notoriedade no jornalismo, mesmo assim, o uso destes entrevistados nas notícias
ainda é regulado e por isso ainda aparecem pouco, se comparados com os especialistas,
as fontes oficiais.
Lago (2010, p. 12) assegura que “o campo jornalístico sustenta entre seu arcabouço
de valores conceitos como o de responsabilidade social, interesse público, compromisso
com os valores democráticos e com a cidadania”. Porém ressalta que o jornalismo ainda
precisa considerar a diferença e a alteridade sem reduzi-las a estereotipização: “sua práxis
carece de ferramentas adequadas para o pleno cumprimento deste horizonte conceitual,
a começar por uma impossibilidade estrutural de apreender e acolher o Outro em toda
sua alteridade, sem reducionismos e estereótipos. Sem esta acolhida, não há democracia
efetiva, nem cidadania plena” (Idem).
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4696
Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira:
consumo, representação e identidade homossexual
Homosexuality reception in Brazilian television dramaturgy:
consumption, representation and homosexual identity
J o s é A p a r e c i do O l i v e i r a 1
Resumo: Este estudo buscou avaliar a representação e discurso dos personagens
homossexuais da teledramaturgia brasileira e sua relação com as demandas
da comunidade homossexual por tolerância e emancipação. A metodologia
inclui dois enfoques analíticos: o primeiro centra-se na produção, a partir dos
pressupostos da Análise do Discurso e dos Estudos Queer, verificando os aspectos
textuais do discurso e representação dos personagens gays das telenovelas.
O segundo centra-se na circulação e consumo, mediante os pressupostos dos
Estudos de Recepção, para avaliar como os receptores se apropriam do discurso
e representação homossexual da telenovela. Esse segundo enfoque utilizou um
instrumento quantitativo e uma entrevista qualitativa semidirigida, aplicados a
uma amostra de 402 participantes, jovens universitários hétero e homossexuais.
Quanto às análises discursivas, os resultados demonstram uma mudança no
padrão de representação dos personagens homossexuais, deslocando-se do
padrão heteronormativo para uma representação mais humanizada, seguindo
o momento histórico de maturidade política da sociedade e a aprovação de
marcos legais favoráveis aos sujeitos homossexuais. Quanto aos estudos de
recepção, os resultados confirmam o potencial pedagógico da telenovela em
ampliar a discussão sobre a questão homoafetiva; auxiliar o sujeito homossexual
em aceitar sua identidade sexual e encorajá-lo a assumir sua orientação sexual.
Palavras-chave: Telenovela; Homoafetividade; Análise de Discurso; Estudos
de Recepção.
Abstract: This study aims to evaluate the representation and discourse of gay
characters in Brazilian soap operas and their relationship with the demands of
the homosexual community in their struggle for tolerance and emancipation.
The methodology includes two analytical approaches: the first focuses on the
production, from the assumptions of Discourse Analysis and Queer Studies,
checking the textual aspects of discourse and representation of gay characters in
soap operas. The second approach focuses on the circulation and consumption,
by the assumptions of Reception Studies, to know how the receivers perceive
the discourse and representation of homosexual soap opera. This second approach has a quantitative instrument and a semistructured qualitative interview,
1. Jornalista. Mestre e Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo.
[email protected]
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4697
Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
José Aparecido Oliveira
applied to a sample of 402 participants, heterosexual and homosexual. From
discourse analyzes, the results demonstrate a change in the representation of
gay characters, moving the heteronormative for a more humanized standard
representation, following the historical moment of political maturity of society
and the introduction of legal frameworks favorable to homosexual subjects. From
Reception Studies, the results confirm the pedagogical potential of the soap
opera to broaden the discussion on homoaffective question; assist the gay guy to
accept his sexual identity and encourage him to disclose his sexual orientation.
Keywords: Soap opera; Homoafetividade; Discourse Analysis; Reception Studies.
INTRODUÇÃO
HOMOAFETIVIDADE TOMOU de vez os espaços midiáticos no Brasil com o
A
aumento da representação de personagens gays na ficção televisiva, na maior
produção de filmes do cinema nacional, no lançamento de diversos títulos
afins do mercado editorial, na dramaturgia, e presença nas diferentes editorias de
jornais, revistas, programas de televisão, etc. Essa visibilidade coincide com certo
amadurecimento político da sociedade brasileira e profundo avanço do movimento
LGBT. Entre os homossexuais, questiona-se se essa visibilidade e debate vão permitir
maior tolerância e dignidade da condição homossexual, com diminuição do preconceito e violência, ou se apenas irá reforçar os padrões heteronormativos vigentes. No
entanto, essa discussão se alinha a um momento em que o movimento gay capitaliza
lentas, porém significativas conquistas no campo do Direito como o reconhecimento
da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, referendada
pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013.
O objetivo deste estudo foi verificar se o aumento dessa representação homossexual contribui para a reafirmação das demandas da comunidade homossexual.
Foram exibidos trechos de seis telenovelas da Rede Globo: Mulheres Apaixonadas
(2003), Senhora do Destino (2004-2005), América (2005), Amor e Revolução (2011-2012),
Sangue Bom (2013) e Amor à Vida (2013-2014) para os 402 participantes da amostra.
Inicialmente foi feita uma Análise de Discurso nos trechos de telenovela a partir de
categorias conceituais dos Estudos Queer. Seguiu-se uma pesquisa de recepção após
a exibição dos trechos, utilizando uma entrevista semidirigida e um questionário de
autopreechimento.
Este estudo contou com a participação voluntária de 402 participantes, residentes
na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. Destes, 69,2% são do sexo feminino
(278 mulheres; 124 homens), com idade média de 24,97 anos (DP=7,52). 75,1% (302) são
solteiros, 18,9% (76) casados e 6% (24) vivem em união civil homoafetiva. Quanto à
identidade sexual agregada, a maioria são heterossexuais (71,7%), sendo 55% mulheres e
16,7% homens. Obtivemos o expressivo número de 114 indivíduos homossexuais – 28,4%
do total da amostra. Desses 47 são homens homossexuais (11,7%), 31 lésbicas (7,7%), 30
bissexuais (7,5%), dois transexuais (0,5%) e quatro indivíduos indicaram ter outra identidade sexual (1%), o que caracteriza o amplo espectro da homoafetividade.
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
José Aparecido Oliveira
Figura 1. Cruzamento de dados / identidade sexual agregada x religião
Quadro Teórico
A Teoria da Recepção, com foco no modelo teórico das mediações de Orozco Gómez
(2005), são fundamentais como perspectivas teórico-metodológicas para avaliar o discurso da construção da identidade homossexual, bem como a recepção/consumo que
os indivíduos fazem da representação dos casais homossexuais na teledramaturgia.
Essa escolha por vincular as duas perspectivas se justifica quando nos voltamos aos
resultados das pesquisas sobre mídia e homoafetividade. Tais estudos ainda divergem
sobre os efeitos da representação de homossexuais no cinema e na teledramaturgia
quando o assunto é fomentar ou combater a homofobia (COLLING, 2007; MORENO,
1995; PERET, 2005).
Estando a AD restrita ao campo da produção e circulação de sentidos, e a Teoria da
Recepção, que emergiu dos Estudos Culturais, esta pesquisa parte da concepção de que é
possível unir diferentes abordagens teórico-metodológicas, evitando cair nas armadilhas
que destacam as ambiguidades ou mesmo contradição em unir perspectivas diferentes.
Esse tipo de opção costuma-se denominar de “triangulação metodológica” (SILVA, 1998,
p.167; FLICK, 2005)2 ou “enfoque integrado” (PORTO, 2003, p. 18), por entender a necessidade de articular diferentes perspectivas teóricas (qualitativas e quantitativas) numa
mesma investigação. De modo similar, um enfoque integral da audiência, unindo os
Estudos Culturais e a Análise de Textos, é a proposta de Orozco (2005, p. 28) para estudar
a interação entre a TV e o telespectador dentro do complexo processo de recepção em
suas amplas mediações.
2. O termo “triangulação” começou a ser usado por Campbell e Fiske (1959), que se propuseram completar
ou testar empiricamente os resultados obtidos utilizando diferentes técnicas quantitativas. Poucos anos mais
tarde, Webb, Campbell, Schwartz e Sechrest (1966) retomam a ideia de Campbell e Fiske e transferem-na
para um contexto mais alargado: defendiam que a obtenção de dados de diferentes fontes e a sua análise,
recorrendo a estratégias distintas, melhoraria a validade dos resultados. Esta concepção foi utilizada em
1970 por Denzin ao argumentar que uma hipótese testada com o recurso a diferentes métodos podia
ser considerada mais válida do que uma hipótese testada unicamente com o uso de um único método
(DUARTE, 2009).
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
José Aparecido Oliveira
TELENOVELA E PRECONCEITO: ACEITAÇÃO E AFIRMAÇÃO
DA IDENTIDADE SEXUAL
20 questões buscaram avaliar a representação dos personagens homossexuais e
a percepção dos receptores sobre uma provável influência em questões como preconceito, aceitação e discussão da homoafetividade (TABELA 1). Quatro questões procuraram verificar se os participantes percebem a mudança no padrão de representação
dos personagens homossexuais na telenovela, sobretudo nas características de seu
comportamento. 62% discordaram quando perguntados se os personagens homossexuais são representados de forma debochada, explícita e agressiva. Os homossexuais
também não são mais representados como pessoas perigosas e sedutoras, conforme
perceberam 67,1% dos participantes, tampouco como pessoas criminosas e violentas,
conforme 80,1% dos receptores da pesquisa. Os participantes também discordam
quando perguntados se os personagens homossexuais são representados como pessoas
preconceituosas, conforme 62,2% dos entrevistados. Para 57,9% dos participantes, os
personagens homossexuais são representados como pessoas de boa índole (honestas,
cultas, corretas).
Não condiz com a verdade, com os gays pobres, pretos, espalhafatoso. Mas eu acho que é
pra mostrar que não porque ele é gay que ele tem que ser inferior, ele é médico, é advogado,
pode ser o que for, pode ser pai, só porque é gay vai ter que se prostituir? Não, ele pode
estudar, pode trabalhar, pode ter uma carreira. etno 04 – receptor A
Três questões buscaram avaliar a estratégia dos roteiros em apresentar os
personagens homossexuais como pessoas comuns, dotadas de sensibilidade e afeto,
o que os credencia à exigência dos mesmos direitos que os demais indivíduos da
sociedade. Para 57,4% dos participantes, a forma como os personagens homossexuais
são representados permite identificá-los como pessoas capazes de educar uma criança.
88,3% dos participantes afirmaram concordar que os homossexuais são representados
de forma a serem vistos como pessoas capazes de amar alguém. Percentual semelhante
(89,1%) também concordou quando perguntados se os homossexuais são representados
de maneira a vê-los como pessoas dotadas de sensibilidade.
A homoparentalidade foi objeto de diversas tramas da Rede Globo (Senhora do
Destino, Páginas da Vida e Amor à Vida). O recorrente tratamento dessa questão nessas
novelas foi trabalhando não só a opinião pública sobre a questão, como também
acompanhou o entendimento de alguns membros do poder Judiciário que estendeu à
família homoparental o mesmo direito dos casais héteros em adotar crianças (DIAS,
2003). A telenovela, por sua capacidade de informação e discussão, amplia para além
dos espaços acadêmicos e jurídicos as questões que ali travadas. Em sociedades
conservadoras e com baixo grau de escolaridade, a telenovela pode popularizar
o debate sobre as inovações e avanços que ocorrem primeiro na academia e nos
tribunais de justiça.
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
José Aparecido Oliveira
Tabela 1 – Telenovela e preconceito: aceitação e afirmação da identidade sexual –
Frequência (f), percentual, médias, desvio padrão (DP)
*Valor baseado na escala de respostas de 1 a 5.
80,6% dos participantes concordaram que o padrão de representação dos homossexuais permite vê-los como sujeitos de direitos e deveres. Perguntados se os homossexuais
na telenovela são representados como pessoas que merecem respeito e tolerância, 84,4%
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
José Aparecido Oliveira
dos participantes concordaram com a questão. De igual modo, 72,1% concordaram com
a representação dos homossexuais como pessoas merecedoras da simpatia da sociedade. No entanto, 41,3% dos participantes se revelaram indecisos quando questionados
se a representação dos homossexuais permite identificá-los como pessoas exigentes e
politizadas.
Tais dados parecem indicar o tom cauteloso com que a teledramaturgia trabalha
a questão da homoafetividade, explicada pelas constantes pesquisas de opinião da
emissora e alguns cortes em cenas, em função do temor da perda da audiência e de
anunciantes. Embora aumente o número de personagens homossexuais, com discurso e
gestual mais característico dos indivíduos LGBT, a estratégia parece suavizar os apelos
políticos que permeiam setores do movimento gay. Na novela Império (2014), a emissora
chegou a cortar três cenas de beijo gay.
é complicado quando você fala se está sendo bom ou não, por exemplo, aquele casal, são
homens muito bonitos, bem sucedidos, então, eles forçam a imagem do que é um homem
padrão, mas não mostram hoje um gay que é negro, que não é feliz, que não tem um relacionamento ótimo, porque ele não vai ter hoje a aceitação por exemplo, a novela não vai
mostrar assim. Concordo sim, que os casais representados não representam a totalidade
do homoafetivo, porém, não se pode negar que é uma ótima tentativa de introduzir uma
discussão. etno 01 - receptor H
Os participantes ressaltam o padrão refinado dos personagens homossexuais, embora
reconheça a intencionalidade em diminuir o estereótipo contra os homossexuais. Embora
essa representação dos personagens homossexuais ainda siga o padrão heteronormativo
(COLLING, 2007), não há dúvidas da estratégia comercial da emissora.
Quatro questões (Q17 - Q20) avaliaram as principais hipóteses deste estudo, relacionadas ao potencial da telenovela em ampliar a discussão sobre a questão homoafetiva,
ao encorajamento do sujeito homossexual em aceitar sua identidade sexual e também
em assumir publicamente sua orientação sexual. Para os efeitos da amostra pesquisada,
as mediações institucionais que mais interessam ao nosso estudo são família, escola
e confissão religiosa, enquanto que as mediações referenciais são gênero e identidade
sexual agregada (OROZCO GÓMEZ, 2005).
Questionados se a representação dos homossexuais na telenovela permite-lhes
repensar a condição de quem possui orientação sexual diferente (Q18), 56,7% concordaram com a questão, contra 17,4% que discordaram e 25,9% de indecisos. No cruzamento
dessa questão com a variável ‘identidade sexual agregada’, os indivíduos heterossexuais
e homossexuais percebem de forma quase semelhante o impacto da telenovela em produzir a reflexão sobre a condição homossexual. Dentre os participantes heterossexuais,
destaque para 62,8% das mulheres e 46,3% dos homens, concordes com a questão. Entre
os homossexuais, 55,3% dos gays e 45,1% das lésbicas, seguidos de 53,3% dos bissexuais,
acompanharam raciocínio favorável.
Já no cruzamento da Q18 com a variável religião, católicos e espíritas são os que mais
se mostram alinhados com essa perspectiva. 68,4% dos participantes católicos e 73,3%
dos participantes espíritas concordam que a telenovela leva-os a repensar a condição
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homossexual. Participantes evangélicos, afrodescendentes e sem religião são favoráveis
à questão, mas em menor grau (com 48,8%, 38,4% e 42,2%, respectivamente).
Esses dados confirmam o caráter informativo da telenovela em ampliar o debate
sobre a questão homossexual, reforçando o que alguns teóricos já demonstravam sobre
o potencial pedagógico da telenovela (FADUL, 2013; GREINER et al., 2007; RINCÓN,
2011). Todavia, a adesão menor dos participantes evangélicos demonstra como espaços
tradicionais de mediação cultural como família e confissão religiosa incidem diretamente
na forma como os conteúdos simbólicos da ficção televisiva são apropriados. Isso não só
alerta para os limites da intencionalidade da ficção televisiva, relativizando a suposta
hegemonia dos meios de comunicação em produzir e veicular conteúdos simbólicos.
Acho também que as pessoas abrem a cabeça. Se for parar pra pensar tantas coisas que
antigamente eram vistas como absurdas aos poucos foram se tornando normal. Com a
homossexualidade vai se tornar a mesma coisa. E pra acontecer tem que ser dessa forma.
etno 07 - receptor B
Procurando saber qual a contribuição da telenovela para os indivíduos homossexuais aceitaram sua condição, 63% dos participantes responderam que a representação
homoafetiva na telenovela contribui para o indivíduo homossexual aceitar-se (Q19).
Apenas 10,7% discordam da afirmação e 26,4% mostram-se indecisos. Estes dados, quando cruzados com a variável ‘identidade sexual agregada’, evidenciaram que os participantes heterossexuais mostram-se ligeiramente mais alinhados com a questão (59,7%
dos homens e 69,3% das mulheres). Entre os participantes homossexuais, o percentual
de concordância é menor, oscilando entre 50 a 54,9%, com considerável percentual de
indecisos entre os 36 participantes bissexuais e transexuais (40 a 50%). Para estes últimos, a contribuição da telenovela não é tão percebida por não haver, ainda, personagens
conforme a ampla dimensão da condição homossexual.
Eu preferi falar para minha mãe que era homossexual. Mas foi depois que eu me aceitei
como homossexual. Demorou muito que eu me assumisse, mas isso ajudou muito que eu
pudesse falar para minha mãe. Ela aceitou, entendeu, mas meu pai não. Depende muito da
família que você tem... Eu fui abusado pelos meus irmãos mais velhos... Passei anos fazendo
psicoterapia, mas eu consegui me aceitar, aí sim eu falei para ele. Hoje em dia meu pai não
aceita nem a pau o fato de eu ser gay. Os meus irmãos continuam não aceitando, problema
deles. etno 03 - receptor B
Perguntados se a telenovela encoraja o homossexual a assumir publicamente sua
orientação (Q20), 57,3% afirmaram concordar que ela contribui para que os homossexuais abandonem o “armário”. O percentual de indecisos chegou a 29,6% e os contrários
somaram 13,2%. Entre os participantes heterossexuais, 65,2% das mulheres e 53,7% dos
homens veem a telenovela como fator de encorajamento da autoafirmação homossexual.
Esse percentual de confiança novamente é ligeiramente menor entre os participantes
homossexuais (46,8% dos gays; 45,1% das lésbicas; 40% dos bissexuais e 50% dos transexuais). Entre os que discordam, gays e lésbicas são os mais representativos (23,4% e
29,1%, respectivamente), enquanto que a indecisão acentua-se mais entre bissexuais
(43,3%) e transexuais (50%) (FIGURA 2).
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
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Figura 2. Cruzamento Q20 (encoraja o sujeito homossexual a assumir
publicamente sua orientação sexual) versus Identidade sexual agregada.
No cruzamento com a variável ‘religião’, dessa vez os evangélicos (69,1%) são os que
se mostram mais alinhados com a autoafirmação homossexual a partir do consumo da
telenovela, seguida de 57,4% dos católicos, 60% dos espíritas, 30% dos afrodescendentes
e 50,6% dos sem religião (FIGURA 3). A concordância dos evangélicos nesta e na questão
anterior explicam as fortes reações que alguns setores fundamentalistas manifestam
frente a iniciativas como o projeto de lei que criminaliza homofobia (PL 122), bem como
as reações contrárias aos casais gays e suas manifestações de afeto na telenovela. Esses
setores conservadores sabem do papel da construção de gênero e do heterossexismo
trabalhado nas instâncias da família, escola e igreja.
Figura 3. Cruzamento Q20 (encoraja o sujeito homossexual a assumir
publicamente sua orientação sexual) versus Religião.
Então são essas coisas que não dá para entender, eu acho que é o conceito que as pessoas
têm em relação ao homossexual que é diferente. Eu acho que é inserido desde que nós somos
crianças. É inserido em toda criança que é pecado, é errado, não pode tocar seu colega de
tal forma, não deixa ele te tocar, que é errado. Então, eu acho que desde pequeno todos são
ensinados, já inserindo ali um preconceito. etno 01 – receptor U
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
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Esses números, animadores com relação ao potencial de ampliação do debate da
telenovela e suas possibilidades para fazer frente à construção social de gênero, ainda
não nos permitem perceber, ao menos no presente, a eficácia deste produto cultural para
diminuir a homofobia. Quando perguntados se a representação dos personagens gays
permite concluir que a novela diminui o preconceito (Q17), o percentual de indecisão
mostra-se considerável entre os participantes (FIGURA 4).
Figura 4. Cruzamento Q17 (permite-me concluir que a novela diminui
o preconceito) versus Identidade sexual agregada
Dos 402 participantes, 38,3% disseram concordar com a eficácia da representação
homoafetiva na telenovela para diminuir o preconceito. 34,3% dos participantes
mostraram-se indecisos (nem concordo e nem discordo), ao passo que 27,4% disseram
não concordar com a afirmação. Os participantes homossexuais são ligeiramente mais
favoráveis à questão (58,9% dos gays e 38,7% das lésbicas contra 32,9% dos homens e
37,1% das mulheres homossexuais). Os espíritas são os mais favoráveis (53,%, contra 41,9%
dos católicos e 31,9% dos evangélicos). A média das respostas configurou a indecisão.
Com isto, não foi possível confirmar se a representação da diversidade homossexual da
telenovela contribui para romper com tabus e preconceitos historicamente construídos
numa sociedade conservadora.
Eu acho positivo a telenovela fazer com que demonstre a relação de duas pessoas. Mesmo
que mostre um cara bem sucedido, são dois cidadãos, duas pessoas de bem, contrário ao
estereótipo comum que vê os gays como bichinhas. É uma forma de fazer uma mãe de um
homossexual aceitar com mais facilidade o que o filho dela está passando. Eu acho que
contribui sim. etno 02 - receptor D
Apesar da indecisão quanto à questão da diminuição do preconceito, os homossexuais estão um pouco mais aptos a ver a telenovela como aliada na luta contra o preconceito
(48,9% dos gays; 38,7% das lésbicas e 50% dos bissexuais concordam). A indecisão é mais
percebida entre os heterossexuais (37,3% dos homens e 37,1 das mulheres). Entre os que
discordam, a maioria é de lésbicas (38,7% contra 23,4% dos gays), seguida dos quatro
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participantes transexuais e sem identidade sexual definida. A discordância aparentemente se explica pelo enorme grau de invisibilidade das lésbicas e dos sujeitos transexuais,
vítimas de preconceito dentro da própria comunidade LGBT. Já no cruzamento da (Q17)
com a variável ‘religião’ (FIGURA 5), os que concordam com o potencial da telenovela
em diminuir o preconceito, a maioria são espíritas (53,3%), seguida dos católicos (41,9%) e
de matriz afro (38,4%). Os indecisos estão mais entre os de matriz afro (46,2%), seguidos
dos evangélicos (40,3%). O maior percentual dos que discordam da afirmação está entre
os que declararam seguir nenhuma religião (39,8%).
Eu acho que ajuda que ajuda sim a diminuir o preconceito, porque o homossexual já tem o
preconceito dentro de casa, você passa a conhecer um pouco mais sobre a vida de cada um,
principalmente os pais de homossexuais. A gente passa a conhecer seus gostos, vontades,
isso ajuda a abrir a cabeça das pessoas... Saber entender o que eles passam, o sentimento
deles, eles são afastados, criticados. A gente vendo essa cena se comove... comove, isso ajuda
a mudar a gente... etno 07 - receptor A
Figura 5. Cruzamento Q17 (permite-me concluir que a novela diminui o preconceito) versus Religião
Uma vez que são os homossexuais (45,8% dos 114 participantes gays) que se mostram
mais aptos a enxergar a telenovela como um aliado na luta contra a homofobia e, dentre
esses, a maioria é composta por católicos e por aqueles que não seguem religião, temos a
confirmação de nossa hipótese central: a telenovela, como produto cultural hegemônico,
produz novas representações discursivas que podem ser apropriadas e transformadas
em um significativo espaço para canalizar aspirações e demandas por reconhecimento
e aceitação da comunidade homossexual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora alguns pesquisadores não sejam propensos a ver a telenovela como coadjuvante nas demandas por reconhecimento da comunidade LGBT, é cada vez mais
crescente em blogs e nas redes sociais as comunidades e indivíduos que celebram a
performance de personagens homossexuais, sobretudo quando temas como homoparentalidade, bissexualidade, transexualidade, etc., são abordados em novelas e seriados.
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Recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual
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Fortalecidos pelo exponencial tratamento de sua questão, estes indivíduos experimentam, ao menos na dimensão virtual e tecnológica, as possibilidades de encorajamento
para fazer frente ao fenômeno da construção social de gênero e identidade sexual
promovida pelas instâncias da família, escola e religião na sociedade.
Os homossexuais celebram o posicionamento político-ideológico de sua maior
representação na ficção televisiva, o que nos permite concordar com aqueles que percebem a telenovela como aliada nas lutas e conquistas do movimento LGBT. A partir
dos resultados dessa pesquisa, estamos propensos a enxergar certo viés de diminuição
lenta e crescente no preconceito contra homossexuais a partir do crescente padrão de
representação da identidade homossexual na ficção televisiva. Percebemos, diferentemente de Colling (2007), que a recente representação homossexual na telenovela não
atua de forma a reduplicar os preconceitos contra os homossexuais.
Mesmo com as reações e a constante violência a que os sujeitos LGBT ainda estão
expostos diariamente no Brasil, faz-se necessário destacar a recente mudança no padrão
de representação da telenovela no que diz respeito à homoafetividade. Principalmente
se percebermos que manifestações de afeto como o beijo gay e maior tratamento da
questão vieram ainda nos últimos três anos, e seus efeitos só agora se reproduzem em
outros conteúdos da Rede Globo. Acreditamos, tal como relatado por alguns participantes da entrevista qualitativa, que a maior aceitação da condição homossexual e a
consequente diminuição do preconceito contra homossexuais virá paulatinamente, tal
como ocorreu com a questão do divórcio quando representado na teledramaturgia. Os
resultados também confirmam a perspectiva de Orozco Gómez (2005), que vê a mediação
televisiva como um complexo jogo dentro de uma economia de significados. Apesar
da televisão seguir lógica própria para produzir significados em suas audiências, as
leituras são plurais conforme as diferentes mediações a que os receptores estão ligados.
REFERÊNCIAS
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practice of female genital cutting”: a participatory assessment of Ashreat Al Amal, an
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SILVA, Rosalina Carvalho da. A falsa dicotomia qualitativo-quantitativo: paradigmas que
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Os homens que não amavam as mulheres
e preferem a garota com a tatuagem de dragão:
um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
Josel aine Caroline
da
S i lva S a n t o s 1
Resumo: O estudo teve como objetivo analisar as relações e conexões de consumo
entre o cinema e a moda através de uma abordagem analítica do posicionamento
dos jovens na pós-modernidade a fim de compreender o caminho de consumo
de Lisbeth Salander, personagem da literatura criada por Stieg Larsson, em suas
adaptações para o cinema, partindo do pressuposto das influências e inserções
midiáticas na contemporaneidade a partir da análise da construção da protagonista da trilogia Millenium. Presente nos filmes Man som hatar kvinnor
(2009), de Niels Arden Oplev e The girl with the dragon tattoo (2011), de David
Fincher e a coleção de roupas das lojas H&M inspirada na personagem, descobrindo e trabalhando em cima de perspectivas que constroem uma antítese às
ideologias da obra.
Palavras-chaves: consumo, contemporaneidade, pós-modernidade, Lisbeth
Salander, H&M.
Abstract: The purpose of this study is to analize the relations and connections
of consumption between cinema and fashion through an analytic approach of
positioning from the young people at the post-modern era, analizing the pathway
consumption from Lisbeth Salander, character of cinema and literature created
by Stieg Larsson, on the adaptations to the cinema considering the premise of
the influences and midiatic inserts on the contemporary era from the analisys
of the construction of the main character of the Millenium trilogy. In the movies
Man som hatar kvinnor (2009), from Niels Arden oplev and The girl with the
dragon tattoo (2011), from David Fincher, and the fashion collection from H&M
inspired in the character, discovering and working on the perspectives that
construct an opposition to the ideology of the work.
Keywords: consumption, contemporarity, post-modernity, Lisbeth Salander,
H&M.
INTRODUÇÃO
INFLUÊNCIA DE astros e personagens de cinema e televisão sobre os jovens há
A
anos tem sido objeto de estudo e questionamento entre teóricos e pesquisadores
de comunicação, psicologia, entre outras áreas de estudos. O consumo em torno
desse mercado atinge níveis que vão desde construção e mudança de personalidade
até utopia e alienação. A pós-modernidade tem como características básicas de seu
1. Universidade Anhembi Morumbi - UAM (Brasil)
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Os homens que não amavam as mulheres e preferem a garota com a tatuagem de dragão: um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
Joselaine Caroline da Silva Santos
cotidiano praticidade, tecnologia e pressa, resultando na formação de uma cultura instável e efêmera. O consumo é altamente descartável, as coisas perderam seu valor de
uso e parecem possuir apenas preço, sendo a necessidade de adquirir alguns produtos
amplamente questionável. Analisando a efemeridade em torno do comportamento jovem
em detrimento dos valores de uso das coisas através das influências midiáticas que assolam a sociedade contemporânea, trabalharemos os pressupostos que convergem com
os princípios de criação e motivações de Lisbeth Salander, personagem literária criada
pelo escritor Stieg Larsson na trilogia Millenium, presente nas obras cinematográficas
Män som hatar kvinnor (Suécia, 2009), dirigido por Niels Arlen Oplev e The girl with the
dragon tattoo (EUA, 2011) dirigido por David Fincher.
Lisbeth Salander surge na cena do cinema mundial em quatro obras cinematográficas, três delas realizadas na Suécia, reformatadas de uma série de televisão, sendo elas
Män som hatar kvinnor, Flickan som lekte med elden e Luftslottet som sprängdes, realizadas e
exibidas no país nórdico, compondo a trilogia cinematográfica adaptada da literatura.
Após o grande sucesso, a personagem ganhou vida em uma versão hollywoodiana, The
girl with the dragon tattoo, cuja realização refletiu em uma grande repercussão midiática.
Foco de estudo deste trabalho, a versão americana apresentou uma versão de Lisbeth
Salander, interpretada por Rooney Mara, cujos extra-campos midiáticos acabaram por
reconstruir uma relação de consumo heterogênea às ideologias da obra.
Lisbeth é uma jovem investigadora hacker contratada para investigar e realizar um
relatório sobre a vida de Mikael Blomkvist, jornalista sócio da revista Millenium, acusado e condenado por difamação a um poderoso empresário sueco. O trabalho realizado
por Lisbeth Salander é contratado por Henrik Vanger, cuja sobrinha Harriet desapareceu há 40 anos e, conforme investigações realizadas, suspeita-se que fora assassinada
por alguém de sua própria família, e Mikael Blomkvist é contratado para desvendar o
mistério em torno do caso, uma vez que Henrik Vanger continua recebendo os quadros
que sua sobrinha costumava pintar e dar a ele de presente em seus aniversários, antes
de desaparecer aos 16 anos de idade. Ao longo da trama, Lisbeth continua observando
a vida de Mikael Blomkvist e acaba ajudando a desvendar alguns dos mistérios em
torno do caso, até que ele descobre suas ações e a chama para trabalhar com ele. O que
descobre-se ao longo da narrativa de 2 horas e 40 minutos é uma história repleta de
abusos psicológicos, assédios sexuais e estupros sofridos por Lisbeth e outras mulheres.
A problemática garota teve uma juventude difícil após ser enviada para reformatórios
e abrigos para pessoas com distúrbios psicológicos após ter ateado fogo em seu pai aos
12 anos de idade, ao vê-lo maltratar sua mãe, nos levando ao fato dela ser considerada
pela justiça sueca psicologicamente incapaz de cuidar de si mesma, possuindo um tutor
responsável pela sua readaptação e inserção à sociedade. Depois que seu tutor sofre
um ataque cardíaco, um novo tutor é designado para a função de tomar conta dela,
Bjurman, que abusa sexualmente dela por inúmeras vezes, nas quais Lisbeth precisa
submeter-se as suas ordens e decisões, devido ao fato de que sua mãe se encontra no
hospício desde o ocorrido, o paradeiro de seu pai é desconhecido e conforme às leis
suecas ela deve ficar sob tutela do Estado até que seja considerada apta para cuidar
de si mesma. Após inúmeros abusos sexuais de seu novo tutor, a trama desenvolve
a vingança de Lisbeth contra Bjurman, e paralelamente se envolve afetivamente com
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Os homens que não amavam as mulheres e preferem a garota com a tatuagem de dragão: um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
Joselaine Caroline da Silva Santos
Mikael Blomkvist ao investigar o mistério acerca do desaparecimento de Harriet Vanger
e abusos sexuais sofridos pelas mulheres que aparecem na trama.
À primeira vista, devido à sua aparência e atitude, percebemos que Lisbeth é uma
mulher fora dos padrões, reclusa e aparentemente individualista, entretanto conforme a
trama vai sendo desenvolvida e ela vai construindo suas relações com os outros personagens, é possível perceber que ela é mais sensível e humana do que a sua androginia
e atitudes apresentam. Lisbeth Salander passa por conflitos psicológicos similares
aos dos jovens da geração Y, pessoas nascidas entre 1981 e 1999, indiferentemente de
suas circunstâncias (BOLTON, 2013, p.6) 2., que possuem como características básicas
a premissa de que buscam soluções e ascensões rápidas, acesso à informação, estão
sempre antenadas às últimas tendências e notícias, são de forma frequente e prematura
expostos à tecnologia, tendo vantagens e desvantagens em termos cognitivos, emocionais e com consequências sociais (BOLTON, 2013, p. 8 apud IMMORDINO, Yang et
al., 2012, p. 352 - 364). Lisbeth Salander apresenta todos esses atributos, criando uma
forte relação com jovens que passam por esses conflitos da contemporaneidade, como
ela. Frequentemente chamada de heroína, uma vez que é a hacker quem desvenda os
mistérios da trama, faz justiça com as próprias mãos e vinga-se de seu antagonista,
a complexa jovem apresenta características e comportamento de muitas pessoas que
se encontram imersas no mundo da tecnologia e inconformismo social da atualidade,
sendo frequentemente relacionada ao feminismo por seu papel de justiceira que busca
vingança contra aqueles que causaram algum dano à ela ou seus próximos, ainda que a
personagem não apresente nenhuma menção direta do tema na narrativa cinematográfica, ou ainda mostre quaisquer perspectivas próprias relacionadas ao assunto. Lisbeth
Salander é uma garota franzina, de aparência frágil e vulnerável, mas na maior parte
do tempo da narrativa possui traços, aparência e características masculinas, sendo a
sua feminilidade, conforme os padrões da sociedade ocidental, pouco vista na tela,
apresentando uma ambiguidade de gênero como uma de suas características mais
marcantes.
À medida que os espectadores vão conhecendo a personagem eles se identificam
com ela de alguma forma devido à ampla gama de características e possibilidades que
a compõem, chamando atenção principalmente do público feminino jovem, seja pelo
fato de sentirem-se um peixe fora d`água, solitárias, injustiçadas ou mesmo vítimas de
abusos sexuais que tentam se reabilitar perante a sociedade em que estão inseridas.
A trajetória de justiça e vingança contra àqueles que fizeram mal a ela ou à pessoas
próximas de alguma forma são um forte elo com indivíduos que sofreram quaisquer
tipos de abusos, entretanto, ao contrário de muitos daqueles que se sentem injustiçados,
Lisbeth consegue obter sua vingança. Ao criar essas conexões e relações a personagem
acaba por ser considerada como o retrato das jovens da contemporaneidade e, devido
à sua exposição midiática, tornou-se um produto da sociedade do espetáculo, e ao ser
midiatizada e comercializada nos Estados Unidos suas ideologias acabam sofrendo uma
distorção com fins de consumo meramente capitalistas.
2. BOLTON, R.N.... et al, 2013. Understanding Generation Y and their use of social media: a review and
research agenda. Journal of Service Management, 24 (3), pp. 245-267.
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Os homens que não amavam as mulheres e preferem a garota com a tatuagem de dragão: um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
Joselaine Caroline da Silva Santos
A trajetória da personagem tem início nas páginas de Os homens que não amavam as
mulheres3, um dos maiores sucessos literários de gênero de suspense policial produzidos
na Suécia, tendo vendido aproximadamente 63.000.000 de livros pelo mundo4. Depois
torna-se uma série da televisão de seis capítulos exibidos na Suécia pelo canal TV4 e,
mais tarde, lançado em formato cinematográfico, exportando juntamente com os livros
alguns dos dramas das mulheres na sociedade sueca. O livro tornou-se um best-seller
mundial, a versão cinematográfica sueca foi indicada à inúmeros prêmios e recebeu
um BAFTA de melhor filme em língua estrangeira e, ao ter uma versão cinematográfica
americana adaptada do primeiro livro da trilogia, a personagem ganhou uma exposição
midiática de grande proporção. Lisbeth Salander saiu dos livros e das telas de cinema,
ganhou notoriedade, tornou-se referência para muitas jovens e uma coleção de roupas
com o seu nome, com o intuito de disponibilizar seu estilo e atitude aos mais diversos
tipos de jovens e mulheres que se identificaram com a jovem hacker.
Em 14 de dezembro de 2011, a rede de lojas de departamentos H&M, de origem
sueca, que possui em torno de 3000 lojas espalhadas pelo mundo, lançou uma coleção
inspirada em Lisbeth Salander, assinada pela figurinista do filme norte-americano
Trish Summerville, apresentando 30 modelos caracterizados como estilo urbano dark,
conforme as palavras da própria figurinista. Uma semana depois, no dia 21 de dezembro do mesmo ano, a obra cinematográfica norte-americana foi lançada nos cinemas, e
tanto a coleção quanto o filme veiculavam em diversos tipos de mídias, como impressa,
televisiva, websites e blogs, contribuindo para a exposição da personagem e da coleção.
A partir do pressuposto de fatos aleatórios, tem-se: o sucesso da personagem ao redor
do mundo através dos livros, a mídia atuando em torno da estreia do filme hollywoodiano, as grandes transformações visuais da atriz Rooney Mara, que interpreta Lisbeth
Salander na versão estadunidense, estampando capas de diversas revistas, e ainda, as
memórias da recente adaptação do filme sueco de 2009, que conta com uma atuação
surpreendente de Noomi Rapace no papel de Lisbeth, gerando diversas comparações e
posicionamentos de fãs da trilogia, principalmente na Suécia, país de origem da obra.
Ao somarmos estes fatores podemos partir da premissa de que a H&M fez uma grande
jogada de marketing e consumo ao expor essa coleção em suas vitrines na mesma época
da estreia do filme americano.
Cerca de 3 milhões de exemplares do livro Os homens que não amavam as mulheres
foram vendidos na Suécia até Dezembro de 2011. Segundo a Statistiska centralbyrån5, o
país conta com uma população de aproximadamente 9 milhões de pessoas, logo estima-se que pelo menos 1 a cada 3 suecos leram o primeiro livro da trilogia. A obra era
um sucesso no país, impulsionada pela exibição da série e pela exportação do filme
sueco e da personagem, então ao lançar uma coleção inspirada em Lisbeth Salander,
desenhada pela figurinista do filme americano que estava prestes a ser lançado nos
cinemas, é inevitável, devido às inserções e ações de marketing do mundo contemporâneo, que não se crie conexões de publicidade entre a H&M e a versão americana,
3. Tradução em língua portuguesa de ambas versoes cinematográficas, Män som hatar kvinnor e The girl
with the dragon tattoo.
4. Stieg Larsson, em: <stieglarsson.se> Acesso em 17/03/2015.
5. Statistisk årsbok 2011. Statistyiska Centralbyrån
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Os homens que não amavam as mulheres e preferem a garota com a tatuagem de dragão: um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
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entretanto não há registros que comprovem tal conexão, exceto pela assinatura de
Trish Summerville.
A H&M faz uso do fato de ser uma empresa sueca influente no mundo da moda,
mundialmente reconhecida, e do fato da popularidade de Lisbeth em diversos países
tornar-se motivo de orgulho para os cidadãos da Suécia, contando ainda com o fato de
Stieg Larsson ter sido uma pessoa pública cujas opiniões, investigações e denúncias jornalísticas possuíam grande credibilidade e prestígio entre a população nórdica, fazendo
com que o consumo e a exposição da coleção atuassem acerca das psiconecessidades de
consumo, valorizando não só seus produtos, mas ainda seu papel social na sociedade
de forma sútil e efetiva. Paralelamente, desde setembro de 2011 a atriz Rooney Mara
estampava diversas capas de revistas de moda como Vogue e QG, trajada de Lisbeth
Salander, criando e associando uma identidade fashion à personagem que vendia a imagem da hacker como uma mulher justiceira, mas com estilo, além de diversas inserções
em websites como Huffington Post e blogs de moda, anunciando o estilo “cool” de uma
personagem feminina que luta contra a tirania masculina.
A humanização da personagem é realizada pela mídia aproximando-a da espectadora que torna-se uma provável consumidora uma vez que a personagem possui dramas
e problemas como o das mulheres comuns, tornando a hacker uma mulher próxima da
realidade e não mais um modelo de mulher inatingível mostrada nas telas, e a coleção
da loja de departamentos apropria-se desse importante aspecto para atingir um maior
número de consumidoras. O fator de que a sedução da coleção acontece através do
espetáculo promovido por Hollywood em torno do filme é fundamental para as inserções do produto Lisbeth Salander, pois não é a atriz quem está nas capas das revistas,
o público pouco se interessa por Rooney Mara, o que vende é a sua caracterização e a
encarnação, o processo ao qual ela passou para obter o produto final da personagem,
e é isso que temos nas inserções midiáticas. Na capa da revista Weekly Entertainment
de 18 de Novembro de 2011, n°. 1181 (Figura 1), em que temos o ator Daniel Craig, que
interpreta Mikael Blomkvist na versão americana e também famoso por interpretar
James Bond nos cinemas, e Rooney Mara. No canto esquerdo, minimizado, estão os
nomes dos atores, entretanto a chamada da revista é para a obra, que traz o título em
destaque na capa, pois é a personagem de Lisbeth Salander, é o relacionamento e a
trajetória com Blomkvist que está sendo vendido ali, e não os atores em si, a partir
do momento em que eles se caracterizam como as personagem na capa da revista,
caracterizamos uma ação de relação direta com a publicidade do filme. Uma vez que
o leitor desconheça a narrativa, a leitura que se faz desta imagem é que Daniel Craig é
um cara sedutor e que Rooney Mara necessita dele, e não quer que ele saia de sua vida
pela forma como ela segura ele com as mãos e entrelaçando seus pés ao redor de seu
tronco, impossibilitando-o de sair.
Produto moda, a estrela deve agradar, a beleza [...] exige encenação, artifício, refabricação
estética: os meios mais sofisticados, maquiagem, fotos e ângulos de visão estudados, trajes,
cirurgia plástica, massagem, são utilizados para confeccionar a imagem incomparável, a
sedução enfeitiçadora das estrelas. (LIPOVETSKY, 1987, p.249)
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Figura 1. Revista Weekly Entertainment n° 1181 de 18 de Novembro de 2011,
com Rooney Mara e Daniel Craig.
Na narrativa, as atitudes de Lisbeth em relação a envolvimentos afetivos e emocionais são totalmente inversas à Lisbeth que a imagem da capa vende, uma vez que devido
aos dramas de sua trajetória a protagonista da trama evita demonstrar, dar, receber ou
criar vínculos afetivos de quem quer que seja, caracterizando uma desconstrução de
uma personagem feminina clássica e frequente nas telas. Entretanto, o que vemos na
revista destaca o papel dominante do homem na sociedade e nas narrativas ficcionais
clássicas, onde o homem tem o papel de destaque e é o herói da trama, convergindo
totalmente ao que ocorre na relação de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist pois é ela
quem controla o tipo de relação e contato, e ainda evita seu assassinato, salvando-o das
tiranias de um dos vilões da trama, mas colocá-la nesta posição gera um maior grau de
aceitação social, humanizando-a.
Humanizar a personagem é aproximá-la do público como jovens em conflito de
construção de personalidade, às que desejam se libertar das ditaduras fashion do desconforto com roupas sexys, apertadas e saltos altos, pois Lisbeth é igual à muitas jovens,
ao mesmo tempo em que se difere de muitas outras personagens femininas em muitos
aspectos. Ela tem um estilo de natureza gótica, veste calças rasgadas e confortáveis,
camisas largadas, e o que descobriu-se é que isso é altamente vendável, uma vez que se
aplique um pouco de estilo, uma marca de peso e associe à uma celebridade. Por mais
que a coleção da H&M não tenha Rooney Mara como garota propaganda, o que vemos
são roupas de estilo similar ou igual às que ela usou no filme de uma forma acessível
ao consumidor devido à assinatura de Trish Summerville.
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Os homens que não amavam as mulheres e preferem a garota com a tatuagem de dragão: um estudo sobre o consumo de Lisbeth Salander
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Parte-se do pressuposto que o marketing da coleção atuou em torno das psiconecessidades das mulheres, trabalhando o aspecto da figura de mulher forte e segura,
mexendo com o sentimento das jovens que buscam ser fortes e destemidas, tratadas com
igualdade e, ao mesmo tempo, sedutoras, enigmáticas e atraentes, assim como Lisbeth
Salander. Entretanto, Lisbeth é uma garota abusada sexualmente por um longo período
sua vida, o seu visual reflete na forma de recepção e impacto que ela quer causar nas
pessoas, ela procura afastar homens e mulheres que seguem padrões hipócritas, não
busca construir relações com as pessoas da sociedade onde vive devido aos traumas que
passou e carrega, e também porque não confia na maioria daqueles que a cercam. Ela
carrega uma revolta interna contra o sistema, o governo, sua própria família e muitas
das pessoas com as quais já se relacionou. E a tradução do processo de alusão ao estilo
e comportamento da personagem feito pela mídia pode ser vista na revista GQ Itália,
que na edição de setembro de 2011 traz a atriz americana na capa e com a chamada:
“Juventude em revolta”, fazendo conexões com os movimentos como os do grupo radical
feminista Femen e Occupy que ganhavam notoriedade na época devido aos movimentos
que ocorriam na Europa, onde os jovens protestavam suas insatisfações pelas ruas.
A H&M fez uso da transformação dos discursos acerca das ideologias de Lisbeth de
forma midiática tornando-a um modelo de tudo que as jovens querem ser, entretanto
o que fica em segundo plano em relação à coleção e o marketing da personagem são as
motivações de sua trajetória pois “a publicidade forma sistemas textuais com componentes básicos inter-relacionados de tal maneira que apresentem o produto sob luzes
positivas” (Kellner, 1998, p. 318). Partimos da premissa de que isso só ocorreu quando a
personagem foi exportada da Suécia para os Estados Unidos. Quando Lisbeth chega na
forma de importação no país norte-americano nos livros e no filme sueco a essência e a
mensagem em torno da personagem dá-se devido aos fatos que acontecem na narrativa, como estupro e violência contra a mulher, mas o que de fato acontece é a conversão
do que a personagem representa, a essência de sua notoriedade é o fato de ela superar
os obstáculos e abusos e continuar vivendo sua vida, buscando paz e sucesso em suas
realizações, tentando compreender a amplitude do significado da vida.
A caracterização midiática e o glamour maquiam os problemas psicológicos de
Lisbeth, e esses fatores não importam tanto quanto sua roupa e estilo, que acabam por
se tornar o foco da mídia. Assim, a personagem retorna para a Suécia em um formato
fashion desenvolvido, apresentado e exposto pela H&M em um provável sucesso de
vendas, pois Hollywood é inquestionavelmente uma produtora de consumo. Tudo e
todos querem consumir o que sai de lá, é como se muitas vezes essa indústria ditasse
as regras do que pode ou não ser consumido. Hollywood gira em torno da mídia, é
a própria mídia, e a mídia contemporânea tem um papel fundamental na construção
da identidade dos jovens. A moda, aqui nesse contexto, atua na forma de espetáculo
publicitário e, conforme Baudrillard (2008), a publicidade faz do objeto um pseudoacontecimento que irá se tornar o acontecimento real da vida cotidiana através da adesão
do consumidor ao seu discurso. E isso tudo é visivelmente efêmero, nos remetendo
à ideia de hipermodernidade apresentada por Lipovetsky (2004), pois não passam de
febre consumistas de aspirações imediatistas que amanhã ou depois serão e/ou foram
esquecidas pela maioria das consumidoras da coleção.
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Segundo Lipovetsky (1987) a moda tem o poder de lidar com a psicologia do individuo, criando modelos que concretizam emoções, traços de personalidade e caráter. Logo,
a imagem que a H&M vende da jovem hacker é a de uma mulher forte e independente,
quando na verdade ela é uma garota frágil e traumatizada, que se esconde atrás de uma
armadura que desenvolveu para se defender, e que tem dificuldade de aprofundar-se
em qualquer tipo de relacionamento, isolando-se do mundo de uma forma melancólica.
Mas ninguém quer consumir a verdade nua e crua, então a coleção passa a trabalhar em
cima dos anseios femininos, no desejo de libertação aos paradigmas que a sociedade
lhes impõe, agradando a todo tipo de mulher, e o fato de Lisbeth ter sido diversas vezes
estuprada e abusada passa despercebido, poucas vezes citado e muitas vezes excluído
da midiatização.
Lojas de departamento como a H&M traduzem o pensamento pós-modernista, são
várias possibilidades prontas e embaladas para serem utilizadas, as lojas possuem todos
os estilos, entretanto isso é uma questão de identidade e, na pós-modernidade, as pessoas se identificam com muitas coisas ao mesmo tempo, não que isso seja um problema,
mas acarreta conflitos na questão da superficialidade, pois se conhece tudo, mas não
se conhece nada a fundo, ou muitas vezes não se conhece nada verdadeiramente. Com
isso percebemos quão fragmentada e instável a identidade pós-moderna encontra-se
no contexto atual. Por mais que saibamos que a questão da construção da identidade
dá-se por contato e referência com outros indivíduos, a moda atua como uma grande
referencia no assunto sobre a identidade, até porque ela atua sobre as psiconecessidades dos indivíduos, concordando com Lipovetsky (1987) quando o autor afirma que a
mulher busca mais que um vestido, ela busca uma renovação de seu aspecto psicológico,
ajudando a ser o que ela quer em determinada fase de sua vida:
A cultura influi ainda sobre os gostos estéticos, em música por exemplo, mas pouco sobre
os valores as atitudes, os comportamentos dos indivíduos, cada vez mais vai ao encontro de
sua essência moda, de ser uma cultura superficial sem consequência. (LIPOVETSKY, 1987, p. )
Para muitas jovens, estar na moda vai muito mais além de apenas seguir uma tendência, integrar-se a um grupo, ser aceita e sentir-se mais segura em relação à si própria
e seu papel na sociedade. A coleção de Lisbeth vende muito mais que roupas, vende
uma atitude, uma trajetória de aceitação. Entretanto, ao caminhar um pouco mais pela
H&M e entrar em outra subseção, as mulheres encontram sensualidade e o desejo de
se tornar uma mulher que atrai a atenção de quem deseja, pois é a questão do ego neste
momento que fala mais forte, uma luta entre a razão e a emoção, mas na H&M você
pode agir com a razão e a emoção ao mesmo tempo, em um momento você pode ser
Lisbeth Salander, e no outro você pode ser Audrey Hepburn e não há problema nisto.
Conclui-se que Lisbeth nasce na Suécia, espalha-se mundialmente através dos livros
e filmes suecos apresentando uma caráter social e, nos Estados Unidos, ganha um formato midiático no qual ela se torna um produto estético e retorna para a Suécia como
um produto em forma de coleção, passando a fazer parte do cotidiano das mulheres
suecas e de outros locais onde a H&M atua, devido ao desenvolvimento, visão e efemeridade da sociedade de consumo e espetáculo ao qual a pós-modernidade está inserida.
Conclui-se que a coleção é uma antítese da personagem e da mensagem final que a obra
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tende a passar, questionando-se aqui a forma como as convergências midiáticas atuam
acerca do tema central abordado pela narrativa, o abuso sexual às mulheres. Em um
dado momento de reflexão é necessário que se questione como uma mulher sexualmente
violentada se sente ao se vestir, quais são as premissas que ela usa para se vestir e quais
são as suas intenções. A solução oferecida pela loja de departamentos foi colocar glamour e brilho em peças de roupas que representam um tipo de armadura para Lisbeth
Salander, assim como para muitas mulheres que lutam para manter-se fortes perante
os abusos que sofreram, e a forma como elas se vestem e se caracterizam muitas vezes
expressam o modo que elas externalizam suas insatisfações, traumas, medos e anseios,
tentando repelir olhares alheios e julgamentos, procurando passar despercebidas.
Um conjunto de ideias arbitrárias surge na sociedade pós-moderna juntamente com
uma perda de identidade provocada pela abundância de referências e influências midiáticas que acaba por persuadir o consumidor com objetivos individualistas das próprias
empresas que visam lucros em cima das psiconecessidades dos consumidores, estes que
visam mais status do que necessidade. As mídias atuam fortemente em cima da emoção dos indivíduos, na devoção das pessoas por estrelas e personagens de Hollywood,
ultrapassando a barreira da sensatez, podendo causar alienação ao transformar produtos
em objetos de alta efemeridade através da forte transitoriedade das últimas tendências
de mercado, entretanto o que se percebe é que o resultado da superficialidade de tantas
inserções é que, a partir do momento que as capas de revista mudam, novas coleções
são apresentadas, mídias são redirecionadas para novos trends, atitudes e valores que,
assim como as roupas de Lisbeth, são guardadas no armário.
REFERÊNCIAS
Baudrillard, J. (2008). A sociedade de consumo. Portugal: Edições 70.
Kellner, D. (1998). A cultura da mídia. Bauru: Edusc
Lipovetsky, G. (1987). O império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades modernas. 7.ed. São Paulo: Compania das Letras. 1987.
_______ . (2004). Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla.
MÄN som hatar kvinnor. Direção: Niels Arlen Oplev. Stockholm: Yellow Bird, 2009. 146 min.
THE girl with the dragon tattoo. Direção: David Fincher. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2011. 158 min.
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
Reception and midiatization: epistemological approaches
R a fa e l D rumon d1
Resumo: Este trabalho, inspirado pelos resultados parciais de metapesquisa,
tem como objetivo aproximar os estudos de recepção às teorias da midiatização
social.Em vista dessedirecionamento, apresenta-se algumas características sobre
o conceito de midiatização, assim como sua relação com a matriz teórico-empírica
dos estudos de recepção, particularmente as contribuições de Jésus MartínBarbero. Por fim, busca-se redimensionar o escopo das pesquisas em recepção
a partir das transformações engendradas pela crescente midiatização social,
o que, conforme argumenta-se, implica na superação da crítica reducionista
que entende a recepção apenascomo prática de mídia e não como campo de
conhecimento.
Palavras-Chave: Midiatização. Recepção. Epistemologia da Comunicação.
Abstract: This work, inspired by partial results of a “meta-research”, aims to
approximate the reception studies to the theories of social mediatization. In
this direction, some features of the concept of mediatization are presented, as
well its relation to the theoretical and empirical matrix of reception studies,
particularly the contributions of Jesus Martín-Barbero. Finally, the scope of research in reception is resized from transformations engendered by the growing
socialmediatization, which, as argued, implies in overcoming the reductionist
criticism that understands reception as a practice and not as a field.
Keywords: Mediatization. Reception. Communication Epistemology.
1. INTRODUÇÃO
T
RABALHO NESTE artigo uma reflexão sobre as relações possíveis entre o campo
da recepção e as teorias da midiatização social. Inspirado pelos resultados preliminares da metapesquisa “A construção do capital teórico sobre as interações
midiatizadas nos artigos da Compós durante os anos 2000”2, exploro as reticularidades
que aproximam tais abordagens, sobretudo do ponto de vista teórico. Na primeira fase
da investigação citada, os envolvidos no projeto (entre os quais me incluo) buscaram
mapear as evidências da elaboração epistemológica em torno de um conceito comunicacional emergente: as interações midiatizadas. Finalizado o levantamento dos artigos
selecionados para a primeira amostrade análise (isto é, excluindo-se aqueles que não
1. Professor Mestre do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Contato: rafael.
[email protected].
2. Pesquisa empreendida pelo grupo “Campo Comunicacional e suas Interfaces”, coordenada pela Profa.
Dra. Maria Ângela Mattos, no contexto do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas.
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4718
Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
Rafael Drumond
abordavam, direta ou transversalmente, a temática pesquisada), um dado revelou-se
bastante instigador: o Grupo de Trabalho (GT) com a participação mais expressiva no
corpus então prospectado foi o GT de Recepção.
Em vista da evidência citada, proponho nesta comunicação refletir sobre a aproximação indiciada pelos resultados parciais da metapesquisa. Para tanto, oriento-me
pelo seguinte questionamento: em que medida as matrizes teórico-conceituais e os
procedimentos metodológicos mais ou menos comuns ao campo da recepção podem
ser relacionados às perspectivas nucleadoras dos estudos de midiatização?
Mais do que refletir sobre tais pontos de contato, utilizo o resultado em relevo para
discutir o lugar dos estudos de recepção mediante o atual contexto sociomidiático. Nessa
direção, promovo um esforço no sentido de retificar a noção de que os objetos cabíveis à
recepção foram dissolvidos pelos rearranjos decorrentes da intensificação dos processos
midiatizados (ainda que a alçada teórica e empírica do campo tenha sido redimensionada
pela expressividade desses mesmos fenômenos). Em sentido contrário a tal premissa,
levanto a hipótese de que os estudos dessa natureza possuem um conjunto favorável
de balizas epistemológicas capazes de lançar enquadramentos e leituras pertinentes
às questões comunicacionais da contemporaneidade, sobretudo no sentido de refletir
sobre certas implicações daprogressiva midiatização social.
2. NOTAS SOBRE O CONCEITO DE MIDIATIZAÇÃO
As teorias geradas em torno do fenômeno da midiatização constituem entradas epistêmicas fundamentais ao pensamento comunicacional contemporâneo. Talvez por isso,
o uso recorrente (e muitas vezes indistinto) do conceito produz formas de apropriação
nem sempre orientadas por cartografias teóricas precisas. Assim como ocorre com o
termo “mediação”, essa indeterminação gera o efeito de, por um lado, despotencializar
a heurística do operador (o que complexifica a implementação de metodologias empíricas), e, por outro, ampliar e diversificar a produção de conhecimento teórico a partir
dele (geração de saberes menos miméticos).
Avaliando um panorama possível de autores3 que se dedicam a temática – tanto
em âmbito nacional, quanto internacional (particularmente os autores referenciados
em pesquisas brasileiras) –, percebe-se que, apesar de diferenças qualitativas entre as
proposições teórico-conceituais, existe um entendimento geral voltado para a dimensão
estruturante dos atuais processos de midiatização. Dessa forma, um marcador comum a
essas teorias seria a questão do alcance social da comunicação, aqui interpretada como
um quadro referencial (quando não preferencial) de sentidos que se encontra além do
midiático, ainda que dele não prescinda.
Trata-se, nos termos de José Luiz Braga (2006) das condições ou lógicas que integram
uma processualidade social e mediática ampla, ou ainda, no conjunto de transformações que,
no entendimento de Muniz Sodré (2002; 2006) respondem por uma forma de vida ou por
um bios midiático. Antônio Fausto Neto, por sua vez, trabalha a dimensão estruturante
da midiatização a partir da noção de ambiência, o que significa compreender que
3. Esses autores de referência encontram-se citados ao longo do artigo.
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
Rafael Drumond
os processos de referenciação da realidade, estruturados em torno da lógica da midiatização,
não se acantonam apenas nas fronteiras das próprias práticas midiáticas. Migram para outras
práticas sociais, atravessando-as e afastando-as por operações significantes, cujo emprego
é condição para que as mesmas passem a ser reconhecidas. (Fausto Neto, p.94, 2008).
Autores estrangeiros também vêm articulando o conceito de midiatização como
processo estruturante das mais diferentes práticas socioculturais. Friedrich Krotz
(2007) destaca a noção da midiatização como metaprocessualidade, isto é, processo ligado
aos modos pessoais e/ou sociais de cognoscibilidade de um dado tempo histórico.
Importante ressalvar que a metaprocessualidade não implica em uma relação de causas e
efeitos universalizantes, o que justifica o estudo dos fenômenos midiatizados a partir de
diferentes modalidades de experimentação (variantes entre os distintos campos sociais,
instituições reguladoras, grupos de atuação, contextos culturais). Nessa direção, Krotz
(2007) afirma que a midiatização opera uma mediação espaço-temporal entre os fluxos
globalizados e o âmbito microssociológico da ação – tanto local, quanto individual –,
atrelando-se, portanto, ao quadro situacional que modula sua ocorrência empírica.
Por outro lado, se o caráter estruturante da midiatização é ponto de convergência
entre os teóricos, em contrapartida, a leitura sobre a temporalidade dos fenômenos
midiatizados se difere em algumas abordagens. Muniz Sodré, por exemplo, produz um
pensamento crítico sobre a midiatização a partir de uma visada histórica, buscando assim
compreender os fenômenos contemporâneos em perspectiva diacrônica. Essa orientação
também pode ser encontrada no trabalho de autores como Thompson (1995) e Krotz (2007)
– produções que, em geral, inserem as configurações da sociedade midiatizada a partir
das rupturas e derivações que, tecnossimbolicamente, complexificam e transmutam as
formas de interação social e midiática.
Outros autores, contudo, buscam angular a midiatização como manifestação
sincrônica de acontecimentos específicos, tendo em vista, notadamente, a recente
guinada sociotécnica promovida pela intensificação dos fluxos de comunicativos. É
esta abordagem que justifica a passagem assinalada por Fausto Neto (2008) entre uma
“sociedade dos meios” e uma “sociedade em vias de Midiatização”, ou ainda, a análise
de Braga (2006) sobre a emergência de um sistema de resposta social capaz de reorientar
o trabalho de semiose das estruturas midiáticas tradicionais (produção e recepção).
Também nesse sentido, Stig Hjarvard (2012; 2014) sugere uma abordagem sincrônica
sobre a midiatização, definindo-a como um processo típico da hipermodernidade através
do qual, por um lado, a mídia emerge como uma instituição independente, com uma lógica
própria, e, por outro, passa a integrar outros campos de ação, como a família, o trabalho,
a religião. Para Hjarvard, a experiência de uma “midiatização intensificada” atravessa
quase todas as instituições, tendo em vista uma coprodução mutuamente regulada das
“nossas reproduções mentais, de nossas ações e relacionamentos com outras pessoas
em uma variedade de contextos privados e semiprivados” (HJARVARD, 2014, p.23-24).
A proposição de Hjarvard, além da marcação temporal, traz ainda outro ponto de
desencontro entre as diferentes abordagens sobre a midiatização: o argumento da centralidade das lógicas midiatizadas como referência interacional (conforme também destacado por Braga, 2007). Na verdade, a natureza dessas lógicas é, em meu entendimento, um
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
Rafael Drumond
ponto frequentemente opaco nas teorias da midiatização, que ora parecem entendê-las
em suas origens midiáticas (a “midiatização da política” como a espetacularização da
arena pública, por exemplo), ora como ethos sociotécnico (o sistema de resposta social e
as novas condições de circulação como redirecionadores das estruturas de produção e
recepção), e ainda, como lógicas congênitas ao modo capitalista de produção (a midiatização como processo complementar às dinâmicas de globalização).
Sobre tais lógicas, duas assertivas me parecem importantes de serem expostas. (1)
A midiatização não prescinde da atividade da mídia institucionalmente estabelecida, ao
contrário, a ela se filia porrazões como a inclusividade e a penetrabilidade do midiático,o
que lhe garante importância entre outras interações (BRAGA apud SILVA, 2012). (2) Por
outro lado, ainda que uma das características da midiatização seja a autonomização do
campo midiático, no sentido do reforço de sua própria institucionalidade mediante o jogo
social, a midiatização não se resume à ação dos meios, seja pela incidência da indústria
cultural ou como decorrência direta da inovação tecnológica, ou do campo dos media.
Não se trata, portanto, de reconhecer a centralidade dos meios na tarefa de organizar a
vida social (uma espécie prática de midiacentrismo), mas de constatar de que o funcionamento social embrenha-se, cada vez mais, em uma cultura das mídias (BRAGA, 2012).
Nesse sentido, tratar a midiatização em sua condição de cultura, ou ainda, de metaprocessualidade, implica justamente na consideração de um conjunto de práticas sociais
e seus modos de interação, tanto no que se refere às relações intersubjetivas, quanto às
conexões sujeito-sociedade e sociedade-mundo. A midiatização atua não só através do
meios – massivos ou digitais –, mas a partir de uma diversidade de “fazeres” e “viveres”, presentes nas relações interpessoais, na burocracia, no usufruto do entretenimento
e na prática religiosa, na transversalidade do mercado e nas estratégias sensíveis da
publicidade; enfim, em todas as atividades, instituições e campos que, explícita ou
implicitamente, socializam os mais diferentes indivíduos em um mundo cada vez mais
regido pelas lógicas midiatizadas (em suas variadas acepções).
Nos próximos itens, desenvolvo o argumento de que o campo da recepção, há algum
tempo, vem promovendo análises nesse campo extramidiático – únicoespaço onde a
midiatização pode emergir a partir de marcas menos explícitas, porém mais profundas
(mais “meta” do que pragmaticamente processuais). Ou seja, credita-se à recepção à
possibilidade de se aproximar das condiçõesestruturantes que permitem não apenas a
emergência de discursos, formas de organização social, produtos e processos midiáticos;
mas também condições reveladas em marcas significantes que inscrevem os sujeitos e
seus corpos na experiência amplamente midiatizada do espaço-tempo presente.
3. A MIDIATIZAÇÃO NOS ESTUDOS DE RECEPÇÃO:
CONTRIBUIÇÕES DE JÉSUS MARTÍN-BARBERO
Os estudos culturais, desde sua origem europeia até a reverberação na escola latino-americana de estudos em Comunicação, patrocinaram um movimento importante no
sentido de deslocar as análises então vigentes da dimensão diegética dos mais diferentes textos (midiáticos ou não) para sua ocorrência situacional, contextual. É com
essa abordagem que a Comunicação retoma as perspectivas da Antropologia como
forma de conhecer seus fenômenos e dar a ver seus objetos, com destaque para o uso
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
Rafael Drumond
de metodologias já habitualizadas por este segundo campo, como o trabalho in loco e
as técnicas de etnografia. Essa postura foi determinante para deslocar a atenção dos
meios de comunicação (alicerce do objeto comunicacional àquela altura) em direção aos
diferentes grupos sociais, no caso, em busca de uma recepção vista como produção de
sentidos (pessoal ou coletiva) em permanente integração aos diferentes mundos da vida
de uma dada estrutura social.
No campo da pesquisa em recepção, mais especificamente na obra de um de seus
autores de referência, Jésus Martín-Barbero, a orientação epistemológica dos estudos
culturais foi determinante para a construção de um pensamento crítico sobre as relações entre comunicação e cultura na América Latina. A emergência do contexto colocado em perspectiva dialética frente à produção midiática fundamenta o axioma que
sintetiza a trajetória intelectual de Barbero nos anos 80 – “dos meios às mediações” –,
expressão síntese de um movimento que, para além de propor uma nova angulação
para velhos fenômenos, trouxe uma nova espessura política e outras sensibilidades ao
objeto comunicacional.
Sem desconsiderar a importância das inquietações e proposições de uma série de
teóricos latino-americanos (Guillermo Orozco Gómez, Néstor García Canclini, Valério Fuenzalida, Jorge González, Renato Ortiz, entre outros), articulo, nos parágrafos
seguintes, as perspectivas acionadas pelos estudos de midiatização às teorias de Martín-Barbero. O fechamento na obra deste último teórico deve-se ao protagonismo assumido
por seus escritos na produção acadêmica brasileira (e não somente na área da recepção).
Para ilustrar a influência de Martín-Barbero no campo da Comunicação no país – e
ainda, sua sintonia com a perspectiva da midiatização – coloco que, no levantamento
bibliográfico realizado pela metapesquisa, o teórico foi o autor mais citado pelos artigos
que trabalharam a temática das interações midiatizadas.
Primeiramente, importante retomar que o próprio Braga nos lembra que a perspectiva
culturalista das mediações – primeira fase do pensamento barberiano, ancorada na crítica
ao funcionalismo midiacêntrico – “é relevante não apenas porque põe em cena o receptor
integrado em seus ambientes, mas também porque começa a fazer perceber processos
midiatizados” (BRAGA, 2012, p.33). Conforme colocado de forma extensiva no livro da
Compós de 2012 (MATTOS, JANOTI JUNIOR; JACKS, 2012), os conceitos de “mediação”
– pilar do edifício teórico barberiano – e “midiatização” apresentam mais convergências
do que distanciamentos, “diferentemente do modo como eles vêm sendo operados (...),
quase sempre em contraposição ou radicalmente separados” (SILVA, 2012, p.107).
Essa aproximação pode ser atribuída ao próprio deslocamento cartográfico efetuado por Martín-Babeiro – ajustede foco em prol do reconhecimento da centralidade do
comunicativo sobre a vida social contemporânea, em suas sucessivas mutações culturais:
nas palavras do teórico, uma mudança que não significa o deslocamento “das mediações
aos meios, mas perceber que a comunicação se adensa diante da nova tecnicidade”, a
partir da “institucionalização” da tecnicidade (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.153). É nesse
novo contexto que Barbero defende a ideia de “mediação dos meios”, proposta segundo
a qual faz-se “preciso assumir não a prioridade dos meios, mas sim que o comunicativo está
se transformando em protagonista de uma maneira muito forte” (MARTÍN-BARBERO,
2009, p.156).
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
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Nessa direção, parece-me plausível afirmar que entre as cartografias de Martín-Barbero e os estudos brasileiros sobre a midiatização existe um ponto de contato no
que se refere à dimensão estruturante dos atuais processos sociocomunicativos. Inspirado
no pensamento heideggeriano – a questão do dispositivo (ou armação) como modo de
desocultamento e geração de possíveis –, Martín-Barbero oferece elementos que corroboram a perspectiva metaprocessual dos fenômenos de midiatização social, tendo em vista
sua colocação sobre a mediação estrutural da tecnicidade e as mudanças promovidas
por ela sobre o estatuto cognitivo/industrial das condições de saber e das figuras da razão
(MARTÍN-BARBERO; REY, 2004; MARTÍN-BARBERO, 2014). É no contexto dos paradoxais fluxos da globalização que o autor vê emergir um novo sensorium, um entorno
técnico-comunicativo caracterizado por outras linguagens, escrituras e gramáticas. Um
processo revelador de um lugar epistemológico ocupado pela cultura das imagens em
meio à sociedade, momento a partir do qual a tecnicidade perde o tratamento meramente
instrumental para “espessar-se, densificar-se, e se converter em estrutural, pois a tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a novos modos de percepção
e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.35).
Necessário, então, destacar que a midiatização deslocou e/ou minou as cartografias que, há pouco, orientavam a vida coletiva e os processos identitários correlatos,
transformando, assim, as matrizes constitutivas do corpo social. Os modosde partilha
subsumidos aos sujeitos e às instituições compõem agora um impreciso redesenho
macroestrutural das mediações comunicativas da cultura(segunda fase do pensamento de
Barbero), o que faz do atual estágio da midiatização, um processo “em vias de” (FAUSTO
NETO, 2008), marcado por lacunas e incompletudes (BRAGA, 2007). Esse inacabamento
dos processos e das práticas midiatizadas revela a opacidade, a incerteza e a experimentação que configuram as sociedades contemporâneas, transitoriedade que intensifica
as formas de aprendizado socialmediadas pela necessidade, sempre pungente, de se
acompanhar o motor cada vez mais acelerado da história.
Em certa medida, as proposições de Martín-Barbero afinam-se ainda à leitura axiológica empreendida por Muniz Sodré sobre a midiatização das sociedades capitalistas,
mais especificamente no que se refere ao protagonismo assumido pelo mercado como
vetor fundamental das agendas sociais. Para Barbero (2004), a hegemonia comunicacional
do mercado na sociedade tende a deslegitimar qualquer questionamento acerca de uma
ordem à qual, supostamente, apenas as lógicas mercantis e as tecnologias permitiriam
dar forma. Barbero chama a atenção para o fato de que a mídia hoje desempenha papel
inverso àquele que os meios de comunicação de massa promoveram no contexto da
expansão e do fortalecimento dos Estado-Nações; atualmente, esses meios articulam
identidades fragmentadas, promovendo um paradoxal movimento de internacionalização da cultura e de revitalização dos laços locais. Para Muniz Sodré (2006a, p.28), por sua
vez, a midiatização da sociedade produz um ethos vicário, “atravessado por injunções
na ordem de “ter de” e “dever” suscetível de configurar uma circularidade de natureza
moral, fundamentada pela tecnologia e pelo mercado”. Essa perspectiva, nuclear para o
pensamento de Sodré – aponto de alguns comentadores (LEAL et al, 2010) aproximarem
seu pensamento ao edifício teórico debordiano – encontra, em ambos autores, pontos
de calibragem, sobretudo na questão das brechas midiáticas e das novas narratividades
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sociais (em Barbero) e no reconhecimento das matrizes sensíveis do vínculo comunitário
(em Sodré).
Por fim, coloco a potência das cartografias de Martín-Barbero no sentido de articularem, a um só tempo, a dimensão diacrônica e sincrônica dos fenômenos comunicacionais. No que se refere ao primeiro eixo temporal, nota-se como a relação entre formatos
industriais e matrizes culturais é utilizada para conferir profundidade histórico-política
ao pensamento de Barbero, particularmente no que se refere aos processos de midiatização do continente latino americano. Por outro lado, Barbero trabalha as condições
atuais de circulação midiática a partir de um esquema sincrônico entre as lógicas de
produção e as competências recepcionais. Nesse âmbito, o autor se dedica a entender
como a midiatização social vem reconfigurando o espaço público a partir da mediação
da visibilidade, promovendo novos mecanismos de regulação social e outros quadros
de identificação, e ainda, novas relações entre o local, o nacional e global.
Acredito, assim, que o complexo teórico de Martín-Barbero possa oferecer pistas interessantes e apontar caminhos importantes às pesquisas sobre a midiatização
social, particularmente no sentido de resgatar ou descortinar as possibilidades de leitura
oriundas da conjugação de um olhar diacrônico problematizador e uma abordagem
metodologicamente capaz de reconhecer o contemporâneo em seus múltiplos devires.
4. A POTÊNCIA DA RECEPÇÃO
Em vista do exposto, tematizo o risco das abordagens que entendem a midiatização por uma perspectiva temporal de alcance recente, tendo em vista a inevitável
proximidade entre as práticas midiatizadas e as possibilidades interativas promovidas
pelas tecnologias da comunicação. Nessa direção, importante pontuar que, apesar da
contiguidade entre a cultura contemporânea de redes e tais processos – relacionados,
particularmente, por aquilo que, em termos de circulação, vem realterando o trabalho
social de produção dos sentidos (FAUSTO NETO, 2008) –, torna-se necessário, para o
entendimento metaprocessual do fenômeno, não encerrá-lo nas prerrogativas técnicas dos
dispositivos e tampouco em práticas segmentadas de uso; depende-se, antes, da reflexão
sobre a expressividade sociocultural desse “metadispositivo”, já que “a midiatização se
põe hoje como principal mediação de todos os processos sociais” (BRAGA, p.51, 2012).
Por outro lado, a pertinência das pesquisas sobre o campo digital, ou ainda, a
vitalidade dos objetos que parecem encarnar o espírito desse novíssimo tempo – interações em rede, geração de conteúdo por usuários (GCU), iniciativas de broadcasting,
programação televisiva on demand, entre outros – gera um quadro favorável à abordagem
sincrônica dos fenômenos, o que, não raro, conduz à desancoragem histórica desses
mesmos objetos. Dessa desancoragem é que surgem, não raramente, visões quase
homeostáticas dos processos contemporâneos de comunicação, isto é, toda a mitologia
da ubiquidade das dinâmicas digitais e uma suposta crença no poder emancipatório
da interatividade.
É desse contexto que aponto a importância de se olhar o comunicacional a partir do
núcleo “sujeito” – esforço distintivo do campo da recepção no bojo dos estudos comunicacionais. Em geral, quando se trata de midiatização, discorre-se sobre a midiatização
das instituições ou dos campos sociais, sobre suas lógicas de funcionamento, ou ainda,
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acerca de possíveis relações de causa-efeito; com mais raridade, tematiza-se as subjetividades que usufruem, sofrem e alimentam essas mesmas dinâmicas.
No entanto, para que o campo da recepção possa se alinhar aos estudos de midiatização – não só nos sentido das aproximações teóricas, mas ainda, por protocolos metodológicos que utilizem da recepção como campo de produção de conhecimento – faz-se
necessário a superação das críticas nominalistas que entendem a recepção apenas em sua
relação bilateral frente às estruturas de produção midiática e, assim, tomam a parte (as
práticas de recepção) como equivalente ao todo (campo do conhecimento marcado pela
especificidade de um repertório teórico e um conjunto de metodologias preferenciais).
Discordo, assim, de perspectivas que, na tentativa de deslocar a recepção, insistem em
compreender as vicissitudes desse campo a partir de uma relação exclusiva frente aos
meios; e ainda, que a partir de tal redução, postulam o limite desses estudos em alcançarem as complexidades trazidas pelo mundo contemporâneo.
Luiz Martino (2014), em artigo apresentado ao GT de Epistemologia da Compós,
sugere a necessidade de realocar a recepção a partir de três insuficiências, todas assentadas sobre o campo midiático. São elas: a adequação do conceito de recepção a qualquer
tipo de meio de comunicação, ignorando diferenças entre meios de massa e meios digitais
interativos; a definição instrumental dos meios de comunicação; a da recepção como uma
instituição social (agendada midiaticamente). Sem discordar que as pesquisas do gênero
incorrem, com inequívoca frequência, nos lugares criticados, trabalho com a ideia de que
campo da recepção deve se voltar para a natureza histórica de suas preocupações, o que,
conforme já colocado, foi marcada justamente pela extrapolação dos quadros midiáticos.
Assim, considerando a transversalidade da mídia nas sociedades midiatizadas, o lugar
dessas pesquisas não seria, necessariamente, os modos de relação frente aos diferentes
meios, mas antes, as dinâmicas implicadas aos sujeitos e suas experiências de vida no
interior de sociedades atravessadas por um elevado grau de midiatização.
Mediante tal proposta, a recepção reafirma sua relação de tensionamento das interfaces comunicacionais, e, em consonância ao conceito de midiatização, aposta na reedição
de velhas – e insuperáveis – questões do campo da Comunicação, como, por exemplo, a
relação entre a especificidade e a indeterminação de seu objeto científico. Voltamos ao
tratamento da dimensão extramidiática dos fenômenos, agora assumindo não a crítica
ao midiacentrismo, mas uma outra forma de centralidade do comunicativo. Sem deixar
de ser um aspecto importante – imprescindível, inclusive – o midiático estabelece uma
complexa relação de forças frente ao político, ao cultural e até mesmo ao mercadológico, cabendo aos pesquisadores do campo buscar novas artimanhas para dar conta
dos seus múltiplos (e por vezes sutis) modos de presença. Afinal, a midiatização traz
o comunicativo para centro da atividade social contemporânea, porém o faz de forma
difusa e metaprocessual, sendo, portanto, uma dinâmica que rompe com a segurança
epistemológica gerada em torno da institucionalidade midiática. Nesse extravasamento das questões relativas às mídias – sobretudo quando entendidas apenas de forma
técnica ou empresarial –, o objeto comunicacional transforma os limites das interfaces
em potência de renovação, sendo a entrada por outros campos do conhecimento (Sociologia, Antropologia, Psicologia...) uma forma de pluralizar o entendimento sobre os
fenômenos em questão.
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No meu modo de ver, talvez interno demais em relação ao campo que me motiva, as
mudanças acarretadas pela midiatização não significam a bancarrota de uma atividade
de pesquisa pulsante (politizada e humanizada – características raras ao conhecimento
que produzimos hoje); ao contrário, essas transformações podem ser entendidas como
a energia necessária para que a recepção siga as orientações de Barbero e reencontre,
mediante a perda do objeto, o caminho dificilmente demarcável da Comunicação. Sim,
a recepção ainda alcança, sobretudo quando ela se recorda que seus objetos, antes de
tudo, atendem pela condição de sujeitos.
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Recepção e midiatização: aproximações epistemológicas
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Construção de perfis identitários de frequentadores
da internet: qual o lugar da sociodemografia?
Construction of profiles for internet goers:
where is the place of the sociodemographic data?
Antonio Hélio Junqueir a1
Resumo: O artigo tem por objeto o tensionamento contemporâneo prevalecente
na construção de perfis de frequentadores do ciberespaço, que se dá pela interpelação do papel válido e possível dos indicadores sociodemográficos tradicionais nesta tarefa, incluindo: idade, gênero, classe social, nível educacional e
localização geográfica. Neste contexto, contrapõe e discute abordagens teóricas
construídas a partir do marketing e dos estudos do comportamento e do consumo, que – baseadas em ideologias neotribalistas ou em conceitos de fluxos
comunicativos, viabilizam categorizações mais livres e flexíveis –, com outras
mais afeitas a tradições da pesquisa em ciências sociais, para as quais os indicadores socioeconômicos, antes mencionados, possuem relevância reconhecida
e decisivamente legitimada no campo acadêmico. Empiricamente elege, para
discussão, estatísticas e análises quali-quantitativas da pesquisa “Juventude
Conectada”, da Fundação Telefônica Brasil (2014), que entrevistou 1.440 jovens
de 16 a 24 anos em todo o Brasil, objetivando identificar, discutir e compreender
aspectos comportamentais e atitudinais desse público. Como resultado, o artigo
conclui pela proposição da adoção futura de procedimentos metodológicos e
analíticos de investigação que contemplem, simultaneamente, no âmbito da
pesquisa acadêmica, elementos de ambas as abordagens consideradas.
Palavras-Chave: Internet. Perfis identitários. Estilos de vida. Categorização.
Consumo.
Abstract: The article focuses on the prevailing contemporary tension in the
construction of cyberspace goers profiles, which is by questioning the valid and
possible role of traditional socio-demographic indicators in this task, including
age, gender, social class, educational level and geographic location. In this context, contrasts and discusses theoretical approaches built from marketing and
studies of behavior and consumption, which - based on neotribalistas ideologies
or concepts of communicative flows, enable more free and flexible categorization
- with other more attuned to other traditions of social science research, for which the socio-economic indicators, mentioned above, have significant relevance
and decisively legitimized in the academic field. Empirically elect for discussion, statistics and qualitative and quantitative analysis of the research “Youth
Connected”, Fundación Telefónica Brazil (2014), which surveyed 1,440 young
people from 16 to 24 years in Brazil, aiming to identify, discuss and understand
1. Doutor em Ciências da Comunicação, pela Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo;
Mestre em Comunicação

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