Grande Comentário Bíblico – Salmos 2 – 73-150, Paulus

Transcrição

Grande Comentário Bíblico – Salmos 2 – 73-150, Paulus
SALMOS II
Título original
SALMOS II (Salmos 73-150)
© Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra), Espanha 1992
Tradução
João Rezende Costa
Revisão
H. Dalbosco e M. Nascimento
Em 23 de maio de 1992 morria, aos 46 anos de idade, a professora
Cecília Carniti. Grande conhecedora de línguas orientais (acádico,
ugarítico, fenício, hebraico, aramaico, siríaco e árabe) e muito versada
e interessada em questões gramaticais do hebraico bíblico. Sua colabo­
ração foi preciosa na análise filológica do primeiro volume e até o salmo
115 do segundo. Nos restantes, ainda que se procure suprir sua ausên­
cia, haveremos de sentir a falta de sua competência e dedicação.
© PAULUS- 1998
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ISBN 85-349-1279-3
ISBN 84-7151-668-3 (ed. original)
Bibliografia especial para a análise filológica1
* Gramáticas e dicionários
J. Barth, Die Nominalbildung in semitischen Sprachen, Leipzig, 1894,2- ed.
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Leipzig, 1909, 28a ed. (GK).
W. Gesenius, Thesaurus philologicus criticus linguae hebraeaeetchaldaeae
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über das Alte Testament, Leipzig, 1921, 17a ed. (GB).
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Fr. E. König, Historisch-comparative Syntax der hebräischen Sprache,
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W. von Soden,AkkadischesHandwörterbuch, I-III, Wiesbaden, 1965-1981.
(AHW).
1
Toda a bibliografia deste II volume foi revisada por José Enrique Aguilar Chin, a quem
agradecemos seu trabalho.
926
Salmos II
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33/47, Roma, 1969. ( GAG).
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H. Gunkel, Die Psalmen (Göttinger Handkommentar zum Alten Testament
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Bibliografia especial
927
E. Podechard, Le Psautier. Notes critiques, I: Ps 1-75 (Bibliothèque de la
Faculté Catholique de Théologie de Lyon 4), Lyon, 1949.
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Rabbi Davidis Kimchi commentarii in Psalmos Davidis regis et
prophetae ex hebraeo Latine reddidi a Domino Ambrosio lanvier,
Paris, 1966. (Qim).
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L. Jacquet, Les Psaumes et le coeur de l’homme. Etude textuelle, littéraire
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Salmo 73
1. Texto
1
2
3
Como Deus é bom para o homem honrado,
Deus para os limpos de coração!
Mas eu, por pouco tropeçam meus pés,
quase resvalaram meus passos,
porque invejava os perversos
vendo prosperar os malvados.
4
Para eles não há desgostos,
seu ventre está são e roliço;
5 não passam as fadigas humanas
nem sofrem como os outros.
6 Por isso seu colar é o orgulho
e se vestem de traje de violência.
7 Seus olhos assomam entre as carnes
e lhes passam fantasias pela mente.
8 Insultam e falam com malícia
e desde o alto ameaçam com a opressão.
9 Sua boca se atreve com o céu
e sua língua passeia pela terra.
10 Por isso os seguem seus sequazes
e deles se abeberam copiosamente.
11 Eles dizem: Acaso vai saber Deus,
vai se inteirar o Altíssimo?
12 Assim são os malvados:
sempre seguros acumulam riquezas.
13 Então, para que purifico minha consciência
E me lavo as mãos como inocente?
14 Por que me contenho todo dia
e me corrijo cada manhã?
15 Se eu dissesse que vou falar como eles,
renegaria a estirpe de teus filhos.
930
Salmo 73
16 Meditava eu para entendê-lo,
mas me foi muito difícil,
17 até que entrei no mistério de Deus
e compreendi o destino deles.
18 E verdade: tu os pões no resvadadeiro,
os precipitas na ruína;
19 num momento causam horror
e terminam consumidos de espantos:
20 como um sonho ao despertar, Senhor,
como imagens que se desprezam ao levantar-se.
21 Quando meu coração se amargurava
e se me pungiam os rins,
22 eu era néscio e ignorante,
era animal diante de ti.
23 Mas eu sempre estarei contigo:
seguras minha mão direita,
24 guias-me segundo teus planos
e a destino glorioso me conduzes.
25 A quem tenho eu no céu ?
Contigo, que me importa a terra?
26 Ainda que se consumam minha carne e minha mente,
Deus é a rocha de minha mente, meu lote perpétuo.
27 Sim, os que se afastam de ti se perdem,
destróis os que te são infiéis.
28 Para mim o bem é estar junto de Deus,
fazer do Senhor meu refúgio
e contar todas as tuas ações.
2. Bibliografia
G. Kuhn, Bemerkungen zu Psalm 73, ZA W 55 (1937) 307-308.
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E.
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S. H. Blank, The nearness o fG o d and Ps 73, em To do and to teach, FS
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Bibliografia
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J. Guillet, L ’entrée du juste dans la gloire, Ps 73, BVC 9 (1955) 58-70.
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G. Castellino, Salmo 73,10, emFS G. Levi délia Vida, Roma, 1956,141-150.
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A. Roifer, Ps 73,7, Tarbiz 32 (1962-63) 109-113.
L. R. Fischer, The temple quarter, JSS 8 (1963) 34-41.
A. Deissler, Dennoch ist der Herr voll Huld! Die Lösungsentwürfe des
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D. M. Lloyd-Jones, Faith and trial. Studies on Ps 73, Londres, 1965.
H. Donner, Ugaritismen in der Psalmenforschung, ZAW 79 (1967) 322-335.
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A. Schmitt, Entrückung - Aufnahme - Himmelfahrt. Untersuchungen zu
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T. L. Smith, A crisis in faith: an exegesis ofPs 73, RestO 17 (1974) 162-184.
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J. Luyten, Psalm 73 and Wisdom, em La sagesse de TAT, Gembloux/
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B. Renaud, Le psaume 73, méditation individuelle ou prière collective?,
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S. D. Sfriso, Adhaerere Deo. L ’unione conDio. Sal 73,28, Bréscia, 1980.
R. Tournai, Le psaume 73: relectures et interprétation, RB 92 (1985) 187-200.
Lista alfabética
Alonso
Birkeland
Blank
de Boer
Caquot
Castellino
Chester
Deissler
61
55
53
68
71
56
77
65
Dijkstra
Donner
Drijvers
Fischer
Guillet
Illman
Jellicoe
Koch
76
67
80
63
55
76
55
72
932
Salmo 73
Kuhn
Lloyd
Luyten
Mannati
Münch
O ’Callaghan
Renaud
Ringgren
37
65
79
71.72
37
54
79
53
Roifer
Ross
Schilling
Schmitt
Sfriso
Smith
Tournay
Würthwein
62
78
61
73
80
74
85
50
3. Análise filológica
1. lysr’l: layyashar ’el Du Gun Graetz Kraus.
2. ntwy: ketib natuy (cf. 2Sm 15,32) ou rftuy (Nm 24,4) referido a w’ny;
ou qere natayu GK 75 ou referido a rgly.
spkh: ketib shuppeka prov com a antiga desinência da 3®fern, plural;
qere shuppeku.
4. Imwtm: ‘ad motam - usque ad mortem eorum (cf. ld‘tw Is 7,15) Ibn
Ezra Ros; Targum = non terrentur aut conturbantur propter diem mortis.
Dividem lamo tam e o unem ao segundo hemistíquio Hitzig Del Briggs Du
Gun Dah Kr.
5. ‘m: com valor comparativo Zorell l.b), DBHE.
6. ‘nqtmw: de ‘nq = cingir, 3g fern sgl + sufixo.
shyt: subst constructo regendo hms Hitzig Gun; predicado do complemento
(segundo os acentos) Del
7. yç’ : 3a masc sgl diante de sujeito fern pl Joüon 150b.
mhlb: dos grossos / gordos (lábios) = aus fetten Lippen Duhm.
8. br’: adverbial Del.
9. shtv: de shtt, alomorfo de shyt GK 67 ee 72 dd.
thlk\ cf. Ex 9,23.
10. yshyb: ketib hif, talvez com valor intransitivo, qere qal: volta-se
hlm: aqui, quer dizer, à sua mentalidade e conduta Rasi Ros.
wmy m l’ : hemerai plereis LXX, dies pleni Vg; a BHS ap propõe
ler o sintagma umillehem yamoçu = se sorvem as palavras. Jerôn = et
quisplenus invenietur in eis?; Targum = “lágrimas abundantes fluem
deles”.
12. wshshlwy ‘wlm = para a construção veja-se GK 128 wx.
14. Ibqrym: adv temporal com valor distributivo (cf. Jó 7,18; Is 33,2)
GB 370b DBHE 113-114.
15. kmw: adv modal equivalente de kema Del Dach; cf. E. König,
Historischkritisches Lehrgebäude der Hebräischen Sprache, II, 250, Leipzig,
1895; adv temporal wie oft Hitzig.
933
Estudo global
16. hy’ : ketib fem concordando com z’t, qere hw’, masc concordando
com ‘ml.
17. ’bynh: coorte, talvez com valor de consequência: e assim Joüon 116
c.i.
18. Imw: com part de acusativo.
20. b‘yr: apocopado por beha‘r = ao despertar-se, intrans. Hitzig com­
para SI 35,23 com 44,24.
21. wklwty: acusativo de parte.
22. bhmwt: nome sgl, do hipopótamo Hitzig; pl intensivo ou sgl fenício
em -ôt Dah.
24. w’hr: adv como SI 68,26.
kbwd: acusativo de lugar.
28. sty: GK 73 d.
4. Estudo global
a) Gênero literário
Este salmo desafia a catalogação e desacredita o afã dos que preten­
dem classificar com todo rigor e a todo custo. O poeta não é rigoroso e não
tem por que se submeter aos rigores da erudição. Há quem pense ser
lamentação, sugerindo até mesmo o desterro como ocasião; há quem o
considere cântico de ação de graças; outros, porém, dividem-se entre ato de
confiança e profissão de inocência. Um pouco de tudo isso arrasta o curso
torrencial do salmo. Mas a descrição que melhor lhe cabe é a de meditação
sapiencial. O caráter sapiencial é patente pela discussão do problema da
retribuição, pelo vocabulário, pelo parentesco com páginas de Jó e Eclesiastes.
No entanto, o “sapiencial” é adjetivo; o substantivo é a meditação como
forma privilegiada de oração. O que nos conduz à piedade individual mais
que à celebração litúrgica.
b) Composição
Entre uma introdução programática (v. 1) e um epílogo ou conclusão
(27s), o corpo articula-se em quatro secções com dois paralelismos de
antíteses:
I.
II.
III.
IV.
2-12
13-16
17-22
23-26
vida feliz dos malvados.
vida desgraçada do orante.
destino desgraçado dos malvados.
destino feliz do orante.
934
Salmo 73
Apesar dessa aparência simples, obtida por redução a esquema, o
salmo tem complexidade pouco freqüente, provocada talvez pelo proble­
ma que se debate. Para captar essa complexidade e para descobrir como
se organiza o sentido, começo analisando alguns sinais estilísticos ou
formais.
— Partículas e elementos articulatórios. Encontramos ’k em 1.13.18 e
w’ny em 2.22.23.28. Essas peças se repartem e funcionam assim:
I.2. ’k e w’ny unem a introdução à primeira parte, provocando efeito
de surpresa, de objeção: “será assim, mas o que eu sou...”.
13.
Outro ’k introduz a segunda parte com uma chamada de atenção e
uma volta sobre si mesmo.
18.22. A terceira parte leva ’k quase no começo e w’ny em seu último
versículo.
23.28. A quarta parte começa com w’ny, e o epílogo leva outra vez w’ny
no versículo final do poema. Assim o último w’ny incorpora-se à inclusão
maior de 2 com 28 e forma inclusão menor com 23.
Tudo isso produz variado jogo de contrastes e empurra para primeiro
plano a pessoa do orante.
— Repetição de palavras ou lexemas:
5,14.16.
Reptetem-se ‘ml e ng‘ nas duas primeiras partes com valor
antitético.
II.19. oduplo^yfe / ’ykah sublinha a antítese da primeira com a terceira
parte.
9.25. Repetem-se shmym + ’rç na primeira e na quarta parte com
função antitética.
12.26. Repete-se ‘wlm em frases antitéticas.
17.24. Contrapõe-se o ’hryt da terceira parte ao ’hr da quarta.
16.22. O d‘t da segunda parte ressoa na terceira.
1.28. Forma inclusão com o termo twb.
Ficam assim travadas as diversas secções, de modo não insistente. Os
dados são de um lado expressão do debate anterior (o jogo das antíteses),
e de outro mostram o esforço para conter e dar forma ao debate. Servem
para organizar e articular o sentido.
— A luz dessas correspondências e oposições, alguém poderia pensar
que uma distância intelectual teria transformado a agitação em esquema,
usando as coordenadas eu / eles, agora / no final. Mas o poema não chegou
a essa distância última, quase congeladora da paixão. Uma série de
elementos resistem à perfeita simetria e à rigorosa regularidade. Não
quero dizer que, uma vez obtidas a simetria e a regularidade, o poeta tenha
buscado diminuí-la ou dissimulá-la, mas antes que o poema consolida-se
antes de chegar ao ponto do esquema perfeito.
Estudo global
935
Um dado bem significativo são os versículos 21-22, onde a segunda
parte invade por retrospecção a terceira; em outras palavras, na libertação
da terceira parte o poeta ainda sente a agitação da segunda. Estes
versículos dificultam a divisão lógica do poema, como mostram diversas
tentativas dos comentadores.
Ademais, a relação temporal entra na quarta parte, e a terceira não é
tão perfeita como sugeria a coordenada agora / no final. Pois, se bem que
para o malvado haja futuro desgraçado, o honrado antecipa o futuro no
presente.
O movimento sintático confirma-o. Domina, na primeira parte, a
regularidade, descrevendo homens seguros de si mesmos; as partículas
produzem um ritmo ou cursus amplo: k i ... k i ... laken ... laken ... hinne. A
segunda parte é muito agitada, com mudanças de tempos e partículas:
qatal + yiqtol, particípio, ’im ... hinne ... ‘ad. A terceira torna-se mais
regular, com a alternância duplicada Deus-eles, Deus-eles. Na quarta
retorna a irregularidade sintática.
Mas esses dados formais convergentes não são puramente ornamen­
tais e extrínsecos ao sentido. Eles preparam a análise que segue.
c) Problema sapiencial pessoal
— É claro que o poema confronta-se com um problema tipicamente
sapiencial: a sorte ou o destino de bons e maus. E o problema clássico da
retribuição, em perspectiva intramundana e contando com Deus. E preciso
ler o SI 37, seguro e ingênuo, como peça de comparação. Os maus se chamam
aí rsh’ como em outras partes, o bom toma o nome pouco usado de nqy =
inocente.
Também é de índole sapiencial a etopéia ou descrição de um caráter ou
tipo humano: como o bêbado em Pr 23, o preguiçoso em Pr 24, a tentadora
em Pr 7, etc. Sapienciais são uma série de termos formando paradigma: r’h,
yd\ d‘t, hshb, byn, b‘r, twkht.
— O peculiar do salmo é a intensa personalização do problema
sapiencial. Mais que tema de reflexão, é experiência dolorosa e pungente.
Lê-se seis vezes a palavra Ibb = coração, mente, em sugestivas
associações (1.7.13.21.26): com olhos em 7, com mãos em 13, com rins em
21, com carne em 26. A interioridade expressa-se em termos abertamente
corporais, englobando olhares a ações, paixões e imaginações, sentindo a
radical unidade do homem.
Como peça de introspecção, o salmo é superlativo: este “azedar” da
mente, as “pontadas” interiores, a auto-acusação matutina, o desfalecer e
consumir-se, as condições potenciais ou irreais em que aflora o diálogo
936
Salmo 73
interior. O orante toma-se como objeto de observação, e busca e cria uma
linguagem para expressar a misteriosa intimidade. Pela força de intros­
pecção, esse salmo compete com muitas páginas de Jó e antecipa muitos
escritores espirituais de nossa tradição.
Em resumo, se falei de problema pessoal, o adjetivo absorve o subs­
tantivo.Toda a descrição dos malvados, ou etopéia, entra no salmo como
realidade “vista” pelo orante. Fala da realidade tal como a viu e está
vivendo. E fácil compreender que todas as interjeições e partículas são
expressão e não cálculo intelectual.
—
Mas a resposta ao problema sapiencial não é sapiencial: é resposta
de contemplação. Como mais tarde o Eclesiastes, esforçou-se nosso autor
para encontrar a solução por força de indagar e refletir: “eu meditava para
entender”; e fracassa. Era necessário o fracasso para que o orante se abrisse
a visão nova, não conquistada, mas recebida como dom. A busca foi oração
não menos que estudo. Quando na oração o homem declara-se vencido,
Deus lhe desvenda os olhos; ou abre suas portas. Soergue-o para olhar em
nova perspectiva mais alta e de mais alcance. Deus comunica e comunicase a si mesmo, e o autor dá-nos testemunho de sua última experiência.
Notemos os sujeitos das quatro secções:
I.
II.
III.
IV.
Dominam “eles”, mas, dentro da visão do “eu”, com desprezo de Deus.
Domina totalmente o “eu”, em luta e processo até “entrar e compreender”.
Domina Deus, na segunda pessoa, determinando o destino “deles”.
Intensa união de Deus e “eu”.
No salmo, Deus não fala. Num momento reduz-se a uma presença no
pronome, sentida imediatamente, mais valiosa do que tudo.
Aqui surge o problema da comunicação. Que Deus se comunica efi­
cazmente ao orante, não resta dúvida; mas comunica-se o autor eficazmen­
te com os leitores? Não se revela pobre o testemunho da parte quarta
comparado com a rica descrição da primeira? O autor de sua parte faz o que
pode; o leitor de sua parte pode ficar de fora se não entrar em experiência
espiritual semelhante. Em termos puramente intelectuais, o salmo não
satisfaz. Mas se o salmo nos faz notar o fracasso do racioncínio, conduz-nos
à oração e prepara-nos para a experiência, o salmo cumpre uma função
maravilhosa. Escutemos as estrofes da João da Cruz:
“Eu não sabia aonde entrava,
mas quando me vi ali,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi;
não direi o que senti,
pois fiquei não sabendo,
toda ciência transcendendo.
Exegese
937
Quem ali chega de verdade,
de si mesmo desfalece;
tudo que sabia com anterioridade,
muito baixo lhe parece;
e sua ciência tanto cresce,
que fica não sabendo,
toda ciência transcendendo”.
O salmo 73 é oração em voz alta, onde o orante mantém a consciência
de si, expressa e tematiza seus afetos, age e fala de sua atividade. Pode
converter-se em manual mínimo de oração.
5. Exegese
1.
O texto hebraico atual diz: Que bom é Deus para Israel, para os
limpos de coração! Ou Israel se identifica em bloco com os de coração puro
como outras vezes com os ‘nwym), ou o segundo hemistíquio restringe o
alcance do primeiro: “Israel, entenda-se, os limpos de coração”. Com muitos
comentadores aceito a correção mínima lyshr ’l / ’Ihym ...: estabelece-se o
paralelismo de ’l e ’Ihym, de ishr e bry Ibb (como aparece na tradução).
“Israel” seria leitura posterior, nacionalista, apoiada na identidade gráfica
de s e sh. O enunciado é aforismo tradicional sobre o trato de Deus com o
homem honrado em proceder e atitudes. Aforismo sapiencial que também
se interessa pela interioridade do homem e busca seu bem em relação para
com Deus. Não usa o nome de Yhwh, mas o genérico e do Deus supremo ’el.
Verdade ético-religiosa, repetida em tom ponderativo. Não enunciado
pessoal do orante, mas ponto e tema para sua meditação. A maneira de
meditar essa verdade pode ter sido a do salmo 37: buscando ilustrações
para confirmá-la, apelando à experiência dos anciãos e às bênçãos da
aliança. O orante não começa em tom afirmativo e gozoso, mas logo surge
a objeção.
2-12. Primeira parte. A objeção brota da experiência pessoal, que lhe
ensina o contrário (como a Jó), e pode tanto ou mais que um aforismo
tradicional aceito sem crítica. A objeção subministrou a partícula inicial
ponderativa para acentuar o contraste (só o salmo 62 começa também por
’k e o apresenta seis vezes em doze versículos).
Olhando para si mesmo, vê que não realiza a definição do primeiro
versículo: “na exclamação inicial condena-se a si mesmo”, diz Cassiodoro.
Por fora, mal mantém passo firme e seguro, por dentro, carcome-o a inveja:
tem razão? A experiência pessoal (via) se lhe impõe. Serão essas tentações
que surgem na solidão interior da oração e se devem rejeitar energicamente
para voltar ao ponto de meditação preparado?
938
Salmo 73
O
orante faz o contrário. Mobiliza a fantasia para que projete em su
mente a imagem dos malvados felizes. Não lhe basta a síntese decantada
de sua experiência, abandona-se a visão plástica e intensa. A imaginação
se compraz em contemplar cenas que contradizem a doutrina recebida (algo
menos que Jó 21). A fantasia é “a louca da casa”, que torna cada vez mais
difícil meditar serenamente sobre o tema.
A descrição escolhe detalhes significativos que vai formulando em
frases elaboradas. Detalhes visuais, como o corpo (ou pança) roliço, os olhos
apenas assomando de uma cova adiposa, o pescoço de que pende a soberba.
Escuta suas palavras lançadas desdenhosamente a partir de altivez arro­
gante; retrata-os no meio do universo, aplicando sua boca blasfema ao céu
e varrendo a terra com a língua (como que um urso formigueiro). Também
penetra no interior dos malvados, por onde passam fantasias e se nega um
Deus que se inteira e retribui. Os malvados formam classe privilegiada,
acima da sorte comum dos mortais, e arrastam séquito numeroso de
admiradores e seguidores encantados.
A descrição é magistral, e está toda a serviço da oração, como peça
dialética, e não a serviço da doutrina oficial. O orante pode tirar o resultado
da operação e lançá-la diante (hinne) em oposição ao enunciado inicial e
programático. As palavras shlwn e shlwy (3 e 12) seguram formalmente a
secção; o ‘wlm põe acento definitivo.
2. km‘t e k ’yn, com valor adverbial, tornam a oração irreal ou potencial
= faltou pouco, não faltou nada, quase. Literalmente, inclinam-se/desviamse os pés, derramam-se os passos.
3. Recorde-se o conselho de Pr 24,1: Não invejes os malvados nem
desejes viver com eles.
4. Os antigos leram uma referência à morte com diversos mati­
zes: não a temem, não se afligem com sua lembrança (Genebrardo), não
sofrem antes ou na morte (Hoenen), não pensam na morte para gozar
(Titelmann), etc. O duvidoso ’wl = vigor, ventre?, leram-no com o sufixo
com o significado de átrio, vestíbulo (Jerôn), stehen fest wie ein Palast
(Lutero).
5. O olhar estende-se a horizonte humano universal: misérias co­
muns, comenta Genebrardo, Jó 21,23s.
6. A imagem de uma qualidade abstrata como peça de vestir ou de
ornamento é bem conhecida, p. ex., Is 11,5: cinturão ou faixa; aqui usa-se
um verbo denominativo de colar; como se dissesse: “encolara-os”, adornamse ou ostentam sua soberba como se fosse sinal de dignidade. A Vulgata
anulou a imagem: tenuit = sujeitou, Sa possedit = apodera-se. Outros
desviaram o sentido: como coleira de prisioneiros pensa Lindolfo de Saxônia,
e o cardeal Hugo fala de laço que enreda.
Exegese
939
7. O significado de hlb = gordura é indubitável. O duvidoso é se
devemos ler “olhos” com o hebraico ou “crimes” com os antigos, LXX e Vg.
Mantenho o sentido físico descritivo: de bochechas gordalhudas, os olhos
parecem assomar, brotar. Gordura e mesmo obesidade como sinais de bemestar: recorde-se o rei Eglon de Jz 3, ou a descrição de Jó 15,27:
porque ia engordando as bochechas
e lançando carnes nos lombos,
ou Dt 32,15 “engordou meu Carinho e deu coices”; também Jr 46,21; Is
10,16; e o sarcasmo de Tg 5,5.
O segundo hemistíquio mantém o caráter descritivo: as imaginações
são imagens, antes de ser “afetos” (Vg), pensamentos (Jerôn), hábitos
iEutímio), desejos (Dionísio Cartusiano), etc.
8. Desde cima: seja a posição social de riqueza e poder, seja a atitude
altaneira. A altura é sua vantagem tática.
9. Céu e terra compõem o universo criado; o céu morada de Deus, a
terra herança do homem (SI 115,16). Os malvados, fazendo-se centro por
sua arrogância, pretendem abarcar o universo, pelo menos com a língua. O
soberbo imperador pretendia escalar o céu (Is 14,13s), ao soberbo do salmo
basta colocar a boca, as palavras no céu; não sabe que só a oração humilde
alcança o céu. Sua “língua”, suas palavras “passeiam” tranqüilamente pela
terra: que sentido podemos dar a essas palavras na era das comunicações
planetárias? Pode-se comparar com o SI 12.
10. O texto deste versículo é extremamente difícil. A primeira parte
literalmente soa assim: por isso fará voltar seu povo para cá. Sujeito Deus
e retorno do exílio? Assim o tentam explicar alguns; mas não se encaixa no
movimento do salmo, e explica-se como leve mudança para introduzir
também aqui a presença de Israel, “povo seu”. Tomando ‘mw como sujeito
e lendo qual yshwb, é seu povo, sua gente os que voltam; hlm é o estilo de
vida ou a mentalidade descrita, metáfora espacial induzida pelo verbo.
A segunda parte soa literalmente: e águas em abundância são sorvidas
para / por eles. Vimos que os antigos leram ymy (dias), prometendo longa
vida ao povo que retornou. Lendo o verbo myç / mçç, temos: sorvem água
em abundância; metáfora para sugerir a avidez com que sua gente os
escuta; veja-se Jó 16,16: “que bebe como água a iniquidade”. Em português
dizemos: “bebem-se suas palavras”. A explicação deste versículo não passa
de conjetura plausível.
11. A idéia é freqüente (SI 10,11; 94,7; Jó 22,13s; Eclo 23,18; Is 29,15;
Ez 8,12; 9,9).
12. E o balanço do anterior. Aumentar riquezas e poder costuma ser
sinal de bênção divina.
940
Salmo 73
13-17. Segunda parte. Se os malvados passassem bem e também os
honrados, poder-se-ia agüentar a maldade ou prescindir dela. A inveja do
orante não é pesar pelo bem alheio, mas vontade de compartilhar dele com
justiça. O que converte a objeção em escândalo é que o honrado passa mal,
tem que se sacrificar sem resultados tangíveis. É esse o tema da segunda
parte, que o autor desenvolve sobriamente.
Não precisa descrever-se a si o que sofre, e recorre ao monólogo
interior. Ao passo que os malvados “não sofrem”, ele “sofre todo o dia” (5 e
14); os malvados vestem-se e adornam-se de soberba e violência, o honrado
lava-se e esfrega mãos e coração (6.13); ao passo que os malvados se sentem
“seguros” em sua conduta, o honrado se confronta criticamente consigo
(12.14).
Tudo isso “em vão”. Como diz Ml 3,14 (citado por Orígenes):
“Não vale a pena servir a Deus: o que tiramos de guardar seus manda­
mentos e de andar enlutados diante do Senhor dos Exércitos? Temos que
felicitar os arrogantes: os malvados prosperam, tentam a Deus impune­
mente”.
O orante “quase dá um mau passo”, que consistiria em passar para o
outro bando, tornando-se mais um de seus seguidores ou sequazes Cmw).
O que equivaleria a “atraiçoar” (bgd) seu próprio grupo. Assim se opõem
‘mw e dwr bnyk = seus sequazes e estirpe de teus filhos. O que sustentou
o honrado em sua tentação foi a lealdade a um grupo (dwr)-, através deste
grupo, Deus se lhe acerca como pai comum (bnyk). Na concepção tradicio­
nal, o israelita individual não leva o título de filho de Deus, só o povo, como
comunidade, é filho de Deus (excetua-se o rei); por isso, ao atraiçoar o grupo,
perde o indivíduo sua participação no título. Pela primeira vez no salmo se
dirige o orante a Deus na segunda pessoa, exatamente no limite da
tentação.
Que tenha superado a tentação grave não significa que o problema está
resolvido. Continua em pé, ameaçando tentar de novo e com mais violência.
E o orante continua girando em torno de si sem encontrar solução. Os
versículos 16-17 são capitais para descrever o processo da meditação, e
tornam-se-nos demais concisos e sem enfeites.
O verbo hshb significa fazer contas, fazer cálculos, ponderar. Aqui
abarca as reflexões da segunda parte (“em vão, debalde”) e parecem incluir
toda a primeira parte, na qual também fazia contas. O v. 16 podia ser o lema
do Eclesiastes:
8,17
Por mais que o homem se fatigue pesquisando, não o averiguará; e
ainda que o sábio procure sabê-lo, não o averiguará.
7,23 “Tudo isso examinei com método pensando chegar a ser sábio, mas
fiquei muito longe. O que existe é remoto e muito obscuro: quem o averiguará?
Exegese
941
O Eclesiastes fica em sua atividade sapiencial, nosso autor passa da
meditação à contemplação: ver da experiência (v. 3), meditar da reflexão
16), compreender da contemplação (17).
13. Purificação interior e exterior, de pensamento e ação; os dois
verbos paralelos se lêem também em Is 1,16 na polêmica sobre culto e
justiça. Veja-se também Pr 20,9: “tenho a consciência limpa”, com os
mesmos termos. Recorde-se o gesto de Pilatos segundo Mt 27,24.
14. Tomo a construção com o verbo hyb com valor reflexivo: ferido por
minha mão, com mortificações voluntárias, não por outros nem por Deus.
Da mesma forma a repreensão como autocrítica pessoal. Recorde-se que a
manhã era o tempo preferencial para o julgamento.
15. spr com o significado de formular, expressar, declarar; ato público
fruto de decisão consciente. Parafraseia Ecker:
“Se formulasse publicamente os pensamentos de indignação em vista do
governo injusto de Deus, ou se assentisse seriamente a semelhante opinião, ter-seia afastado da comunidade de Deus”.
16. Compare-se com o mistério incompreensível do SI 139 e com o
fracasso confessado de Jó 42,3:
falei de grandezas que não entendia,
de maravilhas que superam minha compreensão.
17. mqdshy está no plural, como no SI 68,36. É o templo ou santuário
como lugar da presença e comunicação divina. Assim o interpreta Delitzsch.
Rufino interpreta o santuário da inteligência espiritual. Ainda que se
costume chamar o mistério de Deus de swd, é possível que os “santuários
de Deus” se refiram aqui ao recôndito, ao mistério; compare-se com Sb 2,22:
não conhecem os segredos de Deus (mysteria Theou), não esperam o prêmio
da virtude.
18-22. Terceira parte. O posto de Deus abre-lhe perspectiva para o
futuro: “no santuário de Deus dirijo o olhar ao final ultrapassando o
presente” (Agostinho). Como o espaço fica pequeno ao abarcá-lo do alto,
assim o tempo se encolhe. Experimentamo-lo com freqüência do tempo
passado: “parece que foi ontem”; o orante experimenta-o do futuro: “de
repente”. Depois compara essa visão de um horizonte distante com as
cavilações ao rés da terra.
18-19. Todo o longo itinerário dos malvados é resvalar, cair, acabar,
terminar. Tudo conclui em dois versículos, com a concomitância de terrores
e espantos. “Coloca-os, precipita-os” é a resposta de Deus ao desafio: “não
sabe, não se inteira”. SI 37,35s:
942
Salmo 73
Vi um malvado que se jactava,
que prosperava como cedro frondoso;
voltei a passar, e já não estava lá,
busquei-o e não o encontrei.
lT s Quando estiverem dizendo: há paz e segurança, então lhes cairá em
cima de improviso o extermínio.
Diante de uma tradição que interpretou hlqwt como dolos, impõe-se a
queo traduz por resvaladiço: olisthoi (Símaco), lúbrico (Jerôn, Genebrardo),
Schlüpfrige (Lutero). O termo mshw’h lê-se em Sf 1,15 na descrição do “dia
do Senhor”.
20. mhqyç e ríyr formam paralelismo sinonímico perfeito; as preposi­
ções mudam por varieade estilística, e as duas têm valor temporal: “quan­
do, ao”; significam despertar, espreguiçar-se, levantar-se (Is 51,9; 52,1). Se
referirmos o verbo tbzh a Deus, todo o versículo terá que passar para a
segunda pessoa, a não ser que lhe atribuamos valor impessoal, corrente.
Toda a vida dos malvados é sonho e imagem sem consistência: vejam-se
Is 29,8; Eclo 34,2: “caça sombras ou persegue ventos o que se fia de sonhos”.
Daniel combinará ambos os elementos: uma imagem dentro de um sonho, só
que carregados de sentido. Idéia semelhante em Jó 20,8. Muitos antigos inter­
pretaram b‘y r - na cidade, masj á o Targum e Qimchi nos põem na pista segura.
21-22. Encontrada a solução da primeira parte do problema, o autor re­
flete retrospectivamente sobre a própria reflexão. A luz da compreensão que
o Senhor lhe concedeu, o que significa todo o trabalho precedente? Foi um tor­
turar-se em vão; e di-lo em duas imagens originais, tomadas do gosto e do tato.
Uma comida saborosa que se azeda ou deteriora, um vinho que virou
vinagre; nós também usamos metáforas eqüivalentes: cara de vinagre,
caráter azedo ou doce, homem amargado. Ou pontadas internas, nos rins,
com dor súbita e aguda.
A reflexão humana, comparada com a contemplação iluminada por
Deus, é como o animal comparado com o homem: “Eu sou um néscio, menos
que um homem, não tenho inteligência humana” (Pr 30,2). Como se a
revelação e a contemplação conferissem ao homem racionalidade nova e
superior. Se bhmwt designa o hipopótamo, o salmista vê-se como um
colosso de estupidez. Em sua homenagem a Raimundo Lúlio, Pemán
escreve as seguintes estrofes:
Dá-me a ciência que junta
o desejo e a presença...
Pergunta, amigo, pergunta,
para que queres mais ciência?
Não sei, Amado, o que quero,
nem sei que é esse querer,
não sei se é guerra ou paz...
Exegese
943
- Se sabes já não saber,
por que queres saber mais?”
23-26. Quarta parte. No processo ou no momento da contemplação, o
orante descobriu outra coisa mais importante e mais pessoal. Não uma
teoria ou informação de sucesso, não a resposta intelectual a um problema,
mas uma presença pessoal. O de menos é que o outro nos ensinou, o de mais
é sentir perto o outro.
Já se tinha encontrado com o Senhor i‘mk) como besta: o “contigo”
delatava a realidade “animal” do homem. Agora o “contigo” manifesta ao
homem algo do que é Deus: o homem diante de Deus, Deus para o homem.
23-24. A proximidade desdobra-se em três ações concretas: me agarras,
me guias, me arrebatas. O primeiro verbo é raro tendo Deus como sujeito (SI
77,5 e Jó 16,12), em ações violentas; o segundo é freqüente no saltério (23,3;
31,4; 61,3, etc.); o terceiro é o clássico de Henoc e Elias, e ressoou no SI 49,16.
Os três formam uma espécie de êxodo libertador que termina em Deus. kbwd
indica o termo do movimento ou o modo da condução: à glória ou com todas
as honras. As duas traduções são atestadas na tradição: gloriose et honorifi.ee
(Genebrardo), in domum tuam caelestem (Heser); outro caminho seguiu
Qimchi tomando kbwd como equivalente de alma.
25. Este versículo é um cume espiritual do AT, que se deve relacionar
com a luta de Jacó (Gn 32) ou com a experiência de Elias no Horeb (lRs 19).
Talvez os místicos sejam os melhores comentadores desse versículo. Toda
a série de bens, que viu desfrutarem os malvados e que chegou a invejar,
perdem seu valor comparada com possuir a Deus. A terra é o dom fun­
damental na teologia da salvação ou libertação; agora a terra não importa.
O encontro pessoal desborda e anula tudo o mais. Jó 42,5 diz sucintamente:
“agora te viram meus olhos”. Citarei alguns versos de Santa Teresa (pois
redijo essas páginas no dia de sua festa):
“Ditoso o coração enamorado
que só em Deus pôs seu pensamento,
por ele renuncia a todo o criado,
e nele acha sua glória e contento.
Mesmo de si próprio vive descuidado,
porque em seu Deus está todo seu intento,
e assim alegre passa e muito gozoso
as ondas deste mar tempestuoso”.
Se os malvados se atreviam com céu e terra, ao orante não mais lhe
importam céu e terra, tendo a Deus.
26. Como Deus se ofereceu em sua pura pessoa, abolindo tudo o mais,
assim o salmista penetra no íntimo de seu ser pessoal, abolindo até carne e
mente. O íntimo de seu ser pessoal descobre e declara que sua “porção” ou
944
Salmo 73
possessão é Deus em pessoa, e isso para sempre. A carne sã e bojuda dos
malvados tinha seus bens, também sua mente estava cheia de fantasias e
suficiência; pois bem, prescindindo de carne e mente, resta algo mais íntimo
capaz de possuir a Deus. A “porção” ou lote era a participação da família no
território da terra prometida e entregue, que se perpetuava por sucessão e
herança: porção limitada ao lado de muitas outras, suficiente para as ne­
cessidades corporais. Quando o próprio Deus é a porção, tudo o mais sobra e
perde sentido.
Podemos comparar o presente ‘vulm com o do v. 12. Lá se definia pelo
objeto, as riquezas em constante aumento, e pelo sujeito que as desfrutava.
Era visão centrípeta: o homem como centro do céu e da terra, do possuir e
dominar. Ora, o homem é mortal, e as riquezas não descem com ele ao túmulo
(SI 49,18). No v. 26 deste salmo, o homem acha-se transcendido e centrado
em Deus: transcende céu e terra, e é Deus que define a dimensão do
Gozo supremo; também gozo perpétuo? Reservo a questão para outra secção.
27-28. Concluída a oração num momento de máxima intensidade, o orante
retorna à vida quotidiana, fazendo antes um balanço de suas “luzes”. O hnh
do balanço final contrapesa ao hnh provisório e falso do v. 12; porque aquele
era balanço feito com dados parciais, ao passo que agora tem todos os dados,
inclusive o definitivo, que é Deus. No versísulo recolhe a sorte dos malvados
(27 resume 18-20); em outro, sua experiência pessoal (28 corresponde a 24-26).
Os dois versículos articulam-se nas antíteses longe / perto e fornicar /
bom para mim. Tomando juntos “afastar-se e fornicar”, poderiam significar
a idolatria (assim o explica Teodoreto). Seria preciso especificar a idolatria
como culto de bens rivais de Deus. O segundo verbo, freqüente na literatura
profética, coloca tudo no terreno do amor e da fecundidade (assim o comenta
Orígenes).
A felicidade expressa-se com os termos aproximar-se e refugiar-se, que
não formam parte do campo do amor conjugal. A tradução latina diz adhaerere, que corresponde antes ao dbq e que dá origem a interpretações mais
íntimas. A soma dos termos hlq e qrb poderia levar a pensar que o autor é
levita ou sacerdote. Penso antes que os termos se desprendem deste
contexto para aprofundar todo o seu possível sentido.
Felicidade eternal
— Uma proposição tradicional da questão se pergunta: Quando o autor
usa as palavras tmyd = sempre, ’hr = final, kbwd = glória, Iqh = arrebatar,
Vwlam = para sempre, o que quer dizer, em que horizonte se move? O orante
busca a solução para um problema presente, insolúvel para a reflexão (16):
projeta a solução no futuro, em outra vida feliz e perpétua, ou encontra-a
nesta vida, no encontro supremo com Deus?
-♦-Tftgese
945
Delitzsch responde taxativamente defendendo a segunda resposta. O
problema da retribuição dos malvados neste mundo não se resolve pelo salmo
apelando a uma solução celeste e futura de todas as contradições deste
mundo; ou seja, uma glória perpétua que contrapese infinitamente os
sofrimentos deste mundo fica fora de seu quadro de visão. A fé robusta, que
renuncia gozosamente a tudo para agarrar-se a Deus, o amor puro que
aprecia essa posse mais que o céu e a terra, são mais admiráveis colocadas
nesse horizonte estreito.
Sem chegar a negar e superar plenamente as idéias estreitas sobre
3utra vida, o orante, pela intensidade de sua experiência de Deus, abre uma
brecha nas convicções de seu povo e por ela entrevê algo que dá vertigem; ao
expressá-lo com os meios à sua disposição, abre caminho para sua intuição
profunda e crepuscular. Assim pensa Weiser, e já Delitzsch fê-lo notar:
“O futuro, embora obscuro, é iluminado pela esperança de que o final
áe sua existência terrena trará a solução gloriosa do problema. Aqui, como
em outras ocasiões, a fé abre-se passagem, não só através da obscuridade
presente, mas também através da noite do Hades... A fé no nome do Senhor
;á possuía profundidade transparente que atravessava o Hades para
penetrar na vida eterna”.
Introduzamos outra categoria na análise: intensidade diante da quan­
tidade. Espaço e tempo são realidades contínuas, quantitativas. Nosso
espírito conhece uma dimensão diversa, que é a intensidade (não me refiro
à intensidade quantificável e mensurável da física). Há momentos na vida
de tal intensidade, que parecem abolir o tempo ou concentrar muito tempo
num só instante: intensidade de dor, de gozo. O homem chega a sentir-se
incapaz de tolerá-las:
“Noite como essa, e contemplada sozinha,
não a pode sofrer meu coração:
dá uma dor de formosura irresistível”
(Rafael Pombo, Noche de diciembre).
Disso fala a lenda medieval do monge que, escutando cantar um
pássaro, cai em êxtase, e quando volta a si, passaram trezentos anos. A
intensidade extraordinária revela ao homem que não é puro fenômeno no
espaço e no tempo.
Algo assim ocorre no salmo: ao gozar de experiência altíssima e
profundíssima de Deus, descobre vagamente que deve superar o tempo.
Possuir a Deus desta maneira supera os limites do que se experimenta e se
imagina. Diz Delitzsch:
“No meio de uma vida natural, caduca e pecadora, começou por dentro
uma nova vida entregue a Deus; é penhor de que, como Deus com quem está
unido não pode perecer, tampouco ele pode perecer”.
946
Salmo 73
Comparemos as expressões do salmo, obtidas em plena crise espiritual,
com as afirmações seguras do segundo livro dos Macabeus (7-8). Pode ser que
em certos momentos da vida nos seja mais precioso o testemunho do salmo.
Opinião contrária à exposta defende Dahood para este e para outros
salmos. Pensa que o SI 73 proclama univocamente a crença numa vida
futura ditosa e perpétua junto de Deus, e traduz assim o versículo 26:
“Ainda que minha carne e meu coração se consumam, ó Montanha, meu
coração e meu corpo, ó Deus, serão eternos”.
— Podemos retificar algo a precedente proposição do problema distin­
guindo texto original e leituras sucessivas. O texto original, expressão do
pensamento do autor, contém uma série de termos ambíguos ou polissêmicos:
arrebatar, futuro, glória, perpétuo, para sempre; aos quais se acrescentam
algumas orações nominais do orante (23,25). Só dos malvados se diz que
caem, acabam, terminam, perecem, tu os destróis. Tudo isso pode-se
encaixar no quadro das crenças tradicionais, embora iniciando um processo
de fermentação espiritual. Um leitor antigo podia encontrar no salmo a
solução do problema nesta vida: <cVale mais um dia em teus átrios que mil
em minha casa” (SI 84,11).
Leitores posteriores foram superando essa visão «m virtude de diver­
sas circunstâncias, dentre as quais do fermento deste salmo repetido como
oração. Experiência pessoal de Deus, alusões a Henoc e Elias, a idéia de
participar da glória de Deus. Influíram também novos conhecimentos, até
o descobrimento de uma vida futura feliz. Essas condições de leitura
polarizaram a interpretação dos elementos polissêmicos do salmo, que, no
novo quadro mental, encaixavam-se melhor do que no antigo. E áí se insere
também a leitura cristã.
— Antes de passar a ela, faz-se mister citar um clássico nosso que
chegou às antologias, Bartolomeu de Argensola (1562-1631):
“Diz-me, Pai comum, pois és justo:
por que há de permitir tua providência,
que, arrastando cadeias a inocência,
suba a fraude ao tribunal augusto?
Quem dá força ao braço que robusto
faz a tuas leis firme resistência,
e que o zelo, que mais lhe tem reverência,
gema aos pés do vencedor injusto?
Vemos que agitam vitoriosas palmas
mãos iníquas, a virtude gemendo
do triunfo com o injusto prazer.
Isso dizia eu, quando aparecendo
celestial ninfa a sorrir e a me dizer:
Cego! é a terra o centro das almas?”
Transposição cristã
947
A superioridade do poema bíblico é indubitável. Fique aqui o soneto
como testemunho de uma tradição e como peça para um estudo comparado.
6. Transposição cristã
Começamos com uma citação de Paulo (F13,7-9). O Apóstolo joga com
os opostos perda / ganho:
O que para mim era ganho, considerei, por Cristo, perda. Mais ainda,
considero tudo perda comparado com o superior conhecimento de Cristo
Jesus meu Senhor, pelo qual dou tudo por perdido e considero lixo contanto
que me ganhe Cristo e fique unido a ele.
recordemos também São João da Cruz em seu “me hizo perdidiza y fui
ganada”).
Sobre o v. 27 escreve Orígenes em seu comentário a Nm 25:
“H á fornicação quando a alma, que se uniu ao Verbo de Deus numa
espécie de matrimônio, é corrompida e profanada por outro, por um inimigo
daquele que a fez sua pela fé. O Verbo de Deus, Jesus o Senhor, é o esposo
e marido da alma pura e casta, como diz o Apóstolo [2Cor 1 1,2 a ]... Enquanto
a alma continua unida a seu esposo, escuta sua palavra e a ele se vincula,
recebe dele a semente da palavra... Se a alma conceber as obras de Cristo, dará
à luz filhos... Ditosa fecundidade da alma que compartilhou do leito do Verbo
de Deus e correspondeu a seu abraço! Dela nascerá linhagem ilustre ...
M as se a alma tem a desgraça de abandonar o leito sagrado do Verbo de
Deus e se entregar a abraços adúlteros, seduzida pelo diabo e outros
demônios, dará à luz filhos como aqueles dos quais está escrito: “Os filhos dos
adúlteros não chegarão à maturidade e a prole ilegítima desaparecerá” [Sb
3,16] ...”.
Sobre os versículos finais do salmo lemos um texto atribuído a Pascásio
Radberto:
“O bem do amor é o Deus Trinitário, e o Deus Trinitário é o amor per­
pétuo; é o único e singular bem ao qual aderir é v iver... Por isso diz o Profeta
[=Davi]: “Para mim o bem é apegar-me a Deus, pôr minha esperança em
Deus
No mesmo e único bem pode-se às vezes distinguir dois bens: pois
uma coisa é aderir a Deus por amor de inteligência, e outra pelo desejo da
esperança.
Quando nos fixamos nas coisas corpóreas e sensíveis, andamos em
trevas, afastados da luz; contudo, não nos arrancamos da esperança, mas
nela permanecemos, porque o Deus de nosso coração é nossa possessão
eterna. Afastar-se do fogo desse amor é esfriar, amar outra coisa é
adultério; por isso diz o Profeta: “Os que se apartam de ti perecerão”. Não
é a mesma coisa apartar-se e afastar-se: apartar-se é fixar-se em outras
948
Salmo 73
coisas, afastar-se é não só desejar os bens terrenos, mas pedi-los aos
demônios ou amá-los como o sumo bem ... E preciso cuidar que, apartandose a alma, não se torne adúltera: “Destruíste a todos que te são infiéis”
[fornicantus abs te]; porque a fornicação é contrária ao amor casto”.
O
cristão, iluminado pela fé em Jesus Cristo glorificado, encontra
resposta a seu problema vital e percebe com clareza esse fundo de mistério
que o autor antigo mal entrevia. O salmo adquiriu dimensão escatológica.
Mas o fundamento é em substância o que se fazia entreouvir no salmo; que
Deus é um Deus de vivos; que o Pai ressuscitou seu Filho, acrescentamos
nós. Não se fala da imortalidade grega da alma, mas da vida ditosa e
perpétua com Deus. Céu já não é lugar, mas encontro e companhia.
Agora, remetendo a solução do problema à outra vida, resolvemos
todos os problemas? Também o escândalo do êxito dos malvados injustos e
violentos? Em forma de perguntas: é preciso resignar-se sem mais à
injustiça e à opressão? Inteira-se Deus, age ele? Queremos que se inteire e
aja? Como se trai a comunidade dos filhos de Deus? O salmo não é um
manual de ação, mas um texto para a meditação e a contemplação. E preciso
repeti-lo uma e outra vez, porque o acesso ao mistério não se realiza na
primeira vez nem de uma vez para sempre.
“Acima de tudo o que Deus dá a bons e maus, do que às vezes tira a bons
e maus, acima de tudo isso, reserva algo para os b o n s... O que lhes reserva?
A si mesmo” (Agostinho).
Salmo 74
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
Por que, ó Deus, nos tens abandonado
e fumega tua cólera contra as ovelhas de teu rabanho ?
Recorda-te da comunidade que fundaste desde antanho,
que resgataste como tribo de tua propriedade,1
do monte Sião onde habitavas.
Dirige teus passos a essas ruínas perpétuas,
a todo o destroço do inimigo no santuário.
Rugiam os agressores no meio de tua assembléia,
plantaram como sinal seus estandartes.
Apareceram como quem abre passagem a machadadas
até em cima na espessura;
arrancaram todos os relevos,
trituraram-nos com martelos e marretas;
atearam fogo a teu santuário,
profanaram por terra a morada de teu nome.
Propunham: Queimai toda sua linhagem,
todas as assembléias de Deus no país!
9
Já não vemos nossos sinais,
nem temos profeta,
nem nos resta quem saiba até quando.
10 Até quando, ó Deus, afrontará o inimigo,
desprezará o adversário sem cessar o teu nome?
11 Por que retrais tua mão esquerda
e tens a direita escondida no seio? 2
12 Se és, ó Deus, meu rei desde antanho
e ganhas vitórias no meio da terra.
1herdade
2peito
950
Salmo 74
13 Tu com tua força agitaste o Mar,
quebraste as cabeças de dragões nas águas.
14 Tu esmagaste as cabeças de Leviatã,
deste-as em pastagem a manadas de sátiros.
15 Tu abriste mananciais e torrentes,
tu secaste rios inesgotáveis.
16 Teu é o dia, tua a noite,
tu colocaste a lua e o sol,
17 traçaste os limites do orbe,
tu formaste o verão e o inverno.
18 Recorda, Senhor, que o inimigo te ultraja3
e um povo insensato despreza teu nome.
19 Não entregues ao abutre a vida de tua rola,
não esqueças para sempre a vida de teus pobres.
20 Olha para a aliança: pois estão cheios
os esconderijos do país de redutos de violência.
21 Que o oprimido não saia defraudado,
que pobres e afligidos possam louvar teu nomeí
22 Levanta-te, ó Deus, defende tua causa,
recorda os ultrajes contínuos do insensato;
23 não te esqueças das vozes dos agressores,
do tumulto crescente dos rebeldes contra ti.
2. B ibliografia
J. Parisot, Psaumes de captivité: Ps 74 et 79, RB 4 (1985) 572-578.
P. Joüon, Racine nbl au sens de bas, vil, ignoble, Bib 5 (1924) 357-361.
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J. L. MacKenzie, A note on Ps 74,13ss, TS 11 (1950) 275-282.
F. Willesen, The cultic situation o fP s 74, V T 2 (1952) 289-306.
J. Morgenstern, Jerusalem - 485 B. C., H U C A 27 (1956) 130-131.
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74: traduction, notes critiques et explications, BVC 66 (1965) 26-37.
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3 afronta
Análise filológica
951
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G.
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R. Sollano, The simile inPs 74,5. Awood-cutter entering a forest wielding
axes, SEA 54 (1989) 178-187.
3. Análise filológica
2. qnyt qdm: relativa assindética Joüon 158a.
zh: relativo GK 138 g, Joüon 145 c, DBHE zh 4.
bw: para o dagesh Joüon 18 j.
3. hr‘: pode ser do verbo r“, equivalente de rçç, referido a instalações
e alfaias do templo. No v. 14 sai esse segundo verbo.
4. ’twt: predicado do complemento.
5. E um versículo enigmático, como confirmam as traduções antigas,
que leram com outra vocalização ou tentaram tirar sentido de um texto
estranho. Vget non cognoverunt sicut in exitu super summum: Jerônfsigna]
manifestata desuper in introitu-, Targum requereu o martelo como alguém
que na mata levanta a mão para golpear com machados-, seguindo Ges
Thesaurus, costuma-se entender aqui a passiva de yd'como “parecia”; mas
BHS sugere no aparato ygd‘w = arrancaram.
6. Continuam as incertezas. w‘t: leram um verbo LXX exekopsan, Vg
exciderunt, Gun um sinônimo de um paralelo hlm.
ptwhyh: LXX e Vg leram portas, também Rasi; Jerôn e Targ esculturas.
8.
nynm: subst + sufixo sua prole, estirpe LXX Jerôn Targ Hitzig Dah
deynh: destruir Sir, Qim o explica como sinônimo de hrg e aduz Jr 46,16;
50,16, Ibn Ezra aduzindo Lv 19,33, Lutero Del Bickell.
srpw: Dah e Rav lêem um qal passivo. O TM põe qatal 3apess; muitos
lêem um coortativo. Tomando mw‘d como reunião de pessoas, a Vg trans­
952
Salmo 74
formou o verbo hebraico srp = incendiar em quiescere faciamus contra a
imensa maioria dos tradutores (cf. Belarmino).
11.
ydk: Dah entende a esquerda como eufemismo (ou polarização?)
já o propunha Quimchi.
mqrb: corrigem bqrb Duhm Gun Cast.
hwqk: ketib e quere parecem equivalentes Del.
klh: o TM traz um imperativo = aniquila; muitos lêem alguma forma
do verbo kl’ (confusão ou alomorfismo freqüente) Gun Duhm Kraus. Cast
e Rav lêem um adjetivo “inerte”, como em Dt 28,32.
13. pwrrt: é estranha a leitura de LXX e Vg confirmasti.
16.
m’wr: por polarização lua, cf. Gn 1,16 hm’wr hqtwn-, assim LXX
ítala Targlbn Ezra; lua e estrelas Qim; outros aurora VgEutímio Belarmino.
19. Ihyt: forma absoluta em -at GK 80 f.
twrk: a segunda consoante criou alguma confusão entre os antigos
tradutores ou intérpretes: que te confessam LXX Vg Sir, animam eruditam
lege tua Jerôn Targ parafraseando.
20. n’wt hms: acusativo regido por mVw Joüon 125d; pl de mwh.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O salmo 74 constitui exemplo claro de súplica numa desgraça nacional.
Contém a clássica descrição da desgraça no momento em que sucedeu e de
suas conseqüências atuais. E correlativa a descrição da violência do
inimigo. Na motivação, a comunidade apela à honra de Deus ultrajado pelo
inimigo e suas precedentes proezas. O estilo de perguntas impacientes e de
imperativos é tradicional no gênero.
Visto que a desgraça descrita concentra-se na destruição do templo, a
situação deve ser histórica e não exclusivamente cultual (como propõe
Willesen). Suposto isso, apresentam-se como candidatas três famosas
destruições: a dos babilônios feita por Nabusardã em 587/586, a de Antíoco
IV no tempo dos macabeus em 167, e a dos romanos em 70 de nossa era. Só
Teodoreto de Ciro escolheu a terceira, atribuindo ao salmo sentido profético
de predição. Quando estava em vigor a hipótese da origem macabaica de
grande parte do saltério, muitos exegetas buscaram e encontraram no
salmo detalhes que puderam identificar com fatos descritos em lMc.
Creio muito mais provável a primeira identificação, como mostra
sobretudo os paralelos das Lamentações. Suposto isso, seria preciso datar
o salmo entre as visões de Ezequiel sobre a partida da Glória e a conseqüente
i^rudo global
953
destruição do templo e as visões do novo templo com o retorno da Glória (cc.
11 e 43). Afinar a data, datando o salmo na temporada em que Ezequiel está
znudo, parece-me precisar demais (vejam-se Ez 3,25; 24,25-27; 33,21-22).
b) Textos aparentados
Pela situação suposta e pelo tom de súplica, o SI 74 aparenta-se com o
102. Das cinco Lamentações, a última vem mais ao caso. Mas se deveria lêlas todas seguidas, como contexto espiritual, para captar o efeito cumula­
tivo. Aqui me contentarei com alguns paralelos seletos:
O tema da ira (dez em Lm 1, seis em Lm 2).
O tema do fogo (Lm 1,13; 2,3s; 4,11).
A morada de Deus: miqdash (1,10; 2,7.20).
Recorda! (74,2.18.22 e Lm 5,1)
Não te esqueças (74,19.23 e Lm 5,20).
Tua herança (74,2); nossa herança (Lm 5,2).
O monte Sião (74,2; Lm 5,18).
Por que retiras tua mão esquerda? (74,11).
Não retirou a mão que derrubava (Lm 2,8).
E tens a destra escondida no seio? (74,11)
Guardou-se a destra nas costas (Lm 2,3)
Es, meu Deus, meu rei desde antanho (Lm 74,2).
Tu, Senhor, és rei para sempre (Lm 5,19).
Para sempre: Insh (74,1.10.19 e Lm 5,20); tmyd (74,23).
O SI 74 está aparentado também com o SI 44 e 79. É notável a diferença
na relação da desgraça com o pecado: o 44 protesta a própria inocência, o
79 confessa o pecado e está mais próximo de Lm, o 74 não o menciona.
c) Textos não bíblicos aparentados
Costumam-se aduzir as famosas lamentações: pela destruição de Ur
ANET 455-463), pela destruição de Sumer e Ur (ANET 3‘ ed., 611-619). A
primeira fixa-se mais nos sofrimentos das pessoas, e pode-se comparar
melhor com o SI 79. A segunda é mais interessante por seu desenvolvimento
teológico; fixa-se nos habitantes, nas cidades e nos templos:
408
as estátuas de seu tesouro foram destruídas
410
seu trono [de Niniagara] derrubado, ela se lança ao pó
420
a porta ornamental do templo foi derrubada, o parapeito destruído
421
os animais selvagens entrelaçados à direita e à esquerda [estátuas]
422
jazem diante como guerreiros matados por guerreiros
423
seus dragões de fauces abertas e seus terríveis leões
424
foram derrubados com cordas como touros selvagens capturados ...
425s a arquitrave ... ouro, prata e lápis-lazúli
426
o templo admirado... 428 ap orta... 429 seus grandes cravos de bronze
954
Salmo 74
(segundo Piotr Michalowski, The Lamentation over the destruction of
Sumer and Ur, Winona Lake, 1989).
d) Composição
Sinais leves de composição são as perguntas retóricas de 1 e 10-11, a
recordação / esquecimento em 2.18.19.22.23, o tempo indefinido de 1.3.
10.19.23. Como se houvesse acontecido algo de definitivo ou sem termo, a
que não se resigna a comunidade. Se parece um esquecimento de Deus, ao
povo cabe recordá-lo.
Mais patentes serão os sinais, se começarmos pelo final. Com a
inclusão da recordação / esquecimento e dos ultrajes do inimigo, os seus
últimos versículos formam um bloco compacto, dominado por sete impera­
tivos (positivos ou negativos). Precede outro bloco (13-17) definido pelo tom
e pela segunda anáfora “tu”. Outro bloco descritivo ocupa os versículos 3 /
4-8, talvez com sete verbos em terceira pessoa tendo os inimigos como
sujeito. Ficam fora da repartição os versículos 1-2, que se podem considerar
como introdução temática, de pergunta e imperativo; e os versículos 10 e 11
com redobradas perguntas. Estes podem funcionar como dobradiça entre a
primeira e a segunda parte. Atribuídos à primeira parte, formariam
inclusão com a introdução; atribuídos à segunda parte, movimentam outra
onda de súplica. Ou antes servem para efeito de surpresa: quando o leitor
pensa que a inclusão assinala o final, descobre que começa algo muito
imporante.
Isso nos dá o seguinte movimento do salmo. Começa apaixonadamente
interpelando a Deus, como se explorasse impaciência reprimida. Não é
normal semelhante começo no saltério. Segue a descrição do enfurecimento
do inimigo, que desembocou no estado presente, de pura negação. Depois
das perguntas reiteradas, sobrevêm breve hino heróico que produz contras­
te violento. Depois do qual, a comunidade interpela a Deus, urgindo-o que
intervenha.
E disposição clara e lógica: a razão controlou a paixão. O movimento da
quinta Lamentação é como segue: 1 imperativos dirigidos a Deus, 2-18
descrição da situação presente com breve confissão do pecado, 20-22 final
com perguntas e imperativos.
e) Correspondências
Não basta uma leitura seguida e orientada do salmo, porque a
composição dum poema unitário pode criar relações oblíquas e cruzadas
significativas: o jogo subordina-se ao sentido.
Exegese
955
— a primeira relação é: ira de Deus —fúria do inimigo - agitação do
caos. A ira de Deus enuncia-se imediatamente, como levantando a cortina
ao que segue e ao mesmo tempo gerando o primeiro contraste inexplicável.
O que dominou os monstros do caos, agora parece atiçar ou deixar solto o
inimigo: por quê? Soberanamente, como rei, sem ira, estabeleceu a ordem
cósmica; sem renunciar ao poder real, com ira e não por impotência, tolera
a catástrofe dos seus.
— Do anterior segue-se o paralelismo entre as forças rebeldes do caos
e a potência militar destruidora. O exército invasor contagia-se de reflexos
míticos: é como novo Dragão ou Leviatã desatado, é mar que inunda a terra
firme, noite que obscurece o dia.
— Correlativamente, a destruição do templo insere-se em gigantesco
contexto cósmico. As ruínas, a destruição, o incêndio, o templo profanado:
é uma como que rejeição da ordem cósmica.
— Ao estabelecer sua morada em Sião, o Senhor que mora para sempre
no céu, e ao não coibir o exército inimigo, expõe-se ao desprezo e aos ultrajes,
õ expõe a perigo extremo o que é seu na terra: seu rebanho, sua rola.
5. Exegese
1-2. Pela pergunta e pelo imperativo, estes dois versículos estabele­
cem a tonalidade da peça. A pergunta ressoará em 10-11, o imperativo
dominará a terceira parte. Começam um marco e um fio condutor.
Primeiro é a pergunta, mescla de estupor e censura. Estupor: a
imagem que o Senhor manifesta agora não se harmoniza com a que
revelara desde tempos antigos, que o povo conhece muito bem. Não se
entende esse “fumegar” da ira: a Deus toca explicá-lo. Censura: não está
bem desfazer o que ele fez, rejeitar o eleito, repudiar o resgatado, aceitar
■ama morada e deixá-la incendiar, consagrá-la e deixá-la profanar. Por quê?
A Deus toca justificar-se.
Deus deve recordar. São fatos “antigos”, mas institucionais, suas
conseqüências permanecem: a comunidade adquirida e resgatada continua
sendo “teu rebanho”; fora de Sião, ele não tem outra morada na terra. Como
o faz a comunidade, também Deus deve retornar com a memória dos
começos.
1.
znh lê-se três vezes em Lm 2,7; 3,17.31 e dez vezes no Saltério
referidas a um indivíduo ou à comunidade, especialmente nos salmos do
gênero (44,10-24;60,3.12;77,8;89,39).Acólera que “fumega” pode recordar
a teofania do Sinai (Ex 19,18), do SI 18,9 e sobretudo de Is 65,5: “Isso faz
fumegar minha cólera como fogo que arde todo o dia”. LXX e Vg apagam a
956
Salmo 74
metáfora, que mantêm Áquila, Símaco e Jerônimo. “Ovelhas de teu reba­
nho” diz-se nos textos clássicos de Jr 23,1 e Ez 34,11, também no SI 100,3.
2. qnyt: o verbo significa fundar ou adquirir; coincide com o texto
básico de Ex 15,16 e parcialmente com Dt 32,6; por conteúdo ou por
paralelos, tem caráter fundacional. g í = resgatar é verbo favorito de Is 4055 e freqüente no saltério; lê-se também em Ex 15,13 e na missão de Moisés
(Ex 6,6 P). shkn = morar predicado de Deus é freqüente; da raiz procede o
famoso substantivo sekina.
3-9. Primeira parte. Um segundo imperativo introduz habilmente a
cena seguinte: o Senhor, como soberano distraído ou despreocupado ou
esquecediço, é convidado a inspecionar pessoalmente o templo em ruínas:
não são ruínas recentes, que justifiquem ou expliquem o desconhecimento;
aí estão desde muito tempo, e o dono da morada sem dar-se por inteirado
... O orante oferece-se como guia e, com as ruínas à vista, conta e descreve
a Deus o que sucedeu. Uma primeira frase o sintetiza: destruição total.
Depois se descreve uma cena de violência insaciável: um dado auditivo, um
visual, ação agitada, e o guia até se atreve a ler os pensamentos dos
devastadores.
3. Veja-se lMc 4,37s:
Reuniram toda a tropa e subiram ao monte Sião. Viram o santuário
desolado, o altar profanado, as portas incendiadas, as ervas crescendo nos
átrios como matagais numa ladeira e as dependências do templo destruídas.
4. Em plena cerimônia litúrgica, no meio da assembléia, soa o “rugido”
dos soldados; o verbo s’g = rugir sugere a presença de uma fera vigorosa e
faz imaginar o pavor dos congregados.
Em sinal de conquista e ocupação hasteiam seus estandartes. Signa
sua in trophaeum, diz Jerônimo; com acerto distingue Heser as cenas mili­
tares e os estandartes de vitória; e Ecker resume, Feldzeichen ais Siegeszeichen.
5-6. Estes dois verbos são particularmente difíceis, como vimos na aná­
lise filológica, sbk significa entrelaçar, entretecer; unido a ‘ç = árvore, ma­
deira, significa espessura ou boscagem, fraga ou brenha, por onde se abre
caminho a machadadas ou a foice, sem consideração. E eficaz descrição da
brutalidade com que destroem a beleza e a riqueza do templo como se fossem
ervas daninhas. O sintagma também poderia significar um vigamento arti­
ficial de madeiras, gelosia frontal ou decorativa; faria jogo com os relevos do
versículo seguinte, onde as marteladas fazem eco ou prolongam as machada­
das. O conjunto oferece a cena de soldadesca ébria de vingança e destruição.
7.
A ação contra o templo conclui com o incêndio, que faz desmoronar
o edifício por terra, de modo que a soberba e sagrada construção fica pro­
fanada. E preciso ler esses versículos pondo mentalmente no fundo os
957
Exegese
trabalhos minuciosos de construção descritos em lR s 7. Tanta diligência
e destreza consumidas em tão breve tempo. As Lamentações assim o
dizem:
3,11
O Senhor saciou sua cólera
e derramou o incêndio de sua ira,
pôs fogo em Sião
que devora até os fundamentos.
Faz eco Is 64,11
Nosso templo, nosso orgulho,
onde te louvaram nossos pais,
foi pasto do fogo,
e o que mais queríamos
está reduzido a escombros.
8. Com o que não se saciam as tropas desmandadas, mas pensam
continuar o trabalho da destruição: é preciso aniquilar o povo e todos os seus
lugares de culto. Recorde-se a matança organizada por Jeú contra os
adoradores de Baal, dolosamente congregados em solene cerimônia litúrgica
2Rs 10,18-28):
25
- Entrai para matá-los, que não escape ninguém! Os guardas e os
oficiais os passaram a faca e entraram até o camarim do templo de Baal. 26
Tiraram a estátua de Baal e queimaram-na, derrubaram o altar e converte­
ram o templo em latrinas, até o dia de hoje.
Para os vários usos de mw‘d, vejam-se Lm 1,4.15; 2,3.6.22.
9. Até aqui o que o guia explicou a Deus. Agora faz balanço da situação
atual. O povo está desorientado porque faltam todos os pontos de referên­
cia: sinais divinos, profeta, vaticinador. Recorde-se Saul lançando-se con­
tra o silêncio de Deus que “não lhe responde nem por sonhos, nem por sortes
nem por profetas” (lSm 28,6). O que é que não compreendem? O significado
do acontecido ou a duração prevista do estado presente? Em outras
palavras, está em jogo a eleição do Senhor, ou pergunta-se quando termi­
nará a tragédia?
— Problema de eleição. Parece indicá-lo o começo, que fala de “rejeição
definitiva”; comparável com a dúvida de Lm 5,22 e de SI 77,9. Mas a frase
inicial é antes pergunta retórica, e não afirmação nem necessariamente
dúvida.
— Problema de tempo, como diz a cláusula “até quando”. Se suplicam
a seu Deus, é porque não se consideram rejeitados; se apelam à aliança, é
que a consideram em vigor. Não é rejeição, mas esquecimento.
— Uma explicação intermédia. A situação vai se alargando tanto que
vamos perdendo a esperança: durará tanto porque é definitiva? Essa
terceira é uma explicação psicológica.
958
Salmo 74
O versículo propõe-nos outro problema: a falta de profetas. Em Jeru­
salém, Ananias predizia duração breve, de três anos; Jeremias dizia que ia
ser longo (não sabemos se a indicação de setenta anos é adição posterior);
mas ambos falam em seguida da primeira deportação e antes da destruição
da cidade (c. 28-29). Consumada a tragédia, Jeremias não mais prediz. Ao
invés, Ezequiel, no desterro, ao receber a notícia do incêndio do templo,
recobra a fala e começa a segunda etapa de seu ministério profético, na qual
anuncia a repatriação sem indicar datas (Profetas, 773). Não está claro se
“o que sabe até quando” é o próprio profeta ou uma categoria especial de
vaticinador. E claro o conceito de “sinais” de Deus: suas ações patentes e
reveladoras, plantadas como balizas ao longo da história. Em vez dos
“sinais de Deus”, agora são visíveis as “insígnias” militares do inimigo.
Sobre a ausência de profetas, pode-se ver também lMc 4,46; 9,27;
14,41 (Macabeos, 126.228s).
10-11. Com estes versículos retorna ao princípio, como se começasse
uma nova onda do mesmo efeito. Introduz ao mesmo tempo novo tema,
ligado verbalmente ao anterior pela repetição de smk = teu nome: o inimigo
que profana a morada de teu nome está desprezando teu nome. O assunto
passa da comunidade diretamente a Deus. Agora é assunto pessoal de
Deus, e a ele cabe defender-se.
Quando Gedeão destruiu o altar de Baal (Jz 6) e seus concidadãos
quiseram dar-lhe a morte, e seu pai defendeu-o dizendo: “O que tendes
vós que defender Baal? E a vós que cabe vir èm seu auxílio?”; depois o
povo do lugar comenta: “Que Baal se defenda ele mesmo, já que derruba­
ram seu altar”. Quando os enviados de Senaqueribe “insultam o Deus
vivo”, o rei Ezequias e o profeta Isaías pedem e obtêm a intervenção de
Deus. E antecedente que deve servir na ocasião presente. O mesmo
argumento em SI 79,12 e 89,52. Agora Deus não age, inibe-se. Guarda na
prega da veste a mão que em outras ocasiões “estendia” para agir (Ex 7,5;
15,12; etc.).
12-17. Segunda parte. A inação presente leva por contraste a recordar
a soberania de Deus e sua ação cósmica e talvez histórica. Entra assim, com
suave coerência, um fragmento de hino, cujo sinal externo mais patente é
a sétupla repetição de ’th = tu.
Só ação cósmica ou também histórica? Todos os elementos da série
podem-se ler como referidos à obra de Deus na criação, colorida de matizes
mitológicos. Antes de tudo, a vitória sobre o mar Vermelho segundo Is
51,9s; SI 136,13 (verbo gzr). Secar canais e descobrir mananciais trazem
recordações do êxodo, sem excluir a ação criadora de Deus. Se a melodia
destes versos é cósmica, algumas de suas frases despertam tons harmôni­
cos da história do povo.
exegese
959
0 mar rebelde, com seus monstros mitológicos, são aqui versão poética
e demitizada da criação (Is 27,1; Jó 3,8; 26,12; SI 89,10-13). Os símbolos de
origem mitológica despertam para os israelitas visões grandiosas de bata­
lhas e vitórias sobre-humanas. Outros dados insinuam a ordem estável do
espaço e do tempo. As recordações ou reminiscências do êxodo engrandecemse pelo contexto que os acolhe, os ciclos temporais chegam até o dia e a noite
ie hoje. Acima e antes de tudo, “Deus rei desde tempos antigos”.
Por breve tempo, a solenidade do hino e sua visão grandiosa afastam
a comunidade da triste situação em que vive.
12.
O hino é introduzido por waw adversativo. O título atribuído a
Deus encerra um paradoxo ou uma tensão. Quer leiamos “meu” com o
hebraico, quer “nosso” com o grego, o possessivo parece limitar a anti­
guidade do título real: rei meu / nosso só o és desde que me resgataste ou
fundaste como povo (v. 2) e te reconheço como soberano. Antes não era rei?
Parece pedi-lo a série seguinte (cf. SI 29,10; Ex 15,18).
As “vitórias” no meio da terra oferece-se a duas leituras: a terra de Gn
1.2 como realidade cósmica ou a terra como cena histórica. Conseqüente­
mente, as “fronteiras” ou limites da terra podem ser confins que se
limitam com o grande oceano exterior ou a fronteira da terra firme que se
limita com o mar ou os confins atribuídos a cada povo (Dt 32,8). O conjunto
do hino parece confirmar a ambivalência de “terra”, sem resolvê-la. “No
meio” não significa “no centro”, já que as vitórias não se concentraram
num ponto.
13a. E duvidoso o significado de pwrrt, agitar ou neutralizar. Em
ambos os casos se diz que Deus controla o mar em todos os seus movimentos.
Jó 26,12 diz rg‘= aquietou (Jó 36,2s); “agitar” (Ag 2,6).
13b-14. Cabeças no plural: o primeiro grupo compreende os dragões
no plural, cada um tem sua cabeça. Ao invés, Leviatã é singular: parece
imaginado como hidra policéfala. Os monstros são decapitados, sem força
para se rebelar de novo. E para cúmulo da ignomínia, suas cabeças servem
de pasto para as outras feras. Como o Faraó = crocodilo de Ez 32,4:
Deixar-te-ei largado no chão,
atirar-te-ei contra o deserto ...
para que se cevem em ti as feras selvagens.
E a ameaça comum de entregar o cadáver do inimigo “como pasto às
aves e feras” (Jr 7,33; 16,14, etc.).
Ainda não se decifrou o significado do enigmático l‘m Isyym, que
alguns traduzem conjeturalmente por delfins, outros por tubarões, os
antigos por etíopes; HALAT conjetura ‘m Isyym = escorregadios dei mar.
Uma tradição rabínica fala do Leviatã servido no banquete inaugural do
reino escatológico.
960
Salmo 74
15. Fontes e torrentes brotam do oceano subterrâneo de água doce
sobre a qual se assenta a terra firme. Descobri-los pode ser ação criadora
(veja-se Dt 8,7). Os rios perenes, antigos ou milenários, opõem-se às
torrentes ocasionais (Jr 15,18; Jó 6,15). Os dois dados, combinados, trazem
a recordação do êxodo: água da rocha (Ex 17,1-7), mar Vermelho e Jordão
transitáveis. Compare-se com o SI 107,33.35:
Transforma os rios em deserto
e os mananciais em aridez;
transforma os desertos em lagos
e o agreste em mananciais.
16. Com este versículo remonta-se à criação celeste e a uma ordem que
se realiza em ritmo cotidiano. Em outras palavras, o pulso de dia e de noite,
que os mortais vivemos na terra, foi estabelecido por Deus no princípio numa
ordem celeste, sol e lua, e ele continua controlando-o pessoalmente.
17. Na restauração depois do dilúvio caótico, Deus anuncia e promete
(Gn 8,22):
Enquanto durar a terra, não faltarão
plantação e colheita, frio e calor,
verão e inverno, dia e noite.
Suspeita o poeta que se pode comparar a catástrofe do templo, em
escala menor, com a subversão do dilúvio? O povo assistiu à invasão oceâ­
nica do exército inimigo, que mudou fronteiras políticas, como se gloriava
Senaqueribe (Is 10,13), e pretende impor outro rei em vez do Senhor, depois
de arrasar seu palácio. Veja-se o paralelo estrito de oceano levantino e
tumulto bélico de povos em SI 65,8.
18-23. Terceira parte. Ao dito sobre a composição do poema é preciso
acrescentar aqui a repetição funcional de shmk em 18b e 21b, mediante a
qual o poeta estabelece a seguinte seqüência enlaçando com 7b e 10b:
morada de teu nome —desprezam teu nome —desprezam teu nome —louvem
teu nome. Ao mesmo tempo ressalta, no interior da secção, a oposição
desprezar / louvar.
Também é significativa a oposição de personagens: dum lado, “o inimigo,
rival, levantadiço, néscio”; doutro lado, “o oprimido, pobre, aflito, tua rola”.
De que lado se colocará Deus, meu rei? Como juiz, tem que “se levantar e de­
fender sua causa”, que é a um só tempo a honra do seu nome e a vida dos seus.
18. O inimigo é um povo néscio ou insensato (nbl): em que o demons­
tra? O SI 14,1 fala em geral do “néscio” que nega a Deus; o SI 39,9 menciona
o ultraje do néscio. Mais pertinente é Dt 32:
27
M as não; pois temo a jactância do inimigo
e a má interpretação do adversário,
Transposição cristã
961
que diriam: nossa mão venceu,
não foi o Senhor que o fez.
28 Porque são uma nação que perdeu o juízo
e carece de inteligência.
29 Se fossem sensatos, entendê-lo-iam,
compreenderiam seu destino ...
19. Não há razão para mudar o texto ou o significado de twrk - tua
rola, que se deve ouvir como expressão de carinho e compaixão; semelhante
ao epíteto “pomba” do Cântico dos cânticos. O correlativo é em hebraico
genérico hyt - fera; por especificação orientamo-nos para um abutre,
gavião. A imagem da ave lê-se também no SI 11,3 e 55,7.
20. Pela aliança, Israel é “teu povo”. Deus pode “olhar” e consultar o
:exto dessa aliança; ou teria perecido no incêndio do templo? A súplica
supõe que a velha aliança continua em vigor, que não foi denunciada nem
substituída por uma nova (Jr 31,31).
O segundo hemistíquio é difícil. Parece uma extensão do v. 8 para o
cumprimento do projeto (veja-se SI 55). Em outros termos, a violência se
assentou em lugares ocultos (no SI 55 na praça pública) e daí opera.
21. yhllw smk pode-se tomar como jussivo: que possam louvar teu
nome, ou como oração relativa: que louvam teu nome. Na primeira inter­
pretação, o louvor é conseqüência da libertação suplicada.
22. Julgar é função do soberano. E freqüente solicitar de Deus que
julgue uma causa, como instância suprema; mas normalmente se trata de
causa alheia submetida a sua jurisdição. Para ficar nos salmos:
35.1
julga meus rivais
43.1
julga minha causa
119,154 julga minha causa
O salmo introduz mudança significativa: “julga tua causa”. Frisa-o
Eusébio: “Porque não somos nós que padecemos injustiça, mas tu, porque
a ti insulta o inimigo e o povo insensato denigre teu nome”.
23. O “tumulto” costuma associar-se a povos e exércitos estrangeiros:
é famosa a onomatopéia de Is 17,12s; o SI 65,8 associa-o às ondas maríti­
mas. O salmo termina com o estrondo crescente e hostil; um fragor que
parece cobrir as vozes suplicantes e que o Senhor não pode deixar de ouvir.
6. Transposição cristã
A chave de transposição consiste em tomar o templo como símbolo da
Igreja. O templo era o centro, o coração da comunidade: atacando o templo,
o inimigo ultraja o nome do Senhor e depois estende sua ação contra o povo
962
Salmo 74
e seus santuários. Para um cristão, não é um templo o centro da Igreja, já
que ela é o templo e o nome que leva é o de Jesus Cristo. A Igreja pode ser
atacada por inimigos externos. Uns mostram a cara e atacam explicitamen­
te a Igreja: suas instituições, seus membros, seus valores e tradições. Assim
o fizeram muitas perseguições históricas e recentes. Outros inimigos
vestem a máscara da tolerância e atacam os valores que Cristo proclamou
e encarnou, e que a Igreja custodia; ou se enfurecem com os “mais
pequenos”, os pobres e desvalidos. Também assim se ultraja o nome santo
de Deus. Por isso, ele deve se levantar para defender sua causa e afirmar
sua realeza. O “tumulto dos que se levantam” contra Deus continua
ressoando na história, o inimigo desafiante hasteia seus estandartes que
proclamam seus valores e suas pretensas conquistas. As vezes o povo
cristão não descobre os sinais da presença de Deus, seus “sinais” e
estandartes ao longo da história, não ouve a voz unívoca de profeta
acreditado, e pergunta: “até quando?” Esse salmo é oração do povo cristão.
Tem garantia de resposta. Um dia, concentrou-se o ataque inimigo em
torno de outro templo de Deus na terra, e lhe deu a morte. Mas “destruí esse
templo, e em três dias o reconstruirei”. “Essa é a vitória que vence o mundo”,
que fazemos nossa pela fé. Recorda, Senhor, tu és nosso Rei!
Através de Mt 24,2.15, vários santos padres referem o salmo, como
profecia ou como prefiguração, à destruição do templo e da cidade pelos
romanos: Orígenes, Teodoreto.
Salmo 75
1. Texto
2
Nós te damos graças, ó Deus, nós te damos graças,
invocando teu nome, contando tuas maravilhas.
3
“Quando escolher a ocasião,
eu julgarei retamente.
Ainda que trema a terra com seus habitantes,
eu firmei suas colunas.
4
5
6
7
8
9
Digo aos arrogantes: Não sejais arrogantes,
aos malvados: Não levanteis os chifres1.
Não levanteis os chifres contra a'Altura,
não digais insolência contra a Rocha”.
Não é o Oriente nem o Ocidente,
não é o Deserto nem a Montanha;
Deus é quem governa:
a um humilha, a outro exalta.2
O Senhor tem um cálice na mão,
um copo cheio de vinho drogado:
dele fará beber até as fezes
a todos os malvados da terra.
10 Eu sempre proclamarei sua grandeza
e tocarei para o Deus de Jacó.
11 “Arrancarei os chifres dos malvados,
levantar-se-ão os chifres do honrado”.
1o chifre
2 levanta
964
Salmo 75
2. B ibliografia
E. Wiesenberg, A note on mzh in Ps 75,9, VT 4 (1954) 434-439.
L. Brates, Algunas correcciones conjeturales en los Salmos (75,7; 119,91),
EstEcl 34 (1960) 657-672.
A. González Núnez, El salmo 7 5 y e l juicio escatológico, EB 21 (1962) 5-22.
B. Couroyer, Corne et arc, RB 73 (1966) 510-521.
M. Dahood, The four cardinalpoints in Ps 75,7 and Jl 2,20, Bib 52 (1971)
397-407.
R. Tournay, Notes sur les Psaumes, RB 79 (1972) 43-50.
E.
Beauchamp, Voie nouvelle pour 1’exégèse du Ps 75, em FS Bagatti,
Jerusalém, 1976, 44-46.
3. Análise filológica
3.
wqrwb shmk: literalmente, teu nome está perto. Já desde as antigas
versões leu-se o verbo qr’ com regime b-, que significa invocar, e os modernos
aceitam a solução. Afastam-se na maneira de vocalizar: epikalesometha to
onoma sou LXX, invocabimus nomen tuum Vg; Gun lê particípio pl qore,
equivalente de qr’y (GK 75 qq) e fá-lo sujeito do verbo sprw.
sprw: muitos corrigem para prim pess pl Duhm Cast Rav, outros
tomam-no como indeterminado.
3. myshrym: com valor adverbial.
6. bçw’r: literalmente, com o pescoço; gesto desafiante Hitzig, unido
a ‘tq com pescoço insolente Rav. Já LXX leu çwr e traduziu tou theou, segue
a Vg adversus Deum\ assim Gun Cast Kraus e muitos modernos, tomando
“Rocha”como título divino comum.
tdbrw: continua regido pela negação inicial do versículo.
7. mdbr hrym: a maioria dos antigos o interpretou montes desertos e
o referiu à zona meridional montanhosa e desértica; lendo mmdbr com
qames, segundo alguns manuscritos, interpretou hrym como inf hif de rwm
Qim, seguem-no Ros e Kraus; ao invés, Hitzig e Del aceitam a velha leitura
de LXX e Vg. Mas então falta o norte nos pontos cardeais, pelo que muitos
acrescentam a copulativa com ou sem a prep min Duhm Rav, etc.
9.
Variam as traduções do segundo hemistíquio, de acordo com os
termos e suas conexões: vinho vermelho, i. é, generoso (cf. Dt 32,14; Is 27,2)
Qim Ros; vinho espumoso ou fermentado (de sabor picante) Gun Kraus;
merus = genuíno, não aguado Vg; cheia do escanceado Ros; mesclado
(aguado) Qim Del; mesclado, tratado com espécies ou drogas Gun. Grãtz
traduz msk por jarra.
mzh: disso; a curiosa leitura de LXX e Vg ex hoc in hoc provocou a idéia
de dois cálices divinos, um de severidade e outro de piedade Eutímio, Hoberg.
Estudo global
965
’k: como uma precisão ao enunciado: bebeu Israel, pois agora cabe aos
pagãos apurar o resto, o pior Ros Hitzig; corrigem para ’p Wellh Olshausen
Gun.
10. ’gyd: com complemento tácito, paralelo de zmr Ros Del Rav;
seguindo a LXX, corrigem Gun e Kraus em ’gyl.
11. trwmmnh: poial passivo ou intransitivo.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
A julgar pelo primeiro versículo e pelo penúltimo, este salmo constitui
um hino dedicado às proezas de Deus; em concreto, a Deus como juiz dos
destinos humanos. Em vez de seguir o esquema tradicional, introduz perso­
nagens falando. A mudança de singular e plural e a mudança de falantes
sugerem execução litúrgica, sem que possamos precisar mais.
E possível, porém, ler esse salmo como continuação do precedente. Lá se
reconhece o Senhor como “Deus meu”, aqui se apresenta a ele como juiz, duas
funções que coincidem na pessoa. Lá pediam a Deus ‘julga tua causa, aqui
ele se dispõe a julgar. Lá perguntavam “Até quando?”, aqui responde
“quando escolher a ocasião”. Lá apelavam à vitória cósmica sobre as forças
do caos, aqui se afirma a estabilidade da terra sobre suas colunas. Lá se
mencionava a “tribo de tua herança”, aqui se canta o “Deus de Jacó”. Lá se
repetia “Tu”, aqui se repete “Eu”.
Essas correspondências mostram que o SI 75 encaixa-se bem depois do
74, mas não provam mais. Não vale postular que tenha sido composto
expressamente como continuação ou que se tenha recitado no mesmo ato
litúrgico. Mas pode-se provar que o coletor tinha sensibilidade para
critérios temáticos e permite uma leitura e estudo unificados.
Pelo tema geral e por vários detalhes, aparenta-se também com o
seguinte e tem contatos com o 82. Poderíamos chamá-los salmos de Deus
juiz, por sua concentração no tema, se bem que o motivo literário ocasional­
mente reapareça em outros salmos. O caráter genérico desaconselha toda
tentativa de buscar-lhe data histórica provável.
b) Composição
O movimento desconcertou a mais de um intérprete pelas mudanças
de falante e especialmente pelo versículo final. Alguns mudaram-no para
a terceira pessoa em nome da lógica. Ater-me-ei ao texto e fixar-me-ei nas
pessoas gramaticais para buscar-lhe outra lógica, a poética.
966
Salmo 75
Antes de tudo observo uma introdução hímnica no plural (v. 2) e outra
no singular (v. 10), o que nos leva a pensar em recitação coral no início,
rubricada no final por um liturgo ou chefe de assembléia. Terminadas
ambas as introduções e sem apresentação, toma a palavara o próprio
Deus: ’ny no v. 3, ’nky no 4, ’mrty no 5. Também o v. 5 é pronunciado por
Deus (’g d‘, se respeitarmos o TM). Por outro lado, o tríplice ky anafórico
de 7.8.9 leva a lê-los unidos; e como Deus figura neles na terceira pessoa,
devemos supor que fala a assembléia ou o liturgo, comentado o discurso
do Senhor.
O resultado é o seguinte: 2 introdução hímnica pronunciada pela
assembléia, 3-6 palavras textuais de Deus, 7-9 comentário da assembléia,
10 introdução hímnica do liturgo, 11 palavras textuais de Deus. É isso o que
razoavelmente dá o texto, e creio que tem sentido. Faça-se a prova de recitálo com distribuição de papéis.
O tom da recitação é categórico, definitivo: observem-se os pronomes
pessoais enfáticos, o tríplice ky asseverativo, a falta de transições, a repe­
tida parataxe, o ritmo staccato de 7-8.
c) Imagens
Há uma imagem dominante, a de juízo: Deus assinala o prazo de sua
celebração, afirma sua justiça, sentencia a culpados e inocentes, decide a
execução. Outra imagem condutora é de chifre.
— O juízo é óbvio em vários detalhes. Não estão explícitas a investiga­
ção dos fatos, as perguntas recriminatórias de costume, as possíveis
réplicas do imputado. A peça concentra-se na fase final do juízo. O juiz
afirma que “julgará retamente”, a assembléia reconhece-lhe o título legíti­
mo de “juiz”. No discurso do juiz está implícito o delito de rebelião. Alguém
descreve o juiz com o cálice punitivo na mão. No final, o juiz dispõe-se a
executar a sentença, “arrancarei”: a poção letárgica precede a execução
formal, o v. 11 não é mera repetição.
—
O chifre é imagem de grande enraizamento no AT (e persiste no NT)
Antes de passar revista a alguns textos, lancemos um olhar espanhol para
sintonizar emotivamente com o poema. Vejamos ou imaginemos o touro
saindo do curral correndo pela arena, detendo-se no meio da praça e
erguendo os chifres. Toda sua força e cólera condensadas nos cornos, toda
a mole disposta a disparar com os chifres. É amostra de poderio. É custoso
não citar inteiro o soneto de Rafael Mor ales:
“Es la noble cabeza negra pena,
que en dos furias se encuentra rematada.
Estudo global
967
Encerrada en la sorda calavera,
la tempestad se agita enfebrecida,
hecha passión, que el músculo no altera;
es un ala tenaz y endurecida,
es una ansia cercada, prisionera,
poe las astas buscando la salida”.
Da praça passemos a um pasto de touros bravos, para vê-los em grupo,
as cabeças recortadas contra o céu do ocaso, para escutar seu mugidos
prolongados. Também de Morales:
“Y la noche de ferro, sorda y fria,
parece que se pone em movimiento,
cuando siente en su carne el turbulento
mugir de fieros toros en porfia”.
Essas recordações ajudar-nos-ão a sentir com realismo a imagem do
salmo. A imagem de força bravia, unida à de fecundidade, é que impressio­
nou os antigos, na Mesopotâmia e em Canaã. Por isso incorporaram o touro
em seus mitos e cultos. Touro pode ser título da divindade ou representação
sua; Gilgames luta com o “touro do céu” e lhe dá a morte. Também os
israelitas cedem ao prestígio da figura transmitida por seus vizinhos. Uma
auréola mítica e sobre-humana realça a imagem poética.
Também chefes estrangeiros ou israelitas podem levar o título
emblemático de touros: Gn 49, 6 Siquém, Ex 15,15 idumeus, Dt 33,17 José,
Is 34,7, etc. Esse largo fundo cultural explica o uso freqüente do chifre como
símbolo de poderio. Nos salmos: 18,3; 89,18; 92,11; 112,9; 132,17; 148,14
(em alguns casos, a imagem pode estar lexicalizada). Recorde-se também
a ação simbólica do profeta de corte, rival de Miquéias ben Jemla:
lR s 22,11 Fez-se uns chifres de ferro e dizia: Assim diz o Senhor: com
estes chifrarás os sírios até acabar com eles. 12 E todos os profetas diziam
em coro: - Ataca Ramot de Galaad! Triunfarás, o Senor ta entrega.
Zacarias apresenta uma visão de quatro chifres expulsos por quatro
ferreiros:
2,4 E estes vieram espantá-los, expulsar os chifres das nações que
investiam com os chifres em Judá para dispersá-lo.
O livro de Daniel mostra-nos como a imagem dos chifres penetra na
apocalíptica gerando artificiosas alegorias intelectuais.
Para explicar o uso no singular, não podemos apelar para a figura do
rinoceronte ou do legendário unicórnio, pois não constam que fossem
conhecidos em Israel.
—
O cálice é outra imagem freqüente em contextos de julgament
criminal. Não parece ter de ordinário efeito mortal (como a cicuta), mas
968
Salmo 75
antes de provocar vertigem ou turvação, antes da execução; ou então deixa
impotente, como soldado bêbado incapaz de lutar (SI 78,65). Os textos
clássicos são Jr 25,15-29, de que cito dois versículos:
16 Que bebam, cambaleiem e enlouqueçam
perante a espada que atiro no meio deles.
27 Bebei, embebedai-vos, vomitai,
caí para não levantardes
perante a espada que eu atiro entre vós.
A bebida precede a execução, que se realiza com uma espada bélica ou
judicial. Em Ez 23,31-34, Ooliba (Judá) tem que beber a mesma taça que
Oola (Israel), imagem do desterro:
33 Encher-te-ás de embriaguez e náuseas
de espanto e atordoamento.
Em Is 51,17-23 é taça de ira e de vertigem. Em Ab 16 parece ser
mortífera; vejam-se também Zc 12,2; Lm 4,21.
5. Exegese
2. Ainda que esteja dedicado a “teu nome”, Yhwh só se pronuncia no
v. 9.
3. Fala Deus. E o Senhor do tempo e tem direito de fixar prazos e
momentos. Quando os conselheiros de Betúlia marcam um prazo de cinco
dias para render-se, Judite repreende-os:
8,12
Quem sois vós para tentar hoje a Deus e pôr-vos publicamente
acima dele?13 Pusestes a prova o Senhor Todo-poderoso, vós que nunca
entendereis nada.
Em Is 5,18, os incrédulos desafiam o profeta alegando a demora de
Deus: “que se apresse, que apresse sua obra para que a vejamos”; também
Ez 12,21-28 como o jogo dos estribilhos (Profetas, 717s), e Hb 1,2.
Será um juízo oportuno, segundo o calendário de Deus, e reto, como
corresponde ao juiz supremo. Vejam-se dois extremos: Gn 18,25: “o juiz de
todo o mundo não fará justiça?” e Sb 12,15-16: “Es justo, governas com
justiça e estimas incompatível com teu poder condenar a quem não merece
castigo”.
4. O julgamento ordena-se a fazer a justiça. Há harmonia profunda
entre a estabilidade cósmica e o reino da justiça entre os homens. O autor
imagina-se a terra dos vivos como um disco assentado sobre o oceano
inferior e apoiados em sólidas colunas e fundamentos. Os israelitas conhe-
969
Exegese
ceram terremotos que sacudiram a terra com seus habitantes (Am 1,1; Ez
38,19; Zc 14,5). A terra não se afunda, mas recupera sua estabilidade,
porque Deus “firmou suas colunas”.
Analogamente sucedem terremotos sociais no reino da justiça: em
casos extremos Deus virá restabelecer a estabilidade da justiça. Não é que
ajusta ordem humana seja uma peça a mais na ordem do universo; tratase antes de simetria e correspondência. Vejam-se:
SI 11,3
SI 82,5
Quando cambaleiam os fundamentos,
o que poderá fazer o justo?
Não sabem, não entendem, caminham às escuras,
e tremem os fundamentos do orbe.
5-6. Não se deve ler a tríplice intimação como preceito abstrato ou
genérico: “não há que fazer, não deveis fazer”, mas antes como repreensão
e abuso a quem está fazendo algo de mau ou proibido (não faças barulho,
dizemos a quem o está fazendo). Esclarece-o o qualificativo dos interpela­
dos, “arrogantes, malvados”. Seu delito é rebelião contra “o alto”, a Rocha,
Deus. A imagem do touro que levanta os chifres lançando mugido funde-se
com o valor simbólico de “altura” = céu = Deus; o mugido são as palavras
insolentes. Rocha é título divino tradicional, que pode sugerir firmeza
maciça e segura, glória como peso, não como esplendor.
Qimchi explica a imagem “não levanteis a cabeça”; Eutímio interpreta
aqui gloriar-se: “Os mesmos usam com freqüência o termo chifre, algumas
vezes em lugar de poder, outras em lugar de orgulho, porque os animais
cornúpetos com os chifres se defendem e se orgulham”; seguem-no Titelmann
e Belarmino.
7. Muda o falante, que faz uma profissão de fé. Nos pontos cardeais
figuram o deserto meridional do Negueb e a montanha setentrional do
Líbano. A frase surpreende por sua falta de verbo: fica assim mais categórica,
pura negação. Toca ao leitor preencher mentalmente o oco com “vem o
auxílio, garante-se a justiça”. Na geografia terrestre, humana, o orante não
encontra instância superior que garanta eficazmente o respeito ao direito e
à justiça; não encontra tribunal internacional acatado por todos.
8. Tem que levantar-se para a esfera superior, para Deus como juiz
supremo de indivíduos e nações. Ele humilha e exalta, não arbitrariamen­
te, mas segundo a justiça. O verbo “exaltar” é o mesmo de “levantar” os
chifres. A ação divina de exaltar e humilhar expressa-se, por exemplo, no
texto clássico de lSm 2,1-10, canto de Ana. Menos conhecido e não menos
oportuno é o seguinte texto do Eclesiástico 10,14-17:
Deus derrubou do trono os soberbos
e nele sentou os oprimidos.
970
Salmo 75
O Senhor arrancou as raízes dos povos
e plantou em seu lugar os oprimidos.
O Senhor apagou as pegadas dos povos
e destruiu-os até aos fundamentos;
apagou-os do solo e aniquilou-os
e acabou com seu nome na terra.
9. Na cena da taça mencionam-se “todos os malvados da terra”, o que
implica juízo universal; também final ou escatológico? Em rigor, pode-se
escalonar ao longo da história, nos prazos que Deus marcar para julgar.
Coincidiria com os “dias do Senhor”, com os ocasos de nações e impérios. A
reunião de todos numa cena só é recurso poético e litúrgico, pois os profetas
repartiram-nos ao longo de seus oráculos; se bem que Jeremias também
apresente juízo universal relativo, “a todas as nações às quais me enviou o
Senhor” (25,18). Ao abrir-se passo entre osjudeus amentalidade escatológica,
o presente salmo prestava-se a nova interpretação, sobre um juízo univer­
sal e final. Veja-se J1 4,9-17.
10. Toma a palavra o liturgo ou presidente. O título Deus de Jacó é
raro nos profetas (Is 2,3 = Mq 4,3) aparece algumas vezes no saltério como
alternativa do mais freqüente “Deus de Israel”. Parece referir-se à comu­
nidade inteira do povo escolhido, prescindindo de divisões. Quem fala
propõe-se ser arauto de seu Deus.
11. A voz de Deus anuncia a execução da sentença, que logicamente
tem duas vertentes, malvados e honrado (plural e singular como doutras
vezes), ou culpados e inocente. O primeiro é ação de Deus. Num hino a
Samás, deus da justiça (v. 95), diz-se: “ao que trama uma malfeitoria lhe
embotas os chifres” (Seux 57). O correlativo resulta como conseqüência: “os
chifres do honrado se levantarão”.
6. Transposição cristã
A chave está na interpretação de Deus e também de Jesus Cristo como
juiz. Como os textos são abundantes e apresentam significados, aspectos e
matizes diversos, darei só algumas indicações.
—
Primeiro, de Deus juiz. Hb 12,23 chama a Deus “juiz de todos
(panton); Rm 3,6 diz que “julgará o mundo”; Tg 4,12 apresenta a dupla
vertente do juízo: “um só é o legislador e juiz: o que pode salvar e destruir”;
lPd 1,17 reconcilia os títulos de pai e juiz: “se podeis chamar de Pai ao que
julga imparcialmente as obras de cada um ...”; Ap 6,10 está mais próximo do
salmo pela pergunta impaciente: “Tu, o soberano, o santo e leal, para quando
deixas o juízo dos habitantes da terra e a vingança de nosso sangue?”
Transposição cristã
971
— Segundo, Jesus Cristo juiz. Começo por dois textos significativos:
At 17,31 Marcou um dia em que julgará o universo com justiça, por meio
do homem que designou, e deu a todos garantia disso ressuscitando-o da
morte.
Rm 2,16 O dia em que Deus, por meio de Jesus Cristo, julgará o oculto do
homem, de acordo com meu evangelho.
At 10,42 Deus nomeou-o juiz de vivos e mortos.
—
Os textos citados e outros semelhantes, especialmente se mencio
nam “um dia” e a extensão universal, interpretam-se muitas vezes em
sentido escatológico, do juízo final da história. Custa-nos reconhecer os
juízos históricos de Deus e de Jesus Cristo glorificado. E verdade que não
podemos postular uma correspondência mecânica e individual de culpa e
castigo, não podemos sentenciar sem mais “castigo de Deus”. Mas isso não
deve impedir que reconheçamos em determinadas circunstâncias, em
acontecimentos históricos particulares, a realização dum juízo divino, de
condenação e salvação, por meios imanentes à história. Pois a condenação
e a execução do culpado, pessoa ou sistema ou instituição, ocorre em ordem
à salvação do inocente. Assim, pois, pode-se meditar o salmo no tempo da
Igreja ou pode-se projetar para a consumação final.
A imagem dos chifres é recolhida com êxito mediano pelo Apocalipse
(12,3; 13,1-11; 17,3-16). Mais fortuna teve a imagem da taça, especialmente
porque com ela Jesus se refere à sua paixão (Mt 26,39.42 no Getsêmani, Mt
20,22 aos Zebedeus, Jo 18,11 a Pedro).
Salmo 76
1. Texto
2
3
Deus se manifesta em Judá,
sua fama é grande em Israel;
seu albergue está em Jerusalém,
sua morada em Sião.
4
Aí quebrou as centelhas do arco,
escudo e espada e a guerra.
5 -T u és deslumbrante, magnífico,
com montões de butim.
6 Os valentes são capturados,
dormem seu sono;
os guerreiros não encontram as mãos.
7 Com um bramido, Deus de Jacó,
imobilizastes carros e cavalos.
8 Tu és terrível, quem te resiste
ao ímpeto de tua ira ?
9 Do céu proclamas a sentença:
a terra se assusta e se acalma
10 quando Deus se põe de pé para julgar,
para salvar os oprimidos do mundo.
11 Trituras a cólera humana,1
rodeias os sobreviventes da cólera.
12 Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri-os;
que seus vizinhos tragam tributos ao Terrível.
13 Ele deixa sem alento os príncipes
e é Temível para os reis do mundo.
1A cólera humana terá que reconhecer-te,
os que sobreviverem à cólera te rodearão
Análise filológica
973
2. Bibliografia
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31 (1981) 76-78.
3. Análise filológica
2. nwd‘: partie conhecido, reconhecido, famoso Ecker.
shmw: nome, renome DBHE.
3. Alguns antigos traduziram o topónimo, in pace, aceita-o Hoberg,
Genebrardo explica in urbe pacifica.
4. rshpy: anulam a imagem Vg potentias, Ag fortitudines, Sa vires;
mudam-na Sim oionous = aves de rapina, Jerôn volatilia.
5. n’wr: part nif de ’wr Qim Ges Thésaurus Del, deslumbrante
DBHE.
974
Salmo 76
mhrry. min causal dependente de ’dyr?; de proveniência Qim Briggs
Duhm, comparativo Marini Ros Phil Del Kraus, locativo Hitzig Cast Rav
(cf. GB 433 b, lc; Ges Thes 805 b, 3h).
trp: presa, butim: a montibus captivitatis Jerôn, karpimon = férteis
Teodoc; montes onde moram animais ferozes de rapina Qim, ou bandidos
Ros, ou imagem de soberbos mandões Del; oreon aionion LXX, montibus
aeternis Vg; preferem-no Hitzig Briggs Duhm supondo que trp seja substi­
tuição errônea de um ‘d original, já que ‘d também pode significar butim (cf.
Gn 49,27).
6.
’stwllw: hitpolel de shll com’ em vez de h como no aramaico, sentido
passivo foram despojados Jerôn Ros Phil Hitzig Del Cast Rav; ou reflexivo
Abu Walid (citado por Phil) expostos ao despojo Marini; etarakhesan LXX,
turbati sunt Vg.
‘byry: asynetoi LXX, insipientes Vg: leram b‘ry?, hyperephanoi Sím,
heróis Targum.
wV mç’w ... ydyhm: comenta Marini: modismo hebraico felicíssimo.
Facilmente são despojados porque dormem, porque não encontram as
mãos para lutar; estão tão aterrados que pensam não ter mãos. Del cita
uma expressão talmúdica: “Não encontrava na escola suas mãos e seus
pés, estava perplexo e desconcertado” (Dukes, Rabbinische Blumenlese,
191).
8.
m’z: temporal no tempo, durante Ges Thes 806a, 4b; lêem me‘ôz
(segundo SI 90,11) Duhm Gun Kraus.
lla.Tomando o texto em seu sentido óbvio, com hmt como sujeito: a
cólera contra ti, dos que atacaram Jerusalém, terá que te louvar apesar
de tudo, sua ira redundará em teu louvor Qim; semelhante Marini:
derrotando sua cólera ganharás louvor; de modo semelhante Ros Phil
Hitzig Del Cast. Corrigindo o texto: do verbo hmh = ver como em aramaico
Gun; terra sujeito e hmt advérbio a terra louca de alegria Buttenwieser;
por tua cólera contra outros homens Dah; Edom e Jamat Schmitdt; tadek
de dkk / dkh triturar.
11b.Sem mudar o texto, variando a função na frase e a identifica­
ção das personagens. “O que resta das cóleras” são os inimigos que o Senhor
leva cingidos ou tem presentes para derrotá-los Marini; (Deus) te cingirás
o que resta de tua cólera (para acabar com o inimigo) Jerôn reliquiis irae
accingeris Ros Del; rodearás (protegendo) os que sobrevivem à tua cólera
Rav; os que sobreviverem à tua cólera te rodearão Dah; o que resta do
castigo (ira) o sujeitarás (sem aplicá-lo) Rasi citado por Ros. Mudando thgr
no verbo hgg = festejar: LXX Vg Atanásio Eutímio Cassiodoro Belarmino
Duhm But Cast Kraus.
12.
Imwr’: toi nomothetei, lendo lammore Símaco.
975
Estudo global
4. Estudo global
a) Composição
—
0 salmo não tem estribilho em sentido estrito, mas traz uma série
de predicados, estrategicamente colocados, que articulam o conjunto do
poema:
2
5
8
12
13
nôda‘
na’or
’addir
nôra’
môra’
. nôra’
conhecido, reconhecido
deslumbrante
magnífico, ilustre
temível
terrível
temível
Estes predicados (salvo o ’dyr, pendente por paralelismo) soam conspicuamente unidos por sua sonoridade: evidente por identidade de lexema
em nôra’ e môra’ com variante fonética em nôra’ e nôda‘, com inversão em
nôra’ e na’ôr.
Isso quanto à forma; pelo significado, agrupam-se num campo que
exalta a manifestação numinosa, grande e terrível do Senhor. Eles marcam
a tonalidade do salmo, a atitude dominante dos que oram. De uma cantata
à Assunção de Maria, de sor Joana Inês da Cruz (1651-1695), copio os
seguintes versos, em que encarece a polaridade numinosa:
“Este, pues, terror hermoso,
este valeroso pasmo,
este refulgente asombro
y este luminoso espanto”.
Os predicados citados têm também valor estrutural? Conjugando sua
posição com o conteúdo do resto, creio que aparece sua função estruturante.
Com efeito, no princípio e no fim, em inclusão temática, encontramos os
predicados nwd‘e nwr’ + mwr’; em 5 e 8 encontramos n’wr e nwr’ indicando
pausa ou enlace. Pode-se propor a seguinte divisão formal e temática do
poema:
I
II
III
2-4
5
6-7
8
9-13a
13b
Revelação vitoriosa em / desde Sião
aclamação “és deslumbrante”
derrota dos agressores
aclamação “és terrível”
cena de julgamento
aclamação “és temível”
A primeira aclamação faz coro ao vencedor com seu butim de guerra;
a segunda mostra-o irresistível na guerra e no juízo; a terceira recolhe e
amplia o precedente.
976
Salmo 76
— Não menos importantes para a composição interna do poema são os
símbolos conjugados de guerra e juízo, nos quais se manifesta o poder
numinoso de Deus. Estes símbolos, levantados à superfície, sugerem uma
divisão semelhante:
I
II
III
2-3
4-8
9-13
introdução: o rei em seu reino
vitória militar
juízo e conseqüências.
Estes símbolos contêm e desenvolvem a substância do poema e inte­
gram antes a estrutura profunda. Por isso é preciso estudá-los à parte.
b) O símbolo bélico
— Faz parte do símbolo bélico um verbo único em forma finita cujo su­
jeito é Deus: sibbar = quebrou. Isso torna mais saliente a acumulação de com­
plementos: os relâmpagos (ou chispas) do arco, escudo, espada, batalha. Em for­
ma nominal soa um substantivo que condensa toda a ação de Deus: um bra­
mido (ou bufido, que pode ser metáfora do trovão) que afeta a outros dois com­
plementos, carros e cavalos. Pertence ao campo militar o sintagma do final
“corta o alento”, ou é execução da sentença judicial? Responderei mais abaixo.
— O que os inimigos opuseram a essa ação? Nada; uma série de verbos
ou negados ou com valor negativo: dormem seu sono, não lhes respondem
os braços, ficam imóveis, não resistem. Não assistimos à aliança, mobilização,
preparativos, assalto reiterado; o poeta surpreende o momento de uma
derrota ou vitória fulminante e apresenta com traços rápidos seu resultado.
Entre as armas inutilizadas e os guerreiros imobilizados, destaca magní­
fico o vencedor, deslumbrante no meio de seu butim de guerra.
O inimigo é anônimo, somente apresentado em formas adjetivas. Se se
fala de vizinhos ou de reis do mundo, é na parte dedicado ao julgamento.
Doutro lado, o Senhor não aparece em castelo ou fortaleza, mas em simples
albergue (skw) onde tem sua morada (m‘wntw). Como se não necessitasse
de fortificações, fossos e escarpas e muralhas, pois basta-lhe assomar-se e
dar um bramido ou arremessar.
O símbolo bélico está bastante concentrado. Pode-se ler, como contras­
te, o SI 83. Também está concentrado porque Deus luta e vence sozinho, sem
exércitos angélicos, celestes ou humanos.
c) O símbolo judicial
O símbolo judicial enuncia-se explicitamente nos versículos 9-10 e
polariza a leitura de outros elementos. Trata-se de um juiz que julga
duas partes, fazendo justiça ao inocente e castigando o culpado. O que
977
r.studo global
nos pede considerar as duas partes implicadas no pleito. Para fazê-lo,
temos que resolver uma questão prévia: como se relacionam batalha e
juízo?
— Cabem duas explicações. Têm lugar a batalha e a vitória, depois o
vencedor julga o pleito, libertando ou castigando. Ou então, a ação militar
é a execução da sentença judicial; neste caso, o poema inverte a ordem
cronológica para impor a ordem lógica de fato e explicação. Em outras
perspectivas, pode-se dizer que a vitória militar foi um juízo histórico de
Deus: os agressores injustos foram derrotados, os inocentes indefesos
foram libertados, tudo por pura intervenção de Deus.
Sobre a relação entre juízo e guerra pode-se consultar: P. Bovati,
Ristabilire la giustizia, Roma, 1966, 270, com bibliografia, e o índice
temático, termo “guerra”.
“Ao considerar-se a vitória militar como triunfo do direito sobre a
injustiça, é normal esperar na antiguidade, e também em nossos dias, que
a vitória no campo militar vá acompanhada de um processo imposto aos
culpados derrotados” (p. 271).
A guerra como juízo, a derrota como execução, parece explicar melhor
os dados do salmo. Guiados por ela, passamos ao seguinte:
— Delimitamos os paradigmas das duas partes do juízo:
’bry lb
valentes
(yhwdh ysrí)
(Judá Israel)
’nshy hyl
guerreiros
m lk y ’rç ngydim
reis do mundo
‘wy ’rç
oprimidos do
mundo
(hm t’dm ?sbybym ?)
(cólera humana? vi
zinhos?)
(sh’ryt hmt?)
(sobreviventes da cólera?)
Fica bastante clara a coalizão dos grandes do mundo contra os
oprimidos do mundo, que parecem ser Judá e Israel ou Jacó. Confinei em
parêntesis vários dados duvidosos do texto, concentrados especialmente no
v. 11. Já os discutimos na análise filológica, e aqui podemos insistir. Inclinome a ler no v. 11 a dupla ação judicial que condena os culpados, cólera =
coléricos, e salva os inocentes, resto = sobreviventes da cólera / agressão.
Razões: se bem que um exército hostil tenha que reconhecer (yd0 o Senhor,
não é provável que o louve e lhe dê graças; a cólera não louva a Deus. De
outro lado, sh’ryt designa os sobreviventes do povo, não um resto de paixão,
que se diria antes ytr; esse resto não cinge ou rodeia a Deus, mas, pelo
contrário, Deus cinge e protege seu povo. Mais detalhes no comentário
exegético.
Entre outras coisas, será preciso explicar a relação Judá / Israel, assim
como também o papel dos “vizinhos”.
978
Salmo 76
d) Explicação de conjunto
Como resultado da análise precedente, podemos propor o sentido e
movimento do salmo.
— Do velho Israel, que um dia se esquartejou e se dividiu em Judá e
Israel, fica um “resto” sagrado, continuador da história e portador da
salvação, que sobreviveu a tantas agressões e agora se concentra em Judá.
Esse resto se apinha em torno da capital, com seu templo, reconhecendo o
Senhor como seu Deus. Voltam a levantar-se poderosos e violentos contra
o resto inerme, e então Deus intervém de Sião: celebra um juízo histórico,
dita sentença e executa ou castiga os agressores infligindo-lhes fácil
derrota. No final, o grupo libertado é convidado a fazer votos e cumpri-los,
como expressão de sua confiança no Senhor (e não nas armas). Os poderosos
agressores são aniquilados e os sucessores respeitarão com temor sacro o
Senhor. Resta um grupo de povos vizinhos, não impérios com iniciativas,
mas cúmplices e colaboradores subalternos, que ficam submetidos como
vassalos tributários. Os oprimidos não tiveram que intervir com contraviolência. Não houve mediador humano, o rei ungido. Deus foi o grande
protagonista “reconhecido, deslumbrante, magnífico, temido”.
— Essa visão de conjunto serve para conjeturar, não para definir, o
momento original do salmo e para facilitar sua transposição. Em princípio,
poder-se-ia referir ao reino de Judá depois da queda de Samaria, por
exemplo, à raiz da derrota de Senaqueribe: Is 11,4 diz de seu rei whwkyh
l‘nwy ’rç. Também poder-se-ia referir à comunidade repatriada depois do
desterro; Sofonias convida sua comunidade chamando-a de kl ‘nwy ’rç.
Desprendido de sua vinculação histórica puntual, o salmo pode dila­
tar-se e simbolizar novas situações ou novas realidades.
5. Exegese
2-3. Abre-se o salmo com quádrupla definição local: em Judá, em
Israel, em Salém, em Sião. Identificam-se as duas primeiras, o autor
considera Judá como o autêntico Israel, segundo costume que se torna
prevalente. Se o autor pensa nos dois reinos davídicos, frisa a centralidade
de Jerusalém. O SI 114, falando do êxodo, propõe o paralelismo de Judá e
Israel, sem pensar em dois reinos divididos. A denominação breve da
capital coincide só com Gn 14,18. Talvez busque o autor uma ressonância
do nome em 12ab: wshlmw ... shy Imwr’.
A determinação local limita o alcance do predicado? Ou seja, o Senhor
“é reconhecido” (só) em Judá-Israel; dos reis estrangeiros “é temido”; mas
“os vizinhos lhe trazem tributos”, o que é um modo de reconhecimento,
Exegese
979
ainda que com medo. O contraste pode dizer que Judá o reconhece de outro
modo, de bom grado.
niucTpredica-se do Senhor: em Is 19,21 com complemento Egito (texto
muito tardio, que fala de reconhecimento pleno), de modo genérico em SI
9,17, num texto aparentado dedicado a Sião, o SI 48,4 (são comuns a
grandeza do Senhor, o tema militar, o juízo, o posto de Judá ...).
E raro chamar o templo de cabana, choça (skh): SI 27,5; Jr 25,38 (numa
imagem). A forma m‘wnh dita do templo (ou de Sião) é única, pois em outros
casos significa a guarida de feras (Am 3,4; SI 104,22; Jó 37,8; 38,40; Na 2,13;
Ct 4,8); só em Dt 33,27 e Jr 21,13 refere-se a morada humana. Quererá o
salmo insinuar que o templo está reduzido a choça ou guarida? É difícil
prová-lo, ainda que seja legítimo perguntá-lo.
4. Dada a intensa localização dos verbos precedentes, “ali” soa com
ênfase, como se a derrota tivesse sucedido exatamente na capital. É
corrente a idéia de que Deus deixa aproximar-se o inimigo para derrotá-lo
em seu território. Is 14,25 diz: “Desmantelarei a Assíria na minha terra,
pisá-la-ei nos meus montes”; amplia o tema Ez 38-39.0 último complemen­
to soa a recapitulação, como se dissesse: todas as armas, defensivas
escudos) e ofensivas, de longe (arcos) e de perto (espadas), ou seja, toda a
guerra. E preciso compará-lo com o SI 46,9s.
5. Se a fama ou nome é dado auditivo, n’wr indica experiência visual.
Como defesa contra o exército invasor dos sírios,
Eliseu orou ao Senhor: Deslumbra-os! (fere-os de cegueira). O Senhor os
deslumbrou como pedia Eliseu (2Rs 6,18s; veja-se Ex 14,24).
Vejam-se Hab 3,3 e Jó 37,22 (interpretando zhb como resplendores de
ouro).
Traduzimos “montões”, palavra que vem também de “monte”. O butim é
direito tradicional do vencedor e alarde de sua vitória. Nos informes de cam­
panhas militares de faraós é corrente aduzir listas do butim capturado (a modo
de exemplo, ANET 246B); no informe da batalha contra os povos do mar lemos
a frase: “Eu era o valoroso Montu [Deus da guerra], em pé diante deles, para
que pudéssemos contemplar minhas mãos capturando butim” (ANET 262B).
6. Continua o tema do butim, se identificarmos o verbo shll; neste caso,
o sono deste versículo e do seguinte seria metáfora de medo que paralisa
•Bruna Costacurta, La vita minacciata, 223). Se for assim, não se refere ao
sono da morte (Jr 51,39.57; talvez Na 3,18; cf. Profetas, 1089); os caídos não
são butim de guerra.
7. Sobre o bramido ou repreensão de Deus: SI 18,16 efeito cósmico,
80,17 faz perecer, 104,7 põe em fuga. Parafraseia Agélio: indignatione
maxima... increpavit, spiritu... comminationisperterruit, tamquamtonitru
terroris obstupefecit.
980
Salmo 76
8. Veja-se a oração de Josafá antes da batalha na versão própria de 2Cr
20,6 e Sb 11,21:
Não és tu o Deus do céu,
o que governa os reinos da terra,
cheio de força e poder,
a que ninguém pode resistir?
Deslanchar todo o teu poder está sempre a teu alcance,
quem pode resistir à força de teu braço?
Pelo sentido, se não pela gramática, a reação da terra precisa ser
entendida em duas etapas: assusta-se e acalma-se. Interpretamos: assus­
ta-se diante do ataque do inimigo e da reação colérica de Deus, acalma-se
pela vitória divina: vej am-se textos em que “a terra descansa” da guerra: ’rç
shqth (Js 11,23; 14,15); Is 14,7 queda do tirano, 2Cr 23,21 morte de Atalia;
ao invés, 2Cr 20,29s reparte os dados, terror para o inimigo, calma para o
reino de Josafá.
10. Veja-se Is 2,19; no saltério é freqüente o motivo do levantar-se de
Deus para julgar, por exemplo, 7,7; 12,6; 74,22; 82,8. Como em outras
ocasiões, a finalidade do juízo é salvar os oprimidos; com grande relevo o diz
SI 12,6.
11.Em nossa interpretação (lendo o verbo dkk / dkh), este versículo
enuncia os dois termos correlativos do desenlace do juízo (veja-se SI 44,20
e a forma mais freqüente dk’). Se se mantiver a leitura do texto hebraico,
será preciso dizer que, diante da ira divina, a cólera humana tem que
confessar ou louvar.
A segunda parte (em nossa leitura) enuncia a proteção divina do resto,
tomando hgr como equivalente de ‘r ou sbb.
12.
Sujeito da primeira parte são os salvados, aos quais diz o texto “
vosso Deus” e os convida a cumprir os votos feitos ou por fazer. O sujeito da
segunda parte está explícito: são povos vizinhos que pagarão o tributo de
vassalagem. Veja-se um texto dos anais de Ramsés II (ANET 255B):
“Todos os países estrangeiros tremem diante dele seus chefes lhe ofereciam
tributo, os rebeldes se aproximavam e se prostravam assustados diante da
glória de sua majestade”.
13. Se cortar o alento se toma em sentido extremo, equivale a dar a
morte, e indicaria a execução de sentença capital. Em sentido limitado
significa deixar sem alento, desalentados, sem respiração de puro medo. O
verbo bçr tem dois valores (pelo menos): um mais freqüente é vindimar
(cortar, arrancar), do que resultaria: o Deus que “dá” ou “derrama” espírito
= alento, o retira ou recolhe (verbo ’sp lido em SI 104,29); outro mais raro
é encerrar, coarctar, do que resultaria: Deus coarta o alento, impede o ritmo
da respiração. E difícil decidir-se, mas o resultado é eqüivalente. Na esteia
Transposição cristã
981
de Barkal lemos (fala Tutmósis III): “estava em pé na muralha, exaltando
minha majestade e pedindo que se lhes desse (conservasse) o alento da
vida” (ANET 238A); a mesma expressão lê-se nas esteias de Mênfis e de
Karnak (Amen-hotep II, ANET 247B).
6. Transposição cristã
O tema de Sião converte-se em símbolo da Igreja, idealmente
identificada com os oprimidos do mundo, atacada e sobrevivente da cólera
desatada contra ela.
O tema da batalha é completamente transformado. O Apocalipse
assume e desenvolve complacentemente a imagem bélica: veja-se no c. 12
a peleja celeste de Miguel contra as hostes do Dragão.
O tema do juízo passa a contexto escatológico em que Cristo glorificado
é juiz (como é indicado no salmo precedente).
Jerônimo comenta que no tempo do AT Deus é conhecido em Judá,
agora se dá a conhecer a todo o mundo. Sobre o v. 6 diz que a vida humana
é um sono.
Salmo 77
1. Texto
2
3
4
5
6
7
Minha voz para Deus, gritando;
minha voz para Deus, que me escute.
Em minha angústia te busco, Dono meu1,
de noite move-se minha mão sem descanso,
recusa acalmar-se o arquejo.
Recordando de Deus, gemo,
meditando sinto-me desfalecer.
Manténs abertos meus olhos,
a agitação não me deixa falar.
Calculo os dias de antanho,
os anos remotos.
De noite repito minha canção,
medito-a por dentro, meu espírito indaga:
8
Será que o Senhor nos rejeita para sempre
e não voltará a nos favorecer?
9 Esgotou-se sua misericórdia,
terminou para sempre sua promessa?
10 Olvidou Deus sua bondade,
ou a cólera lhe fecha as entranhas?
11 E me digo: pobre de mim!,
mudou a destra do Altíssimo.
12 Recordo as proezas do Senhor;
sim, recordo de teus antigos portentos,
13 medito todas as tuas obras,
considero tuas façanhas.
14 Deus meu, teu caminho é santo,
que Deus é grande como nosso Deus?
1senhor meu
Bibliografia
983
15 Tu és o Deus que operas maravilhas
e mostraste aos povos teu poder.
16 Com teu braço resgataste teu povo,
os filhos de Jacó e de José.
17 O mar te viu, ó Deus,
viu-te o mar e tremeu,
as ondas estremeceram.
18 As nuvens descarregavam sua água,
retumbavam as nuvens densas,
tuas setas ziguezagueavam.
19 Rondava o estrondo de teu trono,
os relâmpagos deslumbravam o orbe,
a terra tremia e estremecia.
20 Teu caminho pelo mar,
um vau pelas águas caudalosas,
e não ficava rastro de tuas pegadas,
21 enquanto guiavas teu povo como um rebanho
pela mão de Moisés e Aarão.
2.
Bibliografia
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Heilsgeschichte, TLZ 72 (1947) 133-140.
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52 (1963) 36-42.
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984
Salmo 77
S. A. Gameleira Soares, Salmos: História, poesia e oração: Uma leitura
do Sl 77, EstudosBib 10 (1986) 8-27.
3. Análise filológica
2. wh’zyn: forma weqatalti GK63 ou, imper Dah; é continuação de w’
ç ‘qh.
3. ngrh: os LXX leram negdo, enantion autou, e segue-os Vg contra
eum; seguem o hebraico Símaco Jerôn Teodoreto e outros.
npshy: é aqui a respiração.
4. w’hmyh: com terceira radical Yconservada GK 75 l.u. Vgdelectatus
sum, Jerôn conturbabar, Pagnini tumultuabar.
5. shmrwt:phylakas LXX Aquila Teodocião; pálpebras TargFlamínio.
’dbr: valor modal Joüon 113 1.
9. h’ps: ábscindet Vg segundo LXX.
’mr: promessa; ameaça Targum, uerbum Jerôn; alguns corrigem
para ’mt.
10b. Como que com um dique fecha a fonte da misericórdia, explica
Teodoreto; o verbo significa fechar, coibir, para que não saia nem flua
Belarmino.
h- ... ’m: interrogativa dupla sem oposição GB 46 b.
11. hlwty: de hll inf qal GK 67 r, GB 234 b ser atravessado; trosis mou
Símaco, minha pena Baethgen, minha tortura Hitzig; inf piei de hlh estar
doente Teodocião odines, Aquila arrostia, Targ mar’uti, assimMuis, Del; de
hll profanar Hirsch, corrige para ht’ty Graetz. Leram hhlwty começou LXX
Vg Hoenen Placidus Parm Heser Titelmann Dion Cart.
shnwt: mudar: da mão de Deus para castigar Teodoreto Eutímio, a
mudança operada em mim pela mão de Deus Atanásio Agostinho; tradu­
zem anos Qim Pagnini Flamínio.
12. ’zkr: ketib hif, qere qal; Hitzig Del conservam o ketib e tomam o ky
como explicativo.
mqdm: desde a antiguidade Del; na antiguidade Hitzig Gun, cf. Ges
Thes 806 a.
14. bqdsh: advérbio com função de adj.
18. zrmw: pual ou poel GK 55 b; unindo o sintagma com o precedente
traduzem LXX e Vg a intensidade do estrondo das águas; Targ as nuvens
do céu derramaram água, sacudiram água as núvens Jerôn.
19. bglgh trokho Aq Teod, trkhois Sím, in rota Jerôn; rota = contorno
Hoberg, furacão Kautzsch Reischl, roda (dos carros egípcios) Teodoreto,
Eutímio, Titelmann, a roda do carro de Deus Ecker (cf. Hab 3,8).
4. Estudo global
a) Gênero e situação
— É muito fácil catalogar as duas partes desse salmo, mas é impossível
encaixá-lo em algum gênero. A primeira parte (2-11) é súplica centrada em
descrever a desgraça presente; a motivação se dá em forma de pergunta
retórica e concentra-se na coerência histórica de Deus com sua obra. Falta
a expressão de confiança e em conseqüência a promessa de ação de graças.
A segunda parte (12-21) é hino com breve introdução, centrado na saída do
Egito. Alguns enunciados genéricos (14-16) preparam o tema concreto.
Não creio que se possa tomar o hino como texto de uma futura ação de
graças prometida).
A combinação, dir-se-ia justaposição, das duas peças define a persona­
lidade única do salmo: depois de uma súplica quase desesperada, um hino
triunfal. Para captar essa tensão, serve o trabalho de catalogar suas partes.
Mas dividir o salmo em dois e explicar cada um por sua vez seria destruir
sua substância.
— A situação é uma desgraça nacional que se vai prolongando (Inçh 9),
no que se aparenta com os SI 74 e 102. A situação poderia ser o desterro ou,
na volta, a precária existência como província do império persa. A segunda
parte tem pontos de contato com o chamado cântico de Moisés (Ex 15);
parece também com o esquema e alguns detalhes de Is 63,7-14. (Ao invés,
o SI 143 só se esclarece como imitação do presente).
Tomemos o desterro como situação imaginativa. Quero dizer que não
o proponho como hipótese de datação histórica, mas como recurso imagina­
tivo para explicar um texto ou um processo. Não digo “provavelmente é”,
mas “é como se”. A imaginação, reconhecida como tal, pode ter função
heurística e hermenêutica. Assim, pois, imaginemos o grande poeta anôni­
mo que chamamos Isaías Segundo: vive a tragédia que cantam as
Lamentações, compartilha-a com os seus, medita o passado; um dia, em
iluminação repentina, transfigura-se-lhe o êxodo e começa a contemplar
um novo êxodo mais glorioso. Poderia ter concentrado essa experiência no
SI 77: “é como se”. A partir do salmo, poderia brotar o canto de vida e
esperança que é Is 40-55.
Convém ler Is 63,7-14 (texto posterior) para apreciar a semelhança
estrutural. Começa com um repasso histórico dos benefícios de Deus (7-9);
o povo é infiel a Deus e é castigado por isso (10) (desgraça e afastamento de
Deus); nessa situação surge a recordação do êxodo:
11
Recordaram-se dos tempos antigos,
do que tirou o seu povo.
ymy ‘wlm
986
Samo 77
12
13
14
Onde está o que tirou das águas
o pastor de seu rebanho?
Onde o que meteu em seu peito
seu santo espírito?
O que esteve à direita de Moisés
guiando-o com seu braço poderoso?
O que dividiu o mar diante deles
ganhando-se renome perpétuo?
O que os fez andar pelo fundo do mar
como cavalos pela estepe,
e como gado que desce para o vale
não os deixou tropeçar?
O espírito do Senhor os levou ao descanso.
Assim conduziste o teu povo
ganhando-te renome glorioso.
As coincidências verbais entre Is 63 e SI 77 devem-se ao tema comum.
Se o esquema é semelhante, o desenvolvimento é diverso, e presta-se a
exercício de poética comparada.
b) Composição e relações
A composição de cada parte é bastante clara e corresponde ao tema.
Primeira parte (2-11). Após uma entrada enfática (2) sucede um grupo
descritivo, definido em inclusão menor pela repetição de zkr e lylh em 3 e
7; segue um trio de perguntas apaixonadas, com a repetição anafórica da
interrogativa h- (8-10); encerra-se no v. 11 com uma espécie de balanço
personalizado.
Segunda parte (12-21). Os dois primeiros versículos, com quatro
sinônimos, formam uma introdução genérica (12-13); os três versículos
seguintes referem-se à libertação do Egito ainda em termos genéricos (1416); o resto dedica-se a descrever a passagem do mar Vermelho como
teofania. As repetições de p l’ em 12b e 15a e de drk em 14 e 20 soam
discretamente.
Com o dito, ficamos na superfície, quando o decisivo do sentido reside
na relação tensa das duas peças. Efetivamente, exercita-se nas duas partes
a recordação; a repetição de zkr em 4,7 / 12ab sublinha-o (note-se o antô­
nimo Shkh em 10a). A recordação da primeira parte serve para agravar por
contraste a pena presente, deixando balanço desolador: “mudou a destra do
Altíssimo” (tornou-se sinistra). A segunda ronda de recordação é jubilosa,
ainda que não desemboque em balanço conclusivo. Logo, há dois modos de
recordar, inclusive opostos. Não basta advertir isso; antes, do fracasso da
primeira recordação brota o triunfo do segundo. O primeiro é exercício
laborioso, que deixa o orante perturbado e desfalecido; o segundo começa
Estudo global
987
como tarefa e em seguida se converte em contemplação fascinante. Creio
que essa relação ou tensão de ambas as partes seja o mais substancioso do
salmo.
Considero uma objeção, para fechar toda escapatória. No texto hebraico
do v. 7 (não no grego) menciona-se uma canção com acompanhamento, que
3 orante cantarola mentalmente: não poderia ser 12-21, ou ao menos 17-21,
o texto dessa canção? Nessa hipótese, depois do 21 voltaria o orante ao
balanço do v. 11: essa é minha tragédia, que a destra do Altíssimo tenha se
mudado. Parece-me muito difícil provar essa hipótese: a recitação do texto
descritivo não corresponde à situação de espírito da primeira parte. O
salmo não se cerra sobre si, como caracol que se dobra em sua cápsula, mas
termina aberto. E da mesma forma o orante.
Também Isaías Segundo teve que se confrontar com o problema da
recordação: perante nostalgia paralisante, proclamou um anúncio de
esperança (43,18s):
Não vos recordeis de coisas passadas,
não penseis no antigo;
Vede que realizo algo de novo:
já está brotando, não o notais?
Diante de passado abolido e irrecuperável, passado atual e transfigu­
rado: novo êxodo; esta é a velha novidade.
Dois sinais estilísticos ajudam a perceber a relação de ambas as partes.
A citada repetição de zkr em 4.7.12a, de ’syh em 7b.13b. Mais importante
me parece a correspondência do duplo qwl em 2ab e em 18.19: ao duplo
clamor, a voz reiterada do orante corresponde à distância o clamor do
trovão, que é a voz do Deus libertador.
c) A palavra poética
A experiência do orante na primeira parte expressa-se na linguagem
da lírica, conjugando corporeidade e intimidade: voz, mão, respiração,
olhos, e também coração = mente, espírito, meditação, perturbação. Até
aqui, um caso insigne num costume conhecido. Pelo contrário, a experiên­
cia da segunda parte, a visão do êxodo, é mediada pela palavra poética. Não
é caso único, mas ocorre aqui com tal intensidade e clareza, que nos brinda
a ocasião de refletir sobre fato tão importante.
Na primeira parte, a função da palavra é expressiva. Uma interioridade
vem para fora, cristalizada em palavra poética, para comunicar-se
emotivamente. Não é informe clínico (dói-me o terceiro espaço intercostal
direito), mas expressão lírica que busca participação, por contágio ou
compaixão. Ou nos identificamos ou nos associamos ao orante. Inclusive os
988
Salmo 77
dados que se diriam externos, corporais, são observados por uma consciên­
cia que se volta sobre si lucidamente, interiorizando as sensações. Ainda
que quem se apropia do salmo não agite as mãos e a respiração, compreen­
de-as por empatia afetiva. E verdade que a palavra discorre em diálogo com
Deus, mas não é puramente interna nem inarticulada. Desenvolve-se ao
fazer-se pública, convidando a entrar no jogo como interlocutores de Deus.
Na parte final lemos uma descrição fantástica de grande viveza. Não é
reprodução nem sequer imitação realista. A fantasia apoderou-se do evento
antigo ou de sua transmissão tradicional e criou evento poético novo,
mediador. Fê-lo com tão convincente intensidade, que o orante e o leitor
assistem mentalmente ao fato e captam seu sentido. E o que chamam de
experiência vicária mediada pela palavra poética. Em termos artísticos é
como se assistíssemos à representação dum drama ou filme, ou como quando
lemos uma boa novela entrando em seu mundo. No terreno da espiritualida­
de, Santo Inácio o formularia assim: “como se presente me falasse”. O salmo
oferece o mistério do êxodo à contemplação artística e espiritual.
Compare-se o efeito com a realização do SI 73, onde se dá salto abrupto
sem intermédio de descrição.
5. Exegese
1-11. Chama a atenção a abundância de verbos na primeira pessoa e
de substantivos com sufixo possessivo “meu”; conseqüentemente, a abun­
dância de palavras que começam por alef. Em 8-10, Deus é sujeito na
terceira pessoa, só que dentro da interlocução do orante, que pergunta ou
se pergunta (outra espécie de primeira pessoa). Pode-se comparar com as
expressões em primeira pessoa do SI 102.
2. O versículo de entrada é elaborado com especial cuidado. A primeira
palavra é qôlí = minha voz, em posição enfática, em frase nominal;
compare-se com o SI 3,5 e a imitação do SI 142,2 (qwl instrumental). A
terceira palavra especifica: é grito, ainda não se articula. O segundo
hemistíquio repete o primeiro sintagma e muda o verbo, de sorte que soa a
correlação: eu me queixo, que ele escute. Seis palavras, incluídas duas
proposições, começam com alef. Com todo rigor estabeleceu a tonalidade de
afã insistente. Se o que segue toma forma de meditação privada, conste que
é todo um clamor dirigido a Deus.
3. drsh pode significar especificamente a consulta ou genericamente a
busca. Em certo grau implica que Deus está distante ou ausente. No
saltério há uma categoria de buscadores de Deus: por exemplo, 9,11; 14,2;
22,27, etc.
Exegese
989
Minha mão: segue a série começada com minha voz. O verbo ngr sugere
a imagem de fluidez de um líquido: 2Sm 14,14 “como água”, Jó 20,28
inundação, Lm 3,49 lágrimas. O orante não controla as mãos, que não se
movem no trabalho diurno, não se elevam em oração, derramam-se em puro
sintoma de inquietude.
Minha respiração: terceiro termo da série. Tomo a palavra npsh em seu
sentido corpóreo, de acordo com o contexto. Claro está que, para um hebreu,
dada a correspondência de respiração e vida ou alento vital, a expressão fica
indiferenciada. Também o arquejo é sintoma e expressão. A Vulgata ilustra
o processo de espiritualização: “minha alma recusa o consolo”.
4a. O Deus “buscado” apresenta-se à recordação, e asim se estende
uma ponte entre buscar e recordar; o efeito continua sendo um gemer
inarticulado.
4b. Aqui começa de algum modo a atividade verbal, pois costumamos
meditar com palavras, pelo menos mentais. E atividade mais intelectual e
reflexa, mas também sem resultado positivo, rwhy é o quarto termo da
série, também com certa bivalência.
5. No texto hebraico (não no grego nem no latino) irrompe (interrom­
pe?) Deus em sua ação. Expliquemo-lo respeitando o texto hebraico: Deus
apresentou-se na recordação, e não fica inativo, mas age alcançando os
olhos do orante (quinto elemento na série). Este nada mais pode fazer que
constatar o fato e dizê-lo numa segunda pessoa que pode soar como censura
confiante: eu te dou passagem até o interior de minha memória, e tu daí me
deixas insone. Como o amor em Ct 3,1; 5,2.
A agitação diz-se com um verbo raro, e a incapacidade de falar tematiza-se em palavras.
6. A atividade mental torna-se mais reflexiva. Já não só recorda, mas
pondera, calcula, estima o sentido de passado que discorrre no ritmo de dias
e anos. A BSH sugere transladar para o final deste versículo, para
restabelecer o ritmo, o sintagma do v. seguinte Cm Ibby - em meu interior).
7. O substantivo ngnh indica canção que se canta com acompanha­
mento (ngn - tanger). Podemos imaginar um cantarolar mental de canção
conhecida que recorda episódios antigos. Enquanto cantarola, volta-lhe o
sentido da letra, sugere o segundo hemistíquio, indaga sua relação com o
presente. A recordação musical, como de melodia pegadiça, em vez de
distraí-lo, impele-o a indagar; e prorrompe assim na série apaixonada de
perguntas.
8-10. O enigma ou o desconcerto do presente brota da eleição do povo.
Se o SI 74,20 apelava à aliança, esse não a menciona nem alude a ela. Seu
horizonte é a eleição, como mostra o verbo znh, sinônimo de escolher e típico
de súplicas e de Lamentações (dez vezes no saltério, três em Lm). De mais
990
Salmo 77
a mais, o salmo detém-se na fronteira da liberdade, o mar Vermelho, antes
da aliança do Sinai.
Os três versículos oferecem uma constelação de termos imediatamente
reconhecíveis (rçh hsd rhmym). Salvo o primeiro, os outros figuram na
autodefinição de Yhwh em Ex 34,6 e também em fórmulas litúrgicas. Isso
explica a gravidade do problema e a paixão do orante: Deus está negando-se
a si mesmo. Ou, se isso for demais, mudou totalmente de atitude e conduta.
Não se explica de outro modo a situação presente. Pode-se recordar a ameaça
de Dt 28,63 (escrita depois da experiência do desastre e do desterro):
Assim como gozou o Senhor tratando-vos bem e fazendo-vos crescer,
assim também haverá de gozar destruindo-vos e exterminando-vos.
Os versículos 8-10 insistem no aparente caráter definitivo: para
sempre, não mais, definitivamente, por gerações e gerações.
8. Favorecer é o mesmo verbo da súplica do SI 44,4, que expõe a razão
única da salvação:
Porque não foi sua espada que ocupou a terra
nem seu braço que lhes deu a vitória,
mas tua destra e teu braço e a luz de tua face,
porque tu os amavas.
Não retornará essa atitude de Deus?
9. Ainda que o termo ‘omer seja raro (cinco casos certos e um duvidoso
em todo o AT), aqui não podemos definir seu signficado específico. Propõese o significado de promessa, mas também poderia designar o mero ato de
dizer, de comunicar-se, em cujo caso a frase enunciaria por negação o
silêncio de Deus.
10. Também é raro o verbo qpç (cinco vezes em qal); a expressão é única
e bela, pelo contraste entre ira e ternura: o Deus “entranhável” fecha-se em
mutismo irado.
11.Penso que hlwty equivale a exclamação, como o rzy de Is 24,15. A
destra de Deus é protagonista em textos aparentados (SI 44,4; 89,14;
118,15). Agora está inativa, como no SI 74,11.
12-13. A segunda parte começa com um quaternário, ao gosto, não
exclusivo, do Segundo Isaías. As obras de Deus recebem quatro denomi­
nações, das quais p ‘l sugere o que têm de tarefa, p l’ o que têm de
maravilhoso. O orante acrescenta à recordação a meditação como no v. 7:
será recomeçar?
14-21. Antes de percorrer os versículos, convém comparar o conjunto
com o cântico de Ex 15: por semelhança de tema e por uma série de
coincidências verbais, nos permitirá definir o peculiar do salmo. Comece­
mos com uma lista de paralelos:
991
Exegese
Ex 15
2
5
11
13
14
16
minha força {‘zy)
as ondas (thmt)
Que Deus há como tu?
magnífico em santidade
(bqdsh)
autor de prodígios (‘sh plT
)
guiaste teu povo (nhyt)
o povo resgatado (‘m g’lt)
o ouviram os povos (’mym)
tremeram, se retorceram
a grandeza de teu braço
SI 77
15 tua força (‘zk)
17 =
142 Que Deus é grande como Deus?
teu caminho é santo (bqds)
15
21
16
15
17
16
=
=
=
mostraste aos povos (b‘mym)
= (rgz hyl)
com teu braço
(zrw’k)
1.4.8.10 o mar (ym)
8.10. águas (mym)
20 pelo mar (bym)
17.20 =
Algumas coincidências são realmente salientes, ainda que se possam
dever a uma fonte comum: guiar, resgatar, autor de prodígios. Outras são
impostas pelo tema: mar, água, ondas. Chama a atenção a manifestação a
outros povos.
A mudança fundamental é que Ex 15 estiliza a passagem como uma
batalha do Senhor contra os egípcios; o SI 77 a estiliza como teofania de
tempestade. Por isso os lexemas rgz e hyl, que Ex 15 predica do inimigo,
o SI 77 os predica do mar, que é o verdadeiro inimigo dominado por Deus.
Debelado ornar, podem Moisés e Aarão conduzir pacificamente o rebanho.
Este aspecto pacífico é sublinhado pelo citado Is 63 e Sb 19,7s:
o mar Vermelho convertido em caminho viável
e o violento marulho tornado várzea verde;
por aí passaram em formação compacta
os que iam protegidos por tua mão,
presenciando prodígios assombrosos.
Pelo que tem de teofania, essa secção presta-se a uma comparação
com o SI 18,8-17, com seu aparato de trovões e relâmpagos, onde estre­
mece a terra e não o mar e, em vez de passar um povo, Davi é transpor­
tado.
14.
O orante continua dirigindo-se a Deus em segunda pessoa. O
caminho de Deus pode ser sua empresa ou o modo de realizá-la, seu
estilo de ação (cf. Is 40,14: “o caminho exato ... o método inteligente”).
Essa palavra logo vai se carregar de sentido mais material, como que
dizendo que a empresa de Deus = caminho de Deus é abrir-se caminho
pelo mar.
O Deus incomparável é tema importante na mensagem do Segundo
Isaías e é recorrente também no saltério, por exemplo, 86,8.
992
Salmo 77
15. ‘sh p l’ no particípio é exclusivo de Ex 15 e do salmo; em outras
formas verbais: Is 25,1; SI 78,12; 88,11. Sua ação revelou-se a outros povos
porque a executou nas coordendas da história.
16. E porque no meio deles vive o povo que Deus escolheu e que, como
propriedade sua, se apressou em “resgatar”; verbo favorito do Segundo
Isaías, que também se lê em Ex 6,6 (P). Resgata-os com seu braço poderoso,
pois não têm que pagar dinheiro (Is 52,3).
E anômala a fórmula Jacó e José; em Is 44,23 e 48,20 diz-se que Deus
“resgatou a Jacó”. Pode explicar Gn 48 (como aponta Ecker), texto que tenta
responder a um problema de tribos. Segundo a narrativa de Gn 30, os filhos
de Raquel são José e Benjamim; segundo a experiência histórica, há duas
tribos muito importantes que não são filhos de Jacó e Raquel: Efraim, que
chega a dar nome ao reino setentrional, e Manassés, que se estende de
ambos os lados do Jordão. Como se justifica sua presença e pertença à
confederação? - Porque Jacó adotou como filhos os dois filhos de José:
Os dois filhos que te nasceram no Egito antes de eu vir viver contigo serão
meus: Efraim e Manassés serão para mim como Rúbem e Simeão (Gn 48,5).
Se se aceita essa explicação, o salmo quer incluir Efraim e Manassés
na libertação do Egito.
17-20. Em quatro versículos o poeta consegue condensar uma descri­
ção intensa, combinando traços visuais, sonoros e de movimento. Mar e
terra são personificados. O ritmo dilata-se nos versículos de três hemistíquios
(falta um acento em 20a). A linguagem é escolhida e eficaz. As repetições
parecem buscadas: quatro vezes maym, duas vezes qôl e rgz. Sentimo-nos
envoltos no elemento aquático de mar, ondas, correntes, núvens. Conten­
tar-me-ei com algumas notas parafrásicas para fazer sentir a qualidade do
texto original.
n.yhylw : as águas marinhas retorcem-se ou encrespam ou formam
remoinhos; as correntes tremem (yrgzw), alteram o curso reto e flúido.
18.
Sobre a água marinha derrama-se a água da chuva (;zrmw)\ a
nuvens altas produzem uma voz, lançam trovões; dito de outra forma, saem
trovões das altas nuvens; as setas são os raios, que traçam itinerário de vaie-vem, ziguezagueante.
19.0 trovão é voz de Deus e parece caminhar sobre rodas ou avançar
girando; recorde-se Antônio Machado: “o plúmbeo balão da tormenta de
monte em monte ricochetear se ouvia”. Os relâmpagos alumiam ou deslum­
bram com suas luzes repentinas. A terra agita-se sonoramente.
20.
Se mantivermos intato o texto hebraico, a falha rítmica produ
efeito de surpreza, como que convidando a uma pausa assombrada perante
o portento: “pelo mar teu caminho”. Veja-se Hab 3 em sua secção marinha.
Transposição cristã
993
A frase final é magnífica: tuas pegadas não se deixavam ver, não se
manifestavam. Nenhum outro poeta bíblico fala das pegadas de Deus. Ben
3ira faz dizer à Sabedoria personificada: “passei pela fundura do mar”
24,5).
21. A passagem de Deus e a mediação humana. O povo nada mais faz
que se deixar guiar por seus chefes. Da mesma forma o orante deve deixarse guiar. Porque, no meio da situação trágica que vivem, Deus continua
abrindo-se caminho sem deixar pegadas. E preciso senti-lo presente na
convulsão, em vozes estranhas, em resplendores súbitos, e não se devem
petrificar suas pegadas. Vêm à mente uns versos de Gerardo Diego con­
templando do cume do Urbión uma imensa paisagem de montanhas:
“Geologia jacente, sem mais pegadas
que um a nostalgia trêmula daquelas
palmas de Deus palpando seu relevo”.
6. Transposição cristã
A Vulgata traduziu Ex 12,11: “est enim Phase, id est, transitus Domini”;
12,27: “est enim victima transitus Domini”. O hebraico dos versículos 1112 diz literalmente: “é a Páscoa de Yhwh”. Eu atravessarei...”
Aí temos os cristãos a chave: nossa páscoa é “transitus Domini”, o
abrir-se passagem de nosso Senhor Jesus Cristo através do mar hostil da
morte até a margem da ressurreição gloriosa. Não basta celebrá-lo na
liturgia, estudá-lo com técnica histórica, nem meditá-lo só com as faculda­
des humanas. E preciso abrir-se na contemplação, para que o mistério se
torne presente e atual, até que sintamos “a força de sua ressurreição” (F1
3,10). Essa é a memória que nos recomenda a segunda carta a Timóteo 2,8:
e
Recorda-te sempre de Jesus Cristo, ressuscitado da m orte... essa é a boa
notícia que anuncio ... A mensagem de Deus não está encadeada.
Podemos por pusilanimidade encadear o anúncio gozoso. A ressurrei­
ção de Cristo, crida e recordada e contemplada, tem que desencadear sua
força avassaladora para transformar nossas vidas; segundo o conselho de
Cl 3,2:
Se ressuscitastes com Cristo, buscai o de cima, onde Cristo está sentado
à direita de Deus; procurai o de cima, não o terreno.
O
segundo ponto de meditação cristã são as pegadas de Deus. Deixa
Deus pegadas de sua passagem pela história? Deixou-as Jesus no tempo em
que “entrou e saiu entre nós”? (At 1,21). Por curiosidade ou por devoção,
994
Salmo 77
buscamos pegadas petrificadas, relíquias palpáveis da passagem do Se­
nhor. Santo Inácio conta em seu diário que foi e voltou ao alto do monte das
oliveiras para ver as pegadas emparelhadas que, segundo a lenda, tinham
deixado os pés de Jesus ao se afastar da terra para subir ao céu. Ainda que
se provasse ser o sudário de Turim a relíquia mais importante da cristan­
dade, o realmente importante continuará sendo a ação presente e poderosa
de Cristo glorioso na vida da Igreja e na história da humanidade. Em
estratos antiquíssimos conservam-se troncos de árvores belamente
pretrificados: a uma rodela decorativa dessas pedras prefiramos árvores
vivas. Às relíquias devotas prefiramos a passagem, fragorosa ou silenciosa,
do Senhor .
Mas quando Jesus passa por uma alma, não deixa pegada de sua
passagem? Quão logo cicatriza no mar a esteira que abre um barco: quem
nos curará das marcas da passagem do Senhor? “Quão insondáveis suas
decisões, quão irresistíveis seus caminhos!” (Rm 11,33).
Sobre o v. 10 diz Agostinho que “para Deus é mais fácil conter a ira que
conter a misericórdia”; e Cassiodoro comenta que “é como se se fizesse força
para não deixar agir a misericórdia, mas no fim vence a misericórdia”.
Salmo 78
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Escuta, povo meu, minha instrução;
prestai ouvidos às palavras de minha boca:
pois vou abrir a boca numa parábola,
farei brotar enigmas do passado.
O que ouvimos e aprendemos
e nos contaram nossos pais
não o esconderemos a seus filhos,
contá-lo-emos à geração seguinte:
as glórias do Senhor e o seu poder
e as maravilhas que realizou.
Pois ele fez um pacto com Jacó,
e deu uma instrução a Israel:
ele mandou a nossos pais
que o fizessem saber a seus filhos,
de modo que o conhecesse a geração seguinte,
os filhos que haviam de nascer;
que eles sucedessem e o contassem a seus filhos,
para que pusessem em Deus sua esperança
e não se esquecessem das façanhas de Deus
e cumprissem seus mandatos.
Para que não imitassem seus antepassados:
geração rebelde e contumaz,
geração de coração inconstante,
de espírito desconfiado de Deus.
Os arqueiros da tribo de Efraim
voltaram as costas na batalha.
10 Não guardaram a aliança de Deus
e recusaram seguir suas instruções,
11 esqueceram-se de suas ações,
as maravilhas que lhes tinha mostrado.
12 À vista dos pais fez portentos,
em território egípcio, na campina de Soã.
13 Fendeu o mar para lhes abrir passagem
barrando as águas como num dique.
14 Guiava-os de dia com a nuvem,
de noite com o resplendor do fogo.
15 Fendeu a rocha no deserto,
e deu-lhe a beber caudais de água.
16 Tirou arroios da pedra
e fez descer água como rios.
17 Mas eles voltaram a pecar contra ele
rebelando-se no ermo contra o Altíssimo.
18 Tentaram a Deus no coração
pedindo uma comida para seu apetite.
19 Falaram contra Deus, dizendo:
poderá Deus pôr a mesa no deserto ?
20 É verdade, golpeou a rocha,
brotou água e se desbordou em torrentes;
poderá também dar-nos pão
e prover de carne o seu povo ?
21 Ouviu-o o Senhor e se indignou,
um incêndio instalou-se contra Jacó,
fervia sua cólera contra Israel,
22 porque não se fiavam de Deus
nem confiavam em seu auxílio.
23 Deu ordem em cima às nuvens
e abriu as comportas do céu;
24 fez que lhes chovesse maná para comer
e lhes serviu um trigo celeste.
25 Um pão de heróis comeu o homem,
mandou-lhes provisões até a fartura.
26 Transportou pelo céu o vento de levante,
e guiou o vento sul com sua força.
27 Fez que lhes chovesse carne como pó,
e voláteis como areia da praia:
28 fê-los cair no meio do acampamento,
em redor de suas moradas.
29 Comeram até fartar-se
e lhes satisfez sua avidez.
30 Com a avidez apenas saciada,
com a comida ainda na boca,
Salmo 78
31 a ira de Deus ferveu contra eles:
deu morte aos mais robustos
e dobrou a flor de Israel.
32 E contudo voltaram a pecar
e não se fiaram de seus milagres.
33 Consumiu seus dias num sopro,
seus anos num momento.
34 Quando os matava, buscavam-no
e madrugavam para voltar-se a Deus;
35 recordavam-se que Deus era sua Rocha;
o Deus Altíssimo, seu Redentor.
36 Adulavam-no com a boca,
mentiam-lhe com a língua;
37 seu coração não era constante com ele
nem eram fiéis à sua aliança.
38 Ele, porém, era compassivo:
perdoava a culpa e não os destruía;
muitas vezes reprimiu a cólera
e não excitava todo o seu furor,
39 recordando que eram de carne,
alento fugaz que não retorna.
40 Como se rebelaram no deserto
enojando a Deus na estepe!
41 Voltavam a tentar a Deus,
irritando o Santo de Israel,
42 sem recordar-se daquela mão
que um dia os livrou da opressão:
43 quando fez sinais no Egito
e portentos na campina de Soã.
44 Converteu seus canais em sangue
e seus arroios, para que não bebessem;
45 mandou-lhes tavões para que os picassem
e rãs que os destruíssem;
46 entregou ao gafanhoto sua colheita,
a saltões o fruto de suas fadigas;
47 matou com granizo seus vinhedos
e com aguaceiro suas amoreiras;
48 entregou à saraiva1seus gados,
às centelhas seus rebanhos;
1à peste, epidemias
997
49 lançou contra eles sua ira ardente,
sua cólera, seu furor, sua indignação:
50 despachando sinistros mensageiros,
deu livre curso à sua ira;
não salvou sua vida da morte,
entregou suas vidas à peste.
51 Feriu os primogênitos no Egito,
as primícias da virilidade nas tendas de Cam.
52 Tirou como um rebanho o seu povo,
guiou-os como um redil pelo deserto;
53 conduziu-os seguros, sem alarmes,
enquanto o mar cobria seus inimigos.
54 Fê-los entrar pela santa fronteira,
ao monte que sua destra adquirira2
55 Tirou-os de diante dos povos,
atribuiu-lhes por sorte sua herança,
instalou em suas tendas as tribos de Israel.
56 Mas eles tentaram ao Deus Altíssimo,
rebelaram-se e não guardaram seus preceitos;
57 desertaram, atraiçoaram como seus pais.
falharam como arco enganoso:
58 irritavam-no com seus outeiros,
com seus ídolos lhe davam ciúmes.
59 Deus ouviu e se indignou
e rejeitou gravemente a Israel.
60 Arrancou a morada de Sião,
a tenda que instalara entre os homens.
61 Abandonou seus valentes ao cativeiro,
seu orgulho à mão inimiga;
62 entregou seu povo à espada,
indignado com sua herança.
63 Aos jovens devorava o fogo,
para as donzelas não havia galanteios;
64 seus sacerdotes caíam à espada
e as viúvas não os choravam.
65 Despertou-se como de um sono o Senhor,
como soldado aturdido pelo vinho;
fundara
Bibliografia
999
66 feriu o inimigo pelas costas
infligindo derrota definitiva.
67 Rechaçou a tenda de José
e não elegeu a tribo de Efraim;
68 elegeu a tribo de Judá,
e o monte Sião, seu preferido.
69 Construiu-se um santuário como o céu,
como a terra que alicerçou para sempre.
70 Escolheu Davi, seu servo,
tirando-o dos apriscos do rebanho;
71 de andar atrás das ovelhas o levou
a pastorear Jacó, sua herança.
72 Pastoreava-os com coração íntegro,
guiava-os com mão experimentada.
2. B ibliografia
T. Vargha, Pane angelorum manducavit homo: Ps 77 / 78,25, VD 19
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Salmo 78
1000
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Lista alfabética
Bartina
B rawer
Campbell
Carrol
Cavalletti
Clifford
Dahood
Day
Eissfeldt
Emerton
Freedman
Herrmann
62
66
79
71
78.81
81
78
86
58
63
73
60
Hofbauer
Junker
Koopmans
Kühlewein
Liebreich
Loewenstamm
Munoz
O’Connor
Rendtorff
Schildenberger
Toker
Varha
67
53
88
73
62
65
79
80
76
61
89
39
3. Análise filológica
2. mshl: o salmo é uma parábola enquanto poema didático Ecker.
4. nkhd: LXX e Vg lêem passiva.
8. V ... wU: relativas assindéticas.
9. nwsqy: constructo seguido de aposição Joüon 129 r, GK 130 e; ou
superlativo “os mais bem armados de”.
13.kmw nd: para a imagem SI 33,7; Ex 15,8.
15.rbh: advérbio GB 739 b.
19. Vrk shlhn: expressão idiomática: preparar uma mesa, servir a comida.
25.’byrym: fortes Jerôn, potentados Aq Teod, magnatas Sím, nobres
Ges Thes, anjos LXX VgRasi Lutero, cf. Sb 16,20; explica Targ comida que
descia da morada dos anjos.
26.
LXX e Vg confundiram os ventos reduzindo-os a austro-ábreg
sul, segundo Nm 11,31 “do mar”.
Estudo global
1001
31. b m s h m n y h m : os (mais) gordos deles LXX VgÁq Sím; os mais ricos
e poderosos Eutímio.
34.
w sh h r w : madrugaram a maioria dos antigos e medievais, alguns
referindo-se à oração da manhã.
36.
w y p tw h w : modal tentavam persuadi-lo Targ, dilexerunt (fingindo)
Vg Sir; Agélio corrige o grego epatesan em vez de egapesan.
39. bsr: debilidade natural Teodoreto; outros da debilidade física e moral.
42. ’shr: sem pronome de referência por referir-se ao tempo Zorell 87-88.
43. ’shr: temporal quando GB 75 a.
48. Ibrd: alguns manuscritos têm lã br = peste.
Irshpym : ao fogo Vg, chamas de fogo Targ, aves Jerôn (cf. Jó 5,7).
49. m sh lh t m Vky r ‘y m : missão de anjos maus LXX Jerôn, missões pl Vg,
demônios Heser; maus pelo dano que fazem explica Eutímio.
52.
’w n ym : parto ou trabalho de parto Jerôn Titelmann Eutímio; do
trabalho do campo ou dos animais que trabalham para o homem Ayguanus;
Genebrado p rim itia e laborum p a tru m im m o et m a tru m .
55. w yp ylm bhbl nhlh: literalmente, fez-lhes cair por corda (sorte) a
herança; repartição da herança (segundo Js 13,6; Ez 45,1; 47,22); hbl nhlh
Dt 22,9; lCr 16,18; SI 105,lí); npl bnhlh (Jz 18,1; Nm 34,2; Ez 47,14).
60. shkn: relativa assindética Joüon 158 a; lêem qal LXX Duhm Gun.
63. hw llw : pual com m a ter lectionis GK 8 c, 52 q.
65.
m trw m n n : de rnn gritar, vociferar, exultar Qim Siegfried-Stade
Paganini; de rw n = dominar, vencer kekraipalekos LXX crapulatus Vg
Jerôn GB, caído em letargo Ibn Ezra Eutímio Titelmann.
69.
rm ym : alturas Hitzig, alturas celestes Del; unicórnio LXX Vg Jerôn
Teodoc Targum.
y s d h : relativa assindética Joüon 158 a.
4. Estudo global
a)
Gênero e situação
Este salmo é uma meditação histórica, parente próximo de 105 e 106;
pelo começo, podemos inscrevê-lo numa atividade sapiencial, com o 49, com o
qual coincide na definição de m ashal e hlda. A meditação histórica alcança
até a dupla eleição de Davi ou dinastia e do monte ou templo. Poder-se-ia
tomar isso como indício temporal, e neste caso seria salmo antigo. Creio
antes que a situação constitui definição polêmica em favor do reino
meriodional e sua capital. O SI 80 apresenta o Senhor como pastor de
Benjamim, José, Efraim e Manassés, com preponderância numérica das
Salmo 78
1002
tribos setentrionais; o SI 78 afirma a rejeição de José e Efraim. Pode vir à
baila a notícia sóbria e surpreendente de lCr 5,ls, que declara: “E certo que
Judá foi mais poderoso que seus irmãos e chefe deles, mas a primogenitura
foi de José” (Donde está tu hermano?, 245). Com a menção de Efraim (reino
do norte ou tribos setentrionais) em 9, de José e Efraim em 67 (quase uma
inclusão), o autor parece descarregar as culpas sobre eles; com a rejeição
parece querer desocupar o terreno para proclamar a eleição de Davi. Ao
colocar essa no final, parece dizer-nos que com ele começa nova era histórica.
Em conseqüência, o salmo constitui meditação madura, intencionada,
que remonta às origens. Como “histórica”, é exercício da memória que
ademais tematiza a memória; como meditação, toma um ponto de vista que
define a composição. Será preciso desenvolver certos aspectos.
b) Composição
Como o salmo é muito longo (o segundo em tamanho do saltério),
seguirei especial tática de explicação. Mostrarei a organização em blocos e
estudarei cada bloco na secção exegética. Seguirei de perto o estudo sobre
o SI 78 de Jesus Munoz, que considero o trabalho mais competente e ao
mesmo tempo original.
Para a articulação do salmo, o v. 9 representa obstáculo que muitos
comentadores não sabem integrar: transladam-no ou corrigem-no. Respei­
tando a ordem atual e tomando como indício os sujeitos que atuam, ele =
Yhwh e eles = povo, Munoz obtém a seguinte articulação de conjunto:
Al
BI
9-12
13-16
A2
B2
17-20
21-31
32-39
eles se esqueceram
ele: maravilhas do
êxodo
eles tentaram
ele: cólera
intermédio reflexivo:
A3
B3
40-43
44-55
A4
56-58
B4
59-72
alternância
eles se esqueceram
ele: maravilhas no
Egito
eles tentaram
ele: cólera e eleição
Essa disposição permite explicar o bloco, para outros rebelde, de 32-39.
Permite de mais a mais descobrir relações paralelas entre setores A ou B, e
cruzadas entre A e B. Deixamos essas relações para o estudo particular de
cada bloco ou secção. Os títulos atribuídos no esquema sublinham o comum e
reiterado e não refletem o movimento dialético, que se apressa no intermédio.
c) Coordenadas
—
A coordenada temporal aplica-se artificiosamente. A introdução (3
8) estabelece a memória como fator de continuidade e permanência no
tempo; podemos chamá-la também de “tradição” como princípio formal.
Estudo global
1003
Tradição produz ou reforça a consciência histórica ao ocupar-se de fatos
históricos. Tradição é um processo que chamamos de descendente e suces­
sivo.
Artifício peculiar do salmo é ir remontando com a memória para trás:
na terra, no deserto, no Egito. Como se fosse pouco, acrescenta-se um
artifício que eqüivale a uma preterição; ou seja, nega-se para afirmar,
acusa-se de esquecimento para trazer à memória. Os de A não se recorda­
ram de C, os de C não se recordaram de B, os de B não se recordaram de A.
Esse remontar não configura a totalidade do salmo, mesmo sem levar em
conta diversos tipos de memória. No final, chega-se ao momento da eleição
dinástica, que pode inaugurar uma época regida pelo programa positivo da
introdução.
—
A coordenada espacial demarca três espaços: na terra, no deserto,
no Egito, outra vez na terra. E desemboca num ponto, o monte Sião. No
desenvolvimento vão aparecendo outros lugares mais precisos, como o mar
Vermelho, as heranças e, por contraste, Silo. O autor não define a que
desterro se refere no v. 61; o mais coerente é supor que se alude à Assíria
e à deportação de cidadãos do reino setentrional. Isso sugeriria que, embora
a história de salvação tenha-se rompido no norte, continua no sul como novo
e tradicional Israel.
d) A memória
Dir-se-ia que este salmo é um memorial contra desmemoriados. Dizse explicitamente: recordaram-se (35), não se recordaram (42), Deus se
recordava (39), que não se esqueçam (7), esqueceram-se (11). Esquecer é
delito e fonte de novos delitos; remédio é a tradição, o contar (spr 3.4.6).
Mas não basta a simples recordação psicológica. As personagens do v.
20 recordam-se muito bem do dom prodigioso da água, mas não sabem tirar
a conseqüência correta: em vez de confiar em Deus, querem submetê-lo à
prova. Sim, ele nos deu água duma rocha, mas poderá dar-nos pão e carne?
A memória recente agrava a desconfiança presente. Esquecer-se é delito,
mas recordar-se não basta. Os paralelos literários do esquecimento ou da
recordação são diversos e podem desempenhar funções diversas: conse­
qüência, acompanhamento, sintoma...
No v. 7, o paralelo de não se esquecer é observar os mandatos; nos w .
10-11, precede o não-cumprimento do compromisso da aliança e segue o
esquecimento; nos w . 35-36, à recordação devida e interessada seguem a
falsidade e o engano, delatando recordação não-autêntica; em 41-42, o
esquecimento segue o tentar a Deus, talvez como explicação. Em contraste,
a recordação que Deus exerce é operativa e eficaz (v. 39). O autor parece
Salmo 78
1004
exigir recordação que penetre no sentido pela compreensão e tire conseqüên­
cias para a conduta.
e) A compreensão
Temos que distinguir dois planos: a compreensão atribuída ou negada
às personagens no interior do poema e a compreensão que obtém e formula
o poeta no salmo, fruto de sua meditação. Já na introdução soa três vezes
o verboyd‘, que parece sugerir conhecimento que supera a simples informa­
ção, especialmente por seu objeto que são as “maravilhas” operadas por
Deus, algo que supera o fato empírico e revela-se nele. A mesma luz se deve
ler a menção de “maravilhas” (raiz p l’) nos w . 4.11.12.32, dos “sinais e
prodígios” no w . 43, o controle do céu nos w . 23.24.26. O que ocorre é que
o poeta introduz sua compreensão cobrindo e ao mesmo tempo iluminando
a falta de compreensão de suas personagens. Assim ocorre que a falta de
compreensão revela-se em atitudes e condutas, que o autor pode usar
indiretamente como exemplo que se deve evitar, acrescentando assim ao
seu ensinamento o valor da exortação. Também se deve recordar e compreen­
der a eleição de Judá-Sião-Davi como ação de Deus.
f) O pecado
Pelo número e variedade de expressões, quase se diria que o salmo
reconta mais os pecados do povo do que as façanhas do seu Deus. E como
se quisesse recolher em seu leito muitos afluentes de experiência e formu­
lação do pecado. Sem contar ações específicas, assinalo os seguintes verbos:
a rebelião: srr (8) e mrh (8.17.40.56)
não observar, não seguir: Vshmr m’n llkt (10)
pecar: ht’ (17.32)
não confiar: Vrímn (8.22.32.37), Vbth (22) V hkyn lb (8.37)
tentar, pôr à prova: nsh (18.41.56)
seduzir e enganar: pth kzb (36), atraiçoar bgd (57)
irritar, exasperar, dar ciúmes: h’çyb htwh hk’ys hqny’.
falar contra: dbr b- (19).
Dominam os verbos, não os substantivos como em confissões de pecado
(talvez por isso falte psh‘ r‘). Várias encontram-se em binário e mesmo
quaternário (8ab), pelo costume de paralelismo: o modo de emparelhar
permitiria análise mais detalhada.
O pecado dominante é não se fiar de Deus, depois de tudo o que dele
experimentaram, e pô-lo à prova. Ou seja, a relação pessoal com Deus é mais
importante do que a observância de normas e preceitos. Ainda que também
estejam presentes: aliança (10.37), lei ou instrução (tôra 1.5.10), compromis­
1005
Estudo global
so {‘edüt 5), mandatos (miçwot 7, ‘edot 56). O salmo não constitui expressão
de confiança do orante, mas antes exortação: é preciso confiar em Deus.
g) Elaboração do autor
A meditação de orante pode seguir curso livre, inclusive pode perderse em divagação. Se o poeta quer transformá-la em poema comunicável,
compartilhável, tem que se distanciar para organizar seus materiais.
Sobrevêm um trabalho de seleção, que é tomar e deixar, e dispor segundo
alguma norma. Tão importante como o que toma, pode ser notar o que
deixa. Examinarei aqui seleção e disposição sem separá-las rigorosamente.
Começo pela disposição do material narrativo.
— A atuação de Deus distribui-se em várias séries que esquematizo.
12 Egito
13 mar Vermelho
14-16 deserto: água/guia 23-29 pão/carne
43-51 Pragas 52s mar Vermelho: morte 52s (deserto/guia)
54s terra entregue
A certa distância aprecia-se a diversidade do movimento e a função
complementar de ambas as séries: primeira Egito-mar Vermelho-deserto,
segunda Egito-mar Vermelho-terra. A primeira fica truncada, a segunda
chega a seu destino.
Sóbria a referência ao Egito na primeira, recheia-se com a ampla
descrição das pragas na segunda. A passagem do mar Vermelho distribui
seus desenlaces correlativos: passa o povo na primeira, afoga-se o inimigo
na segunda. Fugazmente se alude ao deserto na segunda, porque se
desenvolveu amplamente na primeira. A terceira ação de Deus, em 60-64
e 65-72, é assimétrica com respeito às duas anteriores: em vez de libertação,
eleição; em vez de inimigo estrangeiro, parte do próprio povo.
— Deparamo-nos com rebeliões do povo em quatro zonas:
9-11
17-20
40-41
56-58
na terra: esquecimento do que vem em seguida
no deserto: desafio, em cunha entre água e pão
no deserto: rebelião genérica
na terra: idolatria
Se as ações de Deus recolhem os benefícios essenciais da libertação,
pode-se sentir a falta da aliança no Sinai. E possível que se tenha aludido a
essa nos termos bryt, twrh e sua constelação. Nas rebeliões do povo faltam as
mais importantes: o bezerro de ouro (Ex 32) e a recusa a entrar na terra (Nm
13-14); talvez as rebeliões de Coré, Datã e Abiram. A primeira pode faltar
porque o autor salta o Sinai e remete a idolatria ao tempo da vida na terra.
A segunda pôde encontrar alojamento cômodo entre 39 e 42. A terceira é res­
trita, não do povo inteiro. Também não estranha a falta de outras menores.
1006
Salmo 78
Indiquei ausências maiores; postos a buscar outras menores, não
acabaríamos nem entenderíamos melhor o salmo.
—
Seleção e disposição não é tudo, mas antes é decisivo o ponto de vista.
Como vê ou como olha o autor os fatos? O duplo título de seu poema nô-lo
iluminará (seguirei de perto a penetrante exposição de Munoz). O autor
chama seu poema de parábola ou comparação ou enigma.
h) O enigma
Ou os enigmas, como diz o texto. Não carece colocá-los como fazia
Sansão nas festas de bodas, basta contar intencionadamente. A tradução
“paradoxo” é talvez a mais acertada.
Em presença de tantos prodígios de Deus, não é paradoxal a desconfian­
ça do povo? Depois de tantos benefícios, não é paradoxal a rebeldia? Que, ao
terminar a longa e árdua caminhada para uma nova pátria, se instaure a
idolatria, não é inexplicável? Responde-se que se esquecem, mas a resposta
propõe novos paradoxos. Como se esquecem da grande libertação tendo uma
cadeia ininterrupta de recitadores que mantêm viva a recordação? (9-11). Os
que estão no deserto, como se esquecem dos recentes acontecimentos no Egito
(40-41)? Não é enigmático um povo que assim procede? Chega ao deserto,
onde a vida depende inteira de Deus, e lança o desafio da desconfiança: “para
ver se pode ou não pode?”. Chega à terra, onde a subsistência está assegura­
da, e dedica-se a provocar os ciúmes de seu Deus. A resposta ao enigma
encontra-se no salmo, mas reservo-a para mais adiante.
O que dizer do enigma desse Deus? Ou dos enigmas. Um, e bem
estranho, configura o bloco 21-31. A inclusão diz-nos que Deus reage com
cólera contra seu povo; o corpo diz-nos que Deus atende generosamente a
seu pedido. E um paradoxo que nós o tenhamos formulado na frase
idiomática: “no pecado a penitência”. O SI 106,15 assim o formula: “man­
dou-lhes uma cólica por sua gula”.
Mais estranho é o segundo enigma de Deus: que, ao ver a rebeldia do
povo no deserto, continua ocupando-se com eles e guiando-os rumo a novo
começo em novo país. Que, ao ver sua rebelião nessa terra, queira começar
de novo inaugurando uma era dinástica.
O enigma conjugado das relações deste Deus com esse povo resolve-se
em três versículos centrais do poema (38-39). Conjugando o juízo de Deus
sobre o povo e o juízo do orante sobre Deus. Esse povo é de carne, alento
fugaz que não retorna. A fragilidade e a caducidade o explicam e descul­
pam. Deus as conhece, pois que as fez, e as leva em conta. O SI 103,14 dirá
que “conhece nossa massa”. Deus, porém, é compassivo (rahâm), e por isso
está disposto a coibir e depôr a ira. Di-lo o orante; sabe-o porque o disse o
Estudo global
1007
Senhor a Moisés (Ex 34,6), e a tradição de Israel o recorda. A caducidade do
homem conjugada com a compaixão de Deus explicam essa história: não
como teorema, mas como constante paradoxo. Quando chegarmos a Davi,
não se terão mudado radicalmente as coisas, porque também ele é fraco e
caduco. A história terá que sempre se acolher na compaixão de Deus.
Chegará um sucessor de Davi que supere a condição humana?
i) A parábola
Ou a comparação. A imagem do pastor que cuida de seu rebanho
unifica o poema. Não em alegoria intelectual e abstrata, mas por meio de
presenças discretas e dum dinamismo que se resolve no final. A compara­
ção só está explícita no v. 52. Os verbos próprios ou freqüentes do ofício
distribuem-se assim: r‘h (70), hnhh (14.53.72), nhg (52), hby’ (54). Ao pastor
toca logicamente prover de comida, bebida e guia às ovelhas, como o mostra
o modelo do SI 23. Contudo, essas prestações não são especificamente
pastoris, como indicam as expressões “preparar uma mesa, pão e carne”. E
tradicional ver e descrever a caminhada pelo deserto em termos pastoris,
e o autor do salmo continua discretamente a tradição.
No final depõe toda discrição. O pastor conduziu o seu rebanho, através
de obstáculos e resistências, até aprisco seguro. Pode abandoná-lo agora?
Escolherá pessoalmente outro pastor recomendando-lhe que continue
apascentando-as. Se Dt 32,12 diz que “só ele os conduz”, o salmo pronuncia
a mediação de Davi. Para a tarefa, Deus lhe dá coração íntegro e mão
experiente, pois que continua sendo do Senhor o rebanho. Cumprirão Davi
e sua dinastia a função de representar devidamente o Senhor como pastor?
Será preciso esperar um futuro sucessor de Davi, que venha preencher as
exigências do ofício?
Há outra possível dimensão parabólica que me atrevo a propor com
reservas. Nos versículos 60-64 fala-se da destruição do santuário de Silo
com a conseqüente matança e desterro próprios de derrota militar. Nossas
notícias sobre a desgraça de Silo são escassas: a derrota dos israelitas com
a morte de Hofni e Finéias e a captura da arca, que não volta a Silo, mas a
Bet Semes (ISm 4-5), a referência de Jr 7,12.14 e 26,6.9. Ora, a morte de
três sacerdotes e a captura da arca justificam a descrição do salmo?
Desterro, matança, incêndio ... Por que só Efraim e José quando ISm fala
genericamente de Israel?
Suponhamos que o salmo tenha sido composto depois da queda de
Samaria no ano de 622, com a invasão brutal, três anos de cerco,
deportação em massa. O autor reflete sobre os fatos e apresenta-os na
parábola de Silo; indica ao mesmo tempo o caminho da salvação de Judá
com o templo de Sião e a dinastia davídica. Aí continuará Israel. E
1008
Salmo 78
explicação plausível que, como muitas outras hipóteses, por falta de
informação, não podemos provar.
5. Exegese
1-2. Apresentam-nos um quaternário: instrução, palavras, parábolas,
enigma, twrtyé também expressão sapiencial (3,1; 4,2; 7,2); equivalente (1,8;
6,20) (todos da primeira secção de Provérbios). Algo parecido ’mrypy: além
da súplica de SI 54,4 e 19,15, lê-se em Pr 4,5; 5,7; 7,24; 8,8 (como o anterior).
O caráter sapiencial de mshl e hydh não é preciso provar; veja-se também SI
49,5 e Eclo 39,2s. Sua função no salmo fica explicada mais acima.
3-8. Estão sob o signo da tradição: nós da geração presente recebemos
de nossos antepassados (’bwtynw) o relato, contamo-lo a seus sucessores
para que por sua vez o contem a seus sucessores. São quatro gerações ou
quatro balizas em longa cadeia que não se deve romper. Uma série de
repetições sublinham a continuidade: pais (3.5.8), filhos (4.6ab), geração
(4.6.8ab), contar (3.4.6), conhecer (3.5.6).
Enuncia-se também o conteúdo da tradição, loas, maravilhas, faça­
nhas de Deus; e a finalidade de gerar confiança e observância.
1
2
3
4
5
6
7
8
Escuta, povo meu, minha instrução;
prestai ouvidos às palavras de minha boca:
pois vou abrir a boca numa parábola,
farei brotar enigmas do passado.
O que ouvimos e aprendemos
e nos contaram nossos pais
não o ocultaremos a seus filhos,
contá-lo-emos à geração seguinte:
as glórias do Senhor e seu poder
e as maravilhas que realizou.
Pois ele fez um pacto com Jacó
e deu uma instrução a Israel:
ele mandou a nossos pais
que o fizeram saber a seus filhos,
de modo que o conhecesse a geração seguinte,
os filhos que haviam de nascer;
que eles sucedessem e contassem a seus filhos,
para que pusessem em Deus sua esperança
e não se esquecessem das façanhas de Deus
e cumprissem seus mandatos.
Para que não imitassem seus antepassados:
geração rebelde e contumaz,
geração de coração inconstante,
de espírito desconfiado de Deus.
Exegese
1009
3.
Ainda que tenha começado no singular, a personagem fala no
plural, em nome de corporação e de geração.
4b. E antes raro o plural de thlwt e é muito raro o substantivo 'zwz =
poder.
5.
O sintagma wyqm ‘dwt é único e parece imitar a fórmula hqym
bryt (típica do Sacerdotal); pode-se interpretar como impor um compromis­
so, estabelecer uma obrigação. Em outras combinações, ‘dwt significa o
protocolo da aliança que se guarda na arca (freqüente em Ex e Nm).
6b. qwn é o verbo que se usa para significar a sucessão física dos filhos
que nascem.
8a. swrr wmrt funciona como hendíade.
8b. E rara a expressão hkyn lb sem complemento indireto; o paralelo
mais próximo é ISm 7,3 que acrescenta ’l Yhwh pedindo constância na
conversão, antes da batalha vitoriosa contra os filisteus (depois da derrota
de Silo e Afec).
9
10
11
Os arqueiros da tribo de Efraim
voltaram as costas na batalha.
Não guardaram a aliança de Deus
e recusaram seguir suas instruções,
esquecendo-se de suas ações,
das maravilhas que tinha mostrado.
Vimos que introduzir aqui Efraim tem sua justificação na composição
total do salmo (e talvez na conjuntura histórica). Os que consideram o v.
9 glosa ou o transladam ou o corrigem, quiseram prolongar a introdução
de 3-8 até o versículo 11, sem dar razões convincentes. O que é certo é que
esses três versículos enlaçam-se com a introdução por várias repetições
verbais, com o que a tribo de Efraim entra em cena como o magno re­
presentante da atitude condenada antes: são eles por antonomásia a
geração que se esqueceu e que não guarda a lei nem a aliança. O arco e o
voltar-se devem soar com força para que se reconheça seu retorno pelo
final (v. 57). Essa relação é reforçada pela repetição de “não guardaram”
(1 0 .5 6 ).
12
13
14
15
16
À vista de seus pais fez portentos,
em território egípcio, na campina de Soan.
Fendeu o mar para abrir-lhes passagem
barrando as águas como um dique.
Guiava-os de dia com a nuvem,
de noite com o resplendor do fogo.
Fendeu a rocha no deserto,
e deu-lhes a beber caudais de água.
tirou arroios da penha
e fez descer a água como rios.
Salmo 78
1010
Transladamo-nos ao começo da história no Egito. As pragas estão
reduzidas ao substantivo p l’ como coletivo; em seguida chegam ao mar
Vermelho e encontram-se no deserto. A água é elemento dominante,
marcado pela anáfora “fendeu”: mar, água, caudais, arroios, água. O efeito
é contrário: o mar Vermelho ergue-se num dique, a penha abre-se em
manancial. O Senhor domina os elementos e maneja-os com generosidade.
A nuvem (água) e o fogo servem de mediadores para guiar continuamente
seu povo, de dia e de noite, sem cessar. Agua como dique e rocha como fonte:
o contraste exalta a maravilha. Não resta resquício para a dúvida; no
espaço e no tempo nada se subtrai ao poder benéfico de Deus.
As duas versões da água retornarão em ordem inversa em 44 e 53.
Mudança de função segundo concirna ao povo ou ao inimigo. O tema do
guiar retornará em 52.53.72.
13.
E comum a confusão de ned = dique com nod / n’d = odre. Assim
leram e traduziram LXX Vg Sím Targ.
15.
thmwt refere-se a correntes de água doce subterrâneas que
afloram nos mananciais: vejam-se Dt 8,7 unido a ‘ynt, 33,13 especificado
rbçt tht.
17
18
19
20
M as eles voltaram a pecar contra ele
rebelando-se no ermo contra o Altíssimo.
Tentaram a Deus no coração
pedindo uma comida para seu apetite.
Falaram contra Deus, disseram:
poderá Deus pôr a mesa no deserto?
E verdade, golpeou a rocha,
brotou água e se desbordou em torrentes;
poderá também dar-nos pão
e prover de carne o seu povo?
Sem respeitar a ordem de Ex e Nm, a passagem da bebida à comida
realiza-se num ato de rebelião e desafio. Compraz-se o autor em sublinhar
o contraste das condutas. Está em jogo o alcance do poder de Deus, que se
demonstrou no elemento água; pão e carne são outro domínio, que pertence
teoricamente à agricultura e ao pastoreio e à caça; vegetais e animais, não
rochas e penhas.
E de sublinhar a repetição do nome divino Altíssimo em 17.35.56.
17.0 autor procura mudar os termos como que buscando a acumula­
ção: deserto, ermo, páramo. Não sabemos se o autor ou os ouvintes
captavam a paranomásia de çyh com çywm.
20b. O autor muda a versão de Nm 11, que opõe carne a maná; no
salmo formam paralelo rigoroso, mais perto do cardápio de Elias, pão pela
manhã, carne pela tarde e água da torrente (lRs 17,7). E curioso que LXX
e Vg tenham substituído a menção da carne pela repetição de “pôr a mesa”.
Exegese
1011
21
Olhou o Senhor e se indignou,
um incêndio estalou contra Jacó,
fervia sua cólera contra Israel.
22 porque não se fiavam de Deus
nem confiavam em seu auxílio.
23 Deu ordem em cima às nuvens
e abriu as comportas do céu;
24 fez que lhes chovesse maná para comer
e lhes serviu um trigo celeste.
25 Um pão de heróis comeu o homem,
mandou-lhes provisões até a fartura.
26 Transportou pelo céu o vento do levante,
e guiou o vento sul com sua força.
27 Fez que chovesse carne como pó,
e voláteis como areia da praia:
28 fê-los cair no meio do acampamento,
em redor de suas moradas.
29 Comeram até fartar-se
e satisfez sua avidez.
30 Com a avidez apenas saciada,
com a comida ainda na boca,
31 a ira de Deus ferveu contra eles:
deu morte aos mais robustos
e dobrou a flor de Israel.
Já indiquei que é essencial ler o episódio enquadrado numa reação de
cólera divina. E a resposta ao desafio: — Não podes? — Já verás se posso;
e verás as conseqüências. O “incêndio” pode significar a metáfora comum
da cólera, recuperado seu valor descritivo, ou pode aludir a algum dos
castigos no deserto. O delito consiste em não confiar.
Desta vez, o domínio de Deus exerce-se e manifesta-se no reino dos
meteoros, o céu, as nuvens e os ventos. Para alimentar periodicamente o
seu povo, Deus faz chover do céu (por exemplo, Dt l l , l l s ; SI 65,10; 85,13;
Is 55,10). Agora faz chover, no deserto, um pão já confeccionado. Os ventos,
que estão a serviço de Deus (SI 104,4), inclusive o funesto levantino,
tornam-se portadores de carne fresca, saborosa e abundante. O pó e a areia,
ainda que venham no versículo 27 como comparação, podem fazer pensar
no terrível simum, que mudou estranhamente sua mercadoria.
O prodígio torna-se ambivalente: a abundância acessível corresponde
à “avidez”, e essa chega à saciedade mortal. A avidez do homem converte
o bem em mal, converte o benefício em malefício. O autor o diz fazendo de
Deus o sujeito do último versículo.
21.
Na etapa do deserto, a comunidade inteira chama-se Jacó ou
Israel. O fogo pode recordar o breve episódio de Nm 11,1-3: um incêndio (b’r)
que dá nome á paragem, Tabera.
Salmo 78
1012
23. Para as comportas do céu no dilúvio empregam outro termo (Gn
7,11; 8,2; Is 24,18); com função benéfica (2Rs 7,2 e Ml 3,10).
25. ’abblrim não significa por si anjos; só a referência ao céu muda o
posto para os heróis ou campeões ou paladinos. Não temos notícia de raça
de heróis alimentados com manjar celeste.
30. “Afastaram-se do que tinham cobiçado e saciaram sua glutonaria;
mas com o afã insaciável acarretaram-se o castigo” (Teodoreto).
31. Os mais robustos ou gordos, roliços. A flor são os moços, que
reaparecem no v. 63.
32
33
34
35
36
37
38
39
E contudo, voltaram a pecar
e não se fiaram de seus milagres.
Consumiu seus dias num sopro,
seus anos num momento.
Quando os matava, buscavam-no
e madrugavam para voltar-se a Deus;
recordavam-se de que Deus era sua Rocha;
o Deus Altíssimo, seu Redentor.
Adulavam-no com a boca,
mentiam-lhe com sua língua;
seu coração não era constante com ele
nem eram fiéis à sua aliança.
Ele, ao invés, era compassivo:
perdoava a culpa e não os destruía;
muitas vezes reprimiu a cólera
e não excitava todo o seu furor,
recordando que eram de carne,
alento fugaz que não retorna.
Já definimos essa pejja como intermédio reflexivo, e apreciamos sua
centralidade no poema. E muito importante a divisão, indicada grafica­
mente, e o jogo de repetições e contrastes que resulta. Repete-se o verbo
’mn negado em 32 e 37: é o pecado capital do povo; repete-se o pecado com
termos ht’ e ’wwn em 32 e 38: uma vez cometido, outra vez perdoado.
Repete-se shwb em 34 e 38: uma vez é a conversão efêmera do povo,
outra vez é a deposição da ira da parte de Deus. Repete-se o tema
matutino em 34 e 38: o primeiro é a ação efêmera do povo, o segundo é
a contenção divina. E repete-se o recordar em 35 e 39: o povo se recorda
que Deus é Rocha e Redentor, Deus se recorda que o homem é carne e
alento.
O intermédio tem, de mais a mais, tentáculos de enlace verbal ou
temático com o resto do poema. Nele triunfa a misericórdia, como no final
do salmo.
33.
Veja-se SI 39,6. A caducidade humana acelerada pela ação divina
verbo klh no piel (no qal, como a Vulgata).
1013
Exegese
34. A pressa em madrugar não é limpa, como a do SI 57 ou 63,2 ou Is 26,9;
é antes como a de Os 5,15-6,6 sob a urgência da desgraça e enquanto dura.
35. Os dois títulos em paralelismo fecham o SI 19. A Rocha oferece
sólido fundamento para apoiar-se/fiar-se/crer; o Redentor tem compromis­
so familiar ou funcional com o desgraçado.
36. Este é o único caso em que o piei de pth tem um homem como
sujeito e Deus como complemento; o sentido é modal, tentativa de persua­
dir, seduzir com agrados. Compare-se com a tática da mulher infiel em Jr
3,4s e com o texto citado de Oséias.
37. Como em outras ocasiões, opõe coração ou mente a boca.
38. Com ênfase e em contraste apresenta-se a figura de Deus, primei­
ro com simples adjetivo que é quase título. E freqüente a fórmula dupla,
hnwnwhwn (por exemplo, SI 11,4; 112,4; Ne 9,31); outras vezes se aloja em
séries de quatro e mesmo cinco adjetivos. O coíitentar-se com um só (como
Dt 4,31) pode acrescentar ênfase. O verbo, em particípio ou em forma finita,
é mais freqüente, e parece ajuntar-se na proclamação do Isaías do desterro:
49.10
13
54.10
não passarão fome nem sede,
não lhes fará dano o bochorno nem o sol,
porque os conduz o Compassivo
e os guia para mananciais de água.
porque o Senhor consola seu povo
e compadece-se dos desamparados.
diz o Senhor, que se compadece de ti.
O matiz paterno e materno da compaixão aparece em Is 49,15 e SI
103,13.
O verbo usado para perdoar (kipper) é cultual; é muito raro usá-lo para
Deus como sujeito (Jr 18,23 negado; SI 79,9; 2Cr 30,18). Não aniquila, sem
complemento (contra Vg): o enunciado mantém tom geral porque tenta
descrever o caráter de Deus mais do que uma ação determinada.
38b. Várias vezes diz Ezequiel que Deus “esgota” ou desafoga toda sua
ira contra alguém (Ez 7,8; 20,8.21); o salmo o nega. Na ordem humana
emprega a mesma fórmula Pr 29,8: “os judiciosos acalmam os ânimos”
(yshybw ’p).
39. Definição do homem que equivale a desculpa ou atenuante de sua
conduta. Uma carne e um alento, um efêmero alento que anima um corpo
desagregável:
Ecl 3,19. Todos têm o mesmo alento, e o homem não supera os animais.
Todos são vaidade. 20 Todos caminham para o mesmo lugar, todos vêm do
pó e todos voltam ao pó. 21 Quem sabe se o alento do homem sobe para cima
e o alento do animal desce para a terra?
Gn 6,3 Meu alento não durará para sempre no homem, visto que é carne.
Salmo 78
1014
40
41
42
Como se rebelaram no deserto
enfadando a Deus na estepe!
Voltavam a tentar a Deus,
irritando o Santo de Israel,
sem se recordar daquela mão
que um dia os livrou da opressão.
D e novo nos encontram os no deserto, onde o esquecim ento nos vai
recordar as experiências do E gito. O pecado é o m esm o: esquecer, rebelarse e tentar a D eu s; o título Santo de Israel rem on ta a Isa ía s. O verbo p d h
pode ser paralelo ou substitu tivo de g í (que se u sa no v. 3 5): neste lugar
funciona como síntese program ática do que segue; o relativo suaviza a
p a ssa g em ao novo bloco, o das pragas:
43
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48
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51
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54
55
quando fez sinais no Egito
e portentos na campina de Soan.
Converteu seus canais em sangue
e seus arroios, para que não bebessem;
mandou-lhes tavões para que os picassem
e rãs que os destruíssem;
entregou ao gafanhoto sua colheita,
a saltões o fruto de suas fadigas;
matou com granizo seus vinhedos
e com aguaceiro suas amoreiras;
entregou ao pedrisco seus gados,
e às centelhas seus rebanhos;
lançou contra eles sua ira ardente,
sua cólera, seu furor, sua indignação:
despachando uns sinistros mensageiros,
deu livre curso à sua ira;
não salvou sua vida da morte,
entregou suas vidas à peste.
Feriu os primogênitos no Egito,
as primícias da virilidade nas tendas de Cam.
Tirou como um rebanho o seu povo,
guiou-os como um fato pelo deserto;
conduziu-os seguros, sem alarmes,
enquanto o mar cobria seus inimigos.
Fê-los entrar pela santa fronteira,
ao monte que sua destra adquirira.
Tirou-os de diante dos povos,
atribuiu-lhes por sorte sua herança,
instalou em suas tendas as tribos de Israel.
A evocação das pragas engrandece o tam an h o deste bloco. E s tá claro
que não segue a lista oficial do êxodo. Por quê? A lg u n s respondem que se
atém a u m a só tradição: ou ignora as outras ou as exclui. N a seleção, a
ausência m ais saliente é a praga das trevas (a preferida do livro da
Exegese
1015
Sabedoria). Alguns observam a maior atenção dada aos meios de subsistên­
cia, agricultura e gado. Outros assinalam em detalhe contrastes com a
secção do deserto (13-16). A tudo isso se acrescenta a dúvida do v. 48a: devese ler brd, como no texto hebraico, duplicando o granizo, ou deve-se corrigir
para dbr, com alguns manuscritos, adiantando o 50b?
O autor deixa-se levar pela lei do paralelismo, agrupando ou desdo­
brando, dando mais importância ao vaivém rítmico que ao número ou à lista
tradicional: tavões e rãs, gafanhotos e saltões, granizo e aguaceiro, granizo
e centelhas (ou peste e epidemia); no princípio sangue e no final matança de
primogênitos (é difícil encaixar o terceiro membro do v. 50). Sangue, sinal e
portador de morte, animais nocivos de água e terra firme, meteoros, doenças.
Ou seja, um cortejo de quatro paixões personificadas como “mensageiros
fatídicos” ou executores sinistros: Ira-Cólera-Furor-Indignação.
Além do movimento alternante, o autor aplica um esquema, colocando
no começo do versículo verbos ativos cujo sujeito é Deus. O v. 50 soa à
primeira leitura como resumo final, equilibrando o genérico inicial (43);
numa segunda leitura descobrimos que fica pendente a praga final, a
matança de primogênitos. Por que a atrasa? Talvez para enlaçá-la imedia­
tamente com a saída do povo. Também o versículo da saída e do deserto (52)
adianta-se à passagem do Mar Vermelho (53b).
Quanta cólera divina desatada contra o seu povo (21 e 31), depois
contra os egípcios (49-50). Os dois versículos 38ab, o único adjetivo
Compassivo são realmente contrapeso a tanta cólera? Com a matança de
primogênitos e o exército afogado no mar parece esgotada a cólera de
Deus. Por que desta vez não a coíbe? Não são também os egípcios alento
fugaz num corpo? Para o autor, o castigo é justo e condição para salvar as
vítimas inocentes.
43. O binário ’twt wmwptym é estável e típico de tradições do êxodo.
O versículo repete a toponímia do v. 12.
44. Ex 7,14-24. O castigo é sinistro porque água e sangue são ambos
princípios portadores de vida.
45. Ex 7,25-8,15. Animais ao parecer inofensivos, como as rãs, tor­
nam-se destruidores. Sb 12 apresentá-lo-á como juízo de zombaria.
46. Ex 10,1-20; J1 1. Alguns tradutores antigos mudaram os saltões
para gorgulho.
47. Ex 9,13-35; uso único de hnml.
48. Já indiquei as alternativas: a) conservar brd e continuar em
regime de tormenta, em cujo caso rshpym são centelhas mortíferas (Ct 8,6);
b) ler dbr e passar à doença mortal, em cujo caso rshpym são epidemias
(Dt 32,24; Hab 35). Prefiro a segunda alternativa, que corresponde
melhor a Ex 9,1-7.
Salmo 78
1016
49. O Senhor pode enviar mensageiro ou delegado seu com fins
benéficos (Ex 23,20; 33,2; Ml 3,1); contra os egípcios envia um “destruidor”
ou devastador ou exterminador para executar condenação (Ex 12,13.23); o
salmo combina os dados para criar destaque. Também a destruição de
Sodoma é executada pelos legados (mVkym) do Senhor (Gn 19,1-13).
50. A última frase do versículo é muito duvidosa: para salvá-la é
preciso traduzir hytm como sua vida, paralelo sinonímico de npshm. È
muito provável que signifique animal, fera, e seja duplicação que explica o
b’yrm de 48. Desta vez, a cólera aponta e acertará os primogênitos.
51. Primícias de sua virilidade (como em Gn 49,3; Dt21,17; SI 105,36).
Designar o Egito com o nome de Cam é típico desse salmo e de 105,23.27;
falar de “tendas” é metáfora inocente.
52. E freqüente no saltério a designação do povo como rebanho do
Senhor. Neste salmo tem função particular.
53. “O mar” os “cobriu” (como em Ex 15,5.10).
54. Santa ou sagrada por ser propriedade do Senhor. Monte: abarca
todo o país de Canaã visto como região montanhosa, oposta à terra baixa
do Egito.
55. A tarefa libertadora termina assentando em Canaã todas as tribos
de Israel. O dado é importante para o que segue no salmo: este final é um
começo em que a responsabilidade é compartilhada por todos. Até aqui só
existe um Israel ou Jacó sem distinções.
56
57
58
M as eles tentaram o Deus Altíssimo,
rebelaram-se e não guardaram seus preceitos;
desertaram, atraiçoaram-no como seus pais,
falharam como arco enganoso:
irritaram-no com seus outeiros,
com seus ídolos lhe faziam ciúmes.
O pecado genérico e repetido especifica-se agora na forma de idolatria,
culto nos outeiros dedicados a Baal ou Asera. A condenação global dos
“outeiros” (compare-se com ISm 9) pode nos conduzir à reforma de Josias:
o vocábulo repete-se dez vezes em 2Rs 23; serve como critério de condenação
nos dois livros dos Reis. Os ídolos (psl) são proibidos no decálogo (Ex 20,4;
Dt 5,8) e nas maldições (Dt 27,15). O Deus ciumento não pode tolerar deuses
rivais. O chamado cântico de Moisés em Dt 32 desenvolve o tema:
16 Deram-lhe ciúmes com deuses estranhos,
irritaram-no com suas abominações ...
21 Eles me deram ciúmes com um deus ilusório,
irritaram-me com ídolos vazios;
pois eu lhes farei ciúmes como um povo ilusório,
irrita-los-ei com uma nação fátua.
Exegese
1017
57. O arco tomava-se em sentido próprio no v. 9, aqui se transforma
em imagem. O arco é instrumento pessoal de caça ou de guerra; o povo é
como instrumento pessoal do Senhor: “tensará Judá, empunhará como
arco Efraim” (Zc 9,13). O arco deve manter-se tenso, não se afrouxar nem
voltar atrás (nasôg 2Sm 1,22). Mas às vezes o arco revela-se falso (rmyh
Os 7,16). Parece que o autor toma a imagem de Oséias. Em vez de apontar
para seu Deus ou para onde seu Deus quer, apontam para deuses
estranhos.
Dos ciúmes muito depressa se passa à ira: “os ciúmes enfurecem o
homem” (Pr 6,34).
59
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63
64
Viu-o Deus e indignou-se
e rechaçou gravemente a Israel.
Arrancou a morada de Sião,
a tenda que instalara entre os homens.
Abandonou seus valentes ao cativeiro,
seu orgulho à mão inimiga;
entregou seu povo à espada,
indignado com sua herança.
Aos jovens devorava o fogo,
para as donzelas não havia galanteios;
seus sacerdotes caíam à espada
e as viúvas não os choravam.
O quadro, apesar de detalhes tão humanos, é genérico. Qualquer cerco
e derrota podia terminar em morte e deportação; a cidade podia ser incen­
diada, como ilustram Js 8,18-29; Jz 20,36-44 e a série de Am 1. Mas o autor
parece querer evocar uma catástrofe de grande envergadura; Silo é ponto
de referência por sua sacralidade (recorde-se o citado Jr 7 e 26). Também
não parece descrever um incidente local, facilmente reparado na próxima
batalha (como em 2Sm 5-7). Ao não dar o nome do inimigo, qualquer pode
ocupar o posto, contanto que seja conspícuo. Por isso me inclinei a pensar
na invasão assíria de 622.
59. Rechaçou: a mesma expressão em2Rs 17,20: “O Senhor rechaçou
toda a raça de Israel, humilhou-a, entregou-a ao saqueio”; várias vezes em
Jr.
60. O verbo arrancar (ntsh) é típico de Jr; também aparece em lRs
14,15 anunciando a destruição do reino setentrional.
61. O exército é a força e o orgulho do soberano. SI 96,6 junta ambos
os termos no santuário.
63.
Os LXX derivaram hwllw de yll e seguiu-os a Vg non sunt
lamentatae, também Jerôn nemo luxit, da mesma forma Eutímio Belarmino;
corretamente Aq Sím Teod às moças = noivas não lhes cantaram loas, não
lhes fizeram galanteios.
Salmo 78
1018
64. A moços e moças correspondem sacerdotes e viúvas; também Lm
presta particular atenção aos sacerdotes. Já indiquei a possível referência
a Eli e seus filhos (só os filhos morrem na batalha).
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72
Despertou-se como de um sono o Senhor,
como soldado aturdido pelo vinho;
feriu o inimigo pelas costas
infligindo-lhe derrota definitiva.
Rejeitou a tenda de José
e não escolheu a tribo de Efraim;
escolheu a tribo de Judá
e o monte Sião, seu preferido.
Construiu-se um santuário como o céu,
como a terra que alicerçou para sempre.
Escolheu Davi, seu servo,
tirando-o dos apriscos do rebanho;
de andar atrás das ovelhas levou-o
para pastorear Jacó, seu povo,
Israel, sua herança.
Pastoreava-os com coração íntegro,
guiava-os com mão experimentada.
O salto é repentino e inesperado. Tudo o que ocorreu não foi, em rigor,
ação de Deus; embora o poeta tenha dito que Deus abandonou, arrancou,
entregou. Foi antes inação de Deus. Como se estivesse dormindo ou bêbado,
deixou de agir, e aproveitou-se o inimigo. Mas também excedeu-se e pôs em
grave perigo a existência da nação. A rejeição de Deus chega até esse ponto?
De modo algum, diz o poeta; e não põe reparo em usar imagem audaz para
descrever a reação de Deus.
Na hipótese proposta, o salmo referir-se-ia à derrota de Senaqueribe.
Destruído o reino setentrional, o imperador assírio apressa-se para liqui­
dar o reino meriodional.
O que fiz com S amaria e suas imagens
não o farei com Jerusalém e seus ídolos? (Is 10,11).
Deus levanta-se de repente e põe em fuga os assediantes. Repito que
essa é uma hipótese para indicar a conjuntura histórica do salmo; ou se não,
um modelo para explicá-lo por analogia. No mais, o salmo fica aberto a
novas leituras que joguem com o grande tema da eleição.
65. Pela expressão pode recordar o despertar de Sansão ao grito de
Dalila. Dormir e despertar diz zombeteiramente de outros deuses Elias, em
lRs 18,27; quando o sujeito é o Senhor, os autores preferem o verbo ‘wr (Is
51,9; SI 44,24; 59,5).
66. hrph no sentido objetivo de derrota, ignomínia de exército.
67. Tanto José como Efraim podem designar o reino setentrional (por
exemplo, Ez 37,16; Am 5,6; Os 4,17; Is 9,8).
Transposição cristã
1019
68. SI 87,3.
69. O novo santuário terá estabilidade cósmica, pois será outra
fundação divina, alicerçado como a terra, elevado como o céu.
70. 2Sm 7; SI 89; ISm 16; lR s ll.
71. Reaparecem em paralelismo Jacó e Israel, que agora concentram
a continuidade e podem levar o nome tradicional; como no deserto (v. 21
antes da monarquia e do cisma).
72. O pastor dá novo alcance a seu ofício e nome, por duas razões:
porque agora o rebanho é um povo e apascentar é governá-lo; e porque agora
é delegado do supremo pastor que é o Senhor. Mas Davi, além de ser pessoa,
é dinastia. Seu nome e sua figura podem funcionar como “parábola”, figura
do futuro pastor.
6. Transposição cristã
A chave da transposição está na visão de Jesus como novo Davi e como
bom pastor.
“Davi aí é Cristo, porque este salmo continua sendo uma parábola. Como
Davi foi pastor antes de ser rei, assim é nosso Salvador, rei dos reis. O exórdio
do salmo ... anuncia-nos que falará em parábolas. Agrada-nos a prolixidade
que, ao contar-nos a história, revela a graça do Novo Testamento. Como a
água do mar reflete tantas luzes quantos são seus tremores, assim o salmo
de tempos a tempos emite uma centelha deslumbrante, de tempos a tempos
envolve em sombra a cruz” (Cassiodoro).
Quanto ao gênero do salmo, o versículo 2 é citado por Mt 13,35
justificando o uso que Jesus fazia de parábolas em seu ensinamento; e
matiza: “anunciarei coisas escondidas desde que começou o mundo”. A
propósito dos episódios no deserto, Agostinho recorda ICor 10,11: “tudo isso
lhes sucedia como figura”.
O
processo da tradição com que começa o salmo é alargado pelos Padres
para encaixar o presente: “Ouvimo-lo no Antigo Testamento, conhecemo-lo
no Novo, quando tudo se cumpriu em Cristo” (Cassiodoro).
Aplicam o despertar de Deus à ressurreição de Cristo.
Salmo 79
í. Texto
1
2
3
4
5
Ó Deus, os pagãos invadiram tua herança,
profanaram teu santo templo,
reduziram Jerusalém a ruínas.
Deram os cadáveres de teus servos
como pasto às aves do céu,
a carne de teus leais às feras da terra.
Derramaram seu sangue como água
em torno de Jerusalém,
e ninguém o enterravam.
Fomos o escárnio de nossos vizinhos,
burla e zombaria dos que nos rodeiam.
Até quando, Senhor, ficarás enojado,
sempre ardendo como fogo teus ciúmes ?
6 Derrama teu furor sobre os pagãos
que não te conhecem,
sobre os reinos que não invocam teu nome.
7 Porque devoraram Jacó,
assolaram tua pastagem.
8 Não nos imputes os delitos dos antepassados.
Que tua compaixão se apresse em nos atingir,
pois estamos esgotados.
9 Socorre-nos, ó Deus Salvador nosso,
pela honra de teu nome.
Livra-nos e expia nossos pecados,
em atenção a teu nome.
10 Por que haverão de dizer os pagãos:
Onde está seu Deus?
Que à nossa vista se mostre aos pagãos
a vingança do sangue de teus servos derramado.
Estudo global
1021
11 Chegue a tua presença o lamento do cativo,
com teu braço poderoso
salva os condenados à morte.
12 A nossos vizinhos paga-lhes sete vezes
a afronta com que te afrontaram, Senhor.
13 E nós, povo teu, ovelhas de teu rebanho,
te daremos graças para sempre,
contaremos tuas glórias geração após geração.
2. Bibliografia
J. Parisot, Psaumes de la captivité. Ps 47 et 79, RB 4 (1895) 572-578.
R. Weber, Vindica sanguinem. Une veille faute des anciens psautiers
latins, em Collige fragmenta, Beuron, 1952, 45-48.
G.
Bernini, Salmo 79. Preghiera sobre le rovine di Gerusalemme, em Le
preghierepenitenziali dei Saltério, Roma,1953, 111-115.
3. Análise filológica
I . 1‘yym: ruínas, escombros; estranha a tradução de LXX Vg e seus
derivados, talvez por contaminação de Is 1,9 in pomorum custodiam.
2. Ihytw: cf. SI 50,10. Sobre a vocalização, J. Barth, ZDMG 53 (1899) 598.
7.
’kl: se se mantiver o sgl do hebraico, o sujeito mental será u
coletivo; Vg lê plural.
II.
hwtr: hif de ytr deixar, preservar; leram hif de ntr soltar Sir Trag
cf. Is 58,6, traduz posside Vg.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
É uma súplica numa calamidade nacional, com os elementos clássicos:
descrição da desgraça, confissão do pecado, denúncia da maldade do
inimigo e petição de seu castigo, motivo da honra de Deus e promessa de
ação de graças. Forma grupo homogêneo com os SI 44, 74 e 102, de que se
distingue pela confissão explícita do pecado.
A situação é o tempo depois da catástrofe de 587 / 586, que inclui:
profanação do templo, matança, destruição da capital, burlas e blasfêmias;
os sobreviventes são deportados ou condenados à morte. São traços que se
Salmo 79
1022
podem ler ampliados ou com variantes nas Lamentações, e que no salmo
não recebem tratação original.
O salmo é pronunciado por uma comunidade que identifica as vítimas
como “teus servos, teus leais”; eles identificam-se como “ovelhas de teu
rebanho”. O inimigo não nomeado é a Babilônia e outros reinos vizinhos,
englobados no nome genérico de pagãos, gentios = gwym em w . 1.6.10.
Um antecedente remoto do gênero (não por influxo direto) pode ser a
lamentação suméria pela destruição de Ur (ANET 455-463), da qual retomo
alguns versos:
108
109
122
123
217
218
283
374
Minha cidade destruída em seus fundamentos.
U r perece onde jaz.
Minha casa, fundada por homens retos,
afundou-se como choça dum pomar.
Nas m a s por onde passeavam jazem cadáveres,
seus cadáveres decompõem-se como manteiga ao sol.
Meus filhos e filhas, ai de mim!, foram deportados.
Até quando estarás afastada na cidade como um inimigo?
Ainda que no final um fragmento de linha peça: “anula os pecados”, não
se descreve a desgraça como castigo por pecados, mas como simples decisão
dos deuses (Anunaki).
b) Composição
Não apresenta dificuldades nem tem mérito especial. Pelas pergun­
tas retóricas dos w . 5 e 10, pode-se dividir em três partes. A divisão é
formal, já que o tema do castigo do inimigo distribui-se pela segunda e
terceira secção. Mais definida é a primeira parte, dedicada a descrever a
catástrofe.
Não têm importância as repetições degwym em 1.6.10ab, daraiz ’kl em
2.7, do título íbd em 2.10. Mas são significativas, sem ser estruturantes,
outras três. O nome de Deus ignorado por inimigos e invocado pelo povo em
6.9ab, o sangue derramado em 3.10 e o derramamento da cólera em 6, a
injúria contra o povo e contra o Senhor em 4,12.
c) Dois problemas particulares
São a discriminação e a vingança de Lamec.
—
A comunidade parece pedir a Deus uma conduta discriminatória:
para seu povo perdão do pecado e salvação: para os inimigos castigo sem
piedade. Como se a compaixão do Senhor se reservasse exclusivamente
para seu povo: “não te lembras, tem compaixão / derrama teu furor, pagalhes”.
Estudo global
1023
Essa impressão inicial não é de todo exata, porque os judeus não se
confessam réus de delitos tão atrozes e porque já sofreram o castigo
correspondente e já expiaram os pecados. E o contrário da discriminação,
quando muito é argumento a fortiori: se a nós tão gravemente nos castigastes,
quanto mais deves castigar os inimigos. E o raciocínio de Jeremias na cena
internacional da taça:
25,29 Deveis beber. 29 Porque, se na cidade que leva meu nome comecei
o castigo, ficareis impunes? Não ficareis impunes.
É o raciocínio implícito de Mq 7,8-20, texto talvez compósito, que em
seu estado atual ilumina o salmo com suas coincidências de motivos
agrupados; será útil selecioná-los aqui:
9
18
19
16
17
10
Suportarei a cólera do Senhor, pois pequei contra ele,
até que julgue a minha causa e me faça justiça ...
Que Deus como tu perdoa o pecado
e absolve a culpa ao resto de tua herança? ...
Voltará a compadecer-se, destruirá nossas culpas ...
Que os povos ao vê-lo se envergonhem ...
que mordam o pó como cobras ou répteis ...
minha inimiga ... a que dizia: Onde está teu Deus?
Veja-se também Lm 4,21s.
Em segundo lugar, o inimigo, verdugo a serviço de Deus para executar
castigo determinado, e que excedeu cruelmente na execução e incorreu em
culpa grave. Assim o apresenta Is 10 falando da Assíria:
6
7
Contra uma nação ímpia o despachei,
mandei-o contra o povo de minha cólera ...
mas ele não pensava assim ...
seu propósito era aniquilar.
A comunidade pede a Deus que cesse o castigo e que agora lhe faça
justiça castigando o inimigo. Contudo, trato diverso de Deus para com seu
povo e para com os pagãos transluz-se no texto. Um autor tardio trata do
tema em chave apologética (Sb 12,3-22).
— A vingança de Lamec assim soava: “Se a vingança de Caim valia por
sete, a de Lamec por setenta e sete” (Gn 4,24). Relendo o texto nessa
orientação, descobrimos que a comunidade invoca implicitamente a lei do
talião, igualdade de castigo e delito, mas num ponto pede que o castigo se
multiplique por sete. E preciso recolocar a questão nestes termos: lei do
talião ou vingança de Lamec?
A correspondência pecado / castigo aparece nos seguintes elementos:
“derramaram o sangue / vingança do sangue derramado” (3.10); “fomos a
afronta / paga-lhes a afronta” (4.12). Precisamente no segundo elemento
figura a cláusula “sete vezes”, e também um dado para responder ao
1024
Salmo 79
problema. Os inimigos não só afrontaram os judeus, pelo que mereceriam
pena correspondente (cf. Hab 2,15s), mas também afrontaram o próprio
Deus, e esse delito desborda a proporção: a blasfêmia em Israel leva pena
de morte (Lv 24,10-16). Em Lv 26,21.28, multiplica-se o castigo por sete por
causa do agravante de não escarmentar. Ademais, a expressão tem algo de
hipérbole retórica para encarecer a gravidade dum castigo; veja-se a
vingança do marido ciumento em Pr 6,31: “se o pegam, cobrar-lhe-ão sete
vezes mais, e terá que entregar toda a sua fortuna”.
5. Exegese
1-4. A descrição discorre em versos largos que se estreitam (3+3+3
3+3+3 3+4 3+4). Cinco verbos de ação cujo sujeito são os pagãos, antes de
uma cópula (hyh l-) com sujeito nós. Rapidamente o começo: invadem o
território, profanam o templo, arrasam a capital; depois se alarga na
matança de seus cidadãos. Este é um dos textos que utiliza o autor de lMc
para descrever os desmandos de Antíoco IV; 7,17 cita em parte os versículos
2-3 do salmo; as elegias de 1,37-40 e 2,10-13 inspiram-se também nele.
Tanto que autores antigos, como Atanásio, Eusébio, Teodoreto, referem o
salmo aos macabeus.
1. A invocação inicial (que se pode ler como anacruse) serve para
endereçar todo o salmo a Deus, e em concreto a descrição da primeira parte.
O que poderia soar como informe objetivo, enuncia-se como denúncia e
acusação formal. Como se dissesse: senhor juiz ou soberano, alguém
atentou contra tuas posses e teus súditos.
“Herança” do Senhor é o território (Ex 15,17), e em particular a capital
(SI 47,3). Invadiram-na contra o preceito de respeitar as fronteiras e contra
sua promessa de assistência (Lm 1,10):
Viu os gentios entrar no santuário,
ainda que tivesses proibido que entrassem em tua assembléia.
Profanar o santuário é delito grave enunciado na lei e denunciado
repetidas vezes pelos profetas (por exemplo, Lv 15,31; 20,3; Nm 19,13; Jr
7,30). Jerusalém em ruínas segundo o anúncio deMq3,12: “Por vossa culpa,
Sião será um campo arado, Jerusalém será uma ruína, o monte do templo
um cerro de brenhas”.
2. E motivo literário tópico. Já se lê no desafio de Davi a Golias (ISm
17,46); lê-se uma versão patética em 2Sm 21,10; uma versão trágica no final
de Jezabel (2Rs 9,35-37); motivo reiterado em Jeremias. Leais: indica
genericamente uma atitude; ainda não tem o valor técnico do SI 149.
Exegese
1025
3. Derramar sangue é fórmula técnica do homicídio, que passou para
nossas línguas e que atravessa vários corpos do AT. Desde o Gênesis (9,6;
37,22); culpa de Manassés (2Rs 21,16; Is 59,7; Jr 7,6; Pr 1,16; 6,17). Menção
especial merece Ez 23,3.6.9.12.27, que chama Jerusalém de Cidade San­
guinária: delito que justificaria o castigo presente. E preciso enterrar o
sangue ou cobri-lo para que não clame ao céu (Gn 4,10; Jó 16,18).
4. O tema da burla também é freqüente nas ameaças proféticas,
especiamente em Jr; veja-se Lm 2,16; 3,46.
5-9. Estes sete versos, com sua distribuição proporcionada, fazem-nos
sentir o problema mencionado da discriminação. A comunidade sente-se sob
a ira prolongada de Deus; não pede a Deus que cesse a ira, mas que mude de
destinatário: que a “derrame” sobre o inimigo e aos seus dedique compaixão.
De momento pedem compaixão, não justiça, porque se confessam pecadores.
Ora, dada a crueldade implacável do inimigo, a única forma de ver-se livres
da desgraça é aplicando a pena ao inimigo, o que é ato de justiça. A pergunta
apaixonada seguem três versos para o inimigo e três para o povo.
6-7. Os pagãos definem-se por não reconhecer o Senhor nem invocar
seu nome; donde segue o imperialismo “devorador”. Veja-se o SI 14:
"devoram o meu povo como pão e não invocam o Senhor”; e a resposta do
Faraó em Ex 5,2: “Não reconheço o Senhor (Yhwh) nem soltarei os
israelitas”. Jacó é agora a comunidade judaica, sua pastagem é o território
às vezes a capital). As tropas invasoras cederam ao instinto destruidor.
8-9. Os judeus declaram-se culpados, pecadores, pelo que só podem
apelar à compaixão ou ternura de Deus, que é uma de suas qualidades
fundamentais, e também à honra do nome divino, ao prestígio de sua fama.
Os pecados dos antepassados foram se acumulando sob os recentes pecados
"nossos”: os antigos que Deus os esqueça, os recentes que os expie. Salvarse-á assim a honra de Deus.
Esses três versos constituem uma confissão penitencial resumida, que
se pode ver ampliada nas confissões clássicas de Esd 9; Ne 9-10; Dn 3 e 9;
Bar 1,15-3,8. O perdão de Deus será a salvação.
8. Não recordes: com valor forense: Is 43,25: “apagava teus crimes e
não me recordava de teus pecados”; Jr 31,34: “eu perdôo suas culpas e
esqueço seus pecados”. Os pecados antigos: segundo o dito que Deus
"castiga a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos” (Ex 20,5; ISm 2,31);
Is 65,7: “por vossa culpa e a de vossos pais”; também nas confissões
penitenciais citadas. Compaixão: além do texto clássico de Ex 34,6 e seus
paralelos litúrgicos, é particularmente emotivo o SI 103,13.
9. Expia: além dos textos litúrgicos de Lv, Nm e Ez 43-45, e a resposta
a uma oração penitencial em Dn 9,24, podem iluminar esse versículo
algumas passagens se Isaías: 6,7: porque junta os termos ‘wwn ht’ e kpr;
Salmo 79
1026
22,14: expia-se com a morte; 27,9: (escatologia) a abjuração da idolatria
vale como expiação.
10a. Com uma pergunta retórica começa a terceira secção. O prestí­
gio do Deus dos judeus é menoscabado pelos comentários malignos dos
inimigos que, ao ver o fracasso e a impotência da divindade de Jerusalém,
lançam a clássica pergunta sarcástica: onde está o Deus deles? E a
pergunta de J1 2,17; Mq 7,10; SI 42,4.11; 115,2.
10b-12. A vingança do sangue é ato legítimo de justiça vindicativa (significado de nqmh: DBHE); portanto, o que pedem é a aplicação da lei
sem atenuantes. Sobre o “vingador do sangue”, vejam-se Nm 35,9-34; Dt
32,43; 2Rs 9,7. Um eco tardio no último livro do AT (Sb 18,5). Que se realize
em nossos dias e “a nossos olhos”, queremos gozar vendo-o, como diz SI
58,11.
11.Fórmula parecida no SI 102,21. No SI 12,6, Deus responde: “pe­
lo lamento do pobre agora me levanto”; SI 69,34 diz que Deus não despreza
os cativos. Trata-se de prisioneiros de guerra ou cativos (nossos clássicos
ehamavam o desterro dos judeus de “o cativeiro de Babilônia”); a esses
cativos refere-se Is 42,7. Tomando tmwht - morte como abstrato por
concreto, autores antigos identificaram-nos como “filhos dos que mor­
reram”, ou seja, a geração seguinte que se salvou, o resto. Para a
expressão “condenado à morte, destinado a morrer”, vejam-se ISm 20,31;
26,16.
12.
Os “vizinhos” são reinos limítrofes que se aproveitaram
derrota e humilhação dos judeus: como os idumeus do SI 137; Ab 11-14;
Lm 4,21.
13. Promessa típica de ação de graças e louvor como resposta pela
libertação esperada. O título “ovelhas de teu rebanho” é recorrente: nos dois
textos clássicos sobre pastores (Jr 23,1 e Ez 34,31); nos salmos aparentados
(74 e aqui); nos dois atos litúrgicos (SI 95,7 e 100,3).
6. Transposição cristã
Em lugares separados, o Apocalipse destribui dois motivos do salmo:
11,7
A fera que sobe do Abismo declarar-lhes-á guerra, derrotá-los-á e
matá-los-á. Seus cadáveres jazerão nas ruas da grande cidade ... 9 não
permitirão que lhes dêem sepultura.
6,9 Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas que tinham
sido assassinadas pela palavra de Deus e pelo testemunho que tinham dado.
Gritavam com voz potente: Quando, Senhor, santo e veraz, julgarás os
habitantes da terra e vingarás nosso sangue?
Transposição cristã
1027
Segundo o SI 72,14, é competência do rei fazer justiça, “vingar o
sangue” das vítimas inocentes. O Apocalipse pensa num juízo final e
definitivo, com oposições claras sem intermediários. Os mártires não foram
culpados, sofreram por causa de Deus.
Contudo, a Igreja no meio da história não pede vingança, mas perdão.
No meio da perseguição deve estar disposta a reconhecer culpas presentes
e culpas precedentes que influem na situação atual. Ou seja, que do salmo
são mais aplicáveis os versículos 8-9 que os w . 10b-12. No entanto, fica o
caso concreto que enunciarei em forma condicional. Se o fracasso e o castigo
dos criminosos, sobretudo se são poderosos e estão organizados, é o único
meio para a libertação das vítimas inocentes atuais e próximas, então pedir
justiça é pedir salvação, e vice-versa. A conjunção de profanação, matança
e burla não pertence só ao passado. O que muda é a extensão do rebanho
ou do aprisco, uma vez que são convidados todos os homens para formar
parte do novo povo, ao qual Deus concede sua compaixão e indulto.
Salmo 80
1. Texto
2
3
Pastor de Israel, escuta;
tu que guias José como um rebanho;
em teu trono de querubins resplandece
perante Efraim, Benjamim e Manassés.
Desperta teu valor e vem salvar-nos.
4
Ó Deus, restaura-nos,
ilumina teu rosto1, e seremos salvos!
5
Senhor Deus dos Exércitos,
até quando te envolverás em fumaça
enquanto teu povo te suplica?
Deste-lhes a comer lágrimas,
a beber lágrimas a tragos.
Entregaste-nos às contendas de nossos vizinhos,
e nossos inimigos burlam de nós.
6
7
8
Ó Deus dos Exércitos, restaura-nos,
ilumina teu rosto, e seremos salvos!
9
Uma vinha extraíste do Egito,
expulsaste povos e a plantaste.
10 Preparaste-lhe o terreno, lançou raízes
e encheu o país.2
11 Sua sombra cobria montanhas;
e seus ramos, cedros altíssimos.3
12 Estendeu seus sarmentos até ao mar
e seus brotos até ao Rio Grande.
1mostra teu rosto radiante
2território
3divinos
Bibliografia
1029
13 Por que abriste uma brecha em sua cerca
para que a vindimem os viandantes,
14 a devorem os javalis,
e seja pasto de alimária?
15 Deus dos Exércitos, volta,
olha do céu e vê,
vem inspecionar tua vinha,
16 a cepa que plantou tua dextra,
(a estaca que tornaste vigorosa).
17 Devastaram-na e lhe atearam fogo:
por teu bramido vão perecer.
18 Que tua mão proteja o varão de tua destra,
o homem que fizeste vigoroso.
19 Não nos afastaremos de ti;
dá-nos vida e invocaremos vosso nome.
20 Senhor Deus dos Exércitos, restaura-nos,
ilumina teu rosto, e seremos salvos!
2. B ibliografia
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1030
Salmo 80
H. G. Mutius, Die Interpretation des hapaxlegomenons krsm in Ps 80,14
bei Saadja, Raschi und D. Kimchi und ihre Relevanz für die heutige
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M. Provera, La coltura delia vite nella tradizione bíblica ed orientale,
BOr 24 (1982) 97-106.
3. Análise filológica
2. r‘h: enquanto a LXX respeita a metáfora, a Vg converte-a em qui
regis; comentadores vinculados à Vg resolveram o assunto por duplicação:
regis pastoraliter Genebrardo, rector et pastor Belarmino.
3. ‘wrrh: polel de ‘wr, imper enérgico.
4. wnwsh’h: com valor consecutivo, cf. Joüon 116 b, GK 108 d.
5. ‘shnt: Aq Sím Jerôn fumabis, substituem-na LXX Vg irasceris
Teodor, Belarmino esclarece illud irasceris in hebraeo est fumabis.
6. cf. Pr 9,5.
shlysh: parece tratar-se de uma medida cujo valor desconhecemos, se
bem que o sentido pareça indicar abundância: en metroi = com medida LXX
Eusébio Eutímio em proporção ao pecado, Hoberg; o tríplice Jerôn Targum,
abundante Flamínio Hupfeld Belarmino.
10. shrshyh: para a vocalização Joüon 6 1.
11. ksw: pual de ksh.
çlh w‘npyh: instrumental, por meio de, com.
14.
zyz: LXX e Vg traduzem-no como sinônimo de javali monios
singularis (do latim procedem sanglier, cinghiale)', bestiae agri Jerôn.
16. wknh: LXX kai katartisai auten imp enérgico de knn - cobrir,
proteger GB 352 b; V gperfice, planta Qim, cepa Marini, raiz Jerôn.
w‘l bn: ramo Qim; acrescentam de homem XXX Vg; muitos o suprimem
como duplicata do v. 18.
'mçth: relativa assindética Joüon 158 a.
17. srph kswhh: part pas predicados referidos a gnp Joüon 154 c.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
É uma súplica com os componentes clássicos: descrição da desgraça
presente em contraste com a felicidade passada, ação do inimigo, petição de
ajuda para a comunidade e de castigo para o inimigo, promessa. Alguns
Estudo global
1031
aspectos peculiares são: o uso do estribilho, o desenvolvimento da alegoria,
a petição pelo chefe, promessa de fidelidade e não de ação de graças.
A situação genérica é um desastre nacional militar. O poema emprega
de tal modo nome e títulos, talvez emblemáticos, transforma de tal modo os
eventos em imagens, que dá pé a identificações arrazoadas diversas e ao
mesmo tempo tira apoio a uma explicação preponderante. Vamos percorrer
indícios.
A ausência de Judá e Sião, a alusão à arca (querubins: v. 2), o título de
chefe (’ysh ymynk: 18) podem fazer pensar em Saul em guerra contra os
filisteus. Com efeito, segundo lSm 9,1, o pai é ;ysh mbnymyn e Saul é bn
’ysh ymyny (talvez sobre bn). Dada a afeição dos hebreus para com a
paranomásia ou interpretação de nomes próprios, a sugestão tem peso.
Uma vez recuperada a arca e nomeado rei Saul, o salmo poderia ser uma
súplica antes da batalha contra os filisteus.
A essa identificação opõem-se as fronteiras do território (11-12), que
correspondem ao grande reino de Davi (2Sm 8,3). Ora, no reino unificado
de Davi e Salomão não sofreu Israel, pelo que sabemos, invasões nem
saques. E preciso continuar até as periódicas invasões assírias e inclusive
a definitiva de 622. Isso esclareceria o salmo no reino setentrional, proposta
sobre a qual haverei de voltar.
Contra a segunda identificação parece militar a “cerca” ou taipa (13).
Ainda que se diga em sentido próprio de uma vinha (Pr 24,31; Is 5,5) ou de
um aprisco (lSm 24,4), em sentido metafórico designa a muralha duma
cidade fortificada, sobretudo de Jerusalém (SI 89,41). Se se tratasse da
capital de Judá, haveria que se transladar à invasão de Senaqueribe; na
qual, certamente, ouve-se o mesmo título do Senhor “entronizado sobre
querubins” (2Rs 19,15); também lSm 4,4; 2Sm 6,2; SI 99,1). Para a
catástrofe de 587 / 586, parece demasiado branda a descrição do salmo;
contudo, o verbo shwb é típico da restauração pós-exílica.
Voltemos à hipótese do reino setentrional, enlaçando-a com o que se
sugeriu para o SI 78. Vamos imaginar um díptico coerente. A queda de
Samaria, quando está em curso a política de expansão e atração de Josias (a
que parece somar-se Jr 31), compõe-se o SI 78 como ato de denúncia e de
esperança. As tribos do norte foram rechaçadas com o santuário nacional e
seus sacerdotes. Mas o Senhor continua fiel a seu eleito Davi com sua
dinastia e o templo de Sião. Respondem cidadãos do norte aceitando e ao
mesmo tempo polemizando: O Senhor não rejeitou as tribos do norte, embora
tenham arrasado seu país; é preciso orar pela restauração. José e Efraim são
as tribos rejeitadas de 78,67. O ternário Efraim-Benjamim-Manassés ocupa
o franco ocidental no acampamento e em suas deslocações segundo Nm 2:
numa marcha para o levante, a arca vai diante delas (Eusébio, Atanásio).
1032
Salmo 80
No marco da hipótese relemos os dois salmos em busca de parale­
los:
3
6
9
9,15
11
14
17
19
Salmo 80
‘wrr
y ‘y r
’kl Ihm
= 25 Ihm
hshqh
15
26.52
ns‘
grsh
55
47
SPn
ksh
53
71.72
r‘h
srp
’kl ’sh 63
57
nswg
As coincidências são sugestivas e prestam-se a um jogo de correspon­
dências. Excitou a ira, excite agora seu valor; no deserto deu-lhes de comer
e beber, e a nós lágrimas; o inimigo cobriu-o o mar, eles cobriram as
montanhas; Davi apascentou com destreza, agora se apascentaram as
alimárias; e a última e mais sugestiva: é verdade que um dia Efraim “voltou
atrás”; agora promete não voltar ou afastar (nswg).
Chamei a última exposição de jogo, porque o é. As correspondências,
inclusive verbais, não provam nem confirmam a hipótese, mas uma vez
aceita a hipótese, servem para um exercício de leitura significativa.
E se o salmo fosse composição artificial, com montagem livre de
reminiscências? Em vez de buscar e defender uma identificação histórica
pontual, aceitemos seu perfil tipológico, pelo que constitui peça disponível
de repertório. O salmo é arcaizante, mais que arcaico, e faz boa companhia
a 44, 74, 79 e 102.
b) Duas imagens
Pastor e vinha. Parece que não se casam bem essas duas imagens,
especialmente porque são aqui correlativas: é pastor de uma vinha. É
verdade que no Cântico dos cânticos ele é pastor e ela é vinha. E que este livro
combina e distribui imagens para criar um universo mágico. Não assim o
salmo.
—
A imagem do pastor propõe-se na invocação inicial, sua influência
se estende talvez até a comida e bebida do v. 6. Se bem que a imagem de
Deus como pastor seja freqüente na Bíblia, o título Pastor de Israel é único
(veja-se o duvidoso Gn 49,24). Em sua diatribe do capítulo 34, Ezequiel
polemiza com os “pastores de Israel”: base demasiado estreita para escutar
tom polêmico na abertura do salmo. “Como um rebanho” equivale a trans-
Estudo global
1033
formar o título emblemático em comparação conhecida. Gn 37,2 introduz
em cena o jovem José como pastor de um rebanho {r‘h bç’n); outro tanto se
diz dos irmãos (37,12). O salmo muda os papéis.
“Entronizado sobre querubins” pertence ã esfera real, e não ao imagi­
nário pastoril.
—
A imagem de Israel como vide (gpri) corre paralela com a imagem de
vinha ou horto (krm: Is 5,1-7; 27,2-5; Jr 12,10). Para seguir o desenvolvimento
da imagem nesse salmo, é preciso imaginar-se antes uma parreira.
Sabemos que, bem apoiada, uma parreria pode estender-se largamente
e oferecer sombra com seus ramos. A fantasia do poeta encarrega-se de
atribuir-lhe dimensões gigantescas: mais alta que cedros e montanhas e
abarcando países, de mar a rio. Desenvolve-se a imagem com técnica de
alegoria, membro a membro, com visão bastante intelectual que não sabe
evitar incoerências (javalis e alimárias mordiscam uma parreira mais alta
que os cedros).
Das imagens de plantas no AT costuma-se destacar a vitalidade.
Numa paisagem dominada por essa parreira prodigiosa, vêm-nos desejos
de contemplar o “rosto liminoso” como a luz vivificante do sol.
Outros exemplos da imagem: Dt 32,32, de Sodoma; Jr 2,21; 6,9; 8,13;
Ez 15,1-8; 17,5-10; 19,10-14; Os 10,1; 14,8; SI 128,3, a esposa.
c) Composição
Baliza-se o poema com um estribilho que se repete a intervalos irre­
gulares, em 4.8.15.20, com variação na terceira vez. O recurso formal
delimita sem muito rigor secções temáticas:
2-3
5-7
9-12
13-14
16-17
18-19
invocação e petição
desgraça presente
prosperidade passada da vinha
situação presente
ação do inimigo e reação de Deus
súplica e promessa
estribilho 4
estribilho 8
estribilho 15
estribilho 20
As duas perguntas retóricas de 5 e 13 marcam a mudança de situação,
de bem-estar a desgraça; em ambas as figuras, Deus como causante, pelo
que a ele cabe remediar.
O estribilho introduz a imagem dum rosto humano, radiante, benévo­
lo, bem conhecida na fórmula litúrgica de bênção (Nm 6,25 e SI 67,2), e nas
súplicas (31,17; 44,4 e 89,16). O peculiar desse salmo é que o tema da
luminosidade penetra na invocação, “resplandece”. O hifil de shwb pode
significar várias coisas: faze-nos voltar (do desterro?), converte-nos (corres­
ponde ao v. 19), restaura-nos.
Salmo 80
1034
5. Exegese
2. José figura também nos salmos vizinhos: 77,16 com Jacó, 78,67s
com Efraim e oposto a Judá, 81,6 em paralelo com Jacó = Israel. Se nesse
salmo se insinua alguma intenção especial, seria excluir Judá; é duvidoso
(veja-se Situação).
Entronizado como rei, num trono ou sólio que sustentam e protegem
querubins, ou seja, animais vigorosos e alados (vejam-se as descrições de
lRs 6 e Ez 9-10).
hwpy’ é verbo de teofania (Dt 33,2; SI 50,2; 94,1; Jó 37,15).
3. O ternário revela-se suspeito para alguns: para o ritmo regular
sobra um nome, num manuscrito falta Benjamim, em dois falta Manassés;
vimos a fixidez do ternário em Nm 2 e 26. Atenhamo-nos ao texto: José e
Benjamim são os dois filhos de Raquel; Efraim e Manassés são os dois
filhos de José adotados como filhos por Jacó (Gn 48; cf. SI 77,16 com
comentário).
Em contexto militar, gbuirh é o valor ou a valentia do soldado, eyshw‘h
é a vitória. Quadrariam bem com a visão da arca como paládio. Recorde-se
ISm 4,1-12 sobre a arca capturada pelos filisteus e compare-se com SI
60,12: “já não sais com nossas tropas”.
4. Estribilho. O rosto luminoso ou deslumbrante de Deus nos dará a
vitória, mudará nossa sorte. Dum rei dizem os Provérbios:
16,15 O rosto sereno ('wr) do rei traz vida.
20,8 Um rei sentado no tribunal para julgar
com seu olhar dissipa toda maldade.
Do efeito no inimigo fala Ex 14,24: “de madrugada olhou o Senhor
desde a coluna de fogo e nuvens e desbaratou o exército egípcio”.
5. Novo título no salmo. A construção é anômala, mas não impossível
(também é possível que esteja de sobra ’Ihym, como atestam alguns
manuscritos). Enquanto o povo “suplica”, o Senhor “fumega” ou se envolve
na fumaça. Muitos comentadores tomaram-no como sinal de cólera, segun­
do SI 74,1 {Análise filológica). Parece-me discutível. A fumaça enche o
templo e vela a presença do Senhor Rei na vocação de Isaías (6,4); função
semelhante tem a fumaça do incenso no camarim ou sancta sanctorum.
Quando a fumaça é sinal de cólera divina, menciona-se algum sinônimo (Dt
29,19; Is 65,5; SI 18,9). Creio que aqui a fumarada oculta o “resplendor” de
Deus, é a antítese de “resplandece” e “ilumina”. Parafraseando: ilumina teu
rosto, não o envolvas em fumaça.
6. A repetição de dm‘h, no singular e plural, é enfática: lágrimas de
comida, lágrimas de bebida (vejam-se SI 42,4; 102,10).
Exegese
1035
7.
mdwn é a contenda ou rixa. Em vez de entender-se bem com o
“vizinhos”, são objeto de sua má vontade; como Jeremias de seus concidadãos
(15,10). O termo é freqüente em Provérbios (9 vezes de 12).
9. Tiraste: o verbo ns‘ é freqüente em qal para indicar o pôr-se em
marcha, o avançar por etapas; é raro em hifil, e o paralelo mais significativo
lê-se em Ex 15,22. Contextualmente eqüivale a arrancar, extrair, grsh é
freqüente em contextos de ocupação da terra (por exemplo, Ex 23,28-31; Js
24,12). Nos mesmos contextos usam nt = plantar (Ex 15,17; Am 9,15).
10. A fórmula aliterada pnyt Ipnyk significa preparaste de antemão,
te adiantaste a preparar (o terreno); em diversas formas, pnym soa seis
vezes no salmo.
11-12. A alguns dados da imagem, como raízes, sombra, ramos e
sarmentos, sobrepõe-se a visão real da expansão política. A videira ou
parreira que cobre e ensombreia cedros é como o triunfo do humilde sobre
o altaneiro: vejam-se Is 2,13 e o contrário de Ez 19:
10
11
12
Tua mãe é como videira sarmentosa
plantada ao pé da água:
produziu fronde e fruto
pela abundância de água.
Lançou rebentos robustos para cetros reais,
elevou-se sua estatura até tocar as nuvens;
destacava-se por sua altura,
por sua abundância de sarmentos.
M as a deceparam ...
13. Abrir brechas na cerca ou esborcinar a sebe, como em Is 5,5 e
semelhante a SI 89,41. O verbo ’rh só se lê aqui e em Ct 5,1.
14. Creio que zyz não designa uma espécie em particular, mas uma
massa heterogênea e indefinida, alimárias; só aqui e no SI 50,11. Teodoreto identifica o primeiro com os assírios e o segundo com Nabucodonosor.
15-16.Variação e ampliação do estribilho. Como em SI 74,3, o orante
convida a Deus a fazer uma visita de inspecção: que primeiro olhe de cima,
numa olhada de conjunto, e depois desça para examinar o estado em que se
encontra sua plantação. E sua, e não pode desentender-se. Em vez de
“restaura-nos”, pede “volta”; em vez de “iluminar o rosto”, que dirija
atentamente o olhar: o que vê, como a encontra?
17a. Saltanto a provável adição (16b), chega a resposta: encontra-a
queimada e cortada (com inversão de ordem). Compare-se com Is 27,11: “ao
secar-se a ramagem, a quebram; vêm mulheres e lhe ateiam fogo”. O fogo
pode ser um incêndio geral ou o emprego de ramos para alimentar as
chamas, segundo diz Ez 15,4.
Salmo 80
1036
17b. Começa a petição, primeiro contra o inimigo. Com um bufido ou
sopro, Deus fará perecer ou extraviar-se a todos os animais invasores (SI
18,16; Is 30,17).
18. Petição pelo chefe, a quem não chama de rei nem dá qualquer título
costumeiro. Seu novo título é “o homem de tua dextra” (como dizemos nós
“seu braço direito”). A dextra de Deus se senta o rei no SI 110,1. E um ser
humano (bn ’dm), a quem Deus “fortaleceu” para uma empresa ou cargo (cf.
Js 1,6-9; SI 89,22). Alguns quiseram ver no verbo uma paranomásia
aludindo ao rei Amasias.
19. Conseqüência do anterior: guiados pelo chefe delegado de Deus,
seremos fiéis sem afastar-nos do Senhor. Dá-nos vida (SI 71,20; 85,7; 138,7;
143,11). Antes do estribilho final, o salmo termina com o tema da vida
outorgada por Deus.
6. Transposição cristã
—
Vamos tomar o estribilho com o tema do rosto iluminado, radiant
e manifesto. O rosto de Deus entre os homens é Jesus, de acordo com Jo 14,9:
“quem me vê a mim, vê o Pai”; Hb 1,3 diz que “é reflexo de sua glória”. Assim
o dizem também Orígenes, Cirilo de Alexandria, Jerônimo, etc. Jesus, como
outro Moisés, dissimulou seu esplendor; mas manifestou-o um dia a três
escolhidos:
M t 17,2 Ali se transfigurou diante deles: seu rosto brilhava como o sol e
suas vestes tornaram-se resplandecentes como a luz ...
A transfiguração é antecipação da ressurreição gloriosa. Agora a glória
de Deus se nos manifesta por meio do evangelho.
2Cor 4,6 Pois o Deus que disse “brilhe a luz do seio das trevas”, acendeua em nossos corações, fazendo resplandecer o conhecimento da glória de
Deus, refletida no rosto do Messias.
Um pouco antes Paulo tinha dito dos incrédulos que “não distinguem
o resplendor duma boa nova do Messias glorioso, imagem de Deus”.
Esses poucos dados podem-se ampliar com outros, levando em conta
que a expressão hebraica sobre a luz de Deus também se traduz por
epiphanein / epiphaneia e por photismos; compare-se, por exemplo, em
grego, SI 44,4 com 2Tm 1,10. Com esses dados não será difícil apropriar-se
do estribilho e do espírito do SI 80.
Agostinho sugere outra leitura simbólica. O rosto de Deus é a imagem
que imprimiu em nós; Deus precisa enviar um raio de sua sabedoria para
que resplandeça em nós sua imagem.
Transposição cristã
1037
— Outro tema é o do chefe anônimo do v. 18, mero ser humano (bn ’dm),
como no SI 8,5, como em Ezequiel (89 vezes), a quem Deus “fortaleceu para
si” e colocou à sua direita. Tal leitura messiânica desse texto é muito antiga,
e no contexto cristão impõe-se sem óbices. Tal leitura apóia-se em Is 41,10
e no SI 89,22:
Is
SI
Eu te fortaleço (’mç), te auxilio,
te sustento com minha destra (ymyri) vitoriosa.
para que minha mão esteja sempre com ele
e meu braço o fortaleça (’mç)
Lucas usa o verbo correspondente da versão grega para descrever como
Jesus adolescente “ia se robustecendo” (1,80; 2,40). O tema da destra
referido a Jesus Cristo está abundantemente atestado no NT: por exemplo
Rm 8,14; Ef 1,20; Hb 10,12. Confirmam-no os Padres:
Orígenes: “O homem de tua destra é Cristo”.
Cirilo de Alexandria: “Como o Logos se fez homem, ele é chamado homem”
Atanásio: “Inclusive quando se faz homem, ele está à direita do Pai”.
Note-se que tomam bn ’dm (ou o grego) como expressão da simples
humanidade, e não como título transcendente.
— Uma vez assegurada a leitura cristológica, é fácil a leitura e
meditação eclesiológica do salmo. A Igreja recita-o em tempos de persegui­
ção, sabendo quea fortaleza lhe vem do Senhor. Porque o Pai glorifica o seu
Filho, nós podemos “não nos afastar dele”; porque ele “nos dá a vida”, nós
podemos invocar seu nome ou levá-lo como cristãos.
Salmo 81
1. Texto
2
3
4
5
6
Aclamai a Deus, nossa força,
dai uivas ao Deus de Jacó.
Tocai instrumentos, soai tamborins,
cítaras temperadas com harpas.
Soai a trombeta pela lua nova,
pela lua cheia pois é nossa festa.
Porque é uma lei de Israel,
um preceito do Deus de Jacó,
um pacto firmado com José
quando saía do Egito.
6c Ouço uma língua desconhecida:
11c
dilata a boca, para que ta encha.
7
8
Retira a carga de teus ombros,
suas mãos se desprenderam do cesto.
Na aflição clamaste, e te libertei,
te respondi oculto entre trovões;
te pus à prova em Meriba1.
9
Escuta, povo meu, pois te admoesto;
Israel, oxalá me escutes:
10 Não terás deus estranho,
nem adorarás deus estrangeiro.
11 Eu sou o Senhor teu Deus
que te tirei do Egito.
12 Mas meu povo não fez caso de mim,
Israel não me obedeceu.
13 Entreguei-os a seu coração obstinado
para que seguissem seus caprichos.
1Meriba = Fonte Acareamento
Análise filológica
1039
14 Oxalá me escutasse meu povo
e caminhasse Israel por meus caminhos.
15 Eu humilharia os seus inimigos
e voltaria minhas mãos contra seus adversários.
16 Os que aborrecem ao Senhor te adulariam
e sua sorte ficaria fixada.
1 7 Alimentar-te-ia com flor de farinha,
saciar-te-ia com mel silvestre.
2. Bibliografia
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3. Análise filológica
4. bksh: em Pr 7,20 vocalizado com segol, Barth Nominalbildung 12a.
6.
byhwsp: forma ampliada de José, cf. ywndb / yhwndb / ywntn
yhwntn. Segundo Ihn Ezra e Qim representa o povo inteiro, cf. 77,16; 78,60;
80,2.
7
’rç LXX Vg do país, lugar de onde sai; Gun But corrigem para m’rç
Dah dá o mesmo valor a *Z; contra o país muitos comentadores; Hitzig
explica: o autor substituiu a fórmula de Ex 11,4: ’ny ywç’ btwk mçrym por
Gn 41,45: wyg’ywsp ‘l ’rç mçrym-, mas o pronome de bç’tw refere-se a Deus,
e não a José.
6b. y d ‘ty ’shm‘: LXX Vg lêem terc pessoa fazendo de José sujeito; a
língua egípcia Belarmino, de Deus Atanásio Eutímio.
7b. hsyrwty: LXX Vg terceira pessoa.
tbrnh-, LXX Vg leram o verbo ‘bd, seguem o hebraico Sim Jerôn.
dwr: cesto Vg Sim Rasi; panelas, caldeirões Targ Qim Pagnini Hirsch.
10. zr : estrangeiro, Vg recens não tradicional, Agostinho não eterno.
1040
Salmo 81
11.
hrhb: imagem tomada dos passarinhos Thalhofer, a boca espiri
tual para receber Eutímio Belarmino, para pedir Genebrardo Agélio.
15. km‘t: partícula condicional irreal DBHE; com facilidade Teodoreto
Eutímio, pronto Genebrardo.
16. ykhshw: negaram a hostilidade precedente, ou simularam a
submissão Ros; faltaram-lhes as forças Marini cf. Is 58,11; tornar-se
pequenos J. A. Eaton: JTS 19 (1968) 604.607.
‘tm: fortuna, destino, sorte como SI 31,6; Is 33,6 But Rav; tempo de
vingança e desgraças como Is 13,22 ou ywm SI 37,13 Ibn Ezra Rasi; tempo
de felicidade Qim Ros; tempo da vida Hitzig; sua juventude Ges Thes 993.
Eaton l. c. deriva de ‘nh humilhar, subjugar.
Vwlm: definitivamente.
17. wy’kylhw: terc pess fala o poeta Marini Hitzig Dah; lêem prim pess
But Del, erro auditivo do copista cf. Wellhausen, Der Text der Bãcher
Samuelis, Gotinga, 1871, VI.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
—
Eis um salmo estranho: é o menos que podemos dizer. Quem seguiu
o saltério até aqui, ao ler o presente salmo pode dizer como aquele que fala
no versículo 6: “Ouço uma linguagem desconhecida”.
Desconhecido por força de conhecido, já que a maioria de suas peças e
frases soam-nos familiares. O começo é inconfundível, de hino, com seus
imperativos e sua orquestração musical. Mas, em vez de propor como tema
as maravilhas operadas por Deus, o salmo apela a uma instituição legal,
que não é o tema do louvor. Mencionam-se, é verdade, alguns momentos da
libertação do êxodo, mas não mais em chave hínica, mas nos lábios de Deus,
passando da terceira para a segunda pessoa. Um imperativo translada-nos
à pregação homilética do Deuteronômio, e dentro dela escutamos, incon­
fundível, o primeiro mandamento do decálogo. A homilia converte-se em
denúncia, em terceira pessoa, e menciona-se um castigo. O qual não é o
último, antes dá passo a bênçãos formuladas em condicional irreal ou
potencial. Tudo é “uma linguagem desconhecida”, não pelas peças, mas
pela combinação.
Podemos emparelhar esse salmo com o 50, primeiro ato duma liturgia
penitencial, pronunciada toda por Deus; também com o SI 95, mais
próximo, se bem que menos complexo. Tem parentescos notáveis com a
aliança em Moab (Dt 29-31). De forma que, pelo tema, o salmo refere-se à
Estudo global
1041
instituição e pregação da aliança, em especial ao primeiro mandamento, ao
passo que o SI 50 menciona outros. Pela forma compósita e mudança de
personagens, vamos chamá-lo de liturgia.
—
Situação. Comentar-se-á: não eram precisos tantos rodeios para che
gar a uma conclusão que enuncia explicitamente o começo do salmo: cele­
bramos nossa festa de preceito. Mas eram precisos, como veremos. De que
festa se trata? Duma “solenidade”, talvez com peregrinação (hg). Qual das três?
Dt 16,1-17 registra três solenidades: a páscoa, pela saída do Egito; as
semanas, pela escravidão do Egito; as tendas, pelas bênçãos da colheita.
Ora, o salmo menciona a saída do Egito, os trabalhos da escravidão, as
bênçãos condicionadas da terra. Lv 23 e Nm 29 distinguem três festas no
“sétimo mês” (setembro / outubro), que se estendem em espaço de 22 dias:
o primeiro do mês, o Ano Novo, o décimo, a expiação, de 15 a 22, as tendas.
O que nos dá uma celebração pela lua nova e outra pela lua cheia, como quer
o salmo. Em nenhum desses textos legislativos menciona-se o toque de
trombeta ou chifre (shwpr) que o salmo menciona.
Dada a variedade de ofertas, os comentadores abriram em leque suas
identificações da solenidade do salmo: páscoa, semanas, tendas, mês
sétimo (provando assim o princípio de que à maior precisão corresponde
menor probabilidade). Então, será melhor considerá-lo como salmo de
repertório, apto para diversas festas? No caso presente, a resposta não é
simples em vista do enigma da voz do solista.
b) O solista do v. 6c
A comunidade reuniu-se alegremente para celebrar uma festa, cum­
prindo assim um preceito tradicional. Soam instrumentos, cânticos de
júbilo, quando de repente uma voz interrompe a cerimônia e chama a
atenção de todos com autoridade peremptória. De quem se trata? Apresen­
ta-se como ouvinte duma mensagem, não se identifica, fala como se por ele
falasse Deus. Quem será este?
Os comentadores modernos inclinam-se por identificá-lo com um
“profeta cultual”, ou seja, um profissional que dá resposta ou pronuncia
mensagens oraculares em cerimônias litúrgicas. Outros identificam-no
com um membro da assembléia repentinamente inspirado. Em arrebata­
mento súbito, escuta uma voz interior, para ele desconhecida, e a comunica.
Não o diria isso um profissional do oráculo, acostumado à voz de Deus.
A primeira vez que o menino Samuel escuta a voz do Senhor, não a
reconhece:
ISm 3,7 Samuel não conhecia {Vyd’) ainda o Senhor; ainda não se lhe
tinha revelado a voz do Senhor.
1042
Salmo 81
Paulo parece ainda contar com a presença na liturgia de pessoas
“inspiradas” ou “profetas”: ICor 11,4 diz propheteuon, 14,2s opõe esse
termo a pneumati lalei mysteria. O “profeta” do salmo interrompe a
cerimônia festiva para impor uma mensagem dramática. O que diz não é
radicalmente novo, é nova a autoridade com que fala, a atualização da
mensagem da aliança, vários detalhes da mensagem.
Por meio desse oráculo inesperado, a comunidade trasporta-se violen­
tamente duma celebração alegre e convencional a uma reflexão exigente
sobre sua relação para com o Deus da aliança. No mesmo tom dramático,
potente, termina o salmo; só que se trata de drama aberto à esperança,
porque Deus continua fiel a suas promessas, embora condicionadas.
Em conclusão, quando os comentadores falam de “liturgia”, não
pensam em texto programado, mas antes sublinham o fator de surpresa. O
que nos propõe nova dificuldade. Suponhamos que assim, surpreendente,
foi uma vez, e que se registrou e se estilizou o fato num texto: o que ocorre
quando se reitera esse texto em novas celebrações, fica conhecido e familiar,
e desaparece o efeito de surpresa? Não mais há profeta extemporâneo, mas
uma espécie de texto teatral com distribuição de papéis e ensaio diligente.
O anúncio de “uma linguagem desconhecida” torna-se conhecido e dá-se por
evidente, espera-se pontualmente. E se ocorre isso nas repetições litúrgicas
do texto, não pode o original ser uma composição artificial, minúsculo
drama litúrgico, para tornar mais eficaz a mensagem? Não temos dados
para responder a essa pergunta, mas nós, que desejamos apropriar-nos do
salmo, devemos procurar manter viva a consciência de sua força de
interpelação.
No quadro dessa hipótese “litúrgica”, podemos dar o passo seguinte de
nossa exposição.
c) Composição
Formalmente, os versículos 2-6ab constituem introdução hínica festi­
va. Em 6c com 11c (veja-se mais abaixo) soa a interrupção. A mensagem
articula-se numa recordação histórica (7-8) e três etapas balizadas pela
repetição de shm‘ m 9.12 e 14: contêm uma intimação do primeiro manda­
mento, denúncia da desobediência e oferta de conversão.
Ravasi observou a correspondência ideal desse esquema com o começo
do decálogo:
auto-apresentação e prólogo histórico
outros deuses, adoração
violação do preceito
bênçãos pelo cumprimento
Ex 20,2
3-5a
5b
6
SI 8 1,7s
lOs
12s
14-17
Estudo global
1043
Com menor rigor e densidade encontramos semelhanças distribuídas
pela aliança de Moab. Escolho alguns dados:
Dt 29,8-12
15-18
19-27
30,1-2
7-8
9-10
19
31,10-13
aliança precedida de repasso histórico em 29,1-7
não prestar culto a deuses estrangeiros; obstinação(shryrwt) 18
não-observância e castigo
conversão, escutar a voz do Senhor
maldições contra o inimigo {’y b sn’)
bênçãos pela obediência
testemunho (h ‘dty)
renovação da aliança e da lei, cada sete anos, na festa das
tendas
testemunhas: o cântico (19), o código (26), céu e terra (29).
A repetição de Egito em 6 e 11 dá ênfase ao tema do êxodo, liga as duas
secções e não parece ter outra função estrutural. Mais significativa é a
repetição já mencionada de shm‘: o solista extemporâneo avisa que “escu­
tou” ou está escutando (’shm'); sua mensagem concentra-se na necessidade
de escutar, sua negação, seu posto como condição (9ab.12.14). Mas ocorre
que pôr-se à escuta contrapõe-se ao estrondo jubiloso de instrumentos
musicais e aclamações. O homem ora quando faz com que Deus ouça sua
voz, mas não menos quando escuta a voz de Deus.
Não pronuncia a palavra aliança, mas a relação está envolvida na
correlação “teu Deus” (11) com “meu povo Israel” (9.12.14). É o contexto que
acolhe o mandamento e as bênçãos condicionadas.
5. Exegese
2-4. Começa a festa cum iubilo, com grandes aclamações (hry‘w) e
grande acompanhamento orquestral: a corda, a cítara e a harpa, a percus­
são, tamborim, o vento, a trombeta. Congregam-se em “dia festivo”; Jacó
representa toda a comunidade ideal. Deus recebe o título de “nossa força /
fortaleza”, como em 28,7 e 59,18.
5-6ab. Trata-se duma festa “de preceito” e tradicional ou costumeira,
como diz o SI 122,4. dwt é o compromisso imposto, como no SI 78,5. Aúltima
frase introduz uma mudança na fórmula tradicional (veja-se Análise
filológica): em vez de “saída do Egito”, diz “saía / fazia uma saída contra o
Egito”. Compare-se com Ex 11,4: “A meia noite, eu farei uma saída entre os
egípcios: morrerão todos os primogênitos do Egito” (yç’ btivk). E raro
encontrar Yhwh como sujeito do verbo sair: Jz 4,14; Is 26,21 escatologia, Is
42,13 segundo êxodo, Mq 1,3 teofania, Zc 14,3; SI 44,10 = 60,12 negado em
contexto militar. O sintagma yç’ % ’rç diz-se de José quando sai para
1044
Salmo 81
percorrer (‘br) o país. Mantendo o caráter hostil, a frase pode resumir todas
as pragas e pôr em primeiro plano a última, que prepara a saída do povo.
6c + 11c. A transposição a esse lugar do hemistíquio 11c é conjetura
plausível que não pode aspirar à certeza nem a alto grau de probabilidade.
Se o argumento rítmico é fraco (dois hemistíquios pendentes), o argumento
temático tem certa força. Comentadores antigos e modernos preferiram
transladar 11c para junto do 17 ou deixá-lo onde está.
No modo de intervir e no corte da frase insinua-se tonalidade miste­
riosa que atingirá em parte a mensagem. “Estou ouvindo”: assim tematiza
sua experiência como outros inspirados:
N m 24,3
4
Is 22,14
Oráculo do homem de olhos perfeitos,
oráculo do que escuta palavras de Deus,
que contempla visões do Todo-poderoso,
em êxtase, com os olhos abertos.
Revelou-me ao ouvido o Senhor dos Exércitos.
Também a famosa visão noturna de Elifaz em Jó 4,12-16.
Dilata a boca: hrhyb ph lê-se também em Is 57,4 e SI 35,21, mas com
‘l que dá à expressão o significado de burla; a expressão presente, quanto
ao sentido está mais próxima de hrhyb npsh (Is 5,14; Hab 2,5) que abrir as
fauces para tragar. Com que Deus vai encher essa boca aberta de par em
par? Creio que com suas palavras, com sua mensagem. Comparo-o com:
2Sm 23,3: “sua palavra está em minha língua”; Is 51,6: “pus em tua boca
minha palavra”; Jr 1,10; Ez 3,2s, com referência a línguas conhecidas e
estranhas.
A tonalidade misteriosa ou vaga prolonga-se em “o mistério do trovão”,
no enunciado potente, no estilo elíptico. Por contraste destaca-se o tom
categórico do primeiro mandamento.
7. Sem fórmula profética de introdução, Deus toma a palavra. Toda a
opressão do Egito, a dura escravidão e os trabalhos forçados resumem-se
nas “cargas” (Ex 1,11; 2,11; 5,4s; 6,6s) e na menção do “ombro” (Is 10,27;
14,25).
8. A conhecida seqüência “clamar - responder”, por ser genérica, vale
também para o êxodo. Ao invés, bstr r ‘m é expressão original e sugestiva:
eu te respondi escondido num trovão, num ocultamento atroador. Deus
esconde-se em grandes e densas nuvens(Sl 18,12; Jó 22,14). A que alude
a curiosa expressão? Na passagem do mar Vermelho não houve trovões
(salvo na transformação do SI 77); no Sinai, Deus escondeu ao povo sua
palavra e a comunicou a Moisés, ao passo que se manifestava ao povo
numa teofania de trovões e relâmpagos. O trovão escondia sua voz
articulada.
Transposição cristã
1045
8b. O verbo bhn = provar, aquilatar não faz parte das tradições do
êxodo; de mais a mais, toda a tradição diz que em Meriba foi o povo que
tentou ou pôs à prova a Deus ou acareou-se com ele. Não muda o caráter
dramático do episódio: quem escuta ou pronuncia esse versículo imaginase o Israel rebelde.
9.
O imperativo shm‘ repete-se no Deuteronômio com valor estrutur
(6,4; 4,1; 9,1; 27,9). O primeiro hemistíquio lê-se também no SI 50,7, ou seja,
na primeira parte duma liturgia penitencial.
10-ll.Repetem em ordem inversa o primeiro mandamento. A fórmula
completa ’nky Yhwh ’Ihyk só se lê aqui e nos dois decálogos (Ex 20 e Dt 5);
com o pronome na forma ’ny é freqüente. O segundo hemistíquio do v. 11 só
se repete literalmente em Dt 20,1; com ligeira variação em Js 24,17 (textos
de aliança) e textos semelhantes.
12. V ’bh ly é fórmula elíptica, com complemento indireto e sem
gerúndio; deve-se comparar com Dt 13,9: “não lhe farás caso nem o
escutarás”; o normal é completar o verbo ’bh com gerúndio (Lv 26,21; Dt
23,6; Js 24,10).
13. shryrwt é especialidade de Jeremias (oito vezes), também em Dt
29,18. Abandonar o rebelde a seu capricho e obstinação é talvez o castigo
mais grave imaginável. Como paralelo desses versículos finais, pode-se ler
Is 48:
17
18
19
eu te guio pelo caminho que segues.
Se tivesses atendido a meus mandatos,
seria tua paz como um rio,
tua justiça como as ondas do mar;
tua descendência seria como areia;
como seus grãos, os rebentos de tuas entranhas;
teu nome não seria aniquilado
nem destruído diante de mim.
15. Humilhar, dobrar (Dt 9,3; Jz 4,23; Ne 9,24).
16. Adular-te-iam, em expressão de servilismo, como no SI 18,45; 66,3.
O segundo hemistíquio equivale a: sua hora seria definitiva, ou seja, a hora
final, o destino; complemento indireto o povo, antes que Yhwh.
17. Trigo e mel: compare-se com a série de sete produtos em Dt 32,13s.
6. Transposição cristã
Foi para Moisés visão desconhecida o fogo na sarça, foi para os
israelitas nova e terrificante a visão do Sinai, para o “profeta” que irrompe
no salmo soa nova e desconhecida a palavra de Deus que se apresenta,
1046
Salmo 81
denuncia, exige e oferta. Como manteremos na Igreja a novidade da
presença do Senhor e de sua mensagem?
Também a Igreja sofre a tentação de enquadrar grandes mensagens
em cerimônias litúrgicas, caindo na rotina e neutralizando sua força. A
grande mensagem converte-se assim numa cerimônia a mais. E tem que
surgir o inspirado ou sobrevir a ação do Espírito para que as velhas
palavras recobrem vida atual. No centro da consciência da Igreja há de
sempre soar nova a palavra com que Deus se apresenta e se identifica: “Eu
sou o Senhor teu Deus”. Assim como também a de Jesus Cristo.
Jesus traz uma mensagem nova, “desconhecida”, como lhe diz
Nicodemos em Jo 3 ,lls. Em Jo 8,26 diz Jesus: “o que me enviou é veraz, e
o que aprendi dele digo-o ao mundo”. Depois da ressurreição, apresenta-se
e identifca-se: “Eu sou, não temais” (Lc 24,36); a Paulo diz: “Eu sou Jesus
a quem tu persegues” (At 9,5; 22,8). Agora, ao longo da história, Jesus
Cristo se nos apresenta e se identifica com palavras do evangelho: “Eu sou,
não temais” (Mt 14,27 par); “eu estou no meio deles” (Mt 18,20 par). Sua
presença e identificação constituem ajuda e exigência: “Se não credes que
eu sou, morrereis por vossos pecados”.
“Cristo não é um Deus recente, pois existia no princípio junto de Deus”
(Agostinho). Pois “antes de Abraão, eu já existia”, acrescenta Ruperto
citando Jo 8,56.
Vários Padres citam, a propósito do v. 13, três frases da carta aos
Romanos:
1,24 por isso Deus os entregou a seus desejos imundos
1,26 por isso Deus os entregou a paixões vergonhosas
1,28 Deus os entregou a uma mente insensata
(Orígenes, Eusébio, Agostinho)
Não basta a expressão dum gozo compartilhado (2-4), nem o cumpri­
mento dum preceito ou a continuação dum costume (5-6); é preciso apresentar-se abertos à surpresa duma presença sempre nova e atual.
Salmo 82
1. Texto
1
Deus levanta-se na assembléia divina,
rodeado de deuses ele julga:
- Até quando dareis sentenças injustas
pondo-vos do lado do culpado ?
Defendei o desvalido e o órfão,
fazei justiça ao humilde e ao necessitado,
salvai o desvalido e o pobre
livrando-os do poder dos malvados.
Não sabem, não entendem, caminham às escuras,
e tremem os fundamentos do orbe.
2
3
4
5
6
7
8
Eu vos declaro: Ainda que sejais deuses
e filhos do Altíssimo todos,
morrereis como qualquer homem,
caireis como qualquer príncipe.
Levanta-te, ó Deus, e julga a terra,
pois tu és o dono de todos os povos!
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Lista alfabética
Ackerman
Anderson
Beaucamp
Cooke
Coppens
Eissfeldt
G. Nunez
Gordon
Handy
Hanson
Hofiken
Jiingling
66
69
62
64
47
72
63
78
90
65s
83
69
Loewenstamm
Luke
Morgenstern
Niehr
Neyrey
O’Callaghan
Podechard
Rinaldi
Schlisske
Treves
Tsevat
van Zijl
71
74
39
87
89
53
50
65
73
57
69
70
3. Análise filológica
1.
Há um ’Ihym com valor de singular, como mostram os verbos nçb
yshpt, e outro íhym com valor de plural, como exige a preposição bqrb =
entre; há de mais a mais um ’l, chefe duma assembléia. O paralelismo
Estudo global
1049
mostra que os íhym do segundo hemistíquio formam a assembléia do
primeiro. Gramaticalmente, o primeiro íhym poderia ser diverso de í: “um
deus se levanta na assembléia do Deus Supremo”; como se o poder judicial
tocasse a um funcionário individual do grupo. O estudo de contexto literário
mais amplo obriga a identificar o primeiro íhym com o Deus Supremo í.
Quase todos traduzem assim, no singular e no plural, mas alguns
tomam o segundo como complemento: deos dijudicatVg, deosjudicat Jerôn;
Aquila traduz o segundo por kyrios.
nçb: gesto judicial Is 3,13.
2. pny ... ts’w: favoritismo, parcialidade.
3. não é preciso corrigi-lo por dk. A repetição tem valor estilístico e
frisa a equivalência de shpt e plt quando o complemento é dl.
5. O sujeito em terceria pessoa tem que ser o mesmo de antes, os íhym.
Imaginando a cena do juízo, é fácil integrar a mudança sintática.
6. íywn: título da divindade suprema. O plural bny pode abranger
desde a filiação estrita até a pertença a um grupo ou corporação. Aqui tem
significado mais forte que “assembléia”; está mais na linha de natureza que
de função.
7. tmwtwn: com nun paragógico GK47 m. ’dm natureza, srym função.
8. qwmh: para o acento GK 72 1.
4. Estudo global
a) Gênero e esquema subjacente
—
Parece-me impossível enquadrar esse salmo, ainda que tenha
pontos de contato com o 58 e o 94. O imperativo final é mais aclamação que
súplica; a descrição quase encenada é exaltação de Deus que equivale a um
hino, sem adotar a forma clássica de hino. Mais importante é apreciar o
esquema imaginativo que governa a composição.
---Vamos considerar as personagens e seus papéis dentro do texto, sem
tentar identificá-las por ora.
Um soberano (7) convoca sua corte ou ministros (íhym) parajulgar sua
gestão subordinada. Levanta-se e interpela-os com uma pergunta retórica,
que eqüivale a acusação apaixonada: interpõe-se um delito de corrupção e
perversão inveteradas da justiça. Do protocolo dos juizes governantes cita
uma série de imperativos que definem suas obrigações, ou seja, a função
que a carta de nomeação lhes impunha. Não cumpriram essas obrigações,
que justificam sua função, desentenderam-se, e a conseqüência é que os
fundamentos da ordem social e até a ordem cósmica cambaleiam. A injus­
1050
Salmo 82
tiça estabelecida gera obscuridade e a obscuridade manipulada fomenta a
injustiça.
O soberano pronuncia sentença: não vale apelar à condição, títulos e
méritos. Por ter pervertido a justiça, os ministros incorreram em pena de
morte, e a sentença será executada sem considerações. Escutada a senten­
ça, o povo que assiste invoca a Deus para que se encarregue de governar com
justiça o mundo.
— Uma composição tão orgânica não tem paralelo completo no AT, mas
podemos ilustrar alguns de seus passos. Em ISm 22 conta-se um julgamen­
to do rei Saul processando primeiro seus ministros e depois os sacerdotes.
Saul, enquanto rei, é juiz supremo; o delito pode ser atentado direto ou
cumplicidade numa traição. Entrescolho alguns versículos mais significa­
tivos (aconselho que se leia toda a cena):
Saul estava em Gabaá, sentado sob a tamargueira, no alto, com a lança
na mão, rodeado de toda a sua corte. Saul disse:
— Ouvi, benjaminitas: pelo visto também convosco o filho de Jessé
repartirá campos e vinhas e vos nomeará chefes e oficiais de seu exército
(suborno), porque todos estais conspirando contra mim, ninguém me infor­
m a... ninguém sente pena de mim.
Doeg denúncia Aquimelec e os sacerdotes de Nob, os quais são chamados
a comparecer perante o rei.
Saul perguntou:
— Por que conspirastes contra mim, tu e o filho de Jessé? Deste-lhe
comida e espada e consultaste a Deus por ele.
Responde Aquimelec escusando parcialmente a Davi e alegando ignorân­
cia. Mas o rei replicou:
—
Morrerás sem apelação Aquimelec, tu e toda a tua família (mwt tmwt) .
O julgamento de Saul conclui com terrível injustiça, condenando e exe­
cutando sacerdotes inocentes. Quanto aos deveres dos juizes, formulados
no imperativo, podem-se ler alguns tomados da legislação:
Lv 19,15 Não dareis sentenças injustas. Não serás parcial, nem para
favorecer ao pobre nem para honrar ao rico. Julga com justiça teu concidadão
(shpt, dl, ns’ pnym).
Dt l,1 6 s Escutai e resolvei segundo a justiça os pleitos de vossos irmãos,
entre si ou com imigrantes [classe desvalida]. Não sejais parciais na
sentença, ouvi por igual a pequenos e grandes, não vos deixeis intimidar por
ninguém, pois a sentença é de Deus.
Dt 16,19 Não violarás o direito, não serás parcial nem aceitarás suborno.
—
A sentença de morte não se expressa nos salmos como uma das
fórmulas comuns, com mwt tmwt, mwt ywmt\ a forma empregada é
aparentada por um lado com Nm 16,29, e por outro com Gn 3. No motim de
Coré contra Moisés lemos a frase: ’m kmwt kl ’dm ymwtwn = morrem de
morte natural, como morrem todos os homens. O texto do Gênesis narra a
Estudo global
1051
história de Adão e Eva: se pecais, morrereis (tmwtwn: essa forma enfática
na 2apessoa só se lê em Gn 3,3.4; Is 22,14 e neste salmo); a serpente objeta:
“não morrereis... sereis como deuses”. O texto do Gênesis não só ilumina
formalmente o processo do salmo, mas também oferece elementos de
conteúdo importantes para analisar a correlação deus / homem.
b) Composição e detalhes formais
— O principal princípio de composição é a cena judicial antes descrita.
Ela justifica e explica a mobilidade da cena. No primeiro versículo, alguém
apresenta as personangens; em 2-4, o juiz interpela os réus; no 5 fala deles
em terceira pessoa dirigindo-se ao público (ou fala o mesmo que no primeiro
versículo); em 6-7 volta o juiz à segunda pessoa; no final prorrompe o
público em aclamação dirigida ao juiz (ou fala o mesmo de antes). Fazem
parte desta composição os pronomes ’ny j ’tm e ’th de 6a e 8b. Também os
diversos nomes e usos de nomes divinos.
— São interessantes os paradigmas contrastados. Num plano se
contrapõem deus-deuses-Altíssimo e homens-príncipes: um grupo dos
primeiros é degradado à categoria dos segundos, com suas conseqüências:
da imortalidade à morte. Noutro plano, a clássica oposição inocente /
culpado ou malvado / honrado é substituída por malvado = culpado /
desvalido-órfão-humilde-necessitado-pobre. Os malvados praticam a in­
justiça contra os pobres desvalidos, e os juizes, em vez de julgar = libertar
os oprimidos, apóiam os opressores. Os juizes em função são julgados e
achados culpados.
— E interessante o movimento rítmico com mudanças significativas:
o alargamento dos versículos 5 e 8. Correspondências sonoras e rítmicas de
3a com 4a, da bifurcação em 5a, das comparações em 7ab k’dm / k’hd
enfático 6a, com as quatro palavras aliteradas em alef.
c) Identificação dos ’Ihym: deuses
Refiro-me ao plural de lb, e não ao singular de la e 8a. É preciso
distinguir metodicamente entre significação ou designação.
Os musicólogos explicam-nos que o Beckmesser dos Mestres Cantores
representa o crítico musical conservador Hanslick. Podemos entender e
gostar da ópera sem conhecer essa identificação; uma vez conhecida, temos
que buscar que não estreite a dimensão da personagem. Beckmesser pode
ser Hanslick e muitos outros que existiram e existirão.
Antes de identificar o referente, a pessoa designada, convém com­
preender o sentido imanente da personagem dentro da obra em que vive e
atua. Há obras em que a identificação é muito importante, porque concerne
Salmo 82
1052
substancialmente ao sentido, como o são as obras históricas, as crônicas, os
informes. Em outros casos, a identificação pode servir para obter dados
contextuais que a obra literária dá por supostos.
No SI 82, a identificação dos ’íhym diz respeito indubitavelmente ao
sentido e condiciona a compreensão do problema colocado e de sua solução.
Ora, algumas figuras literárias prestam-se a diversas identificações. A esta­
belecida ou pretendida pelo autor pode ser mudada por gerações posterio­
res de leitores ou por públicos estrangeiros. Todos sabemos como chistes
políticos viajam de um país a outro, aplicados cada vez ao político local. Po­
de-se estudar o SI 82 como caso típico.
— Os ’íhym como divindades. Seguindo Jüngling, reconhecemos que o
autor fala do panteão celeste: sobre uma corte de divindades subordinadas
impera o Deus supremo. Ao identificar-se Yhwh com ’l, as outras divinda­
des são destronadas e eliminadas (condenadas à morte). Pode-se ilustrar
com muitos textos do AT:
95.3
96.4
5
97,7
Porque Yhwh é um Deus grande,
’l gdwl
soberano de todos os deuses.
‘I kl ’íhym
Porque é grande o Senhor e muito famoso,
mais terrível que todos os deuses;
pois os deuses dos pagãos são aparência,
enquanto o Senhor fez o céu.
Diante dele se prostram todos os deuses...
9 Porque tu és, Senhor, Altíssimo sobre toda a terra,
elevado sobre todos os deuses.
Outros textos: Ex 15,11; SI 29,1; Jó 1,6, etc. O panteão divino é conce­
bido e representado ao estilo duma corte humana, como se pode ver compa­
rando o texto citado de ISm 22,6 com outro de lRs 22,19:
Saul estava em Loma, sentado
sob uma tamargueira,
rodeado de toda a sua corte ...
Vi o Senhor sentado em seu trono,
Todo o exército celeste estava
de pé junto dele, à direita e à esquerda
— Que aos deuses ou a alguns em particular compete a administração
da justiça entre os homens mostram-no numerosos textos não bíblicos. Do
grande hino a Samas = Deus solar (ANET 387-389; Seux 51-63):
97
98
99
100
Deténs publicamente o juiz desonesto,
o que aceita suborno e julga contra a justiça tu o castigas.
O que não aceita suborno e defende a causa do desvalido
é grato a Samas, prolongará vida.
De um hino a Marduc (Seux 71-75):
Tu endireitas o fraco, dás espaço ao desgraçado,
levantas o desvalido e apascentas o oprimido.
Estudo global
1053
De um hino a Istar (Seux 187-194):
25 Tu sentencias as causas com justiça e eqüidade,
26 tu atendes ao oprimido e ao afligido, os restabeleces cada dia.
— O cântico de Dt 32 encaixa-se nesta concepção de henoteísmo, ou
seja, de prestar culto a um só Deus, reconhecendo a existência de outros
deuses estrangeiros:
8 Quando o Altíssimo dava a cada povo sua herança
e distribuía aos filhos de Adão,
traçando as fronteiras das nações,
segundo o número dos filhos de Deus.
Em outras palavras, o Deus supremo (Yhwh) atribui a cada divindade
um povo e a cada povo um território. Ao chocar essa mentalidade com a
nossa monoteísta, saltam como chispas perguntas e problemas: Que
entidade tinham essas divindades? Foram realmente injustos os deuses de
outros povos? Dessas perguntas nos ocuparemos mais pausadamente
depois do comentário exegético.
d) Identificação dos ’Ihym: juizes
— O desterro significou revolução religiosa. Se se tivesse de julgar a
história com o critério do êxito imediato, os deuses babilónicos tinham
demonstrado sua superioridade sobre Yhwh. A qual se acrescentavam a
sugestão dum culto esplendoroso e sua presença em tantas estátuas
magníficas ou impressionantes. Nesse clima religioso, extrema-se a polê­
mica com ou contra os deuses pagãos, e o grande poeta anônimo que
costumamos chamar de Segundo Isaías corrigiu definitivamente a concep­
ção religiosa do povo: nada de henoteísmo, mas monoteísmo puro.
Provavelmente conhecia o SI 82. Ele também emprega o esquema
literário do julgamento, embora de outra maneira, mais sutil e complexa.
Veja-se Is 41,21-29:
Apresentai o vosso pleito, diz o Senhor,
aduzi vossas provas, diz o Rei de Jacó...
narrai os eventos futuros, e saberemos que sois deuses;
fazei algo, bom ou mau...
Todos juntos eram nada; suas obras, vazio;
ar e nulidade suas estátuas.
O pleito do Senhor com os deuses da Babilônia é ficção literária de
Isaías: a esses deuses abundantes da Babilônia o poeta lhes concede
existência literária, como contendentes num magno pleito. Uma multidão
contra um só, um silêncio coletivo contra uma voz dominante. No final do
1054
Salmo 82
julgamento — ficção literária — , fica patente a ficção ontológica desses
deuses. A ficção literária, palavra autêntica de Deus, serve para descobrir
a verdade e a falsidade (mas o profeta não o coloca em termos de justiça).
Estabelecida a nulidade ontológica dos deuses pagãos, parece que o salmo
cumpriu sua função pedagógica e pode ser eliminado das coleções oficiais.
Mais ainda, o salmo poderia favorecer um retorno ao politeísmo moderado
que é o henoteísmo.
—
O salmo não foi retirado nem corrigido, continuou sendo rezado.
Mudou a identificação dos ’Ihym: não deuses, mas juizes e governantes
“pela graça de Deus”. Prova-o o Targum, que traduz íhym por dyny’, e em
sua esteira também Qimchi. Segundo Jo 10,34-36, Jesus dá testemunho
dessa interpretação, que supõe comumente aceita:
Não está escrito em vossa lei: Eu vos digo que sois deuses? Pois se chama
deuses aos que receberam uma nomeação divina...
Pôde-se fazer a mudança de identificação sem mudar o texto do
salmo. A coisa revelou-se tão fácil que os Padres e autores modernos
defendem que teria sido este o sentido original do salmo. Argumentam
com Ex 21,6 e 22,7.8.10, onde alguns casos legais se resolvem acudindo
aos ’Ihym ou jurando perante eles. O argumento não convence, porque os
casos alegados são provavelmente ordálios ou juízos divinos, com ou sem
juramento; em tal caso provam o contrário, que ’Ihym são deuses ou Deus
em função judicial. Os chefes são ministros de Deus, administram justiça
em nome de Deus:
Josafá estabeleceu juizes em cada uma das fortalezas do território de
Judá e os advertiu: Cuidado com o que fazeis, porque não julgareis com
autoridade de homens, mas com a de Deus, que estará convosco quando
pronunciardes sentença. Portanto, respeitai o Senhor e procedei com cuida­
do. Porque o Senhor nosso Deus não admite injustiças nem favoritismos nem
subornos (2Cr 19,5s).
Se juizes e ministros não são deuses, são divinos, e isso basta para a
nova identificação do salmo. O sentido fica claro: juizes e ministros recebem
de Deus poder para administrar justiça, e nada mais. Administrar justiça
em Israel é fazer valer os direitos dos que os tendo não os podem fazer valer,
os desvalidos. O juiz que se deixa subornar com prejuízo dos fracos não
cumpre com sua obrigação, e pode ser condenado à morte. Todos os
ministros “pela graça de Deus” terão de dar contas a Deus; e eles mais
estritamente (Sb 6,1-11).
O salmo converte-se assim em acusação profética contra governantes
injustos e em ato de esperança dos humildes que invocam a intervenção de
Deus. O horizonte não se restringe a Israel, já que soberanos e poderosos
Exegese
1055
de outros países também recebem autoridade de Deus; às vezes inclusive
para castigar o seu povo (como de Nabucodonosor diz Jr 27). De mais a mais,
no tabuleiro internacional poderá representar um dia os pobres oprimidos
e poderá apelar a Deus como árbitro internacional:
S f 3,12
Eclo 35,21
22
25
Deixarei em ti um povo pobre e humilde,
um resto de Israel que se acolherá no Senhor.
Os gritos do pobre atravessam as nuvens
e até alcançar a Deus não descansam;
não recua até que Deus o atenda
e o juiz justo lhe faça justiça.
Deus também não demorará...
até defender a causa de seu povo
e dar-lhes a alegria da salvação.
—
A injustiça alui os fundamentos da convivência social, na ordem
nacional e internacional. A obscuridade é o reino dos injustos (SI 11,2). Mas
os governantes injustos não têm impunidade sacra. Não vale que invoquem
prerrogativas recebidas de Deus: “Tu, que és homem e não Deus, ousarás
dizer ‘sou Deus’ diante de teus assassinos?” (Ez 28,9). A condição mortal
devolve sua verdadeira dimensão ao homem: o que pretende ser “como
Deus” (Gn 3,4), morrerá como Adão; e o que se eleva com título de príncipe,
será como um qualquer. Deus “lhes dirige a palavra” (Jo 10,35) condenando-os. E o povo aclama.
Depois do desterro, o salmo conservou seu valor educativo e manteve
na liturgia uma vibração profética.
5. Exegese
1. O primeiro ’íhym é o Deus de Israel Yhwh. Às identificações que
demos do segundo íhym podemos acrescentar outras: Aquila traduz iskhyron
- fortes, poderosos, anjos Sir, chefes judeus Teodoreto.
2. Compare-se com Lv 19,15.35. Sobre o favoritismo: Jó 13,10; 22,26;
32,21; 34,19.
3. Fazer justiça: justificare Vg, “quando o direito está do seu lado,
sentenciai a seu favor sem temer os opressores nem mostrar-lhes parciali­
dade” Quimchi; “justificar significa aqui declarar inocente quem o é” Lorin;
absolvei Menochio.
5a. Os vervos;y<i‘ e byn podem ter significado ou conotação judicial: byn
Jó 11,11 (sujeito Deus); SI 139,2; Jó 32,9 (pelo compl mshpt); IRs 3,9 (com
prep byn).yd‘: veja-se Bovati, Ristabilire lagiustizia, 59s.69s.222-224, etc.
Um texto que une ambos os verbos é a denúncia de Is 56,11: “são pastores
que não sabem compreender”.
1056
Salmo 82
5b. A escuridão como metáfora de desordem social (Is 59,9).
5c. A injustiça estabelecida e a desordem social concernem à ordem
cósmica; os “estáveis fundamentos do orbe” (Mq 6,2).
6. O Targum suaviza a expressão: consideram-nos como anjos.
8.
O verbo hebraico é nhl, literalmente herdar, indicando possessão
estável. Herança do Senhor já não é só o povo escolhido, mas também todas
as nações, também as pagãs.
Para a apropriação do salmo
Os israelitas transportavam uma carga de politeísmo à margem de sua
dedicação particular a um Deus ciumentamente exclusivista. Para eles,
Yhwh só, para outros povos um repertório de divindades (Mq 4,5):
Todos os povos caminham invocando o seu Deus,
nós caminhamos invocando sempre o Senhor nosso Deus.
Em que relação se acham os muitos e o um? O problema torna-se agudo
quando se assentam em Canaã, mudando de cultura e progredindo nela.
Que função têm as outras divindades para os outros povos e para nós, povo
do Senhor? Tiveram uma função — responde o salmo — : garantir a justiça
entre os homens; mas não a cumpriram, e essa função a assume agora o
Senhor. E isso que quer inculcar uma ação litúrgica breve, fazendo com que
o povo aclame seu Deus único como Deus supremo e garante da justiça. O
salmo tem função educativa: fazer amadurecer uma atitude pela oração.
Onde se apóia esse raciocínio? Não temos dados datados com seguran­
ça. Se Dt 32 já era conhecido, era uma orientação clara. Na renovação da
aliança de Js 24 (texto pelo que parece tardio), o chefe propõe uma escolha
não indiferente, mas comprometida, entre Yhwh e “os deuses aos quais
serviram vossos pais do outro lado do rio, ou os deuses dos amorreus, em
cujo país habitais”. Não alega que esses deuses sejam falsos, mas que o
Senhor foi libertador e exige entrega exclusiva. Seu Deus tinha-se revelado
como libertador de oprimidos, defensor da autêntica justiça; os deuses de
nações poderosas eles os experimentaram antes como injustos e opressores;
os deuses de Canaã são especialistas da vegetação, não das relações
humanas. A nós soa-nos isso como simplificação, mas parece enformar a
mentalidade israelita e nela influir; pelo menos nos intérpretes oficiais.
Nós lemos os salmos com nossos problemas, convicções e concepções. A
parte positiva, a experiência do Senhor como defensor do direito dos
oprimidos revela-se-nos relativamente fácil de compreender e assimilar
(ainda que às vezes descubramos preferências que nos soam como favori­
tismo). A referência tão viva a outras divindades é alheia ao nosso
horizonte. Crê realmente o autor do salmo que existiram outros deuses que
Exegese
1057
não eram imortais? Em que sentido diz quejulgavam e governavam até que
o Senhor tomou posse do governo supremo?
Inclinamo-nos a prescindir de Dt 32 e do presente salmo, como de peças
arqueológicas, monumentos de crenças primitivas hoje vazias de significa­
do. O que seria impor violentamente nosso horizonte e negar a palavra ao
salmo em seu sentido original. O que queremos é que o texto fale e dialogue
com nossos pressupostos e problemas. Buscando resposta que respeite a
palavra do salmo, proponho esta solução.
Os deuses dos pagãos não são simplesmente nulidades. São esforços
humanos, em parte acertados e em parte errôneos, para expressar a
experiência religiosa de muitos povos. Naturalmente, cada expressão está
condicionada pela experiência humana, social, histórica e cultural, de cada
povo. A experiência religiosa foi muitas vezes autêntica, ainda que não
fosse pura; o esforço de representação simbólica foi sincero e em parte
exitoso; mesclaram-se na expressão limitações e erros que viciaram em
grau diverso a representação. Enquanto representações simbólicas parti­
culares do divino, podemos dizer que correspondem de certa maneira à
realidade divina misteriosa, que dela participam refletindo-a, que se
manifesta através dela de algum modo o Deus verdadeiro. Assim como
empregamos nossa palavra “deus” para nos referirmos a nossa idéia (que
consideramos metafisicamente pura, ainda que analógica), assim também
podemos aceitar que se empregasse a palavra “deuses” para se referir a
essas representações impuras. Ora, a impureza e o erro misturados podem
crescer tanto que viciem totalmente determinada representação; então é
preciso descartá-la e buscar uma nova. Uma morre com seus criadores e
usuários, ocupando outra seu posto. E não é a pluralidade dado que vicia
na raiz qualquer representação da divindade? Isso não é tão fácil de
descobrir e assimilar; o salmo pode ativar o processo de depuração.
Propor a questão em termos de justiça, ou seja, afirmar que a conduta
injusta vicia radicalmente uma representação da divindade, é intuição
religiosa importantíssima. Não só pragmática, mas também metafísica.
Uma religião baseada estritamente no “do ut des” torna-se grave­
mente injusta; porque o que mais dá, mais recebe do deus, sem importar
como conseguiu e retém o que possui, de onde toma para dar. Como o pobre
pode dar menos, será menos favorecido pela divindade. O mesmo podemos
dizer do poder militar ou do talento. Um deus concebido nesses termos
revela-se parcial e subornável; muito depressa se converte em agente de
injustiça. Neste caso não cumpre mais com sua missão religiosa, vicia-a
inteiramente.
Raciocínio semelhante podemos fazer com os deuses intimidatórios.
Apelar sistematicamente ao terror é fazer injustiça ao homem. De mais a
Salmo 82
1058
mais, um deus intimidatório é facilmente manipulável por um grupo em
próprio proveito, converte-se em agente de injustiça.
Carta de Jeremias (= Baruc 6) 3-4. Durante este tempo vereis na Babi­
lônia, levados aos ombros, deuses de prata, ouro e madeira, que infundem
temor aos gentios. Cuidado! não vos assimileis aos estrangeiros, não vos
deixeis dominar pelo terror.
Dir-se-á que a precedente reflexão é alheia ao salmo. Também era
alheia a mim. Eu não teria chegado a essa compreensão se não tivesse
estabelecido diálogo com o salmo; não haveria avançado se tivesse descar­
tado o salmo como antiqualha superada. O salmo, posto em situação de
diálogo, chega a descobrir-me o mais profundo de sua visão.
6. Transposição cristã
Para uma leitura atual e cristã podemos tomar como modelos as duas
leituras já documentadas: divindades ou ídolos e autoridades humanas.
Começamos distinguindo entre deuses pessoais com suas imagens e a
qualidade de sacralidade que confere a consagração. A segunda é por
participação divina e pode residir na autoridade. Fazemos duas perguntas
correspondentes: Existem hoje ídolos que devam ser destronados e conde­
nados à morte? Há autoridades que abusam duma autoridade recebida de
Deus? Comecemos pela segunda.
— Em sentido próprio, a autoridade “divina” reside na Igreja e outras
organizações religiosas. Estão investidas de poder sacro somente para o
exercício de funções cultuais, ou são de algum modo guardas da justiça, ou
se dividiram e se repartiram as funções? Em qualquer caso, é válida uma
resposta negativa: se esses mandatários de Deus não favorecem a justiça,
mas antes apóiam a injustiça, sua investidura sacra não os torna impunes.
O povo oprimido pode reclamar ao Deus de todos ou a Jesus Cristo, senhor
de sua Igreja, para que a purifique. A história da Igreja e de instituições
semelhantes haverá de responder a essa pergunta.
— Em sentido amplo, podemos detectar sacralidade inclusive onde é
negada. Em nossa cultura, a autoridade civil é secular, não apela a
nenhuma investidura sacra. Mas, sob capa de secularidade, pode-se escon­
der o mecanismo correspondente. Se a autoridade considera-se à parte e
intocável, de alguma maneira está usurpando poderes sacros e divinos.
Ainda que o negue expressamente. O salmo conserva sua força profética
também para esses ministros da injustiça. De mais a mais, na concepção
bíblica, qualquer autoridade procede de Deus.
Transposição cristã
1059
— A segunda pergunta seria inútil: já não existem ídolos. É certo? Um
ídolo é obra humana, que o homem diviniza, à qual se submete e oferece
vítimas. Em certa época, os ídolos eram de manufatura: pedra ou madeira
os baratos, prata e ouro os caros. Ora, o homem é faber de outras maneiras.
Consideremos primeiro os ídolos secularizados: criações dos homens, que
as declaram supremas e intocáveis, às quais se exige submissão e oferecemse vítimas. Nesse sentido podem ser ídolos as ideologias, os valores
artificiais, os poderes acumulados. Exigem submissão praticamente incon­
dicional, embora não seja religiosa; ou então neutralizam e eliminam toda
rebelião possível. O ídolo é feito pelo homem; aquele que se submete
colabora com sua fabricação ou com sua conservação.
Há os benévolos, que prometem e oferecem; e há os intimidatórios. Têm
em comum que são obra do homem e escravizam o homem. Às vezes os
chamamos de mitos. Com freqüência recorrem à obscuridade, produzem
cortinas de fumaça. Não querem ser reconhecidos, confundem os valores,
turvam a lucidez crítica. Ameaçam os fundamentos da convivência por
serem ministros da injustiça. Alguns têm efeitos desastrosos na ecologia.
Devem ser destronados, fora e dentro. A invocação de Deus como único
senhor de todos os povos será libertadora.
—
Mais refinados e perigosos, mais difíceis de reconhecer são os ídolos
mentais. Em nossa vida religiosa necessitamos de representações: ima­
gens, símbolos, conceitos. São instrumentos para nos aproximarmos da
realidade de Deus, para falar dele e com ele, para viver em comunidade
religiosa com outros da mesma fé. Existe o perigo de divinizar essas
representações, que são obra humana, ainda que não das mãos. Salvo em
momentos excepcionais, não podemos exercer nossas funções religiosas e
de fé sem certo repertório de idéias e palavras sobre Deus.
Ora, as nossas idéias sobre Deus não são Deus, nem nossos símbolos
nem nossos conceitos nem nossos enunciados. O perigo de divinizá-los é
sutil, porque não podemos viver sem eles e facilmente tendemos a confiarnos a eles. Antigamente podiam se defender os idólatras alegando que não
adoravam a pedra, mas o que ela representava; persistia, porém, o perigo
de realmente se ficar na imagem.
Algo parecido pode ocorrer com nossas representações mentais. Se as
absolutizarmos, se as quisermos impor a força, se lhe sacrificarmos vítimas
humanas, estaremos caindo numa forma de idolatria. Se nos imaginarmos
um Deus que não se preocupa com a injustiça e só se concentra no culto, um
Deus conivente e subornável, essa idéia não será Deus nem de Deus; é ídolo.
Se fingirmos um Deus intimidatório, que estabelece um regime de terror,
estamos caindo em idolatria. E também se pensarmos que podemos ter
Deus encaixado numa série de afirmações; ou se tentarmos manipulá-lo.
1060
Salmo 82
O Deus semper maior é uma expressão profunda: sempre maior em
nós, superando o que sabemos sobre ele, tanto maior quanto mais próximo,
menos sabido quanto mais conhecido. O Senhor precisa levantar-se perio­
dicamente dentro de nós para julgar nossas imagens de Deus, para
condenar as que o desmereçam. Em certo sentido, é preciso morrer muitas
idéias nossas de Deus, para dar lugar a uma idéia cada vez mais verdadeira.
Com essa perspectiva se deveria ler e meditar a luta de Jacó em Gn 32, a
visão de Elias em lRs 19. A primeira carta de João termina de modo
inesperado:
5,20
21
Sabemos que o Filho de Deus veio
e nos deu inteligência para conhecer o Verdadeiro.
Estamos com o Verdadeiro e com seu Filho Jesus Cristo.
Ele é o Deus verdadeiro e vida eterna.
Filhinhos, guardai-vos dos ídolos.
Os cristãos podem fazer-se uma idéia falsa de Deus. Podem converter
Jesus em ídolo para o entusiasmo e a adoração, prescindindo de sua
exigência de amor, que engloba a justiça. Uma idéia falsa de Jesus Senhor
pode convertê-lo em instrumento de injustiça, de falta de amor. Os cristãos
devem ater-se ao Deus verdadeiro e guardar-se dos ídolos. E um conselho
permanente.
Salmo 83
1. Texto
2
3
4
5
6
7
8
9
O Deus, não fiques calado,
não fiques em silêncio e imóvel, ó Deus!
Olha que teus inimigos se agitam
e os que te odeiam levantam a cabeça.
Tramam planos contra teu povo
e conjuram contra teus protegidos.
Dizem: Vamos aniquilá-los como nação,
que o nome de Israel não mais se pronuncie.
Estão de acordo na conjura,
fazem liga contra ti:
beduínos, idumeus, ismaelitas,
moabitas e agarenos;
Biblos, Amon e Amalec,
filisteus e habitantes de Tiro;
também a Assíria aliou-se a eles,
prestaram reforços aos filhos de Ló.
10 Trata-os como a Madiã, como a Sísara,
como a Jabin junto da torrente Quison:
11 que foram aniquilados em Fuendor,
e serviram de esterco1
12 Trata seus príncipes como a Corvo e o Lobo,
e a seus capitães como Zebá e Salmaná,
13 que arengavam: Conquistemos
as várzeas de Deus.
14 Trata-os como flores do cardo,
lanugem diante do vendaval.2
15 Como fogo que pega na macega,
como chamas que abrasam os montes;
*de adubo a solo
2torvelinho
1062
Salmo 83
16 persegue-os assim com a tua tormenta,
desbarata-os com teu furacão.
17 Cobre-lhes o rosto de ignomínia,
para que te busquem por teu nome, Senhor.
18 Desconcertados e confundidos para sempre,
pereçam derrotados.
19 E reconheçam que teu nome é Senhor,
só tu és Soberano3 de toda a terra.
2. Bibliografia
U . Devescovi, I silenzi di Jahvé, RivBib 10 (1962) 226-239.
A. Malamat, The military history o f the land o f Israel in Biblical times,
Jerusalém, 1964, 110-123.
W . Wifall, The foreign nations: Israel’s nine bows, BulEgyptSem 3 (1981)
113-124.
B. Costacurta, L ’aggressione contro Dio: studio del Ps 83, Bib 64 (1983)
518-541.
3. Análise filológica
2. í: para o uso de ’l como volitivo negativo sem verbo, veja-se 2Sm
1,21 e GB 36 a.
3. yhmywn: com a terceira radical conservada GK 75 u, com nun
paragógico GK 47 a.
4. y ‘rymw swd: fazem planos astutos Ges Thes 1071.
çpwnyk: teus escondidos / protegidos; sanctos tuos Vg, arcanum Jerôn.
5. mgwy: comparem-se ISm 15,3 mmlk e ISm 15,26 mhyvut mlk.
6. mw‘çw Ibyhd : o subst interrompe o sintagma normal (SI 71,10; Is
45,21; Ne 6,7). Uns tomam lb como complemento direto; a maioria tomamno como modal: en homonoiai LXX, unanimiter Vg, corde Jerôn, no coração
Sir, de todo o coração Targ Ros Phil; segundo ~De\,yhd reforça o significado
recíproco do verbo e qualifica o substantivo. Alguns corrigem para lb ’hd
Duhm Olshausen Gun But.
8. Yshby: poderiam ser os chefes, como em Ex 15,14.
9. zrw‘\literalmente, braço.
11. dmn: explicam Eutímio e Genebrardo insepultosapodreeiamese
decompunham.
12. shytmw: imper + sufixo 3a masc pl GK a,g.
3Altíssimo sobre
Estudo global
1063
13. riwt: pl de nwh com substituição de alef por waw GB 491.
14. kglgl: utrotam VgTarg Genebrardo, torvelinho, remoinho Graetz.
15. tb‘r ... tlht: relativas assindéticas Joüon 158 a.
17. wybqshw: jussivo atrás de imperativo Joüon 116 d.
19. LXX e Vg unem Ibdk com a segunda parte, contra a indicação
hebraica; GK 143 explica o versículo como frase composta: shmk yhwh
Ibdk predicado, ’y wn aposição a ’th ou segundo predicado.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O texto é explícito: o salmo é uma súplica diante de ameaça bélica
gravíssima. Uma aliança de nações avança contra o povo escolhido, dispos­
ta a aniquilá-lo e apagar sua memória. Pela situação bélica, aparenta-se o
salmo com o díptico do SI 20-21, com o texto narrativo de Is 7, com a
composição artificial de 2Cr 20 que descreve uma coalizão de Moab, Edom
e Moab contra o rei Josafá.
Quanto à situação histórica, a primeira impressão é que poucos salmos
oferecem tantos dados para a identificação: dez nomes de povos ou nações,
recordações particulares do tempo dos juizes. Não menos significativos são
os silêncios: não se menciona Judá como reino autônomo, nem Jerusalém
ou Sião, nem o templo, nem a Babilônia ou o Egito.
E preciso levar em conta um dado sobre as campanhas bélicas antigas.
Ainda que às vezes houvesse alianças formais, como a de Damasco e Israel
contra Judá nos tempos de Isaías, a de Israel e Judá em lRs 22, etc., muitas
outras vezes o que atua é um exército de mercenários de diversos países,
que guerreiam por ofício ou por dever de vassalagem ou por esperança de
butim. Um exército multinacional tem algo de aliança militar.
Pois bem, o salmo é generoso em dados geográficos, oferece algumas
recordações históricas, mas não se deixa encaixar em conjuntura histórica
conhecida. Sempre resta o recurso de fazer da necessidade virtude e
declarar que o salmo refere-se a situação precisa que desconhecemos. A
alternativa é que o salmo seja uma composição ideal feita de retalhos reais,
na linha das escatologias.
b) Os povos do salmo
É possível e relativamente fácil descrever a trajetória histórica de cada
um, mas no salmo o importante é sua conjunção. Ainda que nada haja de
mais fácil que ampliar ou encurtar uma enumeração, o número dez do
1064
Salmo 83
salmo parece garantia de originalidade. O autor quis compor uma lista de
dez povos em ordem irregular. O lógico teria sido começar pelo ternário
clássico Amon-Moab-Edom ao oriente, seguir com os filisteus ao poente,
continuar com Biblos e Tiro ao norte, ir daí para Amalec no sul, e terminar
com a longínqua Assíria.
Nos livros proféticos é freqüente encontrar uma coleção de oráculos
contra uma série de povos pagãos. Sendo as coleções obra posterior, resultam
agrupações cronologicamente irreais. Contento-me com uma lista:
Is 13-23
Jr 25
Jr 46-52
Ez 25-32
Am 1-2
Sf 2
Babilônia?, Assíria, Filistéia, Moab-Amon-Edom, Damasco,
Cadar, Elam, Babilônia.
Egito, Huz, Filistéia, Edom-Moab-Amon, Tiro-Sídon, DedanTemá-Buz, Arábia, Zimri, Elam-Média, Norte, Babilônia.
Egito, Filistéia, Moab-Amon-Edom, Damasco, Cadar, Elam,
Babilônia.
Amon-Moab-Edom, Filistéia-Tiro-Sídon, Egito, Seir (Gog).
Damasco, Gaza, Tiro, Edom-Amon-Moab
Filistéia, Moab, Amon, Núbia, Assíria.
Sem dar nomes, Is 17,12-14 descreve a maré dos povos que avançam
contra Judá e seu fracasso repentino por um grito de Deus. Ezequiel inventa
uma coalizão capitaneada pelo misterioso Gog (38). Zc 12,3.6.9 e 14,1-3
menciona uma aliança contra Jerusalém. Pelo menos os dois últimos textos
têm caráter escatológico. Poder-se-ia ainda acrescentar a lista das conquis­
tas de Davi: Filistéia, Moab, Sobá, Damasco, Amalec, Edom-Moab-Amon.
O SI 83 parece-se com as séries de coleções proféticas, com elementos
próprios: o ternário clássico não vai unido, Biblos substitui Sídon, Amalec
figura só no salmo e na lista davídica; Assíria não capitaneia, mas reforça
“os filhos de Ló” (Moab e Amon). Acrescenta-se a isso o fato de distinguir
ismaelitas e agarenos: os agarenos como grupo diverso só se encontram em
lCr 5,10.19b.
As vitórias mencionadas, contra Madiã e contra Jabin, ainda supondo
que tenham base histórica, têm aura de lenda e são anteriores à monarquia;
o que parece intencionado. Ou porque não mais existe monarquia quando
se compõe o salmo, ou porque se quer apresentar como ideal a era dos juizes,
quando Deus ajudava de perto o seu povo.
Em conclusão, inclino-me a considerar o salmo como composição
artificial, utilizável em qualquer conjuntura bélica, e que mais tarde se leu
com projeção escatológica.
c) Composição
Embora o salmo discorra com certa fluidez nas transições, não é difícil
seguir seu movimento e apreciar sua articulação.
Exegese
1065
Após a petição inicial do v. 2, um ki de motivação introduz em três
versículos a aliança e seus projetos aniquiladores (3-5); um segundo ki
serve para introduzir a lista dos aliados; pausa. No v. 10 começa a
imprecação, que avança em três ondas: a primeira (10-13) recorda vitórias
do passado, pede sua renovação e alarga-se citando a arenga do inimigo;
com nova invocação a Deus entra a segunda, que é uma petição de teofania
destruidora (14-16); a terceira (17-19) invoca a derrota total do inimigo e
seu forçado reconhecimento do Senhor. O que nos oferece duas partes que
se correspondem, metidas dentro dum marco:
2
3-9
10-18
19
Cesse o silêncio
O inimigo e seus planos
Intervenção de Deus e derrota do inimigo
Exaltação do Senhor
Sobre o esquema destacam-se algumas correspondências interessan­
tes: 1) Perante a gigantesca coalizão, Deus age sozinho, usando como arma
a tormenta; é ele o alvo da hostilidade inimiga (3-4). O povonão tem que
lutar; suas armas são a imprecação englobadanasúplica. 2) Odrama
desenvolve-se em dois quadros com forte contraste. O inimigo no princípio:
após a agitação turbulenta, um planejamento concorde; o inimigo no final:
desconcerto, derrota e confusão. Reduz-se o drama a esses dois tempos:
grandes preparativos em sete verbos de ação, derrota ignominiosa em seis
verbos de paixão. No meio não há uma batalha com incidências. 3) Dois
“nomes” ocupam dois pólos: o nome de Israel, que deve ser cancelado para
sempre (5), e o nome de Deus, que haverão de reconhecer apesar de tudo.
Dir-se-ia que o salmo perpetua sete nomes de chefes inimigos (10.12), mas
são nomes para a imprecação, emblemas duradouros de fracasso.
Chama a atenção a acumulação de termos de comparação com a partí­
cula k- como: sete de personagens, quatro da natureza. Como se os eventos
evocados tivessem que seguir padrão previsto, ao passo que falham os pro­
jetos do inimigo.
Os nomes dos povos, salvo talvez Edom, não são explorados para as
habituais paranomásias.
5. Exegese
2.
Silêncio e inação de Deus: como em Is 62,6s; no saltério (28,1; 35,22
39,13; 109,1). O que o orante sente como inação de Deus, é calma serena
visto e dito por Deus (Is 18,4). Chama muito a atenção a fonética do
versículo inicial pela reiteração da seqüência alef lamed: íhym í dmy-lk í
thrsh w í tshqt í. Dois nomes divinos estão colocados no princípio e no fim
1066
Salmo 83
do versículo, abarcando a tríplice petição. A enumeração e as séries vão
dominar o estilo da oração.
3-4. Em perfeito paralelismo, Deus e seu povo, afirmando que os
inimigos do povo eleito são inimigos de Deus. Os quatro possessivos -ka, nos
quatro hemistíquios, sublinham-no sonoramente.
O verbo hmh significa o rumor ou estrondo duma multidão que se agita:
como o mar (Is 51,15) (Agélio nota a semelhança marinha); Jr 5,22; SI 46,4;
veja-se Is 17,12-14, notável pela onomatopéia. Levantar a cabeça é gesto de
superioridade, mais freqüente com o verbo rwm; com ns’ (Jó 10,15).
O verbo ‘rm inclui o aspecto de astúcia. Protegidos: guardados, escon­
didos, como que num refúgio (SI 27,5; 31,5.21). Pouco freqüente é hkhyd eliminar, aniquilar: no epílogo do Código da Aliança (Ex 23,23), contra
Jeroboão (lRs 13,34) e contra os pastores (Zc 11,8).
5. Não nomear (Jr 11,19); com o sinônimo zeker em vez de shem (Jó
18,17; Ecl 9,5; Dt 32,26). Outra fórmula parecida e freqüente é mhh shm apagar o nome, como castigo final: acaba-se a descendência e nenhum
sucessor perpetua o nome do povo; inclusive se apaga o nome do registro,
da memória (por exemplo, Ex 17,14; Dt 9,14; 25,29; 19,19; 2Rs 14,27).
6. Israel e seu Deus, como objeto de inimizade, fazem com que muitos
povos se ponham de acordo e façam uma aliança formal. No ódio compar­
tilhado põem-se de acordo.
7. A menção de ’hly parece designar aqui grupos beduínos.
9. Filhos de Ló: menção despectiva de amonitas e moabitas, descen­
dentes segundo a lenda da união incestuosa de Ló com suas filhas (Gn 19).
10. Os madianitas são os inimigos do tempo de Gedeão, pelo que a
menção de Madiã parece deslocada. A não ser que se anteponha com valor
programático, como pode sugerir Is 9,3. A recordação de Sísara e de Quison
está viva no relato em prosa e no poema de Jz 4 e 5.
11. Como esterco ou adubo: diz-se de Jezabel como epitáfio sarcástico
(2Rs 9,37); reitera a frase Jeremias (8,12; 9,21; 16,4; 25,33); último destino
ignominioso para um guerreiro. Escuta-se nesse versículo a paranomásia
do nome de Edom; mostrá-lo-ei assinalando os fonemas com maiúsculas
{nshMDw b‘y n Dwr hyw DMn l’DMh).
12. Quatro chefes madianitas mencionados no ciclo de Gedeão (Jz
7,25; 8,5-21).
13. Várzeas de Deus: ’Ihym pode equivaler a um superlativo, “várzeas
ubérrimas”. Literalmente, indica o desafio dos invasores, que cobiçam e ousam
querer invadir as “várzeas de Deus”, de sua propriedade. Muitos antigos
interpretaram n’wt como santuário Vg; Plácido de Parma terra prometida.
14-16. Para situar esses versículos, é preciso levar em conta alguns
dados.
Transposição cristã
1067
— A imprecação ou conjuro considera-se muitas vezes como arma eficaz
contra um inimigo mais poderoso, como o mostra a história de Balaão:
Nm 22,5 Saiu do Egito um povo que cobre a superfície da terra e
estabeleceu-se diante de nós. 6 Vem, por favor, maldizer esse povo, que me
excede em número, para ver se consigo derrotá-lo e expulsá-lo da regiáo.
—
O povo invoca a intervenção de Deus numa teofania que aplique a
lei do talião, uma vez que está em jogo a existência do povo de Deus.
Comparando esses versículos com o SI 21, podem-se apreciar os traços
convencionais do gênero.
14. As comparações são correntes (por exemplo, Is 17,13; 40,24).
15-16. A comparação descreve de forma concentrada o propagar-se
dum incêndio na macega ou mata cerrada dos montes; assim há de atuar
a tormenta de Deus, perseguindo e desbaratando como um incêndio. Por
costume inveterado, o fogo evoca também a ira de Deus. Escute-se também
nesses versículos a fonética elaborada.
17-19. Em cinco termos acumulam-se a vertente objetiva da derrota e
a vertende subjetiva da vergonha e confusão pelo fracasso; dados que
podemos sintetizar na fórmula: “uma derrota ignominiosa”.
Buscar o nome é expressão estranha. Busca-se o Senhor ou seu rosto,
como sinal de fidelidade. Creio que o versículo deve-se entender à luz do SI
18,42: “gritavam ao Senhor, e ninguém respondia”. No desconcerto e
desespero da derrota, chegam a implorar o inimigo vencedor.
19. Reconhecendo, ainda que com desgosto, a soberania de Yhwh sobre
todo o mundo. “E reconheçam” é fórmula favorita de Ezequiel. Em princípio,
o reconhecimento pode ser voluntário e alegre ou forçado e doloroso. Sb 12,17
assim o diz:
Perante aquele que não crê na perfeição de teu poder
desdobras tua força,
e àqueles que a reconhecem
os deixas convictos de seu atrevimento.
Pode-se ler um exemplo significativo no relato enfático da morte de
Antíoco IV, segundo 2Mc 9.
6. Transposição cristã
Para transitar com esse salmo do Antigo ao Novo Testamento temos
uma ponte que se apóia por um lado em textos eseatológieos de assalto e
derrota, por outro em textos bélicos do Apocalipse. Do AT vem a propósito
sobretudo Ez 38-39 e o final de Zacarias:
1068
Salmo 83
Ez 38 descreve a aliança: “tropas inumeráveis te seguem”, o avanço do
exército “como borrasca, como nuvem ameaçadora de tempestade”, os planos
de invasão e saque: “invadirei um país aberto e atacarei gente pacífica... para
entrar saqueando e alçar-me com butim”; mas o Senhor manifestar-se-á na
tormenta de “água, granizo, fogo e enxofre”, demonstrando “sua grandeza e
santidade”. Todo o exército será derrotado: “nos montes de Israel caireis”, e
seus cadáveres serão pasto das feras. E as nações “saberão que eu sou o
Senhor”.
Zacarias é muito mais preciso. O Apocalipse espraia-se em visões
fantásticas de batalhas e pragas até a derrota final da emblemática
Babilônia e do Dragão:
16,14 São os espíritos de demônios que fazem sinais e se dirigem aos reis
do mundo e os reúnem para a batalha do grande dia do Deus Todo-poderoso.
8,7
Houve granizo e fogo misturado com sangue.
10,13
Os restantes ficaram aterrorizados e confessaram a glória do Deus
do céu.
É em chave a história dramática da Igreja de Cristo: atacada por
nações hostis, por regimes anticristãos, invadida por sistemas contrários.
Não faltam os perseguidores dispostos a aniquilar o nome cristão, o nome
de Cristo na terra, e apoderar-se de suas riquezas materiais e espirituais.
A perseguição pode ter muitas caras (como os nomes dos dez povos); e,
embora “o poder da Morte não prevalecerá contra ela”, em algumas regiões
pode correr risco sua própria existência. Lido em chave simbólica, o salmo
conserva seu valor como expressão dramática e angustiada duma Igreja
sob ameaça.
Mas é preciso endireitar seu objetivo. E justo pedir a Deus o fracasso
de regimes criminosos, agressivos e aniquiladores, o fracasso de planos e
sistemas de valores que vão contra o desígnio de Deus. Mas, quando nos
encaramos com as pessoas, damos sentido positivo ao verbo “reconhecer”:
pedimos a Deus mudança de mentalidade dos perseguidores, de modo que
reconheçam a Jesus Cristo, ou pelo menos seus valores autênticos. Nas
palavras de Jo 8,28:
Quando levantardes este Homem, compreendereis que eu sou e que não
faço nada por minha conta, mas que falo como meu Pai me ensinou.
E segundo o final do hino de F12: “e toda língua confesse, para a glória
de Deus Pai: Jesus Cristo é Senhor!”.
Salmo 84
1. Texto
2
3
4
5
6
7
8
Que delícia é tua morada,
Senhor dos Exércitos!
Meu alento1consome-se anelando
pelos átrios do Senhor;
meu coração e minha carne exultam
pelo Deus vivo.
Até o pardal encontrou uma casa,
e a andorinha um ninho
onde colocar seus filhotes:
teus altares, Senhor dos Exércitos,
Rei meu e Deus meu.
Felizes os que habitam em tua casa
louvando-te sempre.
Feliz o que tira de ti forçai
quando projeta sua peregrinação.
Atravessando o Vale da Amoreira,3
transformam-no em manancial,
e a chuva cobre-o de alvercas.
Caminham de baluarte em baluarte,
e o Deus dos deuses se lhes mostra em Sião.
9
Senhor Deus dos Exércitos,
escuta minha súplica;
atende-me, Deus de Jacó.
10 Vê, ó Deus, o nosso Escudo,
olha o rosto do teu Ungido.
11 Pois vale mais um dia em teus átrios
que mil em minha estância 4
1minha alma
2encontram em ti sua força
3vale do choro
4morada
1070
Salmo 84
ou pisar o umbral da casa de Deus
que morar na tenda do malvado.
12 Porque Yahweh é sol e escudo,
Deus concede favor e glória;
o Senhor não nega seus bens
aos de conduta irrepreensível.
13 Senhor dos Exércitos, feliz
o homem que confia em ti!
2. Bibliografia
A. Cayuela, El salmo de los consagrados a Dios (Sal 8 3 /8 4 ), Barcelona,
1947.
E. Baumann, Struktur-Untersuchung im Psalter, ZA W 62 (1950) 132-136.
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L. Kunz, Die Gestalt des 84. Psalms, TheolGl 45 (1955) 22-34.
G. M. Behler, Les aimables demeures du Seigneur. Ps 84, VieSp 98 (1958) 484508.
L. Grollenberg, Ps 84,11, VT 9 (1959) 311-312.
E. Lipinski, Le psaume de Fête-Dieu (Ps 84), AsSeign 54 (1966) 16-26.
M. J. Mulder, Hum bertDuijfhuis (1531-1581) etVexégèsedu Ps 84,4, OTS
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G. R. Driver, Things old and new in the OT: Ps 84,6-8; 118,27, MélUniv
St Joseph (Beirut) 45 (1969) 463-478.
Water in the mountains, PEQ 102 (1970) 83-91.
R. von Ungern-Sternberg, Das Wohnen im Hause Gottes. Eine termi­
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A. Robinson, Three suggested interpretations inPs 84, VT 24 (1974) 378-381.
G. Rinaldi, II verbo ’th, BibOr 16 (1974) 107-108.
T. K. Thordarson, The mythic dimension. Hermeneutical remark on the
language o f the Psalter, VT 24 (1974) 212-220.
S. J. P. K. Riekert, Die sin van die erediens: ‘n eksegetiese en openbaringshistoriese studie van Ps 84, NedGerTT 18 (1977) 186-198.
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Y. Freund, I would rather stand at the threshold o f God’s house than dwell
in the tents o f the wicked. Ps 84,11, BetMik 112-115 (1987-88) 147-155.
3. Análise filológica
4. ‘shr: sem menção do pronome para o lugar Zor 87-88.
6. ‘wz: força ou refúgio Siegfried-Stade 497, DBHE 2' l.abc.
mslwt: calçadas; LXX e Vg anabaseis e ascensiones subs do verbo
Estudo global
1071
clássico de subida = peregrinação a Jerusalém; muitos autores antigos o
interpretam em sentido espiritual, apoiando-se em blbbm.
blbbm: o sufixo recolhe o ’dm como coletivo.
7. bry b-: part constructo seguido de prep GK 130 a, Joüon 129 m.
hbk’: topónimo 2Sm 5,23s; talvez uma planta, amoreira os autores
modernos; os antigos reduziram-no à raiz bkh e traduziram pranto LXX Vg
Sir Aq Sím Jerôn; Targ amplia o vale da geena chorando.
brkwt: bênçãos; traduz reservatórios mudando a segunda vogal Duhm,
sem mudá-la Dah.
mwrh: chuva Aq Flamínio cf. J1 2,23; legislador LXX Vg Sím, doutor
Jerôn, os mestres como sujeito Lutero.
8. mhyl í hyl: das forças físicas Ros Hitzig Duhm Del Gun; muros da
cidade Baethgen; DBHE hyl lbc.
yr’h ’l íhym: lendo ’el como sujeito do verbo passivo LXX Vg; lendo í
como preposição e os peregrinos como sujeito coletivo do verbo passivo Del
segundo a construção de Lv 13,19 e lRs 18,ls, Jerônparebunt apud Deum\
Ros tenta uma conciliação: “será visto, ou seja, até que se apresente diante
de Deus para ser visto cada um dos peregrinos”.
10. mgnny: provavelmente vocativo LXX Vg Jerôn Ros Hitzig Del;
acusativo ou complemento de r’h Ibn Ezra Phil Duhm Gun But Rav.
11. bhrty: unido ao verbo seguinte LXX Vg Jerôn Marini Ros Hitzig Del
Cast Rav; corrigem, unindo-o a míp: por bhws Duhm Bickell But, por hdr
- habitação Gun.
hstwpp: denominativo de sap = umbral, cf. os porteiros do templo
segundo lCr 9,17-19; Jr 52,24; Rasi pensa na sentinela; LXKpararripteithai,
Vg abiectus, Teodor arrojado ao umbral.
dwr: habitar, residir cf. Eclo 50,26.
12.0 TM divide depois de íhym e depois de yhwh.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Se nos ativermos aos dados formais, esse salmo é um mostruário. Há
frases de hino nos versículos 2 e 12; há três bem-aventuranças (ou
macarismos) em 5.6.13; em 12, algumas pegadas duma liturgia de entrada;
lê-se um provérbio do tipo “mais vale” em 11. Por outro lado, o salmo definese como tplh = súplica, e efetivamente contém três imperativos dirigidos a
Deus em 9.10.
1072
Salmo 84
Se nos fixarmos no conteúdo, o salmo canta o templo de Sião com os SI
46, 48, 63 e 87 (e 27,4-6). Podemos concretizar: canta a Sião num cântico de
peregrinação, como o SI 122.
Mas não basta catalogar, que não nos escape a intensidade lírica do
poema, pela qual se aparenta com 42-43. Escutemos a exclamação inicial
repentina, a expressão de estado de ânimo no v. 3, a projeção sentimental
na ave (v. 4), os títulos personalizados de Deus em 4c, a escolha gozosa de
11. São efusões que não se deixam classificar.
De que festa se trata? Considerando a referência provável às chuvas
de outono no v. 7b, alguns pensam na festa das tendas. Objeta-se que essa
festa “dura sete dias” (Lv 23,39); mas não importa, porque a menção de “um
dia” é proverbial, para o contraste um / mil. Também não se pode excluir
uma peregrinação pessoal, por devoção, à margem das festas oficiais do
calendário. O salmo está dominado pela primeira pessoa singular; quando
passa ao plural, é referindo-se a um grupo numa bem-aventurança, ou
pronunciando um título divino (v. 10), ou generalizando uma conduta (v.
12b). Compare-se esse salmo com o plural do SI 122 ou a recordação de uma
multidão no SI 42,5. Pelo aspecto pessoal, o presente salmo está mais
próximo do 63, sem alcançar o mesmo grau de corporeidade.
Ora, o salmo é disponível para qualquer peregrinação. No caso de festa
oficial e coletiva, é mais importante não cair em ritualismo ou na rotina
dum gozo exterior. Enquanto o SI 122 fala do “costume” ou lei de Israel, o
presente é de todo espontâneo. O orante sente-se movido por um gozo inte­
rior, não por imposições ou condicionamentos externos: como uma andori­
nha?
b) A peregrinação
O SI 122 começa com dois tempos precisos: o anúncio na aldeia e a
chegada à capital, saltando toda a viagem. O salmo presente situa-se num
tempo psicológico que pode abarcar vários momentos, fundindo-os numa
simultaneidade lírica. A ânsia e o anelo correspondem à distância, a visão
dos pássaros aninhados sugere a presença; em rigoroso paralelo encontram-se os “moradores” estáveis do templo e os “peregrinos”. A súplica pelo
“Ungido” parece mais própria do templo (vejam-se SI 61 e 63: templo e rei);
a menção de “um dia” pode ser experiência atual, antecipação ou recorda­
ção. Inclusive os traços mais realistas, como o pássaro ou as fontes, entram
no poema por ato generalizante. E o fator psicológico que unifica
vigorosamente o salmo. Em termos literários, chamamo-lo de fator lírico,
em termos religiosos, de fator espiritual. Contudo, para clareza de exposi­
ção, vamos distinguir.
Estudo global
1073
— A peregrinação física concentra-se nos versículos 7-8 e articula-se
em três momentos: atravessar um vale transformado pela chuva, passar de
baluarte em baluarte, comparecer diante de Deus em Sião. Se nisso nos
fixarmos sem prescindirmos do contexto, veremos que não são indicações
objetivas de paisagem, mas que neles se projeta uma paisagem interior, em
parte pela ambivalência das expressões (veja-se Exegese).
— A peregrinação espiritual é a substância do poema. Se a polaridade
e tensão se definem no SI 42-43 em termos de ausência/presença, no presente
salmo são distância / presença. Se fisicamente podem coincidir distância e
ausência, psicologicamente não são o mesmo. Com o ausente não contamos,
com o distante sim. O orante põe-se a caminho: “em seu coração” decidiu
peregrinar (v. 6), e a mente já se enche do anseio de chegar, de gozo pela
certeza e proximidade. O orante do SI 42-43 deseja e pede para voltar ao
templo, mas não está seguro do fato e não sabe quando o conseguirá; nosso
peregrino está seguro da viagem, sabe a hora, pode antecipar o termo.
A oração não começa com um enunciado, mas com uma exclamação
(como SI 8,2; 133,1), felicita (5.6), emite um juízo de valor (11). As ânsias (3)
são a impaciência de quem empreende uma viagem para encontrar uma
pessoa querida. A pessoa querida é aqui Deus em pessoa, que vai se revelar
luminoso e protetor (8.12). O encontro será breve, mas tão intenso e gozoso
que compensará longos períodos neutros e os possíveis incômodos da
viagem. Com diferentes nomes e pelo possessivo “teu”, Deus faz-se sentir
vizinho ao longo de todo o salmo.
Os que “habitam” no templo podem dedicar-se ao louvor, o que é uma
felicidade; mas talvez os peregrinos vivam com mais intensidade a breve
visita a seu Deus. Inclusive a viagem revela alegres surpresas.
— A peregrinação ética enuncia-se no final: os que caminham =
procedem honradamente, recebem de Deus favor, honra e bem-estar (12).
A viagem física não fica em mero ritualismo nem em doce experiência
íntima, mas compromete a conduta posterior do peregrino. (Daí a interpre­
tação que fazem alguns do v. 12 como citação duma liturgia de entrada).
A experiência de união com Deus deve desembocar numa conduta
honrada. E como se, no final, o caminho de volta estivesse definido pela
experiência do templo. Como se o final fosse uma bênção acompanhada de
admoestação.
c) Composição
Atribuo valor estrutural à repetição de Yhwh çb,wt: em 2 e 4c delimita
a primeira parte do poema; em 9 e 13 delimita a última secção, de modo que
9 abra a súplica e 13 sirva de remate a todo o poema. Entre as duas secções
1074
Salmo 84
assim delimitadas encaixam-se as duas bem-aventuranças (5-8). Certo
peso adquire a repetição de hlk em 8 e 12, indicando a coordenação da
peregrinação física com a ética. A repetição de “átrios” em 3 e 11 estende
uma ponte entre as ânsias da ausência e a densidade da presença. A
repetição de “casa” em 4 e 11 volta a ligar mentalmente o orante ao pássaro.
As duas imagens do poema, pássaros e fontes, não parecem ter função
estrutural; comentá-las-ei em seu lugar.
O poema desenvolve-se suave e rapidamente numa sucessão de peças
diversas:
2-4
ânsias do peregrino, imagem da ave
5
primeira bem-aventurança: habitantes
6-8
segunda bem-aventurança: peregrinos
9-10 petição pelo Ungido
11
kl juízo comparativo de valor
12
ki conduta do Senhor e do homem
13
recapitulação.
5. Exegese
2 .0
predicado “quão amáveis” precisa ser escutado com sua etimologia
de amor funcionando. Isaías usa o termo em seu canto de amor (Is 5,1),
Jeremias na acusação contra a esposa infiel (Jr 11,15);lê-se no título dum
epitalâmio ou cântico de bodas (SI 45,1); é título de Benjamim na bênção
emblemática de Dt 33,12; aplica-se à comunidade (SI 60,7) e a um indivíduo
(SI 127,5). A raiz acha-se também presente no nome de Davi e no apelativo
carinhoso que, por ordem do Senhor, o profeta Natã dá ao menino Salomão.
Essa carga amorosa e histórica pode ressoar no começo do salmo, dado que Davi
e Salomão são promotor e artífice do templo. Não menos importante, ainda que
com outro termo, é o que revela o drama de Ezequiel: a morte repentina da
esposa anuncia simbolicamente a destruição do templo, amor do povo:
24,16 Vou arrebatar-te repentinamente
o Encanto de teus olhos.
21
Vou profanar meu santuário,
vosso soberbo baluarte,
o encanto de vossos olhos,
o tesouro de vossas almas.
Resumindo diríamos: o orante está enamorado do templo.
3.
O verbo raro nksp significa anelo ou nostalgia em Gn 31,30 e Jó
14,15. klth é raro com npsh como sujeito (SI 119,81). Compare-se com SI
63,2 e 73,26. Se encarregássemos a São João da Cruz, talvez traduzisse:
Exegese
1075
“com ânsias em amores inflamada”. A ânsia do orante é total: alma = alento,
coração = mente, carne = corpo.
4.
A imagem da ave soa como que projeção sentimental do poeta, como
a cerva do SI 42,2. O poeta detém-se com prazer no duplo sentido de byt =
casa: a ave “pôs casa” para sua família de filhotes na casa de Deus, junto ao
altar; hóspede acolhido na generosa hospitalidade de Deus. Quem lhe dera
fosse como ela! Com que liberdade e rapidez se desloca pelo ar até sua
morada, sem ter que caminhar fadigosamente: quem lhe dera fosse como
ela! No SI 11,1 recomendam ao orante que fuja ao monte como um pássaro;
no SI 55,7, em plena anarquia, suspira o orante: “Quem me dera asas de
pomba para voar e pousar-me!”. Pôr o ninho é metáfora de assentar-se,
estabelecer-se (Nm 24,21; Ab 4; Hab 2,9).
Neste versículo termina o ternário de plurais: tuas moradas, os átrios
de Yhwh, teus altares.
5-6. A duplicação paralela de bem-aventuranças convida-nos a compa­
rar ambas as categorias: moradores / transeuntes. Quem leva a melhor
parte? O SI 65,5 parece preferir os que habitam permanentemente nas
dependências do templo: “Feliz o que escolhes e aproximas para viver em
teus átrios”; 91,1 dirige-se a alguém “que habita ao amparo do Altíssimo”.
Viver no templo é viver junto do Senhor que disse: “Esta é minha mansão
para sempre: aqui viverei porque a quero” (SI 132,14).
No entanto, o orante equipara as duas bem-aventuranças e ainda
dedica mais espaço à segunda. Contanto que parta da relação confiante com
Deus.
6-8. Com mediana probabilidade podemos distinguir uma decisão
prévia e três etapas de peregrinação. Mantendo a leitura hebraica, aparece
o peregrino pensando e decidindo “caminhos” cômodos, rotas de terra
apisoada que facilitam a viagem, o melhor em comunicações da época. Se
bem que seja palavra preferida do Segundo Isaías e textos posteriores (Is
40,3; 49,11; 11,16; 62,10; 19,23), o paralelo mais pertinente lemos na
grande composição de Jr 31,1-22, quando convida a “donzela de Israel” a
voltar: “Olha bem o caminho cômodo” (sty Ibk Imslh: afim ao SI 84).
—
Primeira etapa: pelo vale. Suspeito que o autor tenha querido
explorar o duplo sentido ou as assonâncias das várias palavras, segundo
costume hebraico comprovado numa multidão de casos. Indicá-lo-ei grafi­
camente:
Atravessando o vale de Baká / da Amoreira / do pranto
transformam-no em manancial / bebem de seu manancial
a chuva de outono / o Mestre
veste-o de reservatórios / o cobre de bênçãos
(recorde-se o jogo de Os 2,17: ‘kr / ‘qr e tiqwa miqwe (Profetas, II, 878).
1076
Salmo 84
A transformação do caminho de volta à pátria é tema favorito do Segundo
Isaías (por exemplo, 35,6s; 41,18):
Descobrirei rios em cumes pelados,
no meio do fundo dos vales mananciais;
transformarei o deserto em lago
e o ermo em fontes de água.
Alguns comentadores sustentam que as árvores (bk’y m) são próprias
de zonas áridas.
— A segunda etapa pode-se tomar em sentido material: de baluarte em
baluarte. A idéia é de praças fortes que balizam o caminho oferecendo
proteção no fim de cada jornada. Outra interpretação mais subjetiva,
imagina o paradoxo de forças que não se esgotam ao caminhar, antes vão
se renovando à medida que se aproxima o peregrino do templo. A idéia é
semelhante à de Is 40,31:
Os que esperam no Senhor renovam suas forças:
lançam asas de águias,
correm sem cansar-se, marcham sem fatigar-se.
Uma terceira interpretação identifica os baluartes com fortificações de
Jerusalém, segundo o SI 48,4: “olha nos seus baluartes, contando seus
torreões”. Nessa interpretação, a segunda etapa chega às portas da cidade,
como no SI 122,2.
—
A terceira etapa acontece já dentro do templo. A ambivalência do
texto surge da vocalização: Deus deixa-se ver / eles apresentam-se a Deus.
No capítulo antes citado de Jeremias, “o Senhor aparece de longe” aos
peregrinos (31,3); na marcha dos peregrinos (Is 35,2), “eles verão a Glória
do Senhor”; em Is 40,4 “vê-o todo mortal”; com outro verbo diz o SI 63,3:
“como te contemplava no santuário vendo tua força e tua glória”. Todos
esses textos supõem que o homem vê a Deus ou sua glória. E possível que
a vocalização atual do TM tenha nascido dum escrúpulo, de pensar que o
homem não pode ver a Deus. Ora, como no templo não há imagens da
divindade, a visão tem que ser espiritual, uma experiência interior (cf. Ex
23,15; Dt 16,16; ISm 1,22).
9-10. Oração pelo Ungido ou aduzindo o Ungido. A presunção é que se
refira ao rei, como se lê nos relatos de Saul e Davi e em vários salmos. Numa
leitura ou composição pós-exílica seria o sumo sacerdote (ainda que não
tenha o título em Zacarias). Numa leitura tardia pode identificar-se com o
Messias escatológico, segundo Dn 9,25.
Se lermos “escudo” como vocativo, trata-se de título conhecido de Deus:
“ó Deus, nosso escudo” (com suf singular: SI 3,4; 18,3; 28,7; plural: 33,20;
59,12). Mas “nosso escudo” pode ser acusativo, paralelo e título de Ungido:
Transposição cristã
compare-se com Lm 4,20: “nosso alento, a sua sombra
1077
Vimos (Análise
filológica) que é normal rezar pelo rei no templo.
11. A comparação um / mil é convencional e serve para encarecer
enfaticamente (por exemplo, Dt 32,20; Js 23,10; Is 30,17; SI 90,4; Ecl 7,28).
O verbo hstwpp, denominativo de sap = umbral, é caso único; como se
no português disséssemos “umbralear”. Poderia aludir às sentinelas men­
cionadas em 2Rs 12,10; 22,4. “Tendas malvadas”: pode-se tratar de mora­
das suntuosas, fruto de injustiça, como as supostas em Am 6,4 e Mq 6,10:
“a casa do malvado com seus tesouros injustos”, ou o palácio de Jr 22,14s.
O sentido eqüivale a: prefiro um cargo, ainda que seja na entrada do templo,
às comodidades que procura a injustiça.
12. Ainda que o título de Sol aplicado a Deus só se leia aqui, atributos
solares não são tão raros no AT. Vejam-se Dt 33,2; Is 60 e 62, o estribilho
do SI 57. O título de escudo é comum no saltério (LXX e Vg tem que ter tido
diante outro texto, pois traduzem: “porque Deus ama a misericórdia e a
verdade”). Os dois títulos do hebraico, combinados, oferecem-nos uma visão
sugestiva: a luminosidade gloriosa do Senhor, sua proteção firme. A essa luz
o homem pode caminhar “honradamente”, nessa proteção pode “confiar”.
13. Recapitulação: Yhwh çb’ wt de 2.4.9, feliz o homem de 6, confiança
resume o conteúdo de vários versículos, é sinônimo de 6a: “tem em ti sua
força”.
6. Transposição cristã
— Primeiro em chave cristológica presente. O salmo canta o amor e a
nostalgia pelo templo, onde Deus se mostra: “pois eu vos digo que aqui há
algo mais importante que o templo” (Mt 12,6). Adiantando sua glorificação,
Jesus deu a ver seu rosto “resplandescente como o sol” (Mt 17,2). Jesus é o
novo, o verdadeiro templo, porque nele Deus está presente e se manifesta:
“quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). E assim ele é nossa morada, e nós a sua
(Jo 6,56; 15,4).
— Em chave eclesiológicapresente-, o templo é a Igreja:
E f 2,21 Por influência sua, toda a construção fica travada e cresce até
converter-se em templo santo do Senhor; 22 e pela mesma influência, ides
entrando na construção, para ser morada espiritual de Deus.
Por isso são felizes os que habitam na Igreja e nela louvam a Deus
(Eusébio). Habitam ou são peregrinos?
— Em chave cristológica do Senhor glorificado. A transfiguração foi
uma antecipação. Descreve-o agora o Apocalipse no céu (1,16): “seu sem­
blante resplandecia como o sol em plena força”. E o novo templo reedificado:
1078
Salmo 84
Jo 2,19 Destruí este templo, e em três dias o levantarei.
21 M as o templo de que ele falava era seu corpo.
Por isso a cidade celeste não precisa separar um recinto para o templo:
Ap 21,22 Templo não vi nenhum: seu templo é o Senhor Deus, soberano
de tudo, e o Cordeiro. 23 A cidade não precisa de sol nem de lua que a
iluminam, a glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro.
“Como os que vêem a luz estão na luz, os que vêem a Deus estão em Deus.
O esplendor de Deus lhes dá vida” (Ireneu, Adv. haer., 4.20.5).
— Em chave eclesiológica futura. A morada pela qual suspiramos está
no céu, pois “aqui não temos cidade permanente, andamos em busca da
futura” (Hb 13,14). Habitar na Igreja é peregrinar rumo à pátria:
2Cor 5,1 Se nosso albergue terreno, essa tenda de campanha, desmorona,
temos um edifício que vem de Deus, um albergue eterno no céu... 6... embora
saibamos que, enquanto for o nosso corpo nosso domicílio, estaremos dester­
rados do Senhor.
Desterrados e peregrinos neste vale de lágrimas, mas vale regado pelo
manancial que mana do lado de Cristo que o cobre de mananciais e
reservatórios e fontes de água viva. Nossa “força” pelo caminho vem dele:
feliz quem confia nele. Nossa oração pelo caminho: que Deus contemple o
rosto de seu Ungido.
Santo Agostinho escreveu um grande comentário a esse salmo. Tomo
dele alguns parágrafos:
“Como objeto de seu desejo só lhes resta Deus. Não amam mais a terra,
pois amam quem fez céu e terra. Am am e ainda não estão com ele. Seu desejo
prolonga-se para crescer, cresce para dar espaço. Pois não é pouco o que há
de dar Deus ao que deseja, nem é pouco o que há de esforçar-se para dar
espaço a tão grande bem. Deus não vai dar algo do que fez, mas a si mesmo,
que fez tudo. Para dar espaço a Deus, esforça-te; o que hás de possuir para
sempre, deseja-o por muito tempo.
Não nos cansaremos de louvar a Deus. Se te falta o amor, falta-te o louvor;
mas se o amor é perpétuo, porque será perpétua aquela formosura inesgotá­
vel, não temas: pois poderás louvar para sempre ao que sempre poderás
amar.
Milhares de dias desejam os homens e querem viver aqui muito tempo.
Desdenhem os milhares de dias e desejem o dia único, que não tem aurora
nem ocaso; dia único, dia eterno, ao qual o ontem não dá lugar nem o amanhã
apressa. Nosso desejo seja esse dia único”.
Salmo 85
1. Texto
2
Senhor, foste bom para com tua terra,
mudaste a sorte de Jacó;
3 perdoaste a culpa de teu povo,
cobriste todos os seus pecados.
4 Reprimiste tua cólera,
te refreaste de tua ira acesa.
5 Restaura-nos, Deus salvador nosso,
acalma teu enfado conosco.
6 Ficarás sempre indignado conosco
ou prolongarás tua ira de idade em idade?
7 Não nos devolverás a vida,
para que teu povo te festeje?1
8 Demonstra-nos, Senhor, tua lealdade
e dá-nos tua salvação.
9
Escutarei o que diz Deus:
o Senhor propõe2 a paz
a seu povo, a seus leais.
aos que recobram a esperança.
10 Já se aproxima sua salvação dos seus fiéis,
para que a Glória habite em nossa terra.
11 Lealdade e Fidelidade se encontram,
Justiça e paz se beijam;
12 Fidelidade brota da terra,
Justiça assoma do céu.
13 Pois o Senhor dará a prosperidade3,
e nossa terra dará sua colheita.
1e assim teu povo te festej arará?
2 anuncia
3 os bens
1080
Salmo 85
14 Justiça caminhará diante dele
encaminhando seus passos4.
2. Bibliografia
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Propheten, Giessen, 1925.
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Salterio, Roma, 1953, 133-135.
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Parallelen, Bib 38 (1977) 130-150.
E. Beauchamp, L ’heure d ’une réconciliationn totale et universelle (Ps 85),
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W . L. Holladay, The root sûbh in the OT, Leiden, 1958, 110-114.
E.
Lipinski, Le psaume du 3e dimanche de l’A vent (Ps 85). Le salut est
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M. Dahood, Ps 85,14, Bib 60 (1969) 350.
P. Gordan, Gerechtigkeit und Frieden haben sich geküsst. Ps 85,11,
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C. Trautmann, La citation du Ps 85,11-12 et ses commentaires dans la
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D. McCarthy, Ps 85 and the meaning of peace, W ay 22 (1982) 3-9.
J. S. Kselman, A note on Ps 85,9-10, CBQ 46 (1983) 23-27.
3. Análise filológica
2. shbt shbwt: mudaste a sorte: sintagma fixo, freqüente sobretudo
em Jr (com variantes oito vezes na secção 29-33); no saltério (14,7; 53,7, e
126,1 corrigido); no sintagma, shwb tem valor transitivo tanto em hifil
como em qal. Os antigos derivaram o subst de shbh: aikhmalosian LXX,
captivitatem Vg Marini Ros Del. Os modernos derivam-no de shwb (como
parece sugerir o ketib) GB 901, Duhm Gun.
3. ht’tm: lêem plural LXX Sím Teod Vg Jerôn; sufixo pl ad sensum.
4. hshybwt: hif com valor intranstivo, não é preciso corrigi-lo; BHap
sugere acrescentar um -m de sufixo, omitido pela haplografia.
5. shwbnw: como no v. 2 qal com valor transitivo e sufixo acusativo
LXX Jerôn Vg Marini Del Gun; intransitivo com sufixo dativo Targ Ros;
acus de direção But.
whpr: imper hif de prr.
4 retidão seguirá teus passos
Estudo global
1081
7. tshwb thynw: para a construção GK 120 g. h.
8. wysh‘k: com segol GK 93 k.
9. yhwh : segundo TM unido a h’l.
w ’lyshwbw Ikslh: cláusula final ut non convertantur ad stultitiam Jerôn
Marini Ros Hitzig Del. Muitos vocalizam ’el / ’elê preposição; conservando
ksl com o significado de confiança; Dah os que de novo confiam nele, os que
retornam a sua confiança, Gun fal kslh complemento de dbr e paralelo de
shlwm aos que se convertem a ele [fala-lhes de] esperança. Lendo libbam
loh em vez de Ikslh LXX kai epi tous epistrephontas pros auton kardian
Duhm.
10.kbwd: acolhido ao sufixo de ysh ‘w.
14.
wysrn Idrk p ‘wyw : quem é o sujeito de ysm ?yhwh de 13a explica
Ecker, em parêntese o sentido de Vg; çdq último nomeado, sujeito de duas
ações sinonímicas, Ecker explicando o hebraico. De quem são os passos? de
çdq Ros, de yhwh a quem segue a justiça. O que significa wysmP. Colocar,
dispor, ou forma elíptica de swm lb = prestar atenção Del.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Os aspectos genéricos ou tipológicos do salmo estão bem perfilados, e
deles nasce nossa perplexidade.
Os três primeiros versículos (2-4) são ação de graças sem introdução ou
invitatório. Acrescentemos adiante um versículo do tipo: “Nós te damos
graças, Senhor, bendizemos teu nome porque”, e temos um exemplo típico,
abreviado, até com a inclusão de shwb. Sem transição nem introdução,
segue uma súplica em quatro versículos (5-8), definida por vários impera­
tivos e animada por perguntas retóricas. Acrescentando uma introdução do
tipo: “escuta, Senhor, minha súplica, meu grito chegue até a ti”, teríamos
um exemplo resumido, com a correspondente inclusão de y sh ‘. Com uma
introdução ampla (9ab) segue um oráculo que enuncia em cinco versículos
a salvação próxima. Três gêneros sucessivos: ação de graças, súplica,
oráculo de salvação: como se sintetizam?
As peças segunda e terceira ligam-se sem dificudade: a uma súplica
responde um oráculo, o pedido foi concedido; inclusive se repetem palavras
para assegurar o enlace. O problema é como encaixar a primeira parte,
agravado pela repetição do verbo shwb em 2 e 5: depois de afirmar
"restauraste”, por que pede “restaura-nos”? Não faltam, é verdade, no
1082
Salmo 85
saltério casos em que se usa uma salvação pretérita como argumento para
mover a Deus ou como base de confiança para o orante. A relação ideal não
é difícil nem desconhecida; o que falta no salmo é certa transição que o
delate. Acrescentemos mentalmente esse enlace, e tudo fica claro: “Tu, que
um dia nos restauraste, restaura-nos agora; tu, que um dia afastaste a
cólera, até quando continuarás irado?”.
— Toca-nos agora indicar uma situação, tipológica ou histórica, em que
se cumpram as condições para que funcione o salmo. A situação típica
repetiu-se ao longo da história de Israel, pelo que não seria preciso definir
mais: o salmo seria peça de repertório. Houve quem apontasse para o salmo
a festa outonal do ano novo agrário (Mowinckel).
Uma série de indícios temáticos e verbais convidam a precisar a
situação histórica que dá origem ao salmo. Depois do cântico entusiasta do
Segundo Isaías (Is 40-55) e do retorno à pátria, surgem novas dificuldades
de toda ordem. Foi tudo em vão, vai triunfar a desilusão? — Deus responde
com um oráculo de esperança. Vimos que a expressão shwb shbwt é típica
de profetas exílicos.
Em conclusão: o salmo começa como súplica dum tempo de desgraça ou
desilusão, remonta ao passado como contraste e fonte de inspiração; Deus
abre com seu oráculo um futuro de esperança.
b) Composição e estilo
—
A clara divisão em três partes dá-nos a disposição de superfície. A
primeira parte usa shwb para uma inclusão menor; da mesma forma usa
ysh‘ a segunda parte; a repetição de ’rç em 2 e 12 soa como inclusão maior.
Se descontarmos a introdução ao oráculo (9ab), as secções vão crescendo a
razão de três, quatro e cinco versículos.
O verbo shwb perpassa como fio condutor poema do v. 2 ao 9, insistindo
na idéia e imagem de volta, retorno, mudança. Deus é o sujeito em 2.4.5.7,
o povo em 9. A idéia de movimento propaga-se à terceira parte na visão de
aproximar-se, encontrar-se, até o caminhar final. Se aceitarmos a hipótese
de situar o salmo na volta do desterro, esses dados de composição ganham
significado coerente. No primeiro êxodo, do Egito, o verbo dominante era;yp ’
= sair, emparelhado com o genérico hlk = caminhar. No segundo êxodo, da
Babilônia, o verbo shwb é mais freqüente, ainda que não mais importante.
A saída do Egito foi um começo, que se prolongou na marcha pelo deserto
rumo à terra. A repatriação é mudança e volta. Mudança de atitude, de
conduta, de direção: notemos o morfema re- em termos como re-torno, re­
patriação, re-stauração. Chegados à pátria, há um grande encontro e
começa um caminhar novo, metafórico. E curioso que o poema, ainda que
Exegese
1083
mencione o “assentamento” da glória de Deus (10b), não termina com o
verbo yshb - habitar (como Os 11,11), mas com hlk = caminhar.
—
Atendendo ao ritmo, rimas e acidentes gramaticais, diremos que
tudo ocorre com grande ordem e compostura, como se o poema quisesse
difundir harmonia e tranqüilidade. Só a súplica central agita-se levemente
com duas interrogações e algumas mudanças rápidas de sujeito.
Atendendo à distribuição do vocabulário, observamos que a ação de
Deus na primeira e segunda parte é principalmente livrar e desembaraçar:
perdoar pecados, reprimir a cólera. As qualidades positivas, que imperam
na terceira parte, vão se adiantando: no anúncio do v. 2, no jsA ‘ de 5 e 8, de
hsd em 8.
c) Personificações
É o procedimento de estilo mais saliente deste poema (.Manual de
poética hebrea, 147-150). Se nas duas primeiras partes o sujeito quase
exclusivo era Deus, na última secção ocupam o cenário várias personifica­
ções (excetuando 13a). Salvação se aproxima, Glória se assenta, outras se
encontram, se beijam e abraçam, uma brota a partir de baixo, a outra
assoma a partir de cima, alguém abre a marcha. Temos que nos imaginar
uma cena: cidadão, damas e cavalheiros (nomes masculinos e femininos)
albergados sob a abóboda do céu. Só a terra está atarefada sem esforço.
Como fundo de contraste deve-se repassar o SI 55, que mostra uma
cidade ocupada por personificações sinistras. Veremos o quadro de Is 59,15
na exegese.
5. Exegese
2a. Começa de repente com um ato de benevolência divina confessado
pelo orante: a aliteração rçh / ’rç. Essa benevolência tem como fundo a
negativa de tantos profetas, como Jr 14,10.12; Os 8,13; Am 5,22; Mq 6,7, e
em sentido oposto a grande confissão do SI 44,4: ky rçytm. A impaciência do
SI 77,8 encontra aqui sua resposta. Terra aqui é ao mesmo tempo o
território habitado e a terra de cultivo, como no v. 13.
2b. A vocalização do qere quer ler uma referência aos cativos, como em
Ez 16,53. O primeiro versículo do poema estabelece a tonalidade, dispõenos a uma leitura esperançosa.
3-4. A mudança implica em remover as causas profundas do desastre:
essa engrenagem exigida do pecado humano e cólera divina. Quem toma a
iniciativa? Quem cede primeiro? O orante continua pronunciando verbos
1084
Salmo 85
na segunda pessoa dirigidos a Deus. O homem diz a Deus o que Deus sabe
melhor; porque não informa, confessa: perdoaste, tapaste, retiraste, afas­
taste-te. O sistema de rimas internas e aliterações acha-se muito elaborado
nesses versículos: os quatro -ta em primeira posição, os três -ka em terceira,
os dois -ôn em segunda, as três palavras que começam com ‘ayn.
Para o verbo cobrir, veja-se o jogo no SI 32,1.5. Teu povo: apesar do
pecado, Jacó continua sendo povo de Deus. Ira acesa: com a fórmula
tradicional; unida a shwb também na intercessão de Moisés (Ex 32,12),
depois do castigo de Acã (Js 7,26; Dt 13,18; Jn 3,29); negado em 2Rs 23,26.
5. Restaura-nos: é a petição do estribilho do SI 80,4.8.20. O termo k‘s
= enojo, verbo e substantivo, é mais freqüente em textos aparentados com
Dt, inclusive Jr: esses textos servem de fundo à petição presente.
6. A petição ou reclamação sobre o prolongar-se do castigo lemos em SI
74,1; 77,8-10; 79,5; assoma em Zc 1,12. E como se, depois do grande retorno,
estivéssemos voltando aos dias da tragédia.
7. A volta do Senhor fará reviver. E o prometido a Ezequiel na visão dos
ossos (Ez 37), que tem paralelo ou ressonância no SI 71,20: “me farás reviver
alçando-me aos cimos da terra”. Outros textos do saltério: 30,4; 41,3; 80,19;
138,7; 143,11 e onze vezes em 119. A vida recobrada desemboca em
celebração (smh) do Senhor.
8. hsd oposto à ira pode significar misericórdia; no contexto implícito
de aliança, creio que significa lealdade: que Deus nos mostre sua lealdade,
suspensa pela cólera.
9. Veja-se o comentário ao SI 81,6c. Alguém na assembléia escuta e
comunica o oráculo de resposta. O texto do oráculo abarca tudo o que
segue até o final; ou então se concentra no v. 9 e o que segue é comentário
litúrgico. A diferença do SI 81, Deus não toma aqui a palavra em primeira
pessoa.
E uma mensagem de paz. Deus reconciliou-se com eles, já não os afasta
a cólera. Para a expressão dbr shlwm, veja-se Gn 37,4 e Dt 2,26. A
mensagem dirige-se a um povo que responde com sua lealdade à lealdade
divina e com sua confiança às promessas. O que significa que o povo
superou a grande prova e que as perguntas precedentes (6-7) não expres­
savam protesto ou rebeldia. De outro lado, a mensagem tem uma ponta de
admoestação, ao qualificar os beneficiários da mensagem de paz.
10-14. A reconciliação e a paz recuperadas projetam-se nessa cena de
transfiguração poética. O horizonte o definem céu e terra, Yhwh e terra,
reconciliados, em harmonia de ação. Além deles, figuram as seguintes
personagens: Salvação, Glória, Lealdade, Fidelidade, Justiça, Paz, algu­
mas dos quais repetem suas entradas. Salvo Yhwh e terra, a cena mal tem
ação, porque o importante é a presença plural sem travas. Para apreciar a
1085
Exegese
qualidade poética, será conveniente confrontá-lo com outras duas cenas da
literatura profética. A primeira de Is 59:
11
14
Esperamos Direito, e não está;
Salvação, e está longe de nós.
Direito retrocede,
Justiça fica longe,
na praça tropeça Direito,
15
e Fidelidade está ausente...
Sinceridade não tem acesso
Num texto de restauração, provavelmente tardio, Is 32:
16
17
Residirá Direito no deserto,
e Justiça habitará na várzea;
o efeito de Justiça será Paz,
a tarefa de Justiça, calma
e tranqüilidade perpétuas.
(Sumprimi o artigo como no original, para frisar o recurso da personi­
ficação).
São qualidades divinas ou virtudes humanas? São antes dons de Deus
ao homem para o seu bem-estar integral. Vemos Justiça assomando no céu
e beijando (na terra) Paz, abrindo caminho ao Senhor. Exclusivamente
divina é Glória, ação sua imediata é Salvação; as outras ele as possui
exemplarmente e comunica-as ao homem para uma convivência humana
digna. Seria minorar o alcance do salmo reduzir ou concentrar sua substân­
cia na chuva de outono, por importante que seja esta.
10.Os “leais” chamam-se agora os “fiéis”, segundo expressão corrente.
A salvação sua, de Deus, está próxima deles; como diz Is 56,1: “Guardai o
direito, praticai a justiça, que minha salvação está para chegar”. Só que em
Is 56 os homens preparam-se para sua vinda com sua conduta, ao passo que
no SI 85 a causa é proposta pelo segundo hemistíquio com seu vago
gerúndio, “ao estabelecer a Glória”.
A Glória estabelece-se em nossa terra: alude ao templo? — Creio que
sim. Pois, ainda que o verbo shkn não se predique outras vezes da Glória,
predica-se freqüentemente de Yhwh, seu templo é mshkn e mais tarde sua
presença chamar-se-á shkynh. Creio que se deva entender a frase sobre o
fundo de Ez 10 e 43: a Glória, que um dia se afastou do templo e de
Jerusalém, no futuro voltará e entrará no templo; o final do livro (48,35) soa
assim: “Desde então a cidade se chamará: O Senhor está ali”. Ao dizer
“nossa terra”, em vez de mencionar o templo, talvez dê a entender que todo
o território ficará consagrado.
11. Pela lei do paralelismo pode-se animar a cena: os dois verbos
predicam-se de todos os sujeitos, numa cena de encontros e saudações
mútuas.
1086
Salmo 85
12.
Confirma-o este versículo. Não importa muito o posto que ocupa e
o papel que desempenha cada um; o importante é a nova dimensão, vertical
e cósmica, que abre o versículo. A imagem de brotar ou germinar tem
ascendência ilustre, sobretudo no livro de Is:
458 Destilai, céus, orvalho,
derramem as nuvens justiça,
abra-se a terra e produza salvação
e faça germinar também justiça:
eu, o Senhor, o criei.
61,11 Como o solo lança seus brotos,
como um jardim faz germinar suas sementes,
assim o Senhor fará brotar a justiça.
É esse o fruto mais nobre da terra: uma colheita de virtudes humanas.
12. Mas a prosperidade há de ser também material, como se indica no
SI 72,16.
13. Deus, o dador, “dá o bem”, que, no caso presente, é por excelência
a chuva; e a terra “dando” sua colheita. É o mesmo movimento de Is 55,10:
Como descem a chuva e a neve do céu
e não voltam para lá senão depois de empapar a terra,
de fecundá-la e fazê-la germinar,
para que dê semente ao semeador e pão ao que come...
14. Podia ter terminado aí a cena, quando sobrevêm algo inesperado:
o Senhor, cuja Glória:“estabeleceu-se em nossa terra” põe-se a caminho,
para onde?; e adiante, abrindo-lhe marcha, avança Justiça. O final é sur­
preendente: o Senhor continua caminhando pela história: e seu povo com
ele?
6. Transposição cristã
Vamos nos concentrar na cena final das virtudes personificadas, e fálo-emos em três tempos.
—
Em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos cena tã
sugestiva como a do salmo. O que podemos fazer é tomar uma a uma suas
figuras e relacioná-las com Jesus Cristo.
Salvaçãaz através da versão grega: Simeão toma em seus braços a
salvação / o salvador (Lc 2,30). As últimas palavras de Paulo em Roma são
para dirigir a mensagem de salvação aos pagãos (At 28,28). Jesus é causa de
salvação perpétua (Hb 5,9).
Paz: desde a mensagem do nascimento (Lc 2,14) até a mensagem pascal (Lc
24,36). Extrema-se a identificação: “ele é nossa paz” (Ef 2,14). No final da carta
aos Gálatas (6,16), une-se a paz com a misericórdia como dom de Deus.
Transposição cristã
1087
Misericórdia: através da versão grega de hsd: “não por nossas obras de
justiça [por mérito nosso], mas por sua pura misericórdia, nos salvou... por
Jesus Cristo, Salvador nosso” (Tt 3,5). No Magnificai e no Benedictus louvase a misericórdia de Deus exercida na salvação presente (Lc 1,54.78).
Justiça: “O reino de Deus não consiste em comidas nem bebidas, mas na
justiça, na paz e no gozo que dá o Espírito Santo” (Rm 14,17).
Verdade: através da versão grega de ’mt. Antes de tudo, a definição
programática: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Juntando
dois elementos: “a mensagem da verdade, o evangelho da salvação”.
Glória: “Quis mostrar que riqueza de glória para os pagãos há neste
segredo: o Messias para vós, esperança de glória” (Cl 1,27). “Não teriam
crucificado o Senhor da Glória” (ICor 2,8). “Não distinguem o resplendor do
evangelho do Messias glorioso” (2Cor 4,4).
Esses dados espigados entre outros muitos dizem-nos que Jesus Cristo
concentra em si todas as excelências do salmo; mas não percamos na
transposição a sugestão da cena poética do mesmo.
— Alguns comentadores leram em chave o v. 13, como símbolo do
nascimento do Messias. Nossa terra é a terra-mãe, Maria, que, fecundada
pela chuva celeste do Espírito Santo, concebe e dá à luz a colheita melhor
de nossa terra. Ele é a verdade que brota da terra, enquanto a justiça de
Deus assoma complacente do céu. Finalmente, e por Maria, nossa terra tem
algo digno que oferecer a Deus.
— Num terceiro passo transladamos a cena ideal ao céu, onde triun­
fará a harmonia de todos os dons e virtudes, onde está permanentemente
estabelecida a Glória de Deus. Para esse terceiro passo recorro ao comen­
tário de Agostinho ao versículo 10:
“Onde ainda há mortalidade, como pode haver paz completa? Pois da
morte procede esse cansaço que achamos em todos os nossos remédios. Da
morte vem, porque levamos um corpo mortal... Pois, ainda que persistas no
que te remedia, também morrerás. Persiste em comer muito: a comida te
matará; persiste em jejuar rigorosamente: por isso morrerás; sempre senta­
do sem levantar-te: morrerás por isso; sempre caminhando sem descansar:
por isso morrerás; sempre desperto sem dormir: morrerás por isso; sempre
dormindo sem despertar: por isso morrerás.
M as quando a morte for definitivamente vencida, já não haverá nada
disso, a paz será plena e eterna. Estaremos numa cidade... Quem não anseia
por essa cidade, da qual não sai o amigo nem entra o inimigo, onde não há
tentador nem sedicioso, nem quem divida o povo de Deus, nem quem, a
serviço do diabo, fatigue a Igreja? Será paz depurada para os filhos de Deus,
para todos os que se amam ao se verem cheios de Deus, quando Deus for tudo
em todos. Compartilharemos todos do espetáculo de Deus, compartilhare­
mos todos da posse de Deus, compartilharemos de Deus como paz... Ele será
a paz plena e perfeita”.
Salmo 86
1. Texto
1
2
3
4
5
Dá ouvido, Senhor, responde-me,
pois sou um pobre desamparado.
Guarda minha vida, pois eu te sou fiel,
salva o teu servo que confia em ti.
Tu és meu Deus, tem piedade, Dono meu,
pois te estou chamando todo o dia.
Alegra o sentir1de teu servo,
pois meu sentir eleva-se a ti.
Porque tu, Dono meu, és bom e perdoas,
és misericordioso com os que te invocam.
6
Escuta, Senhor, minha súplica,
faz caso2 de minha petição de graça.
7 no perigo te chamo,
porque me respondes.
8 Não há como tu entre os deuses, Dono meu,
nem há obras como as tuas.
9 Todos os povos que fizeste
virão prostrar-se em tua presença
e honrarão teu nome, Dono meu.
10 Porque és grande e autor de maravilhas,
só tu és Deus.
11 Ensina-me, Senhor, teu caminho,
para que o siga com fidelidade;
unifica meu coração
no respeito de teu nome.
12 Dar-te-ei graças de todo coração,
Deus meu, Dono meu,
honrarei sempre o teu nome,
1vida
2 atende
Análise filológica
1089
13 por tua insigne misericórdia comigo,
porque livraste minha vida do Abismo profundo.
14 O Deus, gente soberba levanta-se contra mim,
um bando violento atenta contra minha vida,
sem contar contigo.
15 Mas tu, Dono meu,
Deus compassivo e piedoso,
paciente, misericordioso e fiel,
16
olha para mim e tem piedade;
dá forças a teu servo,
salva o filho de tua escrava.
17 Dá-me um sinal propício:
que o vejam meus adversários e fiquem confusos,
porque tu, Senhor, me auxilias e consolas.
2. Bibliografia
P. Joüon, B en ’amateka = Filius ancillae tuae, Bib 23 (1942) 190-191.
G.
Giavini, La struttura letteraria del Salmo 86, RivBib 14 (1966) 455
458.
A. M . Serra, Appunti critici al salmo 86, RivBib 16 (1968) 229-246.
F.
Asensio, E l eje kî en el movimientoprogresivo del Sal 86, Greg 56 (1975)
527-543.
P. E. Bonnard, Un psaume pour vivre: le Ps 86, EspVie 88 (1978) 279-285.
P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 86, V T 29(1979) 385-402.
W . G. E. W atson, Hebrew ‘to be happy’ -a n idiom identified, VT 31 (1981)
92-95.
M. J. Barr é, A cuneiform parallel to Ps 86,1 6-1 7 and Mic 7,16-17, JBL
101 (1982) 271-275.
3. Análise filológica
2. shmrh: imper enérgico, para o meteg SI 16,1 GK 9 v.
’th íhy: interrompe a frase, como no v. 12.
5. wrb hsd: cf. GK 128 x.
9.
BH ap propõe transladar ’sr ‘syt para o final do versículo prec
dente.
ll.y h d : imper deyh d denominativo de “um” enoson Sím, unum fac
Jerôn; derivam-no de hdh = alegrar-se LXX Vg e seus seguidores.
1090
Salmo 86
13. msh’wl thtyh: Qim propõe duas interpretações, tumba e geena;
Eutímio pensa em várias leituras: se é de Davi, pecado; se de Ezequias,
morte; de qualquer outro, perigo extremo.
14. Cita SI 54,5 ou de fonte comum.
17. Dois jussivos depois de imperativo Joüon 116 d.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Esse salmo é exemplo bastante típico de súplica individual. Dir-se-ia
que o autor, poeta de pouca inspiração pessoal e mediana capacidade
artesanal, tomou o esquema ou molde do gênero e preencheu-o com citações
ou imitações ou reminiscências de outras súplicas. Na exegese farei notar
o pouco de pessoal que acrescenta. O v. 6 denomina-o de tplh = súplica e
comenta-o com um sinônimo particular.
Os componentes da súplica são facilmente discerníveis e são bastante
genéricos. A motivação é, como de costume, tríplice: tribulação do orante,
perseguição do inimigo, bondade de Deus. Não falta a expressão de confiança
nem a promessa de ação de graças. O caráter imitativo do salmo mal modela
os componentes. Assim, por exemplo, despacha-se a ação do inimigo num
versículo de três hemistíquios (14); a apelação à bondade de Deus e a
promessa de ação de graças dão passo a muitas frases de feitura hínica.
A situação pressuposta é tão genérica como o restante: qualquer
tribulação dum crente pode se apropriar desta prece. E inútil tentar datar
essa composição, mas sua condição de imitação tradicional leva a pensar
em época tardia.
b) Estilo
Dificilmente podemos falar de composição planejada, para além do
esquema genérico subjacente. As múltiplas repetições não são sinais de
articulação, mas fáceis reiterações. Na maneira, porém, de tratar de
materiais tradicionais, o autor não renuncia de todo a sua liberdade de
adatação. Apontemos alguns aspectos mais salientes do salmo.
—
Os comentadores chamaram a atenção para a reiterada ordenaçã
sintática por meio de ki (simplifico o texto):
1
2
3
4
responde-me
guarda-me
tem piedade
alegra-me
porque
porque
porque
porque
sou pobre
confio em ti
te chamo
me dirijo a ti
Exegese
5
7
9
12
17
1091
te chamo
te glorificarão
te glorificarei
fiquem confusos
porque perdoas
porque respondes
porque és grande 10
porque és grande 13
porque tu me auxilias
Muito pouco fica fora do esquema sintático, brevemente interrompido
(14-16), até a martelada final. E como se o orante tivesse preocupação buro­
crática de justificar cada petição, ou sentisse necessidade espiritual de
mover e comover a Deus com seus argumentos. Quatro motivações dizem
respeito ao orante, outras cinco referem-se a Deus. Entre todas formam um
gradeado de relações cruzadas: auxilia-me tu-porque eu / eu te invocoporque tu. E uma rede de relações do homem com Deus, na qual ficarão
colhidos alguns pagãos submissos (9-10) e alguns inimigos derrotados (17).
A série de nove poderia servir para uma síntese de atributos divinos e
espiritualidade humana.
— Chama a atenção a freqüência de nomes divinos, muitos no vocativo,
inclusive interrompendo o curso sintático. Além dum ’Ihym referido a
divindades pagãs, o Deus de Israel recebe as seguintes denominações: ’dny
sete vezes, um ternário em 3.4.5; Yhwh quatro vezes, no princípio e no fim em
inclusão maior; shm três vezes, um ternário que junta pagãos com o orante;
’Ihym duas vezes; íhy duas vezes; ’l uma vez na grande definição de Deus. O
total não dá um número dos qualificados na tradição (salvo, talvez, os sete
’dny), mas um total de 19 em 17 versículos significa presença envolvente.
— Poder-se-iam estudar os paradigmas das personagens. O orante
apresenta-se como: afligido e pobre (1), servo leal e confiante (2), servo teu
(4), servo filho de escrava (16).
E preciso tomar como correlativos servo leal e senhor meu? Dum lado,
a presença de ’dny em concorrência com Yhwh - patente em versões e
manuscritos - pode ser sinal de transição no uso do nome divino. Doutro
lado, é bem possível que o autor queira expressar a relação de senhor e
vassalo: reitera o título ‘bdk, e hsyd pode ser seu equivalente.
— As frases sucedem-se sem regularidade rítmica. A longitude dos
versículos muda notavelmente.
5. Exegese
1.0
binário desgraçado e pobre lê-se em 40,18 = 70,6; 109,16.22; e na
famosa invectiva contra o rei Joaquim (Jr 22,16). Podem-se escutar as
aliterações ’znk / ’bywn e ‘nny / ‘ny / ’ny.
2.
Para a confiança do servo, veja-se SI 123. É atitude básica que
equivale quase a fé.
1092
Salmo 86
4. Alegra-me (SI 92,5); ao começar a terceira parte do livro de Isaías,
Deus promete aos estrangeiros convertidos: “eu vos alegrarei em minha
casa de oração” (Is 56,7). ns’ npsh pode ter significado originalmente
levantar o pescoço ou o alento rumo a alguém que está mais no alto, talvez
em gesto de súplica; aqui faz jogo com npsh do primeiro hemistíquio (vej amse SI 25,1 e 143,8).
5. O adjetivo sallah é exclusivo desse salmo; o verbo lê-se 31 vezes e
sempre tem como sujeito a Deus: quem senão Deus pode perdoar pecados?
6. thnwnwt nesta forma de plural feminino é exclusiva desse salmo; em
outros lugares usa-se o plural masculino, quase sempre precedido, como
aqui, de qôl - voz.
8-10. Entre a numerosa população de divindades de todos os povos,
Yhwh é incomparável, como cantam Ex 15,11; SI 40,6; 71,19; 89,7 e afirma
Dt 3,24. E pouco falar por comparação com outros, pois Yhwh é o único Deus,
precisa o v. 10. Em segunda pessoa (Ibdk) dizem-no Is 37,16.20; SI 71,16;
83,19; Ne 9,6; em terceira pessoa (Ibdw): Is 2,11.17; SI 72,13 = 136,4; 148,13.
Agostinho começa a vibrar ao ser tocado por esse versículo. Polemiza
com os pagãos, que adoram estátuas. Replicam que são sinais, e argumen­
ta: Pior, são demônios. Replicam que são anjos, e argumentam que os anjos
não querem ser adorados como deuses.
“Quem poderá pensar como é devido a distância entre quem o fez e o que
foi feito? Diz o salmista: Não há como tu entre os deuses. Qual seja a
dissemelhança não o diz, porque não se pode dizer... Deus é inefável: mais
fácil é dizer o que não é que o que é. Pensa na terra: não é Deus; pensa no mar:
não é Deus; em tudo o que há na terra, homens e animais: não é Deus; em
tudo o que há no mar e em volta no ar: não é Deus; em tudo o que brilha no
céu, estrelas, sol e lua: não é Deus; o próprio céu: não é Deus; pensa nos
anjos... não são Deus. Então, o que é? Só se pode dizer o que não é. Perguntas
o que é? O que nem olho viu nem ouvido ouviu nem sobe à mente humana.
Por que queres que suba à língua o que não sobe à mente?”
Entre os dois enunciados, de 8 e 10, procede o cortejo dos povos que
acodem para agradecer e glorificar ao Senhor. A idéia repete-se em textos
tardios.
Nestes três versículos, o orante remonta de sua tribulação presente a
uma visão gloriosa e universal, antecipando um futuro em que seu Deus
seja reconhecido por todos os povos, porque todos são feitura sua. A
unicidade de Deus, que o Segundo Isaías afirma e defende polemicamente,
enuncia-a o salmo numa frase. Estes três versículos, com a definição do v.
15, são o mais importante do salmo.
11-12. Caminharei em tua verdade (versão literal) é expressão difí­
cil, parecida a expressões do SI 25,5 e 26,3. Uma interpretação diz: Deus
Transposição cristã
1093
oferece ao homem sua fidelidade como caminho que possa percorrer seguro.
Outra interpretação toma o possessivo como complemento: caminharei /
procederei com fidelidade a ti / sendo-te fiel.
Tomando yhd no significado normal de unificar, lemos uma referência
ao primeiro mandamento e à pregação do Dt: é preciso amar a Deus de todo
o coração, com coração não dividido entre várias divindades. Compare-se
com a fórmula lb wlb do SI 12,3 e lCr 12,34. Esclarece-se a idéia no versículo
seguinte que diz bkl Ibby.
13.Livraste do Abismo: lê-se com variações em SI 30,4; 49,16; 89,49; Os
13,14. O adjetivo “profundo” é atributivo, não predicativo; não é que haja
vários infernos (como especula Santo Agostinho comentando a Vg ex
inferno inferiori).
14.
Leve variação de 54,5. Sobre o prescindir de Deus, veja-se SI
e a atitude contrária em 16,8.
15. Citação litúrgica, cujo texto fundamental ouve-se (dos lábios do
próprio Deus) em Ex 34,6; com variações em J12,13; Jn 4,2; SI 103,8; 111,
4; 112,4; 145,8; Ne 9,17.31. Depois de afirmar a unicidade, ganha relevo
essa descrição do Deus único, o Deus de Israel. Seria preciso compará-los
com o hino a Marduk, que tenta concentrar e unificar a multiplicidade
numa divindade (Seux 129-131), examinando quais são os atributos deste
Marduk comparados com os de Yhwh no salmo.
16. Filho de escrava: portanto, escravo de nascimento, nascido em
regime de escravidão (SI 116,16). A idéia de vassalagem não soa aqui.
17. Um sinal favorável ou um presságio feliz. Gedeão pediu um sinal
para garantir sua missão, prova e contraprova (Jz 6,17). Isaías convida o
rei Acaz a pedir a Deus um sinal (Is 7,11). O sinal que pede o orante é de
duplo fio: favorável para ele, infausto para o inimigo.
O salmo termina com a última menção de Yhwh e o último pronome
pessoal “tu” (2.5.10ab.l5). A última palavra é o consolo de Deus.
6. Transposição cristã
Santo Agostinho, aplicando um de seus princípios hermenêuticos
favoritos, põe o salmo nos lábios de Cristo cabeça e de seu corpo, a Igreja.
O sinal favorável é a ressurreição. O consolo será definitivo e celeste.
A secção 8-13 dá um sentido de unidade e totalidade. O Deus incompa­
rável e único é por isso Deus universal, e todos os povos devem honrar seu
nome. Como centro de atração, Deus é capaz de unir a todos em seu nome.
Também pode unificar o indivíduo que se sente internamente dividido por
tantos centros de atração: pequenos deusinhos rivais arrastam seu coração.
1094
Salmo 86
Com sua força superior, o Espírito tem que unificar e simplificar meu
coração, para que responda com um ato total de reverência e adoração. Ele
salvou da morte e do nada a totalidade da minha existência, por isso tenho
que lhe dedicar a vida inteira, “para sempre”.
Agora Deus se fez homem, de sorte que Jesus Cristo é irmão nosso, um
de nós. Também ele, com sua força humana e divina de atração, quer
unificar nossas tendências e apetites, matéria e espírito, sentidos e imagi­
nação, afetos e desejos, para assim submeter tudo a seu Pai. Por Jesus
Cristo não nos dividiremos entre homem e Deus, entre as três pessoas
divinas; porque a Trindade é a suprema Unidade.
Salmo 87
1. Texto
1
2
Alicerçou-a num monte santo.
O Senhor prefere as portas de Sião
a todas as moradas de Jacó.
3 Que glorioso pregão para ti,
Cidade de Deus!
4 “Contarei o Egito e a Babilônia
entre os que me reconhecem;
filisteus, tírios e núbios
aí nasceram”.
5 Dir-se-á de Sião: “Um por um
nasceu ali”.
O Altíssimo em pessoa a fundou.
6 O Senhor escreverá no registro dos povos:
“Este nasceu ali”.
7 E cantarão enquanto dançam:
“Todas as minhas fontes estão em ti”.
2. Bibliografia
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M. S. Smith, The structure o fP s 87, VT 38 (1988) 357-358.
3. Análise filológica
1. yswdtw: o sufixo referido a Deus Ros HitzigDel Duhm; Gun corrigeo para o feminino referindo-o a Sião.
3. mdbr: passiva impessoal construída com nkbdwt como complemento
GK 121 a.
4. lyd‘y : lamed predicativo, como GB 370-371; conhecem Aq Sím,
reconhecem Genebrardo, crêem Eutímio.
yld: estranhamente traduz Vg fuerunt aqui e no v. 6.
5. ’ysh w’ysh: Ros este e aquele, a duplicação signfxca não tanto a
universalidade como Lv 17,10.13, quanto a multidão como Gn 14,10 e Ex
8,10, e a diversidade como SI 12,3; Dt 21,13s. kath’ hekaston Sím, Davi e
Salomão Targum.
whm’ ... ‘lywn: pronome antecipado enfaticamente, cf. ISm 20,29.
6. bktwb: constructo, corresponde talvez à forma aramaizante ketab\
compare-se com Ez 13,9 ubiktob; tomam-no como subst LXX Vg Teod Sir
Targ; Ecker toma-o como infinitivo.
7. wshrym: predicado sem sujeito explícito Joüon 154 c. 155 f.
LXX tomou-o por srym arkhonton paralelo de laon, a mesma coisa Vg
principum.
khllym: LXX e Vg que se alegrem, Jerôn com danças; Marini triplica
como flautistas, como festejantes, como dançantes. lRs 1,40 mhllym
bhllym parece usar um piei denominativo de hlyl = flauta; as versões
interpretaram-no como dança; hly é flauta em ISm 10,5; Is 30,29; Jr 48,36.
Também se pode pensar em confusão ou assimilação entre hwl e hll, como
ocorre em raízes deste tipo, cf. GK 72 dd DBHE hl.
Estudo global
1097
4. Estudo global
a) Gênero e indivíduo
Em nosso afã de classificar, para entender ou para pôr ordem, incor­
poramos esse salmo no grupo dos cânticos de Sião; ou sej a, agrupamo-lo com
os SI 46,48,84,122. Sabemos que a categoria cânticos de Sião é meramente
temática, sem constantes formais. Mesmo compartilhando de tema co­
mum, como são diferentes seus indivíduos. Se o SI 87 ilumina-se no grupo,
é mais por contraste que por semelhança.
Tomemos o 122: “para lá sobem as tribos”, aqui nascem povos; lá
saudação de paz nacional, aqui dança internacional; um se fixa nos
edifícios, o outro vai ao fundamento divino.
Tomemos o 84: uma canção intimista; um peregrino vai visitar o
templo, invejoso dos pássaros que se aninham em sua cornija; em
contraste, a abertura a um horizonte universal na gloriosa vizinhança da
cidade.
Tomemos o 48: coincide o tema da fundação divina “na cidade de
nosso Deus, Deus a fundou para sempre” (48,9). Que diferente o resto:
Jerusalém é cidade murada, fechada, atacada, assediada, debeladora de
inimigos pela presença do seu Deus. Não há inimigos no SI 87. No 48, a
beleza de Jerusalém consiste em elevar-se até o “vértice do céu” como
“capital do grande Rei”; no 87, a glória de Jerusalém é ser metrópole de
povos e nações.
Tomemos o 46: coincidem o tema aquático, tanques e fontes na cidade.
Em contraste, escuta-se o assalto cósmico e o assalto bélico, desbaratados
por Deus. Talvez o v. 10 abra uma visão de esperança: “põe fim à guerra”;
a uma guerra ou a todas? Depois exige a rendição dos assaltantes: “rendeivos, reconhecei que eu sou Deus” (11). Nada disso no SI 87.
Poderíamos continuar enumerando ou somando diferenças. O SI 87 é
uma das peças mais extraordinárias do Antigo Testamento, e seus parale­
los haveremos de buscar fora do saltério.
b) Alguns paralelos
Um candidato óbvio para a comparação é Is 2,2-5, a grande peregrina­
ção de povos até a altura única de Sião, farol de atração, donde provêm a
tora e o dabar, lei e palavra (profética). A “casa de Jacó” encabeça a marcha
ascensional e convergente. Mas Isaías não passa daí: os povos, não nomea­
dos, acodem de fora, vindos de longe; são estrangeiros, e não cidadãos. No
SI 87 são cidadãos com plenos direitos.
1098
Salmo 86
Semelhantes, se bem que menos elaborados, são outros textos proféti­
cos. O final do livro de Isaías tem um horizonte universal, mas contenta-se
com peregrinação periódica, para atos de culto, ao passo que os judeus
continuam sendo o grupo escolhido:
66,18
21
M as eu virei para reunir
as nações de toda língua:
virão para ver minha glória.
Cada lua nova e cada sábado
virá todo mortal prostrar-se diante de mim.
No capítulo final de Zacarias, todas as nações têm que se apresentar
anualmente para prestar homenagem ao Senhor; e se não o fazem, serão
castigadas sem chuva. Mais favorável e positivo soa o SI 102,23: “quando
se reunirem unânimes os povos e os reis para dar culto ao Senhor”.
O mais próximo que encontro é um texto tardio incorporado ao livro de
Isaías, no qual o Egito é o Egito dos lágidas e a Assíria é a Síria dos selêucidas (Profetas, I, 190-192):
19,23 Naquele dia haverá uma calçada entre o Egito e a Assíria: Assíria
entrará no Egito e o Egito na Assíria, e os egípcios com os assírios darão culto
ao Senhor. 24 Naquele dia Israel será mediador entre o Egito e a Assíria, será
bendito no meio da terra. 25 Porque o Senhor dos Exércitos o bendiz dizendo:
Bendito meu povo, o Egito e a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha
herança!
Chamar o Egito de ‘ammt: povo meu, é inaudito e prometedor.
Em resumo, podemos dizer que o salmo, sendo oração, transporta-nos
ao mundo da profecia. Seu contexto histórico tem que ser tardio: Babilônia
já se cristalizou como figura emblemática. Se o salmo não é polêmico na
intenção, pelo menos se distancia de concepções tradicionais. Essa Jerusa­
lém é figura nova e promissora.
c) O sistema simbólico
—
A fundação. Não é raro que monarcas ou conquistadores fundem
cidades: é glória sua, e às vezes lhes impõem o seu nome. A reconstrução de
Jericó equivale a nova fundação; note-se a menção de fundamentos e portas:
lR s 16,34 Em seu tempo, Hiel de Betei reconstruiu Jericó. Os fundamen­
tos custaram a vida de Abiram, seu primogênito, e as portas, a de Segub, seu
benjamim.
Ben Sira afirma que “os filhos e uma cidade perpetuam o nome” (Eclo
40,19). Ainda que historicamente Jerusalém fosse uma cidade jebuséia
conquistada por Davi, a versão teológica afirma que o Senhor a fundou: “O
Senhor fundou Sião” (Is 14,32). Da cidade reconstruída canta Is 54,11:
Estudo global
1099
Eu mesmo coloco tuas pedras sobre azeviches,
teus fundamentos sobre safiras;
pôr-te-ei ameias de rubi e portas de esmeralda,
e muralha de pedras preciosas.
Por essa fundação pode-se chamar cidade de Deus.
—
Cidade-mãe. E normal chamar os cidadães de filhos seus, de
Jerusalém como de qualquer cidade. Além disso Jerusalém é no AT esposa
do Senhor. Quem canta ou escuta esse salmo está predisposto a escutar
alusões matrimoniais e maternais. Estão realmente presentes? Os indícios
são leves.
O verbo ’hb = amar é genérico. Em Jr 31,3, o contexto especifica: “Com
amor eterno te amei... te reconstruirei...”; ao invés, o SI 78,68 refere o amor
de Deus ao monte Sião (masculino). O breve texto repete três vezes “nascer,
ser gerado” ali ou nela. Mas quando se quer dizer “nascido de N”, o hebraico
emprega a construção do verbo com le- e não com be- (por exemplo, no pual:
Gn 46,22; Is 9,5; Rt 4,17); Jr 22,26 diz Vyldtm shm = onde não nascestes,
sem nenhuma conotação maternal.
Um manancial pode ser símbolo sexual, por exemplo, Pr 5,16: “seja tua
fonte bendita, goza com a esposa de tua juventude” (Ct 4,12.15). Mas o
manancial poderia aludir ao do templo (J1 4,18; Ez 47).
Em conclusão, os indícios dum simbolismo maternal são leves aí, o
que pode argüir duas coisas: que o poeta os evitou ou que os deu por
supostos e de sobra conhecidos. Um leitor assíduo de textos matrimoniais
simbólicos no AT escuta sem querer alusões pertinentes ao ler ou meditar
esse salmo.
A cidadania é o símbolo explícito e dominante que configura todo o
poema. Em alguns traços, o poeta evoca a cena dum escrivão registrando
nomes num recenseamento. Assim como nós documentamos nome e nacio­
nalidade, e às vezes residência. O salmo não fala de residência, mas de
cidadania com plenos direitos. O texto citado de Is 22,26 dá-o a entender e
também outros textos que falam do país / terra natal: mwldt (por exemplo,
Gn 11,28; 31,3; Jr 22,10).
O aspecto jurídico do recenseamento é o que mais interessa ao poeta
e talvez por isso não apoiou a mão no registro matrimonial / maternal.
Podemos ilustrá-lo com um texto de contraste e outro ligeiramente
emparentado. Na grande história de amor de Ez 16, o profeta lança em rosto
a Jerusalém: “Es cananéia de casta e berço (mldtyk): teu pai era amorreu
e tua mãe era hitita” (16,3). A Abrão promete Deus: “Faço-te pai de uma
grande multidão de povos. Far-te-ei fecundo sem medida, tirando povos de
ti, e reis nascerão de ti” (Gn 17,5s). O salmo parece concentrar e transfor­
mar essa promessa em Jerusalém, matriarca universal.
Salmo 87
1100
d) Dois paralelos externos
A título de curiosidade, por contraste e semelhança, quero mencionar
dois textos estrangeiros.
Um texto que exalta a cidade de Tebas: lugar da criação de água e terra,
em seguida dos homens nela, que por sua vez fundarão outras cidades
subordinadas; Tebas é o Olho de Ré (deus-sol). “Dela se diz: Que rica em seu
nome de Tebas!” (ANET 8).
Dum ritual hitita para a construção de uma casa ou um templo:
“Este templo que construí em tua honra, não o construí eu, todos os deuses
o construíram. Os deuses artesãos construíram-no.Telepino lançou os fun­
damentos. As montanhas trouxeram madeiras e pedras. As deusas trouxe­
ram a argamassa.
Sob os fundamentos depositaram ouro de fundação. Como o ouro é firme,
límpido e forte, e os deuses olham para ele e é amado de deuses e homens,
que assim olhem para esse templo os deuses e o amem”.
e) Composição e estilo
A brevidade do poema não deixa espaço para uma composição comple­
xa e estudada. A alternância bk-shm-bh-shm-bk não tem importância
especial. Os versículos 1-3 são a loa, que se move da terceira pessoa para
a segunda; 4-6 são a ação jurídica; o último versículo é a celebração coral.
Por um momento, Deus toma a palavra e a iniciativa introduzindo a
enumeração. Esta tem grande importância pelo contexto jurídico da cena;
os cinco nomes são representativos.
Observe-se o gosto pelos plurais: montes, portas, moradas, coisas
gloriosas, cantores; entre os quais ocorre o desfile “um por um”.
5. Exegese
1 .0
salmo começa ex abruto como nenhum outro. Percebeu-o muito
bem Agostinho:
“Fundamentos, de quem? Não cabe dúvida de que fundamentos, sobre­
tudo em montes, referem-se a cidade. Pois bem, este cidadão, cheio de
Espírito Santo, considerando e refletindo sobre seu amor e desejo pela
cidade, como que tendo meditado muito por dentro, irrompe a falar dizendo:
Seus alicerces em montes santos; como se já tivesse falado dela. Como não
tinha falado dela quem mentalmente nunca calou sobre ela? ... Em silêncio
consigo tinha concebido muitas coisas daquela cidade, clamando a Deus;
agora se põe a falar para que ouçam os homens”.
Exegese
1101
Tanto a fundação como os fundamentos indicam o fundamental, o
fundacional. Conhecemos o costume mental hebraico de remontar à ori­
gem. Sobre o alicerce ou fundamento (afim de fundação, como no português)
podemos recordar o grito dos idumeus no SI 137,7: “Desnudai-a, desnudaia até os fundamentos!”. No AT, pela freqüência do tema, essa fundação de
Sião associa-se espontaneamente à fundação da terra (cf. Tebas à criação).
Montes: penso que é plural majestático. Em geral se diz Monte Santo no
singular (Is 11,9; 27,13; 56,7; 57,13, etc.).
2. Ama: pode levar como complemento o que precede e o que segue,
fundação e portas. E sabida a importância que têm as portas na vida do
cidadão da época. Tratando-se da capital do reino e centro de peregrinações,
são antes de tudo portas de acesso. A guisa de exemplo, leia-se o sermão de
Jeremias (17,19-27) com a promessa: “então entrarão pelas portas desta
cidade os reis sucessores de Davi”.
Moradas: embora mishkn quase sempre se diga do santuário (também
no plural SI 84,2), creio que aqui tem sentido profano e não se refere a
supostos santuários locais (já eliminados).
3. nkbdwt: seja sujeito coletivo que qualifica o pregão, seja advérbio
modal, o significado é indubitável: trata-se de algo glorioso, superlativa­
mente glorioso para a cidade. Que maior glória é para Jerusalém: ser
capital de um reino e encarnação da comunidade, ou ser mãe de nações
numerosas? Fundou-a o Senhor para privilégio exclusivo ou para um
destino universal? E a Cidade de Deus, como no SI 46,5 e 48,9. Mas o que
segue rompe com uma tradição e estabelece nova medida de glória. Em Is
60,7.13, o Senhor promete “honrar e enobrecer sua casa, o escabelo de seus
pés”; aqui a cidade tem o título de ‘y rhíhym (com artigo): por ser cidade do
Deus único e verdadeiro, terá um destino universal.
4-5. Fala o Senhor: O hifil zkr significa aqui ir nomeando em voz alta,
ir chamando nominalmente. Encabeçam a lista, coisa inaudita, dois inimi­
gos tradicionais e emblemáticos: a primeira e a segunda opressão, do
primeiro e segundo êxodo. Cumprida sua missão histórica, agora “reconhe­
cem” o Senhor (recorde-se que o Faraó se negava a “reconhecer o Senhor”:
Ex 5,2). A belicosa Filistéia, a opulenta e soberba Tiro, a aventureira e
poderosa Núbia: cada nome suscita uma ondada de recordações negativas.
Todos são conjurados quando o Senhor pronuncia seu nome nesta convoca­
ção pública. Por seu nome chamou o Senhor a Israel (Is 43,1), e depois Ciro
(Is 45,3). Chegou o momento duma nova chamada.
Nasceram ali, e, portanto, são cidadãos sem distinção. Não são estran­
geiros (nkr) nem imigrantes (gr) nem populações submetidas a prestações
de trabalho (2Sm 8); são simplesmente cidadãos. Vários textos falam de
estrangeiros “incorporados” ao povo de Israel (por exemplo, Is 14,1; 56,3.6:
Salmo 87
1102
textos tardios). Mais próximo está Zc 2,15: “Naquele dia, incorporar-se-ão
ao Senhor muitos povos e serão povo meu”. O SI 87 vai mais além.
6. Uma inscrição ou registro no censo, no livro dos vivos ou que vivem
num lugar é dado freqüente (Ex 32,32s; ISm 25,29; Is 4,3; Jr 17,13; Ez
13,19, etc.).
7. O menos que se pode dizer desses mananciais é que funcionam em
sentido simbólico; por isso o salmo encontra-se na trajetória que balizam Ez
47,1-12 (provavelmente autêntico); J14,18; Zc 14,8. Não temos dados para
estabelecer uma seqüência cronológica desses textos. O SI 84,7 mencionava
um manancial no caminho do peregrino. Outra coisa são os mananciais do
SI 87.
Não importa muito que, junto dos cantores, se fale de flautistas ou
dançantes. Trata-se duma festa popular para cantar a glória do novo
destino de Jerusalém.
6. Transposição cristã
Em seu sentido próprio, o salmo já faz ressoar a atrevida profecia. É
muito fácil aplicar-lhe a chave de correspondência tradicional: Jerusalém
= Igreja. Começamos com um texto da carta aos Efésios em que se
combinam a chamada dos pagãos em pé de igualdade, o símbolo do
fundamento ou alicerce e o tema da cidadania. Entrescolho alguns versículos:
2,12
Recordai que não tínheis um Messias, que estáveis excluídos da
cidadania de Israel e éreis alheios às alianças, sem esperança na promessa
e sem Deus no mundo. 13 Agora, porém, graças ao Messias Jesus, vós, os que
antes estáveis longe, estais perto...
19 Portanto, já não sois estrangeiros nem adventícios, mas concidadãos
dos consagrados e família de Deus, pois fostes edificados sobre o alicerce dos
apóstolos e profetas, tendo o Messias Jesus como pedra angular.
Talvez por confusão fonética os Setenta traduziram 87,5 por meter
Sion, e a Vulgata diz Mater Sion-, o que permite a comentadores antigos
citar G1 4,26, onde Paulo diz da Igreja: ela é nossa mãe.
Lido nessa chave, o salmo pode ser um canto alegre da e à Igreja: povos
de todas as raças e línguas e culturas dão-se as mãos para dançar em roda
cantando: “todas as minhas fontes estão em ti”; que é a fonte única das águas
batismais, como reza a liturgia e belamente o diz a inscrição no batistério da
basílica lateranense (cf. Hermenêutica de la palahra, III, 153-155).
O salmo pode-se modular adquirindo tom de censura e admoestação.
Sentimos todos os povos com iguais direitos de cidadania cristã pelo
batismo, ou impomos, nós, os cristãos mais antigos, uma conversão cultural
Transposição cristã
1103
como condição ou garantia da conversão religiosa? Para ser bom cristão, é
preciso professar a filosofia aristotélica? Nossa comum ação de graças ao
Senhor deve soar numa só língua? Como se generosamente nos dignásse­
mos aceitar outros em nossa privilegiada companhia. Contra a uniformida­
de forçada, contra imposições culturais em nome de Cristo, o salmo
proclama com força e alegria: Um por um, todos nasceram nela.
Salmo 88
1. Texto
2
Senhor meu Deus, de dia te peço auxílio,
de noite grito em tua presença.
3 Chegue até a ti minha súplica,
inclina o ouvido a meu clamor.
4 Pois meu ânimo está colmado de desditas
e minha vida está à borda do Abismo.
5 Já me contam com os que baixam à fossa,
sou um pobre homem inválido;
6 confinado entre mortos, como as vítimas
que jazem no sepulcro
dos quais não guardas memória
porque foram arrancados de tua mão.
7 Colocaste-me no fundo da fossa,
em trevas abismais.
8 Tua cólera pesa sobre mim,
lanças-me teus escolhos1.
9 Afastaste de mim meus conhecidos,
fizeste-me repugnante a eles.
Fechado, não posso sair,
10
e os olhos se me anuviam de pesar.
Chamo a ti, Senhor, todo o dia
estendendo as palmas a ti.
11 Farás tu maravilhas2pelos mortos?
erguer-se-ão as sombras3para te darem graças ?
12 Anunciar-se-á no sepulcro tua lealdade
ou tua fidelidade no reino da morte?4
1Todas as tuas ondas
2 Milagres
3As almas
4 Do não ser
Análise filológica
1105
13 Conhecem-se tuas maravilhas na treva
ou tua justiça no país do olvido ?
14 Eu a ti, Senhor, te peço auxílio:
de manhã irá a teu encontro minha súplica.
15 Por que, Senhor, rejeitas meu alento
e me escondes teu rosto?
16 Desgraçado e enfermiço sou desde menino.
Esmagam-me teu terror e teu delírio,
17 sobre mim passou teu incêndio,
teus espantos me consumiram;
18 envolvem-me como água todo dia,5
cercam-me todas a um só tempo.
19 Afastaste de mim amigos e companheiros,
e minha companhia são as trevas.
2. Bibliografia
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3. Análise filológica
2.
íh y ... ywn: repartição estilística refinada das peças: vocativo-advér
bio-verbo-advérbio-compl circunstancial. Anulam-no Duhm Bickell Gun
Graetz Nowack corrigindo íhy sw‘ty ywmm-, respeitam-no as versões anti­
gas.
5 Sem cessar
1106
Salmo 88
6. hpshy: literalmente, livre, liberto, emancipado (Ex 21,2; Dt 15,12s; Jr
34,9). O sentido aqui se presta a várias interpretações. Os antigos tradu­
ziram“livre”. Qimremete aJó 3,19. Livre: do trato comos homens Agélio, dos assun­
tos do mundo Genebrardo Marini, livre e vivo, mas como morto Maldonado, des­
pedido da comunidade dos vivos Del, abandonado ou afastado Phil. Apoiandose em 2Rs 15,5 = 2Cr 26,21, bythpshyt = sanatório, lazareto, fraco ou enfermo
Ros Dathe alegam árabe hfsh I, ou II prostrado Michaelis. Apoiados em Ez
27,20, hopesh = cama, leito Hitzig; da mesma forma alegando o ugarítico hptt
Dah. Corrigem: npshy Briggs Driver, hushabtí = tenho que habitar Kraus.
ngzrw: são cortados Aq Sím Jerôn, repulisti Vg.
8. wkl mshbryk: instrumental.
‘nyt: compl as ondas Vg LXX Sir Baethgen; complemento a mim Sím
Jerôn afflixisti me, Lutero drängest mich Hupfled.
9. shtny: Vg lê 3â pess pl.
tw’bwt: pl intensivo ou forma fenícia do sgl; LXX Vg sing.
kl’: detido, encerrado, encarcerado Tag Sím, entregado LXX Vg.
11.
rp’y m: os mortos, as almas; leram part de rp’ LXX Vg mediei
Teodor Eutímio; gigantes Jerôn (Dt 2,11.20); Targ cadáveres decompostos.
13.
nshyh: do esquecimento, sentido passivo, dos esquecidos LXX
Jerôn Teodor Qim; sentido ativo, dos que se esquecem AgBethgenBelarmino
Titelmann.
16. ’myk: teus terrores Sím Jerôn; leram o verbo mkk LXXetapeinothen,
Vg humiliatus Sir.
ns’ty: lêem passiva LXX Vg.
’pwnh: depwn delirar (árabe ’fh) Ros Del Phil Hitzig; Fr. Delitzsch observa
um advérbio elativo acádico appuna = em extremo, cf. CAD A /II189-190. De
pen duvidar Ibn Ezra Qim. Corrigem para ’pwgh fico teso Duhm Olshausen Gun.
17. çwtwtny: forma intensiva de çmt por reduplicação Qim; alguns mo­
dernos corrigem çimmHüni Duhm But GK 55 d ou para çimme-tatni Hitzig
Gun Kraus, cf. SI 119,139; Dah explica-o como fusão de dois verbos, çmt e mwtt.
19. mhçk: subst com performante treva, que LXX e Vg tomaram por
prep min de minha miséria, por causa de minha miséria Genebrardo
Hoenen Sa Lutero; parecem ter lido hsk Jerôn abstulisti.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
—
Por declaração expressa (tplh), pelo começo convencional e pe
desenvolvimento, este salmo é uma súplica. Mas não é exemplo típico, já
que lhe faltam vários elementos tradicionais do gênero.
Estudo global
1107
Não tem confissão de pecados, o que significa que sua tragédia é
imotivada e inexplicável. Não há descrição de inimigos nem de sua ação
hostil: será que toda a hostilidade concentra-se em Deus? Ao invés, menciona-se o desvio dos amigos. Não se expõe o conteúdo concreto da petição. Não
há promessa de ação de graças, porque aonde vai o orante, não será possível.
—
Essas anomalias estão em parte condicionadas pela situação dum
doente que ora in articulo mortis, na conjuntura da morte. A morte não se
sente como castigo merecido mas como condição e destino. Revela-se assim
com sua presença ineludível, desnuda de razões. Para dar graças é preciso
estar vivo (Is 38,19): a morte aniquila o sujeito que dá graças, corta toda
relação. Talvez a ausência de inimigos humanos induza a concentração no
“último inimigo” (lCor 15,26). Se não expõe o conteúdo da petição, é porque
em tal conjuntura há uma só coisa a pedir. Tampouco Ezequias declara
expressamente sua petição (Is 38,3).
Apontei uma situação de proximidade da morte ou uma doença mortal.
Pelo aspecto de doença, o salmo faz companhia aos SI 6,31 e 38. Pelo que tem
de mortal, é preciso emparelhá-lo com textos como SI 39, Is 38 e Jó 10;
outras passagens soltas de Jó também vêm ao caso.
Lembro, ademais, que se fala do orante e não do autor: este pode gozar
de boa saúde enquanto compõe sua oração para a hora da morte. O salmo
não é o grito angustiado, nem sequer ajaculatória urgente dum agonizante;
é um poema bem composto.
b) Os símbolos da morte
Nenhum texto do AT apresenta concentração semelhante de expres­
sões sobre a morte; tanto que alguém se sentiria tentado a usá-lo para uma
breve tanatologia bíblica. Antes de repassar os mais significativos, propo­
nho fazer uma reflexão de conjunto para entrarmos ou pelo menos nos
aproximarmos da mentalidade do homem do Antigo Testamento.
O problema parte de que a morte, o morto, é dado negativo expresso em
sentença positiva. Se digo “os mortos não existem”, o predicado nega
redondamente, ao passo que ao sujeito se concede existência gramatical.
Este simples problema gramatical ilustra o problema do imaginar e
conceber. Nossa cultura permite-nos mais facilmente conceber a negação
da vida, a não existência; imaginá-la, só podemos com alguma imagem
positiva. Para o ser consciente que é o homem, existir é viver, deixar de
viver é deixar de existir. O que é a não existência? — Não é. Como se
imagina? Transformando imagens da experiência humana numa tentativa
de adivinhar o desconhecido. Aí está o problema: descrever um mundo
desconhecido que não existe.
1108
Salmo 88
Nossa dificuldade para transladar-nos a essa mentalidade estriba no
fato de que o crente cristão crê na existência para além da morte, o filósofo
grego crê na sobrevivência da alma libertada do corpo, o não-crente de hoje
não tenta imaginar-se ou descrever a não-existência. O homem do AT não
tem essas saídas. Não nos distraiamos: com toda sua imageria, o israelita
enfrenta o problema radical da existência humana: “ser ou não ser: a
alternativa é essa”. E o trágico é que a sorte está lançada, a vitória do nãoser e minha derrota são iminentes.
Aproveitando tradições e materiais da cultura circundante, o hebreu
dispõe de repertório regular de imagens, ainda que não pareça contar com
visão orgânica e integrada. O salmo retoma e acumula alguns traços.
— O reino da morte ou dos mortos como espaço. Parte da prática de en­
terrar, ou seja, pôr “debaixo da terra”. Os mortos “descem à cova” ou poço,
baixam para as zonas “inferiores” da terra, jazem no sepulcro, habitam no
sheol (que é o nome técnico, de etimologia incerta); também ’abaddôn
parece ser imaginado como espaço (cf. Pr 1 5 ,1 1 ).
— A morte é uma potência em ação: um incêndio que consome, uma
ondada que arrasta, envolve e traga.
— E qualidade e estado: mundo de trevas, que é o não-ser da luz (viver
é ver a luz do mundo); é prisão sem saída, “terra de esquecimento” onde os
mortos esquecem ou são esquecidos.
O salmo não imagina nem descreve o sheol como cidade com portas
guardadas por porteiros austeros e uma divindade que preside, chame-se Môt
ou Nergal ou Nereskigal. Os habitantes desse reino são os mortos, que se
descrevem por sua inação:j azem, não se levantam, não percebem, não louvam.
Todos esse nada e esse vazio, dir-se-ia que impotentes, instalam-se
com força terrível na consciência do homem, transmutam-se em “horrores
e espantos” e “saciam o ânimo” de sofrimentos. O limite da existência, o
terror do não-ser, acompanhou o orante “desde a sua juventude”; agora é
iminência e presença aterradora.
c) A morte e Deus
A presença de Deus nessa conjuntura converte em mistério a tragédia
humana. Dum lado, a morte é alheia a Deus, doutro lado Deus provoca a
morte como destino do homem. A morte na consciência torna Deus mais
incompreensível.
— Esquece-se ou prescinde dos mortos, não lhes dedica suas proezas
nem lhes manifesta suajustiça (1 1 -1 3 ), nem recebe sua resposta. Realmen­
te, o que não é não pertence a Deus que é.
— Ora, Deus controla e ativa a potência do não-ser / não-viver. Tem que
ser assim porque não existe divindade rival e, ademais, mais poderosa que
1109
Exegese
Deus. Das mitologias circundantes, o israelita não toma a figura dum deus
da morte, Môt; antes polemiza com os que tentam assinar um pacto com
Môt (Is 28,15). O salmo não personifica um sheol cuja garra arrebate a Deus
suas presas (cf. SI 49,16), cuja boca e garganta vorazmente se abra para
devorar (Is 5,14) sem dizer nunca: basta! (Pr 30,16). O versículo 6b evita um
sujeito agente por meio duma passiva impessoal: “são arrancados”.
Mas, se não é uma divindade rival a causante da morte, então é Deus sua
causa única. Impressiona sentir no salmo a Deus como sujeito de ação múl­
tipla e mortífera: não te recordas, colocas, afastas, colocas, rejeitas, escondes,
afastas. E quando o sujeito são substantivos, levam o possessivo que os vin­
cula a Deus: tua cólera, tua ondada, teu terror, teu incêndio, teus espantos.
Será mais compreensível e mais aceitável esse Deus sem rivais e sem piedade?
Num quaternário de qualidades e atos costumava-se revelar Deus: sua
misericórdia, sua fidelidade, sua justiça, seus prodígios; aos mortos se lhes
negam os quatro. Com eles não se empregam e não se lhes manifestam (1213). Em contraste, ao moribundo se lhe revela outro quaternário: cólera,
ondada, incêndio, terror. Será a revelação última de Deus?
d) Composição
Soa a frivolidade pôr-se agora a estudar a arte da composição do salmo.
O poema tem coesão interna irrompível, e os sinais formais contam menos.
Contudo, concedamos algumas observações. O salmo avança por sucessão
de blocos. Duas repetições acompanham o movimento: em 2.10b. 14 tematizase o clamor ou a súplica; em 9 e 19 repete-se o tema do afastamento e
abandono. Pode-se esquematizar o movimento assim:
2-3
4-6
7 -10a
10b
11-13
14
15-19
Introduz a súplica com fórmulas familiares
kl descreve a situação do orante
Deus é o causante de sua desgraça
Nova introdução
Interpela a Deus com perguntas retóricas
Nova introdução
Ação de Deus e situação do orante
5. Exegese
2-3. Se aceitarmos a hipótese de alteração do texto sob a influência de
Is 12,2 e SI 68,20, a introdução combina urgência com ordem: dois verbos,
dois substantivos, dia e noite; se se mantiver o texto, resta uma ordenação
refinada {Análise filológica). O segundo versículo destaca-se pela rima
dupla de sufixos.
Salmo 88
1110
São temas freqüentes no saltério, que aqui se revestem de valor novo.
Apesar de tudo o que sente, o moribundo continua orando a seu Deus
estranho. Na solidão que ele provocou, ele é companheiro e interlocutor;
apesar de sua cólera, deve ser acessível. Orar a Deus é a única coisa que
resta: orando morrerá.
4. Ao aproximar-se em sua descida ao sheol, olha para dentro e vê-se
“saciado de desgraças”: é a impressão do momento ou é o balanço duma
vida? Mais abaixo dirá “desde ajuventude” ou adolescência. Eclesiastes diz
que “não se sacia o olho de ver nem o ouvido de ouvir” (1,8), nem o rico de
suas riquezas (4,8), nem o cobiçoso do dinheiro (5,8). O orante do salmo
conseguiu saciar-se... de desgraças. E o tremendo é que as deixar parece
desgraça maior.
Minha vida aproxima-se do sheol: tendo como sujeito “minha vida”, o
contraste é mais forte do que se dissesse “eu”: as palavras assinalam sem
rebuços o limite decisivo, a contiguidade de vida e morte; fato constante,
que agora se apodera da consciência. Compare-se com a expressão de Nm
16,30.33: “desceram vivos ao abismo”.
5. Sou estimado como: quem faz a avaliação? A voz passiva pode equi­
valer a um impessoal, o agente pode ser ele mesmo. Em todo caso, é ele quem
o pronuncia. Lm 4,2 se queixa: “Os nobres vizinhos de Sião, que avaliam seu
peso em ouro, contam como cacos de cerâmica”; talvez sej a menos ser taxados
já “com os que descem à fossa”: última viagem descendente do homem, selo de
sua decadência constitutiva. “Idêntica é a entrada de todos na vida e igual é a
saída” (Sb 7,6). Ezequiel explora a expressão em sua elegia e marcha fúnebre:
“no meio dos filhos de Adão que descem à fossa” (31,14.16; 32, seis vezes).
Como um varão inválido: se gbr conserva aqui a conotação de fortaleza
ou valentia, a expressão redobra sua força pelo paradoxo (oxímoron).
6. Discute-se o significado de hopshi (vej a-se Análise filológica). Numa
interpretação, hospitalizado entre mortos: imaginemos um hospital de
campanha, quase em primeira linha, com feridos desenganados. Noutra
interpretação, encontra-se finalmente emancipado, como diz Jó 3,19:
“confundem-se pequenos com grandes e o escravo se livra / emancipa de seu
amo”. E um paradoxo: finalmente livre... com os mortos.
Os hllym são os caídos em batalha ou justiçados e assassinados. A
citada marcha fúnebre de Ez 32 repete o termo como estribilho lúgubre.
6a. Não te recordas. O orante do SI 8 maravilha-se: “O que é o homem
para que dele te recordes?” Em seu maravilhoso e inútil sonho, Jó imaginase esperando o reino da morte:
14,13 Oxalá me guardasses no Abismo,
escondido, enquanto passa tua cólera,
e fixasses um prazo para te recordares de mim... !
Exegese
1111
15
Com saudade da obra de tuas mãos,
tu me chamarias, e eu responderia.
Sonhos vãos de que não compartilha o orante desse salmo, para o qual
até Deus se esquece dos mortos. Arrancados: é o verbo de Is 53,8: “arran­
cado da terra dos vivos”.
7. Começa a série em segunda pessoa, fazendo de Deus causante,
quase acusando-o. Começa uma descarga de designações: poço / cova, pro­
fundezas, trevas, fundo / fossa. O último termo tem quase sempre conota­
ção marinha (Ex 15,5; Jn 2,4).
8. Quando o verbo smk se predica de Deus, tem valor positivo, significa
apoiar, auxiliar, sustentar. O salmo retorce a expressão: é “tua ira” que se
apóia em mim. Há um texto que predica smk da cólera própria de Deus, e
também tem sentido positivo: minha indignação diante da injustiça e da
opressão me apoiou e deu forças na batalha: “meu braço deu-me a vitória,
meu furor me apoiou” (Is 63,5).
Teus escolhos: da raiz shbr = romper (como em castelhano “rompientes”).
Vejam-se Jn 2,4; SI 42,8; 93,4, e a variante de 2Sm 22,5 no sintagma único
mshbry mwt = ondada mortal.
9. Inclusive a solidão última do moribundo, abandonado por seus
conhecidos, foi causada por Deus, porque, ao reduzi-lo ao estado em que
se encontra, torna-o repugnante e vitando. Jó queixa-se do abandono
geral, desenvolve-o e tira outra conseqüência: o fato de Deus me ter ferido
não é razão para que me abandoneis; antes, pelo contrário, é razão para
que vos ponhais do meu lado e me façais companhia: “Piedade, piedade de
mim, meus amigos, pois me feriu a mão de Deus!” (19,21; Job, 289s).
9b-10. Confinado, já prisioneiro, antecipando a prisão definitiva.
Ainda com olhos, não tanto para ver e olhar, como para sofrer.
11-13. Tema clássico, exposto aqui com especial vigor. O orante
argumenta com Deus, com uma implicação: que Deus, para revelar suas
qualidades, necessita de alguém que as perceba e reconheça. Revelar é
sempre revelar a alguém. Pois bem, os mortos não são alguém. Portanto,
com a morte do homem Deus sai perdendo: “O que ganhas com minha
morte, com o fato de eu descer à cova?” (SI 30; 10). Por que então Deus se
enfurece? Dir-se-ia raiva de criança que quebra seu brinquedo. Indireta­
mente, o orante está confessando in extremis as qualidades de Deus, pois
meu logo será demasiado tarde. A idéia é tradicional: SI 6,6 de um doente;
115,17; Is 38,18s. Um eco tardio em Eclo 17:
27
28
No Abismo, quem te louva, Senhor,
como os vivos que te dão graças?
O morto, como se não existisse, deixa de louvá-lo;
o que está vivo e são louva o Senhor.
Salmo 88
1 11 2
11. Os rp’ym são as sombras, os manes, as almas das crenças popula­
res. Pr 21,16 menciona “a assembléia das almas” (Provérbios, 409s). Que
não se levantam o diz o texto escatológico de Is 26,14.
12. O saltério usa umas 25 vezes o verbo spr = contar, narrar, expor,
como verbo típico de louvor e reconhecimento. Sobre esse fundo é preciso ler
a negação presente. Não se expõe: por que Deus já não atua e porque não
há quem o explique? Abaddôn é etimologicamente o reino da perdição ou
destruição, do extravio, do nada devorador e insaciável (Pr 27,20).
13. A treva: veja-se o magnífico desenvolvimento de Jó 10. Leia-se, por
oposição, o que diz Is 45 da terra dos vivos:
18
19
Ele modelou a terra, fabricou-a e firmou-a;
não a criou vazia, mas a formou habitável...
Não te falei às escondidas, num país tenebroso;
não disse... Busca-me no vazio.
Terra do esquecimento: expressão única. Com o verbo shkh, SI 31,13:
“esqueceram-me como a um morto”, e Ecl 9,5: “Os vivos sabem... que hão de
morrer; os mortos não sabem nada, não recebem salário quando se esquece
seu nome”.
14. Nova introdução. A manhã é a hora clássica de ser escutado e
receber favores de Deus. O orante ainda subsiste no ritmo de noite e dia;
mas tem pressa porque se acaba o tempo.
15. Em vez de favor, sente a rejeição de Deus. Alguém que rezava com
esperança dizia: “ao despertar me saciarei de teu semblante” (SI 17,15). O
orante deste salmo ora e descobre que Deus cobre seu semblante: como se
o sol se escurecesse ao amanhecer.
16a. O verbo gw ‘ é especialidade de Gn Nm e Jó, e significa em
sentido estrito expirar, morrer. O texto não esclarece se o orante alude
a um fato concreto, uma doença grave contraída na adolescência, ou
antes expressa a consciência clara de ser mortal. “Sinto-me morrer”
seria uma tradução de compromisso; também vale nossa expressão
“estar à morte”.
16b. E o momento mais trágico, quando Deus se torna terrorífico,
porque entrega o homem à morte. Para sentir a força da expressão, vamos
inseri-la num contexto de paralelos:
Gn 15,12
Ex 15,16
SI 55,5
Jó 9,34
13,21
um terror intenso e sombrio caiu sobre Abrão
assaltaram-nos teu espanto e teu pavor
o terror da morte cai sobre mim
que não enlouqueça com seu terror
que manterás longe de mim tua mão
e não me espantarás com teu terror.
Transposição cristã
1113
O terror da morte é terror sacro: o terror de Deus é intimação de morte.
Mais que a morte, é trágica a consciência de morrer; os animais morrem
sem saber. No juízo das trevas comenta Sb 17,21:
Somente sobre eles se estendia uma pesada noite,
imagem das trevas que os deviam receber.
Mais que as trevas, porém, eram eles cargas para si mesmos.
17-18. Incêndio e água aliados em sua capacidade destruidora: o incên­
dio atravessa, as águas envolvem sem cessar e sem resquício. O pobre
moribundo sente-se centro dessa desapiedada e cósmica devastação.
19.
Abandonado de todos, porque Deus os afasta, fica com a só
companhia das trevas. Assim termina o salmo: a primeira coisa que Deus
criou foi a luz, a última coisa que encontra o homem é a treva.
6. Transposição cristã
Os comentadores antigos põem esse salmo nos lábios de Jesus, recor­
dando a luta do Getsêmani e o abandono na cruz. Se alguém estava certo
da ressurreição, era Jesus; essa certeza não lhe poupou a amargura da
"taça” que a vontade do Pai lhe entrega:
Mc 14,33 Começou a sentir terror e angústia, e lhes disse: Sinto uma
tristeza mortal.
Lc 22,44 Entrando em combate, orava mais intensamente. Corria-lhe o
suor como gotas de sangue caindo no solo.
Na cruz estende as mãos e ora ao Pai. Quando morria, toda a terra ficou
em trevas.
E preciso deixar que o salmo desenvolva sem paliativos todo seu
patetismo e assim nos ajude a contemplar a trágica grandeza da morte de
Jesus. Só assim mostrará toda sua força a ressurreição. Uma vez que foram
dados corretamente os passos, é legítimo, desde a praia da ressurreição,
olhar para trás e dar outra resposta às perguntas dos versículos 11-13:
pelos mortos certamente faz prodígios e mostra-lhes misericórdia:
lPd 3,18 Sofreu a morte no corpo, ressuscitou pelo Espírito e assim foi
proclamar a vitória também para as almas encarceradas.
ICor 15,54 Quando o corruptível se revestir de incorruptibilidade e o
mortal de imortalidade, cumprir-se-á o escrito: Onde fica, ó Morte, tua
vitória, onde fica, ó Morte, teu aguilhão?
O último versículo do salmo já não é a última palavra: depois da treva,
triunfará a luz.
Salmo 89
1. Texto
2
3
4
5
6
7
8
9
Cantarei a lealdade do Senhor eternamente,
anunciarei de idade em idade tua fidelidade.
Afirmo: tua lealdade está construída nos céus,
neles está firme tua fidelidade:
Selei uma aliança com meu eleito,
jurando a Davi meu servo:1
“Fundarei para ti uma linhagem perpétua
e construirei para ti um trono por todas as idades
Proclamem os céus tuas maravilhas, Senhor,
tua fidelidade na assembléia dos Santos.2
Pois, quem sobre as nuvens se compara ao Senhor,
ou assemelha-se ao Senhor entre os seres divinos?
Deus é temido no Conselho dos Santos,
é grande e terrível para toda a sua corte.
Senhor Deus dos Exércitos, quem como tu ?
Teu poder e fidelidade, Senhor, fazem-te corte.
10 Tu dominas a soberba do mar
e amansas a intumescência das ondas.
11 Tu transpassaste e destroçaste Raab,3
com braço potente dispersaste o inimigo.
12 Teus são os céus, tua é a terra;
o orbe e tudo o que contém4 tu o alicerçaste.
13 Tu criaste o Norte e o Sul,5
o Tabor e o Hermon aclamam teu nome.
1vassalo
2 anjos
3 o Monstro
4 o povoa
5Setentrião e Meio-dia
Salmo 89
14 Tu tens um braço valoroso;
forte ê tua esquerda, sublime tua direita.
15 Justiça e Direito sustentam teu trono,
Lealdade e Fidelidade apresentam-se diante de ti.
16 Ditoso o povo que sabe aclamar-te:6
caminhará, Senhor, à luz do teu rosto.
17 Teu nome é seu gozo constante,
tua justiça é seu orgulho.
18 Tu és sua honra e sua força;
com teu favor ergue-se nosso chifre.
19 Porque do Senhor7é nosso Escudo,
do Santo8 de Israel nosso rei.
20 Um dia falaste em visão
declarando a teus leais:
“Cingi o diadema a um valente,
exaltei um soldado da tropa”.
21 Encontrei em Davi um servo9
e com óleo sagrado o ungi.
22 Minha mão estará firme com ele
e meu braço fa-lo-á vigoroso.
23 Não o enganará o inimigo
nem os criminosos o humilharão.
24 Diante dele esmagarei seus adversários
e ferirei os que o odeiam.
25 Minha fidelidade e lealdade o acompanharão,
em meu nome elevar-se-á seu chifre.
26 Estenderei sua esquerda até o Mar
e sua direita até os Rios.
27 Ele me invocará: “Tu és meu pai,
meu Deus, minha Rocha de salvação”.
28 E eu o nomearei meu primogênito,
excelso entre os reis da terra.
29 Guardar-lhe-ei lealdade eterna
e minha aliança com ele será estável.
30 Dar-lhe-ei linhagem perpétua
e trono duradouro como o céu.
6experto em aclamar
7 o Senhor
8 o Santo
9 vassalo
1115
Salmo 89
1116
31 Se seus filhos abandonarem minha lei
e não seguirem meus mandamentos,
32 se profanarem meus preceitos
e não guardarem meus mandatos,
33 castigarei com varas seus delitos
e com chicotadas suas culpas;
34 mas não lhes retirarei minha lealdade
nem desmentirei minha fidelidade;
35 não profanarei minha aliança
nem mudarei10minhas promessas.
36 Uma vez jurei por minha santidade
não faltar com a minha palavra a Davi.
37 Sua linhagem será perpétua
e seu trono como o sol em minha presença;
38 como a lua que permanece sempre:
testemunha fiel nas nuvens”.
39 Mas tu, encolerizado com teu Ungido,
o rejeitaste e desprezaste;
40 rompeste a aliança com teu servo11
e profanaste pelo solo seu diadema.
41 Fizeste brechas em suas cercas
e derrocaste suas fortalezas.
42 Qualquer viandante a saqueia12
e é a afronta de seus vizinhos.
43 Levantaste a destra de seus inimigos,
e encheste de gozo seus adversários.
44 Dobraste-lhes a folha13da espada
e não o sustentaste na batalha ...
45 Empanaste seu esplendor14
e derrubaste seu trono por terra.
46 Encurtaste os dias de sua juventude
e o vestiste de ignomínia.
47 Até quando, Senhor, te manténs escondido
e arde como fogo tua cólera?
10anularei
11vassalo
12 despoja
13o fio
14 despojaste-os de sua pureza
1117
Bibliografia
48 Recorda o que dura a minha vida:
criaste em vão os humanos?
49 Que homem viverá sem ver a morte?,
quem livrará sua vida da garra do Abismo ?
50 Onde está, Dono meu, tua antiga lealdade,
o que tua fidelidade jurou a Davi?
51 Olha, Dono meu, para a afronta de teus servos,15
o que tenho que agüentar de todos os povos:
52 como afrontam as pegadas de teu Ungido.
*
Bendito o Senhor para sempre! Amém, amém.
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M. Dahood, Divine Name in Ps 89,16-17 and 140,9, Bib 61 (1980) 277-278.
P. Proulx - J. O’Callaghan, La lectura del Sal 89,21b (LXX) en 1 Clem 18,1,
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S.
M. Paul, Adoption formulae: a study o f cuneiform and biblical legal
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J. P. M . van der Ploeg, Le sens et un problème textuel du Ps 89, em FS
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P. Bordreuil, Les grâces de David et 1 Mac 2,57, V T 31 (1981) 73-75.
Z. Weisman, The nature and background ofbahurin the OT, VT 31 (1981)
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T. VejolaJDavidsverheissung und Staatsvertrag. Beobachtungen zum
Einfluss altorientalischer Staatsverträge au f die biblische Sprache am
Beispiel von Ps 89, Z A W 95 (1983) 9-31.
E.
T. Mullen, The divine witness and the Davidic royal grant. Ps 89,37s,
JBL 102 (1983) 207.-218.
P. G. Mosca, Once again the heavenly witness ofP s 89,38, JBL 105 (1986)
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T. Vejola,The witness in the clouds: Ps 89,38, JBL 107 (1988) 413-417.
Lista alfabética
Baumstark
Blommendaal
Bordreuil
Brunner
Clifford
Crenshaw
Dahood
Dequeker
Dumortier
34
72
81
58
80
70
59,80
63
72
Eissfeldt
Hofbauer
Levenson
Lipinski
Miller
Mosca
Mowan
Mullen
Neusner
62,64
59
79
67
70
86
63
83
65
1119
Análise filológica
0 ’Callaghan
Paul
v. d. Ploeg
Podechard
Proulx
Ravanelli
Reali
Saebo
80
80
81
25
80
57,80
78
78
Sarna
Schlisske
Tournay
Vejola
Ward
Weisman
v. d. Woude
63
73
76
83,88
58,61
81
63
3. Análise filológica
2. ‘wlm : uso adverbial temporal, paralelo de Idr wdr.
3. ‘wlm: a mesma coisa.
shmym: adverbial de lugar, ou nominativo completado com bhm GK
143 c.
6. shmym: sujeito do proclamar, ou adverbial local paralelo de bghl
com wywdy impessoal regendo todo o versículo Joüon 155 b.
7. íym: plural como SI 29,1; Vg Dei.
8. n‘rç: temido, paralelo de nwr\ glorificado LXX Vg Eutímio Belarmino.
rbh: unido ao anterior segundo os massoretas: como adj de swd Sím
•Jerôn, como adv Qim Marini Ros. Lêem adjetivo de Deus LXX Vg, mudando
em rb hw’, Graetz; forma arcaica qatala conservada pela rima de nwr’.
9. hsyn: predicado de yh com elipse da cópula ’th-, para a forma
nominal Joüon 88 Eg.
10. bsw’: infinitivo apocopado de ns’, elationes Jerôn.
11. rhb: os antigos traduzem o nome próprio por Soberbo, Arrogante;
identificam-no com o Faraó TargTeodor; Eutímio distingue: sentido sensí­
vel qualquer homem soberbo, sentido inteligível o diabo, outros dizem o Faraó.
14. ydk: tua esquerda, polarizado porymynk tua direita DBHEyd 1 a).
18. trym: ketib hif sujeito Deus, quere qal sujeito qrn.
19.1-... 1-: preposição de pertença, de origem ou autoria Jerôn a Do­
mino-, nota de nominativo Ros como Is 32,1, Wellhausen; adv realmente
como El Amarna Gaster Dah.
20.
‘zr: auxílio LXX Jerôn Ros Del, complemento de shwyty com regime
í como SI 21,6; ‘l hostil contra Hitzig; corrigem para nzr diadema / coroa
Olshausen, Duhm Gun Kraus. Dah ‘zr como ugar gzr moço, campeão, shwh
como ugar twy governar, ‘l comparativo de preferência, segue-lhe Rav.
22. ’shr: relativo referido a ‘mw Jerôn Del Gun Kraus; explicativo
equivalente de K ’shr LXXgar GB 74-75.
23.ysh ’: hif de nsh’ enganar Sím Jerôn; aproveitar-se de LXX Vg; de
nsh exigir, cobrar imposto Qim; corrige parais' Dah.
Salmo 89
1 12 0
24. ’gwp: com mater lectionis GK 8 c. 47 f.
29. ’shmwr: ketib com mater lectionis.
33. wpqdty: apódose depois das condicionais de 31-32.
34. ’pyr: de pwr alomorfo de prr cf. SI 33,10; Ez 17,19; dispersar LXX
Vg; corrigem para ’syr retirarei Duhm Gun cf. Jerôn auferam.
36. ’m: partícula de juramento negativo GK 149.
38. ykwn: relativa assindética Joüon 158 a.
‘d: testemunho referido a lua; muitos antigos referem-no a Deus Sím
Eusébio Teodoreto Atanásio Eutímio; da lua Qim Calmet; arco-íris Geier.
40. n’rth: para a mater lectionis GK 44 g.
41. mhth: de htt piei quebrar, arrasar; Vg in formidinem objeto de
espanto.
44. çwr: a ponta ou o fio da espada Qim; auxílio LXX Yg, robur Jerôn.
45. mthrw: subst com performante e dages eufônico Qim, cf. mqdsh Ez
15,17; lêem a prep min Vg Phil Del; traduzem purificação cultual Targ
Eutímio Teodor.
mgrth: GK 44 g.
48. ’ny mh hld: frase com predicado exclamativo, completiva de zkr-,
hyostasis LXX, substantia Vg, de profundo Jerôn.
‘I mh shw’\ por que em vão? BHS propõe corrigir ‘wlm unido ao
hemistíquio precedente e hshw’ interrogativa e adv.
49. yahyh, ymlt: relativas assindéticas.
50. nshb‘t: idem.
51. rbym : anteposto ao subst SI 32,10; Pr 7,26; Ne 9,29 Del; rbym
‘mym regido por hrpt: subentendido antes de kl Ros, lendo Z- em vez de kl
Hitzig; corrigem: para klmt Kraus, rbym para ríbê Gun.
52. ’shr: eqüivalente de k’shr GB 74-75; de ky depois de zkr Davidson,
Hebrew Syntax 3â ed. 146.
4. Estudo global
a)
Gênero: duplo?
—
Já o primeiro versículo nos diz, com o seu “vou cantar”, que come
um hino. Continuamos lendo, e confirma-se a definição: o céu soma-se ao
louvor do Deus incompreensível. No v. 20 começa amplo oráculo, que se
estende até o v. 39; mas devidamente se introduz como um dos temas
recordados no hino. Se o v. 16 introduz uma bem-aventurança com ’shry, fálo sem romper a estrutura do hino. Até o v. 38 temos um hino ao Senhor por
suas ações cósmicas e por uma insigne ação histórica.
Estudo global
1121
— No v. 39, com um simples “mas tu”, muda o tom e abre-se uma
súplica que se prolonga até o final, em quatorze versículos. O gênero de
súplica é inconfudível, com a descrição da desgraça presente, a menção dos
inimigos, as perguntas e imperativos dirigidos a Deus.
Como se soldam essas duas peças? Encontramos caso parecido no SI
40, que da ação de graças passa à súplica. Junta o SI 89 duas peças
autônomas? A relação temática e os contatos verbais da última secção com
a precedente são demais fortes. Uma das duas peças está em função da
outra? Ao definir a relação, separam-se as opiniões.
— Pode-se imaginar que o hino existia completo: basicamente um hino
pela eleição da dinastia davídica, concebida em contexto cósmico. Um
acontecimento trágico questionou o valor do hino e alguém decidiu atualizálo acrescentando uma súplica de circunstâncias. Mas esse não é o modo
normal de proceder: em circunstâncias semelhantes, teriam encomendado
ou composto uma súplica específica, como os SI 44 e 74, sem ligá-la
artificialmente a hino tradicional.
— Parece-me mais acertado partir da súplica. Em momento trágico para
o rei e a dinastia, compõe-se uma súplica em que se recorda o passado por
contraste e canta-se a grandeza de Deus como motivação e apela-se a suas
promessas. Tudo isso é lógico e tem paralelos. Recordar por contraste o pas­
sado pessoal ou nacional feliz fazem-no outros salmos de súplica, por exemplo
22,5.10; 44,2; 71,6.17, e a imagem da vinha no SI 80. Aduzir como motivação
a grandeza de Deus ou apelar à sua promessa pode-se ilustrar com outros
exemplos (71,19; 56,5). Particularmente apropriado é o SI 74, que comparti­
lha de vários dados com o 89: perguntas e imperativos, menção do ultraje
hrp) e da aliança e recordação da ação cósmica de Deus nos versículos 12-17.
— Situação. Uma desgraça grave do rei ou da dinastia é o mais que
podemos delimitar com certeza. Buscar mais precisão histórica é passar ao
terreno do provável. Alguém sugeriu a morte trágica e escandalosa de
Josias (escandalosa em termos de retribuição); outros propõem a catástrofe
de 586, no mesmo espírito da quarta Lamentação:
20
Ao Ungido do Senhor, ao que era nosso alento,
caçaram-no numa armadilha;
aquele de quem dizíamos: A sua sombra
viveremos entre os povos.
b) Hino paradoxal à lealdade de Deus
Sem desdenhar o que se disse até aqui, façamos a prova de levar a sério,
tal como soa, o começo do salmo. O orante começa com uma declaração de
propósito. Não a emendemos: Cantarei eternamente a lealdade do Senhor.
Em meio à tribulação, um canto à lealdade do Senhor. Apesar da tribulação,
Salmo 89
1122
cantamos a lealdade do Senhor. Quando os fatos parecem desmentir essa
lealdade, nós a afirmamos e a cantamos. E continuaremos a cantá-la não
obstante tudo. Porque a lealdade fundamental não se apóia em nossa
prestação, mas no compromisso com que Deus se empenhou. Porque cremos
em sua promessa, cantamos sua lealdade. O que dizia o SI 56: “glorio-me na
promessa do Senhor”.
Há outro salmo que canta pura e simplesmente a lealdade / misericór­
dia de Deus: por sua grandeza sobre todos os deuses, por sua ação criadora,
sua ação libertadora, por sua ajuda quotidiana. Mas, que diferença de tom!
O SI 136 repete como estribilho “porque eterna é sua misericórdia /
lealdade”, longe de desgraças ou ameaças. E fácil cantar a lealdade de Deus
quando tudo vai bem; o difícil é cantá-la quando os fatos parecem desmentila. E esse o paradoxo do SI 89.
c) Composição
Podemos estudar a composição do poema a partir de vários pontos de
vista: desenvolvimento do tema, disposição de seus componentes, relações
entre as peças, eixo semântico. Uma primeira impressão de conjunto dizme que o salmo procede de grande coerência intelectual, quase demasiada.
Sente-se o teólogo mais que o poeta.
— Palavras-chave e eixo semântico. Dois termos impõem-se à primeira
leitura: hesed (com um hsyd) e variações da raiz ’mn. Ambas percorrem por
todas as subdivisões do salmo:
hsd
’mn
2a
2b
3a
3b
6b
9b
15b
15b
25a
25a
29a
29b
34a
34b
50a
38b 50b
O
paralelismo nos sete casos de hsd demonstra a eqüivalência de
ambos os termos, confirmando longa tradição.
Fazem parte do mundo dessa lealdade: a aliança (4.29.35.40), seu
conteúdo é o trono dinástico (5.15.30.37.45), o vassalo beneficiário (4.29.35.40),
que é Davi (4.21.36.50). Também fazem parte dele a estabilidade: kwn
(3.5.22.28) e a perpetuidade (2.3.5.29.37.38). No outro pólo do eixo agrupamse por ambas as partes o enganar e mentir (23.36), profanar (32.40), mudar
e rejeitar (35.39), não seguir e não guardar (31.32), também a vaidade (48).
Lealdade e fidelidade, assim como também seus contrários, realizamse numa série de ações positivas e negativas que constituem em grande
parte o desenvolvimento do poema, por exemplo, pôr o diadema e ungir,
derrotar os inimigos e ajudá-los, etc.
—
Palavras repetidas. Muitas vezes, o poeta hebreu repete palavras
com função estrutural, como sinais externos da organização do poema.
Nesse longo salmo, se bem que sejam muitas as palavras que se repetem
Estudo global
1123
duas ou mais vezes, são sinal de unidade temática sem função estrutural
rigorosa.
Tomemos, por exemplo, “braço, mão, direita”: o braço de Deus age na
criação (11.14) e na história (22), a mão de‘Deus (14 e 22), a do rei (26), a
do inimigo último ou o Abismo (49); a destra de Deus (14), do rei (26), do
inimigo (43). Notável é a repetição de ’atta = tu (11.12.13.18.27.39): sua
função é enfática, não estrutural. A abundância de palavras repetidas está
condicionada pela amplidão do poema e por sua unidade temática, ainda
que com mudança de situação.
—
Disposição. Considero os versículos 2-5 como introdução progra
mática de todo o poema: propósito hínico do orante e antecipação do oráculo
dinástico, citando palavras de Deus. Uma divisão maior separa a parte
hínica e a súplica com o corte em 38 / 39. O hino divide-se na secção cósmica
e na histórica (6-19 e 20-38). A súplica divide-se numa secção enunciativa
e outra argumentativa (39-46 e 47-52). Divisões e subdivisões aparecem
num quadro que é esquema e resumo:
0
1
II
2-5
Introdução: 2-3 fala o orante
4-5 fala Deus (em citação)
6-38 Primeira parte: hino
6-19
ação cósmica de Deus
6-9 grandeza incomparável do Senhor
10-15 senhorio cósmico
16-19 resposta do povo
20-38 promessa à instituição dinástica
20-30 instituição
31-38 condições
39-52 Segunda parte: súplica
39-46 ações recentes do Senhor
47-52 perguntas e petições
d) Relações entre as partes
A relação entre hino e súplica é tão óbvia que dispensa insistir sobre
ela: apresenta simplesmente o que Deus fez outrora e o que faz agora.
Verbos de ação divina na segunda pessoa sucedem-se em cascata: não é a
inação de que se queixam textos como 74,11 ou 60,12.
Mais importante e menos visível é o paralelismo entre o senhorio
celeste do Senhor e o domínio terrestre do monarca: assim na terra como no
céu. Com um texto difícil e duvidoso, o v. 3 nos alerta: lealdade e fidelidade
são inicialmente realidade ou construção celeste, antes de se voltar sobre
um segmento de história humana.
Na altura celeste reside uma corte formada pelos shmym e os qdshym
= Céus e Santos. Não detêm o poder supremo, mas reconhecem a superio­
Salmo 89
1124
ridade incomparável de seu Soberano: nenhum “ser divino” se lhe pode
comparar (7). Yhwh ganhou-se o título derrotando as forças cósmicas do
caos, pelo que lhe pertence o universo e se senta no trono real (15).
Na terra, Deus “escolhe” um entre o povo, ergue-o sobre os demais, faz
com que vença seus inimigos (23-24). Assim se realiza na terra, por doação
e imagem, a fidelidade “construída” no céu.
Dessa forma, o teólogo inverteu a ordem do conhecer para falar da
ordem do ser. Na ordem do conhecer, primeiro é a experiência humana da
realeza; num segundo tempo, esta se projeta como símbolo sobre a divinda­
de; num terceiro momento, a realeza divina apresenta-se como origem e
modelo da humana. O processo repete-se com outros símbolos: por exemplo,
o repouso sabático, o juízo.
Se a dinastia se extingue, não só falta na terra a lealdade divina, mas
desaparece uma imagem e mediação do Senhor. Pode tolerá-lo o Senhor
construtor da lealdade? E conciliável com seu juramento sacrossanto?
e) O modelo babilónico: uma suspeita
Ao refletir sobre a cena de Yhwh vencedor do caos, que se assenta no
trono e recebe a aclamação dos seres celestes, a pessoa sente-se assediada
pela recordação de mitos babilónicos e chega a suspeitar que o autor hebreu
os levou polemicamente em conta e os “purificou sete vezes” (cf. SI 12). Se
aceitarmos datação exílica para o salmo, a suspeita adquire força. Façamos
a prova com o grande hino de exaltação do Deus Marduk, que costumanos
denominar por seu começo Enuma Elis:
Diante da rebelião e ameaça de Tiamat, a deusa do oceano tempestuoso,
com seu exército aniquilador, fracassam duas grandes divindades, Ea e Anu.
Então os deuses convidam Marduk a lutar para vencê-la, e ele aceita com
condições: “Se marcho como paladino vosso, venço Tiamat e vos salvo, pro­
clamai que meu decreto será supremo... que quanto eu ordenar será irrevo­
gável” (tabuinha II, 23-29 e III, 57-63).
Os deuses aceitam e num banquete lhe conferem honras supremas e o
aclamam: “Declararam-no seu paladino, fizeram-lhe um estrado, e ele se
sentou para receber mando. Disseram: “Tu és supremo entre os deuses e tua
decisão é suprema. De hoje em diante, tuas ordens serão incontrastadas.
Elevar e humilhar estará em teu poder. O quanto disseres, será verdadeiro,
e tua palavra não se dirá em vão. Nenhum dos deuses usurpará teus
direitos”. Depois de superar uma prova, recebe as armas e marcha ao
combate, derrota Tiamat e de seu cadáver criou o universo: céu e terra, fixou
o firmamento, definiu o ano assinalando zonas. “Mandou sair a lua e lhe
encarregou a noite”, ainda que cedendo o posto ao sol (IV, 10-22). “Definiu os
limites da noite e do dia” (V, 46).
Os deuses o reconhecem a aclamam: “Antes Marduk era nosso amado
filho, agora é nosso rei” (V, 109. 152).
Estudo global
1125
Depois Marduk cria o homem do sangue do capitão rebelde, Kingu, para
serviço dos deuses. Estes propõem que se construa um santuário, uma
morada e um trono: e se constrói Babilônia.
Do poema babilónico o que mais nos interessa aqui é a homenagem dos
deuses a Marduk como soberano, sua vitória sobre o oceano Tiamat, sua
ação criadora e soberania cósmica, sua entronização. A esses dados corres­
ponde a secção hínica de nosso salmo (6-19). Chegados a esse ponto, em vez
de criação do homem encontramos a eleição e nomeação dum rei e duma
dinastia terrena. Em outras palavras, o que o poema acãdico diz de Marduk
o diz o poeta hebreu de Yhwh.
Terminada a comparação e apontadas algumas correspondências
sugestivas, repito o que se disse. A inspiração e alusão polêmica ao mito
babilónico é uma suspeita de leitor. Resta como seu valor primário a
ilustração por semelhança.
D O tema do construir
Duas vezes no começo do salmo (3.5) encontramos o verbo bnh =
construir, e cinco vezes o paralelo e quase sinónimo kwn = estabelecer
(3.5.15), mkwn (22.38). O segundo predica-se da fidelidade, da estirpe, do
trono, da mão e da lua; o primeiro predica-se da fidelidade e do trono. O que
significa que a lealdade “é construída”?
Antes de tudo é preciso notar que bnh tem em hebraico arco maior de
significados: construir, fabricar, modelar (Eva em Gn 2), formar família.
Contudo, outros autores preferem yçr = modelar, formar: em Is 40-55
conto três casos de bnh diante de dezoito de yçr-, o SI 79 na passagem
paralela usa yçr. Creio que a repetição de bnh é no começo do salmo
intencionada e significativa. O orante vai cantar a lealdade e fidelidade
de Deus para sempre: a garantia é que essa virtude primeiro foi “fabricada”
no céu e como virtude celeste poder-se-á transferir e atuar na terra. No
citado poema babilónico (VI, 113) leio: “Que faça na terra uma imagem do
que fez no céu”. A duração celeste está automaticamente garantida, a
terrestre estará garantida pela “construção” dum trono duradouro “como
o sol e a lua” (30,37s), e pela fundação duma “estirpe” perene (5.30.37). O
trono assim “construído”, a imagem do divino (15), e assegurado (30.37),
poderá ser “testemunho” ou sinal sobre as nuvens (38, se não se refere à
lua).
Segundo ponto, menor, é que no citado Enuma Elis cada vitória ou ação
criadora tem que desembocar numa construção: sobre o Apsu (I, 70-77), o
estrado ou trono para Marduk (IV, 1), as estações celestes dos deuses
maiores (V, 1), e, finalmente, Babilónia (VI, 51 e seguintes).
1126
Salmo 89
Terceiro ponto. O eixo da promessa dinástica, segundo 2Sm 7, que é
modelo ou corresponde ao salmo, é a “construção”: Davi quer “construir”
uma Casa = templo; o Senhor responde que ele “construirá” para Davi uma
Casa = dinastia. O salmo extrema o jogo: o Senhor constrói para Davi e sua
estirpe um trono perpétuo, aplicando-lhe a lealdade / fidelidade que
construíra no céu. Se a expressão “se constrói lealdade” desconcerta no
começo do salmo, não é preciso eliminá-la nem retocá-la, mas buscar seu
sentido e seguir sua presença no resto do poema.
g) O Sl 89 e 2Sm 7
O parentesco de ambos os textos, com coincidências de palavras e
frases, é indubitável; a relação de precedência ou dependência é duvidosa.
Precisamente pela identidade de tema e pelas coincidências verbais,
destaca-se mais a diversa formulação do salmo. Para facilitar a consulta
comparada, copio aqui algumas frases do oráculo de Natã e seu contexto
(2Sm 7):
5
7
8
9
11
12
13
14
15
16
26
27
E s tu que vais construir uma casa para que eu habite nela?
Porventura encarreguei alguém... de me construir uma casa de
cedro?
Eu te tirei dos apriscos... para ser chefe de meu povo, Israel.
Eu estive contigo... aniquilei teus inimigos.
O Senhor comunica-te que te buscará uma dinastia (y‘sh byt).
Estabelecerei depois de ti uma estirpe tua (hqymty sr‘k).
Ele edificará um templo em minha honra (ybnh byt),
e eu consolidarei seu trono real para sempre (wknnty ’t ks’ mmlktw ‘d
‘wlm).
Eu serei para ele pai, e ele será para mim filho;
se se desviar, eu o corrigirei com varas e golpes (bshbt wbng‘y m ),
mas não lhe retirarei minha lealdade (whsdy 1’ ysw r mmnw).
Tua casa e teu reino durarão sempre em minha presença,
teu trono permanecerá para sempre.
Que a Casa de teu servo Davi permaneça em tua presença.
Tu revelaste a teu servo Davi: Edificar-te-ei uma casa (byt ’bnh lk).
Os comentadores estão de acordo em que o oráculo foi submetido a
sucessivas elaborações, mas não conseguem definir um processo certo ou
bastante provável. O texto de 2Sm contém frases com paralelismos e
imagens poéticas junto a frases de feitura prosaica.
Inclino-me a pensar que o Sl 89 está mediata ou imediatamente
inspirado no texto tradicional de 2 Sm ou numa versão semelhante não
conservada. O poeta elabora ou amplifica livremente seu modelo: com
paralelismos binários ou quaternários, com linguagem mais imaginativa e
mais expressiva, incorporando reminiscências de outras tradições.
1127
Exegese
Outros textos paralelos ou aparentados são: 2Sm 23,1-5; Is 55,3; Jr
33,20-22, e salmos reais: 2, 110, 132.
5. Exegese
2-5. Formam a introdução programática, com frases do orante e
palavras oraculares de Deus; muda o sujeito sem aviso prévio. O canto do
salmista é para a posteridade, perdurável como o tema de que trata e como
sua garantia celeste. Lealdade e fidelidade (hendíade) são antes de tudo
construção celeste e como tal perdurável (cf. SI 36,6); do céu podem agir e
comunicar-se, sem perder eficácia e perenidade. O momento atual, desgra­
çado e humilhante, não anula o programa de longo alcance e a longo prazo.
O canto será resposta e memorial do benefício divino.
Deus toma a iniciativa: “escolhe” “Davi como vassalo” e concede-lhe
“com juramento” “uma aliança”, em favor dele e de seus “sucessores” no
“trono”:
2Sm 23,5
Minha casa está firme junto de Deus,
que me concedeu um pacto eterno,
bem formulado e mantido.
O termo bhyr é típico de Is 40-65 e SI 105 e 106: o sujeito que escolhe
é sempre Deus. Juramento a Davi (2Sm 3,9; SI 110,4; 132,11).
6-9. O que diz o orante e o que dizem os celestes fundem-se sem
distinção clara, ainda que tudo fique englobado no ato de dizer do orante.
A pergunta: quem como... ? soa na terceira pessoa em 7, em segunda pessoa
em 9: a primeira poderia ser a aclamação dos celestes, a segunda é
pronunciada pelo homem; se aplicarmos esse critério, os celestes também
dizem 8. Mas a atribuição é duvidosa e talvez menos importante diante do
conteúdo. Os celestes reconhecem Yhwh como supremo e incomparável; o
orante escuta-o ou sabe-o e se faz eco.
Os Céus estão personificados; a assembléia dos Santos está formada
por seres divinos (bny íym ), que são a corte e conselho do Senhor.
6. No SI 19,2: “os céus proclamam” (e não mais existem divindades). E
normal apelar aos céus como testemunhas, por exemplo, Is 1,2; Dt 32,1.
Santos (qdshym) como nome ou título de divindades ou seres celestes (Jó
5,1; 15,15; Dt 33,3; Zc 14,5); equivalem a mVkym e ‘bdym segundo Jó 4,18
comparado com paralelos. Compare-se com a expressão “deuses santos” de
Dn 4,5.6.15; 5,11, e a explicação “anjos santos” de Lc 9,26.
7. Para a comparação usa os verbos ‘rk e dmh, verbos que junta Is
40,18; dmh também em Is 40,25; 46,5.
1128
Salmo 89
8. O Deus terrível (Sl 76; Is 2,9-19). O conselho de Deus (Jr 23,18.22;
Jó 15,8).
9. Introduz novo elemento: um título (hsyn = poderoso) ou uma
qualidade (hosen = poder), que acompanha a fidelidade; alguns corrigem
para ler hsdk. O rodear implica pluralidade.
10-15. Não é puro reconto, mas proclamação. Notável por seu estilo
categórico, com cortes e variações oportunas, insistente no pronome tu e é
generoso em verbos de ação, com mudanças acertadas de sujeito. (Percebese em texto como esse necessidade de declamar em voz alta).
Dedicam-se quatro hemistíquios à luta primordial e à vitória sobre as
forças do caos; outro hemistíquio completa com a “fundação” do orbe (sobre
as águas). Em vez da criação, enuncia-se o domínio sobre “céu e terra”. No
orbe definiu limites e alturas. E curioso que dos pontos cardeais só se
mencionam dois, e que todas as montanhas estejam representadas por
duas. Ao terminar, senta-se em seu trono, que se monta sobre duas figuras
personificadas (como os animais fantásticos que se abaixam ou se erguem
sustentando os tronos orientais). Outras duas personificações mantêm-se
em pé em frente ou lhe abrem caminho. Podemos imaginar a cena quieta
ou em movimento, sobre um silhão gestatório.
10-11. O monstro primordial chama-se Yam ou Rahab; a “elevação”
(ou estrondo, se se ler sh’wn) é sua soberba e arrogância. Acompanha-o um
esquadrão de “inimigos”. A ação de Yhwh é dominar, amansar, triturar,
atravessar, dispersar. Em seguida, céu e terra são seu domínio.
O autor deEnumaElis descreve com complacência abatalha (tabuinha
IV, desde v. 70):
O mútuo desafio: “Põe-te de pé, que travemos combate singular!”. A
reação de Tiamat: “então lutaram em combate singular, travados na peleja”
(94). Marduk estende-lhe sua rede e lança seu Vento Funesto; Tiamat abre
a boca para devorá-lo, mas o vento penetra e distende seu ventre. “Então
Marduk dispara sua Flecha, rasga-lhe o ventre, atravessa suas entranhas,
rompe-lhe o coração” (95-102).
Já vencida e morta, atira seu cadáver e coloca-se em cima dele, enquanto
“seu esquadrão se dispersa, sua tropa debanda” (106).
Depois Marduk faz prisioneiros a todos, inclusive Kingu o capitão, e
dirige-se de novo ao cadáver de Tiamat: “com o machado lhe tritura a cabeça”
(130)... parte-a como concha em duas valvas. Um a coloca como céu” (137s).
A outra como terra. “Assim criou o céu e a terra” (V, 6).
Compare-se com o Sl 74,12-17.
13.0 norte e o sul. Uma das tarefas de Marduk depois da vitória se
descreve assim (V, 8-10): “Colocou as estações de Enlil e Ea: abriu as portas
dos dois extremos e assegurou os ferrolhos à esquerda e à direita”(o norte
= esquerda pertence ao Deus Enlil, o sul = direita ao Deus Ea).
Exegese
1129
Não sabemos porque o autor do salmo escolheu duas montanhas não
judaicas, Tabor e Hermon. SegundoEnumaElis (V, 53.57), Marduk formou
as montanhas (sem nome próprio) da cabeça e dos úberes de Tiamat. Jr
46,18 menciona como mais conspícuos Tabor e Carmelo; o prestígio do
Hermon resulta do SI 133,3 e Ct 4,8.
15.0
trono real de Yhwh tem como escabelo e base ajustiça. Lemos nos
Provérbios:
16,12 Seu trono firma-se na justiça (bçdqh ykwri).
20,28 Misericórdia e lealdade guardam o rei,
a justiça assegura seu trono (segundo LXX).
25,5 Seu trono firmar-se-á na justiça (ykwn bçdq).
29,14 Quando um rei julga lealmente o desvalido,
seu trono está sempre firme (l’d ykwn).
Vejam-se também SI 9,5 e 97,2.
16-18. O soberano dos deuses tem na terra um povo que o reconhece
como senhor e guia. Essa é sua dita, seu gozo e sua exaltação (não como os
homens criados por Marduk para dispensar os deuses do trabalho). O ser­
viço desse povo é gozoso e benéfico, porque desfruta da “justiça” e “bene­
volência” de seu Deus.
16.
Ditoso o povo (SI 144,15). Entre as 26 bem-aventuranças d
saltério, estas são as duas únicas ditas de “um povo”. A trw‘h é o alarido
de guerra ou o canto triunfal: corresponde à vitória de Yhwh há pouco can­
tada.
Caminham à luz de teu rosto: no caminho da vida e da conduta
ilumina-os como um sol o rosto benévolo de Yhwh. Para os sumérios, Utu
é o deus solar, encarregado da justiça. O eqüivalente acádico é Samas. Um
dos hinos a Samas começa assim: “Rei do céu e da terra, juiz do universo no
alto e em baixo, que pronuncia sentenças” (Seux 67).
18.Levantar o chifre: veja-se o SI 75; do Ungido (ISm 2,10), de Davi (SI
132,16), de Israel (Ez 29,21).
19.
Disputam-se a preferência duas interpretações:
— Tomando a partícula l- como preposição para introduzir de antemão
e enfaticamente um sujeito: “quanto a Yhwh, referindo-nos a, falando de”;
segundo essa leitura, o povo reconhece e aclama a Yhwh como Rei e Escudo.
Escudo (SI 3,4; 18,3.31; 28,7) e outras oito vezes no saltério (Pr 30,5). Rei
é freqüente. Em momento de desgraça para o monarca davídico, o povo
levanta-se para reconhecer Yhwh como seu rei.
— Com l- de pertença ou de causa e sujeito o monarca humano, que leva
o duplo título de “nosso Rei, nosso Escudo”: o segundo título seria caso único
no AT, mas coerente com a concepção do monarca desde sua instauração.
Nessa leitura, o versículo serve de transição. O soberano celeste dos deuses
1130
Salmo 89
tem na terra um povo que o reconhece, e nesse povo um rei que ele próprio
escolheu e nomeou. O rei terrestre é portanto vassalo do celeste.
20-30. Contando a introdução, o oráculo abarca doze versículos que
pronuncia Yhwh em primeira pessoa. Dez verbos de ação do Senhor e dois
equivalentes: nada cabe fazer ao rei humano, a não ser invocar a Deus como
pai. Quanto aos inimigos, nega-se seu êxito. A ordem das ações não é
cronológica: algumas fazem parte da investidura, como diadema, unção e
trono; duas referem-se à eleição; outras à autoridade política e militar do
monarca. Este oráculo tem parentesco com os Sl 2 e 110. Pode-se comparar
também à segunda parte do Sl 18.
A estabilidade do reinado e do trono, a vida longa, a vitória sobre os
inimigos, o reinado para os descendentes são dons que pedem normalmente
os reis da Mesopotâmia a suas divindades (Seux, Prières du roi et prières
de rois, 489-526; Prières pour le roi, 526-530).
20a. O texto fala duma visão destinada a “teus leais” (no plural), um
grupo seleto ou todo o povo que receberá de Deus um monarca. Ao invés,
2Sm7,17 e a leve variante de lCr 17,15 falam duma visão que recebeNatã
e comunica a Davi.
20b. Literalmente significa “dispus auxílio para um soldado”. Poderse-ia tomar como alusão ao combate singular de Davi com Golias, com a
ajuda de Deus: “Eu vou até ti em nome do Senhor dos Exércitos, Deus das
hostes de Israel... esta é uma guerra do Senhor” (ISm 17,45.47).
— Tomando ‘zr como derivação fonética do cananeu gzr = moço,
adolescente. O sentido seria: coloquei um moço (Davi) sobre um soldado
(Saul). Ainda que corresponda à tradição davídica, parece-me rebus­
cado.
— Corrigindo para nzr = diadema ou coroa, segundo o v. 40. Solução
simples e razoável, ainda que sem apoio documental. Sl 132,18 menciona
o “diadema” real de Davi; 2Sm 1,10 menciona o diadema real de Saul, que
o amalecita entrega a Davi; segundo 2Rs 11,12, impõe-se ao menino Joás
o diadema real. A frase seguinte pode significar que exalta “um moço do
povo” ou “um soldado da tropa”. Davi afirmou-se no contexto militar, tendo
abandonado apriscos e ovelhas.
21.0
verbo mç’ é raro predicado de Deus. Pode ter sentido restrito d
eleger; ou é alusão à busca de Samuel na casa de Jessé (ISm 16,1-13). A
unção real de Davi se referem muitos textos, a partir de ISm 16.
22. Braço e mão (14) exercem aqui sua atividade na história. O verbo
’mç faz jogo sonoro com o precedente mç’ e não é raro em contextos de
nomeação (Sl 80,18).
23. O verbo usado para “enganar” é pouco freqüente e em geral tem
matiz de provocar falsas ilusões, enganar com falsas promessas: Gn 3,13:
Exegese
1131
a serpente a Eva; Jr 29,8: os falsos profetas ao povo. Pode-se tratar de
inimigos externos ou internos, como no SI 18.
24.
O verbo ktt emprega-se de ordinário com objetos materiais: o
bezerro (Dt 9,21), um caco de louça (Is 30,14), as espadas (J1 4,10). “Que
minhas armas sejam agudas e desbaratem as armas dos inimigos” (Seux
508); “Que tuas armas furiosas, que não perdoam ao inimigo, sejam afiadas
e que marchem a meu lado para matar meus adversários” (Seux 514).
26. Do mar Mediterrâneo ao rio Eufrates, limites do domínio dum
soberano sobre reinos vassalos (lRs 5,1; Zc 9,10. SI 80,12; Mq 7,11). Os
babilônios falam de “as quatro regiões”(Seux 505).
27-28. Como título supremo, o rei de Israel é chamado Filho de Deus
e pode invocar pessoalmente o Senhor como Pai (vejam-se SI 2,7 e 2Sm
7,14). O SI 89 acrescenta um matiz: “primogênito”. Assim como Israel é pri­
mogênito do Senhor entre os povos (Ex 4,23), assim também o é o rei entre
os reis. Para essa primogenitura não conta a precedência cronológica, mas
a nomeação de Deus.
O rei recebe como privilégio pessoal títulos que se concedem ao povo
como coletividade: filho (Dt 8), primogênito (Ex 4), excelso (Dt 26,19; 28,1).
29-30. A lealdade do Senhor desborda a vida de Davi, de cada monarca,
e assegura uma descendência e um trono. A afirmação vai além de mera
continuidade e estabelece uma medida cósmica para a fidelidade do Senhor
e a duração do trono: E a medida celeste anunciada no começo. Em si pode
soar a hipérbole convencional: promete-o Dt 11,21 ao povo na terra, sob con­
dições; desmente-o o desterro; Bar 1,11 o diz de Nabucodonosor e Baltazar;
Eclo 45,15 de Aarão e sua descendência. No contexto do salmo e em seu mo­
mento histórico, a frase parece abrir-se a horizonte ilimitado. “Que seus
descendentes governem para sempre todos os lugares habitados” (Seux 528).
31-38. Acrescentam um condição muito elaborada, cujo precedente
se lê em 2Sm 7. Com afã de precisão jurídica, estabelecem-se cláusulas
penais e limites de castigo. Pode-se olhar de dois modos: a) a fidelidade
radical à aliança não exclui penas limitadas; b) os castigos não anulam
nem desmentem o compromisso radical. De passagem acrescenta o autor
uma página de teodicéia, justificando o castigo divino, ao mesmo tempo
que convida à esperança. Porque a fidelidade radical de Deus não se
baseia em prestações humanas nem depende delas, mas baseia-se na
pura iniciativa de Deus e em seu compromisso garantido por juramento.
Em termos jurídicos soa o espírito de algumas páginas do profeta do
desterro, o Segundo Isaías:
40,2 Cumpriu-se seu serviço e está pago o seu crime.
51,17 Bebeste da mão do Senhor a taça de sua ira...
22
Olha, eu tiro de tua mão a taça da vertigem.
1132
Salmo 89
31-32.0 delito formula-se num quaternário composto de três elemen­
tos convencionais e um desacostumado. Profanar costuma ter por objeto o
nome, o templo, o sábado; aqui seu objeto são preceitos ou estatutos. Podese comparar com Ml 2,10: “profanar a aliança” e Sl 55,21: “violar os pactos”.
Por ser citação nos lábios de Deus, a aliança aqui não é outorgada a Davi,
mas é o pacto com o povo. E a linguagem do Deuteronomista.
33. As varas permitem castigo calibrado e numerado, não aniquilam
como o fogo ou a espada (cf. Ex 21,20).
34-35. Outro quaternário de sinônimos reafirma enfaticamente a
lealdade básica do Senhor. A primeira frase é invalidar ou anular a
lealdade, ou seja, o compromisso. Invalidar a aliança (hpr bryt) é fórmula
freqüente (pelo menos 19 vezes no AT). Como termo de comparação escolho
Jz 2,1: “Jamais quebrantarei meu pacto convosco, com a condição de que
não pactueis com gente deste país”. O Sl 89 substitui “aliança” por
“lealdade”, numa fórmula nova.
Também é original a segunda frase: desmentir a fidelidade / defraudar
a confiança. Pode-se comparar com o Sl 44,18, tendo “aliança” por objeto.
A terceira é “profanar a aliança”, que faz eco à profanação do v. 32 e vem a
dizer: ainda que eles profanem as estipulações, eu não profanarei a aliança.
O verbo profanar supõe que o objeto é sagrado: é-o porque o garante a
divindade e o sela um sacrifício.
A quarta também é original: não mudarei o que pronunciei / prometi,
não denunciarei o compromisso nem mudarei suas cláusulas.
36. Recalca o quaternário precedente: o Senhor interpôs um juramento
pelo mais sagrado, que é sua santidade. Deus não pode ser pexjuro.
37-38. Reafirmam o prometido no v. 30. De quem se diz “testemunho
fiel nas nuvens”? Há três candidatos ao ofício: a descendência, o trono, a lua.
Na concepção hebraica, um objeto pode servir de testemunha (nós diríamos
de sinal): um altar (Js 22,27); uma baliza (Gn 31,44.48.52); um obelisco (Is
19,20); Jó apela a uma testemunha no céu. a) A descendência, ou seja, a
continuidade da família dinástica seria testemunho vivo de que o Senhor
cumpre com seus compromissos; mas a descendência está na terra, b) O trono
é emblema da dinastia e do reino e tem uma aura celeste, como imagem do
trono celeste (15) e pela garantia de Deus. E como “o arco-íris nas nuvens”,
sinal dum pacto perpétuo com Noé e a nova humanidade (Gn 9,16). c)Alua.
Poderiam citar Eclo 43,8, que chama a lua de “sinal militar, instrumento
celeste, que atravessa o céu com seu brilho”. Teria algo de paradoxal, pois a
lua permanece em suas mutações. Na Babilônia, Sin (deus lunar) pode ser
oracular e “anula sinais e presságios funestos e desfavoráveis” (Seux 414).
Uma prece assíria diz de Sin que “pronuncia decisões e manifesta sinais”
(Seux 528). A localização celeste quadra melhor com a lua.
1133
Exegese
39-46. Com uma simples adversativa (“mas tu”) introduz-se a virada
de todo o precedente. Quinze verbos de ação para o Senhor, quatorze po­
sitivos e um eqüivalente. Como se o Senhor tivesse pressa e se empenhas­
se a fundo em destruir o construído, arrancar o plantado e invalidar as pro­
messas:
Jr 45,4
Olha, o que construí, eu destruo;
o que plantei, eu o arranco.
Contudo, é o Senhor quem atua, e não uma divindade estrangeira;
inclusive os inimigos são complemento de sua ação verbal. Vem à mente a
terrível ameaça de Dt 28:
63
Assim como gozou o Senhor fazendo-vos o bem,
fazendo-vos crescer,
assim também há de gozar destruindo-vos e exterminando-vos.
Um pouco menos violenta é a ameaça de Josué na grande renovação da
aliança:
24,20
Não perdoará vossos delitos nem vossos pecados.
Se abandonardes o Senhor e servirdes a deuses estrangeiros,
ele se voltará contra vós,
e depois de ter-vos tratado bem,
maltratar-vos-á e aniquilar-vos-á.
O texto está deliberadamente desenvolvido como reverso do bloco
precedente. Lancemos um olhar numerativo. Diante da eleição (mç0,
rejeição (m’s ); diante da benevolência (rçwn), cólera (Jitbr)-, a aliança
quebrantada, o diadema profanado; diante da honra (tp’rt), o ultraje (hrp);
o que exaltou (hrymwty) a um moço, exalta (hrymwt) o inimigo; o gozo (gyl)
do povo opõe-se a alegria (smh) do inimigo; o trono pelos solos, o senhor de
reis vestido de ignomínia.
Toda a cena concentra-se em Deus como agente e o Ungido como
paciente: o povo fica fora. Talvez seja o povo quem recita esses versículos,
afligido por seu rei, “o que era nosso alento” (Lm 4,20). Inclusive algumas
desgraças coletivas, como muralhas desmanteladas e praças fortes derro­
cadas, são vistas como “suas”, como propriedade do rei.
39. Encolerizado: o soberano com seu Ungido, seu vassalo. Teorica­
mente é o vassalo quem provoca a cólera do senhor por alguma traição ou
deslealdade. No texto não se confessa culpa nenhuma do rei, pelo que
alguns pensam em Josias; a cólera irrompe no salmo imotivada.
40. Rompeste: o verbo só se lê aqui e em Lm 2,7 dito do santuário.
Profanar (32.35). Pode sugerir que os eventos atuais são o castigo enun­
ciado como cláusula penal no protocolo da aliança.
Salmo 89
1134
41. Brecha: literalmente, derrubaste suas cercas, como na imagem da
vinha (Is 5 e Sl 80). Derrocadas: o termo mhth é especialidade de Pr. Esses
detalhes não se encaixam na história de Josias, mas sim na destruição de
Jerusalém.
42. No primeiro hemistíquio continua a imagem da vinha, segundo Sl
80,13b. O segundo pode proceder do Sl 79,4.
43. Significa a exaltação do poder militar e a alegria e os festejos pela
vitória (veja-se Sl 30,2).
44. hrb é a espada ou punhal, çwr pode ser a faca de pederneira (Ex
4,25; Js 5,2s). O fio da espada costuma-se chamar depy hrb (boca). Chamálo aqui de çwr pode ser contaminação lingüística ou licença poética ou
influência do acádico corrente. A idéia de voltar-se a espada pode ser
reminiscência da elegia por Saul e Jônatas (2Sm 1,22). Sustentar na luta:
nos salmos reais 20-21.
45. Propõem-se duas explicações: a) Mantendo o significado mais
freqüente da raiz thr, que é pureza, purificação. Quase sempre se usa em
sentido cultual como antônimo de tm’ = impuro; também pode-se dizer de
metais acrisolados, e metaforicamente de outros seres, como a palavra.
Nessa linha, o sentido da frase seria: fizeste-os cessar em seu estado de
pureza, ou seja, contaminaste-os, como são por antonomásia os cadáveres.
A contaminação ou impureza pode provir também da resistência, por
exemplo no desterro, b) Da pureza dos metais segue o brilho, que é outro
significado do termo. Poderia aludir a esse halo ou resplendor que envolve
o rei e irradia na batalha infundindo terror ao inimigo. Equivaleria a dizer:
apagaste sua auréola.
“Faz com que vá a meu lado, como aspecto senhoril e glória real, o resplendor
de teus raios, para que conquiste o país de meus inimigos” (Seux 520).
Lançar: em piei é caso único; em qal só em Ez 21,17.
46. Pode significar que o fizeste prematuramente ancião, fraco, invá­
lido; ou que o truncaste em plena juventude. Josias morre aos 49 anos,
Jeconias é deposto e desterrado aos 21. Um dos dons para o rei é “anos que
se prolongam sem termo” (Sl 21,5). E tema recorrente nas citadas preces da
Assíria e Babilônia.
Vestido de ignomínia (veja-se Sl 109,29). Despojado de suas vestes
reais, o rei veste o traje dos cativos. A essa humilhação refere-se o final de
2Rs, a reabilitação de Jeconias. Também Jó alude ao costume:
12,17 Conduz desnudos os conselheiros,
18
despoja os reis de suas insígnias
e lhes ata uma corda na cintura,
19
conduz desnudos os sacerdotes,
21
afrouxa a cintura aos robustos.
Exegese
1135
Veja-se também a mudança de veste de Josué em Zc 3,4s.
47-52. Terminada a alegação de desgraças, causadas todas por Deus,
sucede a argumentação para que mude de conduta e volte à sua atuação
precedente. São quatro argumentos não dispostos por ordem de importân­
cia.
— O mais forte está no v. 50: onde ficou tua lealdade de outrora? Aceitase e sofre-se o castigo, mas está durando demais. A lealdade, porém, deve
ser mais forte que pecado e castigo. Como diz Jr 31,3: “Com amor eterno te
amei, por isso prolonguei minha lealdade”. De mais a mais, Deus não pode
faltar a seu juramento. Retorna assim no final o tema enunciado no
princípio: “cantarei para sempre a lealdade do Senhor”, ainda que o canto
tome agora a forma de pergunta apaixonada.
— O argumento da duração, da prolongação, é clássico, e não é
estranho que abra a série (47), como expressão de impaciência. No saltério
destaca-se o SI 13; numa prece a Enlil repete-se a pergunta como estribilho
mais de dez vezes (Seux 146s).
— Em 48-49 aduz-se um argumento inesperado: a caducidade da vida
humana. Que tem a ver com o tema presente? Creio que dum lado se enlaça
com o v. 46: “encurtaste os dias de sua juventude”, doutro lado com o
sentimento de impaciência. Como se dissesse: em todo caso, o rei é mortal
como qualquer homem, não há razão para que se malogre fora de tempo sua
vida; só tu podes livrá-lo da morte. Quanto a nós, estamos impacientes
porque nossa vida é caduca, não somos como Deus que pode esperar: “mil
anos em tua presença são um ontem que passou” (SI 90,4).
— O quarto argumento é mais conhecido: consiste em chamar a
atenção de Deus sobre o que está acontecendo, a insolência do inimigo e a
humilhação do Ungido. Repete três vezes a raiz hrp, que já soou no v. 42,
e que como tema domina o final do SI 74.
47. Arde a ira (Is 30,27; SI 79,5; Lm 2,3):
Inflamado de ira truncou o vigor de Israel...
e pegaram as chamas em Jacó
consumindo tudo ao redor.
48. Sobre a radical “vaidade” da vida humana, vejam-se SI 39 e
Eclesiastes: ambos preferem o termo hbl.
49. O SI 49 pode servir de comentário.
50. A renovada lealdade pode ligar-se com a antiga porque uma
corrente simultânea as une: em rigor, são a mesma.
51.0
versículo passa do plural “teus servos” ao singular do orante:
rei? Se se mantiver o texto hebraico, significará que o orante sente-se unido
à comunidade e solidário com o Ungido (se não for o mesmo).
1136
Salmo 89
52.
Ultrajar as pegadas é expressão original: como se uma multidão se
juntasse atrás do rei que vai cativo e o cobrisse de insultos; recorde-se o
episódio de Semei e Davi (2Sm 16,5-13). Autores antigos interpretam as
pegadas (commutationem da Vg) como os sucessores de Davi Teodor, a
dilação do Messias Targ.
A última palavra do salmo é “teu Ungido / teu Messias”. Pode-se ligar
a ela uma leitura escatológica do salmo; compare-se com Jr 33:
15
17
20
Naqueles dias e naquela hora
suscitarei a Davi um rebento legítimo
que fará justiça e direito na terra.
Não faltará a Davi um sucessor
que se sente no trono da Casa de Israel.
Se se pode romper minha aliança
com o dia e a noite ...
também se romperá minha aliança
com Davi meu servo.
6. Transposição cristã
O
Sl 89 trata do Ungido, o descendente legítimo de Davi, e express
uma esperança inquebrantável em virtude da promessa e fidelidade
divinas. Já durante a economia antiga leu-se esse salmo em chave messiânica
e escatológica. Assim preparado, passa ao contexto cristão, no qual desdo­
bra seu potencial de sentido.
Parte do v. 21 cita-se em At 13,22: Paulo falando ajudeus em Antioquia
da Pisídia. O v. 28b cita-se em Ap 1,5. Mais que um par de citação
incidentais, pesa o conjunto do pensamento. Antes de tudo, o título de
Messias e Filho de Deus, que ouvimos na confissão de Pedro (Mt 16,16: “Tu
és o Messias, o Filho do Deus vivo”). O título “Eleito” enuncia-se na
transfiguração. O título de servo (pais em grego) entra por uma citação de
Is 42,1-4 em Mt 12,18-21, e se faz comum em Atos (3,13.26; 4,27.30). A
unção do v. 21b reaparece no título Messias e em formas verbais, ligadas
também a outras citações (por exemplo, Lc 4,18; At 10,38). A imagem de
“levantar o chifre”(v. 25b) é acolhida no Benedictus (Lc 1,69). Da relação
Filho-Pai (v. 27) está cheio o evangelho de João. O título de Primogênito
repete-se com variações (Rm 8,29; Cl 1,15.18; Ap 1,5; Hb 1,6). O trono é
imaginado como escabelo compartilhado em Ap 3,21.
Mais que a uma leitura cristã, o salmo presta-se a uma meditação
cristã. Guiados por Santo Agostinho, tomamos o tema do canto, “misericór­
dia e fidelidade”, que no salmo são equivalentes. Paulo distingue-as em:
fidelidade ao prometido aos judeus e misericórdia gratuita aos pagãos:
Transposição cristã
1137
Rm 1,5.8 Quero dizer que Cristo se fez ministro dos circuncisos, em
virtude da fidelidade de Deus, cumprindo as promessas dos patriarcas; 9
enquanto os pagãos glorificam a Deus por sua misericórdia.
A lealdade prometida com juramento cria um problema de teodicéia,
que se resolve em parte com a cláusula condicional do castigo limitado (3134) e no todo com a esperança da lealdade radical do Senhor. O problema
volta a propor-se com extrema agudeza quando os judeus não aceitam a
Jesus como Messias. São Paulo discute amplamente o problema na carta
aos Romanos. Santo Agostinho toma outro ponto de vista ao comentar a
última secção do salmo. Cito algumas frases para mostrar a linha parado­
xal de seu pensamento:
“Prometeste tudo aquilo, fizeste o contrário. Onde estão as promessas
das quais antes nos alegrávamos? Como se alguém prometesse e o outro
transtornasse...
Eu afirmo que fez aquilo para confirmar a promessa... Anulou em Davi
a promessa para que, ao ver que não se cumpriu nele o que tinha que
cumprir-se, busquem outro em quem apareça cumprido”.
Depois vem a aplicação aos cristãos da promessa com sua cláusula
penal. De novo, o radical é a lealdadejurada, que, porém, não exclui castigos
limitados. Então, o que dizer dos cristãos que se perdem? De novo Santo
Agostinho:
“Cada um há de ser castigado por seus pecados; mas, se és cristão, não por
isso se afasta de ti sua misericórdia... M as se rejeitas a mão que fere e
escapas ao Pai que te golpeia..., tu mesmo te privaste da herança, não te
rejeita ele. Pois se castigado permanecesses, não ficarias deserdado (nam si
maneres flagellatus, non remaneres exhaeredatus)”.
Poderíamos sugerir a Agostinho o texto de 2Tm 2,11-13:
Se morrermos com ele, viveremos com ele;
se perseverarmos, reinaremos com ele;
se o negarmos, também nos negará;
se formos infiéis, ele permanece fiel,
porque negar-se a si mesmo não pode.
Comentando a parte final, escreve Eusébio:
“Tu não desdenhas os homens que criaste com honra, que criaste à tua
imagem. Não os criaste em vão, para o nada; criaste-os para a grande
esperança posta em ti, fundada em ti. Não permitas que se perca tua obra, tua
imagem. E como os homens não podem resgatar-se por si mesmos, envia o
Messias e com ele todos os bens. Apressa-te, antes que pereça a humanidade
inteira. Manda o único que pode livrar da morte a si mesmo e aos demais”.
Segundo Gregório Magno, a testemunha fiel no céu é Cristo ressusci­
tado (Moralia sobre Job 16,19).
Salmo 90
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
Senhor, tu foste nosso refúgio1
de geração em geração.
Antes que nascessem as montanhas
ou fosse gerado o orbe da terra,
desde sempre e para sempre tu és Deus.
Tu devolves o homem ao pó, dizendo:
Voltai, filhos de Adão!
Para ti mil anos são como o ontem que passou,
uma vigília noturna.
Tu os arrastas; são um sono ao amanhecer;
renovam-se como a erva:
pela manhã renova-se e floresce,
pela tarde seca e a ceifam.
Como nos consumiu tua cólera
e nos transtornou tua indignação!
Puseste nossas culpas diante de ti,
nossos segredos à luz de teu olhar,
e todos os nossos dias foram-se debaixo de tua cólera,
consumimos os nossos anos como um murmúrio.
Ainda que vivamos setenta anos
e os mais robustos até oitenta,
seu afã é fadiga inútil,
pois passam depressa e nós voamos.
Quem compreende a veemência de tua ira,
quem aprecia o ímpeto de tua cólera?
Ensina-nos a fazer boa conta de nossos dias
para que adquiramos um coração sensato.
Volta-te, Senhor! até quando?
Tem compaixão de teus servos.
1morada
Bibliografia
1139
14 Sacia-nos pela manhã de tua misericórdia,
e todos os nossos dias serão alegria e júbilo.
15 Dá-nos alegria pelos dias que nos afligiste,
pelos anos em que sofremos desditas.
16 Que tua ação se manifeste a teus servos,
e a seus filhos tua glória.
17 Venha a nós a bondade do Senhor nosso Deus,
consolida a obra de nossas mãos.
Consolida-a, a obra de nossas mãos!
2. Bibliografia
E. F. Sutcliffe, The labor and sorrow o f life, Scripture 5 (1952) 97-98.
J. Herrmann, Und wenn es köstlich gewesen ist. Eine Untersuchung zu Ps
90,10, em Spiritus Domini manet in aeternum, Wittenberg, 1953, 57-70.
G. Bernini, Sal 90: preghiera per Vumanità afflitta, em Le preguiere
penitenziali dei saltério, Roma, 1953, 119-128.
E. Beaucamp -J. P. de Relies, Ps 90. Impatiemment le Serviteur de Dieu
attend un retour en grace, VieSp 99 (1958) 481-486.
F. Baumgärtel - C. Westermann, Lehre us bedenken, dass wir sterben
müssen. Zur Predigt des 90. Ps in der christilichen Gemeinde, MonPastTh
50 (1961) 425-439.
C. Westermann, Der 90. Psalm, emFS Küpisch, Munique, 1963,344-350.
S.D. Goitein, M a ’on - A reminder o f sin, JSS 10 (1965) 52-53.
E. E. Pilchir, How the spider got into the Psalm, Science 151 (1966) 404405.
L. Wächter, Drei umstrittene Psalmenstellen, ZAW 78 (1966) 61-69.
D. Winton Thomas, A note on zeramtam sena jihejü in Ps 90,5, VT 18
(1968) 267-268.
F. Hesse, Und wenn es hoch geht, so sind’s achtzig Jahre. Zum Verständnis
des 90. Ps, Pastoraltheologie 57 (1968) 297-302.
M. Dahood, Ps 90,4, Bib 50 (1969) 346.
R. Tounay, Notes sur les Psaumes, RB 79 (1972) 50-53.
A. A. Macintosh, The spider in the Septuagint version ofP s 90,9, JTS 23
(1972) 113-117.
W. J. Urbrock, Mortal and miserable man: a form-critical investigation
o fP s 90, SocBL SemPapers 110 (1974) 1-33.
G. von Rad, Das 90. Psalm, em Gottes Wirken in Israel (ed. Steck),
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B. Vawter, Postexilic prayer and hope, CBQ 37 (1975) 460-470.
R. Guardini, Vanità dell’uomo: Sal 89 / 90, em Sapienza dei Salmi,
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W. Harrelson,A meditation on the wrath o f God: Ps 90, emFS Rylaardsdan,
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J. Schreiner, Erwägungen zur Struktur des 90. Psalms, Bib 59 (1978) 8090.
1140
Salmo 90
M. Dahood, Interrogative kî in Ps 90,11; Is 36, 19 and Hos 13,9, Bib 60
(1979) 573-574.
P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 90, Bib 61 (1980) 262276.
Ch. Whitley, The text o fP s 90,5, Bib 63 (1982) 555-557.
W . von Soden, Zum Ps 90,3. Statt dakka lies dukka!, Ugarit-Forsch 15
(1983) 307-308.
M. Tsevat, Ps 90,3, VT 35 (1985) 115-117.
Lista alfabética
Auffret
Baumgär tel
Beaucamp
Bernini
Dahood
Goitein
Guardini
Harrelson
Hermann
Hesse
Macintosh
Pilchir
von Rad
80
61
58
53
69.79
65
76
77
53
68
72
66
74
de Relies
Schreiner
von Soden
Sutcliffe
Tournay
Tsevat
Urbrock
Vawter
Wächter
Westerman
Whitley
Winton Th.
58
78
83
52
72
85
74
75
66
61
82
68
3. Análise filológica
1. m ‘wn: morada; alguns manuscritos gregos e vários comentadores
preferem ler m ‘wz cf. 91,9.
2. yld: metáfora; não se justifica o fierent da Vg.
wthwll: polel ativo: sujeito 2- pess Deus Qim Ros, sujeito 3ã pess fem
terra Phil Gun Kraus Rav; vocalizando poial passivo paralelo de yld LXX
Jerôn Duhm Cast Dah.
3. tshb: Vg duplica í e lê part negativa ne convertas-, seguem-na
muitos: cadere ne sinas in miseriam Sa Belarmino Teodor.
d k pó; contrição Jerôn, a morte Targ Agélio, cf. Gn 3,19.
4. ky: com função de relativo LXX Jerôn cf. Ges Thes 676; com valor
temporal Ros Del Duhm Gun Kraus.
5. zrmtm: denominativo de zrrn = chuva, chuvarada Del Baethgen Du
triffst sie wie ein 'Wetter Hupfeld Nowack; LXX ta exoudenomata auton o
Análise filológica
1141
nulo deles Vg, justifica-o Belarmino fluxus eorum. Corrigem para zr‘tm =
os semeias Duhm Kraus.
shnh - sono; anos LXX Vg, um ano Sir; como partic Sím, enquanto
dormem Hupfeld Nowack.
bbqr = TM une-o com o segundo hemistíquio, também LXX Vg; omitem
Duhn Kraus.
yhlp : predicado de erva, relativa assindética Joüon 158 a que se
renova; predicado dos homens como coletivo, coloca a comparação. Brotar
TargEcker; passar, perecer LXX Vg Jerôn, cf. Is 2,18; SI 102,27; lê hifil com
valor intransitivo Hitzig cf. Ewald 127 b.
6.
ymwll: polel de mil (alomorfo de ’ml) secar LXX Vg decidat Hitzig
Duhm Gun Kraus; de mil / mwl ceifar com sujeito impessoal Del; idem
poial passivo Phil; cf. Jó 14,2; 18,16; 24,24.
8. ‘Imnw: de ‘lm estar oculto; aion LXX, saeculum Vg, ameleias Sím,
negligentias, pecados de juventude Targ.
9. pnw : marcham, desaparecem cf. Jr 6,4.
klynw: transitivo Jerôn Qim = intransitivo LXX Vg Sir.
kmw hgh: meditação, pensamento, murmúrio, um falar Jerôn, como
um respirar no inverno Targ. Seguindo os LXX, compôs Vg a famosa
comparação anni mei sicut aranea meditabuntur: a aranha parece tirada
do SI 39,12, Eutímio tenta explicá-lo: são considerados como uma teia de
aranha, parafraseia-o Belarmino reconhecendo que é adição de LXX.
10. bhm: a soma Del, em si Cast, omitem-no But Kraus.
uorhbm: seu orgulho, soberba Ros Phil Hitzig Del Gun Kraus; afã, ímpeto
Duhm Rav; pressa Michaelis; to pleion auton LXX Vg Jerôn o que passa daí
(os oitenta); corrige para rbm la loro ampiezza Cast.
gz: de gwz passar.
hysh: funciona como advérbio de pressa, talvez infin Del cf. ketib do SI
71,12 e o acádico hiashum. LXX e Vg traduzem sobrevirá a mansidão e se­
remos corrigidos: pelo que parece, derivaram hysh de hshh estar inativo, o
paideusometha poderia ser corrupção de petasthesometa (Ecker); alguns co­
mentaristas referem a “mansidão” a Deus, outros ao homem, sua senilidade.
11.wkyr’tk: como pede teu temor / respeito Ros Hitz Del. Vocalizando
de outra forma, resulta um paralelo rigoroso:
mi yôd e‘ ‘oz ’appeka
mi ro’e tok‘ebrateka
Assim Gun Kraus Rav.
12.
kn: e assim Ges Thes 688 Hitzig Dah, isso Duhm Kraus.
wnb’: hifil trans metáfora agrícola colhamos Del, produzamos Hitzig cf.
2Sm 9,10; Ag 1,6. Intrans Jerôn veremos.
1142
Salmo 90
Ibb hkmh: com função de adjetivo um coração sensato Phil HitzigDel Duhm
Kraus Rav, o coração (miolo) da sabedoria Dah; pôr sabedoria no coração
Bickell Budde Gun Kautzsch 4-Bertholet.
wnbw’ Ibb hkmh: entremos pela porta de Wellhausen SBOT 14
Leipzig, 1895.
13.shwbh: volta-te, entende-se para o orante como SI 6,5; 80,15; ou
afasta-te (da ira) como Ex 32,12 que leva também o paralelo hnhm.
14.hsdk: complemento segundo de sacia GK 117 z.
15.kymwt: em proporção a, em troca de LXX.
‘nytnw ... r’ynw: relativas assindéticas Joüon 129 p.q.
shnwt: regido por k-,
16.yr’h: passiva; LXX leu wr’h ativa Vg respice.
whdrk: tua glória; LXX Vg leu hif de drk encaminha.
17.
‘lynw: em nosso favor GB 587.
kwnnhw: o sufixo pronominal refere-se ao casus pendens wm’sh. A
petição acrescenta força Qim, resposta coral Olshausen.
4. Estudo global
a) Gênero literário
Dos gêneros clássicos oferece-se a súplica como o mais acertado para
a classificação. Aplicando seu esquema, identificamos o louvor de Deus que
pode funcionar como motivação, a desgraça do orante que é sua condição
mortal, as perguntas e petições.
No entanto, os versículos 1-2 parecem mais uma meditação sobre Deus
e o homem, com algo de cunho sapiencial. Fala-se dos homens em geral sem
aludir a Israel; fala-se da condição humana com imagens vegetais genéri­
cas. Se uma comunidade israelita pronuncia a súplica, contempla-se aqui
em sua dimensão de natureza mais que de história. Remonta-se ao Gênesis,
ao tempo primordial antes de qualquer diferenciação. Nisso se parece com
o SI 49, de que se distingue porque este não é didático.
A relação entre meditação e súplica pode-se conceber de duas manei­
ras: a) partindo da súplica, a descrição da desgraça própria apodera-se da
consciência e de grande parte do texto; b) partindo da meditação, que
desemboca numa súplica esperançosa. Nossos catálogos de gêneros não
têm uma secção para a “meditação”, só concebemos ou imaginamos a
recitação. No entanto, alguém que pratica habitualmente a meditação
como forma de oração possui horizonte prático mais amplo para se confron­
tar com os salmos. Alargar o horizonte não é impor um preconceito moderno
Estudo global
1143
a um texto antigo, mas antes abrir-se para perceber sinais e indícios. Pois
bem, os indícios de “meditação” cristalizaram-se no saltério: a raiz hgh,
contraposta a qr\ não é só voz baixa / voz alta; acrescentam-se as referên­
cias ao coração = mente como sede de palavras ainda não pronunciadas;
outras vezes é o movimento do salmo que faz ver ou deixa entrever espaços
de meditação.
No caso presente, creio que compreende-se melhor o salmo como
meditação. O que quer dizer duas coisas. Na etapa de produção, o salmo é
a formulação poética duma meditação espiritual sobre um tema fundamen­
tal da vida humana. Na etapa de apropriação, é preciso abrir um espaço de
meditação para acolher o texto do salmo e deixar que ressoe. (Tentarei fazêlo utilizando a paráfrase na parte exegética).
b) Situação
Dir-se-ia que um tema tão universal como é a condição humana não
necessita dum contexto histórico único nem dum típico repetível. Não
pensam assim todos os comentadores.
—
Seguindo a velha tradição dos “títulos” e levando a sério o títul
excepcional do presente salmo, Delitzsch atribui o poema “a Moisés,
homem de Deus” (= profeta). Depois busca e encontra uma conjuntura
histórica em que encaixa o salmo (Nm 13-14) (tomando sem mais como
história esses capítulos). Passa a descrevê-lo:
“Por sua rebelião, o Senhor condenou os israelitas a perambular pelo
deserto até se acabar a geração presente. Depois das gerações dos patriarcas
(1), a geração do deserto passa seus dias “sob a cólera de Deus” (9); ainda que
cumpram setenta e mesmo oitenta anos (10), fracassará seu empenho, pois
não chegarão a contemplar a grande obra de Deus (16), quando os fizer
entrar na terra prometida. A ordem de morrer (3) é a sentença ditada contra
os rebeldes, que morrerão no deserto; o renovar-se da erva é metáfora da
nova geração (5); “nós” ou “teus servos” (7.16) refere-se à comunidade de
Israel, a aflição (15) é o tempo do deserto”.
Depois Delitzsch confirma sua explicação articulada com uma série de
correspondências verbais entre o salmo e o Deuteronômio, sobretudo Dt 3233: algumas genéricas, outras típicas, outras exclusivas de ambos os textos:
1.
2.
2.
’y sh ’Ihym (Dt 33,1; Js 14,6).
’dny: frequente nos lábios de Moisés
dwr wdwr (Dt 32,7)
m‘wn (Dt 33,27)
hwll (Dt 33,27)
’l como predicado (Dt 3,24)
montanhas antigas (Dt 33,15)
(por exemplo, Dt 3,24)
1144
Salmo 90
6.
7.
10.
13.
15.
16.
17.
mil: veja-se mlylt (Dt 23,26)
’p / hmh (Dt 9,19; 29,22.27)
shnwt (Dt 32,7 exclusivo)
hysh (Dt 32,35)
shwbh (Ex 32,12)
‘bdyk (Dt 9,27; 32,36)
ym w t (Dt 32,7 exclusivo)
‘nh (Dt 8,2s)
p ‘l (Dt 32,4)
hdr (Dt 33,17)
m ‘sh ydynw : freqüente no Dt.
A tese de Delitzsch poder-se-ia aceitar como retificação importante:
não são os acontecimentos do deserto o que ocasiona e explica esse salmo,
mas as narrações do Pentateuco e os poemas finais do Dt. O autor não é
Moisés pouco antes de morrer, mas um poeta posterior que se deixou
inspirar por textos que a tradição atribuía a Moisés. Essa inspiração é só
parcial, pois muitos dados do salmo não se encaixam na situação proposta.
Para a secção da cólera e os versículos imediatos pode-se aduzir a
semelhança do SI 51, com os seguintes termos em comum: ‘w w n , Ingd, hsd,
hw dy\ hkm h, sm h , rnn, lb. A semelhança explica-se pelo tema penitencial
comum. Pela primeira secção, o salmo se emparenta com o 39, que é mais
patético. E também parente espiritual de Jó e Eclesiastes, de Eclo 40,1-17
e, com outra perspectiva, de Sb 2,1-5. Mais próximo, apesar da situação
diferente, é o SI 102.
c)
O cam po sem ântico do tem po
Chama imediatamente a atenção a reiteração dos termos dias-anos,
inclusive com a estranha variante masculino / feminino: dia (4.9.12.14.15),
ano (4.9.10.15). Formas binárias: d w r w d w r geração após geração, m ‘w lm
w ’d ‘w lm desde sempre e para sempre, bqr e ‘br manhã e tarde (e noite); os
advérbios, antes, até quando, de pressa (infinitivo?); os verbos de passagem
ou decadência, passar, ir-se, voar, murchar, voltar ao pó; os números como
medida do tempo. Acima dessa acumulação levanta-se bem nítido, duplica­
do, o verbo de estabilidade kw nn h.
O campo do tempo governa com rigor o poema. Em ordem descendente
de duração podemos colocar: perpetuidade, geração, anos, dias, ontem, noite,
vigília, manhã, tarde. Em direção ascendente colocamos: a duração duma
planta, a vida dum homem, a história humana, o tempo cósmico, a perpe­
tuidade de Deus. Dentro do poema, as peças temporais entram em relação e
formam figuras diversas, que se descobrem em leituras sucessivas.
A ordenação semântica do salmo não coincide com a disposição externa
do mesmo, como veremos.
Estudo global
1145
d) Teologia ou antropologia
Externamente, o salmo começa falando de Deus, o que é e o que faz; no
final (16), fala-se de sua manifestação eficaz e gloriosa. No meio discorre a
reflexão sobre a vida humana. Isso nos leva a duvidar entre duas propo­
sições: 1) O tema da meditação é Deus e sua duração incomparável. Par­
tindo dessa visão vertiginosa, o orante dirige o olhar para si e descobre
espantado sua caducidade. Esta é uma proposição teológica da meditação.
2) O homem experimenta sua caducidade, e medita sobre ela; para superar
ou aliviar sua tristeza, transfere a meditação para a presença de Deus, de
forma que sua meditação seja oração. O resultado é o contrário: em vez de
alívio, a imensidade temporal de Deus o empequenece e esmaga. A oração
intensifica a tristeza e deixa como única saída uma petição limitada. Esta
é uma proposição antropológica da meditação.
Não ouso meter-me na mente do autor para definir a gênese do poema.
Só me atrevo a dizer que, embora me incline pelo segundo, ambos são
legítimos quando chegamos à fase de apropriar-nos do salmo.
e) Caducidade e pecado
A caducidade humana, segundo o salmo, é condição ou castigo? O pecado é
causa da morte ou agravante? De momento não apelemos à autoridade de
Paulo nem de Agostinho. Dir-se-á que o v. 3 cita a sentença de condenação
de Gn 3, que se pronuncia depois do pecado e por causa dele: é a aplicação
duma cláusula penal acrescentada ao mandato ou proibição: “o dia em que
comerdes... sereis réus de morte”. Mas uma pena de morte só se pode
cominar e infligir a um ser mortal (não valeria para uma pedra ou um
metal). O que é condição toma-se como castigo, ou então se antecipa
violentamente a execução ineludível. E possível que um justiçado maduro
tenha vivido mais anos que um jovem morto em acidente ou por doença;
uma catástrofe natural pode ser desgraça para uns, castigo para outros.
Talvez o autor não tenha esgotado os termos do problema. Se a
segunda parte (7-11) acha-se marcada pela ira divina pelo pecado, nessa
mesma parte menciona-se uma longevidade e uma futilidade que parecem
antes condição, e não castigo. A não ser que os setenta e oitenta anos
contenham uma alusão aos cento e vinte anos de Gn 6,3 (no dilúvio, a
maioria morre prematuramente e aos sobreviventes se lhes reduz a
longevidade).
E curioso que o orante não peça expressamente perdão dos pecados,
mas sensatez para aceitar um destino e, de mais a mais, compaixão (13)
para com a miséria. A vida é assim, por decreto de Deus: a ele cabe
preenchê-la de sentido.
1146
Salmo 90
f) Composição
Ou antes, disposição. Pelo tema e pela inclusão menor delimitam-se os
versículos 7-11. A inclusão é: b’p k bhmtk / ’p k ’btk, o tema é a ira pelo
pecado. Isso nos deixa uma primeira parte de reflexão (1-6), e uma terceira
de súplica (12-17). Sobrepõe-se uma articulação que não coincide com os
confins precisos, mas que contrapõe vigorosamente a primeira parte à
terceira. É o duplo imperativo de shwb: Voltai!, intima Deus aos homens;
Volta!, clamam os homens a Deus (3.13).
Um procedimento reiterado no salmo é ligar dois versículos com uma
palavra repetida (1.2: ‘th-, 3a.b: shwb-, 5.6: bqr hlp; 9.10: shnh; 11.12: yd‘\
14.15: smhywm; 15.16: r’h). Outro procedimento é a acumulação de sufixos
-ka e -nü na segunda e terceira parte.
5. Exegese
1-6. A primeira parte compõe-se de seis versículos repartidos em três
dísticos, com alargamento de dois versículos dedicados a Deus (2.4). Seu
tema é o contraste entre a duração humana e a de Deus. O poeta remonta
rapidamente no tempo: humano, cósmico, divino.
1.
m‘wn - morada (m‘wz = refúgio). Aimagem espacial não surpreende
numa primeira leitura; em leituras sucessivas surpreende o contraste com
o tema temporal. Morada ou refúgio: algo de estável no fluxo das gerações;
para além delas e acessível como espaço acolhedor e seguro. Donde vem a
segurança? Situa-se totalmente fora da corrente que arrasta as gerações?
Parece antes que o fluir acontece dentro dum espaço, dentro dum leito que
as contém e unifica a todas. Deus morada é título não corrente, Deus refúgio
é corrente.
A quem designa o nós? Os que falam nesse momento são uma geração
definida pela contemporaneidade num lapso limitado, ou há um nós que en­
globa vários grupos sucessivos? Assim é: “nós” diz grupo de algum modo ho­
mogêneo; mas aqui se trata dum grupo que só se realiza na continuidade. Re­
tirando-se uns, virão outros, e uns com outros formam um nós. Capazes de
acolher a Deus como grupo contínuo, ou grupo contínuo porque se acolhe a
algo, a alguém estável? O mero suceder não basta para a identidade do nós;
é-lhe preciso um ponto estável e comum de referência. E o tu. O Deus que trans­
cende o tempo, ao fazer-se um tu apelável, permite estabelecer um nós que,
sem transcender o tempo, transcende e engloba cada indivíduo, cada geração.
Desde o primeiro momento do poema domina a consciência do existir
e falar só como geração: algo que adveio e partirá:
Exegese
1147
Ecl 1,4 Uma geração vai, outra geração vem, enquanto que aterra sempre
está quieta.
Em vez de “a terra”, o salmo diz: Tu és nossa morada.
“Quereres tu viver sempre seria fazer agravo aos que morreram para que
vivesses e aos que esperam que tu vás para vir” (Quevedo, La cuna y la
sepultura).
Quais são essas gerações? O Cronista preocupa-se por registrá-las,
para perpetuar seus nomes num escrito. Nomes e livro: bem pouco diante
da consciência intensa de viver e ter um refúgio ou morada em Deus.
2. Para além das gerações humanas, o orbe com as antiquíssimas
montanhas, “as velhas montanhas, as colinas primordiais” (Hab 3,6).
Segundo Gn 1, as montanhas precedem à humanidade um par de dias, são
praticamente contemporâneas. Ou são diversos os dias de Gn 1, enquanto
dias de Deus? Não existentes fora dele e antes dele, como existe a semana
antes que o trabalhador se ponha a trabalhar?
A visão supõe um grande salto para trás, como na grande série “antes
de que” de Pr 8. O poeta quer remontar muito além de qualquer geração
israelita ou humana, e tropeça com as montanhas que já estavam aí. E por
que não os astros ou as constelações como em Jó 38? Porque o poeta fixa
o olhar no território humano, a terra. Que sendo seu território, dure mais
que ele; que sendo olhado e calcado, lhe sobreviva...! Com os verbos esco­
lhidos, a criação da terra é como um parto: estará também ela condenada
à morte?
3. Desde seu posto que transcende o tempo, Deus dirige-se ao homem
cominando-lhe seu destino e executando-o. A história do Gênesis é evocada
num versículo. O que modelou o homem dando-lhe consistência, fê-lo des­
trutível; o que integrou suas partes, deixa-o desintegrar-se. “Recorda que
me fizeste de barro, e agora me devolves ao pó?” (Jó 10,9). Tritura-o, pulveriza-o: capricho de artesão cansado de sua obra, ou é que o artesão precisa
do barro para modelar novas figurinhas? (cf. Jr 18,4). Não é essa a visão
bíblica. Trata-se antes do destino de voltar: o que é filho de ’adam, e como
tal filho de ’adama, pertence a ela. E não são destrutíveis as montanhas?
Que erosão se enfurece com a estrutura humana que respeita as monta­
nhas ou não pode com elas? Jó 14:
18
19
Uma montanha inclina-se e desmorona,
uma rocha move-se de seu lugar,
a água desgasta as pedras;
a enchente inunda as terras;
e tu destróis a esperança do homem:
morto o varão, pode reviver?
1148
Salmo 90
Em todo o salmo, Deus fala só uma vez, dando a ordem de voltar. Um
imperativo tão genérico não poderá funcionar em outra direção? Voltai: —
Para onde? Se são de terra, para a terra; mas se são de Deus, como imagem,
como não hão de voltar para Deus? Voltai: Para onde voltaremos, a quem
voltaremos? Não é ele nosso refúgio e morada de geração em geração? “O
que vem da terra volta à terra, o que vem do céu volta ao céu” (Eclo 40,11).
4.
As medidas humanas do tempo não servem para Deus. Ou melhor
nenhuma medida é aplicável a Deus. 2Pd 3,8 completa a frase: “Para o
Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia”. Atendo-nos ao
salmo, poderíamos raciocinar: multipliquemos por 365.000 para começar a
dizer algo de Deus. Tal proporção pode ter sentido conceituai, mas desborda
a imaginação. E o que se nos passa quando contamos em anos-luz, uma
medida matemática desproporcionada para nossa imaginação. Não pode­
mos aplicar a Deus as dimensões do espaço; tampouco em anos-luz se mede
sua distância. Os conceitos e representações que chamamos de dias, noites,
anos, não fazem sentido aplicados a Deus.
A medida que os círculos concêntricos se aproximam de seu centro, o
segmento de circunferência compreendido entre dois raios é mais curto, e
vice-versa. Chegados ao centro, toda a dimensão extensa fica fora: mil
quilômetros duma circunferência distante e um milímetro duma próxima
são a mesma coisa. O homem emprega essas circunferências de raio
diverso: um girar de tantas horas que chama dia, um girar de tantos dias
que chama ano. Está Deus no centro, presente a cada ponto giratório?
Pemán transpõe assim o pensamento de Raimundo Lúlio:
“Que vano ha sido mi empeno
de hacerte claro y preciso!
Tú eres el punto indiviso
que ni es grande ni pequeno,
ni tiene orilla ni lado,
ni llena un ser limitado
que se afirma ni se niega...
Díme, Amor, adónde llega
lo que nunca ha comenzado!”
(Homenaje a Raimundo Lulio, XXXII)
Está Deus fora de todos os círculos, abarcando a todos? As duas coisas
e nenhuma. Pode aparecer de improviso em qualquer momento, revelando
sua ação (16) e pode prolongar sua misericórdia por mil gerações (Ex 34,7).
Essa visão, que surpreende por sua grandeza, é consoladora ou de­
soladora? Por ora parece reforçar a melancolia do salmo: a grandeza de
Deus me empequenece. Em lógica humana poderíamos argüir: se a Deus
dão no mesmo mil anos e um dia, por que não nos concede mil anos? (como
às personagens antediluvianas). Pouco importa: mil anos seriam a nova
medida da mesma caducidade. “No túmulo ninguém discutirá por mil anos
ou cem ou dez” (Eclo 41,4).
Exegese
1149
5-6. Como um sonho, como a erva. Aceitando o significado proposto de
zrm, parafraseio. Umas choças de adobe erguidas sobre o páramo, com a
solidez de sua secura. De repente descarrega-se uma chuva torrencial,
corrói-as e esfacela-as, dilui-as em brejo e as arrasta. Fica o páramo
devastado com a recordação dum sonho: existiu aquele povoado de choças
ou sonhamos com ele? Assim os homens da terra: “casas de argila cimen­
tadas de barro” (Jó 4,19): sobrevêm a chuva torrencial e teofânica de Deus,
e a vida é um sonho ao amanhecer.
Sim, ao amanhecer lança um broto a planta e florece para seu destino
efêmero. Cantaram-no os poetas:
“et, rose, elle a veçu ce que vivent les roses,
l’espace d’un matin” (Malherbe).
“cuna y sepulcro en un botón hallaron” (Calderôn).
“amago de la humana arquitectura,
ejemplo de la vana gentileza,
en cuyo ser uniô Naturaleza
la cuna alegre y triste sepultura” (Sor Joana Inès da Cruz).
Como crescem as folhas numa árvore frondosa,
uma murcha, a seguinte brota,
assim as gerações de carne e sangue:
uma morre e a outra nasce (Eclo 14,18).
Quatro verbos neste versículo excelente por sua concentração: quanta
atividade para passar mais depressa. Na meditação já se ouve o zumbido
da foice, a grande foice da morte. O paralelismo bem rimado do versículo
conduz a uma pausa depois da primeira parte.
6-11. A segunda parte compreende outros seis versículos, definidos
pela inclusão da “ira”. Continua martelando o tema dos dias e dos anos. Se
a primeira parte via o tempo humano à luz da duração divina, esta parte
vê-o à luz da cólera divina.
7.0
verbo “consumir-se” pode fazer pensar numa vida malograda, num
morte prematura como castigo. Na morte antes do tempo revela-se mais tra­
gicamente a caducidade humana. Ezequias queixava-se: “No meio da vida,
tenho que marchar para as portas do Abismo, privam-me do resto de meus
anos” (Is 38,10). A geração do deserto não morre no ato, seu castigo é não
entrar na terra prometida; tampouco seu guia, Moisés, morre prematuramen­
te, mas é castigado a não entrar. Pelo contrário, um ancião pode morrer sere­
namente, sem que o espante a cólera divina. Inclusive um malvado, declara
Jó: “Assim acaba sua vida docemente e desce serenamente ao sepulcro” (21,13).
Por isso, deixando o caso da morte prematura, que pode estar sugerido
pela erva “cortada”, passamos à visão não diferenciada do salmo. A
melancolia dos versículos precedentes, com seu ingrediente de doçura, dá
Salmo 90
1150
vez ao sentimento trágico quando duas realidades estreitamente ligadas se
erguem perante a consciência: pecado do homem e ira de Deus. Na sentença
“voltai” já despontava um gesto de ira, que se tornava mais espesso no
aguaceiro teofânico. Agora “se revela a desaprovação de Deus” (Rm 1,18).
8. Percebemos que não é simplesmente um princípio intrínseco de
desintegração o que nos faz destrutíveis, mas antes uma força extrínseca
que nos consome e desarranja com sua eficácia. Ou melhor, que essa força,
em vez de inibi-lo, ativa nosso princípio de desintegração. E terrível essa
força, e mais terrível que proceda de Deus, “nosso refúgio”. Isso nos des­
concerta. Tem alguma explicação essa força hostil? Uma explicação que a
domestique e serene nossa angústia, não; uma explicação que inclusive a
agrava, sim. E que a provoca e a desata o nosso delito.
Quereríamos esconder ou enterrar isso que nos envergonha amarga­
mente, e tu o agarras e o colocas diante de ti e diante de mim; e tenho que
confessar que é justificada tua ira. Inclusive a mim se me ocultam movi­
mentos, desejos, atitudes nos antros da consciência. E tu diriges para aí teu
rosto como foco que ilumina o recôndito; e tenho que confessar que tua
cólera é justificada.
9. Efetivamente, é a ira de Deus que imprime essa absurda velocidade
a nossos dias, que tira consistência a nossos anos. Um suspiro ou um
murmúrio, ou seja, um sutil mover dos lábios, um rumor mal audível para
quem o pronuncia, e se acabou; retornam a imobilidade e o silêncio. Isso é
cada ano de nossa vida. Vale a pena contá-los? Formarão entre todos uma
sentença memorável, ou farão uma frase sem sentido?
“Ayer se fue, manana no ha llegado;
hoy se está yendo sin parar un punto.
Soy un fue y un será e un es cansado”
(Quevedo, Ah de la vida!)
10a. Façamos a prova: não em nós, que para fazer anos temos que os
ir anulando, mas nos outros. Não em qualquer um, mas nos que não
malogram na vida. Na conta resultam setenta anos, com muita saúde
oitenta. Uma criança imagina que setenta anos são tempo exorbitante; um
jovem impaciente pensa que o tempo não avança. Logo passará esse
sentimento:
“La vida nueva que en ninez ardia,
la juventud robusta y enganada,
en el postrer invierno sepultada,
yace entre negra sombra y nieve fria.
No senti resbalar mudos los anos;
hoy los lloro passados y los veo
riendo de mis lágrimas y danos”.
(Quevedo, Huye sin percibirse).
Exegese
1151
10b. Já que não bastam os números, pesemos sua substância. O
resultado é puro déficit: afanar-se em vão. Como se o puro afanar-se fosse
o sentido da vida, já que não o é o resultado. Afanar-se para continuar
vivendo e viver para afanar-se (Jó 5,6-7):
Não nasce do barro a miséria,
a fadiga não germina da terra;
é o homem que nasce para a fadiga,
como as chispas para alçar o vôo.
Quando eu chegar ao final e voltar-me para olhar atrás, parecer-meá contemplar uma carreira que ganhei para perder: os anos correm velozes,
eu vôo.
11. Pois se tal é o resultado da ira divina aplicada ao tempo humano,
se em nossa estéril caducidade revela-se a ira de Deus, “quem poderá
compreender a veemência de tua ira, quem poderá apreciar a violência de
tua ira?” Mais que a duração de Deus, ultrapassa-nos sua ira: aquela nos
oferecia um refúgio para além de nosso fluir sem descanso, esta nos
aterroriza com seu peso imediato e incompreensível. Não a abarcamos nem
a entendemos, só sabemos que é justificada.
Com essa pergunta sem resposta, com essa ignorância trágica
termina a segunda parte do salmo, e ocorre uma pausa. Cabe também
ligar 12 com 11, unidos pela repetição de y d ’, como resposta à pergunta.
No v. 12 começam os imperativos de uma série. Pode-se considerar
transição.
12-17. A terceira parte está pontuada por sete imperativos mais dois
jussivos. O salmo até agora foi descenso: da tristeza de ter que morrer à
tragédia do pecado e da cólera divina. Ao tocar o ponto mais baixo, o orante
busca sair do apuro orando a Deus. Podemos distinguir três momentos do
processo de subida, ainda que os dois últimos estejam real e poeticamente
sobrepostos.
O primeiro é a aceitação resignada, sem ilusões: é sensatez. O segundo
pede uma compensação de bens pelas desgraças passadas, ainda com algo
de cálculo; como se o sofrimento fosse uma espécie de mérito para o gozo ou
ao menos sua medida. O terceiro pede a fecundidade da ação. Essa terceira
parte consta de outros seis versículos.
12. Com a arte de contar resignadamente os anos, o homem espera
atesourar cordura. Vale a pena? Se Deus se faz de mestre, certamente vale
a pena. A passagem dos anos vai dando sua colheita amadurecida: o coração
amadurecerá de sensatez. Já que não podemos contar os anos de Deus nem
estimar a veemência de sua ira, fiquemos com esse cômputo proporcionado
a nossas forças. Iremos fazendo anos, os nossos, os que nos tocam; e essa
será nossa realização:
1152
Salmo 90
“morir al paso de edad espero;
pues me trajeron, llévenme los dias”.
(Quevedo, Si no temo).
13.
O primeiro imperativo ainda deixava bastante atividade ao ho
mem: contar os anos e colher sensatez. Era condição para quanto segue. A
partir da aceitação radical, pode ocorrer a mudança decisiva; se faltasse
essa cordura básica, não se poderia seguir adiante. Não que o contrário seja
o pecado específico a que se refere o salmo, pois aqui se fala de sensatez, não
de obediência a Deus. Ainda que não se possa negar que a falta de sensatez
deformará eticamente a condição humana.
Contudo, a verdadeira mudança, o começo do ascenso, há de ocorrer
por ação inteiramente divina, que o homem só pode suplicar. Ter sido
admitido à oração, ter chegado a essa petição audaz já é muito e justifica a
angústia precedente. O homem apresentando sua miséria apela à compai­
xão divina e, pressentindo já a compaixão, sente-se “servo”.
14-15.0 v. 13 gritava dois imperativos para iniciar o movimento. Os
versículos 14-15 juntam dois imperativos de ação divina em favor do povo.
Estão aliterados, no princípio de ambos os versículos, e articulam o
processo em dois momentos: “sacia-nos, alegra-nos”; longe da resignação do
v. 12.
Pedem saciedade, que gerará gozo vitalício. A capacidade de desejar e
receber define os limites da saciedade, já que a misericórdia de Deus não tem
limites. A misericórdia Qisd) opõe-se à cólera: o homem sentia-se incapaz de
suportar a cólera divina; considera-se, porém, capaz de saciar-se, de modo
que a saciedade compense todo o sofrimento precedente. Não fica curta a
petição? Compensar: por que não superar? Só até aqui chega a capacidade de
saciar-se? Pôr o tempo, um tempo por própria confissão limitado, “como os
anos”, parece desacerto. Deus, que desborda em ambas as direções o tempo
humano, não poderia presentear o homem com algo seu que desborde sua
medida temporal? Tem outras dimensões o espírito. Se é capaz de superar
seus limites meditando a imensidade de Deus, não poderá superá-los
desejando uma participação? Não deveria desejar e pedir segundo sua
capacidade de saciar-se, mas segundo a capacidade que Deus tem de dar:
“Te conozco, Senor, por lo que siento
que me sobra en deseo y en afán:
porque el vacío de mi descontento
tiene el tamano de tu inmensidad!”
(Pemán, Poesia sacra).
Ou então a capacidade de saciar-se deve crescer à medida que progride
a experiência.
Exegese
1153
Pela manhã. A mudança ou volta a Deus alumia uma manhã nova
que iniciará uma série de dias dos quais não se menciona a tarde. Manhã
única e dias numerosos: é a manhã de Deus. O que não obsta que essa
manhã inicial atualize seu esplendor cada manhã dos dias que restam, de
modo que “pela manhã” equivalha a “cada manhã”. Mas é importante con­
servar o caráter inaugural do versículo 14 (compare-se com o amanhecer
do SÍ57).
16-17.0s versículos finais estão organizados por um sistema simples
de correspondências formais:
Deus: tua ação, tua glória, tua bondade apareça, desça
Homem: nossa tarefa, nossa tarefa consolida, consolida
Deus é chamado ’dny, ou seja, senhor meu, dono meu, amo, que é cor­
relativo de “teus servos ou criados ou vassalos”. Podemos imaginar um
modelo doméstico: o amo tem servos, os quais têm filhos nascidos na casa
do amo, em servidão. Tocaria aos servos realizar a tarefa, ao amo dar ordens
e instruções e controlar o trabalho. Em virtude do modelo, surge uma ano­
malia expressiva: os servos pedem ao amo que comece ele fazendo e que dê
eficácia à tarefa encomendada. Ou seja, a atividade dos servos fica condi­
cionada pela iniciativa do amo e pela manutenção de seu apoio.
Podemos ensaiar o modelo político: o Senhor é o soberano, o povo e seus
filhos são os vassalos. O soberano toma a iniciativa numa ação libertadora
(p‘l. SI 44,2; 64,10; 77,13; 95,9); nessa ação manifesta-se sua nobreza e
honra; haverá depois de inaugurar uma relação de favor e benevolência
para com seus súditos. Recomenda-lhes uma tarefa (na terra prometida).
Então os vassalos compreendem que toca ao soberano dar eficácia e êxito
à tarefa recomendada. E mais do Senhor que dos servos: “todas as nossas
empresas no-las realizas tu” (Is 26,13).
Há alguma relação entre a ação manifesta de Deus e o dar consistência
e êxito à tarefa humana? A primeira parece fundacional, a segunda de
continuidade. Da primeira, o homem é espectador e receptor, na segunda
deve atuar. Da parte de Deus há relação: se começa, é para continuar: “não
abandones a obra de tuas mãos” (SI 138,8). Enquanto servos, são tarefa sua
e não pode desentender-se deles. Exigem-no o empenho inicial de sua
“atuação” e a continuidade de sua “bondade”.
A vida humana é “afã” (10) e “tarefa” (17), um empreender e realizar.
Não só “germinar e florecer”, mas também dar fruto. Se a ação do homem
é estéril, a vida mais longa revela-se frustrada. Se a ação é fecunda, realizase a vida. Por isso pede o orante um acordo do atuar divino (p í) e do humano
Cm‘sh). A ação divina revela a majestade de Deus, é teofania (16), sua
eternidade (2) não é inerte. Essa ação, de mais a mais, pode transmitir-se
1154
Salmo 90
à atividade humana (como turbina que move uma máquina). O atuar
humano, afirmado e dirigido por Deus, é mostra de sua bondade, participa
de sua eficácia e fecundidade, dá sentido e plenitude à vida. O homem será
o que tiver feito: ele e Deus nele.
6. Transposição cristã
O homem é o que fez. Quando o homem termina, terminam também
suas obras? Se o homem “ao morrer não levará nada” de suas posses (SI
49,18), levará suas obras? Deixa-las-á como recordação? Vamos introduzir
a transposição cristã com um texto que servirá de fundo de contraste (Eclo
41,11-13):
11
12
13
O homem é um sopro num corpo,
mas o nome do compassivo não perece.
Respeita teu nome porque ele te acompanhará
mais que mil tesouros preciosos.
Os bens da vida duram poucos anos,
a boa fama anos sem conta.
Eis o que resta: um nome que se recorda, uma fama que sobrevive. O
homem poderá desfrutar de sua esperança enquanto vive; não da realidade,
uma vez morto.
Antes de tudo, a revelação cristã não suprimiu a tristeza de ter que
morrer, também ao cristão contristai certa m oriendi conditio. E tema que
se pode levar à meditação com o texto do salmo. Só que a meditação muda
profundamente de sentido à luz do mistério de Cristo.
Cristo assume inteira a condição humana, salvo o pecado; inclusive a
morte e seu precursor o sofrimento. Em sua morte inocente e prematura
revela-se, não contra ele, a veemência da ira divina. Em Cristo glorificado
revela-se a ação do Pai, que é misericórdia e bondade, esplendor e beleza.
Com ela começa a nova manhã sem tarde, a nova vida que é alegria e júbilo.
E mostra-se que são fecundas todas as ações e paixões de Cristo.
Os cristãos também, “naturalmente, estávamos destinados à reprova­
ção” (em etha tekna p h y s e i orges = era m u s natura filii irae, Ef 2,3). Uma
“volta” de Deus nos faz voltar:
Mas Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor que nos teve, quando
estávamos mortos pelas culpas, nos deu vida com o Messias — estais salvos
por pura generosidade — , com ele nos ressuscitou e com ele nos fez sentar
no céu, na pessoa do Messias Jesus. Com essa bondade sua para conosco, por
meio do Messias Jesus, queria mostrar às idades futuras sua esplêndida e
incomparável generosidade (Ef 2,4-7)
Transposição cristã
1155
O
cristão pode contemplar a ação gloriosa do Pai e desfrutar dela
Ainda que tenha que sofrer, sabe que “os sofrimentos do tempo presente são
coisa de nada comparados com a glória que se vai revelar refletida em nós”
(Rm 8,18). Todas as suas obras, vitalizadas pela virtude do Ressuscitado,
adquirem consistência e fecundidade, “porque é Deus quem ativa em vós
esse querer e esse atuar que ultrapassm a boa vontade” (F12,13). Sabe que
quando morrer poderá “descansar de seus trabalhos, pois suas obras os
acompanham” (Ap 14,13). Com essa esperança vai entesourando uma
sabedoria cristã, que o acompanha até a manhã definitiva sem ocaso.
“Depois, antecipando os bens futuros, como se já estivessem realizados,
diz: Nós nos cumulamos de tua misericórdia. Por isso, no meio destes tra­
balhos e dores noturnos acendeu-se-nos a profecia, como lâmpada no escuro,
até que amanheça o dia e brilhe a estrela d’alva em nossos corações. Felizes
os de coração limpo, porque verão a Deus. Então encher-se-ão os justos do
bem de que agora sentem fome e sede, enquanto desterrados do Senhor se
guiam pela fé. Por isso se diz: Encher-me-ás de gozo em tua presença. Pela
manhã esperarão e contemplarão. Como disseram outros intérpretes: Pela
manhã nos saciamos de tua misericórdia. Então saciarse-ão como diz outro
texto: Saciar-me-ei quando se manifestar tua glória. E assim diz: Mostra-nos
o Pai e basta-nos; e ele responde: Mostrar-me-ei a eles. Até que isso aconteça,
nenhum bem nos basta nem deverá bastar, para que fique no caminho um
desejo que deve durar até a chegada.
Pela manhã nos cumulamos de tua misericórdia, nos alegramos e goza­
mos todos os nossos dias. Aquele dia será dia sem fim. Todos os dias estarão
juntos, e por isso saciam. Não dão lugar aos que sucedem, pois não há algo
que ainda não seja, porque não chegou; nem deixe de ser, porque já chegou.
Estão todos juntos, porque é um dia que está e não passa: tal é a eternidade...
Ferva nosso espírito desejando aqueles dias, arda de sede veemente;
assim nos saciaremos ali, nos cumularemos, diremos o que agora dizemos
antecipadamente: Pela manhã nos saciamos de tua misericórdia, nos alegra­
mos e gozamos todos os nossos dias. Gozamos pelos dias que nos afligiste,
pelos anos em que passamos desditas” (Agostinho).
Salmo 91
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
Tu, que habitas na proteção do Altíssimo
e te hospedas à sombra do Onipotente,
diz ao Senhor: “Meu refúgio, minha fortaleza,
Deus meu, confio em ti”.
Pois ele te livrará da rede do caçador,
da peste funesta;
cobrir-te-á com suas plumas,
refugiar-te-ás sob suas asas.
Não temerás o espanto noturno,
nem a flecha que voa de dia,
nem a peste que se desliza em trevas,
nem a epidemia que faz estragos ao meio dia.
Cairão a teu lado mil,
e dez mil à tua direita,
a ti não te alcançarão
porque seu braço1é escudo e armadura.
Basta olhar com teus olhos,
verás a paga dos malvados.
9
Porque fizeste do Senhor teu refúgio,2
tomaste o Altíssimo por morada.3
10 Não se aproximará de ti a desgraça
nem a praga chegará até tua tenda;
11 porque a seus anjos ele deu ordens
para que te guardem em teus caminhos.
12 Levar-te-ão em suas palmas
para que teus pés não tropecem na pedra.
1fidelidade
2tu, Senhor és meu refúgio
3por defesa (m‘w z)
Bibliografia
1157
13 Caminharás sobre leões e víboras,
pisarás leõezinhos e dragões.
14 Porque me quer, pô-lo-ei a salvo,
pô-lo-ei no alto porque conhece meu nome.
15 Quando me chamar, eu lhe responderei,
estarei com ele no perigo,
defendô-lo-ei e honrá-lo-ei.
16 Saciá-lo-ei de longos dias4
e fá-lo-ei gozar de minha salvação.
2. Bibliografia
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R. Gordis, Note on Ps 91,6, JThS 41 (1940) 39-40.
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4anos prolongados
1158
Salmo 91
K . Luke, Under the shadow o f the Almighty: a study o f Ps 91,1b, IrThQ
39 (1972) 187-193.
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A. Quacquarelli, riflessi di Ps 90 (91),3 nell’etàpatrística, Veter christ 11
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P. G. J. Post, Conculcabis leonem. Some iconographie and iconologic
notes on an early -Christian terracota-lamp with an anastasis scene, RivArchCr
58 (1982) 147-176.
Lista alfabética
Arbesmann
Beaueamp
Caillois
Caquot
Eissfeldt
de Fraine
Gordis
Hugger
Kilpatrick
Landesdorfer
Löw
Luke
58
67
37
58
57.68
59.66 v.d.
40
71
66
29
48
72
Macintosh
Magne
Mannati
Nikolsky
Ouellette
Ploeg
Post
Quacquarelli
de Relies
Rose
Sabre
73
58
65
27
69
65
82
74s
67
62
61
3. Análise filológica
1.yshb: LXX Vg tomam-no como sujeito dos dois verbos finitos que
seguem, da mesma forma Targ Ros Michaelis. Hitzig e muitos modernos
consideram-no vocativo que se prolonga num verbo finito, cf. Joüon 121 j.
2.
’mr: lêem part Jerôn Ros que tenta justificá-lo alegando particípio
com patah na segunda sílaba Dt 32,28; SI 94,9; 136,6 (em estado constructo!).
Duhm considera-o falha de ortografia por yiqtol. Del respeita a primeira
pess do TM e explica-o pela mudança de vozes. Lêem impor Hitzig Dah e
outros modernos.
lyhwh: pode-se tomar como compl indir de dizer, ou como começo do que
se diz, seja vocativo com l-, seja de pertença ou causa; mas bw está na terc pess.
3. yçylk: Vg põe sufixo de primeira pess.
mdbr: TM peste, o que antecipa fora do tempo o v. 6; vocalizando como
constructo de dabar, que significa palavra ou fato, acontecimento. Palavra
LXX Vg, morte Jerôn, morte da alma Belarmino.
4. b’brtw: com suas plumas. Vgscapulis mudando a metáfora.
ysk: de skk; para a vocalização Joüon 31c.
Estudo global
1159
wshrh: trad incerta, algo que rodeia: escudo, muralha?
’mtw: mudando as vogais, seu braço Dah.
5-6. y ‘wp ... yhlk ... yshwd: relativas assindéticas Joüon 158 a.
mdbr: apopragmatos LXX, a negotio Vg; explicam-no: Atanásio qual­
quer prazer diabólico, Eutímio enumerando ações imorais, Agélio cilada
peste TM Jerôn Sím, morte Targ.
yshwd: leram shêd = demônio LXX Vg e seus comentadores, que
explicam de modos diversos esse “demônio do meio dia”, por exemplo,
Eutímio a preguiça ou os pensamentos impuros ou o desenfreio.
7. min adverbial.
9.
Respeita o texto supondo mudança de falante, o orante dirige-se ao
Senhor Del; supre um verbo diz atrás de ’th Hitzig. Mudam para mhsk e tra­
duzem: mas tu / o que és tu / quanto a ti, teu refúgio é o Senhor Lowth Wellhausen Duhm Kraus, cf. GK135 f. Considra o -y radical em escritura arcaica Dah.
m‘wnk: como 90,1.
12.
ys’ wnk: com um nun paragógico conservado antes de sufixo GK47
m. 60 e.
14. w’ plthw: com waw de apódosis Joüon 176 e.
16. ’rk: segundo complemento de sb‘.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Se atendermos ao tema e ao desenvolvimento, este salmo é sem dúvida
um ato de confiança. Se atendermos a critérios e indícios formais, assomam
gêneros diversos a partir do salmo. Os comentadores, tomando algum ou
alguns dos indícios, elevam-nos à categoria definitória, em instrutiva
divergência de diagnósticos: liturgia de enfermo, liturgia de asilo no tem­
plo, liturgia real, liturgia de entrada no templo, exortação sapiencial, cate­
quese. Cada tentativa de catalogação apóia-se em algum dado certo e lança
mão de alguma conjetura. A maioria das propostas orienta-se para a litur­
gia, a qual pode ser o gênero ou a situação: um texto que fixa as fases da ceri­
mônia ou um texto que se recita em contexto cultual. A referência litúrgica
é provocada pela mudança de vozes no salmo.
b) Os falantes (prosopologia)
O que se debate é em boa parte a execução do texto como ato litúrgico:
em que ocasião, onde, por que pessoas. Pois bem, aceitando que é uma
oração de confiança e renunciando a precisar mais o gênero, ensaimos outro
1160
Salmo 91
modo de análise, velho de séculos: a definição dos falantes (veja-se na
introdução geral o capítulo dedicado à prosopologia). A sua maneira, é o que
propunha Delitzsch (Análise filológica).
— Três versículos começam com ky e algum pronome: 3 ky hw’ = que
ele; 9 ky ’th = que tu; 14 ky by = que a mim (o ky do v. 11 tem outra figura,
ainda que se pudesse tomar o sufixo -yw). Só o v. 2 apresenta um verbo de
dizer; nos demais é preciso inferir o falante pelo jogo de pronomes e
complementos. Partimos do esquema básico: N dirige-se a L falando de H.
No jogo mudam-se os papéis de eu-tu-eles. Em nosso caso contamos com o
orante (Or), um instrutor ou liturgo (Lit) e Deus. Vamos propor um
esquema atendo-nos ao texto atual:
1
2
3-4
5-8
9a
9b-13
14-16
Lit
Or
Lit
Or
Lit
D
enuncia em terceira pessoa, ou interpela em vocativo
dirige-se a Deus: enunciado programático
fala ao Or de Deus: ele te protegerá
fala ao orante de personagens perigosas
dirige-se a Deus, repetindo sua confissão
dirige-se ao orante: fala de seres hostis e protetores
fala do Or
Segundo essa distribuição de papéis, o orante pronuncia duas vezes sua
profissão de confiança em Deus. O peso do salmo recai sobre o instrutor ou li­
turgo, que se encarrega de ampliar a motivação, evocando perigos para vencê-los por adiantado, para subministrar um contraforte espiritual à confiança
do orante. No fim, ouve-se um oráculo de Deus, que, curiosamente, não se diri­
ge em segunda pessoa ao orante (como é tradicional), mas fala dele em ter­
ceira pessoa. Supõe-se que essa personagem aludida é a mesma que figurou
no princípio do salmo e que funciona como tipo mais que como indivíduo.
— Pode-se representar um texto assim dramatizado, com distribuição
de papéis. A presença de três personagens em cena aclara o processo (o autor
não incluiu no texto rubricas, indicações para sua execução). Também se
pode recitar mentalmente, como quem lê uma cena simples de teatro.
Se em geral o orante é o protagonista da oração, neste salmo roubamlhe o papel para fortificá-lo na confiança. O orante pode ser uma comuni­
dade, que pronuncia a profissão em uníssono, multiplando a força. Deus
reserva-se a última palavra.
— Alternativa. Corrigindo 9a, pode-se englobar a sentença no discurso
do instrutor: de repente se dirige a Deus em segundo pessoa ou cita de
passagem uma frase do orante. A correção tem leve apoio documental. O
sentido do conjunto não muda substancialmente.
Outra conjetura é supor que 9a seja um estribilho que o orante repete
várias vezes, alternando com o instrutor. E conjetura impossível de provar,
que pode constar como sugestão para nossa apropriação e execução.
Estudo global
1161
c) As outras personagens (1)
—
Comecemos pelo famoso quaternário dos versículos 5-6. Ainda que
a “flecha” seja arma empírica conhecida, o grave dessa seta é que voa sem
saber donde nem aonde; com um disparo ao acaso (recorde-se a morte de
Acab em campanha, lRs 22,34). Os outros três seres estão personificados
e pertencem a um mundo que o israelita não compreende nem controla. O
primeiro chama-se Espanto: não como efeito psicológico, mas como objeto
e causa que atua de noite. O terceiro chama-se Peste, aproveita-se da
escuridão para seus movimentos. O quarto chama-se Epidemia, está à
espreita quanto mais brilha o sol. Aliados, os quatro formam um esquadrão
terrorífico que ameaça o homem sem cessar e com armas incontroláveis.
Entram no salmo elementos mitológicos ou crenças populares em espíritos
malignos? Podemos ensaiar duas resposta.
— Acudindo à literatura religiosa da Assíria e Babilônia, encontramos
dois tipos de orações com seu ritual: um contra feitiçarias, outro contra
espectros e almas de defuntos. Interessa-nos aqui porque falam de perse­
guição incessante, dos males físicos e mentais que causam, e enumeram
tipos de demônios e espectros (Seux 414-442):
Seja um Utukku maligno, um Alu maligno, um espectro maligno,
a Lamustu, o Labasu, o Ahhazu,
o Lilu, a Lilitu eu o jovem Lilu
ou o maligno sem nome (Seux 433).
Seja um Utukku maligno, um Alu maligno,
um espectro maligno, um gallu inimigo, um deus maligno,
um rabisu maligno, a Lamastu ou o Labasu
ou o Ahhazu, o Lilu, a Lilitu, ou [a jovem Lilu]
o Promotor do mal, o Mal Total
e todos os que têm nome (Seux 437).
Pega-me sem descanso,
persegue-me sem cessar todo o dia
aterroriza-me sem cessar toda a noite (Seux 416).
Que não se aproxime, que não me alcance (Seux 418).
Buscou-me,
voltou-se contra mim na vigília do crepúsculo,
na vigília da meia noite, na vigília da alvorada,
cada dia me penetra (Seux 420).
Estou enfermo de enfermidade
que tu, ó Deus, conheces,
que eu não conheço, que ninguém conhece,
porque um espectro familiar me aflige (Seux 425).
1162
Salmo 91
Na cama aterroriza-me sem cessar,
aterroriza-me e espanta sem cessar (Seux 437).
— Não podemos postular uma dependência formal e imediata, pode­
mos apreciar certo parentesco no modo de conceber e explicar fenômenos
estranhos, em que a ignorância das causas intensifica o medo e obriga a
imaginar explicações.
Em Israel, como em povos vizinhos ou distantes, existe uma crença
difusa em espíritos malignos, seres misteriosos, influências arcanas (os
italianos ainda chamam de “influenza” a gripe, ou seja, influência dos
astros; fóssil linguístico de velhas crenças). O NT faz-se eco dessas crenças.
Mas devem-se notar as diferenças. Na Babilônia, um remédio era invocar
as divindades: Ea, Samas (o mais freqüente), Marduk; também conjura-se
o deus infernal da morte, apela-se aos manes, inclusive ao espectro
anônimo causante dos males. Ritos mágicos acompanham a súplica. Pedese que sejam destruídos ou reduzidos à impotência ou que se aplaquem. No
salmo campeia o domínio inconteste de Yhwh sobre todos os “espíritos”
(chamemo-los assim). O orante não deve temê-los, inclusive poderá pisálos. Não só os demônios, mas também deve vencer seu medo.
d) As outras personagens (2)
— No v. 13 encontramos outro quaternário: dois tipos de leões, animal
conhecido e temido, emblema de força animal mortífera. Mais sinistra
ainda a áspide ou víbora. O Dragão pertence ao mundo da fantasia
mitológica e costuma ser marinho (faltam as aves de rapina na lista). O
Dragão pode ser a visão imaginativa do caos primordial e sempre ameaça­
dor, a versão positiva do nada devorador.
— Outros seres completam o exército hostil. O v. 8b diz “os malvados”,
termo genérico que se pode aplicar a homens e poder-se-ia aplicar a
personificações de seres “malignos”. O v. 10 é personagem metafórica
conhecida que não tem especial relevo aqui.
— A todos os inimigos se opõem seres protetores, “enviados” do Senhor:
mensageiros, encarregados, anjos. Têm figura humana (sem asas), capazes
de transportar voando e seguros no caminhar.
e) Composição e eixo imaginativo
— A composição está definida pelo suceder dos falantes. Pode-se tomar
1-2 como introdução que define tema e tonalidade; 3-13 como discurso do
liturgo, interrompido talvez por uma confissão do orante em 9a; 14-17,
oráculo de Deus. Pode-se surpreender um movimento alternante e crescen­
Exegese
1163
te: porque Deus protege, o homem confia; porque o homem confia, Deus o
protege.
— A proteção divina articula-se em dois momentos: refúgio e caminho.
O refúgio indica um recinto fechado e protegido que pode estar no alto,
inacessível: é amparo, sombra, asas e plumas, escudo e adarga. Da realida­
de empírica do templo ascende-se à relação pessoal com Deus. Caminho,
ainda que pareça contrário, é antes complementar. No refúgio Deus está
presente, para o caminho despacha os seus encarregados. O mundo dos
espíritos tenta insinuar-se no recinto do refúgio, como flecha lançada desde
fora; o mundo das feras aguarda pelo caminho.
O autor dá espaço a referências bélicas em 4b e 7b.
Pode-se emparelhar o salmo com o 27, especialmente 27,1-7.13-14;
também com o SI 3.
5. Exegese
1-2.0 começo apresenta uma construção sintática difícil. Uma tradu­
ção literal, atenta à vocalização massorética, soa assim: “Habitante no
amparo do Altíssimo, à sombra do Todo-poderoso se hospeda, digo ao
Senhor: Refúgio meu ...”. E uma apresentação do orante típico em particípio? (recurso freqüente nos Provérbios). E um vocativo que pronuncia o
liturgo antes de falar em segunda pessoa ao orante? Alguns mudam sem
violência o particípio em imperativo. Apesar das dúvidas, o sentido geral
está suficientemente claro: a exortação é para alguém que sabe e quer
confiar no Senhor. Não é preciso supor que se trate de sacerdote ou levita
que reside habitualmente no templo, posto que o Senhor, do templo, protege
toda a comunidade.
Quatro nomes divinos se apertam em quatro hemistíquios. Altíssimo,
título tomado de culturas religiosas vizinhas; título de avoengo (Gn 14) e
favorito do saltério (21 vezes). Sadday, que costumamos substituir com os
LXX por Todo-poderoso: raro em profecias e salmos, favorito de Jó. Yhwh,
que reaparece só em 9a. Deus meu, que coloca Yhwh na categoria dos
“deuses pessoais”. Com esse quaternário não resta lugar para outro, porque
o Senhor ocupa todo o espaço: o quaternário do Único contrasta com os
quaternários que vão sobrevir.
Refúgio é título freqüente no saltério (12 vezes); um pouco menos
"fortaleza”. Confio: estabelece o tema e a tonalidade.
3.
A rede ou armadilha do caçador usa-se com freqüência como
metáfora ou comparação. Podem-no ilustrar dois textos sapienciais:
1164
Salmo 91
Pr 7,23 Como pássaro que se precipita na armadilha.
Ecl 9,12 Como pássaros pegos na armadilha.
Em paralelo dbr hwwt, que é, literalmente, funesta. Mudando a voca­
lização, obtém-se o genérico palavra, assunto. Uma palavra funesta pode­
ria ser um malefício ou difamação (cf. SI 38,13; Pr 17,4; Jó 6,30). Aconteci­
mento, assunto: DBHE dbr A 2.
4. Plumas: o hebraico costuma mencionar as penas de preferência no
ato de voar: “Quem me dera plumas de pomba para voar” (SI 55,7); “levouos sobre suas plumas” (Dt 32,11). O salmo fixa-se no ato de cobrir e proteger,
com um verbo skk em que ressoa o tema da tenda.
Com as “asas” ocorre o contrário. Ainda que alguns textos as refiram
ao voar: “estendeu as asas e os tomou” (Dt 32,11); “levei-os em asas de
águia” (Ex 19,4), a maioria dos usos no saltério referem-se à proteção, e
podem ir acompanhados de “sombra, esconderijo, refugiar-se”. Se a ima­
gem das asas alude também aos querubins do camarimX?) no templo
(Sancta sanctorum), então é preciso estabelecer uma proporção: como os
querubins cobrem com suas asas a arca, assim o Senhor pessoalmente co­
bre seus fiéis. Na imagem poética transcende-se a representação material.
5. Não temerás. Quando Deus pronuncia um oráculo de salvação,
costuma dizer: Não temas. Aqui ocorre como se o instrutor estivesse
comentando essa frase sóbria de Deus. E para comentá-la, convoca em suas
palavras os seres mais ignotos e temíveis. Um texto babilónico falava do
“mal sem nome”; os do salmo têm um nome que não diz sua essência nem
sua tática destrutiva. Quanto à flecha, com nome e função conhecidos, não
leva firma nem destinatário.
Acertadamente começa com o Espanto noturno. Uma oração babilónica
diz “horripilante” que faz eriçar os cabelos, e menciona duas divindades ou
demônios noturnos: o Lilu e a Lilit. Ct 3,8 menciona os terrores noturnos,
que em São João da Cruz se convertem em “los miedos de la noche
veladores”. Ninguém no AT o descreveu como o livro da Sabedoria, no
capítulo dedicado à praga das trevas (c. 17). Pode servir de comentário ao
condenado do quaternário nefando:
4 Nem o rincão que os retinha os salvaguardava do medo;
retumbavam a seu redor ruídos aterradores
e se lhes apareciam tétricos fantasmas de lúgubres rostos.
14 Durante aquela noite realmente impotente,
saída dos rincões do impotente Abismo,
enquanto dormiam o mesmo sono,
15 ou os perseguiam monstruosos espectros,
ou ao dar-se por vencidos ficavam paralisados,
pois invadiu-os medo repentino e inesperado ...
Exegese
1165
6.
A Peste é terrível por sua força de contágio e sua violência mortífera.
O poeta personifica-a, Jó chama-a de “Primogênito da Morte” (18,13).
Jeremias e Ezequiel a mencionam entre as pragas (17 e 12 vezes); ainda
assoma no Apocalipse. E não é preciso recordar a “morte negra” que cobriu
a metade da Europa com seus mortos e seu terror.
A peste age “no escuro”: se a repartição de horário nos dois hemistíquios
é conseqüente, o que o meio-dia é para o dia, será a vigília intermédia
(segunda) para a noite.
A “Epidemia” corresponde a qtb, que se lê quatro vezes no AT.
Associada à tormenta em Is 28,2, ao Abismo em Os 13,14, parte de uma
série de desgraças em Dt 32,23-25: desgraças, flechas, fome, febre, epide­
mia, dentes de feras, veneno de serpentes, espada e espanto.
7ab + 4c. A imagem é militar, em termos hiperbólicos. Quem é o sujeito
de cair ou aproximar-se? Uns pensam em dardos ou armas de atirar, que dei­
xam incólume o orante, porque Deus “o escuda”; mas em nenhum caso se pre­
dica o verbo npl de armas de atirar, ao passo que é freqüente dito de homens,
sobretudo de “caídos” em campanha. Fica a outra alternativa, também difícil:
como os mil caem “ao lado, à direita”, tratar-se-ia de companheiros na bata­
lha ou de concidadãos numa epidemia. E preciso ler o versículo como encare­
cimento hiperbólico, sem lhe tirar demasiadas conseqüências lógicas. Compa­
re-se com o SI 3,7: “não temerei um exército de dez mil”; ou a copla dedicada
aDavi: “Davi matou dez mil” (ISm 18,7); ou Dt 32,30: “mil põem em fuga dez mil”.
Leio aqui 4c, que menciona (provavelmente) o escudo redondo ou
adarga, embraçada a meia altura, e o escudo alto e recurvo que cobre o
corpo, e que muitas vezes é sustentado por um escudeiro. Aceito a sugestão
de que a vocalização “fidelidade” é espiritualização do original ’mh, que no
AT se usa com freqüência como unidade de medida, côvado, braça.
8. Este versículo transfere-nos à esfera ética: as mortes interpretamse como castigo ou retribuição dos malvados. Ou simplesmente muda de
registro, para dar a entender que, quando Deus enviar seus castigos aos
malvados, protegerá o inocente. Um conceito afinado de retribuição, que
encontramos em outros lugares.
9. Aqui começa segunda onda, mais breve, segundo costume do saltério.
Arepetição da capo podejustificar e explicar mudança abrupta do discurso, a fra­
se repetida do primeiro solista. A “morada”, sinônimo de habitar e hospedarse tl), alude ao direito de asilo transcendido: o Altíssimo em pessoa é a morada.
10. Praga: pode significar uma enfermidade (Lv 13-14), ferida, golpe
ou qualquer desgraça (DBHE).
11. O serviço “angélico” de encarregados divinos para se contrapor a
demônios e feras. E mais freqüente a designação anjo do Senhor, como
manifestação sua ou como substituto:
1166
Salmo 91
Ex 23,20 Enviarei um anjo diante de ti para que cuide de ti no caminho
e te leve ao lugar que preparei.
32,34 Agora vai guiar teu povo ao lugar que te disse: meu anjo irá diante
de ti.
33,2 Enviarei diante de ti meu anjo para que expulse os cananeus...
SI 34,8. O anjo do Senhor acampa em redor de seus fiéis e os protege.
O livro de Tobias “domestica” esse anjo tão importante, impõe-lhe o nome
de Gabriel e põe-no a serviço de uma família no desterrro. O autor do salmo
distribui as funções: no templo é Deus em pessoa, pelo caminho são seus
encarregados.
12. Suspeito que esse versículo seja a origem da expressão castelhana
“llevar en palmitas”. Este é o versículo citado por Satã em Mt 4,5 e paralelo.
13. Os hebreus têm quatro termos para designar o leão ou quatro
espécies de leões: ’ryh, lby\ kpyr, shhl. Neste versículo figuram dois: ptn
é nome genérico de ofídio venenoso; tannln é um dragão marinho mitoló­
gico.
Em Enuma Elis, ao se dispor Tiamat a dar batalha aos deuses,
encarrega a confecção de armas e monstros terroríficos:
“A víbora, o dragão e a esfinge,
o leão, o cachorro raivoso e o homem-escorpião,
poderosos leões demoníacos, o dragão voador, o centauro”
I, 140-142 (ANET 62B).
No final da batalha, Marduk fá-los prisioneiros e “os pisa” (IV, 118).
Pisar o inimigo é gesto de vitória (Is 26,6; 41,25; 63,3).
14-16. Oráculo de Deus. Sete verbos na primeira pessoa enunciam a
ação de Deus, três versículos na terceira pessoa a ação do homem. Salvo no
terceiro, “chamar-responder”, não se dá correspondência lógica definida.
No centro da série e sem verbo ergue-se a fórmula mais sóbria e substancial;
literalmente, “com ele, eu no perigo”.
A forma do oráculo é muito elaborada: um perfeito quiasmo em 14; abc
cba; outros menos marcado em 16 ab ba; uma série insistente de rimas em
-ehü; um ritmo curioso de rigor e alternância (3 + 3 2+3+2+3+2).
—
Ações do homem. Querer: quando se usa hshq em sentido próprio
significa enamorar-se: o jovem Siquém de Dina (Gn 34,8), um homem de
uma mulher (Dt 21,11). Depois se transfere ao amor ou enamoramento do
Senhor por seu povo (Dt 7,7; 10,15); no salmo significa o amor afetuoso do
orante para com Deus. Conhece meu nome: conhece-o e reconhece-o, usao na relação pessoal, com ele me chama ou invoca. Há correspondências
entre conhecer o nome e pronunciá-lo chamando: como categoria ou grupo
de “invocadores de seu nome” (SI 99,6); “os povos que não reconhecem, que
não invocam teu nome” (Jr 10,25); qr’ bshm (Is 12,4; 64,6; SI 105,1;
Transposição cristã
1167
116,4.13.17). (Creio que o salmo é anterior ao constume de não pronunciar
o nome de Yhwh).
—
Ações de Deus. São comuns pôr a salvo, libertar, responder; as
outras são específicas, sgb em piei é pôr no alto, em lugar inacessível e
seguro. Honrar é raro tendo Deus como sujeito (ISm 2,30; Is 60,13). Saciar
de longitude de anos é a longevidade como bênção clássica. Fazer des­
frutar (r’h b-) permite que a última palavra do salmo seja “minha sal­
vação”.
O orante leva para casa a instrução de experiente e o oráculo do
Senhor. Pode confiar: se está no templo, está sob as asas de Deus; se está
em “sua tenda” (10), não corre perigo; se vai pelo caminho, anjos o
acompanham (11). Pode vencer o temor (5) e confiar (2).
6. Transposição cristã
Na narrativa das tentações de Jesus no deserto, o tentador cita os
versículos 11-12 do salmo para defender sua proposta (Mt 4,5ss; Lc 4,9-11).
Essas citações põem em marcha nossa reflexão.
— O jogo é engenhoso: o diabo tenta a Jesus para que Jesus tente a
Deus, e para isso tira do gonzo alguns versículos, todo um salmo, da
espiritualidade hebraica. Todo o salmo é instrução, profissão e ratificação
da confiança. O diabo pretende deformar a confiança em presunção e
:emeridade. Tenta fazer com que Jesus, em vez de apoiar-se na promessa
ie Deus, se aproveite dela para exibição espetacular. Não são asas de
Deus nem palmas de anjos; são asas de ícaro fabricadas para um salto
mortal. A resposta de Jesus é categórica, e é outro versículo da Escritura
Dt 6.16).
Agudamente observa Eusébio que o diabo não inclui na citação o v. 13,
“caminharás sobre a áspide”, porque sabia que o Messias haveria de
caminhar sobre ele e seus rebeldes.
— Para vencer todo medo, o salmo conjura e exorciza o poder de
algumas criaturas demoníacas e de um dragão mitológico rebelde a Deus.
Agora ocorre que o demoníaco e o Satã ou Rival está aí, personagem
dramática no deserto. Não terrorífico, mas insinuante; não com ameaças,
mas com ofertas. O rival de Deus apresenta-se com múltiplas máscaras
para sua ação; o salmo enuncia umas quantas intimidatórias. Jesus no
evangelho o desmascara.
— Pedro escolhe uma das máscaras, leão, e a identifica. Opõe-no à fé, que
é raiz de confiança, e numa espécie de oráculo promete a proteção divina:
Salmo 91
lP d 5,8 Desembaraçai-vos, sede vivos, pois vosso adversário o diabo, vos
rodeia como leão a rugir, procurando a quem devorar. 9 Resisti-lhe, firmes
na fé, sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge vossos irmãos
espalhados pelo mundo. 10 Depois de breve padecer, Deus, que é todo graça
e que vos chamou pelo Messias à sua eterna glória, ele em pessoa vos
restaurará, firmará, robustecerá e dará estabilide.
Salmo 92
1. Texto
2
3
4
5
É bom dar graças ao Senhor
e tocar em teu louvor, ó Altíssimo,
proclamar pela manhã tua lealdade
e tua fidelidade de noite.
Com harpas de dez cordas e com alaúdes,
sobre harpejos de cítaras;
porque tuas ações, Senhor, são minha alegria,
e meu júbilo as obras de tuas mãos.
6
Quão magníficas são tuas obras, Senhor,
quão profundos teus desígnios!
7 O ignorante não os entende,
o néscio não os compreende.
8 Ainda que cresçam como erva os malvados
e floreçam os malfeitores,
9 serão destruídos para sempre.
Tu, porém, Senhor, és sempre excelso.
10 E certo, Senhor, teus inimigos,
é certo, teus inimigos perecerão,
os malfeitores se dispersarão.
11 Eleva-se meu chifre como de um búfalo,
estou ungido com óleo fresco.
12 Meus olhos verão a derrota de meu rival.
Quando se levantarem contra mim os perversos,
meus ouvidos escutarão:
13 O honrado florescerá como palmeira,
elevar-se-á como cedro do Líbano,
14 plantado na casa do Senhor,
florescerá nos átrios de nosso Deus.
1170
Salmo 92
15 Na velhice continuará dando fruto
e estará verdejante e frondoso,
16 proclamando que o Senhor é reto,
“Rocha minha, em que não há maldade”.
2. Bibliografia
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Th. Booij, The Hebrew text o fP s 92,11, VT 38 (1988) 210-214.
3. Análise filológica
2. Observe-se a marcada aliteração em l-, que segue no v. 3.
4. A tríplice repetição de ’ly produz contraponto rítmico.
5. m‘sy: poderia ser sgl com a terceira radical Y conservada.
6. Observe-se a aliteração em m-,
8. wyçyçw: forma finita atrás de infin com prep Joüon 124 q.
Ihshmd: eqüivale a final ou consecutiva: é para, cf. Jó 27,14; Jr 17,2;
Is 66,2.
11. wtrm: ou hif 2a pess masc sgl com sujeito Deus, ou hif intrans
2a. fem sgl.
blty: de blh - gastar-se, donde envelhecer to geras mou LXX senectus
mea Vg, semelhante Sím Jerôn Sa Genebrardo Baethgen. De bll = ungir:
qal instrans Del, passivo Dah, Qimchi propunha as duas alternativas, na
variante trans suplindo compl minha cabeça. Corrigem para bltny: 2~ pess
+ suf Olshausen Duhm Gun Kraus.
bshmn r‘nn: com óleo fresco: assim quase todos, Sím como oliveira
verdejante; Vg. misericórdia, por confusão fonética de elaio com olei.
12.bshwry: retém um subs do tip gwr çwr Del; contração fonética de
shrry Hitzig cf. Ewald 160 a. Corrigem para shwrry ou srry Duhm Gun.
tsm‘nh: verbo que com ò- rege o segundo hemistíquio, paralelo de tbt
b- que rege o primeiro. Dah e outros lêem pausa em mr’y m e tomam o que
segue como introdução de discurso direto 13-16.
Estudo global
1171
16.
çwry: título em aposição a yhwh, ou casus pendens ao que segue
frase com waw de apódosis GK 143 d.
‘Ith: qere ‘wlth, talvez com desinência de acusativo conservada GK 90 g.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O tom jubiloso, o acompanhamento musical e a motivação que são as
obras divinas dizem-nos que neste salmo temos um hino. Abre-se com um
canto, encerra-se com uma proclamação (Ihgyd). Alguns aspectos pouco
comuns conferem-lhe seu perfil individual.
— O primeiro é que tematiza o gozo e o ato de louvar. Os hinos
ordinários começam com um imperativo: “cantai”, ou com um coortativo:
"vou cantar”; este transforma o ato em sujeito gramatical e dele predica
uma qualidade: louvar ao Senhor é ação boa e agradável. Outros introdu­
zem o gozo em forma adverbial: “cantarei com alegria”; este se volta a
observar o sentimento e sua causa: “o Senhor me enche de alegria”. Deste
modo, a loa é de Deus e da música, da música em honra de Deus. A canção
brota da alegria, a alegria é infundida por Deus; de modo que o homem toca
seus instrumentos sendo instrumento movido por Deus.
— Outra peculiaridade é a veia sapiencial. Explicita o versículo 7, a
partir do qual se precisa o anterior e se descobre o estilo sapiencial da
comparação vegetal, o uso de “honrado” (çdyq) como categoria, a retribuição
constrastada de maus e bons. Pelo contexto sapiencial definiremos o
alcance e função dos quatro versículos finais.
O sapiencial não sabe prescindir da intenção didática. O orante tem
um pé na canção e outro no ensinamento. Pela primeira parte de Provérbios
e por várias passagens do Eclesiástico sabemos que os mestres passam às
vezes do ensinamento ao hino religioso. O mestre ensaia seu talento
modesto e seu artesanato poético numa canção, trabalhando com motivos
tradicionais. Seu talento musical não podemos julgar. Introduz-se em sua
tarefa um problema que resolverá cantando, sem entrar a fundo.
b) O problema da retribuição
No v. 8 assoma o problema clássico da retribuição: a prosperidade dos
malvados. Como e por que se apresenta no salmo? Podemos imaginar duas
explicações: 1) O mestre põe-se a cantar com todo entusiasmo: começa com
uma introdução instrumental, ataca em seguida o tema, as obras e ações do
1172
Salmo 92
Senhor. De repente assoma à sua consciência a objeção: sim, “são grandes”,
mas o que dizer da prosperidade dos malvados? O problema é “fundo”, mas
tem fácil solução; é questão de inteligência. Explica-se que o ignorante não
o compreenda. Basta considerar o desenlace, que Deus tem previsto.
Naturalmente, o orante não forma parte do grupo dos néscios ignorantes,
pois sabe meditar sobre “os planos” de Deus. 2) O autor por si ou por outro
viu-se confrontado com o problema da retribuição. Responde tomando-o
como ponto de partida para a reflexão que proporá cantando, combinando
a didática com a lírica; de maneira simples, cantável, sem aprofundar o
assunto. Também o mestre do SI 49 cantava com a lira sua instrução.
O problema irrompe inesperadamente no canto; o problema é a origem
do mesmo. Eis aí as duas respostas genéticas. Se uma resposta segura é
difícil, a proposição servir-nos-á para exercício de comparação. O SI 92
constitui parte da família do 37 e do 73. O problema da retribuição é
dramático no SI 73: conduz a um fracasso da reflexão humana, que é salva
de um salto pela revelação divina. O mestre do SI 92 não vive dramatica­
mente o problema: roça-o, canta-o, sente-se superior a ele. Mais próximo
parece-me o SI 37, que também tem ponto de partida dramático: o que dizer
das vítimas inocentes dos malvados triunfantes? A resposta é meditação,
ensino, exortação; também emprega a comparação vegetal, menciona a
velhice, antecipa como resposta o desenlace. Comparado com esses dois
salmos, o presente sai perdendo, mas fica iluminado. A última frase do
salmo é uma nota de teodicéia: “em minha Rocha não há maldade”.
c) Composição
—
O primeiro que observamos é uma inclusão formal dos versículos 2
e 16, formada pelo tema e pela repetição de Ihgyd; mostra-o um esquema:
anunciando
tua lealdade
tua fidelidade
anunciando
que Y hwh é reto
minha Rocha sem delito
A inclusão não é puramente formal, mas ensina-nos duas coisas.
Primeiro, que entre as qualidades admiráveis que canta o orante encontram-se a lealdade e a retidão; qualidades que regem “ações e projetos” do
Senhor: louvor e justificação de Deus.
O segundo refere-se ao orante. Considerando que o sujeito de anunciar
é no v. 16 o ancião honrado, o final diz que ao cabo dos anos pode exercitarse numa atividade que no começo declarou “boa”, agradável e gozosa. Que,
depois de longa experiência, pode fazer balanço e “declarar que o Senhor é
reto” e sem mancha. O ancião do SI 71,17-19 propõe “relatar as maravilhas
Estudo global
1173
de Deus”; o do SI 37,25 declara: “Fui jovem, já sou velho: nunca vi um justo
abandonado”.
— O que podia ser simples introdução do hino cresce até formar uma
parte, um hino minúsculo: canto e motivação. O nome Yhwh pronuncia-se
três vezes, a primeira em paralelo com ‘lywm. O v. 7, com seu demonstrativo
“isto”, serve de transição: é o desígnio, é sua descrição.
— No centro do salmo encontramos uma disposição paralela:
8-10 O Senhor eleva-se glorioso sobre seus inimigos aniquilados.
11-12 O orante eleva-se triunfante sobre seus inimigos vencidos.
São os mesmos os inimigos? São duas vitórias? Se os inimigos não
fossem os mesmos indivíduos, seriam da mesma categoria: malvados,
malfeitores, perversos. A vitória do orante é triunfo de Deus: o orante não
canta suas proezas pessoais, mas as de seu Deus. A vitória do orante
articula-se em dois momentos: ver e ouvir, de modo que o ouvir sirva de
introdução aos versículos restantes (Análise filológica).
— Propus tomar 13-16 como texto da mensagem que “escutam meus
ouvidos”. Que tipo de mensagem é? Quanto à forma, temos que recordar outros
salmos em que se interpõe ou se introduz outra voz (81,9; 85,9): “Escuta, povo
meu ... Ouço uma mensagem desconhecida”; “Escutarei o que diz o Senhor”;
também 91,14-16 sem introdução. Costumam-se explicar esses casos como
introdução de oráculo divino na oração, seja resposta ou admoestação.
Creio que no salmo presente não escutamos um oráculo divino, mas uma
instrução sapiencial, tradicional, pronunciada pelo mestre cantor. Seria fácil
entrescolher de Provérbios uma antologia ponderando as venturas do “hon­
rado” (Salmos e Provérbios são os dois livros que têm a maioria de presença
de çdyk, em geral como categoria). Essa mensagem ou instrução generaliza
a experiência pronunciada em primeira pessoa em 11-12. Repetindo do v. 8
a imagem vegetal e o verbo prh, o final olha de soslaio os malvados.
Em conclusão, o salmo desenvolve coerentemente uma idéia. Sem
apelar a recursos salientes, deixa-se levar por uma lógica interna, apta
para o ensinamento. Uma redução a esquema fa-lo-á compreender:
E grato, Senhor, louvar tua fidelidade,
pois me alegram tuas ações e projetos arcanos
(que o néscio não compreende):
Tu triunfas de teus inimigos, os destróis,
e a mim me fazes vencer.
Tal é o destino do honrado:
prosperar e louvar tua justiça.
É preciso encher de carne esse esqueleto para em seguida lhe apor
música.
1174
Salmo 92
d) Imagens
— A dupla imagem vegetal, erva e árvores corpulentas, é de cunho sa­
piencial, como mostram: no saltério: 37,2.35; 90,5s; fora do saltério: Jó
8 ,lls; Jr 17,6-8; Pr 11,28. O poeta dá à imagem um toque pessoal introdu­
zindo a palmeira, pouco freqüente na literatura bíblica, usando o verbo raro
nwb = prosperar, crescer; sobretudo transladando suas árvores ao recinto
do templo. Com esse artifício, o salmo entra em comunicação com alguns
textos do livro de Isaías:
60,21 É o broto que eu plantei,
a obra de minhas mãos, para glória minha.
61,3 Chamá-los-ão Carvalhos do Justo,
plantados para a glória do Senhor.
Recordemos também “os dois rebentos de oliveira” (Zc 4,3.11-14) que
representam Zorobabel e Josué. Dado o comum da imagem, não se pode
tirar dela elementos para datar o salmo.
— Para a imagem do chifre, veja-se o SI 75. A menção de búfalos (ou
bisontes) enlaça-se com textos tradicionais como Nm 23,22; 24,9; Dt
33,17.
5. Exegese
2. A forma do começo é muito cuidada. Além da aliteração, já aponta­
da, convém escutar o ritmo. Tomando nossa acentuação usual do hebraico
e representando com o sílaba átona e com 6 sílaba tônica, a fórmula é a
seguinte: ó ooó ooó ooó ooó ooó.
Esse é o único salmo que começa com o adjetivo “bom”, numa declara­
ção de valor que se aproxima da bem-aventurança ou macarismo. O mais
próximo é o SI 147: “Louvai ao Senhor (halelüYâh), pois é bom tocar para
o nosso Deus”. O nome divino Yhwh soará no salmo sete vezes.
3. As virtudes de Deus escolhidas são lealdade e fidelidade, uma
parelha corrente. Não tiraríamos sentido especial dela se não dispusésse­
mos do antecedente do SI 89, onde têm função importante. À luz da com­
posição do salmo presente, polariza-se o sentido dessas virtudes: ainda que
o projeto de Deus seja arcano e sua conduta nem sempre fácil de entender,
o honrado pode descobrir gozosamente que a conduta de Deus é regida por
lealdade e fidelidade a um compromisso de retribuição.
O ritmo poético do paralelismo ajusta-se ao ritmo sideral de noite e
dia.
1175
Exegese
4.
Dos instrumentos citados não sabemos muito. O primeiro tem
nome de dez, talvez o número de cordas; os outros são lira e cítara (só
corda). O termo hgywn sugere um rumor ou murmúrio como de sussurro:
nós o interpretamos por arpejos ou zangarreio, enquanto diverso do
ponteado.
5-6. Ações e projetos. E importante observar a distribuição das peças
no quaternário: ação / obras / obras / desígnios. Formalmente, a última
tem que equilibrar três peças de ação. O homem é capaz de sentir gozo e
admiração ao perceber ou descobrir a ação de Deus na vida, mas chega um
momento em que da ação sobe ao projeto ou desígnio. As ações foram a
execução de projeto, e este se revela arcano, ‘mq - profundo não tem em
hebraico o mesmo valor que entre nós, mas significa o incompreensível.
O homem esforça-se para puxá-lo à superfície para que perca sua profundidde
' obscuridade, para entendê-lo. Algo mais que simples gozo e admiração:
Pr 20,5
Água profunda é um plano na mente:
o homem hábil o surripia.
Pode o homem surripiar a Deus seu projeto? Pode deduzi-lo das ações
ou pode recebê-lo por revelação. Is 55,8s diz que os projetos de Deus são
diversos e “elevados” com respeito aos humanos; Jr 29,11 menciona os
projetos benéficos de Deus contra o desígnio humano na história de José
(Gn 50,20). Um desígnio é um desenho: dá forma e sentido a uma atuação.
7. Sirvam de comentário alguns versículos de Dt 32:
27
28
29
Temo a má interpretação do adversário,
que diria: Nossa mão venceu,
não é o Senhor quem o fez.
Porque são uma nação que perdeu o juízo
e carece de inteligência.
Se fossem sensatos, o entenderiam,
compreenderiam seu destino.
Algo semelhante diz o versículo final de Oséias. Com respeito aos
agressores, insiste Mq 4,12: “Não entendem os planos do Senhor, não
compreendem seus desígnios”.
8-10.Isso é o que o néscio não entende, e ele o entendeu e o pode explicar
e cantar. A disposição é original e estudada:
malvados: três hemistíquios
Yhwh exaltado
inimigos: três hemistíquios
3+3+3
4
3+3+3
Em três sentenças descreve rapidamente o crescimento vegetal dos
malvados e sua destruição definitiva (‘dy ‘d: não perpétua ou indefinida,
mas definitiva). No meio o Senhor, sublime e eterno (Vwlm: definitivo e
1176
Salmo 92
indefinido). Depois reforça o fracasso dos inimigos de Deus. Seu crescer e
florecer é o enigma, seu destino trágico é o desígnio revelado em ação.
11-12. A vitória humana prolonga e manifesta a divina. A segun­
da sentença hebraica significa “estou misturado / untado com óleo fresco”,
ou seja, não rançoso. Untar com óleo era costume litúrgico (38 vezes): o pão
sai mais mole e saboroso, conserva-se melhor. O orante sente, junto ao vigor
da cornamenta que se eleva, a flexibilidade dos músculos “untados com
óleo”; também poderíamos traduzir por “massagem” (que vem de massa,
como amassar). Nunca bll significa ungir.
12.
Ainda que olhos estejam em paralelo com ouvidos e ver com ouvir
as peças não são de todo paralelas. Existem verbos de ver com b- que
significam gozar de, desfrutar de; não existem verbos de ouvir com b- com
o significado equivalente. Por isso prefiro tomar “escutam” como introdu­
ção ao que segue.
13-16. çdyk vai sem artigo, como é costume em Pr. Ao ler “planta­
dos”, esperamos algo como “junto a um rio ou a um tanque”, e nos encon­
tramos “na casa do Senhor”. Donde outros imaginam um manancial
milagroso (Ez 47 e J14,18). Aí desfrutam de vitalidade e louçania que não
cede à velhice. Como na nova criação de Is 65:
20
22
será jovem quem morrer aos cem anos ...
os anos de meu povo serão os de uma árvore
Para dshn: Pr 11,25; 13,4; 15,30; 28,25. Para r‘nn: Os 14,9; SI 37,35.
No último versículo, o ky introduz um texto pronunciado, o que explica
o possessivo de primeira pessoa. Explicar a “rétidão” com um paralelo nega­
tivo inesperado mostra o tom apologético da reflexão: ninguém pode acusar
a Deus de delito nem prová-lo. Esse pensamento, bastante comum, provoca
um último eco e um desenvolvimento intenso na teodicéia de Sb 12:
12
Quem pode te dizer: O que fizeste?
Quem protestará contra tua falta?
Quem te denunciará pelo extermínio
das nações que tu fizeste?
6. T ransposição cristã
Um texto tardio diz: “Realizastes maravilhas, desígnios antigos, fir­
mes e seguros”. Apliquemos o tema ao destino de Cristo. Humanamente
falando, sua morte é “um escândalo e uma estultícia” (ICor 1,23). Na
realidade, corresponde a um desígnio admirável de Deus. É “misterioso”, o
néscio não o compreende e o declara nescidade. Deus revela seu desígnio
completo na ressurreição, e o Espírito faz compreender o mistério, e quem
Transposição cristã
1177
o compreende “enche-se de gozo”. Porque “o profundo de Deus” só é
conhecido pelo Espírito de Deus (lCor 2,11) que o ensina a “homens de
espírito”. Jesus Cristo venceu seus inimigos e “está exaltado para sempre”.
O último inimigo que tem que debelar é a morte (lCor 15,26).
Quem são “inimigos de Deus e de Cristo”? São Tiago dirá que “quem
decide ser amigo do mundo faz-se inimigo de Deus (Tg 4,4): mundo
representa neste texto o sistema de valores opostos aos que Cristo propõe.
A imitação de Cristo, também o cristão sofre a perseguição de inimigos
perversos, em particular dos inimigos interiores “que batalham contra o
Espírito” (lPd 2,11). Ainda que o mistério do desígnio divino sobre a paixão
de Cristo já tenha sido revelado, ao vivê-lo em sua carne, torna-se enigmá­
tico ao homem fraco. Precisa escutar uma voz que lhe assegure: o que está
bem plantado na casa de Deus, que é a Igreja, crescerá vigoroso e viçoso até
ser transportado para a casa definitiva do Pai, “conforme o projeto daquele
que atua segundo seu plano e desígnio” (Ef 1,11).
Salmo 93
1. Texto
1
O Senhor reina, vestido de majestade;
o Senhor, vestido e cingido de poder.
Assim está firme o orbe e não vacila.
Teu trono está firme desde sempre,1
tu és eterno.
2
3
4
5
Levantam os rios, Senhor,
levantam os rios sua voz,
levantam os rios seu fragor.
Mais que a voz de águas caudalosas,
mais potente que os escolhos do mar, 2
mais potente na altura3.
Teus mandatos são eficazes;
à tua casa corresponde a santidade,
Senhor, por dias sem termo.
2. B ibliografia
A. J. Wensinck, The Ocean in the literature o f the western Semites,
A tv» q f p r n ç \m 1 Q "1 Q
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21 .
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E. Lipinski, Yahweh mälak, Bib 44 (1963) 405-460.
1desde antigo
2os vagalhões
3no céu
Análise filológica
1179
A. S. Kapelrud, Nochmals Jahwäh malak, VT 13 (1963) 229-231.
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F.
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Lista alfabética
Ascensio
Dietrich
Donner
Eaton
Jefferson
Kaiser
Kapelrud
Klavek
Koehler
Lipinski
Maggioni
May
66
80
67
68
52
62
63.79
62
53
63
67
55
Reymond
Rosenberg
Ruppert
Schelkle
Schmidt
Shenkel
Solomon
Ulrichsen
W atts
Welten
Wensinck
58
66
74
74
66
65
72
77
65
82
19
3. Análise filológica
1.
tkwn: lêem uma forma ativa LXX Vgfirmavit, lê o verbo tkn Jerôn
append.it.
4.
mqlwt: min comparativo: sujeito o da frase precedente, o fragor dos
rios Qim, regendo também o segundo hemistíquio e sujeito yhwh Ros;
causal Geier Phil.
1180
Salmo 93
’dyrym mshbry ym: inciso Kõster, regido por min Ros; corrigem para
’dyrmmshbryym sujeito yhwh Dyserinck Graetz Duhm Gun; rbym e ’dyrim
títulos divinos Dah, ou dois adjetivos de myn em aposição Ecker.
5.
n’ wh\ nif de ’wh GK75xBL422, vogal a conservada BL 48 k; den’h
palel com alef por contaminação ou nifal de ’wh GB 477a; deM W Y com alef
por contaminação com nif de ’wh de Bergstrás. ser II 20 a.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
É um hino ao Senhor Rei por sua vitória sobre as forças do caos e pela
fundação do orbe. Faz parte duma espécie particular do gênero hino,
definida por temas e fórmulas. Falta a costumeira introdução ou convite ao
louvor. O texto descreve brevemente o acontecimento primordial: é simples
recordação de passado meta-histórico? E repetição cultual cíclica, talvez
com representação dramática? E o anúncio de vitória escatológica? Creio
que tais distinções se referem ao uso mais que ao texto. O salmo é
disponível, o que não exclui que tenha sido composto originalmente para
alguma festa particular.
Pelo tema da batalha cósmica emparenta-se com muitos textos
demitizados do AT. Pela forma Yhwh mlk forma grupo com os SI 96, 97 e
99.
b) O Senhor reina
Esta é uma forma peculiar, que foi amplamente estudada e discutida.
Seleciono e resumo alguns dados que estimo mais pertinentes. Nos livros
históricos do AT diz-se de muitos reis que reinaram em tal lugar e durante
tanto tempo. As fórmulas mais correntes são: malak N em L(ugar) sobre
S(súditos) X anos; ou então wN malak, etc. A esses módulos se reduzem uns
quantos textos cujo sujeito é Yhwh-.
Is 24,23 ky mlk yhwh çv’wt bhr çywn = porque reina Yahweh
Sebaot no monte Sião
Is 52,7
’mr Içywn mlk ’Ihyk = diz a Sião: Reina teu Deus
SI 47,9 mlk ’Ihym ‘l gwym = reina Deus sobre as nações
’Ihym yshb ‘l ks’ qdshw = Deus se senta em seu trono santo
O SI 93 parece com o SI 47 porque menciona reinado e trono. Dos textos
históricos retoma o esquema básico; em vez de contar os anos do reinado,
afirma que é eterno.
Estudo global
1181
Num ponto se afastam os quatro salmos mencionados, que alguns
consideram substancial, e é que invertem a ordem pondo diante o nome
(sem copulativa): Yhwh mlk. Com vários autores penso que essa inversão
é enfática: Yhwh (e não outro) reina, é Yhwh quem reina.
c) Batalha primordial
Esta é uma peça da mitologia dos povos vizinhos, que conhecemos por
algumas peças medianamente conservadas e que são provavelmente uma
fração de tudo o que se compôs e recitou.
No mito babilónico Enuma Elis distinguem-se as massas aquáticas: o
Apsu, de águas doces, e a Tiamat, de águas salgadas; podem-se chamar de
Abismo ou Oeano (ou se conservam seus nomes originais). As duas provo­
cam uma crise entre as divindades. Ea, o deus da sabedoria, vence Apsu,
deixa-o inerte e confina-o ao mundo subterrâneo construindo sobre ele sua
morada. Mais grave é a crise provocada por Tiamat (veja comentário ao SI
91). O jovem deus Marduk desafia-a, trava combate dramático com ela,
vence-a, dá-lhe morte e constrói o céu, a terra e os homens. Os deuses
aclamam a Marduk: “agora és nosso rei”.
No mito ugarítico, o deus Baal luta e vence a Yam = Mar, chamado
também Juiz Nahar (= Rio). Cito três versos sugestivos por seu aspecto
formal:
Agora Baal, a teu inimigo,
agora vais ferir teu inimigo,
agora vais aniquilar teu adversário.
Um tema que se repete em mitos e hinos é que a divindade correpondente
determina os destinos e pronuncia decretos firmes e irrevogáveis: “Firmes
eram seus decretos, eram irresistíveis” (1,144; II, 31); “Minha palavra, não
a vossa, determinará os destinos; o que eu fizer será inalterável; o que
ordenarem meus lábios não será retratado nem mudado” (II, 127-130).
Neste mundo mitológico e poético desenvolve-se o breve SI 93. Talvez
como afirmação polêmica diante de pretensões babilónicas, se é que o salmo
faz parte do contexto espiritual do Segundo Isaías. A comparação permitirnos-á propor algumas observações sobre o salmo.
— A batalha primordial está estilizada em estilo quase hierático. A
tremenda agitação de Tiamat em Enuma Elis resume-se em três ondadas
de ritmo perfeito e rica sonoridade. O esforço desencadeado pelo jovem
Marduk desaparece, porque o Senhor está por cima, inacessível ao tumulto.
— O salmo menciona nhrwt = rios e correntes, mym rbym = águas
caudalosas, mshbryym = escolhos do Mar / Oceano. São os mesmos Yam e
Naharotl Enuma Elis distingue Apsu e Tiamat; se o tomarmos como
1182
Salmo 93
critério, o nhrwt do salmo representará correntes subterrâneas que afloram
em rios com força torrencial. Ao invés, o mito de Baal junta Yam e Nahar
como dois nomes da mesma divindade oceânica; se o tomarmos como
critério, o nhrwt do salmo seria um coletivo que designa o mar agitado em
correntes, marés ou lufadas de vento.
— O tema da realeza domina o salmo. O Senhor é rei, tem uma casa ou
um palácio, senta-se num trono estável, veste-se de manto real e cinge a
faixa do poder (o tema da veste não é importante no texto babilónico);
pronuncia decretos imutáveis.
— Ainda que não se diga, subentende-se que “o orbe está firmado”
acima das águas subterrâneas (do Apsu?, cf. SI 24,2). A “santidade” do
templo de Yhwh pode corresponder ao “santuário” ou Esagila que se erige
na Babilônia como morada de Marduk (VI, 49-68).
d) Cosmologia e história
O salmo, como os mitos das culturas circundantes, está confinado no
mundo cósmico; não faz nenhuma alusão histórica. O céu é a “altura”,
morada sublime e inacessível do Senhor; as águas são as forças impotentes
do caos, o orbe está firme. Se a “casa” alude de algum modo ao templo de Sião
(cf. Is 24,23; 52,7), é enquanto representação do celeste. A duração do
reinado é a perpetuidade acima da história.
Outra coisa é a leitura do salmo em chave histórica. Para isso é preciso
partir do valor simbólico das águas oceânicas, que representam o caos ou
as forças destrutivas. Convém explicá-lo.
No mundo estelar e em nosso minúsculo planeta, que é nosso lar, con­
templamos forças que destroem e reconstroem: estrelas que se apagam, supernovas que explodem, continentes que se rompem e navegam no magma,
terremotos, raios que incendeiam bosques, glaciais lentos, rígidos, bosques
mortos e petrificados, animais mortos convertidos em petróleo, desintegra­
ções que desprendem energia. Como um fatídico ciclo de destruição a que se
sobrepõe um ciclo glorioso de criação. O nada não destrói nem devora, porque
não é; contudo, nós o imaginamos ativo e tragando em seu vazio seres que
deixam de ser. O caos é o nada imaginado como potência aniquiladora.
Pois bem, também o homem pode desencadear forças que destroem:
guerras, matanças, explosões nucleares, desflorestação, chuva ácida, con­
taminação. O homem às vezes é satânica e caoticamente culpado, outras
vezes é patético aprendiz de feiticeiro. Imaginamo-nos o homem aliado do
nada destruidor e devorador. O SI 65,8 di-lo explicitamente num versículo
de cunho semelhante: “Tu, que reprimes o estrondo do mar, o estrondo das
ondas e o tumulto dos povos”. O SI 93 no-lo diz, mas tampouco resiste à
Transposição cristã
1183
leitura nessa chave simbólica. Concretamente, lido no contexto do desterro,
o salmo podia deslanchar grande força polêmica contra os deuses e o poder
político da Babilônia, como lemos em várias páginas do profeta do desterro.
5. Exegese
Dito já tudo o importante para entender o salmo em seu contexto
cultural, bastará acrescentar algumas ligeiras considerações.
la.O versículo tem um ritmo staccato de fórmula 2+2 2+2. “Cingir-se”
a secas costuma ser operação prévia para entrar em combate ou pôr-se a
trabalhar (Jr 1,17; Jó 38,3). O segundo complemento pode referir-se a uma
dignidade ou cargo político ou militar (Is 11,5; 45,5). O contexto do salmo
deixa o sentido do salmo pendente entre as vestiduras reais de poder
político e as militares que pede o combate com o caos.
lb . A denominação tebel = orbe é freqüente sobretudo nos textos
tardios de Is e no saltério (veja-se em particular SI 96,10).
2. O “trono” de Deus é celeste (cf. Is 6,1. 66,1); no saltério pode ser um
trono de julgar ou tribunal (9,5.8), santo (47,9), de majestade (89).
m’z e m‘wlm indica tempo remoto indefinido (Gn 6,4; Js 24,2).
3. Por ora não se assiste a uma ação agressiva e concertada; só à
gritaria, às vozes, aos golpes estrondosos do marulho; dky: da raiz que
significa golpear, malhar.
4. ’d yr como título divino junta majestade com poder (SI 8,2; 76,5). É
preciso escutar a sonoridade deste versículo, com seus oito emes e cinco erres.
5. ‘dtyk: segundo todo o contexto, creio que se refere aos decretos e
disposições cósmicas, de qual há abundantes exemplos. Em Gn 1, Deus
atribui função ao sol e à lua; com o termo equivalente (hq) di-lo o SI 148,6; Jó
28,26 refere-o à chuva; Jr 5,22 ao mar. Muito significativo, por tratar-se de
juramento, Jr 31:
35 Assim diz o Senhor
36
que estabelece o sol para iluminar o dia,
o ciclo da lua e as estrelas
para iluminar a noite,
que agita o mar, e mugem suas ondas ...
Quando falharem essas leis que eu d e i...
6. Transposição cristã
Partindo da visão simbólica das forças de destruição, podemos con­
templá-las na violência desencadeada contra Jesus: contra a pessoa, o
prestígio, a mensagem, os milagres; até a aparente vitória do caos = moi te.
1184
Salmo 93
E a vitória da ressurreição, pela qual é exaltado e constituído rei universal.
Vitória escatológica que inaugura um reinado.
Uma cena dos evangelhos representa narrativamente a vitória de
Jesus sobre as águas. Dos três sinóticos escolhemos Mateus:
8,24 De repente se levantou tal tempestade no lago, que as ondas
cobriam a embarcação; ao passo que ele continuava dormindo ...
26 Levantou-se, repreendeu aos ventos e ao lago, e sobreveio calma
perfeita. 27 Os homens diziam assombrados: — Que espécie de indivíduo é
este, para que lhe obedeçam até os ventos e o lago?
Lê-se um prolongamento do tema no episódio de Jesus caminhando
sobre as águas e Pedro tentando fazer outro tanto (Mt 14,24-33 par); cena
em que Jesus começa a transferir seu poder e vitória aos discípulos. Lucas
introduz o tema em seu discurso escatológico:
21,25 Aparecerão portentos na lua, no sol e nas estrelas, e na terra ficarão
angustiados os homens, enlouquecidos pelo estrondo do mar e das ondas.
O Apocalipse repete o tema em várias ocasiões. Primeiro na visão da
mulher grávida em transe de dar à luz: trava-se uma batalha celeste de
Miguel e seus anjos contra o dragão e suas hostes. A mulher foge com o
menino varão ao deserto, e o dragão sai em sua perseguição:
12,15
A serpente lançou pela boca água como um rio atrás da mulher,
para arrastá-la na corrente. 16 M as a terra veio em auxílio da mulher
abrindo a boca e bebendo o rio que tinha sido lançado pela boca do dragão.
Em outra cena apresenta “a grande prostituta que está entronizada entre
torrentes caudalosas” (17,2), e em seguida explica: “as torrentes que viste,
onde está entronizada a prostituta, são povos, multidões, nações e línguas”
(17,15). Chegará a vitória definitiva e a instauração do reinado perpétuo:
21,1 V i um céu novo e uma terra nova. O primeiro céu e a primeira terra
desapareceram; o mar já não existe.
O mar é o oceano, o caos primordial.
Salmo 94
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
Deus justiceiro, Senhor,
Deus justiceiro, resplandece.
Eleva-te, Juiz da terra,
paga o merecido aos soberbos.
Até quando, Senhor, os malvados,
até quando triunfarão os malvados?
Discursam proferindo insolências,
jactam-se todos os malfeitores;
trituram, Senhor, o teu povo
e oprimem tua herança;
assassinam viúvas e imigrantes,
degolam1órfãos;
e comentam: O Senhor não o vê,
não toma conhecimento o Deus de Jacó.
8
Inteirai-vos, os mais insensatos;
néscios, quando refletireis?
9 Quem plantou o ouvido, não verá?
Quem formou o olho, não vai ver?
1.0 Quem educa os povos, não castigará2?;
quem instrui o homem, não saberá?
11 Sabe o Senhor que os planos humanos
são vaidade.
12 Feliz o homem a quem tu educas,
Senhor, a quem ensinas tua lei,
13 dando-lhe descanso depois dos anos duros.
enquanto cavan uma fossa para o malvado.
14 Pois o Senhor não rejeita seu povo
nem abandona sua herança.
1assassinam
2 reprovará
1186
Salmo 94
15 O inocente recuperará seu direito
e há um futuro para os retos de coração.3
16 Quem se põe em meu favor diante dos perversos,
quem se põe do meu lado diante dos malfeitores?
17 Se o Senhor não me tivesse auxiliado,
já estaria minha vida4 habitando o silêncio.
18 Quando me parece que tropeça meu pé,
tua lealdade, Senhor, me sustenta;
19 e ainda que se multipliquem minhas preocupações,
teus consolos deleitam meu ânimo5.
20 Poderá aliar-se contigo um tribunal iníquo
que dita injustiças invocando6 a lei ?
21 Ainda que atentem contra a vida do justo
e condenem à morte o inocente,
22 o Senhor será o meu castelo,
meu Deus será minha Rocha de refúgio.
23 Ele lhes pagará sua iniqüidade,
destruí-los-á por suas maldades,
destruí-los-á o Senhor nosso Deus.
2. Bibliografia
A. Allgeier. Ps 94. Ein auslegungs- und bedeutungsgeschichtlicher Beitrag,
em FS Bertholet, Tubinga, 1950, 15-28.
O.
Glombitza, Betende Bewältigung der Gottesleugnung. Versuch einer
existentiellen Interpretation der drei Psalmen 59; 94; 137, NedTT 14 (195960) 329-249.
A. Maillot, La justice contra la justice? Ps 94, BVC 79 (1968) 54-57.
F. de Meyer, La sagesse psalmique et le Ps 94, Bijdr 42 (1981) 22-45.
P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 94, BN 24 (1984) 44-72.
3. Análise filológica
1.
hwpy‘: imperativo: forma rara Del cf. Is 43,8; Jr 17,18; corrigem pa
hwpy‘h Hitzig Gun Kraus cf. GK 69 v. perfeito LXX Dah Rav.
3 Pois Direito voltará para Justiça e atrás dele os retos de coração
4 meu alento
5 são minha delícia
6 em nome da
Estudo global
1187
4.yby‘w: absoluto como 59,8 Ecker; descreve o significado com sinôni­
mos Lorin cum affluentia, impetu, ebullitionte ... cura ampullis bullisve,
quae in ebulliente exsistunt acqua.
yfm rw : hitpael único gabar-se,jactar-se, loquenturVg,garrient Jerôn.
11. ky: introduz sentença completiva depois do substantivo GB 342 a.
12. mtwrtk: min provavelmente partitivo cf. Gn 2,16s; 3,6.
13. mymy: min temporal: depois GB 433 b, ou durante GB idem.
15. Mantém o texto tomando çdq e mshpt como personificações
poéticas Phil e reconstrói uma cena, em que Direito, seguido de todos os
retos de coração, vai em busca da Justiça, desterrada ou seqüestrada, para
fazê-la voltar (poderia ter citado como confirmação Is 59,13s). Gun e outros
seguindo-o corrigem para çdyq mshptw e ’hryt: seu direito retorna ao
honrado (= o honrado recupera seu direito) e há futuro ... Dah toma ‘d em
sentido de tribunal^s/iiüò como transitivo, apoiado no paralelismo ugarítico
‘d / ksi de UT 127: 22-24: o tribunal de justiça restabelece a eqüidade.
16. ‘m ... ‘m: contra GB 595 a.
17. ‘zrth: o subst faz de predicado em vez de verbo GK 141 c.
km’t: partícula de apôdosis irreal, paulo minus Vg, propemodum
Agélio, paulo post Belarmino.
dwmh: silêncio, ades LXX inferno Vg sepulcro Targ Qim.
20. hyhbrk: qal com vocalização anômala GK 60 b; pual Ges Thes 441
b o sufixo com valor de dativo BL 48 h.
yçr: referiram-no a Deus: Vg qui fingis Eusébio Deus faz difícil o
preceito, Genebrardo arduapraecepta-, unido aks’: a maioria Jerôn Eutímio
Agélio; Titelmann lê ks’ como vocativo a que se dirige todo o versículo.
‘ly: em nome de, invocando, como lei.
21. ygwdw: copulabantur Jerôn Qim; thereusousin LXX leu talvez
yçwdw, captabunt Vg Sir.
23. wbr‘tm: b- de causa GB 81 a.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Se olharmos a pessoa a quem se dirige o salmo, Deus como juiz e rei,
forma parte da categoria de salmos do Senhor Rei ou da realeza divina,
encaixando-se bem na série 93-99. No salmo precedente, o Senhor, ataviado
regiamente, senta-se no trono real; neste começa seu exercício de julgar. Da
mesma forma que Salomão: ao começar a reinar, tem que julgar um caso
difícil (lRs 3). No salmo seguinte, o povo aclamará ao Deus Soberano.
1188
Salmo 94
Se atendermos aos elementos tradicionais, esse salmo é uma súplica. Com
efeito, descreve-se a desgraça do orante, a violência do inimigo, pede-se
ajuda com perguntas retóricas e imperativos, expressa-se a confiança.
Se atendermos aos dados mais específicos, o salmo toma a forma de
reclamação judicial perante o soberano, com denúncia do delito, apelação
à justiça e jurisdição do juiz, petição de pena merecida para o culpado,
sinais e gestos judiciais. Na requisitória, o fiscal ou apelante lança mão de
argumentos gerais de cunho sapiencial: Deus criador e educador do ho­
mem, a sorte de honrados e malvados.
Estes dados revelam-nos a complexidade do salmo e também sua
unidade. E súplica ao Senhor Juiz, posta como apelação para que se faça
justiça. Pode-se comparar formalmente com o SI 17, de acusado inocente.
O padrão judicial faculta-nos explicar sem dificuldade todos os versículos
cujo texto não seja duvidoso.
b) O rei e a justiça
— Dei como suposto que o salmo trata da realeza de Yhwh, ainda que
não se lhe dê o título de rei. Para a mentalidade bíblica e oriental antiga,
a coisa é óbvia: as duas funções principais do rei são defender seu povo na
guerra e administrar justiça na paz: a espada e o cetro do SI 45. Entre os
muitos textos que se poderiam aduzir, escolho Jeremias, que fez balanço do
fracasso da monarquia e legou-nos textos exemplares:
21,11
12
22,3
22,15
16
Escutai a palavra do Senhor,
Casa de Davi: Assim diz o Senhor:
Ide cedo administrar a jutiça,
livrai o oprimido do opressor.
Praticai a justiça e o direito,
livrai o oprimido do opressor,
não exploreis o imigrante, o órfão e a viúva,
não derrameis sangue inocente neste lugar.
Se teu pai comeu e bebeu, e passou bem,
é porque praticou a justiça e o direito,
fez justiça aos pobres e indigentes,
e isso sim que é conhecer-me.
Administrar justiça é competência suprema do soberano. Abraão
argumenta com Deus: “O juiz de todo o mundo, não fará justiça?” (Gn 18).
— Justiça vindicatiua. E importante traduzir bem a palavra e o
conceito da invocação inicial, “Deus justiceiro”, que com freqüência se
traduziu por “Deus das vinganças”, Deus ultionum, theos ekdikeseon. A
justiça vindicativa é componente essencial da justiça. Se o juiz responsável
deixa incólumes os criminosos, torna-se praticamente cúmplice deles e
Estudo global
1189
condena à desgraça vítimas inocentes. Um juiz justo não pode ser neutro
entre o criminoso e sua vítima, não pode desentender-se; tem que agir em
tempo. A vingança podia ser competência do ofendido ou da família
quando não havia instâncias superiores; quando a vida civil está organiza­
da, a justiça vindicativa é competência da magistratura; em última ins­
tância, do rei (SI 72 com o verbog ’l); e de Deus, como se vê em muitíssimos
casos:
Dt 32,25 Minha será a vingança e a desforra. Ou seja, é competência
minha impor a pena aos culpados.
Dt 32,43 Ele vinga o sangue de seus servos, toma vingança do inimigo.
Ou seja, castiga os assassinos de seus servidores, sentencia e castiga os
inimigos culpados.
SI 18,48 O Deus que me fez justiça = que me deu a vingança.
2Sm 4,8 Por intermediários: dois homens por própria conta dão morte a
Isbaal, rival e inimigo de Davi, trazem a cabeça do assassino a Davi e dizem:
Aqui está a cabeça de Isbaal, filho de Saul, teu inimigo, que tentou matarte. O Senhor vingou hoje o rei. Ou seja, executamos a sentença ditada pelo
Senhor.
c) Ojuízo e o resplendor
— O esquema do juízo. Se no AT não encontramos textos de direito
processual, que descrevem puntualmente em todas as suas fases um
processo judicial, ainda menos podemos pedir a um poema. Mas os dados
soltos acumulados são indubitáveis. Seguindo a ordem do texto: v. 1: o dito
da sentença vindicativa; v. 2: o título de juiz; v. 7: “não vê, não toma
conhecimento”, por oposição; v. 15: texto duvidoso, talvez recuperar o
direito; v. 16: pôr-se em pé junto de; v. 20: tribunal; v. 23: pagar o merecido.
Quanto à repartição dos papéis, são manifestas as duas partes diante
do juiz. Segundo o v. 20s, os acusados são juizes iníquos que condenam à
morte o inocente. O que transforma toda a causa em processo de apelação:
diante da corrupção da justiça humana, o orante apela ao juiz supremo, o
Senhor. De juizes iníquos e corrompidos não faltam exemplos no AT, desde
Is 1,21-26 até os anciãos da história de Susana. O orante apresenta-se
diante do juiz e age em papéis que nós repartiríamos entre vários: denúncia
e acusação, dirige-se ao juiz pedindo pronta justiça, volta-se ao réu pronun­
ciando uma requisitória, dirige-se aojuiz apelando à suajustiça incorruptível,
solicita a pena correspondente.
— O resplendor. Não se deve discutir o valor teofânico do verbo hwpy‘
(Dt 33,2; SI 50,2). A questão é ver sua colocação no presente contexto. Dizse que o exercício da justiça divina é teofania, e é certo. Há algum outro
ponto de apoio que justifique aqui o verbo “resplandece”? Creio que influi
tacitamente a concepção religiosa oriental, que atribui ao deus Sol a
1190
Salmo 94
administração da justiça: o deus Utu dos sumérios, Samas dos assírios e
babilônios. Entre os muitos textos que o provam, seleciono um hino a
Samas, composto provavelmente no final do segundo milênio e conservado
em cinco cópias na biblioteca de Assurbanipal (668-627). Sigo o texto de
Seux (51-63) e seleciono alguns versos que podem ilustrar nosso salmo,
indicando o versículo do salmo com que se podem comparar:
3
9
49
56
58
70
95
97
149
153
Samas, que iluminas o céu inteiro,
que alumias a escuridão de cima abaixo.
Em cada momento, seus raios conhecem os segredos;
quando te ergues brilhando, percebe-se sua pegada.
De todos os países, de todas as línguas
conheces os planos, observas os passos.
Diante de ti se ajoelham o malvado e o honrado,
pronuncias a sentença do malfeitor e do malvado.
Fazes subir o que descia ao Abismo,
dando-lhe asas.
Ao que trama um delito lhe embotas os chifres.
Tu fazes prender o juiz corrompido,
o que aceita suborno para julgar injustamente
tu o castigas.
Samas, aos humanos abres os ouvidos,
por todo o mundo habitado lhes abres a inteligência.
94,1
9s
9-11
3-15?
2.23
17
23b
20s
9
10
E m confirm ação do parentesco costu m a-se citar M l 3 ,2 0 : “O s ■
respeitam meu nome ilumina-los-á o sol da justiça”. Se a comparação é
pertinente, o resplendor do salmo não só é a manifestação divina, mas
também o descobrimento e a revelação dos delitos ocultos do homem. A
propósito disso escreve o Eclesiástico:
23, 19
Só teme o olhar dos homens
e não sabe que os olhos do Altíssimo
são mil vezes mais brilhantes que o sol
e contemplam todos os caminhos dos homens
e penetram até o mais escondido.
d) Elementos sapienciais
O cunho sapiencial invade o poema configurando-o sem violência. A
coisa não é estranha. Pelo que parece, os empregados públicos recebiam
uma formação “sapiencial” em e para a corte: ler e escrever, redigir, técnicas
de registro, um saber tradicional feito em boa parte de provérbios e
instruções. Manifesta-se no salmo de várias maneiras.
Primeiro, a oposição generalizada de bons e maus; enquanto a oposição
concreta de um malvado euxn honrado, um culpado e um inocente, é própria
do âmbito forense. Segundo, a terminologia do saber: entender, insensatos,
1191
Estudo global
néscios, instruir, repreender, desígnios, educar, ensinar. Terceiro, o quali­
ficar de nescidade o ateísmo prático, como no SI 14 e no livro de Jó. Quarto,
a bem-aventurança do versículo 12.
e) Composição, relações, personagens
— Composição. A travação interna do poema é muito forte, sua
manifestação externa não utiliza recursos sugestivos. Pode-se observar
uma inclusão temática em 2 e 23: “dar o merecido, pagar o delito”. No v. 8
muda o destinatário, no v. 15 repousa o movimento. No v. 16, o discurso
torna-se pessoal e vai se voltando para Deus. Com esses dados podemos
traçar o desenvolvimento:
1-7.0 orante dirige-se a Deus com imperativos (1-2), com a pergunta
clássica “até quando?” (3); explícita ou implicitamente essa pergunta
engloba a descrição de 4-7. Os limites nessa primeira secção ficam indeci­
sos.
8-15. A segunda parte entra com um enlace engenhoso e de efeito
retórico. Em 8-11 interpela os malvados com perguntas e princípios
genéricos, que equivalem a ameaça; em 12-15 pronuncia a bem-aventurança
do honrado com dupla motivação.
16-21.Isolando os versículos finais como resumo conclusivo, sorte do
justo e do malvado, ficamos com duas subdivisões: 16-19: o assunto e a
experiência pessoal; 20-21: a justiça do tribunal supremo.
O desenvolvimento é claro, sem artifícios, e ajuda-nos a examinar
algumas relações significativas.
— Relações. Primeiro (1-7 com 16-23). Perante o juiz divino que não
age, os malvados proclamam seu ceticismo que os faz sentir impunes, ao
passo que o orante grita sua impaciência, como que censurando a Deus sua
dilação. Na parte final, o orante lança um novo olhar para trás, para a
atividade dos malvados; mas agora se sente seguro por uma experiência
passada e uma esperança de futuro. A confiança expressa no final equilibra
a impaciência gritada no começo. Continuam sem mudar os malfeitores,
pelo que lhes advém a sentença de condenação.
Segundo (5.14 e 17-19), ou sej a, o problema coletivo e o individual. Povo
teu e herança tua referem-se normalmente ao povo eleito, o que faz pensar
em inimigos externos. Todavia, muitos textos proféticos levam-nos a
compreender que os inimigos do povo podem estar dentro e deter o poder.
Em nome de todos cito Isaías:
3,12
Povo meu, menininhos te oprimem,
mulheres te governam;
povo meu, teus guias te extraviam
destroem tuas veredas.
1192
Salmo 94
Em todo caso, trata-se de comunidade. Em 17-19, o orante recorre à
experiência de sua libertação: de um perigo mortal, de tentação ou ameaça
grave, de preocupações interiores. Não fala expressamente de julgamento,
mas considera sua experiência pertinente: para corroborar a justiça de
Deus e provavelmente para reanimar os aflitos da comunidade (algo como
o SI 4).
Terceiro (8-11 e 12-15). A distribuição eqüitativa de versículos e a
justaposição em contraste sublinham a diferença. Aos malvados dedica
um discurso refutando suas teorias. Ao honrado dedica uma bem-aventurança.
—
Personagens. Os malvados: além de descrever concisamente sua
atividade criminosa, atribui-lhes vários nomes ou predicados: soberbos,
malvados, malfeitores, insensatos, néscios; todos nomes genéricos. No v.
20, um dado concreto é “um tribunal iníquo”. Ao descrever sua atividade,
condu-los até ao extremo do crime, o assassínio.
O honrado é alguém instruído por Deus, é inocente (21). Como de
costume, aparece no singular diante do plural dos malvados; pode identifi­
car-se com o “povo e herança” enquanto vítima. Inclui-se o orante no grupo?
O contexto diz que sim, embora por sua função litúrgica de porta-voz se
destaque do grupo, e talvez também por sua formação sapiencial.
Deus, embora no começo pareça inativo, mostra-se disposto: criador do
homem com seus órgãos e funções, educador da consciência do homem,
libertador do inocente, preocupado com o seu povo e administrador de
castigo definitivo.
5. Exegese
1.
Começa com o nome divino ’el que, quando se usa genericamente
designa o Deus supremo, aqui identificado com Yhwh. Sobre sua função
justiceira podem-se consultar muitos textos: de caráter histórico (ISm
24,13; 2Rs 9,7); contra Babilônia (Is 47,3; Jr 50,15.28; 51,6.11); escatológico
(Is 59,17; Mq 5,14); o dia de fazer justiça (Is 34,8; 61,2; 63,4; Jr 46,10).
Merece citado íntegro o começo de Naúm:
O Senhor é um Deus ciumento e justiceiro,
o Senhor é justiceiro e sente cólera;
o Senhor se faz justiça de seus rivais,
está irado contra seus inimigos.
Agostinho volta o título também contra o fiel que protesta e censura a Deus
por sua tardança, ou duvida de sua justiça. Para provar que a justiça pode-se
voltar contra seu povo, poderia citar textos como Ez 24,8; Is 1,24; SI 99,8.
Exegese
1193
Para o resplendor no juízo, além do citado SI 50,2, veja-se Hab 3:
3 seu resplendor eclipsa o céu
e a terra enche-se de seu louvor.
4 Seu brilho é como o sol.
2. Juiz do mundo: texto clássico o citado Gn 18,25; com atributo de
justiça (Jr 11,20; SI 7,12; 9,5). Levantar-se como gesto do juiz para pro­
nunciar sentença (Is 33,1). Pagar o merecido: com a fórmula hshyb gmwl
usa-se em J1 4,4; SI 28,4; Pr 12,14; Lm 3,64; outras vezes se usa shlm. Os
soberbos: santo Agostinho os define “os que, não contentes de cometer o
pecado, o defendem”, pois os que o confessam são humildes.
3. Até quando? Conhecemos a pergunta da impaciência sobretudo
pelo SI 13 e como estribilho numa prece a Enlil. Agostinho comenta:
“pergunta com respeito, não repreendas com soberba”. Triunfar: celebran­
do a vitória, como em 2Sm 1,20; Sf 3,14.
4. O verbo hebraico nb ‘ sugere a imagem do brotar de manancial, com
espontaneidade e abundância (Análise filológica) (Pr 1,23; 15,2.28). Gabam-se do sucesso de suas empresas criminosas, perante Deus e os homens.
5. Repetindo o possessivo “teu povo, tua herança”, quer comprometer
o Senhor em assunto que lhe diz respeito.
6. A medida da justiça é dada, como tantas vezes, pelos desvalidos e
marginalizados da sociedade: viúvas, órfãos e imigrantes como categoria
social (veja-se entre outros SI 68,6).
7. Concedendo a palavra aos malvados, o orante apresenta o ponto de
vista deles, para sobrepor por contraste o próprio. Ora, o ponto de vista
depende da identificação dos que falam. Se são estrangeiros, expressam
mentalidade politeísta que podemos parafrasear: “O Deus desse povo que
se chama Yah, não está informado de nossas atividades e por isso não pode
defender os seus”. Se são israelitas, distanciam-se de sua comunidade e
blasfemam contra seu Deus. Em outras palavras, em vez de intitulá-lo de
“nosso Deus”, como de costume, esquivam-no dizendo “o Deus de Jacó”
(como se não fosse também o deles).
8. A reação do orante vale em muitos casos. Ele também tem um título
com que os chamar: não “cavalheiros / fidalgos” (SI 4), mas “insensatos /
néscios”. Com o que fica desacreditado seu inteiro raciocínio; como no SI 14:
“diz o néscio”. Não contente com isso, aceita o desafio e entra na polêmica.
Escutemos a sutil repetição: até quando (Deus se cala)?; até quando não
compreendereis?
9-10. A argumentação é simples e empírica; em sua vertente filosófica
corresponde ao argumento ontológico de causalidade: o que dá a um ser
uma capacidade, de alguma forma a possui. O desenvolvimento do argu­
mento é antropomórfico. Dando o órgão da função.
1194
Salmo 94
Pr 20,12
Ouvido que escuta, olho que olha:
ambas as coisas fez o Senhor.
Educa e repreende. A repreensão, como nos ensinam abundantemente
os Provérbios, é parte integrante da educação; ai de quem a rejeita! Deus
“educa” “as nações, o homem”, sem distinção; através da consciência “que
é lâmpada do Senhor” (Pr 20,27). Argüindo assim, apelando ao Deus
educador (não ao justiceiro), o orante dá um giro positivo e saudável ao seu
discurso. Se seus ouvintes quisessem compreender e aceitassem um cas­
tigo correcional, não incorreriam no julgamento sem apelação (também o
discurso do SI 4 busca a conversão dos pecadores). Deste modo, o “até
quando” do v. 8 oferece um tempo de conversão.
O último hemistíquio coxeia metricamente num quaternário até agora
uniforme. Alguns corrigem o versículo para igualá-lo, e é razoável. Não
menos razoável é deixá-lo como está, como quebra métrica para ligar com
d ‘t o imediato yd‘.
11. Com efeito, esse versículo dá-nos um último particípio: plantadormodelador-educador-instrutor e sabedor. Os planos humanos enquanto
tais, autônomos ou contrários aos de Deus, como no SI 33,10s. Em particu­
lar, os planos dos soberbos descrentes. Vaidade = da que falam SI 39 e
Eclesiastes.
12. Costuma-se usar a bem-aventurança depois de ’shry ’y sh / ’nmsh
/ ’dm / gbr. A do salmo integra o último grupo (SI 34,9; 40,5; 127,5). Não
sabemos se a passagem de ’dm (v. 10) a gbr deve-se simplesmente ao
desejo de variar. Mais importante é distinguir a “educação” universal de
todo “homem” e a “educação” particular por meio da “instrução / lei”.
Assistimos aqui à passagem do meramente sapiencial (Pr 6,20; 7,2; 13,14)
à revelação. Essa instrução pode concretizar seu conteúdo no versículo
que segue,
13. que explica a dilação do juízo divino. Quem se deixa educar por
Deus passará tempos difíceis e amargos, aos quais seguirão paz e sereni­
dade; para o pecador (impenitente), a dilação emprega-se para lhe cavar a
sepultura. Em outros textos é o malvado quem cava a sepultura, e cai nela.
Deus, que permite o sofrimento, dá a calmaria. Compare-se com o SI 90,15:
“dá-nos alegria pelos anos em que nos afligiste”.
14. Veja-se ISm 12,22.
15. Veja-se Análise filológica. Lendo çdyq em lugar de çdq, yshwb faz
eco a hshb / yshb de 2 e 23. Se não corrigirmos w’hryw, o sentido seria, em
paráfrase: uma vez que o juiz tenha restituído o direito ao inocente, “atrás
dele”, defenderá todos os “de coração reto”.
16. Estou diante do tribunal, junto com perversos e malfeitores* um
diante de muitos: há alguém com autoridade no processo que se ponha de
Exegese
1195
minha parte? O juiz justo pôr-se-á do lado do inocente na sentença. À
pergunta respondem os dois versículos seguintes.
17-18. Remontam a tempo anterior à pergunta; ou então, em vir­
tude da certeza que dá a esperança, antecipam mentalmente um fato fu­
turo. O v. 17 é condicional irreal das que escasseiam no AT; ainda que ne­
gativa na forma, funciona como uma sólida confissão. O segundo hemistíquio
pode soar assim: “já estaria minha alma habitando em Duma / Silêncio”. A
palavra lê-se também no jogo de Is 21,11, no SI 115,17; a idéia também no
SI 31,18 e talvez em Is 47,5. No contexto do salmo toma outro matiz: seria
hóspede do silêncio, sem poder dar gritos a Deus nem fazer discursos aos
néscios, porque seria demasiado tarde.
19. Da tragédia evitada, e recordada com calafrios, salta a uma re­
cordação íntima e gozosa. O rigor formal não amortece a vibração lírica. Na
forma fazem-se sentir os constrastes: minhas preocupações / teus consolos.
O conteúdo refulge pela concisa oposição, que tento amplificar: eu estou
cheio de preocupações, provocadas desde fora e crescidas dentro, como se eu
as cultivasse; nesse reduto íntimo penetram consolos que procedem de ti e
que dissipam toda minha angústia. Elifaz pergunta a Jó: “Parecem-te
pouco os consolos de Deus?” (20,11). O verbo sh‘ sh‘ significa jogar acari­
ciando, deleitar com ternura (Is 11,8; 66,12; cf. Jr 31,20 e Pr 8,30).
20. Nova pergunta enfocando juizes corrompidos, com duas fórmulas
intensas e felizes. Primeiro o apelativo (oxímoron) “tribunal de crimes”,
contrastando com o “Deus justiceiro”. A segunda parte descreve sua tarefa:
elaboram (artesanalmente) desgraças (indevidamente) sobre (usando, invo­
cando, manipulando) a lei. Vejam-se:
Is 10,10
Jr 8,8
Ai dos que decretam decretos iníquos,
dos registradores que registram prejuízos!
Por que dizeis: Somos sábios, temos a lei do Senhor,
se a falsificou a pena falsa dos escrivães?
21. Explicita o anterior. Se se corrige o primeiro versículo para ygwrw, significa espreitam (como SI 56,7; 59,4). Se se conserva j/gwdw, significa
conchavar-se, dando idéia de cumplicidade calculada. O segundo verbo, em
aposição quiástica, é em campo forense condenar: pode-se recordar a his­
tória de Jezabel e Nabot (iRs 21). Resulta assim um jogo de palavras
macabro: rsh‘y myrshy‘w = os malvados condenam à morte o inocente como
malvado.
22-33. Acima do juízo humano iníquo levanta-se o juízo justo de Deus:
libertando, pondo em segurança o inocente, retribuindo sua maldade e
acabando com os malvados. O orante termina com o título clássico Yhwh
nosso Deus, o que corresponde deveras ao “Deus de Jacó” na boca dos
malvados (7). O versículo final alarga-se com uma repetição enfática.
1196
Salmo 94
6. T ransposição cristã
Opondo a ciência humana ao saber de Deus, Paulo cita a versão grega
de 94,11 mudando uma palavra: “O Senhor conhece quão fúteis são as
argúcias (dialogismous) dos espertos”. Tratando o salmo do juízo humano
iníquo contra o inocente, corrigido pelo juízo de Deus, é muito fácil aplicálo como chave ao julgamento de Jesus. Como o temajá foi exposto repetidas
vezes, recorro em seguida a santo Agostinho numa reflexão hermenêutica
aplicável a muitos salmos, porque se refere à apropriação. O bispo dedica
ao salmo um longo sermão (no fim pede perdão por lhe ter saído), um grande
sermão.
Chegando ao v. 3, a pergunta da impaciência:
“Comove-te? Pergunta com respeito, não repreendas com soberba. Como­
ve-te? O salmo compadece-se de ti e pergunta contigo; não porque não o
saiba, mas pergunta contigo o que sabe, para que encontres nele o que não
sabias ... Do mesmo modo, quem quer consolar a outrem, não consegue
animá-lo se não se compadece primeiro dele ...
De modo semelhante, o salmo e o Espírito de Deus, que sabe tudo,
pergunta contigo, faz suas as tuas palavras.
(v. 22) Parece-te injusto porque perdoava aos malvados? Olha como se
corrige o salmo: corrige-te tu com ele. Para isso tomou o salmo tua voz: qual?;
‘até quando, Senhor, até quando triunfarão os malvados?’ O salmo tomava
tua voz; toma tu agora a do salmo: qual?: ‘O Senhor foi meu refúgio, meu
Deus auxílio de minha esperança’ ”.
Não aponta santo Agostinho nessas frases a “fusão de horizontes”?
Para o v. 19, Paulo oferece-nos um a boa amplificação, tomando dos L X X
o termo grego paraklesis, que traduzo por “consolo”:
2Cor 1,3 Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai
carinhoso e Deus de toda consolação, que nos consola em nossas tribulações,
para que possamos consolar os outros em suas tribulações, com o consolo com
que nos consola Deus ... 6 Se sofremos tribulação, é para vosso consolo e
salvação; se somos consolados, é para vosso consolo ...
O tema do consolo parece interessar a Paulo, pois volta a ele em 2,7; 7,67.13 e em outras cartas.
Salmo 95
1. Texto
1
2
3
4
5
Vinde, aclamemos ao Senhor,
demos vivas à Rocha que nos salva;
entremos em sua presença com ações de graças,
dando-lhe vivas ao som de instrumentos.
Porque o Senhor é o Deus supremo,1
Soberano de todos os deuses2.
Em suas mãos as profundidades da terra,
são seus os cumes dos montes.
Seu é o mar, porque ele o fez,
e a terra firme que suas mão modelaram.
6
Entrai, prostrados rendamos homenagem3
bendizendo ao Senhor, Criador nosso,
7 pois ele é nosso Deus, e nós
povo de seu aprisco, ovelhas a seus cuidados.
Oxalá lhe façais caso hoje!
8 — Não endureçais o coração como em Meriba4,
como no dia de Massa no deserto:
9 Quando vossos pais puseram-me à prova
e tentaram-me, ainda que tivessem visto minha ação.
10 Quarenta anos me desgostou aquela geração;
disse: São um povo de coração extraviado
que não reconhece o meu caminho.
11 Por isso juro indignado
que não entrarão em meu decanso.
1um Deus grande
2 Rei supremo
3 ajolhemo-nos diante
4 Fonte do Acareamento
1198
Salmo 95
2. Bibliografia
J. Finkel, Some problems relating to Ps 95, AJSLL 50 (1933-34) 32-40.
W. E. Barnes, Two Psalm notes. Ps 22,17; 95,6, JTS 37 (1936) 385-387.
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L. Kunz, Die formale Anlage des 95. Psalms, MüTZ 4 (1953) 349-356.
H. Duesberg, Le psaume inuitatoire. Ps 95, BVC 12 (1955-56) 83-90.
J. Racette, La spiritualité du psaume 95, ScEccl 10 (1958) 385-392.
O.
Schilling, Die Anbetung Gottes-Wurzel und Konsequenz. Auslegung
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A. C. Tunyogl, The rebellion o f Israel, JBL 81 (1962) 385-390.
J. Kremer, Kommet, lasset uns jauchzen dem Herrn! Anregungen zur
Meditation über Ps 9 ”, BiLe 3 (1962) 131-137.
N. Tromp, Die bronnen van lofen dank. Ps 95,l-7a , OnsGeest Leven 43
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C. B. Riding, Ps 95,1-7c as a large chiasm, ZAW 88 (1976) 418.
B. Marin, Ascoltate oggi la voce del Signore! II tema dell ’ascolto nel Ps 95,
ParSpVita 1 (1980) 59-79.
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P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 95, BN 22 (1983) 47-69.
3. Análise filológica
2.
nqdmh: de apresentar-se, com valor espacial; muitos antigos lhe
deram sentido temporal madruguemos, adiantemo-nos Vge comentadores.
btwdh: ação de graças; interpretam-no como confissão de pecados Teodor Eutímio Atanásio Agostinho Haymo Belarmino.
4. mhqry: o que se deve sondar, o profundo: exikhniasmoi Aq, katota
Sím, fundamenta Jerôn, fines Vg.
5. w h w w - causal GK 158 a Joüon 170 c.
6. nbrkh: ajoelhemo-nos Targ; leram o verbo bkh = chorar Vg LXX
Teodor Eutímio Belarmino; em piei bendigamos.
7. ’m: optativo oxalá Hitzig Duhm Gun Kraus Rav cf. GK 151, e;
condicional com apôdosis em v. 8 LXX Vg Jerôn Del.
8. kmrybh ... msh: traduzem os topónimos explicando a paranomásia
LXX Vg Jerôn Targ.
9. ’shr: temporal referido a ywm, ou espacial referido a mdbr.
gm: pode ser concessivo.
Estudo global
1199
10. t‘y : pl correspondente ao coletivo ‘m Joüon 148 a.
whm: w- não diferenciado; pode-se tomar como consecutivo ou causal,
Joüon 169 b, 170 c.
11. ’shr: consecutivo Joüon 169 f.
’m: de juramento negativo.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O típico desse salmo, como do 81, é a montagem de duas peças, à
primeira vista heterogêneas. Começa com procissão festiva, com um hino
alegre e comunitário. De repente se eleva a voz de Deus com admoestação
grave e ameaça condicionada. A voz de Deus irrompe sem introdução, como
que interrompendo o canto e gelando os festejos. Deus, desmancha-prazeres da festa que lhe dedicam: curioso modo de receber uma homenagem.
Como se um filho dissoluto e esbanjador viesse festejar o pai pelo aniver­
sário, com efusivas demonstrações de carinho, e o pai, em vez de recebê-las
e agradecê-las, lhe desse severa reprimenda; mais ainda, ameaçasse
deserdá-lo como irmão maior. Essa é a sensação que produz o salmo, que
não se deve embotar com falsa piedade ou com operações críticas (como
quebrando-o em dois salmos autônomos).
Para apreciar melhor o efeito, pode-se emparelhar com o SI 132,
estilizado como procissão de translado ao templo. Como no presente, a
comunidade diz em 132,7: “entremos em sua morada, prostremo-nos diante
do estrado de seus pés”; Deus responde-lhes com um oráculo aceitando a
morada e prometendo bênçãos sem conta. No SI 95 não é que rechace o povo,
mas ameaça rechaçá-lo se não obedecer.
Por essa montagem, que condiciona a permanência na terra e a con­
tinuidade do culto, este salmo entra em contato com “liturgias de entrada”,
como apontaram vários comentadores. Mas a diferença é fundamental:
num caso, a procissão detém-se à porta e pergunta pelas condições para
entrar; noutro caso, estando já dentro e em plena cerimônia, ressoa o
inesperado oráculo.
O salmo é o terceiro na série 93-99, dedicada à realeza de Yhwh.
Justifica-se a colocação? — Com certeza. O título de rei ou imperador ou
soberano (mlk gdwl) abre a primeira motivação. De mais a mais, se um rei
recebe a homenagem dos súditos, não menos exige obediência. Desta
perspectiva, o salmo é coerente e compreensível. A série vai avançando:
vitória e reinado do Senhor (93), atividade judicial (94), homenagem e
imposição de autoridade (95).
Salmo 95
1200
Uma execução litúrgica do salmo, com distribuição de papéis e vozes,
dá razão de seu desenvolvimento e desdobra sua força dramática. Num
segundo momento, o salmo passa à piedade individual.
b) Entrada e repouso
Essas duas palavras me parecem as duas chaves para a compreensão
unitária do salmo. Começo pela segunda.
—
Repouso. O termo hebraico é mnwhh. Pode ser de Deus e do povo
e ambos funcionam como correlativos. Primeiro, do povo:
Dt 12,9 Ainda não alcançastes vosso repouso, a herança que te vai dar o
Senhor teu Deus (mnwhh e nhlh).
Nm 1 0 ,3 3 A arca da aliança do Senhor marchava diante deles buscandolhes um lugar onde descansar (Itwr Ihm mnwhh).
lR s 8,56 Bendito seja o Senhor, que deu descanso a seu povo Israel,
conforme suas promessas (ntn mnwhh l’mw).
Is 32,18 Meu povo habitará em pastagens pacíficas, em moradas tran­
qüilas, em mansões sossegadas (acumula sinônimos). -
Notemos o contexto de aliança em Dt 12, a presença da arca em Nm 10,
a presença no templo em lRs 8, a promessa escatológica em Is 32. São
aspectos teológicos de rico conceito.
Segundo, repouso do Senhor, o templo:
lC r 28,2
Irmãos, eu tinha pensado em construir um templo para
descanso da arca da aliança do Senhor e como estrado dos pés de nosso Deus
(mnwhh).
SI 132,8
14
Is 66,1
Levanta-te, Senhor, vem à tua mansão,
vem com a arca de teu poder ...
Essa é minha mansão para sempre:
aqui viverei porque a quero.
O céu é meu trono e a terra estrado de meus pés:
que templo podereis construir-me
ou que lugar para meu descanso?
Na teologia do Cronista, a epopéia do êxodo só termina quando Salomão
constrói o templo e o Senhor entra em seu descanso; só então descansa
finalmente o povo. O SI 132 relaciona o templo com a dinastia davídica: Davi
não se pode dar descanso enquanto o Senhor não tiver onde repousar.
O mais significativo desses textos para nosso propósito é a correlação:
o repouso de Deus garante e modela o do povo. Se o salmo é pós-exílico, o que
é o mais provável, é preciso ler em filigrana a experiência terrível do
desterro. Não é possível festejar a esse rei em sua morada de repouso sem
recordar lições estremecedoras.
Estudo global
1201
— Entrar. É palavra-chave na teologia da libertação do povo. Sintetiza
a terceira e definitiva etapa do processo libertador. De pouco serviria
multiplicar citações para comprová-lo ou ilustrá-lo. Fixo-me só num texto
litúgico que explora o verbo bw’ em suas variantes para interpretar
teologicamente a oferta das primícias. Simplifico o texto de Dt 26,1-11,
montado sobre a repetição seis vezes desse verbo:
1 Quando entrares na terra que ...
2 tomarás das primícias que produz (= faz entrar) a terra ...
3 Apresentar-te-ás (entrarás) ao sacerdote ... e lhe dirás:
4 Professo hoje diante do Senhor que entrei na terra ...
5 (Recita-se o credo: descida ao Egito, opressão, saída)
9 e nos fez entrar nesse lugar e nos deu essa terra.
10 por isso trago (faço entrar).
Na colheita anual atualiza-se a entrada histórica na terra, e na oferta
das primícias reconhece-se e consuma-se essa entrada.
Pois bem, essa relação é explorada pelo salmo de modo dramático,
opondo os dois usos do verbo entrar:
“Vinde ... avancemos ... en tra i... — Não entrarão!”
Ou seja: não entrareis em meu repouso / templo, que é o vosso; se
perderdes o templo, perdereis a terra, como vos fez compreender Ezequiel.
Entrar na terra / repouso não é fato consumado que garanta a perpetuida­
de; entrar no templo não é rito isolado de toda exigência. Cada dia é preciso
voltar a entrar, na terra como tarefa, no culto como compromisso.
c) A lição da história
Se o salmo é pós-exílico, por que não apela à experiência recente do
desterro? — Porque quer remontar às origens do povo, ao tempo do deserto
como situação exemplar, antes de entrar na terra prometida. Com o binário
Massa e Meriba remete-nos ao episódio da água que brota da rocha, referido
em Ex 17,1-7. Convém destacar aqui alguns versículos:
2
O povo encarou (wyrb, de ryb) Moisés dizendo: Dá-nos água para beber.
Ele lhes respondeu: Por que me encarais (trybwn ‘mdy) e tentais o Senhor?
(;tnswn ’t Yhwh) 7 E chamou o lugar de Tentação e acareação (msh mrybh),
porque os israelitas encararam e tentaram o Senhor perguntando: Está ou
não está o Senhor entre nós?
O relato tem todos os traços de lenda etiológica montada sobre dois
topónimos. A acareação ou querela vai contra Moisés e, através dele, contra
Deus; a tentação vai diretamente contra Deus. E como um desafio: se está
conosco, como afirma, que o demonstre com um milagre patente e benéfico.
Nada diz o relato de castigo definitivo dos culpados.
Salmo 95
1202
A referência de Dt 33,8 é claramente um aproveitamento secundário
de nomes, pondo como sujeito a Deus e os levitas como complemento:
“pusestes à prova em Massa, desafiaste-o em Meriba”. O tema do tentar a
Deus governa parte do SI 78 e reaparece em 106,14, que distingue vários
atos: tentar a Deus pedindo carne, irritá-lo em Meriba (my mrybh),
desconfiar, protestar; tudo isso provoca o juramento divino (cf. Nm 13-14).
O desenvolvimento ou síntese narrativa do SI 106 permite-nos ver que o
autor do SI 95 não tenta retomar uma referência histórica precisa, mas
reúne e mistura dados para propor uma situação exemplar. Se o povo se
empenha em praticar o culto sem obedecer a Deus, tenta a Deus,desafia-o,
renega a entrada na terra e pode perdê-la (de novo).
d) Composição
Seguindo as marcas lingüísticas tradicionais, é fácil seguir o desenvol­
vimento da primeira parte ou hino:
1-2 invitatório
6 invitatório
3 ky de motivação
7 ky de motivação
4-5
títulos cósmicos
título de eleição
A segunda parte, como indiquei, age por contraste; as relações que
mantém com a primeira parte são mentais e tácitas.
5. Exegese
1-2.0 invitatório é jubiloso e ruidoso, com acompanhamento instru­
mental, gritos simples e aclamações. Dois verbos indicam movimento.
3.
Todos os outros deuses lhe são inferiores ou lhe estão sujeitos. Crei
que se refere polemicamente a divindades estrangeiras, sem discutir sua
entidade, sem posição taxante como a de Is 40-55. Esse versículo faz
companhia a 96,4 e 97,7; veja-se também o SI 29. Deus grande: no panteão
babilónico distinguem-se deuses maiores e menores.
4-5. Soberania sem esforço, criação sem luta. Com os dois verbos tra­
dicionais: ‘sh (Gn 1) eyçr (Gn 2). Em quatro hemistíquios nos oferece uma
panorâmica de espaço: profundezas e cumes, mar e terra firme. No panteão
da Mesopotâmia, as diversas zonas e funções se distribuem entre diversas
divindades; em Israel, Yhwh concentra todo o poder.
6.
Triplica o gesto de homenagem, ou o duplica: inclinar-se ou dobrar
se, prostrar-se por terra, ajoelhar-se? (ou bendizer). Fazedor (Is 17,7; 27,7;
29,16; 44,2; 51,13, etc.).
Transposição cristã
1203
7
a. A imagem do rebanho quadra com a recordação do êxodo (vejam
se SI 74,1; 79,13; 100,3).
8.
Endurecer o coração: ser teimoso, contumaz, como em Pr 28,14; em
geral se diz endurecer a cerviz. Ezequiel fala de coração de pedra (11,19;
36,26). Sobre o reincidir, SI 78.
ll.Veja-se Nm 14,28-30:
Por minha vida que vos farei o que me disseste na cara; neste deserto
cairão vossos cadáveres; e de todo vosso censo, contando de vinte anos para
cima, os que protestastes contra mim não entrareis na terra onde jurei que
vos estabeleceria.
6. Transposição cristã
L. Venard, L ’utilization des Psaumes dans l’Epitre aux Hébreux, em FS
Podechard, Lyon, 1945, 253-264.
J. Frankowski, Requies, bonum promissum populi Dei in VT et in
Hebraismo (Heb 3,7-4,11), VD 43 (1965) 124-149; 225-240.
A. Vanhoye, Longue marche ou accès toutproche? Le contexte biblique de
Hébreux 3,7-4,11, Bib 49 (1968) 9-26.
O.
Hofius, Katapausis. Die Vorstellung vom endzeitlichen Ruheort im
Hebräer Brief, Tubinga, 1970.
A perícope mencionada da carta aos Hebreus oferece-nos um comen­
tário homilético ao oráculo do salmo, aplicado à vida cristã. Não vamos
suplantá-lo com nosso comentário, mas citaremos o texto remetendo aos
comentários pertinentes. Depois de citar SI 95,7-11 segundo os LXX,
comenta o autor da carta:
3,12
Cuidado, irmãos: que nenhum de vós tenha um coração perverso e
incrédulo, desertor do Deus vivo. 13 Antes, animai-vos uns aos outros cada
dia, enquanto soa esse “hoje”, para que ninguém se endureça seduzido pelo
pecado. 14 Porque se mantivermos firmes até o fim nossa posição de prin­
cípio, somos companheiros do Messias. 15 Quando diz: “Se hoje escutardes
sua voz, não endureçais o coração, como quando o irritaram”, 16 quais, ainda
que ouvissem, o irritaram? Certamente, todos os que saíram do Egito guia­
dos por Moisés. 17 Com quem se indignou durante quarenta anos? Com
certeza, com os pecadores, cujos cadáveres caíram no deserto. 18 A quem
jurou que não entrariam no descanso? Aos rebeldes; 19 e assim vemos que
por sua incredulidade não puderam entrar.
4,1
Enquanto está em pé a promessa de entrar em seu descanso, sejamos
cautos, para que a nenhum de vós aconteça que fique suspenso; 2 pois nos
anunciaram a boa notícia da mesma forma que a eles. Mas a mensagem que
ouviram não lhes valeu, porque não se compenetraram pela fé com o que
ouviram. 3 No descanso entramos os que temos crido, como fica dito: “Jurei
irado que não entrarão no meu descanso”.
Salmo 95
As tarefas, com certeza, concluíram-se com a criação do mundo, 4 como
se diz num texto sobre o sétimo dia: “No sétimo dia descansou Deus de todas
as suas tarefas”; 5 e neste outro: “Não entrarão em meu descanso”. 6 Ora,
como restam alguns para entrar nele, e os que receberam primeiro a boa
notícia, por sua rebeldia não entraram, 7 assinala outro dia, um “hoje”,
pronunciando muito depois por meio de Davi o texto antes citado: “Se hoje
escutardes sua voz, não endureçais o coração”. 8 Se Josué lhes tivesse dado
o descanso, não se falaria depois de outro dia. 9 Logo resta um descanso
sabático para o povo de Deus. 10 Alguém que entrou em seu descanso,
descansa de suas tarefas, da mesma forma que Deus das suas. 11 Portanto,
esforcemo-nos para entrar naquele descanso, para que ninguém caia segun­
do o exemplo daquela rebeldia.
A propósito do v. 3 do salmo, podemos citar algumas linhas de ICor 8:
4
Ninguém é Deus mais que um; 5 pois, ainda que haja os chamados
deuses no céu e na terra — e de fato há numerosos deuses e numerosos
senhores — , 6 para nós não há mais que um Deus, o Pai de quem procede
o universo e a quem estamos destinados, e um só Senhor, Jesus Cristo, por
quem existe o universo e existimos nós.
Salmo 96
1. Texto
1
2
3
4
5
6
Cantai ao Senhor um cântico novo;
cantai ao Senhor, a terra inteira;
cantai ao Senhor, bendizei seu nome,
apregoai dia após dia sua vitória.
Cantai aos povos sua glória,
suas maravilhas a todas as nações.
Porque é grande o Senhor e muito digno de louvor1.
mais temível que todos os deuses.
Pois os deuses dos pagãos são aparência,
ao passo que o Senhor fez os céus.
Honra e Majestade estão em sua presença,
Força e Beleza2 estão em seu santuário.
7
Tributai ao Senhor, famílias dos povos.
tributai ao Senhor glória e poder.
8 Tributai ao Senhor a glória de seu nome,
entrai em seus átrios trazendo-lhe oferendas.
9 Prostrai-vos diante do Senhor no átrio sagrado,
trema em sua presença a terra inteira.
10 Dizei aos pagãos: O Senhor é rei:
ele firmou o orbe, e não vacilará;
ele governa os povos com retidão.
11 Alegrem-se os céus, goze aterra.
estronde o mar e quanto contém3
12 exulte a campina e quanto há nela,
aclamem as árvores silvestres
13 diante do Senhor, que já chega
já chega para reger a terra;
1muito famoso
2e elegância
3o povo
1206
Salmo 96
14 regerá o orbe com justiça
e os povos com fidelidade.
2. B ibliografia
Veja-se a bibliografia do SI 93.
R. Tournay, Les psaume s complexes, RB 54 (1947) 533-542.
A. Caquot, In splendoribus sanctorum. Ps 29,2; 96,2; 1 Cr 16,29, Syria 33
(1956) 36-41.
J. Brinktrine, Dominus regnavit a ligno, BZ 10 (1966) 105-107.
M. Massini, Sal 96,1-3.11-13; L u c a 2 ,ll. Inno al Salvatore, ParAsFest 7
(1970) 25-35.
N. C. Habel, Yahwe maker o f heaven and earth: a study in tradition
criticism, JBL 91 (1972) 321-327.
M. Russ, Singet Ihm einen neuen Gesang! Eine Anmerkung zu Ps 96, em
FS Schelkle, Düsseldorf, 1973, 15-21.
S. Springer, Om eftearsfesten som Baggrund for tronbestigelssalmer og
kongesalmer, Lumen 18 (1975) 98-112.
C. Houtman, Dejubelzang van de struiken der wildernis in Ps 96,12b, FS
Ridderbos, Amsterdam, 1975.
3. Análise filológica
4. wmhll, nwr’: particípio passivo com valor modal (como latim em
-ndus) GK 116 d, Joüon 121 i.
5. ’lylym: daemonia Vg, epiplastoi Aq, anyparktoi = nulidades Sím,
sculptilia Jerôn, vazio Sir, engano Targ, idola Pagnini, cf. lCor 10,20.
6b. variante em lCr 16,27.
7-9. variação do SI 29.
9. bhdrt qdsh: ornamento ornato sacro Jerôn Aq Sím Hitzig Del Gun
Cast; átrio LXX Vg Sir; Qim entende-o como esplendor e identifica-o com o
templo; quando aparece o Santo Dah Rav.
10. tkwn: está firme; leram verbo ativo LXX Sím Jerôn appendit.
11. yr‘m: ressoe, retumbe Aq Sím Teod Jerôn; agite-se LXXVgEutímio.
12. ’z: antes de repetição GB 20a.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
E um hino à realeza do Senhor, colocado na série 93-99: dos quais, o
primeiro canta a tomada de posse solene, o segundo o começo da atividade
judicial, o terceiro a admoestação do soberano, o quarto é um hino triunfal.
Estudo global
1207
O autor cita versos de outros, adata, imita, e consegue uma composição
unificada pela perspectiva coerente e animada pelo entusiasmo.
Quer cantar o reinado sereno e universal, para o que apaga os mo­
mentos de luta ou justiça vindicativa. E preciso fazer algum esforço para
rastrear pegadas dessa luta: na palavra vitória, pode-se imaginar a luta
precedente; na firmeza do orbe, imagina-se as águas movediças por baixo;
no não vacilar, entreolham-se perigos velados. Imaginações nossas condi­
cionadas por nossa familiaridade com textos aparentados, que funcionam
como contexto mental. Mas o que contempla o poeta é a serenidade e tran­
qüilidade do reinado.
A universalidade manifesta-se em todo o desenvolvimento, de caráter
enumerativo. Pode-se apreciar na reiteração de kol = todo, inteiro, que soa
sete vezes: a terra inteira, todos os povos, todos os deuses, tudo quanto há
nele, todas as árvores. Tudo e todos devem participar da festa e do louvor.
Todos menos os deuses, porque todos os deuses não passam de ídolos
inertes. Não se menciona Sião nem Israel, que poderiam limitar o horizonte
universal. Ainda que alguém haja de contar e dizer aos povos, fá-lo sem
identificar-se.
b) Modelos e semelhantes
O campo de trabalho do autor é principalmente o saltério e a segunda
parte de Isaías (40-66), ou restringindo (40-55). No caso desse salmo, a
comparação nos prestará bons serviços (deixo para o SI 98 a explicação dos
dois símbolos finais).
— Atividade cultual. Tomando o começo como invitatório costumeiro,
isolamos os verbos shyr, brk, bsr, spr - cantar, bendizer (ou ajoelhar-se),
apregoar, contar. E preciso isolar o primeiro em seu sintagma: “cantai ao
Senhor um cântico novo”: encontramo-lo no SI 33,3, no gêmeo 98, imita-o
o tardio 149 e aparece em Is 42,10, que apresenta outro material paralelo.
Apregoar (bsr) uma boa notícia por um arauto: está já presente no SI 40,10,
e é típico do Segundo Isaías (40,9; 52,7; 41,27), e as imitações de 60,6; 61,1.
O imperativo hbw e os jussivos vê-los-emos no seu lugar.
—
O louvor universal: de povos, nações, todo o mundo. Podem-se
distinguir: a mensagem missionária a todos os povos (3.10) e a participação
dos pagãos no louvor (7). O primeiro encontra-se, por exemplo, no SI 9,12
e 105,1; o segundo no salmo “de ascensão” 67, no 86,9 e no exílico 102.
Supondo que Is 2,2-5 seja autêntico, a idéia é antiga, mas firma-se e
estende-se em épocas posteriores, quando também para os judeus o culto
em Jerusalém teve que suprir outras carências. O começo da terceira parte
do livro de Isaías anuncia:
1208
Salmo 96
56,7 Minha casa é casa de oração,
e assim a chamarão todos os povos.
Algo semelhante diz o texto posto nos lábios de Salomão para a
inauguração do templo:
lR s 8,41 Também o estrangeiro, que não pertence a teu povo, Israel,
quando vier de país estrangeiro atraído por tua fama 42 — porque ouvirão
falar de tua grande fama, de tua mão forte e teu braço estendido — , quando
vier rezar nesse templo, 43 escuta-o tu desde o céu onde moras.
Esses textos e outros semelhantes não mencionam a realeza do
Senhor; os dois citados falam de súplica e não de louvor, que facilmente se
subentende.
— Louvor da natureza, ou melhor, da criação. E uma participação gozosa
e festiva. Em outras culturas vizinhas organiza-se uma distribuição de zonas
e competências entre divindades diversas: há um deus celeste, uma divinda­
de telúrica, uma agrária, outra florestal, outra marinha ... Em nosso salmo
as criaturas estão personificadas para participar do louvor, mas não são
divindades. O parenteso com Is 40-55 é patente. Devo citar vários textos para
mostrar que é quase um motivo condutor do grande retorno:
42,10
44,23
49,13
55,12
Cantai ao Senhor um cântico novo ...
brame o mar e quanto contém,
as costas e seus habitantes ...
Aclamai, céus, porque o Senhor agiu;
dai vivas, profundezas da terra;
rompei em aclamações, montanhas;
e tu, bosque, com todas as tuas árvores.
Exulta, céu; alegra-te, terra;
rompei em aclamações, montanhas.
Montes e colinas irromperão a cantar diante de vós,
e aplaudirão as árvores silvestres.
O tema coagula-se na grande liturgia do SI 148.
—
Os deuses pagãos não são convidados a participar do louvor, porque
não passam de ídolos. O termo ’lylym aplica-se aos deuses / ídolos do Egito
em Is 19,1.3 e Ez 30,13 (paralelogllym = esterco?), proíbe-se sua fabricação
(Lv 19,4; 26,1) junto com outros objetos cultuais. A melhor explicação
oferece-nos Is 2,8.18.20 e 31,7.
A atitude do autor é tão radical que, ao citar o princípio do SI 29, subs­
titui bny ’lyrti por mshphwt ‘mym = famílias dos povos. Essa mentalidade
corresponde perfeitamente à do Segundo Isaías, ainda que seja diversa a
terminologia.
Sobre a “vinda” do Senhor, veja-se o comentário ao SI 98.
Exegese
1209
c) Composição e estilo
Os diversos materiais estão dispostos no salmo segundo o esquema de
hino, em duas ondas desiguais:
1-3
4-6
7-10
11-12
13
invitatório com seis imperativos
duplo ky e motivação: títulos e atributos
invitatório com oito imperativos
invitatório com cinco jussivos
duplo ky motivação: reinado universal.
Aprecia-se o desequilíbrio entre o espaço dedicado a convocar partici­
pantes e a brevidade das duas motivações, especialmente da segunda. Se
aos humanos interpela em imperativos, aos seres da natureza apela em
jussivos.
A síntese das duas motivações dá-nos o tema articulado: o Senhor é rei
acima de todos e vem tomar posse do reino e exercer seu reinado. E um
remado de signo terrestre e histórico, “o mundo e os povos”; por essa
atividade do Senhor em favor da humanidade, o cosmo deve se somar ao
louvor festivo. Em outras palavras, o estabelecimento do reinado do Senhor
sobre os homens deve encher de gozo toda a criação.
Os seres vivos, animais, estão metidos sem consideração em fórmulas
genéricas: “tudo o que o enche, o que há nela”. Bem diversa a visão do SI 8,
que apresenta o homem como vice-rei de aves, quadrúpedes e peixes.
Também é diversa a integração harmoniosa do homem na natureza serena
como a apresena o SI 104. Aqui os homens são meros súditos de único
soberano (sem mediadores), e a natureza assiste como gigantesco coro.
O estilo caracteriza-se pelas repetições de palavras e de formas
gramaticais: tríplice shyrw (1-2), tríplice hbw (7-8), dez vezes Yhwh
aclamado e reconhecido, imperativos e jussivos em cascata. Também a
sonoridade cuidada revela um poeta de bom ouvido.
5. Exegese
la. A frase completa conhecemos pelo SI 33, que canta a soberania do
Senhor sem usar o título de rei; acolhê-la-ão salmos tardios (144,9 e 149,1).
Teoricamente, o canto é novo a primeira vez que se canta, deixa de sê-lo
quando se repete. Mais estranho é declarar novo um canto feito de retalhos
usados. Contudo, creio que não é mera fórmula, que o autor é sincero e
move-se com o espírito de novidade que anima o profeta do desterro, como
mostram algumas expressões: o citado 42,10, anúncio de coisas novas (42,9),
faço algo novo (43,19), prego coisas novas (48,6); cf. o nome novo de Is 62,2.
Salmo 96
1210
lb . O plural cantai mostra que “toda a terra” designa aqui (e em 9) os
habitantes, como em português “todo o mundo”.
2a. O verbo e o gesto de ajoelhar-se (qal de brk) lê-se numa adição
pessoal do Cronista (2Cr 6,13), e tem valor histórico muito duvidoso que
Salomão tenha se ajoelhado em seu estrado. Inclino-me a ler o piei
tradicional de brk. Bendizer o nome é fórmula que se coagula mais tarde no
saltério: 100,4 de tom semelhante sem título real, 103,1 e a imitação de
145,1.21 com título real.
2b. Um arauto apregoa a boa notícia (bsr) da vitória (yshw‘h). Ilustrao Is 52,7:
Quão belos são sobre os montes
os pés do arauto que anuncia a paz,
que traz a boa nova, que apregoa a vitória,
que diz a Sião: Teu Deus é rei!
3. Para apreciar o alcance expressivo, missionário, do verbo, comparese com 78,3: “nossos pais nos contaram”, que se confina no âmbito da nação.
Pela lei do paralelismo, trata-se da glória revelada nos portentos.
4.nwr’: que infunde respeito, reverência (cf. SI 76). Em textos babilónicos
diz-se algo semelhante do deus declarado supremo; por exemplo, no hino a
Nabu, deus e patrono de Nabucodonosor (604-562): “Deuses e homens
aprendem a respeitar sua divindade augusta” (Seux 127).
5.
E anômalo mencionar só os céus, sem acrescentar a terra, falando
do criador. A razão poderia ser o contexto próximo, que trata dos deuses,
seres supostamente “celestes”, e que o autor relega a mera manufatura
terrena.
6. Pelo contexto refere-se ao “santuário” celeste, onde assistem o
soberano quatro personificações, não divindades.
7-9. O autor toma os dois primeiros versículos do SI 29, substitui as
divindades por “famílias de povos” e acrescenta duas peças nos postos
quarto e sexto da série. Com elas introduz o tributo próprio da vassalagem
e estende o horizonte a toda a terra enquanto povoada. O verbo hylw está
no plural, como o shyrw do v. 1; contudo, os LXX leram no singular, e em
outros salmos da série é a terra que estremece e se agita. A prostração
(hshthww) é tradicional (não, porém, o ajoelhar-se).
A segunda frase procede de 93,1, onde se encaixa melhor, falta no pa­
ralelo de lCr 16,31 e em alguns manuscritos, da mesma forma que a terceira
frase. Por isso alguns se inclinam a eliminá-las para ficar com a aclamação
sóbria (Yhwh mlk). E certo que o versículo assim podado ganha força
expressiva. Tal como lemos o versículo, a aclamação amplia-se e comenta
com dois efeitos correlativos: a estabilidade do orbe, a justiça internacional.
Transposição cristã
1211
11. O bramido do mar, é rebelde e ameaçador ou é linguagem própria
do mar para expressar seu entusiasmo em harmonia com céus e terra?
(como se fosse a voz do baixo no coro polifônico). O contexto do salmo impõe
leitura festiva.
12. Pelo que sei, esse é o versículo mais original de todo o salmo, sdy
representa o campestre (Dt 32,13; Os 10,4) antes que o agreste (Is 56,9; SI
50,11; 80,14). Seu paralelo correlativo é o silvestre ou selvático, as árvores
não cultivadas.
13. O verbo shpt tem aqui o sentido genérico de governar, que inclui
como tarefa capital o julgar. Porque governa “com fidelidade”, o homem
pode confiar nele.
6. Transposição cristã
Podem-se seguir duas pistas: a vinda ou o advento e o reinado.
Deixando a primeira para o SI 98, escolho a segunda. Pode-se tomar o
reinado de Deus (Pai) ou o de Cristo glorificado. A segunda carta de Timóteo
junta os dois temas (talvez como reminiscência do salmo): “Diante de Deus
e de Jesus Cristo, que há de julgar vivos e mortos, peço-te encarecidamente,
em nome de sua vinda e de seus reinado...” (4,1). O Apocalipse é o texto mais
rico em referências ao tema.
—
Sobre o reinado de Deus Pai. A homenagem dos vinte e quatr
anciãos soa assim:
11,17
Nós te damos graças, Senhor,
Deus Todo-poderoso,
o que és e eras,
porque assumiste o poder supremo
e o reinado.
A visão do c. 12 interrompe-se com uma aclamação no céu:
12,10
12
Chegou a vitória,
o poder e o reinado de nosso Deus,
e a autoridade de seu Messias ...
Por isso, festejai-o, céus
e os que habitais neles.
Ai da terra e do mar!,
porque baixou a vós o diabo ...
O reinado e a alegria no céu coincidem com o salmo; por isso chama mais
a atenção a mudança de situação na terra e no mar. A razão é que o autor ou
visionário descreve a fase pendente duma luta, cuja batalha celeste já foi
combatida e vencida. Pelo final do livro, volta a soar a aclamação:
Salmo 96
1212
19,6
—
Já reina o Senhor Deus nosso Todo-poderoso,
façamos alegre festa dando-lhe glória ...
Reinado de Jesus Cristo:
11,15
Chegou o reinado no mundo
de nosso Senhor e de seu Messias:
reinará pelos séculos dos séculos.
Podemos ampliá-lo com dois textos das cartas:
ICor 15,25
Cl 1,13
Tem que reinar até submeter
todos os seus inimigos sob seus pés.
Arrancou-os do poder das trevas
e transladou-os ao reino de seu Filho querido.
Pode-se ver também o episódio intercalado na parábola das “minas”
(Lc 19,14).
O
NT acrescenta outro dado ao tema, e é que os cristão participarã
deste reinado:
Ap 5,10
Ap 20,6
5
Fizeste deles o reino de nosso Deus e sacerdotes,
e reinarão na terra.
anuncia o reino milenário; 22,6 anuncia a consumação
Ilumina-os o Senhor Deus,
e reinarão pelos séculos dos séculos.
Salmo 97
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
O Senhor reina, a terra exulta,
alegram-se as ilhas inumeráveis.
Nuvens densas e grandes o rodeiam,1
Justiça e Direito sustentam seu trono.
Diante dele avança Fogo
abrasando em torno seus inimigos.
Seus relâmpagos deslumbram o orbe;
ao vê-lo, a terra estremece.
Os montes derretem-se como cera diante do Senhor,
diante do Dono da terra inteira.
Os céus proclamam sua justiça
e todos os povos contemplam sua glória
Envergonham-se os que adoram estátuas
e os que põem seu orgulho2 nos ídolos.
Diante dele prostram-se os deuses.
8
Ouve-o Sião e faz festa3,
regozijam-se as povoações de Judá
por tuas sentenças, Senhor;
9 porque tu, Senhor, és
Altíssimo sobre toda a terra,
elevado sobre todos os deuses.
10 O Senhor ama quem detesta o mal,4
guarda a vida de seus leais,
livra-os da mão dos malvados.
1 envolvem-no
2 gloriam-se em seu
3alegra-se
4os que amais ao Senhor, aborrecei o mal, ao que guarda
Salmo 97
1214
11 Amanhece5 a luz para o honrado
e a alegria para os retos de coração.
12 Festejai, justos, ao Senhor,
dai graças a seu nome santo.
2. Bibliografia
R. Bornert, Le psaume 97: Hymne pour la manifestation du Seigneur,
AssSeig 17 (1962) 7-20.
S.
Morag, Light is sown. Ps 97,11, Tarbiz 33 (1963-64) 140-148.
D.
Colombo, Salmo 96 (7),1.6.11-12. Per il giusto è spuntata la luce,
PaarAsFest 7 (1970) 80-90.
W . A. Beuken, De vreugde om JH W H ’s Heerschappij. Een structuuranalyse
van Ps 97, em Verkenniger in een Stroomgebied, Amsterdam, 1974,102-109.
A. van den Branden, Il Dio Eljôn, BiOr 16 (1974) 65-85.
3. Análise filológica
I. tgl. jussivo LXX Vg Hitzig Duhm Gun Kraus Dah Rav; indicativo
Jerôn Del.
4. wthl: wayyiqtol, para o acento Joüon 47b.
10.
TM os que amais o Senhor odiai o mal, que guarda a vida de seu
fiéis Del Rav; resolvendo shmr em indicativo LXX. Corrigem o texto: ama
o Senhor os que odeiam o mal, guarda Duhm Gun Wellhausen Kraus.
II. zr‘: está semeada (destinada, preparada) Ros; se esparze Dahte
Phil Hitzig Dah. Corrigem para zrh = amanhece Vg Jerôn Dyserinck Bickell
Duhm Kraus (o aneteilen da LXX diz-se de astros e vegetais). Traduz ’wr por
campo Dah; Phil cita e rejeita os que interpretam ’wr como planta, hortaliça.
12. Izkr: nome, porque pelo nome o recordamos Qim; memoriae Vg.
4. Estudo global
a) Gênero e colocação
Cântico à realeza de Yhwh, o quinto da série “real”. Vimos que julgar
é tarefa primordial do rei, o que nos explica a espécie dentro do gênero e o
movimento da série. No SI 93, o Senhor assume a dignidade do poder real,
5 semeia-se
Estudo global
1215
em 94 julga os malvados e descrentes, em 95 admoesta a seus súditos, em
96 canta-se com entusiasmo a tomada de posse, em 97 celebra-se um
julgamento de idólatras e malvados em favor dos honrados. Ocupa posto
semelhante ao do 94, mas o desenvolvimento é muito diverso: aqui falta a
interpelação apaixonada e o julgamento é uma festa.
b) Teofania judicial
A teofania é parte do aparato judicial. Ojuiz supremo não se apresenta
com modéstia burocrática, mas com atributos imponentes de sua autorida­
de. E cena que, partindo de alguns dados empíricos, converte-se em visão
espetacular. Há um trono ou sede do tribunal, o juiz, exaltado num estrado
celeste, acompanha um séquito que abre passagem e evacua toda oposição,
sentado num trono ojuiz avança (trono gestatório?). As polaridades tornam
mais impressionantes a cena: envolto em grandes e densas nuvens, des­
lumbra com relâmpagos, e a terra alegra-se e estremece.
A teofania como elemento da guerra e do juízo (muitas vezes fundidos)
é coisa conhecida. Recordarei dois casos. O primeiro é o primeiro ato de
liturgia penitencial, em forma de juízo contraditório. O Senhor apresentase e convoca a outra parte:
SI 50,1
2
3
O Deus dos deuses, o Senhor fala,
convoca a terra do oriente ao ocidente.
De Sião, epítome de beleza,
Deus resplandece ...
Precede-lhe fogo voraz,
cerca-o tempestade violenta.
Miquéias apresenta um juízo de condenação contra a idolatria de
Samaria (e de Judá no v. 5c, provavelmente acrescentado):
1,3
4
7
Olhai o Senhor que sai de sua morada e desce
e caminha sobre o dorso da terra.
Sob ele derretem-se os montes
e fendem-se os vales
como cera junto ao fogo,
como água precipitada pela correnteza ...
Todos os ídolos serão triturados ...
arrasarei suas imagens.
Se em Miquéias o delito é religioso, de idolatria, no SI 50 é ético e
religioso enquanto se apóia na aliança. Há um pormenor no SI 97 que se
poderia tomar como traço bélico, o fogo que abrasa os inimigos (cf. SI 68,2s
e 21,10). Mas também pode ser motivo tópico, como mostram algumas
citações babilónicas.
1216
Salmo 97
De um hino a Marduk: “Abrasas teus inimigos como fogo furioso” (Seux
73). De hino acróstico a Marduk convém citar vários versos, também os que
mencionam a submissão dos demais deuses a Marduk:
“Quando convoca os Igigu e os Anunnaku,
ajoelham-se diante dele,
e os deuses procriadores mantêm-se em silêncio ...
Estão submetidos a ti os Igigu e os Anunnaku,
deuses e deusas de templos e santuários ...
Filho primogênito de Nudimmud, valente, poderoso,
tempestade inexorável, fogo furioso, chama
que abrasa seus inimigos” (Seux 118).
c) Réus e inocentes
A presença de duas partes diante do juiz respeita uma lógica mínima,
não aplicada com todo rigor e coerência. Fixar-me-ei nos idólatras, os
deuses e os inocentes.
—
Os idólatras são os principais culpados (os únicos?). Esses homens
servem “estátuas” e as veneram, põem seu orgulho nos ídolos. A designação
é polêmica. Instruído talvez pela teologia de Is 40-55, em particular de 44,
12-20, o orante não os chama deuses alheios ou estrangeiros, como o Deuteronômio, mas os reduz a estátuas inertes.
Os que se gloriavam de seus ídolos “ficam confundidos” com o rubor do
fracasso, da condenação judicial. São estes idólatras os mesmos que os
“malvados” do v. 10? Dada a experiência histórica, a identificação é
possível: poderiam ser os babilônios. Por outro lado, rsh‘y m está perto e
oposto a çdyqym (11.12) segundo fórmula tradicional: ao passar à esfera
ética, assomam os malvados / culpados (o termo rsh‘ym não é favorito de Is
40-55).
— Deuses e divindades. Se a expressão “elevado sobre todos os deuses”
(9b) soa ambígua, pelo precedente de 96,4, a expressão de 7b reconhece
entidade subordinada a outras divindades (sem precisar, como 96,5a, que
são de outros povos). Os deuses acorrem para prestar homenagem a Yhwh
como vassalos submissos. Como se ter deuses como súditos fosse título
honorífico para Yhwh. Cf. “Deus de deuses” (SI 50,1) comparado com rei de
reis. A representação é afim à antes mencionada sobre Marduk e a outras
semelhantes. Por exemplo, num hino a Istar lemos:
“Todas as deusas dos povos ajoelham-se diante dela,
todas juntas ajoelhadas a imploram”.
E num hino a Nabu (que pode ser adatação posterior dum antigo hino
a Marduk) se diz:
Exegese
1217
“Os deuses do céu e da terra ...
vêm temerosos ajoelhar-se diante de ti” (Seux 127).
— Os inocentes. São seus “leais” ou vassalos: ainda não como grupo
político definido. Estão ameçados de morte pelos malvados, e o Senhor
salva suas vidas, provavelmente por meio desse julgamento. A lealdade do
Senhor engloba as exigências éticas de odiar o mal, a honradez, a retidão
de coração.
Descer à esfera ética pessoal, depois do grandioso quadro precedente,
parece a alguns comentadores uma queda; inclusive suspeitam alguns que
os versículos finais são adição tardia para adatar o salmo. Invertendo o
raciocínio, pode-se pensar que o autor quis dar transcendência inusitada
aos deveres éticos: como no julgamento do SI 7,8: “Que te cerque a
assembléia das nações, preside-a desde o alto: o Senhor é juiz dos povos”.
d) Composição e relações
— Uma inclusão maior, de 1 e 12, encerra todo o cântico numa
tonalidade de alegria; o gozo aflora de novo no v. 8. A vinda impressionante
do Rei para fazer julgamento é acontecimento gozoso. A luz do v. 11 faz eco
ao resplendor do v. 4, se bem que o tipo e a função da luminosidade sejam
diversos. Os malvados do v. 10 poderiam ser os inimigos do v. 3. Com esses
enlaces, não muito fortes, vincuala-se a última parte com a primeira.
A repetição de terra em 4 e 5 leva-nos a tomar os cinco primeiros
versículos como secção compacta. Nos versículos 6-9 a justiça e a glória do
Senhor vão se opondo à confusão dos idólatras, e essa ao gozo de Sião e Judá,
e o último versículo traz a motivação. Temos assim uma divisão tripartida
do salmo (1-5.6-9.10-13). Mas não se deve dar muita importância à divisão,
que turva outras relações. Amortecendo as divisões, o salmo avança com
grande fluidez e com discreta irregularidade.
— Terra e costas se alegram, orbe e montanhas estremecem, os céus
declaram e os povos contemplam, os idólatras se enrubecem e os deuses se
prostram, Sião e Judá se alegram e os honrados fazem festa. Nessa série se
destaca o papel dos céus, testemunhas notariais do Senhor.
A cena do juízo tem um protagonista e muitas personagens.
5. Exegese
1.
’yym são as costas, ilhas e penínsulas; em geral, o mundo ocidenta
mediterrâneo; coletividade que não forma uma nação nem existe com nome
próprio; rbym diz multidão e totalidade. Polarizado por “costas”, “terra”,
1218
Salmo 97
pode designar a terra firme onde se encontra quem fala. O interesse pelas
costas é típico do Isaías do desterro (reagindo contra o imperialismo ba­
bilónico?) (41,1.5; 42,4.10.12; 49,1; 51,5; Is 11,11 dependente dos anterio­
res); vejam-se também os oráculos “fenícios” de Ezquiel (27) e uma frase do
SI 72,10.
2a. O binário aliterado ‘nn w‘rpl funciona como hendíade; pode-se
traduzir por “nuvens grandes e espessas, nuvens escuras, nuvem plúmbea,
etc.”; também podem-se imaginar personificadas como membros do séqui­
to. Formam parte costumeira do aparato teofânico (Dt 4,11; J12,2: Sf 1,15).
O Senhor mostra-se ... encoberto.
2b. Alude ao pedestal ou embasamento, muitas vezes com figuras
esculpidas, onde se assenta o trono. Para a idéia: Pr 16,12; 20,28; 25,5; SI
89,15.
3 .0 fogo é elemento da divindade: torna-a inacessível e devoradora de
tudo o que se lhe venha a opor. Além dos textos citados, veiam-se Is 29,6;
30,27; Dn 7,10.
4. Vejam-se SI 77,19, a teofania do SI 18, a visão de Ez 1,13. Os relâm­
pagos, não os trovões, fazem estremecer a terra.
5. De um hino a Marduk (da biblioteca de Assurbanipal): “Suas chamas
consomem as altas montanhas” (Seux 77). Como cera (SI 68,3; Mq 1,4). O
derreter-se das montanhas pode-se referir aos rios de lava de vulcão (que
o autor tinha visto ou conhecia por ouvir dizer).
6. Os dois hemistíquios não se harmonizam bem: os céus declaram, os
povos vêem; esperava-se ouvir como correlativo de declarar. O primeiro
hemistíquio atribui papel privilegiado aos céus, o segundo recorda textos
como Is 35,2 e 40,5.
7a. O fracasso e a estultícia dos idólatras convertem-se em motivo
convencional:
Is 32,17
Is 44,20
Jr 2,28
Retrocederão envergonhados os que confiam no ídolo,
os que dizem à estátua: Tu és nosso Deus.
Apascenta-se de cinza,
uma mente iludida o extravia;
não é capaz de salvar-se dizendo:
Não é engano o que tenho na destra?
E onde estão os deuses que te fazias?
Que se levantem e se salvem do apuro!
7b. Para a homenagem das divindades, veja-se também o SI 29. A
versão grega fez dos deuses anjos.
8.
E citação literal do SI 48,12, que é dedicado ao Grande Rei e centrad
em Sião. Mudado o texto, muda o alcance. Sião é aqui o único lugar definido
pelo nome; dela se aproximam as “cidades de Judá”.
Transposição cristã
1219
9. Vejam-se os SI 47,3 e 83,19.
10. Para as duas leituras propostas na análise filológica podem-se
encontrar paralelos. Em ambas se dão um amor e um ódio correlativos e a
oposição irreconciliável de Deus para com o mal. Se o homem detesta o mal
moral, o Senhor o libertará do mal físico, livrará sua vida. Detestar o mal
(Am 5,15 eM q 3,2).
11. Se se aceita a correção de zr’ para zrh, a frase encerra duas alusões
sutis: à manhã como hora de pronunciar sentença e fazer justiça: Jr 21,12:
“ide cedo administrar justiça”. Veja-se também SI 112,4, que extrema o
paradoxo.
12. Parece inspirado em 33,11.
6. Transposição cristã
A carta aos Hebreus (1,6) aplica a Cristo um versículo do salmo,
segundo a versão grega (LXX): “Que o adorem os anjos de Deus”. Concebe
os anjos como criaturas celestes. A competência de julgar atribui-se a
Cristo, tanto em sua primeira vinda como na última. Lê-se em Jo 5,25:
O Pai não julga ninguém, delegou ao Filho todo o poder de julgar,
para que todos honrem ao Filho como honram a ele.
Segundo Jo 9,39, já começa agora seu exercício. At 10,42 afirma: “Deus
nomeou-o juiz de vivos e mortos”.
Mt 25,31-46 dramatiza em cena o juízo final ou definitivo como
exercício do poder real: a teofania é simplificada, reduzida ao séquito e ao
“esplendor”; há castigo definitivo, pelo fogo, para os culpados. Para os
bons será alegria escutar: “vinde, benditos de meu Pai”. Também nos
discursos escatológicos dos evangelhos soam temas semelhantes, por
exemplo, Mt 13,26s. Lucas dá a entender que para os eleitos é momento
de felicidade:
21,28 Quando começar a acontecer isso, incorporai-vos e erguei a
cabeça, pois se aproxima vossa libertação.
Quanto à sorte dos malvados e dos maus, diz o Apocalipse na breve
cena do juízo final:
20,14 A Morte e o Abismo foram jogados ao lago de fogo. O lago de fogo é
a segunda morte. 15 E todos os que não estavam escritos no registro dos
vivos, lançá-los-ão ao lago de fogo.
O
notável desse texto é que, entre os inimigos condenados à destruição
destacam-se os dois poderes aliados, Morte e Abismo.
Salmo 98
1. Texto
1
2
3
4
5
6
Cantai ao Senhor um cântico novo,
porque ele fez maravilhas:
sua direita lhe deu a vitória,
seu santo braço.
O Senhor dá a conhecer sua vitória,
revela sua justiça à vista dos povos.
Lembrou-se de sua lealdade e fidelidade
para com a Casa de Israel.
Os confins da terra contemplaram
a vitória de nosso Deus.
Dai vivas ao Senhor, terra inteira,
gritai, aclamai, tocai:
tocai a cítara para o Senhor,
a cítara ao som1de instrumentos.
Com clarins e ao som de trombetas
dai vivas ao Senhor e Rei.
7
Estronde o mar e o que ele contém2,
o orbe e quantos o habitam;
8 batam palmas3 os rios,
aclamem juntas as montanhas
9 diante do Senhor, pois já chega
para reger a terra.
10 Regerá a terra com justiça,
os povos com retidão.
1acompanhada
2o povoa
3 aplaudam
1221
Estudo global
2. Bibliografia
Veja-se a bibliografia do SI 96.
E. Beaucham, L ’universe acclame le justicier d ’Israël. Ps 98, BVC 70
(1966) 36-40.
A. M. Serra, Salmo 97 (98), 1,6. Il giorno délia salvezza, ParAsFest 7
(1970) 111-120.
H. Ringgren, Behold your king comes, VT 24 (1974) 207-211.
T. Longman, Ps 98. A divine warrior victory song, JETS 27 (1984) 267-274.
3. Análise filológica
4.
pçhw: irrompei a, vociferamini Jerôn, entoai Qim, fazei brotar Targ,
expressar em voz alta Hirsch, cantate Vg.
6. bhççrwt: os antigos explicam que são feitas de metal (bronze) batido,
tubis ductilibus Vg, diversas das fabricadas de chifre de animal.
7. yr‘m: ressoa Sím Jerôn, moveatur Vg.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
— Este salmo é gêmeo do 96 e pertence à série 93-99. É hino à realeza
do Senhor que, depois de vitória patente, vem para tomar posse de seu
reino universal. Observa pontualmente os cânones do gênero hino, ou
seja: convite — ky — motivação. O peculiar do salmo é que reparte a
motivação em duas peças colocando-as no primeiro versículo e nos dois
últimos.
— Embora o salmo cante em termos genéricos uma vitória do Senhor
e a inauguração de seu reinado, alguns dados induzem a situá-lo na
conjuntura do profeta do desterro, o Segundo Isaías, quer no tempo da
predição esperançosa, quer na realização inicial. Temos que ler aqui alguns
versículos desse profeta:
52,7
8
Quão formosos são sobre os montes
os pés do arauto que anuncia a paz,
que traz a boa nova, que apregoa a vitória,
que diz a Sião: Teu Deus reina!
Escuta: teus vigias gritam, cantam em coro,
porque vêem face a face o Senhor
que volta a Sião.
1222
Salmo 98
9
10
Rompei a cantar em coro, ruínas de Jerusalém,
pois o Senhor consola seu povo,
resgata Jerusalém.
O Senhor desnuda seu santo braço
à vista de todas as nações,
e verão os confins da terra
a vitória de nosso Deus.
A semelhança, em certos pontos quase identidade, é patente; à qual é
preciso acrescentar alguns dados. Lê-se quase no começo da profecia um
breve hino à vitória, com participação coral de homens, mar e montanhas,
em âmbito universal:
42,10
Cantai ao Senhor um cântico novo ...
ruja o mar e o que contém,
as costas e seus habitantes ...
11 clamem desde o cume das montanhas ...
12 anunciem seu louvor nas costas.
Conhecemos (pelo SI 96) o interesse desse profeta pela novidade de
ação e anúncio (41,15; 42,9; 43,19; 48,6).
O verbo pçh só figura aqui e cinco vezes nesse profeta. A idéia, porém,
de que a vitória foi conseguida com suas forças, “seu braço”, só encontramos
em Is 59,16; 63,5).
— Na perspectiva histórica proposta, o salmo interpreta-se assim: O
Senhor Deus de Israel, que parecia vencido pelos deuses da Babilônia,
conseguiu agora a vitória (por meio de seu vassalo Ciro); foi vitória patente
no âmbito internacional. Agora, com os seus resgatados, volta à sua capital
e ao seu palácio, como rei triunfante, para tomar posse de seu legítimo reino
universal. O povo de Israel é o beneficiário, os outros povos contemplam-no,
a natureza soma-se à festa.
Naturalmente, o ponto de vista é a fé de Israel, que pode afirmar
tranqüilamente a soberania universal de seu Deus, o Deus único, segundo
o profeta do desterro. Neste salmo não estão presentes outras divindades.
A visão do salmo, porém, desborda a realidade empírica do retorno e
assume facilmente orientação escatológica.
b) Composição
— Aplicando o esquema tradicional do hino, o salmo procede em duas
ondas desiguais. Vejamos o esquema:
imperativo
louvai
— vocativo
— NN
— complemento
— ao Senhor
—
—
motivação
porque fez
Terminado o processo, recomeçam os imperativos. O salmo fica assim
dividido em duas partes desiguais:
1223
Estudo global
o convite a cantar
lb-3
motivação
4-6 convite a cantar com instrumentos
7-8 convite à natureza
9
motivação
As duas motivações, no começo e no fim, formam inclusão de termos com­
plementares. Poderíamos chamá-la de motivação articulada em dois tempos
e abarcando o salmo inteiro. O material distribui-se desigualmente entre as duas
partes: a primeira dá muito espaço à motivação, explicando seu caráter e seu
alcance; a segunda parte dá grande espaço aos participantes no louvor coral.
A fidelidade do salmo ao padrão do hino permite agrupar e observar
dois paradigmas de cada elemento do esquema, já que este se amplifica por
enumeração (projeção do paradigma no sintagma).
Imperativos e jussivos: cantai, dai vivas, entoai, aclamai, tocai, tocai,
dai vivas; ressoe, aplaudam, aclamem. Sete imperativos e três jussivos;
descontando repetições: sete verbos diferentes.
Convidados ao louvor: todo o mundo, um grupo instrumental de três
classes, quatro seres da natureza.
Motivações. Sete verbos: fez, salvou, manifestou, revelou, recordou;
vem, regerá. Sete qualidades ou atributos: maravilhas, vitória, justiça,
lealdade, fidelidade, justiça, eqüidade.
A reiterada estilização numérica delata gosto formal sem revelar
muita fantasia poética. Dentro de cada paradigma, as relações não são
particulamente significativas. Baste notar a duplicação da raiz çdq: a
justiça regulou a vitória e regulará o governo.
c) Vitória e governo
Para mostrar a relação de ambos os elementos, proponho um sintagma
complexo: “Obtida uma vez a vitória, o rei vem para instaurar um regime
de justiça”; que se pode variar assim: “o rei é entronizado para vencer o
inimigo agressor e para administrar a justiça”. A primeira formulação dános o contexto próximo do salmo, a segunda permite-nos alargar sua base.
—
Diante do perigo constante filisteu, os israelitas pedem um rei, e
Deus finalmente condescende:
ISm 8,20
guerra ...
Que o nosso rei nos governe e saia à nossa frente para lutar na
10,24
Então Samuel disse a todo o povo:— Vede quem elegeu o Senhor;
não há como ele em todo o povo. Todos o aclamaram: Viva o rei!
Quando Davi é ungido rei de todo Israel, os mensageiros alegam suas
vitórias precedentes:
1224
Salmo 98
2Sm 5,2 Já antes, quando Saul era nosso rei, tu eras o verdadeiro capitão
de Israel.
Antes de morrer, Davi menciona a justiça como primeira tarefa do
monarca (2Sm 23,3s).
Atalia tenta exterminar toda a família real, mas salva-se Joás, escon­
dido no templo. Chegado o momento oportuno, o sacerdote Jojada organiza
uma conjuração para estabelecer como rei o pequeno herdeiro:
2Rs 11,12 Então Jojada tirou o filho do rei, pôs-lhe um diadema e as
insígnias, ungiu-o rei, e todos aplaudiram aclamando: Viva o Rei!
Muitos reis faltaram com sua dupla missão. O salmista invoca o
reinado direto do Senhor.
—
Sugeri como contexto próximo provável o grande retorno à pátria,
o segundo êxodo. Ainda que seja próprio do Segundo Isaías, completo com
uma citação posterior, que reúne vários temas do salmo:
Is 62,1
11
63,2
5
até que rompa a aurora de sua justiça
e sua salvação arda como uma tocha ...
O Senhor fá-lo ouvir até os confins da terra.
Dizei à cidade de Sião:
olha o teu Senhor que chega ...
Eu, que sentencio com justiça
e sou poderoso para salvar ...
meu braço me deu a vitória.
5. Exegese
1-3. O complemento plural (npl’wt) do primeiro enunciado parece
referir-se a uma série de ações, ao passo que a amplificação parece referirse a ato singular. Como se resolve essa leve tensão? Pode-se responder que
numa ação libertadora singular realizam-se muitas maravilhas. Pareceme melhor resolver a tensão apelando ao verbo “recordar”. Canta-se uma
ação singular, uma “vitória” da “justiça”, na qual o Senhor “lembrou-se”,
teve presente sua “lealdade”. Podemos parafrasear: o Senhor foi coerente
consigo, levou em conta seus compromissos, manteve sua “lealdade”. De
certa maneira é algo que o Senhor deve a si, ainda que seja a favor da outra
parte: lealdade refere-se a outra pessoa e exige continuidade. Pois bem,
essa lealdade que é recordação põe a ação singular numa longa série de
maravilhas: ao cantar a ação recente, o orante recorda também a série e
situa o que viu no contexto do que ouviu. Um “canto novo” pressupõe outro
a que sucede e substitui. A série é mantida por “lealdade e fidelidade”, em
cada ato manifestam-se “salvação (vitória) e justiça”. Assim obtemos o
primeiro quaternário que articula as “maravilhas” do primeiro versículo.
Exegese
1225
Em segundo lugar note-se a correspondência Israel-nações (pagãs). A
“ação” foi em favor de “Israel”, a quem o Senhor mantém “fidelidade”; sua
“manifestação” oferece-se a todos os povos. Através de Israel, todas as
nações podem ser testemunhas oculares da ação histórica de Deus. Israel
serve no meio das nações como cenário vivo de Deus, como personagem de
drama idealizado e realizado por Deus.
A articulação do primeiro enunciado genérico avança em três ondas
regulares:
lb
2
3a
o Senhor para si: ganhou uma “vitória justa”
o Senhor para as nações: manifestou sua vitória
o Senhor para Israel: manteve sua lealdade.
A conclusão resume os dados por correspondência ou eqüivalència:
3b
os confins da terra
contemplaram
a vitória de nosso Deus
todas as nações
revelaram
a vitória do Senhor
2
2
2
lb . O peculiar desse versículo é o dativo, que equivale a reflexivo: a
vitória salvadora foi em proveito próprio. Outras vezes o verbo hwshy‘ é em
favor de outros. Como se o Senhor tivesse sido agredido e tivesse tido que
defender-se.
2. E significativo que a “vitória” seja “justa”. Sabemos que “justiça”
significa também a razão ou o direito que alguém tem num pleito. Vencendo
os inimigos, o Senhor demonstrou que ele tinha razão.
3. E não é que o Senhor deva a salvação emjustiça a seu povo, mas devea a si; se a Israel deve “fidelidade”, é porque espontaneamente ele se
comprometeu.
3b. O povo reconhece-o e canta a Yhwh como “nosso Deus”.
4-8. Em cinco versículos, o diretor dá entrada a toda a orquestra e a um
coro cósmico de quatro vozes.
4-6. A escritura para a direção da orquestra é curiosa, tem algo de
contraponto ou de desenvolvimento por imitações. O autor executa-o
talvez sem pretendê-lo) por meio de repetições e eqüivalências simétricas.
Atribuindo letras às palavras, e representando em maiúsculas as repeti­
das, obtemos o seguinte esquema:
a
F
i
b
B
H
c
g
j
d
G
A
e
h
k
f
F
1
A importância concedida ao acompenhamento orquestral é significa­
tiva. E provável que nos hinos houvesse espaços exclusivamente instru­
mentais: o texto menciona corda e vento, outros mencionam também a
1226
Salmo 98
percussão. Conhecemos os gostos musicais do Cronista, que preferia a
harmonia das vozes e instrumentos aos mugidos de touros degolados.
Porém não se trata só de gostos musicais, mas o salmista reconhece na
música um ato superior de louvor. Podem ver-se: Sl 92,2; 101,1; 108,2;
147,1. A música vocal exalta a palavra, intensifica a expressão; a instru­
mental tempera e harmoniza os sons convertendo-os em louvor. O homem
domestica sons selvagens, humaniza sons naturais, submete-os à sua
própria ordem a fim de submetê-los, em movimento de retorno, a seu
criador. Assim se torna o homem “voz das criaturas”. (E estranha e
dificilmente explicável a oposição de alguns Padres à música instrumental
na liturgia).
7-8. Os ruídos da natureza também podem-se incorporar na música
(uma espécie de música concreta). Como se o autor escrevesse partitura
generosa e audaz. O mar e os continentes lançam e repetem uma espécie de
trovão (r‘m): um som potente, prolongado, não temperado. Montanhas e
rios humanizam seus ruídos. Os rios aplaudem: som esmiuçado em múlti­
plos e pequenos golpes e fundido em fragor homogêneo; ou então rítmico
bater palmas (more hispânico). E os montes, devolvendo e fundindo a
variedade de ruídos, expressam sem palavras seu júbilo. Agostinho comen­
ta o júbilo: “Si quod gaudetis loqui non potestis, iubilate ... non sit mutum
gaudium”.
O salmo reúne em contexto litúrgico o que o Segundo Isaías distribui
ao longo da procissão dos repatriados (44,23; 49,13; 55,12). Se aguçarmos
um pouco o ouvido, escutaremos a rica sonoridade desses cinco versículos
do salmo.
9. Vem, chega o Senhor. O verbo bw’ ê raro predicado do Senhor: além
de algumas “vindas” hostis (Abimelec, Labão, Egito), podem-se recordar:
para um pleito (Is 50,2), para julgar (66,15), ao templo (Ez 44,2; Zc 2,14; Ml
3,1); particular importância para o salmo tem Is 40,10 porque menciona
outros motivos contextuais:
5
revelar-se-á sua glória ... verão todos
10 vem com força ... seu braço domina.
O
autor tem pressa em terminar aqui, ou termina com um tema que
começo. Sobre seu governo justo, veja-se o comentário ao Sl 96.
6. Transposição cristã
Essa reação que espera o remédio das injustiças com a vinda de novo
monarca ou chefe está profundamente arraigada nos homens. E a necessi­
dade e o direito de esperar. Os exemplos do AT não são exceção nem
Transposição cristã
1227
peculiaridade, são testemunhos de desejos e esperanças simplesmente
humanos. A universalidade desse afã humano facilita a transposição cristã
do salmo. Para fazê-la, fixamo-nos nos símbolos fundamentais e vincula­
dos: o advento e o reinado.
— Advento deriva de vir. Em seu primeiro sentido, oferece-nos uma
matáfora espacial, de movimentos em nossa direção. Concebemos um Deus
distante, que se aproxima e chega. O êxodo do Egito terminou com o anúncio
sóbrio: “Cheguei” (Js 5,14); repete-o o êxodo da Babilônia. Também conce­
bemos a encarnação como uma vinda de Deus ao mundo: quando a Palavra
se faz homem, vem ao mundo e habita entre nós.
Não menos importante é o uso temporal do verbo. O hebreu represen­
ta-se o homem num ponto do tempo e vê o futuro vindo de atrás até alcançálo (qdm é adiante / passado, ’hr é detrás / futuro). Nas etimologias
portuguesas percebemos concepção parecida: chamamos o futuro de por­
vir, esperamos o vindouro, falamos do ano que vem, aspiramos quando
chegará o dia. Os hebreus tardios chamaram a era escatológica de o mundo
vindouro, e um título do Messias é “o que deve vir”.
Nosso advento faz parte da concepção temporal mais que da espacial.
A teologia e a liturgia ensinam-nos a contar três adventos: a vinda histórica
do Salvador ao mundo, sua vinda final ou parusia, a celebração litúrgica de
ambas. O SI 98 é salmo de advento, seu caráter é litúrgieo, seu símbolo pode
abarcar qualquer vinda, desde o nascimento de Cristo até a parusia. No
plano litúrgieo pode-se especificar sua vinda sacramental.
A transposição desse símbolo é tão fácil que se pode usar o salmo
pedagogicamente para ilustrar as leituras “alegórica, tropológica e analógica”
do Antigo Testamento. Se o salmo fala do Senhor, nós celebramos sua vinda
no Messias Senhor.
— O segundo símbolo do salmo é o reino ou reinado. O Messias “vem”
para inaugurar novo regime, para pregar e estabelecer o reinado de Deus
na história. Ensina-nos a pedir “que venha teu reinado”, descreve-nos com
muitas imagens o caráter e desenvolvimento do novo regime. O tema é tão
central no NT, sobretudo nos evangelhos, que parece desatino querer
resumi-lo aqui. Ainda que não seja demais recordar que um de seus
conteúdos centrais é a justiça.
Lido em chave cristã, o salmo canta uma ação central de Deus na
história: sua “vitória” sobre o pecado e a morte, e a ressurreição de seu
Filho: “Este é o dia em que agiu o Senhor: foi um milagre patente” (SI 118,
23). Ação maravilhosa, realizada à vista de todos, ação que inaugura a nova
era definitiva da humanidade, que é o reinado de Deus.
Pode-se falar dum “canto novo”. O primeiro cântico de Moisés, regis­
trado em Ex 15, comemora a vitória de Deus sobre o mar Vermelho e o
1228
Salmo 98
exército egípcio. O título grego do Sl 98 atribui-o a Davi; na realidade,
propusemos considerar esse salmo como celebração da vitória do Senhor
sobre a Babilônia e como canto do segundo êxodo.
Em Ap 15,3 lemos que os vencedores da fera cantavam o cântico de
Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro dizendo:
Grandes e admiráveis são tuas obras,
Senhor Deus, soberano de tudo;
justo e verdadeiro teu proceder,
rei das nações.
Ap 5,9s cita o “cântico novo” que cantavam os viventes e os anciãos em
honra do Cordeiro. Em Ap 14,2-3 lemos:
Ouvi também um fragor que descia do céu, parecido ao estrondo do oceano
e ao estampido de forte trovão: era o som dos citaristas que tocavam suas
cítaras diante do trono, diante dos quatro viventes e dos anciãos, cantando
um cântico novo. Ninguém podia aprender aquele cântico fora dos cento e
quarenta e quatro mil, os adquiridos da terra.
Salmo 99
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
O Senhor reina, tremam as nações,
entronizado sobre querubins, vacile a terra.
O Senhor é grande em Sião,
excelso sobre todos os povos.
Confessem seu nome, grande e terrível:
ele é Santo.
O poder real ama a justiça1,
tu estabeleceste a retidão;
tu administras para Jacó
justiça e direito.
Exaltai ao Senhor nosso Deus,
prostrai-vos à frente do estrado de seus pés:
ele é Santo.
Moisés e Aarão entre seus sacerdotes,
Samuel entre os que invocam seu nome:
invocavam o Senhor, e ele respondia.
Deus lhes falava da coluna de nuvens;
cumpriam suas ordens e a lei que lhes deu.
Senhor Deus nosso, tu lhes respondias.
Tu eras para eles um Deus de perdão,
ainda que vingador de suas maldades.
Exaltai ao Senhos Deus nosso,
prostrai-vos em direção de seu monte santo:
Santo é o Senhor nosso Deus.
1 Rei poderoso que ama
1230
Salmo 99
2. Bibliografia
I. Fransen - P. Leyris, Psaume 99, BVC 19 (1957) 49-51.
A. Rose, Le règne du Dieu saint: lecturejuive du Ps 99, BVC 19 (1957) 9197.
— Celui qui est assis sur les chérubins. Lecture chrétienne du Ps 99, BVC
20 (1957) 101-108.
W . Schmidt, Wo hat die Aussage: Jahwe der Heilige ihren Ursprung?,
ZA W 74 (1962) 62-66.
R. N. Whybray, Their wrongdoings in Ps 99,8, ZA W 81 (1969) 237-239.
C. F. Whitley, Psalm 99,8, ZA W 85 (1973) 227-230.
J. Luzárraga, Las tradiciones de la nube en la Biblia y en ei judaísmo
primitivo, Roma, 1973, 185-186.
P. Mommer, Samuel in Ps 99, BN 31 (1986) 27-30.
3. Análise filológica
1. tnwt: indicativo; lêem subjuntivo LXX Vg.
2. ‘mym : alguns manuscritos gregos respondem a ’Ihym.
4.
Del: mlk vocativo, mshpt ’hb relativa assindética, ’th sujeito, ‘z
complem de kwnnt, myshrym advérbio; Dah: %mlk adj superlativo o mais
forte, cf. SI 48,3, segue-o Rav; Gunk corrige para mlk ‘azy suprime mshpt
’hb-, Vg tu parasti directiones; os antigos flutuam entre retidão subjetiva e
direito objetivo.
8. 'lylwtm: sufixo com valor objetivo: dirigidas contra eles Qim Ecker
Belarmino; Eutímio explica: ou ajudando seus empreendimentos em favor
do povo ou rechaçando as agressões contra eles. Os modernos tomam-no em
geral como subjetivo: suas maldades. Hitzig corrige para wnhm.
9. ky: causal, ou asseverativo GB 341 b.
4. Estudo global
a) Gênero e colocação
Este é o último da série dedicada à realeza de Yhwh, mas é muito
diverso dos precedentes. Compartilha com o SI 93 da visão da majestade
real e com o 95 do julgamento do povo. Mas é único na série e em todo o
saltério. A classificação pode obscurecer sua individualidade.
O tema da realeza unifica a composição imaginativa. E um rei grande,
soberano de povos, impressionante por sua majestade; tem um trono
sustentado por querubins e um estrado no monte Sião (não se menciona
Estudo global
1231
coroa nem vestes). Tem em sua corte três ministros privilegiados, três
homens (não há divindades no salmo). E legislador que “estabelece” o
regime da justiça, é executivo que administra a justiça; dá decretos, exige
seu cumprimento, castiga os delitos e pode indultar. Os povos lhe rendem
homenagem, seus ministros tratam com ele.
E provável que o autor se tenha inspirado na visão da vocação de
Isaías: “está sentado” (no trono), “elevado”; assistem-no “serafins” (não
querubins); soa o triságion; é rei, provoca um tremor (terra / templo), ouve
a voz e dialoga, cobre-se de fumaça (nuvem); tudo isso em contexto litúrgico.
Se houver dependência, o autor do salmo terá desligado a visão de seu
contexto profético transferindo-o a um contexto de aliança com mudança de
persongens, mas conservando o cenário Sião / templo. Se não depender de
Isaías, alguma fonte litúrgica comum terá inspirado a ambos.
b) Estribilho santidade
— Há uma tríplice repetição qdwsh hw’, que se alarga levemente na
terceira vez; há, de mais a mais, um tríplice invitatório em 3.5.9, com
repetição parcial em 5.9. E provável que a execução litúrgica tenha
condicionado a forma. Em virtude do efeito de ressonância do estribilho,
estende-se uma como que ponte de unidade e se tornam complementares os
três versículos. Menciona-se “seu nome” sem pronunciá-lo, com predicados,
no v. 3; pronuncia-se em 5 e 9; o “estrado de seus pés” (5) identifica-se com
“seu monte santo” (9). Afirma-se, de mais a mais, a identidade de “nosso
Deus” e o Deus das personagens mencionadas.
— A santidade de Deus domina o salmo, como é central no livro de
Isaías — “o Santo de Israel” como título divino — ; como é central na
experiência de Ezequiel e em sua obra; como o é na tradição sacerdotal
!Levítico e textos afins). Santidade celeste e inacessível de Deus, santidade
em aliança com um povo consagrado, santidade cultual da liturgia, santi­
dade de exigências éticas.
A santidade, como qualidade exclusiva da divindade, imprime seu
caráter a outras manifestações afins. Santidade e grandeza (3), como em Ez
38,23: “Mostrarei minha grandeza e santidade e dar-me-ei a conhecer a
muitas nações, e saberão que sou o Senhor”. Santidade e elevação (rm 2),
como em Is 6,1 e 57,15:
Assim diz o Alto e Excelso,
o sentado no trono, cujo nome é Santo.
Santidade temível, surpreendente, “mysterium fascinans et
tremendum”, como no Sl 111,9: “Seu nome é santo e temível”. Santidade na
administração da justiça (4), como em Is 5,16:
1232
Salmo 99
O Senhor dos Exércitos será exaltado ao julgar,
o Deus Santo mostrará sua santidade na sentença.
Santidade que perdoa o ofensor (8), como em Os 11,9:
Não cederei ao ardor de minha cólera,
não voltarei a destruir Efraim,
pois sou Deus e não homem,
o Santo no meio de ti.
Santidade que castiga toda profanação (8), como a do fogo ilegítimo de
Nadab e Abiú em Lv 10:
2
Da presença do Senhor saiu um fogo que os devorou, e morreram na
presença do Senhor. 3 Moisé disse a Aarão: a isso se referia o Senhor quando
disse: Mostrarei minha santidade em meus ministros e minha glória perante
todo o povo.
A santidade de Deus não se deixa domesticar nem manipular e apresen­
ta-se em polaridades: atrai e mantém à distância, castiga e perdoa, dá ordens
e escuta súplicas; quando mais se aproxima, mais se faz sentir. Creio que a
santidade condiciona o tema sacerdotal (como veremos na exegese).
5. Exegese
1. Quanto ao formal, o versículo aplica o esquema A B / a b, que constitui
infração da ordem simples A a / B b, ou seja:
O Senhor reina, sentado sobre querubins:
estremecem os povos e cambaleia a terra.
A manifestação prescinde aqui do aparato teofânico espetacular, e só
se sugere pela reação dos que assistem. O cenário é universal. Querubins,
animais fantásticos de esfera sobre-humana, suportam o trono da divindade.
2. A capital do reino e residência do soberano encontra-se em Sião.
Recorde-se o Sl 48,3: “E o monte Sião, vértice do céu, capital do Grande Rei”.
Sem rei humano, Sião é a capital do rei divino. “Sobre todos os povos”: assim
corrige o Sl 97,9, eliminando todo vestígio de outros deuses; vejam-se
também 95,3 e 96,4.
3. O sujeito parece ser os povos antes mencionados, a não ser que se
tome o verbo como forma impessoal. O tema do nome santo, que não deve
ser profanado, é típico de Ezequiel, como mostram algumas citações:
36,22 Não o faço por vós, Casa de Israel, mas por meu santo nome, pro­
fanado por vós nas nações aonde fostes. 23 Mostrarei a santidade de meu
nome ilustre.
Exegese
1233
39,25
Agora mudo a sorte de Jacó, tenho pena da Casa de Israel, e
sou ciumento de meu santo nome.
“Es santo”: sujeito é agora o nome ou o próprio Deus. O texto pede aqui
pausa.
4. Pode-se manter a vocalização massorética tomando ’z por substituto
da pessoa; como nós dizemos “sua majestade”: o poder real, a autoridade
real. Se se mudar a vogal, guiando-se por Is 19,4, o sujeito será um rei
poderoso, enérgico. De quem se predicam três qualidades que se podem ler
como sequência lógica ou como acumulação retórica. Mais matizada é a
primeira proposta. Começa por uma atitude: seu amor e estima do direito,
como em SI 45,8: “amas a justiça e odeias a maldade, por isso ... o Senhor
te ungiu ...”. O segundo é instaurar e manter um regime de retidão e
equidade, como no SI 45,7: “cetro de retidão é teu cetro real”. O terceiro é
a administração da justiça e do direito como tarefa de governo, como no SI
72,2: “para que reja teu povo com justiça e teus humildes com retidão”.
Essas citações e outras que se podiam acumular dizem-nos que o autor
afasta ou encontra afastado o rei humano e reconhece como rei o Senhor.
Mas conserva a capital tradicional da monarquia.
A comunidade traz agora o nome de Jacó, equivalente de Israel, como
povo escolhido ideal, sem divisão de reinos. Veja-se o SI 59,14: “para que se
saiba que Deus governa em Jacó”. Num oráculo de restauração do livro de
Isaías, em vez do consabido “Santo de Israel” lemos “o Santo de Jacó, o Deus
de Israel” (29,23); em Is 41,21 lê-se o título “Rei de Jacó”.
A visão da santidade estreitou-se para a esfera ética, e o horizonte
universal encolheu-se para abarcar um povo; mas intensifica-se a consciên­
cia da santidade divina.
5. O sujeito do louvor é logicamente a comunidade de Jacó, há pouco
mencionada, a comunidade que chama o Senhor “Deus nosso”. “Estrado de
seus pés” é “o monte santo” (9 e Lm 2,1), é o templo segundo SI 132,7 e lCr
28,2, é a terra segundo Is 66,1. O templo como morada do Senhor é trans­
cendido em imagem de proporções gigantescas, mas próxima da visão
vocacional de Isaías e do citado Is 66,1. Seguindo-se a imagem com coe­
rência, os querubins não podem ficar encerrados no camarim, mas devem
ser celestes.
6. Deparamo aqui o ternário enigmático, que devemos respeitar.
Nossos gostos e nossas opiniões não nos autorizam a expulsar nenhum dos
três. Melhor seria confessar nosso estupor ou ignorância. Podemos consi­
derar Moisés como mediador da lei, Aarão como representante do sacerdó­
cio, Samuel da profecia. Moisés e Aarão estão firmemente ancorados na
tradição do êxodo e da aliança; Samuel pode ser observado quando resiste
ao regime monárquico ou quando unge os reis. Se quisermos uni-los na
1234
Salmo 99
intercessão, citaremos Nm 14,5: “Moisés e Aarão lançaram-se com o rosto
por terra diante de toda a comunidade israelita”.
Como se fossse leve o problema, o autor nô-lo complica juntando os três
no “sacerdócio”. Ora, Moisés era de estirpe levítica como seu irmão, e
Samuel servira no santuário de Silo. Mas creio que é outra a explicação: o
autor quis frisar sua qualidade de “santidade” ou consagração, inscreven­
do-os na categoria que melhor a representava em sua época, o sacerdócio
(de modo semelhante Sl 105,15 chama os patriarcas de “meus ungidos,
meus profetas”). Basta recordar a vocação à santidade do povo escolhido em
Ex 19,6 e por todo o Levítico. Entrar a serviço do Senhor como mediadores
e interlocutores é ofício “sacerdotal”.
6b-7a. A resposta de Deus é principalmente oracular e pode abarcar
qualquer situação. O Deus “santo” torna-se acessível ao chamado. Porém
mantém a distância e o mistério na “coluna de nuvem” ou em seu equiva­
lente, a coluna de incenso, que insinuam a presença velada do Senhor:
Ex 24,15 Quando Moisés subiu ao monte, a nuvem cobria-o e a glória do
Senhor repousava sobre o monte Sinai, e a nuvem cobriu-o durante seis dias.
17 No sétimo dia Deus chamou Moisés da nuvem. A glória do Senhor
apareceu aos israelitas como fogo voraz sobre o cume do monte. 18 Moisés
penetrou na nuvem e subiu ao monte.
7ab. Combinando os dois hemistíquios como correlativos, temos que o
“falar” de Deus consiste principalmente nos dbrym ou mandamentos. A
observância, naturalmente, não é tarefa exclusiva dos três eleitos; por isso
o versículo alarga o olhar a toda a comunidade da aliança, na qual “oficiam”
alguns eleitos.
8. O Deus que perdoa e que castiga é tema fundamental da aliança.
Tem sua expressão clássica nas bênçãos e maldições, e brevemente em
Ex 34,7 perdoa culpas, delitos e pecados, ainda que não deixe impune e
castigue a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos.
9. Na última secção, Deus aproximou-se ainda mais: abre-se ao
diálogo, responde aos chamados, reage perante a conduta dos seus. Nem
por isso diminui a experiência de sua santidade.
6. Transposição cristã
O tema da santidade é tão dominante no NT, que temos que nos limitar
a uma síntese de sugestões.
—
Começamos pela oração dominical, cuja primeira petição é “santi
ficado seja teu nome”. No que pedimos que os homens reconheçam a
Transposição cristã
1235
santidade de Deus, que ele a faça conhecer e sentir, contra toda tentativa
de empequenecer ou manipular a divindade. Uma vez que entramos nessa
oração dominical, descobrimos que, como o salmo, confessa a Deus como rei
e pede que se realize seu reinado. Em vez de preceitos e decretos, fala da
vontade ou desígnio que há de se cumprir. Não esquece do perdão dos
pecados. Mas a vingança é substituída pela prevenção: “faz com que não
sucumbamos na prova”.
— Depois passamos a aplicar o triságio à “Santíssima” Trindade,
começando pelo Pai, a quem Jesus invoca : “Pai Santo!” (Jo 17,11). O tema
ressoa no Apocalipse: o triságio de Isaías é retomado e adatado em 4,8. Na
visão dos sete anjos com as sete pragas ressoam cantos, dos quais seleciono
alguns versículos:
15,3
Grandes e admiráveis são tuas obras,
Senhor Deus, soberano de tudo;
justo e verdadeiro teu proceder,
rei das nações.
4 Quem não te respeitará?
Quem não dará glória a teu nome,
se só tu és santo?
Todas as nações virão
prostrar-se diante de ti,
porque tuas justas sentenças
foram promulgadas.
16,5 Tu, o rei que eras e é, o Santo,
tens razão ao dar essa sentença.
— O Filho já é anunciado como santo em Lc 1,35: “o que vai nascer será
chamado Santo, Filho de Deus”. Em Jo 6,69, Pedro confessa em nome dos
discípulos: “nós cremos e sabemos que tu és o Santo (consagrado) de Deus”.
O ofício sacerdotal de Jesus é tema central da carta aos Hebreus.
— De maneira especial tem o título o Espírito Santo, espírito de
santificação. Com mais de quarenta menções, pode-se dizer que é o
protagonista dos Atos dos Apóstolos.
— Como conseqüência, toda a comunidade consagrada por Deus a
Deus é e deve ser santa. Jo 17,19: “Por eles me consagro a ti, para que
também eles sejam consagrados de verdade”. Para concluir, leiamos lPd
l,15s.
Da mema forma que é santo aquele que vos chamou, sede também vós
santos em toda a vossa conduta, porque a Escritura diz: Sereis santos porque
eu sou santo”.
Nossa celebração eucarística retomou o triságio de Isaías.
Salmo 100
1. Texto
1
2
4
5
Dai vivas ao Senhor, terra inteira,
servi ao Senhor com alegria,
entrai em sua presença aclamando.
Sabei que o Senhor é Deus,
ele nos fez e somos seus,
povo seu e ovelhas de seu aprisco.
Entrai por suas portas com ação de graças,
por seus átrios com hinos,
dai-lhe graças, bendizei seu nome:
“O Senhor é bom, sua misericórdia é eterna,
sua fidelidade de idade em idade”.
2. Bibliografia
C. L. Feinberg, Old-Hundreth-Psalm, BiblSacra 103 91946) 53-66.
K. Koch, Denn seine Güte währet ewiglich, EvTh 21 (1961) 531-544.
J. O. Lewis, An asseverative V in Ps 100,3, JBL 86 (1967) 216.
G.
Fohrer, Der Mittelpunkt einer Theologie des AT, TZ 24 (1968) 161-172.
J. L. Mays, Worship, world and power: an interpretation o f Ps 100,
Interpr 23 (1969) 315-330).
B. Gherardini, Noi, il suopopolo. Ps 99,3, Divinitas 15 (1971) 405-420.
C. F. Whitley, Some remarks on lü and lo’; ZA W 87 (1975) 202-204.
R. Morneau, Ps 100: a mini-theology, SpLife 23 (1977) 26-36.
R. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 100, BN 20 (1983) 7-14.
W . Brueggemann, Psalm 100, Intepret 39 (1985) 65-69.
3. Análise filológica
3.
wV: um dos quinze casos registrados pelos massoretas em que V se
deve ler lw (dativo) Jerôn Del Gun Kraus; trata-se de duas variantes
gráficas comopo’ I pô (Jó 38,11; Ez 40,10.12), ’epo’ / ’epô (Gn 27,33; 43,11;
1237
Exegese
Jó 9,24; 17,15) DBHE Ros. Lêem o ketib LXX Vg Phil. Dão valor enfático
ao WRav J. O. Lewis C. F. Whitley.
4. b’w: regendo complementos diretos.
5. ky. causal, ou partícula completiva GB 342a-b.
4. Estudo global
Gênero e composição
— É hino com invitatório ampliado e motivação simplificada. Será hino
à realeza do Senhor como os anteriores? Contra está que não se menciona o
título ou a função real e que o teor é muito genérico, sem alusões ao trono ou
ao estrado ou à função de governo. A favor está o lugar que ocupa como pos­
sível sétimo de uma série e por alguns pontos de contato com os precedentes.
A saber: v. 1, como 98,4, a aclamação hry‘w como em 95,1-2, o gozo como
em 97,11, o dar vivas como em 95,1; 98,4.8, a entrada como em 95,6; 96,8, ove­
lhas e aprisco como em 95,7, a confissão twdh como em 95,2, entrar nos átrios
como em 96,8, bendizer seu nome como em 96,2, lealdade e fidelidade como
em 98,3. Aforça desse argumento cumulativo debilita-se quando se consideraque muitas são coincidências genéricas. Em todo caso, a imagem consabida das
ovelhas poderia sugerir o governo do Senhor Rei, ainda que deforma vaga.
— Se separarmos o último versículo, da motivação,resta-nos um
invitatório construído sobre sete imperativos, colocados de tal sorte que o
central se destaque e atraia a atenção. Representando cada palavra (execeto partículas) com um sinal O, obtemos o seguinte esquema:
aclamai O O
servi O O
entrai O O
sabei O O O O O O O O O O O
entrai O O O O confessai O
bendizei O
O
curioso é que esse centro tão destacado não seja a motivação, ma
parte ou condição do invitatório.
Todos os versículos têm articulação ternária, que não coincide com a
ordenação rítmica. Também distribui-se irregularmente, no começo e no
fim, a tríplice menção de Yhwh.
Em horizonte universal de “toda a terra” coloca-se a eleição de rebanho.
5. Exegese
1.
Aclamai: hry‘w. Santo Agostinho explica o termo latino correspon
dente, iubilate, por duas características: pura expressão sem articulação de
conteúdo, expressão de conteúdo inefável:
1238
Salmo 100
“O que aclama (qui iubilat) não pronuncia palavras ... É a voz de ânimo
dilatado por gozo, que expressa enquanto pode o sentimento sem entender
seu sentido. O homem que goza em sua exaltação, partindo de palavras que
não se podem pronunciar nem entender, prorrompe em grito de exultação
sem palavras. Deste modo manifesta no grito sua alegria; mas vê-se que está
tão repleto de gozo, que não pode explicá-lo com palavras ... Quando
aclamamos (iubilamus)? Quando louvamos o que é inefável”.
2. Servi com alegria: ‘bdw pode ter aqui sentido cultual (como Service
em inglês ou Gottesdienst em alemão). Mas mesmo sendo palavra genéri­
ca, não perde a ressonância do serviço que o povo deve a seu soberano. Por
esse aspecto surge o paradoxo: servir ou ser escravo é condição triste e
dolorosa, como o experimentaram os hebreus no Egito; servir, ser escra­
vos do Senhor pode ser fonte de gozo. Sua expressão no culto deve ser
“festiva”, pois é um dos sentidos de smh. Também esse aspecto é comen­
tado por Agostinho:
“Toda escravidão é am arga... Não temas a escravidão daquele Senhor...
Grande felicidade é ser servo nesta grande casa ... Junto do Senhor, a
escravidão é livre, porque não serve a necessidade, mas a caridade ... Que a
caridade te faça servo, já que a verdade te fez livre”.
Gramaticalmente, o sujeito deverá ser o precedente, a terra inteira;
pelo sentido parece que o or ante estreita sua visão abarcando a comunidade
litúrgica.
3. Sabei: é muito raro interpelar com esse imperativo; no saltério
encontramos outros dois casos em tom de admoestação (4,4 e 46,11). O que
encarece a importância da oração completiva, que enuncia a doutrina
central.
Ele nos fez: refere-se à criação do homem em geral ou à do povo em
especial? O que segue estreita o alcance: “nós” refere-se à comunidade de
Israel, “ovelhas de seu aprisco”. Mesmo com essa limitação, a frase é densa.
Fez-nos fisicamente, biologicamente, pela bênção da fecundidade dos
patriarcas: Gn 12,2 soa literalmente: “farei de ti um grande povo”. Fez-nos
politicamente, fazendo de massa de escravos um povo livre, uma nação
autônoma. Fez-nos religiosamente pela aliança: “sereis meu povo, serei
vosso Deus”. Com o mesmo horizonte limitado interpela Malaquias: “Não
temos todos um só Pai? (Jacó), não nos criou um mesmo Deus?” Ao mesmo
grupo pertencem textos como Is 27,11; 44,2; 51,3; Os 8,14, e em particular
SI 95,6.
Mas pode-se alargar o enunciado para abranger qualquer homem.
Como diz, por exemplo, Is 17,7: “Naquela dia, o homem verá o seu fazedor”;
Is 29,16: “Como obra que dissesse de quem a fez”; Jó 31,15: “O que me fez
a mim no ventre, não o fez a ele?”.
Transposição cristã
1239
5.
O primeiro membro da motivação, Yhwh é bom, aparece muitas
vezes no saltério e chega a fixar-se como estribilho: por exemplo, 106,1;
107,1; 118,1.29; 135,3; 136,1. Para matizar seu conteúdo, seria preciso
examinar os termos com os quais se associa: aqui com o binário conhecido
“lealdade e fidelidade”.
6. Transposição cristã
Podemos fixar-nos na confissão: “ele nos fez”. Paulo alarga o horizonte
para abarcar todos os homens sem distinção (discurso no Areópago: At
17,26). Em sentido restrito aplicaremos a frase à Igreja como povo de Deus
e rebanho de Jesus Cristo pastor. No discurso de Jo 10 insiste Jesus nesse
aspecto de propriedade e interesse:
12
O assalariado, como não é pastor, nem as ovelhas são suas ...
14
Eu sou o bom pastor, conheço as minhas, e elas conhecem-me a mim.
16
Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também a
essas tenho que conduzi-las: escutarão minha voz, e far-se-á um
só rebanho com um só pastor.
Jesus declara enfaticamente que só Deus é bom (Mt 19,17 par).
Salmo 101
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Cantarei a bondade e a justiça:
para ti é minha música, Senhor.
Explicarei o caminho perfeito:
quando virás a mim?
Quero proceder com reta consciência
dentro de minha casa.
Não dedicarei minha atenção
a assuntos indignos;
detesto as ações criminosas,
não me contagiarão.
Longe de mim uma consciência torcida,
não quero trato com a maldade.
Ao que em segredo difama seu próximo
farei calar.
Olhos altivos, mentes ambiciosas,
não os suportarei.
Ponho os olhos1 em gente de confiança
para que habitem comigo.
O que segue um caminho perfeito
estará a meu serviço.
Não habitará dentro de minha casa
quem cometer fraudes.
O que diz mentiras
não durará em minha presença.
Cada manhã farei calar2
os malvados do país,
para excluir da cidade de Deus
todos os malfeitores.
1escolho
2 reprimirei
Estudo global
1241
2. Bibliografia
K. Galling, Der Beichtspiegel. Eine gattungsgeschichtliche Studie, ZA W
47 (1929) 125-130.
J.B .B a u er,Incedaminviaimmaculata(Ps 100 / 101 ), V D 3 0 (1 9 52 )2 19 224.
O.
Kaiser, Erwägungen zu Ps 101, ZA W 74 (1962) 195-205.
E.
Beaucamp, L ’espoir d ’une ère de justice et de paix (Ps 101), BVC 73
(1967) 32-42.
H.
A. Kenik, Code o f conduct for a king: Ps 101, JBL 95 (1976) 331-403
J. E. Weir, A study o f wisdom motifs in Ps 101, EvQ 53 (1981) 51-59.
J. S. Kselman, Ps 101: royal confession and divine oracle, JSOT 33 (1985)
45-62.
Th Booij, Ps 101,2 When wilt Thou come to me?, VT 38 (1988) 458-462.
3. Análise filológica
1. Qualidades objetivas (Mq 3,8) Hitz.
2. ’skylh: rhapsodize componho um poema A. R. Johnson Allen (cf.
título do SI 88); dedicar a atenção Hitz Duhm Gun.
mty: corrigem para ’mt Gun Kraus; conjunção rei quando (drk) vier a
mim, apresentar-me um assunto (Ex 18,22) Hitz que corrige byty para bytk.
3. ‘sh: inf constr GK 75 n.
5a. mlshny: para a vogal final GK 90 m.
5b. ’wkl: cum hoc no edebam (de ’kl em vez deykl) Mow; não o agüento;
não conviverei com ele perpetuamente Targ; para a forma Joüon 75 i.
4. Estudo global
a) Gênero, situação e colocação
—
O salmo começa como hino ou canto com acompanhamento dedicado
ao Senhor. De repente, no segundo versículo, o orante começa a enumerar
seus propósitos, em forma positiva e negativa, e com suas conseqüências
para outras pessoas. Quem fala e o que pretende? A série de propósitos tem
sentido nos lábios de rei ou de governante superior. O que diz são propósitos
ou promessas de governo. Por essa série temática definiu-se esse salmo
como “espelho de príncipes”, com a particularidade de que não é um
moralista que a propõe e inculca ao monarca presente ou futuro, mas
propõe-na o governante responsável. Poder-se-ia pensar que um mestre
ensina ao herdeiro designado seus deveres fazendo-os aprender e recitar.
1242
Salmo 101
O curioso é que uma declaração de bons propósitos se qualifique de canto
em honra do Senhor. Ora, o paradoxo é parte do sentido: um governante que
se compromete a governar com justiça canta em honra do Senhor.
—
Há outro pormenor estranho, e é essa pergunta do v. 2: quando virás
a mim? Como resposta ao canto e ao propósito, o Senhor acorrerá a um
encontro combinado ou a um lugar. Qual? Creio que o salmo está estilizado
como se o pronunciasse Davi antes de transladar a arca para sua casa.
Recordemos alguns versículos do episódio, as duas etapas do translado:
2Sm 6,9 Naquele dia Davi teve medo do Senhor e disse: Como virá à
minha casa a arca do Senhor?
12
Então foi Davi e levou a arca de Deus da casa de Obededon até a cidade
de Davi, fazendo festa.
Sobre a justiça no governo não temos declaração prévia de Davi, mas
um testamento explícito (ISm 23,1-7).
O que alguns chamam de espelho de príncipes, outros chamam de
discurso da coroa; outro inclusive assemelha-o ao juramento da constitui­
ção (teocrática) por parte do rei. E aduzem a visão, retrospectiva e crítica,
da monarquia que se acha codificada em Dt 17,18-19:
Quando subir ao trono, far-se-á escrever num livro uma cópia desta lei,
segundo original de sacerdotes levitas. Levá-la-á sempre consigo e lê-la-á
todos os dias de sua vida, para que aprenda a respeitar o Senhor seu Deus,
pondo em obra as palavras desta lei.
Podemos imaginar que, ao aceder ao trono, o rei em cerimônia litúrgica
pronuncia sua promessa de governo justo (SI 101), e alguém ou a comunidade
responde com a súplica pelo rei (SI 72). Imaginar assim ajuda-nos a compreen­
der o sentido, porém não prova que assim tenha sido na realidade.
O que não é imaginação, e sim dado significativo do texto, é que se canta
o discurso programático com acompanhamento e dedica-se ao Senhor. Nesse
caso distingue-se formalmente de outras declarações de governo que lemos
em códigos orientais. Por exemplo, no prólogo ao código legal de Lippit-Istar:
“Quando (nomes e atributos de deuses) chamaram Lippit-Istar para
governar o país e estabelecer nele ajustiça, desterrar reclamações e rechaçar
o inimigo pelas armas ...” (ANET 159B).
No epílogo enumera suas realizações em prol da justiça. Algo seme­
lhante lemos no prólogo do código de Hammurabi:
“Então Anu e Enlil nomearam-me a mim, Hammurabi - príncipe devoto
e religioso
para promover o bem-estar do povo, para fazer prevalecer a
justiça no país, para destruir o malvado e o perverso, para que o forte não
oprimisse o fraco, para levantar-me como o sol sobre os mortais e iluminar
o país” (ANET 164).
Estudo global
1243
No extenso epílogo reconta suas realizações, que soam como eco amplifica­
do do prólogo.
—
Resta examinar a posição do salmo. Um progresso temático parece
uni-lo aos anteriores. O SI 99 anunciava a dimensão ética da santidade
divina: “Reinas com poder e amas a justiça, estabeleceste a retidão, tu
administras a justiça e o direito”. No SI 100 responde o mundo todo e a
comunidade exaltando a lealdade e fidelidade de Deus. No SI 101 respon­
de o suposto Davi com um programa de governo baseado na justiça e
misericórdia. O soberano imita em sua função a Deus e age como seu
mediador.
b) Composição e desenvolvimento
Por uma razão formal, por mudança patente de ritmo, e pelo conteúdo,
é preciso pôr à parte os versículos l-2a como introdução. Anunciando a
execução musical e o tema geral, os dois versículos mostram a relação
pessoal entre o Senhor, que recebe a homenagem, e o rei, que espera a vinda
de seu Senhor: Deus entra no poema em segunda pessoa. Como tomará a
iniciativa acorrendo a uma invocação? Parece ressoar o tema da vinda dos
31 96 e 98, centrada na casa ou palácio do monarca.
O que segue é uma enumeração, forma que não se presta a refinamen­
tos de composição. Os poucos pormenores formais que se podem observar
adquirem particular importância no desenvolvimento do tema. Descontan­
do os três coortativos de l-2a, restam três verbos positivos na primeira
pessoa, mais um gerúndio (2b.5a.8ab), e outras três negativos (3a.4b.5b),
aos quais se pode acrescentar o sintagma sem verbo explícito de 6a. Como
correlativos do sujeito que fala figuram outras personagens em três
binários marcados (3b.4a.6ab.7ab). Mais curiosa é a alternância de positivo
e negativo fazer / não fazer:
2b
3b
4
5
6
caminharei / 3a não me ocuparei
detesto / não me contagiarão
se afastará / não atendo
farei calar / não suporto
escolho, servirá / 7 não habitará, não durará
O ideal ético israelita implica fazer o bem e rejeitar o mal, coisa que o
salmo expressa com a alternância de fazer e evitar.
O ritmo é bastante regular, mais do comum no saltério. Suspeitamos
que ajudava a memória e prestava-se ao tom firme de declaração.
Entre as repetições de palavras na série destaca-se uma seqüência
tríplice de advérbios em duas fases:
Salmo 101
1244
2a
2b
3a
bdrk
bqrb
Ingd
tmym
byty
‘y n y
6b
7a
7b
Estes pormenores formais acusam trabalho minucioso mais que inspi­
ração poética.
c) O tema da justiça
Dada a importância do tema, examinamo-lo mais devagar, inserindo-o
em amplo contexto de pensamento bíblico. A justiça do salmo diz respeito a
dois grupos: os súditos governados e os colaboradores no governo; os
segundos têm que observar as exigências positivas e as negativas.
— Os súditos podem estar representados em enunciados genéricos:
soberbos, ambiciosos, malvados, mafeitores. Só figuram os malvados: onde fi­
cam os honrados? No salmo 72 eram sobretudo os honrados, os desvalidos, as
vítimas inocentes o objeto do bom governo. Aqui muda o enfoque, porque é
preciso fazer frente aos opressores para proteger os oprimidos. A coisa é óbvia
e não é difícil documentá-la com textos bíblicos, como o citado SI 72 ou Is 11.
— Os colaboradores são todos os demais no salmo. Essa é novidade que
reclama nossa atenção. A monarquia israelita era absolutista à medida que
o rei concentrava todo o poder executivo e judicial, e era autoridade supre­
ma inapelável; era constitucional a medida que o rei estava sujeito ao legis­
lador supremo, que era o Senhor (como frisa a citada passagem de Dt 17).
De mais a mais, o monarca israelita tinha que tolerar e aceitar essa espécie
de “oposição” declarada que era a palavra profética. Mas, mesmo supondo que
o rei se oponha à erosão e corrupção do poder, precisa de colaboradores de con­
fiança. Grande parte do governo justo consiste em escolher e rejeitar cola­
boradores. Se bem que a idéia nos pareça óbvia, é interessante constatar
que o salmo lhe dá respaldo litúrgico e teológico. Algo semelhante lemos em
textos sapienciais:
Pr 20, 26
25,5
29,2
Eclo 10,1
2
Rei prudente expulsa os malvados.
Afasta o malvado do rei,
e seu trono firmar-se-á na justiça
O governante que faz caso de embustes
terá criminosos por ministros.
Governante prudente educa seu povo,
o governo inteligente é ordenado.
A tal governante, tais ministros;
a tal alcaide, tais súditos.
Os livros bíblicos não vêem a monarquia absoluta como intrinseca­
mente perversa, mas consideram-na em princípio perigosa (lSm 8) e
declaram seu fracasso no balanço final:
Estudo global
Eclo 48,16
49,4
1245
Alguns reis agiram corretamente,
outros cometeram males monstruosos ...
Exceto Davi, Ezequias e Josias,
todos se perverteram,
abandonaram a lei do Altíssimo
os reis de Judá até o final.
Por isso o Deuteronômio projeta em seu programa retrospectivo o que
devia ter sido e não foi. Numa frase um profeta sintetiza a esperança
invencível: “Olhai, um rei reinará com justiça e seus chefes governarão
segundo o direito” (Is 32,1).
— O tema geral da justiça no governo está presente em todos os corpos
bíblicos: o rei (SI 45 e 72), os ministros (Is 1,21-26), os governantes (Sb 1 e 6).
d) Justiça e misericórdia
São as duas primeiras palavras do salmo, tema do canto, programa de
governo. Lealdade e fidelidade, justiça e direito são binários freqüentes: o
binário presente é cruzamento menos freqüente, ainda que não inaudito.
Mq 6,8 oferece uma alternativa ao culto com sacrifícios: “que defendas o
direito e ames a lealdade / misericórdia, e que sejas humilde com teu Deus”.
— Primeira pergunta: são qualidades de Deus ou do homem? O começo
hímnico leva-nos a pensar que são de Deus, e o resto do salmo assegura-nos
que são do homem. Não se exclui que o autor pense nas qualidades de Deus
como modelo da conduta humana. Numa prece de Asur-nasir-apli I (10501032) diz-se da deusa Istar: “à deusa misericordiosa que ama a justiça”. A
conduta do rei é imitação e mediação da ação divina.
— Segunda pergunta: qual é seu conteúdo e relação mútua? Não
formam uma simples hendíade, como a citada “justiça e direito”, mas são
complementares. Justiça temperada pela misericórdia: tal é “o caminho
perfeito”, a conduta cabal de governante. Ora, no decorrer do salmo não
encontramos propósitos que pertençam especificamente à misericórdia;
essa se deve deduzir ou pressupor como finalidade do bom governo. A
exclusão implacável de governos corrompidos é justiça e misericórdia com
os súditos.
Se não podemos comentar as qualidades programáticas com textos do
salmo, temos que nos valer de outros textos. Citei Mq 6,8. Na reconciliação
com a esposa infiel (Os 2,21s), o marido oferece como dote novo “justiça e
direito”, “afeto e carinho”, “fidelidade”: o afetivo complementa o jurídico
\Profetas, II, 879). O episódio de Davi com a mulher de Técua (2Sm 14) é
magnífico exemplo de tensão entre a exigência de justiça legal e a necessi­
dade de piedade paterna; é a autêntica “sensatez”, que faz de Davi “um
enviado de Deus”. Fazer justiça sem piedade, executando o fratricida, seria
1246
Salmo 101
brutal e injusto: summum ius summa iniuria. Cito de memória Dostoyewski:
“Não conhecem a piedade, só conhecem a justiça; por isso são injustos”. O
livro da Sabedoria, já em contato com a cultura grega, diz em seu capítulo
de teodicéia:
12, 18
19
Mas tu, dono de tua força,
julgas com moderação
(en epieikeiai)
e nos governas com muita indulgência.
Agindo assim ensinaste a teu povo
que o homem justo deve ser humano.
(hoti dei ton dikaion einai philanthropon).
Por essa ponte passamos à cultura greco-latina: a justiça é para o bem
do homem, não é valor abstrato a que se possa sacrificar o homem. Se a
justiça não estiver animada pelo amor ao homem (philanthropia), pervertese e torna-se injusta. Por isso juizes e governantes devem, junto com a
justiça (dykaiosyne), ter moderação (epieikeia). Os latinos traduziram
iustitia et aequitas.
O binário do salmo e de outros textos bíblicos não expõem a esse res­
peito doutrina elaborada; mas penso que o programa do salmo coloca-se na
linha desse pensamento.
— Mas são essas qualidades tema do canto? Sim; pois também cantam
outros a liberdade ou a alegria. O salmo ensina-nos que semelhante música
agrada a Deus.
5. Exegese
la . Em Pr 20,28, segundo a versão grega apoiada em 16,12, sinteti­
zam-se as virtudes: “Misericórdia e lealdade guardam o rei, a justiça
assegura seu trono”.
lb.O suposto Davi dedica sua música ao Senhor: no contexto imediato
é o canto que vai entoar. No contexto mais amplo pode aludir à tradição de
um Davi músico e organizador do canto no templo (lCr 15-16; 25), Quando
jovem, Davi, chamado à corte, tocava harpa para acalmar os ataques de que
sofria o rei Saul (ISm 16,14-23); sendo rei, dedica sua música ao Senhor.
2a. O caminho / conduta perfeito de Deus menciona-se na parte central
do SI 18 (= 2Sm 22), posto nos lábios de Davi; dele se passa à conduta do rei:
31 Perfeito é o caminho de Deus.
33 Deus torna perfeito meu caminho.
Em Pr 11,20, a relação muda: “Ao Senhor ... agrada uma conduta
irrepreensível / os perfeitos em seu caminho”.
Exegese
1247
O verbo hskyl parece termo sapiencial que se abriu caminho no
saltério: o caminho / conduta não se apresenta aqui como revelado, traçado
concretamente por Deus, mas como tema de reflexão humana.
2b. Mais sugestiva ainda é a inversão de papéis neste hemistíquio,
pois o normal é que o homem vá a Deus, acorra ao templo, apresente-se
diante dele, e não o contrário, Deus ao homem. Na ficção de um Davi orante
do salmo, o dado alude a 2Sm 6.
2b. Com reta consciência. Em Gn 20,5, o rei de Gerar desculpa-se de
sua conduta com a mesma frase: “eu o fiz de boa fé e com mãos limpas”; o
SI 78,72 di-lo de Davi, pastor de seu povo; em lRs 9,4 diz-se de Davi como
exemplo para Salomão. Ou seja que “o caminho perfeito” procede de
“coração perfeito”, sugere a repetição de tmm.
Dentro de minha casa. Dado o posto central que o termo Casa ocupa na
teologia davídica, é possível que byt conserve aqui sua bivalência: casa =
palácio e Casa = dinastia. No primeiro plano está a referência espacial, que
é um eixo semântico do salmo: dentro de minha casa, diante de mim, cidade
do Senhor. E como uma limpeza geral, uma grande purificação, começando
pelo palácio real e continuando pela capital do reino. Josias empreendeu
uma purificação cultual começando pelo templo e continuando pelos san­
tuários do reino; o suposto Davi do salmo empreende uma purificação ética
do governo, como preparação para a vinda do Senhor.
3a.
Assuntos indignos. O adjetivo bly‘l (etimologicamente, “sem pro­
veito”) usa-se com preferência em casos de delitos graves: idolatria (Dt
13,14), violação (Jz 19,22), falso testemunho em julgamento capital (lRs
21,13), etc. O rei não aceitará que lhe façam propostas criminosas. Recordese que Is 1,23 chama os governantes “sócios de ladrões”.
3b. Detesto. Veja-se Pr 16,12: “O rei detesta agir mal porque seu trono
se firma com ajustiça”. Não me contaminarão: com o complemento “as mãos
palmas” (Dt 13,18), “nada destinado ao extermínio”; Jó 31,7 no juramento
de inocência.
4.
A raiz ‘qsh é típica de textos sapienciais (doze casos de dezessete)
lê-se o adjetivo também no SI 18,27. Torcido de coração: com inversão
sintática, em Pr 11,20: “O Senhor detesta a mente tortuosa”; 17,20: “cora­
ção tortuoso não fará fortuna”.
5a. O verbo hlshyn só se lê aqui e em Pr 30,10 (em castelhano antigo
existia o derivado “malsín”). O SI 15,3 utiliza o sinônimo rgl: compare-se Pr
30,10 com 2Sm 19,28.
5b. Olhos altivos expressam soberba. Com leves variações encontra-se
a expressão no grande oráculo de Isaías sobre o abatimento da soberba
humana (Is 2,11.17; também 5,15). Expressões equivalentes sobre olhos e
coração no SI 133,1. Largueza de coração significa aqui cobiça. Lê-se com­
1248
Salmo 101
binação semelhante em Pr 21,4: “olhos altivos, mente ambiciosa”. Esse
versículo é muito importante no salmo porque delata a raiz do mau governo:
soberba, ambição, cobiça. O salmo não menciona explicitamente o suborno,
como fazem, por exemplo, Is 1,21-26 e SI 15,5.
6. Nesse versículo concentra-se a parte positiva, a escolha de colabo­
radores. A escolha de conselheiros dedica Ben Sira soborosa instrução (Eclo
37,7-15), mas fica na esfera privada, não pensa em governantes. Qualidade
muito estimada é a fidelidade da pessoa com a qual se pode contar, em quem
se pode confiar. Louva-se em Moisés (Nm 12,7), em Samuel (ISm 3,20),
num sacerdote (ISm 2,35), em testemunhas (Is 8,2), num mensageiro ou
portador de recados (Pr 25,13).
7. Fraude e engano contam-se entre os pecados sociais mais citados.
Bom exemplo é a primeira parte do SI 52; vejam-se também SI 50,19s e a
liturgia de entrada 15,3.
8. A manhã é hora de pronunciar sentença, com indica Jr 21,12;
recorde-se a tática de Absalão (2Sm 15,2). Jó descreve a aurora “sacudindo
a terra dos malvados” (Jó 38,13). hkryt pode significar expulsar, desterrar,
e também extirpar. Para maldades e eqüivalêntes, Dt prefere a expressão
b‘r mn / mqrb (salvo 26,13s). Quando se trata de pessoas, Dt e Lv costumam
usar hkryt, como o presente salmo. O rei sonha com uma cidade ideal em
que não haja malvados, uma vez que é a Cidade do Senhor. O orante do SI
104 estende o desejo a toda a terra, como criação de Deus.
6. Transposição cristã
Por sua visão límpida e por sua concentração em pontos éticos funda­
mentais, o salmo conserva hoje sua validez, também em sociedades não
teocráticas. O suposto rei de Israel quer oferecer ao Senhor uma canção
comprometida e uma consciência limpa: sabe que as duas coisas agradam
a Deus. Se o Senhor não quer ver impureza física no acampamento israelita
(Dt 23,13-15), quanto menos quererá ver maldade ética em sua cidade. O
AT dá à exigência ética uma nova dimensão religiosa.
Vale o salmo também para a Igreja? A chave nô-la pode dar Santo
Agostinho, que intitula uma de suas obras principais A Cidade de Deus.
Dir-se-ia que, por sua consagração a Deus e pela maneira mais piramidal
ou hierárquica de exercer o poder, o que têm autoridade deveriam fazer seu
esse salmo. O veneno da ambição, cobiça e soberba não estão de todo
extirpados; o método do engano e da difamação de rivais continuam ten­
tando como recursos fáceis. Os esquemas básicos de mau governo podem
adotar formas múltiplas. Se os que exercem poder na Igreja muitas vezes
Transposição cristã
1249
presidem ou dirigem o culto, recordem que exame de consciência e propósito
articulado também são música para o Senhor.
Em sua obra Política de Deus e governo de Cristo (II) exclama Quevedo:
“O governo de Cristo! Ó política de Deus! Toda cheia de justiça clemente,
e de clemência justiceira”.
Salmo 102
1. Texto
2
3
4
5
6
7
8
Senhor, escuta minha súplica,
que meu grito de socorro chegue a ti.
Não me escondas o rosto
em meu aperto.
Presta-me ouvidos quando te chamo,
responde-me depressa.
Pois meus dias se desvanecem como fumaça
e meus ossos queimam como brasas.
Meu coração ferido seca como erva,
pois eu me esqueço de comer meu pão1.
Ao som de meus queixumes
cola-me a pele nos ossos.
Estou como coruja no deserto,
estou como mocho entre ruínas.
Estou sem sono e me sento2
como pássaro sem parelha no telhado.
9
Todo o dia3 me afrontam meus inimigos,
furiosos contra mim me maldizem.
10 Em vez de pão como cinza.
misturo minha bebida com pranto;
11 por tua cólera e indignação,
porque me ergueste ao ar e me arrojaste4
12 Meus dias são uma sombra que se alarga,
e vou secando como erva.
1de tomar alimento
2gemendo
3continuamente
4atiraste
Salmo 102
13 Tu, porém, Senhor, reinas sempre,
teu nome passa de uma geração à outra.
14 Tu te levantarás e te compadecerás de Sião,
pois é hora de piedade, chegou o prazo.
15 Teus servos amam suas pedras,
dói-lhes até sua poeira.
16 Os pagãos temerão teu nome, Senhor;
todos os reis do mundo, tua glória.
17 Quando o Senhor reconstruir Sião
e aparecer em sua glória,
18 e voltar-se para as súplicas dos indefesos
e não desprezar sua súplica,
19 fique isso escrito para a geração futura,
e o povo recriado5 louvará ao Senhor:
20 Pois o Senhor assomou de seu excelso santuário,
do céu fitou a terra,
21 para escutar os lamentos dos cativos
e livrar os condenados à morte.
22 Assim se anunciará em Sião a fama do Senhor
e seu louvor6em Jerusalém,
23 quando se reunirem unânimes os povos
e os reinos para servir7ao Senhor.
24 Ele esgotou minhas forças pelo caminho
e encurtou os meus dias.
25 Eu disse: Deus meu,
não me arrebates na metade de meus dias,
teus anos se medem por gerações.
26 No princípio alicerçastes a terra,
o céu é obra de tuas mãos:
27 eles perecerão, tu permaneces,
gastar-se-ão como a roupa,
serão como vestido que se muda.
28 Tu, porém, és aquele
cujos anos não se acabam.
29 Os filhos de teus servos e sua linhagem
habitarão estavelmente em tua presença.
5que será criado
6seu elogio
7dar culto
1251
1252
Salmo 102
2. Bibliografia
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S.
Kistemaker, The Psalm citations in the epistle to the Hebrews,
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A. Urban, Verrinnendes Leben und ausgeschüttete Klage. Meditation
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D.
Fehling, Noch eimal der Passer solitarius (Ps 101,8), Philologus 13
(1969) 217-224.
N. Airoldi, Note critiche ai Salmi, Aug 10 (1970) 174-180.
F.
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J. C. McCullough, The OT quotations in Hebrews, NTS 26 (1980) 367-373.
R. Brandscheidt, Ps 102. Literarische und theologische Aussage, TTZ 96
(1987) 51-75.
3. Análise filológica
3. bywm ’qr’: constr com relativ assindética Joüon 129 q.
4. sicut cremium = lenha Vg, frigideira / assador Aug Cas Próspero,
quasi frixa Jeron, Glut Baeth, Brand Kau, lar Qim, like embers Allen.
5. hwkh: hof de nkh, para o w GK 8 c.
7. mdbr hrbwt: pode-se atribuir-lhe função adjetiva.
9.
mhwlly. qui laudabant me (de hll), exsultantes Jeron, fingern louvar
me Phil, os que me tomam por louco BHS, furiosos contra mim Del.
nshb‘ b-: tomam meu nome para imprecar desgraças (cf. Is 65,15; Jr
29,22) Hitz.
12. alarga-se aproximando do fim Hitz Gun.
13. zkrk: lê trono (segundo Lm 5,19) Ibn Ezra; yshb estar sentado no
trono, reinar Ges Thes 634b.
14. Ihnnh: inf + suf fem GK 61c.
ky b’ mw‘d: alguns omitem-no como glosa; ky repetido por ênfase.
15. ‘pr: escombros Ne 3,34; 4,4.
ky: temporal, segundo outros causal; seguem verbos em futuro per­
feito.
17. ky: temporal causal ou completiva.
18. hYr de ‘rr: subst coletivo.
22. Ispr: final ou consecutiva cf. Joüon 124 s.
24. respondit ei in via virtutis suae, paucitatem dierum meorum
nuntia mihi Vg.
25. ’mr: lê imperativo Gr.
28.
w’ th hw’: sy de autos ei Gr, tu autem ipse es Jeron Del Hitz Gun cf
GK 135 a.
Estudo global
1253
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O salmo 102 é uma súplica pela capital, Sião ou Jerusalém, em ruínas,
e supõe a época do desterro ou um tempo imediatamente depois. Do gênero
recolhe a descrição da desgraça e diversos motivos para mover Deus a
intervir; mas menciona somente os inimigos pessoais, não os da nação,
como fazem os SI 44 e 74. A esperança de ser escutado atravessa o salmo
sem ser enunciada formalmente; a promessa de ação de graças ou sua
formulação antecipada estão ausentes ou apenas aludidas. A desgraça da
cidade funde-se com a situação pessoal do orante e provoca uma meditação
sobre a eternidade ou perduração de Deus.
Esses dado acumulados dizem-nos que o gênero aqui é molde usado
para ser quebrado, ou um recipiente de que transborda o rico conteúdo. Do
coteúdo faz parte a dualidade orante / cidade. Até o v. 13, a desgraça pessoal
ocupa toda a cena, depois duma instrodução bastante convencional. Quan­
do o orante volta a interpelar a Deus com seus imperativos (14), entra em
campo a visão da cidade destruída.
Eu / Sião: Qual é o verdadeiro ponto de partida da súplica? Dão-se duas
alternativas: 1) a desgraça pessoal, que o torna sensível à desgraça nacio­
nal; 2) a desgraça nacional, que torna agudo o sofrimento pessoal. Ou então
o decisivo é a tensão entre os dois sentimentos. Sigamos a ordem do salmo.
Começa uma súplica individual, comparável ao SI 77, só que o orante
transcende sua experiência pessoal em duas dimensões: a comunitária,
porque é membro do povo e sente como própria a dor da capital, pede por
ela e por seus irmãos; a temporal, porque sua vida curta é um segmento na
série de gerações que continuam, e quer deixar um legado escrito para os
vindouros, como testemunho do Deus libertador.
As duas dimensões vêem-se assumidas na universalidade e perduração
de Deus, que abarca outros povos e nações, que desborda todas as gerações.
O orante supera de algum modo sua limitação. O que não impede que
suplique com insistência: para si, parar que não malogre sua vida; pela
cidade, pois já é hora de restaurá-la. Se isso constitui a originalidade do
salmo, convém desenvolvê-lo com mais detalhe.
b) Os eixos semânticos
—
O primeiro e mais conspícuo é o temporal, que podemos definir
como tempo e eternidade ou, mais exatamente, caducidade e perduração.
A dimensão temporal inferior do salmo é a vida humana do orante. Se a
1254
Salmo 102
vida humana dura setenta anos, e em casos de saúde robusta oitenta (SI
90), a vida do salmista malogra na metade. Como a de Ezequias, segundo
Is 38:
10
12
Eu pensei: Com a vida pelo meio tenho que marchar
para as portas do Abismo;
privam-me do resto de meus anos.
Levantam e enrolam minha vida,
como tenda de pastores
Como um tecedor eu tecia minha vida,
e me cortam a trama.
O sentimento da brevidade natural da vida humana torna-se agudo
perante a ameaça próxima de morte prematura. Dizem-no os versículos 2425. De mais a mais, essa vida breve, abreviada, discorre exposta à hostili­
dade dos inimigos (9) e sob a cólera de Deus (11).
De modo paralelo, a vida da cidade parece malograda: reduzida a
escombros, é como se estivesse morta. Recordemos como se burlam os rivais
do reconstrutor Neemias:
3.34 Crêem que vão terminar num dia e que vão ressuscitar de montões
de pedras algumas pedras calcinadas?
— Ressuscitar é “dar a vida” (piei de hyh) ao que está morto.
Como no SI 90, o orante confronta sua breve vida com a duração de
Deus, que supera a vida de um indivíduo, a vida de gerações, a duração do
cosmo (26-27); é duração idêntica a si e imutável. Acolhido na transcendência
perdurável de Deus, poderá o indivíduo superar a caducidade? No contexto
mental do AT, a vida individual fica superada pela vinda das gerações
(25.29); a cidade será reconstruída e chegará a ser centro de louvor uni­
versal.
— O eixo indivíduo / comunidade. Ao começar o salmo, o orante parece
encerrado em sua dor. Sua consciência é ocupada pelos ossos, pela pele, pelo
coração (4-6); olha em torno, e sente-se solitário num deserto desolado (7).
Se aparece alguém em seu estreito horizonte, são inimigos que o insultam
e maldizem (9).
Por um ponto rompe o cerco e faz-se consciente da dor da cidade amada:
sua compaixão torna-se dor física, compartilhada com outros que também
a amam (14-15). Todo um povo participa da dor e é penhor de esperança (1819). Não só a comundade de vizinhos e cidadãos, mas também outros povos,
a comunidade internacional. Começarão com um sentimento de respeito
sagradao (16); mais tarde acorrerão para participar no culto (23).
Os dois eixos cruzam-se nos versículos 17-19: pela presença de Sião, de
grupo que sofre e ora, e pela esperança de futuro feliz.
Exegese
1255
—
Alguns comentadores perguntam-se se a tensão indivíduo / cidade
é original ou fruto da união de duas peças autônomas, ou fruto de releitura
comunitária de uma súplica individual. As razões a favor de uma explicação
ou de outra não estão tanto no texto como no modelo que se adote de
antemão para explicá-lo. Na época em que se cristaliza o salmo, já eram
tradicionais as súplicas individuais e as coletivas; ambas podiam fundir-se
numa criação original. Seja qual for a gênese do poema, tentemos explicar
o texto que se nos apresenta: um poema insigne.
c) Desenvolvimento
Em comparação com outros, este salmo distingue-se pela liberdade do
desenvolvimento: o lirismo impera sobre a arquitetura. Um dado é particu­
larmente sugestivo: quando a súplica parece ter alcançado seu ponto de
repouso, numa visão gloriosa que constrasta com a ruína presente, o orante
retorna ao tema inicial de seus dias (24 e 12) em contraste com a duração
do Senhor (27s e 13). E como se o orante ou poeta se tivesse esquecido de algo
e o acrescentasse no final, em vez de inseri-lo em seu lugar lógico. Somos
autorizados a emendar a disposição das peças no poema?
Os dois eixos semânticos dão travação ao poema, mas não subministra
esquema rigoroso. Ainda que se possam registrar muitas repetições de
palavras ou de sinônimos, não chegam a delinear uma figura. Antes é
preciso falar de ondas sucessivas. Por exemplo, o movimento de 14-16 —
ação de Yhwh-atitude do povo-reação de estrangeiros, repete-se aproxima­
damente, com variação de sinônimos, em 17-23.
No v. 13 soa uma forte adversativa “Tu, porém”, que em outros textos
assinala começo de secção. Também aqui? Com o mesmo direito pode-se dizer
que encerra por contraste o precedente, o mesmo que ocorre no v. 28 com
respeito ao que precede. Deste e de outros dados tiramos a conclusão de que,
para saborear o salmo, o melhor não é tomar distâncias, mas deixar-se levar.
Chama a atenção a abundância de comparações, quase todas concen­
tradas numa zona (4b.5a.7ab.8.10.12ab.27a).
5. Exegese
2-3. Os três versículos da introdução, embora soem como convencio­
nais, pronunciam-se sinceramente, com uma nota de urgência. Comparemse com 69,17s e 143,7.
4-6. A primeira impressão que sente o orante é física, de esgotamento
que vai penetrando até o coração e os ossos. São três versículos originais e
expressivos.
1256
Salmo 102
4. Em Seguida anuncia-se o tema do tempo: “meus dias” ou meus anos.
Vemos uma fumaça, adivinhamos um fogo. O orante sente o fogo escondido
dentro: seus ossos são braseiro que se vai queimando e reduzindo a fumaça os
dias da vida. Como se cada dia fosse um pouco de combustível com que ali­
mentar o horrível fogo interior; como se o homem levasse dentro a força que o con­
some. Dos dias dizia o SI 90,10 que “passam depressa”; a comparação da fumaça
soa no SI 37,20; SI 69,4 fala do ardor na garganta; Ez 24,10, do fogo da cozinha
que queimam alguns ossos. A palavra temática “dias” retoma no v. 12 e 24.
Num dos sonetos de Quevedo lemos estes versos:
“Fue sueno ayer; manana será tierra!;
poco antes nada y poco después humo!”
5. Nós usamos a metáfora, já desativada, da “aridez espiritual”; o
salmo usa a imagem em sentido físico. O coração pode representar aqui toda
a vida interior, que vai secando por falta de alimento. O tema da comida
retorna no v. 10; a imagem da erva no v. 12; mais desenvolvida no SI 90.
6. Traduzido literalmente, o versículo soa de maneira estranha: “pela
voz de meus gemidos se me colam os ossos na carne”. Para que entra aqui a
voz ou o ruído? Alguns corrigem o texto para obviar a dificuldade. Talvez mqwl
tenha debilitado seu significado acústico e equivalha simplesmente “por
causa de”, como ocorre com mpny na ordem visual, mqwl e mpny ocupam o
primeiro lugar dos versículos 6 e 11; estão próximos como sinônimos em SI 55,4.
Nós costumamos dizer que a pele cola nos ossos; o hebraico descreve a mesma
coisa com menor precisão anatômica. Jó oferece-nos a seguinte descrição:
33,20
21
até detestar com toda a alma a comida
e sua garganta o manjar favorito;
consome-se-lhe a carne até não se ver,
e os ossos, que não se viam, se descobrem.
7-9. Solidão e hostilidade sobrepõem-se nesses três versículos. A
solidão sugere comparações originais, a hostilidade cai no convencional.
7. Trata-se de animais impuros tomados talvez das listas legais (Lv
ll,17s; Dt 14,16s). O grego e a Vulgata traduziram “pelicano”, que é animal
aquático. Is 13,20-22 e o paralelo 34,13-15 compraz-se em descrever uma
espécie de ruído de animais lúgubres e repelentes: “dela se apossam a gralha
e o mocho, a coruja e o corvo a habitam”. No salmo, o deserto pode sugerir o
desterro, enquanto as ruínas sugerem e preparam a visão de Jerusalém
reduzida a escombros.
8. Na solidão humana, a companhia são animais noturnos de mau
agouro. Eles não faltam à combinação e encontro; como diz Is 34,14s: “o
cabrito chama sua companheira ... não falta o macho à fêmea”. Sobre a
solidão, veja-se especialmente Jó 19.
Exegese
1257
9. A presença hostil parece contradizer a solidão precedente. É a única
companhia ou, melhor, presença, e pode sugerir a hostilidade contra Sião
e os judeus. Se lermos mhwlly como forma de hll = ser demente, significaria
que me declaram ou chamam demente. O juramento contra ele poderiam
ser conjuros e feitiçarias, tão comuns na literatura da Mesopotãmia, onde
dão origem a preces e ritos especiais para se opor a eles.
10. Cinza e pranto formam parte do ritual do luto por morte ou uma
desgraça. No ritual fúnebre costumava-se oferecer um banquete como
comida e bebida de consolo. No luto do orante não há mais comida senão
puros sinais e gestos do luto (veja-se SI 42,3).
11. Em seu sofrimento extremo, em sua vida malograda, o orante
reconhece a cólera de Deus. Não a impotência diante de outros poderes, não
a despreocupação como se não lhe importasse. Porque leva a sério o homem,
encoleriza-se Deus. E não é cólera irracional ou incompreensível, mas
provocada pela conduta do homem. As Lamentações, que formam parte do
mesmo contexto espiritual, deixam-no bem claro: com incomparável vigor
descrevem a ira de Deus, que parece se enfurecer; com não menor lucidez
confessam a culpa. Também o orante do SI 90 descobre a cólera de Deus:
“Como nos consumiu tua cólera, como nos transtornou tua indignação!” O
orante ainda se acha no horizonte pessoal. Também diz em primeira
pessoa, por ora, a tremenda frase do segundo hemistíquio, imitada por Jó
30,22: “Levantas-me no ar, moves e me sacodes no furacão”.
Imagem de vida humana malograda, do destino dos judeus desterra­
dos (da humanidade mortal?). E o homem que se alça com soberba, ou é
Deus que o levanta para arrojá-lo de maior altura?
12-13. Há razões fortes para tomar juntos estes dois versículos como
contraste levado ao extremo. Primeiro, a razão formal patente: w’ny / w’th
= e eu / mas tu, dias / gerações. Segundo, o precedente do SI 90, que esta­
belece o contraste entre a caducidade humana e a duração divina; a imagem
da erva seca reforça o parentesco de ambos os salmos. Pois bem, esse
contraste é libertador ou oprimente? No presente salmo, o descobrimento
terá função libertadora, convidará à esperança.
O versículo aponta duas imagens da caducidade: a sombra que se
alarga, a erva que murcha.
— A sombra. Em proporção geométrica, a uma sombra que se alarga
deveria corresponder uma duração que se prolonga. Mas a sombra tem aqui
função simbólica. A imagem pede algumas linhas de comparação:
SI 109,23
144,4
Jó 8,9
vou passando como sombra que se alarga
o homem é como sopro,
seus dias sombra que passa
nossos dias são uma sombra sobre o solo
1258
Salmo 102
14,2
Eclo 6,12
Sb 2,5
foge como a sombra sem parar
Quem sabe o que valem na vida do homem
esses dias contados de sua tênue vida
que transcorrem como sombra?
nossa vida é a passagem de sombra.
Ninguém o disse melhor que Emily Dickinson:
“Presentimiento es esa larga sombra sobre el césped
que indica que el sol está ya bajo;
un aviso a la hierba sobresaltada
de que va a pasar la oscuridad”.
—
A comparação da erva é mais conhecida, pelo que me contento com
uma citação que insiste nos sinônimos:
Is 37,27
foram como erva do campo,
como verde dos prados,
como grama de terraço murcha
antes de crescer.
13.
O verbo yshb predica-se de Deus com valor de reinar, sentar-se no
trono real (SI 9,8; Lm 5,19). O segundo texto é mais pertinente porque na
perduração de Deus vê uma esperança para Sião, e emprega quase a mesma
fórmula que o salmo:
18
19
porque o monte Sião está desolado,
e os zorros passeiam por ele.
M as tu, Senhor, reinas sempre;
teu trono dura de idade em idade.
O salmo diz “nome” com o sinônimo zkr. Se o nome é perpétuo,
também o é o ser e não só sua recordação. Recordemos o texto clássico de
Ex 3,15:
Este é meu nome para sempre,
minha apelação de geração em geração.
14-16. No v. 14, a súplica muda de enfoque e olha a cidade com afeto
intenso. Os três versículos articulam uma síntese apertada: 14 a ação
solicitada ao Senhor; 15 motivada pela dor e compaixão pelo povo; 16 reação
do inimigo.
Do Senhor apela às qualidades tradicionais: é rhwrti whnwn (Ex 34,6:
Jn4,2; SI 86,15; 111,4; 112,4; 145,8); reforça-o com o tema do tempo, próprio
do salmo. Do povo comenta o amor terno e compassivo pela capital, que pode
recordar os sentimentos aludidos em Ez 24,21:
meu santuário, vosso soberbo baluarte,
o encanto de vossos olhos, o tesouro de vossas almas.
Exegese
1259
Dos inimigos predica um genérico e inclusivoyr’ - respeito, veneração,
reverência.
A relação entre a dor pessoal e a da cidade, com outras coincidências
temáticas, está bem exposta na terceria Lamentação, da qual cito alguns
versículos mais próximos ao salmo, sublinhando palavras para chamar a
atenção:
4
8
22
43
48
50
61
consumiu-me a pele e a carne, e rompeu-me os ossos
por mais que grito, faz-se surdo à minha súplica
a misericórdia do Senhor não termina, não se acaba sua compaixão
envolto em cólera nos perseguiu
choramos rios de lágrimas pela ruína da capital
até que o Senhor do céu assome e me veja
ouviste, Senhor, como me insultam
O parentesco histórico e espiritual é patente, de forma que ambos os
textos mutuamente se iluminam.
14. Com a tranqüila duração de Deus confronta-se a impaciência
humana, que mede o tempo em anos e dias, e assinala prazos. Não pode o
homem assinalar prazos a Deus, mas pode recordar a Deus seus prazos.
Judite retoma uma larga tradição quando censura aos chefes de Betúlia
terem posto prazo a Deus (Jt 8,11-17); os profetas condenaram a atitude
desafiante dos que põem prazos a Deus, por exemplo, Is 5,9:
que apresse sua obra para que a vejamos:
que se cumpra logo o plano do Senhor de Israel
para que o comprovemos.
Vejam-se os estribilhos de Ez 12,21-28. Por livre iniciativa, Deus pode
assinalar prazos e ocasiões, como diz o SI 75,3: “quando escolher a ocasião,
julgarei retamente”; Hab 2,3: “a visão tem um prazo, ofega rumo à meta”;
também Is 49,8 fala da ocasião propícia. Com esses e outros textos seme­
lhantes combina a petição do orante: soou para Sião a hora da compaixão.
15. O versículo toma o binário precedente e substitui rhwm por rçh. O
SI 74,3 convidava Deus a vir inspeccionar a cidade em ruínas: “dirige teus
passos a essas velhas ruínas”; aqui o orante com seus companheiros tentam
contagiar Deus com sua compaixão. Ou estão, sem sabê-lo, contagiando-se
eles com a compaixão divina? Deste magnífico versículo ficam muito
distantes Is 55,2.9: “Sacode-te o pó, Jerusalém cativa... Rompei a cantar em
coro, ruínas de Jerusalém”.
16. Não se trata ainda de conversão de nações pagãs, mas do reconhe­
cimento reverenciai de Yhwh como divindade poderosa. A restauração de
Jerusalém manifestará a glória de Deus em cenário universal. Is 59,19
(provavelmente posterior) anuncia: “Os do ocidente temerão o Senhor, os do
oriente respeitarão sua glória”.
1260
Salmo 102
17-23. É muito difícil acertar com a correta distribuição sintática
desses versículos, pela ambigüidade da partícula ky e pela indecisão dos
tempos verbais. Exponho brevemente algumas alternativas.
O ky do v. 17 dá razão do versículo precedente, referindo o qatal a um
tempo anterior: respeitarão porque construiu / porque para então terá
construído. Ou então: ky é partícula temporal que introduz a subordinada
cuja principal chega no v. 19 (sem waw de apódose): quando reconstruir ...
que se escreva / escrever-se-á. O ky do v. 20 introduz o que se haverá de
escrever, ou seja o v. 21 e talvez o 22. Ou então: 22 é conseqüência de 1721 e ao mesmo tempo da temporal que segue: “e assim se contará em Sião
... quando os povos”.
Através de nossa perplexidade sintática abre-se passagem uma
percepção clara e articulada: que Sião será reconstruída pela compaixão
de Deus pelos oprimidos, que é o fato que se haverá de registrar por
escrito para futuras gerações, que redundará em culto universal de
Deus.
17. Tomemo-lo como futuro perfeito. A reconstrução da capital será
obra do Senhor. Ez 36,33-36 dá uma versão realista e estilizada:
33 Quando vos purificar de vossas culpas, farei com que se repovoem as
cidades e se reconstruam a ruína ...
Os povos que ficarem a vosso redor saberão que eu, o Senhor, reedifico o
destruído e planto o arrancado.
Is 54,lls compraz-se em descrever uma reconstrução fantástica; Am
9,11 refere-o à dinastia davídica, indicando mentalmente também sua
cidade:
Naquele dia levantarei a choça caída de Davi,
taparei suas brechas, levantarei suas ruínas,
até reconstruí-la como era outrora.
O SI 51,20 (adição) di-lo em forma de petição: “Digna-te, Senhor,
favorecer Sião, reconstrói as muralhas de Jerusalém”.
18. Yr significa desnudo, indefeso, desguarnecido (Gn 42,9). Para o
segundo hemistíquio, veja-se SI 22,25.
19. Tomo tktb como jussivo: seja escrito, fique escrito. O que indica
uma lúcida e firme consciência histórica sobre o destino do povo: o valor
permanente do passado, a função da escritura no processso histórico. O
Moisés de Dt 31-32 contenta-se com a recitação do cântico, conservado na
memória. Isaías, no que alguns chamam de seu testamento, diz:
30,8
Agora vai escrever numa tabuinha, grava-o em bronze, que sirva
para o futuro de testemunho perpétuo.
Exegese
1261
Jr 30,2 e 36 mencionam a escritura de oráculos proféticos. Jó 19,24
aspira a uma escritura lapidar para a posteridade. A geração futura (SI
48,14 e 78,4, em termos de tradição oral). O povo que será criado (SI 22,32).
20. Assomar é um modo de dizer que não se desentende: olhar hostil
em Ex 14,24, vigilante no SI 14,2, benévolo em Dt 26,15. Outros textos
preferem o verbo hbyt com sentido menos diferenciado.
21. A libertação de prisioneiros e condenados acrescenta um elemento
complementar: não basta reconstruir a cidade se faltam homens para
repovoá-la. Em alguns textos do profeta do desterro, o fator humano parece
inclusive mais urgente. Is 49,22 ocupa-se disso num diálogo amoroso; Is 42,7
aponta como tarefa do servo “tirar da prisão os cativos”, que é tema recorrente
(Is 49,9; 61,1; Zc 9,lls; SI 68,7; 69,34). Os condenados à morte: a expressão,
como o resto do versículo, é quase citação literal do SI 79,11. Os condenados
à morte estão encerrados numa masmorra esperando a execução. Ez 37,lls
descreve o desterro como sepulcro e a repatriação como ressurreição.
22. O louvor é conseqüência lógica da libertação. Reconstruída e
repovoada a capital, poder-se-á celebrar de novo em Jerusalém. Um exem­
plo posterior nô-lo oferece Neemias.
23. Em Jerusalém unem-se povos e reinos para prestar culto a Yhwh.
O que é mais que o simples reconhecimento reverente do v. 16. É uma visão
maravilhosa que o orante prevê num futuro indefinido. Talvez inspirado
em textos como Is 2,2-5; Mq 4,1-4; Sf 3,9s. É visão semelhante a de Is 60,4;
66,18. Com essa visão gloriosa, superposta a um panorama de ruínas,
poderia terminar o salmo. Mas, depois de pausa, desvane-se a visão e o
orante dobra-se sobre si.
24. Sujeito dos verbos é Deus. Pelo caminho da vida, o orante sentese peregrino cansado e desfalecido, incapaz de chegar até o fim.
25. Na metade de sua vida: como em Is 38,10 e SI 55,24. É estranha a
expressão bdwr dwrym: talvez se deva tomar a preposição como b- essentiae.
Geração de gerações só se lê aqui, em Is 51,8 com l- e no SI 72,5. Pode-se tomar
como uma espécie de superlativo (cf. shyrhshyrym com artigo). É possível que
o autor tenha escolhido uma formulação paradoxal para falar da duração de
Deus: se quisermos medi-la, teremos que usar medidas de outro sistema
temporal: uma geração de gerações; como quem diz, elevada ao quadrado.
Contudo, o autor continua usando o termo “anos”, para desbordá-lo.
26. Este versículo introduz a duração cósmica, da criação, para além
das gerações humanas. Veja-se Is 48,12s: “Eu sou o primeiro e o último,
minha mão fundou a terra”.
27. Como roupa: recorda Is 51,6. A roupa é preciso ir substituindo-a;
por isso falamos de “mudas” (cf. o italiano mutandè). O hebraico emprega
a mesma expressão (dehlp - mudar: Gn 45,22; Jz 14,12s; 2Rs 5,22s). Pensa
1262
Salmo 102
o orante que, consumidos céus e terra, Deus criará outros novos de
recâmbio? Is 66,22 é quase uma resposta: “Como os céus novos e a terra
nova que farei durarão diante de mim
28. O contraste é sóbrio no original (’th hw0. Soa como eco humano da
autoafirmação divina (’ny hw’), que se lê em Is 41,4; 43,10; 48,12.
29. O citado Is 66,22 continuava: “assim durará vossa estirpe e vosso
nome”. O salmo termina com uma confissão de esperança: não na imorta­
lidade pessoal, mas na do povo. Com um monte Sião, centro de culto
universal, e um povo escolhido perdurável, consola-se o orante.
6. Transposição cristã
A carta aos Hebreus (1,10-12) cita os versículos 26-28 do salmo
(segundo os LXX) para exaltar a dignidade do Filho de Deus. Santo
Agostinho, cedendo a um gosto conceitualista, comenta o final do salmo:
Ao lado desse grande É, o que é o homem, seja lá o que for? Quem
compreenderá aquele Ser? Quem participará dele? Quem o desejará e
aspirará por e le ?... Não desesperes, fragilidade humana. Eu sou, diz o Deus
de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó. Ouviste o que sou em mim, ouve
o que sou para ti. Essa eternidade nos chamou, e da eternidade brotou a
Palavra. Já há eternidade, já há Palavra, e ainda não há tempo. Por que não?
- Porque o tempo foi criado. Como é que também o tempo foi criado? Tudo
foi feito por ele e sem ele não se fez nada. O Palavra antes do tempo, por quem
se fez o tempo, nascido no tempo, ainda que seja vida eterna, chamando os
temporais para fazê-los eternos!”.
Também podemos ensaiar a leitura eclesiológica, segundo a conhecida
equação Jerusalém = Igreja. Recordemos Inocêncio III, que numa visão
contempla Francisco reconstruindo o templo fendido, que representa a
Igreja. O salmo ensina-nos a inscrever nossas penas pessoais num contexto
eclesial largo. Se vemos em nossa Igreja algumas ruínas e bastante pó, o
salmo ensina-nos a sentir a dor do amor, não o desprezo distante e sufi­
ciente.
Quanto ao grande tema de nossa caducidade, a fé na ressurreição de
Cristo e esperança da nossa põem o salmo num horizonte novo que, sem
eliminar a tristeza de nossa condição mortal, contempla-a acolhida pela
eternidade de Deus. Também por nossos corpos se diz: “Destruí esse
templo, e eu o reconstruirei”.
Salmo 103
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
Bendiz, alma minha, ao Senhor,
e todo o meu interior seu santo nome.
Bendiz, alma minha, ao Senhor,
e não olvides seus1 benefícios.
Ele perdoa todas as tuas culpas,
cura todos os teus males2.
Ele resgata tua vida da fossa
e te coroa3 com sua bondade e compaixão.
Ele te sacia de bens na adolescência
e renova-se tua juventude como a de uma águia.
O Senhor faz justiça
e defende os oprimidos.
Manifestou seus caminhos a Moisés
e suas façanhas aos israelitas.
“O Senhor é compassivo e clemente,
paciente e misericordioso”.
Não está sempre pleiteando
nem guarda rancor perpétuo.
Não nos trata como merecem nossos pecados
nem nos paga segundo nossas culpas.
Pois como se eleva o céu sobre a terra,
assim vence sua misericórdia seus fiéis.
Como dista o oriente do ocaso,
assim afasta de nós nossos delitos.
Como um pai se enternece por seus filhos.
assim se enternece o Senhor por seus fiéis.
1nenhum de seus
2enfermidades
3rodeia, envolve
1264
Salmo 103
14 Pois ele conhece nossa condição
e lembra-se que somos barro.
15 O homem dura como a relva,
floresce como flor campestre,
16 que mal o vento roça e já não existe;
não volta a vê-la seu lugar.
17 Mas a misericórdia do Senhor com seus fiéis
dura desde sempre e para sempre;
sua justiça passa de filhos a netos,
18 para os que guardam a aliança
e recitam e cumprem seus mandatos.
19 O Senhor firmou no céu seu trono,
seu reinado governa o universo.
20 Bendizei ao Senhor, anjos seus,
poderosos executores de suas ordens,
prontos para cumprir sua palavra.
21 Bendizei ao Senhor, Exércitos seus,
servidores que cumpris sua vontade4.
22 Bendizei ao Senhor, todas as suas obras,
em todo lugar de seu império.
Bendiz, alma minha, ao Senhor.
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A. Sicari,LarivelazionedellapatemitàdiDio, Communio 10 (1981) 7-23.
4seus desejos
Estudo global
1265
O. Betz, Jesu Lieblingspsalm. Die Bedeutung von Ps 1-3 fixr das Werk
Jesu, ThBei 15 (1984) 253-269.
3. Análise filológica
1-5. Insiste na rima interna -ki Allen.
5. ‘dyk: ornamento, epiphymia Gr, corr ‘dky / ‘wdky tua existência.
tthdsh: fem sgl com sujeito pl abstrato GK 145 k.
9. ytwr: forma elíptica guarda rancor.
11.
gbr: alguns corrigem paragò/z.; melhor conservar o jogo gbh / gbr
(cf. Gn 4,19).
14. zkr: partic com valor ativo Joüon 50 a, ou adj BL 61 u.
20.shm^bqwl-: obedecer DBHE.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
— Esse salmo é uma ação de graças, em que é fácil apreciar quão
próximos estão hino e ação de graças. O verbo brk, quando corresponde a
benefício recebido, significa agradecer, dar graças. O salmo concentra-se
nesse verbo repetindo-o duas vezes no começo e três no final, com grande
ênfase e sem dar lugar a sinônimos. Vamos repassar os elementos que
compõem e definem o gênero.
— Convidados a dar graças. Em desdobramento interior, de observa­
ção psicológica, bem conhecido e praticado no saltério, o orante incita-se a
si mesmo: alma minha / alento meu / meu interior. Se bem que npsh muitas
vezes signifique garganta, nunca, porém, como órgão de falar. Opõe-se npsh
a voz, como sugere santo Agostinho? Creio que npsh quer expressar aqui
o empenho da pessoa, como quando se diz “com toda a alma”; numa visão
mais física denota o alento vital. Não é duvidoso seu valor para expressar
o desdobramento do orante.
Ao invés, “meu interior” é que se contrapõe à voz externa. E ao dizer
“todo”, o orante pode incluir coração e rins e câmaras do ventre, ou seja, todo
o mundo cognoscitivo, volitivo, emocional, passional, imaginativo, etc. E
verdadeira mobilização geral do orante.
A ela corresponde no final uma mobilização de criaturas celestes e
terrestres. O primeiro grupo contrasta com a mobilização da humanidade
e a natureza que contemplamos nos SI 96 e 98 e outros semelhantes. O
segundo grupo está reunido num sóbrio “toda as tuas obras”. Desapareceu
1266
Salmo 103
a corte celeste de divindades que ainda encontrávamos em vários salmos:
estão subsitituídas por “anjos” e “exércitos” (estelares).
— Motivação. Está bastante estililizada. Em 3-6 adota a forma clássica
do particípio que condensa e fixa ações individuais ou repetidas, ou modos
de proceder. O desenvolvimento seguinte emprega outros procedimentos,
como a quádrupla negação, a tríplice comparação, a antítese. Tema domi­
nante é a misericórdia do Senhor em seu duplo aspecto: livrar de males e
conceder bens. E misericórdia entranhável, generosa e duradoura.
— Individual ou coletivo? O salmo começa com assunto e experiência
pessoal. No v. 10 entra em cena o plural: “nós, nossos”. Quem forma esse
grupo? Os versículos 6-9 e 17-18 remontam à recordação histórica de
Moisés e da aliança; logo “nós” são os judeus, que de novo experimentaram
a misericórdia do Senhor. Os versículos 14-16 remontam, porém, à criação
do homem (Gn 3) falando do “homem” com alcance universal.
Ora, o salmo parece estreitar a misericórdia do Senhor a seus fiéis, os
que “o respeitam” (são o povo escolhido) e, entre eles, os que observam a
aliança e cumprem suas cláusulas. A misericórdia de Deus não alcança
outros fora da aliança? Levanta o “nós” valo infranqueável? Assistimos no
salmo a duplo processo, de alargamento e estreitamento. O salmo começa
com a experiência pessoal; dela remonta à recordação histórica de Israel,
em que descobre uma experiência humana coletiva e universal. Do momen­
to presene sobe-se à história e dela à permanência de Deus abarcando os
tempos. Em sentido oposto, a misericórdia divina, fundada em seu conhe­
cimento e compreensão da debilidade humana (14), atua e manfesta-se
num povo, de acordo com sua observância. Então, é condicionado o exercíco
da misericórdia? Quem pode mais para mover Deus à misericórdia: a débil
condição humana ou o condicionamento da observância de compromisso?
E preciso sentir no salmo a interação dos dois pólos produzindo a energia
do mesmo: presente e passado, indivíduo e comunidade, judeus e humani­
dade. E sistema que se mantém aberto, com capacidade de albergar
experiências humanas semelhantes.
— Situação ou ponto de partida. E difícil decidir qual seja o ponto de
partida histórico, à luz da análise precedente. Se seguirmos a ordem do
texto, o ponto de partida é pessoal; mas esse não é critério decisivo.
Podemos imaginar como ponto de partida um fato pessoal: o orante foi
“curado” (3) de doença grave, foi “resgatado da fossa” (4). Inundado de
alegria e agradecimento, transcende sua experiência pessoal e vai se
abrindo a horizonte mais amplo. Também podemos imaginar como ponto de
partida um fato nacional: os desterrados “oprimidos” (6) obtiveram a
liberdade e voltaram à pátria. Nesse fato de novo se manifestou o que a
tradição contava de Moisés e da aliança (7,18). Um dos repatriados toma a
Estudo global
1267
palavra para dar graças (1-2), inserindo no contexto sua experiência pes­
soal. Finalmente, podemos imaginar que umjudeu devoto medita a definição
clássica do Senhor “compassivo e clemente” (8), projetando-a em sua expe­
riência pessoal, na de sua comunidade nacional, na da condição humana.
Nenhuma dessas três imaginações tem a pretensão de acertar com a origem
histórica real do salmo; as três alegam o direito e a função de iluminar o
sentido do salmo e abrir caminhos para sua apropriação plural.
A datação pós-exílica parece mais provável. Mas deve-se notar que não
se menciona Sião nem Jerusalém e que os “oprimidos” é termo genérico.
Ainda que o salmo surja numa situação concreta, pessoal e comunitária, é
composto como peça de repertório, e como tal é acolhido na coleção oficial do
saltério.
b) A tradição de Moisés
O v. 7 menciona Moisés: é o único nome pessoal do texto; em paralelo
ajuntam-se os “israelitas” como grupo. Esse nome é índice que orienta para
tradições ligadas à personagem. Vamos reduzi-las a três: a saída do Egito
como libertação de oprimidos; a aliança com suas conseqüências; a revela­
ção culminante de Ex 34.
— Está presente a primeira? Se soubéssemos de antemão que está
presente, pelo menos mentalmente, referiríamos a ela a libertação de
“oprimidos” como ato de justiça (6). Ao nos faltar esse pressuposto, temos
que apoiar a possibilidade no que segue.
— A aliança menciona-se no v. 18, e seu cortejo próximo recorda de
perto o ensinamento de Ex 20, como mostrarão duas colunas paralelas:
Ex 20,6 Atuo com lealdade
por mil gerações
quando me amam
e guardam meus preceitos
SI 103,17 a misericórdia (hsd)
com seus fiéis; sua justiça de
filhos e netos, para os que
guardam a aliança e
cumprem seus preceitos.
O parentesco serve para descobrir uma diferença importante: Ex 20,5
afirma que Deus “castiga a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos”. Se
o salmo foi composto pela volta do desterro, passaram já as gerações que
sofreram o castigo e ocupa o lugar uma das “mil gerações” que desfrutam
do perdão.
— A grande revelação do Deus misericordioso (Ex 34,6) é assumida
quase literalmente. E verdade que se trata de fórmula litúrgica, presente
com variações em corpos diversos. No presente salmo, o nome de Moisés
orienta-nos para o texto fundacional (na estrutura atual do Pentateuco). O
que Moisés escutou dos lábios do próprio Yhwh, experimentou-o hoje um
1268
Salmo 103
israelita: enche-lhe a alma e a transborda. Já não por assentimento intelec­
tual e de oitiva, mas por experiência pessoal, sente-se de acordo com Moiés:
SI 48,9
Jó 42,5
O que temos ouvido, nós o vimos.
Eu te conhecia de oitiva; agora meus olhos te viram.
Abre-se o salmo dizendo-nos que o que ele experimentou também nós
podemos experimentar, que não nos contentemos em sabê-lo de oitiva.
Por esse capítulo, o salmo faz companhia ao 99, pondo “misericórdia”
onde o outro punha “santidade”. Também coincidem no tema da realeza de
Yhwh.
c) Desenvolvimento por comparações
As comparações são: como a águia (5), cósmicas (lis), paternidade
(13a), como a relva (15).
— Começo pela última, que é mais geral e talvez menos importante. Os
versículos 15-16 desenvolvem com acerto a conhecida comparação vegetal
“como a erva”. Acabamos de lê-la no SI 102,5.12, com uma diferença: ali o
termo oposto era a perpetuidade de Deus, aqui é a duração e prolongação
da misericórdia divina (em Is 40,8 é a eficácia da palavra divina). Deixandonos sugestionar pela imagem, contemplamos, em clima de seca e estiagem,
a humilde e efêmera erva, pendente da chuva que a misericórdia divina
envia (também em Is 40,7 sopra um vento árido sobre a erva).
— As duas comparações cósmicas (11-12) são de altura e de distância.
Altura não de montanhas e nuvens, mas do céu com respeito à terra: tal a
misericórdia de Deus com respeito a seus fiéis. Compare-se com dois
salmos:
36,6
57,11
Tua lealdade chega ao céu,
tua fidelidade até as nunvens,
tua justiça é como as altas cordilheiras.
Tua lealdade chega ao céu,
tua fidelidade alcança as nuvens.
Estes parecem olhar de baixo para cima; o 103, com a partícula ’l,
parece olhar de cima para baixo; Is 55,9 usa o min de comparação: “como
o céu é mais alto que a terra”. Resumindo e parafraseando: o céu eleva-se
sobre a terra, cobre-a e agasalha-a; assim também a misericórdia do Senhor
para com os seus fiéis.
A segunda comparação encarece a força do perdão. Nada mais distante
para um hebreu que os dois extremos de seu horizonte. Assim afastará de
nós os nossos delitos: não mais nos mancham, não se nos colam, não os
carregamos como carga; nem se vêem, ficam longe. Essa é uma das muitas
metáforas do perdão no AT. O mais próximo dela é Mq 7,19: “lançará no
1269
Estudo global
fundo do mar todos os nossos pecados”. Numa súplica a Ea, Sarnas e
Marduk, lê-se: “Que meu delito se afaste 3.660 léguas” (Seux 201).
—
As comparações cósmicas não bastam ao autor: são impressionan­
tes, mas falta-lhes emoção humana. Ter que saltar do cósmico ao humano
para falar de Deus é parte do sentido do salmo. Um particular estilístico
aponta-o: os versículos consecutivos 12 e 13 começam krhq - krhm, também
a repetição de “seus fiéis” em 11 e 13.0 autor diz “como um pai” e da mesma
forma poderia dizer “como de mãe”. Numa prece acádica ao Deus juiz apelase a “teu coração, como o de mãe carnal, com o de pai carnal” (Seux 157). De
uma oração a Marduk: “Sua cólera é um dilúvio; seu perdão, o de pai
misericordioso” (Seux 169).
A paternidade de Deus com respeito ao povo foi declarada em termos
de domínio e responsabilidade em Ex 4,23, em termos de educação em Dt
8,5 e Is 1,2, em termos de adoção do rei em 2Sm 7 e SI 2; ele é chamado “pai
dos órfãos” no SI 68,6. Selecionamos dois textos proféticos que se fixam no
aspecto emotivo da paternidade (Os 11 e Jr 31).
Oséias representa Deus na figura de pai (poderia ser mãe) de Efraim
(o povo). Depois de tudo o que fez o pai pelo menino e rapaz, esse se rebela.
O pai decide castigá-lo, rechaçando-o de todo, quando de repente se sente
invadir pelo afeto e se interrompe:
11,8
9
Como poderei deixar-te, Efraim ...?
Dá-me um sobressalto no coraçáo,
revolvem-se-me as entranhas ...
Não cederei ao ardor de minha cólera ...
pois sou Deus e não homem.
Em Jr 31, Deus vê chegar Efraim “novilho indómito”, mas “escar­
mentado”; aproxima-se “confundido e envergonhado”. Quando Deus o vê
chegar, exclama:
20
Se é meu filho querido, Efraim,
meu menino, meu encanto!
Toda vez que o repreendo, lembro-me disso,
comovem-se-me as entranhas,
e cedo à compaixão.
Tal é o sentido do salmo: a revelação paternal de Deus no perdão.
Então, é o perdão competência do pai e não da mãe? Segundo Baruq 4 (texto
tardio), toca a Deus perdoar como pai e a Jerusalém interceder como mãe;
ocorre que, na relação Yhwh-Jerusalém, os papéis masculino e feminino
são fixos. Os textos de Provérbios que se referem à educação dos filhos
tratam por igual do pai e da mãe.
1270
Salmo 103
A comparação paterna prolonga-se num magnífico versículo (14) que
incorpora o tema do Deus criador e modelador.
—
A comparação da águia, legendária, serve de contrapeso à da erva
livre movimento na altura, efêmero florescer no nível da terra. Vê-la-emos
na exegese.
d) Composição
Mais que de arquitetura temos que falar de desenvolvimento: encerra­
do num quadro largo e firme, e sujeito a algumas repetições verbais mais
ou menos sugestivas.
O quadro é formado por duplo “bendiz” no começo (1-2) e quáduplo
imperativo no final (20-22), com perfeita inclusão total. Este quadro
inusitado define o gênero e expressa um sentimento exaltado. O orante, que
começa a sós, tem que recorrer finalmente a um coro excepcional.
Segue uma série de seis particípios predicados de Deus (o último sem
artigo) em quatro versículos compactos e bem ritmados. Com um qatal
(perfeito) entra no v. 7 a referência histórica e segue uma pregação litúrgica
no v. 8. Esta desencadeia uma grande reflexão, por meio de comparações,
com seus versos, de novo bem ritmados. Seguem quatro versículos (15-18)
que contrapõem a caducidade humana à misericórdia divina histórica e
supra-histórica: o ritmo torna-se irregular. O v. 19 serve de conclusão ao
que precede e dá passagem à segunda parte do quadro.
Repetições. A mais importante, que insiste no tema central, é a de rhm
+ hsd em 4b e 8, com rhm em 13 e hsd em 11.17. O orante não sabe des­
prender-se dessas duas palavras. Importante é a repetição de gml em 2 e
10, porque revela o paradoxo de retribuição divina que consiste em perdoar.
A repetição de ‘wlm em 9 e 17 é simplesmente correlativa: nega-se da ira,
afirma-se da misericórdia. Menos conspícua é a insistência na totalidade
(kl), repetido em 1.2.3.6.19.22. Finalmente, notemos a “execução” das
ordens exigida dos homens, prestada pelos seres celestes.
5. Exegese
1. Santo Agostinho insiste na bênção interior silenciosa:
“Tem ouvidos Deus, tem voz o coração ... Clame tua voz, se alguém te
escuta, cale tua voz se ninguém te escuta; que em teu interior haja sempre
alguém que o escute. As vezes cantamos e às vezes calamos: deve teu interior
calar sem louvar a Deus? Soe às vezes alternadamente a voz, soe sempre a
voz de teu interior”.
Exegese
1271
2. Prescindindo do caso de Ezequias na versão de 2Cr 32,25 e dos
Provérbios impessoais, a “retribuição” administrada por Deus é sempre de
castigo (em Is 35,4 é de duplo fio). O versículo presente muda-lhe o sentido
corrente ao fazê-lo objeto de bênção e ação de graças. O v. 10 esclarecerá em
que consiste essa retribuição digna de agradecimento. A enumeração que
segue encaminha-nos na mesma direção.
3-6. Os seis particípios são enumerativos, não compõem uma figura
definida. Os três primeiros podem-se ler como série coerente: perdoa o
pecado, causa, cura a enfermidade; conseqüência, liberta da morte, castigo
ou destino. O quarto e o quinto são positivos, introduzem os três termos
hsd, rhm, twb. O sexto passa do particular ao geral.
3. Pecado e doença supõem-se vinculados (por exemplo, SI 38). slh é
raro no saltério (só aqui e em 25,11), é normal em outros corpos. Com
referência ao êxodo e ao desterro, podemos apontar Ex 34,9; Nm 14,19s; Is
55,7; a passiva aparece em textos cultuais do Lv e Nm; o adjetivo no SI 86,5,
o substantivo no SI 130,4. Do verbo rp\ o sujeito ordinário é Deus: veja-se
em particular Ex 15,26: “Eu sou o Senhor, teu médico”.
4. O Resgatador: título freqüente de Deus em Is 40-55 (dez vezes),
também no SI 19,15 e 78,35. As formas finitas do verbo são mais variadas em
uso e distribuição. Resgatar é recobrar uma propriedade ou uma liberdade:
aqui Deus resgata uma vida do poder incontrolável da Morte, que já tinha
declarado sua possessão. O Coroador: o verbo significa coroar, cingir uma
coroa ou um turbante, também significa rodear protegendo e cercando. O
sentido de rodear protegendo encaixa-se melhor no contexto, porque não se
trata de objeto honorífico imposto na cabeça do pecador perdoado. (Os antigos
preferiram o significado de coroa, pensando na “coroa da glória”).
5. O Saciador: a metáfora é tomada do mundo material para espiritualizálo; no SI 65,5 ainda se alude aos sacrifícios com banquete. O verbo em hifil
quase sempre tem Deus como sujeito e é freqüente no saltério.
A breve comparação da águia é tomada de alguma lenda zoológica da
antiguidade, que pensa na mudança de plumagem ou inclusive de asas. Do
mesmo mundo mental parece fazer parte Is 40,31:
Os que esperam no Senhor renovam suas forças,
lançam asas como as águias.
Superada uma doença mortal, o homem sente-se rejuvenescido. (Os
antigos aplicaram-no à renovação do batismo ou à ressurreição).
6. O versículo funciona como dobradiça: ainda leva o predicado em
particípio, já que sua esfera é a comunidade humana. Olhando para trás,
serve para generalizar uma experiência pessoal; olhando adiante, sugere
a primeira etapa de Moisés, a “opressão” no Egito (ainda que ‘shq não
1272
Salmo 103
apareça em contextos do êxodo). Fazer justiça ao oprimido é defender seus
direitos, livrá-lo do opressor. Pelo resultado, é ato de misericórdia e com­
paixão.
7. Pela lei do paralelismo, os dois predicados valem para os dois
sujeitos: a Moisés e ao povo mostra seus caminhos e suas façanhas. Postos
a distinguir, diríamos que os caminhos os ensina por mediação de Moisés,
segundo Ex 19,13: “Se gozo de teu favor, enina-me teus caminhos”. A
palavra ‘lylwt é favorita do saltério e de Ezequiel.
8. Em Ex 34,6 apresenta-se a fórmula como autoproclamação do
Senhor. Outros textos litúrgicos dão como variações a fórmula ampla (J1
2,13; Jn 4,2; SI 86,15; 145,8; Ne 9,17).
9-10. Começa o comentário com quatro orações negativas que não
negam os verbos, mas os advérbios. Na verdade, acusa, pleiteia e irritase, mas não perpetuamente; na verdade, paga e castiga, mas não como
merecemos. O desterro superado é prova disso. Queixava-se a quinta
Lamentação (5,20): “por que nos esqueces para sempre?” (cf. SI 79,5);
contesta o salmo: “não para sempre”. Perguntava o SI 77,8: “será que o
Senhor nos rejeita para sempre?”; “não é para sempre”, responde o
presente (cf. Jr 3,12). E certo que nos castiga, e até o duplo do previsto,
dizia Is 40,1; “não como merecemos”, corrige o salmo. Assim é sua
“retribuição”: a medida do castigo não é o delito, porque sua justiça é
temperada e superada pela misericórdia (cf. Jr 16,18). Há delitos que se
castigam com dupla restituição ou com recarga (por exemplo, Ex 22,3.8):
a isso podem aludir os citados textos de Is 40 e Jr 16, que o salmo corrige.
À luz desse versículo seria preciso ler muitos oráculos proféticos como
ameaça.
11. Seguem as três comparações já comentadas, mais uma implícita.
A altura dos céus é a maior que um israelita pode imaginar (Is 55,9; Jó 11,8;
22, 12).
12. Se o desterro foi um “afastar” os culpados da pátria (Jr 27,10; Ez
11,16), o perdão é um “afastar” o pecado para fora de alcance.
14.
Com os termos de olaria
e ‘p r fabrica o poeta sua imagem. Além
de pai, Deus é oleiro que toma a argila e a modela. Ninguém como ele
conhece o material empregado e o modelado impresso. Pois bem, Deus
trabalhou com barro, e o modelado resultou o que diz Gn 6,5, antes do
dilúvio. Porque conhece como ninguém, Deus compreende e perdoa. Nossa
fragilidade de cerâmica, nossa contextura cediça, é nossa maior vantagem,
sobretudo porque nosso oleiro é nosso pai.
15-16.0 homem de barro tem vida vegetal: não de alto cedro nem de
carvalho perene, mas de humilde relva ao rés do chão, de beleza efêmera,
indefesa perante o vento cálido ou violento (Is 40,7). Jó 7,10 parece inspirar-
Exegese
1273
se na última frase: como a relva tem um lugar no solo, o homem tem um
lugar no mundo; quando se vai, não volta, e o lugar acostumado o espera em
vão; não reconhece sua volta, porque não volta.
17-18.Como no v. 13, a misericórdia parece limitar-se à comunidade
dos fiéis, os que veneram Yhwh; ao mesmo tempo, hsd parece deslocar-se
da misericórdia rumo à lealdade própria da aliança. Em cujo contexto, a
‘‘justiça de Deus consiste em cumprir seus compromissos” (por isso se a
reconhece na confissão de pecados, Dn 9,7).
O v. 18 parece saltar do regime de misericórdia ao regime de observân­
cia. Se a lealdade de Deus está condicionada pelo cumprimento humano, de
um homem ou povo frágil, que lugar resta para a misericórdia? Creio que
o versículo admite outra explicação, segundo o que nós chamamos de emen­
da: “estás perdoada, não voltes a pecar” (Jo 5,14; 8,11). Também essa idéia
é tradicional e lógica, porque a misericórida e o perdão não são carta branca
para o delito. Da emenda falam, por exemplo, Is 1,20; SI 50,23, etc. O con­
trário seria presunção, contra a qual previne lucidamente o Eclesiástico:
5,4
5
6
Não digas: pequei e nada de mal me aconteceu,
porque ele é um Deus paciente.
Não digas: o Senhor é compassivo
e apagará todas as minhas culpas.
Não te fies de seu perdão,
para acrescentar culpas a culpas,
pensando: é grande sua compaixão
e perdoará minhas muitas culpas ...
Veja-se o abuso em Jr 3,5.
19.
Esse versículo colhe-nos de surpresa: é original ou acrescentado
com toda a grande bênção angélica? Como se insere no contexto? O Senhor
senta-se no trono real depois de vitória cósmica (SI 93,2) ou histórica (47,9);
no presente salmo foi a vitória da misericórdia.
20-21. Nesses versículos consumou-se uma mudança: a corte celeste
está agora formada de “anjos” encarregados de transmitir mensagens ou
executar tarefas. E um plural, como na rampa que viu Jacó (Gn 28,12), como
os protetores (SI 91,11), como os ventos (SI 104,4); e não se devem confundir
com o singular m VkYhwh-o anjo do Senhor. A eqüivalência ou vinculação
de anjos e astros a serviço de Deus ilustra-se-nos por vários textos de Jó
comparados entre si, que tratando do mesmo tema mudam os sujeitos:
4,18
15,15
25,3.5
38,7
seus servos / seus anjos
seus santos / os céus
suas tropas / lua e estrelas
entre a aclamação unânime dos astros matutinos
e os vivas de todos os anjos.
1274
Salmo 103
Visto que em 20b evocam-se fortes campeões e paladinos vigorosos, é
preciso recordar que no SI 19,6 o sol é “como um campeão”. Todos esses seres
celestes estão a serviço imediato do Senhor para cumprir ordens; mas agora
devem abandonar outras tarefas e, escutando o imperativo, o convite do
orante, devem acompanhá-lo na bênção de Deus: eles são muitos e sabem
fazê-lo melhor.
22. Todas as suas obras: o SI 148 encarregar-se-á de enumerá-las.
Apêndice à guisa de comentário
Antes de passar ao contexto cristão, recorde uma reflexão sobre o tema
pouco conhecida ou pouco usada, apesar de seu inegável valor. Num
contexto de retribuição e perdão explica Eclo 18:
8
9
10
11
12
13
14
O que é o homem, para que serve?
Qual é sua bondade e sua maldade?
Os dias do homem são contados,
e é muito se chega a cem anos.
Um a gota do mar, um grão de areia:
isso são mil anos comparados com o dia eterno.
Por isso o Senhor tem paciência com eles
e derrama sobre eles sua compaixão;
pois sabe muito bem que estão inclinados ao mal,
e por isso abunda seu perdão.
O homem compadece-se de seu próximo,
o Senhor de todos os viventes:
avisa e educa e ensina
e guia como pastor o seu rebanho.
Compadece-se dos que recebem a correção
e se esforçam para cumprir seus mandamentos.
6. Transposição cristã
Carece de semelhante exercício com um salmo que antecipa no AT a
revelação da paternidade de Deus? Ponhamos diante de Jesus Cristo
revelando a Deus como Pai, e proceda cada um com seus textos favoritos.
A parábola culminante do filho pródigo (Lc 15); a intercessão na cruz: “Pai,
perdoa-lhes” (Lc 23,34); “temos um defensor diante do Pai, Jesus” (lJo 2,1);
as cartas de Paulo, começando por Rm 8,31-34. Para concluir nossa série ou
cada um de nossos atos, a oração dominical dirigida ao Pai pedindo perdão.
Sobre o v. 14 comenta Gregório Magno: “O que tem de estranho se
conhece tudo? Mas seu modo de conhecer nosso barro foi assumi-lo por
amor”.
Salmo 104
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Bendiz, alma minha, ao Senhor:
Senhor Deus meu, és imenso.
Tu te revestes de beleza e majestade,
a luz envolve-te como manto.
Desdobras os céus como tenda,
teus altos salões acima do teto das águas.
Servem-te de carro as nuvens,
e passeias1nas asas do vento.
Servem-te de mensageiros os ventos;
o fogo chamejante, de ministro.
Assentaste a terra sobre suas bases,2
e não vacilará jamais.
Cobriste-a com a veste do oceano,
e as águas assaltaram as montanhas.
Mas a teu bramido fugiram,
ao fragor de teu trovão precipitaram-se,
enquanto subiam os montes e baixavam os vales,
cada qual ao posto atribuído.
Traçaste fronteira infranqueável3
para que não voltem a cobrir a terra.
10 Dos mananciais tiras torrentes
que correm entre os montes;
11 nelas bebem os animais selvagens,
mata sua sede o asno selvagem.
12 Junto a elas habitam as aves do céu,
das ramagens enviam sua canção.
1avanças
2seus alicerces
3que não transpassarão
1276
Salmo 104
13 De teus salões regas as montanhas,
e a terra sacia-se de tua ação fecunda.
14 Fazes brotar relva para o gado
e forragem para as tarefas do homem4:
para que tire pão dos campos
15
e vinho que lhe alegra o ânimo,
e azeite que dá brilho a seu rosto,
e alimento que o fortalece.
16 Enchem-se5 de seiva as árvores do Senhor,
os cedros do Líbano que ele plantou.
17 Aninham-se aí os pássaros,
em seu topo põe sua casa a cegonha.
18 Os penhascos são para as cabras;
e as penhas, covas de arganazes.
19 Fizeste a lua com suas fases,
e o sol conhece seu ocaso.
20 Lanças trevas e faz-se a noite,
e rondam as feras da selva.
21 Os leõzinhos rugem por sua presa,
reclamando de Deus sua comida.
22 Quando brilha o sol, recolhem-se
entocando-se em suas guaridas.
23 O homem sai para sua faina,
para seu trabalho até o entardecer.
24 Quantas são tuas obras, Senhor!,
e todas fizeste com mestria:
a terra está cheia de tuas criaturas.
25 Aí está o mar: largo e extenso,
nele se agitam, sem número,
animais pequenos e grandes;
26 Sulcam-no os navios e o Leviatã
que fizeste para jogar6 com ele.
27 Todos eles aguardam
que lhes lances comida a seu tempo.
28 Se a lanças, eles a apanham;
abres a mão, e saciam-se de bens.
4 bestas de carga
5 saciam-se
6 para brincar nele
Bibliografia
1277
29 Escondes o rosto, e se espantam;
retiras-lhe o alento, e perecem
voltando ao pó.
30 Envias teu alento e os recrias,
e renovas a face7da terra.
31 Glória ao Senhor para sempre,
e goze o Senhor com suas obras!
32 Quando olha a terra, ela treme;
toca os montes, e eles lançam fumaça.
33 Cantarei ao Senhor enquanto viver,
tocarei para o Senhor enquanto existir.
34 Que lhe seja agradável meu poema,
e eu me alegrarei com o Senhor.
35 Que se acabem os pecadores na terra,
que os malvados nunca mais existam.
Bendiz, alma minha, ao Senhor. Aleluia.
2. Bibliografia
K. Fullerton, The feeling for form in Ps 104, JBL 40 (1921) 43-45.
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Bib 11 (1930) 81-85.
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Lista alfabética
Alonso Schokel
Aufiret
Barker
Beaucamp
Berrick
Blidstein
Clifford
Dahood
Deissler
Derret
Driver
Fullerton
Griffith
Grill
Habel
Harrelson
Humbert
Huppen-Bauer
Jirku
Jouon
Legrand
Leonardi
87
82s
86
66
82
64 v.
81
69
60,81
87
62
21
69
59
72
75
35
69
51
30
61
68
M. Achard
M. Sanchez
Napier
Nebe
Porporato
Rad
Ramlot
Relies
Renaud
Rinaldi
Scammon
Seidl
Seybold
Shinan
Smit
Sparks
Stadelman
Steck
Sutcliffe
v. d. Woort
Weiss
Westermann
72
65
62
81
32
63
60
66
81s
73
69
84
84
77
89
47
70
78
52
51
64
67
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1280
Salmo 104
3. Análise filológica
1. hwd: confessionem Vg.
2. ‘th: corrigem t‘th (haplografia) Gun Kraus.
3a.
Literalmente, que cobrem como teto as águas seus altos salões
que faz das nuvens seu carro.
4. Literalmente, que faz dos ventos seus mensageiros.
Iht: part masc corrigido por alguns, subst em aposição ou assíndeto Dah.
6.
ksytw: suf masc referido a thwm\ lêem suf fem referido à terra A
Teodor Jerôn Targ.
8.
y ‘lw: alguns fazem sujeito as águas e compl de lugar aonde hrym
bq’wt; mqwm constr antes de relativo.
10. qui emittis fontes in convalibus Jerôn como Gr Del.
11. hytw: variante de hyh GK 90 o; sdy forma arcaica com 3a radical
conservada.
12. de medio petrarum (qp’) Vg.
13. mpry m‘syk: interpretação duvidosa: refere-se à chuva, ã vegeta­
ção? (Gn 1,11-12)?
14. l“bdt: ambíguo: para o serviço do homem Graetz Gun, para que o
cultive (Gn 2,5), para os que servem Dah.
14b-15. Jogo estilístico repetindo gerúndios, min, Ihm e Ibb ’nwsh.
17. herodii domus dux est eorum Vg (não entenderam o brwshym).
19. lmw‘dym: poderia ser: para (assinalar) as festas (cf. Gn 1,14).
yd‘: pode ser cláusula de relativo.
20. tsht: talvez temporal Joüon 167a; tsht ... wyhy jussivos talvez
como condicional e apôdosis Hitz Del cf. Joüon 167 a.
25. spatiosum manibus Vg, weit und breit Ecker.
26. draco iste quem formasti ad illudendum ei Vg, “para brincar no
mar, porque com todos os seres marinhos brinca, pois come de todos os que
caem em seu domínio” Qim, na água Eut Bei Teodor; brincar com o Leviatã
Baeth (Jó 40,29).
zh: relativo DBHE zh 4.
27. Itt: suj implícito Joüon 124s.
4. Estudo global
a) Gênero literário
Este salmo é um hino a Deus pela criação: assim costumam catalogálo os exegetas. Começa como o anterior com o imperativo brky, que inter­
pretamos como ação de graças: vale a interpretação para o caso presente?
1281
Estudo global
Antes, considerando a proximidade entre louvor e ação de graças, coloca­
mos o salmo entre ambas, mas inclinado para o louvor. Aceito, pois, a
catalogação como hino, com o que bem pouco se diz sobre o salmo em
particular.
Hino a Deus pela criação, não da criação. As criaturas, a numerosa
população do salmo, não são convidadas a bendizer ou louvar ao Senhor,
como pedia o salmo precedente dirigindo-se a “todas as suas obras”, ou como
fará o SI 148; tampouco louvam como os céus do SI 19, mas por elas o orante
louva a Deus. O papel das criaturas é portanto revelar. Em termos litúrgicos é como que um eco amplificado dos serafins (Is 6,3): “a terra está cheia
de sua glória” / a plenitude, o que enche a terra, é a sua glória. Em termos
de filosofia elementar, di-lo-ão mais tarde dois quase coetâneos:
Sb 13,5
Rm 1,20
Pela magnitude e beleza das criaturas
descobre-se por analogia aquele que lhes deu o ser.
Seu eterno poder e sua divindade são visíveis
para quem reflete sobre suas obras.
Costuma-se citar como paralelo ou inspirador do presente salmo o hino
ao Deus Sol de Akhenaton. Um recente artigo mostra que é cananéia a
pátria mental e espiritual desse salmo, e que o Egito assimila a influência
cananéia.
Cf. Uehlinger, Leviathan und die Schiffe in Ps 104,25-26, Bib 71 (1990)
499-526.
Mais que as influências externas, logo perceptíveis, interessa-me o
sistema de relações que o poema estabelece. O salmo não é enunciado
teórico, mas um canto, de que podemos aprender coisas importantes.
b) Deus e a criação
Deus é o criador, portanto; mas sua relação com o universo criado não
é exatamente a de Gn 1. Na primeira página da Bíblia, Deus é criador
transcendente, que se mantém fora de sua obra; dá ordens eficazes,
contempla, impõe nomes, cria espécies, imprime-lhes impulso gerador; e
retira-se para descansar. No SI 104, Deus permanece dentro do universo
celeste, como soberano em sua corte, e continua ocupando-se de suas
criaturas. O salmo precedente apresentava o Senhor como soberano de um
império:
103,19
22
O Senhor pôs no céu seu trono
e seu reinado em todo o seu império.
Bendizei ao Senhor, todas as suas obras,
em todo o território de seu império.
1282
Salmo 104
Semelhante é a visão do presente salmo: a de um soberano em seus
domínios. Imanente à criação? Não; sua soberania universal é sua trans­
cendência. O poeta não recorre ao símbolo espacial de “fora, para além, por
cima de” com respeito à totalidade criada. Isso diz respeito à visão poética,
porque se sente Deus próximo e presente. Gn 1 oferece-nos uma nobilíssima
visão hierática (muito admirada pelo autor do tratado Sobre o sublime). O
poeta do SI 104 transmite-nos um encontro contemplativo e cordial. (Mais
pormenores na exegese).
Por outro lado, Deus aqui não é artesão, como em Pr 8, mas soberano
(apesar do v. 24).
Podemos olhar (a relação) a partir de perspectiva temporal. Se Deus
um dia plantou cedros (16) e fez a lua (19), agora entra nos ritmos do tempo:
rega os montes (13) e faz germinar (estações 13s), dispõe das trevas
noturnas (ritmo diário, 20), joga comida (tarefa quotidiana, 28), retira o
alento e o envia (ritmos biológicos, 29s). O Deus do salmo não repousa num
sétimo dia perpétuo, continua, ao invés, atuando (cf. Jo 5,17).
c) O homem na criação
— O homofaber. Nesse mundo de céu, terra e mar, de seres inorgânicos,
montanhas e rios, de vegetais, árvores e outras plantas, de animais
selvagens e domésticos, ocupa lugar pouco conspícuo o homem: pela manhã
sai para suas fainas e retorna ao entardecer.
A aparição do homem podia ter centrado o poema, como no SI 8: “O que
é o homem?” Não ocorre assim, mas o trabalhador do poema atravessa os
versículos como se fossem sulcos, e afasta-se. Contudo, sua efêmera pre­
sença poética revelará ao poeta, diretamente e por contraste, dois tipos
humanos: o trabalhador e o contemplador.
A audácia e originalidade do poeta consiste em englobar o homo faber
dentro da natureza, como parte harmônica dela. O homem ocupa nada mais
que os versículos 14-15 e 23. O que faz? O que busca? Os animais dispõem de
rios para beber água (11), as feras “rugem pela presa reclamando de Deus a
comida” (21). O homem não tem tudo feito nem ruge: simplesmente “sai para
suas fainas até o entardecer”. Olhai-o respeitando o ritmo do tempo, inserido
nele. Suas fainas ordenam-se a tirar da terra pão, vinho e azeite. Pão para
recuperar as forças, porque não come os frutos como os encontra; vinho para
alegrar o ânimo, pois não se contenta com beber água; azeite para dar brilho
ao semblante, para realçar sua presença natural. Nem o pão aparece assado
nos sulcos, nem o vinho brota de mananciais, nem o azeite jorra de árvores.
O homem interpõe seu trabalho e artesania. O artificial é o natural para o
homem. Com seu artifício insere-se o homem na natureza.
Estudo global
1283
É o homo faber, que domina e submete a terra com seu trabalho
inteligente, que a explora sem exauri-la. Não é o Adão desterrado de Gn 3,
regando com seu suor para colher entre abrolhos. E trabalhador sereno,
pontual, sem sentimentos explícitos, que se assenhoreia modestamente de
parcela de terra. O autor do salmo não teria inconveniente em subscrever
que pão e vinho e azeite são fruto da terra e da videira e da oliveira e do
trabalho do homem. O homem trabalhador é parte integrante duma
natureza que revela a Deus; portanto, também ele revela singelamente.
—
O homem navegante. E uma variação do anterior. E curioso o
interesse pelo elemento aquático nesse poema (rastro de influêcia fenícia?):
as águas celestes (3), a agressão do oceano turbulento (6.7.9), os animais
junto a rios (10-11), a rega da chuva (13). Ora, no orbe há outras águas que
não são o oceano hostil ou tehom. E o mar tranqüilo, comedido: nele se
agitam sem número animais pequenos e grandes (25). Esse mar oferece o
dorso aos navios que o homem constrói, sustenta-os. O mar, onde os peixes
tecem e destecem sendas (SI 8,9), não amedronta o homem, ainda que não
seja seu elemento:
SI 107,23
Sb 14,2
Entraram em navios pelo mar
comerciando pelas águas imensas.
Navios que projetou o afã do lucro
e armou a perícia técnica.
Da mesma forma que o homem abandona seu elemento, que é a terra
firme, para aventurar-se pelo mar inquieto e desconhecido, ousará um dia
sulcar a atmosfera das aves e os espaços celestes? Nenhum poeta bíblico o
diz ou o sonha. Viagens celestes, em carros ou cavalgando ventos, são
competência de Deus (3). O que dizem Dt 30,12; Am 8,9 e SI 139,8 são puras
hipóteses poéticas.
d) O homem contemplador
Dentro do poema observamos uma paisagem humanizada pelo homo
faber. Fora do poema descobrimos o poeta como homo contemplator. Sentase para olhar ao passo que os demais se movem, se afanam, trabalham e
descansam.
Afinando conceitos, podemos distinguir entre observar e contemplar.
O observador registra e cataloga fenômenos, o contemplador os ultrapassa.
O botânico e o entomólogo devem ser bons observadores, o contemplativo
transcende os fenômenos. Claro está que muitos observadores, amantes da
natureza, sabem controlar cientificamente a obervação e depois desbordála. Contemplar é um modo de abertura do homem, de penetração através
de superfícies translúcidas. O menino é contemplador inocente, o poeta é
1284
Salmo 104
contemplador comunicativo, o homem religioso pode ser contemplador
inspirado.
Fazia-me falta essa digressão para situar o SI 104 e muitos outros
textos poéticos do AT. Como observador, é superior Salomão (lRs 5,13s);
como contemplador, faz companhia ao autor de Jó e dá exemplo ao
Eclesiástico (Eclo 43). Ninguém lerá o presente salmo para aprender
história natural, nem sequer para averiguar o que os homens antigos
sabiam de ciências naturais. Para apropriar-se do salmo, é preciso comun­
gar com o seu cunho contemplativo.
e) O poeta, contemplador e artesão
— Contemplador. O autor, além de deixar-nos um poema insigne, dános uma lição. Contemplar é ato gratuito, amoroso e alegre. É descobrir sem
interesse utilitário, é tomar sem gastar, pode-se compartilhar sem perder.
Contemplando equilibra-se o afã febril, enxuga-se o suor do rosto, serenase o homem, como Jó da mão de Deus.
Enquanto o homo faber dentro do poema “sai para suas fainas até o
entardecer”, o poeta fora do salmo contempla. Não está inativo, ainda que
não esforce os músculos nem se ponha a raciocinar. Seu repouso não é
preguiça, mas atenção desperta.
— Artesão. O poeta é contemplador comunicativo. O círculo dos
contemplativos é mais largo que o dos poetas. Porque o poeta não se
contenta com contemplar, mas faz algo. Na língua grega, sua atividade é
poesis (ação) e seu produto é poema (ato, obra). Em termos modernos
diríamos que sua tarefa é transformar em palavra poética sua experiência
contemplativa para torná-la comunicável e participável. Se nos ocupamos
do anônimo autor do SI 104, não é só nem principalmente por seu exemplo
de contemplador, mas porque nos deixou um poema. Foi homem da palavra.
Enquanto o homo faber passa o dia, de sol a sol, inclinado sobre o campo
da lavoura e “preocupa-se de traçar os sulcos” (Eclo 38,26), o poeta passou
horas do dia, e talvez da noite, sobre campos de linguagem, glebas de
sintagmas e sulcos de paralelismos poéticos. Não é mais fácil nem menos
laborioso tirar um poema da pedreira da linguagem que transformar o suor
em fecundidade e tirar da terra pão e vinho e azeite. Esses produtos foram
consumidos pelo homem para seu alimento, gozo e valor físico. O produto
do poeta é um poema que pervive e continua alimentando espiritualmente
muitos homens de muitas gerações.
O homem contemplativo não ficou extasiado e em silêncio, mas
transformou a contemplação em poema para que comunguemos com o
poeta no louvor de Deus, na possessão desinteressada e gozosa da criação.
Estudo global
1285
O Eclesiástico formula em diversas passagens a tensão entre contemplação
e palavra:
42,25
43,31
39,14
Uma obra excede a outra em beleza:
quem se saciará de contemplar sua formosura?
Quem o viu que possa descrevê-lo,
quem o louvará como ele é?
Elevai a voz em canto de louvor,
bendizei ao Senhor e a suas obras.
Primeiro a contemplação nunca saciada, depois a impossibilidade de
expressar-se, finalmente a necessidade de proclamar-se.
A tensão entre o homo faber e o homo ludens (o poeta) está resolvida
no ato poético do salmo. E este é um de seus valores permanentes.
f) Deus e o poeta
Partindo da experiência humana, alguns autores bíblicos imaginam um
Deus artesão, Deus faber, e contemplador. O primeiro capítulo do Gênesis é
exemplar: Deus é soberano que dá ordens, “disse Deus”, e artesão que
executa, “fez Deus”; também é contemplador de sua obra, “e viu Deus”. O
artista contempla sua obra acabada, e lhe agrada. O SI 104 o dá a entender
com o uso dos verbos. Ao passo que a terra “se sacia” e os animais “pegam a
comida e se saciam”, ao passo que o homem “tira pão e vinho e azeite”, Deus
■‘alegra-se com suas obras”. Tê-las feito, bem feitas, é o pagamento do artesão.
Pode Deus se alegrar também pelas obras de outros? O poeta espera
que assim sej a. O poema é tudo o que ele pode oferecer a Deus. Caim oferecia
espigas, Abel oferecia cordeiros, os israelitas ofereciam animais e frutos
agrícolas. Quando “agradam” a Deus, as oferendas são válidas, ficam
consagradas. A oferenda do poeta é seu poema. Por isso pede “que lhe seja
agradável meu poema, e eu me alegrarei com o Senhor” ou “festejarei o
Senhor”. A última frase é significativa. Vimos que o contemplador não tira
partido, não se sacia, mas goza. Pois bem, recitando seu poema, o poeta quer
compartilhar do “gozo” de seu Senhor. Que melhor prêmio para a contem­
plação poética?
O salmo fez-nos refletir sobre questões fundamentais da palavra
poética na oração de Israel e em ordem à nossa apropriação dessa palavra.
g) Composição
Até o v. 24, o salmo procede em ordem. Depois do brevíssimo invitatório,
canta a Deus no céu em nove versículos (1-9). Seguem nove versículos
dedicados à terra, alternando o mundo selvagem (10-12) com o domesticado
1286
Salmo 104
(13-15) e outra vez o selvagem (16-18). Depois contempla o ritmo de dia e
noite com suas correspondentes atividades (19-23). Encerra-se com uma
exclamação que poderia ser o final do poema, ao acrescentar em inclusão o
invitatório.
A partir daí, dá a impressão de que o poeta acrescenta coisas esqueci­
das ou que ocorreram mais tarde. Oferece-nos uma visão marinha (25-26).
O v. 27 começa com um “todos eles” que logicamente devem ser os animais
da primeira parte, e não só os precedentes, do mar; 27-28 enlaçam-se pelo
tema com 21; 29-30 contemplam o ritmo misterioso de vida e morte. O v. 31
poderia ser uma nova conclusão, que se alarga no v. 32; 33-34 são a dedica­
tória do poema ao Senhor. Antes de voltar ao invitatório, como petição impor­
tante, como se por acaso, pronuncia-se o v. 35.
Certamente, em poema dedicado à beleza e harmonia da criação
podíamos esperar composição mais harmoniosa. As quebras lógicas são
patentes; e se há alguma razão poética para a ordem atual, ela se nos
esconde. Tampouco estamos autorizados a mudar o texto atual. Não seria
difícil melhorá-lo. Faça-se a prova de transferir o mar (25-26) para depois
das montanhas (18); de juntar o ritmo do alimento e da vida e da morte (2730) atrás dos ritmos quotidianos (19-23); de concluir com 33-34, mais o
versículo do invitatório. Essas mudanças não alterariam o sentido, mas
dar-nos-iam um objeto poético que não é o que nos toca comentar.
5. Exegese
1. Para o invitatório, veja-se o salmo precedente e observe-se a bre­
vidade sóbria desse começo. A segunda frase do versículo já faz parte do
tema: uma espécie de exclamação, dirigida ao Senhor em segunda pessoa.
A segunda pessoa será abandonada na súplica dos versículos 31-32 e
logicamene na dedicatória do poeta. Es grande: se o adjetivogadol predicado
de Deus é freqüente, o verbo é raro. O orante quer resumir tudo nesse
versículo programático: no SI 99 era a santidade, no 103 a misericórdia,
nesse a grandeza.
lb-9. Propõem imagem unitária do Senhor como soberano real: apre­
senta-se com vestes régias, construiu-se um palácio nas alturas. Quando
sai a percorrer seus domínios, dispõe de carro de nuvens ou de cavalgaduras
aladas de ventos. Despacha seus legados e servidores com mensagens e
encargos. Cimenta solidamente a terra. E se, lá em baixo, alguma de suas
criaturas rebela-se e tenta assaltar a outra, o oceano à terra, com um
bramido a reprime, e impõe sua ordem distribuindo zonas e traçando
fronteiras.
Exegese
1287
Não há outros deuses em sua corte. O tehom perdeu sua grandeza
mitológica e está reduzido a veste que recobre; se por acaso se desmanda,
Deus não tem que lutar contra ele; basta-lhe um bramido. Alargando-nos
um pouco no v. 10, que funciona como enlace pelo tema aquático, observa­
mos as águas terrestres pacíficas e postas nos leitos por Deus. Nada é
dramático por ora nos domínios do Senhor.
lb-2a.Como em Gn 1, a primeira critura mencionada é a luz. Mas, que
diferença! Lá Deus fá-la existir como uma ordem contemplando-a de fora.
Aqui o Senhor envolve-se nela como que num manto. Não um manto como o
do Senhor em Is 6, nem como o manto de poder do SI 93,1, mas a luz invisível
manifestando e ocultando a Deus, revelando sua majestade. O Deus bíblico
não é como os deuses gregos, que exibem a nudez para exaltar a beleza.
2b-3a. Os céus são como que lona estendida de tenda de campanha,
como que esplêndida barraca real (cf. Ct 1,5). Com salões superiores acima
das águas celestes (veja-se SI 29,10). Também essa corresponde à segunda
criatura de Gn 1, com a mudança conveniente: em vez do firmamento ou
abóboda laminada e resistente, a lona de barraca; e as águas superiores
ficam sob os altos salões do palácio.
3b. Abandonamos por ora o Gênesis e, sem perder de todo o contato,
passamos aos meteoros. O Senhor passeia pela órbita ou espaços celestes;
as nuvens, no plural, servem-lhe de carro: com sua mobilidade e ligeireza
transladam para toda parte o seu Senhor. Compare-se com Is 1 9 ,1 : “Vede
o Senhor cavalgando em ligeira nuvem”; Is 1 4 ,1 4 , onde o imperador soberbo
se propõe: “subirei ao dorso de uma nuvem”. O primeiro vento, no singular,
poderia ser transformação do “vento divino” que pairava sobre o caos (Gn
1 ,2). O versículo inteiro pode estar inspirado no SI 1 8,1 1 , onde um querubim
faz a função da nuvem.
4.
Continua a série de meteoros: ventos, no plural, e fogo chamejante
de raios e relâmpagos. Os ventos, com sua mobilidade em todas as direções,
prestam-se como mensageiros ou portadores de recados do Senhor, que os
controla e envia (vejam-se SI 148,8 e Eclo 39,28). Outros textos aplicam o
verbo Iht a incêndios diversos; aqui creio que estamos ainda na zona de
meteoros superiores.
5-6.0 terceiro dia de Gn 1 emprega-se para separar a terra firme do mar.
A mesma coisa aqui. A terra está solidamente alicerçada, de modo que, ainda
que trema, não se desencaixa de seu lugar. A expressão é freqüente (por
exemplo, SI 93,1; 96,10). O terrível tehom reduz-se à mera função de veste.
Como o Senhor veste-se de luz, assim também a terra veste-se de oceano.
Tomo o segundo hemistíquio como tentativa de agressão, como assalto,
sabendo que outros o interpretaram de outra maneira. Imaginam-se as
águas cobrindo toda a superfície da terra, inclusive acima das montanhas;
1288
Salmo 104
e depois retirando-se, ao escutarem a censura de Deus. Seria alusão ao
dilúvio ou a uma situação primordial semelhante. Creio mais provável a
outra explicação: de águas não se predica o verbo ‘amad (Gn 7,19 emprega
gbr); ‘md ‘l significa em geral atacar, assaltar (DBHE ‘md 4); a censura
que segue supõe conduta censurável. Essa interpretação não exclui a
alusão ao dilúvio, que parece soar no v. 9; o que afirma é o movimento
agressivo das águas como personagem “má” do drama, ainda que bem
controlada.
7. Cinco vezes em quinze o sujeito do verbo g ’r é Deus e dez vezes em
quinze do substantivo. Um versículo de Isaías ilustra o versículo presente
porque apresenta uma exército em figura de ondas marinhas, desbaratado
pela censura / bramido do Senhor:
17,2
13
Ai! retumbar de multidões
como retumbar de águas que retumbam;
bramar de povos
como bramar de águas caudalosas que bramam!
Ele lhes lança um grito, e fogem para longe.
Veja-se também Is 50,20: “com um grito secou o mar”.
8. O que dizemos em sentido próprio, referindo-nos aos gigantescos
movimentos geológicos da crosta terrestre, diz o poeta bíblico como
imagem da origem dos acidentes terrestres. As montanhas sobem e os
vales descem. Compare-se com o SI 65,7, onde Deus coloca os montes bem
aprumados.
9. Aos hebreus fascinou a misteriosa e segura fronteira da terra e do
mar, e os poetas expressaram o estupor de diversas formas. Entre eles
destaca-se Jó 38,10s:
quando lhe impôs um limite com portas e fechaduras
e lhe disse: Até aqui chegarás e náo passarás,
aqui se quebrará a arrogância de tuas ondas.
Vejam-se também Jr 5,22; SI 148,6; Pr 8,29.
10-12.Esses três versículos são no AT o que há de mais próximo de
tentativa de paisagem como nós a concebemos. São pinceladas sem
desenvolvimento, mas a atitude do poeta é a de paisagista que conta com
Deus. Sua paisagem é animada e dirigida pela água: vê-a brotar de
mananciais, correr entre montanhas, atrair animais sedentos, alimentar
árvores onde se aninham e cantam pássaros. O sujeito de tudo é o Senhor,
que despacha os arroios como se estivesse presidindo e controlando os
mananciais. De novo vemos a Deus metido dentro de sua obra e atuando
nela.
Exegese
1289
13-15. Esses quatro versículos ocupam-se da terra enquanto fértil e
cultivada. Dois dados são duvidosos. O primeiro as montanhas (13): referese à vegetação espontânea e aos frutos silvestres de que se alimentam os
animais selvagens?; ou refere-se já a montes cultivados pelo homem? O
primeiro coloca esse versículo fora e em contraste com o cultivo humano que
segue; o segundo está em consonância com o SI 65,13.
Tendo em conta Gn 1, podemos pensar que o salmo fala primeiro em
geral, expondo a ação de Deus, que será base e condição do trabalho
humano. O terceiro dia criou Deus as plantas (csb) de semente e árvores
frutíferas que se reproduzem por sementes. O SI 104 pensa primeiro nas
árvores e menciona logo a erva. Mas agora a ação de Deus não é criadora,
e sim sustentadora. Dos altos salões de seu palácio celeste, Deus “dá de
beber” aos montes, e com sua atividade faz com que produzam frutos
destinados ao alimento. Gn 1 explica-o em 29-30:
Eis que eu vos entrego todas as ervas... e todas a árvores frutíferas... vos
servirão de alimento. E a todos os animais da terra ... a erva verde lhes
servirá de alimento.
Ao concentrar-se na chuva como condição e agente de fertilidade, o
salmo enlaça-se com Dt l l ,l l s . A atividade do lavrador insere-se nesse
contexto.
13.
Em Gn 1, Deus ordena que as árvores produzam fruto; aqui o
alimento terrestre é “fruto da ação” de Deus, que não descansa.
Apresenta-se aqui a segunda dúvida, a propósito de ‘bdh. Em paralelo
com bhmh, pode ser um abstrato por concreto e significar os que trabalham,
as bestas de carga. Em texto suficientemente claro para nosso propósito
atual diz Pr 14,4:
Onde não há bois, o celeiro fica vazio,
a força do touro traz rica colheita.
Veja-se também Jó 39,9-12. A outra alternativa é que ‘bd.h significa já
as “fainas” agrárias do homem, que se especificam em seguida.
14-15. O poeta escolhe três produtos básicos, que não faltam na lista
ie coisas essenciais (Eclo 38,26). O sujeito do gerúndio Ihwçy’ é o homem,
que assim fica subordinando sua atividade à ação de Deus. O pão dá forças,
3 vinho alegria, o azeite brilho.
16-18. Com esses três versículos voltamos à zona silvestre e monta­
nhosa. Começa pelas árvores corpulentas que o homem não plantou nem
cultivou: também elas “saciam-se” como a terra (13b, primeiro enlace). Tam­
bém delas se ocupa o Senhor enviando-lhes chuva. O Líbano com seus cedros
e talvez com ciprestes e zimbros) representa a região não habitável, dificilmene acessível e cobiçada desde tempos muito antigos (Gilgamés e Huwawa).
Salmo 104
1290
Mas não despovoada de animais, que se aninham em suas árvores (como 12,
segundo enlace).
19-20. Em divisão tripartida de céu, terra e mar, este seria o lugar opor­
tuno para o terceiro. O poeta prefere passar a outra categoria, ligada à criação
do quarto dia: o sol e a lua, que marcam o ritmo do dia e da noite, a lua com
suas fases, o ciclo do mês. Neste mundo estelar, Deus surge simplesmente
como criador (‘sh), sem atividade particular e contínua. No versículo seguin­
te, porém, diz o poeta “traz as trevas”, o que sugere ação diária.
20-21. A criação de animais em Gn 1 distribui-se entre o quinto e o
sexto dia. O salmo distribui-os em vários versículos, sem esquecer a divisão
tripartida de celestes, aquáticos e terrestres. Interpreta-se o rugido do leão
como pedido que o animal dirige a seu dono, como sua maneira natural de
pedir a quem convém; esse rugido não infunde terror (Am 3,8).
22. Como os animais têm seus postos designados, assim têm as feras
seus tempos definidos, que são diversos dos humanos.
23. O versículo recolhe as duas últimas palavras do v. 14, talvez
decidindo a interpretação de ‘bdh. E trabalho essencialmente diuturno,
pois enquanto o homem dorme (SI 127,2), Deus encarrega-se de ativar a
fecundidade da terra. Ben Sira conhece outros trabalhadores que “empre­
gam a noite como dia” (Eclo 38,27).
24. Nesse versículo, como em outros semelhantes, hkmh não é conhe­
cimento intelectual, mas saber fazer, destreza artesanal, habilidade e tino.
Por tudo o que antecede, m‘sy são obras e ações, toda a atividade divina; ao
passo que qnym são as criaturas.
25-26. Do mar retém o poeta três aspectos. O primeiro, a imensidade
(cf. Is 11,9; Eclo 43,24); o segundo, os animais inumeráveis (Gn 1 fala de
“pulular”): é visão de navegante e pescador; o terceiro é a navegação. Esse
modo de olhar o mar é mais fenício ou cananeu do que egípcio: o poeta
egípcio está demais embebido no Nilo para fixar-se no mar; sua navegaçãc
é principalmente fluvial:
“O Nilo celeste é para os povos estrangeiros
e para todos os animais que caminham pelos desertos;
ao invés, o Nilo é para o Egito
e brota de seu mundo subterrâneo”.
(Do hino de Akhenatonj.
Nesses três dados não apareceu Deus, o que difere da secção preceden­
te. Deus apresenta-se no gratuito, num quarto dado inesperado e bemvindo. A última frase admite duas traduções, segundo a repartição de
sujeito e possessivo. Essas são as soluções possíveis:
O Leviatã que modelaste para brincar com ele.
O Leviatã que modelaste para que brinque nele.
Exegese
1291
Na primeira leitura, temos um Deus desportista, que brinca com uma
de suas criaturas, com uma das mais temíveis; como brincam com outros
animais os homens:
Jó 40,29 Brincarás com ele como um pássaro,
ou o atarás para que brinquem tuas filhas?
fala do Leviatã = crocodilo). O que os homens não podem, fá-lo Deus.
Na segunda leitura mostram-se-nos o espírito e o destino brincalhão do
Leviatã = golfinho. Em ambas as soluções, o Leviatã passou de monstro
mitológico terrorífico a povoador inofensivo e festivo dos mares.
27-28. “Todos” tem que se referir a todos os animais até agora men­
cionados: todos dependem diretamente de Deus para seu sustento quotidiano
como os animais domésticos e de carga na fazenda dos homens). Todos
dependem de Deus: com seu instinto, acrescentamos nós.
29-30. Não encontro nesse versículo nenhuma idéia de ressuscitar
animais mortos. Creio que o poeta contempla o maravilhoso e misterioso
continuar das espécies sob o controle imediato de Deus. Segundo Gn 1, Deus
cria todos os animais “segundo suas espécies”, em indivíduos e parelhas
fecundas. Uns morrerão, outros nascerão, e assim continuará o ciclo da vida
segundo as formas criadas por Deus (o pensamento bíblico é fixista, não
evolucionista). Ora, toda vida é alento (ruh) de Deus (Gn 6,17; 7,15). Deus
controla esse alento de vida: “em sua mão está o respiro dos viventes e o
alento do homem de carne” (Jó 12,10). Por isso, se Deus “retira” aos seres
vivos seu espírito, expiram:
Jó 34,14
15
Se decidisse por sua conta
retirar seu espírito e seu alento,
expirariam todos os viventes,
e o homem viraria pó.
Retirando-o a uns, e comunicando-o a outros, assim são “criados'”. É o
alento de Deus e deles: “enquanto eu tiver respiro e o alento de Deus mas
narinas” (Jó 27,3). E como se Deus possuísse um alento único do qual retira
e comunica muitas participações: “todos têm um só alento” (Ecl 3,19).
31. Soa como nova conclusão, eco da primeira (24). A “glória do
Senhor” parece ser aqui o reconhecimento mais que a manifestação.
Parafraseando: seja conhecida a glória do Senhor que se manifestou e se
manifesta continuamente em suas criaturas. E que Deus continue ale­
grando-se com todas elas, como se alegrou ao criá-las, vendo que eram tão
boas e belas.
32. Por que esse versículo aqui para caracterizar a relação do Senhor
com sua criatura terrestre? O sentido do versículo é claro e conhecido:
descreve a reação do mundo inanimado à teofania de Deus: tremor e
1292
Salmo 104
estremecimento da terra, fumegar de vulcões nas montanhas (Ex 19,18:
Sinai e casos semelhantes). Mas, por que aqui? Ocorre-me pensar que o
poeta, depois de ter sentido a fascinação de Deus na criação, quer assinalar
também o aspecto tremendo de sua grandeza: “fascinosum et tremendum”.
Respeito reverenciai deve acompanhar a contemplação extasiada.
33-34. O poeta terminou e parece contente com sua obra: saiu-lhe bem
a letra e dispõe-se a cantá-la com acompanhamento instrumental. Agrada­
rá também a Deus? Assim o espera, e essa será sua maior alegria: não tanto
o acerto poético como a aceitação divina.
35.
Tudo concluído, eis que soa um versículo inesperado. Há algo
alguém que perturba a harmonia e beleza da criação: os pecadores, os
malvados. Se pudessem ser desterrados dessa terra de maravilhas ... O
assalto do oceado foi reprimido, e traçou-se fronteira que não ultrapassa.
Não seria possível reprimir os pecadores? Não era tudo bom quando Deus
criou o mundo? A beleza da criação é denúncia desse corpo que sente como
estranho, do qual quereria desfazer-se. E também um convite a sonhar com
uma criação em que não exista o pecado.
6. Transposição cristã
Desta vez, Santo Agostinho, com seus quatro sermões sobre o salmo,
ensina-nos o que não devemos fazer. Vai substituindo cada criatura
sensível por uma realidade espiritual: os salões superiores são a caridade,
virtude suprema, as nuvens são os pregadores que explicam a Escritura, os
ventos são as almas e suas asas são as virtudes e boas obras. No fim,
eliminou do salmo, não os pecadores, mas as belas criaturas. As breves
observações que oferece sobre o sentido literal não compensam.
Desta vez tenho que deixar Agostinho e tomar por mestre um
contemplativo cristão. Porque o que buscamos é recitar esse salmo incluin­
do Jesus Cristo: como ele o recitou, como ele o transformou ao fazer-se parte
da criação e ao transfigurar a criação em sua glorificação. Do Tabor, onde
manifesta sua glória luminosa, estendemos a vista em torno dessa nossa
terra; da nuvem que o transporta ao céu, olhamos para cima e para baixo.
Escolherei, como mestre de contemplação e poeta, São João da Cruz, de
quem copio algumas estrofes do Cântico espiritual:
“O bosques e espessuras
plantados pela mão do Amado;
ó prado de verduras
de flores esmaltado;
dizei se por vós ele passou.
Transposição cristã
1293
Mil graças derramando,
passou por esses bosques com pressa,
e, indo os olhando,
só com sua figura
vestidos os deixou de sua formosura ...
Meu Amado, as montanhas,
os vales solitários, nemorosos,
as ilhas estranhas,
os rios sonorosos,
o silvo dos ares amorosos”.
Pode-se completar a leitura desse salmo com o capítulo 43 do Eclesiás­
tico. Pode-se ler também a tradução desse salmo por Fray Luiz de León.
Finalmente, é oportuno recordar o importante papel da contemplação da
natureza num autêntico programa de educação ecológica.
Salmo 105
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Dai graças ao Senhor, invocai seu nome,
informai suas façanhas aos povos.
Cantai-lhe ao som de instrumentos,
comentai todas as suas maravilhas.
Gloriai-vos de seu nome santo,
que se alegrem os que buscam o Senhor.
Recorrei ao Senhor e ao seu poder,
buscai sempre sua presença1.
Recordai as maravilhas que fez,
seus prodígios e as sentenças de sua boca.
Estirpe de Abraão, seu servo;
filhos de Jacó, seu eleito!
O Senhor é nosso Deus,
ele governa toda a terra.
Recorda-se sempre de sua aliança,
da palavra dada, por mil gerações;
da aliança selada com Abraão
e dojuramento feito a Isaac,
10 confirmado como lei para Jacó,
como aliança eterna para Israel.
11 A ti darei o país cananeu
como lote de tua herança2.
12 Quando eram uns poucos mortais,
contados e emigrantes no país,
13 quando erravam de povo em povo,
de um reino a outra nação,
1seu rosto
2lote hereditário
Salmo 105
14 a ninguém permitiu oprimi-los,
e por eles castigou reis:
15 “Não toqueis nos meus ungidos,
não maltrateis meus profetas”.
16 Chamou a fome sobre aquele país,
cortando o sustento de pão.
17 Adiante tinha enviado um homem,
José, vendido como escravo.
18 Travaram-lhe os pés em grilhões,
meteram-lhe o pescoço na argola,
19 até que se cumpriu sua predição,
e acreditou-o a palavra do Senhor.
20 O rei mandou libertá-lo3,
o soberano lhe abriu a prisão.
21 Nomeou-o administrador de sua casa
e senhor sobre todas as suas posses,
22 para que a seu gosto instruísse os nobres
e lecionasse aos conselheiros4.
23 Então Israel entrou no Egito,
Jacó emigrou para o país de Cam.
24 Deus fez seu povo muito fecundo
e mais poderoso que seus inimigos.
25 Mudou-lhes o coração para que odiassem seu povo
e usassem de más artes com seus servos.
26 Enviou Moisés, seu servo;
e Aarão, seu eleito,
27 que executaram contra eles sinais
e prodígios contra o país de Cam.
28 Enviou a obscuridade, e escureceu,
mas eles resistiram a suas palavras.
29 Converteu suas águas em sangue
e deu morte a seus peixes.
30 Puluvam5 rãs pelo país,
até nos aposentos reais.
31 Ordenou que viessem tavões
e mosquitos por todo o território.
3 soltou
4 senadores
5coaxavam
1295
1296
Salmo 105
32 Em vez de chuva deu-lhes granizo
e raios por todo o território.
33 Danificou figueiras e vinhas
e quebrou as árvores do país.
34 Ordenou que viesse gafanhoto,
saltões inumeráveis,
35 que roíam a erva da terra
e devoravam os frutos de seus campos.
36 Feriu os primogênitos do país:
primícias de sua virilidade.
37 Tirou-os carregados de ouro e prata,
e entre suas tribos nenhum tropeçava.
38 Os egípcios alegraram-se com sua partida,
porque os intimidou o terror.
39 Estendeu uma nuvem para os cobrir
e um fogo para os alumiar de noite.
40 Pediram, e enviou codornizes,
e os saciou com pão celeste.
41 Fendeu a penha, e brotou água,
que correu feita um rio pelo deserto.
42 Porque se recordava da palavra sagrada
que tinha dado a Abraão, seu servo.
43 Tirou seu povo com alegria,
seus escolhidos com aclamações.
44 Atribuiu-lhes as terras dos pagãos,
e possuíram as fazendas das nações.
45 Para que assim guardem seus segredos
e observem sua lei. Aleluia.
2. Bibliografia
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1297
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3. Análise filológica
6.
bhyryw: o suf pi supõe como antecedente bny, a pari o antecedente
de *bdw poderia ser zr‘.
15. christos meos Vg: pela eleição Teodor, pela manifestação da
palavra de Deus Atanásio, honrados como reis Qim, posição de reis e
beneficiários de revelações Baeth.
16. virgampanis Jerôn, em que se apóia sh‘n o homem Qim Ros Del;
literalmente, rompeu a vara do pão (a vara em que se enfiavam as roscas);
cf. Ez 4,16; 5,16.
18. ferrumpertransiit animam eius, in ferrum venit anima eius Jerôn
= Sím; bzl faz de complemento de b’h.
19. inflamavit eum Vg, probavit Jerôn, como prata purificada Qim.
22. l’sr: leia-se lysr (cf. o paralelo hkm) com Gr Jerôn Gun But Kraus.
bnpshw: equivale a brçwnw Jerôn Qim Hitz Del.
27. smw: sgl Gr Sir; dbry redundante cf. SI 65,4; 145,5; DBHE dbr Cl.
28. I’mrw. corr suprimindo V Gr Sir ou lendo shmrw ou shm‘w Hitz.
30. ’rçm: suj fem do verbo masc antecipado Joüon 150 b, rãs compl;
Dah inverte as funções.
33.
videira e figueira são projeção da cultura da Palestina Holm
Nielsen.
36. laboris, partus Jerôn; possessões Eut.
38. phdm: sufixo de genitivo objetivo.
40. sh’l: leia-se pl (haplografia), ou sing com sujeito indeterminado
Joüon 155 d.
1298
Salmo 105
4. Estudo global
a) Gênero e colocação
— Se guiados pela versão grega unimos o aleluia precedente ao SI 105
como encabeçamento, dispomo-nos a entendê-lo como hino; o que se
corrobora com várias expressões do invitatório. Doutro lado, o primeiro
verbo do salmo significa em geral dar graças, e o teor do salmo confirma o
dado ao expressar sentimentos de agradecimento pelas ações e dons do
Senhor. Ou seja, o salmo, por forma e conteúdo, situa-se nessa zona pouco
diferenciada entre hino e ação de graças.
Pelo conteúdo, o salmo é meditação histórica com bastante profissão de
fé (credo histórico) e uma ponta parenética. Pelo tema histórico, pode-se
agrupar com os SI 78, 106 e 136.
— Esse salmo vem depois do grande hino pela criação, e, ainda que
sejam muito diversas a entoação e a qualidade poética, têm algo comum que
permite ajuntá-los sem dissonância. E a visão do Deus metido em sua
criação e na história, deslanchando sua ação benéfica. Que a história se
ponha a olhar o passado é lógico: é seu ofício; mas pode-se olhar também a
criação como primeiro capítulo da história. Assim parece concebê-lo Gn 1
em sua posição atual. O SI 104 contempla a criação presente, em seu desen­
volvimento normal e mesmo quotidiano; o SI 105 ocupa-se de etapa histó­
rica, ficando no fim aberto à continuidade da observação. Os dois olham com
olhos límpidos o seu Deus dirigindo de perto a criação e a história.
Outro tanto faz Ben Sira = Eclesiástico: na última parte de seu livro
entoa longo hino a Deus, primeiro pela criação e depois pela história de seu
povo. Talvez lhe tenha fornecido a pauta o SI 136 com sua síntese apertada
e estilizada de criação e história.
b) Deus protagonista
A história pode ser contada e repassada de muitas maneiras. O orante
é aqui, como em muitos textos bíblicos, o narrador onisciente que abarca
tempos e espaços e personagens. Desde o versículo 11, quando começa a
fluir a história, a maioria dos verbos têm por sujeito a Deus; e, quando os
homens agem, agem subordinados a Deus.
Deus age algumas vezes pela palavra, dando ordens que se cumprem:
“ordenou que viesse” (31.34). Outras vezes envia uma personagem ou um
acidente: José, Moisés, trevas (17.26.28); também pode ferir ou golpear
diretamente (33.36). E mais, pode penetrar na vontade do homem para
dirigir por ela os acontecimentos: “mudou-lhes o coração” (25). No final, não
é o povo que sai, mas Deus que tira.
Estudo global
1299
Em alguns momentos parece que o homem toma a iniciativa, “lhe
travaram os pés com grilhões” (18); mas por breve tempo, definido pelo
cumprir-se de uma profecia, “até que se se cumpriu sua predição” (19). Se
à primeira ação resistem os egípcios (28), no final “se alegram” de que
partam os israelitas (38). Tudo o que fazem os israelitas é descer ao Egito
durante uma carestia (23) e pedir comida no deserto (40).
Semelhante maneira de contar, minimizando a iniciativa humana,
tira dramatismo à história. Não há encruzilhadas em que a história esteja
perfeitamente aberta à decisão humana. A razão é que não se trata aqui
tanto de contar como de louvar a Deus: se a história é tema, a atividade é
louvar.
c) Aliança e promessa
A história que conta e canta o orante é regida por unidade de projeto
e realização. E curioso que o verbo recordar, tão próprio do historiador, tão
recomendado ao povo no Deuteronômio, o salmo o atribua a Deus; e isso
formando uma inclusão decisiva (8.42), oferecendo a chave para entender
unitariamente a história:
8
42
recorda-se da aliança eternamente
recordava-se da palavra sagrada
A assembléia é convidada a recordar no invitatório (5).
Aliança ou promessa? A pergunta propõe problema teológico grave (de
que se ocupará expressamente Paulo). O texto fala duas vezes de “aliança”:
sua “aliança, aliança perpétua” (8.10). E sabido que o termo berit é usado
com sentido diverso por duas escolas teológicas. A deuteronômica refere-o
a uma aliança bilateral condicionada pelo cumprimento das cláusulas; a
sacerdotal refere-o ao compromisso unilateral que Deus assume, e que não
é condicionado, ainda que possa impor exigências. Onde se situa o salmo?
Usando o termo técnico krt, parece mover-se na área deuteronômica, já que
a sacerdotal usa o verbo hqym. Mas outros dados desautorizam essa
conclusão. No salmo, berit é sinônimo de palavra e juramento; seu conteúdo
é pura promessa, “darei” (11), e o cumprimento é “deu” (44). Deus compro­
meteu-se com os patriarcas para os sucessores, e não pode faltar com sua
palavra. Tal é a teologia simples e linear do salmo.
Objetar-se-á que a dilatada história desemboca na observância: “para
que guardem e cumpram”. Não há contradição. Desde a promessa feita a
Abraão até a entrada dos israelitas em Canaã impera a promessa; a partir
daí, toca ao povo responder cumprindo a lei. A recordação do salmo não se
ocupa da aliança do Sinai. Quanto à terminologia, o salmo representa um
estádio ou uma mentalidade menos rigorosa.
1300
Salmo 105
d) Composição e estilo
— A composição é relativamente simples. Chama a atenção o invitatório
por sua extensão em sete versículos, com dez imperativos (e um jussivo
equivalente); os convidados são “estirpe de Abraão, filhos de Jacó”. O corpo
estende-se do v. 8 (ou do v 7) até o final. A inclusão já apontada dezkr (8.42,'
e ntn (11.44) é formal e significativa.
No corpo, os versículos 8-11 são como que a proposição; no v. 12, a ação
põe-se em movimento. O que segue articula-se irregularmente em etapas
históricas.
—
Além do ponto de vista já exposto, há alguns aspectos dignos de
menção. Cronologia invertida: na realidade narrada, o evento do v. 23 segue
como conseqüência do v. 16: houve uma carestia, e desceram ao Egito. O
narrador mete entre ambos, em cunha, um evento precedente (traduzimos
em mais-que-perfeito). Essa inversão narrativa mostra que tanto o narrador
como o protagonista controlam de antemão os fatos. E ao mesmo tempo
como projeção em escala reduzida do esquema maior: antecipar um acon­
tecimento em previsão de outro posterior é como antecipar uma promessa
em previsão de seu cumprimento. Um esquema semelhante, em escala
mais reduzida, ocorre no episódio de José: a prisão dura até que se cumpra
uma predição; a predição antecipa o acontecimento para que o cumprimen­
to seja fator decisivo.
Desapareceu toda linguagem mitológica ou imaginativa. Repassa-se a
história com traços empíricos; alguns pormenores descritivos retêm por um
instante a atenção. Recorde-se em contraste que no SI 18 o suposto Davi
transforma sua experiência vital numa batalha mitológica do Senhor com
as forças mortíferas do caos.
O recurso dominante é o paralelismo sinonímico com pouca originali­
dade, bastante acadêmico. Ainda que o salmo esteja redigido em versículos
bastante regulares, o estilo é prosaico.
5. Exegese
l-7.Longo invitatório como que avisando que tratamos de tempo lento,
andante ou adagio. Quem entoa o convite parece ter querido acumular
todas as expressões tradicionais e convencionais do gênero. Mesmo assim
se repete no nome, nas maravilhas, no buscar. Ainda que seu tema seja
rigorosamente nacional, quer audiência internacional (1), já que seu Deus
é Deus universal (7). Na coordenada do tempo, a comunidade atual
entronca-se com os patriarcas (6), preparando assim o corpo do salmo.
Exegese
1301
3. Nesse versículo solicita-se a participação emotiva da comunidade:
gloriai-vos, alegrem-se. O louvor redunda em benefício de seus atores.
4. O verbo drsh, que um tempo teve sentido específico de consultar,
passou a significar a veneração ou simples recurso. “Buscar o rosto” é
psicologicamente desejar a presença, culticamente acorrer ao templo (veja
o SI 27).
5. As “sentenças” são tanto judiciais como legais, são genericamente
atos de governo; o v. 7 indica seu alcance universal. Um governante governa
em grande parte por meio da palavra.
6 .0
paralelismo deixa lugar para dois patriarcas; mais abaixo figura
rão os três (9-10). Pode-se citar um texto paralelo: Is 41,8: “Tu, Israel, servo
meu; Jacó, meu eleito, estirpe de Abraão, meu amigo”.
7.
Pela forma, esse versículo pode ser começo do corpo, o primeiro
motivo de louvor. Também pode-se considerar como final do invitatório;
depois de identificar os que cantam, identifica-se o destinatário com nomes
e títulos: Deus de um povo, Senhor universal.
8-11. Proposição da história sucessiva. Personagens os três patriar­
cas, o terceiro com seu nome duplo. Fora do Gênesis e da fórmula clássica,
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o segundo patriarca não é hóspede
habitual das páginas bíblicas (o binário Isaac e Jacó de Am 7,9.16 é anô­
malo). Dois textos podem iluminar o nosso, pelo ternário patriarcal (subli­
nho algumas palavras pertinentes):
Lv 26,42 Então eu recordarei meu pacto com Jacó, meu pacto com Isaac,
meu pacto com Abraão: recordar-me-ei da terra (cf. 2Rs 13,23).
Jr 33,26 Escolherei entre sua descendência os chefes da estirpe de
Abraão, Isaac e Jacó.
Nos textos da vocação de Moisés que põem em marcha o êxodo repetese o trio patriarcal, como no SI 105.
Não menos imporante que os três nomes é o sistema artificioso dos
complementos, distruibuídos em três versículos. Abre e encerra a “aliança”
de vigência “perpétua” (8a. 10b); no meio se sucedem como sinônimos:
"palavra, juramento, lei/ decreto”, aos quais se aplicam os verbos “mandar,
estipular (krt), confirmar”. E o conteúdo de toda essa rede é “a ti te darei”
11). Esse jogo artificioso mostra que o autor sintetiza livremente elemen­
tos tradicionais que num tempo estavam mais bem diferenciados.
Sobre o dom da terra como conteúdo do juramento: Gn 26,3; Dt 7,8; Jr
11,5. A expressão hbl nhlt é rara (Dt 32,9; SI 78,55).
12-15.Começam as andanças patriarcais, com o verbo tradicionalgur.
De todos os episódios que lhe oferece a tradição, o autor escolhe e apresenta
por alusão os três em que a matriarca, Sara ou Rebeca, está ameaçada: Gn
12,10-20 Abrão e o Faraó; 20,1-18 Abraão e Abimelec; 26,1-11 Isaac e
1302
Salmo 105
Abimelec. Com isso acentua o tema da “estirpe” legítima e mostra ao mesmo
tempo a relação dos patriarcas com reis. Por que merecem tanto respeito
alguns estrangeiros peregrinantes? Porque o Senhor os considera “os meus
ungidos, os meus profetas”: dois títulos surpreendentes: ungidos: como
sacerdotes ou como reis? Teríamos um Abraão equiparado a Melquisedec,
o rei sacerdote de Jerusalém (Gn 14); Abraão e Jacó exercem funções
cultuais que mais tarde serão reservadas a sacerdotes. O título de “profeta”
é dado por Deus a Abraão por sua função de intercessor (Gn 20,7). Com isso
alcançamos notável quaternário de títulos: “servo, eleito, ungidos, profe­
tas”. O autor transfigura a era patriarcal.
16-23.Descida ao Egito. Já expliquei a artificiosa inversão cronológica
que permite introduzir José desempenhando papel principal na história.
Sem ser quarto patriarca, tem papel preponderante entre os irmãos. Como
em algumas tradições particulares (Dónde está tu heramano?, 245). Ao
delito fraterno alude-se de passagem, numa passiva sem sujeito agente: os
recitadores do salmo sabem de que se trata. O importante para o autor é que
“o tinha enviado Deus” como peça de seu projeto.
16.0 “sustento” é, literalmente, a vara ou bastão. Alguém o explicou
como uma vara ou pau em que se enfiavam rosquinhas de pão para seu fácil
transporte: romper essa vara equivale a privar de pão.
18.0 paralelismo serve desta vez para concentrar a descrição em dois
traços eficazes: acorrentado de pés e pescoço.
19. Muito original é a segunda frase. Que a palavra do Senhor é pura
e acrisolada, o sabemos (SI 12,7; 18,31; 119,140; Pr 30,5). O novo é dizer que
a palavra / predição acrisolou José, demonstrando seus dotes proféticos; ou
então o acerto de sua predição limpa-o da falsa acusação demonstrando sua
inocência.
20. Também José, como os três patriarcas, relaciona-se com reis.
21-22. A julgar pelas categorias empregadas, o governo entra numa
categora sapiencial (ysr e hkm). Is 19,11 fixa-se nos sábios conselheiros da
corte do Faraó; o SI 105 fá-los discípulos sujeitos a José. Também a
sabedoria egípcia era proverbial, mas José sabe mais que eles (como Daniel
na corte babilónica).
24.
Num versículo resumem-se séculos: em território estrangeiro
amadurece a promessa de descendência feita a Abraão. O verbo prh é
técnico.
25-26. Como no livro do Êxodo, o tempo de narração não coincide com
o tempo narrado: séculos num versículo, um episódio em dois versículos.
Começa introduzindo os protagonistas imediatos. A mudança de atitude
dos egípcios é atribuída em Ex 1,18 à mudança de dinastia: “um rei novo que
não tinha conhecido José”; o salmo atribui-o imediatamente a Deus (cf. ISm
1303
Exegese
10,9). Depois apresenta os outros atores do confronto, Moisés e Aarão, aos
quais confere os títulos dados a Abraão e Jacó (6); como se a nova parelha,
sem ser patriarcal, ocupassse o lugar dos antepassados. Sua tarefa será
taumatúrgica: fazer sinais e portentos.
28-36. Ficam nove versículos para as sete pragas selecionadas. Sabi­
do é que o Êxodo apresenta dez e dispõe-nas numa estrutura de grande
valor narrativo. Para faciliar a comparação, proponho as duas listas.
Ex
S l105
Nilo-sangue
Nilo-sangue
rãs tavões
peste
úlceras
granizo
gafanhoto
trevas
primogênitos
trevas rãs
mosquitos
tavões e mosquitos
granizo
gafanhoto
primogênitos
O granizo com seu aparato de tempestade perde no salmo sua posição
culminande da segunda ronda; as trevas adiantam-se como premonição de
quanto segue e dando força à última ronda. O autor selecionou e ordenou
com liberdade, mas não igualou a versão do Êxodo; logicamente tinham que
coincidir na última praga. Outra versão no Sl 78,44-51.
29. O sangue, que é sede da vida, dá morte aos peixes, alimento básico
dos egípcios.
30. Se se aceita a correção conjetural e simples de mlkyhm (plural não
justificado) por melek yehmu, obtemos um traço acertado: “nos aposentos
reais coaxavam”; a conjetura não tem apoio documental.
32.
Recordemos que a tormenta é fenômeno inusitado no Egito e que
os hebreus consideravam-na teofania.
34-35. Gafanhoto: pode-se ver a transformação imaginativa de J1 2.
36.
Primícia da virilidade (Gn 49,3; Dt 21,17; Sl 78,51). A insistência
nos sufixos -hem e -am, somados à palavra ham e dam, conferem unidade
sonora e ênfase à série.
37-38. Assim culmina a saída, sem o grande episódio do mar Verme­
lho. Saem ricos, compensados do trabalho forçado, e fortes, prontos para as
novas jornadas (cf. em contexto militar Is 5,27). O “pânico” como em Ex
15,16.
39-41. A etapa do deserto estiliza-se em três elementos básicos: guia
e proteção pelo caminho, comida e bebida. Desaparecem fadigas e motins,
não há parada para o grande episódio do Sinai. Se o silêncio é intencionado
e calculado, o autor quer levar a aliança à raiz da promessa aos patriarcas.
1304
Salmo 105
O maná chega depois das codornizes e supera-as como manjar “celeste”. Os
israelitas não fazem senão deixar-se levar. Inclusive Moisés, terminada a
função dos sinais, não tem tarefa pessoal.
42. A chave de tão suave eficácia é dada por esse versículo, fazendo eco
a 8-10; mas aqui a aliança desaparece, e tudo remonta à promessa.
43-44. Dois versículos resumem a epopéia: saída alegre e triunfal, entrada
na terra para tomar posse dela.
45. Uma vez assentados na terra prometida com juramento, o que lhes
toca fazer? — Cumprir a lei do Senhor. Onde e quando a deu? O salmo supõeno conhecido. Tudo procedeu sem tropeço, e é fácil entoar o aleluia final. Mas
cuidado, pois após o Sl 105 vem o Sl 106 com seus sete pecados capitais.
6. Transposição cristã
Promessa. Começamos com um texto de Paulo que combina ambas as
coisas:
Rm 9,6 E não é que a promessa de Deus tenha falhado. E que nem todos
os que procedem de Israel são israelitas, nem por estirpe de Abraão são
filhos, pois (se diz): Em Isaac continuará teu nome. Ou seja, não são os filhos
carnais por sê-lo filhos de Dios, mas consideram-se estirpe os filhos da
promessa.
Paulo estabeleceu aí um princípio que supera a geração carnal. Na
carta aos Gálatas, expondo o tema da promessa, acrescenta uma nova
identificação:
3.16 As promessas fizeram-se a Abraão e a sua estirpe. Não diz estirpes
no plural, mas estirpe no singular, “tua estirpe”, que é o Messias.
17 Explico-o: Um testamento outorgado por Deus não é anulado por uma
lei promulgada quatrocentos e trinta anos mais tarde, invalidando assim a
promessa. 18 Pois se a herança se desse em virtude da lei, não o seria em
virtude da promessa. Ora, Deus faz a Abraão uma doação com uma pro­
messa.
3,26 Todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27 Pois os que
fostes consagrados a Cristo pelo batismo, vos tendes revestido de Cristo. 28
Já não há judeu ou grego, já não há escravo ou livre, já não há varão ou
mulher. Porque todos formais uma unidade por Jesus Cristo. E se sois de
Cristo, sois estirpe de Abraão, herdeiros em virtude da promessa.
A doutrina enriquece-se na carta aos Romanos:
4.16 Por isso depende a promessa da fé, para que seja gratuita e válida
para toda a estirpe: não só na linha da lei, mas na linha da fé de Abraão, que
é pai de todos nós, como diz a Escritura: Farei de ti pai de muitos povos.
Transposição cristã
1305
Além de subministrar matéria para reflexão teológica, ensina-nos o
salmo a meditar a história com afeto de louvor. A de Israel, sentindo-a como
história ou pre-história nossa; a da Igreja, na qual continuam presentes e
ativos Deus Pai e o Cristo glorificado. Os Atos dos Apóstolos poderiam
oferecer matéria para um salmo histórico cristão. E não é preciso deter-se
aí: outras etapas da história da Igreja são dignas de ser meditadas com
espírito de louvor e ação de graças. A matéria para o aleluia não se esgotou.
Salmo 106
1. Texto
1
2
3
4
5
Dai graças ao Senhor, porque ele é bom,
porque é eterna sua misericórdia.
Quem poderá contar as proezas do Senhor
ou fazer seu elogio completo?
Felizes os que respeitam o direito
e praticam em toda ocasião a justiça.
Recorda-te, Senhor, de mim, por amor a teu povo,
ocupa-te de mim com tua salvação,
para que goze da dita de teus eleitos
e compartilhe da alegria de teu povo
e me glorie com tua herança.
6
Temos pecado com nossos pais,
temos cometido maldades e iniqüidades.
7 Nossos pais no Egito
não compreenderam tuas maravilhas;
não se recordaram de tua insigne lealdade,
rebelaram-se contra o Altíssimo junto ao mar Vermelho.
8 Mas ele os salvou pela honra de seu nome,
para manifestar seu poder.
9 Increpou o mar Vermelho, e ele secou;
conduziu-os entre as ondas como pelo deserto.
10 Salvou-os da mão do adversário,
resgatou-os da mão do inimigo.
11 As águas cobriram1os atacantes,
sequer um só ficou vivo.
12 Então creram em suas palavras
e cantaram seu louvor.
1 afogaram
Salmo 106
13 Bem cedo se esqueceram de suas obras
e não contaram com seu desígnio.
14 Seu apetite foi insaciável no deserto
e tentaram a Deus na estepe.
15 Ele lhes concedeu o que pediam,
mas enviou-lhes uma cólica pela gula.
16 Invejaram Moisés, no acampamento,
e Aarão, consagrado do Senhor.
17 Abriu-se a terra e tragou Datã
e fechou-se sobre Abiram e seus sequazes.
18 Um incêndio abrasou seu bando,
uma chama consumiu os culpados.
19 Em Horeb fabricaram um bezerro
e adoraram um ídolo de fundição2.
20 Mudaram sua glória pela imagem
de touro que come capim3.
21 Esqueceram-se de Deus, seu salvador,
que fizera prodígios no Egito,
22 maravilhas no país de Cam,
portentos junto ao mar Vermelho.
23 Já falava de aniquilá-los;
mas Moisés, seu eleito,
plantou-se na brecha diante dele
para afastar sua cólera do extermínio.
24 Desprezaram uma terra invejável
desconfiando de sua palavra,
25 e murmuravam4 nas tendas
desobedecendo ao Senhor.
26 Alçando a mão lhes jurou
que os faria cair no deserto,
27 que dispersaria sua estirpe entre os pagãos
e os expulsaria por várias regiões.
28 Ligaram-se com Baal Fegor
e comeram sacrifícios de mortos5.
2 uma imagem fundida
3herbívoro
4 nas tendas
5de sacrifícios fúnebres
1307
1308
Salmo 106
29 Provocaram-no com suas ações,
e uma praga irrompeu no meio deles.
30 Mas ergueu-se Fineés para fazer justiça,
e a praga cessou.
31 E foi-lhe apontado em seu favor,
por gerações sem fim.
32 Irritaram-no junto a Fonte do Acareamento6,
e por sua causa aconteceu mal a Moisés:
33 tinham-lhe amargurado o ânimo
e desvairaram seus lábios.
34 Não exterminaram os povos
que o Senhor lhes tinha mandado;
35 emparentaram-se com os pagãos
e imitaram seus costumes;
36 adoraram seus ídolos
e caíram em seus laços;
37 imolaram a demônios
seus filhos e filhas;
38 derramaram sangue inocente
e profanaram a terra
ensangüentando-a7.
39 Contaminaram-se com suas obras
e prostituíram-se com suas ações.
40 A ira do Senhor acendeu-se contra eles
e abominou sua herança.
41 Entregou-os em mãos de pagãos,
e seus adversários os submeteram;
42 seus inimigos os tiranizavam
e os dobravam sob seu poder.
43 Quantas vezes os livrou;
mas eles, obstinados em sua atitude,
pereciam por suas culpas.
44 Mas ele olhou sua angústia
ao escutar seus clamores,
45 recordando seu pacto com eles
e compadeceu-se por sua insigne bondade.
6Meriba
7com homicídios
Análise filológica
1309
46 Fez com que se movessem à compaixão
os que os tinham deportado.
47 Salva-nos, Senhor nosso Deus,
reúne-nos dentre os pagãos,
e daremos graças a teu nome santo,
e louvar-te será nossa glória.
48 Bendito o Senhor Deus de Israel,
desde sempre e para sempre.
(Responde todo o povo) Amém. Aleluia
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3. Análise filológica
3. Variação estilítica de plural e singular.
6. ‘m: com, igual que (Jó 9,26; Ecl 2,16) GB 595 a.
1310
Salmo 106
7.
‘I ym : ascendens in mare Gr (‘olim); alguns corrigem para íywn
BHap Gun; ‘lyk Hitz.
15. rzwn: plesmone Gr.
22. variação estilítisca de preposições.
23. stetisset in confractione in conspectu eius Vg, medius contra faciem
Jerôn, muri perruptione Genebr.
27. Ihpyl: literalmente, lançaria a semente; leia-se Ihpyç com Sir Targ
Del Gun (cf. Ez 20,23).
28. initiati sunt, consecrati Jerôn; mtyrn deuses inertes, pelos mortos
Weiser.
29. wyk‘ysw: uso absoluto.
31. thshb: feminino por neutro.
33.
hmrw : rebelaram-se, ou de mrr amargaram Jerôn, distinxit in
labiis suis Vg, inconsiderate loqueretur Münster, haesitavit / dubitavit
Genebr, amphiboliam Teodor.
38.
Suprimido como glosa: o sangue de seus filhos e filhas que sa­
crificaram aos ídolos de Canaã.
42. wykn‘w : paranomásia de Canaã Allen.
45. literalmente, recordou-se em atenção a eles de seu pacto.
4. Estudo global
a) Gênero literário
—
O salmo divide-se comodamente em introdução (1-5), corpo (6-46)
conclusão (47). O corpo é uma confissão coletiva de pecados, o epílogo é uma
petição. A introdução é enigmática: começa dois versículos de hino ou ação
de graças, continua com uma bem-aventurança, termina com uma súplica
individual. Como se unem essas peças entre si e com o corpo? Para
responder, o melhor é orientar-se pelo mais seguro, que é o corpo.
E constituído por uma confissão de pecados históricos, não típicos nem
genéricos: são sete, cometidos durante a etapa do êxodo, de fronteira a
fronteira, mais um continuado na terra prometida. Por seu caráter de
repasse histórico, este salmo pode-se agrupar com os 78,105 e 136. De modo
particular com o 105, como anverso e reverso de medalha: benefícios de
Deus, rebeliões do povo. Fariam boa parelha na liturgia.
Como confissão de pecados, é preciso buscar-lhes os parentes em outra
parte: no gênero “confissão de pecados”, que se cristaliza e se afirma
durante o desterro e depois. Formam um grupo homogêneo que compreen­
de as peças seguintes: Esd 9,6-15; Ne 9; Dn 3,24-45 (grego); Dn 9; Bar 1,15-
Estudo global
1311
3,8. A comunidade do desterro, da diáspora ou dos repatriados dirige-se a
Deus pelos lábios de presidente da assembléia (não explícito em Baruc),
reconhecendo uma relação bilateral do povo com o Senhor: ele foi fiel à
aliança, cumpriu com todos os seus compromissos; o povo, porém, pecou,
confessa-o e pede perdão e libertação. Nessa confissão entra um fator de
teodicéia explícito: Deus é inocente, o desterro e outros castigos justificamse pela reincidência e contumácia do povo em seu pecado. Os benefícios
recordados e o perdão reiterado, além de justificar a conduta de Deus,
acrescentam um agravante à conduta do povo. O perdão reiterado permite
ao mesmo tempo esperar hoje novo ato de clemência.
Fator importante nessas confissões é a consciência de solidariedade no
delito; quase uma espécie de cumplicidade. Solidariedade do povo com os
chefes e solidariedade através do tempo com os antepassados. Ao confessar
os pecados, sentem-se unidos e pecadores de nascimento: ou seja, desde que
nasceram como povo.
— Este é o mundo espiritual do salmo, e em seu contexto é preciso
explicar a introdução e analisar ou ilustrar com paralelos seus componen­
tes. Fá-lo-emos na exegese.
Os versículos finais do salmo dizem-nos que o povo ou parte dele
encontra-se desterrado ou disperso. Essa situação explica a amplidão e o
modo de tratar a conduta do povo na terra prometida. Se perderam sua
terra, foi por seus pecados; se esperam recuperá-la, é pela misericórdia do
Senhor. A situação influi também em alguns particulares que soam como
antecipação ou premonição do desterro.
b) Composição
— O corpo do salmo consta, como já indicamos, de sete pecados mais
um. Não digo oito, porque o último difere em extensão e caráter. Pela forma,
o oitavo poder-se-ia suprimir, e ganharia a composição; pelo conteúdo, como
a etapa do deserto desemboca na terra prometida, é lógico que se leve
expressamente em conta. Mas o poeta trata-o com técnica diversa.
Os sete pecados históricos não se submetem a padrão comum único: nem
todos são perdoados por Deus. Quando Deus concede seu perdão, no primeiro,
quarto e sexto, variam a motivação e o esquema: no primeiro “pela honra de
seu nome”, no quarto pela intercessão de Moisés, no sexto porque Finéias fez
justiça. Esse dado da composição revela a soberania de Deus e mostra que o
perdão não é mecânico: convida à esperança, refreando a presunção.
Ainda que o autor pareça conhecer a versão do Pentateuco, não segue
a ordem tradicional dos eventos, e sim faz duas inversões. O episódio do
bezerro de outro ocupa o quarto lugar, ou seja, o central de sete, o culmi­
1312
Salmo 106
nante; daí observamos que Moisés figura nominalmente no terceiro e no
sétimo. O episódio da água reserva-se para o final, talvez porque assim
explica imediatamene o fato de Moisés não ter entrado na terra prometida.
O oitavo apresenta-se primeiro num movimento encadeado, até o v. 42.
Depois se quebra a linha em favor de desenvolvimento por contrastes.
—
O estilo mantém um compromisso entre exigências narrativas e
gosto pelo paralelismo sinonímico. Como a disposição é de blocos sucessi­
vos, poderíamos ir comparando-os em busca de analogias e contrastes. Por
exemplo, a duas figuras destacadas de Moisés e Finéias; os egípcios
“cobertos” pelas águas e o bando de Abiram “coberto” pela terra. Parece que
o autor não explorou essa possibilidade. Muitas ações dos israelitas são
específicas; outras são genéricas, positivas ou negativas: “não se recorda­
ram, esqueceram-se” (7b. 11.12), “rebelaram-se, irritaram”, “não se fiaram,
não atenderam, não obedeceram”. Essas peças representam passagem
para generalizar e categorizar os pecados específicos.
5. Exegese
1-5. Vimos que se compõe de três peças heterogêneas: um ato de louvor,
uma bem-aventurança, uma petição pessoal. Têm relação entre si? Como
afetam o corpo do salmo?
A bem-aventurança. Olhando para cima, poderíamos tomá-la como
resposta à pergunta retórica: quem poderá? — Quem respeita. Olhando
para baixo, poderíamos tomá-la como princípio genérico ao qual se acolhe
o orante: felizes os que observam ... conta-me pois com eles. Ambas as
explicação revelam-se forçadas.
Provemos unir esse salmo ao precedente. O louvor (1-2) faz eco ao
hino histórico que se acaba de recitar. A bem-aventurança (3) comenta o
último versículo do Sl 105: para que observem sua l e i ... felizes os que a
observam. Isso é menos forçado, mas é difícil de provar. Outro particular:
o orante pede aqui que Deus “se recorde dele” (4); o Sl 105 apóia-se na
repetição de recordar-se (8.42). Também essa relação é difícil de provar.
Contudo, a leitura unificada dos dois salmos sucessivos suavizaria alguns
problemas.
Tentemos noutra direção, lendo esses versículos em função do corpo do
salmo. Louvor e confissão sugerem-nos relação dialética: apesar dos bene­
fícios de Deus, o povo persiste em seus pecados; apesar dos pecados do povo.
Deus o protege. Mas Deus também castiga, pelo que não se deve submeter
fatalmente nem confiar presunçosamente, pois a verdadeira dita consiste
em praticar a justiça.
Exegese
1313
1-2. O primeiro versículo é uma fórmula litúrgica de uso múltiplo; o
segundo pondera a grandeza do tema. Por que começamos com um ato de
louvor uma confissão de pecados? Talvez nos dê a resposta Ne 9, ao explicar
as circunstâncias da celebração:
3 Permaneceram em seus postos um a quarta parte do dia, enquanto
se lia o livro da lei do Senhor seu Deus, e passaram outra quarta parte
confessando e rendendo homenagem ao Senhor seu Deus ... E os levitas
disseram: Levantai-vos, bendizei ao Senhor vosso Deus, desde sempre e
para sempre; bendizei seu nome glorioso, que supera toda bênção e
louvor.
A cerimônia penitencial começa com louvor, e acrescenta-se que é
impossível louvar a Deus como ele merece. Exatamente como no salmo. O
mesmo encontramos em outra cerimônia penitencial que começa com
louvor e continua com a teodicéia e a confissão (Dn 3, grego):
26
27
29
Louvado e glorificado seja teu nome para sempre
O que fizeste conosco é justificado ...
porque temos pecado
Como se relaciona esse começo ao corpo do salmo? Inserindo a confis­
são em quadro de louvor, atitude mais radical, anterior ao pecado e poste­
rior ao perdão. Confessar a grandeza de Deus induz a confessar o próprio
pecado; ser perdoado induz a louvar a Deus. Lidos desse modo, os dois
primeiros versículos consitutem parte de quadro que influencia no sentido
de quanto segue.
3.
Bem-aventurança. mshpt e çdqh em seu significado genérico abar­
cam as exigências éticas (segundo Ez 18 e 33, especialista no binário). Mas
mshpt poderia aludir globalmente às cláusulas da aliança (cf. Ex 15,25 e Js
24,25). Na segunda interpretação, podemos apelar a Dn 9,4: “que guardas
a aliança e és leal para com os que te amam e cumprem teus mandamentos”.
Nessa hipótese e no lugar que ocupa, o versículo ilumina por contraste a
desgraça de não o ter cumprido.
4-5. Alegando os privilégios da comunidade, um indivíduo pede a Deus
poder desfrutar deles. Como relação do indivíduo com a comunidade, esses
versículos são notáveis; como introdução à confissão dos pecados, são
enigmáticos. E verdade que em outras liturgias penitenciais não é raro que
3 presidente fale de si em primeira pessoa (por exemplo, Dn 9,3-6), mas não
para suplicar como o orante do salmo.
Outra explicação encontra-se descendo ao final do salmo (47), que é
uma súplica comunitária. Unindo os versículos 4-5 ao 47, a súplica
individual antecipa a comunitária e se acolhe nela, a confissão inteira é
enquadrada na súplica, e isso tudo segue a um pórtico de louvor.
1314
Salmo 106
6.
Alguns comentadores atribuem esse versículo à introdução, mas as
convenções do gênero o dissuadem. Compare-se o versículo com outros co­
meços:
Dn 9,5 temos pecado, temos cometido crimes e delitos.
Bar 1,17 porque pecamos contra o Senhor não fazendo caso dele.
A partícula ‘m e a menção dos antepassados expressam a solidarie­
dade histórica no pecado, a condição pecadora antepassada. E normal no
gênero:
Esd 9,7
desde o tempo de nossos pais até hoje
Ne 9,2
seus pecados e a culpa de seus pais
Dn 9,16
pelos nossos pecados e delitos de nossos pais
Bar 1,19 desde o dia em que o Senhor tirou nossos pais do Egito até
hoje não fizemos caso do Senhor nosso Deus
7-11. Primeiro pecado: na passagem pelo mar Vermelho (Ex 14):
“Não compreenderam”, porque não estavam dispostos. Ainda que compreen­
der seja atividade sapiencial, está condicionada pela atitude ética e religio­
sa. Por isso não entender considera-se muitas vezes culpável; é não querer
entender (cf. Sl 14,2; 94,8; Dt 32,29). Também é culpável “não recordar”,
eqüivalente de lançar em esquecimento (Sl 78).
O perdão não se concede por méritos do povo nem por intercessão de
Moisés, mas unicamente pela honra de Deus. Doutrina freqüente em
Ezequiel (20,9.14.22.44; 36,21s; também Is 48,9; Jr 14,7.21). Outros parti­
culares segundo Ex 14,31; 15,1.
13-15. Segundo pecado: avidez (Nm 11). No pecado, a penitência.
Não se contentar com a comida normal qualifica-se de “tentar a Deus” (Sl
78,18). Concedendo o que pedem, Deus os satisfaz e os castiga (Nm
ll,19s).
16-18. Terceiro pecado: rebelião de Datã e Abiram (Nm 16). O relato
de Nm entrelaça com pouco êxito duas rebeliões: a sacerdotal de Coré,
castigada com o fogo, e a civil de Datã e Abiram, castigada fazendo com que
a terra os trague vivos. O salmista elimina da cena Coré e retém o duplo
castigo, ainda que se revele incoerente. Contudo, ao mencionar Aarão e
Moisés, soa por alusão o tema sacerdotal. Como em Nm 16, o castigo se
circunscreve ao “bando de malvados”.
19-21. Quarto pecado: o bezerro de ouro (Ex 32). Esse pecado parte
também dum esquecimento: do Deus salvador e de suss proezas no Egito.
Não há esse esquecimento em Ex 32, pois Aarão explica claramente: “Este
é teu Deus, Israel, o que te tirou do Egito” e logo dedica a festa a Yawh. O
delito consistiu em quebrantar um mandamento fabricando-se uma ima­
gem que representasse Yhwh ou sustentasse sua presença. O salmista não
Exegese
1315
aceita tal precisão. Segundo ele, os israelitas adoram uma imagem, uma
manufatura humana, substituindo com ela a “Glória” do Senhor, que é
presença sem imagem. O epíteto “herbívoro” condensa todo o seu desprezo.
A grande intercessão de Moisés (Ex 32,11-14) chama-a o autor de “pôrse na brecha e afastar a cólera”. O delito abriu larga brecha no acampamen­
to ou na muralha espiritual do povo: por ela vai entrar a ira aniquiladora
do Senhor para difundir-se por todo o recinto. Moisés põe-se na brecha e
fecha a passagem para a cólera. Ato valente e audaz de confrontar-se com
Deus, que é o que Deus deseja. Ezequiel utiliza a imagem, com uma
variação, polemizando com os falsos profetas:
13,5
Não acudiram à brecha nem levantaram cerca
em torno da Casa de Israel,
para que resistissem na batalha,
no dia do Senhor.
O verbo hshhyt é empregado por Dt 9,26 para outro episódio de
intercessão de Moisés.
24-27. Quinto pecado: recusam entrar na terra prometida (Nm 13-14).
O salmista interpreta-o como falta de fé ou confiança na promessa de Deus,
que quer cumprir-se em seguida, e falta de obediência à ordem de entrar.
Não separa Josué e Caleb, nem menciona outra intercessão de Moisés. A
terra tem um adjetivo: hemda = preciosa, desejável, invejável. Adjetivo que
se lê em outros dois contextos significativos: denunciando a profanação
desta terra (Jr 3,9) e recordando sua desolação (Zc 7,14). É possível que o
autor já esteja pensando no que aconteceu séculos mais tarde. O adjetivo
"invejável” resume todo o informe positivo dos exploradores.
No v. 26 resume o discurso de Deus (Nm 14), mas a ampliação do v. 27
(corrigido) não se lê nem em Nm 14 nem em Dt 9. Palpamos aqui o trabalho
de atualização. O autor conhece os fatos do desterro e da dispersão e pro­
jeta-os ao tempo fundacional do povo: como então muitos morreram no
deserto e não chegaram a possuir a terra, asssim muitos perderam aquela
terra e vivem e morrem em país estrangeiro. Não quer dizer o autor que a
rebelião de Nm 13-14 tenha sido a causa do desterro, mas que em ambos os
acontecimentos operou o mesmo espírito de rebeldia e desobediência. Acen­
tua a continuidade, a solidariedade no pecado. O presente ou passado
próximo remonta-se à sua raiz mais profunda. Moisés dizia: “Desde que vos
conheço, fostes rebeldes ao Senhor” (Dt 9,24). “Aventar pelo país” é
expressão típica de Ezequiel.
28-31. Sexto pecado: prostituição em Baalfegor (Nm 25). O episódio
está bem resumido, inclusive repetindo algumas frases mais escolhidas:
“ligar-se, cessou a praga”. Ao invés, “irrompeu” parece inspirar-se em Ex
19,22.24. Ao sacerdócio não se alude absolutamente. O mais notável é que
1316
Salmo 106
a reação violenta de Finéias transforma-se em “intercessão”. Nm 25 falava
de “afastar a cólera” e “expiar”. Pois bem, o primeiro atribui-se a Moisés
(23b), o clássico “interceder” de Moisés (Nm 11,2; 21,7) atribui-se a Finéias
(30s). “Contou-se em seu favor, contou-se-lhe como mérito” (Gn 15,6).
32-33. Sétimo pecado: ao fato se referem três textos narrativos (Ex
17,l-7;Nm20,l-13;Dt9,7-8); aludem a ele vários salmos (81,8; 95,8s; 99,8).
Apesar de tal abundância, o acontecimento permaneceu na penumbra,
especialmente o que diz respeito à conduta de Moisés. O autor, sem negar
a culpa de Moisés — dado tradicional — , busca-lhe atenuante na provoca­
ção do povo. A vocalização massorética diz que “fizeram-no rebelar-se”; com
mais acerto seguem as versões outra vocalização que produz o significado
de “amargaram”, que se apóia em formas eqüivalentes de mrr com npsh
(ISm 30,6; 2Rs 4,27; Jó 27,2). O pecado não é de ação, mas de palavra. Como
o verbo “desvairar” aparece só aqui e em Lv 5,4; em Pr 12,18, não é possível
precisar mais seu alcance. Vê-se que toda a posteridade quis deixar na
penumbra o pecado específico de seu grande chefe.
34-42. Para ganhar clareza, dividimos o pecado oitavo em duas sec­
ções. A primeira descreve um processo coerente, quase uma dialética fatal
de ações e conseqüências. O salmo precedente terminava deixando os
israelitas, ao chegar à terra prometida, com a tarefa de guardar a lei do
Senhor. A última parte do Sl 106 toma-os nesse movimento e descobre nele
o ponto de paítida para a tragédia histórica. O encadeamento é parte do
sentido dessa meditação histórica. Vejamos o processo em esquema.
Entram na terra e não eliminam seus habitantes — antes a eles se
unem em relações matrimoniais — , com o que imitam seus costumes e
praticam a idolatria — a qual inclui entre suas práticas os abomináveis
sacrifícios humanos — , os quais profanam a terra santa — pelo que o
Senhor os castiga submetendo-os aos pagãos. As etapas do processo têm
seus antecedentes em diversos textos legais e proféticos.
34. Exterminar. A legislação de Ex e Dt exclui a aliança com as
populações de Canaã (Ex 23,32; 34,15; Dt 7,2). Mas, enquanto o Êxodo
manda que não os deixem viver no território adquirido (Ex 23,33) e
Números manda expulsá-los (Nm 33,52), o Deuteronômio recrudesce
retrospectivamente uma lei de exterminar {hrm), acrescentando que é
mandato do Senhor (Dt 7,2; 20,16s). O salmo segue o rigorismo do Deu­
teronômio.
35. Emparentaram-se: voltamos a encontrar o verbo ht‘rb só quando
da reforma rigorista contra os matrimônios mixtos (Esd 9,2 e o substantivo:
Ne 13,3); Dt 7 usa o verbo mais corrente hthtn. Imitar / aprender pode
proceder diretamente de Dt 20,18: “para que não vos ensinem a cometer as
abominações que eles cometem”.
Exegese
1317
36. Se o Dt fala de “deuses estrangeiros”, o salmo chama-os despectivamente “ídolos”. O narrador de ISm 30,9 e 2Sm 5,21 designa com esse
termo os ídolos dos filisteus. Para as estátuas costumam empregarpsyZy/n.
Armadilha / laço: lê-se como motivação na legislação (por exemplo, Ex
23,33; 34,12; Dt 7,16).
37. Sacrifícios humanos oferecidos a “demônios”: tal é a tradução
tradicional do bíblico shedim. Ainda que o termo original acádico designe
os guardiães fantásticos dos templos, estátuas intimidatórias de animais
polimorfos, os dois autores bíblicos que retomam o termo dão-lhe sentido
pejorativo para designar de maneira burlesca as divindades estrangeiras.
Se o Segundo Isaías nega aos deuses pagãos toda realidade, o salmista
rebaixa-os a condição desprezível e perversa. Algo semelhante fará uma
tradição eclesiástica considerando os deuses pagãos como demônios.
O AT fala repetidamente de sacrifícios humanos. Ofereciam-se em
geral a certo deus Moloc, e o lugar do ritual encontrava-se no Vale Hinon
= Gehenna. Podem-se consultar: Lv 20,2; Dt 12,31; 2Rs 16,3; 17,31; 23,10;
•Jr 7,30-32; 19,3-5; Ez 16,20-21; Sb 12,4-6.
38. O versículo alarga-se com uma glosa inconfundível, que identifica
o “assassínio” com os sacrifícios humanos precedentes. “Derramar sangue
inocente” é forma fixa para designar o homicídio e o assassínio; figura na
legislação, em textos narrativos, proféticos e sapienciais. Assim se passa da
esfera cultual para a esfera ética da justiça. Também “profanar a terra” é
fórmula fixa; podem mudar suas causas: Jr 3,2.9 atribui-o à idolatria, o
salmo aos homicídios. Veja-se Nm 35,33:
Não profanareis a terra em que viveis: com o sangue profana-se a terra,
e pelo sangue derramado não há mais expiação do que pelo sangue daquele
que o derramou. 34 Não contamineis a terra em que viveis e em que eu
habito.
39. Possui valor de resumo. Contaminar-se e prostituir-se são termos
freqüentes na pregação de Ezequiel.
40. A ênfase recai sobre o complemento: contra seu povo, sua herança;
não contra os inimigos ou pagãos. E ira amplamente justificada (teodicéia).
41-42. A seqüência “irritou-se — entregou em poder de” é empregada
pelo Deuteronomista para compor seu quadro teológico para episódios dos
juizes. Os outros verbos, oprimir, subjugar e dominar, encontram-se em
contextos variados. Podem-se aplicar à etapa dos juizes, antes da monar­
quia, ou abarcar toda a história até o desterro inclusive.
43-46. Pondo diante “muitas vezes”, o autor parece indicar que preten­
de resumir um processo repetido, de modo que o advérbio modal abarca o
final do v. 46, deixando implícitas algumas etapas. O Senhor os liberta —
eles se rebelam — em castigo perecem — no aperto suplicam — o Senhor
1318
Salmo 104
os escuta — recorda-se do pacto — muda de atitude — faz com que movam
à compaixão. Assim muitas vezes.
43. Condensa três etapas do processo em dois verbos comuns e um
raro (mkk). Suspeito uma variante fonética de mqq, dado que a expressão
mqq b‘wwn lê-se em textos aparentados (Lv 26,39; Ez 4,17; 24,23; 33,10).
44. Deus vê e escuta, segundo o binário tradicional, inaugurado no
Egito (Ex 3,7).
45. Recorda-se da aliança (SI 105,8; 111,5; Ez 16,60): logo, o pecado
não chega a invalidar a aliança concedida por Deus. Arrepende-se: muda
de atitude; já se diz em Ex 32,12.14, intercessão de Moisés, e depois em
textos proféticos, sobretudo de Jeremias.
46. Moveu à compaixão. O capítulo das maldições (Lv 26) termina com
este parágrafo de esperança:
26,44 Porém mesmo com tudo isso, quando estiverem em país inimigo,
não os rejeitarei nem detestarei até a ponto de exterminá-los e romper meu
pacto com eles. 45 Porque eu sou o Senhor seu Deus. Recordarei em favor
deles o pacto com os antepassados ...
Na oração de Salomão pela inauguração do templo, ouve-se:
lR s 8,47 Se no país dos vencedores te suplicarem dizendo: Pecamos,
falhamos, somos culpados ... 49 escuta tu do céu onde moras, porque são teu
povo e tua herança.
Ainda que o v. 43 do salmo haja começado na época dos juizes, o
desenlace leva-nos até ao desterro e à dispersão: lugar e momento em que
pronuncia a petição final.
47a. A mesma situação é suposta por Dt 30, e usa o mesmo verbo
“reunir”.
47b. O desenlace feliz celebra-se bendizendo a Deus. Na oração
penitencial de Baruc diz-se algo semelhante, em tom patético (Bar 2,17s).
48.
Esse versículo acrescenta-se para encerrar a quarta coleção de
salmos.
6. Transposição cristã
Se ancoramos rigidamente esse salmo no passado de Israel, de modo
que a nós, os cristãos, não nos alcance; se nos distanciamos daqueles
“pecadores” pensando que somos justos; se não soubemos solidarizar-nos
com eles no pecado e na condição pecadora, então não nos apropriamos do
salmo. Porque todo o seu sentido consiste nesse solidarizar-se histórico.
Cada geração do seu lugar põe-se em fila e a prolonga, e pela fila remonta-
Transposição cristã
1319
se ao começo. Não pensemos que a redenção de Cristo seja um corte total
que impeça essa humilde solidariedade. Não invoquemos a Igreja “sem
mancha nem ruga” para nos desentender do Sl 106.
Ao contrário, o salmo ensina-nos a confessar pecados históricos e
comunitários, também em nossa situação. Como dizia, a propósito do Sl
105, que se podia compor um salmo de ação de graças pela história gloriosa
da Igreja, assim também acrescento que devemos compor um salmo
histórico de pecados da Igreja.
Se nos Atos dos apóstolos deparamo-nos em geral com pecados indivi­
duais, de cristãos, nas cartas de Paulo (e discípulos) descobrimos comuni­
dades que têm que confessar e arrepender-se de diversos pecados. Vejamse as divisões e partidos na Igreja de Corinto, os escândalos públicos
tolerados; comprove-se a situação da Igreja da Galácia. Inclusive na
celebração eucarística encontra Paulo coisas a censurar. Somos capazes de
nos solidarizar com os pecados daquelas primeiras comunidades? Subindo
algo mais, com a negação de Pedro, para chorá-la com ele? Em vez de
restringir cuidadosamente a “escribas e fariseus hipócritas” os ais do
evangelho, deveríamos tomá-los como programa de acusações para exami­
nar nossa conduta pouco cristã, pouco conforme ao evangelho.
Estamos acostumados a pensar em categorias: nossos sete pecados
capitais são tipos; também são genéricos os mandamentos que transgredi­
mos. Os sete pecados capitais do Sl 106 são históricos. A imitação do salmo,
poderíamos compilar listas tiradas de toda a história ou de alguma zona ou
etapa. Seria um modo de nos apropriarmos do salmo e educar nossa soli­
dariedade.
Salmo 107
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Dai graças ao Senhor, porque ele é bom,
porque é eterna sua misericórdia.
Digam-no os resgatados pelo Senhor,
os que resgatou do poder inimigo;
os que reuniu em várias regiões:
oriente e poente, norte e sul.
Erravam por um deserto solitário,
não acertavam com a direção de povoados;
passavam fome e sede,
e desfalecia seu alento.
Mas gritaram ao Senhor em sua angústia,
e ele os libertou da tribulação.
Guiou-os por um caminho plano
para que deparassem um povoado.
Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia,
pelas maravilhas que faz pelos homens.
Saciou as gargantas sedentas,
e aos famintos cumulou de bens.
10 Jaziam em escuridão e trevas,
cativos de ferros e desgraças,
11 porque se rebelaram contra a ordem de Deus
desprezando o plano do Altíssimo.
12 Quebrantou seu ânimo com trabalhos,
sucumbiam e ninguém os socorria.
13 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia,
e ele os libertou da tribulação.
14 Tirou-os da escuridão e das trevas,
e fez saltar suas correias.
15 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia,
pelas maravilhas que faz pelos homens.
Salmo 107
16 Quebrou as portas de bronze
e arrancou os ferrolhos de ferro.
17 Andavam pasmados por suas maldades
por suas culpas tinham que jejuar1:
18 repugnava-lhes qualquer manjar
e já tocavam as portas da morte.
19 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia,
e eles os libertou da tribulação.
20 Enviou sua palavra para curá-los,
para salvá-los da extinção.
21 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia,
pelas maravilhas que faz pelos homens.
22 Ofereçam-lhe sacrifícios de ação de graças
e contem suas ações aclamando-as.
23 Entraram em navios pelo mar,
comerciando pela extensão do oceano.
24 Contemplavam as obras de Deus,
suas maravilhas no profundo2.
25 Mandou levantar-se um vento tempestuoso
que inchava as ondas.
26 Subiam aos céus, baixavam ao abismo,
o estômago revolto pelo mareio3;
27 rodavam e cambaleavam como bêbados,
e não lhes valia sua perícia.
28 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia,
e ele os livrou da tribulação.
29 Apaziguou a tormenta em leve brisa
e emudeceu as ondas.
30 Alegraram-se por aquela bonança,
e conduziu-os ao porto ansiado.
31 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia,
pelas maravilhas que faz pelos homens.
32 Aclamem-no na assembléia do povo,
louvem-no no conselho dos anciãos4.
1mortificar-se
2 em alto mar
3 a garganta com náuseas
4 senadores
1321
1322
Salmo 107
33 Transforma os rios em deserto,
e os mananciais em secura;
34 a terra fértil em salinas,
pela maldade de seus habitantes.
35 Tranforma o deserto em tanques
e a terra agreste em mananciais.
36 Assenta aí os famintos,
e fundam um povoado.
37 Semeiam campos, plantam pomares,
que dão fruto na colheita5.
38 Ele os bendiz e multiplicam-se,
e não lhes diminui o gado.
39 Se minguam abatidos pelo peso
de infortúnios e penas,
40 o que lança desprezo sobre nobres
e os descarrilha por uma imensidade sem caminhos,
41 levanta os pobres da miséria
e multiplica suas famílias como rebanhos.
42 Os retos o vêem e se alegram,
à maldade lhe tapam a boca.
43 O inteligente, que retenha esses fatos
e medite na misericórdia do Senhor.
2. B ibliografia
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5para a terra
Estudo global
1323
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(1980) 417-419.
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deed to humankind (Ps 107,15), BetMik 32 (1986-87) 301-319.
S.
Weisblueth, Ps 107. An echo o f the return to Zion, BetMik 34 (1988-89)
185-190.
3. Análise filológica
3. wmym: o sentido pede mymyn - sul.
8.
hsdw: acusativo de causa GK 118 ac, ou complemento de agrade
cer.
10. yshby: predicado com sujeito implícito Joüon 154 c.
17.
’wlym: corrigido para hwlym Gun, ou ’mllym Olsh Wellh BH,
dementes Del.
20.
mshshytwtm: forma variante de shht (Lm 4,20); corr mshht hytm
BHS, mshht tmym Kraus, variante de shhyn Dah.
29. yqm: jusssivo com valor de indicativo GK 109 k.
35. como v. 29.
37.
tbw’h: nativitatis Vg, colheita anual Hupf Now Luth, et facient
fruges (suj) gramina (compl) Jerôn Baeth.
40. V drk: com valor de adjetivo Zorell 385a.
4. Estudo global
a) Gênero e composição
—
O SI 107 é um grande cântico de ação de graças, com uma espécie d
meditação acrescentada à maneira de apêndice. Comecemos pela parte
mais clara e coerente em sua arquitetura (versículos 4-32). São quatro
episódios típicos, balizados em seu procedimento por dois estribilhos.
Embora a extensão varie, o esquema é rigoroso: tribulação — súplica —
libertação — ação de graças; o segundo estribilho ocupa cada vez o
penúltimo versículo. Podemos falar de estrofes por analogia, já que o
número de versos muda: 6 - 7 —6 —10. Com uma breve introdução e uma
conclusão, ficaria o salmo perfeito, quadrado. Poderíamos percorrê-lo ou
contemplá-lo como um pórtico quadrangular.
Por razões que se nos ocultam, o texto não é assim, e toca-nos descrevêlo como aparece hoje, com sua introdução específica e sua prolongação
1324
Salmo 107
heterogênea. O belo quadrilátero limita por cima com uma — introdução
ou invitatório, cujo primeiro versículo é uma fórmula litúrgica de uso
vário. Dois versículos nomeiam os convidados de tal modo que permiti­
riam deduzir a situação histórica do salmo: são os “resgatados” (do
desterro) e “reunidos” (da diáspora). Duas situações que podem sobreporse e separar-se. Coincidem, como veremos, no retorno do desterro.
Porém concorda tal convite com o corpo quadripartido do salmo? Os
convidados são específicos, os episódios contados são genéricos. Ao ver
reunido um coro de repatriados, esperávamos um canto com temas do
Segundo Isaías, não uma composição apta para qualquer conjuntura. Por
outro lado, há um ponto de concordância, que é o número quatro: quatro
pontos cardeais, quatro episódios exemplares. E apurando correspondên­
cias, a repatriação pode incluir saída da prisão, viagem pelo deserto e
viagem pelo mar; ou seja, três dos episódios. Mas não apuremos demais as
correspondêncais.
Então, concorda o invitatório com a meditação adicional ou apêndice?
Dificilmente: o retorno é continuação depois da ruptura; no máximo, novo
começo; o apêndice considera uma situação que chamaríamos fundacional.
■
— O quadrilátero mencionado limita por baixo com uma reflexão de
estilo diverso e sem estribilhos (33-41 ou 42). Também é louvor teológico,
também é protagonista o Senhor. O demais, tema e estilo, discrepa noto­
riamente. De artista que planeja e constrói com tanta harmonia, não se
espera nem se explica que estropie sua obra com um anexo que se revela um
emplastro. A adição, é verdade, é interessante e valiosa; mas não se
encaixa. Alguém com outras preocupações, com menos sentido arquitetônico,
com menos escrúpulos artísticos construiu seu anexo. Teremos que estudálo pelo que vale em si.
—
A conclusão, unida ao invitatório, costuma formar quadro homogê
neo. O do Sl 107 é peculiar. O versículo 42 refere-se à adição, ao corpo
original ou à combinação atual de ambos? Por sua antítese de retos e
malvados, concorda melhor com o apêndice (32-41). Por sua situação atual,
pode tocar a totalidade: tudo podem e devem contemplar os retos com
alegria.
O versículo final é de tipo sapiencial: dirige-se ao homem douto ou
sensato e exorta-o a meditar “essas coisas”. Este versículo, mais facilmen­
te do que o anterior, pode referir-se a todo o salmo atual: é preciso meditar
na harmonia do desenho /desígnio de Deus, e também em sua condu­
ta para com nobres e humildes. Contudo, dá-me a sensação de que a
atitude sapiencial concorda melhor com a límpida construção do corpo do
salmo.
Exegese
1325
b) Estilo
Fixar-me-ei no quadrilátero central. É patente a vontade construtiva,
temperada com certa liberdade lírica.
Se corrigirmos a primeira palavra do versículo 4 (BHS aparato), os
quatro episódios começam em forma nominal, com particípio ou substan­
tivo. E como tomar personagens de vários acontecimentos, fixá-las numa
designação e pô-las diante do leitor. Em outras palavras: imaginemos
numa sala quatro quadros pendurados que têm em baixo um título:
"Perdidos no deserto”, “Prisioneiros no escuro”, “Pasmados”, “Navegantes”.
O mais próximo que encontro desta técnica é o quaternário de Pr 30,11-14,
como pura apresentação de quatro tipos humanos, mas sem elementos
narrativos ou descritivos (Provérbios, 515-516).
Na execução dos quadros, o autor cede ao gosto descritivo, que exerce
com traços seletos e breves. Ainda que seu tema sejam as personagens
ameaçadas e libertadas, interessa-lhe também o espaço onde se desenvolve
a cena, exceto no terceiro quadro. O deserto sem caminhos e sustento, o
cárcere tenebroso com suas portas e ferrolhos, o mar em tempestade e em
calmaria. Sem chegar a descrever paisagens, oferece-nos observações
valiosas, pouco freqüentes na poesia bíblica.
Comparando com os salmos precedentes, o corpo desse usa de outra
forma o paralelismo. Economiza sinonímicos, usa os correlativos, em geral
acrescenta dados no segundo hemistíquio. Em suas mãos, o paralelismo é
mais formal do que de conteúdo: oferece margens ao leito antes que trilhos
ao movimento.
O estilo da adição é diverso. Deus toma a iniciativa, e os homens agem
em conseqüência (para o particípio do v. 40, veja-se a Exegese).
O ritmo de todo o salmo é bastante regular, e o recurso sonoro preferido é
a aliteração com a reiteração de algum fonema dominante.
5. Exegese
1.
Fórmula litúrgica, começo dos SI 106, 107, 118 e 136; a segunda
parte, estribilho do 136.
2-3. Quem introduz esses versículos pensa em repatriados do desterro
babilónico e de diáspor a universal. O primeiro soa na conhecida designação
de “resgatados” (Is 35,9; 51,10; 62,12); o verbogY e seu particípio são típicos
do Segundo Isaías. Os quatro pontos cardeais indicam à primeira vista
diáspora mais ampla e tardia; todavia podem também ser hipérbole, como
mostra Is 43,5-6:
1326
Salmo 107
Do oriente trarei tua estirpe,
do ocidente reunir-te-ei;
direi ao norte: entrega-o;
ao sul: não o retenhas.
(As designações de oriente e norte coincidem com as do salmo).
Essa introdução pode ter sido acrescentada em ocasião particular;
porém também pode ser original. Ponhamo-la em relação com o corpo do
salmo. Quatro pontos cardeais condensam e articulam a totalidade do orbe;
quatro episódios de libertação podem condensar e articular os benefícios do
Senhor. O Segundo Isaías refere-se muitas vezes à viagem dos repatriados
através do deserto; da viagem pelo mar ocupa-se Is 60, mas com função
diversa, já que o salmo não descreve a navegação como retorno. O segundo
episódio, que junta prisão com trevas, tem antecedente em Is 49,9:
para dizer aos cativos: saí,
aos que estão em trevas: vinde à luz.
4-9. O primeiro quadro, por seu caráter genérico, pode referir-se a
caravanas habituais, profissionais, ou a outras ocasionais. Inclusive guias
profissionais podem extraviar-se. “Povoado” vai sem artigo: não parece
referir-se a um determinado, termo previsto da viagem, mas a qualquer que
ofereça salvação. O livro de Jó brinda-nos com uma boa descrição dessas
caravanas perdidas, buscando água em leitos conhecidos que encontram secos:
6,18
19
20
Por sua culpa as caravanas mudam de rota,
adentram na imensidade e se extraviam.
As caravanas de Temã buscam-no
e os beduínos de Sabá contam com ele,
mas fica burlada sua esperança,
ao chegarem se vêem decepcionados.
Fome e sede indicam que acabaram as provisões: desfalecem e não têm
forças para seguir adiante. A história patética de Agar, vagando com seu
filho Ismael, concentra a atenção na falta de água (Gn 21,9-18).
6. Primeiro estribilho. Para o binário çr mçwq, vejam-se Jr 19,9; Sf
1,15; Sl 119,143. Grito e libertação estão aliterados e colocados nos extre­
mos do versículo, em quiasmo; os dois verbos e os dois substantivos insistem
no fonema p.
7. Deus remedia a situação sem milagres e em dois passos: encaminha
os extraviados até um povoado e ali os provê de sustento. Um “povoado” é
o que eles buscavam (4.7).
8. O segundo estribilho menciona os “humanos”, com alcance univer­
sal, não limitado à Casa de Israel; por outro lado, a divindade invocada é
Yhwh. Cortando a frase de outro modo, poder-se-ia traduzir: “Dai graças ao
Senhor: sua misericórdia e suas maravilhas são para os homens”.
Exegese
1327
O caminho perigoso pelo deserto, além de seu sentido imediato e
empírico, suscita muitas recordações: patriarcais, do êxodo, do retorno.
Contando com isso e com o valor metafórico corrente de “extravio, encami­
nhar”, o quadro abre-se a uma leitura simbólica.
“Este salmo sintetiza a condição humana: a dor do castigo ou da
penitência, as misericórdias de Deus, a vocação dos pagãos” (Jerônimo).
10-16. Segundo quadro: encarcerados. Nesse quadro, à referência
genérica sobrepõem-se traços que podem soar como alusões históricas.
Visto de outro ângulo, o genérico é também aplicável à situação na
Babilônia. E genérica e universal a situação; o nome da divindade: “Deus
Altíssimo” não é o exclusivo do Deus de Israel (Gn 14,18-20). Aprisão como
castigo por rebelar-se contra Deus translada-nos ao contexto de Israel.
10. Facilmente imaginamos portas metálicas, grades e ferrolhos;
acrescentemos à imagem masmorras escuras, calabouços sombrios, cepos
e grilhões. Os metais destinados ao serviço do homem foijam-se em armas
para matar o homem e em grades para encarcerá-lo. Um estilema
supreendente desse versículo consiste em ligar dois elementos heterogêne­
os: “ferros e desgraça”; compare-se com o binário precedente: “escuridão e
trevas” (surpreende numa estilística bíblica o que é corrente entre nós).
Não seriam mais agradáveis os cárceres da Babilônia, onde viveram e
morreram muitos deportados (cf. 2Rs 25,27 para o rei Jeconias). De mais
a mais, o mero desterro, mesmo com liberdade, era sentido por muitos como
cárcere; da mesma forma que Ezequiel sentiu-o como sepulcro (Ez 37).
11. A prisão é merecida, como acontece com um criminoso réu de
rebeldia ao soberano. O soberano é nesse caso o Altíssimo, e a rebeldia
consiste em “desprezar seu plano” ou desígnio. Em chave histórica, a
política dos reis de Judá com respeito à Babilônia, contra o desígnio de
Deus comunicado por Jeremias; política que acarretou o desterro e o
cativeiro.
12.0
castigo também entra no plano de Deus, sua finalidade é “dobrar
o ânimo”, conduzi-lo à conversão. Que buscassem auxílio no seu Deus, não
no Egito nem em aliados menores, pois “ninguém os socorria”. Também
esse ato do drama admite leitura generalizada.
14. Tirar da escuridão, como Is 42,7:
para que tires os cativos da prisão
e da masmorra os que habitam em trevas.
Fazer saltar as correias pode sugerir, pelo menos por associação, ojugo
da escravidão ou trabalhos forçados (Jr 2,20; 5,5; 30,8; Na 1,13; Sl. 2,3).
Com o verbopth diz Is 52,2: “desata as correias de teu pescoço, Sião cativa”.
1328
Salmo 107
16. Portas e ferrolhos costumam-se aplicar a cidades muradas (Jr
49,31; Ez 38,11). Lemos em Is 45,2: “Despedaçarei as portas de bronze,
arrancarei os ferrolhos de ferro”.
“O Senhor, como luz, tira-nos das trevas; como vida, tira-nos da morte;
como poder, rompe nossas cadeias” (Orígenes).
17-22.Terceiro quadro: enfermos. É o menos definido quanto a traços
descritivos da desgraça, mas segue uma pauta coerente que podemos
esquematizar assim: pecado — enfermidade grave — súplica — palavra /
oráculo de cura — ação de graças com sacrifícios e relato da graça obtida.
Salvo a coordenada temporal, é esquema conhecido pelas súplicas de
enfermos, por exemplo, Sl 32 e 38.
17. O pecado é conduta formada por uma série de atos. Creio que
’wylym pertence à enfermidade, pois apresenta-se como efeito do pecado.
Não é claro se concebe como doença física ou como perturbação mental.
Talvez os hebreus não fizessem distinção tão clara. Proponho duas linhas
de explicação: a) estavam como abobados, entontecidos, sem capacidade
para reagir; b) estavam desorientados, sem saber que remédio aplicar,
tomando medidas contraproducentes. O verbo ‘nh em hitpael pode signifi­
car privar-se, jejuar (Esd 9,21; Eclo 11,18).
18. Sintoma grave que conduz à inanição. Pela pena, diz Sl 102,5:
“esqueço de comer meu pão” (de tomar alimento). Jó 33,20 descreve-o com
maior amplidão:
até rejeitar com toda a alma a comida
e sua garganta o manjar favorito;
consome-se-lhe a carne, até que não mais se a vê,
e os ossos, que não se viam, se lhe descobrem.
Sua alma aproxima-se da sepultura
e sua vida dos Exterminadores.
Este texto (de Eliú) continua mencionando uma intercessão, a cura
completa e a proclamação ou louvor público de Deus.
20.
A cura é efeito de “palavra” que Deus “envia”, como se se tratasse
de ordem categórica e eficaz. Pode-se pensar em oráculo que anuncia com
certeza cura, ou em intervenção profética como a de Isaías com Ezequias (Is
38). Em todos esses casos, curar é salvar da morte ou da sepultura.
22.
A ação de graças oral acrescentam-se sacrifícios pertinentes,
provavelmente os estatuídos em Lv 7,12.13.15 e 22,29. Nesses sacrifícios,
o ofertante participava do banquete: aquele que há pouco “detestava todo
manjar”, agora é comensal do banquete litúrgico.
23-32. Quarto quadro: navegantes. Uma vez que os israelitas não
eram povo marinheiro, os comentadores suspeitam de origem fenícia,
Exegese
1329
próxima ou remota, desse fragmento. Mas é difícil provar que não houve
israelitas com experiência marinheira. O relato de Jonas sugere o contrá­
rio; Ben Sira conhece-o pelo menos de oitiva (Eclo 43,24); vejam-se também
lRs 9,27; 10,22. O que é indubitável é que o autor ou seu informante
conheceu por experiência sensações e impressões de tempestade marinha.
E o material que o poeta utiliza com singular acerto: as ondas que se encres­
pam, o subir e descer alternados e vertiginosos do navio, o mareio, a perda
de equilíbrio, a inutilidade da perícia marinheira.
23. As personagens deste quadro fazem-se ao mar exercendo o comér­
cio. Assim Ezequiel descreve Tiro (Ez 27), e o autor do livro da Sabedoria
explicará (Sb 14,2-3:
projetou-a o afã do lucro
e armou-a a perícia técnica;
mas é tua providência que a pilota.
24. Supõe-se que no mar alto percebem-se e admiram-se ações e obras
peculiares de Deus (Eclo 43,25; SI 104,25-26). Até aqui, a navegação é
profícua e interessante; até que de repente
25. Deus, que controla os ventos (SI 104,4), despacha com uma ordem
a borrasca que encrespa as ondas.
26. Descrição do mareio. Sujeito é npsh, a garganta em sua extensão
de baixo para cima; verbo é htmgg (de mwg), que significa agitar-se ou
desfazer-se. A causa é um r’h, que no contexto é o mal próprio do mar, o
mareio (italiano mal di maré).
29-30. Também é notável como descreve o cessar da borrasca: Deus
tranforma a ventania em brisa, e as ondas emudecem; depois Deus, como
se fosse o timoneiro, guia a nave ao porto (Sb 14,3).
32.
A ação de graças, a última, amplia-se em ato litúrgico comuni­
tário, na presença das autoridades. Se a menção da assembléia não é
rara no saltério (por exemplo, 22,23; 35,18; 40,11), a menção do senado
é única.
33-41. A reflexão é unitária, e suas peças estão bem travadas. Con­
templa a ação de Deus para que um povo se torne sedentário e cresça, em
contraste com “nobres” habitantes que, por suas culpas, perderão seus
territórios e se extraviarão. A ação de Deus diz respeito à natureza e aos
dois grupos: a natureza em função dos homens.
“As maravilhas do Senhor são tanto mais prodigiosas quanto mais muda
contrários com contrários” (Orígenes).
33-35. A preparação é uma mudança total e oposta de territórios ou
terrenos: o chão cultivado fica seco, e o chão seco fica cultivável. Na tradição
do êxodo, a terra de Canaã não se torna deserto, mas é ocupada com suas
1330
Salmo 107
riquezas pelos israelitas (Dt 6,10-11; 8,7-10). E estes não ficam num deserto
transformado, mas caminham rumo a povoados.
Isso mostra que o autor pretendeu outra coisa. Primeiro, exaltar o
poder de Deus sobre os elementos: como em Is 35,1-2 (provavelmente do
Segundo Isaías), como em Sb 19,18-22 (em mudança interina), como em Jó
38-26-27: “para que chova nas terras despovoadas ... para que se sacie o
deserto desolado”. Segundo, mostra a solicitude de Deus em preparar o
terreno aos seus: assim já se descreve o paraíso (Gn 2); assim o concebe o
Sl 68,10-11:
Derramaste em tua herança uma chuva generosa,
ó Deus, aliviaste a terra extenuada,
e teu rebanho habitou na terra que tua bondade,
ó Deus, preparou para os pobres.
(Cinco palavras dos versículos 33-35 aparecem também em Is 35).
36.
Com este versículo se enlaça a adição ao corpo do salmo: os
“famintos” encontraram o que buscavam, um “povoado” (4.7). Não construído,
porém, de antemão, mas que eles hão de fundar.
37-38. Nesse terreno agora fértil e nesse povoado começa o ritmo
tranqüilo de população agrícola, bem alimentada e crescente.
38-39. Apresentam uma antítese entre “multiplicar-se, não min­
guar” e “minguar”. E o mesmo o sujeito? Em caso afirmativo, o texto recorda
alternâncias históricas sem aduzir causas, ainda que implicando que Deus
controla o movimento demográfico. Há mudança de sujeito e os que
minguam são os malvados? Nesse caso falta o sujeito explícito novo, ou o v.
39 vai depois do 40, como propõem alguns.
40-41. Apresentam outra antítese semelhante: a ação de Deus humi­
lhando nobres e enaltecendo pobres. Não se lê no lugar motivo ético para
a humilhação dos “nobres”; a não ser que estes sejam os mesmos do v. 34:
“pela maldade de seus habitantes”.
O autor quer mostrar a soberania de Deus sobre os destinos humanos.
Essa é sua meditação. A natureza distingue deserto e terra fértil: Deus
inverte os papéis. Os seres vivos multiplicam-se, contraem-se: Deus contro­
la ambos os movimentos e faz passar de um a outro. A sociedade distingue
nobres e plebeus: Deus muda as sortes. Algo semelhante proclama o canto
de Ana (ISm 2), mencionando, entre outras oposições e transformações,
fecundidade / esterilidade, nobreza / pobreza; as duas oposições reapare­
cem no Sl 113 e em seus equivalentes no Magnificat.
42.
Nova oposição: reação de dois tipos de testemunhas diante da ação
de Deus. Os retos alegram-se e festejam-no, os perversos ficam sem
palavra. Compare-se com o final do Sl 63:
Transposição cristã
1331
mas o rei celebrará a Deus,
gloriar-se-ão os que juram por ele,
quando taparem a boca dos mentirosos.
43.
O último versículo é uma espécie de firma à adição, que quer
abarcar todo o salmo. As quatro libertações e as três mutações ficam
rubricadas e compreendidas como atos de “misericórdia”. Pelo que têm de
estranho e copioso, devem ser objeto de “meditação”, que se deve conduzir
com sensatez e penetração. Não basta contar, é preciso meditar (cf. o final
de Oséias).
“Para compreender, é preciso ser expertos nos mistérios de Deus”
(Atanásio).
6. Transposição cristã
Aproveitando o valor simbólico dos episódios, Agostinho propõe uma
explicação (ou aplicação) engenhosa e saborosa. Os quatro quadros repre­
sentam quatro provas ou tentações de um itinerário espiritual. (É provável
que no itinerário entre algo da experiência pessoal de Agostinho).
O primeiro é o extravio, a desorientação junto com a fome de verdade
de quem busca: “Clama a Deus e é conduzido ao caminho da fé, por onde
segue para a cidade da paz”. O segundo é a dificuldade de praticar o que se
aprendeu: “Sente-se atado por sua concupiscência; com os pés nos grilhões
não consegue caminhar, tropeça com um muro de impossibilidade e, com as
portas fechadas, não acha saída para viver honestamente”. O terceiro é o
tédio da palavra de Deus, o enfado, “não leve tentação”. O quarto não é de
todos, mas de quem foi nomeado timoneiro na nave da Igreja: “quanto mais
honras, mais perigos”. Neste quarto estádio, todos correm perigo.
Também Agostinho, como o autor da adição, convida-nos e ensina-nos
a meditar este e os outros salmos.
Outra possível leitura cristã do salmo consiste em contemplar no
evangelho episódios correspondentes. Por exemplo: o povo faminto, em
lugar despovoado, alimentado por Jesus (Mc 6,30-46 par); o endemoninhado
nos sepulcros “sombrios”, com “grilhões e cadeias”, libertado por Jesus (Mc
5,1-20); diversos tipos de doentes curados (Mc 6,53-56 e 7,24-37); a tempes­
tade acalmada (Mc 4,35-41).
Também pode-se ensaiar uma leitura anagógica, ou seja, projetando as
provas para nossa peregrinação ou navegação pelas areias ou pelas águas
deste mundo, rumo à cidade prometida (Hb 11,16). O cárcere escuro
representa a morte, da qual se sai pela ressurreição. Naquela pátria revelase e canta-se o mistério da misericórdia de Deus para os humanos.
Salmo 108
1. Texto
2
Meu coração está firme, 6 Deus,
meu coração está firme:
cantarei e tocarei.
3
Desperta, honra minha!
Despertai, cítara e harpa!
Despertarei a aurora.
4
Dar-te-ei graças diante dos povos, Senhor,
tocarei para ti diante das nações:
por tua lealdade, que chega até ao céu;
por tua fidelidade, que alcança as nuvens.
5
6
Levanta-te sobre o céu, ó Deus,
e encha a terra tua glória!
7
Para que se libertem teus prediletos,
que tua dextra os salve.
Responde-nos!
8
Deus falou em seu santuário:
Triunfante repartirei Siquém,
parcelarei o Vale das Cabanas.
9
Para mim Galaad, para mim Manassés,
Efraim é o elmo de minha cabeça,
10 Judá meu cetro de comando.
Moab uma bacia para lavar-me,
sobre Edom lanço minha sandália.
Filistéia, grita contra mim!
Estudo global
1333
11 Quem me levará à cidade fortificada,
quem me conduzirá a Edom!
12 Mas tu, ó Deus, nos rejeitaste
e já não sais com nossas tropas ?
13 Envia teu auxílio contra o inimigo,
pois é v ã a vitória humana.
14 Com Deus faremos proezas,
ele pisoteará nossos inimigos.
2. Bibliografia
R. Arconada, Moab olla (Ps 59,10) vel lebes (Ps 107,10) spei meae, VD 16
(1936) 120-122.
C. R. North, ’eflozah ‘ahaleqah shekem (Ps 60,8 / Ps 108,8), V T 17 (1967)
242-243.
A. J. Brawer, Ps 60,10; 108,10, BetMid 14 (1969) 124-125.
J. W . McKay, M y glory - a mantle ofpraise, ScJT 31 (1978) 167-172.
3. Análise filológica (Vejam-se os SI 57 e 60)
4. Estudo global
Com alguns toques leves, que não mudam a substância do texto, o
presente salmo é combinação de 57,8-12 e 60,7-14; ou seja, as duas metades
posteriores dos dois salmos. São assim supressas as duas colocações das
súplicas, que eram a descrição da desgraça original. Com essa operação,
ambas as peças reforçam sua tonalidade positiva e esperançosa. Não
desaparece, porém, completamente a menção da desgraça presente, pois no
31 60 e no presente, ao oráculo divino correspondem uma queixa e uma
petição.
Inclino-me a pensar (a suspeitar) que a operação realiza-se já passado
o desterro, na época de domino persa. Tomando a proposta como hipótese
de leitura, temos o seguinte: o território tradicional de Israel acha-se des­
membrado e reorganizado como província do império, e a população vive em
grande parte dispersa. Também foram absorvidos os reinos vizinhos,
Moab, Edom e Filistéia.
1334
Salmo 108
Nessa situação de submissão e impotência, a comunidade suplica “com
coração animoso”, invoca a luz de um novo dia em que Deus mostre sua
“glória” e venha “salvar seus prediletos”. Como resposta de Deus, recita-se
antigo oráculo, no qual Deus afirmava sua soberania sobre Israel e os reinos
vizinhos; e que agora são figura de outras realidades políticas. O povo
responde com a velha queixa, dirigida contra Edom, que agora é a figura do
poder opressor (pela participação de Edom na destruição de Jerusalém, Sl
137). Termina com uma súplica confiante.
Tudo isso é mera hipótese, baseada em modos de pensar e expressarse de autores bíblicos. Mas nem essa nem outras semelhantes aspiram a
ser tomadas como a verdade histórica. O que pretendemos com essas
hipóteses é captar a capacidade de atualizar um salmo e apropriar-se de
seu sentido.
O salmo é também testemunho de modo de elaborar com peças
preexistentes novas composições. Do que se podem tirar duas conclusões
diversas: a) que esse modo de proceder por combinação deve-se supor
comum e freqüente, ainda que tenham desaparecido as formas anteriores;
o salmo aduz-se, em tal suposição, como justificação de modelo geral; b) que
quando um autor compõe com materiais preexistentes, trata-os com muito
respeito e não elimina as formas precedentes; o salmo, nesse caso, recomen­
da cautela ao crítico.
5. Notas para a exegese
Ao começar assim, de repente, o orante impõe uma entoação de
entusiasmo e alegria. A mobilização geral de espírito, instrumentos musi­
cais e fenômeno cósmico desembocam numa invocação audaz ao Deus solar.
Não a luz criada, mas Deus-Luz em pessoa; e não chega repentina, “que
haja luz”, mas preparada pela aurora do desejo e expectação do homem.
Invocam uma luz ativa e benéfica, que sustenta a petição seguinte:
“para que se salvem teus prediletos, responde-nos com tua mão salvadora”.
A petição acolhe-se imediatamente no triunfo invocado da luz. Do
símbolo cósmico, magnífico, passa-se à relação pessoal com Deus, “teus
prediletos”.
A luz do Deus solar, ao calor de seu afeto de predileção, pronuncia-se
um antigo oráculo, que afirma a perpétua e renovada soberania política do
Senhor. Mas esse oráculo está outra vez pendente de realizar-se (como o
“hoje” do Sl 95,7); razão pela qual o povo conclui com petição confiante.
Excluem todo auxílio humano, que a história e o presente demonstraram
inúteis.
Notas para uma leitura cristã
1335
6. Notas para uma leitura cristã
Contento-me com citar a proposta apresenta por Jerônimo:
“Sinto-me animoso; despertai, cítara e harpa, porque fostes criadas para
cantar a Deus. A luz é preciso cantar a Deus; mas, mesmo que cantemos à
noite, à plena luz bendizemos a Deus: existe a noite para o cristão? Sempre
amanhece para o cristão o sol da justiça. Porém eu descubro um sentido mais
profundo: é o Senhor quem canta: Sinto-me animoso. Canta pelo presente e
pelo futuro, pela terra e pelo céu, pelos anjos e pelos homens. O Senhor
dirige-se a seu corpo, harpa que foi colocada no sepulcro e desceu ao abismo:
Que se levante seu corpo para louvar a Deus”.
Salmo 109
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
Deus de meu louvor, não te faças o surdo,
pois uma boca perversa e traiçoeira
abre-se contra mim,
discute comigo uma língua mentirosa.
Com discursos de ódio me cercam
e me combatem sem motivo.
Em paga de meu amor1 me denunciam2
enquanto eu rezava.
Devolvem-me mal por bem,
ódio por amor.
[Dizem]: “Nomeia contra ele um malvado,
um acusador que se ponha à sua direita.
Saia condenado do julgamento,
que fracassem suas súplicas.
Que seus dias sejam poucos
e seu emprego outro o ocupe.
Que seus filhos fiquem órfãos
e sua mulher viúva.
Que seus filhos mendiguem3 vagabundos,
expulsos de suas ruínas.
Que um usurário apodere-se4de seus bens,
que estranhos arrebatem seus suores.
Que ninguém lhe demonstre clemência
nem se compadeça de seus órfãos.
Que sua posteridade seja exterminada
e numa geração se apague o seu nome.
1afeto
2 acusam
3pedindo esmola
4 aproprie-se
Salmo 109
14 Que o Senhor recorde a culpa de seus pais
e não apague os pecados de sua mãe;
15 que o Senhor os tenha sempre presentes
e extirpe da terra sua memória”.
16 - “Pois já que não se lembrou de agir com clemência,
perseguiu o pobre desgraçado
e o atribulado, para dar-lhe morte;
17 já que amou a maldição, recaia sobre ele!;
não quis a bênção, fique longe dele!
18 Que se vista de maldição como de um traje,
que lhe empape como água as entranhas,
como azeite as medulas;
19 seja uma veste que o cubra,
como um cinturão que sempre o cinja”.
20 Assim pague o Senhor aos que me acusam5,
aos que falam mal de mim.
21 Tu, porém, Senhor meu dono,
trata-me como pede teu nome6,
por tua bondade benfeitora livra-me;
22 pois sou um pobre desgraçado,
carrego dentro o coração transpassado;
23 vou passando como sombra que se alarga,
sacodem-me como ao gafanhoto;
24 dobram-se-me os joelhos de jejuar7,
estou fraco e descarnado8.
25 Sou a burla deles,
ao verme sacodem9 a cabeça.
26 Socorre-me, Senhor Deus meu,
salva-me por tua misericórdia.
27 Reconheçam que por aqui anda 10tua mão;
que tu, Senhor, o fizeste.
28 Que eles maldigam, tu me abençoarás;
que meus rivais fracassem enquanto teu servo se alegra.
5 me caluniam
6fama
1 não comer
8 descarnado e sem gordura
9 meneiam
10 está
1337
1338
Salmo 109
29 Que se vistam de infâmia os que me acusam,
que a confusão os envolva como um manto.
30 Muitas graças dará minha boca ao Senhor,
louva-lo-ei no meio de multidão,
31 porque se pôs à direita do pobre
para salvar sua vida dos juizes.
2. Bibliografia
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133.
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C. M. Cherian,Attitude to enemies in the Psalms, Biblebhashyan 8 (1982)
104-117.
3. Análise filológica
2.
wpy mrmh: sumprimem-no Gun Kraus; Ishwn shqr instrumenta
ou adverbial, a mesma coisa 3a.
4.
pro eo ut me diligerent Vg, eos diligebam Jerôn, propõe suprimi-lo
BHS.
tplh: lê verbo Gr, acrescenta “por eles” Sir; equivale a ’y sh tplh (como
Dn 9,23) Qim Ros, “ich aber bin ganz Gebet” Hitz Del.
6. diabolus Vg, Satã Jerôn Qim, adversário opinião comum.
Estudo global
1339
7. oratio eius fiat in peccatum Vg, eis apotykhian Eut Hitz; fracassar
DBHE ht’ 1.
8. pqdtw: episcopatum Vg, apostolado antigos, “o que lhe tinham
confiado, posses ou esposa” Qim, haveres Baeth.
10. wdrshw: ekblethetosan (lê ygrsh?) Gr, como Ex 12,39 Ros Gun
Briggs Duhm; peçam Qim Del Olsh.
mhrbuityhm: min causal Targ Olsh, local Del Duhm Gun Kraus.
11. ynqsh: scrutetur ibqsh) Vg, illaqueet Flamínio, Genebr.
13. yhy ... Ihkryt: para a construção GK 114 hk.
ymh: nifal de mhh.
17. tbw’hw: suf acusativo de lugar.
19. y ’th: relativa assindética.
21. ky twb: lêem ktwb Gun e outros.
22. hll: tetaraktai Gr, vulneratum est Jerôn, polel de hyl retorce-se (SI
55,5) Gun, passiva qal de hll Dah.
24.
propter oleum, por falta de unção Sím Eut Agel; min privativo sem
gordura Bell Hupf Now.
28. qmw wybshw: corrigem para qmy ybshw Gr Graetz Well Gun.
4. Estudo global
a) Proposição judicial
Este é um dos salmos mais difíceis do saltério. O texto não propõe graves
problemas; o difícil é aceitar a violência dos sentimentos expressos e da
linguagem usada. O que diz o orante está claro, mas como é possível que sinta
o que disse? Quem ou que pessoas pronunciam semelhante texto?
Começaremos por algo que é bastante claro e não provoca resistência no
leitor: a posição judicial. Vários termos e expressões são sem dúvida forenses;
outros, por especificação do significado, encaixam-se em contexto forense.
Aos primeiros pertencem shpt em dois lugares-chave (7.31), no princí­
pio de um discurso e no final de outro e de todo o salmo, stn como nome e
como verbo refere-se ao rival que acusa perante a autoridade (Jó 1-2; Zc
3,2); sai quatro vezes no salmo (4.6.20.29); ‘md ‘l ymyn = estar em pé à
direita é posição judicial; rsh‘ pode designar o culpado, e yç‘ rsh’ é sair
condenado do processo; klm pode significar a reação psicológica da derrota
ou condenação; zkr, dito de delitos, é pronunciá-los na acusação ou aduzilos no debate. As múltiplas referências ao falar e não calar são exigência do
processo. (Para a terminologia, veja-se P. Bovatti, Ristabilire la giustizia,
índice de palavras hebraicas).
1340
Salmo 109
Faltam elementos típicos de julgamento: o protesto de inocência com
a raiz çdq, a indagação ou conhecimento adquirido pelo juiz, o gesto de pôrse de pé, a menção de delitos particulares. Pede-se uma pena grave sem
motivá-la com o delito correspondente. Para o sentido de tplh (4), veja-se a
exegese. A descrição da própria desgraça (22-25) é mais própria de súplica
ordinária que de julgamento de apelação.
Deus é o juiz a quem se apela em última instância, mas no salmo
não tem o título de juiz nem se menciona como atributo clássico sua “jus­
tiça”.
Não podemos precisar se se trata de juízo de ordálio ou de simples
juízo no templo ou de estilização poética em figura de juízo. A comparação
com o modelo típico (Sl 17) mostra tantas discrepâncias como semelhan­
ças.
b) Distribuição de papéis
Toca-nos o mais difícil, que é distribuir os papéis: decidir quem pro­
nuncia tais e tais versículos. Que o orante pronuncia 1-5 e 21-31 não se duvida.
O problema está na série de imprecações dos versículos 6-20. Propõem-se
três formas básicas de execução ou leitura, as três apoiadas em argumentos
de peso.
— Primeira hipótese. Os versículos 6-20 são citação textual do que
disse o acusador ou denunciante, o satã. O orante denuncia uma “língua
mentirosa” e “discursos de ódio” (2-3). E razoável esperar que se citem suas
palavras. Pelo final resume: “Que eles maldigam, abençoa-me tu” (28); pode
referir-se à série de maldições que pronunciaram e que o orante pede que
sejam neutralizadas pelas bênçãos de Deus. No v. 20, z’t resume todo o
anterior como conclusão; o versículo seguinte (21) é começo de secção, com
a forma adversativa “tu, porém”.
Contra essa explicação é preciso notar que nem toda a secção 6-19
pode-se entender como pronunciada pelos acusadores. Pelo que se acres­
centa uma correção que nos oferece a
— Segunda hipótese. O salmo acolhe e cita dois discursos, das duas
partes, diante do juiz. Primeiro falam os acusadores, numa série apertada
e coerente de maldições (6-15). A elas responde, depois de corte sintático,
o acusado, retorcendo a petição contra seus adversários. O v. 17 mostra às
claras a dialética do processo ao invocar simplesmente a lei do talião.
Segundo essa hipótese, a parte mais odiosa é pronunciada pelos malvados,
“discurso de ódio”, ao passo que o orante, o acusado, não pede mais do que
em outros salmos semelhantes. Invocar a lei do talião é perfeitamente
legítimo.
Estudo global
1341
—
Terceira hipótese. O orante pronuncia a série inteira de imprecações
(6-20) seguindo modelos rituais conhecidos e amplamente usados na
Mesopotâmia, adatando-os com maldições da aliança (segundo Dt 28). Essa
hipótese requer a leitura de textos paralelos.
c) Paralelos babilónicos
Eram usuais na Babilônia orações contra feitiçarias que eram acom­
panhadas de rito em que se queimavam imagens de cera dos feiticeiros.
Supunham a crença no poder de artes mágicas e a confiança em preces que
se contrapunham à influência maligna. As preces dirigiam-se a divindades
benévolas, particularmente deuses noturnos (Girra, Nusku) e também
Samas e Istar. Para entrar nesse mundo estranho, cito versos escolhidos,
segundo a tradução e estudos de Seux:
“A Nusku (deus do fogo):
Um bruxo me fez bruxaria:
faz bruxaria para ele com as bruxarias que me fez;
uma maga tramou contra mim:
volta contra ela as tramas que tramou contra mim”.
(Seux 380) Equivale a invocar a lei do talião, como o versículo 17 do
salmo:
“Aos deuses da noite:
Um a vez que usou de más artes contra mim, tramando vilanias,
morra ela, e viva eu.
Sejam neutralizados suas feitiçarias, melefícios e encantamentos.
Que sua língua se torne de sebo, sua língua se torne de sal:
que se desfaça como sebo a feitiçaria,
que se dissolva como sal” (376-377).
Compare-se com os versículos 18-19 e 28-29 do salmo
(depois de uma lista de malefícios e efeitos mágicos continua)
“Eu te invoco como a Samas, o juiz:
julga minha causa, pronuncia minha sentença,
queima o bruxo e a bruxa; devora meus inimigos,
consome os que me prejudicam.
Que teu furacão violento os apanhe,
que desapareçam como água derramada” (379).
“A Nusku:
Conserva-me a vida,
para que proclame tuas façanhas e cante teu louvor”.
(382) Compare-se com o v. 30 do salmo.
1342
Salmo 109
A Girra:
Que eles morram, e eu viva;
que eles tenham que se afastar, e eu prospere.
Que eles acabem, e eu me multiplique;
que eles se debilitem, e eu me robusteça.
Girra esplendoroso, o mais alto dos deuses,
que agarras o malvado e o inimigo,
agarra-os para que eu não sofra dano.
Que teu servidor viva são e salvo, e chegue à tua presença.
Tu és meu Deus, tu és meu protetor e vingador.
Que alguém mais forte se apodere de seus bens,
que um bandoleiro saqueie suas posses ...”.
(384-386) Pode-se comparar com os versículos 21.26.31; o final com 10-11.
“A Samas (deus solar da justiça):
Que suas ações recaiam sobre eles
como uma rede que os apanhe.
Que deus e rei, notável e príncipe olhem-no com maus olhos” (396).
“A uma divindade:
Que o vento leve tudo o que fez,
que passe seus dias aflita e abatida,
que acabe seus anos entre tormentos;
que ela morra, e viva eu”.
Há outra série de orações especiais contra as maldições. Os fragmentos
citados mostram algumas coincidências com o material bíblico, um paren­
tesco genérico, e transladam-nos a uma mentalidade consistente. Mas tam­
bém é preciso sublinhar as diferenças. O Deus do salmo não é um entre
tantos, mas o único Senhor; no texto bíblico não se mencionam práticas de
magia nem se alude a um rito de queimar em efigie.
Segundo a terceira hipótese, o orante pronuncia as palavras dum ritual
composto em estilo hiperbólico e apaixonado, como se pronunciam liturgicamente as maldições da aliança. A oração realmente pessoal começa no v. 22.
Inclino-me para a segunda hipótese, consciente das dificuldades que
entranha qualquer das soluções. Aceita essa hipótese mencionada, creio
que os paralelos babilónicos ilustram a linguagem bíblica.
d) Composição e estilo
Dentro de marco tradicional sucedem-se quatro blocos ou secções,
segundo o seguinte esquema:
1
2-5
6-15
16-20
invocação
propõe-se a causa
série de imprecações
réplica às maldições
1343
Exegese
21-29
30-31
súplica tradicional
promessa conclusiva
A repetição de hll em 1 e 30 produz inclusão que encerra todo o texto
no louvor. De mais a mais, o final é recapitulação: boca (30 e 2), pôr-se à
direita (31 e 6), juizes (31 e 7), pobre (31 e 22), salvar (31 e 26). No corpo do
salmo são importantes as repetições já apontadas de “satã” e “bênção /
maldição”; talvez também de hsd (12.21.26); o que os homens negam,
concederá o Senhor.
O estilo é pródigo em paralelismos sinonímicos e correlativos, comprazse nas séries, busca imgens expressivas; tudo a serviço de tom apaixonado.
5. Exegese
1-3.0 salmo começa com um grande silêncio no meio de conflagração
de vozes: o orante invoca e louva, os rivais acossam com suas calúnias:
poderá Deus ficar calado? O silêncio de Baal era sinal de impotência (lRs
18); o desterro foi um silêncio de Deus: “Há tempo guardo silêncio, calavame, agüentava” (Is 42,14); Hab 1,13 protesta: “por que contemplas em
silêncio os traidores, o culpado que devora o inocente?” Os salmos retomam
a idéia: o silêncio pode ser fatal (28,1); o silêncio de Deus deixa campo livre
a seus inimigos (22,3; 35,32; 39,13; 83,2).
O orante descreve o discurso do inimigo com traços militares: “ro­
deiam” como num cerco, “atacam” como num assalto. E batalha verbal cujas
armas são a mentira e a calúnia. E trata-se de batalha de morte.
3b-4a. Ele não deu motivo para esses ataques; pelo contrário, sua
conduta foi ditada pelo amor. Santo Agostinho distingue quatro correspon­
dências positivas e duas negativas, e ilustra-as com exemplos bíblicos:
devolver bem por mal, não devolver mal por mal, devolver bem por bem, mal
por mal, não devolver bem por bem, devolver mal por bem.
ISm 24,18
ISm 25,21
Jr 18,20
Pr 17,13
Tum epagastecom bens,eeutepagueicom m ales(SaulaD avi).
Agora me paga mal por bem (Davi de Nabal).
Pagam-se bens com males? (Jeremias).
Quem paga mal por bem, o mal não se afastará de sua casa.
No salmo 109 começam os inimigos pagando amor com hostilidade;
responde o orante devolvendo mal por mal (com medida, lei do talião);
vejam-se também Sl 35,12; 120,7 e 38,21 com stn.
4b. E duvidosa a interpretação de tplh: a) Súplica pelos rivais (como Jr
15,11); é um modo de devolver bem por mal. b) Súplica por si mesmo, como
em 21-26; do louvor passa-se à súplica, de thlh a tplh. c) Da raiz pll =
1344
Salmo 10S
arbitrar, á luz de Ex 21,22; Dt 32,31; Jó 31,11.28; Is 28,7; o orante apela ao
julgamento de Deus ou do templo.
5.
Serve de resumo e para introduzir como citação o discurso dos
rivais (conforme a segunda hipótese, que preferi).
6-15, Se nos ativermos à forma, contaremos vinte petições ou impre­
cações, em imperativo ou jussivo, positivas ou negativas. Como que um
apedrejar verbal da vítima. Se nos fixarmos no conteúdo, observaremos
blocos temáticos. Para entender esse gênero em contexto do AT, devemos
nos valer de Dt 27-28.
As maldições concebem-se em oposição às bênçãos, apresentam-se
em séries; estão condicionadas ao não-cumprimento das cláusulas da
aliança e portanto funcionam como castigo, são cláusulas penais; pronun­
ciam-se liturgicamente numa cerimônia que anuncia Dt 27,12-13 e se
refere Js 8,30-35. As maldições consideram-se eficazes pela ação de Deus.
ou se estão justificadas (Jz 9,57); do contrário, são ineficazes (Pr 26,2).
Deus pode mudar a maldição em bênção (Balaão, Dt 23,6). Um exemplo
de efeito de maldição a longo prazo lê-se em Js 6,26, com o cumprimento
em lRs 16.34. As maldições de Dt 28 dirigem-se ao povo como coletivida­
de, as do salmo dirigem-se a um indivíduo; talvez por isso não coincida o
conteúdo.
6-7. A primeira imprecação é talvez a mais estranha, por dirigir-se a
Deus em imperativo, e pelo que pede. Suponhamos que alguém deseje a
outrem: “que caias nas mãos de juiz sem consciência, de polícia brutal”;
seria triste desventura. Mas pedir a Deus que nomeie um “fiscal” injusto,
de forma que fracasse a defesa do inocente e saia condenado, é pedir a
cumplicidade de Deus. E certo que Deus às vezes entrega ao poder de
inimigos ferozes: conseqüências de guerras, castigos merecidos. Outra
coisa é instituir formalmente um tribunal para que triunfe a injustiça
(seria talvez como enviar um “espírito mentiroso” para enganar o rei, lRs
22). Essas palavras entendem-se melhor como “expressões de ódio” do
inimigo do que como petição devota do orante.
8.
Que malogre sua vida: em princípio pode ser por execução capita
como desenlace do processo (é o caso de Nabot, lRs 21) e também por doença
ou acidente que frustram a bênção da longevidade.
Para a segunda frase podem-se aduzir como ilustração alguns casos do
AT: o sacerdócio e a família de Eli (ISm 2,35); o poder real e a família de Saul
(ISm 15); o mordomo Sobna (Is 22,19-25):
19
20
21
tirar-te-ei de teu posto, destituir-te-ei de teu cargo
... chamarei o meu servo Eliaquim ...
vestirei nele tua túnica, cingi-lo-ei com tua faixa, dar-lhe-ei teus
poderes.
Exegese
1345
A frase do salmo é citada em Atos dos Apóstolos (1,20) aplicada a
Judas; donde tomaram pé comentadores antigos para aplicar toda a série
a Judas.
9.
A imprecação alarga-se para a família, que fica pobre e desampara­
da pela morte do marido e pai. Diz Lm 5,3 de toda a comunidade: “Ficamos
órfãos de pai, e nossas mães ficaram viúvas”. Semelhante Jr 18,21.
10-12. Sobre as posses. Formam um bloco lógico. Legal ou ilegalmente
gente estranha, não da família, apodera-se de seus bens; os órfãos ficam
reduzidos à mendicidade; pedem, e ninguém tem compaixão deles. A
crueldade está se recrudecendo. Compare-se com Dt 2,29.33.
Sobre a mendicidade afirma o Sl 37,25: “Nunca vi um justo abandona­
do nem sua linhagem medigando o pão”.
13. A descendência. Veja-se a terrível maldição pronunciada contra o
sacerdote Eli (ISm 2,31-36): mortes, vida malograda, mendicidade.
14-15a. Os herdeiros deverão pagar os delitos dos pais, ou seja, pagam
as conseqüências. Compare-se com o Sl 79,8: “Não recordes contra nós as
culpas de nossos pais”.
15b. Extirpada a descendência, fica abolida também a recordação, em
geral ligada aos filhos e ao nome. De acordo com sua teoria da retribuição,
descreve Bildad o destino do malvado (Jó 18):
17
18
Sua recordação acaba no país
e esquece-se de seu nome na região.
Sem prole e descendência entre seu povo,
sem sobrevivente em seu território.
Vejam-se também Dt 32,26; Is 26,14; Sl 34,17; Ecl 9,5. Com a extinção
do nome, chega-se ao fim.
16. Até agora sucederam maldições ou imprecações sem motiva­
ção explícita, ou seja, sem mencionar o delito que as provoca e justifica.
O versículo 16 começa no estilo típico de motivação de sentença: “uma vez
que fizeste XX, eu te farei / te acontecerá / que te aconteça ZZ”. Quando fala
ojuiz, emprega o futuro; quando a vítima dirige-se aojuiz, pede emjussivo. Na
segunda hipótese, o orante toma aqui a palavra e faz balanço do texto
precedente: realmente seus rivais “amam a maldição e não querem a bên­
ção”; portanto merecem...
17. Pede simplesmente que se aplique a lei do talião, como se prevê
na legislação. Não se toma vingança, mas se pede justiça.
18-19. Ampliação expressiva, enérgica, do anterior: a maldição que
pronunciou há de se voltar contra ele com toda a sua força envolvente e
penetrante, sobre a pele até aos ossos. O Deuteronômio tem uma lei contra
as testemunhas falsas, aplicável por analogia a outros casos:
1346
Salmo 109
19,16. Se se apresentar contra alguém uma testemunha de má fé acusando-o de rebelião, 17 as duas partes comparecerão diante do Senhor, diante
dos juizes e sacerdotes que estejam em funções então, 18 e os juizes investiga­
rão a fundo. Se resultar que a testemunha é falsa e que caluniou o seu irmão.
19 fareis a ele o que pretendia fazer para o seu irmão, e assim extirparás de
ti a maldade, e os demais ficarão escarmentados ao saber.
20. Considero esse versículo a conclusão do discurso do orante: Seja
essa a paga ou recompensa, da parte de Deus — a quem cabe aplicar a lei que
eu invoquei — , para os que falam contra mim — pronunciando as maldições
acima citadas. Pela ação de Deus, sua eficácia voltar-se-á contra os que as
pronunciaram.
Paga, salário (Lv 19,13; Is 49,4; Ez 29,30).
21-31.Marcada adversativa assinala o começo de nova secção, com
mudança clara de pessoa verbal. Os pronomes pontuam essa fase: tu
(21.27), eu (22.25), eles / tu (28).
O estilo é dialogai: sente-se a relação pessoal do orante com seu Deus.
A súplica contém os elementos típicos do gênero: tribulação do orante, des­
crição de sua situação, hostilidade do inimigo, apelação à misericórdia ou leal­
dade de Deus, petição de castigo para os culpados, promessa de ação de
graças pela libertação seguramente esperada.
21. A motivação no que Deus é ocupa o primeiro lugar.
22-24.
Segunda motivação, em estilo imaginativo, com dados
convencionais. A sabida comparação da “sombra” renova-se pelo predicadc
“que se alarga / distende” e pelo nifal de hlk (caso único no AT). O poeta
judeu G. Henríquez (século XVII) descrevia:
“porque são nossas vidas na terra
caduca sombra que no ar erra”.
O poeta hebreu vê a sombra estendida no solo. Segunda imagem: um
inseto daninho que se sacode (terá inspirado a Kafka para sua Metamorfo­
se?). O terceiro, se bem que menos original, está bem formulado: um jejum,
voluntário ou forçado, deixa-o fraco; falto de “gorduras” (magras), está desgordurado; falto de carne, des-carnado.
A fórmula de reconhecimento é típica de Ezequiel; veja-se também o
final do SI 64.
28-31. Os últimos versículos vão contrapondo as partes, rivais e oran­
te, como no desenlace de julgamento. Primeiro maldição e bênção, depois
derrota e festa, finalmente confusão e ação de graças. Notemos que à
confusão dos rivais derrotados não se contrapõe o gloriar-se do vencedor,
mas o louvor de Deus: o louvor com que começou o salmo, agora plenamente
justificado.
31. Versículo final de recapitulação.
Transposição cristã
1347
6. Transposição cristã
É possível leitura, reza cristã desse salmo? Comentadores antigos,
entre os quais Agostinho, afirmam que o salmo não contém imprecações, e
sim profecias: o que soa como expressão dum desejo é na realidade predição.
Guiados pela citação de At 1,20, aplicam o salmo a Judas, não tanto como
indivíduo, quanto como tipo dos inimigos e perseguidores de Jesus Cristo.
As desgraças anunciadas são a pena imposta num julgamento, para eles
final ou definitivo.
A distribuição de papéis que propus tornará mais fácil ou menos difícil
a leitura cristã. Contudo, quero mencionar outro aspecto do salmo. Diante
das injustiças inveteradas, a exploração dos fracos, a corrupção dos pode­
rosos, a violência, a tortura, sente-se ferver a indignação, subir e buscar
saída. O salmo pode ser expressão dessa indignação legítima e nobre;
embora depois não se o faça, porque nem se pensava fazê-lo. Imaginemos
um médico transbordando de indignação contra um criminoso e operandoo com anestesia e com todos os cuidados da profissão.
Lido dessa forma, talvez o salmo contribua para que não se nos apague
a indignação contra a injustiça, que é uma maneira de sede de justiça. Vejase o comentário ao Sl 58.
Salmo 110
1. Texto
1
Oráculo do Senhor ao meu Senhor:
“Senta-te à minha direita
até que faça de teus inimigos
escabelo de teus pés”
2
O Senhor estenderá de Sião
o poder de teu cetro.
Submete na batalha os teus inimigos.
3
Teu exército é de voluntários
no dia da mobilização.
Uma majestade sagrada
levas desde o seio materno1,
da aurora um rocio de juventude.
4
O Senhor jurou
e não se arrepende:
“Tu és sacerdote eterno
segundo o rito de Melquisedec”.
O Senhor à tua direita, no dia de sua ira
quebrantará reis;
julgará os pagãos,
amontoará cadáveres,
quebrantará crânios
sobre a imensa terra.
5
6
7
No caminho beberá da torrente,
e assim levantará a cabeça.
1nascimento
Variante do v. 3: Tua família é de nobres. O dia do teu nascimento, no átrio sagrado, te dei à luz,
como rocio do seio da aurora.
Bibliografia
1349
2. B ibliografia
A bibliografia sobre o Sl 110 é muito abundante. Alguns autores concen­
tram-se em problemas textuais, como Herkenne, Coppens e Schedl. Uns
fixam-se mais no aspecto da realeza, outros no do sacerdócio; outros ainda
estudam a leitura messiânica e a leitura cristã. Os temas se misturam,
mesmo em estudos monográficos, porque os problemas estão sobrepostos.
Como fórmula prática, citarei primeiro estudos de conjunto; à parte estudos
sobre o messianismo do salmo; depois estudos sobre versículos determina­
dos. Reservo para a secção Transposição cristã a bibliografia pertinente.
T. H. Gaster, Psalm 110, JManchEgypOrSoc 31 (1927) 37-44.
L. Dürr, Ps 110 im Lichte der neueren altorientalischen Forschung,
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H. Herkenne, Ps 110 (109) Dixit Dominus domino meo in neuer
textkritischer Beleuchtung, Bib (1930) 450-457.
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T. C. Vriezen, Ps 110, VoxTh 15 (1944) 81-86.
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égyptienne, OTS 9 (1951) 107-135.
F. Baumgärtel, Der 109 Psalm in der Verkündigung, MonPastTh 42
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J. Delorme, Le fils de l’homme: le témoignage du Ps 110, ChronEgypte 16
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H. G. Jeferson, Is Ps 110 canaanite?, JBL 73 (1954) 152-156.
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1350
Salmo 110
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M. Mannati, Salmo 110, em Pregare con i Salmi, Turim, 1978, 27-31.
V. Reali, Regalità sacerdotale: Ps 110, em Introduzione alla Bibbia, III.
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H. Möller, Der Textzusammenhang in Ps 110, ZA W 92 (1980) 287-289.
J. Schildenberger, Der Königspsalm 110, ErAuf 56 (1980) 53-59.
G. Gerleman, Ps 110, VT 31 (1981) 1-19.
L. Kunz, Ps 110 in massoretischer Darbietung, ThGl 72 (1982) 331-335.
P. Auffret, Note sur la structure littéraire du Ps 110, Sem 32 (1982) 83-88.
Lista alfabética
Auffret
Baumgärterl
Beaucamp
Bowker
Caquot
Coppens
Delorme
Driver
Dürr
Gammie
Gaster
Gerleman
Hardy
Herkenne
Jansen
Jeferson
Kaznowsky
Kida
Kissane
Krinetzky
Kunz
82
53
61
67
56
31.59.77
54
65
29
69
27
27
45
30
40
54
60
64
54
61
82
Mannati
Möller
Nácar
Podechard
Reali
de Relies
Ridderbos
Rowley
Sauer
de Savignac
Schedl
Schildenberger
Schreiner
Sisto
Stoebe
Strauss
Tournay
Treves
Vriezen
Widengren
78
80
46
48
78
61
44
67
68
51
61
80
77
30
59
69
45.60
65
44
41.76
Messianismo
A.
Miller, Gibt es direkt messianische Psalmen?, em FS Ubach, Montserrat,
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F. Segula, Messias rex in Psalmis, VD 32 (1954) 23-33; 77-83; 142-154.
Z. Kaznowsky, Mesiajiizm. Ps 110, Lublim, 1958.
Análise filológica
1351
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A. Luger, Der Messianismus der Psalmen, Viena, 1959.
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B. Martin Sánchez, Salmo 109(110). El Mesías rey, sacerdote y vencedor,
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C. Schedl, Aus dem Bach am Weg. Textkritische Bemerkungen zu Ps 110
(109),7, ZA W 73 (1961) 290-297.
3. Análise filológica
2. rdh: imperativo com valor consecutivo.
bqrb: Dah lê biqrab na batalha.
3b. ‘mk ndbt: lendo sujeito e predicado, este abstr por concreto Ros
Marini Phil Hitz Del Wei Rav “il tuo popolo é (tutto slancio)” Cast; lendo
1352
Salmo 110
‘immeka Gr Aq ekousiasmoi, “possuis gabarito de príncipe” Gun; “em torno
de ti nobres” Kraus; ndbt militar (Jz 5,2).
bywm hylk: poder Gr Jerôn Duhm Wei, exército Ros Del Rav.
bhdry qdsh: com ornamentos sagrados (da guerra santa), ou seja, as
armas Hitz; alude a Jerusalém Qim; corrigem para hrry montes Sím Jerôn
Kraus.
mrhm mshhr: do seio da aurora (o hebraico tem o subst mshhr) Hitz
Del Ecker; muitos antigos leram min comparativo ou temporal ante
luciferum Gr Vg; separando os dois substantivos Gun.
tlyldtyk: o rocio de tuajuventude =juvenil ros adulescentiae tuae Jerôn
Hupf Now Reinke, juventude =jovens soldados fortes e numerosos Hitz Del
Baeth Rohling; lêem ktl (haplografia) Luth Wei, rocio matutino = dom de
Deus na hora do favor Wolff; suprimem lk tl e lêem verbo te gerei Gr Vg.
Duas leituras íntegras: “Tecum principium in die virtutis tuae, in
splendoribus sanctorum; ex utero ante luciferum genui te”; Vg.
“Dein Volk (ist) Freiwilligkeit(en) an deinem Heertage; in heiligen
Schmuck aus dem Schoss der Morgenröte (kommt) dir der Tau deiner
Jugend” Ecker.
Interpretação cristã: o principado do Messias, de Cristo muitos; do Pai
Oríg. No dia: cruz ou encarnação Oríg. Geração eterna do Logos muitos
antigos; do útero (só) de Maria Tert Just; ante luciferum, pois nasceu de
noite Ag; a aurora é Maria LeBlanc.
4. dbrty: para o -y final GK 90 1.
5. ’dny: pode ser sujeito ou vocativo.
6. ml’: adj cheio Marini, rodeado Wei, verbo intrans impessoal Del
Duhm, verbo trans com complemento implícito ’rç Targ Phil, com comple­
mento cadáveres Gr, ou vales Jerôn.
gwywt: (implevit) valles Jerôn, lêemg ’wt majestade Podechard Kissane
Driver; r’sh coletivo.
7. mnhl bdrk yshth: mudando a pontuação lê Nober “dar-lhe-á em
herança o domínio”, idem lendo part hofal Schreiner.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Este é um salmo régio, que faz companhia aos SI 2,20-21, 45, 72 e 132.
Sabemos que esse gênero caracteriza-se pelo conteúdo, salmo de um rei ou
para um rei, e pode apresentar-se em múltiplas formas. Como as tarefas
primordiais do rei de Judá são assegurar a continuidade da dinastia
davídica, governar com justiça, defender na guerra, esses temas podem-se
Estudo global
1353
tocar ou deles se tratar em salmos régios segundo a ocasião a que se
destinem. Por exemplo, o 45 canta-se por ocasião de boda real, o 72
concentra-se no governo justo, 20-21 situam-se antes e depois da batalha,
o 2 supõe uma rebelião de vassalos. Onde se situa o SI 110?
Alguns comentadores pensam numa cerimônia de entronização (em
nossa cultura a chamamos de coroação), que se realizava no templo ou no
palácio. Por ocasião ou como parte da cerimônia, um encarregado oficial,
talvez sacerdote, pronunciava um oráculo para o rei. E suposição plausível,
que não pode aduzir provas documentais. No caso de Salomão (lRs 3), o rei
recebe o oráculo diretamente de Deus, sem intermediários. Em Is 9 e 11
lemos oráculos proféticos pelo nascimento de herdeiro dinástico; mas não
consta que tivessem sido parte de cerimônia litúrgica. O caráter oracular
é explícito no SI 110, como também as referências ao governo e à guerra.
Mas o salmo acrescenta um dado que, em vez de esclarecer, complica a
explicação: o tema do sacerdócio.
b) Três interpretações
O governo e a guerra encaixam-se naturalmente na profissão real;
como entra o sacerdócio? Semelhante anomalia admite três explicações
básicas: o rei é também sacerdote, o sacerdote substitui o rei, rei e sacerdote
são figuras coexistentes.
—
O rei é também sacerdote. Assim era Melquisedec, o rei sacerdote da
Jerusalém jebuséia nos tempos de Abraão: “Melquisedec, rei de Salém,
sacerdote do Deus Altíssimo, tomou pão e vinho, e os bendisse” (Gn 14).
Mencionando-o nominalmente, o salmo oferece-nos uma pista: agora o rei
judeu sucederá ao rei jebuseu em ambas as funções. Alguns dados confir­
mam as funções sacerdotais dos reis antigos:
2Sm 6: ao transladar a arca, Davi ofereceu sacrifícios. Poder-se-ia inter­
pretar que ofereceu as vítimas para que as pessoas competentes fizessem o
rito do sacrifício. 2Sm 8,18: “Os filhos de Davi oficiavam no culto”, não sendo
de estirpe levítica. 2Sm 24,25: Davi construiu ali um altar ao Senhor,
ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão”. Isso sucede na localização
do futuro templo. lRs 3,15: “Salomão então foi a Jerusalém e, de pé diante
da arca da aliança do Senhor, ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão
e deu um banquete à corte”. lRs 8: toda a cerimônia da dedicação do templo,
na qual o rei “voltou-se para lançar a bênção a toda a assembléia de Israel”.
Segundo essa explicação, o salmo é antigo e refere-se a transferência
de instituições e atribuições da cidade jebuséia a seu conquistador, o rei
Davi. Seu poder sobre vassalos estrangeiros e suas vitórias militares de que
fala o salmo compreendem-se à luz de 2Sm 8,5:
1354
Salmo 110
Davi matou vinte e dois mil homens e impôs governadores aos sírios de
Damasco, que ficaram vassalos tributários de D av i... 13: Derrotou Edom em
Vale do sal, matando oito mil homens, e aumentou sua fama; impôs
governdores a Edom, que ficou como vassalo de Davi. 15: O Senhor deu a
Davi a vitória em todas as suas campanhas. Davi reinou sobre Israel e
governou com justiça o seu povo.
O último dado não é mencionado pelo salmo.
—
O sacerdote desempenha as funções do governo real. Passaram
séculos e não há rei em Judá, porque o território faz parte agora de
província persa. O que fica de governo autônomo está encomendado à casta
sacerdotal, de modo que o sumo sacerdote é a suprema autoridade para os
assuntos internos da comunidade. O salmo evita a terminologia da realeza.
Quem o compõe e os que o recitam sonham com reconquistar a independên­
cia e as glórias do passado, na linha de Am 9,11-12 e textos afins.
Ora, como a época persa é avara em notícias, desce-se à era selêucida.
antes da perseguição de Antíoco IV Epífanes (175-163). O salmo pretende
legitimar os poderes do sumo sacerdote, e em forma de oráculo lança seus
protestos contra o poder opressor da Síria.
Dentro dessa datação situam-se as tentativas de precisar o sumo
sacerdote do qual se trata, supondo que o salmo corresponde a uma situação
histórica e não é mera peça de repertório. Dessa época (pelo ano de 180 a.C.)
temos a obra de Ben Sira, o Eclesiástico, na qual se cantam com entusiasmo
as glórias do sumo sacerdote Simão (Eclo 50): de suas funções profanas
mencionam-se a reconstrução das muralhas e assegurar o serviço de águas
para a cidade. Mas o salmo fica muito amplo para esse sacerdote. Contudo,
alguns (Treves, com bibliografia) recorrem a outro argumento: lendo os
quatro primeiros versículos do oráculo como acróstico, temos shm‘n =
Simão.
Como os dados bélicos do salmo não se encaixam nas etapas indicadas,
alguns descem até as revoltas dos macabeus, ou inclusive até a instauração
da monarquia asmonéia, a partir do terceiro dos macabeus, Simão, que foi
comandante supremo do exército, sumo sacerdote e governador com pode­
res absolutos; e a seu filho nomeou rei (lM c 13-14). O salmo seria a
legitimação litúrgica de sua dupla autoridade; dever-se-á ler em relaçãG
com o elogio de lMc 14,4-15:
5
6
7
Acrescentou a seus títulos de glória
a conquista de Jafa com o seu porto,
abrindo assim caminho para o tráfego marítimo.
Estendeu as fronteiras de sua pátria,
apossou-se do país.
Apoderou-se de Guézer, Betsur e da Acrópole;
não houve quem lhe resistisse.
Estudo global
9
13
1355
Os moços vestiram gloriosos uniformes militares.
Acabou com os inimigos no país,
em seu tempo os reis acabavam derrotados.
O espírito bélico do salmo adata-se bem às gestas dos macabeus; mas,
se temos que julgar pelo texto hebraico do Eclesiástico, o estilo do salmo
está a muita distância.
— Os dois poderes. O salmo inclui duas introduções: uma de oráculo,
outra dejuramento (la.4a). Aprimeira fala do poder real, a segundo do poder
sacerdotal. A primeira dirige-se ao rei — digamos a Davi —, a segunda ao
sacerdote — digamos a Sadoc —. Apurando esses dados, Rowley põe o salmo
no momento do estabelecimento de Jerusalém, com suas instituições, como
capital do novo reino. Ainda mais: imagina que o oráculo é dito por Sadoc a
Davi, selando com oráculo sacerdotal o poder real; ojuramento é pronunciado
por Davi para Sadoc, reconhecendo-lhe sua dignidade sacerdotal vitalícia.
A divisão dos dois poderes é assim sancionada desde o começo. Séculos
mais tarde, dará testemunho dela Zacarias e defendê-la-á polemicamente
o cronista (2Cr 26,16). O rei de Judá nunca terá o título de kohen, ainda que
exerça algumas cerimônias públicas ocasionais.
Nessa interpretação, se o relato de Gn 14 foi produzido para justificar
o translado de Jerusalém ao reino de Israel, por que fantasiaram um rei
sacerdote? Responderiam que para frisar o contraste: o que Melquisedec
concentrava numa pessoa, os israelitas vão separar cuidadosamente.
— E comum às três linhas de interpretação buscar uma conjuntura
histórica para explicar a origem e o teor do salmo. Quanto mais querem
precisar as circunstâncias, mais duvidosa torna-se a explicação. Em oposi­
ção às três apresenta-se a hipótese de considerar o salmo como peça de
repertório, para ocasiões semelhantes repetidas, como ocorre com o:Sl 45.
Mas resta sem explicação o sacerdócio, a não ser que se tome o termo kohen
em sentido metafórico, equivalente a “ungido”, ou restringindo-o à função
de “bendizer”, o que faz Melquisedec.
Em vista dessas dificuldades, resta como último recurso considerar o
salmo como messiânico em sua origem, com uma visão do Messias englo­
bando todos os poderes históricos e institucionais de Israel. Não se deve
confundir isso com a leitura messiânica do salmo em tempo posterior à sua
composição; leitura de que não podemos duvidar.
c) Composição
Os dois elementos introdutórios indicam claramente a divisão ê®
salmo em duas partes: “oráculo”, “jurou”. O uso de formas verbais ®
pronominais definem ulteriormente o salmo pela distribuição de papéis..
1356
Salmo 11C
Quem pronuncia de fato as duas introduções e por elas o resto dc
salmo? O óbvio é pensar que a mesma pessoa, o presidente da liturgia ou
cerimônia. (Vimos a teoria diversa de Rowley). Imediatamente depois de
cada introdução, pronuncia as palavras Yhwh, dirigindo-se em segunda
pessoa ao eleito. Em seguida, o chefe da cerimônia ou um encarregado
especial amplia o texto falando em segunda pessoa ao eleito. Assim chega­
mos até 5a.
A partir de 5b, os verbos estão em terceira pessoa: quem é o sujeito? Em
5b-6 é ambíguo, pode ser ’adonay ou o rei. Do v. 7: “beber da torrente” tem
que ser sujeito o rei, e, não tendo outra indicação nem mudança de sujeito,
o lógico é que seja o mesmo o sujeito de 5b-6, o rei. Com o que temos que os
versículos 5-7 não comentam o sacerdócio, mas a atividade militar do
monarca. Ou seja, que a divisão do salmo em duas partes pelo conteúdo é
de todo irregular. O tema do sacerdócio fica isolado e sem comentário no
centro do salmo.
Tendo em conta a polaridade clássica de “sentar-se / caminhar” (Dt
6,7), o salmo começa e termina com a dupla atividade do rei: “sentado” no
trono, indo “a caminho”. Por proximidade, essa polaridade arrasta a outra:
“de Sião / a imensa terra” (2a.6b). Acrescenta-se o duplo “à direita” corr
mudança de ponto de vista: o rei à direita do Senhor sentado, o Senhor à
direita do rei lutando. Menos importância tem outra polaridade: os pés
pisando, a cabeça alta (lb.7b).
Esses dados acumulados mostram no autor uma vontade construtiva
que se manifesta na disposição de superfície rigorosa. A que acrescem os
problemas textuais com que nos depararemos na exegese.
5. Exegese
la. A direita é o lugar privilegiado, de honra ou de autoridade (lRs
2,19, Betsabéia à direita de Salomão como rainha-mãe). O rei é lugartenente do Senhor. Alguns autores perguntam-se se é precioso tomá-lo ao
pé da letra, topograficamente; argumentam que o palácio real estava
construído à suleste do templo, ou seja, à direita. No SI 80,18, o eleito
chama-se “o homem de tua destra”. Sentar-se implica um trono: o tema real
é transparente.
lb . Em sentido material, o escabelo onde o rei apóia os pés pode levar
talhadas ou pintadas figuras de inimigos vencidos (como se vê no museu
egípcio de Cairo). Em sentido realista, pôr o pé sobre o vencido é rito de
vitória:
Exegese
1357
Josué disse a seus oficiais: Aproximai-vos e pisai o pescoço desses reis (Js
10,24).
“O Senhor ia pondo seus inimigos debaixo de seus pés (lR s 5,17); cf. SI
18,39.
2. Segundo o SI 45, o cetro é “reto”, simbolizando a retidão ou justiça no
governo; aqui é “poderoso”, afirmando a força (não há referência à justiça
nesse salmo). Sião converte-se na capital de reino a que pagam tributos reis
vassalos. Pelo contexto do salmo, os inimigos são externos (o SI 18 menciona­
va inimigos externos e internos). E o Senhor que dilata o poder do rei de Judá.
3. Eis um versículo impossível de explicar: arena em que se exercita o
engenho dos filólogos sem que nenhum dê com a solução. O número das
propostas é diretamente proporcional às dificuldades do texto. Podemos
reduzir as explicações a dois grupos principais: militar, de entronização.
— Explicação militar, ‘m significa povo e pode significar exército (SI
45,6. DBHE ‘m 11,1); ndbt pode ter função adjetiva, um exército de
voluntários, soldados entusiastas: “pelos voluntários do povo / exército”
ibhtndb ‘m, Jz 5,2.9). Sendo hyl o exército,ywm hyl é o dia da mobilização,
quando o rei convoca ou revista suas tropas (cf. lRs 20,1; Is 43,17). hdry
qdsh pode ser a “sacra majestade” do rei ou uma manifestação divina de
proteção antes da batalha. Como penhor de consagração e dom de valentia
militar, o rei recebe a bênção celeste em forma de rocio matutino, como
frescor adolescente.
Segundo essa explicação, o v. 3 continua o precedente e desenvolve-se
no ternário final. O salmo é intensamente militarizado; a guerra é o centro
da atividade régia, como nos SI 20-21.
— Entronização ou investidura. A investidura real é vista como um
nascimento ou adoção por parte de Deus. Em vez de hylk lê-se hllk, o dia que
foste gerado (SI 90,2; 51,7; Jó 15,7; Pr 8,24). yldtyk vocaliza-se como
primeira pessoa, “eu te gerei”; rhm é seio materno; mrhm pode ser “de
nascimento” (Is 46,3; Jr 20,17; SI 58,4). Em torno desses três elementos
constrói-se ou conjetura-se o resto até obter uma espécie de nascimento
celeste. Feito isso, as peças restantes admitem interpretações diversas: do
seio da aurora, como a aurora gera o rocio, assim eu te gerei; de nascimento
mrhm, investidura) recebes a sacra majestade.
Essa é a linha que seguiram as versões grega e latina. Ou leram outro
texto ou introduziram correções. O resultado é uma versão misteriosa pelo
que tem de enigmática, que convida a imaginar um fato transcendente.
Dentro de ambas as explicações, cabem múltiplas variações, segundo o
significado que se atribua a cada palavra e sua função sintática em cada fra­
se. Pensava-se que o rocio descia do céu como a chuva e era sinal de bênção;
uma vez que aparece em contexto agressivo (Aquitofel, 2Sm 17,12), quer des-
1358
Salmo 110
crever a descida sigilosa e simultânea. Jó pergunta: Quem gera as gotas do
rocio? (hwlyd, 38,28). A propósito de shhr - aurora, cita-se um texto curioso
(Ecl 11,12) que chama a meninice e a juventude de hayyaldüt weshahrüt.
4a. Não se arrepende, não volta atrás (ISm 15,11.15).
4b. O relato de Gn 14 contém muitos enigmas para poder explicar a
breve alusão do salmo. A maioria considera-o relato etiológico inserido no
Pentateuco para justificar ou explicar alguma instituição: poderes sacerdo­
tais, paga de dízimos, Jerusalém como capital... O sacerdócio perpétuo é
concedido a Aarão e seus filhos em Ex 40,15, a Finéias em Nm 25,13.
5-6. Depois do intermédio sacerdotal, voltamos ao contexto bélico. O
Senhor assiste à direita do rei protegendo-o, como a Moisés (Is 63,12), como
ao orante (SI 16,8; 121,5).
Ao definir o sujeito dos verbos que seguem, oferecem-se três soluções:
a) continua sendo sujeito Adonai, como pede a sintaxe, o qual derrota os reis
e julga / governa os povos (cf. SI 7,9); b) é sujeito o rei, que exerce as ações
com a ajuda do Senhor, e assim realiza o que diz o v. 2; isso supõe mudança
de sujeito e passagem da segunda para a terceira pessoa; c) em disposição
artificiosa e conhecida, de fórmula A B / A’ B’, cabem a Deus 5a e o primeiro
sintagma de 6, o resto toca ao rei.
Outra pergunta: são duas atividades diversas a guerra e o governo, ou
executa-se o julgamento na guerra? Distinguir corresponde à colocação
inicial, que distingue “sentar-se” no trono e “dominar na batalha”. Identi­
ficar corresponde ao modelo do SI 76, que apresenta a derrota do inimigo
como julgamento e execução da ira de Deus.
Os contatos entre ambos os salmos são notáveis: Sião como centro, os
guerreiros, a ira, o julgamento, os nobres. Duas diferenças notáveis: no SI
76 destroem-se as armas antes que os soldados (a não ser que o sono
signifique a morte); no SI 76, o rei humano não intervém.
A visão violenta e prazeirosa da guerra pode-se ilustrar com exemplos
bíblicos e extrabíblicos. Do saltério: 18,38-43; 21,9-11; da literatura profé­
tica: Hab 3,12-14 e oráculos contra povos pagãos; de textos provavelmente
escatológicos: Is 34,5-8; 63,1-6; Ez 39; de textos narrativos: Nm 31,1-12. Da
literatura do Egito e da Mesopotâmia escolhemos algumas amostras:
Das campanhas de Seti (cerca de 1318-1301):
“Goza marchando para o combate ... Seu coração desfruta vendo
sangue. Corta a cabeça aos malvados. Prefere um momento pisoteando a um
dia de festa” (ANET 254A).
Das campanhas de Assurbanipal II (883-859):
“Desbaratei-os, derrubei suas muralhas, incendiei as cidades; os
sobreviventes eu os empalei diante das cidades” (ANET 276).
Transposição cristã
1359
Das campanhas de Salmanasar III (858-824):
“Assaltei a cidade e a conquistei; matei a fio de espada trezentos de
seus soldados. Derrotei-os e reduzi a escombros suas cidades. Cobri a grande
planície de cadáveres de soldados... Tingi de sangue como lã as montanhas”
(ANET 277).
“A planície era estreita para dar passagem às almas que desciam (ao
inferno); a extensão não deu para sepultá-los. Com seus cadáveres, antes
que houvesse ponte, fez vadeável o Orontes” (ANET 279).
O
autor do salmo parece contagiar-se desse espírito belicista que se
compraz em contar as baixas inimigas.
7.
O versículo final é perfeitamente claro no texto e obscuro em sua
referência. Que rito é este de beber água? De que torrente se fala?
Talvez seja o mais acertado tomá-lo em seu sentido óbvio, que podemos
parafrasear: o soldado na campanha (drk) está sedento e desfalecido;
depara-se em seu caminho com uma torrente providencial de que bebe em
abundância; recupera as forças, sente-se vigorizado e segue adiante com a
cabeça erguida. Ou, fortalecido com a água, derrota o inimigo e levanta a
cabeça como vencedor. Os soldados de Gedeão (Jz 7,4-6) oferecem um
exemplo afim; a sede caprichosa de Davi (2Sm 23,15-17) ilustra um aspecto.
Outros comentadores buscam sentido ritual ao beber e sentido metafórico
à torrente: para as duas coisas podem-se encontrar paralelos no AT.
6. Transposição cristã
E curioso que um salmo tão militarista seja um dos preferidos do Novo
Testamento. Mas se fez necessária dupla operação: selecionar alguns
versículos e mudar a identificação dos inimigos.
Ofereço aqui materiais, remetendo o leitor para a bibliografia especia­
lizada.
Sobre o versículo 1: M t 22,41-46; Mc 12,35-37; Lc 20,41-44.
M t 26,64. Diante do Grande Conselho, Jesus aplica a si mesmo combina­
dos 110 com Dn 7,13 sentado à direita e vindo nas nuvens. Paralelos: Mc
14,61-64. Lc 22,69 cita só 110,1.
Mc 16,19: “O Senhor Jesus subiu ao céu e sentou-se à direita de Deus”.
A t 2,34-35. Pedro no pentecostes cita o v. 1.
Rm 8,34: “O que morreu, ou melhor, que ressuscitou, o mesmo que está
à direita de Deus”.
ICor 15,25-26. No capítulo sobre a ressurreição de Cristo e do cristão,
Paulo cita uma frase de 110,1 e oferece nova identificação dos “inimigos”:
“Porque seu reinado tem que durar até que ponha todos os seus inimigos
debaixo de seus pés; como último inimigo aniqulará a morte; pois tudo
submeteu a seus pés”.
Salmo 110
E f 1,20: “Ressuscitando-o e sentando-o à sua direita no céu, 21 acima de
toda soberania ... 22 Tudo submeteu debaixo de seus pés”.
Cl 3,1: “Se resuscitastes com Cristo, buscai o de cima, onde Cristo está
sentado à direita de Deus”.
lPd 3,22 cita livremente o v. 1: “fundado na ressurreição de Jesus Cristo,
a quem se submeteram anjos, autoridades e poderes, chegou ao céu e está à
direita de Deus”.
A carta aos Hebreus utiliza e explora o versículo 4 do salmo. Aplica-o ao
sacerdócio de Cristo, que não é de estirpe levítica, mas da linha de Melquisedc
(5,6); nomeado ou proclamado por Deus (5,10), com validade perpétua (6,10).
Todo o capítulo 7 da carta é comentário ao versículo 4 do salmo, levando em
conta Gn 14.
Não é estranho que a liturgia e os Santos Padres tenham empregado esse
salmo como um dos principais textos messiânicos.
Salmo 111
1. Texto
1
Aleluia. Dou graças ao Senhor de todo o coração
no conselho dos retos e na assembléia.
2 Grandes são as obras do Senhor,
dignas de estudo para os que as amam.
3 Sua ação é magnífica e esplêndida,
sua justiça sempre se afirma.
4 Faz recordar suas maravilhas:
o Senhor é piedoso e clemente.
5 Dá o alimento a seus fiéis,
recordando-se sempre de sua aliança.
6 Mostrou a seu povo a eficácia de sua ação
dando-lhe a herança dos pagãos.
7 Suas obras são verdade e justiça,
todos os seus preceitos merecem confiança1;
8 são válidos para sempre e eternamente,
hão de se cumprir fiel e retamente.
9 Enviou a redenção a seu povo,
ratificou para sempre a aliança,
seu nome é sagrado e temível.
10 Primícia de sensatez é respeitar o Senhor,
têm bom juízo os que o realizam2.
O elogio do Senhor dura para sempre.
2. B ibliografia
J. de Cantanzero, Fear, knowledge and love: a study in OTpiety, CanJT
9(1963)166-173.
W. Zimmerli, Zwillingspsalmen, em Studien zur alttestamentlichen
Theologie und Prophetie, Munique, 1974, 261-271.
1são de se fiar
2põe em obra
1362
Salmo 111
J. D. Koster, Gods grote weken: Gods grote daden. Opmerkingen er.
bescouwingen over en naar anleidning van Ps 111,2, N edThT33 (1979) 1026.
P. Auffret, Essai sur la structure littéraire des Ps 111 et 112, V T 30 (1980
257-279.
J. Schildenberger, Das Psalmenpaar 111 und 11, ErAuf 56 (1980) 203207.
S. Lach, Le sens de l’attribut hannun à la lumière des Psaumes, FolOr 21
(1980)93-102.
3. Análise filológica
2.
drwshym: particip modal exquirenda Jerôn a maioria.
hpçyhm: exquisita in omnes voluntates eius Vg, expedita ad Agélio.
perfecte facta pro sua voluntate vel excitantia ad faciendam eius voluntatem
Sa, para todas as suas funções Halévy Ehrlich; lê partie Dah; Ikl segundo
Hitz Phil.
7. n’mnym: partie modal.
8. partie com valor de gerundivo Weiser Kraus; wyshr lêem subst
yosher Gr Jerôn Sim.
Salmos 111-112
Esses dois salmos apresentam-se-nos como dois irmãos gêmeos e
pedem-nos primeiro um olhar de conjunto.
Se considerarmos a composição alfabética como gênero à parte, os dois
fazem companhia a 9-10,25,34,37,119 e 145.0 específico desses dois é que
aplicam o esquema alfabético aos hemistíquios, e assim resultam de onze
versículos normais.
O acróstico alfabético pode servir para guiar a memória. O autor vê no
artifício uma afirmação de totalidade: o alfabeto inteiro, em ordem rigoro­
sa, é convocado a serviço da prece. Como todo começo é dominante para os
hebreus, cada linha ou sentença é regida por uma letra do alfabeto, à qual
se submete. De passagem, o artifício pode mostrar a argúcia e destreza do
poeta (nada espetaculares). O autor destes dois salmos quis competir em
brevidade, como o autor do 119 em comprimento.
A idéia de ordenar de modo estável as letras de um alfabeto e por elas
os fonemas de uma língua é própria de culturas que usam a escrita. Um
passo a mais é utilizar essa ordem convencional para ordenar uma série de
idéias ou inclusive para produzi-las ou recordá-las. (Lembro-me de jogo de
Estudo global
1363
minha infância em que um, lançando a outro do grupo um sinal dizia: “de
Havana veio um navio carregado de
dizia um objeto, e os demais que
iam recebendo o sinal tinham que nomear outro objeto que começasse com
a mesma letra). Minha lembrança não é de todo inoportuna, uma vez que
o artifício alfabético tem não pouco de jogo.
O segundo salmo buscou mudar os começos (em nosso jogo não se
permitia repetir uma palavra); contudo, em três versículos o começo é igual:
wh s. Descontando partículas, mais de um terço das palavras de ambos os
salmos coincidem, o que é considerável, dado que cada linha contém três ou
quando muito quatro palavras. Há uma linha em que aparece uma vez no
primeiro salmo e duas vezes no segundo, talvez reclamando a hegemonia.
Se atendermos ao conteúdo, os dois salmos pertencem a gêneros
diversos. O primeiro, como indicam começo e final, encontra-se entre ação
de graças e hino; o segundo apresenta-se como bem-aventurança do
honrado, contraposta à sorte do malvado. O primeiro é dedicado a Deus, o
segundo ao homem em relação com Deus.
Tal colocação permite correspondência sutil e sugestiva, pois o segun­
do refere ao homem o que o primero refere a Deus. Adiantemos algum
exemplo. A frase repetida sobre “sua justiça / generosidade”: em 111 é a de
Deus, em 112 a do homem; em 111 são estáveis / seguros os preceitos de
Deus, em 112 é-o o homem; o verbo ntn = dar diz-se de Deus em 111, do
homem em 112; a retidão predica-se de Deus em 111, do homem em 112;
finalmente, a perpetuidade de Deus de 111 transfere-se a seu modo ao
homem em 112.
4. Estudo global
. Composição e estilo
— A estrutura de superfície do salmo é o alfabeto, que, como vimos, não
favorece arquitetura bem planejada. Cabe perguntar, porém, se há no
salmo algum princípio de unidade, alguma idéia condutora que trave e dê
consistência ao rosário de sentenças. Pois bem, há uma reiteração que salta
à vista, dada a brevidade do texto: a raiz ‘sh fazer, com o sinônimo p ‘l.
Uniformizando a tradução para reproduzir o efeito original, temos: 2a ações
do Senhor, 3a sua obra, 4a faz maravilhas, 6a suas ações, 7a as ações de
suas mãos, 8b feitos (particípio), 10b os que o fazem. Sete menções em breve
espaço de 22 sentenças sóbrias é coeficiente sugestivo, quase um terço. A
reiteração tem um reverso, ou seja, generaliza em vez de enumerar ações
concretas, como fazem outros hinos (compare-se, por exemplo, com o SI
1364
Salmo 111
136). O salmo é reflexivo, não descritivo; é como que um balanço sóbrio, de
entradas globais.
Há, porém, um grupo de ações que parecem rondar a mente do autor
e que se acham polarizadas pelo tema da “aliança”, mencionada em 5b e 9b.
Ao redor da aliança gravitam as “maravilhas” da libertação do povo, os
atributos divinos “piedoso e clemente”, a comida (no deserto), a terra
entregue, os mandamentos, o “nome” respeitável, o título “povo seu”. Vaga
ou formalmente, o autor está polarizado pela “recordação que Deus estabe­
leceu” (4a). Se o salmo for tardio, como parece, os elementos mencionados
formam na consciência do israelita uma constelação tácita, que não é
preciso tematizar cada vez. E o leitor que precisa tomar consciência disso.
Outro tema reiterado é o da perpetuidade: Vwlm em 5b.8a.9b, l‘d em
3b.8a. 10a. Perpetuidade para o autor não significa atemporalidade, mas
duração eficaz de fatos na memória, de instituições em sua validez.
Perpétua é a aliança com seus preceitos, perdurável deve ser o louvor. O
orante atualiza o passado na recordação e na meditação, sem anunciar nem
contar nem proclamar. O salmo tem certo ar de recolhimento.
Quase no fim (10ab), duas linhas atraem sem violência um tema
sapiencial. O autor parece compartilhar de certa forma da concepção tardia
que unifica e quase identifica hkmh com twrh, sensatez com lei. O que
fazem explícito as últimas linhas, está difundido por todo o texto, que soa
com tonalidade sapiencial.
—
O estilo do salmo é prevalentemente nominal: a um substantivo ou
nome aplica-se um predicado sem cópula explícita. O predicado pode ser adje­
tivo ou particípio ou substantivo. Adjetivo e particípio: grandes, de estudar,
de fiar-se, válidos, de cumprir-se; piedoso, clemente, sagrado, temível.
Substantivos: honra e dignidade (3), verdade e justiça (para o substantivo
como predicado, compare-se com o português “o que dizes é verdade”).
Um salmo que medita e exalta as ações do Senhor quase não lhe atribui
verbos: fez, deu, recordou, mostrou, enviou, mandou: em vinte e duas
sentenças, e segundo os cânones hebraicos, é proporção muito baixa.
Em vez de dizer “redimiu”, diz “redenção”; em vez de prometer
“louvarei”, diz “louvor”. Os enunciados ficam como que congelados em
forma de provérbios ou aforismos.
5. Exegese
la . Como 9,2; 86,12 e 118,1. A expressão de “todo o coração” é típica do
Deuteronômio e tem seu lugar privilegiado em Dt 6,5; retoma-a (como não?)
o SI 119,34.58.145. Podemos deixá-la passar como frase feita, podemos dar-
Exegese
1365
lhe toda a intensidade que significa em si. É o ponto de partida de todo o
salmo: o rosário de aforismos quer ser expressão cordial.
lb . Não é corrente chamar a comunidade de swd. Quando Pr 3,32
diz ’tyshrym swd, com as mesmas palavras diz outra coisa, ou seja, que
os “retos” gozam da “confiança / confidência” de Deus; versão ética do
que diz em versão religiosa o SI 25,14. O salmista descreve a assembléia
como “congregação de homens retos”, retirando o cultual para segundo
plano.
2a. Dada a pobreza de adjetivos da língua hebraica, gdwl é um dos
mais genéricos que se possa escolher. Como adjetivo e em formas verbais
os salmos o predicam com freqüência de Deus e de suas obras.
2b. Tomo o verbo drsh no significado tardio de estudar, que se coagula
na expressão bet midrash = escola. O particípio passivo equivale a um
gerundivo: que se devem estudar, dignas de estudo. Encontramos o subs­
tantivo hpç no SI 1,2 com o significado de ocupação, deleite. Assim se perfila
o caráter do grupo convocado.
3a. p ‘l significa obra e ação, com freqüência tem valor coletivo. Deus
manifesta sua ação (SI 90,16), o homem medita sobre ela (143,5), anunciaa (64,10). A hendíade aliterada hwd whdr é freqüente e genérica: honra e
dignidade, majestade e glória, fasto e esplendor...
3b. Também é em si genérico çdqh, embora seu significado básico seja
justiça. Pode designar qualidade ou virtude da pessoa, ação concreta ou
conjunto delas. Predomina o aspecto benéfico, de justiça em favor do
necessitado. Diz lapidarmente Sb 1,15: “A justiça é imortal”.
4a. O sintagma ‘sh zkr é único no AT e não tem parentes próximos.
Não significa que Deus recorda, mas que estabelece a recordação, faz com
que os homens se recordem. Mudando as funções, chegamos à equivalên­
cia “faz maravilhas memoráveis”, em linha com o “dignas de estudo” do v.
2b.
4b. Talvez por razões métricas, reduz a dois termos a predicação
clássica do Senhor (texto clássico: Ex 34,6). A grandeza e majestade
adquirem nesse versículo tom afetuoso e entranhável.
5a. Tomo-o como alusão concentrada ao caminho pelo deserto. E raro
chamar trp o alimento humano, pois ordinariamente significa a presa das
feras. Tem um único paralelo exato no abecê da boa dona de casa (Pr
31,15).
5b. O Senhor recorda sem falta, tem sempre presente, não falta à sua
aliança. A expressão é freqüente a partir de Ex 2,24 e 6,5. Muitas vezes
refere-se a situações e tempos difíceis, quando a recordação da aliança
motiva a intervenção de Deus. (Podem-se consultar Lv 26,42; Jr 14,21; SI
105,8; 106,45).
1366
Salmo 111
6a. kwh é aqui a força ou eficácia de sua ação; em Ex 9,16, Deus fazse ver ou sentir-se ao Faraó. E curioso que neste salmo não haja projeção
para fora, para os povos.
6b. Somente figuram nesse aspecto negativo: tira-se-lhes sua heran­
ça para entragá-la ao povo eleito. Nisso empregou e manifestou sua
eficácia. Em contexto pós-exílico, provável, inclui a posse recuperada do
território, pela ação poderosa de Deus e de acordo com as promessas da
aliança.
7a. O binário ’mt wmshpt é inusitado (alguns riscam uma palavra);
tem vaga aparência de hsd wmshpt do SI 101,1. O sentido aproximado
parece ser: o que ele faz é autêntico e justo, corresponde a verdade e
direito.
7b.pqwdym é um dos oito sinônimos de mandatos do SI 119; fora dele, lêse apenas aqui e no SI 19,9; 103,108. Inspiram confiança, pode-se ater a eles.
8a. Mantêm sua validez perdurável como a aliança, não são abolidos
nem derrogados.
8b. Particípio passivo com valor de gerundivo: hão de se cumprir com
exatidão e sinceridade, não os torcendo nem os falsificando. Compare-se
com: “falsificou-a a pena falsa dos escrivães” (Jr 8,8).
9a. O substantivo abstrato pdwt é raro (Is 50,2 e SI 130; muito
duvidoso, Ex 8,19). O verbo é relativamente freqüente, sobretudo no
saltério. Em contexto pós-exílico pode referir-se à repatriação.
9b. O verbo çwh significa aqui estabelecer, constituir; está mais
próximo de hqym do que de krt. A não ser que escutemos no verbo alusão
aos mandamentos. Compare-se com Dt 4,13 (texto tardio), cuja tradução
literal soa assim: “comunicou-vos a aliança que vos manda cumprir os dez
mandamentos”.
9c. E o nome revelado para a invocação e protegido de abusos; nome
que é preciso respeitar e santificar. Só a menção deve infundir temor
reverenciai.
10a.Este provérbio lê-se com leves variações em Pr 1,7; 9,10; 15,33; Jó
28,28 e Eclo 1,14. Primícia: “é o princípio e o principal, cabeçalho e
recapitulação, cifra e síntese” (Provérbios, 158).
10b. Também procede do mundo sapiencial (skl twb), cujo sentido é
difícil de definir (Pr 3,4 e 13,15). Como qualidade parece designar o bomjuízo,
o senso comum; como resultado parece indicar o acerto; acompanha hn favor, contrapõe-se a ele a perfídia. Uma expressão semelhante é twb skl =
sensata (Abigail, ISm 25,3). O sufixo plural refere-se aos mandamentos.
10c. Diz o SI 84,5: “Felizes os que habitam em tua casa louvando-te
sempre”; e o SI 48,11 lhe dá extensão universal. O autor pensa que o louvor
do Senhor transmitir-se-á de geração em geração sem jamais cessar.
Transposição cristã
1367
6. Transposição cristã
O
autor parece não saber nada da “nova aliança” que anunciou Jr
31,31, pois conta com a perpetuidade de uma só. Os cristãos que se
apropriam desse salmo pensarão logicamente na “nova e eterna aliança”.
Pode-se meditar em sua realização terrena e em sua consumação
celeste. Assim Agostinho projeta no céu o louvor perpétuo:
“De que são redimidos senão do cativeiro da presente peregrinação? Não
se deve buscar descanso a não ser na pátria celeste”.
Sobre o v. 5 comenta:
“O alimento incorruptível, o pão que desce do céu e dá-se não por
méritos ... Ninguém daria tal alimento senão o Senhor Piedoso e
Compassivo”.
Lucas reparte dois versículos do salmo entre o Benedictus e o Mag­
nificat: “enviou a redenção ... seu nome é santo” (1,68.49).
Salmo 112
1. Texto
1
Aleluia. Feliz quem respeita o Senhor
e é entusiasta de seus mandatos.
2 Sua linhagem será poderosa na terra,
a descendência dos retos será bendita.
3 Em sua casa haverá riquezas e abundância,
sua justiça afirma-se sempre1.
4 Nas trevas amanhece para os retos
o Piedoso e Clemente e Justo.
5 Feliz o homem que tem piedade e empresta
e administra retamente seus assuntos:
6 porque não vacilará jamais
e será perpétua a recordação do honrado.
7 Não temerá as más notícias2;
sente-se firme confiante no Senhor.
8 Seu ânimo está firme, sem temer,
até ver derrotados seus inimigos.
9 Distribui esmola aos pobres,
sua justiça sempre se afirma3
levantará o chifre com honra4.
10 O malvado ao vê-lo irritar-se-á,
rangerá os dentes até consumir-se.
A ambição do malvado fracassará.
2. Bibliografia
(Veja-se o salmo precedente).
J. Jacquet, Le bonheur du juste. Ps 112, BVC 38 (1961) 35-42.
L. Bolzani, Fermezza del giusto, ParVi 10 (1965) 431-436.
'dura
2 a má fama
3seu mérito é duradouro
4 a fronte com dignidade
Estudo global
1369
J. K. Kuntz, The retribution motive in Psalmic wisdom, Z A W 89 (1977)
223-233.
S. K. Sherwood, Ps 112 - a royal wisdom Psalm?, CBQ 51 (1989) 50-64.
3. Análise filológica
4. wçdyk: suprimem w- para torná-lo sujeito Duhm Buhl Gun.
5. dbryw: seus assuntos ou seus pleitos Gun.
8. yr’h b-: DBHE r’h 5.
10. wnms: nif de mss.
4. Estudo global
• Gênero, composição e estilo
— Pelo começo, o salmo é uma bem-aventurança, do tipo dos SI 1,32 e
41. A fórmula inicial ’shry prolonga-se em dois sinônimos: bênção (2b) e
felicidade (5a); para a equivalência, veja-se SI 128,1-2.
Uma bem-aventurança típica ajusta-se ao esquema “feliz o que C —
porque será / terá X”. O sujeito enuncia ou descreve uma conduta, a
partícula “porque” pode ficar implícita (substituída por: na tradução); a
segunda parte do esquema especifica algum bem como conseqüência da
mencionada conduta. Ainda que se mencione a intervenção de Deus, a
relação entre conduta e felicidade é de conseqüência antes que de retribui­
ção. Ou, se quisermos, atua retribuição imanente. Elimina-se a Deus? Não,
porque é ele quem estabeleceu de antemão essa relação de conseqüência.
Vejamos algum exemplo:
Jó 5,17
18
Pr 8,34
SI 41,2
Feliz o homem a quem Deus corrige ...
porque o fere e venda a ferida.
Feliz
o homem que me escuta ...
quem me alcança, alcança a vida.
Feliz
o que cuida do desvalido:
no dia aziago pô-lo-á a salvo o Senhor.
O NT propõe-nos bem-aventuranças em série (Mt 5); Lucas contrapõe
bem-aventuranças e mal-aventuranças (Lc 6).
— O esquema básico do gênero governa o desenvolvimento do salmo.
Do começo a 9c alternam sem total regularidade uma conduta e suas
conseqüências (l-4.5-8.9a-c). As conseqüências ocupam mais espaço. Atrás
delas e com enlace suave, vem uma mal-aventurança, também articulada
em conduta e conseqüências.
1370
Salmo 112
Como no salmo precedente, perguntamos se o artifício alfabético gera
simples série ou se rege alguma idéia central. A primeira fase de conduta
é genérica e programática: fidelidade ao Senhor e a seus mandamentos. A
segunda especifica: “quem tem piedade e empresta”; a mesma coisa a
terceira: “distribui esmola”. A seqüência é significativa: o autor sugere que
a fidelidade ao Senhor realiza-se no amor ao próximo necessitado.
No Levítico, o Senhor convida: “sede santos como eu sou santo”; o SI 112
poder-se-ia sintetizar assim: “feliz o que é compassivo porque o Senhor é com­
passivo”. Este enfoque do salmo obriga-nos a nos perguntar sobre o signifi­
cado de çdq, honradez ou generosidade ou esmola. Discuti-lo-ei na exegese.
— O estilo desse salmo é semelhante ao do anterior no tom aforístico
e em algumas sentenças nominais. Há mais travação, segundo o esquema
indicado. Em conjunto, o estilo é muito mais verbal e ativo, tendo o homem
como sujeito. A ligação está explícita duas vezes.
— Passando revista nas bênçãos ou bens enumerados, notamos a
ausência de alguns tópicos da aliança: posse da terra (cf. 111,6b), vida
longa. O salmo menciona: autoridade e prestígio, riquezas, segurança,
descendência, recordação. Podem-se comparar com os bens que promete a
Sensatez em Pr 3 e 8.
5. Exegese
la . Assume de 111,10a o respeito ou reverência ao Senhor para propôlo como programa de vida feliz (cf. 128,1).
lb . Em paralelo rigoroso com respeito, segundo a mentalidade tardia,
está a observância dos mandamentos. Não usa o termo raro de 111,7, mas
o clássico de Dt. Numa exortação de Ben Sira temos essas duas frases:
Eclo 2,15 Os que respeitam o Senhor não desobedecem a suas palavras.
9 Vós, que respeitais o Senhor, esperai bens.
O salmo cunha uma expressão nova (hpç m’d): ocupam-se diligente­
mente, são entusiastas. (Um m’d que traduzirá em termos quantitativos o
SI 119).
A primeira dita mencionada refere-se à descendência. E estranho
prometer que “tua descendência / descendente será guerreiro na terra / no
país”. Se não se debilitou o sentido militar de gbwr, será melhor ler gbyr,
como nàbênção testamentária de Isaac a seu filho Jacó (Gn 27,29): significa
autoridade sobre outras pessoas. Pode significar simplesmente um cargo
de governo na administração local, o que com outras palavras diz Pr 31,23.
Compare-se com Jr 9,2: gbrw b’rç = dominam o país.
Exegese
1371
2a. dor designa um grupo definido por alguma qualidade, aqui a
retidão; a frase faz eco a 111,1b (swd yshrym). Compare-se com SI 14,5 e
24,6.0 sujeito agente da bênção é Deus (passiva teológica). Abênção divina
é central no salmo sapiencial e alfabético 37.
2b. hôn é palavra típica de Provérbios (18 vezes de 26); não tão própria
é ‘shr. A idéia repete-se em textos sapienciais, atribuindo os bens à Sensatez:
Pr 3,16
8,18
21
22,4
na esquerda traz honra e riquezas (‘shr wkbwd).
eu trago riquezas, glória, fortuna copiosa (‘shr hwn).
para legar riquezas a meus amigos e cumular seus tesouros.
Atrás das pegadas da humildade e do respeito ao Senhor
caminham riqueza, honra e vida.
3b. Primeira pergunta: continua a série de bens ou começa outra ronda
de conduta? A copulatia w- favorece o primeiro; mas w- está condicionado
pelo artifício alfabético, çdqh significa uma virtude, uma conduta, não um
bem de que se desfruta. Pode-se argüir que o bem reside no predicado, na
estabilidade de uma conduta: sua honradez será duradoura, perpétua. A
explicação parece-me forçada; penso que o versículo refere-se à conduta.
Segunda pergunta: o que significa çdqh aqui e neste salmo? O significa­
do específico de base é justiça e se alarga para honradez; em textos tardios
desloca-se para generosidade e chega a significar esmola; por exemplo:
Eclo 3,30
29,12
A água apaga o fogo ardente.
a esmola expia o pecado.
Guarda esmolas em tua dispensa,
e elas te guardarão de todo mal.
(cf. Provérbios, 257s). Sobre a permanência da esmola e de suas conseqüên­
cias para outra geração diz o mesmo Eclesiástico:
3,14
A esmola do pai não será esquecida,
será tida em conta para pagar teus pecados.
Para defender o significado simples de justiça, pode-se aduzir Sb 1,15:
"a justiça é imortal” (a imortalidade é tema dominante da primeira parte
desse livro). Segundo essa analogia, a frase do salmo equivaleria a: “sua
honradez é valor permanente”, valor que não passa.
4a. Luz e retidão. Para o homem honrado, inocente, amanhece uma
manhã libertadora em que se pronuncia sentença em seu favor (SI 5,4;
17,15; talvez 57,12). O tema e as palavras pronunciam-se em favor do
homem generoso em Is 58,10:
quando repartires teu pão com o faminto
e saciares o estômago do indigente,
brilhará tua luz nas trevas,
tua escuridão tornar-se-á como meio-dia.
(Vejam-se Is 9,1 e Ml 3,20).
1372
Salmo 112
4b. Quem é o sujeito, Deus ou o honrado? A predicação “clemente e
compassivo” é própria de Deus, acabamos de escutá-la em 111,4b. Um
judeu que ouve essas duas palavras unidas, sem duvidar aplica-as a Deus,
se não há razões fortes em contrário. Creio que essas não existem. A luz que
brilha no escuro é esse Deus Piedoso e Compassivo (assim o entenderam e
formularam alguns manuscritos antigos).
Contra se propõe ler çdyq como sujeito; mas o texto o introduz com
copulativa, e o predicado çdyq não é alheio a Deus (Ex 9,27; Dt 32,4; Is 45,21;
SI 116,5; 119,137, etc.). Insiste-se citando o SI 97,11: “amanhece a luz para
os honrados”; mas, embora as palavras sejam idênticas, a construção é de
todo diversa.
5a. Isso sim, da compaixão divina o homem aprende a compadecer-se
e emprestar, ainda que seja a fundo perdido. Quase o mesmo diz o SI 37,26;
mais agudo Pr 11,24: “Quem tem piedade do pobre, empresta ao Senhor”.
5b. Tomo dbr no sentido menos freqüente de assunto. Dando preferên­
cia ao significado mais corrente do termo, alguns interpretam: mantém sua
palavra, cumpre sua promessa; equivalente do SI 15,4b: “não retrata”.
6a.
Não vacilará-, é corrente no saltério, com negação bal. Veja-se Pr
10,30, que é quase igual, e com imagem de arraigar (Pr 12,3).
6b. Sua recordação conserva-se em sua família e em seu povo. De modo
semelhante diz Pr 10,7: “bendita a memória do honrado”; o contrário em SI
9,7; Jó 18,17.
7a. Aconselha Jr 51,46: “Não vos acovardeis nem temais pelas notícias
que se propalam”; pondera-se o valor de boa notícia em Pr 15,30 e 25,25.
7b-8b. Ampliam o tema da segurança, que procede do confiar no
Senhor, apesar da perseguição do inimigo. O autor quis acumular três
particípios passivos e por issso introduz o anômalo btwh. Deparamo-nos
com o consabido jogo yr’ / r’h.
9b. Distribui. Diz Pr 11,24:
Há quem distribui e aumenta seu haver,
quem retém o que deve e empobrece.
Sobre a atenção devida ao pobre, vejam-se Pr 14,21 e 31,20.
9c. Sobre a imagem do chifre, veja-se o comentário ao SI 75.
10.
Ranger os dentes é em geral gesto agressivo, de burla ou ameaça
aqui se torna inofensivo. O malvado não pode suportar o triunfo do honrado.
O salmo termina com a mesma palavra que o SI 1. O grande fracasso do
malvado é que não se realize o quanto deseja, pois diz Pr 13,12: “Desejo que
se cumpre é árvore da vida”.
Os paralelos acumulados na exegese fazem sentir o caráter sapiencial
do salmo.
Transposição cristã
1373
6. T ransposição cristã
Em seu bilhete para promover a coleta em favor dos cristãos necessi­
tados de Jerusalém, Paulo cita os versos 9ab. Do bilhete cito um parágrafo
inteiro:
2Cor 9,6 Recordai aquilo: semeadura mesquinha, colheita mesquinha;
semeadura generosa, colheita generosa (Pr ll,2 4 s ). 7 Cada um dê do que
tiver decidido em consciência, não com pena nem por compromisso, pois
Deus agradece a quem dá de bom grado (Pr 22,8); 8 e Deus tem poder para
cumular-vos de todo tipo de favores, de modo que, além de ter sempre e em
tudo plena suficiência, vos sobre para todo tipo de boas obras. Como diz a
Escritura: Distribui esmola aos pobres, sua esmola é constante, sem falta.
10 O que subministra semente para semear e pão para comer (Is 55,10),
subministrará e fará crescer vossa semeadura e multiplicará a colheita de
vossa esmola; sereis ricos de tudo para serdes generosos em tudo, e essa
generosidade, passando por vossas mãos, produz ação de graças a Deus.
Fixando-nos na generosidade do homem como imitação da divina,
podemos recordar o conselho evangélico: “Sede perfeitos como vosso Pai do
céu é perfeito” (Mt 5,48); sentença que foi explicada antes: “para ser filhos
de vosso Pai do céu, que faz sair seu sol sobre maus e bons e manda chuva
sobre justos e injustos”. Essa observação de “fazer sair o sol”, de fazer
amanhecer a luz, não corrige a limitação do SI 112,4, que diz “para os bons”?
Salmo 113
1. Texto
1.
2
3
4
Aleluia. Louvai, servos do Senhor,
louvai o nome do Senhor.
Bendito seja o nome do Senhor
agora e para sempre.
Da saída do sol até o ocaso,
seja louvado o nome do Senhor.
O Senhor eleva-se sobre todos os povos,
sua glória sobre os céus.
Quem como o Senhor nosso Deus,
que eleva seu trono,
e abaixa o olhar, no céu e na terra?
5
6
7
8
9
Levanta do pó o desvalido,
eleva do lixo o pobre,
para sentá-lo com os nobres,
com os nobres de seu povo;
e põe à frente da casa
a estéril, mãe feliz de filhos. Aleluia.
2. Bibliografia
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182-191.
van Ps 113,9,
3. Análise filológica
1. ‘bdy: vocativo pl Gr Aq Sím Teod Jerôn.
5b. enlaçando com 6a em posição quiástica Allen; particípios em -y GK
90 m.
8. Ihwshyby: lêem suf 3a pess Gr Jerôn Sím Graetz Duhm Gun Kraus.
9. mwshyby. corrige para mshyby (de shwb) Well.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Diz-nos o começo que se trata de hino dedicado ao nome de Yhwh e a
um aspecto de sua ação entre os homens. A ocasião é típica: os dois casos
descritos são genéricos e não permitem deduzir uma situação definida.
b) O nome do Senhor
Nós costumamos distinguir entre nome próprio e comum: Fernando,
cedro. Os hebreus, sem trabalhar com categorias gramaticais, sabiam
distinguir de modo empírico. Todavia, podiam impor nomes comuns como
próprios de pessoa: Gazela, Abelha, Pomba, e empregavam nomes comuns
em topónimos: Costa dos Escorpiões, Fonte do Cabrito.
Impor nomes a um ser é fixar sua existência e natureza. Recorde-se o
começo do mito acádico da criação Enuma Elis:
1376
Salmo 113
“Quando no alto o céu ainda não tinha sido nomeado,
quando no fundo o solo ainda não tinha sido nomeado ...
Quando não tinham sido criados deuses
nem se lhes tinham dado nomes nem fixado seu destino ...
Lahmu e Lahamdu foram criados e receberam um nome”.
No primeiro capítulo do Gênesis, o próprio Deus encarrega-se de ir
pondo nomes às criaturas: noite, dia, mar ... No capítulo 2 passa a tarefa a
Adão, que põe nomes corretos nos animais. Quem põe nome a Deus? E
“Deus” nome próprio ou comum? Se se aceita alguma forma de politeísmo,
tem que haver um nome comum para esses seres que compartilham da
natureza divina. Os sumários falavam dos Igigu e dos Anunnaka, nome
comum ou coletivo; os hebreus chamam-nos de elohim, uma vez que
aceitam por certo tempo a existência de deuses de outros povos. Ora, o nome
comum não serve para identificar um indivíduo ou pessoa, é preciso um
nome próprio e pessoal. Quem o impõe? Não é competência do homem, tem
que ser Deus mesmo no ato de identificar-se.
Pode recusar esse tipo de informação, como em Gn 32,30 e Jz 13,6.17-18:
Manué perguntou-lhe: como te chamas? Para que, quando se cumprir tua
promessa, te façamos um obséquio. O anjo do Senhor contestou: Por que me
perguntas meu nome? E Misterioso.
Em outras ocasiões pronuncia seu nome: em Ex 3, quando Moisés lhe
pede a identificação; em Ex 34, quando Moisés solicita uma revelação. O
nome próprio escreve-se com quatro letras (tetragrammaton), e nós conjeturamos a pronúncia Yahwé (soa o h).
Ao comunicar seu nome, Deus se arrisca: dá-o para o uso, expõe-no ao
abuso. Por isso acrescenta um mandamento que o proteja: o homem não
deve usá-lo em falso nem profaná-lo. Conhecer o nome comum de grupo de
seres é tomar posse intelectual deles. Conhecer o nome próprio de pessoa
é porta para o trato com ela. Com respeito a Deus, o homem pode doravante
“tomar esse nome nos lábios”, pode invoca-lo qr’ shm (freqüente), respeitálo (SI 86,11), ou temê-lo (SI 102,16), pode louvá-lo e bendizê-lo, inclusive
amá-lo (Is 56,5). Também pode dar a seus filhos nomes teofóricos, que
tomam como componente o nome divino: Yirmiyahu, Yehoyqim; pode
tatuar o nome no antebraço (Is 44,5). Nesse contexto espiritual insere-se o
SI 113, com sua quádrupla repetição do nome na primeria secção (1-3).
Um nome ou vários? Num extremo ponhamos os cinquenta nomes (ou
títulos) de Marduk ao ser reconhecido como Deus supremo; noutro extremo,
o anúncio (tardio) de Zc 14,9:
O Senhor (Yhwh) será rei de todo o mundo.
Naquele dia o Senhor será único, e seu nome único.
Estudo global
1377
O nome próprio do Deus de Israel é Yahwe. Com bastante freqüência
chamam-no também elohim , ’eloh, sh a d d a y (de significado desconhecido),
‘elyôn (título usado como nome próprio), ’el (nome do Deus supremo).
O SI 113 quer exaltar o nome pessoal, único, supremo (imaginemos que
o autor se chamava Semias).
c) A
ação d o S en h or
Fixamo-nos na ação do Senhor como se descreve nos três últimos
versículos (7-9), comparando-a com dois textos paralelos famosos. O autor
seleciona duas situações de inferior-idade, de estar em baixo, de humilha­
ção (hum iliare / hum ilare vem de h u m u s = terra), e apresenta a Deus
mudando essa situação para superior-idade, elevação. O miserável é
nomeado conselheiro ou senador, a estéril dá à luz e “reina” no lar: campo
sociopolítico e campo familiar, oposição e mudança de situação.
E provável que este salmo seja posterior ao cântico de Ana (ISm 2).
Alguns pensam que o SI 113,7 foi acrescentado em segunda instância ao
cântico de Ana (versículo 8), o qual opera com três oposições e três
mudanças correlativas de situação (4-5). Valente-derrotado / covardevitorioso; rico-mendigando / pobretão-farto; estéril-mãe / mãe-esgotada.
Três situações e três mudanças análogas, do campo militar, econômico e
familiar. O Magnificat (Lc 1,52-53) assume a fórmula de oposição e mu­
dança correlativa de situação, e ilustra-a no campo sociopolítico e no
econômico (o da maternidade encontra-se no contexto imediato). O salmo
afasta-se de ambos porque assume só a ação de exaltar, não a oposta. Com
uma exceção estranha, paradoxal: há alguém alto e exaltado que, por
própria iniciativa e bondade, “abaixa-se” para elevar os humildes. É o
Senhor, o de nome sublime, que não desmerece descendo, condescendendo,
mas que por isso mesmo merece antes maior louvor.
Para completar o quadro de paralelos, teríamos que citar Jó 12 (fala Jó
despeitado), que descreve a Deus como complacente em arruinar e despojar
e privar. No que mostra sua força.
d)
C om posição e estilo
—
Pode-se dividir o salmo em duas partes desiguais: o louvor do nome
1-3), a descrição de seu modo de ser e agir (4-9). A segunda parte pode-se
subdividir em duas: o Senhor no céu (4-6), sua ação na terra (7-9). Dessa
forma temos três estrofes de três versos cada uma.
Um princípio significativo de composição (não meramente formal) são
as coordenadas de tempo e espaço: desde agora para sempre, do levante ao
poente, em cima e em baixo. Já vimos a função decisiva da última. Tanto
1378
Salmo 113
que os versículos 7-9 teriam perfeito sentido como comentário ao nome ou
título divino ‘elyôn = Altíssimo, Sublime. Daí não podemos deduzir que o
poema estivesse dedicado em sua origem ao Deus Elion e que mais tarde
tenha sido adatado a Yhwh; só podemos suspeitar que o autor tinha
mentalmente presente esse título de seu Deus.
—
Traço notável de estilo é o duplo quiasmo de 2-3 e de 5-6. Alguns
propuseram reordenar 5-6, passando o quarto hemistíquio ao segundo
lugar; o que é tirar-lhe a graça. E preciso escutar o segundo quiasmo
orientados pelo primeiro, como mostra o seguinte esquema (versão literal):
o nome bendito
desde agora para sempre
do levante ao poente
louvado o nome
Quem como o Senhor?
que eleva para sentar-se
que desce para olhar
no céu e na terra?
Outro particular de estilo são as repetições. Antes de tudo o nome
repetido 4 + 2 vezes, hll 3 vezes, shm duas vezes e ressoando em shmsh e
shmym\yshb três vezes e ressoa em shpt; h lltrês vezes. Podem-se escutar
as aliterações de 2b e 3, e outros efeitos sonoros de consoantes e vogais ao
longo do texto. A redação do breve poema é primorosamente elaborada,
como que para compensar a falta de imagens impressionantes.
5. Exegese
1.0
nome de Deus é uma de suas meditações, como ml’k,pnym, kbwd,
dbr: louvar o nome é louvar a pessoa. O nome pronunciado dirige o louvor.
Servos podem ser em geral os israelitas, em particular um grupo sacerdotal.
2. Nessa cadeia perpétua insere-se o texto do salmo para ser repetido.
O de menos é o agora, o de mais é a perpetuidade.
3. Se o orante quer abarcar toda a terra, por que não acrescenta de
norte a sul? Porque segue o movimento do sol, que abarca em seu percurso
todo o mundo (SI 19). Então, o que dizer da viagem noturna do sol? Que é
uma viagem subterrânea, por um reino onde não se louva a Deus.
4. Comparando o SI 97,9 com o 99,2, observávamos que um fala da
exaltação dé Yhwh sobre todos os deuses e o outro sobre todos os povos; o
presente salmo vai com o segundo, não dando lugar a outras divindades.
Yhwh é único, e único é seu nome, dizia-nos Zc 14,9. Ao orante interessa
aqui a “glória” celeste de Deus; compare-se com o canto dos serafins: “aterra
está cheia de sua glória” (Is 6).
5-6. Pelo artifício do quiasmo temos que escutar mentalmente unidos
“quem como Iahweh — nos céus e na terra” (cf. SI 86,8; 89,9). Um bom
comentário a esse versículo lê-se em Is 57,15:
Exegese
1379
Assim diz o Alto e Excelso,
o sentado no trono, cujo nome é santo:
Estou sentado na altura sagrada,
mas estou com os de ânimo humilde e quebrantado
para reanimar os humildes,
para reanimar o coração quebrantado.
Estar sentado indica a dignidade real. Sobre o olhar de Deus combina­
mos dois textos da parte final de Isaías:
63,15
66,2
Observa do céu, olha
de sua morada santa e gloriosa ...
Nele porei meus olhos:
no humilde e abatido.
7-9. Dois autores sapienciais parecem temer as mudanças de fortuna,
porque olham o assunto com outros olhos e temem as conseqüências. Pr 30
oferece-nos essa série numérica:
21
Por três coisas treme a terra
e a quarta não a pode suportar:
servo que chega a rei,
idiota farto de pão,
aborrecida que encontra marido,
serva que sucede a sua senhora.
22
23
O autor desses versículos pensa em ânimo servil, em sentimento de
despeito e desquite, a vingança de rebaixar e enxovalhar o nobre. No lugar da
‘‘aborrecida” poder-se-ia pôr a estéril a quem o marido despreza. O outro
texto procede do Eclesiastes:
10,5
6
Há um mal que vi sob o sol,
um erro de que é responsável o soberano:
o ignorante ocupa postos altos
enquanto nobres e ricos se sentam em baixo;
vi escravos a cavalo
ao passo que príncipes iam a pé como escravos.
Também esse autor teme a vileza, a ignorância ressentida e armada de
poder. Ambos os textos iluminam por contraste o final do SI 113.
7-8. No SI 107,41 líamos: “Levanta os pobres da miséria”, referindo-se
à condição do povo, enquanto o salmo fala de indivíduo típico. Pobres e indi­
gentes viviam da caridade pública, sem voz nem autoridade para intervir nos
assuntos públicos (não pertence a época imemorial a legislação que reserva­
va o direito de voto aos que possuíam terras). Deus faz com que participem
do conselho ou senado, administrando os assuntos locais ou nacionais.
9.
A nova mãe dá-lhe um assento, ou seja, um posto de autoridade nos
assuntos domésticos. Como ensina Pr 31, a casa é o reino da mãe, ao passo
1380
Salmo 113
que o marido ocupa-se dos assuntos públicos. Os filhos são sua alegria.
Esgota-se o sentido nessa figura individual e típica? Is 54,1-3 dá-nos uma
pista para alargar o alcance do versículo; veja-se também Is 49,20-21.
Esses textos de Isaías e outros semelhantes ensinam-nos que é fácil ler
o SI 113 em perspectiva nacional: o pobre e desvalido é o povo judeu
submetido e explorado, a estéril é a comunidade diminuída. Deus fixa-se
neles para mudar sua sorte. Tal é o estilo do Deus que se chama Yhwh e tem
o título de Altíssimo.
6. T ransposição cristã
O
movimento de abaixar chega ao extremo na encarnação do Filho de
Deus. O hino de Filipenses é a melhor tradução cristã do movimento do SI
113, com um sentido insuspeitável, inimaginável:
2,6
7
8
9
10
11
Apesar de sua condição divina,
não fez alarde de ser igual a Deus,
mas esvaziou-se de si
e tomou a condição de escravo,
fazendo-se semelhante aos homens.
E mostrando-se em figura humana,
humilhou-se,
fez-se obediente até a morte,
e morte de cruz.
Por isso Deus o exaltou e lhe concedeu
um título superior a todo título,
para que, perante o título de Jesus,
todo joelho se dobre,
no céu, na terra e no abismo;
e toda língua confesse
para a glória de Deus Pai:
Jesus Cristo é o Senhor!
A isso enlaça a doutrina sobre a humildade: “quem se humilha será
exaltado”, e algumas bem-aventuranças.
Por meditação do texto de Is 54 e sua citação em G14,27, passamos a uma
leitura eclesiológica do salmo, aplicando o último versículo à Igreja. Dois
“gozos” conhece a Igreja: o amor do Esposo (Sf 3,17) e o número dos filhos.
Salmo 114
1. Texto
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6
7
8
Ao sair Israel do Egito,
Jacó de um povo balbuciante,
foi Judá seu santuário,
Israel seu domínio.
O mar, ao vê-los, fugiu,
e o Jordão retrocedeu1
Os montes saltaram como carneiros,
as colinas como cordeiros.
— O que te sucede, ó mar, para fugires;
a ti, Jordão, para retrocederes ?
A vós, montes, para saltardes como carneiros;
colinas, para saltardes como cordeiros ?
Na presença de seu Dono estremece a terra,
na presença do Deus de Jacó,
que transforma a rocha em lagos,
a pedreira em mananciais.
2. Bibliografia
H. van den Bussche, Psahymne: Ps 114, CoIBibGand 3 (1957) 77-82.
H.
Lubszcyk, Einheit und heilsgeschichtlithe Bedeutung vonPs 114/ 115,
BZ 11 (1967) 161-173.
F.
I. Andersen, Biconsonantal by forms o f weak Hebrew roots, ZAW 82
(1970) 270-275.
R. Rutherford, Ps 113 (114-115)and Christianburial, StPatr 13(1975)391-396.
B. Renaud, Les deux lectures du Ps 114, RSR 52 (1978) 14-28.
P. Auffret, Notes conjointes sur la structure littéraire des Ps 114 et 29,
EstBib 37 (1978) 103-113; 38 (1979) 153.
T. Stramare, II Dio di Giacobbe: Sal 114 (113A), ParVi 25 (1980) 75-78.
M. Weiss, The Exodus from Egypt in Ps 114. Toward the study o f the
hymns o f Psalms, Tarbiz 51 (1981-82) 527-535.
1lançou-se para trás
1382
Salmo 114
W . Rossel, Eens en voorgoed werd ontzag geboren. Exegetische en
bijbelstheologische beschouwingen bij Psalm 114, Coli 20 (1990) 243-255.
3. A nálise filológica
4. rqdw: “pronuncia uma personificação (prosopopéia) atribuindo com
suas palavras sensação a seres inanimados e apregoando asssim o poder de
Deus” Teodor.
5. h-: artigo com valor de vocativo; ky diz respeito aos quatro membros.
7. ’rsç: talvez vocativo.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Ninguém duvidará que esse salmo seja hino de louvor a Deus pela
libertação do Egito; o que ocorre é que esse salmo prescinde de todos os câno­
nes tradicionais do gênero. Não há convite a participantes, nem dedicatória
ao Senhor, nem fórmula de motivação. O Senhor esconde-se primeiro nos
possessivos sem antecendente e pelo final se apresenta com dois títulos (o
contrário do salmo precedente). O orante quer cantar seu fervor e entusias­
mo religioso e, como não lhe vale o modelo costumeiro, cria sua forma
pessoal.
Sabemos que o salmo foi cantado e continua sendo cantado como hino
pascal, mas não sabemos se nasceu com esse destino nem quando começou
esse costume. Inegável é só seu caráter alegre e festivo.
b) O Deus transformador
Costumamos aplicar em português o termo “transformador” a enor­
mes instalações ou a cômodos aparelhos que servem para domesticar
energias elétricas colossais e muito potentes. Para entender o salmo,
detemo-nos nesse terreno da energia e transformação: transformador é o
título atribuído ao Senhor no último versículo do poema.
A saída do Egito é o momento fundacional de Israel, assim como tam­
bém o artigo fundamental de sua fé. O esquema do êxodo, com suas va­
riações, serve para entender e interpretar outras libertações passadas ou
futuras. Como tal aplicar-se-á a eventos díspares. O relato do êxodo é uma
epopéia no Pentateuco, clara no traçado, complexa no desenvolvimento.
Seus momentos decisivos são a saída do Egito e a entrada em Canaã. Pois
Estudo global
1383
bem, o poeta transformará a épica em lírica, abarcando e concentrando. O
que mais o impressiona é o dinamismo dos eventos.
Já começa na saída, sem tempo para a peleja intensa e tenaz das dez
pragas. Ao pôr-se em movimento um povo, transforma-se, e a mudança
provoca novas mudanças colossais. O poeta não segue os movimentos, lentos
meandros do povo pelo deserto, mas projeta o movimento em criaturas
inertes, intensificando assim o efeito de potência com dimensões cósmicas.
Contagiado de dinamismo, o poeta não soube encerrar-se em molde
preestabelecido. Quis concentrar-se em pouco espaço para obter poesia de
alta voltagem. Audazmente abarca um horizonte dilatado e controla-o com
visão unitária: nas duas peças de um paralelismo emparelham-se mar
Vermelho e Jordão, agrupam-se montanhas e colinas.
De repente, o lirismo torna-se dramático, quando o poeta depara-se
com seres inertes que se agitam e os apostrofa. Como um dia Josué ao sol
e á lua. As criaturas não respondem verbalmente; toca ao poeta descobrir
que uma presença misteriosa desencadeou o colossal dinamismo: o Deus
transformador.
O primeiro capítulo do Gênesis apresenta-nos o mundo criado como
cosmo, por separação de funções, fixação de natureza e imposição de nomes.
A bênção, dinamismo dos seres vivos, atuará “segundo suas espécies”. Tudo
fica definido, de sorte que qualquer mudança violenta é catástrofe
(katastrepho = transtornar, inverter). A apocalíptica explora o mecanismo
das catástrofes ou mudanças. O que encontramos no salmo e em textos
semelhantes é a suspensão ou mudança de funções para libertação de um
povo. Por isso o melhor comentário do salmo a esse respeito é um texto
tardio, o final do livro da Sabedoria. Seu autor, judeu grego da diáspora
alexandrina, canta a potência transmutadora do Senhor e resolve-a em
harmonia musical. E preciso citar o texto inteiro de Sb 19:
18
19
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21
22
Os elementos da natureza intercambiavam-se suas propriedades,
da mesma forma como na harpa, continuando igual o tom,
mudam as cordas o caráter da música,
como se pode coligir exatamente à vista do que passou;
pois os seres terrestes tornavam-se aquáticos
e os que nadam passeavam pela terra;
o fogo acrescentava sua própria virtude na água
e a água esquecia sua condição de extintor;
as chamas, pelo contrário, não abrasavam as carnes
dos frágeis animais que por ali perambulavam,
nem derretiam aquela espécie de manjar
divino, cristalino e solúvel.
Porque em tudo, Senhor, enalteceste e glorificaste teu povo,
e nunca nem em nenhum lugar deixaste de olhar por ele e socor­
rê-lo.
1384
Salmo 114
Também o poeta é transformador. Como o poeta do SI 77, não lhe
interessa imitação fiel, mesmo estilizada, da realidade, mas cria mundo
poético novo em que se revelam sentidos da história de outra maneira
recônditos. Na exegese ampliarei alguns desses aspectos.
5. Exegese
1. Este infinitivo constructo de yç’ com preposição b- encontra-se nove
vezes no AT: nem em todas começa frase, só aqui começa um texto. Dessa for­
ma, o poema começa em plena ação, mas ação sintaticamente subordinada
a uma transformação. A saída pode-se estreitar na fronteira geográfica, ao cruzar
o mar Vermelho, como conta Ex 14 e canta Ex 15. Em muitos casos, e aqui tam­
bém, a saída é o movimento inteiro de abandonar e afastar-se difinitivamente.
O Egito é para o poeta um “povo de língua estranha”. Outros fixam-se
na escravidão (mbyt cbdym), outros nas cargas (sbl) dos trabalhos forçados.
Por que seleciona o poeta esse dado pelo que parece tão pouco dramático?
Talvez sofra pela incapacidade de comunicar-se, talvez inclua o Egito na
esfera da confusão babilónica. Uma língua incompreensível considera-se
maldição de Deus (Dt 28,49-50).
Is 28,11
33,19
com língua balbuciante, em linguagem estranha.
Não tornarás a ver o povo insolente,
um povo de linguagem ininteligível
de falar obscuro e sem sentido.
Jr 5,15. Por isso na grande conversão do Egito, um dos primeiros
passos é: “Naquele dia haverá no Egito cinco cidades que falarão a língua
de Canaã” (Is 19,18).
2. Alguns interpretam Judá e Israel como os territórios respectivos. Eu
creio que se refere às duas partes do povo. Se bem que o nome Israel seja
mais ambíguo, quando se usa o nome de Judá para designar seu território,
costuma levar alguma determinação: terra de, cidades de, em; ou outra
indicação contextuai. Tomo o binário como em ISm 18,16; lRs 4,20.25; Jr
51,5. Por exigência do paralelismo, o autor articula nas duas partes tradi­
cionais o que considera unidade indivisível.
Os dois predicados aplicam-se aos dois sujeitos: ambos são ao mesmo
tempo e por igual “santuário e reino / domínio”; “povo santo e reino sacerdo­
tal” (Ex 19,6). Nas andanças pelo deserto, uma tenda, a tenda do encontro, era
o santuário móvel da comunidade; no salmo é a comunidade o santuário móvel.
Dão-se duas interpretações a esse versículo: a) quando Israel saiu do
Egito, no fim da viagem e do assentamento na terra, constitui-se o território
em santuário e reino do Senhor; b) pelo caminho da saída, o povo era o
Transposição cristã
1385
santuário móvel, o reino itinerante do Senhor. Em ambas as interpreta­
ções, o mais importante é a transformação (yhy l- = chegou a ser, converteuse em). Uma massa de escravos, ao ser libertados, converte-se em santuá­
rio, âmbito móvel da presença divina. De certa forma, eles transportam a
presença grandiosa do Senhor: sente-o a natureza e se ressente.
3. O mar Vermelho foge como exército derrotado. Desapareceram do
salmo o Faraó e seu exército, a coluna de fogo e nuvem. O inimigo é o mar
hostil, que se põe em fuga. O poeta transforma os dados de Ex 14-15, sem
deixar ressonâncias mitológicas do oceano ou caos primordial. O Jordão não
é agressivo, mas defensivo, como barreira natural que obstrui a passagem.
Ao chegar o “santuário”, o povo e não a arca, o rio dá meia volta e flui leito
acima. Segundo Js 2-3, a água “se detém”.
4. A nota sóbria de Ex 19,18: “a montanha tremia” transforma-se
poeticamente. O desmesurado faz-se doméstico, entre festivo e assustadi­
ço. As montanhas, antigas e bem aprumadas, soltam-se de seus postos e
entregam-se a movimentos vivos e caprichosos: o que lhes aconteceu?
5-6. Os movimentos inusitados provocam o estupor: estupor calculado
pelo poeta ou sentido em ato poético. A figura retórica ou poética de
apostrofar seres inertes não é freqüente no AT. O exemplo mais próximo é
o SI 68,17, às montanhas de Basã. Nos SI 98 e 148 trata-se antes de
convocação litúrgica ao louvor.
Se dermos a rqd o sentido raro e tardio de “dançar” (Davi diante da
arca, lCr 15,29), as montanhas executam a dança sacra que corresponde
aos homens. Mas a comparação com cabras e cordeiros não recomenda essa
interpretação.
7 .0 versículo responde. Se rios e montanhas provocaram o estupor do
poeta, é porque estremeceram ao sentir a presença de seu amo, o Deus de
Jacó. Que o estremecimento da terra seja de parto parece-me precisar
demais. Não o recomendam os textos semelhantes do verbo hyl com sujeito
"rç (Jr 51,29; SI 96,9; 97,4; o verbo está em hofal em Is 66,8).
A terra já é seca e árida; quanto mais rocha e pedreira. Pois bem, Deus
transforma o mais renitente e estéril em fonte de vida (compare-se com Is 35).
Lagos e mananciais tranformam o deserto em terra de cultivo; por isso o último
versículo inaugura uma era de felicidade e abundância. O final é começo.
6. Transposição cristã
Diz Santo Agostinho que o autor do salmo, ao transformar os fatos e o
relato do êxodo, dá a entender que se refere a outro êxodo futuro; pelo que
devemos lê-lo como texto de salvação realizada ou de esperança de consu-
1386
Salmo 114
mação. Salmo da nova páscoa e da páscoa celeste, definitiva. O poema, com
suas imagens originais, é rico de insinuações.
Comecemos pelo lugar ou situação de onde é preciso sair, simbolizado
pelo Egito: idolatria, paganismo, sistemas de falsos valores. E toda a
espiritualidade da “saída”, até a fórmula ascética “sair de si mesmo”.
Segue o tema do novo santuário da presença de Deus na história:
primeiro em Jesus Messias, depois na Igreja como povo seu. Presença de
Deus misteriosa, que podem sentir as fortes barreiras e os altos obstáculos.
As grandes “correntes” do sentir e pensar podem mudar seu curso ao sentir
sua presença; o que parecia ser a coisa mais sólida parece cambalear.
Porque avança o Deus capaz de mudar tudo: e quem põe limites a seu poder
transformador? Se do ventre fechado de Maria faz brotar manancial de vida
nova e celeste; se da mente obstinada de Saulo fará brotar torrente de
doutrina vivicante ...
Apliquemos o título de transformador ao Espírito Santo, segundo Sb
7,22.27:
E um espírito inteligente, santo, único, múltiplo ...
sem mudar em nada, renova o universo.
e rezemos:
Lava o que é sórdido,
rega o que é árido,
cura o enfermiço;
dobra o rígido,
aquece o frígido,
guia o torcido.
Pensando no Espírito Santo, voltemos ao primeiro versículo, à desgra­
ça de não entender a língua. Sair do Egito remediava o problema? No dia
de Pentecostes, o Espírito anula a maldição de Babel, inspirando mensa­
gem e língua que todos entendem, “cada um na sua língua”. Uma língua que
não se entende não é sinal do mistério cristão; antes, uma língua que se
entende põe-nos de frente ao mistério inesgotável. Como diz um teólogo
espanhol do século XVI: “O que se manifestou em línguas, em todas quer ser
escutado”.
Salmo 115
1. Texto
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14
Não a nós, Senhor, não a nós!
Dá honra a teu nome,
por tua leladade e tua fidelidade.
Por que hão de dizer os pagãos:
Onde está seu Deus ?
— Nosso Deus está nos céus
e fez tudo o que quis.
Seus ídolos são prata e ouro,
feitura de mãos humanas:
têm boca e não falam,
têm olhos e não vêem,
têm orelhas e não ouvem,
têm nariz e não cheiram,
têm mãos e não tocam,
têm pés e não andam,
não tem voz sua garganta.
Sejam como eles os que os fabricam
e todos os que confiam neles.
Israel, confia no Senhor:
ele é seu auxílio e seu escudo.
Casa de Aarão, confiai no Senhor:
ele é seu auxílio e seu escudo.
Fiéis do Senhor, confiai no Senhor:
ele é seu auxílio e seu escudo.
O Senhor lembra-se de nós e nos abençoa:
bendiga a Casa de Israel,
bendiga a Casa de Aarão;
bendiga os féis do Senhor,
pequenos e grandes.
Que o Senhor vos multiplique,
a vós e a vossos filhos;
1388
Salmo 115
15 benditos sejais do Senhor,
que fez o céu e a terra.
16 O céu pertence ao Senhor,
a terra ele a deu aos homens.
17 Os mortos já não louvam ao Senhor
nem os que descem ao silêncio.
18 Mas nós bendizemos ao Senhor
agora e para sempre. Aleluia.
2. Bibliografia
J. Fichtner, D erATText der Sapientia Salomonis, ZAW 57 (1939) 183-184.
P. W . Skehan, Borrowing from the Psalms in the Book ofW isdom , CBQ
10 (1948) 384-397.
K. Luke, The setting o fP s 115, IrTQ 34 (1967) 347-357.
H. Lubszcyk (veja-se o salmo anterior).
M. Gilbert, La critique des dieux dans le livre da la Sagesse (Sg 13-15 .
Roma, 1973, 82-83.234-237.
K. Waaijman, De hemel is de heml van God, de <iarde heeft Hij aan de
mensen gegeven (Ps 115), Schrift 67 (1980) 10-15.
A. Hurvitz, The history ofa legal formula: kol ’asher hapeç ‘asa (Ps 115,3:
135,6), VT 32 (1982) 257-267.
3. Análise filológica
3. Gr acrescenta no céu e na terra (segundo 135,6).
4. Gr lê os ídolos dos pagãos (segundo 135,15).
8. yhyw: com valor volitivo.
9. bth: leu indicativo Gr.
12. ybrk: lê indicativo Allen.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
Aquilo com que mais parece esse salmo é com um hino, porque busca
a glória de Deus. Logicamente, no louvor expressa-se a fé em sua pessoa e
obras. Do louvor passa-se suavemente ã bênção, que equivale à ação de
graças. Da fé desliza-se suavemente para a confiança. Por muito suaves que
sejam os deslocamentos, não ajudam a manter o rigor de gênero definido e
único. Também o salmo não se atém à forma e ao esquema tradicionais do
hino. À profissão de confiança acresecenta-se uma bênção divina, que
descora ainda mais o gênero do hino.
Estudo global
1389
A variedade de elementos e a liberdade formal de sua organização
levam-nos a considerar o salmo como ação litúrgica, capaz de unificar
contextualmente atos e formas diversos. Não temos meios para reconstruir
o desenvolvimento orignal da cerimônia; sendo asssim, todas as “reconstru­
ções” propostas por alguns comentadores são pautas ou sugestões para
uma execução atual desse texto. Ou seja, ato legítimo de apropriação, não
descrição do fato histórico.
A situação donde emerge essa oração é o desterro: uma série de indí­
cios, que irei ampliando, convergem nessa conjuntura espiritual. Não consta
que se compusesse para uma uma cerimônia particular conhecida. O autor
parte do primeiro mandamento, completado com o segundo, quase fundidos
em unidade. A isso acrescenta a recordação do Deus criador de acordo com
o começo do Pentateuco (Gn 1).
b) Primeiro mandamento e idolatria
O primeiro mandamento proíbe aos israelitas ter outros deuses rivais
de Yhwh; o segundo proíbe fabricar imagens de Yhwh ou de qualquer
divindade. Antes do desterro, o problema religioso capital, como o sentem
os profetas, era o culto a Baal ou aos Baais. O episódio do bezerro de ouro
no Sinai e o culto correspondente em Betei ilustram a tendência popular de
fabricar imagens de seu Deus para tê-lo presente.
No desterro a na diáspora muda a situação. Na Babilônia, os deporta­
dos são residentes de segunda categoria. Não possuem templo central nem
santuários locais dedicados a seu Deus nacional, pois o templo está em
Jerusalém, em ruínas. Também não levaram para o desterro imagens
transportáveis de seu Deus, porque não as têm nem as fabricam: é-lhes
proibido. Em contraste, o panteão babilónico é nutrido e de milenária
tradição; as diversas divindades contam com santuários locais e suas
estátuas são veneradas com grande solenidade. Um juízo histórico super­
ficial diz que o Deus protetor da Babilônia derrotou o Deus de Judá. A quem
perguntasse a um babilônio: onde está tal ou tal divindade?, este lhe res­
ponderia sem duvidar indicando a cidade e o santuário.
Nesse clima nasce a polêmica antidolátrica, que pode apresentar duas
formas: uma mais popular e superficial, centrada no culto das imagens e
sua identificação não crítica com a divindade; outra mais metafísica, que
desmascara a nulidade ontológica das supostas divindades. O Segundo
Isaías é o grande expoente exílico de ambas as formas: à primeira dedica
especialmente 44,12-20 e 46,1-7, a segunda atravessa toda a sua pregação.
O SI 115 assume a primeira forma da polêmica e dramatiza-a para obter
triunfo fácil e irônico, ainda que rico de implicações. Como os judeus
1390
Salmo 115
deportados recusam ou não estão autorizados a participar do culto dos
deuses babilónicos, os novos amos lhes perguntam, misturando curiosida­
de com burla: “onde está o vosso Deus?” Os judeus não podem apontar um
lugar de seu desterro nem tampouco o templo de Jerusalém; mas essa
carência ou aparente ausência serve-lhes de trampolim para remontar ao
mais alto e lançar daí sua resposta ad hominem: Nosso Deus está no céu e
fez céu e terra; vossos deuses estão na terra, e fizeram-nos os homens; o
nosso tem querer e poder, os vossos são inertes.
E verdade que as pessoas ilustradas do país poderiam replicar que
seus deuses estavam no céu e que Marduk criara o universo, e que as
estátuas eram meras representações dos deuses celestes ou infernais. O
autor do salmo não lhes concede vez para replicar, com o que a polêmica, em
vez de proceder com razões, esgota-se na burla.
As implicações do texto são mais ricas que sua superfície. Uma é a
necessidade ou costume do homem de ver para reconhecer a presença:
uma como que estrutura sacramental. Ou pelo menos a dialética de
presença e representação. Outra é a capacidade ou tendência do homo
faber a fabricar o que quer que seja, também imagens que imitam a
realidade. Ora, se Deus faz o homem, o homem não pode fazer Deus. —
Mas pode fazer imagens de Deus. — Sim; mas começando a fazer imagens
de Deus, corre o risco de fazer deuses à sua imagem, e assim o homo faber
acaba fabricante de deuses.
Aí terminam as implicações, condicionadas pela legislação religiosa de
Israel. Não continuaram a crítica. Os que proíbem toda imagem plástica,
inclusive de seu Deus, são pródigos de imagens literárias, poéticas, e das
imagens mentais de seu Deus. Como vimos, comentando o SI 82, as imagens
mentais de Deus, sendo necessárias, podem revelar-se mais perigosas,
porque se expõem menos à crítica. Dizer que Deus “está no céu”, que é
“nosso escudo” são imagens mentais da divindade.
Não é implicação, mas enunciado, o dado de assemelhar-se: vê-lo-emos
ao comentar o versículo 8.
c) O Deus criador de Gn 1
Os egípcios com sua milenária tradição, os babilônios herdeiros da
cultura suméria e acádica, cananeus e outros podiam ter explicado ao autor
do salmo como suas respectivas divindades criaram outros deuses e o
universo.
Do Egito podiam contar a criação pelo “coração / mente e a língua”; ou,
segundo outra versão mais grosseira e enérgica, pelo cuspe ou pela
masturbação do deus Re (baseada em fisiologia deficiente e na fascinação
Exegese
1391
pela misteriosa fecundidade humana) (ANET 6B). Da Babilônia contariam
como Marduk dividiu o cadáver de Tiamat em duas metades, “como as
valvas de uma concha”, fazendo de uma o céu e da outra (supõe-se) em baixo
a terra; e do sangue do chefe rebelde, a humanidade (ANET 67-68).
O autor do salmo não polemiza neste terreno. Ele conta tranqüilamen­
te com a versão de Gn 1, dela extraindo vários elementos.
Como dado primário e global, a criação de céu e terra, substituindo br’
por ‘sh; a criação do homem ampliada em vários pormenores: a “imagem” de
Deus, a bênção que faz crescer e multiplicar-se, o domínio da terra (8.12.14.16).
(O tema dos mortos procede de outro contexto). Nada parecido podem fazer
os ídolos estrangeiros. Na ação litúrgica atualiza-se o processo da criação
do homem.
d) Composição e estilo
— Após breve introdução (1), desenvolve-se a polêmica contra a
idolatria (2-8); segue a tríplice profissão de confiança (9-11) e a correspon­
dente bênção divina (12-14), ampliada com a recordação da criação (15-16);
conclui com o silêncio dos mortos e a bênção dos vivos (17-18).
O autor cuidou das transições: entre a primeira secção e a segunda,
pelo verbo confiar: nos ídolos, no Senhor. Entre a terceira e quarta, pelo
verbo abençoar. O “fazer” do v. 3 fica pendente até sua resolução no v. 15;
o bendizemos final do v. 18 faz eco à bênção divina de 12.13.15. O nome de
Yhw h, completo ou abreviado, pronuncia-se doze vezes.
— O estilo do salmo distingue-se pelas repetições em série: são de mais
efeito se se recitam coralmente. Já desde o princípio, com a duplicação enfá­
tica “não a nós” e a quíntupla aliteração em /-; logo depois, a preposição
duplicada. Segue a série de sete (pelo que parece, escrita defectivamente nos
elementos quinto e sexto). Vem depois do duplo ternário de repetições
literais. No final aplaca-se o desejo de repetir e só se destaca o comentário a
“céu e terra”.
O
gosto pelas oposições preside em grande parte o desenvolvimento
não a nós / a teu nome, dizem eles / (replicamos), têm / não podem, o homem
confia / Deus abençoa, o céu / a terra, os mortos / nós.
5. Exegese
l.D ar glória. Glorificar (kbd em piei) é um dos verbos de louvor, pou­
co freqüente no saltério (por exemplo, 22,24; 86,12). O orante sente-se
incapaz de fazê-lo, e também não considera suficiente a assembléia, e pede
a Deus que “se glorifique”, mostrando sua glória naquele momento e lugar.
1392
Salmo 115
Glorificar-se é ação que Deus realiza em suas intervenções históricas:
por exemplo, “derrotando o Faraó” (Ex 14,4.17); derrotando Sídon (Ez
28,22); desbaratando Gog (Ez 39,13). Nesses casos, o hebraico costuma
empregar o nifal de kbd; o salmo emprega a fórmula equivalente ntn kbd
= dar glória (o mesmo que Ez 39,21 sobre Gog). Dois textos de Isaías nos
transladam ao contexto histórico do salmo:
42,8
48,11
Eu sou o Senhor, este é meu nome,
não cedo minha glória a ninguém nem minha honra aos ídolos.
Por mim, por mim o faço,
porque meu nome não deve ser profanado
e minha glória não cedo a ninguém.
Com o verbo sinônimo hbw diz o SI 29,1: “filhos de Deus, dai ao Senhor
glória e poder”, e o SI 96,7 corrige o sujeito: “famílias dos povos”.
Pois bem, no presente salmo nem deuses — que não existem — , nem
povos — que não bastam—, nem o presidente com sua assembléia, mas Deus
mesmo há de se glorificar. Não mostrando sua figura, mas sua ação. Na qual
se mostram suas duas qualidades típicas, “lealdade e fidelidade” (hsd w’mt).
2. A mesma pergunta fazem os habitantes a um israelita desterrado
em país estrangeiro (SI 42,4.11), e a podem fazer os invasores ao conquistar
Jerusalém (SI 79,10).
3. A fórmula expressa o poder incontrastado e supremo:
lR s 9,1
Quando Salomão terminou de construir o templo,
o palácio e tudo o que queria e desejava ...
Is 46,10 Meu desígnio se cumprirá, minha vontade se realizará.
4 .0
termo ‘çb tinha-o usado Oséias em várias passagens: “com sua prata
e seu ouro fizeram-se ídolos para sua perdição” (4,17; 8,4); “fazem-se ídolos
de prata, obras de puro artesanato” (13,2; 14,9). Entre outros retoma o termo
Is 46,1; 48,5. Escolhendo como materiais ouro e prata, o salmo está mais perto
de Oséias. O livro da Sabedoria escolhe madeira e barro para duas reflexões
originais (Sb 13,10-14,11 e 15,7-13). Santo Agostinho comenta: “Empregam
o ouro, que fez o Deus verdadeiro, para fazer um deus falso”.
5-7. No texto atual é claro que o autor busca o número sete; o SI 135
menciona só quatro. Na controvérsia, provavelmente exílica, de Jr 10
mencionam-se: “não falam, não andam ... são imagens falsas, sem alento,
são vaidade, embuste”. A chamada Carta de Jeremias (= Bar 6) desenvolve
temas semelhantes em chave burlesca e de modo bastante superficial. Is 46
parece pensar em procissões com estátuas de divindades:
1
Carregam sua imagens sobre bestas e azêmolas,
e as estátuas que levam em andores
são uma carga esmagadora.
Exegese
7
1393
Onde o põe, ali fica,
não se move de seu lugar.
Por muito que lhe gritem, não responde,
não os salva do perigo.
Dos sentidos falta o gosto e com ele o comer (que é o tema do episódio
burlesco “A fraude descoberta” de Dn 14,1-22). O primeiro lugar ocupa a
incapacidade de falar e, portanto, de comunicar-se. Habacuc combina duas
coisas pelo que parece inconciliáveis, a mudez e a falsidade dos oráculos
(Hab 2,18-19).
Sem dúvida a chamada “Teologia de Mênfis” (ANET 5-6), justificando
a hegemonia de coração / mente e língua, explora com mais inteligência a
imagem da experiência humana:
A vista dos olhos, o ouvido das orelhas,
o cheirar o ar com o nariz,
comunicam-se ao coração.
Desse modo se formam os conceitos,
e a língua comunica o que pensa a mente.
8 .0
processo de imitar para tirar uma imagem provoca um movimento
fatal de ida e volta. Deus faz o homem à sua imagem — o artífice faz uma
estátua à sua imagem — o artista torna-se semelhante àsua obra.
Chamando o ídolo de hbl = vaidade, vazio, diz Jr 2,5: “Seguiram atrás de
vacuidades e tornaram-se vazios” (= 2Rs 17,15). É original a reflexão de Sb
15, que se pode esquematizar assim: o artesão — homem feito de barro —
modela com barro imagens de deuses — e não supera sua condição de barro.
Numa versão moderna e secularizada diríamos que o homem, deslum­
brado com a tecnologia, torna-se robô ou computador.
Sobre confiar no ídolo ou em algo negativo, podem-se ver:
Is 42,17 Retrocederão envergonhados os que confiam no ídolo,
os que dizem à estátua: tu és meu Deus.
47,10 confiar na maldade, na mentira; Sb 62,11.
9-11. Dos três grupos interpelados, o primeiro é o antigo e novo no­
me de toda a comunidade, o segundo engloba os sacerdotes como supostos
descendnentes de Aarão (sem mencionar Sadoc), o terceiro é designação
corrente da comunidade, que só em tempos posteriores se aplicou aos
prosélitos.
Confiar. Entre os diversos termos com que o Dt significa a fé ou
fidelidade do povo a seu Deus não figura bth. Na literatura profética faz-se
mais corrente e entra em contraste com outras confianças; no saltério é
freqüente. Entre os textos mais significativos cabe citar: o desafio de
Senaquerib (Is 36), o sermão do templo (Jr 7), uma instrução sapiencial (Jr
1394
Salmo 115
17). A invocação com os títulos “seu auxílio e seu escudo” tem ar militar. Na
hipótese de origem exílica do salmo, explica-se como reação a um ambiente
hostil; pode-se comparar com a referência militar do SI 27.
12-13. A confiança do povo responde a bênção de Deus, pronunciada
em forma de súplica. “Pequenos e grandes” servem ao autor, no formal,
para passar do ternário para o quaternário que pede o paralelismo. A
expressão é especialidade de Jeremias (6,13; 16,6; 31,34) e faz-se corrente
em textos tardios como Ester e Crônicas. Mas o recheio pode ter alcance
significativo. Nas narrações patriarcais, a bênção paterna passa para um
filho, o maior e o menor: Sem / Cam = Canaã, Jacó / Esaú, Efraim /
Manassés. Esaú queixa-se a seu pai: “só tens uma bênção?” (Gn 27). A
bênção invocada no salmo não faz distinção.
14. Efeito clássico da bênção é crescer e multiplicar-se, aqui com o
verbo ysp ‘l, como em outros textos: “Que o Senhor vosso Deus vos faça
crescer mil vezes mais, abençoando-vos como prometeu” (Dt 1,11; cf. lCr
21,3). Abênção da fecundidade prolonga-se na descendência, compensando
assim pelos que morreram na catástrofe ou no deserto.
15. E a bênção eficaz daquele que só com sua palavra fez céus e terra
(cf. SI 134). Chamar os membros da comunidade de benditos / abençoados
do Senhor é raro: além de fórmulas de agradecimento (ISm 23,21; 2Sm 2,5),
é preciso citar Is 65,23.
16.0
Senhor reserva-se o céu como morada e não a compartilha com
outras divindades; a terra ele a dá ao homem como morada e tarefa. No
contexto da aliança, Deus “dá a terra” a seu povo, ou seja, o território de
Canaá aos israelitas. O salmo elimina fronteiras para abarcar a terra
inteira e toda a humanidade.
17. Quem ou o que atrai para esse lugar a recordação dos mortos?
Talvez a conjuntura histórica, os muitos que morreram quando da destrui­
ção de Jerusalém. Um texto tardio, que finge a situação do desterro babi­
lónico, suplica:
Bar 2,18
Inclina, Senhor, teu ouvido e escuta,
abre os olhos e olha:
os mortos na tumba, os seus corpos já sem vida,
não podem cantar tua glória e tua justiça.
Outra explicação é que a região subterrânea dos mortos completa a
articulação céu e terra. (Veja-se o comentário ao SI 88 e os textos ali
citados).
18. Nós designa a comunidade presente, incluídos descendentes que
asseguram a continuidade e perpetuidade do louvor. Se louvamos, estamos
vivos; se vivemos, é para louvar.
Transposição cristã
1395
6. Transposição cristã
A polêmica contra ou sobre a idolatria coloca-se hoje em termos mais
profundos, não menos radicais. De uma parte estão os ídolos seculares de
nossa cultura, que solicitam nossa dedicação e confiança, como sucedâneo
da atitude religiosa. Por outra parte temos que nos confrontar com nossas
representações mentais de Deus não criticadas. Nessa nova perspectiva, o
salmo conserva sua validez, como se pode ver no comentário ao SI 82.
Apontei o tema do robô e do ordenador, que tentam modelar o homem à sua
imagem complexa e mecânica. Em rigor, essas invenções são uma conse­
qüência do fato de Deus ter dado a terra aos homens.
Devemos entender que Deus nos atribuiu este espaço e este tempo, que
no-los deu como tarefa. O que vale também para a Igreja: os cristãos não
podem desentender-se das tarefas mundanas, como se o seu fosse somente
esperar e aguardar o céu. Não se diz no NT que Deus nos dá o céu, mas a
vida eterna.
Por outra parte, as tarefas mundanas não esgotam o sentido do
homem. Lucas descreve ou dramatiza a glorificação de Jesus Cristo ressus­
citado como um “subir ao céu”. Usando a linguagem do salmo, podemos
dizer que “nosso Senhor está no céu, tudo o que quer faz”. Nele pomos nossa
confiança, ele nos consegue do Pai toda sorte de bênçãos (Ef 1), que se
sintetizam no dom do Espírito. Contudo, algo permanece pendente, e nossa
perpetuidade não é só de gerações. Somos já os “abençoados do Senhor”, e
um dia nos tocará escutar: “Vinde, benditos de meu Pai, para possuir o
reino”.
Salmo 116
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Eu amo!, porque o Senhor escuta
minha voz suplicante1,
porque inclina o ouvido para mim
quando o chamo.
Envolviam-me redes mortais,
alcançavam-me os laços do Abismo,
caí em tristeza e angústia.
Invoquei o nome do Senhor:
por favor, Senhor, põe a salvo minha vida!
O Senhor é clemente e justo,
nosso Deus é compassivo.
O Senhor guarda os incautos:
estando eu sem forças me salvou.
Alma minha, recupera a calma,
pois o Senhor foi bom contigo.
Arrancou minha vida da morte,
meus olhos das lágrimas,
meus pés do empurrão.
Caminharei na presença do Senhor
no país da vida.
10 Eu cria, quando dizia:
que desgraçado sou eu.
11 Eu pensava em meu apuro:
os humanos são falazes.
12 Como pagarei ao Senhor
todo o bem que me fez?
1minha petição de graça
Bibliografia
1397
13 Elevarei o cálice da salvação 2
invocando o nome do Senhor.
14 e cumprirei ao Senhor meus votos
na presença de todo o povo.
15 O Senhor faz pagar cara
a morte de seus leais.
16 Favor, Senhor, pois sou teu servo,
servo teu, filho de tua escrava!
Rompeste minhas correias!
17 Oferecer-te-ei um sacrifício de ação de graças
invocando o nome do Senhor,
18 e cumprirei ao Senhor meus votos
na presença de todo o povo3,
19 nos átrios da casa do Senhor,
no meio de ti, Jerusalém. Aleluia.
2. Bibliografia
L. Suárez, Ps 114 / 116,1, VD 18 (1938) 262-268.
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F.
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P. C. H. Wernberg-Moller, The old accusative ending in Biblical Hebrew:
Observations on hammawetah in Ps 116,15, JSS 33 (1988) 155-164.
M . L. Barré, Ps 116: its structure and its enigmas, JBL 109 (1990) 61-78.
2brindarei com o cálice do tempo
3 seu povo
1398
Salmo 116
3. Análise filológica
1. ’hbty: complemento tácito ou acrescentado Yhwh Qim, acrescenta
-ka Baethgen, agrada-me (Is 56,10; Jr 5,31) Ibn Ezra, com ky completivo
“agrada-me que” Ewald Olshausen Hitz; corrige para b’ty Gun.
qwly thnwny: assíndeton ou aposição, lê bthnwny adverbial Ibn
Ezra.
2. bymy: de por vida, sgl sem sufixo Gr.
3. hbly: laços, dores Vg, como de mulher em parto Targ.
mç’wny ’mç’: assecuti sunt I expertus sum.
mçry: Lm 1,3, corrigem para mçdy Hupf Berth.
6.p t’y m: pl de pty DBHE.
7.
Imnwhyky: oposto ao mçry de 3 Ibn Ezra, refere-se a Deus Qim.
8. hlçt: 3a pess sgl Jerôn.
9. ’rçwt: sgl (27,13) Gr Sir.
10. Discute-se o valor de ky: por isso = dio Gr (2Cor 4,13) Agos (cita
Mt 10,32), Gertho Agélio, “a fé me dá ânimo para falar / professá-la” Heser;
quando falei / disse Ewald Baeth Hupf; ainda que (Ex 13,17; Dt 29,18) de
Wette.
11. kzb: falha Teod, subst Jerôn, “solus Deus verax, fidem et promissa
in utraque fortuna retinens” Marini.
15.hmvoth: corrigem tmwth Del Olsh Cast.
16.
Citado em Sb 9,5.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
O SI 116 é canto de ação de graças. Como pede o gênero, o orante
recorda as desgraças das quais o livrou Deus, como nelas pediu auxílio e foi
escutado, recorda sua confiança passada e expressa seu agradecimento
presente. A ação de graças é acompanhada de algum rito litúrgico, cum­
prindo o voto que fez no perigo.
De que desgraça foi libertado? O texto menciona quatro coisas: um
grave perigo de morte, um aflição interior, uma situação social de
desvalimento, a escravidão. E raro que as quatro se tenham acumulado
sobre um indivíduo, a não ser que o orante seja outro Jó. Por isso, ou se
tomam como situações típicas num salmo de repertório, de uso múltiplo, ou
se supõe que três são metáforas de uma real.
Estudo global
1399
Aceitando a segunda suposição, o mais provável é um perigo de morte,
por doença ou outra causa; mais provável por doença. Mencionam-se morte
e abismo (3), morte e lágrimas (8), vida (9), de novo morte (15). A aflição
profunda e o desvalimento (3b.6) podem acompanhar o perigo; a escravidão
seria metáfora audaz.
Assim entendido, o salmo faz boa companhia ao 30, como mostram o
tom e uma série de coincidências verbais e temáticas:
SI 30,4
5
6
7
9
12
npsh
sh’ wl
hsydym
hyym
bky
’mrty
qr’
pth
116,4.7.8
3
15
9
8
11
2.4.13.17
16
b) O sentimento
Mais do que o salmo 30, impressiona-nos o 116 pela intensidade de seu
sentimento. A ação de graças será ritual, comunitária, mas a oração é
intensamente pessoal. O orante volta-se sobre si para observar e descobrir
seus sentimentos, desdobra-se internamente para diálogo mental consigo
mesmo. Recorda o que dizia e pensava, a situação afetiva de onde brotava.
Pergunta-se antes de propor.
Suposta a situação de doença grave superada, pode-se comparar esse
salmo com outros semelhantes. O 31 menciona olhos, garganta, ventre,
ossos, vigor; o 116 menciona olhos e pés com outra função, e concentra-se
nos afetos. O 38 fala de carne, ossos, chagas, costas, coração; constitui salmo
intenso, porém sem a introspecção do presente. Pelo desdobramento da
pessoa, deve-se comparar com o 42-43, mais elaborado e mais bem explo­
rado graças ao estribilho.
A intensidade do sentimento expresso deve-se a grande mobilidade
das formas empregadas:
relato com Yhwh em terceira pessoa
irrupção do perigo personificado
cita a jaculatória com Yhwh em segunda pessoa
enunciado geral em tom objetivo
exortação própria com recordação e propósito
recordação de pensamentos passados
pergunta duvidosa, propósito concreto
enunciado geral com Yhwh em terceira pessoa
e propósito final.
1400
Salmo 116
Não é fácil encontrar outro salmo com tal mobilidade. O melhor é que
o orante não perde o fio, e nós o seguiremos sem resistência.
Quem tiver experiência de oração não se surpreenderá desses movi­
mentos de espírito. Quem quiser apropriar-se desse salmo deve entrar de
cheio em seu desdobramento afetivo.
c) Amor e fé
Encabeçando o salmo e pela metade, abrindo o v. 10, lêem-se dois
verbos em primeira pessoa: ’hbty h’mnty = amei, amo e cri, confiava.
Ressalta-se o primeiro por construção sintática tão estranha, que duvida­
mos se se deverá a erro de copista. O segundo prolonga-se em ’mrty = dizia.
O primeiro põe todo o salmo na esfera do amor de Deus, amor agradecido,
grande demais para expressá-lo como gostaria. O segundo expressa uma fé
que se apóia em Deus e não no homem.
Há algo que falta no salmo, algo cuja ausência descobrimos por compa­
ração com outros: o arrependimento das culpas. Por exemplo, o citado SI 3C
contrapõe ira a favor e menciona ritos de luto; mais explícitos são o 32 e o 38.
O orante do presente salmo não se confessa réu de delitos passados que tives­
sem provocado sua grave doença, nem em tal conjuntura sentiu a cólera de Deus.
Considera-se “leal”, sem por isso alegar méritos de virtude ou de observância.
Amor e fé são virtudes teologais, que se dirigem a Deus, e admitem
graus. O orante revela em suas palavras uma relação direta e confiante com
seu Deus, cujo nome não se cansa de repetir.
d) Composição
Como já mostrei, o típico desse salmo é a mobilidade afetiva, que não
aceita as travas de esquema rigoroso. Contudo, para dar leito ao movimento
e para que não se soltem as peças, o poeta põe alguns sinais de coesão
formal. Os principais são: a quádrupla repetição de “invocar” e dentro dela
a tríplice de “invocar o nome” (qr’ bshm): a primeira na desgraça, a segunda
ao brindar, a terceira ao sacrificar; também é importante o estribilho, com
ligeira variação que vincula cálice e sacrifício. Os dois verbos em primeira
pessoa já comentados e o séquito que os acompanha e amplifica; a repetição
enfática “eu” em 10.11.16ab.
5. Exegese
1.0
começo do salmo com o verbo ’hbty em primeira pessoa e em forma
absoluta, é único no saltério e merece nossa atenção. Pelo uso de ’hb, tem
antecedentes ou companheiros no saltério: “eu amo a casa onde moras’:
Exegese
1401
(26,8), alegando-o como mérito; o SI 119 repete o verbo dez vezes, e seu
objeto é a lei; pelo fim do SI 31 soa um convite: “amai o Senhor, seus leais”,
que nos interessa porque o orante do 116 insere-se entre os “leais”. Com
sinônimo de amar (rhm) começa o SI 18, forma que alguns consideram
suspeita por ser inusitada (veja-se comentário); podemos retê-la e empare­
lhar ambos os salmos, já que o presente cita o 18,5. Fora do saltério, os
textos fundamentais são Dt 6,5; 11,1, em que soa como mandato, ao passo
que no salmo brota espontâneo do agradecimento.
A expressão “voz suplicante” é comum no saltério e em súplicas fora
dele.
3. A primeira frase procede do SI 18,5 (variante em 2Sm 22,5), em que
a ameaça toma figura aquática; outro tanto na imitação de Jn 2,6. No
presente salmo, a imagem perde concretude, domina o aspecto de estar
cercado sem saída. Segue duplo movimento de “alcançar” (que salta a etapa
de perseguir e fugir): o cerco do xeol me alcança, ao passo que me deixo
alcançar pelo aperto e pela pena. Repetem-se o verbo mç’ e a raiz çrr’ Como
se, fugindo em vão da morte, viesse a parar num cerco interior de penas.
Segundo Gn 42,38 e 44,31, a “pena” pode levar à “tumba”; segundo o SI
31,11, com a “pena” consome-se a vida.
Em três frases breves de verbo longo, o poeta logra descrever uma
situação desde o ponto de vista da experiência subjetiva: a consciência
percebe imaginativamente uma ameaça corpórea mortal e vive lucidamen­
te sua angústia.
4. A petição com ’anna soa mais pessoal, mais encarecida: como a dos
irmãos a José (Gn 50,17). Moisés intercedendo (Ex 32,21), Ezequias
suplicando em transe de morte (Is 38,3), Jonas suplicando e protestando
■Jn 1,14 e 4,2). O versículo dá-nos a conhecer uma fórmula concreta de
"invocar o Senor”.
5. Citação livre de fórmula litúrgica que se apóia em Ex 34,6. Aos
atributos tradicionais, Piedoso e Compassivo, acrescenta Justo, exatamen­
te como o SI 112,4. Da adição não se pode deduzir alusão judicial ao Senhor
fazendo justiça a desvalido. Tratando-se de fórmula litúrgica, usa o plural
Deus nosso e não o esperado singular Deus meu.
6. Prolongação ou comentário do anterior. Os p t’ym são típicos de
Provérbios (16 vezes de 20). São os simples ou simplórios, inexpertos,
incautos, crédulos; vítimas fáceis dos astutos e arteiros; mas capazes de
aprender se quiserem. Podem-se ver:
Pr 14,15
o simples crê em qualquer palavra
1.4 para ensinar cautela aos incautos
8.5 incautos, aprendei a cautela
1402
Salmo 116
No saltério: 19,8; 119,130. O verbo dll e o adjetivo dl podem designar
categoria social: necessitados, desvalidos; categoria freqüente na literatu­
ra sapiencial e profética. No saltério: 4152; 72.13; 82,3s; 113,7.
7-9. Como conseqüência imediata da libertação concedida, podíamos
esperar a expressão do agradecimento. Em vez disso, o orante olha para
dentro de si, dirige a si a palavra. Convida sua alma a “voltar” a seu lugar
de “repouso”, ela que estava cercada de angústia (3b). Um oráculo de
libertação começa muitas vezes por “não temas”; vencendo o temor, respon­
demos a Deus com nossa confiança. Algo semelhante ocorre aqui: recupe­
rando a calma, o orante reconhece o poder libertador de Deus. O desdobra­
mento psicológico mostra que não é doutrina aprendida, mas experiência
pessoal. O termo mnwhh tem aqui valor psicológico, com em Is 28,12 (cf. Rt
1,9; lRs 8,56).
8. O trístico cinzelado corresponde formalmente ao trístico trágico do
v. 3. Também pode-se articular o conteúdo por correspondências: a morte
e abismo, vida; a laços, pés firmes; a penas, enxugar lágrimas. O empurrão
é metáfora, busca a queda moral. Morte e lágrimas reaparecem unidas no
famoso texto escatológico de Is 25,8.
9. Caminhar na presença ou proceder de acordo com: protegido por
Deus, que não o perde de vista. O país dos vivos é esta terra superior, à luz
do sol, contraposta à região subterrânea dos mortos. O versículo forma a
conclusão categórica do SI 56; o presente continua.
10-11.0 orante recorda de novo a situação pretérita: era tempo de
aflição e desconcerto. Um desses momentos em que, pelo pânico e pela
pressa, o homem procede “precipitadamente”, sem serenidade nem lucidez
(Ex 12,11; Dt 30,3; SI 48,6). Naquele momento, o orante descobriu e
comprovou que o homem não é de se fiar, que não oferece garantias, e con­
fiou em Deus:
SI 60,13
Is 2,22
Jr 17,5
Auxilia-nos contra o inimigo,
pois a ajuda do homem é inútil.
Deixai de confiar no homem
que respira pelo nariz:
em quanto o taxareis?
Maldito quem confia em homem
e busca apoio na carne
afastando seu coração do Senhor.
Não se trata de mendacidade ética congênita no homem, mas de sua
invalidez ontológica. O imperador Senaquerib o dizia com a imagem da
cana ou bastão partido (Is 36,6).
A expressão “eu dizia em minha ansiedade” procede do SI 31,23 com
mudança de aplicação.
Exegese
1403
12.
Em textos legais, hshyb significa devolver, restituir, em espécie ou
em dinheiro (Ex 21,34; 22,25; 23,4; Lv 5,23; SI 69,5). No saltério, o sujeito
desse verbo costuma ser o Senhor (21 vezes de 28). Não é normal dizer que
o homem “restitui” a Deus, pois não pode. Sua única restituição aproxima­
da é o reconhecimento, que pode manifestar com algum dom ou oferta.
Quando o orante se faz a pergunta, já está reconhecento sua gratidão e seu
desejo de reciprocidade, e sua impossibildidade de satisfazê-la. Deus não dá
para que o homem lhe dê, nem o homem tem que dar a Deus para que Deus
lhe dê: a religiosidade do “do ut des” falha em ambas as direções.
13-14. Expressará sua gratidão num rito público com invocação e
cumprimento de votos. O rito consiste em elevar o cálice invocando o nome
de Yhwh. E cálice de libação, vinho que se derrama em honra da divindade,
ou é cálice de comunhão que se vai passando entre os comensais de
sacrifício? Da primeira falam: Ex 29,40-41; Lv 23,18.37; Ez 20,28, etc. À
segunda pode aludir o SI 23,5, talvez Am 2,8; Is 62,9. Como o texto o chama
“cálice de salvação”, parece mais provável que se refira a um banquete
cultual festivo, de ação de graças, como o aludido no SI 22,27.
Fazer um voto acompanhando súplica em momentos de perigo é
costume religioso comum. O SI 66,13-14 oferece-nos exemplo claro:
Entrarei em tua casa com vítimas
para cumprir meus votos:
os votos que pronunciaram meus lábios
e prometeu minha boca no perigo.
Uma legislação abundante regula o cumprimento dos votos (Lv 7,1617; 22,17-25; Nm 6; 15,1-10); Pr 20,25 previne contra votos precipitados,
Ecl 5,3-5 aconselha cautela.
15.
Nós dizemos “vendeu cara a vida”, ou então “fez pagar muito cara
sua vida”. Temos a instituição do “seguro de vida”, que paga uma soma em
caso de morte. Quanto vale a morte, ou seja, a vida de uma pessoa? O orante
pensa em Deus como dono e taxador: vende muito cara a vida de um de seus
leais, faz pagar muito cara sua morte. Na legislação da aliança lemos o
seguinte caso:
Ex 21,29 Trata-se de um touro que já investia antes, e seu dono,
advertido, não o tinha prendido, então, se o touro mata um homem ou uma
mulher, será apedrejado, e também o seu dono é réu de morte. 30 Se lhe
puserem um preço de resgate, pagará em troca de sua vida o que lhe pedirem.
O texto não diz em quanto costumavam taxar essa vida. O SI 49 diz que
a vida vale muitíssimo, tanto que o homem não tem dinheiro para comprar
a imortalidade; no SI 72 é o rei que taxa muito alto a vida de pobre ou
indigente. No SI 30,10 pergunta o orante: “O que ganhas com minha
1404
Salmo 116
morte?” O versículo que comentamos perguntaria antes: quanto perdes
pela vida de um leal teu, quanto pagarias para lhe salvar a vida? A taxa de
Deus é muito alta se se trata de seus leais, entre os quais se inclui o orante.
16.
Do conceito de leal, devotado, passa ao de servo. A afirmação “sou
teu servo” pode ser convencional: qualquer orante pedirá a Deus que
proteja “seu servo”. Mas aqui a toma o orante para desenvolvê-la coerente­
mente em chave jurídica: quem nasce de escrava é escravo de nascimento
(Ex 21,4; Gn 15,3; 17,12; veja-se SI 86,16-17). O dono pode alforriar o
escravo. A figura jurídica converte-se em imagem de libertação: inclusive
da escravidão da morte. Mas aqui não se fala de resgate, e sim de alforria.
17-18. Repete 13-14 substituindo o cálice por um sacrifício de ação de
graças.
19.
O estribilho alarga-se com versículo inesperado. Mencionar os
átrios do templo para celebração litúrgica não é estranho; tampouco é
inusitado recordar Sião ou Jerusalém. O estranho é que o orante aqui se
dirige a Jerusalém em segunda pessoa, como a um ser querido. Recorda-nos
por contraste Ezequiel, que perde a esposa como o povo perde o templo e a
cidade (Ez 24). O que provoca esse último pormenor cordial? Só podemos
suspeitá-lo. Talvez o diga um desterrado em país estrangeiro, ou um
repatriado ao encontrar o templo reconstruído.
Esse pormenor minúsculo abre o salmo a uma leitura comunitária. O
doente salvo da morte é o povo desterrado que retorna à pátria, sua
escravidão é o cativeiro, da qual é emancipado por ação de seu dono. O
Senhor taxa muito alto a vida de seu povo, e este não sabe como dar graças
a seu Deus. Retorna a seu lugar de repouso, enxugadas as lágrimas, porque
o Senhor foi bom para com ele.
6. Transposição cristã
De modo semelhante abre-se o salmo a uma leitura cristã pessoal ou
comunitária. Mas comecemos pelas citações do salmo no NT.
Rm 3,4 cita 11b deslocando ligeiramente o sentido: “Deus há de sair
verdadeiro / leal, e todo homem mentiroso / desleal”; com o que prova que
nenhum homem pode justificar-se diante de Deus.
2Cor 4,13 cita 10a adatando o sentido: “Possuindo o mesmo espírito de
fé que se expressa na Escritura: Cri, por isso falo, também nós cremos e por
isso falamos”.
Um salmo que trata da vida que vence a morte, de como Deus estima
a vida de seus leais, de escravidão e alforria, presta-se a profunda reflexão
no quadro do NT. Que vida Deus Pai estimou mais que a de seu Filho? Muitc
Transposição cristã
1405
lhe custava, e, no entanto, entregou-a. Saiu-lhe cara nossa vida. Graças à
morte e ressurreição de seu Filho, emancipamo-nos da escravidão da
morte.
Rm 8,20 A humanidade está submetida, não por seu gosto, à vaidade;
mas com esperança, porque a mesma humanidade será libertada da escra­
vidão à corrupção, para alcançar a liberdade gloriosa dos filhos de Deus.
Também libertou-nos Jesus Cristo da escravidão ao pecado e à lei.
Para dar-lhe graças devidas, levantamos o cálice da salvação:
ICor 10,16 Esse cálice de bênção que bendizemos
não significa solidariedade com o sangue do Messias?
(cf. 11,25; Lc 22,20). A vida do Messias glorificado “retorna” ao lugar
do seu “repouso”,junto ao Pai, que “arrancou sua vida da morte, seus olhos
das lágrimas”. Também o cristão está destinado a esse repouso, onde dará
graças a Deus na Jerusalém celeste.
Salmo 117
1. Texto
1
2
Louvai ao Senhor, todas as nações;
aclamai-o, todos os povos,
porque a lealdade do Senhor pode mais do que nós1.
e a fidelidade do Senhor é perpétua.
2. Bibliografia
H. Duesberg, Le psaume d ’invite aux nations (Ps 117), BVC 14 (1956) 9197.
A. Diez Macho, Ps 117,1-2; 118,1-5.16.23, Aug 10 (1970) 37-38.
T. Stramare, Salmo 116 (117): La misericórdia e la fedeltà di Dio, ParY:
24 (1979) 397-398.
O.
Rickenbacher, Quelques problèmes du Ps 117 en malgache, em FS
Barthélémy, Friburgo-Gotinga, 1981, 309-316.
4. Estudo global
O salmo mais curto e o mais longo estão muito próximos no saltério: 117
e 119. Seria salmo completo o presente? Seria antífona aplicável a outros?
Seria esquema para o presidente da liturgia desenvolver livremente?
Efetivamente, o esquema transparece: imperativo de convite, destina­
tários, partícula causal, motivo do louvor. Dois paralelismos sinonímicos:
a clássica hendíade “lealdade e fidelidade” repartida. Tudo normal e evi­
dente. Só um particular nos chama a atenção: a motivação é nacional, “nós",
o convite é universal. Por que todas as nações hão de louvar a Deus por bene­
fício que fez a nós? Não sentirão os pagãos e eleição de Israel como dis­
criminação? Eles prefeririam louvar os seus deuses, deixando a Israel o seu.
O paradoxo leva-nos a pensar que a lealdade e fidelidade do Senhor vão
se alargar para abarcar a todos, que a experiência de Israel não é exclusiva,
mas exemplar. Assim o sentiu Paulo no final da carta aos Romanos, citandc
1nos supera
Estudo global
1407
o salmo numa série de citações bíblicas. Dando valor especializado a ambos
os termos, distingue ’mt / hsd como fidelidade / misericórdia. Deus é fiel
cumprindo para os judeus o prometido, é misericordioso salvando os
pagãos. Em seguida cita em série: SI 18,50; Dt 32,43 (LXX); SI 117; Is 11,10.
Todos os povos já formam um povo, que podem dizer “nós”; e todas as
gerações acolhem-se na fidelidade de Deus.
A liturgia emprega esse salmo na festa dos apóstolos e missionários.
Quanta espiritualidade aberta e expansiva inspirou esse minúsculo
salmo.
Salmo 118
1. Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
Dai graças ao Senhor, porque é bom,
porque é eterna sua misericórdia.
Diga a casa de Israel:
é eterna sua misericórdia.
Diga a casa de Aarão:
é eterna sua misericórdia.
Digam os fiéis do Senhor:
é eterna sua misericórdia.
No assédio clamei ao Senhor:
respondeu-me o Senhor dando-me espaço.
O Senhor está do meu lado: não temo
o que possa fazer-me um homem.
O Senhor está do meu lado e me auxilia:
verei a derrota de meus inimigos.
Melhor é refugiar-se no Senhor
que confiar no homem1,
melhor é refugiar-se no Senhor
que confiar nos nobres2.
Todos os povos me cercavam:
em nome do Senhor me desfiz deles.
Cercavam-me e acurralavam-me:
em nome do Senhor me desfiz deles.
Cercavam-me como abelhas3,
apagaram-se como fogo de sarças:
em nome do Senhor me desfiz deles.
Davam empurrões para derrubar-me,
mas o Senhor foi meu auxílio.
1fiar-se de homem
2 fiar-se dos chefes
3 vespas
Salmo 118
14 O Senhor é minha força e meu brio:
ele foi meu salvador4.
15 Escutai clamores de vitória
nas tendas dos vencedores5:
A destra do Senhor faz proezas,
16
a destra do Senhor é sublime,
a destra do Senhor faz proezas”.
17 — Não hei de morrer, viverei
para contar as façanhas do Senhor.
18 Escarmentou-me, escarmentou-me o Senhor,
mas não me entregou à morte6.
19 Abri-me as portas do triunfo,
e entrarei para dar graças ao Senhor!
20 — Esta é a porta do Senhor:
os vencedores entrarão por ela.
21 — Dou-te graças porque me respondeste
e foste minha salvação7.
22 — A pedra que rejeitaram os arquitetos 8.
é agora a pedra angular.
23 Foi o Senhor quem o fez,
e parece-nos milagre.
24 Este é o dia em que agiu o Senhor:
vamos festejá-lo e celebrá-lo!
25 Salva-nos, por favor, ó Senhor;
por favor, dá-nos êxito, Senhor!
26 — Bendito em nome do Senhor o que vem!
Abençoamo-vos da casa do Senhor.
27 O Senhor é Deus, ele nos ilumina.
Organizai uma procissão com ramos
até os ângulos do altar.
28 — Tu és meu Deus, eu te dou graças;
Deus meu, eu te exalto.
29 — Dai graças ao Senhor, porque é bom,
porque eterna é sua misericórdia.
* ele me deu vitória
5justos
6 não me deixou morrer
7e me deste a vitória
8pedreiros
1409
1410
Salmo 118
2. Bibliografia
W. Robinson, Ps 118. A liturgy for the admission o f a proselyte, ChQR 144
(1947) 179-183.
J. J. Petuchowski, Hoshïah na’ in Ps 118,25. A prayer for rain, VT 5
(1955) 266-271.
T. F. Torrance, The last o f the Halle Psalms, EvQ 28 (1956) 101-108.
J. Meysing, A text reconstruction o fP s 117 (118), 27, VT 10 (1960) 130137.
L. Jacquet, Chant liturgique d ’action de grâces (Ps 118, BVC 36 (1960) 3140.
S. B. Frost, Ps 118. An exposition, CanJT 7 (1961) 155-166.
S. Grill, Synonyme Engelnamen im AT, TZ 18 (1962) 240-246.
E.
Kutsch, Deus humiliât et exaltat. Zu Luthers Übersetzung von Ps
118,21 und Ps 18,36, ZTK 61 (1964) 193-220.
P. Vanbergen, Le Ps 117 (118). Une Eucharistie qui éclaire l’Eucharistie
de Jésus, QLiPar 45 (1964) 65-81.
E. Beaucamp - J. P. de Relies, Plaidoyer por le Ps 118, VieSp 116 (19671
64-77.
H.
S. May, “Ps 118: the Song o f the Citadel”, em FS Goodenough, Leiden,
1968, 97-106.
S. E. Loevenstamm, The Lord is m y strength and my glory, VT 19 (1969)
464-470.
G.
R. Driver, Things old and new in the O T (Ps 84,6-8; 118,27),
MelUnBeyrouth 45 (1969) 463-478.
A. Diez Macho (veja-se o salmo anterior).
B. J. Oosterhoff, Het loven van God in Ps 118, em FS Ridderbos,
Amsterdam, 1975.
A. Berlin, Ps 118,24, JBL 96 (1977) 567-568.
E. Jenni, Vom Herrn ist dies gewirkt, Ps 118,23, TZ 35 (1979) 55-62.
J. L. Kugel, The adverbial use o f kî tob, JBL 99 (1980) 433-435.
M. R. Hauge, Salme 1 1 8 - initiasjon av en Rettferdig, NorskTT 83 (1982
101-117.
R. M. Hals, Psalm 118, Interpr 37 (1983) 277-283.
3. Análise filológica
2. ysrí: acrescentam ky twb segundo fórmula litúrgica Gr Vg.
5.
qr’ty: põem-no nos lábios de Davi Targ, do Messias Qim, de Jesus
Cristo os padres comumente. Omitem o segundo Yh Gr Sím.
hmçr: cárcere H. Schmidt.
7.
b‘zry: entre meus auxiliadores, com eles Ibn Ezra Qim; b- essentia
DBHE b- 1 i.
’r’y b: ver / gozar da derrota (cf. Eclo 25,8).
10.
kl gwym: sem art toda classe de gente, qualquer povo (cf. Is 32,20
Hupf Hitz, acrescenta artigo, todos Gun.
Estudo global
1411
’mylm: de mwl circuncidar Briggs, corrigem ’p ylm Duhm, ’kylm Hupf,
’akallem outros, ’mn‘m Cast; de mil Kittel Del, exscinderem eos Ros.
12.dbwrym: Dt 1,44; Is 7,18.
13.
dhytny: 2- pess TM Gun, passiva Gr Vg Sir Jerôn.
15. Introduz a citação que segue em 16 Mar Ros.
16. rwmmh: part sem m-, intrans Hitz, trans Gun.
14. zmrt: canto, força ou proteção Dah Craigie Allen.
11. ky: adversativa ou asseverativa.
ld.çdq: a justiça de 24,7ss Hitz, a de Is 26,2 Gun; vitória outros.
24. ‘sh: intransitivo atuar DBHE, trans outros.
26. bshm Yhwh: vai combrwk e não hb’ (Dt 21,5; 2Sm 6,18); o contrário
Brongers (citado por Allen).
27. ’rw hg: dança sacra Gun; bt cordas (SI 2,3; Jz 15,13), ramos (Ez
19,11; 20,28), atando Ros, ou agitando Talmud; “atai com cadeias o cordeiro
do sacrifício festivo até que roceis com sangue os degraus do altar” Targ,
“schmücket das Fest mit Mayen” Luth; corrige para ’çh fire-offering
Meysing.
4. Estudo global
a) Gênero e situação
— O salmo 118 pode-se catalogar como liturgia de ação de graças.
“Liturgia” refere-se ao cerimonial da celebração; “ação de graças” refere-se
ao conteúdo. Muitos salmos são litúrgicos, ou seja, destinados a cerimônia
do culto; porém não são “liturgia”. O peculiar do presente salmo é que os
elementos da execução litúrgica entram e se alojam no texto. Costumamos
chamar de rubricas essas indicações para a execução, porque se escrevem
com letras vermelhas (latim rubrum). São do tipo: “Os oficiantes avançam
pelo centro, param e fazem genuflexão nas grades do presbitério; o povo de
pé responde unanimemente ...”. Há frases no salmo que soam a rubricas:
“Diga a Casa de Aarão” (o mestre de cerimônias dando a entrada),
“organizai uma procissão”.
A execução litúrgica, além de entrar no texto como rubricas, configura
o texto com suas repetições, sua alternância de solo e coro, suas mudanças
de pessoa. O salmo é um texto que pede ser executado em movimento.
Nenhum salmo do saltério ostenta tão claras pegadas de execução litúrgica.
— O conteúdo é uma ação de graças individual. Como o pede o gênero,
o orante recorda sua situação difícil, quase desesperada, e como então pediu
ajuda ao Senhor; este o escutou e livrou prodigiosamente; por isso quer dar
1412
Salmo 118
graças publicamente ao Senhor e contar a todos o que fez seu Deus. Isolando
no salmo os versículos pronunciados pelo orante em primeira pessoa,
obtemos um texto clássico de ação de graças. Faça-se a prova lendo seguidos
os versículos 5-7.10-14.17-19.21.28. Ocupam quase um terço do salmo e, se
se descontam repetições, quase a metade.
A ação de graças ou o relato são acompanhados pelo coro da assem­
bléia, que exalta as qualidades do Senhor, suas ações gloriosas, ou pondera
o valor da confiança. Ou seja, a ação de graças do orante é o que provoca e
define as intervenções corais. Em termos musicais, este salmo tem bastan­
te de cantata, sem chegar a oratório.
—
A situação do salmo é típica, elude a concretude individual. O perigo
é descrito em imagens que generalizam; os inimigos podem ser internos e
externos; os que desprezaram a personagem estão representados na figura
de arquitetos que calibram o valor de uma pedra. Não faltaram tentativas de
buscar ao salmo conjuntura histórica precisa: por exemplo, a consagração do
templo na volta do desterro no ano 515, ou a reconstrução das muralhas no
ano 444, ou a vitória de Judas Macabeu no ano 164... Semelhantes tentativas
parecem-se com o exercício dos antigos autores de dar títulos aos salmos.
Outros buscaram como situação alguma festividade litúrgica: uma das
registradas nos calendários bíblicos (Lv 23; Dt 16), ou uma das postuladas
pelo comentador. Essas suposições valem mais para o uso do salmo do que
para descrever seu destino original. No curso da exegese tropeçaremos com
indícios de diversa entidade. As principais questões que nos interessam
agora são a identificação do orante e a descrição da cerimônia.
b) A personagem
Tratando-se de textos literários e poéticos, é importante distinguir a
personagem dentro do poema do que lhe corresponde na realidade, seu
referente. Pois bem, a personagem que fala em primeira pessoa é indivíduo
importante, reconhecido pela comunidade, que superou com a ajuda de
Deus perigo grave e vem dar graças publicamente. Em torno dele agrupamse outras pessoas, algumas identificáveis expressamente, outras facilmen­
te deduzíveis por informação bíblica externa ao salmo.
A quem corresponde historicamente essa personagem? Com essa per­
gunta passamos da significação à identificação. Repassemos opiniões. E um
rei, se estamos em tempos da monarquia: muitos reis oferecem-se como can­
didatos. E uma personagem-chave depois do desterro: não faltam os candida­
tos. E o povo repatriado, uma coletividade representada no salmo por uir
indivíduo. A maioria dos comentadores inclinam-se a uma datação pós-exílica do salmo, o que favorece, ainda que não imponha, uma leitura coletiva.
Estudo global
1413
Em qualquer caso, o salmo desprende-se de seu contexto original e
oferece-se como texto dipsonível para outras personagens importantes em
situações análogas. Isso é mais importante que a identificação individual
exclusiva. Se se tratou de Zorobabel, ponhamos um caso, o importante é que
o puderam recitar sem forçá-lo outras personagens.
c) A cerimônia
Trata-se de fazer a distribuição de papéis e descrever as etapas
sucessivas da cerimônia. Algumas rubricas, como vimos, foram conserva­
das: “diga ... diga
Outras podem-se inferir razoavelmente: quem diz
“organizai a procissão”? — O mestre de cerimônias. Quem pronuncia o
comentário “mais vale...”? (8-9). Quem chama a atenção sobre os “gritos de
vitória’? (15). A petição (25) é pronunciada pela personagem ou pela comu­
nidade? — Não sabemos, já que segue uma bênção para ele e para “vós”.
Sem arredar-se perante tanta lacuna em nossa informação, alguns
comentadores lançam-se para reconstruir o livrete da execução de tantos
pormenores, num trabalho da imaginação com o que esperam atingir a
cerimônia histórica real. Então, é preciso renunciar a imaginar a cerimônia
litúrgica? — Não necessariamente; o que faz falta é uma sã hermenêutica
da imaginação.
Quando lemos textos poéticos, segundo nossa sensibilidade e treina­
mento, imaginamos cenas, vozes, figuras, paragens ... “Ali ficou dormindo,
e eu o afagava, e o vento de cedros ar dava... O ar da ameia, enquanto seus
cabelos eu acariciava, com sua mão serena em meu pescoço tocava ...”
Imaginar-se um cenário avilense ajuda a compreender o poema e a deixarse envolver por sua sugestão, ainda que não sirva para identificar a
paragem que João da Cruz imaginava. A imaginação ajuda a concretizar,
infunde vida aos textos. Não se deve temer a imaginação, mas deve-se
conhecer sua função precisa.
Imaginemos os coros ou grupos bem organizados, a personagem que
avança pelo centro, que se detém e fala em voz alta; ouvir como lhe
respondem em coro os presentes, escutar vozes que chegam de fora; ver
como pára a personagem diante de grande porta, e aí se desenvolve breve
diálogo, ver as filas da procissão com ramos verdes, ouvir o canto alternado
do estribilho ... Imaginando não damos com a cena primigênia, mas
recuperamos um texto vivo e atual. As indicaçõses que farei na exegese não
pretendem senão ajudar esse exercício da imaginação do leitor.
Uma última vantagem desta proposição é que permite tomar o texto
como livrete para execuções diversas e legítimas. O que constitui uma
maneira de apropriação.
1414
Salmo 118
d) Composição e estilo
— Dois fatores determinam a composição ou desenvolvimento do
salmo, e são os indicados: a cerimônia litúrgica com suas fases, o relato e
ação de graças da personagem. E difícil separá-los porque se entrelaçam
irregularmente.
E patente a grande inclusão por repetição, do estribilho, no começo e
no fim (1.29). Os versículos 2-4 dizem-nos que a segunda parte do estribilho
se repete mais vezes: só nestes três versículos? ou periodicamente durante
a cerimônia? E provável que no final, enquanto avança a procissão, perso­
nagem e coro repitam alternando o estribilho.
Por dirigir-se aos destinatários em jussivo, os versículos 2-4 cumprem
a função de invitatório. Por outros salmos sabemos que o invitatório pode
reiterar-se em ondas sucessivas.
No versículo 5 começa o relato em primeira pessoa, que se articula em
etapas separadas pelos comentários corais; em todas as suas fases mencio­
nam-se perigo humano e proteção divina.
5-7
8-9
10-14
15-16
17-18
19-21
20-24
25-27a
27b-29
Primeira fase: recorda a súplica e a resposta, e expressa sua
confiança
Responde (um coro?) com duplo enunciado de tipo proverbial.
Segunda fase: pormenoriza o ataque e a libertação.
Respondem vozes exaltando o Senhor.
Terceira fase: interpreta a tribulação como escarmento.
Cerimônia diante da porta: pede entrada, ela é concedida, dá
graças (cede a palavra a outros).
Reflexão sobre o acontecido interpretando-o como intervenção do
Senhor.
Nova cerimônia: súplica e bênção.
Procissão conclusiva com alternativa de vozes.
O desenvolvimento em esquema numérico, separando na linha supe­
rior a voz do orante principal:
5-7.
1.2-4.
10-14.
8-9.
17-19.
15-16.
20.
21.
28.
22.24.25.26.27.
29
Houve quem contasse as vezes em que se pronuncia o nome de Yhwh:
27 vezes = 3 x 3 x 3 ; nas intervenções atribuídas ao orante, 12 vezes.
— O estilo do salmo distingue-se pelo uso da repetição em diversas
formas; é quase um mostruário (veja-se E. Zurro, Procedimientos iterativos,
índice bíblico). Temos a repetição pura de sintagmas ou frases, em forma
litânica e antifonal: “porque é eterna sua misericórdia”, “é melhor ...”, “em
nome do Senhor”, “eia, Senhor ...”. A repetição de verbo em infinitivo e
forma finita: dhh dhytny, ysr ysrny (13.18); repetição com mudança de
1415
Exegese
forma: sbwny sbbumy, brwk brknwkm (11.26); repetição em diálogo: “porta
... entrar... porta... entrar” (19-20); repetição próxima: “salvação” (14b. 15a),
“fez-ações” (15b. 17). Repetições de sons em rima (25ab); de sons em
aliteração (6-7). E outras que se poderiam acrescentar.
—
No campo imaginativo não há muito que apontar. O orante parece
pensar em situação bélica: cerco ou estreitamento, cerco apertado, pressão ou
empurrões para derrubá-lo de sua posição. E curiosa a combinação de duas
comparações heterogêneas: um enxame de abelhas cercando e perseguindo
uma pessoa e fogo de sarças que arde efemeramente. A celebração da
cerimônia no templo sugere a comparação da pedra angular ou de remate.
5. Exegese
1.
Também pode-se traduzir: “porque sua lealdade é perdurável”
referindo hsd ao contexto da aliança. Na restauração anunciada por Jr
33,11 cita-se o versículo com uma variante, aplicando-o à repatriação:
A voz dos que cantam ao entrar
com ação de graças no templo:
Dai graças ao Senhor dos Exércitos, porque é bom,
porque é eterna sua misericórdia.
Porque mudarei a sorte desta terra,
fazendo-a como antes, diz o Senhor.
Da citação não se pode deduzir nada de preciso para datar o salmo,
porque a fórmula litúrgica é de uso múltiplo:
lC r 16
2Cr 5,13
Esd
7,3
3,11
celebração da transferência da arca por Davi
na dedicação do templo
quando desce fogo do céu, a glória enche o templo
na restauração do altar e do culto
No saltério: 100,5; 106,1; 107,1; em parte e com variações: 52,11; 54,8;
63,4; 69,17.
2-4. Veja-se o SI 115,9-11.
5. Encontramos a mesma oposição “estreiteza / largura” que nos SI 4,2
e 25,17; vejam-se também SI 18,2 e 31,9. O símbolo espacial admite
múltiplas especificações; o resto do salmo favorece o campo militar.
6. E normal em oráculos de salvação que o Senhor inculque “não temas”.
Aqui o orante adianta-se com a resposta, porque sente que o Senhor está do
seu lado e consigo. A afirmação “não temo” é típica, ainda que não exclusiva,
do saltério: no singular (SI 3,7), com imagem pastoril (23,4), com importante
desenvolvimento (SI 27), no plural (46,3) e em outros. É enfática a oposição:
o Senhor / um homem: yhwh ly / ly ’dm (nos extremos do versículo).
1416
Salmo 118
7.
O começo repetido (anáfora) atrai a atenção sobre o jogo dos doi
verbos em primeira pessoa: ’y r’ ’r’h - temo, verei.
8-9. Para o paralelismo homem / príncipes, veja-se o SI 82,7. Homem
eqüivale a simples homem. Refugiar-se pode ter conotação militar, como se
o templo fosse um baluarte que oferece asilo.
10. kol goyim (sem artigo) pode significar “toda classe de gente” ou
“nações de toda classe”. Parece hipérbole para sugerir a multidão, da
mesma forma que a próxima imagem do enxame.
11. Chegamos ao discutido verbo ’mylm, de raiz que em sentido próprio
significa circuncidar. Eerdmans toma-o ao pé da letra imaginando uma
circuncisão de prosélitos; mas o contexto pede um grupo hostil, e não um
grupo de convertidos devotos; de mais a mais, não sabemos que se invocasse
o Senhor nesse rito. Outros o tomam literalmente, como sinal de vitória, e
citam a famosa ou lendária façanha de Davi, portador de duzentos prepúcios
de filisteus matados em combate como dote para a boda com a princesa
(ISm 18,21-27). Mas o relato não fala de costume, mas de prova excepcional
que Davi deve apresentar. De outro lado, o verbo mwl usa-se sempre em qal
ou nifal. A que corresponde que o hifil significa “fazer circuncidar”: em vida?
para quê? Prefiro tomá-lo como imagem: ou recordando proverbialmente a
façanha de Davi, ou jogando com o verbo sbb e significando: “desprendiame, defazia-me deles, sacudi-me-os”.
12. A imagem das abelhas é eficaz: nós a lemos já em Dt 1,44. Os
antigos e alguns modernos traduzem por “vespas, tavões” o sr’h de Ex 23,28;
Dt 7,20 e Js 24,12, que outros traduzem por “pânico”.
13. Em sentido próprio, dhh significa dar um empurrão para que um
muro ou um homem perca o equilíbrio, abandone seu posto, sua posição, sua
postura. Encaixa-se em contexto militar, da mesma forma que o “auxílio”
ou reforço do Senhor.
15.b ’hly çdyqym: ambas as palavras prestam-se a várias interpreta­
ções. Alguns pensam que essas “tendas” de campanha são outra designa­
ção das choças ou cabanas erigdas no festa outonal de sukkot; outros
imaginam um acampamento militar fora do templo: fora da cidade?; suas
vozes chegariam de longe. Mas “tendas” é designação clássica das mora­
das ou habitações dos israelitas; metáfora que alude às andanças pelo
deserto ou à era patriarcal (por exemplo, ISm 13,2; lRs 12,16). Dado que
a cerimônia se celebra no templo, podemos imaginar que as vozes chegam
da cidade; mas não está a comunidade reunida no templo?
çdyqym em contexto militar pode designar os “vencedores” (Is 49,24);
em contexto judicial, os inocentes (2Rs 10,9); pode designar toda a
comunidade (Is 60,21). No salmo prepara o diálogo diante da porta de 1920 .
Exegese
1417
15b-16.0 texto do canto é elaboração de Ex 15,2.
17-18. Em certo sentido, este é um ponto culminante por duas razões:
porque leva a libertação ao limite da vida e da morte, e porque interpreta
o grave perigo como “educação” dirigida por Deus.
Na tradição do Deuteronômio, viver ou continuar vivendo depende da
observância dos mandamentos. Neste salmo, como no SI 71, o homem
continua vivendo para contar as ações de Deus:
71,20
Fizeste-me passar por perigos,
muitos e graves;
far-me-ás reviver elevando-me
das furnas da terra.
Eu te darei graças, Deus meu ...
A “educação” pela prova e pelo sofrimento é tradicional. Dt 8,5 oferece
uma formulação clássica: “para que reconheças que o Senhor teu Deus te
educou como um pai educa o seu filho”. Jeremias fala de “corrigir com
medida” (Jr 10,24; 30,11; 46,28). Projetando a luz da libertação sobre o
tempo da tribulação, essa pode revelar a atividade de Deus: o processo
inteiro é controlado por ele. Pela ação de Deus esteve à morte, pela ação de
Deus agora está vivo; agora, vivo, pode contar as ações de Deus.
19-20. Chega o momento de passar a outra zona, ao âmbito da ação de
graças formal, e simboliza-se a passagem atravessando uma porta ritual:
a Porta da Inocência ou da Vitória: só os vencedores / inocentes podem
atravessá-la. O rito parece-se com as “liturgias de entrada” executadas na
porta externa do templo (SI 15 e 24; Is 33,14-16). A escatologia de Is 26,23 imita o presente versículo:
Abri as portas para que entre um povo justo
que mantém a lealdade:
seu ânimo está firme e conserva a paz
porque confia em ti.
21. A ação de graças sintetiza os dois mementos do processo, aflição e
salvação; também como Dt 8,2.16: “afligiu-te para te provar”. Com a mesma
lógica canta Is 12,1: “Eu te dou graças porque, estando irado contra mim,
cessou tua ira e me consolaste”.
22-23. Uma reflexão coral em imagem arquitetônica. Os “construto­
res”, arquitetos ou mestres-de-obra avaliam a qualidade de cada pedra
para construir a cidade, as muralhas, o templo... Descartam uma pedra que
não lhes parece de boa qualidade ou está mal talhada, ou não se encaixa na
construção. Algum tempo depois, Deus revela o valor único daquela pedra,
que será usada como ângulo de união de duas alas do edifício, da muralha,
ou como remate do templo. Consulte-se em lRs 6 os trabalhos de construção
1418
Salmo 118
do templo, especialmente o versícuo 7; também Zc 4,7 referido a Zorobabel:
“Ele tomará a pedra de remate entre aclamações: Que bela! Que bela!”.
24. Não é um dia que “tenha feito” o Senhor: ele os faz a todos ou
nenhum, faz o sol e a luz para que haja dia. O verbo ‘sh usa-se aqui com o
valor absoluto de agir, intervir. É um dos dias históricos em que o Senhor
atuou de modo especial; outro modo de dizer “dia do Senhor” em sentido
favorável. Tampouco é um dia cíclico (Eclo 33,7-9), mas histórico. A
comunidade celebra e festeja o Senhor, não o dia.
25. hwsy‘h rí conserva ainda o valor de imperativo enfático (como em
2Sm 14,4 e 2Rs 6,26). Mais tarde se converte em simples aclamação,
apocopada em Hosana.
26-27a. A distribuição sintática correta da frase é: ao que vem / entra
bendizemos invocando o Senhor / em nome do Senhor; a invocaçao forma
parte do bendizer, não do vir ou entrar. A personagem não vem “em nome
de Deus”, representando a Deus. A benção, como nos ensina Nm 6,23-27.
pronuncia-se invocando o nome de Yhwh: “Assim invocarão meu nome
sobre os israelitas, e eu os abençoarei”; e o mesmo texto fundamental
menciona a luminosidade do rosto divino: “o Senhor vos mostre seu rosto
radiante”. O nome divino pronuncia-se três vezes na breve fórmula. A
bênção é primeiro pessoal, depois comunitária.
27.
O verbo usado para pôr em marcha a procissão é ’sr que significa
ligar, sujeitar: talvez seja fórmula convencional. Os ramos nos recordam
espontaneamente os da festa das tendas (Lv 23,40; Ne 8,15; 2Mc 10,7), mas
não é legítimo afirmar que foram exclusivos dessa festa. Os ramos podem
ser símbolo de vitalidade, ligado a tantas imagens vegetais do AT.
6. Transposição cristã
Este é o salmo pascal por excelência. Assim nos ensina a tradição a
partir do NT. Por isso começaremos reunindo as citações expressas e as
alusões claras.
O versículo 22 sobre a pedra rejeitada cita-se como conclusão na
parábola dos vinhateiros: Lc 20,17 cita só o versículo 22. Mt 21,42 e Mc
12,10s citam também o versículo seguinte, segundo a versão grega, que
aplica o feminino à pedra: “é o Senhor quem a fez, e parece-nos maravilho­
sa”. A citação desborda a parábola, que menciona só o assassínio do filho.
Em seu discurso perante o Grande Conselho, Pedro aplica um versículo do
salmo a Jesus, “a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou da
morte”; e explica em que consiste ser a “pedra angular”: “a salvação não está
em nenhum outro; ou seja, sob o céu não temos os homens outro diferente
Transposição cristã
1419
dele que devamos invocar para nos salvar” (At 4,11-12). Em sua carta,
Pedro cita o versículo 22 unindo-o a Is 28,6 (lPd 2,6-7).
Os três sinóticos e também João citam 25-26a como grito da multidão
que recebeu com ramos a Jesus quando chegou a Jerusalém (Mt 21,9; Mc
11,9s; Lc 19,18; Jo 12,13). A frase hebraica já mudou de sentido, e agora é
Jesus “o que vem em nome do Senhor”; “hosanna” já é mera exclamação.
Mateus cita outra vez o v. 26a na lamentação por Jerusalém (Mt 23,39). Ap
7,9 apresenta uma multidão “com palmas nas mãos”.
Nossa páscoa é a memória da morte e ressurreição de Jesus Cristo, e
o salmo ajuda-nos de modo admirável a meditar suas etapas principais. O
enxame de inimigos que o cercam e tentam derrubá-lo; enquanto ele
permanece firme, não confiando em homens e príncipes, mas invocando o
seu Pai. Deus quis prová-lo com a tribulação até deixá-lo morrer, não o
entregou, porém, ao poder onímodo da morte, mas o ressuscitou. Pelo que
pode ele dizer: “não morrerei para sempre, mas viverei” (cf. Rm 6,9).
Glorificado, Jesus ascende entrando no santuário celeste (cf. At 9), aí
entrando como vencedor.
Como Lucas dramatizou a ascensão, mas não a entrada no céu,
encarregaram-se os pregadores de imaginar a cena aduzindo também a
segunda parte do salmo 24, a invocação às portas.
Agora o Messias glorificado converteu-se na chave do novo templo, que
é sua Igreja. Ele encabeça nossa liturgia de ação de graças, no céu e em
nossa celebração eucarística. Com ele e por ele damos graças ao Pai,
“porque é bom” (cf. Mt 19,17 par), “porque é eterna sua misericórdia”. E
agora, como corpo seu, podemos apropriar-nos do salmo.
Com efeito, dois textos do NT aplicam o salmo aos cristãos. Parece soar
em 2Cor 6,9 uma alusão ao versículo capital (17a). Paulo diz dos apóstolos:
“somos os moribundos que estão bem vivos, os punidos nunca sentenciados
à morte...” Pelo fim da carta aos Hebreus (13,6), o autor exorta os cristãos:
"De modo que podemos dizer animosos: O Senhor está do meu lado: não
temo o que possa fazer-me um homem”.
Salmo 119*
1.
Texto
1
2
3
4
5
6
7
8
9
Felizes os de conduta irrepreensível,
que seguem1 a vontade do Senhor.
Felizes os que guardam seus preceitos
e o buscam de todo o coração.
Que não cometem iniqüidade
e seguem seus caminhos2’
Tu mandaste que teus decretos
se observem exatamente.
Oxalá estejam firmes meus caminhos
para cumprir tuas ordens.
Então não ficarei defraudado
ao fixar-me em teus mandatos.
Dar-te-ei graças com coração sincero
ao aprender teus justos mandamentos.
Hei de guardar tuas normas:
não me abandones de todo.
Como limpará um jovem sua vereda1
?
— observando tua consigna.
*
Nota sobre a tradução. O hebraico usa oito termos básicos, mal diferenciados, que se intercambiam
sem dificuldade: tôra, miçwot, mishpatim, ‘edot, piqqudim, huqqim, dabar, ’imra. Em português dispomos
de repertório mais amplo, de que entrescolho: lei, preceito, decreto, estatuto, mandato, mandamento, ordem,
disposição, norma, regra, consigna, diretiva, instrução. Isso suposto, estabelecemos algumas correspon­
dências de princípio, sem renunciar a mudanças exigidas ou aconselhadas em casos particulares:
tôra
vontade / lei
miçwot
mandatos
mishpatim
mandamentos / disposições
huqqim
estatutos / ordens
piqqudim
decretos / normas
‘edot
preceitos / regras
dabar
palavra / consigna
’imra
promessa / instrução
(Para identificar a palavra empregada em hebraico é preciso consultar o texto original).
1precedem
2 diretivas
Salmo 119
10 Eu te busco de todo o coração:
não me desvies de teus mandatos.
11 Guardo no coração tua promessa
para não pecar contra ti.
12 Bendito és, Senhor,
ensina-me tuas normas.
13 Meus lábios recitarão
tudo o que manda tua boca.
14 No caminho de teus preceitos me alegro
mais do que com qualquer fortuna.
15 Meditarei teus decretos
e fixar-me-ei em tuas veredas.
16 Tuas ordens são minha delícia:
não me esqueço de tua palavra.
17 Cuida de teu servo, e viverei
para cumprir tua palavra.
18 Aclara meus olhos, e contemplarei
as maravilhas de tua lei.
19 Sou peregrino na terra:
não me ocultes teus mandatos.
20 Meu alento consome-se desejando
continuamente teus mandamentos.
21 Censuraste os arrogantes:
malditos os que se desviam de teus mandatos!
22 Retira de mim afronta e desprezo,
porque guardo teus preceitos.
23 Ainda que nobres se sentem para criticar-me:
teu servo medita tuas ordens.
24 Também teus preceitos são minha delícia,
são meus conselheiros.
25 Meu alento está pegado ao pó:
dá-me vida por tua palavra.
26 Contei-te minhas andanças, e me respondeste:
ensina-me teus estatutos.
27 Instrui-me na direção de teus decretos,
e meditarei tuas maravilhas.
28 Meu alento desfalece de pena:
conforta-me3com tua palavra.
3consolida-me
1421
1422
Salmo 119
29 Afasta de mim o caminho falso
e dá-me a graça de tua vontade.
30 Escolhi o caminho seguro
dispondo de teus mandamentos.
31 Apego-me a teus preceitos, Senhor,
não me defraudes.
32 Pelos caminhos de teus mandatos correrei
quando me alargares o coração.
33 Ensina-me, Senhor, o caminho de teus estatutos,
e o seguirei pontualmente.
34 Ensina-me a cumprir tua vontade
e a observá-la de todo o coração.
35 Encaminha-me pela vereda de teus mandatos,
porque a quero.
36 Inclina meu coração para teus preceitos
e não ao lucro.
37 Afasta meus olhos de olhares vazios,
em teu caminho dá-me vida.
38 Cumpre a teu servo a promessa
que fizeste a teus fiéis.
39 Afasta-me da afronta que temo;
teus mandamentos são bons.
40 Olha como anseio por teus decretos;
com tua justiça dá-me vida.
41 E que me chegue tua misericórdia, Senhor,
tua salvação segundo tua promessa,
42 e poderei responder ao que me ultraja
que confio na tua palavra.
43 Não afastes de minha boca a palavra autêntica;
pois espero em teus mandamentos.
44 Quero cumprir continuamente tua vontade,
para sempre e eternamente.
45 E seguirei um caminho largo
porque busco teus decretos.
46 E falarei de teus preceitos diante de reis
sem sentir vergonha.
47 E serão minha delícia teus mandatos
que tanto amo.
48 E levantarei as mãos para ti
e meditarei tuas normas.
Salmo 119
49 Recorda a palavra que deste a teu servo,
da qual fizeste minha esperança.
50 Este é meu consolo na aflição:
que tua promessa me dê a vida.
51 Insolentes insultam-me gravemente:
eu não me afasto de tua vontade.
52 Recordando teus antigos mandamentos,
Senhor, fiquei consolado.
53 Domina-me a indignação pelos malvados,
que abandonam tua lei.
54 Tuas normas eram minha música
em casa estrangeira.
55 De noite pronuncio teu nome, Senhor;
e velando, tua vontade.
56 Esta foi minha tarefa:
observei teus decretos.
57 Minha porção é o Senhor. Resolvi
observar tuas consignas.
58 Aplaco-te de todo coração;
tem piedade de mim segundo tua promessa.
59 Calculei meu caminho
para voltar meus passos a teus preceitos.
60 Dei-me pressa, não me dei largas,
para observar teus mandatos.
61 Os laços dos malvados me envolviam;
não me esqueci de tua lei.
62 A meia-noite levanto-me para te dar graças
por teus justos mandamentos.
63 Junto-me a todos os teus fiéis
que guardam teus decretos.
64 De tua bondade, Senhor, está cheia a terra:
ensina-me tuas normas.
65 Trataste bem a teu servo,
Senhor, segundo tua palavra.
66 Ensina-me a discernir e entender,
porque confio em teus mandatos.
67 Antes do escarmento, eu não o advertia,
mas agora cumpro tua instrução.
68 Insolentes enlameiam-me de calúnias;
eu guardo de todo coração teus decretos.
1423
1424
Salmo 119
69 Bom és tu e fazes o bem:
ensina-me tuas normas.
70 Seu coração é espesso como gordura;
eu me deleito em tua vontade.
71 Fez-me bem o escarmento:
assim aprendi tuas ordens.
72 Mais vale para mim a lei de tua boca
que mil moedas de ouro e prata.
73 Tuas mãos me fizeram e me afirmaram:
instrui-me para que aprenda teus mandatos.
74 Teus fiéis verão com alegria
que esperei em tua palavra.
75 Reconheço, Senhor, que teus mandamentos são justos,
que com razão me afligiste.
76 Seja tua misericórdia meu consolo
como o prometeste a teu servo.
77 Que me alcance tua compaixão, e viverei,
porque tua lei é minha delícia.
78 Que fracassem os insolentes
quando me desprestigiam com mentiras;
eu meditarei em teus decretos.
79 Voltem a mim teus fiéis
tomam em consideração teus preceitos.
80 Que meu coração se aperfeiçoe com tuas normas,
e assim não fracassarei.
81 Meu alento consome-se por tua salvação:
espero em tua palavra.
82 Meus olhos consomem-se por tua promessa:
quando me consolarás ?
83 Quando estava como odre enfumaçado,
não me esquecia de tuas normas.
84 Quantos anos me restam?
Quando me farás justiça de meus perseguidores ?
85 Cavam covas para mim insolentes
que não se ajustam ã tua lei.
86 Todos os teus mandamentos são legítimos;
sem razão me perseguem, socorre-me.
87 Quase deram comigo na tumba,
mas eu não abandonei teus decretos.
Salmo 119
1425
88 Segundo tua misericórdia, dá-me vida,
e guardarei a instrução de tua boca.
89 Tua palavra, Senhor, no céu
está firme para sempre.
90 De geração em geração tua fidelidade:
firmaste a terra, e permanece.
91 Por tua disposição permanecem até hoje;
o universo está a teu serviço.
92 Se tua vontade não fosse minha delícia,
teria perecido em minha aflição.
93 Jamais me esquecerei de teus decretos,
pois com eles me deste vida.
94 Eu sou teu, salva-me,
pois consulto teus decretos.
95 Os malvados espreitavam-me para perder-me,
eu meditava em teus preceitos.
96 Eu vi o termo de todo o acabado;
teu mandato dilata-se sem termo.
97 Com amo tua vontade!
Medito-a todo dia.
98 Teus mandamentos fazem-me mais hábil que meus inimigos,
sempre vão comigo.
99 Sou mais douto que todos os meus mestres,
porque medito em teus preceitos.
100 Sou mais sagaz que os anciãos,
porque observo teus decretos.
101 Desvio meus pês de todo mau caminho,
para observar tua palavra.
102 Não me afasto de teus mandamentos,
porque tu me instruíste.
103 Quão doce é tua promessa ao paladar!
mais que mel á boca.
104 Reflito sobre teus decretos,
por isso detesto toda vereda falsa.
105 Tua palavra é lâmpada para meus passos,
luz em minha vereda.
106 Jurei e cumprirei:
observar teus justos mandamentos.
1426
107 Sinto-me gravemente afligido:
dá-me vida, Senhor, por tua palavra.
108 Aceita, Senhor, minha oferta generosa
e ensina-me teus mandamentos.
109 Continuamente arrisco a vida,
mas não me esqueço de tua vontade.
110 Os malvados me põem armadilhas:
eu não me desvio de teus decretos.
111 Teus preceitos são minha herança perpétua,
são o gozo de meu coração.
112 Inclinei meu coração para cumprir tuas normas
sempre e cabalmente.
113 Detesto os que se degarraram
e amo tua vontade.
114 Tu és meu refúgio e meu escudo:
espero em tuas palavras.
115 Afastai-vos, perversos, de mim,
e guardarei os mandatos de meu Deus.
116 Sustenta-me com tua promessa, e viverei,
não deixes frustrar-se minha esperança.
117 Dá-me apoio, e estarei a salvo,
e fixar-me-ei continuamente em tuas normas.
118 Avalias os que se afastam de tuas normas
como mentira e engano.
119 Avalias como escória os malvados,
por isso amo teus preceitos.
120 Eriçam-me os pelos com teu terror
e assustam-me teus mandamentos.
121 Pratico a justiça e o direito:
não me entregues a meus opressores.
122 Sê fiador de teu servo,
para que não me oprimam os insolentes.
123 Consomem-se-me os olhos por tua salvação,
por tua promessa de justiça.
124 Trata teu servo com misericórdia
e ensina-me tuas normas.
125 Sou teu servo, instrui-me,
e compreenderei teus preceitos.
126 É hora de agir, Senhor,
transgrediram tua lei.
Salmo 119
Salmo 119
127 Por isso amo teus mandatos
mais que o ouro mais puro.
128 Por isso sigo direito tuas normas
e detesto toda vereda enganosa.
129 Admiráveis são teus preceitos:
por isso os observa minha alma.
130 A explicação de tua palavra ilumina,
instrui os inexpertos.
131 Abro bem a boca para respirar
com ânsia de teus mandatos.
132 Volta-te a mim com piedade,
133 Firma meus passos com tua promessa,
não me entregues ao poder de nenhuma maldade.
134 Livra-me da opressão humana,
e guardarei teus decretos.
135 Mostra a teu servo teu rosto radiante,
ensina-me tuas normas.
136 Arroios descem de meus olhos
pelos que não guardam tua lei.
137 Justo és tu, Senhor,
reto é teu mandamento.
138 Prescreveste preceitos justos,
sumamente estáveis.
139 Consumo-me de zelo
porque meus inimigos se esquecem de tuas palavras.
140 Tua promessa é acrisolada,
e teu servo a ama.
141 Sou pequeno e desprezado,
mas não me esqueço de teus decretos.
142 Tua justiça é justa para sempre,
tua vontade é autêntica.
143 Assaltam-me angústia e aperto;
teus mandatos são minha delícia.
144 Teus preceitos são justos para sempre;
instrui-me, e viverei.
145 Clamo de todo o coração: responde-me, Senhor,
guardarei tuas normas.
146 Eu te chamo: salva-me,
e observarei teus preceitos.
1427
1428
147 Adianto-me à aurora e peço auxílio
aguardando tuas palavras.
148 Meus olhos adiantam-se às vigílias
meditanto em tua promessa.
149 Escuta minha voz por tua misericórdia,
dá-me vida, Senhor, como é tua norma.
150 Aproximam-se os que perseguem infâmias
e de tua lei se afastam.
151 Perto estás, tu, Senhor,
e todos os teus mandatos são autênticos.
152 Há tempo compreendi que estabeleceste
teus preceitos para sempre.
153 Olha minha aflição e livra-me,
pois não esqueço tua vontade.
154 Defende minha causa e resgata-me,
por tua promessa dá-me vida.
155 Longe fica dos malvados a salvação,
pois não consultam tuas normas.
156 Grande é tua compaixão, Senhor,
dá-me vida segundo tua norma.
157 Muitos são os inimigos que me perseguem,
eu não me afasto de teus preceitos.
158 Vendo os renegados, sentia asco,
porque não observam tuas instruções.
159 Olha como amo teus decretos;
Senhor, por tua misericórdia dá-me vida.
160 O compêndio de tua palavra é a verdade,
é eterno teu justo mandamento.
161 Príncipes me perseguem sem motivo;
meu coração treme por tuas palavras.
162 Eu me alegro por tua promessa,
como quem encontra rico butim.
163 Detesto e aborreço a mentira,
amo tua vontade.
164 Sete vezes no dia te louvo
por teus justos mandamentos.
165 Muita paz têm os que amam tua lei,
nada os faz tropeçar.
166 Aguardo tua salvação, Senhor,
e cumpro teus mandatos.
Salmo 119
Bibliografia
1429
167 Minha alma guarda teus preceitos,
ama-os intensamente.
168 Guardo teus preceitos e decretos,
tens presentes todos os meus caminhos.
169 Chegue o meu clamor à tua presença, Senhor,
instrui-me com tua palavra.
170 Que minha súplica chegue á tua presença:
livra-me segundo tua promessa.
171 De meus lábios brota o louvor,
porque me ensinaste tuas normas.
172 Entoa minha língua tua promessa,
porque todos os teus mandatos são legítimos.
173 Que tua mão me auxilie,
pois escolho teus decretos.
174 Anseio por tua salvação, Senhor,
tua vontade é minha delícia.
175 Viva minha alma para louvar-te;
teu mandamento me auxiliará.
176 Extraviei-me como ovelha desgarrada:
busca o teu servo, que não se esquece de teus mandatos.
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J. B. Bauer, Ps 119,105 als Lämpscheninschrift?, ZAW 74 (1962) 324.
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—
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3. Análise filológica
3.
9.
10.
14.
16.
17.
25.
30.
33.
38.
42.
43.
p ‘ly: part Gr Vg.
yzkh: endireita Gr Vg.
tshgny: de shgh desviar-se, de swg / swg afastar-se Gr Vg.
k‘l: lêem m‘l Sir Cast.
’sht‘sh‘\olharei Rashi, deleito-me Qim.
’hyh: pode ter valor final Joüon 116 i.
Todo o versículo imagina um perigo mortal.
shwyty: não me esqueço Gr, desejo Sir.
‘qb: sempre Vg Targ, prêmio Robert.
lyr’tk: abstr por concreto Anderson.
hrpy: pl Gr Vg, talvez coletivo Allen.
tçl: equivale a t’çl afasta Perles Deissler.
Estudo global
1431
49. yhltny: piei anômalo, talvez yhlty BH.
50. nhmty: subst, verbo 2- pess Gr Vg.
58. hnny: lê hyny Sir.
61. hbly: insídias, caterva (ISm 10,10) Jerôn Targ.
67. !‘nh: lêem nifal Gr Vg.
70. khlb: como leite Gr Vg.
71. ‘nyty: lêem 2- pess Gr Vg.
83. qytwr: fumaça, escarcha Gr Vg.
85. krw ... shyhwt: narraverunt fabulationes Vg.
91. hywm: usque hodie Jerôn.
96. tklh: synteleian Gr, consummationem Vg, esperança (aramaico)
Michaelis.
113. s ‘ypym: perversos, ambíguos (lRs 18,21).
117. w ’sh‘h: lêem w’sht‘sh‘ Gr Sir Teod Jerôn Gun Cast.
119. sgym: escória, de swg Gr Vg; hshbt leia-se hshbt Aq Sím Jerôn
Berger.
120. smr: clavis confige Vg.
122. ‘rb: dar fiança (Gn 43,9; Jr 30,21), deleita (Pr 13,19) Sir Targ Qim.
128. kl: de toda classe (Ez 44,3) Ros.
130. pth: imperativo Sir.
133. tshlt: verbo fem com suj masc.
136. ‘I: equivale a Vsh.
139. qn’ty: suf 2- pess Sir.
143. Tríplice aliteração em mç-,
158. w’tqwtth: contender (aramaico) Targ Qim.
172. t‘n: canta (Ez 32,18).
4. Estudo global
Já disse que o salmo mais breve dos saltério e o mais longo estão
separados pela parede do 118: dois versículos diante de 176. Qual abrange
mais? O que se dirige a todas as nações e canta uma fidelidade eterna ou
o que repete 176 vezes sua devoção à lei?
Certo dia, quase seguro depois do desterro, um autor teve uma idéia
peregrina: cantar sua devoção à lei pelo procediemento alfabético em alarde
de virtuosismo. O autor do SI 111-112 mostrou sua habilidade comprimindo
as 22 letras do alfabeto no espaço de onze versículos ou 22 hemistíquios. O
triunfo da brevidade. O autor do SI 119 quer demonstrar sua habilidade
dedicando a cada letra do albebeto oito versículos seguidos. O triunfo da
longitude.
1432
Salmo 119
O resultado literário tem algo de réstia, e para preencher suas porções
o autor está disposto a pôr qualquer coisa que se relacione com seu tema:
a lei. Por isso o salmo começa com bem-aventurança ou macarismo, tem
muita reflexão misturada com petição, exorta ou propõe um programa,
louva e dá graças. Inútil buscar neste produto gênero rigoroso ou coerente.
Porque aqui manda o alfabeto, com seu apetite voraz de oito palavras que
comecem com a mesma letra e produzam sentença significativa. A brevida­
de normal da sentença hebraica e o estilo paratático facilitam o trabalho do
autor.
Muitos comentadores foram generosos neste salmo. Santo Agostinho
lhe dedica 112 páginas (da edição de Brepols), distribuídas em 32 sermões;
Jacquet lhe consagra 80 páginas, Ravasi contenta-se com 64. Tento ser
mais comedido: explicarei alguns aspectos de conjunto, depois comentarei
blocos ou versículos seletos. Farei primeiro observações de tipo formal e
depois comentarei brevemenente alguns conteúdos.
a) O procedimento alfabético
— É simplesmente um acróstico que, em vez de formar palavras com
os começos de versículo, forma um alfabeto ou alefato. O peculiar, e terrível,
do salmo, é que cada letra leva uma estrofe de oito versículos. A técnica é
simples: sendo o tema a lei ou a devoção à lei, o autor toma oito sinônimos
básicos da lei e alguns de reserva, com os quais enche os oito versículos. O
princípio aplica-se com bastante regularidade e com algumas licenças que
não posso chamar de poéticas. Porque de poético o salmo não tem nada; é
um exercício materialmente bem logrado.
As palavras hebraicas escolhidas são: twrh, ‘dwt pqswd hq mçwh
mshpt dbr ’mrh. As oito são tratadas como sinônimos e são praticamente
intercambiáveis. Para traduzi-las, o mais prático é estabelecer uma corrrespondência básica fixa e ater-se a ela no desenvolvimento. Complementar
das oito pode-se considerar drk.
— Há algo mais nesse procedimento tão artificioso e extrínseco? Falei
da função mnemotécnica, quando se trata de casos mais moderados. Não sei
se a seqüência de oito, alguns repetidos, ajuda a memória ou antes a recar­
rega e afadiga.
Outra função do procedimento é demonstrar a perícia artesanal:
suspeito que o autor ficou satisfeito e mesmo orgulhoso de sua façanha. Um
pouco como nossas rimas consoantes ou algumas assoantes: a quantos
rípios obriga, por exemplo, a oitava real em série; inclusive a redondilha ou
o quarteto introduzem palavras de recheio. Nossos poetas e versificadores
conhecem a rima pobre e a rica; até se publicam dicionários de rimas. Algo
Estudo global
1433
assim o escritor do texto bíblico, só que dá atenção ao começo da palavra,
e não ao final como a rima. Pelo que sabemos, o autor não dispunha de
dicionário; tinha que tirar tudo de seus conhecimentos lingüísticos. Muitas
vezes tem que recorrer a soluções pobres, a repetição da mesma palavra ou
raiz. Pensemos no waiv, com tão poucas palavras em seu haver; em
proporção, um tanto como o nosso ene.
— Postos a imaginar, por que temos que pensar em autor único?
Suponhamos que se reuniram 22 mestres e a cada um tocou compor uma
estrofe sobre o tema da 

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