Grande Comentário Bíblico – Salmos 2 – 73-150, Paulus
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Grande Comentário Bíblico – Salmos 2 – 73-150, Paulus
SALMOS II Título original SALMOS II (Salmos 73-150) © Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra), Espanha 1992 Tradução João Rezende Costa Revisão H. Dalbosco e M. Nascimento Em 23 de maio de 1992 morria, aos 46 anos de idade, a professora Cecília Carniti. Grande conhecedora de línguas orientais (acádico, ugarítico, fenício, hebraico, aramaico, siríaco e árabe) e muito versada e interessada em questões gramaticais do hebraico bíblico. Sua colabo ração foi preciosa na análise filológica do primeiro volume e até o salmo 115 do segundo. Nos restantes, ainda que se procure suprir sua ausên cia, haveremos de sentir a falta de sua competência e dedicação. © PAULUS- 1998 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 5084-3066 http://www.paulus.org.br [email protected] ISBN 85-349-1279-3 ISBN 84-7151-668-3 (ed. original) Bibliografia especial para a análise filológica1 * Gramáticas e dicionários J. Barth, Die Nominalbildung in semitischen Sprachen, Leipzig, 1894,2- ed. H. Bauer - P. Leander, Historische Grammatik der Hebräischen Sprache des Alten Testamentes, I: Einleitung. Schriftslehre. Laut- und Formen lehre, Hildesheim, 1965 = Halle, 1922. (BL). W. Baumgartner, Hebräisches und aramäisches Lexikon zum Alten Testa ment, Leiden, 1967. (HALAT). G. Bergsträsser, Hebräische Grammatik, I-II, Leipzig, 1918, 1929. C. Brockelmann, Grundriss vergleichenden Grammatik der semitischen Sprachen, I-II, Berlim, 1908, 1913. C. Brockelmann, Hebräische Syntax, Neukirchen, Kreis Moers, 1956. H. Ewald, Ausführliches Lehrbuch der Hebräischen Sprache des Alten Bundes, Gotinga, 1863, 1~ ed. W. Gesenius, Hebräische Grammatik. Völligumgearbeitet von E. Kautzsch, Leipzig, 1909, 28a ed. (GK). W. Gesenius, Thesaurus philologicus criticus linguae hebraeaeetchaldaeae Veteris Testamenti, I-III, Leipzig, 1829-1853. W. Gesenius - F. 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Mas eu, por pouco tropeçam meus pés, quase resvalaram meus passos, porque invejava os perversos vendo prosperar os malvados. 4 Para eles não há desgostos, seu ventre está são e roliço; 5 não passam as fadigas humanas nem sofrem como os outros. 6 Por isso seu colar é o orgulho e se vestem de traje de violência. 7 Seus olhos assomam entre as carnes e lhes passam fantasias pela mente. 8 Insultam e falam com malícia e desde o alto ameaçam com a opressão. 9 Sua boca se atreve com o céu e sua língua passeia pela terra. 10 Por isso os seguem seus sequazes e deles se abeberam copiosamente. 11 Eles dizem: Acaso vai saber Deus, vai se inteirar o Altíssimo? 12 Assim são os malvados: sempre seguros acumulam riquezas. 13 Então, para que purifico minha consciência E me lavo as mãos como inocente? 14 Por que me contenho todo dia e me corrijo cada manhã? 15 Se eu dissesse que vou falar como eles, renegaria a estirpe de teus filhos. 930 Salmo 73 16 Meditava eu para entendê-lo, mas me foi muito difícil, 17 até que entrei no mistério de Deus e compreendi o destino deles. 18 E verdade: tu os pões no resvadadeiro, os precipitas na ruína; 19 num momento causam horror e terminam consumidos de espantos: 20 como um sonho ao despertar, Senhor, como imagens que se desprezam ao levantar-se. 21 Quando meu coração se amargurava e se me pungiam os rins, 22 eu era néscio e ignorante, era animal diante de ti. 23 Mas eu sempre estarei contigo: seguras minha mão direita, 24 guias-me segundo teus planos e a destino glorioso me conduzes. 25 A quem tenho eu no céu ? Contigo, que me importa a terra? 26 Ainda que se consumam minha carne e minha mente, Deus é a rocha de minha mente, meu lote perpétuo. 27 Sim, os que se afastam de ti se perdem, destróis os que te são infiéis. 28 Para mim o bem é estar junto de Deus, fazer do Senhor meu refúgio e contar todas as tuas ações. 2. Bibliografia G. Kuhn, Bemerkungen zu Psalm 73, ZA W 55 (1937) 307-308. P. A. Münch, Das Problem des Reichtums in den Psalmen 37; 49 und 73, ZAW 55 (1937) 36-46. E. Würthwein, Erwägungen zu 73 Psalm, em FS Bertholet, Tubinga, 1950, 532-549. H. Ringgren, Einige Bemerkungen zum 73 Psalm, VT 3 (1953) 265-272. S. H. Blank, The nearness o fG o d and Ps 73, em To do and to teach, FS Charles Lynn Pyatt, Lexington, 1953, 1-13. Bibliografia 931 R. T. O’Callaghan, Echoes o f Canaanite literature in the Psalmen, V T 4 (1954)164-176. J. Guillet, L ’entrée du juste dans la gloire, Ps 73, BVC 9 (1955) 58-70. H. Birkeland, The chief problems ofP s 73, 17ss, ZA W 67 (1955) 99-103. S. 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Lista alfabética Alonso Birkeland Blank de Boer Caquot Castellino Chester Deissler 61 55 53 68 71 56 77 65 Dijkstra Donner Drijvers Fischer Guillet Illman Jellicoe Koch 76 67 80 63 55 76 55 72 932 Salmo 73 Kuhn Lloyd Luyten Mannati Münch O ’Callaghan Renaud Ringgren 37 65 79 71.72 37 54 79 53 Roifer Ross Schilling Schmitt Sfriso Smith Tournay Würthwein 62 78 61 73 80 74 85 50 3. Análise filológica 1. lysr’l: layyashar ’el Du Gun Graetz Kraus. 2. ntwy: ketib natuy (cf. 2Sm 15,32) ou rftuy (Nm 24,4) referido a w’ny; ou qere natayu GK 75 ou referido a rgly. spkh: ketib shuppeka prov com a antiga desinência da 3®fern, plural; qere shuppeku. 4. Imwtm: ‘ad motam - usque ad mortem eorum (cf. ld‘tw Is 7,15) Ibn Ezra Ros; Targum = non terrentur aut conturbantur propter diem mortis. Dividem lamo tam e o unem ao segundo hemistíquio Hitzig Del Briggs Du Gun Dah Kr. 5. ‘m: com valor comparativo Zorell l.b), DBHE. 6. ‘nqtmw: de ‘nq = cingir, 3g fern sgl + sufixo. shyt: subst constructo regendo hms Hitzig Gun; predicado do complemento (segundo os acentos) Del 7. yç’ : 3a masc sgl diante de sujeito fern pl Joüon 150b. mhlb: dos grossos / gordos (lábios) = aus fetten Lippen Duhm. 8. br’: adverbial Del. 9. shtv: de shtt, alomorfo de shyt GK 67 ee 72 dd. thlk\ cf. Ex 9,23. 10. yshyb: ketib hif, talvez com valor intransitivo, qere qal: volta-se hlm: aqui, quer dizer, à sua mentalidade e conduta Rasi Ros. wmy m l’ : hemerai plereis LXX, dies pleni Vg; a BHS ap propõe ler o sintagma umillehem yamoçu = se sorvem as palavras. Jerôn = et quisplenus invenietur in eis?; Targum = “lágrimas abundantes fluem deles”. 12. wshshlwy ‘wlm = para a construção veja-se GK 128 wx. 14. Ibqrym: adv temporal com valor distributivo (cf. Jó 7,18; Is 33,2) GB 370b DBHE 113-114. 15. kmw: adv modal equivalente de kema Del Dach; cf. E. König, Historischkritisches Lehrgebäude der Hebräischen Sprache, II, 250, Leipzig, 1895; adv temporal wie oft Hitzig. 933 Estudo global 16. hy’ : ketib fem concordando com z’t, qere hw’, masc concordando com ‘ml. 17. ’bynh: coorte, talvez com valor de consequência: e assim Joüon 116 c.i. 18. Imw: com part de acusativo. 20. b‘yr: apocopado por beha‘r = ao despertar-se, intrans. Hitzig com para SI 35,23 com 44,24. 21. wklwty: acusativo de parte. 22. bhmwt: nome sgl, do hipopótamo Hitzig; pl intensivo ou sgl fenício em -ôt Dah. 24. w’hr: adv como SI 68,26. kbwd: acusativo de lugar. 28. sty: GK 73 d. 4. Estudo global a) Gênero literário Este salmo desafia a catalogação e desacredita o afã dos que preten dem classificar com todo rigor e a todo custo. O poeta não é rigoroso e não tem por que se submeter aos rigores da erudição. Há quem pense ser lamentação, sugerindo até mesmo o desterro como ocasião; há quem o considere cântico de ação de graças; outros, porém, dividem-se entre ato de confiança e profissão de inocência. Um pouco de tudo isso arrasta o curso torrencial do salmo. Mas a descrição que melhor lhe cabe é a de meditação sapiencial. O caráter sapiencial é patente pela discussão do problema da retribuição, pelo vocabulário, pelo parentesco com páginas de Jó e Eclesiastes. No entanto, o “sapiencial” é adjetivo; o substantivo é a meditação como forma privilegiada de oração. O que nos conduz à piedade individual mais que à celebração litúrgica. b) Composição Entre uma introdução programática (v. 1) e um epílogo ou conclusão (27s), o corpo articula-se em quatro secções com dois paralelismos de antíteses: I. II. III. IV. 2-12 13-16 17-22 23-26 vida feliz dos malvados. vida desgraçada do orante. destino desgraçado dos malvados. destino feliz do orante. 934 Salmo 73 Apesar dessa aparência simples, obtida por redução a esquema, o salmo tem complexidade pouco freqüente, provocada talvez pelo proble ma que se debate. Para captar essa complexidade e para descobrir como se organiza o sentido, começo analisando alguns sinais estilísticos ou formais. — Partículas e elementos articulatórios. Encontramos ’k em 1.13.18 e w’ny em 2.22.23.28. Essas peças se repartem e funcionam assim: I.2. ’k e w’ny unem a introdução à primeira parte, provocando efeito de surpresa, de objeção: “será assim, mas o que eu sou...”. 13. Outro ’k introduz a segunda parte com uma chamada de atenção e uma volta sobre si mesmo. 18.22. A terceira parte leva ’k quase no começo e w’ny em seu último versículo. 23.28. A quarta parte começa com w’ny, e o epílogo leva outra vez w’ny no versículo final do poema. Assim o último w’ny incorpora-se à inclusão maior de 2 com 28 e forma inclusão menor com 23. Tudo isso produz variado jogo de contrastes e empurra para primeiro plano a pessoa do orante. — Repetição de palavras ou lexemas: 5,14.16. Reptetem-se ‘ml e ng‘ nas duas primeiras partes com valor antitético. II.19. oduplo^yfe / ’ykah sublinha a antítese da primeira com a terceira parte. 9.25. Repetem-se shmym + ’rç na primeira e na quarta parte com função antitética. 12.26. Repete-se ‘wlm em frases antitéticas. 17.24. Contrapõe-se o ’hryt da terceira parte ao ’hr da quarta. 16.22. O d‘t da segunda parte ressoa na terceira. 1.28. Forma inclusão com o termo twb. Ficam assim travadas as diversas secções, de modo não insistente. Os dados são de um lado expressão do debate anterior (o jogo das antíteses), e de outro mostram o esforço para conter e dar forma ao debate. Servem para organizar e articular o sentido. — A luz dessas correspondências e oposições, alguém poderia pensar que uma distância intelectual teria transformado a agitação em esquema, usando as coordenadas eu / eles, agora / no final. Mas o poema não chegou a essa distância última, quase congeladora da paixão. Uma série de elementos resistem à perfeita simetria e à rigorosa regularidade. Não quero dizer que, uma vez obtidas a simetria e a regularidade, o poeta tenha buscado diminuí-la ou dissimulá-la, mas antes que o poema consolida-se antes de chegar ao ponto do esquema perfeito. Estudo global 935 Um dado bem significativo são os versículos 21-22, onde a segunda parte invade por retrospecção a terceira; em outras palavras, na libertação da terceira parte o poeta ainda sente a agitação da segunda. Estes versículos dificultam a divisão lógica do poema, como mostram diversas tentativas dos comentadores. Ademais, a relação temporal entra na quarta parte, e a terceira não é tão perfeita como sugeria a coordenada agora / no final. Pois, se bem que para o malvado haja futuro desgraçado, o honrado antecipa o futuro no presente. O movimento sintático confirma-o. Domina, na primeira parte, a regularidade, descrevendo homens seguros de si mesmos; as partículas produzem um ritmo ou cursus amplo: k i ... k i ... laken ... laken ... hinne. A segunda parte é muito agitada, com mudanças de tempos e partículas: qatal + yiqtol, particípio, ’im ... hinne ... ‘ad. A terceira torna-se mais regular, com a alternância duplicada Deus-eles, Deus-eles. Na quarta retorna a irregularidade sintática. Mas esses dados formais convergentes não são puramente ornamen tais e extrínsecos ao sentido. Eles preparam a análise que segue. c) Problema sapiencial pessoal — É claro que o poema confronta-se com um problema tipicamente sapiencial: a sorte ou o destino de bons e maus. E o problema clássico da retribuição, em perspectiva intramundana e contando com Deus. E preciso ler o SI 37, seguro e ingênuo, como peça de comparação. Os maus se chamam aí rsh’ como em outras partes, o bom toma o nome pouco usado de nqy = inocente. Também é de índole sapiencial a etopéia ou descrição de um caráter ou tipo humano: como o bêbado em Pr 23, o preguiçoso em Pr 24, a tentadora em Pr 7, etc. Sapienciais são uma série de termos formando paradigma: r’h, yd\ d‘t, hshb, byn, b‘r, twkht. — O peculiar do salmo é a intensa personalização do problema sapiencial. Mais que tema de reflexão, é experiência dolorosa e pungente. Lê-se seis vezes a palavra Ibb = coração, mente, em sugestivas associações (1.7.13.21.26): com olhos em 7, com mãos em 13, com rins em 21, com carne em 26. A interioridade expressa-se em termos abertamente corporais, englobando olhares a ações, paixões e imaginações, sentindo a radical unidade do homem. Como peça de introspecção, o salmo é superlativo: este “azedar” da mente, as “pontadas” interiores, a auto-acusação matutina, o desfalecer e consumir-se, as condições potenciais ou irreais em que aflora o diálogo 936 Salmo 73 interior. O orante toma-se como objeto de observação, e busca e cria uma linguagem para expressar a misteriosa intimidade. Pela força de intros pecção, esse salmo compete com muitas páginas de Jó e antecipa muitos escritores espirituais de nossa tradição. Em resumo, se falei de problema pessoal, o adjetivo absorve o subs tantivo.Toda a descrição dos malvados, ou etopéia, entra no salmo como realidade “vista” pelo orante. Fala da realidade tal como a viu e está vivendo. E fácil compreender que todas as interjeições e partículas são expressão e não cálculo intelectual. — Mas a resposta ao problema sapiencial não é sapiencial: é resposta de contemplação. Como mais tarde o Eclesiastes, esforçou-se nosso autor para encontrar a solução por força de indagar e refletir: “eu meditava para entender”; e fracassa. Era necessário o fracasso para que o orante se abrisse a visão nova, não conquistada, mas recebida como dom. A busca foi oração não menos que estudo. Quando na oração o homem declara-se vencido, Deus lhe desvenda os olhos; ou abre suas portas. Soergue-o para olhar em nova perspectiva mais alta e de mais alcance. Deus comunica e comunicase a si mesmo, e o autor dá-nos testemunho de sua última experiência. Notemos os sujeitos das quatro secções: I. II. III. IV. Dominam “eles”, mas, dentro da visão do “eu”, com desprezo de Deus. Domina totalmente o “eu”, em luta e processo até “entrar e compreender”. Domina Deus, na segunda pessoa, determinando o destino “deles”. Intensa união de Deus e “eu”. No salmo, Deus não fala. Num momento reduz-se a uma presença no pronome, sentida imediatamente, mais valiosa do que tudo. Aqui surge o problema da comunicação. Que Deus se comunica efi cazmente ao orante, não resta dúvida; mas comunica-se o autor eficazmen te com os leitores? Não se revela pobre o testemunho da parte quarta comparado com a rica descrição da primeira? O autor de sua parte faz o que pode; o leitor de sua parte pode ficar de fora se não entrar em experiência espiritual semelhante. Em termos puramente intelectuais, o salmo não satisfaz. Mas se o salmo nos faz notar o fracasso do racioncínio, conduz-nos à oração e prepara-nos para a experiência, o salmo cumpre uma função maravilhosa. Escutemos as estrofes da João da Cruz: “Eu não sabia aonde entrava, mas quando me vi ali, sem saber onde estava, grandes coisas entendi; não direi o que senti, pois fiquei não sabendo, toda ciência transcendendo. Exegese 937 Quem ali chega de verdade, de si mesmo desfalece; tudo que sabia com anterioridade, muito baixo lhe parece; e sua ciência tanto cresce, que fica não sabendo, toda ciência transcendendo”. O salmo 73 é oração em voz alta, onde o orante mantém a consciência de si, expressa e tematiza seus afetos, age e fala de sua atividade. Pode converter-se em manual mínimo de oração. 5. Exegese 1. O texto hebraico atual diz: Que bom é Deus para Israel, para os limpos de coração! Ou Israel se identifica em bloco com os de coração puro como outras vezes com os ‘nwym), ou o segundo hemistíquio restringe o alcance do primeiro: “Israel, entenda-se, os limpos de coração”. Com muitos comentadores aceito a correção mínima lyshr ’l / ’Ihym ...: estabelece-se o paralelismo de ’l e ’Ihym, de ishr e bry Ibb (como aparece na tradução). “Israel” seria leitura posterior, nacionalista, apoiada na identidade gráfica de s e sh. O enunciado é aforismo tradicional sobre o trato de Deus com o homem honrado em proceder e atitudes. Aforismo sapiencial que também se interessa pela interioridade do homem e busca seu bem em relação para com Deus. Não usa o nome de Yhwh, mas o genérico e do Deus supremo ’el. Verdade ético-religiosa, repetida em tom ponderativo. Não enunciado pessoal do orante, mas ponto e tema para sua meditação. A maneira de meditar essa verdade pode ter sido a do salmo 37: buscando ilustrações para confirmá-la, apelando à experiência dos anciãos e às bênçãos da aliança. O orante não começa em tom afirmativo e gozoso, mas logo surge a objeção. 2-12. Primeira parte. A objeção brota da experiência pessoal, que lhe ensina o contrário (como a Jó), e pode tanto ou mais que um aforismo tradicional aceito sem crítica. A objeção subministrou a partícula inicial ponderativa para acentuar o contraste (só o salmo 62 começa também por ’k e o apresenta seis vezes em doze versículos). Olhando para si mesmo, vê que não realiza a definição do primeiro versículo: “na exclamação inicial condena-se a si mesmo”, diz Cassiodoro. Por fora, mal mantém passo firme e seguro, por dentro, carcome-o a inveja: tem razão? A experiência pessoal (via) se lhe impõe. Serão essas tentações que surgem na solidão interior da oração e se devem rejeitar energicamente para voltar ao ponto de meditação preparado? 938 Salmo 73 O orante faz o contrário. Mobiliza a fantasia para que projete em su mente a imagem dos malvados felizes. Não lhe basta a síntese decantada de sua experiência, abandona-se a visão plástica e intensa. A imaginação se compraz em contemplar cenas que contradizem a doutrina recebida (algo menos que Jó 21). A fantasia é “a louca da casa”, que torna cada vez mais difícil meditar serenamente sobre o tema. A descrição escolhe detalhes significativos que vai formulando em frases elaboradas. Detalhes visuais, como o corpo (ou pança) roliço, os olhos apenas assomando de uma cova adiposa, o pescoço de que pende a soberba. Escuta suas palavras lançadas desdenhosamente a partir de altivez arro gante; retrata-os no meio do universo, aplicando sua boca blasfema ao céu e varrendo a terra com a língua (como que um urso formigueiro). Também penetra no interior dos malvados, por onde passam fantasias e se nega um Deus que se inteira e retribui. Os malvados formam classe privilegiada, acima da sorte comum dos mortais, e arrastam séquito numeroso de admiradores e seguidores encantados. A descrição é magistral, e está toda a serviço da oração, como peça dialética, e não a serviço da doutrina oficial. O orante pode tirar o resultado da operação e lançá-la diante (hinne) em oposição ao enunciado inicial e programático. As palavras shlwn e shlwy (3 e 12) seguram formalmente a secção; o ‘wlm põe acento definitivo. 2. km‘t e k ’yn, com valor adverbial, tornam a oração irreal ou potencial = faltou pouco, não faltou nada, quase. Literalmente, inclinam-se/desviamse os pés, derramam-se os passos. 3. Recorde-se o conselho de Pr 24,1: Não invejes os malvados nem desejes viver com eles. 4. Os antigos leram uma referência à morte com diversos mati zes: não a temem, não se afligem com sua lembrança (Genebrardo), não sofrem antes ou na morte (Hoenen), não pensam na morte para gozar (Titelmann), etc. O duvidoso ’wl = vigor, ventre?, leram-no com o sufixo com o significado de átrio, vestíbulo (Jerôn), stehen fest wie ein Palast (Lutero). 5. O olhar estende-se a horizonte humano universal: misérias co muns, comenta Genebrardo, Jó 21,23s. 6. A imagem de uma qualidade abstrata como peça de vestir ou de ornamento é bem conhecida, p. ex., Is 11,5: cinturão ou faixa; aqui usa-se um verbo denominativo de colar; como se dissesse: “encolara-os”, adornamse ou ostentam sua soberba como se fosse sinal de dignidade. A Vulgata anulou a imagem: tenuit = sujeitou, Sa possedit = apodera-se. Outros desviaram o sentido: como coleira de prisioneiros pensa Lindolfo de Saxônia, e o cardeal Hugo fala de laço que enreda. Exegese 939 7. O significado de hlb = gordura é indubitável. O duvidoso é se devemos ler “olhos” com o hebraico ou “crimes” com os antigos, LXX e Vg. Mantenho o sentido físico descritivo: de bochechas gordalhudas, os olhos parecem assomar, brotar. Gordura e mesmo obesidade como sinais de bemestar: recorde-se o rei Eglon de Jz 3, ou a descrição de Jó 15,27: porque ia engordando as bochechas e lançando carnes nos lombos, ou Dt 32,15 “engordou meu Carinho e deu coices”; também Jr 46,21; Is 10,16; e o sarcasmo de Tg 5,5. O segundo hemistíquio mantém o caráter descritivo: as imaginações são imagens, antes de ser “afetos” (Vg), pensamentos (Jerôn), hábitos iEutímio), desejos (Dionísio Cartusiano), etc. 8. Desde cima: seja a posição social de riqueza e poder, seja a atitude altaneira. A altura é sua vantagem tática. 9. Céu e terra compõem o universo criado; o céu morada de Deus, a terra herança do homem (SI 115,16). Os malvados, fazendo-se centro por sua arrogância, pretendem abarcar o universo, pelo menos com a língua. O soberbo imperador pretendia escalar o céu (Is 14,13s), ao soberbo do salmo basta colocar a boca, as palavras no céu; não sabe que só a oração humilde alcança o céu. Sua “língua”, suas palavras “passeiam” tranqüilamente pela terra: que sentido podemos dar a essas palavras na era das comunicações planetárias? Pode-se comparar com o SI 12. 10. O texto deste versículo é extremamente difícil. A primeira parte literalmente soa assim: por isso fará voltar seu povo para cá. Sujeito Deus e retorno do exílio? Assim o tentam explicar alguns; mas não se encaixa no movimento do salmo, e explica-se como leve mudança para introduzir também aqui a presença de Israel, “povo seu”. Tomando ‘mw como sujeito e lendo qual yshwb, é seu povo, sua gente os que voltam; hlm é o estilo de vida ou a mentalidade descrita, metáfora espacial induzida pelo verbo. A segunda parte soa literalmente: e águas em abundância são sorvidas para / por eles. Vimos que os antigos leram ymy (dias), prometendo longa vida ao povo que retornou. Lendo o verbo myç / mçç, temos: sorvem água em abundância; metáfora para sugerir a avidez com que sua gente os escuta; veja-se Jó 16,16: “que bebe como água a iniquidade”. Em português dizemos: “bebem-se suas palavras”. A explicação deste versículo não passa de conjetura plausível. 11. A idéia é freqüente (SI 10,11; 94,7; Jó 22,13s; Eclo 23,18; Is 29,15; Ez 8,12; 9,9). 12. E o balanço do anterior. Aumentar riquezas e poder costuma ser sinal de bênção divina. 940 Salmo 73 13-17. Segunda parte. Se os malvados passassem bem e também os honrados, poder-se-ia agüentar a maldade ou prescindir dela. A inveja do orante não é pesar pelo bem alheio, mas vontade de compartilhar dele com justiça. O que converte a objeção em escândalo é que o honrado passa mal, tem que se sacrificar sem resultados tangíveis. É esse o tema da segunda parte, que o autor desenvolve sobriamente. Não precisa descrever-se a si o que sofre, e recorre ao monólogo interior. Ao passo que os malvados “não sofrem”, ele “sofre todo o dia” (5 e 14); os malvados vestem-se e adornam-se de soberba e violência, o honrado lava-se e esfrega mãos e coração (6.13); ao passo que os malvados se sentem “seguros” em sua conduta, o honrado se confronta criticamente consigo (12.14). Tudo isso “em vão”. Como diz Ml 3,14 (citado por Orígenes): “Não vale a pena servir a Deus: o que tiramos de guardar seus manda mentos e de andar enlutados diante do Senhor dos Exércitos? Temos que felicitar os arrogantes: os malvados prosperam, tentam a Deus impune mente”. O orante “quase dá um mau passo”, que consistiria em passar para o outro bando, tornando-se mais um de seus seguidores ou sequazes Cmw). O que equivaleria a “atraiçoar” (bgd) seu próprio grupo. Assim se opõem ‘mw e dwr bnyk = seus sequazes e estirpe de teus filhos. O que sustentou o honrado em sua tentação foi a lealdade a um grupo (dwr)-, através deste grupo, Deus se lhe acerca como pai comum (bnyk). Na concepção tradicio nal, o israelita individual não leva o título de filho de Deus, só o povo, como comunidade, é filho de Deus (excetua-se o rei); por isso, ao atraiçoar o grupo, perde o indivíduo sua participação no título. Pela primeira vez no salmo se dirige o orante a Deus na segunda pessoa, exatamente no limite da tentação. Que tenha superado a tentação grave não significa que o problema está resolvido. Continua em pé, ameaçando tentar de novo e com mais violência. E o orante continua girando em torno de si sem encontrar solução. Os versículos 16-17 são capitais para descrever o processo da meditação, e tornam-se-nos demais concisos e sem enfeites. O verbo hshb significa fazer contas, fazer cálculos, ponderar. Aqui abarca as reflexões da segunda parte (“em vão, debalde”) e parecem incluir toda a primeira parte, na qual também fazia contas. O v. 16 podia ser o lema do Eclesiastes: 8,17 Por mais que o homem se fatigue pesquisando, não o averiguará; e ainda que o sábio procure sabê-lo, não o averiguará. 7,23 “Tudo isso examinei com método pensando chegar a ser sábio, mas fiquei muito longe. O que existe é remoto e muito obscuro: quem o averiguará? Exegese 941 O Eclesiastes fica em sua atividade sapiencial, nosso autor passa da meditação à contemplação: ver da experiência (v. 3), meditar da reflexão 16), compreender da contemplação (17). 13. Purificação interior e exterior, de pensamento e ação; os dois verbos paralelos se lêem também em Is 1,16 na polêmica sobre culto e justiça. Veja-se também Pr 20,9: “tenho a consciência limpa”, com os mesmos termos. Recorde-se o gesto de Pilatos segundo Mt 27,24. 14. Tomo a construção com o verbo hyb com valor reflexivo: ferido por minha mão, com mortificações voluntárias, não por outros nem por Deus. Da mesma forma a repreensão como autocrítica pessoal. Recorde-se que a manhã era o tempo preferencial para o julgamento. 15. spr com o significado de formular, expressar, declarar; ato público fruto de decisão consciente. Parafraseia Ecker: “Se formulasse publicamente os pensamentos de indignação em vista do governo injusto de Deus, ou se assentisse seriamente a semelhante opinião, ter-seia afastado da comunidade de Deus”. 16. Compare-se com o mistério incompreensível do SI 139 e com o fracasso confessado de Jó 42,3: falei de grandezas que não entendia, de maravilhas que superam minha compreensão. 17. mqdshy está no plural, como no SI 68,36. É o templo ou santuário como lugar da presença e comunicação divina. Assim o interpreta Delitzsch. Rufino interpreta o santuário da inteligência espiritual. Ainda que se costume chamar o mistério de Deus de swd, é possível que os “santuários de Deus” se refiram aqui ao recôndito, ao mistério; compare-se com Sb 2,22: não conhecem os segredos de Deus (mysteria Theou), não esperam o prêmio da virtude. 18-22. Terceira parte. O posto de Deus abre-lhe perspectiva para o futuro: “no santuário de Deus dirijo o olhar ao final ultrapassando o presente” (Agostinho). Como o espaço fica pequeno ao abarcá-lo do alto, assim o tempo se encolhe. Experimentamo-lo com freqüência do tempo passado: “parece que foi ontem”; o orante experimenta-o do futuro: “de repente”. Depois compara essa visão de um horizonte distante com as cavilações ao rés da terra. 18-19. Todo o longo itinerário dos malvados é resvalar, cair, acabar, terminar. Tudo conclui em dois versículos, com a concomitância de terrores e espantos. “Coloca-os, precipita-os” é a resposta de Deus ao desafio: “não sabe, não se inteira”. SI 37,35s: 942 Salmo 73 Vi um malvado que se jactava, que prosperava como cedro frondoso; voltei a passar, e já não estava lá, busquei-o e não o encontrei. lT s Quando estiverem dizendo: há paz e segurança, então lhes cairá em cima de improviso o extermínio. Diante de uma tradição que interpretou hlqwt como dolos, impõe-se a queo traduz por resvaladiço: olisthoi (Símaco), lúbrico (Jerôn, Genebrardo), Schlüpfrige (Lutero). O termo mshw’h lê-se em Sf 1,15 na descrição do “dia do Senhor”. 20. mhqyç e ríyr formam paralelismo sinonímico perfeito; as preposi ções mudam por varieade estilística, e as duas têm valor temporal: “quan do, ao”; significam despertar, espreguiçar-se, levantar-se (Is 51,9; 52,1). Se referirmos o verbo tbzh a Deus, todo o versículo terá que passar para a segunda pessoa, a não ser que lhe atribuamos valor impessoal, corrente. Toda a vida dos malvados é sonho e imagem sem consistência: vejam-se Is 29,8; Eclo 34,2: “caça sombras ou persegue ventos o que se fia de sonhos”. Daniel combinará ambos os elementos: uma imagem dentro de um sonho, só que carregados de sentido. Idéia semelhante em Jó 20,8. Muitos antigos inter pretaram b‘y r - na cidade, masj á o Targum e Qimchi nos põem na pista segura. 21-22. Encontrada a solução da primeira parte do problema, o autor re flete retrospectivamente sobre a própria reflexão. A luz da compreensão que o Senhor lhe concedeu, o que significa todo o trabalho precedente? Foi um tor turar-se em vão; e di-lo em duas imagens originais, tomadas do gosto e do tato. Uma comida saborosa que se azeda ou deteriora, um vinho que virou vinagre; nós também usamos metáforas eqüivalentes: cara de vinagre, caráter azedo ou doce, homem amargado. Ou pontadas internas, nos rins, com dor súbita e aguda. A reflexão humana, comparada com a contemplação iluminada por Deus, é como o animal comparado com o homem: “Eu sou um néscio, menos que um homem, não tenho inteligência humana” (Pr 30,2). Como se a revelação e a contemplação conferissem ao homem racionalidade nova e superior. Se bhmwt designa o hipopótamo, o salmista vê-se como um colosso de estupidez. Em sua homenagem a Raimundo Lúlio, Pemán escreve as seguintes estrofes: Dá-me a ciência que junta o desejo e a presença... Pergunta, amigo, pergunta, para que queres mais ciência? Não sei, Amado, o que quero, nem sei que é esse querer, não sei se é guerra ou paz... Exegese 943 - Se sabes já não saber, por que queres saber mais?” 23-26. Quarta parte. No processo ou no momento da contemplação, o orante descobriu outra coisa mais importante e mais pessoal. Não uma teoria ou informação de sucesso, não a resposta intelectual a um problema, mas uma presença pessoal. O de menos é que o outro nos ensinou, o de mais é sentir perto o outro. Já se tinha encontrado com o Senhor i‘mk) como besta: o “contigo” delatava a realidade “animal” do homem. Agora o “contigo” manifesta ao homem algo do que é Deus: o homem diante de Deus, Deus para o homem. 23-24. A proximidade desdobra-se em três ações concretas: me agarras, me guias, me arrebatas. O primeiro verbo é raro tendo Deus como sujeito (SI 77,5 e Jó 16,12), em ações violentas; o segundo é freqüente no saltério (23,3; 31,4; 61,3, etc.); o terceiro é o clássico de Henoc e Elias, e ressoou no SI 49,16. Os três formam uma espécie de êxodo libertador que termina em Deus. kbwd indica o termo do movimento ou o modo da condução: à glória ou com todas as honras. As duas traduções são atestadas na tradição: gloriose et honorifi.ee (Genebrardo), in domum tuam caelestem (Heser); outro caminho seguiu Qimchi tomando kbwd como equivalente de alma. 25. Este versículo é um cume espiritual do AT, que se deve relacionar com a luta de Jacó (Gn 32) ou com a experiência de Elias no Horeb (lRs 19). Talvez os místicos sejam os melhores comentadores desse versículo. Toda a série de bens, que viu desfrutarem os malvados e que chegou a invejar, perdem seu valor comparada com possuir a Deus. A terra é o dom fun damental na teologia da salvação ou libertação; agora a terra não importa. O encontro pessoal desborda e anula tudo o mais. Jó 42,5 diz sucintamente: “agora te viram meus olhos”. Citarei alguns versos de Santa Teresa (pois redijo essas páginas no dia de sua festa): “Ditoso o coração enamorado que só em Deus pôs seu pensamento, por ele renuncia a todo o criado, e nele acha sua glória e contento. Mesmo de si próprio vive descuidado, porque em seu Deus está todo seu intento, e assim alegre passa e muito gozoso as ondas deste mar tempestuoso”. Se os malvados se atreviam com céu e terra, ao orante não mais lhe importam céu e terra, tendo a Deus. 26. Como Deus se ofereceu em sua pura pessoa, abolindo tudo o mais, assim o salmista penetra no íntimo de seu ser pessoal, abolindo até carne e mente. O íntimo de seu ser pessoal descobre e declara que sua “porção” ou 944 Salmo 73 possessão é Deus em pessoa, e isso para sempre. A carne sã e bojuda dos malvados tinha seus bens, também sua mente estava cheia de fantasias e suficiência; pois bem, prescindindo de carne e mente, resta algo mais íntimo capaz de possuir a Deus. A “porção” ou lote era a participação da família no território da terra prometida e entregue, que se perpetuava por sucessão e herança: porção limitada ao lado de muitas outras, suficiente para as ne cessidades corporais. Quando o próprio Deus é a porção, tudo o mais sobra e perde sentido. Podemos comparar o presente ‘vulm com o do v. 12. Lá se definia pelo objeto, as riquezas em constante aumento, e pelo sujeito que as desfrutava. Era visão centrípeta: o homem como centro do céu e da terra, do possuir e dominar. Ora, o homem é mortal, e as riquezas não descem com ele ao túmulo (SI 49,18). No v. 26 deste salmo, o homem acha-se transcendido e centrado em Deus: transcende céu e terra, e é Deus que define a dimensão do Gozo supremo; também gozo perpétuo? Reservo a questão para outra secção. 27-28. Concluída a oração num momento de máxima intensidade, o orante retorna à vida quotidiana, fazendo antes um balanço de suas “luzes”. O hnh do balanço final contrapesa ao hnh provisório e falso do v. 12; porque aquele era balanço feito com dados parciais, ao passo que agora tem todos os dados, inclusive o definitivo, que é Deus. No versísulo recolhe a sorte dos malvados (27 resume 18-20); em outro, sua experiência pessoal (28 corresponde a 24-26). Os dois versículos articulam-se nas antíteses longe / perto e fornicar / bom para mim. Tomando juntos “afastar-se e fornicar”, poderiam significar a idolatria (assim o explica Teodoreto). Seria preciso especificar a idolatria como culto de bens rivais de Deus. O segundo verbo, freqüente na literatura profética, coloca tudo no terreno do amor e da fecundidade (assim o comenta Orígenes). A felicidade expressa-se com os termos aproximar-se e refugiar-se, que não formam parte do campo do amor conjugal. A tradução latina diz adhaerere, que corresponde antes ao dbq e que dá origem a interpretações mais íntimas. A soma dos termos hlq e qrb poderia levar a pensar que o autor é levita ou sacerdote. Penso antes que os termos se desprendem deste contexto para aprofundar todo o seu possível sentido. Felicidade eternal — Uma proposição tradicional da questão se pergunta: Quando o autor usa as palavras tmyd = sempre, ’hr = final, kbwd = glória, Iqh = arrebatar, Vwlam = para sempre, o que quer dizer, em que horizonte se move? O orante busca a solução para um problema presente, insolúvel para a reflexão (16): projeta a solução no futuro, em outra vida feliz e perpétua, ou encontra-a nesta vida, no encontro supremo com Deus? -♦-Tftgese 945 Delitzsch responde taxativamente defendendo a segunda resposta. O problema da retribuição dos malvados neste mundo não se resolve pelo salmo apelando a uma solução celeste e futura de todas as contradições deste mundo; ou seja, uma glória perpétua que contrapese infinitamente os sofrimentos deste mundo fica fora de seu quadro de visão. A fé robusta, que renuncia gozosamente a tudo para agarrar-se a Deus, o amor puro que aprecia essa posse mais que o céu e a terra, são mais admiráveis colocadas nesse horizonte estreito. Sem chegar a negar e superar plenamente as idéias estreitas sobre 3utra vida, o orante, pela intensidade de sua experiência de Deus, abre uma brecha nas convicções de seu povo e por ela entrevê algo que dá vertigem; ao expressá-lo com os meios à sua disposição, abre caminho para sua intuição profunda e crepuscular. Assim pensa Weiser, e já Delitzsch fê-lo notar: “O futuro, embora obscuro, é iluminado pela esperança de que o final áe sua existência terrena trará a solução gloriosa do problema. Aqui, como em outras ocasiões, a fé abre-se passagem, não só através da obscuridade presente, mas também através da noite do Hades... A fé no nome do Senhor ;á possuía profundidade transparente que atravessava o Hades para penetrar na vida eterna”. Introduzamos outra categoria na análise: intensidade diante da quan tidade. Espaço e tempo são realidades contínuas, quantitativas. Nosso espírito conhece uma dimensão diversa, que é a intensidade (não me refiro à intensidade quantificável e mensurável da física). Há momentos na vida de tal intensidade, que parecem abolir o tempo ou concentrar muito tempo num só instante: intensidade de dor, de gozo. O homem chega a sentir-se incapaz de tolerá-las: “Noite como essa, e contemplada sozinha, não a pode sofrer meu coração: dá uma dor de formosura irresistível” (Rafael Pombo, Noche de diciembre). Disso fala a lenda medieval do monge que, escutando cantar um pássaro, cai em êxtase, e quando volta a si, passaram trezentos anos. A intensidade extraordinária revela ao homem que não é puro fenômeno no espaço e no tempo. Algo assim ocorre no salmo: ao gozar de experiência altíssima e profundíssima de Deus, descobre vagamente que deve superar o tempo. Possuir a Deus desta maneira supera os limites do que se experimenta e se imagina. Diz Delitzsch: “No meio de uma vida natural, caduca e pecadora, começou por dentro uma nova vida entregue a Deus; é penhor de que, como Deus com quem está unido não pode perecer, tampouco ele pode perecer”. 946 Salmo 73 Comparemos as expressões do salmo, obtidas em plena crise espiritual, com as afirmações seguras do segundo livro dos Macabeus (7-8). Pode ser que em certos momentos da vida nos seja mais precioso o testemunho do salmo. Opinião contrária à exposta defende Dahood para este e para outros salmos. Pensa que o SI 73 proclama univocamente a crença numa vida futura ditosa e perpétua junto de Deus, e traduz assim o versículo 26: “Ainda que minha carne e meu coração se consumam, ó Montanha, meu coração e meu corpo, ó Deus, serão eternos”. — Podemos retificar algo a precedente proposição do problema distin guindo texto original e leituras sucessivas. O texto original, expressão do pensamento do autor, contém uma série de termos ambíguos ou polissêmicos: arrebatar, futuro, glória, perpétuo, para sempre; aos quais se acrescentam algumas orações nominais do orante (23,25). Só dos malvados se diz que caem, acabam, terminam, perecem, tu os destróis. Tudo isso pode-se encaixar no quadro das crenças tradicionais, embora iniciando um processo de fermentação espiritual. Um leitor antigo podia encontrar no salmo a solução do problema nesta vida: <cVale mais um dia em teus átrios que mil em minha casa” (SI 84,11). Leitores posteriores foram superando essa visão «m virtude de diver sas circunstâncias, dentre as quais do fermento deste salmo repetido como oração. Experiência pessoal de Deus, alusões a Henoc e Elias, a idéia de participar da glória de Deus. Influíram também novos conhecimentos, até o descobrimento de uma vida futura feliz. Essas condições de leitura polarizaram a interpretação dos elementos polissêmicos do salmo, que, no novo quadro mental, encaixavam-se melhor do que no antigo. E áí se insere também a leitura cristã. — Antes de passar a ela, faz-se mister citar um clássico nosso que chegou às antologias, Bartolomeu de Argensola (1562-1631): “Diz-me, Pai comum, pois és justo: por que há de permitir tua providência, que, arrastando cadeias a inocência, suba a fraude ao tribunal augusto? Quem dá força ao braço que robusto faz a tuas leis firme resistência, e que o zelo, que mais lhe tem reverência, gema aos pés do vencedor injusto? Vemos que agitam vitoriosas palmas mãos iníquas, a virtude gemendo do triunfo com o injusto prazer. Isso dizia eu, quando aparecendo celestial ninfa a sorrir e a me dizer: Cego! é a terra o centro das almas?” Transposição cristã 947 A superioridade do poema bíblico é indubitável. Fique aqui o soneto como testemunho de uma tradição e como peça para um estudo comparado. 6. Transposição cristã Começamos com uma citação de Paulo (F13,7-9). O Apóstolo joga com os opostos perda / ganho: O que para mim era ganho, considerei, por Cristo, perda. Mais ainda, considero tudo perda comparado com o superior conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor, pelo qual dou tudo por perdido e considero lixo contanto que me ganhe Cristo e fique unido a ele. recordemos também São João da Cruz em seu “me hizo perdidiza y fui ganada”). Sobre o v. 27 escreve Orígenes em seu comentário a Nm 25: “H á fornicação quando a alma, que se uniu ao Verbo de Deus numa espécie de matrimônio, é corrompida e profanada por outro, por um inimigo daquele que a fez sua pela fé. O Verbo de Deus, Jesus o Senhor, é o esposo e marido da alma pura e casta, como diz o Apóstolo [2Cor 1 1,2 a ]... Enquanto a alma continua unida a seu esposo, escuta sua palavra e a ele se vincula, recebe dele a semente da palavra... Se a alma conceber as obras de Cristo, dará à luz filhos... Ditosa fecundidade da alma que compartilhou do leito do Verbo de Deus e correspondeu a seu abraço! Dela nascerá linhagem ilustre ... M as se a alma tem a desgraça de abandonar o leito sagrado do Verbo de Deus e se entregar a abraços adúlteros, seduzida pelo diabo e outros demônios, dará à luz filhos como aqueles dos quais está escrito: “Os filhos dos adúlteros não chegarão à maturidade e a prole ilegítima desaparecerá” [Sb 3,16] ...”. Sobre os versículos finais do salmo lemos um texto atribuído a Pascásio Radberto: “O bem do amor é o Deus Trinitário, e o Deus Trinitário é o amor per pétuo; é o único e singular bem ao qual aderir é v iver... Por isso diz o Profeta [=Davi]: “Para mim o bem é apegar-me a Deus, pôr minha esperança em Deus No mesmo e único bem pode-se às vezes distinguir dois bens: pois uma coisa é aderir a Deus por amor de inteligência, e outra pelo desejo da esperança. Quando nos fixamos nas coisas corpóreas e sensíveis, andamos em trevas, afastados da luz; contudo, não nos arrancamos da esperança, mas nela permanecemos, porque o Deus de nosso coração é nossa possessão eterna. Afastar-se do fogo desse amor é esfriar, amar outra coisa é adultério; por isso diz o Profeta: “Os que se apartam de ti perecerão”. Não é a mesma coisa apartar-se e afastar-se: apartar-se é fixar-se em outras 948 Salmo 73 coisas, afastar-se é não só desejar os bens terrenos, mas pedi-los aos demônios ou amá-los como o sumo bem ... E preciso cuidar que, apartandose a alma, não se torne adúltera: “Destruíste a todos que te são infiéis” [fornicantus abs te]; porque a fornicação é contrária ao amor casto”. O cristão, iluminado pela fé em Jesus Cristo glorificado, encontra resposta a seu problema vital e percebe com clareza esse fundo de mistério que o autor antigo mal entrevia. O salmo adquiriu dimensão escatológica. Mas o fundamento é em substância o que se fazia entreouvir no salmo; que Deus é um Deus de vivos; que o Pai ressuscitou seu Filho, acrescentamos nós. Não se fala da imortalidade grega da alma, mas da vida ditosa e perpétua com Deus. Céu já não é lugar, mas encontro e companhia. Agora, remetendo a solução do problema à outra vida, resolvemos todos os problemas? Também o escândalo do êxito dos malvados injustos e violentos? Em forma de perguntas: é preciso resignar-se sem mais à injustiça e à opressão? Inteira-se Deus, age ele? Queremos que se inteire e aja? Como se trai a comunidade dos filhos de Deus? O salmo não é um manual de ação, mas um texto para a meditação e a contemplação. E preciso repeti-lo uma e outra vez, porque o acesso ao mistério não se realiza na primeira vez nem de uma vez para sempre. “Acima de tudo o que Deus dá a bons e maus, do que às vezes tira a bons e maus, acima de tudo isso, reserva algo para os b o n s... O que lhes reserva? A si mesmo” (Agostinho). Salmo 74 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 Por que, ó Deus, nos tens abandonado e fumega tua cólera contra as ovelhas de teu rabanho ? Recorda-te da comunidade que fundaste desde antanho, que resgataste como tribo de tua propriedade,1 do monte Sião onde habitavas. Dirige teus passos a essas ruínas perpétuas, a todo o destroço do inimigo no santuário. Rugiam os agressores no meio de tua assembléia, plantaram como sinal seus estandartes. Apareceram como quem abre passagem a machadadas até em cima na espessura; arrancaram todos os relevos, trituraram-nos com martelos e marretas; atearam fogo a teu santuário, profanaram por terra a morada de teu nome. Propunham: Queimai toda sua linhagem, todas as assembléias de Deus no país! 9 Já não vemos nossos sinais, nem temos profeta, nem nos resta quem saiba até quando. 10 Até quando, ó Deus, afrontará o inimigo, desprezará o adversário sem cessar o teu nome? 11 Por que retrais tua mão esquerda e tens a direita escondida no seio? 2 12 Se és, ó Deus, meu rei desde antanho e ganhas vitórias no meio da terra. 1herdade 2peito 950 Salmo 74 13 Tu com tua força agitaste o Mar, quebraste as cabeças de dragões nas águas. 14 Tu esmagaste as cabeças de Leviatã, deste-as em pastagem a manadas de sátiros. 15 Tu abriste mananciais e torrentes, tu secaste rios inesgotáveis. 16 Teu é o dia, tua a noite, tu colocaste a lua e o sol, 17 traçaste os limites do orbe, tu formaste o verão e o inverno. 18 Recorda, Senhor, que o inimigo te ultraja3 e um povo insensato despreza teu nome. 19 Não entregues ao abutre a vida de tua rola, não esqueças para sempre a vida de teus pobres. 20 Olha para a aliança: pois estão cheios os esconderijos do país de redutos de violência. 21 Que o oprimido não saia defraudado, que pobres e afligidos possam louvar teu nomeí 22 Levanta-te, ó Deus, defende tua causa, recorda os ultrajes contínuos do insensato; 23 não te esqueças das vozes dos agressores, do tumulto crescente dos rebeldes contra ti. 2. B ibliografia J. Parisot, Psaumes de captivité: Ps 74 et 79, RB 4 (1985) 572-578. P. Joüon, Racine nbl au sens de bas, vil, ignoble, Bib 5 (1924) 357-361. A. Vaccari, Ps 7 3 / 74: Ut quidDeus repulisti in finem?, VD 15 (1935) 340345; 16 (1936) 14-20; 75-80. J. L. MacKenzie, A note on Ps 74,13ss, TS 11 (1950) 275-282. F. Willesen, The cultic situation o fP s 74, V T 2 (1952) 289-306. J. Morgenstern, Jerusalem - 485 B. C., H U C A 27 (1956) 130-131. T. H. Gaster, Ps 74,14, ExpTim 68 (1956-57) 382. E. Beauchamp - J. P. de Relles, Le donjon de justice. Commentaire du Ps 74: traduction, notes critiques et explications, BVC 66 (1965) 26-37. B. Martin Sánchez, Sal 73 (74): Lamentación y plegaria por el templo profanado, CuBi 22 (1965) 230-231. J. A. Emerton, Spring and torrent in Ps 74,15, VTS 15 (1966) 122-133. H. Donner, Argument zurDatierung des 74. Psalms, em FS Ziegler (1972) 41-50. 3 afronta Análise filológica 951 J. P. van der Ploeg, Ps 74 and its structure, em FS M . A . Beek (Assen, 1974) 204-210. W . A. Young, Psalm 74: a methodological and exegetical study, Diss., Iowa, 1974. J. J. M. Roberts, O f signs, prophets and time limits: a note onPs 74,9, CBQ 39 (1977) 474-481. H. Haag, Du spaltest das M eer mit deiner Kraft. Ps 74,13, em Und du sollst fröhlich sein, Stuttgart, 1978, 2! ed., 10-31. M. Dahood, Vocative Lamedh in Ps 74,14, Bib 59 (1978) 262-263. W . Vogels, Il n’y aura plus de prophète!, NRT 101 (1979) 851. P . Beauchamp, Psaume 74 et Psaume 89, em Psaumes jour et nuit, Paris, 1980, 199-208. P. Auffret, Essai su la structure du Ps 74, VT 33 (1983) 129-148. G. E. Sharrock, Ps 74: Aliterary and structural analysis, AU SS 21 (1983) 211-223. A. Geltson, A note on Ps 74,8, VT 34 (1984) 82-87. C. T. Begg, The covenantal dove in Ps 74,19-20, V T 37 (1987) 78-81. R. Sollano, The simile inPs 74,5. Awood-cutter entering a forest wielding axes, SEA 54 (1989) 178-187. 3. Análise filológica 2. qnyt qdm: relativa assindética Joüon 158a. zh: relativo GK 138 g, Joüon 145 c, DBHE zh 4. bw: para o dagesh Joüon 18 j. 3. hr‘: pode ser do verbo r“, equivalente de rçç, referido a instalações e alfaias do templo. No v. 14 sai esse segundo verbo. 4. ’twt: predicado do complemento. 5. E um versículo enigmático, como confirmam as traduções antigas, que leram com outra vocalização ou tentaram tirar sentido de um texto estranho. Vget non cognoverunt sicut in exitu super summum: Jerônfsigna] manifestata desuper in introitu-, Targum requereu o martelo como alguém que na mata levanta a mão para golpear com machados-, seguindo Ges Thesaurus, costuma-se entender aqui a passiva de yd'como “parecia”; mas BHS sugere no aparato ygd‘w = arrancaram. 6. Continuam as incertezas. w‘t: leram um verbo LXX exekopsan, Vg exciderunt, Gun um sinônimo de um paralelo hlm. ptwhyh: LXX e Vg leram portas, também Rasi; Jerôn e Targ esculturas. 8. nynm: subst + sufixo sua prole, estirpe LXX Jerôn Targ Hitzig Dah deynh: destruir Sir, Qim o explica como sinônimo de hrg e aduz Jr 46,16; 50,16, Ibn Ezra aduzindo Lv 19,33, Lutero Del Bickell. srpw: Dah e Rav lêem um qal passivo. O TM põe qatal 3apess; muitos lêem um coortativo. Tomando mw‘d como reunião de pessoas, a Vg trans 952 Salmo 74 formou o verbo hebraico srp = incendiar em quiescere faciamus contra a imensa maioria dos tradutores (cf. Belarmino). 11. ydk: Dah entende a esquerda como eufemismo (ou polarização?) já o propunha Quimchi. mqrb: corrigem bqrb Duhm Gun Cast. hwqk: ketib e quere parecem equivalentes Del. klh: o TM traz um imperativo = aniquila; muitos lêem alguma forma do verbo kl’ (confusão ou alomorfismo freqüente) Gun Duhm Kraus. Cast e Rav lêem um adjetivo “inerte”, como em Dt 28,32. 13. pwrrt: é estranha a leitura de LXX e Vg confirmasti. 16. m’wr: por polarização lua, cf. Gn 1,16 hm’wr hqtwn-, assim LXX ítala Targlbn Ezra; lua e estrelas Qim; outros aurora VgEutímio Belarmino. 19. Ihyt: forma absoluta em -at GK 80 f. twrk: a segunda consoante criou alguma confusão entre os antigos tradutores ou intérpretes: que te confessam LXX Vg Sir, animam eruditam lege tua Jerôn Targ parafraseando. 20. n’wt hms: acusativo regido por mVw Joüon 125d; pl de mwh. 4. Estudo global a) Gênero e situação O salmo 74 constitui exemplo claro de súplica numa desgraça nacional. Contém a clássica descrição da desgraça no momento em que sucedeu e de suas conseqüências atuais. E correlativa a descrição da violência do inimigo. Na motivação, a comunidade apela à honra de Deus ultrajado pelo inimigo e suas precedentes proezas. O estilo de perguntas impacientes e de imperativos é tradicional no gênero. Visto que a desgraça descrita concentra-se na destruição do templo, a situação deve ser histórica e não exclusivamente cultual (como propõe Willesen). Suposto isso, apresentam-se como candidatas três famosas destruições: a dos babilônios feita por Nabusardã em 587/586, a de Antíoco IV no tempo dos macabeus em 167, e a dos romanos em 70 de nossa era. Só Teodoreto de Ciro escolheu a terceira, atribuindo ao salmo sentido profético de predição. Quando estava em vigor a hipótese da origem macabaica de grande parte do saltério, muitos exegetas buscaram e encontraram no salmo detalhes que puderam identificar com fatos descritos em lMc. Creio muito mais provável a primeira identificação, como mostra sobretudo os paralelos das Lamentações. Suposto isso, seria preciso datar o salmo entre as visões de Ezequiel sobre a partida da Glória e a conseqüente i^rudo global 953 destruição do templo e as visões do novo templo com o retorno da Glória (cc. 11 e 43). Afinar a data, datando o salmo na temporada em que Ezequiel está znudo, parece-me precisar demais (vejam-se Ez 3,25; 24,25-27; 33,21-22). b) Textos aparentados Pela situação suposta e pelo tom de súplica, o SI 74 aparenta-se com o 102. Das cinco Lamentações, a última vem mais ao caso. Mas se deveria lêlas todas seguidas, como contexto espiritual, para captar o efeito cumula tivo. Aqui me contentarei com alguns paralelos seletos: O tema da ira (dez em Lm 1, seis em Lm 2). O tema do fogo (Lm 1,13; 2,3s; 4,11). A morada de Deus: miqdash (1,10; 2,7.20). Recorda! (74,2.18.22 e Lm 5,1) Não te esqueças (74,19.23 e Lm 5,20). Tua herança (74,2); nossa herança (Lm 5,2). O monte Sião (74,2; Lm 5,18). Por que retiras tua mão esquerda? (74,11). Não retirou a mão que derrubava (Lm 2,8). E tens a destra escondida no seio? (74,11) Guardou-se a destra nas costas (Lm 2,3) Es, meu Deus, meu rei desde antanho (Lm 74,2). Tu, Senhor, és rei para sempre (Lm 5,19). Para sempre: Insh (74,1.10.19 e Lm 5,20); tmyd (74,23). O SI 74 está aparentado também com o SI 44 e 79. É notável a diferença na relação da desgraça com o pecado: o 44 protesta a própria inocência, o 79 confessa o pecado e está mais próximo de Lm, o 74 não o menciona. c) Textos não bíblicos aparentados Costumam-se aduzir as famosas lamentações: pela destruição de Ur ANET 455-463), pela destruição de Sumer e Ur (ANET 3‘ ed., 611-619). A primeira fixa-se mais nos sofrimentos das pessoas, e pode-se comparar melhor com o SI 79. A segunda é mais interessante por seu desenvolvimento teológico; fixa-se nos habitantes, nas cidades e nos templos: 408 as estátuas de seu tesouro foram destruídas 410 seu trono [de Niniagara] derrubado, ela se lança ao pó 420 a porta ornamental do templo foi derrubada, o parapeito destruído 421 os animais selvagens entrelaçados à direita e à esquerda [estátuas] 422 jazem diante como guerreiros matados por guerreiros 423 seus dragões de fauces abertas e seus terríveis leões 424 foram derrubados com cordas como touros selvagens capturados ... 425s a arquitrave ... ouro, prata e lápis-lazúli 426 o templo admirado... 428 ap orta... 429 seus grandes cravos de bronze 954 Salmo 74 (segundo Piotr Michalowski, The Lamentation over the destruction of Sumer and Ur, Winona Lake, 1989). d) Composição Sinais leves de composição são as perguntas retóricas de 1 e 10-11, a recordação / esquecimento em 2.18.19.22.23, o tempo indefinido de 1.3. 10.19.23. Como se houvesse acontecido algo de definitivo ou sem termo, a que não se resigna a comunidade. Se parece um esquecimento de Deus, ao povo cabe recordá-lo. Mais patentes serão os sinais, se começarmos pelo final. Com a inclusão da recordação / esquecimento e dos ultrajes do inimigo, os seus últimos versículos formam um bloco compacto, dominado por sete impera tivos (positivos ou negativos). Precede outro bloco (13-17) definido pelo tom e pela segunda anáfora “tu”. Outro bloco descritivo ocupa os versículos 3 / 4-8, talvez com sete verbos em terceira pessoa tendo os inimigos como sujeito. Ficam fora da repartição os versículos 1-2, que se podem considerar como introdução temática, de pergunta e imperativo; e os versículos 10 e 11 com redobradas perguntas. Estes podem funcionar como dobradiça entre a primeira e a segunda parte. Atribuídos à primeira parte, formariam inclusão com a introdução; atribuídos à segunda parte, movimentam outra onda de súplica. Ou antes servem para efeito de surpresa: quando o leitor pensa que a inclusão assinala o final, descobre que começa algo muito imporante. Isso nos dá o seguinte movimento do salmo. Começa apaixonadamente interpelando a Deus, como se explorasse impaciência reprimida. Não é normal semelhante começo no saltério. Segue a descrição do enfurecimento do inimigo, que desembocou no estado presente, de pura negação. Depois das perguntas reiteradas, sobrevêm breve hino heróico que produz contras te violento. Depois do qual, a comunidade interpela a Deus, urgindo-o que intervenha. E disposição clara e lógica: a razão controlou a paixão. O movimento da quinta Lamentação é como segue: 1 imperativos dirigidos a Deus, 2-18 descrição da situação presente com breve confissão do pecado, 20-22 final com perguntas e imperativos. e) Correspondências Não basta uma leitura seguida e orientada do salmo, porque a composição dum poema unitário pode criar relações oblíquas e cruzadas significativas: o jogo subordina-se ao sentido. Exegese 955 — a primeira relação é: ira de Deus —fúria do inimigo - agitação do caos. A ira de Deus enuncia-se imediatamente, como levantando a cortina ao que segue e ao mesmo tempo gerando o primeiro contraste inexplicável. O que dominou os monstros do caos, agora parece atiçar ou deixar solto o inimigo: por quê? Soberanamente, como rei, sem ira, estabeleceu a ordem cósmica; sem renunciar ao poder real, com ira e não por impotência, tolera a catástrofe dos seus. — Do anterior segue-se o paralelismo entre as forças rebeldes do caos e a potência militar destruidora. O exército invasor contagia-se de reflexos míticos: é como novo Dragão ou Leviatã desatado, é mar que inunda a terra firme, noite que obscurece o dia. — Correlativamente, a destruição do templo insere-se em gigantesco contexto cósmico. As ruínas, a destruição, o incêndio, o templo profanado: é uma como que rejeição da ordem cósmica. — Ao estabelecer sua morada em Sião, o Senhor que mora para sempre no céu, e ao não coibir o exército inimigo, expõe-se ao desprezo e aos ultrajes, õ expõe a perigo extremo o que é seu na terra: seu rebanho, sua rola. 5. Exegese 1-2. Pela pergunta e pelo imperativo, estes dois versículos estabele cem a tonalidade da peça. A pergunta ressoará em 10-11, o imperativo dominará a terceira parte. Começam um marco e um fio condutor. Primeiro é a pergunta, mescla de estupor e censura. Estupor: a imagem que o Senhor manifesta agora não se harmoniza com a que revelara desde tempos antigos, que o povo conhece muito bem. Não se entende esse “fumegar” da ira: a Deus toca explicá-lo. Censura: não está bem desfazer o que ele fez, rejeitar o eleito, repudiar o resgatado, aceitar ■ama morada e deixá-la incendiar, consagrá-la e deixá-la profanar. Por quê? A Deus toca justificar-se. Deus deve recordar. São fatos “antigos”, mas institucionais, suas conseqüências permanecem: a comunidade adquirida e resgatada continua sendo “teu rebanho”; fora de Sião, ele não tem outra morada na terra. Como o faz a comunidade, também Deus deve retornar com a memória dos começos. 1. znh lê-se três vezes em Lm 2,7; 3,17.31 e dez vezes no Saltério referidas a um indivíduo ou à comunidade, especialmente nos salmos do gênero (44,10-24;60,3.12;77,8;89,39).Acólera que “fumega” pode recordar a teofania do Sinai (Ex 19,18), do SI 18,9 e sobretudo de Is 65,5: “Isso faz fumegar minha cólera como fogo que arde todo o dia”. LXX e Vg apagam a 956 Salmo 74 metáfora, que mantêm Áquila, Símaco e Jerônimo. “Ovelhas de teu reba nho” diz-se nos textos clássicos de Jr 23,1 e Ez 34,11, também no SI 100,3. 2. qnyt: o verbo significa fundar ou adquirir; coincide com o texto básico de Ex 15,16 e parcialmente com Dt 32,6; por conteúdo ou por paralelos, tem caráter fundacional. g í = resgatar é verbo favorito de Is 4055 e freqüente no saltério; lê-se também em Ex 15,13 e na missão de Moisés (Ex 6,6 P). shkn = morar predicado de Deus é freqüente; da raiz procede o famoso substantivo sekina. 3-9. Primeira parte. Um segundo imperativo introduz habilmente a cena seguinte: o Senhor, como soberano distraído ou despreocupado ou esquecediço, é convidado a inspecionar pessoalmente o templo em ruínas: não são ruínas recentes, que justifiquem ou expliquem o desconhecimento; aí estão desde muito tempo, e o dono da morada sem dar-se por inteirado ... O orante oferece-se como guia e, com as ruínas à vista, conta e descreve a Deus o que sucedeu. Uma primeira frase o sintetiza: destruição total. Depois se descreve uma cena de violência insaciável: um dado auditivo, um visual, ação agitada, e o guia até se atreve a ler os pensamentos dos devastadores. 3. Veja-se lMc 4,37s: Reuniram toda a tropa e subiram ao monte Sião. Viram o santuário desolado, o altar profanado, as portas incendiadas, as ervas crescendo nos átrios como matagais numa ladeira e as dependências do templo destruídas. 4. Em plena cerimônia litúrgica, no meio da assembléia, soa o “rugido” dos soldados; o verbo s’g = rugir sugere a presença de uma fera vigorosa e faz imaginar o pavor dos congregados. Em sinal de conquista e ocupação hasteiam seus estandartes. Signa sua in trophaeum, diz Jerônimo; com acerto distingue Heser as cenas mili tares e os estandartes de vitória; e Ecker resume, Feldzeichen ais Siegeszeichen. 5-6. Estes dois verbos são particularmente difíceis, como vimos na aná lise filológica, sbk significa entrelaçar, entretecer; unido a ‘ç = árvore, ma deira, significa espessura ou boscagem, fraga ou brenha, por onde se abre caminho a machadadas ou a foice, sem consideração. E eficaz descrição da brutalidade com que destroem a beleza e a riqueza do templo como se fossem ervas daninhas. O sintagma também poderia significar um vigamento arti ficial de madeiras, gelosia frontal ou decorativa; faria jogo com os relevos do versículo seguinte, onde as marteladas fazem eco ou prolongam as machada das. O conjunto oferece a cena de soldadesca ébria de vingança e destruição. 7. A ação contra o templo conclui com o incêndio, que faz desmoronar o edifício por terra, de modo que a soberba e sagrada construção fica pro fanada. E preciso ler esses versículos pondo mentalmente no fundo os 957 Exegese trabalhos minuciosos de construção descritos em lR s 7. Tanta diligência e destreza consumidas em tão breve tempo. As Lamentações assim o dizem: 3,11 O Senhor saciou sua cólera e derramou o incêndio de sua ira, pôs fogo em Sião que devora até os fundamentos. Faz eco Is 64,11 Nosso templo, nosso orgulho, onde te louvaram nossos pais, foi pasto do fogo, e o que mais queríamos está reduzido a escombros. 8. Com o que não se saciam as tropas desmandadas, mas pensam continuar o trabalho da destruição: é preciso aniquilar o povo e todos os seus lugares de culto. Recorde-se a matança organizada por Jeú contra os adoradores de Baal, dolosamente congregados em solene cerimônia litúrgica 2Rs 10,18-28): 25 - Entrai para matá-los, que não escape ninguém! Os guardas e os oficiais os passaram a faca e entraram até o camarim do templo de Baal. 26 Tiraram a estátua de Baal e queimaram-na, derrubaram o altar e converte ram o templo em latrinas, até o dia de hoje. Para os vários usos de mw‘d, vejam-se Lm 1,4.15; 2,3.6.22. 9. Até aqui o que o guia explicou a Deus. Agora faz balanço da situação atual. O povo está desorientado porque faltam todos os pontos de referên cia: sinais divinos, profeta, vaticinador. Recorde-se Saul lançando-se con tra o silêncio de Deus que “não lhe responde nem por sonhos, nem por sortes nem por profetas” (lSm 28,6). O que é que não compreendem? O significado do acontecido ou a duração prevista do estado presente? Em outras palavras, está em jogo a eleição do Senhor, ou pergunta-se quando termi nará a tragédia? — Problema de eleição. Parece indicá-lo o começo, que fala de “rejeição definitiva”; comparável com a dúvida de Lm 5,22 e de SI 77,9. Mas a frase inicial é antes pergunta retórica, e não afirmação nem necessariamente dúvida. — Problema de tempo, como diz a cláusula “até quando”. Se suplicam a seu Deus, é porque não se consideram rejeitados; se apelam à aliança, é que a consideram em vigor. Não é rejeição, mas esquecimento. — Uma explicação intermédia. A situação vai se alargando tanto que vamos perdendo a esperança: durará tanto porque é definitiva? Essa terceira é uma explicação psicológica. 958 Salmo 74 O versículo propõe-nos outro problema: a falta de profetas. Em Jeru salém, Ananias predizia duração breve, de três anos; Jeremias dizia que ia ser longo (não sabemos se a indicação de setenta anos é adição posterior); mas ambos falam em seguida da primeira deportação e antes da destruição da cidade (c. 28-29). Consumada a tragédia, Jeremias não mais prediz. Ao invés, Ezequiel, no desterro, ao receber a notícia do incêndio do templo, recobra a fala e começa a segunda etapa de seu ministério profético, na qual anuncia a repatriação sem indicar datas (Profetas, 773). Não está claro se “o que sabe até quando” é o próprio profeta ou uma categoria especial de vaticinador. E claro o conceito de “sinais” de Deus: suas ações patentes e reveladoras, plantadas como balizas ao longo da história. Em vez dos “sinais de Deus”, agora são visíveis as “insígnias” militares do inimigo. Sobre a ausência de profetas, pode-se ver também lMc 4,46; 9,27; 14,41 (Macabeos, 126.228s). 10-11. Com estes versículos retorna ao princípio, como se começasse uma nova onda do mesmo efeito. Introduz ao mesmo tempo novo tema, ligado verbalmente ao anterior pela repetição de smk = teu nome: o inimigo que profana a morada de teu nome está desprezando teu nome. O assunto passa da comunidade diretamente a Deus. Agora é assunto pessoal de Deus, e a ele cabe defender-se. Quando Gedeão destruiu o altar de Baal (Jz 6) e seus concidadãos quiseram dar-lhe a morte, e seu pai defendeu-o dizendo: “O que tendes vós que defender Baal? E a vós que cabe vir èm seu auxílio?”; depois o povo do lugar comenta: “Que Baal se defenda ele mesmo, já que derruba ram seu altar”. Quando os enviados de Senaqueribe “insultam o Deus vivo”, o rei Ezequias e o profeta Isaías pedem e obtêm a intervenção de Deus. E antecedente que deve servir na ocasião presente. O mesmo argumento em SI 79,12 e 89,52. Agora Deus não age, inibe-se. Guarda na prega da veste a mão que em outras ocasiões “estendia” para agir (Ex 7,5; 15,12; etc.). 12-17. Segunda parte. A inação presente leva por contraste a recordar a soberania de Deus e sua ação cósmica e talvez histórica. Entra assim, com suave coerência, um fragmento de hino, cujo sinal externo mais patente é a sétupla repetição de ’th = tu. Só ação cósmica ou também histórica? Todos os elementos da série podem-se ler como referidos à obra de Deus na criação, colorida de matizes mitológicos. Antes de tudo, a vitória sobre o mar Vermelho segundo Is 51,9s; SI 136,13 (verbo gzr). Secar canais e descobrir mananciais trazem recordações do êxodo, sem excluir a ação criadora de Deus. Se a melodia destes versos é cósmica, algumas de suas frases despertam tons harmôni cos da história do povo. exegese 959 0 mar rebelde, com seus monstros mitológicos, são aqui versão poética e demitizada da criação (Is 27,1; Jó 3,8; 26,12; SI 89,10-13). Os símbolos de origem mitológica despertam para os israelitas visões grandiosas de bata lhas e vitórias sobre-humanas. Outros dados insinuam a ordem estável do espaço e do tempo. As recordações ou reminiscências do êxodo engrandecemse pelo contexto que os acolhe, os ciclos temporais chegam até o dia e a noite ie hoje. Acima e antes de tudo, “Deus rei desde tempos antigos”. Por breve tempo, a solenidade do hino e sua visão grandiosa afastam a comunidade da triste situação em que vive. 12. O hino é introduzido por waw adversativo. O título atribuído a Deus encerra um paradoxo ou uma tensão. Quer leiamos “meu” com o hebraico, quer “nosso” com o grego, o possessivo parece limitar a anti guidade do título real: rei meu / nosso só o és desde que me resgataste ou fundaste como povo (v. 2) e te reconheço como soberano. Antes não era rei? Parece pedi-lo a série seguinte (cf. SI 29,10; Ex 15,18). As “vitórias” no meio da terra oferece-se a duas leituras: a terra de Gn 1.2 como realidade cósmica ou a terra como cena histórica. Conseqüente mente, as “fronteiras” ou limites da terra podem ser confins que se limitam com o grande oceano exterior ou a fronteira da terra firme que se limita com o mar ou os confins atribuídos a cada povo (Dt 32,8). O conjunto do hino parece confirmar a ambivalência de “terra”, sem resolvê-la. “No meio” não significa “no centro”, já que as vitórias não se concentraram num ponto. 13a. E duvidoso o significado de pwrrt, agitar ou neutralizar. Em ambos os casos se diz que Deus controla o mar em todos os seus movimentos. Jó 26,12 diz rg‘= aquietou (Jó 36,2s); “agitar” (Ag 2,6). 13b-14. Cabeças no plural: o primeiro grupo compreende os dragões no plural, cada um tem sua cabeça. Ao invés, Leviatã é singular: parece imaginado como hidra policéfala. Os monstros são decapitados, sem força para se rebelar de novo. E para cúmulo da ignomínia, suas cabeças servem de pasto para as outras feras. Como o Faraó = crocodilo de Ez 32,4: Deixar-te-ei largado no chão, atirar-te-ei contra o deserto ... para que se cevem em ti as feras selvagens. E a ameaça comum de entregar o cadáver do inimigo “como pasto às aves e feras” (Jr 7,33; 16,14, etc.). Ainda não se decifrou o significado do enigmático l‘m Isyym, que alguns traduzem conjeturalmente por delfins, outros por tubarões, os antigos por etíopes; HALAT conjetura ‘m Isyym = escorregadios dei mar. Uma tradição rabínica fala do Leviatã servido no banquete inaugural do reino escatológico. 960 Salmo 74 15. Fontes e torrentes brotam do oceano subterrâneo de água doce sobre a qual se assenta a terra firme. Descobri-los pode ser ação criadora (veja-se Dt 8,7). Os rios perenes, antigos ou milenários, opõem-se às torrentes ocasionais (Jr 15,18; Jó 6,15). Os dois dados, combinados, trazem a recordação do êxodo: água da rocha (Ex 17,1-7), mar Vermelho e Jordão transitáveis. Compare-se com o SI 107,33.35: Transforma os rios em deserto e os mananciais em aridez; transforma os desertos em lagos e o agreste em mananciais. 16. Com este versículo remonta-se à criação celeste e a uma ordem que se realiza em ritmo cotidiano. Em outras palavras, o pulso de dia e de noite, que os mortais vivemos na terra, foi estabelecido por Deus no princípio numa ordem celeste, sol e lua, e ele continua controlando-o pessoalmente. 17. Na restauração depois do dilúvio caótico, Deus anuncia e promete (Gn 8,22): Enquanto durar a terra, não faltarão plantação e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite. Suspeita o poeta que se pode comparar a catástrofe do templo, em escala menor, com a subversão do dilúvio? O povo assistiu à invasão oceâ nica do exército inimigo, que mudou fronteiras políticas, como se gloriava Senaqueribe (Is 10,13), e pretende impor outro rei em vez do Senhor, depois de arrasar seu palácio. Veja-se o paralelo estrito de oceano levantino e tumulto bélico de povos em SI 65,8. 18-23. Terceira parte. Ao dito sobre a composição do poema é preciso acrescentar aqui a repetição funcional de shmk em 18b e 21b, mediante a qual o poeta estabelece a seguinte seqüência enlaçando com 7b e 10b: morada de teu nome —desprezam teu nome —desprezam teu nome —louvem teu nome. Ao mesmo tempo ressalta, no interior da secção, a oposição desprezar / louvar. Também é significativa a oposição de personagens: dum lado, “o inimigo, rival, levantadiço, néscio”; doutro lado, “o oprimido, pobre, aflito, tua rola”. De que lado se colocará Deus, meu rei? Como juiz, tem que “se levantar e de fender sua causa”, que é a um só tempo a honra do seu nome e a vida dos seus. 18. O inimigo é um povo néscio ou insensato (nbl): em que o demons tra? O SI 14,1 fala em geral do “néscio” que nega a Deus; o SI 39,9 menciona o ultraje do néscio. Mais pertinente é Dt 32: 27 M as não; pois temo a jactância do inimigo e a má interpretação do adversário, Transposição cristã 961 que diriam: nossa mão venceu, não foi o Senhor que o fez. 28 Porque são uma nação que perdeu o juízo e carece de inteligência. 29 Se fossem sensatos, entendê-lo-iam, compreenderiam seu destino ... 19. Não há razão para mudar o texto ou o significado de twrk - tua rola, que se deve ouvir como expressão de carinho e compaixão; semelhante ao epíteto “pomba” do Cântico dos cânticos. O correlativo é em hebraico genérico hyt - fera; por especificação orientamo-nos para um abutre, gavião. A imagem da ave lê-se também no SI 11,3 e 55,7. 20. Pela aliança, Israel é “teu povo”. Deus pode “olhar” e consultar o :exto dessa aliança; ou teria perecido no incêndio do templo? A súplica supõe que a velha aliança continua em vigor, que não foi denunciada nem substituída por uma nova (Jr 31,31). O segundo hemistíquio é difícil. Parece uma extensão do v. 8 para o cumprimento do projeto (veja-se SI 55). Em outros termos, a violência se assentou em lugares ocultos (no SI 55 na praça pública) e daí opera. 21. yhllw smk pode-se tomar como jussivo: que possam louvar teu nome, ou como oração relativa: que louvam teu nome. Na primeira inter pretação, o louvor é conseqüência da libertação suplicada. 22. Julgar é função do soberano. E freqüente solicitar de Deus que julgue uma causa, como instância suprema; mas normalmente se trata de causa alheia submetida a sua jurisdição. Para ficar nos salmos: 35.1 julga meus rivais 43.1 julga minha causa 119,154 julga minha causa O salmo introduz mudança significativa: “julga tua causa”. Frisa-o Eusébio: “Porque não somos nós que padecemos injustiça, mas tu, porque a ti insulta o inimigo e o povo insensato denigre teu nome”. 23. O “tumulto” costuma associar-se a povos e exércitos estrangeiros: é famosa a onomatopéia de Is 17,12s; o SI 65,8 associa-o às ondas maríti mas. O salmo termina com o estrondo crescente e hostil; um fragor que parece cobrir as vozes suplicantes e que o Senhor não pode deixar de ouvir. 6. Transposição cristã A chave de transposição consiste em tomar o templo como símbolo da Igreja. O templo era o centro, o coração da comunidade: atacando o templo, o inimigo ultraja o nome do Senhor e depois estende sua ação contra o povo 962 Salmo 74 e seus santuários. Para um cristão, não é um templo o centro da Igreja, já que ela é o templo e o nome que leva é o de Jesus Cristo. A Igreja pode ser atacada por inimigos externos. Uns mostram a cara e atacam explicitamen te a Igreja: suas instituições, seus membros, seus valores e tradições. Assim o fizeram muitas perseguições históricas e recentes. Outros inimigos vestem a máscara da tolerância e atacam os valores que Cristo proclamou e encarnou, e que a Igreja custodia; ou se enfurecem com os “mais pequenos”, os pobres e desvalidos. Também assim se ultraja o nome santo de Deus. Por isso, ele deve se levantar para defender sua causa e afirmar sua realeza. O “tumulto dos que se levantam” contra Deus continua ressoando na história, o inimigo desafiante hasteia seus estandartes que proclamam seus valores e suas pretensas conquistas. As vezes o povo cristão não descobre os sinais da presença de Deus, seus “sinais” e estandartes ao longo da história, não ouve a voz unívoca de profeta acreditado, e pergunta: “até quando?” Esse salmo é oração do povo cristão. Tem garantia de resposta. Um dia, concentrou-se o ataque inimigo em torno de outro templo de Deus na terra, e lhe deu a morte. Mas “destruí esse templo, e em três dias o reconstruirei”. “Essa é a vitória que vence o mundo”, que fazemos nossa pela fé. Recorda, Senhor, tu és nosso Rei! Através de Mt 24,2.15, vários santos padres referem o salmo, como profecia ou como prefiguração, à destruição do templo e da cidade pelos romanos: Orígenes, Teodoreto. Salmo 75 1. Texto 2 Nós te damos graças, ó Deus, nós te damos graças, invocando teu nome, contando tuas maravilhas. 3 “Quando escolher a ocasião, eu julgarei retamente. Ainda que trema a terra com seus habitantes, eu firmei suas colunas. 4 5 6 7 8 9 Digo aos arrogantes: Não sejais arrogantes, aos malvados: Não levanteis os chifres1. Não levanteis os chifres contra a'Altura, não digais insolência contra a Rocha”. Não é o Oriente nem o Ocidente, não é o Deserto nem a Montanha; Deus é quem governa: a um humilha, a outro exalta.2 O Senhor tem um cálice na mão, um copo cheio de vinho drogado: dele fará beber até as fezes a todos os malvados da terra. 10 Eu sempre proclamarei sua grandeza e tocarei para o Deus de Jacó. 11 “Arrancarei os chifres dos malvados, levantar-se-ão os chifres do honrado”. 1o chifre 2 levanta 964 Salmo 75 2. B ibliografia E. Wiesenberg, A note on mzh in Ps 75,9, VT 4 (1954) 434-439. L. Brates, Algunas correcciones conjeturales en los Salmos (75,7; 119,91), EstEcl 34 (1960) 657-672. A. González Núnez, El salmo 7 5 y e l juicio escatológico, EB 21 (1962) 5-22. B. Couroyer, Corne et arc, RB 73 (1966) 510-521. M. Dahood, The four cardinalpoints in Ps 75,7 and Jl 2,20, Bib 52 (1971) 397-407. R. Tournay, Notes sur les Psaumes, RB 79 (1972) 43-50. E. Beauchamp, Voie nouvelle pour 1’exégèse du Ps 75, em FS Bagatti, Jerusalém, 1976, 44-46. 3. Análise filológica 3. wqrwb shmk: literalmente, teu nome está perto. Já desde as antigas versões leu-se o verbo qr’ com regime b-, que significa invocar, e os modernos aceitam a solução. Afastam-se na maneira de vocalizar: epikalesometha to onoma sou LXX, invocabimus nomen tuum Vg; Gun lê particípio pl qore, equivalente de qr’y (GK 75 qq) e fá-lo sujeito do verbo sprw. sprw: muitos corrigem para prim pess pl Duhm Cast Rav, outros tomam-no como indeterminado. 3. myshrym: com valor adverbial. 6. bçw’r: literalmente, com o pescoço; gesto desafiante Hitzig, unido a ‘tq com pescoço insolente Rav. Já LXX leu çwr e traduziu tou theou, segue a Vg adversus Deum\ assim Gun Cast Kraus e muitos modernos, tomando “Rocha”como título divino comum. tdbrw: continua regido pela negação inicial do versículo. 7. mdbr hrym: a maioria dos antigos o interpretou montes desertos e o referiu à zona meridional montanhosa e desértica; lendo mmdbr com qames, segundo alguns manuscritos, interpretou hrym como inf hif de rwm Qim, seguem-no Ros e Kraus; ao invés, Hitzig e Del aceitam a velha leitura de LXX e Vg. Mas então falta o norte nos pontos cardeais, pelo que muitos acrescentam a copulativa com ou sem a prep min Duhm Rav, etc. 9. Variam as traduções do segundo hemistíquio, de acordo com os termos e suas conexões: vinho vermelho, i. é, generoso (cf. Dt 32,14; Is 27,2) Qim Ros; vinho espumoso ou fermentado (de sabor picante) Gun Kraus; merus = genuíno, não aguado Vg; cheia do escanceado Ros; mesclado (aguado) Qim Del; mesclado, tratado com espécies ou drogas Gun. Grãtz traduz msk por jarra. mzh: disso; a curiosa leitura de LXX e Vg ex hoc in hoc provocou a idéia de dois cálices divinos, um de severidade e outro de piedade Eutímio, Hoberg. Estudo global 965 ’k: como uma precisão ao enunciado: bebeu Israel, pois agora cabe aos pagãos apurar o resto, o pior Ros Hitzig; corrigem para ’p Wellh Olshausen Gun. 10. ’gyd: com complemento tácito, paralelo de zmr Ros Del Rav; seguindo a LXX, corrigem Gun e Kraus em ’gyl. 11. trwmmnh: poial passivo ou intransitivo. 4. Estudo global a) Gênero e situação A julgar pelo primeiro versículo e pelo penúltimo, este salmo constitui um hino dedicado às proezas de Deus; em concreto, a Deus como juiz dos destinos humanos. Em vez de seguir o esquema tradicional, introduz perso nagens falando. A mudança de singular e plural e a mudança de falantes sugerem execução litúrgica, sem que possamos precisar mais. E possível, porém, ler esse salmo como continuação do precedente. Lá se reconhece o Senhor como “Deus meu”, aqui se apresenta a ele como juiz, duas funções que coincidem na pessoa. Lá pediam a Deus ‘julga tua causa, aqui ele se dispõe a julgar. Lá perguntavam “Até quando?”, aqui responde “quando escolher a ocasião”. Lá apelavam à vitória cósmica sobre as forças do caos, aqui se afirma a estabilidade da terra sobre suas colunas. Lá se mencionava a “tribo de tua herança”, aqui se canta o “Deus de Jacó”. Lá se repetia “Tu”, aqui se repete “Eu”. Essas correspondências mostram que o SI 75 encaixa-se bem depois do 74, mas não provam mais. Não vale postular que tenha sido composto expressamente como continuação ou que se tenha recitado no mesmo ato litúrgico. Mas pode-se provar que o coletor tinha sensibilidade para critérios temáticos e permite uma leitura e estudo unificados. Pelo tema geral e por vários detalhes, aparenta-se também com o seguinte e tem contatos com o 82. Poderíamos chamá-los salmos de Deus juiz, por sua concentração no tema, se bem que o motivo literário ocasional mente reapareça em outros salmos. O caráter genérico desaconselha toda tentativa de buscar-lhe data histórica provável. b) Composição O movimento desconcertou a mais de um intérprete pelas mudanças de falante e especialmente pelo versículo final. Alguns mudaram-no para a terceira pessoa em nome da lógica. Ater-me-ei ao texto e fixar-me-ei nas pessoas gramaticais para buscar-lhe outra lógica, a poética. 966 Salmo 75 Antes de tudo observo uma introdução hímnica no plural (v. 2) e outra no singular (v. 10), o que nos leva a pensar em recitação coral no início, rubricada no final por um liturgo ou chefe de assembléia. Terminadas ambas as introduções e sem apresentação, toma a palavara o próprio Deus: ’ny no v. 3, ’nky no 4, ’mrty no 5. Também o v. 5 é pronunciado por Deus (’g d‘, se respeitarmos o TM). Por outro lado, o tríplice ky anafórico de 7.8.9 leva a lê-los unidos; e como Deus figura neles na terceira pessoa, devemos supor que fala a assembléia ou o liturgo, comentado o discurso do Senhor. O resultado é o seguinte: 2 introdução hímnica pronunciada pela assembléia, 3-6 palavras textuais de Deus, 7-9 comentário da assembléia, 10 introdução hímnica do liturgo, 11 palavras textuais de Deus. É isso o que razoavelmente dá o texto, e creio que tem sentido. Faça-se a prova de recitálo com distribuição de papéis. O tom da recitação é categórico, definitivo: observem-se os pronomes pessoais enfáticos, o tríplice ky asseverativo, a falta de transições, a repe tida parataxe, o ritmo staccato de 7-8. c) Imagens Há uma imagem dominante, a de juízo: Deus assinala o prazo de sua celebração, afirma sua justiça, sentencia a culpados e inocentes, decide a execução. Outra imagem condutora é de chifre. — O juízo é óbvio em vários detalhes. Não estão explícitas a investiga ção dos fatos, as perguntas recriminatórias de costume, as possíveis réplicas do imputado. A peça concentra-se na fase final do juízo. O juiz afirma que “julgará retamente”, a assembléia reconhece-lhe o título legíti mo de “juiz”. No discurso do juiz está implícito o delito de rebelião. Alguém descreve o juiz com o cálice punitivo na mão. No final, o juiz dispõe-se a executar a sentença, “arrancarei”: a poção letárgica precede a execução formal, o v. 11 não é mera repetição. — O chifre é imagem de grande enraizamento no AT (e persiste no NT) Antes de passar revista a alguns textos, lancemos um olhar espanhol para sintonizar emotivamente com o poema. Vejamos ou imaginemos o touro saindo do curral correndo pela arena, detendo-se no meio da praça e erguendo os chifres. Toda sua força e cólera condensadas nos cornos, toda a mole disposta a disparar com os chifres. É amostra de poderio. É custoso não citar inteiro o soneto de Rafael Mor ales: “Es la noble cabeza negra pena, que en dos furias se encuentra rematada. Estudo global 967 Encerrada en la sorda calavera, la tempestad se agita enfebrecida, hecha passión, que el músculo no altera; es un ala tenaz y endurecida, es una ansia cercada, prisionera, poe las astas buscando la salida”. Da praça passemos a um pasto de touros bravos, para vê-los em grupo, as cabeças recortadas contra o céu do ocaso, para escutar seu mugidos prolongados. Também de Morales: “Y la noche de ferro, sorda y fria, parece que se pone em movimiento, cuando siente en su carne el turbulento mugir de fieros toros en porfia”. Essas recordações ajudar-nos-ão a sentir com realismo a imagem do salmo. A imagem de força bravia, unida à de fecundidade, é que impressio nou os antigos, na Mesopotâmia e em Canaã. Por isso incorporaram o touro em seus mitos e cultos. Touro pode ser título da divindade ou representação sua; Gilgames luta com o “touro do céu” e lhe dá a morte. Também os israelitas cedem ao prestígio da figura transmitida por seus vizinhos. Uma auréola mítica e sobre-humana realça a imagem poética. Também chefes estrangeiros ou israelitas podem levar o título emblemático de touros: Gn 49, 6 Siquém, Ex 15,15 idumeus, Dt 33,17 José, Is 34,7, etc. Esse largo fundo cultural explica o uso freqüente do chifre como símbolo de poderio. Nos salmos: 18,3; 89,18; 92,11; 112,9; 132,17; 148,14 (em alguns casos, a imagem pode estar lexicalizada). Recorde-se também a ação simbólica do profeta de corte, rival de Miquéias ben Jemla: lR s 22,11 Fez-se uns chifres de ferro e dizia: Assim diz o Senhor: com estes chifrarás os sírios até acabar com eles. 12 E todos os profetas diziam em coro: - Ataca Ramot de Galaad! Triunfarás, o Senor ta entrega. Zacarias apresenta uma visão de quatro chifres expulsos por quatro ferreiros: 2,4 E estes vieram espantá-los, expulsar os chifres das nações que investiam com os chifres em Judá para dispersá-lo. O livro de Daniel mostra-nos como a imagem dos chifres penetra na apocalíptica gerando artificiosas alegorias intelectuais. Para explicar o uso no singular, não podemos apelar para a figura do rinoceronte ou do legendário unicórnio, pois não constam que fossem conhecidos em Israel. — O cálice é outra imagem freqüente em contextos de julgament criminal. Não parece ter de ordinário efeito mortal (como a cicuta), mas 968 Salmo 75 antes de provocar vertigem ou turvação, antes da execução; ou então deixa impotente, como soldado bêbado incapaz de lutar (SI 78,65). Os textos clássicos são Jr 25,15-29, de que cito dois versículos: 16 Que bebam, cambaleiem e enlouqueçam perante a espada que atiro no meio deles. 27 Bebei, embebedai-vos, vomitai, caí para não levantardes perante a espada que eu atiro entre vós. A bebida precede a execução, que se realiza com uma espada bélica ou judicial. Em Ez 23,31-34, Ooliba (Judá) tem que beber a mesma taça que Oola (Israel), imagem do desterro: 33 Encher-te-ás de embriaguez e náuseas de espanto e atordoamento. Em Is 51,17-23 é taça de ira e de vertigem. Em Ab 16 parece ser mortífera; vejam-se também Zc 12,2; Lm 4,21. 5. Exegese 2. Ainda que esteja dedicado a “teu nome”, Yhwh só se pronuncia no v. 9. 3. Fala Deus. E o Senhor do tempo e tem direito de fixar prazos e momentos. Quando os conselheiros de Betúlia marcam um prazo de cinco dias para render-se, Judite repreende-os: 8,12 Quem sois vós para tentar hoje a Deus e pôr-vos publicamente acima dele?13 Pusestes a prova o Senhor Todo-poderoso, vós que nunca entendereis nada. Em Is 5,18, os incrédulos desafiam o profeta alegando a demora de Deus: “que se apresse, que apresse sua obra para que a vejamos”; também Ez 12,21-28 como o jogo dos estribilhos (Profetas, 717s), e Hb 1,2. Será um juízo oportuno, segundo o calendário de Deus, e reto, como corresponde ao juiz supremo. Vejam-se dois extremos: Gn 18,25: “o juiz de todo o mundo não fará justiça?” e Sb 12,15-16: “Es justo, governas com justiça e estimas incompatível com teu poder condenar a quem não merece castigo”. 4. O julgamento ordena-se a fazer a justiça. Há harmonia profunda entre a estabilidade cósmica e o reino da justiça entre os homens. O autor imagina-se a terra dos vivos como um disco assentado sobre o oceano inferior e apoiados em sólidas colunas e fundamentos. Os israelitas conhe- 969 Exegese ceram terremotos que sacudiram a terra com seus habitantes (Am 1,1; Ez 38,19; Zc 14,5). A terra não se afunda, mas recupera sua estabilidade, porque Deus “firmou suas colunas”. Analogamente sucedem terremotos sociais no reino da justiça: em casos extremos Deus virá restabelecer a estabilidade da justiça. Não é que ajusta ordem humana seja uma peça a mais na ordem do universo; tratase antes de simetria e correspondência. Vejam-se: SI 11,3 SI 82,5 Quando cambaleiam os fundamentos, o que poderá fazer o justo? Não sabem, não entendem, caminham às escuras, e tremem os fundamentos do orbe. 5-6. Não se deve ler a tríplice intimação como preceito abstrato ou genérico: “não há que fazer, não deveis fazer”, mas antes como repreensão e abuso a quem está fazendo algo de mau ou proibido (não faças barulho, dizemos a quem o está fazendo). Esclarece-o o qualificativo dos interpela dos, “arrogantes, malvados”. Seu delito é rebelião contra “o alto”, a Rocha, Deus. A imagem do touro que levanta os chifres lançando mugido funde-se com o valor simbólico de “altura” = céu = Deus; o mugido são as palavras insolentes. Rocha é título divino tradicional, que pode sugerir firmeza maciça e segura, glória como peso, não como esplendor. Qimchi explica a imagem “não levanteis a cabeça”; Eutímio interpreta aqui gloriar-se: “Os mesmos usam com freqüência o termo chifre, algumas vezes em lugar de poder, outras em lugar de orgulho, porque os animais cornúpetos com os chifres se defendem e se orgulham”; seguem-no Titelmann e Belarmino. 7. Muda o falante, que faz uma profissão de fé. Nos pontos cardeais figuram o deserto meridional do Negueb e a montanha setentrional do Líbano. A frase surpreende por sua falta de verbo: fica assim mais categórica, pura negação. Toca ao leitor preencher mentalmente o oco com “vem o auxílio, garante-se a justiça”. Na geografia terrestre, humana, o orante não encontra instância superior que garanta eficazmente o respeito ao direito e à justiça; não encontra tribunal internacional acatado por todos. 8. Tem que levantar-se para a esfera superior, para Deus como juiz supremo de indivíduos e nações. Ele humilha e exalta, não arbitrariamen te, mas segundo a justiça. O verbo “exaltar” é o mesmo de “levantar” os chifres. A ação divina de exaltar e humilhar expressa-se, por exemplo, no texto clássico de lSm 2,1-10, canto de Ana. Menos conhecido e não menos oportuno é o seguinte texto do Eclesiástico 10,14-17: Deus derrubou do trono os soberbos e nele sentou os oprimidos. 970 Salmo 75 O Senhor arrancou as raízes dos povos e plantou em seu lugar os oprimidos. O Senhor apagou as pegadas dos povos e destruiu-os até aos fundamentos; apagou-os do solo e aniquilou-os e acabou com seu nome na terra. 9. Na cena da taça mencionam-se “todos os malvados da terra”, o que implica juízo universal; também final ou escatológico? Em rigor, pode-se escalonar ao longo da história, nos prazos que Deus marcar para julgar. Coincidiria com os “dias do Senhor”, com os ocasos de nações e impérios. A reunião de todos numa cena só é recurso poético e litúrgico, pois os profetas repartiram-nos ao longo de seus oráculos; se bem que Jeremias também apresente juízo universal relativo, “a todas as nações às quais me enviou o Senhor” (25,18). Ao abrir-se passo entre osjudeus amentalidade escatológica, o presente salmo prestava-se a nova interpretação, sobre um juízo univer sal e final. Veja-se J1 4,9-17. 10. Toma a palavra o liturgo ou presidente. O título Deus de Jacó é raro nos profetas (Is 2,3 = Mq 4,3) aparece algumas vezes no saltério como alternativa do mais freqüente “Deus de Israel”. Parece referir-se à comu nidade inteira do povo escolhido, prescindindo de divisões. Quem fala propõe-se ser arauto de seu Deus. 11. A voz de Deus anuncia a execução da sentença, que logicamente tem duas vertentes, malvados e honrado (plural e singular como doutras vezes), ou culpados e inocente. O primeiro é ação de Deus. Num hino a Samás, deus da justiça (v. 95), diz-se: “ao que trama uma malfeitoria lhe embotas os chifres” (Seux 57). O correlativo resulta como conseqüência: “os chifres do honrado se levantarão”. 6. Transposição cristã A chave está na interpretação de Deus e também de Jesus Cristo como juiz. Como os textos são abundantes e apresentam significados, aspectos e matizes diversos, darei só algumas indicações. — Primeiro, de Deus juiz. Hb 12,23 chama a Deus “juiz de todos (panton); Rm 3,6 diz que “julgará o mundo”; Tg 4,12 apresenta a dupla vertente do juízo: “um só é o legislador e juiz: o que pode salvar e destruir”; lPd 1,17 reconcilia os títulos de pai e juiz: “se podeis chamar de Pai ao que julga imparcialmente as obras de cada um ...”; Ap 6,10 está mais próximo do salmo pela pergunta impaciente: “Tu, o soberano, o santo e leal, para quando deixas o juízo dos habitantes da terra e a vingança de nosso sangue?” Transposição cristã 971 — Segundo, Jesus Cristo juiz. Começo por dois textos significativos: At 17,31 Marcou um dia em que julgará o universo com justiça, por meio do homem que designou, e deu a todos garantia disso ressuscitando-o da morte. Rm 2,16 O dia em que Deus, por meio de Jesus Cristo, julgará o oculto do homem, de acordo com meu evangelho. At 10,42 Deus nomeou-o juiz de vivos e mortos. — Os textos citados e outros semelhantes, especialmente se mencio nam “um dia” e a extensão universal, interpretam-se muitas vezes em sentido escatológico, do juízo final da história. Custa-nos reconhecer os juízos históricos de Deus e de Jesus Cristo glorificado. E verdade que não podemos postular uma correspondência mecânica e individual de culpa e castigo, não podemos sentenciar sem mais “castigo de Deus”. Mas isso não deve impedir que reconheçamos em determinadas circunstâncias, em acontecimentos históricos particulares, a realização dum juízo divino, de condenação e salvação, por meios imanentes à história. Pois a condenação e a execução do culpado, pessoa ou sistema ou instituição, ocorre em ordem à salvação do inocente. Assim, pois, pode-se meditar o salmo no tempo da Igreja ou pode-se projetar para a consumação final. A imagem dos chifres é recolhida com êxito mediano pelo Apocalipse (12,3; 13,1-11; 17,3-16). Mais fortuna teve a imagem da taça, especialmente porque com ela Jesus se refere à sua paixão (Mt 26,39.42 no Getsêmani, Mt 20,22 aos Zebedeus, Jo 18,11 a Pedro). Salmo 76 1. Texto 2 3 Deus se manifesta em Judá, sua fama é grande em Israel; seu albergue está em Jerusalém, sua morada em Sião. 4 Aí quebrou as centelhas do arco, escudo e espada e a guerra. 5 -T u és deslumbrante, magnífico, com montões de butim. 6 Os valentes são capturados, dormem seu sono; os guerreiros não encontram as mãos. 7 Com um bramido, Deus de Jacó, imobilizastes carros e cavalos. 8 Tu és terrível, quem te resiste ao ímpeto de tua ira ? 9 Do céu proclamas a sentença: a terra se assusta e se acalma 10 quando Deus se põe de pé para julgar, para salvar os oprimidos do mundo. 11 Trituras a cólera humana,1 rodeias os sobreviventes da cólera. 12 Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri-os; que seus vizinhos tragam tributos ao Terrível. 13 Ele deixa sem alento os príncipes e é Temível para os reis do mundo. 1A cólera humana terá que reconhecer-te, os que sobreviverem à cólera te rodearão Análise filológica 973 2. Bibliografia J. Strugnell, A note on Ps 76,1: JTS 7 (1956) 239-243 O. 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Alguns antigos traduziram o topónimo, in pace, aceita-o Hoberg, Genebrardo explica in urbe pacifica. 4. rshpy: anulam a imagem Vg potentias, Ag fortitudines, Sa vires; mudam-na Sim oionous = aves de rapina, Jerôn volatilia. 5. n’wr: part nif de ’wr Qim Ges Thésaurus Del, deslumbrante DBHE. 974 Salmo 76 mhrry. min causal dependente de ’dyr?; de proveniência Qim Briggs Duhm, comparativo Marini Ros Phil Del Kraus, locativo Hitzig Cast Rav (cf. GB 433 b, lc; Ges Thes 805 b, 3h). trp: presa, butim: a montibus captivitatis Jerôn, karpimon = férteis Teodoc; montes onde moram animais ferozes de rapina Qim, ou bandidos Ros, ou imagem de soberbos mandões Del; oreon aionion LXX, montibus aeternis Vg; preferem-no Hitzig Briggs Duhm supondo que trp seja substi tuição errônea de um ‘d original, já que ‘d também pode significar butim (cf. Gn 49,27). 6. ’stwllw: hitpolel de shll com’ em vez de h como no aramaico, sentido passivo foram despojados Jerôn Ros Phil Hitzig Del Cast Rav; ou reflexivo Abu Walid (citado por Phil) expostos ao despojo Marini; etarakhesan LXX, turbati sunt Vg. ‘byry: asynetoi LXX, insipientes Vg: leram b‘ry?, hyperephanoi Sím, heróis Targum. wV mç’w ... ydyhm: comenta Marini: modismo hebraico felicíssimo. Facilmente são despojados porque dormem, porque não encontram as mãos para lutar; estão tão aterrados que pensam não ter mãos. Del cita uma expressão talmúdica: “Não encontrava na escola suas mãos e seus pés, estava perplexo e desconcertado” (Dukes, Rabbinische Blumenlese, 191). 8. m’z: temporal no tempo, durante Ges Thes 806a, 4b; lêem me‘ôz (segundo SI 90,11) Duhm Gun Kraus. lla.Tomando o texto em seu sentido óbvio, com hmt como sujeito: a cólera contra ti, dos que atacaram Jerusalém, terá que te louvar apesar de tudo, sua ira redundará em teu louvor Qim; semelhante Marini: derrotando sua cólera ganharás louvor; de modo semelhante Ros Phil Hitzig Del Cast. Corrigindo o texto: do verbo hmh = ver como em aramaico Gun; terra sujeito e hmt advérbio a terra louca de alegria Buttenwieser; por tua cólera contra outros homens Dah; Edom e Jamat Schmitdt; tadek de dkk / dkh triturar. 11b.Sem mudar o texto, variando a função na frase e a identifica ção das personagens. “O que resta das cóleras” são os inimigos que o Senhor leva cingidos ou tem presentes para derrotá-los Marini; (Deus) te cingirás o que resta de tua cólera (para acabar com o inimigo) Jerôn reliquiis irae accingeris Ros Del; rodearás (protegendo) os que sobrevivem à tua cólera Rav; os que sobreviverem à tua cólera te rodearão Dah; o que resta do castigo (ira) o sujeitarás (sem aplicá-lo) Rasi citado por Ros. Mudando thgr no verbo hgg = festejar: LXX Vg Atanásio Eutímio Cassiodoro Belarmino Duhm But Cast Kraus. 12. Imwr’: toi nomothetei, lendo lammore Símaco. 975 Estudo global 4. Estudo global a) Composição — 0 salmo não tem estribilho em sentido estrito, mas traz uma série de predicados, estrategicamente colocados, que articulam o conjunto do poema: 2 5 8 12 13 nôda‘ na’or ’addir nôra’ môra’ . nôra’ conhecido, reconhecido deslumbrante magnífico, ilustre temível terrível temível Estes predicados (salvo o ’dyr, pendente por paralelismo) soam conspicuamente unidos por sua sonoridade: evidente por identidade de lexema em nôra’ e môra’ com variante fonética em nôra’ e nôda‘, com inversão em nôra’ e na’ôr. Isso quanto à forma; pelo significado, agrupam-se num campo que exalta a manifestação numinosa, grande e terrível do Senhor. Eles marcam a tonalidade do salmo, a atitude dominante dos que oram. De uma cantata à Assunção de Maria, de sor Joana Inês da Cruz (1651-1695), copio os seguintes versos, em que encarece a polaridade numinosa: “Este, pues, terror hermoso, este valeroso pasmo, este refulgente asombro y este luminoso espanto”. Os predicados citados têm também valor estrutural? Conjugando sua posição com o conteúdo do resto, creio que aparece sua função estruturante. Com efeito, no princípio e no fim, em inclusão temática, encontramos os predicados nwd‘e nwr’ + mwr’; em 5 e 8 encontramos n’wr e nwr’ indicando pausa ou enlace. Pode-se propor a seguinte divisão formal e temática do poema: I II III 2-4 5 6-7 8 9-13a 13b Revelação vitoriosa em / desde Sião aclamação “és deslumbrante” derrota dos agressores aclamação “és terrível” cena de julgamento aclamação “és temível” A primeira aclamação faz coro ao vencedor com seu butim de guerra; a segunda mostra-o irresistível na guerra e no juízo; a terceira recolhe e amplia o precedente. 976 Salmo 76 — Não menos importantes para a composição interna do poema são os símbolos conjugados de guerra e juízo, nos quais se manifesta o poder numinoso de Deus. Estes símbolos, levantados à superfície, sugerem uma divisão semelhante: I II III 2-3 4-8 9-13 introdução: o rei em seu reino vitória militar juízo e conseqüências. Estes símbolos contêm e desenvolvem a substância do poema e inte gram antes a estrutura profunda. Por isso é preciso estudá-los à parte. b) O símbolo bélico — Faz parte do símbolo bélico um verbo único em forma finita cujo su jeito é Deus: sibbar = quebrou. Isso torna mais saliente a acumulação de com plementos: os relâmpagos (ou chispas) do arco, escudo, espada, batalha. Em for ma nominal soa um substantivo que condensa toda a ação de Deus: um bra mido (ou bufido, que pode ser metáfora do trovão) que afeta a outros dois com plementos, carros e cavalos. Pertence ao campo militar o sintagma do final “corta o alento”, ou é execução da sentença judicial? Responderei mais abaixo. — O que os inimigos opuseram a essa ação? Nada; uma série de verbos ou negados ou com valor negativo: dormem seu sono, não lhes respondem os braços, ficam imóveis, não resistem. Não assistimos à aliança, mobilização, preparativos, assalto reiterado; o poeta surpreende o momento de uma derrota ou vitória fulminante e apresenta com traços rápidos seu resultado. Entre as armas inutilizadas e os guerreiros imobilizados, destaca magní fico o vencedor, deslumbrante no meio de seu butim de guerra. O inimigo é anônimo, somente apresentado em formas adjetivas. Se se fala de vizinhos ou de reis do mundo, é na parte dedicado ao julgamento. Doutro lado, o Senhor não aparece em castelo ou fortaleza, mas em simples albergue (skw) onde tem sua morada (m‘wntw). Como se não necessitasse de fortificações, fossos e escarpas e muralhas, pois basta-lhe assomar-se e dar um bramido ou arremessar. O símbolo bélico está bastante concentrado. Pode-se ler, como contras te, o SI 83. Também está concentrado porque Deus luta e vence sozinho, sem exércitos angélicos, celestes ou humanos. c) O símbolo judicial O símbolo judicial enuncia-se explicitamente nos versículos 9-10 e polariza a leitura de outros elementos. Trata-se de um juiz que julga duas partes, fazendo justiça ao inocente e castigando o culpado. O que 977 r.studo global nos pede considerar as duas partes implicadas no pleito. Para fazê-lo, temos que resolver uma questão prévia: como se relacionam batalha e juízo? — Cabem duas explicações. Têm lugar a batalha e a vitória, depois o vencedor julga o pleito, libertando ou castigando. Ou então, a ação militar é a execução da sentença judicial; neste caso, o poema inverte a ordem cronológica para impor a ordem lógica de fato e explicação. Em outras perspectivas, pode-se dizer que a vitória militar foi um juízo histórico de Deus: os agressores injustos foram derrotados, os inocentes indefesos foram libertados, tudo por pura intervenção de Deus. Sobre a relação entre juízo e guerra pode-se consultar: P. Bovati, Ristabilire la giustizia, Roma, 1966, 270, com bibliografia, e o índice temático, termo “guerra”. “Ao considerar-se a vitória militar como triunfo do direito sobre a injustiça, é normal esperar na antiguidade, e também em nossos dias, que a vitória no campo militar vá acompanhada de um processo imposto aos culpados derrotados” (p. 271). A guerra como juízo, a derrota como execução, parece explicar melhor os dados do salmo. Guiados por ela, passamos ao seguinte: — Delimitamos os paradigmas das duas partes do juízo: ’bry lb valentes (yhwdh ysrí) (Judá Israel) ’nshy hyl guerreiros m lk y ’rç ngydim reis do mundo ‘wy ’rç oprimidos do mundo (hm t’dm ?sbybym ?) (cólera humana? vi zinhos?) (sh’ryt hmt?) (sobreviventes da cólera?) Fica bastante clara a coalizão dos grandes do mundo contra os oprimidos do mundo, que parecem ser Judá e Israel ou Jacó. Confinei em parêntesis vários dados duvidosos do texto, concentrados especialmente no v. 11. Já os discutimos na análise filológica, e aqui podemos insistir. Inclinome a ler no v. 11 a dupla ação judicial que condena os culpados, cólera = coléricos, e salva os inocentes, resto = sobreviventes da cólera / agressão. Razões: se bem que um exército hostil tenha que reconhecer (yd0 o Senhor, não é provável que o louve e lhe dê graças; a cólera não louva a Deus. De outro lado, sh’ryt designa os sobreviventes do povo, não um resto de paixão, que se diria antes ytr; esse resto não cinge ou rodeia a Deus, mas, pelo contrário, Deus cinge e protege seu povo. Mais detalhes no comentário exegético. Entre outras coisas, será preciso explicar a relação Judá / Israel, assim como também o papel dos “vizinhos”. 978 Salmo 76 d) Explicação de conjunto Como resultado da análise precedente, podemos propor o sentido e movimento do salmo. — Do velho Israel, que um dia se esquartejou e se dividiu em Judá e Israel, fica um “resto” sagrado, continuador da história e portador da salvação, que sobreviveu a tantas agressões e agora se concentra em Judá. Esse resto se apinha em torno da capital, com seu templo, reconhecendo o Senhor como seu Deus. Voltam a levantar-se poderosos e violentos contra o resto inerme, e então Deus intervém de Sião: celebra um juízo histórico, dita sentença e executa ou castiga os agressores infligindo-lhes fácil derrota. No final, o grupo libertado é convidado a fazer votos e cumpri-los, como expressão de sua confiança no Senhor (e não nas armas). Os poderosos agressores são aniquilados e os sucessores respeitarão com temor sacro o Senhor. Resta um grupo de povos vizinhos, não impérios com iniciativas, mas cúmplices e colaboradores subalternos, que ficam submetidos como vassalos tributários. Os oprimidos não tiveram que intervir com contraviolência. Não houve mediador humano, o rei ungido. Deus foi o grande protagonista “reconhecido, deslumbrante, magnífico, temido”. — Essa visão de conjunto serve para conjeturar, não para definir, o momento original do salmo e para facilitar sua transposição. Em princípio, poder-se-ia referir ao reino de Judá depois da queda de Samaria, por exemplo, à raiz da derrota de Senaqueribe: Is 11,4 diz de seu rei whwkyh l‘nwy ’rç. Também poder-se-ia referir à comunidade repatriada depois do desterro; Sofonias convida sua comunidade chamando-a de kl ‘nwy ’rç. Desprendido de sua vinculação histórica puntual, o salmo pode dila tar-se e simbolizar novas situações ou novas realidades. 5. Exegese 2-3. Abre-se o salmo com quádrupla definição local: em Judá, em Israel, em Salém, em Sião. Identificam-se as duas primeiras, o autor considera Judá como o autêntico Israel, segundo costume que se torna prevalente. Se o autor pensa nos dois reinos davídicos, frisa a centralidade de Jerusalém. O SI 114, falando do êxodo, propõe o paralelismo de Judá e Israel, sem pensar em dois reinos divididos. A denominação breve da capital coincide só com Gn 14,18. Talvez busque o autor uma ressonância do nome em 12ab: wshlmw ... shy Imwr’. A determinação local limita o alcance do predicado? Ou seja, o Senhor “é reconhecido” (só) em Judá-Israel; dos reis estrangeiros “é temido”; mas “os vizinhos lhe trazem tributos”, o que é um modo de reconhecimento, Exegese 979 ainda que com medo. O contraste pode dizer que Judá o reconhece de outro modo, de bom grado. niucTpredica-se do Senhor: em Is 19,21 com complemento Egito (texto muito tardio, que fala de reconhecimento pleno), de modo genérico em SI 9,17, num texto aparentado dedicado a Sião, o SI 48,4 (são comuns a grandeza do Senhor, o tema militar, o juízo, o posto de Judá ...). E raro chamar o templo de cabana, choça (skh): SI 27,5; Jr 25,38 (numa imagem). A forma m‘wnh dita do templo (ou de Sião) é única, pois em outros casos significa a guarida de feras (Am 3,4; SI 104,22; Jó 37,8; 38,40; Na 2,13; Ct 4,8); só em Dt 33,27 e Jr 21,13 refere-se a morada humana. Quererá o salmo insinuar que o templo está reduzido a choça ou guarida? É difícil prová-lo, ainda que seja legítimo perguntá-lo. 4. Dada a intensa localização dos verbos precedentes, “ali” soa com ênfase, como se a derrota tivesse sucedido exatamente na capital. É corrente a idéia de que Deus deixa aproximar-se o inimigo para derrotá-lo em seu território. Is 14,25 diz: “Desmantelarei a Assíria na minha terra, pisá-la-ei nos meus montes”; amplia o tema Ez 38-39.0 último complemen to soa a recapitulação, como se dissesse: todas as armas, defensivas escudos) e ofensivas, de longe (arcos) e de perto (espadas), ou seja, toda a guerra. E preciso compará-lo com o SI 46,9s. 5. Se a fama ou nome é dado auditivo, n’wr indica experiência visual. Como defesa contra o exército invasor dos sírios, Eliseu orou ao Senhor: Deslumbra-os! (fere-os de cegueira). O Senhor os deslumbrou como pedia Eliseu (2Rs 6,18s; veja-se Ex 14,24). Vejam-se Hab 3,3 e Jó 37,22 (interpretando zhb como resplendores de ouro). Traduzimos “montões”, palavra que vem também de “monte”. O butim é direito tradicional do vencedor e alarde de sua vitória. Nos informes de cam panhas militares de faraós é corrente aduzir listas do butim capturado (a modo de exemplo, ANET 246B); no informe da batalha contra os povos do mar lemos a frase: “Eu era o valoroso Montu [Deus da guerra], em pé diante deles, para que pudéssemos contemplar minhas mãos capturando butim” (ANET 262B). 6. Continua o tema do butim, se identificarmos o verbo shll; neste caso, o sono deste versículo e do seguinte seria metáfora de medo que paralisa •Bruna Costacurta, La vita minacciata, 223). Se for assim, não se refere ao sono da morte (Jr 51,39.57; talvez Na 3,18; cf. Profetas, 1089); os caídos não são butim de guerra. 7. Sobre o bramido ou repreensão de Deus: SI 18,16 efeito cósmico, 80,17 faz perecer, 104,7 põe em fuga. Parafraseia Agélio: indignatione maxima... increpavit, spiritu... comminationisperterruit, tamquamtonitru terroris obstupefecit. 980 Salmo 76 8. Veja-se a oração de Josafá antes da batalha na versão própria de 2Cr 20,6 e Sb 11,21: Não és tu o Deus do céu, o que governa os reinos da terra, cheio de força e poder, a que ninguém pode resistir? Deslanchar todo o teu poder está sempre a teu alcance, quem pode resistir à força de teu braço? Pelo sentido, se não pela gramática, a reação da terra precisa ser entendida em duas etapas: assusta-se e acalma-se. Interpretamos: assus ta-se diante do ataque do inimigo e da reação colérica de Deus, acalma-se pela vitória divina: vej am-se textos em que “a terra descansa” da guerra: ’rç shqth (Js 11,23; 14,15); Is 14,7 queda do tirano, 2Cr 23,21 morte de Atalia; ao invés, 2Cr 20,29s reparte os dados, terror para o inimigo, calma para o reino de Josafá. 10. Veja-se Is 2,19; no saltério é freqüente o motivo do levantar-se de Deus para julgar, por exemplo, 7,7; 12,6; 74,22; 82,8. Como em outras ocasiões, a finalidade do juízo é salvar os oprimidos; com grande relevo o diz SI 12,6. 11.Em nossa interpretação (lendo o verbo dkk / dkh), este versículo enuncia os dois termos correlativos do desenlace do juízo (veja-se SI 44,20 e a forma mais freqüente dk’). Se se mantiver a leitura do texto hebraico, será preciso dizer que, diante da ira divina, a cólera humana tem que confessar ou louvar. A segunda parte (em nossa leitura) enuncia a proteção divina do resto, tomando hgr como equivalente de ‘r ou sbb. 12. Sujeito da primeira parte são os salvados, aos quais diz o texto “ vosso Deus” e os convida a cumprir os votos feitos ou por fazer. O sujeito da segunda parte está explícito: são povos vizinhos que pagarão o tributo de vassalagem. Veja-se um texto dos anais de Ramsés II (ANET 255B): “Todos os países estrangeiros tremem diante dele seus chefes lhe ofereciam tributo, os rebeldes se aproximavam e se prostravam assustados diante da glória de sua majestade”. 13. Se cortar o alento se toma em sentido extremo, equivale a dar a morte, e indicaria a execução de sentença capital. Em sentido limitado significa deixar sem alento, desalentados, sem respiração de puro medo. O verbo bçr tem dois valores (pelo menos): um mais freqüente é vindimar (cortar, arrancar), do que resultaria: o Deus que “dá” ou “derrama” espírito = alento, o retira ou recolhe (verbo ’sp lido em SI 104,29); outro mais raro é encerrar, coarctar, do que resultaria: Deus coarta o alento, impede o ritmo da respiração. E difícil decidir-se, mas o resultado é eqüivalente. Na esteia Transposição cristã 981 de Barkal lemos (fala Tutmósis III): “estava em pé na muralha, exaltando minha majestade e pedindo que se lhes desse (conservasse) o alento da vida” (ANET 238A); a mesma expressão lê-se nas esteias de Mênfis e de Karnak (Amen-hotep II, ANET 247B). 6. Transposição cristã O tema de Sião converte-se em símbolo da Igreja, idealmente identificada com os oprimidos do mundo, atacada e sobrevivente da cólera desatada contra ela. O tema da batalha é completamente transformado. O Apocalipse assume e desenvolve complacentemente a imagem bélica: veja-se no c. 12 a peleja celeste de Miguel contra as hostes do Dragão. O tema do juízo passa a contexto escatológico em que Cristo glorificado é juiz (como é indicado no salmo precedente). Jerônimo comenta que no tempo do AT Deus é conhecido em Judá, agora se dá a conhecer a todo o mundo. Sobre o v. 6 diz que a vida humana é um sono. Salmo 77 1. Texto 2 3 4 5 6 7 Minha voz para Deus, gritando; minha voz para Deus, que me escute. Em minha angústia te busco, Dono meu1, de noite move-se minha mão sem descanso, recusa acalmar-se o arquejo. Recordando de Deus, gemo, meditando sinto-me desfalecer. Manténs abertos meus olhos, a agitação não me deixa falar. Calculo os dias de antanho, os anos remotos. De noite repito minha canção, medito-a por dentro, meu espírito indaga: 8 Será que o Senhor nos rejeita para sempre e não voltará a nos favorecer? 9 Esgotou-se sua misericórdia, terminou para sempre sua promessa? 10 Olvidou Deus sua bondade, ou a cólera lhe fecha as entranhas? 11 E me digo: pobre de mim!, mudou a destra do Altíssimo. 12 Recordo as proezas do Senhor; sim, recordo de teus antigos portentos, 13 medito todas as tuas obras, considero tuas façanhas. 14 Deus meu, teu caminho é santo, que Deus é grande como nosso Deus? 1senhor meu Bibliografia 983 15 Tu és o Deus que operas maravilhas e mostraste aos povos teu poder. 16 Com teu braço resgataste teu povo, os filhos de Jacó e de José. 17 O mar te viu, ó Deus, viu-te o mar e tremeu, as ondas estremeceram. 18 As nuvens descarregavam sua água, retumbavam as nuvens densas, tuas setas ziguezagueavam. 19 Rondava o estrondo de teu trono, os relâmpagos deslumbravam o orbe, a terra tremia e estremecia. 20 Teu caminho pelo mar, um vau pelas águas caudalosas, e não ficava rastro de tuas pegadas, 21 enquanto guiavas teu povo como um rebanho pela mão de Moisés e Aarão. 2. 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Como que com um dique fecha a fonte da misericórdia, explica Teodoreto; o verbo significa fechar, coibir, para que não saia nem flua Belarmino. h- ... ’m: interrogativa dupla sem oposição GB 46 b. 11. hlwty: de hll inf qal GK 67 r, GB 234 b ser atravessado; trosis mou Símaco, minha pena Baethgen, minha tortura Hitzig; inf piei de hlh estar doente Teodocião odines, Aquila arrostia, Targ mar’uti, assimMuis, Del; de hll profanar Hirsch, corrige para ht’ty Graetz. Leram hhlwty começou LXX Vg Hoenen Placidus Parm Heser Titelmann Dion Cart. shnwt: mudar: da mão de Deus para castigar Teodoreto Eutímio, a mudança operada em mim pela mão de Deus Atanásio Agostinho; tradu zem anos Qim Pagnini Flamínio. 12. ’zkr: ketib hif, qere qal; Hitzig Del conservam o ketib e tomam o ky como explicativo. mqdm: desde a antiguidade Del; na antiguidade Hitzig Gun, cf. Ges Thes 806 a. 14. bqdsh: advérbio com função de adj. 18. zrmw: pual ou poel GK 55 b; unindo o sintagma com o precedente traduzem LXX e Vg a intensidade do estrondo das águas; Targ as nuvens do céu derramaram água, sacudiram água as núvens Jerôn. 19. bglgh trokho Aq Teod, trkhois Sím, in rota Jerôn; rota = contorno Hoberg, furacão Kautzsch Reischl, roda (dos carros egípcios) Teodoreto, Eutímio, Titelmann, a roda do carro de Deus Ecker (cf. Hab 3,8). 4. Estudo global a) Gênero e situação — É muito fácil catalogar as duas partes desse salmo, mas é impossível encaixá-lo em algum gênero. A primeira parte (2-11) é súplica centrada em descrever a desgraça presente; a motivação se dá em forma de pergunta retórica e concentra-se na coerência histórica de Deus com sua obra. Falta a expressão de confiança e em conseqüência a promessa de ação de graças. A segunda parte (12-21) é hino com breve introdução, centrado na saída do Egito. Alguns enunciados genéricos (14-16) preparam o tema concreto. Não creio que se possa tomar o hino como texto de uma futura ação de graças prometida). A combinação, dir-se-ia justaposição, das duas peças define a persona lidade única do salmo: depois de uma súplica quase desesperada, um hino triunfal. Para captar essa tensão, serve o trabalho de catalogar suas partes. Mas dividir o salmo em dois e explicar cada um por sua vez seria destruir sua substância. — A situação é uma desgraça nacional que se vai prolongando (Inçh 9), no que se aparenta com os SI 74 e 102. A situação poderia ser o desterro ou, na volta, a precária existência como província do império persa. A segunda parte tem pontos de contato com o chamado cântico de Moisés (Ex 15); parece também com o esquema e alguns detalhes de Is 63,7-14. (Ao invés, o SI 143 só se esclarece como imitação do presente). Tomemos o desterro como situação imaginativa. Quero dizer que não o proponho como hipótese de datação histórica, mas como recurso imagina tivo para explicar um texto ou um processo. Não digo “provavelmente é”, mas “é como se”. A imaginação, reconhecida como tal, pode ter função heurística e hermenêutica. Assim, pois, imaginemos o grande poeta anôni mo que chamamos Isaías Segundo: vive a tragédia que cantam as Lamentações, compartilha-a com os seus, medita o passado; um dia, em iluminação repentina, transfigura-se-lhe o êxodo e começa a contemplar um novo êxodo mais glorioso. Poderia ter concentrado essa experiência no SI 77: “é como se”. A partir do salmo, poderia brotar o canto de vida e esperança que é Is 40-55. Convém ler Is 63,7-14 (texto posterior) para apreciar a semelhança estrutural. Começa com um repasso histórico dos benefícios de Deus (7-9); o povo é infiel a Deus e é castigado por isso (10) (desgraça e afastamento de Deus); nessa situação surge a recordação do êxodo: 11 Recordaram-se dos tempos antigos, do que tirou o seu povo. ymy ‘wlm 986 Samo 77 12 13 14 Onde está o que tirou das águas o pastor de seu rebanho? Onde o que meteu em seu peito seu santo espírito? O que esteve à direita de Moisés guiando-o com seu braço poderoso? O que dividiu o mar diante deles ganhando-se renome perpétuo? O que os fez andar pelo fundo do mar como cavalos pela estepe, e como gado que desce para o vale não os deixou tropeçar? O espírito do Senhor os levou ao descanso. Assim conduziste o teu povo ganhando-te renome glorioso. As coincidências verbais entre Is 63 e SI 77 devem-se ao tema comum. Se o esquema é semelhante, o desenvolvimento é diverso, e presta-se a exercício de poética comparada. b) Composição e relações A composição de cada parte é bastante clara e corresponde ao tema. Primeira parte (2-11). Após uma entrada enfática (2) sucede um grupo descritivo, definido em inclusão menor pela repetição de zkr e lylh em 3 e 7; segue um trio de perguntas apaixonadas, com a repetição anafórica da interrogativa h- (8-10); encerra-se no v. 11 com uma espécie de balanço personalizado. Segunda parte (12-21). Os dois primeiros versículos, com quatro sinônimos, formam uma introdução genérica (12-13); os três versículos seguintes referem-se à libertação do Egito ainda em termos genéricos (1416); o resto dedica-se a descrever a passagem do mar Vermelho como teofania. As repetições de p l’ em 12b e 15a e de drk em 14 e 20 soam discretamente. Com o dito, ficamos na superfície, quando o decisivo do sentido reside na relação tensa das duas peças. Efetivamente, exercita-se nas duas partes a recordação; a repetição de zkr em 4,7 / 12ab sublinha-o (note-se o antô nimo Shkh em 10a). A recordação da primeira parte serve para agravar por contraste a pena presente, deixando balanço desolador: “mudou a destra do Altíssimo” (tornou-se sinistra). A segunda ronda de recordação é jubilosa, ainda que não desemboque em balanço conclusivo. Logo, há dois modos de recordar, inclusive opostos. Não basta advertir isso; antes, do fracasso da primeira recordação brota o triunfo do segundo. O primeiro é exercício laborioso, que deixa o orante perturbado e desfalecido; o segundo começa Estudo global 987 como tarefa e em seguida se converte em contemplação fascinante. Creio que essa relação ou tensão de ambas as partes seja o mais substancioso do salmo. Considero uma objeção, para fechar toda escapatória. No texto hebraico do v. 7 (não no grego) menciona-se uma canção com acompanhamento, que 3 orante cantarola mentalmente: não poderia ser 12-21, ou ao menos 17-21, o texto dessa canção? Nessa hipótese, depois do 21 voltaria o orante ao balanço do v. 11: essa é minha tragédia, que a destra do Altíssimo tenha se mudado. Parece-me muito difícil provar essa hipótese: a recitação do texto descritivo não corresponde à situação de espírito da primeira parte. O salmo não se cerra sobre si, como caracol que se dobra em sua cápsula, mas termina aberto. E da mesma forma o orante. Também Isaías Segundo teve que se confrontar com o problema da recordação: perante nostalgia paralisante, proclamou um anúncio de esperança (43,18s): Não vos recordeis de coisas passadas, não penseis no antigo; Vede que realizo algo de novo: já está brotando, não o notais? Diante de passado abolido e irrecuperável, passado atual e transfigu rado: novo êxodo; esta é a velha novidade. Dois sinais estilísticos ajudam a perceber a relação de ambas as partes. A citada repetição de zkr em 4.7.12a, de ’syh em 7b.13b. Mais importante me parece a correspondência do duplo qwl em 2ab e em 18.19: ao duplo clamor, a voz reiterada do orante corresponde à distância o clamor do trovão, que é a voz do Deus libertador. c) A palavra poética A experiência do orante na primeira parte expressa-se na linguagem da lírica, conjugando corporeidade e intimidade: voz, mão, respiração, olhos, e também coração = mente, espírito, meditação, perturbação. Até aqui, um caso insigne num costume conhecido. Pelo contrário, a experiên cia da segunda parte, a visão do êxodo, é mediada pela palavra poética. Não é caso único, mas ocorre aqui com tal intensidade e clareza, que nos brinda a ocasião de refletir sobre fato tão importante. Na primeira parte, a função da palavra é expressiva. Uma interioridade vem para fora, cristalizada em palavra poética, para comunicar-se emotivamente. Não é informe clínico (dói-me o terceiro espaço intercostal direito), mas expressão lírica que busca participação, por contágio ou compaixão. Ou nos identificamos ou nos associamos ao orante. Inclusive os 988 Salmo 77 dados que se diriam externos, corporais, são observados por uma consciên cia que se volta sobre si lucidamente, interiorizando as sensações. Ainda que quem se apropia do salmo não agite as mãos e a respiração, compreen de-as por empatia afetiva. E verdade que a palavra discorre em diálogo com Deus, mas não é puramente interna nem inarticulada. Desenvolve-se ao fazer-se pública, convidando a entrar no jogo como interlocutores de Deus. Na parte final lemos uma descrição fantástica de grande viveza. Não é reprodução nem sequer imitação realista. A fantasia apoderou-se do evento antigo ou de sua transmissão tradicional e criou evento poético novo, mediador. Fê-lo com tão convincente intensidade, que o orante e o leitor assistem mentalmente ao fato e captam seu sentido. E o que chamam de experiência vicária mediada pela palavra poética. Em termos artísticos é como se assistíssemos à representação dum drama ou filme, ou como quando lemos uma boa novela entrando em seu mundo. No terreno da espiritualida de, Santo Inácio o formularia assim: “como se presente me falasse”. O salmo oferece o mistério do êxodo à contemplação artística e espiritual. Compare-se o efeito com a realização do SI 73, onde se dá salto abrupto sem intermédio de descrição. 5. Exegese 1-11. Chama a atenção a abundância de verbos na primeira pessoa e de substantivos com sufixo possessivo “meu”; conseqüentemente, a abun dância de palavras que começam por alef. Em 8-10, Deus é sujeito na terceira pessoa, só que dentro da interlocução do orante, que pergunta ou se pergunta (outra espécie de primeira pessoa). Pode-se comparar com as expressões em primeira pessoa do SI 102. 2. O versículo de entrada é elaborado com especial cuidado. A primeira palavra é qôlí = minha voz, em posição enfática, em frase nominal; compare-se com o SI 3,5 e a imitação do SI 142,2 (qwl instrumental). A terceira palavra especifica: é grito, ainda não se articula. O segundo hemistíquio repete o primeiro sintagma e muda o verbo, de sorte que soa a correlação: eu me queixo, que ele escute. Seis palavras, incluídas duas proposições, começam com alef. Com todo rigor estabeleceu a tonalidade de afã insistente. Se o que segue toma forma de meditação privada, conste que é todo um clamor dirigido a Deus. 3. drsh pode significar especificamente a consulta ou genericamente a busca. Em certo grau implica que Deus está distante ou ausente. No saltério há uma categoria de buscadores de Deus: por exemplo, 9,11; 14,2; 22,27, etc. Exegese 989 Minha mão: segue a série começada com minha voz. O verbo ngr sugere a imagem de fluidez de um líquido: 2Sm 14,14 “como água”, Jó 20,28 inundação, Lm 3,49 lágrimas. O orante não controla as mãos, que não se movem no trabalho diurno, não se elevam em oração, derramam-se em puro sintoma de inquietude. Minha respiração: terceiro termo da série. Tomo a palavra npsh em seu sentido corpóreo, de acordo com o contexto. Claro está que, para um hebreu, dada a correspondência de respiração e vida ou alento vital, a expressão fica indiferenciada. Também o arquejo é sintoma e expressão. A Vulgata ilustra o processo de espiritualização: “minha alma recusa o consolo”. 4a. O Deus “buscado” apresenta-se à recordação, e asim se estende uma ponte entre buscar e recordar; o efeito continua sendo um gemer inarticulado. 4b. Aqui começa de algum modo a atividade verbal, pois costumamos meditar com palavras, pelo menos mentais. E atividade mais intelectual e reflexa, mas também sem resultado positivo, rwhy é o quarto termo da série, também com certa bivalência. 5. No texto hebraico (não no grego nem no latino) irrompe (interrom pe?) Deus em sua ação. Expliquemo-lo respeitando o texto hebraico: Deus apresentou-se na recordação, e não fica inativo, mas age alcançando os olhos do orante (quinto elemento na série). Este nada mais pode fazer que constatar o fato e dizê-lo numa segunda pessoa que pode soar como censura confiante: eu te dou passagem até o interior de minha memória, e tu daí me deixas insone. Como o amor em Ct 3,1; 5,2. A agitação diz-se com um verbo raro, e a incapacidade de falar tematiza-se em palavras. 6. A atividade mental torna-se mais reflexiva. Já não só recorda, mas pondera, calcula, estima o sentido de passado que discorrre no ritmo de dias e anos. A BSH sugere transladar para o final deste versículo, para restabelecer o ritmo, o sintagma do v. seguinte Cm Ibby - em meu interior). 7. O substantivo ngnh indica canção que se canta com acompanha mento (ngn - tanger). Podemos imaginar um cantarolar mental de canção conhecida que recorda episódios antigos. Enquanto cantarola, volta-lhe o sentido da letra, sugere o segundo hemistíquio, indaga sua relação com o presente. A recordação musical, como de melodia pegadiça, em vez de distraí-lo, impele-o a indagar; e prorrompe assim na série apaixonada de perguntas. 8-10. O enigma ou o desconcerto do presente brota da eleição do povo. Se o SI 74,20 apelava à aliança, esse não a menciona nem alude a ela. Seu horizonte é a eleição, como mostra o verbo znh, sinônimo de escolher e típico de súplicas e de Lamentações (dez vezes no saltério, três em Lm). De mais 990 Salmo 77 a mais, o salmo detém-se na fronteira da liberdade, o mar Vermelho, antes da aliança do Sinai. Os três versículos oferecem uma constelação de termos imediatamente reconhecíveis (rçh hsd rhmym). Salvo o primeiro, os outros figuram na autodefinição de Yhwh em Ex 34,6 e também em fórmulas litúrgicas. Isso explica a gravidade do problema e a paixão do orante: Deus está negando-se a si mesmo. Ou, se isso for demais, mudou totalmente de atitude e conduta. Não se explica de outro modo a situação presente. Pode-se recordar a ameaça de Dt 28,63 (escrita depois da experiência do desastre e do desterro): Assim como gozou o Senhor tratando-vos bem e fazendo-vos crescer, assim também haverá de gozar destruindo-vos e exterminando-vos. Os versículos 8-10 insistem no aparente caráter definitivo: para sempre, não mais, definitivamente, por gerações e gerações. 8. Favorecer é o mesmo verbo da súplica do SI 44,4, que expõe a razão única da salvação: Porque não foi sua espada que ocupou a terra nem seu braço que lhes deu a vitória, mas tua destra e teu braço e a luz de tua face, porque tu os amavas. Não retornará essa atitude de Deus? 9. Ainda que o termo ‘omer seja raro (cinco casos certos e um duvidoso em todo o AT), aqui não podemos definir seu signficado específico. Propõese o significado de promessa, mas também poderia designar o mero ato de dizer, de comunicar-se, em cujo caso a frase enunciaria por negação o silêncio de Deus. 10. Também é raro o verbo qpç (cinco vezes em qal); a expressão é única e bela, pelo contraste entre ira e ternura: o Deus “entranhável” fecha-se em mutismo irado. 11.Penso que hlwty equivale a exclamação, como o rzy de Is 24,15. A destra de Deus é protagonista em textos aparentados (SI 44,4; 89,14; 118,15). Agora está inativa, como no SI 74,11. 12-13. A segunda parte começa com um quaternário, ao gosto, não exclusivo, do Segundo Isaías. As obras de Deus recebem quatro denomi nações, das quais p ‘l sugere o que têm de tarefa, p l’ o que têm de maravilhoso. O orante acrescenta à recordação a meditação como no v. 7: será recomeçar? 14-21. Antes de percorrer os versículos, convém comparar o conjunto com o cântico de Ex 15: por semelhança de tema e por uma série de coincidências verbais, nos permitirá definir o peculiar do salmo. Comece mos com uma lista de paralelos: 991 Exegese Ex 15 2 5 11 13 14 16 minha força {‘zy) as ondas (thmt) Que Deus há como tu? magnífico em santidade (bqdsh) autor de prodígios (‘sh plT ) guiaste teu povo (nhyt) o povo resgatado (‘m g’lt) o ouviram os povos (’mym) tremeram, se retorceram a grandeza de teu braço SI 77 15 tua força (‘zk) 17 = 142 Que Deus é grande como Deus? teu caminho é santo (bqds) 15 21 16 15 17 16 = = = mostraste aos povos (b‘mym) = (rgz hyl) com teu braço (zrw’k) 1.4.8.10 o mar (ym) 8.10. águas (mym) 20 pelo mar (bym) 17.20 = Algumas coincidências são realmente salientes, ainda que se possam dever a uma fonte comum: guiar, resgatar, autor de prodígios. Outras são impostas pelo tema: mar, água, ondas. Chama a atenção a manifestação a outros povos. A mudança fundamental é que Ex 15 estiliza a passagem como uma batalha do Senhor contra os egípcios; o SI 77 a estiliza como teofania de tempestade. Por isso os lexemas rgz e hyl, que Ex 15 predica do inimigo, o SI 77 os predica do mar, que é o verdadeiro inimigo dominado por Deus. Debelado ornar, podem Moisés e Aarão conduzir pacificamente o rebanho. Este aspecto pacífico é sublinhado pelo citado Is 63 e Sb 19,7s: o mar Vermelho convertido em caminho viável e o violento marulho tornado várzea verde; por aí passaram em formação compacta os que iam protegidos por tua mão, presenciando prodígios assombrosos. Pelo que tem de teofania, essa secção presta-se a uma comparação com o SI 18,8-17, com seu aparato de trovões e relâmpagos, onde estre mece a terra e não o mar e, em vez de passar um povo, Davi é transpor tado. 14. O orante continua dirigindo-se a Deus em segunda pessoa. O caminho de Deus pode ser sua empresa ou o modo de realizá-la, seu estilo de ação (cf. Is 40,14: “o caminho exato ... o método inteligente”). Essa palavra logo vai se carregar de sentido mais material, como que dizendo que a empresa de Deus = caminho de Deus é abrir-se caminho pelo mar. O Deus incomparável é tema importante na mensagem do Segundo Isaías e é recorrente também no saltério, por exemplo, 86,8. 992 Salmo 77 15. ‘sh p l’ no particípio é exclusivo de Ex 15 e do salmo; em outras formas verbais: Is 25,1; SI 78,12; 88,11. Sua ação revelou-se a outros povos porque a executou nas coordendas da história. 16. E porque no meio deles vive o povo que Deus escolheu e que, como propriedade sua, se apressou em “resgatar”; verbo favorito do Segundo Isaías, que também se lê em Ex 6,6 (P). Resgata-os com seu braço poderoso, pois não têm que pagar dinheiro (Is 52,3). E anômala a fórmula Jacó e José; em Is 44,23 e 48,20 diz-se que Deus “resgatou a Jacó”. Pode explicar Gn 48 (como aponta Ecker), texto que tenta responder a um problema de tribos. Segundo a narrativa de Gn 30, os filhos de Raquel são José e Benjamim; segundo a experiência histórica, há duas tribos muito importantes que não são filhos de Jacó e Raquel: Efraim, que chega a dar nome ao reino setentrional, e Manassés, que se estende de ambos os lados do Jordão. Como se justifica sua presença e pertença à confederação? - Porque Jacó adotou como filhos os dois filhos de José: Os dois filhos que te nasceram no Egito antes de eu vir viver contigo serão meus: Efraim e Manassés serão para mim como Rúbem e Simeão (Gn 48,5). Se se aceita essa explicação, o salmo quer incluir Efraim e Manassés na libertação do Egito. 17-20. Em quatro versículos o poeta consegue condensar uma descri ção intensa, combinando traços visuais, sonoros e de movimento. Mar e terra são personificados. O ritmo dilata-se nos versículos de três hemistíquios (falta um acento em 20a). A linguagem é escolhida e eficaz. As repetições parecem buscadas: quatro vezes maym, duas vezes qôl e rgz. Sentimo-nos envoltos no elemento aquático de mar, ondas, correntes, núvens. Conten tar-me-ei com algumas notas parafrásicas para fazer sentir a qualidade do texto original. n.yhylw : as águas marinhas retorcem-se ou encrespam ou formam remoinhos; as correntes tremem (yrgzw), alteram o curso reto e flúido. 18. Sobre a água marinha derrama-se a água da chuva (;zrmw)\ a nuvens altas produzem uma voz, lançam trovões; dito de outra forma, saem trovões das altas nuvens; as setas são os raios, que traçam itinerário de vaie-vem, ziguezagueante. 19.0 trovão é voz de Deus e parece caminhar sobre rodas ou avançar girando; recorde-se Antônio Machado: “o plúmbeo balão da tormenta de monte em monte ricochetear se ouvia”. Os relâmpagos alumiam ou deslum bram com suas luzes repentinas. A terra agita-se sonoramente. 20. Se mantivermos intato o texto hebraico, a falha rítmica produ efeito de surpreza, como que convidando a uma pausa assombrada perante o portento: “pelo mar teu caminho”. Veja-se Hab 3 em sua secção marinha. Transposição cristã 993 A frase final é magnífica: tuas pegadas não se deixavam ver, não se manifestavam. Nenhum outro poeta bíblico fala das pegadas de Deus. Ben 3ira faz dizer à Sabedoria personificada: “passei pela fundura do mar” 24,5). 21. A passagem de Deus e a mediação humana. O povo nada mais faz que se deixar guiar por seus chefes. Da mesma forma o orante deve deixarse guiar. Porque, no meio da situação trágica que vivem, Deus continua abrindo-se caminho sem deixar pegadas. E preciso senti-lo presente na convulsão, em vozes estranhas, em resplendores súbitos, e não se devem petrificar suas pegadas. Vêm à mente uns versos de Gerardo Diego con templando do cume do Urbión uma imensa paisagem de montanhas: “Geologia jacente, sem mais pegadas que um a nostalgia trêmula daquelas palmas de Deus palpando seu relevo”. 6. Transposição cristã A Vulgata traduziu Ex 12,11: “est enim Phase, id est, transitus Domini”; 12,27: “est enim victima transitus Domini”. O hebraico dos versículos 1112 diz literalmente: “é a Páscoa de Yhwh”. Eu atravessarei...” Aí temos os cristãos a chave: nossa páscoa é “transitus Domini”, o abrir-se passagem de nosso Senhor Jesus Cristo através do mar hostil da morte até a margem da ressurreição gloriosa. Não basta celebrá-lo na liturgia, estudá-lo com técnica histórica, nem meditá-lo só com as faculda des humanas. E preciso abrir-se na contemplação, para que o mistério se torne presente e atual, até que sintamos “a força de sua ressurreição” (F1 3,10). Essa é a memória que nos recomenda a segunda carta a Timóteo 2,8: e Recorda-te sempre de Jesus Cristo, ressuscitado da m orte... essa é a boa notícia que anuncio ... A mensagem de Deus não está encadeada. Podemos por pusilanimidade encadear o anúncio gozoso. A ressurrei ção de Cristo, crida e recordada e contemplada, tem que desencadear sua força avassaladora para transformar nossas vidas; segundo o conselho de Cl 3,2: Se ressuscitastes com Cristo, buscai o de cima, onde Cristo está sentado à direita de Deus; procurai o de cima, não o terreno. O segundo ponto de meditação cristã são as pegadas de Deus. Deixa Deus pegadas de sua passagem pela história? Deixou-as Jesus no tempo em que “entrou e saiu entre nós”? (At 1,21). Por curiosidade ou por devoção, 994 Salmo 77 buscamos pegadas petrificadas, relíquias palpáveis da passagem do Se nhor. Santo Inácio conta em seu diário que foi e voltou ao alto do monte das oliveiras para ver as pegadas emparelhadas que, segundo a lenda, tinham deixado os pés de Jesus ao se afastar da terra para subir ao céu. Ainda que se provasse ser o sudário de Turim a relíquia mais importante da cristan dade, o realmente importante continuará sendo a ação presente e poderosa de Cristo glorioso na vida da Igreja e na história da humanidade. Em estratos antiquíssimos conservam-se troncos de árvores belamente pretrificados: a uma rodela decorativa dessas pedras prefiramos árvores vivas. Às relíquias devotas prefiramos a passagem, fragorosa ou silenciosa, do Senhor . Mas quando Jesus passa por uma alma, não deixa pegada de sua passagem? Quão logo cicatriza no mar a esteira que abre um barco: quem nos curará das marcas da passagem do Senhor? “Quão insondáveis suas decisões, quão irresistíveis seus caminhos!” (Rm 11,33). Sobre o v. 10 diz Agostinho que “para Deus é mais fácil conter a ira que conter a misericórdia”; e Cassiodoro comenta que “é como se se fizesse força para não deixar agir a misericórdia, mas no fim vence a misericórdia”. Salmo 78 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Escuta, povo meu, minha instrução; prestai ouvidos às palavras de minha boca: pois vou abrir a boca numa parábola, farei brotar enigmas do passado. O que ouvimos e aprendemos e nos contaram nossos pais não o esconderemos a seus filhos, contá-lo-emos à geração seguinte: as glórias do Senhor e o seu poder e as maravilhas que realizou. Pois ele fez um pacto com Jacó, e deu uma instrução a Israel: ele mandou a nossos pais que o fizessem saber a seus filhos, de modo que o conhecesse a geração seguinte, os filhos que haviam de nascer; que eles sucedessem e o contassem a seus filhos, para que pusessem em Deus sua esperança e não se esquecessem das façanhas de Deus e cumprissem seus mandatos. Para que não imitassem seus antepassados: geração rebelde e contumaz, geração de coração inconstante, de espírito desconfiado de Deus. Os arqueiros da tribo de Efraim voltaram as costas na batalha. 10 Não guardaram a aliança de Deus e recusaram seguir suas instruções, 11 esqueceram-se de suas ações, as maravilhas que lhes tinha mostrado. 12 À vista dos pais fez portentos, em território egípcio, na campina de Soã. 13 Fendeu o mar para lhes abrir passagem barrando as águas como num dique. 14 Guiava-os de dia com a nuvem, de noite com o resplendor do fogo. 15 Fendeu a rocha no deserto, e deu-lhe a beber caudais de água. 16 Tirou arroios da pedra e fez descer água como rios. 17 Mas eles voltaram a pecar contra ele rebelando-se no ermo contra o Altíssimo. 18 Tentaram a Deus no coração pedindo uma comida para seu apetite. 19 Falaram contra Deus, dizendo: poderá Deus pôr a mesa no deserto ? 20 É verdade, golpeou a rocha, brotou água e se desbordou em torrentes; poderá também dar-nos pão e prover de carne o seu povo ? 21 Ouviu-o o Senhor e se indignou, um incêndio instalou-se contra Jacó, fervia sua cólera contra Israel, 22 porque não se fiavam de Deus nem confiavam em seu auxílio. 23 Deu ordem em cima às nuvens e abriu as comportas do céu; 24 fez que lhes chovesse maná para comer e lhes serviu um trigo celeste. 25 Um pão de heróis comeu o homem, mandou-lhes provisões até a fartura. 26 Transportou pelo céu o vento de levante, e guiou o vento sul com sua força. 27 Fez que lhes chovesse carne como pó, e voláteis como areia da praia: 28 fê-los cair no meio do acampamento, em redor de suas moradas. 29 Comeram até fartar-se e lhes satisfez sua avidez. 30 Com a avidez apenas saciada, com a comida ainda na boca, Salmo 78 31 a ira de Deus ferveu contra eles: deu morte aos mais robustos e dobrou a flor de Israel. 32 E contudo voltaram a pecar e não se fiaram de seus milagres. 33 Consumiu seus dias num sopro, seus anos num momento. 34 Quando os matava, buscavam-no e madrugavam para voltar-se a Deus; 35 recordavam-se que Deus era sua Rocha; o Deus Altíssimo, seu Redentor. 36 Adulavam-no com a boca, mentiam-lhe com a língua; 37 seu coração não era constante com ele nem eram fiéis à sua aliança. 38 Ele, porém, era compassivo: perdoava a culpa e não os destruía; muitas vezes reprimiu a cólera e não excitava todo o seu furor, 39 recordando que eram de carne, alento fugaz que não retorna. 40 Como se rebelaram no deserto enojando a Deus na estepe! 41 Voltavam a tentar a Deus, irritando o Santo de Israel, 42 sem recordar-se daquela mão que um dia os livrou da opressão: 43 quando fez sinais no Egito e portentos na campina de Soã. 44 Converteu seus canais em sangue e seus arroios, para que não bebessem; 45 mandou-lhes tavões para que os picassem e rãs que os destruíssem; 46 entregou ao gafanhoto sua colheita, a saltões o fruto de suas fadigas; 47 matou com granizo seus vinhedos e com aguaceiro suas amoreiras; 48 entregou à saraiva1seus gados, às centelhas seus rebanhos; 1à peste, epidemias 997 49 lançou contra eles sua ira ardente, sua cólera, seu furor, sua indignação: 50 despachando sinistros mensageiros, deu livre curso à sua ira; não salvou sua vida da morte, entregou suas vidas à peste. 51 Feriu os primogênitos no Egito, as primícias da virilidade nas tendas de Cam. 52 Tirou como um rebanho o seu povo, guiou-os como um redil pelo deserto; 53 conduziu-os seguros, sem alarmes, enquanto o mar cobria seus inimigos. 54 Fê-los entrar pela santa fronteira, ao monte que sua destra adquirira2 55 Tirou-os de diante dos povos, atribuiu-lhes por sorte sua herança, instalou em suas tendas as tribos de Israel. 56 Mas eles tentaram ao Deus Altíssimo, rebelaram-se e não guardaram seus preceitos; 57 desertaram, atraiçoaram como seus pais. falharam como arco enganoso: 58 irritavam-no com seus outeiros, com seus ídolos lhe davam ciúmes. 59 Deus ouviu e se indignou e rejeitou gravemente a Israel. 60 Arrancou a morada de Sião, a tenda que instalara entre os homens. 61 Abandonou seus valentes ao cativeiro, seu orgulho à mão inimiga; 62 entregou seu povo à espada, indignado com sua herança. 63 Aos jovens devorava o fogo, para as donzelas não havia galanteios; 64 seus sacerdotes caíam à espada e as viúvas não os choravam. 65 Despertou-se como de um sono o Senhor, como soldado aturdido pelo vinho; fundara Bibliografia 999 66 feriu o inimigo pelas costas infligindo derrota definitiva. 67 Rechaçou a tenda de José e não elegeu a tribo de Efraim; 68 elegeu a tribo de Judá, e o monte Sião, seu preferido. 69 Construiu-se um santuário como o céu, como a terra que alicerçou para sempre. 70 Escolheu Davi, seu servo, tirando-o dos apriscos do rebanho; 71 de andar atrás das ovelhas o levou a pastorear Jacó, sua herança. 72 Pastoreava-os com coração íntegro, guiava-os com mão experimentada. 2. B ibliografia T. Vargha, Pane angelorum manducavit homo: Ps 77 / 78,25, VD 19 (1939) 161-166. H. Junker, Die Entstehungszeit des 78 Ps und des Deuteronomiums, Bib 34 (1953) 487-500. O. Eissfeldt, Das Lied Moses D t 32,1-43 und das Lehrgedicht Asaphs Ps 78, samt einer Analyse der Umgebung des Mose Liedes, Berichte über die Verhandlungen der Sächsischen Akademie der Wissenschaften in Leipzig 104 (1958) 26-41. W . Herrmann, Götterspeise und Göttertrank in Ugarit und Israel, ZA W 72 (1960) 216. J. Schildenberger, Ps 78 und die Pentateuchquellen, em FS Junker, Tréveros, 1961, 231-256. L. J. Liebreich, The liturgical use o f Ps 78,38, em FS A. A. Neuman, Leiden, 1962, 365-374. S. Bartina, El salmo 78,72 y la reciente version latina, EstBib 21 (1962) 311-314. J. A. Emerton, Notes on three passages in Psalms Book III, JTS 14 (1963) 373-381. S. E. Loewenstamm, The tradition o f the Exodus in its development, Jerusalém, 1965. A. J. Brawer, Manna and ambrozia: Ps 78,25, BetMid 12 (1966-67) 34. 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Sb 16,20; explica Targ comida que descia da morada dos anjos. 26. LXX e Vg confundiram os ventos reduzindo-os a austro-ábreg sul, segundo Nm 11,31 “do mar”. Estudo global 1001 31. b m s h m n y h m : os (mais) gordos deles LXX VgÁq Sím; os mais ricos e poderosos Eutímio. 34. w sh h r w : madrugaram a maioria dos antigos e medievais, alguns referindo-se à oração da manhã. 36. w y p tw h w : modal tentavam persuadi-lo Targ, dilexerunt (fingindo) Vg Sir; Agélio corrige o grego epatesan em vez de egapesan. 39. bsr: debilidade natural Teodoreto; outros da debilidade física e moral. 42. ’shr: sem pronome de referência por referir-se ao tempo Zorell 87-88. 43. ’shr: temporal quando GB 75 a. 48. Ibrd: alguns manuscritos têm lã br = peste. Irshpym : ao fogo Vg, chamas de fogo Targ, aves Jerôn (cf. Jó 5,7). 49. m sh lh t m Vky r ‘y m : missão de anjos maus LXX Jerôn, missões pl Vg, demônios Heser; maus pelo dano que fazem explica Eutímio. 52. ’w n ym : parto ou trabalho de parto Jerôn Titelmann Eutímio; do trabalho do campo ou dos animais que trabalham para o homem Ayguanus; Genebrado p rim itia e laborum p a tru m im m o et m a tru m . 55. w yp ylm bhbl nhlh: literalmente, fez-lhes cair por corda (sorte) a herança; repartição da herança (segundo Js 13,6; Ez 45,1; 47,22); hbl nhlh Dt 22,9; lCr 16,18; SI 105,lí); npl bnhlh (Jz 18,1; Nm 34,2; Ez 47,14). 60. shkn: relativa assindética Joüon 158 a; lêem qal LXX Duhm Gun. 63. hw llw : pual com m a ter lectionis GK 8 c, 52 q. 65. m trw m n n : de rnn gritar, vociferar, exultar Qim Siegfried-Stade Paganini; de rw n = dominar, vencer kekraipalekos LXX crapulatus Vg Jerôn GB, caído em letargo Ibn Ezra Eutímio Titelmann. 69. rm ym : alturas Hitzig, alturas celestes Del; unicórnio LXX Vg Jerôn Teodoc Targum. y s d h : relativa assindética Joüon 158 a. 4. Estudo global a) Gênero e situação Este salmo é uma meditação histórica, parente próximo de 105 e 106; pelo começo, podemos inscrevê-lo numa atividade sapiencial, com o 49, com o qual coincide na definição de m ashal e hlda. A meditação histórica alcança até a dupla eleição de Davi ou dinastia e do monte ou templo. Poder-se-ia tomar isso como indício temporal, e neste caso seria salmo antigo. Creio antes que a situação constitui definição polêmica em favor do reino meriodional e sua capital. O SI 80 apresenta o Senhor como pastor de Benjamim, José, Efraim e Manassés, com preponderância numérica das Salmo 78 1002 tribos setentrionais; o SI 78 afirma a rejeição de José e Efraim. Pode vir à baila a notícia sóbria e surpreendente de lCr 5,ls, que declara: “E certo que Judá foi mais poderoso que seus irmãos e chefe deles, mas a primogenitura foi de José” (Donde está tu hermano?, 245). Com a menção de Efraim (reino do norte ou tribos setentrionais) em 9, de José e Efraim em 67 (quase uma inclusão), o autor parece descarregar as culpas sobre eles; com a rejeição parece querer desocupar o terreno para proclamar a eleição de Davi. Ao colocar essa no final, parece dizer-nos que com ele começa nova era histórica. Em conseqüência, o salmo constitui meditação madura, intencionada, que remonta às origens. Como “histórica”, é exercício da memória que ademais tematiza a memória; como meditação, toma um ponto de vista que define a composição. Será preciso desenvolver certos aspectos. b) Composição Como o salmo é muito longo (o segundo em tamanho do saltério), seguirei especial tática de explicação. Mostrarei a organização em blocos e estudarei cada bloco na secção exegética. Seguirei de perto o estudo sobre o SI 78 de Jesus Munoz, que considero o trabalho mais competente e ao mesmo tempo original. Para a articulação do salmo, o v. 9 representa obstáculo que muitos comentadores não sabem integrar: transladam-no ou corrigem-no. Respei tando a ordem atual e tomando como indício os sujeitos que atuam, ele = Yhwh e eles = povo, Munoz obtém a seguinte articulação de conjunto: Al BI 9-12 13-16 A2 B2 17-20 21-31 32-39 eles se esqueceram ele: maravilhas do êxodo eles tentaram ele: cólera intermédio reflexivo: A3 B3 40-43 44-55 A4 56-58 B4 59-72 alternância eles se esqueceram ele: maravilhas no Egito eles tentaram ele: cólera e eleição Essa disposição permite explicar o bloco, para outros rebelde, de 32-39. Permite de mais a mais descobrir relações paralelas entre setores A ou B, e cruzadas entre A e B. Deixamos essas relações para o estudo particular de cada bloco ou secção. Os títulos atribuídos no esquema sublinham o comum e reiterado e não refletem o movimento dialético, que se apressa no intermédio. c) Coordenadas — A coordenada temporal aplica-se artificiosamente. A introdução (3 8) estabelece a memória como fator de continuidade e permanência no tempo; podemos chamá-la também de “tradição” como princípio formal. Estudo global 1003 Tradição produz ou reforça a consciência histórica ao ocupar-se de fatos históricos. Tradição é um processo que chamamos de descendente e suces sivo. Artifício peculiar do salmo é ir remontando com a memória para trás: na terra, no deserto, no Egito. Como se fosse pouco, acrescenta-se um artifício que eqüivale a uma preterição; ou seja, nega-se para afirmar, acusa-se de esquecimento para trazer à memória. Os de A não se recorda ram de C, os de C não se recordaram de B, os de B não se recordaram de A. Esse remontar não configura a totalidade do salmo, mesmo sem levar em conta diversos tipos de memória. No final, chega-se ao momento da eleição dinástica, que pode inaugurar uma época regida pelo programa positivo da introdução. — A coordenada espacial demarca três espaços: na terra, no deserto, no Egito, outra vez na terra. E desemboca num ponto, o monte Sião. No desenvolvimento vão aparecendo outros lugares mais precisos, como o mar Vermelho, as heranças e, por contraste, Silo. O autor não define a que desterro se refere no v. 61; o mais coerente é supor que se alude à Assíria e à deportação de cidadãos do reino setentrional. Isso sugeriria que, embora a história de salvação tenha-se rompido no norte, continua no sul como novo e tradicional Israel. d) A memória Dir-se-ia que este salmo é um memorial contra desmemoriados. Dizse explicitamente: recordaram-se (35), não se recordaram (42), Deus se recordava (39), que não se esqueçam (7), esqueceram-se (11). Esquecer é delito e fonte de novos delitos; remédio é a tradição, o contar (spr 3.4.6). Mas não basta a simples recordação psicológica. As personagens do v. 20 recordam-se muito bem do dom prodigioso da água, mas não sabem tirar a conseqüência correta: em vez de confiar em Deus, querem submetê-lo à prova. Sim, ele nos deu água duma rocha, mas poderá dar-nos pão e carne? A memória recente agrava a desconfiança presente. Esquecer-se é delito, mas recordar-se não basta. Os paralelos literários do esquecimento ou da recordação são diversos e podem desempenhar funções diversas: conse qüência, acompanhamento, sintoma... No v. 7, o paralelo de não se esquecer é observar os mandatos; nos w . 10-11, precede o não-cumprimento do compromisso da aliança e segue o esquecimento; nos w . 35-36, à recordação devida e interessada seguem a falsidade e o engano, delatando recordação não-autêntica; em 41-42, o esquecimento segue o tentar a Deus, talvez como explicação. Em contraste, a recordação que Deus exerce é operativa e eficaz (v. 39). O autor parece Salmo 78 1004 exigir recordação que penetre no sentido pela compreensão e tire conseqüên cias para a conduta. e) A compreensão Temos que distinguir dois planos: a compreensão atribuída ou negada às personagens no interior do poema e a compreensão que obtém e formula o poeta no salmo, fruto de sua meditação. Já na introdução soa três vezes o verboyd‘, que parece sugerir conhecimento que supera a simples informa ção, especialmente por seu objeto que são as “maravilhas” operadas por Deus, algo que supera o fato empírico e revela-se nele. A mesma luz se deve ler a menção de “maravilhas” (raiz p l’) nos w . 4.11.12.32, dos “sinais e prodígios” no w . 43, o controle do céu nos w . 23.24.26. O que ocorre é que o poeta introduz sua compreensão cobrindo e ao mesmo tempo iluminando a falta de compreensão de suas personagens. Assim ocorre que a falta de compreensão revela-se em atitudes e condutas, que o autor pode usar indiretamente como exemplo que se deve evitar, acrescentando assim ao seu ensinamento o valor da exortação. Também se deve recordar e compreen der a eleição de Judá-Sião-Davi como ação de Deus. f) O pecado Pelo número e variedade de expressões, quase se diria que o salmo reconta mais os pecados do povo do que as façanhas do seu Deus. E como se quisesse recolher em seu leito muitos afluentes de experiência e formu lação do pecado. Sem contar ações específicas, assinalo os seguintes verbos: a rebelião: srr (8) e mrh (8.17.40.56) não observar, não seguir: Vshmr m’n llkt (10) pecar: ht’ (17.32) não confiar: Vrímn (8.22.32.37), Vbth (22) V hkyn lb (8.37) tentar, pôr à prova: nsh (18.41.56) seduzir e enganar: pth kzb (36), atraiçoar bgd (57) irritar, exasperar, dar ciúmes: h’çyb htwh hk’ys hqny’. falar contra: dbr b- (19). Dominam os verbos, não os substantivos como em confissões de pecado (talvez por isso falte psh‘ r‘). Várias encontram-se em binário e mesmo quaternário (8ab), pelo costume de paralelismo: o modo de emparelhar permitiria análise mais detalhada. O pecado dominante é não se fiar de Deus, depois de tudo o que dele experimentaram, e pô-lo à prova. Ou seja, a relação pessoal com Deus é mais importante do que a observância de normas e preceitos. Ainda que também estejam presentes: aliança (10.37), lei ou instrução (tôra 1.5.10), compromis 1005 Estudo global so {‘edüt 5), mandatos (miçwot 7, ‘edot 56). O salmo não constitui expressão de confiança do orante, mas antes exortação: é preciso confiar em Deus. g) Elaboração do autor A meditação de orante pode seguir curso livre, inclusive pode perderse em divagação. Se o poeta quer transformá-la em poema comunicável, compartilhável, tem que se distanciar para organizar seus materiais. Sobrevêm um trabalho de seleção, que é tomar e deixar, e dispor segundo alguma norma. Tão importante como o que toma, pode ser notar o que deixa. Examinarei aqui seleção e disposição sem separá-las rigorosamente. Começo pela disposição do material narrativo. — A atuação de Deus distribui-se em várias séries que esquematizo. 12 Egito 13 mar Vermelho 14-16 deserto: água/guia 23-29 pão/carne 43-51 Pragas 52s mar Vermelho: morte 52s (deserto/guia) 54s terra entregue A certa distância aprecia-se a diversidade do movimento e a função complementar de ambas as séries: primeira Egito-mar Vermelho-deserto, segunda Egito-mar Vermelho-terra. A primeira fica truncada, a segunda chega a seu destino. Sóbria a referência ao Egito na primeira, recheia-se com a ampla descrição das pragas na segunda. A passagem do mar Vermelho distribui seus desenlaces correlativos: passa o povo na primeira, afoga-se o inimigo na segunda. Fugazmente se alude ao deserto na segunda, porque se desenvolveu amplamente na primeira. A terceira ação de Deus, em 60-64 e 65-72, é assimétrica com respeito às duas anteriores: em vez de libertação, eleição; em vez de inimigo estrangeiro, parte do próprio povo. — Deparamo-nos com rebeliões do povo em quatro zonas: 9-11 17-20 40-41 56-58 na terra: esquecimento do que vem em seguida no deserto: desafio, em cunha entre água e pão no deserto: rebelião genérica na terra: idolatria Se as ações de Deus recolhem os benefícios essenciais da libertação, pode-se sentir a falta da aliança no Sinai. E possível que se tenha aludido a essa nos termos bryt, twrh e sua constelação. Nas rebeliões do povo faltam as mais importantes: o bezerro de ouro (Ex 32) e a recusa a entrar na terra (Nm 13-14); talvez as rebeliões de Coré, Datã e Abiram. A primeira pode faltar porque o autor salta o Sinai e remete a idolatria ao tempo da vida na terra. A segunda pôde encontrar alojamento cômodo entre 39 e 42. A terceira é res trita, não do povo inteiro. Também não estranha a falta de outras menores. 1006 Salmo 78 Indiquei ausências maiores; postos a buscar outras menores, não acabaríamos nem entenderíamos melhor o salmo. — Seleção e disposição não é tudo, mas antes é decisivo o ponto de vista. Como vê ou como olha o autor os fatos? O duplo título de seu poema nô-lo iluminará (seguirei de perto a penetrante exposição de Munoz). O autor chama seu poema de parábola ou comparação ou enigma. h) O enigma Ou os enigmas, como diz o texto. Não carece colocá-los como fazia Sansão nas festas de bodas, basta contar intencionadamente. A tradução “paradoxo” é talvez a mais acertada. Em presença de tantos prodígios de Deus, não é paradoxal a desconfian ça do povo? Depois de tantos benefícios, não é paradoxal a rebeldia? Que, ao terminar a longa e árdua caminhada para uma nova pátria, se instaure a idolatria, não é inexplicável? Responde-se que se esquecem, mas a resposta propõe novos paradoxos. Como se esquecem da grande libertação tendo uma cadeia ininterrupta de recitadores que mantêm viva a recordação? (9-11). Os que estão no deserto, como se esquecem dos recentes acontecimentos no Egito (40-41)? Não é enigmático um povo que assim procede? Chega ao deserto, onde a vida depende inteira de Deus, e lança o desafio da desconfiança: “para ver se pode ou não pode?”. Chega à terra, onde a subsistência está assegura da, e dedica-se a provocar os ciúmes de seu Deus. A resposta ao enigma encontra-se no salmo, mas reservo-a para mais adiante. O que dizer do enigma desse Deus? Ou dos enigmas. Um, e bem estranho, configura o bloco 21-31. A inclusão diz-nos que Deus reage com cólera contra seu povo; o corpo diz-nos que Deus atende generosamente a seu pedido. E um paradoxo que nós o tenhamos formulado na frase idiomática: “no pecado a penitência”. O SI 106,15 assim o formula: “man dou-lhes uma cólica por sua gula”. Mais estranho é o segundo enigma de Deus: que, ao ver a rebeldia do povo no deserto, continua ocupando-se com eles e guiando-os rumo a novo começo em novo país. Que, ao ver sua rebelião nessa terra, queira começar de novo inaugurando uma era dinástica. O enigma conjugado das relações deste Deus com esse povo resolve-se em três versículos centrais do poema (38-39). Conjugando o juízo de Deus sobre o povo e o juízo do orante sobre Deus. Esse povo é de carne, alento fugaz que não retorna. A fragilidade e a caducidade o explicam e descul pam. Deus as conhece, pois que as fez, e as leva em conta. O SI 103,14 dirá que “conhece nossa massa”. Deus, porém, é compassivo (rahâm), e por isso está disposto a coibir e depôr a ira. Di-lo o orante; sabe-o porque o disse o Estudo global 1007 Senhor a Moisés (Ex 34,6), e a tradição de Israel o recorda. A caducidade do homem conjugada com a compaixão de Deus explicam essa história: não como teorema, mas como constante paradoxo. Quando chegarmos a Davi, não se terão mudado radicalmente as coisas, porque também ele é fraco e caduco. A história terá que sempre se acolher na compaixão de Deus. Chegará um sucessor de Davi que supere a condição humana? i) A parábola Ou a comparação. A imagem do pastor que cuida de seu rebanho unifica o poema. Não em alegoria intelectual e abstrata, mas por meio de presenças discretas e dum dinamismo que se resolve no final. A compara ção só está explícita no v. 52. Os verbos próprios ou freqüentes do ofício distribuem-se assim: r‘h (70), hnhh (14.53.72), nhg (52), hby’ (54). Ao pastor toca logicamente prover de comida, bebida e guia às ovelhas, como o mostra o modelo do SI 23. Contudo, essas prestações não são especificamente pastoris, como indicam as expressões “preparar uma mesa, pão e carne”. E tradicional ver e descrever a caminhada pelo deserto em termos pastoris, e o autor do salmo continua discretamente a tradição. No final depõe toda discrição. O pastor conduziu o seu rebanho, através de obstáculos e resistências, até aprisco seguro. Pode abandoná-lo agora? Escolherá pessoalmente outro pastor recomendando-lhe que continue apascentando-as. Se Dt 32,12 diz que “só ele os conduz”, o salmo pronuncia a mediação de Davi. Para a tarefa, Deus lhe dá coração íntegro e mão experiente, pois que continua sendo do Senhor o rebanho. Cumprirão Davi e sua dinastia a função de representar devidamente o Senhor como pastor? Será preciso esperar um futuro sucessor de Davi, que venha preencher as exigências do ofício? Há outra possível dimensão parabólica que me atrevo a propor com reservas. Nos versículos 60-64 fala-se da destruição do santuário de Silo com a conseqüente matança e desterro próprios de derrota militar. Nossas notícias sobre a desgraça de Silo são escassas: a derrota dos israelitas com a morte de Hofni e Finéias e a captura da arca, que não volta a Silo, mas a Bet Semes (ISm 4-5), a referência de Jr 7,12.14 e 26,6.9. Ora, a morte de três sacerdotes e a captura da arca justificam a descrição do salmo? Desterro, matança, incêndio ... Por que só Efraim e José quando ISm fala genericamente de Israel? Suponhamos que o salmo tenha sido composto depois da queda de Samaria no ano de 622, com a invasão brutal, três anos de cerco, deportação em massa. O autor reflete sobre os fatos e apresenta-os na parábola de Silo; indica ao mesmo tempo o caminho da salvação de Judá com o templo de Sião e a dinastia davídica. Aí continuará Israel. E 1008 Salmo 78 explicação plausível que, como muitas outras hipóteses, por falta de informação, não podemos provar. 5. Exegese 1-2. Apresentam-nos um quaternário: instrução, palavras, parábolas, enigma, twrtyé também expressão sapiencial (3,1; 4,2; 7,2); equivalente (1,8; 6,20) (todos da primeira secção de Provérbios). Algo parecido ’mrypy: além da súplica de SI 54,4 e 19,15, lê-se em Pr 4,5; 5,7; 7,24; 8,8 (como o anterior). O caráter sapiencial de mshl e hydh não é preciso provar; veja-se também SI 49,5 e Eclo 39,2s. Sua função no salmo fica explicada mais acima. 3-8. Estão sob o signo da tradição: nós da geração presente recebemos de nossos antepassados (’bwtynw) o relato, contamo-lo a seus sucessores para que por sua vez o contem a seus sucessores. São quatro gerações ou quatro balizas em longa cadeia que não se deve romper. Uma série de repetições sublinham a continuidade: pais (3.5.8), filhos (4.6ab), geração (4.6.8ab), contar (3.4.6), conhecer (3.5.6). Enuncia-se também o conteúdo da tradição, loas, maravilhas, faça nhas de Deus; e a finalidade de gerar confiança e observância. 1 2 3 4 5 6 7 8 Escuta, povo meu, minha instrução; prestai ouvidos às palavras de minha boca: pois vou abrir a boca numa parábola, farei brotar enigmas do passado. O que ouvimos e aprendemos e nos contaram nossos pais não o ocultaremos a seus filhos, contá-lo-emos à geração seguinte: as glórias do Senhor e seu poder e as maravilhas que realizou. Pois ele fez um pacto com Jacó e deu uma instrução a Israel: ele mandou a nossos pais que o fizeram saber a seus filhos, de modo que o conhecesse a geração seguinte, os filhos que haviam de nascer; que eles sucedessem e contassem a seus filhos, para que pusessem em Deus sua esperança e não se esquecessem das façanhas de Deus e cumprissem seus mandatos. Para que não imitassem seus antepassados: geração rebelde e contumaz, geração de coração inconstante, de espírito desconfiado de Deus. Exegese 1009 3. Ainda que tenha começado no singular, a personagem fala no plural, em nome de corporação e de geração. 4b. E antes raro o plural de thlwt e é muito raro o substantivo 'zwz = poder. 5. O sintagma wyqm ‘dwt é único e parece imitar a fórmula hqym bryt (típica do Sacerdotal); pode-se interpretar como impor um compromis so, estabelecer uma obrigação. Em outras combinações, ‘dwt significa o protocolo da aliança que se guarda na arca (freqüente em Ex e Nm). 6b. qwn é o verbo que se usa para significar a sucessão física dos filhos que nascem. 8a. swrr wmrt funciona como hendíade. 8b. E rara a expressão hkyn lb sem complemento indireto; o paralelo mais próximo é ISm 7,3 que acrescenta ’l Yhwh pedindo constância na conversão, antes da batalha vitoriosa contra os filisteus (depois da derrota de Silo e Afec). 9 10 11 Os arqueiros da tribo de Efraim voltaram as costas na batalha. Não guardaram a aliança de Deus e recusaram seguir suas instruções, esquecendo-se de suas ações, das maravilhas que tinha mostrado. Vimos que introduzir aqui Efraim tem sua justificação na composição total do salmo (e talvez na conjuntura histórica). Os que consideram o v. 9 glosa ou o transladam ou o corrigem, quiseram prolongar a introdução de 3-8 até o versículo 11, sem dar razões convincentes. O que é certo é que esses três versículos enlaçam-se com a introdução por várias repetições verbais, com o que a tribo de Efraim entra em cena como o magno re presentante da atitude condenada antes: são eles por antonomásia a geração que se esqueceu e que não guarda a lei nem a aliança. O arco e o voltar-se devem soar com força para que se reconheça seu retorno pelo final (v. 57). Essa relação é reforçada pela repetição de “não guardaram” (1 0 .5 6 ). 12 13 14 15 16 À vista de seus pais fez portentos, em território egípcio, na campina de Soan. Fendeu o mar para abrir-lhes passagem barrando as águas como um dique. Guiava-os de dia com a nuvem, de noite com o resplendor do fogo. Fendeu a rocha no deserto, e deu-lhes a beber caudais de água. tirou arroios da penha e fez descer a água como rios. Salmo 78 1010 Transladamo-nos ao começo da história no Egito. As pragas estão reduzidas ao substantivo p l’ como coletivo; em seguida chegam ao mar Vermelho e encontram-se no deserto. A água é elemento dominante, marcado pela anáfora “fendeu”: mar, água, caudais, arroios, água. O efeito é contrário: o mar Vermelho ergue-se num dique, a penha abre-se em manancial. O Senhor domina os elementos e maneja-os com generosidade. A nuvem (água) e o fogo servem de mediadores para guiar continuamente seu povo, de dia e de noite, sem cessar. Agua como dique e rocha como fonte: o contraste exalta a maravilha. Não resta resquício para a dúvida; no espaço e no tempo nada se subtrai ao poder benéfico de Deus. As duas versões da água retornarão em ordem inversa em 44 e 53. Mudança de função segundo concirna ao povo ou ao inimigo. O tema do guiar retornará em 52.53.72. 13. E comum a confusão de ned = dique com nod / n’d = odre. Assim leram e traduziram LXX Vg Sím Targ. 15. thmwt refere-se a correntes de água doce subterrâneas que afloram nos mananciais: vejam-se Dt 8,7 unido a ‘ynt, 33,13 especificado rbçt tht. 17 18 19 20 M as eles voltaram a pecar contra ele rebelando-se no ermo contra o Altíssimo. Tentaram a Deus no coração pedindo uma comida para seu apetite. Falaram contra Deus, disseram: poderá Deus pôr a mesa no deserto? E verdade, golpeou a rocha, brotou água e se desbordou em torrentes; poderá também dar-nos pão e prover de carne o seu povo? Sem respeitar a ordem de Ex e Nm, a passagem da bebida à comida realiza-se num ato de rebelião e desafio. Compraz-se o autor em sublinhar o contraste das condutas. Está em jogo o alcance do poder de Deus, que se demonstrou no elemento água; pão e carne são outro domínio, que pertence teoricamente à agricultura e ao pastoreio e à caça; vegetais e animais, não rochas e penhas. E de sublinhar a repetição do nome divino Altíssimo em 17.35.56. 17.0 autor procura mudar os termos como que buscando a acumula ção: deserto, ermo, páramo. Não sabemos se o autor ou os ouvintes captavam a paranomásia de çyh com çywm. 20b. O autor muda a versão de Nm 11, que opõe carne a maná; no salmo formam paralelo rigoroso, mais perto do cardápio de Elias, pão pela manhã, carne pela tarde e água da torrente (lRs 17,7). E curioso que LXX e Vg tenham substituído a menção da carne pela repetição de “pôr a mesa”. Exegese 1011 21 Olhou o Senhor e se indignou, um incêndio estalou contra Jacó, fervia sua cólera contra Israel. 22 porque não se fiavam de Deus nem confiavam em seu auxílio. 23 Deu ordem em cima às nuvens e abriu as comportas do céu; 24 fez que lhes chovesse maná para comer e lhes serviu um trigo celeste. 25 Um pão de heróis comeu o homem, mandou-lhes provisões até a fartura. 26 Transportou pelo céu o vento do levante, e guiou o vento sul com sua força. 27 Fez que chovesse carne como pó, e voláteis como areia da praia: 28 fê-los cair no meio do acampamento, em redor de suas moradas. 29 Comeram até fartar-se e satisfez sua avidez. 30 Com a avidez apenas saciada, com a comida ainda na boca, 31 a ira de Deus ferveu contra eles: deu morte aos mais robustos e dobrou a flor de Israel. Já indiquei que é essencial ler o episódio enquadrado numa reação de cólera divina. E a resposta ao desafio: — Não podes? — Já verás se posso; e verás as conseqüências. O “incêndio” pode significar a metáfora comum da cólera, recuperado seu valor descritivo, ou pode aludir a algum dos castigos no deserto. O delito consiste em não confiar. Desta vez, o domínio de Deus exerce-se e manifesta-se no reino dos meteoros, o céu, as nuvens e os ventos. Para alimentar periodicamente o seu povo, Deus faz chover do céu (por exemplo, Dt l l , l l s ; SI 65,10; 85,13; Is 55,10). Agora faz chover, no deserto, um pão já confeccionado. Os ventos, que estão a serviço de Deus (SI 104,4), inclusive o funesto levantino, tornam-se portadores de carne fresca, saborosa e abundante. O pó e a areia, ainda que venham no versículo 27 como comparação, podem fazer pensar no terrível simum, que mudou estranhamente sua mercadoria. O prodígio torna-se ambivalente: a abundância acessível corresponde à “avidez”, e essa chega à saciedade mortal. A avidez do homem converte o bem em mal, converte o benefício em malefício. O autor o diz fazendo de Deus o sujeito do último versículo. 21. Na etapa do deserto, a comunidade inteira chama-se Jacó ou Israel. O fogo pode recordar o breve episódio de Nm 11,1-3: um incêndio (b’r) que dá nome á paragem, Tabera. Salmo 78 1012 23. Para as comportas do céu no dilúvio empregam outro termo (Gn 7,11; 8,2; Is 24,18); com função benéfica (2Rs 7,2 e Ml 3,10). 25. ’abblrim não significa por si anjos; só a referência ao céu muda o posto para os heróis ou campeões ou paladinos. Não temos notícia de raça de heróis alimentados com manjar celeste. 30. “Afastaram-se do que tinham cobiçado e saciaram sua glutonaria; mas com o afã insaciável acarretaram-se o castigo” (Teodoreto). 31. Os mais robustos ou gordos, roliços. A flor são os moços, que reaparecem no v. 63. 32 33 34 35 36 37 38 39 E contudo, voltaram a pecar e não se fiaram de seus milagres. Consumiu seus dias num sopro, seus anos num momento. Quando os matava, buscavam-no e madrugavam para voltar-se a Deus; recordavam-se de que Deus era sua Rocha; o Deus Altíssimo, seu Redentor. Adulavam-no com a boca, mentiam-lhe com sua língua; seu coração não era constante com ele nem eram fiéis à sua aliança. Ele, ao invés, era compassivo: perdoava a culpa e não os destruía; muitas vezes reprimiu a cólera e não excitava todo o seu furor, recordando que eram de carne, alento fugaz que não retorna. Já definimos essa pejja como intermédio reflexivo, e apreciamos sua centralidade no poema. E muito importante a divisão, indicada grafica mente, e o jogo de repetições e contrastes que resulta. Repete-se o verbo ’mn negado em 32 e 37: é o pecado capital do povo; repete-se o pecado com termos ht’ e ’wwn em 32 e 38: uma vez cometido, outra vez perdoado. Repete-se shwb em 34 e 38: uma vez é a conversão efêmera do povo, outra vez é a deposição da ira da parte de Deus. Repete-se o tema matutino em 34 e 38: o primeiro é a ação efêmera do povo, o segundo é a contenção divina. E repete-se o recordar em 35 e 39: o povo se recorda que Deus é Rocha e Redentor, Deus se recorda que o homem é carne e alento. O intermédio tem, de mais a mais, tentáculos de enlace verbal ou temático com o resto do poema. Nele triunfa a misericórdia, como no final do salmo. 33. Veja-se SI 39,6. A caducidade humana acelerada pela ação divina verbo klh no piel (no qal, como a Vulgata). 1013 Exegese 34. A pressa em madrugar não é limpa, como a do SI 57 ou 63,2 ou Is 26,9; é antes como a de Os 5,15-6,6 sob a urgência da desgraça e enquanto dura. 35. Os dois títulos em paralelismo fecham o SI 19. A Rocha oferece sólido fundamento para apoiar-se/fiar-se/crer; o Redentor tem compromis so familiar ou funcional com o desgraçado. 36. Este é o único caso em que o piei de pth tem um homem como sujeito e Deus como complemento; o sentido é modal, tentativa de persua dir, seduzir com agrados. Compare-se com a tática da mulher infiel em Jr 3,4s e com o texto citado de Oséias. 37. Como em outras ocasiões, opõe coração ou mente a boca. 38. Com ênfase e em contraste apresenta-se a figura de Deus, primei ro com simples adjetivo que é quase título. E freqüente a fórmula dupla, hnwnwhwn (por exemplo, SI 11,4; 112,4; Ne 9,31); outras vezes se aloja em séries de quatro e mesmo cinco adjetivos. O coíitentar-se com um só (como Dt 4,31) pode acrescentar ênfase. O verbo, em particípio ou em forma finita, é mais freqüente, e parece ajuntar-se na proclamação do Isaías do desterro: 49.10 13 54.10 não passarão fome nem sede, não lhes fará dano o bochorno nem o sol, porque os conduz o Compassivo e os guia para mananciais de água. porque o Senhor consola seu povo e compadece-se dos desamparados. diz o Senhor, que se compadece de ti. O matiz paterno e materno da compaixão aparece em Is 49,15 e SI 103,13. O verbo usado para perdoar (kipper) é cultual; é muito raro usá-lo para Deus como sujeito (Jr 18,23 negado; SI 79,9; 2Cr 30,18). Não aniquila, sem complemento (contra Vg): o enunciado mantém tom geral porque tenta descrever o caráter de Deus mais do que uma ação determinada. 38b. Várias vezes diz Ezequiel que Deus “esgota” ou desafoga toda sua ira contra alguém (Ez 7,8; 20,8.21); o salmo o nega. Na ordem humana emprega a mesma fórmula Pr 29,8: “os judiciosos acalmam os ânimos” (yshybw ’p). 39. Definição do homem que equivale a desculpa ou atenuante de sua conduta. Uma carne e um alento, um efêmero alento que anima um corpo desagregável: Ecl 3,19. Todos têm o mesmo alento, e o homem não supera os animais. Todos são vaidade. 20 Todos caminham para o mesmo lugar, todos vêm do pó e todos voltam ao pó. 21 Quem sabe se o alento do homem sobe para cima e o alento do animal desce para a terra? Gn 6,3 Meu alento não durará para sempre no homem, visto que é carne. Salmo 78 1014 40 41 42 Como se rebelaram no deserto enfadando a Deus na estepe! Voltavam a tentar a Deus, irritando o Santo de Israel, sem se recordar daquela mão que um dia os livrou da opressão. D e novo nos encontram os no deserto, onde o esquecim ento nos vai recordar as experiências do E gito. O pecado é o m esm o: esquecer, rebelarse e tentar a D eu s; o título Santo de Israel rem on ta a Isa ía s. O verbo p d h pode ser paralelo ou substitu tivo de g í (que se u sa no v. 3 5): neste lugar funciona como síntese program ática do que segue; o relativo suaviza a p a ssa g em ao novo bloco, o das pragas: 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 quando fez sinais no Egito e portentos na campina de Soan. Converteu seus canais em sangue e seus arroios, para que não bebessem; mandou-lhes tavões para que os picassem e rãs que os destruíssem; entregou ao gafanhoto sua colheita, a saltões o fruto de suas fadigas; matou com granizo seus vinhedos e com aguaceiro suas amoreiras; entregou ao pedrisco seus gados, e às centelhas seus rebanhos; lançou contra eles sua ira ardente, sua cólera, seu furor, sua indignação: despachando uns sinistros mensageiros, deu livre curso à sua ira; não salvou sua vida da morte, entregou suas vidas à peste. Feriu os primogênitos no Egito, as primícias da virilidade nas tendas de Cam. Tirou como um rebanho o seu povo, guiou-os como um fato pelo deserto; conduziu-os seguros, sem alarmes, enquanto o mar cobria seus inimigos. Fê-los entrar pela santa fronteira, ao monte que sua destra adquirira. Tirou-os de diante dos povos, atribuiu-lhes por sorte sua herança, instalou em suas tendas as tribos de Israel. A evocação das pragas engrandece o tam an h o deste bloco. E s tá claro que não segue a lista oficial do êxodo. Por quê? A lg u n s respondem que se atém a u m a só tradição: ou ignora as outras ou as exclui. N a seleção, a ausência m ais saliente é a praga das trevas (a preferida do livro da Exegese 1015 Sabedoria). Alguns observam a maior atenção dada aos meios de subsistên cia, agricultura e gado. Outros assinalam em detalhe contrastes com a secção do deserto (13-16). A tudo isso se acrescenta a dúvida do v. 48a: devese ler brd, como no texto hebraico, duplicando o granizo, ou deve-se corrigir para dbr, com alguns manuscritos, adiantando o 50b? O autor deixa-se levar pela lei do paralelismo, agrupando ou desdo brando, dando mais importância ao vaivém rítmico que ao número ou à lista tradicional: tavões e rãs, gafanhotos e saltões, granizo e aguaceiro, granizo e centelhas (ou peste e epidemia); no princípio sangue e no final matança de primogênitos (é difícil encaixar o terceiro membro do v. 50). Sangue, sinal e portador de morte, animais nocivos de água e terra firme, meteoros, doenças. Ou seja, um cortejo de quatro paixões personificadas como “mensageiros fatídicos” ou executores sinistros: Ira-Cólera-Furor-Indignação. Além do movimento alternante, o autor aplica um esquema, colocando no começo do versículo verbos ativos cujo sujeito é Deus. O v. 50 soa à primeira leitura como resumo final, equilibrando o genérico inicial (43); numa segunda leitura descobrimos que fica pendente a praga final, a matança de primogênitos. Por que a atrasa? Talvez para enlaçá-la imedia tamente com a saída do povo. Também o versículo da saída e do deserto (52) adianta-se à passagem do Mar Vermelho (53b). Quanta cólera divina desatada contra o seu povo (21 e 31), depois contra os egípcios (49-50). Os dois versículos 38ab, o único adjetivo Compassivo são realmente contrapeso a tanta cólera? Com a matança de primogênitos e o exército afogado no mar parece esgotada a cólera de Deus. Por que desta vez não a coíbe? Não são também os egípcios alento fugaz num corpo? Para o autor, o castigo é justo e condição para salvar as vítimas inocentes. 43. O binário ’twt wmwptym é estável e típico de tradições do êxodo. O versículo repete a toponímia do v. 12. 44. Ex 7,14-24. O castigo é sinistro porque água e sangue são ambos princípios portadores de vida. 45. Ex 7,25-8,15. Animais ao parecer inofensivos, como as rãs, tor nam-se destruidores. Sb 12 apresentá-lo-á como juízo de zombaria. 46. Ex 10,1-20; J1 1. Alguns tradutores antigos mudaram os saltões para gorgulho. 47. Ex 9,13-35; uso único de hnml. 48. Já indiquei as alternativas: a) conservar brd e continuar em regime de tormenta, em cujo caso rshpym são centelhas mortíferas (Ct 8,6); b) ler dbr e passar à doença mortal, em cujo caso rshpym são epidemias (Dt 32,24; Hab 35). Prefiro a segunda alternativa, que corresponde melhor a Ex 9,1-7. Salmo 78 1016 49. O Senhor pode enviar mensageiro ou delegado seu com fins benéficos (Ex 23,20; 33,2; Ml 3,1); contra os egípcios envia um “destruidor” ou devastador ou exterminador para executar condenação (Ex 12,13.23); o salmo combina os dados para criar destaque. Também a destruição de Sodoma é executada pelos legados (mVkym) do Senhor (Gn 19,1-13). 50. A última frase do versículo é muito duvidosa: para salvá-la é preciso traduzir hytm como sua vida, paralelo sinonímico de npshm. È muito provável que signifique animal, fera, e seja duplicação que explica o b’yrm de 48. Desta vez, a cólera aponta e acertará os primogênitos. 51. Primícias de sua virilidade (como em Gn 49,3; Dt21,17; SI 105,36). Designar o Egito com o nome de Cam é típico desse salmo e de 105,23.27; falar de “tendas” é metáfora inocente. 52. E freqüente no saltério a designação do povo como rebanho do Senhor. Neste salmo tem função particular. 53. “O mar” os “cobriu” (como em Ex 15,5.10). 54. Santa ou sagrada por ser propriedade do Senhor. Monte: abarca todo o país de Canaã visto como região montanhosa, oposta à terra baixa do Egito. 55. A tarefa libertadora termina assentando em Canaã todas as tribos de Israel. O dado é importante para o que segue no salmo: este final é um começo em que a responsabilidade é compartilhada por todos. Até aqui só existe um Israel ou Jacó sem distinções. 56 57 58 M as eles tentaram o Deus Altíssimo, rebelaram-se e não guardaram seus preceitos; desertaram, atraiçoaram-no como seus pais, falharam como arco enganoso: irritaram-no com seus outeiros, com seus ídolos lhe faziam ciúmes. O pecado genérico e repetido especifica-se agora na forma de idolatria, culto nos outeiros dedicados a Baal ou Asera. A condenação global dos “outeiros” (compare-se com ISm 9) pode nos conduzir à reforma de Josias: o vocábulo repete-se dez vezes em 2Rs 23; serve como critério de condenação nos dois livros dos Reis. Os ídolos (psl) são proibidos no decálogo (Ex 20,4; Dt 5,8) e nas maldições (Dt 27,15). O Deus ciumento não pode tolerar deuses rivais. O chamado cântico de Moisés em Dt 32 desenvolve o tema: 16 Deram-lhe ciúmes com deuses estranhos, irritaram-no com suas abominações ... 21 Eles me deram ciúmes com um deus ilusório, irritaram-me com ídolos vazios; pois eu lhes farei ciúmes como um povo ilusório, irrita-los-ei com uma nação fátua. Exegese 1017 57. O arco tomava-se em sentido próprio no v. 9, aqui se transforma em imagem. O arco é instrumento pessoal de caça ou de guerra; o povo é como instrumento pessoal do Senhor: “tensará Judá, empunhará como arco Efraim” (Zc 9,13). O arco deve manter-se tenso, não se afrouxar nem voltar atrás (nasôg 2Sm 1,22). Mas às vezes o arco revela-se falso (rmyh Os 7,16). Parece que o autor toma a imagem de Oséias. Em vez de apontar para seu Deus ou para onde seu Deus quer, apontam para deuses estranhos. Dos ciúmes muito depressa se passa à ira: “os ciúmes enfurecem o homem” (Pr 6,34). 59 60 61 62 63 64 Viu-o Deus e indignou-se e rechaçou gravemente a Israel. Arrancou a morada de Sião, a tenda que instalara entre os homens. Abandonou seus valentes ao cativeiro, seu orgulho à mão inimiga; entregou seu povo à espada, indignado com sua herança. Aos jovens devorava o fogo, para as donzelas não havia galanteios; seus sacerdotes caíam à espada e as viúvas não os choravam. O quadro, apesar de detalhes tão humanos, é genérico. Qualquer cerco e derrota podia terminar em morte e deportação; a cidade podia ser incen diada, como ilustram Js 8,18-29; Jz 20,36-44 e a série de Am 1. Mas o autor parece querer evocar uma catástrofe de grande envergadura; Silo é ponto de referência por sua sacralidade (recorde-se o citado Jr 7 e 26). Também não parece descrever um incidente local, facilmente reparado na próxima batalha (como em 2Sm 5-7). Ao não dar o nome do inimigo, qualquer pode ocupar o posto, contanto que seja conspícuo. Por isso me inclinei a pensar na invasão assíria de 622. 59. Rechaçou: a mesma expressão em2Rs 17,20: “O Senhor rechaçou toda a raça de Israel, humilhou-a, entregou-a ao saqueio”; várias vezes em Jr. 60. O verbo arrancar (ntsh) é típico de Jr; também aparece em lRs 14,15 anunciando a destruição do reino setentrional. 61. O exército é a força e o orgulho do soberano. SI 96,6 junta ambos os termos no santuário. 63. Os LXX derivaram hwllw de yll e seguiu-os a Vg non sunt lamentatae, também Jerôn nemo luxit, da mesma forma Eutímio Belarmino; corretamente Aq Sím Teod às moças = noivas não lhes cantaram loas, não lhes fizeram galanteios. Salmo 78 1018 64. A moços e moças correspondem sacerdotes e viúvas; também Lm presta particular atenção aos sacerdotes. Já indiquei a possível referência a Eli e seus filhos (só os filhos morrem na batalha). 65 66 67 68 69 70 71 72 Despertou-se como de um sono o Senhor, como soldado aturdido pelo vinho; feriu o inimigo pelas costas infligindo-lhe derrota definitiva. Rejeitou a tenda de José e não escolheu a tribo de Efraim; escolheu a tribo de Judá e o monte Sião, seu preferido. Construiu-se um santuário como o céu, como a terra que alicerçou para sempre. Escolheu Davi, seu servo, tirando-o dos apriscos do rebanho; de andar atrás das ovelhas levou-o para pastorear Jacó, seu povo, Israel, sua herança. Pastoreava-os com coração íntegro, guiava-os com mão experimentada. O salto é repentino e inesperado. Tudo o que ocorreu não foi, em rigor, ação de Deus; embora o poeta tenha dito que Deus abandonou, arrancou, entregou. Foi antes inação de Deus. Como se estivesse dormindo ou bêbado, deixou de agir, e aproveitou-se o inimigo. Mas também excedeu-se e pôs em grave perigo a existência da nação. A rejeição de Deus chega até esse ponto? De modo algum, diz o poeta; e não põe reparo em usar imagem audaz para descrever a reação de Deus. Na hipótese proposta, o salmo referir-se-ia à derrota de Senaqueribe. Destruído o reino setentrional, o imperador assírio apressa-se para liqui dar o reino meriodional. O que fiz com S amaria e suas imagens não o farei com Jerusalém e seus ídolos? (Is 10,11). Deus levanta-se de repente e põe em fuga os assediantes. Repito que essa é uma hipótese para indicar a conjuntura histórica do salmo; ou se não, um modelo para explicá-lo por analogia. No mais, o salmo fica aberto a novas leituras que joguem com o grande tema da eleição. 65. Pela expressão pode recordar o despertar de Sansão ao grito de Dalila. Dormir e despertar diz zombeteiramente de outros deuses Elias, em lRs 18,27; quando o sujeito é o Senhor, os autores preferem o verbo ‘wr (Is 51,9; SI 44,24; 59,5). 66. hrph no sentido objetivo de derrota, ignomínia de exército. 67. Tanto José como Efraim podem designar o reino setentrional (por exemplo, Ez 37,16; Am 5,6; Os 4,17; Is 9,8). Transposição cristã 1019 68. SI 87,3. 69. O novo santuário terá estabilidade cósmica, pois será outra fundação divina, alicerçado como a terra, elevado como o céu. 70. 2Sm 7; SI 89; ISm 16; lR s ll. 71. Reaparecem em paralelismo Jacó e Israel, que agora concentram a continuidade e podem levar o nome tradicional; como no deserto (v. 21 antes da monarquia e do cisma). 72. O pastor dá novo alcance a seu ofício e nome, por duas razões: porque agora o rebanho é um povo e apascentar é governá-lo; e porque agora é delegado do supremo pastor que é o Senhor. Mas Davi, além de ser pessoa, é dinastia. Seu nome e sua figura podem funcionar como “parábola”, figura do futuro pastor. 6. Transposição cristã A chave da transposição está na visão de Jesus como novo Davi e como bom pastor. “Davi aí é Cristo, porque este salmo continua sendo uma parábola. Como Davi foi pastor antes de ser rei, assim é nosso Salvador, rei dos reis. O exórdio do salmo ... anuncia-nos que falará em parábolas. Agrada-nos a prolixidade que, ao contar-nos a história, revela a graça do Novo Testamento. Como a água do mar reflete tantas luzes quantos são seus tremores, assim o salmo de tempos a tempos emite uma centelha deslumbrante, de tempos a tempos envolve em sombra a cruz” (Cassiodoro). Quanto ao gênero do salmo, o versículo 2 é citado por Mt 13,35 justificando o uso que Jesus fazia de parábolas em seu ensinamento; e matiza: “anunciarei coisas escondidas desde que começou o mundo”. A propósito dos episódios no deserto, Agostinho recorda ICor 10,11: “tudo isso lhes sucedia como figura”. O processo da tradição com que começa o salmo é alargado pelos Padres para encaixar o presente: “Ouvimo-lo no Antigo Testamento, conhecemo-lo no Novo, quando tudo se cumpriu em Cristo” (Cassiodoro). Aplicam o despertar de Deus à ressurreição de Cristo. Salmo 79 í. Texto 1 2 3 4 5 Ó Deus, os pagãos invadiram tua herança, profanaram teu santo templo, reduziram Jerusalém a ruínas. Deram os cadáveres de teus servos como pasto às aves do céu, a carne de teus leais às feras da terra. Derramaram seu sangue como água em torno de Jerusalém, e ninguém o enterravam. Fomos o escárnio de nossos vizinhos, burla e zombaria dos que nos rodeiam. Até quando, Senhor, ficarás enojado, sempre ardendo como fogo teus ciúmes ? 6 Derrama teu furor sobre os pagãos que não te conhecem, sobre os reinos que não invocam teu nome. 7 Porque devoraram Jacó, assolaram tua pastagem. 8 Não nos imputes os delitos dos antepassados. Que tua compaixão se apresse em nos atingir, pois estamos esgotados. 9 Socorre-nos, ó Deus Salvador nosso, pela honra de teu nome. Livra-nos e expia nossos pecados, em atenção a teu nome. 10 Por que haverão de dizer os pagãos: Onde está seu Deus? Que à nossa vista se mostre aos pagãos a vingança do sangue de teus servos derramado. Estudo global 1021 11 Chegue a tua presença o lamento do cativo, com teu braço poderoso salva os condenados à morte. 12 A nossos vizinhos paga-lhes sete vezes a afronta com que te afrontaram, Senhor. 13 E nós, povo teu, ovelhas de teu rebanho, te daremos graças para sempre, contaremos tuas glórias geração após geração. 2. Bibliografia J. Parisot, Psaumes de la captivité. Ps 47 et 79, RB 4 (1895) 572-578. R. Weber, Vindica sanguinem. Une veille faute des anciens psautiers latins, em Collige fragmenta, Beuron, 1952, 45-48. G. Bernini, Salmo 79. Preghiera sobre le rovine di Gerusalemme, em Le preghierepenitenziali dei Saltério, Roma,1953, 111-115. 3. Análise filológica I . 1‘yym: ruínas, escombros; estranha a tradução de LXX Vg e seus derivados, talvez por contaminação de Is 1,9 in pomorum custodiam. 2. Ihytw: cf. SI 50,10. Sobre a vocalização, J. Barth, ZDMG 53 (1899) 598. 7. ’kl: se se mantiver o sgl do hebraico, o sujeito mental será u coletivo; Vg lê plural. II. hwtr: hif de ytr deixar, preservar; leram hif de ntr soltar Sir Trag cf. Is 58,6, traduz posside Vg. 4. Estudo global a) Gênero e situação É uma súplica numa calamidade nacional, com os elementos clássicos: descrição da desgraça, confissão do pecado, denúncia da maldade do inimigo e petição de seu castigo, motivo da honra de Deus e promessa de ação de graças. Forma grupo homogêneo com os SI 44, 74 e 102, de que se distingue pela confissão explícita do pecado. A situação é o tempo depois da catástrofe de 587 / 586, que inclui: profanação do templo, matança, destruição da capital, burlas e blasfêmias; os sobreviventes são deportados ou condenados à morte. São traços que se Salmo 79 1022 podem ler ampliados ou com variantes nas Lamentações, e que no salmo não recebem tratação original. O salmo é pronunciado por uma comunidade que identifica as vítimas como “teus servos, teus leais”; eles identificam-se como “ovelhas de teu rebanho”. O inimigo não nomeado é a Babilônia e outros reinos vizinhos, englobados no nome genérico de pagãos, gentios = gwym em w . 1.6.10. Um antecedente remoto do gênero (não por influxo direto) pode ser a lamentação suméria pela destruição de Ur (ANET 455-463), da qual retomo alguns versos: 108 109 122 123 217 218 283 374 Minha cidade destruída em seus fundamentos. U r perece onde jaz. Minha casa, fundada por homens retos, afundou-se como choça dum pomar. Nas m a s por onde passeavam jazem cadáveres, seus cadáveres decompõem-se como manteiga ao sol. Meus filhos e filhas, ai de mim!, foram deportados. Até quando estarás afastada na cidade como um inimigo? Ainda que no final um fragmento de linha peça: “anula os pecados”, não se descreve a desgraça como castigo por pecados, mas como simples decisão dos deuses (Anunaki). b) Composição Não apresenta dificuldades nem tem mérito especial. Pelas pergun tas retóricas dos w . 5 e 10, pode-se dividir em três partes. A divisão é formal, já que o tema do castigo do inimigo distribui-se pela segunda e terceira secção. Mais definida é a primeira parte, dedicada a descrever a catástrofe. Não têm importância as repetições degwym em 1.6.10ab, daraiz ’kl em 2.7, do título íbd em 2.10. Mas são significativas, sem ser estruturantes, outras três. O nome de Deus ignorado por inimigos e invocado pelo povo em 6.9ab, o sangue derramado em 3.10 e o derramamento da cólera em 6, a injúria contra o povo e contra o Senhor em 4,12. c) Dois problemas particulares São a discriminação e a vingança de Lamec. — A comunidade parece pedir a Deus uma conduta discriminatória: para seu povo perdão do pecado e salvação: para os inimigos castigo sem piedade. Como se a compaixão do Senhor se reservasse exclusivamente para seu povo: “não te lembras, tem compaixão / derrama teu furor, pagalhes”. Estudo global 1023 Essa impressão inicial não é de todo exata, porque os judeus não se confessam réus de delitos tão atrozes e porque já sofreram o castigo correspondente e já expiaram os pecados. E o contrário da discriminação, quando muito é argumento a fortiori: se a nós tão gravemente nos castigastes, quanto mais deves castigar os inimigos. E o raciocínio de Jeremias na cena internacional da taça: 25,29 Deveis beber. 29 Porque, se na cidade que leva meu nome comecei o castigo, ficareis impunes? Não ficareis impunes. É o raciocínio implícito de Mq 7,8-20, texto talvez compósito, que em seu estado atual ilumina o salmo com suas coincidências de motivos agrupados; será útil selecioná-los aqui: 9 18 19 16 17 10 Suportarei a cólera do Senhor, pois pequei contra ele, até que julgue a minha causa e me faça justiça ... Que Deus como tu perdoa o pecado e absolve a culpa ao resto de tua herança? ... Voltará a compadecer-se, destruirá nossas culpas ... Que os povos ao vê-lo se envergonhem ... que mordam o pó como cobras ou répteis ... minha inimiga ... a que dizia: Onde está teu Deus? Veja-se também Lm 4,21s. Em segundo lugar, o inimigo, verdugo a serviço de Deus para executar castigo determinado, e que excedeu cruelmente na execução e incorreu em culpa grave. Assim o apresenta Is 10 falando da Assíria: 6 7 Contra uma nação ímpia o despachei, mandei-o contra o povo de minha cólera ... mas ele não pensava assim ... seu propósito era aniquilar. A comunidade pede a Deus que cesse o castigo e que agora lhe faça justiça castigando o inimigo. Contudo, trato diverso de Deus para com seu povo e para com os pagãos transluz-se no texto. Um autor tardio trata do tema em chave apologética (Sb 12,3-22). — A vingança de Lamec assim soava: “Se a vingança de Caim valia por sete, a de Lamec por setenta e sete” (Gn 4,24). Relendo o texto nessa orientação, descobrimos que a comunidade invoca implicitamente a lei do talião, igualdade de castigo e delito, mas num ponto pede que o castigo se multiplique por sete. E preciso recolocar a questão nestes termos: lei do talião ou vingança de Lamec? A correspondência pecado / castigo aparece nos seguintes elementos: “derramaram o sangue / vingança do sangue derramado” (3.10); “fomos a afronta / paga-lhes a afronta” (4.12). Precisamente no segundo elemento figura a cláusula “sete vezes”, e também um dado para responder ao 1024 Salmo 79 problema. Os inimigos não só afrontaram os judeus, pelo que mereceriam pena correspondente (cf. Hab 2,15s), mas também afrontaram o próprio Deus, e esse delito desborda a proporção: a blasfêmia em Israel leva pena de morte (Lv 24,10-16). Em Lv 26,21.28, multiplica-se o castigo por sete por causa do agravante de não escarmentar. Ademais, a expressão tem algo de hipérbole retórica para encarecer a gravidade dum castigo; veja-se a vingança do marido ciumento em Pr 6,31: “se o pegam, cobrar-lhe-ão sete vezes mais, e terá que entregar toda a sua fortuna”. 5. Exegese 1-4. A descrição discorre em versos largos que se estreitam (3+3+3 3+3+3 3+4 3+4). Cinco verbos de ação cujo sujeito são os pagãos, antes de uma cópula (hyh l-) com sujeito nós. Rapidamente o começo: invadem o território, profanam o templo, arrasam a capital; depois se alarga na matança de seus cidadãos. Este é um dos textos que utiliza o autor de lMc para descrever os desmandos de Antíoco IV; 7,17 cita em parte os versículos 2-3 do salmo; as elegias de 1,37-40 e 2,10-13 inspiram-se também nele. Tanto que autores antigos, como Atanásio, Eusébio, Teodoreto, referem o salmo aos macabeus. 1. A invocação inicial (que se pode ler como anacruse) serve para endereçar todo o salmo a Deus, e em concreto a descrição da primeira parte. O que poderia soar como informe objetivo, enuncia-se como denúncia e acusação formal. Como se dissesse: senhor juiz ou soberano, alguém atentou contra tuas posses e teus súditos. “Herança” do Senhor é o território (Ex 15,17), e em particular a capital (SI 47,3). Invadiram-na contra o preceito de respeitar as fronteiras e contra sua promessa de assistência (Lm 1,10): Viu os gentios entrar no santuário, ainda que tivesses proibido que entrassem em tua assembléia. Profanar o santuário é delito grave enunciado na lei e denunciado repetidas vezes pelos profetas (por exemplo, Lv 15,31; 20,3; Nm 19,13; Jr 7,30). Jerusalém em ruínas segundo o anúncio deMq3,12: “Por vossa culpa, Sião será um campo arado, Jerusalém será uma ruína, o monte do templo um cerro de brenhas”. 2. E motivo literário tópico. Já se lê no desafio de Davi a Golias (ISm 17,46); lê-se uma versão patética em 2Sm 21,10; uma versão trágica no final de Jezabel (2Rs 9,35-37); motivo reiterado em Jeremias. Leais: indica genericamente uma atitude; ainda não tem o valor técnico do SI 149. Exegese 1025 3. Derramar sangue é fórmula técnica do homicídio, que passou para nossas línguas e que atravessa vários corpos do AT. Desde o Gênesis (9,6; 37,22); culpa de Manassés (2Rs 21,16; Is 59,7; Jr 7,6; Pr 1,16; 6,17). Menção especial merece Ez 23,3.6.9.12.27, que chama Jerusalém de Cidade San guinária: delito que justificaria o castigo presente. E preciso enterrar o sangue ou cobri-lo para que não clame ao céu (Gn 4,10; Jó 16,18). 4. O tema da burla também é freqüente nas ameaças proféticas, especiamente em Jr; veja-se Lm 2,16; 3,46. 5-9. Estes sete versos, com sua distribuição proporcionada, fazem-nos sentir o problema mencionado da discriminação. A comunidade sente-se sob a ira prolongada de Deus; não pede a Deus que cesse a ira, mas que mude de destinatário: que a “derrame” sobre o inimigo e aos seus dedique compaixão. De momento pedem compaixão, não justiça, porque se confessam pecadores. Ora, dada a crueldade implacável do inimigo, a única forma de ver-se livres da desgraça é aplicando a pena ao inimigo, o que é ato de justiça. A pergunta apaixonada seguem três versos para o inimigo e três para o povo. 6-7. Os pagãos definem-se por não reconhecer o Senhor nem invocar seu nome; donde segue o imperialismo “devorador”. Veja-se o SI 14: "devoram o meu povo como pão e não invocam o Senhor”; e a resposta do Faraó em Ex 5,2: “Não reconheço o Senhor (Yhwh) nem soltarei os israelitas”. Jacó é agora a comunidade judaica, sua pastagem é o território às vezes a capital). As tropas invasoras cederam ao instinto destruidor. 8-9. Os judeus declaram-se culpados, pecadores, pelo que só podem apelar à compaixão ou ternura de Deus, que é uma de suas qualidades fundamentais, e também à honra do nome divino, ao prestígio de sua fama. Os pecados dos antepassados foram se acumulando sob os recentes pecados "nossos”: os antigos que Deus os esqueça, os recentes que os expie. Salvarse-á assim a honra de Deus. Esses três versos constituem uma confissão penitencial resumida, que se pode ver ampliada nas confissões clássicas de Esd 9; Ne 9-10; Dn 3 e 9; Bar 1,15-3,8. O perdão de Deus será a salvação. 8. Não recordes: com valor forense: Is 43,25: “apagava teus crimes e não me recordava de teus pecados”; Jr 31,34: “eu perdôo suas culpas e esqueço seus pecados”. Os pecados antigos: segundo o dito que Deus "castiga a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos” (Ex 20,5; ISm 2,31); Is 65,7: “por vossa culpa e a de vossos pais”; também nas confissões penitenciais citadas. Compaixão: além do texto clássico de Ex 34,6 e seus paralelos litúrgicos, é particularmente emotivo o SI 103,13. 9. Expia: além dos textos litúrgicos de Lv, Nm e Ez 43-45, e a resposta a uma oração penitencial em Dn 9,24, podem iluminar esse versículo algumas passagens se Isaías: 6,7: porque junta os termos ‘wwn ht’ e kpr; Salmo 79 1026 22,14: expia-se com a morte; 27,9: (escatologia) a abjuração da idolatria vale como expiação. 10a. Com uma pergunta retórica começa a terceira secção. O prestí gio do Deus dos judeus é menoscabado pelos comentários malignos dos inimigos que, ao ver o fracasso e a impotência da divindade de Jerusalém, lançam a clássica pergunta sarcástica: onde está o Deus deles? E a pergunta de J1 2,17; Mq 7,10; SI 42,4.11; 115,2. 10b-12. A vingança do sangue é ato legítimo de justiça vindicativa (significado de nqmh: DBHE); portanto, o que pedem é a aplicação da lei sem atenuantes. Sobre o “vingador do sangue”, vejam-se Nm 35,9-34; Dt 32,43; 2Rs 9,7. Um eco tardio no último livro do AT (Sb 18,5). Que se realize em nossos dias e “a nossos olhos”, queremos gozar vendo-o, como diz SI 58,11. 11.Fórmula parecida no SI 102,21. No SI 12,6, Deus responde: “pe lo lamento do pobre agora me levanto”; SI 69,34 diz que Deus não despreza os cativos. Trata-se de prisioneiros de guerra ou cativos (nossos clássicos ehamavam o desterro dos judeus de “o cativeiro de Babilônia”); a esses cativos refere-se Is 42,7. Tomando tmwht - morte como abstrato por concreto, autores antigos identificaram-nos como “filhos dos que mor reram”, ou seja, a geração seguinte que se salvou, o resto. Para a expressão “condenado à morte, destinado a morrer”, vejam-se ISm 20,31; 26,16. 12. Os “vizinhos” são reinos limítrofes que se aproveitaram derrota e humilhação dos judeus: como os idumeus do SI 137; Ab 11-14; Lm 4,21. 13. Promessa típica de ação de graças e louvor como resposta pela libertação esperada. O título “ovelhas de teu rebanho” é recorrente: nos dois textos clássicos sobre pastores (Jr 23,1 e Ez 34,31); nos salmos aparentados (74 e aqui); nos dois atos litúrgicos (SI 95,7 e 100,3). 6. Transposição cristã Em lugares separados, o Apocalipse destribui dois motivos do salmo: 11,7 A fera que sobe do Abismo declarar-lhes-á guerra, derrotá-los-á e matá-los-á. Seus cadáveres jazerão nas ruas da grande cidade ... 9 não permitirão que lhes dêem sepultura. 6,9 Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas que tinham sido assassinadas pela palavra de Deus e pelo testemunho que tinham dado. Gritavam com voz potente: Quando, Senhor, santo e veraz, julgarás os habitantes da terra e vingarás nosso sangue? Transposição cristã 1027 Segundo o SI 72,14, é competência do rei fazer justiça, “vingar o sangue” das vítimas inocentes. O Apocalipse pensa num juízo final e definitivo, com oposições claras sem intermediários. Os mártires não foram culpados, sofreram por causa de Deus. Contudo, a Igreja no meio da história não pede vingança, mas perdão. No meio da perseguição deve estar disposta a reconhecer culpas presentes e culpas precedentes que influem na situação atual. Ou seja, que do salmo são mais aplicáveis os versículos 8-9 que os w . 10b-12. No entanto, fica o caso concreto que enunciarei em forma condicional. Se o fracasso e o castigo dos criminosos, sobretudo se são poderosos e estão organizados, é o único meio para a libertação das vítimas inocentes atuais e próximas, então pedir justiça é pedir salvação, e vice-versa. A conjunção de profanação, matança e burla não pertence só ao passado. O que muda é a extensão do rebanho ou do aprisco, uma vez que são convidados todos os homens para formar parte do novo povo, ao qual Deus concede sua compaixão e indulto. Salmo 80 1. Texto 2 3 Pastor de Israel, escuta; tu que guias José como um rebanho; em teu trono de querubins resplandece perante Efraim, Benjamim e Manassés. Desperta teu valor e vem salvar-nos. 4 Ó Deus, restaura-nos, ilumina teu rosto1, e seremos salvos! 5 Senhor Deus dos Exércitos, até quando te envolverás em fumaça enquanto teu povo te suplica? Deste-lhes a comer lágrimas, a beber lágrimas a tragos. Entregaste-nos às contendas de nossos vizinhos, e nossos inimigos burlam de nós. 6 7 8 Ó Deus dos Exércitos, restaura-nos, ilumina teu rosto, e seremos salvos! 9 Uma vinha extraíste do Egito, expulsaste povos e a plantaste. 10 Preparaste-lhe o terreno, lançou raízes e encheu o país.2 11 Sua sombra cobria montanhas; e seus ramos, cedros altíssimos.3 12 Estendeu seus sarmentos até ao mar e seus brotos até ao Rio Grande. 1mostra teu rosto radiante 2território 3divinos Bibliografia 1029 13 Por que abriste uma brecha em sua cerca para que a vindimem os viandantes, 14 a devorem os javalis, e seja pasto de alimária? 15 Deus dos Exércitos, volta, olha do céu e vê, vem inspecionar tua vinha, 16 a cepa que plantou tua dextra, (a estaca que tornaste vigorosa). 17 Devastaram-na e lhe atearam fogo: por teu bramido vão perecer. 18 Que tua mão proteja o varão de tua destra, o homem que fizeste vigoroso. 19 Não nos afastaremos de ti; dá-nos vida e invocaremos vosso nome. 20 Senhor Deus dos Exércitos, restaura-nos, ilumina teu rosto, e seremos salvos! 2. B ibliografia M . Wagner, Der Menschensohn des 80. Psalms, ThStKr 104 (1932) 84-93. H. Heinemann, The date o fP s 80, JQR 40 (1949-50) 297-302. O. Eissfeldt, Psalm 80, TLZ 71 (1950) 226-227. — P s80. Beitrag zur Historie der Theologie, em FSAlt,Tubinga, 1953,6578. — Ps 80 und 89, WeltOr 3 (1964) 27-31. A. Roifer, The e n d o fP s 80, Tarbiz 29 (1959-60) 113=124. D. Winton Thomas, The meaning ofzîz in Ps 80,14, ExpTim 76 (1964-65) 385. P. Victor, Note on Ps 80,13, ExpTim 76 (1964-65) 294. J. Schreiner, Hirte Israels, stelle uns wieder her! Auslegung von Ps 80, BiLe 10 (1969) 95-111. M. Dahood, Ps 80,17, Bib 50 (1969) 343-344. A. Gelston, A sidelight on the Son ofM a n, ScJT 22 (1969) 189-196. W . Beyerlin, Schichten im 80. Psalm, em FS Friedrich, Stuttgart, 1073, 9-24. D. Hill, ‘Son ofMan’ in Ps 80,17, NT 15 (1973) 261-269. T. K. Thordarson, The mythic dimension. Hermeneutical remark on the language ofth e Psalter, VT 24 (1974) 212-220. P. E. Bonnard, Un psaume pour vivre, EspVie 88 (1978) 417-423. 1030 Salmo 80 H. G. Mutius, Die Interpretation des hapaxlegomenons krsm in Ps 80,14 bei Saadja, Raschi und D. Kimchi und ihre Relevanz für die heutige Hebraistik, BN 8 (1979) 18-21. J. W . Klotz, The vine, the fig tree, and the olive. A study in biblical symbolism, ConcJ 6 (1980) 256-260. M. Provera, La coltura delia vite nella tradizione bíblica ed orientale, BOr 24 (1982) 97-106. 3. Análise filológica 2. r‘h: enquanto a LXX respeita a metáfora, a Vg converte-a em qui regis; comentadores vinculados à Vg resolveram o assunto por duplicação: regis pastoraliter Genebrardo, rector et pastor Belarmino. 3. ‘wrrh: polel de ‘wr, imper enérgico. 4. wnwsh’h: com valor consecutivo, cf. Joüon 116 b, GK 108 d. 5. ‘shnt: Aq Sím Jerôn fumabis, substituem-na LXX Vg irasceris Teodor, Belarmino esclarece illud irasceris in hebraeo est fumabis. 6. cf. Pr 9,5. shlysh: parece tratar-se de uma medida cujo valor desconhecemos, se bem que o sentido pareça indicar abundância: en metroi = com medida LXX Eusébio Eutímio em proporção ao pecado, Hoberg; o tríplice Jerôn Targum, abundante Flamínio Hupfeld Belarmino. 10. shrshyh: para a vocalização Joüon 6 1. 11. ksw: pual de ksh. çlh w‘npyh: instrumental, por meio de, com. 14. zyz: LXX e Vg traduzem-no como sinônimo de javali monios singularis (do latim procedem sanglier, cinghiale)', bestiae agri Jerôn. 16. wknh: LXX kai katartisai auten imp enérgico de knn - cobrir, proteger GB 352 b; V gperfice, planta Qim, cepa Marini, raiz Jerôn. w‘l bn: ramo Qim; acrescentam de homem XXX Vg; muitos o suprimem como duplicata do v. 18. 'mçth: relativa assindética Joüon 158 a. 17. srph kswhh: part pas predicados referidos a gnp Joüon 154 c. 4. Estudo global a) Gênero e situação É uma súplica com os componentes clássicos: descrição da desgraça presente em contraste com a felicidade passada, ação do inimigo, petição de ajuda para a comunidade e de castigo para o inimigo, promessa. Alguns Estudo global 1031 aspectos peculiares são: o uso do estribilho, o desenvolvimento da alegoria, a petição pelo chefe, promessa de fidelidade e não de ação de graças. A situação genérica é um desastre nacional militar. O poema emprega de tal modo nome e títulos, talvez emblemáticos, transforma de tal modo os eventos em imagens, que dá pé a identificações arrazoadas diversas e ao mesmo tempo tira apoio a uma explicação preponderante. Vamos percorrer indícios. A ausência de Judá e Sião, a alusão à arca (querubins: v. 2), o título de chefe (’ysh ymynk: 18) podem fazer pensar em Saul em guerra contra os filisteus. Com efeito, segundo lSm 9,1, o pai é ;ysh mbnymyn e Saul é bn ’ysh ymyny (talvez sobre bn). Dada a afeição dos hebreus para com a paranomásia ou interpretação de nomes próprios, a sugestão tem peso. Uma vez recuperada a arca e nomeado rei Saul, o salmo poderia ser uma súplica antes da batalha contra os filisteus. A essa identificação opõem-se as fronteiras do território (11-12), que correspondem ao grande reino de Davi (2Sm 8,3). Ora, no reino unificado de Davi e Salomão não sofreu Israel, pelo que sabemos, invasões nem saques. E preciso continuar até as periódicas invasões assírias e inclusive a definitiva de 622. Isso esclareceria o salmo no reino setentrional, proposta sobre a qual haverei de voltar. Contra a segunda identificação parece militar a “cerca” ou taipa (13). Ainda que se diga em sentido próprio de uma vinha (Pr 24,31; Is 5,5) ou de um aprisco (lSm 24,4), em sentido metafórico designa a muralha duma cidade fortificada, sobretudo de Jerusalém (SI 89,41). Se se tratasse da capital de Judá, haveria que se transladar à invasão de Senaqueribe; na qual, certamente, ouve-se o mesmo título do Senhor “entronizado sobre querubins” (2Rs 19,15); também lSm 4,4; 2Sm 6,2; SI 99,1). Para a catástrofe de 587 / 586, parece demasiado branda a descrição do salmo; contudo, o verbo shwb é típico da restauração pós-exílica. Voltemos à hipótese do reino setentrional, enlaçando-a com o que se sugeriu para o SI 78. Vamos imaginar um díptico coerente. A queda de Samaria, quando está em curso a política de expansão e atração de Josias (a que parece somar-se Jr 31), compõe-se o SI 78 como ato de denúncia e de esperança. As tribos do norte foram rechaçadas com o santuário nacional e seus sacerdotes. Mas o Senhor continua fiel a seu eleito Davi com sua dinastia e o templo de Sião. Respondem cidadãos do norte aceitando e ao mesmo tempo polemizando: O Senhor não rejeitou as tribos do norte, embora tenham arrasado seu país; é preciso orar pela restauração. José e Efraim são as tribos rejeitadas de 78,67. O ternário Efraim-Benjamim-Manassés ocupa o franco ocidental no acampamento e em suas deslocações segundo Nm 2: numa marcha para o levante, a arca vai diante delas (Eusébio, Atanásio). 1032 Salmo 80 No marco da hipótese relemos os dois salmos em busca de parale los: 3 6 9 9,15 11 14 17 19 Salmo 80 ‘wrr y ‘y r ’kl Ihm = 25 Ihm hshqh 15 26.52 ns‘ grsh 55 47 SPn ksh 53 71.72 r‘h srp ’kl ’sh 63 57 nswg As coincidências são sugestivas e prestam-se a um jogo de correspon dências. Excitou a ira, excite agora seu valor; no deserto deu-lhes de comer e beber, e a nós lágrimas; o inimigo cobriu-o o mar, eles cobriram as montanhas; Davi apascentou com destreza, agora se apascentaram as alimárias; e a última e mais sugestiva: é verdade que um dia Efraim “voltou atrás”; agora promete não voltar ou afastar (nswg). Chamei a última exposição de jogo, porque o é. As correspondências, inclusive verbais, não provam nem confirmam a hipótese, mas uma vez aceita a hipótese, servem para um exercício de leitura significativa. E se o salmo fosse composição artificial, com montagem livre de reminiscências? Em vez de buscar e defender uma identificação histórica pontual, aceitemos seu perfil tipológico, pelo que constitui peça disponível de repertório. O salmo é arcaizante, mais que arcaico, e faz boa companhia a 44, 74, 79 e 102. b) Duas imagens Pastor e vinha. Parece que não se casam bem essas duas imagens, especialmente porque são aqui correlativas: é pastor de uma vinha. É verdade que no Cântico dos cânticos ele é pastor e ela é vinha. E que este livro combina e distribui imagens para criar um universo mágico. Não assim o salmo. — A imagem do pastor propõe-se na invocação inicial, sua influência se estende talvez até a comida e bebida do v. 6. Se bem que a imagem de Deus como pastor seja freqüente na Bíblia, o título Pastor de Israel é único (veja-se o duvidoso Gn 49,24). Em sua diatribe do capítulo 34, Ezequiel polemiza com os “pastores de Israel”: base demasiado estreita para escutar tom polêmico na abertura do salmo. “Como um rebanho” equivale a trans- Estudo global 1033 formar o título emblemático em comparação conhecida. Gn 37,2 introduz em cena o jovem José como pastor de um rebanho {r‘h bç’n); outro tanto se diz dos irmãos (37,12). O salmo muda os papéis. “Entronizado sobre querubins” pertence ã esfera real, e não ao imagi nário pastoril. — A imagem de Israel como vide (gpri) corre paralela com a imagem de vinha ou horto (krm: Is 5,1-7; 27,2-5; Jr 12,10). Para seguir o desenvolvimento da imagem nesse salmo, é preciso imaginar-se antes uma parreira. Sabemos que, bem apoiada, uma parreria pode estender-se largamente e oferecer sombra com seus ramos. A fantasia do poeta encarrega-se de atribuir-lhe dimensões gigantescas: mais alta que cedros e montanhas e abarcando países, de mar a rio. Desenvolve-se a imagem com técnica de alegoria, membro a membro, com visão bastante intelectual que não sabe evitar incoerências (javalis e alimárias mordiscam uma parreira mais alta que os cedros). Das imagens de plantas no AT costuma-se destacar a vitalidade. Numa paisagem dominada por essa parreira prodigiosa, vêm-nos desejos de contemplar o “rosto liminoso” como a luz vivificante do sol. Outros exemplos da imagem: Dt 32,32, de Sodoma; Jr 2,21; 6,9; 8,13; Ez 15,1-8; 17,5-10; 19,10-14; Os 10,1; 14,8; SI 128,3, a esposa. c) Composição Baliza-se o poema com um estribilho que se repete a intervalos irre gulares, em 4.8.15.20, com variação na terceira vez. O recurso formal delimita sem muito rigor secções temáticas: 2-3 5-7 9-12 13-14 16-17 18-19 invocação e petição desgraça presente prosperidade passada da vinha situação presente ação do inimigo e reação de Deus súplica e promessa estribilho 4 estribilho 8 estribilho 15 estribilho 20 As duas perguntas retóricas de 5 e 13 marcam a mudança de situação, de bem-estar a desgraça; em ambas as figuras, Deus como causante, pelo que a ele cabe remediar. O estribilho introduz a imagem dum rosto humano, radiante, benévo lo, bem conhecida na fórmula litúrgica de bênção (Nm 6,25 e SI 67,2), e nas súplicas (31,17; 44,4 e 89,16). O peculiar desse salmo é que o tema da luminosidade penetra na invocação, “resplandece”. O hifil de shwb pode significar várias coisas: faze-nos voltar (do desterro?), converte-nos (corres ponde ao v. 19), restaura-nos. Salmo 80 1034 5. Exegese 2. José figura também nos salmos vizinhos: 77,16 com Jacó, 78,67s com Efraim e oposto a Judá, 81,6 em paralelo com Jacó = Israel. Se nesse salmo se insinua alguma intenção especial, seria excluir Judá; é duvidoso (veja-se Situação). Entronizado como rei, num trono ou sólio que sustentam e protegem querubins, ou seja, animais vigorosos e alados (vejam-se as descrições de lRs 6 e Ez 9-10). hwpy’ é verbo de teofania (Dt 33,2; SI 50,2; 94,1; Jó 37,15). 3. O ternário revela-se suspeito para alguns: para o ritmo regular sobra um nome, num manuscrito falta Benjamim, em dois falta Manassés; vimos a fixidez do ternário em Nm 2 e 26. Atenhamo-nos ao texto: José e Benjamim são os dois filhos de Raquel; Efraim e Manassés são os dois filhos de José adotados como filhos por Jacó (Gn 48; cf. SI 77,16 com comentário). Em contexto militar, gbuirh é o valor ou a valentia do soldado, eyshw‘h é a vitória. Quadrariam bem com a visão da arca como paládio. Recorde-se ISm 4,1-12 sobre a arca capturada pelos filisteus e compare-se com SI 60,12: “já não sais com nossas tropas”. 4. Estribilho. O rosto luminoso ou deslumbrante de Deus nos dará a vitória, mudará nossa sorte. Dum rei dizem os Provérbios: 16,15 O rosto sereno ('wr) do rei traz vida. 20,8 Um rei sentado no tribunal para julgar com seu olhar dissipa toda maldade. Do efeito no inimigo fala Ex 14,24: “de madrugada olhou o Senhor desde a coluna de fogo e nuvens e desbaratou o exército egípcio”. 5. Novo título no salmo. A construção é anômala, mas não impossível (também é possível que esteja de sobra ’Ihym, como atestam alguns manuscritos). Enquanto o povo “suplica”, o Senhor “fumega” ou se envolve na fumaça. Muitos comentadores tomaram-no como sinal de cólera, segun do SI 74,1 {Análise filológica). Parece-me discutível. A fumaça enche o templo e vela a presença do Senhor Rei na vocação de Isaías (6,4); função semelhante tem a fumaça do incenso no camarim ou sancta sanctorum. Quando a fumaça é sinal de cólera divina, menciona-se algum sinônimo (Dt 29,19; Is 65,5; SI 18,9). Creio que aqui a fumarada oculta o “resplendor” de Deus, é a antítese de “resplandece” e “ilumina”. Parafraseando: ilumina teu rosto, não o envolvas em fumaça. 6. A repetição de dm‘h, no singular e plural, é enfática: lágrimas de comida, lágrimas de bebida (vejam-se SI 42,4; 102,10). Exegese 1035 7. mdwn é a contenda ou rixa. Em vez de entender-se bem com o “vizinhos”, são objeto de sua má vontade; como Jeremias de seus concidadãos (15,10). O termo é freqüente em Provérbios (9 vezes de 12). 9. Tiraste: o verbo ns‘ é freqüente em qal para indicar o pôr-se em marcha, o avançar por etapas; é raro em hifil, e o paralelo mais significativo lê-se em Ex 15,22. Contextualmente eqüivale a arrancar, extrair, grsh é freqüente em contextos de ocupação da terra (por exemplo, Ex 23,28-31; Js 24,12). Nos mesmos contextos usam nt = plantar (Ex 15,17; Am 9,15). 10. A fórmula aliterada pnyt Ipnyk significa preparaste de antemão, te adiantaste a preparar (o terreno); em diversas formas, pnym soa seis vezes no salmo. 11-12. A alguns dados da imagem, como raízes, sombra, ramos e sarmentos, sobrepõe-se a visão real da expansão política. A videira ou parreira que cobre e ensombreia cedros é como o triunfo do humilde sobre o altaneiro: vejam-se Is 2,13 e o contrário de Ez 19: 10 11 12 Tua mãe é como videira sarmentosa plantada ao pé da água: produziu fronde e fruto pela abundância de água. Lançou rebentos robustos para cetros reais, elevou-se sua estatura até tocar as nuvens; destacava-se por sua altura, por sua abundância de sarmentos. M as a deceparam ... 13. Abrir brechas na cerca ou esborcinar a sebe, como em Is 5,5 e semelhante a SI 89,41. O verbo ’rh só se lê aqui e em Ct 5,1. 14. Creio que zyz não designa uma espécie em particular, mas uma massa heterogênea e indefinida, alimárias; só aqui e no SI 50,11. Teodoreto identifica o primeiro com os assírios e o segundo com Nabucodonosor. 15-16.Variação e ampliação do estribilho. Como em SI 74,3, o orante convida a Deus a fazer uma visita de inspecção: que primeiro olhe de cima, numa olhada de conjunto, e depois desça para examinar o estado em que se encontra sua plantação. E sua, e não pode desentender-se. Em vez de “restaura-nos”, pede “volta”; em vez de “iluminar o rosto”, que dirija atentamente o olhar: o que vê, como a encontra? 17a. Saltanto a provável adição (16b), chega a resposta: encontra-a queimada e cortada (com inversão de ordem). Compare-se com Is 27,11: “ao secar-se a ramagem, a quebram; vêm mulheres e lhe ateiam fogo”. O fogo pode ser um incêndio geral ou o emprego de ramos para alimentar as chamas, segundo diz Ez 15,4. Salmo 80 1036 17b. Começa a petição, primeiro contra o inimigo. Com um bufido ou sopro, Deus fará perecer ou extraviar-se a todos os animais invasores (SI 18,16; Is 30,17). 18. Petição pelo chefe, a quem não chama de rei nem dá qualquer título costumeiro. Seu novo título é “o homem de tua dextra” (como dizemos nós “seu braço direito”). A dextra de Deus se senta o rei no SI 110,1. E um ser humano (bn ’dm), a quem Deus “fortaleceu” para uma empresa ou cargo (cf. Js 1,6-9; SI 89,22). Alguns quiseram ver no verbo uma paranomásia aludindo ao rei Amasias. 19. Conseqüência do anterior: guiados pelo chefe delegado de Deus, seremos fiéis sem afastar-nos do Senhor. Dá-nos vida (SI 71,20; 85,7; 138,7; 143,11). Antes do estribilho final, o salmo termina com o tema da vida outorgada por Deus. 6. Transposição cristã — Vamos tomar o estribilho com o tema do rosto iluminado, radiant e manifesto. O rosto de Deus entre os homens é Jesus, de acordo com Jo 14,9: “quem me vê a mim, vê o Pai”; Hb 1,3 diz que “é reflexo de sua glória”. Assim o dizem também Orígenes, Cirilo de Alexandria, Jerônimo, etc. Jesus, como outro Moisés, dissimulou seu esplendor; mas manifestou-o um dia a três escolhidos: M t 17,2 Ali se transfigurou diante deles: seu rosto brilhava como o sol e suas vestes tornaram-se resplandecentes como a luz ... A transfiguração é antecipação da ressurreição gloriosa. Agora a glória de Deus se nos manifesta por meio do evangelho. 2Cor 4,6 Pois o Deus que disse “brilhe a luz do seio das trevas”, acendeua em nossos corações, fazendo resplandecer o conhecimento da glória de Deus, refletida no rosto do Messias. Um pouco antes Paulo tinha dito dos incrédulos que “não distinguem o resplendor duma boa nova do Messias glorioso, imagem de Deus”. Esses poucos dados podem-se ampliar com outros, levando em conta que a expressão hebraica sobre a luz de Deus também se traduz por epiphanein / epiphaneia e por photismos; compare-se, por exemplo, em grego, SI 44,4 com 2Tm 1,10. Com esses dados não será difícil apropriar-se do estribilho e do espírito do SI 80. Agostinho sugere outra leitura simbólica. O rosto de Deus é a imagem que imprimiu em nós; Deus precisa enviar um raio de sua sabedoria para que resplandeça em nós sua imagem. Transposição cristã 1037 — Outro tema é o do chefe anônimo do v. 18, mero ser humano (bn ’dm), como no SI 8,5, como em Ezequiel (89 vezes), a quem Deus “fortaleceu para si” e colocou à sua direita. Tal leitura messiânica desse texto é muito antiga, e no contexto cristão impõe-se sem óbices. Tal leitura apóia-se em Is 41,10 e no SI 89,22: Is SI Eu te fortaleço (’mç), te auxilio, te sustento com minha destra (ymyri) vitoriosa. para que minha mão esteja sempre com ele e meu braço o fortaleça (’mç) Lucas usa o verbo correspondente da versão grega para descrever como Jesus adolescente “ia se robustecendo” (1,80; 2,40). O tema da destra referido a Jesus Cristo está abundantemente atestado no NT: por exemplo Rm 8,14; Ef 1,20; Hb 10,12. Confirmam-no os Padres: Orígenes: “O homem de tua destra é Cristo”. Cirilo de Alexandria: “Como o Logos se fez homem, ele é chamado homem” Atanásio: “Inclusive quando se faz homem, ele está à direita do Pai”. Note-se que tomam bn ’dm (ou o grego) como expressão da simples humanidade, e não como título transcendente. — Uma vez assegurada a leitura cristológica, é fácil a leitura e meditação eclesiológica do salmo. A Igreja recita-o em tempos de persegui ção, sabendo quea fortaleza lhe vem do Senhor. Porque o Pai glorifica o seu Filho, nós podemos “não nos afastar dele”; porque ele “nos dá a vida”, nós podemos invocar seu nome ou levá-lo como cristãos. Salmo 81 1. Texto 2 3 4 5 6 Aclamai a Deus, nossa força, dai uivas ao Deus de Jacó. Tocai instrumentos, soai tamborins, cítaras temperadas com harpas. Soai a trombeta pela lua nova, pela lua cheia pois é nossa festa. Porque é uma lei de Israel, um preceito do Deus de Jacó, um pacto firmado com José quando saía do Egito. 6c Ouço uma língua desconhecida: 11c dilata a boca, para que ta encha. 7 8 Retira a carga de teus ombros, suas mãos se desprenderam do cesto. Na aflição clamaste, e te libertei, te respondi oculto entre trovões; te pus à prova em Meriba1. 9 Escuta, povo meu, pois te admoesto; Israel, oxalá me escutes: 10 Não terás deus estranho, nem adorarás deus estrangeiro. 11 Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei do Egito. 12 Mas meu povo não fez caso de mim, Israel não me obedeceu. 13 Entreguei-os a seu coração obstinado para que seguissem seus caprichos. 1Meriba = Fonte Acareamento Análise filológica 1039 14 Oxalá me escutasse meu povo e caminhasse Israel por meus caminhos. 15 Eu humilharia os seus inimigos e voltaria minhas mãos contra seus adversários. 16 Os que aborrecem ao Senhor te adulariam e sua sorte ficaria fixada. 1 7 Alimentar-te-ia com flor de farinha, saciar-te-ia com mel silvestre. 2. Bibliografia R. Tournay, Notules sur les Psaum.es: 19,2-5; 81,15-16, em FS Nötscher, 1950, 275-280. A. Guilding, Some obscured rubrics and lectionary allusions in the Psalter, JTS 3 (1952) 41-55. S. E. Loewenstamm, The bearing o f Ps 81 upon the problem o f Exodus, Eretz Isr 5 (1958) 80-82. J. L. Koole, Ps 1 5 - eine königliche Einzugsliturgie?, OTS 13 (1963) 98-111. A. J. G. Harris, Prophetie oracles in the Psalter, Princeton, 1970. S. B. Freehof, Sound the shofar - ‘ba kesse’, Ps 81,4, JQR 64 (1973-74) 225228. T. Booij, The background o f the oracle in Ps 81,4, Bib 65 (1984) 465-475. S. C. Layton, Jehoseph in Ps 81,6, Bib 69 (1988) 406-411. 3. Análise filológica 4. bksh: em Pr 7,20 vocalizado com segol, Barth Nominalbildung 12a. 6. byhwsp: forma ampliada de José, cf. ywndb / yhwndb / ywntn yhwntn. Segundo Ihn Ezra e Qim representa o povo inteiro, cf. 77,16; 78,60; 80,2. 7 ’rç LXX Vg do país, lugar de onde sai; Gun But corrigem para m’rç Dah dá o mesmo valor a *Z; contra o país muitos comentadores; Hitzig explica: o autor substituiu a fórmula de Ex 11,4: ’ny ywç’ btwk mçrym por Gn 41,45: wyg’ywsp ‘l ’rç mçrym-, mas o pronome de bç’tw refere-se a Deus, e não a José. 6b. y d ‘ty ’shm‘: LXX Vg lêem terc pessoa fazendo de José sujeito; a língua egípcia Belarmino, de Deus Atanásio Eutímio. 7b. hsyrwty: LXX Vg terceira pessoa. tbrnh-, LXX Vg leram o verbo ‘bd, seguem o hebraico Sim Jerôn. dwr: cesto Vg Sim Rasi; panelas, caldeirões Targ Qim Pagnini Hirsch. 10. zr : estrangeiro, Vg recens não tradicional, Agostinho não eterno. 1040 Salmo 81 11. hrhb: imagem tomada dos passarinhos Thalhofer, a boca espiri tual para receber Eutímio Belarmino, para pedir Genebrardo Agélio. 15. km‘t: partícula condicional irreal DBHE; com facilidade Teodoreto Eutímio, pronto Genebrardo. 16. ykhshw: negaram a hostilidade precedente, ou simularam a submissão Ros; faltaram-lhes as forças Marini cf. Is 58,11; tornar-se pequenos J. A. Eaton: JTS 19 (1968) 604.607. ‘tm: fortuna, destino, sorte como SI 31,6; Is 33,6 But Rav; tempo de vingança e desgraças como Is 13,22 ou ywm SI 37,13 Ibn Ezra Rasi; tempo de felicidade Qim Ros; tempo da vida Hitzig; sua juventude Ges Thes 993. Eaton l. c. deriva de ‘nh humilhar, subjugar. Vwlm: definitivamente. 17. wy’kylhw: terc pess fala o poeta Marini Hitzig Dah; lêem prim pess But Del, erro auditivo do copista cf. Wellhausen, Der Text der Bãcher Samuelis, Gotinga, 1871, VI. 4. Estudo global a) Gênero e situação — Eis um salmo estranho: é o menos que podemos dizer. Quem seguiu o saltério até aqui, ao ler o presente salmo pode dizer como aquele que fala no versículo 6: “Ouço uma linguagem desconhecida”. Desconhecido por força de conhecido, já que a maioria de suas peças e frases soam-nos familiares. O começo é inconfundível, de hino, com seus imperativos e sua orquestração musical. Mas, em vez de propor como tema as maravilhas operadas por Deus, o salmo apela a uma instituição legal, que não é o tema do louvor. Mencionam-se, é verdade, alguns momentos da libertação do êxodo, mas não mais em chave hínica, mas nos lábios de Deus, passando da terceira para a segunda pessoa. Um imperativo translada-nos à pregação homilética do Deuteronômio, e dentro dela escutamos, incon fundível, o primeiro mandamento do decálogo. A homilia converte-se em denúncia, em terceira pessoa, e menciona-se um castigo. O qual não é o último, antes dá passo a bênçãos formuladas em condicional irreal ou potencial. Tudo é “uma linguagem desconhecida”, não pelas peças, mas pela combinação. Podemos emparelhar esse salmo com o 50, primeiro ato duma liturgia penitencial, pronunciada toda por Deus; também com o SI 95, mais próximo, se bem que menos complexo. Tem parentescos notáveis com a aliança em Moab (Dt 29-31). De forma que, pelo tema, o salmo refere-se à Estudo global 1041 instituição e pregação da aliança, em especial ao primeiro mandamento, ao passo que o SI 50 menciona outros. Pela forma compósita e mudança de personagens, vamos chamá-lo de liturgia. — Situação. Comentar-se-á: não eram precisos tantos rodeios para che gar a uma conclusão que enuncia explicitamente o começo do salmo: cele bramos nossa festa de preceito. Mas eram precisos, como veremos. De que festa se trata? Duma “solenidade”, talvez com peregrinação (hg). Qual das três? Dt 16,1-17 registra três solenidades: a páscoa, pela saída do Egito; as semanas, pela escravidão do Egito; as tendas, pelas bênçãos da colheita. Ora, o salmo menciona a saída do Egito, os trabalhos da escravidão, as bênçãos condicionadas da terra. Lv 23 e Nm 29 distinguem três festas no “sétimo mês” (setembro / outubro), que se estendem em espaço de 22 dias: o primeiro do mês, o Ano Novo, o décimo, a expiação, de 15 a 22, as tendas. O que nos dá uma celebração pela lua nova e outra pela lua cheia, como quer o salmo. Em nenhum desses textos legislativos menciona-se o toque de trombeta ou chifre (shwpr) que o salmo menciona. Dada a variedade de ofertas, os comentadores abriram em leque suas identificações da solenidade do salmo: páscoa, semanas, tendas, mês sétimo (provando assim o princípio de que à maior precisão corresponde menor probabilidade). Então, será melhor considerá-lo como salmo de repertório, apto para diversas festas? No caso presente, a resposta não é simples em vista do enigma da voz do solista. b) O solista do v. 6c A comunidade reuniu-se alegremente para celebrar uma festa, cum prindo assim um preceito tradicional. Soam instrumentos, cânticos de júbilo, quando de repente uma voz interrompe a cerimônia e chama a atenção de todos com autoridade peremptória. De quem se trata? Apresen ta-se como ouvinte duma mensagem, não se identifica, fala como se por ele falasse Deus. Quem será este? Os comentadores modernos inclinam-se por identificá-lo com um “profeta cultual”, ou seja, um profissional que dá resposta ou pronuncia mensagens oraculares em cerimônias litúrgicas. Outros identificam-no com um membro da assembléia repentinamente inspirado. Em arrebata mento súbito, escuta uma voz interior, para ele desconhecida, e a comunica. Não o diria isso um profissional do oráculo, acostumado à voz de Deus. A primeira vez que o menino Samuel escuta a voz do Senhor, não a reconhece: ISm 3,7 Samuel não conhecia {Vyd’) ainda o Senhor; ainda não se lhe tinha revelado a voz do Senhor. 1042 Salmo 81 Paulo parece ainda contar com a presença na liturgia de pessoas “inspiradas” ou “profetas”: ICor 11,4 diz propheteuon, 14,2s opõe esse termo a pneumati lalei mysteria. O “profeta” do salmo interrompe a cerimônia festiva para impor uma mensagem dramática. O que diz não é radicalmente novo, é nova a autoridade com que fala, a atualização da mensagem da aliança, vários detalhes da mensagem. Por meio desse oráculo inesperado, a comunidade trasporta-se violen tamente duma celebração alegre e convencional a uma reflexão exigente sobre sua relação para com o Deus da aliança. No mesmo tom dramático, potente, termina o salmo; só que se trata de drama aberto à esperança, porque Deus continua fiel a suas promessas, embora condicionadas. Em conclusão, quando os comentadores falam de “liturgia”, não pensam em texto programado, mas antes sublinham o fator de surpresa. O que nos propõe nova dificuldade. Suponhamos que assim, surpreendente, foi uma vez, e que se registrou e se estilizou o fato num texto: o que ocorre quando se reitera esse texto em novas celebrações, fica conhecido e familiar, e desaparece o efeito de surpresa? Não mais há profeta extemporâneo, mas uma espécie de texto teatral com distribuição de papéis e ensaio diligente. O anúncio de “uma linguagem desconhecida” torna-se conhecido e dá-se por evidente, espera-se pontualmente. E se ocorre isso nas repetições litúrgicas do texto, não pode o original ser uma composição artificial, minúsculo drama litúrgico, para tornar mais eficaz a mensagem? Não temos dados para responder a essa pergunta, mas nós, que desejamos apropriar-nos do salmo, devemos procurar manter viva a consciência de sua força de interpelação. No quadro dessa hipótese “litúrgica”, podemos dar o passo seguinte de nossa exposição. c) Composição Formalmente, os versículos 2-6ab constituem introdução hínica festi va. Em 6c com 11c (veja-se mais abaixo) soa a interrupção. A mensagem articula-se numa recordação histórica (7-8) e três etapas balizadas pela repetição de shm‘ m 9.12 e 14: contêm uma intimação do primeiro manda mento, denúncia da desobediência e oferta de conversão. Ravasi observou a correspondência ideal desse esquema com o começo do decálogo: auto-apresentação e prólogo histórico outros deuses, adoração violação do preceito bênçãos pelo cumprimento Ex 20,2 3-5a 5b 6 SI 8 1,7s lOs 12s 14-17 Estudo global 1043 Com menor rigor e densidade encontramos semelhanças distribuídas pela aliança de Moab. Escolho alguns dados: Dt 29,8-12 15-18 19-27 30,1-2 7-8 9-10 19 31,10-13 aliança precedida de repasso histórico em 29,1-7 não prestar culto a deuses estrangeiros; obstinação(shryrwt) 18 não-observância e castigo conversão, escutar a voz do Senhor maldições contra o inimigo {’y b sn’) bênçãos pela obediência testemunho (h ‘dty) renovação da aliança e da lei, cada sete anos, na festa das tendas testemunhas: o cântico (19), o código (26), céu e terra (29). A repetição de Egito em 6 e 11 dá ênfase ao tema do êxodo, liga as duas secções e não parece ter outra função estrutural. Mais significativa é a repetição já mencionada de shm‘: o solista extemporâneo avisa que “escu tou” ou está escutando (’shm'); sua mensagem concentra-se na necessidade de escutar, sua negação, seu posto como condição (9ab.12.14). Mas ocorre que pôr-se à escuta contrapõe-se ao estrondo jubiloso de instrumentos musicais e aclamações. O homem ora quando faz com que Deus ouça sua voz, mas não menos quando escuta a voz de Deus. Não pronuncia a palavra aliança, mas a relação está envolvida na correlação “teu Deus” (11) com “meu povo Israel” (9.12.14). É o contexto que acolhe o mandamento e as bênçãos condicionadas. 5. Exegese 2-4. Começa a festa cum iubilo, com grandes aclamações (hry‘w) e grande acompanhamento orquestral: a corda, a cítara e a harpa, a percus são, tamborim, o vento, a trombeta. Congregam-se em “dia festivo”; Jacó representa toda a comunidade ideal. Deus recebe o título de “nossa força / fortaleza”, como em 28,7 e 59,18. 5-6ab. Trata-se duma festa “de preceito” e tradicional ou costumeira, como diz o SI 122,4. dwt é o compromisso imposto, como no SI 78,5. Aúltima frase introduz uma mudança na fórmula tradicional (veja-se Análise filológica): em vez de “saída do Egito”, diz “saía / fazia uma saída contra o Egito”. Compare-se com Ex 11,4: “A meia noite, eu farei uma saída entre os egípcios: morrerão todos os primogênitos do Egito” (yç’ btivk). E raro encontrar Yhwh como sujeito do verbo sair: Jz 4,14; Is 26,21 escatologia, Is 42,13 segundo êxodo, Mq 1,3 teofania, Zc 14,3; SI 44,10 = 60,12 negado em contexto militar. O sintagma yç’ % ’rç diz-se de José quando sai para 1044 Salmo 81 percorrer (‘br) o país. Mantendo o caráter hostil, a frase pode resumir todas as pragas e pôr em primeiro plano a última, que prepara a saída do povo. 6c + 11c. A transposição a esse lugar do hemistíquio 11c é conjetura plausível que não pode aspirar à certeza nem a alto grau de probabilidade. Se o argumento rítmico é fraco (dois hemistíquios pendentes), o argumento temático tem certa força. Comentadores antigos e modernos preferiram transladar 11c para junto do 17 ou deixá-lo onde está. No modo de intervir e no corte da frase insinua-se tonalidade miste riosa que atingirá em parte a mensagem. “Estou ouvindo”: assim tematiza sua experiência como outros inspirados: N m 24,3 4 Is 22,14 Oráculo do homem de olhos perfeitos, oráculo do que escuta palavras de Deus, que contempla visões do Todo-poderoso, em êxtase, com os olhos abertos. Revelou-me ao ouvido o Senhor dos Exércitos. Também a famosa visão noturna de Elifaz em Jó 4,12-16. Dilata a boca: hrhyb ph lê-se também em Is 57,4 e SI 35,21, mas com ‘l que dá à expressão o significado de burla; a expressão presente, quanto ao sentido está mais próxima de hrhyb npsh (Is 5,14; Hab 2,5) que abrir as fauces para tragar. Com que Deus vai encher essa boca aberta de par em par? Creio que com suas palavras, com sua mensagem. Comparo-o com: 2Sm 23,3: “sua palavra está em minha língua”; Is 51,6: “pus em tua boca minha palavra”; Jr 1,10; Ez 3,2s, com referência a línguas conhecidas e estranhas. A tonalidade misteriosa ou vaga prolonga-se em “o mistério do trovão”, no enunciado potente, no estilo elíptico. Por contraste destaca-se o tom categórico do primeiro mandamento. 7. Sem fórmula profética de introdução, Deus toma a palavra. Toda a opressão do Egito, a dura escravidão e os trabalhos forçados resumem-se nas “cargas” (Ex 1,11; 2,11; 5,4s; 6,6s) e na menção do “ombro” (Is 10,27; 14,25). 8. A conhecida seqüência “clamar - responder”, por ser genérica, vale também para o êxodo. Ao invés, bstr r ‘m é expressão original e sugestiva: eu te respondi escondido num trovão, num ocultamento atroador. Deus esconde-se em grandes e densas nuvens(Sl 18,12; Jó 22,14). A que alude a curiosa expressão? Na passagem do mar Vermelho não houve trovões (salvo na transformação do SI 77); no Sinai, Deus escondeu ao povo sua palavra e a comunicou a Moisés, ao passo que se manifestava ao povo numa teofania de trovões e relâmpagos. O trovão escondia sua voz articulada. Transposição cristã 1045 8b. O verbo bhn = provar, aquilatar não faz parte das tradições do êxodo; de mais a mais, toda a tradição diz que em Meriba foi o povo que tentou ou pôs à prova a Deus ou acareou-se com ele. Não muda o caráter dramático do episódio: quem escuta ou pronuncia esse versículo imaginase o Israel rebelde. 9. O imperativo shm‘ repete-se no Deuteronômio com valor estrutur (6,4; 4,1; 9,1; 27,9). O primeiro hemistíquio lê-se também no SI 50,7, ou seja, na primeira parte duma liturgia penitencial. 10-ll.Repetem em ordem inversa o primeiro mandamento. A fórmula completa ’nky Yhwh ’Ihyk só se lê aqui e nos dois decálogos (Ex 20 e Dt 5); com o pronome na forma ’ny é freqüente. O segundo hemistíquio do v. 11 só se repete literalmente em Dt 20,1; com ligeira variação em Js 24,17 (textos de aliança) e textos semelhantes. 12. V ’bh ly é fórmula elíptica, com complemento indireto e sem gerúndio; deve-se comparar com Dt 13,9: “não lhe farás caso nem o escutarás”; o normal é completar o verbo ’bh com gerúndio (Lv 26,21; Dt 23,6; Js 24,10). 13. shryrwt é especialidade de Jeremias (oito vezes), também em Dt 29,18. Abandonar o rebelde a seu capricho e obstinação é talvez o castigo mais grave imaginável. Como paralelo desses versículos finais, pode-se ler Is 48: 17 18 19 eu te guio pelo caminho que segues. Se tivesses atendido a meus mandatos, seria tua paz como um rio, tua justiça como as ondas do mar; tua descendência seria como areia; como seus grãos, os rebentos de tuas entranhas; teu nome não seria aniquilado nem destruído diante de mim. 15. Humilhar, dobrar (Dt 9,3; Jz 4,23; Ne 9,24). 16. Adular-te-iam, em expressão de servilismo, como no SI 18,45; 66,3. O segundo hemistíquio equivale a: sua hora seria definitiva, ou seja, a hora final, o destino; complemento indireto o povo, antes que Yhwh. 17. Trigo e mel: compare-se com a série de sete produtos em Dt 32,13s. 6. Transposição cristã Foi para Moisés visão desconhecida o fogo na sarça, foi para os israelitas nova e terrificante a visão do Sinai, para o “profeta” que irrompe no salmo soa nova e desconhecida a palavra de Deus que se apresenta, 1046 Salmo 81 denuncia, exige e oferta. Como manteremos na Igreja a novidade da presença do Senhor e de sua mensagem? Também a Igreja sofre a tentação de enquadrar grandes mensagens em cerimônias litúrgicas, caindo na rotina e neutralizando sua força. A grande mensagem converte-se assim numa cerimônia a mais. E tem que surgir o inspirado ou sobrevir a ação do Espírito para que as velhas palavras recobrem vida atual. No centro da consciência da Igreja há de sempre soar nova a palavra com que Deus se apresenta e se identifica: “Eu sou o Senhor teu Deus”. Assim como também a de Jesus Cristo. Jesus traz uma mensagem nova, “desconhecida”, como lhe diz Nicodemos em Jo 3 ,lls. Em Jo 8,26 diz Jesus: “o que me enviou é veraz, e o que aprendi dele digo-o ao mundo”. Depois da ressurreição, apresenta-se e identifca-se: “Eu sou, não temais” (Lc 24,36); a Paulo diz: “Eu sou Jesus a quem tu persegues” (At 9,5; 22,8). Agora, ao longo da história, Jesus Cristo se nos apresenta e se identifica com palavras do evangelho: “Eu sou, não temais” (Mt 14,27 par); “eu estou no meio deles” (Mt 18,20 par). Sua presença e identificação constituem ajuda e exigência: “Se não credes que eu sou, morrereis por vossos pecados”. “Cristo não é um Deus recente, pois existia no princípio junto de Deus” (Agostinho). Pois “antes de Abraão, eu já existia”, acrescenta Ruperto citando Jo 8,56. Vários Padres citam, a propósito do v. 13, três frases da carta aos Romanos: 1,24 por isso Deus os entregou a seus desejos imundos 1,26 por isso Deus os entregou a paixões vergonhosas 1,28 Deus os entregou a uma mente insensata (Orígenes, Eusébio, Agostinho) Não basta a expressão dum gozo compartilhado (2-4), nem o cumpri mento dum preceito ou a continuação dum costume (5-6); é preciso apresentar-se abertos à surpresa duma presença sempre nova e atual. Salmo 82 1. Texto 1 Deus levanta-se na assembléia divina, rodeado de deuses ele julga: - Até quando dareis sentenças injustas pondo-vos do lado do culpado ? Defendei o desvalido e o órfão, fazei justiça ao humilde e ao necessitado, salvai o desvalido e o pobre livrando-os do poder dos malvados. Não sabem, não entendem, caminham às escuras, e tremem os fundamentos do orbe. 2 3 4 5 6 7 8 Eu vos declaro: Ainda que sejais deuses e filhos do Altíssimo todos, morrereis como qualquer homem, caireis como qualquer príncipe. Levanta-te, ó Deus, e julga a terra, pois tu és o dono de todos os povos! 2. Bibliografia J. Morgenstern, The mythological background ofP s 82, H U C A 14 (1939) 29-126. J. Coppens, Le Ps 82,7 et unparallèle ougaritien, E T L 23 (1947) 175-177. E. Podechard, Psaume 82, em FS Chaine, Paris, 1950, 290-295; R. T. 0 ’Callaghan, A note on the canaanite background ofP s 82, CQB 15 (1953) 311-314. M. Treves, Nuova interpretazione dei salmo 82, RasMensIsr 23 (1957) 347-351. E. Beauchamp, Yahvé exercera lui même lajustice (Ps 82), BVC 46 (1962) 16-32. A. González Núnez, Le Ps 82, V T 13 (1963) 293-309. G. Cooke, The Sons o f (the) God(s), ZA W 76 (1964) 22-47. G. Rinaldi, Synagoga Deorum (Ps 82), BOr 7 (1965) 9-11. 1048 Salmo 82 A. T. Hanson, John’s citation o fP s 82, NTS 11 (1965) 158-162. - John’s citation o fP s 82 reconsidered, NT 13 (1966-67) 363-367. J. S. 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Gramaticalmente, o primeiro íhym poderia ser diverso de í: “um deus se levanta na assembléia do Deus Supremo”; como se o poder judicial tocasse a um funcionário individual do grupo. O estudo de contexto literário mais amplo obriga a identificar o primeiro íhym com o Deus Supremo í. Quase todos traduzem assim, no singular e no plural, mas alguns tomam o segundo como complemento: deos dijudicatVg, deosjudicat Jerôn; Aquila traduz o segundo por kyrios. nçb: gesto judicial Is 3,13. 2. pny ... ts’w: favoritismo, parcialidade. 3. não é preciso corrigi-lo por dk. A repetição tem valor estilístico e frisa a equivalência de shpt e plt quando o complemento é dl. 5. O sujeito em terceria pessoa tem que ser o mesmo de antes, os íhym. Imaginando a cena do juízo, é fácil integrar a mudança sintática. 6. íywn: título da divindade suprema. O plural bny pode abranger desde a filiação estrita até a pertença a um grupo ou corporação. Aqui tem significado mais forte que “assembléia”; está mais na linha de natureza que de função. 7. tmwtwn: com nun paragógico GK47 m. ’dm natureza, srym função. 8. qwmh: para o acento GK 72 1. 4. Estudo global a) Gênero e esquema subjacente — Parece-me impossível enquadrar esse salmo, ainda que tenha pontos de contato com o 58 e o 94. O imperativo final é mais aclamação que súplica; a descrição quase encenada é exaltação de Deus que equivale a um hino, sem adotar a forma clássica de hino. Mais importante é apreciar o esquema imaginativo que governa a composição. ---Vamos considerar as personagens e seus papéis dentro do texto, sem tentar identificá-las por ora. Um soberano (7) convoca sua corte ou ministros (íhym) parajulgar sua gestão subordinada. Levanta-se e interpela-os com uma pergunta retórica, que eqüivale a acusação apaixonada: interpõe-se um delito de corrupção e perversão inveteradas da justiça. Do protocolo dos juizes governantes cita uma série de imperativos que definem suas obrigações, ou seja, a função que a carta de nomeação lhes impunha. Não cumpriram essas obrigações, que justificam sua função, desentenderam-se, e a conseqüência é que os fundamentos da ordem social e até a ordem cósmica cambaleiam. A injus 1050 Salmo 82 tiça estabelecida gera obscuridade e a obscuridade manipulada fomenta a injustiça. O soberano pronuncia sentença: não vale apelar à condição, títulos e méritos. Por ter pervertido a justiça, os ministros incorreram em pena de morte, e a sentença será executada sem considerações. Escutada a senten ça, o povo que assiste invoca a Deus para que se encarregue de governar com justiça o mundo. — Uma composição tão orgânica não tem paralelo completo no AT, mas podemos ilustrar alguns de seus passos. Em ISm 22 conta-se um julgamen to do rei Saul processando primeiro seus ministros e depois os sacerdotes. Saul, enquanto rei, é juiz supremo; o delito pode ser atentado direto ou cumplicidade numa traição. Entrescolho alguns versículos mais significa tivos (aconselho que se leia toda a cena): Saul estava em Gabaá, sentado sob a tamargueira, no alto, com a lança na mão, rodeado de toda a sua corte. Saul disse: — Ouvi, benjaminitas: pelo visto também convosco o filho de Jessé repartirá campos e vinhas e vos nomeará chefes e oficiais de seu exército (suborno), porque todos estais conspirando contra mim, ninguém me infor m a... ninguém sente pena de mim. Doeg denúncia Aquimelec e os sacerdotes de Nob, os quais são chamados a comparecer perante o rei. Saul perguntou: — Por que conspirastes contra mim, tu e o filho de Jessé? Deste-lhe comida e espada e consultaste a Deus por ele. Responde Aquimelec escusando parcialmente a Davi e alegando ignorân cia. Mas o rei replicou: — Morrerás sem apelação Aquimelec, tu e toda a tua família (mwt tmwt) . O julgamento de Saul conclui com terrível injustiça, condenando e exe cutando sacerdotes inocentes. Quanto aos deveres dos juizes, formulados no imperativo, podem-se ler alguns tomados da legislação: Lv 19,15 Não dareis sentenças injustas. Não serás parcial, nem para favorecer ao pobre nem para honrar ao rico. Julga com justiça teu concidadão (shpt, dl, ns’ pnym). Dt l,1 6 s Escutai e resolvei segundo a justiça os pleitos de vossos irmãos, entre si ou com imigrantes [classe desvalida]. Não sejais parciais na sentença, ouvi por igual a pequenos e grandes, não vos deixeis intimidar por ninguém, pois a sentença é de Deus. Dt 16,19 Não violarás o direito, não serás parcial nem aceitarás suborno. — A sentença de morte não se expressa nos salmos como uma das fórmulas comuns, com mwt tmwt, mwt ywmt\ a forma empregada é aparentada por um lado com Nm 16,29, e por outro com Gn 3. No motim de Coré contra Moisés lemos a frase: ’m kmwt kl ’dm ymwtwn = morrem de morte natural, como morrem todos os homens. O texto do Gênesis narra a Estudo global 1051 história de Adão e Eva: se pecais, morrereis (tmwtwn: essa forma enfática na 2apessoa só se lê em Gn 3,3.4; Is 22,14 e neste salmo); a serpente objeta: “não morrereis... sereis como deuses”. O texto do Gênesis não só ilumina formalmente o processo do salmo, mas também oferece elementos de conteúdo importantes para analisar a correlação deus / homem. b) Composição e detalhes formais — O principal princípio de composição é a cena judicial antes descrita. Ela justifica e explica a mobilidade da cena. No primeiro versículo, alguém apresenta as personangens; em 2-4, o juiz interpela os réus; no 5 fala deles em terceira pessoa dirigindo-se ao público (ou fala o mesmo que no primeiro versículo); em 6-7 volta o juiz à segunda pessoa; no final prorrompe o público em aclamação dirigida ao juiz (ou fala o mesmo de antes). Fazem parte desta composição os pronomes ’ny j ’tm e ’th de 6a e 8b. Também os diversos nomes e usos de nomes divinos. — São interessantes os paradigmas contrastados. Num plano se contrapõem deus-deuses-Altíssimo e homens-príncipes: um grupo dos primeiros é degradado à categoria dos segundos, com suas conseqüências: da imortalidade à morte. Noutro plano, a clássica oposição inocente / culpado ou malvado / honrado é substituída por malvado = culpado / desvalido-órfão-humilde-necessitado-pobre. Os malvados praticam a in justiça contra os pobres desvalidos, e os juizes, em vez de julgar = libertar os oprimidos, apóiam os opressores. Os juizes em função são julgados e achados culpados. — E interessante o movimento rítmico com mudanças significativas: o alargamento dos versículos 5 e 8. Correspondências sonoras e rítmicas de 3a com 4a, da bifurcação em 5a, das comparações em 7ab k’dm / k’hd enfático 6a, com as quatro palavras aliteradas em alef. c) Identificação dos ’Ihym: deuses Refiro-me ao plural de lb, e não ao singular de la e 8a. É preciso distinguir metodicamente entre significação ou designação. Os musicólogos explicam-nos que o Beckmesser dos Mestres Cantores representa o crítico musical conservador Hanslick. Podemos entender e gostar da ópera sem conhecer essa identificação; uma vez conhecida, temos que buscar que não estreite a dimensão da personagem. Beckmesser pode ser Hanslick e muitos outros que existiram e existirão. Antes de identificar o referente, a pessoa designada, convém com preender o sentido imanente da personagem dentro da obra em que vive e atua. Há obras em que a identificação é muito importante, porque concerne Salmo 82 1052 substancialmente ao sentido, como o são as obras históricas, as crônicas, os informes. Em outros casos, a identificação pode servir para obter dados contextuais que a obra literária dá por supostos. No SI 82, a identificação dos ’íhym diz respeito indubitavelmente ao sentido e condiciona a compreensão do problema colocado e de sua solução. Ora, algumas figuras literárias prestam-se a diversas identificações. A esta belecida ou pretendida pelo autor pode ser mudada por gerações posterio res de leitores ou por públicos estrangeiros. Todos sabemos como chistes políticos viajam de um país a outro, aplicados cada vez ao político local. Po de-se estudar o SI 82 como caso típico. — Os ’íhym como divindades. Seguindo Jüngling, reconhecemos que o autor fala do panteão celeste: sobre uma corte de divindades subordinadas impera o Deus supremo. Ao identificar-se Yhwh com ’l, as outras divinda des são destronadas e eliminadas (condenadas à morte). Pode-se ilustrar com muitos textos do AT: 95.3 96.4 5 97,7 Porque Yhwh é um Deus grande, ’l gdwl soberano de todos os deuses. ‘I kl ’íhym Porque é grande o Senhor e muito famoso, mais terrível que todos os deuses; pois os deuses dos pagãos são aparência, enquanto o Senhor fez o céu. Diante dele se prostram todos os deuses... 9 Porque tu és, Senhor, Altíssimo sobre toda a terra, elevado sobre todos os deuses. Outros textos: Ex 15,11; SI 29,1; Jó 1,6, etc. O panteão divino é conce bido e representado ao estilo duma corte humana, como se pode ver compa rando o texto citado de ISm 22,6 com outro de lRs 22,19: Saul estava em Loma, sentado sob uma tamargueira, rodeado de toda a sua corte ... Vi o Senhor sentado em seu trono, Todo o exército celeste estava de pé junto dele, à direita e à esquerda — Que aos deuses ou a alguns em particular compete a administração da justiça entre os homens mostram-no numerosos textos não bíblicos. Do grande hino a Samas = Deus solar (ANET 387-389; Seux 51-63): 97 98 99 100 Deténs publicamente o juiz desonesto, o que aceita suborno e julga contra a justiça tu o castigas. O que não aceita suborno e defende a causa do desvalido é grato a Samas, prolongará vida. De um hino a Marduc (Seux 71-75): Tu endireitas o fraco, dás espaço ao desgraçado, levantas o desvalido e apascentas o oprimido. Estudo global 1053 De um hino a Istar (Seux 187-194): 25 Tu sentencias as causas com justiça e eqüidade, 26 tu atendes ao oprimido e ao afligido, os restabeleces cada dia. — O cântico de Dt 32 encaixa-se nesta concepção de henoteísmo, ou seja, de prestar culto a um só Deus, reconhecendo a existência de outros deuses estrangeiros: 8 Quando o Altíssimo dava a cada povo sua herança e distribuía aos filhos de Adão, traçando as fronteiras das nações, segundo o número dos filhos de Deus. Em outras palavras, o Deus supremo (Yhwh) atribui a cada divindade um povo e a cada povo um território. Ao chocar essa mentalidade com a nossa monoteísta, saltam como chispas perguntas e problemas: Que entidade tinham essas divindades? Foram realmente injustos os deuses de outros povos? Dessas perguntas nos ocuparemos mais pausadamente depois do comentário exegético. d) Identificação dos ’Ihym: juizes — O desterro significou revolução religiosa. Se se tivesse de julgar a história com o critério do êxito imediato, os deuses babilónicos tinham demonstrado sua superioridade sobre Yhwh. A qual se acrescentavam a sugestão dum culto esplendoroso e sua presença em tantas estátuas magníficas ou impressionantes. Nesse clima religioso, extrema-se a polê mica com ou contra os deuses pagãos, e o grande poeta anônimo que costumamos chamar de Segundo Isaías corrigiu definitivamente a concep ção religiosa do povo: nada de henoteísmo, mas monoteísmo puro. Provavelmente conhecia o SI 82. Ele também emprega o esquema literário do julgamento, embora de outra maneira, mais sutil e complexa. Veja-se Is 41,21-29: Apresentai o vosso pleito, diz o Senhor, aduzi vossas provas, diz o Rei de Jacó... narrai os eventos futuros, e saberemos que sois deuses; fazei algo, bom ou mau... Todos juntos eram nada; suas obras, vazio; ar e nulidade suas estátuas. O pleito do Senhor com os deuses da Babilônia é ficção literária de Isaías: a esses deuses abundantes da Babilônia o poeta lhes concede existência literária, como contendentes num magno pleito. Uma multidão contra um só, um silêncio coletivo contra uma voz dominante. No final do 1054 Salmo 82 julgamento — ficção literária — , fica patente a ficção ontológica desses deuses. A ficção literária, palavra autêntica de Deus, serve para descobrir a verdade e a falsidade (mas o profeta não o coloca em termos de justiça). Estabelecida a nulidade ontológica dos deuses pagãos, parece que o salmo cumpriu sua função pedagógica e pode ser eliminado das coleções oficiais. Mais ainda, o salmo poderia favorecer um retorno ao politeísmo moderado que é o henoteísmo. — O salmo não foi retirado nem corrigido, continuou sendo rezado. Mudou a identificação dos ’Ihym: não deuses, mas juizes e governantes “pela graça de Deus”. Prova-o o Targum, que traduz íhym por dyny’, e em sua esteira também Qimchi. Segundo Jo 10,34-36, Jesus dá testemunho dessa interpretação, que supõe comumente aceita: Não está escrito em vossa lei: Eu vos digo que sois deuses? Pois se chama deuses aos que receberam uma nomeação divina... Pôde-se fazer a mudança de identificação sem mudar o texto do salmo. A coisa revelou-se tão fácil que os Padres e autores modernos defendem que teria sido este o sentido original do salmo. Argumentam com Ex 21,6 e 22,7.8.10, onde alguns casos legais se resolvem acudindo aos ’Ihym ou jurando perante eles. O argumento não convence, porque os casos alegados são provavelmente ordálios ou juízos divinos, com ou sem juramento; em tal caso provam o contrário, que ’Ihym são deuses ou Deus em função judicial. Os chefes são ministros de Deus, administram justiça em nome de Deus: Josafá estabeleceu juizes em cada uma das fortalezas do território de Judá e os advertiu: Cuidado com o que fazeis, porque não julgareis com autoridade de homens, mas com a de Deus, que estará convosco quando pronunciardes sentença. Portanto, respeitai o Senhor e procedei com cuida do. Porque o Senhor nosso Deus não admite injustiças nem favoritismos nem subornos (2Cr 19,5s). Se juizes e ministros não são deuses, são divinos, e isso basta para a nova identificação do salmo. O sentido fica claro: juizes e ministros recebem de Deus poder para administrar justiça, e nada mais. Administrar justiça em Israel é fazer valer os direitos dos que os tendo não os podem fazer valer, os desvalidos. O juiz que se deixa subornar com prejuízo dos fracos não cumpre com sua obrigação, e pode ser condenado à morte. Todos os ministros “pela graça de Deus” terão de dar contas a Deus; e eles mais estritamente (Sb 6,1-11). O salmo converte-se assim em acusação profética contra governantes injustos e em ato de esperança dos humildes que invocam a intervenção de Deus. O horizonte não se restringe a Israel, já que soberanos e poderosos Exegese 1055 de outros países também recebem autoridade de Deus; às vezes inclusive para castigar o seu povo (como de Nabucodonosor diz Jr 27). De mais a mais, no tabuleiro internacional poderá representar um dia os pobres oprimidos e poderá apelar a Deus como árbitro internacional: S f 3,12 Eclo 35,21 22 25 Deixarei em ti um povo pobre e humilde, um resto de Israel que se acolherá no Senhor. Os gritos do pobre atravessam as nuvens e até alcançar a Deus não descansam; não recua até que Deus o atenda e o juiz justo lhe faça justiça. Deus também não demorará... até defender a causa de seu povo e dar-lhes a alegria da salvação. — A injustiça alui os fundamentos da convivência social, na ordem nacional e internacional. A obscuridade é o reino dos injustos (SI 11,2). Mas os governantes injustos não têm impunidade sacra. Não vale que invoquem prerrogativas recebidas de Deus: “Tu, que és homem e não Deus, ousarás dizer ‘sou Deus’ diante de teus assassinos?” (Ez 28,9). A condição mortal devolve sua verdadeira dimensão ao homem: o que pretende ser “como Deus” (Gn 3,4), morrerá como Adão; e o que se eleva com título de príncipe, será como um qualquer. Deus “lhes dirige a palavra” (Jo 10,35) condenando-os. E o povo aclama. Depois do desterro, o salmo conservou seu valor educativo e manteve na liturgia uma vibração profética. 5. Exegese 1. O primeiro ’íhym é o Deus de Israel Yhwh. Às identificações que demos do segundo íhym podemos acrescentar outras: Aquila traduz iskhyron - fortes, poderosos, anjos Sir, chefes judeus Teodoreto. 2. Compare-se com Lv 19,15.35. Sobre o favoritismo: Jó 13,10; 22,26; 32,21; 34,19. 3. Fazer justiça: justificare Vg, “quando o direito está do seu lado, sentenciai a seu favor sem temer os opressores nem mostrar-lhes parciali dade” Quimchi; “justificar significa aqui declarar inocente quem o é” Lorin; absolvei Menochio. 5a. Os vervos;y<i‘ e byn podem ter significado ou conotação judicial: byn Jó 11,11 (sujeito Deus); SI 139,2; Jó 32,9 (pelo compl mshpt); IRs 3,9 (com prep byn).yd‘: veja-se Bovati, Ristabilire lagiustizia, 59s.69s.222-224, etc. Um texto que une ambos os verbos é a denúncia de Is 56,11: “são pastores que não sabem compreender”. 1056 Salmo 82 5b. A escuridão como metáfora de desordem social (Is 59,9). 5c. A injustiça estabelecida e a desordem social concernem à ordem cósmica; os “estáveis fundamentos do orbe” (Mq 6,2). 6. O Targum suaviza a expressão: consideram-nos como anjos. 8. O verbo hebraico é nhl, literalmente herdar, indicando possessão estável. Herança do Senhor já não é só o povo escolhido, mas também todas as nações, também as pagãs. Para a apropriação do salmo Os israelitas transportavam uma carga de politeísmo à margem de sua dedicação particular a um Deus ciumentamente exclusivista. Para eles, Yhwh só, para outros povos um repertório de divindades (Mq 4,5): Todos os povos caminham invocando o seu Deus, nós caminhamos invocando sempre o Senhor nosso Deus. Em que relação se acham os muitos e o um? O problema torna-se agudo quando se assentam em Canaã, mudando de cultura e progredindo nela. Que função têm as outras divindades para os outros povos e para nós, povo do Senhor? Tiveram uma função — responde o salmo — : garantir a justiça entre os homens; mas não a cumpriram, e essa função a assume agora o Senhor. E isso que quer inculcar uma ação litúrgica breve, fazendo com que o povo aclame seu Deus único como Deus supremo e garante da justiça. O salmo tem função educativa: fazer amadurecer uma atitude pela oração. Onde se apóia esse raciocínio? Não temos dados datados com seguran ça. Se Dt 32 já era conhecido, era uma orientação clara. Na renovação da aliança de Js 24 (texto pelo que parece tardio), o chefe propõe uma escolha não indiferente, mas comprometida, entre Yhwh e “os deuses aos quais serviram vossos pais do outro lado do rio, ou os deuses dos amorreus, em cujo país habitais”. Não alega que esses deuses sejam falsos, mas que o Senhor foi libertador e exige entrega exclusiva. Seu Deus tinha-se revelado como libertador de oprimidos, defensor da autêntica justiça; os deuses de nações poderosas eles os experimentaram antes como injustos e opressores; os deuses de Canaã são especialistas da vegetação, não das relações humanas. A nós soa-nos isso como simplificação, mas parece enformar a mentalidade israelita e nela influir; pelo menos nos intérpretes oficiais. Nós lemos os salmos com nossos problemas, convicções e concepções. A parte positiva, a experiência do Senhor como defensor do direito dos oprimidos revela-se-nos relativamente fácil de compreender e assimilar (ainda que às vezes descubramos preferências que nos soam como favori tismo). A referência tão viva a outras divindades é alheia ao nosso horizonte. Crê realmente o autor do salmo que existiram outros deuses que Exegese 1057 não eram imortais? Em que sentido diz quejulgavam e governavam até que o Senhor tomou posse do governo supremo? Inclinamo-nos a prescindir de Dt 32 e do presente salmo, como de peças arqueológicas, monumentos de crenças primitivas hoje vazias de significa do. O que seria impor violentamente nosso horizonte e negar a palavra ao salmo em seu sentido original. O que queremos é que o texto fale e dialogue com nossos pressupostos e problemas. Buscando resposta que respeite a palavra do salmo, proponho esta solução. Os deuses dos pagãos não são simplesmente nulidades. São esforços humanos, em parte acertados e em parte errôneos, para expressar a experiência religiosa de muitos povos. Naturalmente, cada expressão está condicionada pela experiência humana, social, histórica e cultural, de cada povo. A experiência religiosa foi muitas vezes autêntica, ainda que não fosse pura; o esforço de representação simbólica foi sincero e em parte exitoso; mesclaram-se na expressão limitações e erros que viciaram em grau diverso a representação. Enquanto representações simbólicas parti culares do divino, podemos dizer que correspondem de certa maneira à realidade divina misteriosa, que dela participam refletindo-a, que se manifesta através dela de algum modo o Deus verdadeiro. Assim como empregamos nossa palavra “deus” para nos referirmos a nossa idéia (que consideramos metafisicamente pura, ainda que analógica), assim também podemos aceitar que se empregasse a palavra “deuses” para se referir a essas representações impuras. Ora, a impureza e o erro misturados podem crescer tanto que viciem totalmente determinada representação; então é preciso descartá-la e buscar uma nova. Uma morre com seus criadores e usuários, ocupando outra seu posto. E não é a pluralidade dado que vicia na raiz qualquer representação da divindade? Isso não é tão fácil de descobrir e assimilar; o salmo pode ativar o processo de depuração. Propor a questão em termos de justiça, ou seja, afirmar que a conduta injusta vicia radicalmente uma representação da divindade, é intuição religiosa importantíssima. Não só pragmática, mas também metafísica. Uma religião baseada estritamente no “do ut des” torna-se grave mente injusta; porque o que mais dá, mais recebe do deus, sem importar como conseguiu e retém o que possui, de onde toma para dar. Como o pobre pode dar menos, será menos favorecido pela divindade. O mesmo podemos dizer do poder militar ou do talento. Um deus concebido nesses termos revela-se parcial e subornável; muito depressa se converte em agente de injustiça. Neste caso não cumpre mais com sua missão religiosa, vicia-a inteiramente. Raciocínio semelhante podemos fazer com os deuses intimidatórios. Apelar sistematicamente ao terror é fazer injustiça ao homem. De mais a Salmo 82 1058 mais, um deus intimidatório é facilmente manipulável por um grupo em próprio proveito, converte-se em agente de injustiça. Carta de Jeremias (= Baruc 6) 3-4. Durante este tempo vereis na Babi lônia, levados aos ombros, deuses de prata, ouro e madeira, que infundem temor aos gentios. Cuidado! não vos assimileis aos estrangeiros, não vos deixeis dominar pelo terror. Dir-se-á que a precedente reflexão é alheia ao salmo. Também era alheia a mim. Eu não teria chegado a essa compreensão se não tivesse estabelecido diálogo com o salmo; não haveria avançado se tivesse descar tado o salmo como antiqualha superada. O salmo, posto em situação de diálogo, chega a descobrir-me o mais profundo de sua visão. 6. Transposição cristã Para uma leitura atual e cristã podemos tomar como modelos as duas leituras já documentadas: divindades ou ídolos e autoridades humanas. Começamos distinguindo entre deuses pessoais com suas imagens e a qualidade de sacralidade que confere a consagração. A segunda é por participação divina e pode residir na autoridade. Fazemos duas perguntas correspondentes: Existem hoje ídolos que devam ser destronados e conde nados à morte? Há autoridades que abusam duma autoridade recebida de Deus? Comecemos pela segunda. — Em sentido próprio, a autoridade “divina” reside na Igreja e outras organizações religiosas. Estão investidas de poder sacro somente para o exercício de funções cultuais, ou são de algum modo guardas da justiça, ou se dividiram e se repartiram as funções? Em qualquer caso, é válida uma resposta negativa: se esses mandatários de Deus não favorecem a justiça, mas antes apóiam a injustiça, sua investidura sacra não os torna impunes. O povo oprimido pode reclamar ao Deus de todos ou a Jesus Cristo, senhor de sua Igreja, para que a purifique. A história da Igreja e de instituições semelhantes haverá de responder a essa pergunta. — Em sentido amplo, podemos detectar sacralidade inclusive onde é negada. Em nossa cultura, a autoridade civil é secular, não apela a nenhuma investidura sacra. Mas, sob capa de secularidade, pode-se escon der o mecanismo correspondente. Se a autoridade considera-se à parte e intocável, de alguma maneira está usurpando poderes sacros e divinos. Ainda que o negue expressamente. O salmo conserva sua força profética também para esses ministros da injustiça. De mais a mais, na concepção bíblica, qualquer autoridade procede de Deus. Transposição cristã 1059 — A segunda pergunta seria inútil: já não existem ídolos. É certo? Um ídolo é obra humana, que o homem diviniza, à qual se submete e oferece vítimas. Em certa época, os ídolos eram de manufatura: pedra ou madeira os baratos, prata e ouro os caros. Ora, o homem é faber de outras maneiras. Consideremos primeiro os ídolos secularizados: criações dos homens, que as declaram supremas e intocáveis, às quais se exige submissão e oferecemse vítimas. Nesse sentido podem ser ídolos as ideologias, os valores artificiais, os poderes acumulados. Exigem submissão praticamente incon dicional, embora não seja religiosa; ou então neutralizam e eliminam toda rebelião possível. O ídolo é feito pelo homem; aquele que se submete colabora com sua fabricação ou com sua conservação. Há os benévolos, que prometem e oferecem; e há os intimidatórios. Têm em comum que são obra do homem e escravizam o homem. Às vezes os chamamos de mitos. Com freqüência recorrem à obscuridade, produzem cortinas de fumaça. Não querem ser reconhecidos, confundem os valores, turvam a lucidez crítica. Ameaçam os fundamentos da convivência por serem ministros da injustiça. Alguns têm efeitos desastrosos na ecologia. Devem ser destronados, fora e dentro. A invocação de Deus como único senhor de todos os povos será libertadora. — Mais refinados e perigosos, mais difíceis de reconhecer são os ídolos mentais. Em nossa vida religiosa necessitamos de representações: ima gens, símbolos, conceitos. São instrumentos para nos aproximarmos da realidade de Deus, para falar dele e com ele, para viver em comunidade religiosa com outros da mesma fé. Existe o perigo de divinizar essas representações, que são obra humana, ainda que não das mãos. Salvo em momentos excepcionais, não podemos exercer nossas funções religiosas e de fé sem certo repertório de idéias e palavras sobre Deus. Ora, as nossas idéias sobre Deus não são Deus, nem nossos símbolos nem nossos conceitos nem nossos enunciados. O perigo de divinizá-los é sutil, porque não podemos viver sem eles e facilmente tendemos a confiarnos a eles. Antigamente podiam se defender os idólatras alegando que não adoravam a pedra, mas o que ela representava; persistia, porém, o perigo de realmente se ficar na imagem. Algo parecido pode ocorrer com nossas representações mentais. Se as absolutizarmos, se as quisermos impor a força, se lhe sacrificarmos vítimas humanas, estaremos caindo numa forma de idolatria. Se nos imaginarmos um Deus que não se preocupa com a injustiça e só se concentra no culto, um Deus conivente e subornável, essa idéia não será Deus nem de Deus; é ídolo. Se fingirmos um Deus intimidatório, que estabelece um regime de terror, estamos caindo em idolatria. E também se pensarmos que podemos ter Deus encaixado numa série de afirmações; ou se tentarmos manipulá-lo. 1060 Salmo 82 O Deus semper maior é uma expressão profunda: sempre maior em nós, superando o que sabemos sobre ele, tanto maior quanto mais próximo, menos sabido quanto mais conhecido. O Senhor precisa levantar-se perio dicamente dentro de nós para julgar nossas imagens de Deus, para condenar as que o desmereçam. Em certo sentido, é preciso morrer muitas idéias nossas de Deus, para dar lugar a uma idéia cada vez mais verdadeira. Com essa perspectiva se deveria ler e meditar a luta de Jacó em Gn 32, a visão de Elias em lRs 19. A primeira carta de João termina de modo inesperado: 5,20 21 Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu inteligência para conhecer o Verdadeiro. Estamos com o Verdadeiro e com seu Filho Jesus Cristo. Ele é o Deus verdadeiro e vida eterna. Filhinhos, guardai-vos dos ídolos. Os cristãos podem fazer-se uma idéia falsa de Deus. Podem converter Jesus em ídolo para o entusiasmo e a adoração, prescindindo de sua exigência de amor, que engloba a justiça. Uma idéia falsa de Jesus Senhor pode convertê-lo em instrumento de injustiça, de falta de amor. Os cristãos devem ater-se ao Deus verdadeiro e guardar-se dos ídolos. E um conselho permanente. Salmo 83 1. Texto 2 3 4 5 6 7 8 9 O Deus, não fiques calado, não fiques em silêncio e imóvel, ó Deus! Olha que teus inimigos se agitam e os que te odeiam levantam a cabeça. Tramam planos contra teu povo e conjuram contra teus protegidos. Dizem: Vamos aniquilá-los como nação, que o nome de Israel não mais se pronuncie. Estão de acordo na conjura, fazem liga contra ti: beduínos, idumeus, ismaelitas, moabitas e agarenos; Biblos, Amon e Amalec, filisteus e habitantes de Tiro; também a Assíria aliou-se a eles, prestaram reforços aos filhos de Ló. 10 Trata-os como a Madiã, como a Sísara, como a Jabin junto da torrente Quison: 11 que foram aniquilados em Fuendor, e serviram de esterco1 12 Trata seus príncipes como a Corvo e o Lobo, e a seus capitães como Zebá e Salmaná, 13 que arengavam: Conquistemos as várzeas de Deus. 14 Trata-os como flores do cardo, lanugem diante do vendaval.2 15 Como fogo que pega na macega, como chamas que abrasam os montes; *de adubo a solo 2torvelinho 1062 Salmo 83 16 persegue-os assim com a tua tormenta, desbarata-os com teu furacão. 17 Cobre-lhes o rosto de ignomínia, para que te busquem por teu nome, Senhor. 18 Desconcertados e confundidos para sempre, pereçam derrotados. 19 E reconheçam que teu nome é Senhor, só tu és Soberano3 de toda a terra. 2. Bibliografia U . Devescovi, I silenzi di Jahvé, RivBib 10 (1962) 226-239. A. Malamat, The military history o f the land o f Israel in Biblical times, Jerusalém, 1964, 110-123. W . Wifall, The foreign nations: Israel’s nine bows, BulEgyptSem 3 (1981) 113-124. B. Costacurta, L ’aggressione contro Dio: studio del Ps 83, Bib 64 (1983) 518-541. 3. Análise filológica 2. í: para o uso de ’l como volitivo negativo sem verbo, veja-se 2Sm 1,21 e GB 36 a. 3. yhmywn: com a terceira radical conservada GK 75 u, com nun paragógico GK 47 a. 4. y ‘rymw swd: fazem planos astutos Ges Thes 1071. çpwnyk: teus escondidos / protegidos; sanctos tuos Vg, arcanum Jerôn. 5. mgwy: comparem-se ISm 15,3 mmlk e ISm 15,26 mhyvut mlk. 6. mw‘çw Ibyhd : o subst interrompe o sintagma normal (SI 71,10; Is 45,21; Ne 6,7). Uns tomam lb como complemento direto; a maioria tomamno como modal: en homonoiai LXX, unanimiter Vg, corde Jerôn, no coração Sir, de todo o coração Targ Ros Phil; segundo ~De\,yhd reforça o significado recíproco do verbo e qualifica o substantivo. Alguns corrigem para lb ’hd Duhm Olshausen Gun But. 8. Yshby: poderiam ser os chefes, como em Ex 15,14. 9. zrw‘\literalmente, braço. 11. dmn: explicam Eutímio e Genebrardo insepultosapodreeiamese decompunham. 12. shytmw: imper + sufixo 3a masc pl GK a,g. 3Altíssimo sobre Estudo global 1063 13. riwt: pl de nwh com substituição de alef por waw GB 491. 14. kglgl: utrotam VgTarg Genebrardo, torvelinho, remoinho Graetz. 15. tb‘r ... tlht: relativas assindéticas Joüon 158 a. 17. wybqshw: jussivo atrás de imperativo Joüon 116 d. 19. LXX e Vg unem Ibdk com a segunda parte, contra a indicação hebraica; GK 143 explica o versículo como frase composta: shmk yhwh Ibdk predicado, ’y wn aposição a ’th ou segundo predicado. 4. Estudo global a) Gênero e situação O texto é explícito: o salmo é uma súplica diante de ameaça bélica gravíssima. Uma aliança de nações avança contra o povo escolhido, dispos ta a aniquilá-lo e apagar sua memória. Pela situação bélica, aparenta-se o salmo com o díptico do SI 20-21, com o texto narrativo de Is 7, com a composição artificial de 2Cr 20 que descreve uma coalizão de Moab, Edom e Moab contra o rei Josafá. Quanto à situação histórica, a primeira impressão é que poucos salmos oferecem tantos dados para a identificação: dez nomes de povos ou nações, recordações particulares do tempo dos juizes. Não menos significativos são os silêncios: não se menciona Judá como reino autônomo, nem Jerusalém ou Sião, nem o templo, nem a Babilônia ou o Egito. E preciso levar em conta um dado sobre as campanhas bélicas antigas. Ainda que às vezes houvesse alianças formais, como a de Damasco e Israel contra Judá nos tempos de Isaías, a de Israel e Judá em lRs 22, etc., muitas outras vezes o que atua é um exército de mercenários de diversos países, que guerreiam por ofício ou por dever de vassalagem ou por esperança de butim. Um exército multinacional tem algo de aliança militar. Pois bem, o salmo é generoso em dados geográficos, oferece algumas recordações históricas, mas não se deixa encaixar em conjuntura histórica conhecida. Sempre resta o recurso de fazer da necessidade virtude e declarar que o salmo refere-se a situação precisa que desconhecemos. A alternativa é que o salmo seja uma composição ideal feita de retalhos reais, na linha das escatologias. b) Os povos do salmo É possível e relativamente fácil descrever a trajetória histórica de cada um, mas no salmo o importante é sua conjunção. Ainda que nada haja de mais fácil que ampliar ou encurtar uma enumeração, o número dez do 1064 Salmo 83 salmo parece garantia de originalidade. O autor quis compor uma lista de dez povos em ordem irregular. O lógico teria sido começar pelo ternário clássico Amon-Moab-Edom ao oriente, seguir com os filisteus ao poente, continuar com Biblos e Tiro ao norte, ir daí para Amalec no sul, e terminar com a longínqua Assíria. Nos livros proféticos é freqüente encontrar uma coleção de oráculos contra uma série de povos pagãos. Sendo as coleções obra posterior, resultam agrupações cronologicamente irreais. Contento-me com uma lista: Is 13-23 Jr 25 Jr 46-52 Ez 25-32 Am 1-2 Sf 2 Babilônia?, Assíria, Filistéia, Moab-Amon-Edom, Damasco, Cadar, Elam, Babilônia. Egito, Huz, Filistéia, Edom-Moab-Amon, Tiro-Sídon, DedanTemá-Buz, Arábia, Zimri, Elam-Média, Norte, Babilônia. Egito, Filistéia, Moab-Amon-Edom, Damasco, Cadar, Elam, Babilônia. Amon-Moab-Edom, Filistéia-Tiro-Sídon, Egito, Seir (Gog). Damasco, Gaza, Tiro, Edom-Amon-Moab Filistéia, Moab, Amon, Núbia, Assíria. Sem dar nomes, Is 17,12-14 descreve a maré dos povos que avançam contra Judá e seu fracasso repentino por um grito de Deus. Ezequiel inventa uma coalizão capitaneada pelo misterioso Gog (38). Zc 12,3.6.9 e 14,1-3 menciona uma aliança contra Jerusalém. Pelo menos os dois últimos textos têm caráter escatológico. Poder-se-ia ainda acrescentar a lista das conquis tas de Davi: Filistéia, Moab, Sobá, Damasco, Amalec, Edom-Moab-Amon. O SI 83 parece-se com as séries de coleções proféticas, com elementos próprios: o ternário clássico não vai unido, Biblos substitui Sídon, Amalec figura só no salmo e na lista davídica; Assíria não capitaneia, mas reforça “os filhos de Ló” (Moab e Amon). Acrescenta-se a isso o fato de distinguir ismaelitas e agarenos: os agarenos como grupo diverso só se encontram em lCr 5,10.19b. As vitórias mencionadas, contra Madiã e contra Jabin, ainda supondo que tenham base histórica, têm aura de lenda e são anteriores à monarquia; o que parece intencionado. Ou porque não mais existe monarquia quando se compõe o salmo, ou porque se quer apresentar como ideal a era dos juizes, quando Deus ajudava de perto o seu povo. Em conclusão, inclino-me a considerar o salmo como composição artificial, utilizável em qualquer conjuntura bélica, e que mais tarde se leu com projeção escatológica. c) Composição Embora o salmo discorra com certa fluidez nas transições, não é difícil seguir seu movimento e apreciar sua articulação. Exegese 1065 Após a petição inicial do v. 2, um ki de motivação introduz em três versículos a aliança e seus projetos aniquiladores (3-5); um segundo ki serve para introduzir a lista dos aliados; pausa. No v. 10 começa a imprecação, que avança em três ondas: a primeira (10-13) recorda vitórias do passado, pede sua renovação e alarga-se citando a arenga do inimigo; com nova invocação a Deus entra a segunda, que é uma petição de teofania destruidora (14-16); a terceira (17-19) invoca a derrota total do inimigo e seu forçado reconhecimento do Senhor. O que nos oferece duas partes que se correspondem, metidas dentro dum marco: 2 3-9 10-18 19 Cesse o silêncio O inimigo e seus planos Intervenção de Deus e derrota do inimigo Exaltação do Senhor Sobre o esquema destacam-se algumas correspondências interessan tes: 1) Perante a gigantesca coalizão, Deus age sozinho, usando como arma a tormenta; é ele o alvo da hostilidade inimiga (3-4). O povonão tem que lutar; suas armas são a imprecação englobadanasúplica. 2) Odrama desenvolve-se em dois quadros com forte contraste. O inimigo no princípio: após a agitação turbulenta, um planejamento concorde; o inimigo no final: desconcerto, derrota e confusão. Reduz-se o drama a esses dois tempos: grandes preparativos em sete verbos de ação, derrota ignominiosa em seis verbos de paixão. No meio não há uma batalha com incidências. 3) Dois “nomes” ocupam dois pólos: o nome de Israel, que deve ser cancelado para sempre (5), e o nome de Deus, que haverão de reconhecer apesar de tudo. Dir-se-ia que o salmo perpetua sete nomes de chefes inimigos (10.12), mas são nomes para a imprecação, emblemas duradouros de fracasso. Chama a atenção a acumulação de termos de comparação com a partí cula k- como: sete de personagens, quatro da natureza. Como se os eventos evocados tivessem que seguir padrão previsto, ao passo que falham os pro jetos do inimigo. Os nomes dos povos, salvo talvez Edom, não são explorados para as habituais paranomásias. 5. Exegese 2. Silêncio e inação de Deus: como em Is 62,6s; no saltério (28,1; 35,22 39,13; 109,1). O que o orante sente como inação de Deus, é calma serena visto e dito por Deus (Is 18,4). Chama muito a atenção a fonética do versículo inicial pela reiteração da seqüência alef lamed: íhym í dmy-lk í thrsh w í tshqt í. Dois nomes divinos estão colocados no princípio e no fim 1066 Salmo 83 do versículo, abarcando a tríplice petição. A enumeração e as séries vão dominar o estilo da oração. 3-4. Em perfeito paralelismo, Deus e seu povo, afirmando que os inimigos do povo eleito são inimigos de Deus. Os quatro possessivos -ka, nos quatro hemistíquios, sublinham-no sonoramente. O verbo hmh significa o rumor ou estrondo duma multidão que se agita: como o mar (Is 51,15) (Agélio nota a semelhança marinha); Jr 5,22; SI 46,4; veja-se Is 17,12-14, notável pela onomatopéia. Levantar a cabeça é gesto de superioridade, mais freqüente com o verbo rwm; com ns’ (Jó 10,15). O verbo ‘rm inclui o aspecto de astúcia. Protegidos: guardados, escon didos, como que num refúgio (SI 27,5; 31,5.21). Pouco freqüente é hkhyd eliminar, aniquilar: no epílogo do Código da Aliança (Ex 23,23), contra Jeroboão (lRs 13,34) e contra os pastores (Zc 11,8). 5. Não nomear (Jr 11,19); com o sinônimo zeker em vez de shem (Jó 18,17; Ecl 9,5; Dt 32,26). Outra fórmula parecida e freqüente é mhh shm apagar o nome, como castigo final: acaba-se a descendência e nenhum sucessor perpetua o nome do povo; inclusive se apaga o nome do registro, da memória (por exemplo, Ex 17,14; Dt 9,14; 25,29; 19,19; 2Rs 14,27). 6. Israel e seu Deus, como objeto de inimizade, fazem com que muitos povos se ponham de acordo e façam uma aliança formal. No ódio compar tilhado põem-se de acordo. 7. A menção de ’hly parece designar aqui grupos beduínos. 9. Filhos de Ló: menção despectiva de amonitas e moabitas, descen dentes segundo a lenda da união incestuosa de Ló com suas filhas (Gn 19). 10. Os madianitas são os inimigos do tempo de Gedeão, pelo que a menção de Madiã parece deslocada. A não ser que se anteponha com valor programático, como pode sugerir Is 9,3. A recordação de Sísara e de Quison está viva no relato em prosa e no poema de Jz 4 e 5. 11. Como esterco ou adubo: diz-se de Jezabel como epitáfio sarcástico (2Rs 9,37); reitera a frase Jeremias (8,12; 9,21; 16,4; 25,33); último destino ignominioso para um guerreiro. Escuta-se nesse versículo a paranomásia do nome de Edom; mostrá-lo-ei assinalando os fonemas com maiúsculas {nshMDw b‘y n Dwr hyw DMn l’DMh). 12. Quatro chefes madianitas mencionados no ciclo de Gedeão (Jz 7,25; 8,5-21). 13. Várzeas de Deus: ’Ihym pode equivaler a um superlativo, “várzeas ubérrimas”. Literalmente, indica o desafio dos invasores, que cobiçam e ousam querer invadir as “várzeas de Deus”, de sua propriedade. Muitos antigos interpretaram n’wt como santuário Vg; Plácido de Parma terra prometida. 14-16. Para situar esses versículos, é preciso levar em conta alguns dados. Transposição cristã 1067 — A imprecação ou conjuro considera-se muitas vezes como arma eficaz contra um inimigo mais poderoso, como o mostra a história de Balaão: Nm 22,5 Saiu do Egito um povo que cobre a superfície da terra e estabeleceu-se diante de nós. 6 Vem, por favor, maldizer esse povo, que me excede em número, para ver se consigo derrotá-lo e expulsá-lo da regiáo. — O povo invoca a intervenção de Deus numa teofania que aplique a lei do talião, uma vez que está em jogo a existência do povo de Deus. Comparando esses versículos com o SI 21, podem-se apreciar os traços convencionais do gênero. 14. As comparações são correntes (por exemplo, Is 17,13; 40,24). 15-16. A comparação descreve de forma concentrada o propagar-se dum incêndio na macega ou mata cerrada dos montes; assim há de atuar a tormenta de Deus, perseguindo e desbaratando como um incêndio. Por costume inveterado, o fogo evoca também a ira de Deus. Escute-se também nesses versículos a fonética elaborada. 17-19. Em cinco termos acumulam-se a vertente objetiva da derrota e a vertende subjetiva da vergonha e confusão pelo fracasso; dados que podemos sintetizar na fórmula: “uma derrota ignominiosa”. Buscar o nome é expressão estranha. Busca-se o Senhor ou seu rosto, como sinal de fidelidade. Creio que o versículo deve-se entender à luz do SI 18,42: “gritavam ao Senhor, e ninguém respondia”. No desconcerto e desespero da derrota, chegam a implorar o inimigo vencedor. 19. Reconhecendo, ainda que com desgosto, a soberania de Yhwh sobre todo o mundo. “E reconheçam” é fórmula favorita de Ezequiel. Em princípio, o reconhecimento pode ser voluntário e alegre ou forçado e doloroso. Sb 12,17 assim o diz: Perante aquele que não crê na perfeição de teu poder desdobras tua força, e àqueles que a reconhecem os deixas convictos de seu atrevimento. Pode-se ler um exemplo significativo no relato enfático da morte de Antíoco IV, segundo 2Mc 9. 6. Transposição cristã Para transitar com esse salmo do Antigo ao Novo Testamento temos uma ponte que se apóia por um lado em textos eseatológieos de assalto e derrota, por outro em textos bélicos do Apocalipse. Do AT vem a propósito sobretudo Ez 38-39 e o final de Zacarias: 1068 Salmo 83 Ez 38 descreve a aliança: “tropas inumeráveis te seguem”, o avanço do exército “como borrasca, como nuvem ameaçadora de tempestade”, os planos de invasão e saque: “invadirei um país aberto e atacarei gente pacífica... para entrar saqueando e alçar-me com butim”; mas o Senhor manifestar-se-á na tormenta de “água, granizo, fogo e enxofre”, demonstrando “sua grandeza e santidade”. Todo o exército será derrotado: “nos montes de Israel caireis”, e seus cadáveres serão pasto das feras. E as nações “saberão que eu sou o Senhor”. Zacarias é muito mais preciso. O Apocalipse espraia-se em visões fantásticas de batalhas e pragas até a derrota final da emblemática Babilônia e do Dragão: 16,14 São os espíritos de demônios que fazem sinais e se dirigem aos reis do mundo e os reúnem para a batalha do grande dia do Deus Todo-poderoso. 8,7 Houve granizo e fogo misturado com sangue. 10,13 Os restantes ficaram aterrorizados e confessaram a glória do Deus do céu. É em chave a história dramática da Igreja de Cristo: atacada por nações hostis, por regimes anticristãos, invadida por sistemas contrários. Não faltam os perseguidores dispostos a aniquilar o nome cristão, o nome de Cristo na terra, e apoderar-se de suas riquezas materiais e espirituais. A perseguição pode ter muitas caras (como os nomes dos dez povos); e, embora “o poder da Morte não prevalecerá contra ela”, em algumas regiões pode correr risco sua própria existência. Lido em chave simbólica, o salmo conserva seu valor como expressão dramática e angustiada duma Igreja sob ameaça. Mas é preciso endireitar seu objetivo. E justo pedir a Deus o fracasso de regimes criminosos, agressivos e aniquiladores, o fracasso de planos e sistemas de valores que vão contra o desígnio de Deus. Mas, quando nos encaramos com as pessoas, damos sentido positivo ao verbo “reconhecer”: pedimos a Deus mudança de mentalidade dos perseguidores, de modo que reconheçam a Jesus Cristo, ou pelo menos seus valores autênticos. Nas palavras de Jo 8,28: Quando levantardes este Homem, compreendereis que eu sou e que não faço nada por minha conta, mas que falo como meu Pai me ensinou. E segundo o final do hino de F12: “e toda língua confesse, para a glória de Deus Pai: Jesus Cristo é Senhor!”. Salmo 84 1. Texto 2 3 4 5 6 7 8 Que delícia é tua morada, Senhor dos Exércitos! Meu alento1consome-se anelando pelos átrios do Senhor; meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo. Até o pardal encontrou uma casa, e a andorinha um ninho onde colocar seus filhotes: teus altares, Senhor dos Exércitos, Rei meu e Deus meu. Felizes os que habitam em tua casa louvando-te sempre. Feliz o que tira de ti forçai quando projeta sua peregrinação. Atravessando o Vale da Amoreira,3 transformam-no em manancial, e a chuva cobre-o de alvercas. Caminham de baluarte em baluarte, e o Deus dos deuses se lhes mostra em Sião. 9 Senhor Deus dos Exércitos, escuta minha súplica; atende-me, Deus de Jacó. 10 Vê, ó Deus, o nosso Escudo, olha o rosto do teu Ungido. 11 Pois vale mais um dia em teus átrios que mil em minha estância 4 1minha alma 2encontram em ti sua força 3vale do choro 4morada 1070 Salmo 84 ou pisar o umbral da casa de Deus que morar na tenda do malvado. 12 Porque Yahweh é sol e escudo, Deus concede favor e glória; o Senhor não nega seus bens aos de conduta irrepreensível. 13 Senhor dos Exércitos, feliz o homem que confia em ti! 2. Bibliografia A. 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Análise filológica 4. ‘shr: sem menção do pronome para o lugar Zor 87-88. 6. ‘wz: força ou refúgio Siegfried-Stade 497, DBHE 2' l.abc. mslwt: calçadas; LXX e Vg anabaseis e ascensiones subs do verbo Estudo global 1071 clássico de subida = peregrinação a Jerusalém; muitos autores antigos o interpretam em sentido espiritual, apoiando-se em blbbm. blbbm: o sufixo recolhe o ’dm como coletivo. 7. bry b-: part constructo seguido de prep GK 130 a, Joüon 129 m. hbk’: topónimo 2Sm 5,23s; talvez uma planta, amoreira os autores modernos; os antigos reduziram-no à raiz bkh e traduziram pranto LXX Vg Sir Aq Sím Jerôn; Targ amplia o vale da geena chorando. brkwt: bênçãos; traduz reservatórios mudando a segunda vogal Duhm, sem mudá-la Dah. mwrh: chuva Aq Flamínio cf. J1 2,23; legislador LXX Vg Sím, doutor Jerôn, os mestres como sujeito Lutero. 8. mhyl í hyl: das forças físicas Ros Hitzig Duhm Del Gun; muros da cidade Baethgen; DBHE hyl lbc. yr’h ’l íhym: lendo ’el como sujeito do verbo passivo LXX Vg; lendo í como preposição e os peregrinos como sujeito coletivo do verbo passivo Del segundo a construção de Lv 13,19 e lRs 18,ls, Jerônparebunt apud Deum\ Ros tenta uma conciliação: “será visto, ou seja, até que se apresente diante de Deus para ser visto cada um dos peregrinos”. 10. mgnny: provavelmente vocativo LXX Vg Jerôn Ros Hitzig Del; acusativo ou complemento de r’h Ibn Ezra Phil Duhm Gun But Rav. 11. bhrty: unido ao verbo seguinte LXX Vg Jerôn Marini Ros Hitzig Del Cast Rav; corrigem, unindo-o a míp: por bhws Duhm Bickell But, por hdr - habitação Gun. hstwpp: denominativo de sap = umbral, cf. os porteiros do templo segundo lCr 9,17-19; Jr 52,24; Rasi pensa na sentinela; LXKpararripteithai, Vg abiectus, Teodor arrojado ao umbral. dwr: habitar, residir cf. Eclo 50,26. 12.0 TM divide depois de íhym e depois de yhwh. 4. Estudo global a) Gênero e situação Se nos ativermos aos dados formais, esse salmo é um mostruário. Há frases de hino nos versículos 2 e 12; há três bem-aventuranças (ou macarismos) em 5.6.13; em 12, algumas pegadas duma liturgia de entrada; lê-se um provérbio do tipo “mais vale” em 11. Por outro lado, o salmo definese como tplh = súplica, e efetivamente contém três imperativos dirigidos a Deus em 9.10. 1072 Salmo 84 Se nos fixarmos no conteúdo, o salmo canta o templo de Sião com os SI 46, 48, 63 e 87 (e 27,4-6). Podemos concretizar: canta a Sião num cântico de peregrinação, como o SI 122. Mas não basta catalogar, que não nos escape a intensidade lírica do poema, pela qual se aparenta com 42-43. Escutemos a exclamação inicial repentina, a expressão de estado de ânimo no v. 3, a projeção sentimental na ave (v. 4), os títulos personalizados de Deus em 4c, a escolha gozosa de 11. São efusões que não se deixam classificar. De que festa se trata? Considerando a referência provável às chuvas de outono no v. 7b, alguns pensam na festa das tendas. Objeta-se que essa festa “dura sete dias” (Lv 23,39); mas não importa, porque a menção de “um dia” é proverbial, para o contraste um / mil. Também não se pode excluir uma peregrinação pessoal, por devoção, à margem das festas oficiais do calendário. O salmo está dominado pela primeira pessoa singular; quando passa ao plural, é referindo-se a um grupo numa bem-aventurança, ou pronunciando um título divino (v. 10), ou generalizando uma conduta (v. 12b). Compare-se esse salmo com o plural do SI 122 ou a recordação de uma multidão no SI 42,5. Pelo aspecto pessoal, o presente salmo está mais próximo do 63, sem alcançar o mesmo grau de corporeidade. Ora, o salmo é disponível para qualquer peregrinação. No caso de festa oficial e coletiva, é mais importante não cair em ritualismo ou na rotina dum gozo exterior. Enquanto o SI 122 fala do “costume” ou lei de Israel, o presente é de todo espontâneo. O orante sente-se movido por um gozo inte rior, não por imposições ou condicionamentos externos: como uma andori nha? b) A peregrinação O SI 122 começa com dois tempos precisos: o anúncio na aldeia e a chegada à capital, saltando toda a viagem. O salmo presente situa-se num tempo psicológico que pode abarcar vários momentos, fundindo-os numa simultaneidade lírica. A ânsia e o anelo correspondem à distância, a visão dos pássaros aninhados sugere a presença; em rigoroso paralelo encontram-se os “moradores” estáveis do templo e os “peregrinos”. A súplica pelo “Ungido” parece mais própria do templo (vejam-se SI 61 e 63: templo e rei); a menção de “um dia” pode ser experiência atual, antecipação ou recorda ção. Inclusive os traços mais realistas, como o pássaro ou as fontes, entram no poema por ato generalizante. E o fator psicológico que unifica vigorosamente o salmo. Em termos literários, chamamo-lo de fator lírico, em termos religiosos, de fator espiritual. Contudo, para clareza de exposi ção, vamos distinguir. Estudo global 1073 — A peregrinação física concentra-se nos versículos 7-8 e articula-se em três momentos: atravessar um vale transformado pela chuva, passar de baluarte em baluarte, comparecer diante de Deus em Sião. Se nisso nos fixarmos sem prescindirmos do contexto, veremos que não são indicações objetivas de paisagem, mas que neles se projeta uma paisagem interior, em parte pela ambivalência das expressões (veja-se Exegese). — A peregrinação espiritual é a substância do poema. Se a polaridade e tensão se definem no SI 42-43 em termos de ausência/presença, no presente salmo são distância / presença. Se fisicamente podem coincidir distância e ausência, psicologicamente não são o mesmo. Com o ausente não contamos, com o distante sim. O orante põe-se a caminho: “em seu coração” decidiu peregrinar (v. 6), e a mente já se enche do anseio de chegar, de gozo pela certeza e proximidade. O orante do SI 42-43 deseja e pede para voltar ao templo, mas não está seguro do fato e não sabe quando o conseguirá; nosso peregrino está seguro da viagem, sabe a hora, pode antecipar o termo. A oração não começa com um enunciado, mas com uma exclamação (como SI 8,2; 133,1), felicita (5.6), emite um juízo de valor (11). As ânsias (3) são a impaciência de quem empreende uma viagem para encontrar uma pessoa querida. A pessoa querida é aqui Deus em pessoa, que vai se revelar luminoso e protetor (8.12). O encontro será breve, mas tão intenso e gozoso que compensará longos períodos neutros e os possíveis incômodos da viagem. Com diferentes nomes e pelo possessivo “teu”, Deus faz-se sentir vizinho ao longo de todo o salmo. Os que “habitam” no templo podem dedicar-se ao louvor, o que é uma felicidade; mas talvez os peregrinos vivam com mais intensidade a breve visita a seu Deus. Inclusive a viagem revela alegres surpresas. — A peregrinação ética enuncia-se no final: os que caminham = procedem honradamente, recebem de Deus favor, honra e bem-estar (12). A viagem física não fica em mero ritualismo nem em doce experiência íntima, mas compromete a conduta posterior do peregrino. (Daí a interpre tação que fazem alguns do v. 12 como citação duma liturgia de entrada). A experiência de união com Deus deve desembocar numa conduta honrada. E como se, no final, o caminho de volta estivesse definido pela experiência do templo. Como se o final fosse uma bênção acompanhada de admoestação. c) Composição Atribuo valor estrutural à repetição de Yhwh çb,wt: em 2 e 4c delimita a primeira parte do poema; em 9 e 13 delimita a última secção, de modo que 9 abra a súplica e 13 sirva de remate a todo o poema. Entre as duas secções 1074 Salmo 84 assim delimitadas encaixam-se as duas bem-aventuranças (5-8). Certo peso adquire a repetição de hlk em 8 e 12, indicando a coordenação da peregrinação física com a ética. A repetição de “átrios” em 3 e 11 estende uma ponte entre as ânsias da ausência e a densidade da presença. A repetição de “casa” em 4 e 11 volta a ligar mentalmente o orante ao pássaro. As duas imagens do poema, pássaros e fontes, não parecem ter função estrutural; comentá-las-ei em seu lugar. O poema desenvolve-se suave e rapidamente numa sucessão de peças diversas: 2-4 ânsias do peregrino, imagem da ave 5 primeira bem-aventurança: habitantes 6-8 segunda bem-aventurança: peregrinos 9-10 petição pelo Ungido 11 kl juízo comparativo de valor 12 ki conduta do Senhor e do homem 13 recapitulação. 5. Exegese 2 .0 predicado “quão amáveis” precisa ser escutado com sua etimologia de amor funcionando. Isaías usa o termo em seu canto de amor (Is 5,1), Jeremias na acusação contra a esposa infiel (Jr 11,15);lê-se no título dum epitalâmio ou cântico de bodas (SI 45,1); é título de Benjamim na bênção emblemática de Dt 33,12; aplica-se à comunidade (SI 60,7) e a um indivíduo (SI 127,5). A raiz acha-se também presente no nome de Davi e no apelativo carinhoso que, por ordem do Senhor, o profeta Natã dá ao menino Salomão. Essa carga amorosa e histórica pode ressoar no começo do salmo, dado que Davi e Salomão são promotor e artífice do templo. Não menos importante, ainda que com outro termo, é o que revela o drama de Ezequiel: a morte repentina da esposa anuncia simbolicamente a destruição do templo, amor do povo: 24,16 Vou arrebatar-te repentinamente o Encanto de teus olhos. 21 Vou profanar meu santuário, vosso soberbo baluarte, o encanto de vossos olhos, o tesouro de vossas almas. Resumindo diríamos: o orante está enamorado do templo. 3. O verbo raro nksp significa anelo ou nostalgia em Gn 31,30 e Jó 14,15. klth é raro com npsh como sujeito (SI 119,81). Compare-se com SI 63,2 e 73,26. Se encarregássemos a São João da Cruz, talvez traduzisse: Exegese 1075 “com ânsias em amores inflamada”. A ânsia do orante é total: alma = alento, coração = mente, carne = corpo. 4. A imagem da ave soa como que projeção sentimental do poeta, como a cerva do SI 42,2. O poeta detém-se com prazer no duplo sentido de byt = casa: a ave “pôs casa” para sua família de filhotes na casa de Deus, junto ao altar; hóspede acolhido na generosa hospitalidade de Deus. Quem lhe dera fosse como ela! Com que liberdade e rapidez se desloca pelo ar até sua morada, sem ter que caminhar fadigosamente: quem lhe dera fosse como ela! No SI 11,1 recomendam ao orante que fuja ao monte como um pássaro; no SI 55,7, em plena anarquia, suspira o orante: “Quem me dera asas de pomba para voar e pousar-me!”. Pôr o ninho é metáfora de assentar-se, estabelecer-se (Nm 24,21; Ab 4; Hab 2,9). Neste versículo termina o ternário de plurais: tuas moradas, os átrios de Yhwh, teus altares. 5-6. A duplicação paralela de bem-aventuranças convida-nos a compa rar ambas as categorias: moradores / transeuntes. Quem leva a melhor parte? O SI 65,5 parece preferir os que habitam permanentemente nas dependências do templo: “Feliz o que escolhes e aproximas para viver em teus átrios”; 91,1 dirige-se a alguém “que habita ao amparo do Altíssimo”. Viver no templo é viver junto do Senhor que disse: “Esta é minha mansão para sempre: aqui viverei porque a quero” (SI 132,14). No entanto, o orante equipara as duas bem-aventuranças e ainda dedica mais espaço à segunda. Contanto que parta da relação confiante com Deus. 6-8. Com mediana probabilidade podemos distinguir uma decisão prévia e três etapas de peregrinação. Mantendo a leitura hebraica, aparece o peregrino pensando e decidindo “caminhos” cômodos, rotas de terra apisoada que facilitam a viagem, o melhor em comunicações da época. Se bem que seja palavra preferida do Segundo Isaías e textos posteriores (Is 40,3; 49,11; 11,16; 62,10; 19,23), o paralelo mais pertinente lemos na grande composição de Jr 31,1-22, quando convida a “donzela de Israel” a voltar: “Olha bem o caminho cômodo” (sty Ibk Imslh: afim ao SI 84). — Primeira etapa: pelo vale. Suspeito que o autor tenha querido explorar o duplo sentido ou as assonâncias das várias palavras, segundo costume hebraico comprovado numa multidão de casos. Indicá-lo-ei grafi camente: Atravessando o vale de Baká / da Amoreira / do pranto transformam-no em manancial / bebem de seu manancial a chuva de outono / o Mestre veste-o de reservatórios / o cobre de bênçãos (recorde-se o jogo de Os 2,17: ‘kr / ‘qr e tiqwa miqwe (Profetas, II, 878). 1076 Salmo 84 A transformação do caminho de volta à pátria é tema favorito do Segundo Isaías (por exemplo, 35,6s; 41,18): Descobrirei rios em cumes pelados, no meio do fundo dos vales mananciais; transformarei o deserto em lago e o ermo em fontes de água. Alguns comentadores sustentam que as árvores (bk’y m) são próprias de zonas áridas. — A segunda etapa pode-se tomar em sentido material: de baluarte em baluarte. A idéia é de praças fortes que balizam o caminho oferecendo proteção no fim de cada jornada. Outra interpretação mais subjetiva, imagina o paradoxo de forças que não se esgotam ao caminhar, antes vão se renovando à medida que se aproxima o peregrino do templo. A idéia é semelhante à de Is 40,31: Os que esperam no Senhor renovam suas forças: lançam asas de águias, correm sem cansar-se, marcham sem fatigar-se. Uma terceira interpretação identifica os baluartes com fortificações de Jerusalém, segundo o SI 48,4: “olha nos seus baluartes, contando seus torreões”. Nessa interpretação, a segunda etapa chega às portas da cidade, como no SI 122,2. — A terceira etapa acontece já dentro do templo. A ambivalência do texto surge da vocalização: Deus deixa-se ver / eles apresentam-se a Deus. No capítulo antes citado de Jeremias, “o Senhor aparece de longe” aos peregrinos (31,3); na marcha dos peregrinos (Is 35,2), “eles verão a Glória do Senhor”; em Is 40,4 “vê-o todo mortal”; com outro verbo diz o SI 63,3: “como te contemplava no santuário vendo tua força e tua glória”. Todos esses textos supõem que o homem vê a Deus ou sua glória. E possível que a vocalização atual do TM tenha nascido dum escrúpulo, de pensar que o homem não pode ver a Deus. Ora, como no templo não há imagens da divindade, a visão tem que ser espiritual, uma experiência interior (cf. Ex 23,15; Dt 16,16; ISm 1,22). 9-10. Oração pelo Ungido ou aduzindo o Ungido. A presunção é que se refira ao rei, como se lê nos relatos de Saul e Davi e em vários salmos. Numa leitura ou composição pós-exílica seria o sumo sacerdote (ainda que não tenha o título em Zacarias). Numa leitura tardia pode identificar-se com o Messias escatológico, segundo Dn 9,25. Se lermos “escudo” como vocativo, trata-se de título conhecido de Deus: “ó Deus, nosso escudo” (com suf singular: SI 3,4; 18,3; 28,7; plural: 33,20; 59,12). Mas “nosso escudo” pode ser acusativo, paralelo e título de Ungido: Transposição cristã compare-se com Lm 4,20: “nosso alento, a sua sombra 1077 Vimos (Análise filológica) que é normal rezar pelo rei no templo. 11. A comparação um / mil é convencional e serve para encarecer enfaticamente (por exemplo, Dt 32,20; Js 23,10; Is 30,17; SI 90,4; Ecl 7,28). O verbo hstwpp, denominativo de sap = umbral, é caso único; como se no português disséssemos “umbralear”. Poderia aludir às sentinelas men cionadas em 2Rs 12,10; 22,4. “Tendas malvadas”: pode-se tratar de mora das suntuosas, fruto de injustiça, como as supostas em Am 6,4 e Mq 6,10: “a casa do malvado com seus tesouros injustos”, ou o palácio de Jr 22,14s. O sentido eqüivale a: prefiro um cargo, ainda que seja na entrada do templo, às comodidades que procura a injustiça. 12. Ainda que o título de Sol aplicado a Deus só se leia aqui, atributos solares não são tão raros no AT. Vejam-se Dt 33,2; Is 60 e 62, o estribilho do SI 57. O título de escudo é comum no saltério (LXX e Vg tem que ter tido diante outro texto, pois traduzem: “porque Deus ama a misericórdia e a verdade”). Os dois títulos do hebraico, combinados, oferecem-nos uma visão sugestiva: a luminosidade gloriosa do Senhor, sua proteção firme. A essa luz o homem pode caminhar “honradamente”, nessa proteção pode “confiar”. 13. Recapitulação: Yhwh çb’ wt de 2.4.9, feliz o homem de 6, confiança resume o conteúdo de vários versículos, é sinônimo de 6a: “tem em ti sua força”. 6. Transposição cristã — Primeiro em chave cristológica presente. O salmo canta o amor e a nostalgia pelo templo, onde Deus se mostra: “pois eu vos digo que aqui há algo mais importante que o templo” (Mt 12,6). Adiantando sua glorificação, Jesus deu a ver seu rosto “resplandescente como o sol” (Mt 17,2). Jesus é o novo, o verdadeiro templo, porque nele Deus está presente e se manifesta: “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). E assim ele é nossa morada, e nós a sua (Jo 6,56; 15,4). — Em chave eclesiológicapresente-, o templo é a Igreja: E f 2,21 Por influência sua, toda a construção fica travada e cresce até converter-se em templo santo do Senhor; 22 e pela mesma influência, ides entrando na construção, para ser morada espiritual de Deus. Por isso são felizes os que habitam na Igreja e nela louvam a Deus (Eusébio). Habitam ou são peregrinos? — Em chave cristológica do Senhor glorificado. A transfiguração foi uma antecipação. Descreve-o agora o Apocalipse no céu (1,16): “seu sem blante resplandecia como o sol em plena força”. E o novo templo reedificado: 1078 Salmo 84 Jo 2,19 Destruí este templo, e em três dias o levantarei. 21 M as o templo de que ele falava era seu corpo. Por isso a cidade celeste não precisa separar um recinto para o templo: Ap 21,22 Templo não vi nenhum: seu templo é o Senhor Deus, soberano de tudo, e o Cordeiro. 23 A cidade não precisa de sol nem de lua que a iluminam, a glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro. “Como os que vêem a luz estão na luz, os que vêem a Deus estão em Deus. O esplendor de Deus lhes dá vida” (Ireneu, Adv. haer., 4.20.5). — Em chave eclesiológica futura. A morada pela qual suspiramos está no céu, pois “aqui não temos cidade permanente, andamos em busca da futura” (Hb 13,14). Habitar na Igreja é peregrinar rumo à pátria: 2Cor 5,1 Se nosso albergue terreno, essa tenda de campanha, desmorona, temos um edifício que vem de Deus, um albergue eterno no céu... 6... embora saibamos que, enquanto for o nosso corpo nosso domicílio, estaremos dester rados do Senhor. Desterrados e peregrinos neste vale de lágrimas, mas vale regado pelo manancial que mana do lado de Cristo que o cobre de mananciais e reservatórios e fontes de água viva. Nossa “força” pelo caminho vem dele: feliz quem confia nele. Nossa oração pelo caminho: que Deus contemple o rosto de seu Ungido. Santo Agostinho escreveu um grande comentário a esse salmo. Tomo dele alguns parágrafos: “Como objeto de seu desejo só lhes resta Deus. Não amam mais a terra, pois amam quem fez céu e terra. Am am e ainda não estão com ele. Seu desejo prolonga-se para crescer, cresce para dar espaço. Pois não é pouco o que há de dar Deus ao que deseja, nem é pouco o que há de esforçar-se para dar espaço a tão grande bem. Deus não vai dar algo do que fez, mas a si mesmo, que fez tudo. Para dar espaço a Deus, esforça-te; o que hás de possuir para sempre, deseja-o por muito tempo. Não nos cansaremos de louvar a Deus. Se te falta o amor, falta-te o louvor; mas se o amor é perpétuo, porque será perpétua aquela formosura inesgotá vel, não temas: pois poderás louvar para sempre ao que sempre poderás amar. Milhares de dias desejam os homens e querem viver aqui muito tempo. Desdenhem os milhares de dias e desejem o dia único, que não tem aurora nem ocaso; dia único, dia eterno, ao qual o ontem não dá lugar nem o amanhã apressa. Nosso desejo seja esse dia único”. Salmo 85 1. Texto 2 Senhor, foste bom para com tua terra, mudaste a sorte de Jacó; 3 perdoaste a culpa de teu povo, cobriste todos os seus pecados. 4 Reprimiste tua cólera, te refreaste de tua ira acesa. 5 Restaura-nos, Deus salvador nosso, acalma teu enfado conosco. 6 Ficarás sempre indignado conosco ou prolongarás tua ira de idade em idade? 7 Não nos devolverás a vida, para que teu povo te festeje?1 8 Demonstra-nos, Senhor, tua lealdade e dá-nos tua salvação. 9 Escutarei o que diz Deus: o Senhor propõe2 a paz a seu povo, a seus leais. aos que recobram a esperança. 10 Já se aproxima sua salvação dos seus fiéis, para que a Glória habite em nossa terra. 11 Lealdade e Fidelidade se encontram, Justiça e paz se beijam; 12 Fidelidade brota da terra, Justiça assoma do céu. 13 Pois o Senhor dará a prosperidade3, e nossa terra dará sua colheita. 1e assim teu povo te festej arará? 2 anuncia 3 os bens 1080 Salmo 85 14 Justiça caminhará diante dele encaminhando seus passos4. 2. Bibliografia E. Dietrich, Shwbh-shbwt: die endzeitliche Wiederherstellung bei den Propheten, Giessen, 1925. G. Bernini, SI 8 5 Inno e preghiera, em Le preghiere penitenziali del Salterio, Roma, 1953, 133-135. J. Scharbert, Formgeschichte und Exegese von E x 34,6 f und seiner Parallelen, Bib 38 (1977) 130-150. E. Beauchamp, L ’heure d ’une réconciliationn totale et universelle (Ps 85), BVC 24 (1958) 68-79. W . L. Holladay, The root sûbh in the OT, Leiden, 1958, 110-114. E. Lipinski, Le psaume du 3e dimanche de l’A vent (Ps 85). Le salut est proche, AssSeign 54 (1966) 24-31. C. Barth, Notes on ‘return’ in the OT, EcR 19 (1967) 310-312. M. Dahood, Ps 85,14, Bib 60 (1969) 350. P. Gordan, Gerechtigkeit und Frieden haben sich geküsst. Ps 85,11, FreibRundbr 27 (1975) 16-17. C. Trautmann, La citation du Ps 85,11-12 et ses commentaires dans la Pistis Sophia, RHPhRel 59 (1979) 551-557. D. McCarthy, Ps 85 and the meaning of peace, W ay 22 (1982) 3-9. J. S. Kselman, A note on Ps 85,9-10, CBQ 46 (1983) 23-27. 3. Análise filológica 2. shbt shbwt: mudaste a sorte: sintagma fixo, freqüente sobretudo em Jr (com variantes oito vezes na secção 29-33); no saltério (14,7; 53,7, e 126,1 corrigido); no sintagma, shwb tem valor transitivo tanto em hifil como em qal. Os antigos derivaram o subst de shbh: aikhmalosian LXX, captivitatem Vg Marini Ros Del. Os modernos derivam-no de shwb (como parece sugerir o ketib) GB 901, Duhm Gun. 3. ht’tm: lêem plural LXX Sím Teod Vg Jerôn; sufixo pl ad sensum. 4. hshybwt: hif com valor intranstivo, não é preciso corrigi-lo; BHap sugere acrescentar um -m de sufixo, omitido pela haplografia. 5. shwbnw: como no v. 2 qal com valor transitivo e sufixo acusativo LXX Jerôn Vg Marini Del Gun; intransitivo com sufixo dativo Targ Ros; acus de direção But. whpr: imper hif de prr. 4 retidão seguirá teus passos Estudo global 1081 7. tshwb thynw: para a construção GK 120 g. h. 8. wysh‘k: com segol GK 93 k. 9. yhwh : segundo TM unido a h’l. w ’lyshwbw Ikslh: cláusula final ut non convertantur ad stultitiam Jerôn Marini Ros Hitzig Del. Muitos vocalizam ’el / ’elê preposição; conservando ksl com o significado de confiança; Dah os que de novo confiam nele, os que retornam a sua confiança, Gun fal kslh complemento de dbr e paralelo de shlwm aos que se convertem a ele [fala-lhes de] esperança. Lendo libbam loh em vez de Ikslh LXX kai epi tous epistrephontas pros auton kardian Duhm. 10.kbwd: acolhido ao sufixo de ysh ‘w. 14. wysrn Idrk p ‘wyw : quem é o sujeito de ysm ?yhwh de 13a explica Ecker, em parêntese o sentido de Vg; çdq último nomeado, sujeito de duas ações sinonímicas, Ecker explicando o hebraico. De quem são os passos? de çdq Ros, de yhwh a quem segue a justiça. O que significa wysmP. Colocar, dispor, ou forma elíptica de swm lb = prestar atenção Del. 4. Estudo global a) Gênero e situação Os aspectos genéricos ou tipológicos do salmo estão bem perfilados, e deles nasce nossa perplexidade. Os três primeiros versículos (2-4) são ação de graças sem introdução ou invitatório. Acrescentemos adiante um versículo do tipo: “Nós te damos graças, Senhor, bendizemos teu nome porque”, e temos um exemplo típico, abreviado, até com a inclusão de shwb. Sem transição nem introdução, segue uma súplica em quatro versículos (5-8), definida por vários impera tivos e animada por perguntas retóricas. Acrescentando uma introdução do tipo: “escuta, Senhor, minha súplica, meu grito chegue até a ti”, teríamos um exemplo resumido, com a correspondente inclusão de y sh ‘. Com uma introdução ampla (9ab) segue um oráculo que enuncia em cinco versículos a salvação próxima. Três gêneros sucessivos: ação de graças, súplica, oráculo de salvação: como se sintetizam? As peças segunda e terceira ligam-se sem dificudade: a uma súplica responde um oráculo, o pedido foi concedido; inclusive se repetem palavras para assegurar o enlace. O problema é como encaixar a primeira parte, agravado pela repetição do verbo shwb em 2 e 5: depois de afirmar "restauraste”, por que pede “restaura-nos”? Não faltam, é verdade, no 1082 Salmo 85 saltério casos em que se usa uma salvação pretérita como argumento para mover a Deus ou como base de confiança para o orante. A relação ideal não é difícil nem desconhecida; o que falta no salmo é certa transição que o delate. Acrescentemos mentalmente esse enlace, e tudo fica claro: “Tu, que um dia nos restauraste, restaura-nos agora; tu, que um dia afastaste a cólera, até quando continuarás irado?”. — Toca-nos agora indicar uma situação, tipológica ou histórica, em que se cumpram as condições para que funcione o salmo. A situação típica repetiu-se ao longo da história de Israel, pelo que não seria preciso definir mais: o salmo seria peça de repertório. Houve quem apontasse para o salmo a festa outonal do ano novo agrário (Mowinckel). Uma série de indícios temáticos e verbais convidam a precisar a situação histórica que dá origem ao salmo. Depois do cântico entusiasta do Segundo Isaías (Is 40-55) e do retorno à pátria, surgem novas dificuldades de toda ordem. Foi tudo em vão, vai triunfar a desilusão? — Deus responde com um oráculo de esperança. Vimos que a expressão shwb shbwt é típica de profetas exílicos. Em conclusão: o salmo começa como súplica dum tempo de desgraça ou desilusão, remonta ao passado como contraste e fonte de inspiração; Deus abre com seu oráculo um futuro de esperança. b) Composição e estilo — A clara divisão em três partes dá-nos a disposição de superfície. A primeira parte usa shwb para uma inclusão menor; da mesma forma usa ysh‘ a segunda parte; a repetição de ’rç em 2 e 12 soa como inclusão maior. Se descontarmos a introdução ao oráculo (9ab), as secções vão crescendo a razão de três, quatro e cinco versículos. O verbo shwb perpassa como fio condutor poema do v. 2 ao 9, insistindo na idéia e imagem de volta, retorno, mudança. Deus é o sujeito em 2.4.5.7, o povo em 9. A idéia de movimento propaga-se à terceira parte na visão de aproximar-se, encontrar-se, até o caminhar final. Se aceitarmos a hipótese de situar o salmo na volta do desterro, esses dados de composição ganham significado coerente. No primeiro êxodo, do Egito, o verbo dominante era;yp ’ = sair, emparelhado com o genérico hlk = caminhar. No segundo êxodo, da Babilônia, o verbo shwb é mais freqüente, ainda que não mais importante. A saída do Egito foi um começo, que se prolongou na marcha pelo deserto rumo à terra. A repatriação é mudança e volta. Mudança de atitude, de conduta, de direção: notemos o morfema re- em termos como re-torno, re patriação, re-stauração. Chegados à pátria, há um grande encontro e começa um caminhar novo, metafórico. E curioso que o poema, ainda que Exegese 1083 mencione o “assentamento” da glória de Deus (10b), não termina com o verbo yshb - habitar (como Os 11,11), mas com hlk = caminhar. — Atendendo ao ritmo, rimas e acidentes gramaticais, diremos que tudo ocorre com grande ordem e compostura, como se o poema quisesse difundir harmonia e tranqüilidade. Só a súplica central agita-se levemente com duas interrogações e algumas mudanças rápidas de sujeito. Atendendo à distribuição do vocabulário, observamos que a ação de Deus na primeira e segunda parte é principalmente livrar e desembaraçar: perdoar pecados, reprimir a cólera. As qualidades positivas, que imperam na terceira parte, vão se adiantando: no anúncio do v. 2, no jsA ‘ de 5 e 8, de hsd em 8. c) Personificações É o procedimento de estilo mais saliente deste poema (.Manual de poética hebrea, 147-150). Se nas duas primeiras partes o sujeito quase exclusivo era Deus, na última secção ocupam o cenário várias personifica ções (excetuando 13a). Salvação se aproxima, Glória se assenta, outras se encontram, se beijam e abraçam, uma brota a partir de baixo, a outra assoma a partir de cima, alguém abre a marcha. Temos que nos imaginar uma cena: cidadão, damas e cavalheiros (nomes masculinos e femininos) albergados sob a abóboda do céu. Só a terra está atarefada sem esforço. Como fundo de contraste deve-se repassar o SI 55, que mostra uma cidade ocupada por personificações sinistras. Veremos o quadro de Is 59,15 na exegese. 5. Exegese 2a. Começa de repente com um ato de benevolência divina confessado pelo orante: a aliteração rçh / ’rç. Essa benevolência tem como fundo a negativa de tantos profetas, como Jr 14,10.12; Os 8,13; Am 5,22; Mq 6,7, e em sentido oposto a grande confissão do SI 44,4: ky rçytm. A impaciência do SI 77,8 encontra aqui sua resposta. Terra aqui é ao mesmo tempo o território habitado e a terra de cultivo, como no v. 13. 2b. A vocalização do qere quer ler uma referência aos cativos, como em Ez 16,53. O primeiro versículo do poema estabelece a tonalidade, dispõenos a uma leitura esperançosa. 3-4. A mudança implica em remover as causas profundas do desastre: essa engrenagem exigida do pecado humano e cólera divina. Quem toma a iniciativa? Quem cede primeiro? O orante continua pronunciando verbos 1084 Salmo 85 na segunda pessoa dirigidos a Deus. O homem diz a Deus o que Deus sabe melhor; porque não informa, confessa: perdoaste, tapaste, retiraste, afas taste-te. O sistema de rimas internas e aliterações acha-se muito elaborado nesses versículos: os quatro -ta em primeira posição, os três -ka em terceira, os dois -ôn em segunda, as três palavras que começam com ‘ayn. Para o verbo cobrir, veja-se o jogo no SI 32,1.5. Teu povo: apesar do pecado, Jacó continua sendo povo de Deus. Ira acesa: com a fórmula tradicional; unida a shwb também na intercessão de Moisés (Ex 32,12), depois do castigo de Acã (Js 7,26; Dt 13,18; Jn 3,29); negado em 2Rs 23,26. 5. Restaura-nos: é a petição do estribilho do SI 80,4.8.20. O termo k‘s = enojo, verbo e substantivo, é mais freqüente em textos aparentados com Dt, inclusive Jr: esses textos servem de fundo à petição presente. 6. A petição ou reclamação sobre o prolongar-se do castigo lemos em SI 74,1; 77,8-10; 79,5; assoma em Zc 1,12. E como se, depois do grande retorno, estivéssemos voltando aos dias da tragédia. 7. A volta do Senhor fará reviver. E o prometido a Ezequiel na visão dos ossos (Ez 37), que tem paralelo ou ressonância no SI 71,20: “me farás reviver alçando-me aos cimos da terra”. Outros textos do saltério: 30,4; 41,3; 80,19; 138,7; 143,11 e onze vezes em 119. A vida recobrada desemboca em celebração (smh) do Senhor. 8. hsd oposto à ira pode significar misericórdia; no contexto implícito de aliança, creio que significa lealdade: que Deus nos mostre sua lealdade, suspensa pela cólera. 9. Veja-se o comentário ao SI 81,6c. Alguém na assembléia escuta e comunica o oráculo de resposta. O texto do oráculo abarca tudo o que segue até o final; ou então se concentra no v. 9 e o que segue é comentário litúrgico. A diferença do SI 81, Deus não toma aqui a palavra em primeira pessoa. E uma mensagem de paz. Deus reconciliou-se com eles, já não os afasta a cólera. Para a expressão dbr shlwm, veja-se Gn 37,4 e Dt 2,26. A mensagem dirige-se a um povo que responde com sua lealdade à lealdade divina e com sua confiança às promessas. O que significa que o povo superou a grande prova e que as perguntas precedentes (6-7) não expres savam protesto ou rebeldia. De outro lado, a mensagem tem uma ponta de admoestação, ao qualificar os beneficiários da mensagem de paz. 10-14. A reconciliação e a paz recuperadas projetam-se nessa cena de transfiguração poética. O horizonte o definem céu e terra, Yhwh e terra, reconciliados, em harmonia de ação. Além deles, figuram as seguintes personagens: Salvação, Glória, Lealdade, Fidelidade, Justiça, Paz, algu mas dos quais repetem suas entradas. Salvo Yhwh e terra, a cena mal tem ação, porque o importante é a presença plural sem travas. Para apreciar a 1085 Exegese qualidade poética, será conveniente confrontá-lo com outras duas cenas da literatura profética. A primeira de Is 59: 11 14 Esperamos Direito, e não está; Salvação, e está longe de nós. Direito retrocede, Justiça fica longe, na praça tropeça Direito, 15 e Fidelidade está ausente... Sinceridade não tem acesso Num texto de restauração, provavelmente tardio, Is 32: 16 17 Residirá Direito no deserto, e Justiça habitará na várzea; o efeito de Justiça será Paz, a tarefa de Justiça, calma e tranqüilidade perpétuas. (Sumprimi o artigo como no original, para frisar o recurso da personi ficação). São qualidades divinas ou virtudes humanas? São antes dons de Deus ao homem para o seu bem-estar integral. Vemos Justiça assomando no céu e beijando (na terra) Paz, abrindo caminho ao Senhor. Exclusivamente divina é Glória, ação sua imediata é Salvação; as outras ele as possui exemplarmente e comunica-as ao homem para uma convivência humana digna. Seria minorar o alcance do salmo reduzir ou concentrar sua substân cia na chuva de outono, por importante que seja esta. 10.Os “leais” chamam-se agora os “fiéis”, segundo expressão corrente. A salvação sua, de Deus, está próxima deles; como diz Is 56,1: “Guardai o direito, praticai a justiça, que minha salvação está para chegar”. Só que em Is 56 os homens preparam-se para sua vinda com sua conduta, ao passo que no SI 85 a causa é proposta pelo segundo hemistíquio com seu vago gerúndio, “ao estabelecer a Glória”. A Glória estabelece-se em nossa terra: alude ao templo? — Creio que sim. Pois, ainda que o verbo shkn não se predique outras vezes da Glória, predica-se freqüentemente de Yhwh, seu templo é mshkn e mais tarde sua presença chamar-se-á shkynh. Creio que se deva entender a frase sobre o fundo de Ez 10 e 43: a Glória, que um dia se afastou do templo e de Jerusalém, no futuro voltará e entrará no templo; o final do livro (48,35) soa assim: “Desde então a cidade se chamará: O Senhor está ali”. Ao dizer “nossa terra”, em vez de mencionar o templo, talvez dê a entender que todo o território ficará consagrado. 11. Pela lei do paralelismo pode-se animar a cena: os dois verbos predicam-se de todos os sujeitos, numa cena de encontros e saudações mútuas. 1086 Salmo 85 12. Confirma-o este versículo. Não importa muito o posto que ocupa e o papel que desempenha cada um; o importante é a nova dimensão, vertical e cósmica, que abre o versículo. A imagem de brotar ou germinar tem ascendência ilustre, sobretudo no livro de Is: 458 Destilai, céus, orvalho, derramem as nuvens justiça, abra-se a terra e produza salvação e faça germinar também justiça: eu, o Senhor, o criei. 61,11 Como o solo lança seus brotos, como um jardim faz germinar suas sementes, assim o Senhor fará brotar a justiça. É esse o fruto mais nobre da terra: uma colheita de virtudes humanas. 12. Mas a prosperidade há de ser também material, como se indica no SI 72,16. 13. Deus, o dador, “dá o bem”, que, no caso presente, é por excelência a chuva; e a terra “dando” sua colheita. É o mesmo movimento de Is 55,10: Como descem a chuva e a neve do céu e não voltam para lá senão depois de empapar a terra, de fecundá-la e fazê-la germinar, para que dê semente ao semeador e pão ao que come... 14. Podia ter terminado aí a cena, quando sobrevêm algo inesperado: o Senhor, cuja Glória:“estabeleceu-se em nossa terra” põe-se a caminho, para onde?; e adiante, abrindo-lhe marcha, avança Justiça. O final é sur preendente: o Senhor continua caminhando pela história: e seu povo com ele? 6. Transposição cristã Vamos nos concentrar na cena final das virtudes personificadas, e fálo-emos em três tempos. — Em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos cena tã sugestiva como a do salmo. O que podemos fazer é tomar uma a uma suas figuras e relacioná-las com Jesus Cristo. Salvaçãaz através da versão grega: Simeão toma em seus braços a salvação / o salvador (Lc 2,30). As últimas palavras de Paulo em Roma são para dirigir a mensagem de salvação aos pagãos (At 28,28). Jesus é causa de salvação perpétua (Hb 5,9). Paz: desde a mensagem do nascimento (Lc 2,14) até a mensagem pascal (Lc 24,36). Extrema-se a identificação: “ele é nossa paz” (Ef 2,14). No final da carta aos Gálatas (6,16), une-se a paz com a misericórdia como dom de Deus. Transposição cristã 1087 Misericórdia: através da versão grega de hsd: “não por nossas obras de justiça [por mérito nosso], mas por sua pura misericórdia, nos salvou... por Jesus Cristo, Salvador nosso” (Tt 3,5). No Magnificai e no Benedictus louvase a misericórdia de Deus exercida na salvação presente (Lc 1,54.78). Justiça: “O reino de Deus não consiste em comidas nem bebidas, mas na justiça, na paz e no gozo que dá o Espírito Santo” (Rm 14,17). Verdade: através da versão grega de ’mt. Antes de tudo, a definição programática: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Juntando dois elementos: “a mensagem da verdade, o evangelho da salvação”. Glória: “Quis mostrar que riqueza de glória para os pagãos há neste segredo: o Messias para vós, esperança de glória” (Cl 1,27). “Não teriam crucificado o Senhor da Glória” (ICor 2,8). “Não distinguem o resplendor do evangelho do Messias glorioso” (2Cor 4,4). Esses dados espigados entre outros muitos dizem-nos que Jesus Cristo concentra em si todas as excelências do salmo; mas não percamos na transposição a sugestão da cena poética do mesmo. — Alguns comentadores leram em chave o v. 13, como símbolo do nascimento do Messias. Nossa terra é a terra-mãe, Maria, que, fecundada pela chuva celeste do Espírito Santo, concebe e dá à luz a colheita melhor de nossa terra. Ele é a verdade que brota da terra, enquanto a justiça de Deus assoma complacente do céu. Finalmente, e por Maria, nossa terra tem algo digno que oferecer a Deus. — Num terceiro passo transladamos a cena ideal ao céu, onde triun fará a harmonia de todos os dons e virtudes, onde está permanentemente estabelecida a Glória de Deus. Para esse terceiro passo recorro ao comen tário de Agostinho ao versículo 10: “Onde ainda há mortalidade, como pode haver paz completa? Pois da morte procede esse cansaço que achamos em todos os nossos remédios. Da morte vem, porque levamos um corpo mortal... Pois, ainda que persistas no que te remedia, também morrerás. Persiste em comer muito: a comida te matará; persiste em jejuar rigorosamente: por isso morrerás; sempre senta do sem levantar-te: morrerás por isso; sempre caminhando sem descansar: por isso morrerás; sempre desperto sem dormir: morrerás por isso; sempre dormindo sem despertar: por isso morrerás. M as quando a morte for definitivamente vencida, já não haverá nada disso, a paz será plena e eterna. Estaremos numa cidade... Quem não anseia por essa cidade, da qual não sai o amigo nem entra o inimigo, onde não há tentador nem sedicioso, nem quem divida o povo de Deus, nem quem, a serviço do diabo, fatigue a Igreja? Será paz depurada para os filhos de Deus, para todos os que se amam ao se verem cheios de Deus, quando Deus for tudo em todos. Compartilharemos todos do espetáculo de Deus, compartilhare mos todos da posse de Deus, compartilharemos de Deus como paz... Ele será a paz plena e perfeita”. Salmo 86 1. Texto 1 2 3 4 5 Dá ouvido, Senhor, responde-me, pois sou um pobre desamparado. Guarda minha vida, pois eu te sou fiel, salva o teu servo que confia em ti. Tu és meu Deus, tem piedade, Dono meu, pois te estou chamando todo o dia. Alegra o sentir1de teu servo, pois meu sentir eleva-se a ti. Porque tu, Dono meu, és bom e perdoas, és misericordioso com os que te invocam. 6 Escuta, Senhor, minha súplica, faz caso2 de minha petição de graça. 7 no perigo te chamo, porque me respondes. 8 Não há como tu entre os deuses, Dono meu, nem há obras como as tuas. 9 Todos os povos que fizeste virão prostrar-se em tua presença e honrarão teu nome, Dono meu. 10 Porque és grande e autor de maravilhas, só tu és Deus. 11 Ensina-me, Senhor, teu caminho, para que o siga com fidelidade; unifica meu coração no respeito de teu nome. 12 Dar-te-ei graças de todo coração, Deus meu, Dono meu, honrarei sempre o teu nome, 1vida 2 atende Análise filológica 1089 13 por tua insigne misericórdia comigo, porque livraste minha vida do Abismo profundo. 14 O Deus, gente soberba levanta-se contra mim, um bando violento atenta contra minha vida, sem contar contigo. 15 Mas tu, Dono meu, Deus compassivo e piedoso, paciente, misericordioso e fiel, 16 olha para mim e tem piedade; dá forças a teu servo, salva o filho de tua escrava. 17 Dá-me um sinal propício: que o vejam meus adversários e fiquem confusos, porque tu, Senhor, me auxilias e consolas. 2. Bibliografia P. Joüon, B en ’amateka = Filius ancillae tuae, Bib 23 (1942) 190-191. G. Giavini, La struttura letteraria del Salmo 86, RivBib 14 (1966) 455 458. A. M . Serra, Appunti critici al salmo 86, RivBib 16 (1968) 229-246. F. Asensio, E l eje kî en el movimientoprogresivo del Sal 86, Greg 56 (1975) 527-543. P. E. Bonnard, Un psaume pour vivre: le Ps 86, EspVie 88 (1978) 279-285. P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 86, V T 29(1979) 385-402. W . G. E. W atson, Hebrew ‘to be happy’ -a n idiom identified, VT 31 (1981) 92-95. M. J. Barr é, A cuneiform parallel to Ps 86,1 6-1 7 and Mic 7,16-17, JBL 101 (1982) 271-275. 3. Análise filológica 2. shmrh: imper enérgico, para o meteg SI 16,1 GK 9 v. ’th íhy: interrompe a frase, como no v. 12. 5. wrb hsd: cf. GK 128 x. 9. BH ap propõe transladar ’sr ‘syt para o final do versículo prec dente. ll.y h d : imper deyh d denominativo de “um” enoson Sím, unum fac Jerôn; derivam-no de hdh = alegrar-se LXX Vg e seus seguidores. 1090 Salmo 86 13. msh’wl thtyh: Qim propõe duas interpretações, tumba e geena; Eutímio pensa em várias leituras: se é de Davi, pecado; se de Ezequias, morte; de qualquer outro, perigo extremo. 14. Cita SI 54,5 ou de fonte comum. 17. Dois jussivos depois de imperativo Joüon 116 d. 4. Estudo global a) Gênero e situação Esse salmo é exemplo bastante típico de súplica individual. Dir-se-ia que o autor, poeta de pouca inspiração pessoal e mediana capacidade artesanal, tomou o esquema ou molde do gênero e preencheu-o com citações ou imitações ou reminiscências de outras súplicas. Na exegese farei notar o pouco de pessoal que acrescenta. O v. 6 denomina-o de tplh = súplica e comenta-o com um sinônimo particular. Os componentes da súplica são facilmente discerníveis e são bastante genéricos. A motivação é, como de costume, tríplice: tribulação do orante, perseguição do inimigo, bondade de Deus. Não falta a expressão de confiança nem a promessa de ação de graças. O caráter imitativo do salmo mal modela os componentes. Assim, por exemplo, despacha-se a ação do inimigo num versículo de três hemistíquios (14); a apelação à bondade de Deus e a promessa de ação de graças dão passo a muitas frases de feitura hínica. A situação pressuposta é tão genérica como o restante: qualquer tribulação dum crente pode se apropriar desta prece. E inútil tentar datar essa composição, mas sua condição de imitação tradicional leva a pensar em época tardia. b) Estilo Dificilmente podemos falar de composição planejada, para além do esquema genérico subjacente. As múltiplas repetições não são sinais de articulação, mas fáceis reiterações. Na maneira, porém, de tratar de materiais tradicionais, o autor não renuncia de todo a sua liberdade de adatação. Apontemos alguns aspectos mais salientes do salmo. — Os comentadores chamaram a atenção para a reiterada ordenaçã sintática por meio de ki (simplifico o texto): 1 2 3 4 responde-me guarda-me tem piedade alegra-me porque porque porque porque sou pobre confio em ti te chamo me dirijo a ti Exegese 5 7 9 12 17 1091 te chamo te glorificarão te glorificarei fiquem confusos porque perdoas porque respondes porque és grande 10 porque és grande 13 porque tu me auxilias Muito pouco fica fora do esquema sintático, brevemente interrompido (14-16), até a martelada final. E como se o orante tivesse preocupação buro crática de justificar cada petição, ou sentisse necessidade espiritual de mover e comover a Deus com seus argumentos. Quatro motivações dizem respeito ao orante, outras cinco referem-se a Deus. Entre todas formam um gradeado de relações cruzadas: auxilia-me tu-porque eu / eu te invocoporque tu. E uma rede de relações do homem com Deus, na qual ficarão colhidos alguns pagãos submissos (9-10) e alguns inimigos derrotados (17). A série de nove poderia servir para uma síntese de atributos divinos e espiritualidade humana. — Chama a atenção a freqüência de nomes divinos, muitos no vocativo, inclusive interrompendo o curso sintático. Além dum ’Ihym referido a divindades pagãs, o Deus de Israel recebe as seguintes denominações: ’dny sete vezes, um ternário em 3.4.5; Yhwh quatro vezes, no princípio e no fim em inclusão maior; shm três vezes, um ternário que junta pagãos com o orante; ’Ihym duas vezes; íhy duas vezes; ’l uma vez na grande definição de Deus. O total não dá um número dos qualificados na tradição (salvo, talvez, os sete ’dny), mas um total de 19 em 17 versículos significa presença envolvente. — Poder-se-iam estudar os paradigmas das personagens. O orante apresenta-se como: afligido e pobre (1), servo leal e confiante (2), servo teu (4), servo filho de escrava (16). E preciso tomar como correlativos servo leal e senhor meu? Dum lado, a presença de ’dny em concorrência com Yhwh - patente em versões e manuscritos - pode ser sinal de transição no uso do nome divino. Doutro lado, é bem possível que o autor queira expressar a relação de senhor e vassalo: reitera o título ‘bdk, e hsyd pode ser seu equivalente. — As frases sucedem-se sem regularidade rítmica. A longitude dos versículos muda notavelmente. 5. Exegese 1.0 binário desgraçado e pobre lê-se em 40,18 = 70,6; 109,16.22; e na famosa invectiva contra o rei Joaquim (Jr 22,16). Podem-se escutar as aliterações ’znk / ’bywn e ‘nny / ‘ny / ’ny. 2. Para a confiança do servo, veja-se SI 123. É atitude básica que equivale quase a fé. 1092 Salmo 86 4. Alegra-me (SI 92,5); ao começar a terceira parte do livro de Isaías, Deus promete aos estrangeiros convertidos: “eu vos alegrarei em minha casa de oração” (Is 56,7). ns’ npsh pode ter significado originalmente levantar o pescoço ou o alento rumo a alguém que está mais no alto, talvez em gesto de súplica; aqui faz jogo com npsh do primeiro hemistíquio (vej amse SI 25,1 e 143,8). 5. O adjetivo sallah é exclusivo desse salmo; o verbo lê-se 31 vezes e sempre tem como sujeito a Deus: quem senão Deus pode perdoar pecados? 6. thnwnwt nesta forma de plural feminino é exclusiva desse salmo; em outros lugares usa-se o plural masculino, quase sempre precedido, como aqui, de qôl - voz. 8-10. Entre a numerosa população de divindades de todos os povos, Yhwh é incomparável, como cantam Ex 15,11; SI 40,6; 71,19; 89,7 e afirma Dt 3,24. E pouco falar por comparação com outros, pois Yhwh é o único Deus, precisa o v. 10. Em segunda pessoa (Ibdk) dizem-no Is 37,16.20; SI 71,16; 83,19; Ne 9,6; em terceira pessoa (Ibdw): Is 2,11.17; SI 72,13 = 136,4; 148,13. Agostinho começa a vibrar ao ser tocado por esse versículo. Polemiza com os pagãos, que adoram estátuas. Replicam que são sinais, e argumen ta: Pior, são demônios. Replicam que são anjos, e argumentam que os anjos não querem ser adorados como deuses. “Quem poderá pensar como é devido a distância entre quem o fez e o que foi feito? Diz o salmista: Não há como tu entre os deuses. Qual seja a dissemelhança não o diz, porque não se pode dizer... Deus é inefável: mais fácil é dizer o que não é que o que é. Pensa na terra: não é Deus; pensa no mar: não é Deus; em tudo o que há na terra, homens e animais: não é Deus; em tudo o que há no mar e em volta no ar: não é Deus; em tudo o que brilha no céu, estrelas, sol e lua: não é Deus; o próprio céu: não é Deus; pensa nos anjos... não são Deus. Então, o que é? Só se pode dizer o que não é. Perguntas o que é? O que nem olho viu nem ouvido ouviu nem sobe à mente humana. Por que queres que suba à língua o que não sobe à mente?” Entre os dois enunciados, de 8 e 10, procede o cortejo dos povos que acodem para agradecer e glorificar ao Senhor. A idéia repete-se em textos tardios. Nestes três versículos, o orante remonta de sua tribulação presente a uma visão gloriosa e universal, antecipando um futuro em que seu Deus seja reconhecido por todos os povos, porque todos são feitura sua. A unicidade de Deus, que o Segundo Isaías afirma e defende polemicamente, enuncia-a o salmo numa frase. Estes três versículos, com a definição do v. 15, são o mais importante do salmo. 11-12. Caminharei em tua verdade (versão literal) é expressão difí cil, parecida a expressões do SI 25,5 e 26,3. Uma interpretação diz: Deus Transposição cristã 1093 oferece ao homem sua fidelidade como caminho que possa percorrer seguro. Outra interpretação toma o possessivo como complemento: caminharei / procederei com fidelidade a ti / sendo-te fiel. Tomando yhd no significado normal de unificar, lemos uma referência ao primeiro mandamento e à pregação do Dt: é preciso amar a Deus de todo o coração, com coração não dividido entre várias divindades. Compare-se com a fórmula lb wlb do SI 12,3 e lCr 12,34. Esclarece-se a idéia no versículo seguinte que diz bkl Ibby. 13.Livraste do Abismo: lê-se com variações em SI 30,4; 49,16; 89,49; Os 13,14. O adjetivo “profundo” é atributivo, não predicativo; não é que haja vários infernos (como especula Santo Agostinho comentando a Vg ex inferno inferiori). 14. Leve variação de 54,5. Sobre o prescindir de Deus, veja-se SI e a atitude contrária em 16,8. 15. Citação litúrgica, cujo texto fundamental ouve-se (dos lábios do próprio Deus) em Ex 34,6; com variações em J12,13; Jn 4,2; SI 103,8; 111, 4; 112,4; 145,8; Ne 9,17.31. Depois de afirmar a unicidade, ganha relevo essa descrição do Deus único, o Deus de Israel. Seria preciso compará-los com o hino a Marduk, que tenta concentrar e unificar a multiplicidade numa divindade (Seux 129-131), examinando quais são os atributos deste Marduk comparados com os de Yhwh no salmo. 16. Filho de escrava: portanto, escravo de nascimento, nascido em regime de escravidão (SI 116,16). A idéia de vassalagem não soa aqui. 17. Um sinal favorável ou um presságio feliz. Gedeão pediu um sinal para garantir sua missão, prova e contraprova (Jz 6,17). Isaías convida o rei Acaz a pedir a Deus um sinal (Is 7,11). O sinal que pede o orante é de duplo fio: favorável para ele, infausto para o inimigo. O salmo termina com a última menção de Yhwh e o último pronome pessoal “tu” (2.5.10ab.l5). A última palavra é o consolo de Deus. 6. Transposição cristã Santo Agostinho, aplicando um de seus princípios hermenêuticos favoritos, põe o salmo nos lábios de Cristo cabeça e de seu corpo, a Igreja. O sinal favorável é a ressurreição. O consolo será definitivo e celeste. A secção 8-13 dá um sentido de unidade e totalidade. O Deus incompa rável e único é por isso Deus universal, e todos os povos devem honrar seu nome. Como centro de atração, Deus é capaz de unir a todos em seu nome. Também pode unificar o indivíduo que se sente internamente dividido por tantos centros de atração: pequenos deusinhos rivais arrastam seu coração. 1094 Salmo 86 Com sua força superior, o Espírito tem que unificar e simplificar meu coração, para que responda com um ato total de reverência e adoração. Ele salvou da morte e do nada a totalidade da minha existência, por isso tenho que lhe dedicar a vida inteira, “para sempre”. Agora Deus se fez homem, de sorte que Jesus Cristo é irmão nosso, um de nós. Também ele, com sua força humana e divina de atração, quer unificar nossas tendências e apetites, matéria e espírito, sentidos e imagi nação, afetos e desejos, para assim submeter tudo a seu Pai. Por Jesus Cristo não nos dividiremos entre homem e Deus, entre as três pessoas divinas; porque a Trindade é a suprema Unidade. Salmo 87 1. Texto 1 2 Alicerçou-a num monte santo. O Senhor prefere as portas de Sião a todas as moradas de Jacó. 3 Que glorioso pregão para ti, Cidade de Deus! 4 “Contarei o Egito e a Babilônia entre os que me reconhecem; filisteus, tírios e núbios aí nasceram”. 5 Dir-se-á de Sião: “Um por um nasceu ali”. O Altíssimo em pessoa a fundou. 6 O Senhor escreverá no registro dos povos: “Este nasceu ali”. 7 E cantarão enquanto dançam: “Todas as minhas fontes estão em ti”. 2. Bibliografia G. R. Castellino, Psalmus 8 7 / 8 6 , VD 12 (1942) 232-236. A. Vaccari, Note critiche edesegetiche. Ps 87,4-6; 110,6, Bib 28 (1947) 394398. H. 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ISm 20,29. 6. bktwb: constructo, corresponde talvez à forma aramaizante ketab\ compare-se com Ez 13,9 ubiktob; tomam-no como subst LXX Vg Teod Sir Targ; Ecker toma-o como infinitivo. 7. wshrym: predicado sem sujeito explícito Joüon 154 c. 155 f. LXX tomou-o por srym arkhonton paralelo de laon, a mesma coisa Vg principum. khllym: LXX e Vg que se alegrem, Jerôn com danças; Marini triplica como flautistas, como festejantes, como dançantes. lRs 1,40 mhllym bhllym parece usar um piei denominativo de hlyl = flauta; as versões interpretaram-no como dança; hly é flauta em ISm 10,5; Is 30,29; Jr 48,36. Também se pode pensar em confusão ou assimilação entre hwl e hll, como ocorre em raízes deste tipo, cf. GK 72 dd DBHE hl. Estudo global 1097 4. Estudo global a) Gênero e indivíduo Em nosso afã de classificar, para entender ou para pôr ordem, incor poramos esse salmo no grupo dos cânticos de Sião; ou sej a, agrupamo-lo com os SI 46,48,84,122. Sabemos que a categoria cânticos de Sião é meramente temática, sem constantes formais. Mesmo compartilhando de tema co mum, como são diferentes seus indivíduos. Se o SI 87 ilumina-se no grupo, é mais por contraste que por semelhança. Tomemos o 122: “para lá sobem as tribos”, aqui nascem povos; lá saudação de paz nacional, aqui dança internacional; um se fixa nos edifícios, o outro vai ao fundamento divino. Tomemos o 84: uma canção intimista; um peregrino vai visitar o templo, invejoso dos pássaros que se aninham em sua cornija; em contraste, a abertura a um horizonte universal na gloriosa vizinhança da cidade. Tomemos o 48: coincide o tema da fundação divina “na cidade de nosso Deus, Deus a fundou para sempre” (48,9). Que diferente o resto: Jerusalém é cidade murada, fechada, atacada, assediada, debeladora de inimigos pela presença do seu Deus. Não há inimigos no SI 87. No 48, a beleza de Jerusalém consiste em elevar-se até o “vértice do céu” como “capital do grande Rei”; no 87, a glória de Jerusalém é ser metrópole de povos e nações. Tomemos o 46: coincidem o tema aquático, tanques e fontes na cidade. Em contraste, escuta-se o assalto cósmico e o assalto bélico, desbaratados por Deus. Talvez o v. 10 abra uma visão de esperança: “põe fim à guerra”; a uma guerra ou a todas? Depois exige a rendição dos assaltantes: “rendeivos, reconhecei que eu sou Deus” (11). Nada disso no SI 87. Poderíamos continuar enumerando ou somando diferenças. O SI 87 é uma das peças mais extraordinárias do Antigo Testamento, e seus parale los haveremos de buscar fora do saltério. b) Alguns paralelos Um candidato óbvio para a comparação é Is 2,2-5, a grande peregrina ção de povos até a altura única de Sião, farol de atração, donde provêm a tora e o dabar, lei e palavra (profética). A “casa de Jacó” encabeça a marcha ascensional e convergente. Mas Isaías não passa daí: os povos, não nomea dos, acodem de fora, vindos de longe; são estrangeiros, e não cidadãos. No SI 87 são cidadãos com plenos direitos. 1098 Salmo 86 Semelhantes, se bem que menos elaborados, são outros textos proféti cos. O final do livro de Isaías tem um horizonte universal, mas contenta-se com peregrinação periódica, para atos de culto, ao passo que os judeus continuam sendo o grupo escolhido: 66,18 21 M as eu virei para reunir as nações de toda língua: virão para ver minha glória. Cada lua nova e cada sábado virá todo mortal prostrar-se diante de mim. No capítulo final de Zacarias, todas as nações têm que se apresentar anualmente para prestar homenagem ao Senhor; e se não o fazem, serão castigadas sem chuva. Mais favorável e positivo soa o SI 102,23: “quando se reunirem unânimes os povos e os reis para dar culto ao Senhor”. O mais próximo que encontro é um texto tardio incorporado ao livro de Isaías, no qual o Egito é o Egito dos lágidas e a Assíria é a Síria dos selêucidas (Profetas, I, 190-192): 19,23 Naquele dia haverá uma calçada entre o Egito e a Assíria: Assíria entrará no Egito e o Egito na Assíria, e os egípcios com os assírios darão culto ao Senhor. 24 Naquele dia Israel será mediador entre o Egito e a Assíria, será bendito no meio da terra. 25 Porque o Senhor dos Exércitos o bendiz dizendo: Bendito meu povo, o Egito e a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança! Chamar o Egito de ‘ammt: povo meu, é inaudito e prometedor. Em resumo, podemos dizer que o salmo, sendo oração, transporta-nos ao mundo da profecia. Seu contexto histórico tem que ser tardio: Babilônia já se cristalizou como figura emblemática. Se o salmo não é polêmico na intenção, pelo menos se distancia de concepções tradicionais. Essa Jerusa lém é figura nova e promissora. c) O sistema simbólico — A fundação. Não é raro que monarcas ou conquistadores fundem cidades: é glória sua, e às vezes lhes impõem o seu nome. A reconstrução de Jericó equivale a nova fundação; note-se a menção de fundamentos e portas: lR s 16,34 Em seu tempo, Hiel de Betei reconstruiu Jericó. Os fundamen tos custaram a vida de Abiram, seu primogênito, e as portas, a de Segub, seu benjamim. Ben Sira afirma que “os filhos e uma cidade perpetuam o nome” (Eclo 40,19). Ainda que historicamente Jerusalém fosse uma cidade jebuséia conquistada por Davi, a versão teológica afirma que o Senhor a fundou: “O Senhor fundou Sião” (Is 14,32). Da cidade reconstruída canta Is 54,11: Estudo global 1099 Eu mesmo coloco tuas pedras sobre azeviches, teus fundamentos sobre safiras; pôr-te-ei ameias de rubi e portas de esmeralda, e muralha de pedras preciosas. Por essa fundação pode-se chamar cidade de Deus. — Cidade-mãe. E normal chamar os cidadães de filhos seus, de Jerusalém como de qualquer cidade. Além disso Jerusalém é no AT esposa do Senhor. Quem canta ou escuta esse salmo está predisposto a escutar alusões matrimoniais e maternais. Estão realmente presentes? Os indícios são leves. O verbo ’hb = amar é genérico. Em Jr 31,3, o contexto especifica: “Com amor eterno te amei... te reconstruirei...”; ao invés, o SI 78,68 refere o amor de Deus ao monte Sião (masculino). O breve texto repete três vezes “nascer, ser gerado” ali ou nela. Mas quando se quer dizer “nascido de N”, o hebraico emprega a construção do verbo com le- e não com be- (por exemplo, no pual: Gn 46,22; Is 9,5; Rt 4,17); Jr 22,26 diz Vyldtm shm = onde não nascestes, sem nenhuma conotação maternal. Um manancial pode ser símbolo sexual, por exemplo, Pr 5,16: “seja tua fonte bendita, goza com a esposa de tua juventude” (Ct 4,12.15). Mas o manancial poderia aludir ao do templo (J1 4,18; Ez 47). Em conclusão, os indícios dum simbolismo maternal são leves aí, o que pode argüir duas coisas: que o poeta os evitou ou que os deu por supostos e de sobra conhecidos. Um leitor assíduo de textos matrimoniais simbólicos no AT escuta sem querer alusões pertinentes ao ler ou meditar esse salmo. A cidadania é o símbolo explícito e dominante que configura todo o poema. Em alguns traços, o poeta evoca a cena dum escrivão registrando nomes num recenseamento. Assim como nós documentamos nome e nacio nalidade, e às vezes residência. O salmo não fala de residência, mas de cidadania com plenos direitos. O texto citado de Is 22,26 dá-o a entender e também outros textos que falam do país / terra natal: mwldt (por exemplo, Gn 11,28; 31,3; Jr 22,10). O aspecto jurídico do recenseamento é o que mais interessa ao poeta e talvez por isso não apoiou a mão no registro matrimonial / maternal. Podemos ilustrá-lo com um texto de contraste e outro ligeiramente emparentado. Na grande história de amor de Ez 16, o profeta lança em rosto a Jerusalém: “Es cananéia de casta e berço (mldtyk): teu pai era amorreu e tua mãe era hitita” (16,3). A Abrão promete Deus: “Faço-te pai de uma grande multidão de povos. Far-te-ei fecundo sem medida, tirando povos de ti, e reis nascerão de ti” (Gn 17,5s). O salmo parece concentrar e transfor mar essa promessa em Jerusalém, matriarca universal. Salmo 87 1100 d) Dois paralelos externos A título de curiosidade, por contraste e semelhança, quero mencionar dois textos estrangeiros. Um texto que exalta a cidade de Tebas: lugar da criação de água e terra, em seguida dos homens nela, que por sua vez fundarão outras cidades subordinadas; Tebas é o Olho de Ré (deus-sol). “Dela se diz: Que rica em seu nome de Tebas!” (ANET 8). Dum ritual hitita para a construção de uma casa ou um templo: “Este templo que construí em tua honra, não o construí eu, todos os deuses o construíram. Os deuses artesãos construíram-no.Telepino lançou os fun damentos. As montanhas trouxeram madeiras e pedras. As deusas trouxe ram a argamassa. Sob os fundamentos depositaram ouro de fundação. Como o ouro é firme, límpido e forte, e os deuses olham para ele e é amado de deuses e homens, que assim olhem para esse templo os deuses e o amem”. e) Composição e estilo A brevidade do poema não deixa espaço para uma composição comple xa e estudada. A alternância bk-shm-bh-shm-bk não tem importância especial. Os versículos 1-3 são a loa, que se move da terceira pessoa para a segunda; 4-6 são a ação jurídica; o último versículo é a celebração coral. Por um momento, Deus toma a palavra e a iniciativa introduzindo a enumeração. Esta tem grande importância pelo contexto jurídico da cena; os cinco nomes são representativos. Observe-se o gosto pelos plurais: montes, portas, moradas, coisas gloriosas, cantores; entre os quais ocorre o desfile “um por um”. 5. Exegese 1 .0 salmo começa ex abruto como nenhum outro. Percebeu-o muito bem Agostinho: “Fundamentos, de quem? Não cabe dúvida de que fundamentos, sobre tudo em montes, referem-se a cidade. Pois bem, este cidadão, cheio de Espírito Santo, considerando e refletindo sobre seu amor e desejo pela cidade, como que tendo meditado muito por dentro, irrompe a falar dizendo: Seus alicerces em montes santos; como se já tivesse falado dela. Como não tinha falado dela quem mentalmente nunca calou sobre ela? ... Em silêncio consigo tinha concebido muitas coisas daquela cidade, clamando a Deus; agora se põe a falar para que ouçam os homens”. Exegese 1101 Tanto a fundação como os fundamentos indicam o fundamental, o fundacional. Conhecemos o costume mental hebraico de remontar à ori gem. Sobre o alicerce ou fundamento (afim de fundação, como no português) podemos recordar o grito dos idumeus no SI 137,7: “Desnudai-a, desnudaia até os fundamentos!”. No AT, pela freqüência do tema, essa fundação de Sião associa-se espontaneamente à fundação da terra (cf. Tebas à criação). Montes: penso que é plural majestático. Em geral se diz Monte Santo no singular (Is 11,9; 27,13; 56,7; 57,13, etc.). 2. Ama: pode levar como complemento o que precede e o que segue, fundação e portas. E sabida a importância que têm as portas na vida do cidadão da época. Tratando-se da capital do reino e centro de peregrinações, são antes de tudo portas de acesso. A guisa de exemplo, leia-se o sermão de Jeremias (17,19-27) com a promessa: “então entrarão pelas portas desta cidade os reis sucessores de Davi”. Moradas: embora mishkn quase sempre se diga do santuário (também no plural SI 84,2), creio que aqui tem sentido profano e não se refere a supostos santuários locais (já eliminados). 3. nkbdwt: seja sujeito coletivo que qualifica o pregão, seja advérbio modal, o significado é indubitável: trata-se de algo glorioso, superlativa mente glorioso para a cidade. Que maior glória é para Jerusalém: ser capital de um reino e encarnação da comunidade, ou ser mãe de nações numerosas? Fundou-a o Senhor para privilégio exclusivo ou para um destino universal? E a Cidade de Deus, como no SI 46,5 e 48,9. Mas o que segue rompe com uma tradição e estabelece nova medida de glória. Em Is 60,7.13, o Senhor promete “honrar e enobrecer sua casa, o escabelo de seus pés”; aqui a cidade tem o título de ‘y rhíhym (com artigo): por ser cidade do Deus único e verdadeiro, terá um destino universal. 4-5. Fala o Senhor: O hifil zkr significa aqui ir nomeando em voz alta, ir chamando nominalmente. Encabeçam a lista, coisa inaudita, dois inimi gos tradicionais e emblemáticos: a primeira e a segunda opressão, do primeiro e segundo êxodo. Cumprida sua missão histórica, agora “reconhe cem” o Senhor (recorde-se que o Faraó se negava a “reconhecer o Senhor”: Ex 5,2). A belicosa Filistéia, a opulenta e soberba Tiro, a aventureira e poderosa Núbia: cada nome suscita uma ondada de recordações negativas. Todos são conjurados quando o Senhor pronuncia seu nome nesta convoca ção pública. Por seu nome chamou o Senhor a Israel (Is 43,1), e depois Ciro (Is 45,3). Chegou o momento duma nova chamada. Nasceram ali, e, portanto, são cidadãos sem distinção. Não são estran geiros (nkr) nem imigrantes (gr) nem populações submetidas a prestações de trabalho (2Sm 8); são simplesmente cidadãos. Vários textos falam de estrangeiros “incorporados” ao povo de Israel (por exemplo, Is 14,1; 56,3.6: Salmo 87 1102 textos tardios). Mais próximo está Zc 2,15: “Naquele dia, incorporar-se-ão ao Senhor muitos povos e serão povo meu”. O SI 87 vai mais além. 6. Uma inscrição ou registro no censo, no livro dos vivos ou que vivem num lugar é dado freqüente (Ex 32,32s; ISm 25,29; Is 4,3; Jr 17,13; Ez 13,19, etc.). 7. O menos que se pode dizer desses mananciais é que funcionam em sentido simbólico; por isso o salmo encontra-se na trajetória que balizam Ez 47,1-12 (provavelmente autêntico); J14,18; Zc 14,8. Não temos dados para estabelecer uma seqüência cronológica desses textos. O SI 84,7 mencionava um manancial no caminho do peregrino. Outra coisa são os mananciais do SI 87. Não importa muito que, junto dos cantores, se fale de flautistas ou dançantes. Trata-se duma festa popular para cantar a glória do novo destino de Jerusalém. 6. Transposição cristã Em seu sentido próprio, o salmo já faz ressoar a atrevida profecia. É muito fácil aplicar-lhe a chave de correspondência tradicional: Jerusalém = Igreja. Começamos com um texto da carta aos Efésios em que se combinam a chamada dos pagãos em pé de igualdade, o símbolo do fundamento ou alicerce e o tema da cidadania. Entrescolho alguns versículos: 2,12 Recordai que não tínheis um Messias, que estáveis excluídos da cidadania de Israel e éreis alheios às alianças, sem esperança na promessa e sem Deus no mundo. 13 Agora, porém, graças ao Messias Jesus, vós, os que antes estáveis longe, estais perto... 19 Portanto, já não sois estrangeiros nem adventícios, mas concidadãos dos consagrados e família de Deus, pois fostes edificados sobre o alicerce dos apóstolos e profetas, tendo o Messias Jesus como pedra angular. Talvez por confusão fonética os Setenta traduziram 87,5 por meter Sion, e a Vulgata diz Mater Sion-, o que permite a comentadores antigos citar G1 4,26, onde Paulo diz da Igreja: ela é nossa mãe. Lido nessa chave, o salmo pode ser um canto alegre da e à Igreja: povos de todas as raças e línguas e culturas dão-se as mãos para dançar em roda cantando: “todas as minhas fontes estão em ti”; que é a fonte única das águas batismais, como reza a liturgia e belamente o diz a inscrição no batistério da basílica lateranense (cf. Hermenêutica de la palahra, III, 153-155). O salmo pode-se modular adquirindo tom de censura e admoestação. Sentimos todos os povos com iguais direitos de cidadania cristã pelo batismo, ou impomos, nós, os cristãos mais antigos, uma conversão cultural Transposição cristã 1103 como condição ou garantia da conversão religiosa? Para ser bom cristão, é preciso professar a filosofia aristotélica? Nossa comum ação de graças ao Senhor deve soar numa só língua? Como se generosamente nos dignásse mos aceitar outros em nossa privilegiada companhia. Contra a uniformida de forçada, contra imposições culturais em nome de Cristo, o salmo proclama com força e alegria: Um por um, todos nasceram nela. Salmo 88 1. Texto 2 Senhor meu Deus, de dia te peço auxílio, de noite grito em tua presença. 3 Chegue até a ti minha súplica, inclina o ouvido a meu clamor. 4 Pois meu ânimo está colmado de desditas e minha vida está à borda do Abismo. 5 Já me contam com os que baixam à fossa, sou um pobre homem inválido; 6 confinado entre mortos, como as vítimas que jazem no sepulcro dos quais não guardas memória porque foram arrancados de tua mão. 7 Colocaste-me no fundo da fossa, em trevas abismais. 8 Tua cólera pesa sobre mim, lanças-me teus escolhos1. 9 Afastaste de mim meus conhecidos, fizeste-me repugnante a eles. Fechado, não posso sair, 10 e os olhos se me anuviam de pesar. Chamo a ti, Senhor, todo o dia estendendo as palmas a ti. 11 Farás tu maravilhas2pelos mortos? erguer-se-ão as sombras3para te darem graças ? 12 Anunciar-se-á no sepulcro tua lealdade ou tua fidelidade no reino da morte?4 1Todas as tuas ondas 2 Milagres 3As almas 4 Do não ser Análise filológica 1105 13 Conhecem-se tuas maravilhas na treva ou tua justiça no país do olvido ? 14 Eu a ti, Senhor, te peço auxílio: de manhã irá a teu encontro minha súplica. 15 Por que, Senhor, rejeitas meu alento e me escondes teu rosto? 16 Desgraçado e enfermiço sou desde menino. Esmagam-me teu terror e teu delírio, 17 sobre mim passou teu incêndio, teus espantos me consumiram; 18 envolvem-me como água todo dia,5 cercam-me todas a um só tempo. 19 Afastaste de mim amigos e companheiros, e minha companhia são as trevas. 2. Bibliografia O. Widengren, Konungens vistelse i dödsriket, em Studie till Ps 88, SEA 10 (1945) 66-81. A. Lohy, Pour les morts, ferais-tu desprodiges?, BVC 19 (1957) 103-106. P. Grelot, Hofsi. Ps 88,6, V T 14 (1964) 256-263. A. Fitzgerald, Hebrew y d = “love” and “beloved”, CBQ 29 (1967) 368-374. J. F. A. Sawyer, Hebrew words for the ressurrection o f the dead, VT 23 (1973) 218-234. H. D. Preuss, Ps 88 als Beispiel alttestamentlichen Redens vom Tod, em Der Tod - ungelöstes Rätsel oder üverwundener Feind?, Stuttgart, 1974, 6379 (ed. Strobel). O. Loretz, Ugaritisch-hebräisch hb / pt, bt hptt-hpshj, bjt hhpshj / wt, UF 8 (1976) 129-131. J. Luyten, Worsteling van doodzieke mens. Ps 88, Schrift 65 (1079) 172-177. P. de la Jonquière, Ps 87 (88), VSpir 138 (1984) 292-305. P. Auffret, Les ombres se lèvent-ellespour te louer? Étude structurelle du Ps 88, EstBib 45 (1987) 23-37. C. van Duin, Zal het stofu loven ? Weerlegging van de individualistische uitleg van woorden voor dood en onderwereld in depsalm en, H aia, 1089. K J. Elman, ‘Psalm 88aLamentation without answer”, SJOT1 (1991) 112-120. 3. Análise filológica 2. íh y ... ywn: repartição estilística refinada das peças: vocativo-advér bio-verbo-advérbio-compl circunstancial. Anulam-no Duhm Bickell Gun Graetz Nowack corrigindo íhy sw‘ty ywmm-, respeitam-no as versões anti gas. 5 Sem cessar 1106 Salmo 88 6. hpshy: literalmente, livre, liberto, emancipado (Ex 21,2; Dt 15,12s; Jr 34,9). O sentido aqui se presta a várias interpretações. Os antigos tradu ziram“livre”. Qimremete aJó 3,19. Livre: do trato comos homens Agélio, dos assun tos do mundo Genebrardo Marini, livre e vivo, mas como morto Maldonado, des pedido da comunidade dos vivos Del, abandonado ou afastado Phil. Apoiandose em 2Rs 15,5 = 2Cr 26,21, bythpshyt = sanatório, lazareto, fraco ou enfermo Ros Dathe alegam árabe hfsh I, ou II prostrado Michaelis. Apoiados em Ez 27,20, hopesh = cama, leito Hitzig; da mesma forma alegando o ugarítico hptt Dah. Corrigem: npshy Briggs Driver, hushabtí = tenho que habitar Kraus. ngzrw: são cortados Aq Sím Jerôn, repulisti Vg. 8. wkl mshbryk: instrumental. ‘nyt: compl as ondas Vg LXX Sir Baethgen; complemento a mim Sím Jerôn afflixisti me, Lutero drängest mich Hupfled. 9. shtny: Vg lê 3â pess pl. tw’bwt: pl intensivo ou forma fenícia do sgl; LXX Vg sing. kl’: detido, encerrado, encarcerado Tag Sím, entregado LXX Vg. 11. rp’y m: os mortos, as almas; leram part de rp’ LXX Vg mediei Teodor Eutímio; gigantes Jerôn (Dt 2,11.20); Targ cadáveres decompostos. 13. nshyh: do esquecimento, sentido passivo, dos esquecidos LXX Jerôn Teodor Qim; sentido ativo, dos que se esquecem AgBethgenBelarmino Titelmann. 16. ’myk: teus terrores Sím Jerôn; leram o verbo mkk LXXetapeinothen, Vg humiliatus Sir. ns’ty: lêem passiva LXX Vg. ’pwnh: depwn delirar (árabe ’fh) Ros Del Phil Hitzig; Fr. Delitzsch observa um advérbio elativo acádico appuna = em extremo, cf. CAD A /II189-190. De pen duvidar Ibn Ezra Qim. Corrigem para ’pwgh fico teso Duhm Olshausen Gun. 17. çwtwtny: forma intensiva de çmt por reduplicação Qim; alguns mo dernos corrigem çimmHüni Duhm But GK 55 d ou para çimme-tatni Hitzig Gun Kraus, cf. SI 119,139; Dah explica-o como fusão de dois verbos, çmt e mwtt. 19. mhçk: subst com performante treva, que LXX e Vg tomaram por prep min de minha miséria, por causa de minha miséria Genebrardo Hoenen Sa Lutero; parecem ter lido hsk Jerôn abstulisti. 4. Estudo global a) Gênero e situação — Por declaração expressa (tplh), pelo começo convencional e pe desenvolvimento, este salmo é uma súplica. Mas não é exemplo típico, já que lhe faltam vários elementos tradicionais do gênero. Estudo global 1107 Não tem confissão de pecados, o que significa que sua tragédia é imotivada e inexplicável. Não há descrição de inimigos nem de sua ação hostil: será que toda a hostilidade concentra-se em Deus? Ao invés, menciona-se o desvio dos amigos. Não se expõe o conteúdo concreto da petição. Não há promessa de ação de graças, porque aonde vai o orante, não será possível. — Essas anomalias estão em parte condicionadas pela situação dum doente que ora in articulo mortis, na conjuntura da morte. A morte não se sente como castigo merecido mas como condição e destino. Revela-se assim com sua presença ineludível, desnuda de razões. Para dar graças é preciso estar vivo (Is 38,19): a morte aniquila o sujeito que dá graças, corta toda relação. Talvez a ausência de inimigos humanos induza a concentração no “último inimigo” (lCor 15,26). Se não expõe o conteúdo da petição, é porque em tal conjuntura há uma só coisa a pedir. Tampouco Ezequias declara expressamente sua petição (Is 38,3). Apontei uma situação de proximidade da morte ou uma doença mortal. Pelo aspecto de doença, o salmo faz companhia aos SI 6,31 e 38. Pelo que tem de mortal, é preciso emparelhá-lo com textos como SI 39, Is 38 e Jó 10; outras passagens soltas de Jó também vêm ao caso. Lembro, ademais, que se fala do orante e não do autor: este pode gozar de boa saúde enquanto compõe sua oração para a hora da morte. O salmo não é o grito angustiado, nem sequer ajaculatória urgente dum agonizante; é um poema bem composto. b) Os símbolos da morte Nenhum texto do AT apresenta concentração semelhante de expres sões sobre a morte; tanto que alguém se sentiria tentado a usá-lo para uma breve tanatologia bíblica. Antes de repassar os mais significativos, propo nho fazer uma reflexão de conjunto para entrarmos ou pelo menos nos aproximarmos da mentalidade do homem do Antigo Testamento. O problema parte de que a morte, o morto, é dado negativo expresso em sentença positiva. Se digo “os mortos não existem”, o predicado nega redondamente, ao passo que ao sujeito se concede existência gramatical. Este simples problema gramatical ilustra o problema do imaginar e conceber. Nossa cultura permite-nos mais facilmente conceber a negação da vida, a não existência; imaginá-la, só podemos com alguma imagem positiva. Para o ser consciente que é o homem, existir é viver, deixar de viver é deixar de existir. O que é a não existência? — Não é. Como se imagina? Transformando imagens da experiência humana numa tentativa de adivinhar o desconhecido. Aí está o problema: descrever um mundo desconhecido que não existe. 1108 Salmo 88 Nossa dificuldade para transladar-nos a essa mentalidade estriba no fato de que o crente cristão crê na existência para além da morte, o filósofo grego crê na sobrevivência da alma libertada do corpo, o não-crente de hoje não tenta imaginar-se ou descrever a não-existência. O homem do AT não tem essas saídas. Não nos distraiamos: com toda sua imageria, o israelita enfrenta o problema radical da existência humana: “ser ou não ser: a alternativa é essa”. E o trágico é que a sorte está lançada, a vitória do nãoser e minha derrota são iminentes. Aproveitando tradições e materiais da cultura circundante, o hebreu dispõe de repertório regular de imagens, ainda que não pareça contar com visão orgânica e integrada. O salmo retoma e acumula alguns traços. — O reino da morte ou dos mortos como espaço. Parte da prática de en terrar, ou seja, pôr “debaixo da terra”. Os mortos “descem à cova” ou poço, baixam para as zonas “inferiores” da terra, jazem no sepulcro, habitam no sheol (que é o nome técnico, de etimologia incerta); também ’abaddôn parece ser imaginado como espaço (cf. Pr 1 5 ,1 1 ). — A morte é uma potência em ação: um incêndio que consome, uma ondada que arrasta, envolve e traga. — E qualidade e estado: mundo de trevas, que é o não-ser da luz (viver é ver a luz do mundo); é prisão sem saída, “terra de esquecimento” onde os mortos esquecem ou são esquecidos. O salmo não imagina nem descreve o sheol como cidade com portas guardadas por porteiros austeros e uma divindade que preside, chame-se Môt ou Nergal ou Nereskigal. Os habitantes desse reino são os mortos, que se descrevem por sua inação:j azem, não se levantam, não percebem, não louvam. Todos esse nada e esse vazio, dir-se-ia que impotentes, instalam-se com força terrível na consciência do homem, transmutam-se em “horrores e espantos” e “saciam o ânimo” de sofrimentos. O limite da existência, o terror do não-ser, acompanhou o orante “desde a sua juventude”; agora é iminência e presença aterradora. c) A morte e Deus A presença de Deus nessa conjuntura converte em mistério a tragédia humana. Dum lado, a morte é alheia a Deus, doutro lado Deus provoca a morte como destino do homem. A morte na consciência torna Deus mais incompreensível. — Esquece-se ou prescinde dos mortos, não lhes dedica suas proezas nem lhes manifesta suajustiça (1 1 -1 3 ), nem recebe sua resposta. Realmen te, o que não é não pertence a Deus que é. — Ora, Deus controla e ativa a potência do não-ser / não-viver. Tem que ser assim porque não existe divindade rival e, ademais, mais poderosa que 1109 Exegese Deus. Das mitologias circundantes, o israelita não toma a figura dum deus da morte, Môt; antes polemiza com os que tentam assinar um pacto com Môt (Is 28,15). O salmo não personifica um sheol cuja garra arrebate a Deus suas presas (cf. SI 49,16), cuja boca e garganta vorazmente se abra para devorar (Is 5,14) sem dizer nunca: basta! (Pr 30,16). O versículo 6b evita um sujeito agente por meio duma passiva impessoal: “são arrancados”. Mas, se não é uma divindade rival a causante da morte, então é Deus sua causa única. Impressiona sentir no salmo a Deus como sujeito de ação múl tipla e mortífera: não te recordas, colocas, afastas, colocas, rejeitas, escondes, afastas. E quando o sujeito são substantivos, levam o possessivo que os vin cula a Deus: tua cólera, tua ondada, teu terror, teu incêndio, teus espantos. Será mais compreensível e mais aceitável esse Deus sem rivais e sem piedade? Num quaternário de qualidades e atos costumava-se revelar Deus: sua misericórdia, sua fidelidade, sua justiça, seus prodígios; aos mortos se lhes negam os quatro. Com eles não se empregam e não se lhes manifestam (1213). Em contraste, ao moribundo se lhe revela outro quaternário: cólera, ondada, incêndio, terror. Será a revelação última de Deus? d) Composição Soa a frivolidade pôr-se agora a estudar a arte da composição do salmo. O poema tem coesão interna irrompível, e os sinais formais contam menos. Contudo, concedamos algumas observações. O salmo avança por sucessão de blocos. Duas repetições acompanham o movimento: em 2.10b. 14 tematizase o clamor ou a súplica; em 9 e 19 repete-se o tema do afastamento e abandono. Pode-se esquematizar o movimento assim: 2-3 4-6 7 -10a 10b 11-13 14 15-19 Introduz a súplica com fórmulas familiares kl descreve a situação do orante Deus é o causante de sua desgraça Nova introdução Interpela a Deus com perguntas retóricas Nova introdução Ação de Deus e situação do orante 5. Exegese 2-3. Se aceitarmos a hipótese de alteração do texto sob a influência de Is 12,2 e SI 68,20, a introdução combina urgência com ordem: dois verbos, dois substantivos, dia e noite; se se mantiver o texto, resta uma ordenação refinada {Análise filológica). O segundo versículo destaca-se pela rima dupla de sufixos. Salmo 88 1110 São temas freqüentes no saltério, que aqui se revestem de valor novo. Apesar de tudo o que sente, o moribundo continua orando a seu Deus estranho. Na solidão que ele provocou, ele é companheiro e interlocutor; apesar de sua cólera, deve ser acessível. Orar a Deus é a única coisa que resta: orando morrerá. 4. Ao aproximar-se em sua descida ao sheol, olha para dentro e vê-se “saciado de desgraças”: é a impressão do momento ou é o balanço duma vida? Mais abaixo dirá “desde ajuventude” ou adolescência. Eclesiastes diz que “não se sacia o olho de ver nem o ouvido de ouvir” (1,8), nem o rico de suas riquezas (4,8), nem o cobiçoso do dinheiro (5,8). O orante do salmo conseguiu saciar-se... de desgraças. E o tremendo é que as deixar parece desgraça maior. Minha vida aproxima-se do sheol: tendo como sujeito “minha vida”, o contraste é mais forte do que se dissesse “eu”: as palavras assinalam sem rebuços o limite decisivo, a contiguidade de vida e morte; fato constante, que agora se apodera da consciência. Compare-se com a expressão de Nm 16,30.33: “desceram vivos ao abismo”. 5. Sou estimado como: quem faz a avaliação? A voz passiva pode equi valer a um impessoal, o agente pode ser ele mesmo. Em todo caso, é ele quem o pronuncia. Lm 4,2 se queixa: “Os nobres vizinhos de Sião, que avaliam seu peso em ouro, contam como cacos de cerâmica”; talvez sej a menos ser taxados já “com os que descem à fossa”: última viagem descendente do homem, selo de sua decadência constitutiva. “Idêntica é a entrada de todos na vida e igual é a saída” (Sb 7,6). Ezequiel explora a expressão em sua elegia e marcha fúnebre: “no meio dos filhos de Adão que descem à fossa” (31,14.16; 32, seis vezes). Como um varão inválido: se gbr conserva aqui a conotação de fortaleza ou valentia, a expressão redobra sua força pelo paradoxo (oxímoron). 6. Discute-se o significado de hopshi (vej a-se Análise filológica). Numa interpretação, hospitalizado entre mortos: imaginemos um hospital de campanha, quase em primeira linha, com feridos desenganados. Noutra interpretação, encontra-se finalmente emancipado, como diz Jó 3,19: “confundem-se pequenos com grandes e o escravo se livra / emancipa de seu amo”. E um paradoxo: finalmente livre... com os mortos. Os hllym são os caídos em batalha ou justiçados e assassinados. A citada marcha fúnebre de Ez 32 repete o termo como estribilho lúgubre. 6a. Não te recordas. O orante do SI 8 maravilha-se: “O que é o homem para que dele te recordes?” Em seu maravilhoso e inútil sonho, Jó imaginase esperando o reino da morte: 14,13 Oxalá me guardasses no Abismo, escondido, enquanto passa tua cólera, e fixasses um prazo para te recordares de mim... ! Exegese 1111 15 Com saudade da obra de tuas mãos, tu me chamarias, e eu responderia. Sonhos vãos de que não compartilha o orante desse salmo, para o qual até Deus se esquece dos mortos. Arrancados: é o verbo de Is 53,8: “arran cado da terra dos vivos”. 7. Começa a série em segunda pessoa, fazendo de Deus causante, quase acusando-o. Começa uma descarga de designações: poço / cova, pro fundezas, trevas, fundo / fossa. O último termo tem quase sempre conota ção marinha (Ex 15,5; Jn 2,4). 8. Quando o verbo smk se predica de Deus, tem valor positivo, significa apoiar, auxiliar, sustentar. O salmo retorce a expressão: é “tua ira” que se apóia em mim. Há um texto que predica smk da cólera própria de Deus, e também tem sentido positivo: minha indignação diante da injustiça e da opressão me apoiou e deu forças na batalha: “meu braço deu-me a vitória, meu furor me apoiou” (Is 63,5). Teus escolhos: da raiz shbr = romper (como em castelhano “rompientes”). Vejam-se Jn 2,4; SI 42,8; 93,4, e a variante de 2Sm 22,5 no sintagma único mshbry mwt = ondada mortal. 9. Inclusive a solidão última do moribundo, abandonado por seus conhecidos, foi causada por Deus, porque, ao reduzi-lo ao estado em que se encontra, torna-o repugnante e vitando. Jó queixa-se do abandono geral, desenvolve-o e tira outra conseqüência: o fato de Deus me ter ferido não é razão para que me abandoneis; antes, pelo contrário, é razão para que vos ponhais do meu lado e me façais companhia: “Piedade, piedade de mim, meus amigos, pois me feriu a mão de Deus!” (19,21; Job, 289s). 9b-10. Confinado, já prisioneiro, antecipando a prisão definitiva. Ainda com olhos, não tanto para ver e olhar, como para sofrer. 11-13. Tema clássico, exposto aqui com especial vigor. O orante argumenta com Deus, com uma implicação: que Deus, para revelar suas qualidades, necessita de alguém que as perceba e reconheça. Revelar é sempre revelar a alguém. Pois bem, os mortos não são alguém. Portanto, com a morte do homem Deus sai perdendo: “O que ganhas com minha morte, com o fato de eu descer à cova?” (SI 30; 10). Por que então Deus se enfurece? Dir-se-ia raiva de criança que quebra seu brinquedo. Indireta mente, o orante está confessando in extremis as qualidades de Deus, pois meu logo será demasiado tarde. A idéia é tradicional: SI 6,6 de um doente; 115,17; Is 38,18s. Um eco tardio em Eclo 17: 27 28 No Abismo, quem te louva, Senhor, como os vivos que te dão graças? O morto, como se não existisse, deixa de louvá-lo; o que está vivo e são louva o Senhor. Salmo 88 1 11 2 11. Os rp’ym são as sombras, os manes, as almas das crenças popula res. Pr 21,16 menciona “a assembléia das almas” (Provérbios, 409s). Que não se levantam o diz o texto escatológico de Is 26,14. 12. O saltério usa umas 25 vezes o verbo spr = contar, narrar, expor, como verbo típico de louvor e reconhecimento. Sobre esse fundo é preciso ler a negação presente. Não se expõe: por que Deus já não atua e porque não há quem o explique? Abaddôn é etimologicamente o reino da perdição ou destruição, do extravio, do nada devorador e insaciável (Pr 27,20). 13. A treva: veja-se o magnífico desenvolvimento de Jó 10. Leia-se, por oposição, o que diz Is 45 da terra dos vivos: 18 19 Ele modelou a terra, fabricou-a e firmou-a; não a criou vazia, mas a formou habitável... Não te falei às escondidas, num país tenebroso; não disse... Busca-me no vazio. Terra do esquecimento: expressão única. Com o verbo shkh, SI 31,13: “esqueceram-me como a um morto”, e Ecl 9,5: “Os vivos sabem... que hão de morrer; os mortos não sabem nada, não recebem salário quando se esquece seu nome”. 14. Nova introdução. A manhã é a hora clássica de ser escutado e receber favores de Deus. O orante ainda subsiste no ritmo de noite e dia; mas tem pressa porque se acaba o tempo. 15. Em vez de favor, sente a rejeição de Deus. Alguém que rezava com esperança dizia: “ao despertar me saciarei de teu semblante” (SI 17,15). O orante deste salmo ora e descobre que Deus cobre seu semblante: como se o sol se escurecesse ao amanhecer. 16a. O verbo gw ‘ é especialidade de Gn Nm e Jó, e significa em sentido estrito expirar, morrer. O texto não esclarece se o orante alude a um fato concreto, uma doença grave contraída na adolescência, ou antes expressa a consciência clara de ser mortal. “Sinto-me morrer” seria uma tradução de compromisso; também vale nossa expressão “estar à morte”. 16b. E o momento mais trágico, quando Deus se torna terrorífico, porque entrega o homem à morte. Para sentir a força da expressão, vamos inseri-la num contexto de paralelos: Gn 15,12 Ex 15,16 SI 55,5 Jó 9,34 13,21 um terror intenso e sombrio caiu sobre Abrão assaltaram-nos teu espanto e teu pavor o terror da morte cai sobre mim que não enlouqueça com seu terror que manterás longe de mim tua mão e não me espantarás com teu terror. Transposição cristã 1113 O terror da morte é terror sacro: o terror de Deus é intimação de morte. Mais que a morte, é trágica a consciência de morrer; os animais morrem sem saber. No juízo das trevas comenta Sb 17,21: Somente sobre eles se estendia uma pesada noite, imagem das trevas que os deviam receber. Mais que as trevas, porém, eram eles cargas para si mesmos. 17-18. Incêndio e água aliados em sua capacidade destruidora: o incên dio atravessa, as águas envolvem sem cessar e sem resquício. O pobre moribundo sente-se centro dessa desapiedada e cósmica devastação. 19. Abandonado de todos, porque Deus os afasta, fica com a só companhia das trevas. Assim termina o salmo: a primeira coisa que Deus criou foi a luz, a última coisa que encontra o homem é a treva. 6. Transposição cristã Os comentadores antigos põem esse salmo nos lábios de Jesus, recor dando a luta do Getsêmani e o abandono na cruz. Se alguém estava certo da ressurreição, era Jesus; essa certeza não lhe poupou a amargura da "taça” que a vontade do Pai lhe entrega: Mc 14,33 Começou a sentir terror e angústia, e lhes disse: Sinto uma tristeza mortal. Lc 22,44 Entrando em combate, orava mais intensamente. Corria-lhe o suor como gotas de sangue caindo no solo. Na cruz estende as mãos e ora ao Pai. Quando morria, toda a terra ficou em trevas. E preciso deixar que o salmo desenvolva sem paliativos todo seu patetismo e assim nos ajude a contemplar a trágica grandeza da morte de Jesus. Só assim mostrará toda sua força a ressurreição. Uma vez que foram dados corretamente os passos, é legítimo, desde a praia da ressurreição, olhar para trás e dar outra resposta às perguntas dos versículos 11-13: pelos mortos certamente faz prodígios e mostra-lhes misericórdia: lPd 3,18 Sofreu a morte no corpo, ressuscitou pelo Espírito e assim foi proclamar a vitória também para as almas encarceradas. ICor 15,54 Quando o corruptível se revestir de incorruptibilidade e o mortal de imortalidade, cumprir-se-á o escrito: Onde fica, ó Morte, tua vitória, onde fica, ó Morte, teu aguilhão? O último versículo do salmo já não é a última palavra: depois da treva, triunfará a luz. Salmo 89 1. Texto 2 3 4 5 6 7 8 9 Cantarei a lealdade do Senhor eternamente, anunciarei de idade em idade tua fidelidade. Afirmo: tua lealdade está construída nos céus, neles está firme tua fidelidade: Selei uma aliança com meu eleito, jurando a Davi meu servo:1 “Fundarei para ti uma linhagem perpétua e construirei para ti um trono por todas as idades Proclamem os céus tuas maravilhas, Senhor, tua fidelidade na assembléia dos Santos.2 Pois, quem sobre as nuvens se compara ao Senhor, ou assemelha-se ao Senhor entre os seres divinos? Deus é temido no Conselho dos Santos, é grande e terrível para toda a sua corte. Senhor Deus dos Exércitos, quem como tu ? Teu poder e fidelidade, Senhor, fazem-te corte. 10 Tu dominas a soberba do mar e amansas a intumescência das ondas. 11 Tu transpassaste e destroçaste Raab,3 com braço potente dispersaste o inimigo. 12 Teus são os céus, tua é a terra; o orbe e tudo o que contém4 tu o alicerçaste. 13 Tu criaste o Norte e o Sul,5 o Tabor e o Hermon aclamam teu nome. 1vassalo 2 anjos 3 o Monstro 4 o povoa 5Setentrião e Meio-dia Salmo 89 14 Tu tens um braço valoroso; forte ê tua esquerda, sublime tua direita. 15 Justiça e Direito sustentam teu trono, Lealdade e Fidelidade apresentam-se diante de ti. 16 Ditoso o povo que sabe aclamar-te:6 caminhará, Senhor, à luz do teu rosto. 17 Teu nome é seu gozo constante, tua justiça é seu orgulho. 18 Tu és sua honra e sua força; com teu favor ergue-se nosso chifre. 19 Porque do Senhor7é nosso Escudo, do Santo8 de Israel nosso rei. 20 Um dia falaste em visão declarando a teus leais: “Cingi o diadema a um valente, exaltei um soldado da tropa”. 21 Encontrei em Davi um servo9 e com óleo sagrado o ungi. 22 Minha mão estará firme com ele e meu braço fa-lo-á vigoroso. 23 Não o enganará o inimigo nem os criminosos o humilharão. 24 Diante dele esmagarei seus adversários e ferirei os que o odeiam. 25 Minha fidelidade e lealdade o acompanharão, em meu nome elevar-se-á seu chifre. 26 Estenderei sua esquerda até o Mar e sua direita até os Rios. 27 Ele me invocará: “Tu és meu pai, meu Deus, minha Rocha de salvação”. 28 E eu o nomearei meu primogênito, excelso entre os reis da terra. 29 Guardar-lhe-ei lealdade eterna e minha aliança com ele será estável. 30 Dar-lhe-ei linhagem perpétua e trono duradouro como o céu. 6experto em aclamar 7 o Senhor 8 o Santo 9 vassalo 1115 Salmo 89 1116 31 Se seus filhos abandonarem minha lei e não seguirem meus mandamentos, 32 se profanarem meus preceitos e não guardarem meus mandatos, 33 castigarei com varas seus delitos e com chicotadas suas culpas; 34 mas não lhes retirarei minha lealdade nem desmentirei minha fidelidade; 35 não profanarei minha aliança nem mudarei10minhas promessas. 36 Uma vez jurei por minha santidade não faltar com a minha palavra a Davi. 37 Sua linhagem será perpétua e seu trono como o sol em minha presença; 38 como a lua que permanece sempre: testemunha fiel nas nuvens”. 39 Mas tu, encolerizado com teu Ungido, o rejeitaste e desprezaste; 40 rompeste a aliança com teu servo11 e profanaste pelo solo seu diadema. 41 Fizeste brechas em suas cercas e derrocaste suas fortalezas. 42 Qualquer viandante a saqueia12 e é a afronta de seus vizinhos. 43 Levantaste a destra de seus inimigos, e encheste de gozo seus adversários. 44 Dobraste-lhes a folha13da espada e não o sustentaste na batalha ... 45 Empanaste seu esplendor14 e derrubaste seu trono por terra. 46 Encurtaste os dias de sua juventude e o vestiste de ignomínia. 47 Até quando, Senhor, te manténs escondido e arde como fogo tua cólera? 10anularei 11vassalo 12 despoja 13o fio 14 despojaste-os de sua pureza 1117 Bibliografia 48 Recorda o que dura a minha vida: criaste em vão os humanos? 49 Que homem viverá sem ver a morte?, quem livrará sua vida da garra do Abismo ? 50 Onde está, Dono meu, tua antiga lealdade, o que tua fidelidade jurou a Davi? 51 Olha, Dono meu, para a afronta de teus servos,15 o que tenho que agüentar de todos os povos: 52 como afrontam as pegadas de teu Ungido. * Bendito o Senhor para sempre! Amém, amém. 2. Bibliografia E. Podechard, Notes sur les Psaumes: Ps 89, RB 34 (1925) 5-31. A . Baumstark, Zur Texgeschichte von Ps 89,21, OrChr 31 (1934) 1-12. V . Ravanelli, Ps 89 Textus - compositio - doctrina, Roma, 1957. J. M . Ward, A literary and exegetical study o f the 89th Psalm, Ann Arbor, 1958. H. Brunner, Gerechtigkeit als Fundament des Thrones, V T 8 (1958) 426428. J. Hofbauer, Ps 89: Sein Aufbau, seine Herkunft und seine Stellung in der Theologie des AT, Sacra Pagina, Gembloux, 1 9 5 9 ,1, 504-510. M . Dahood, ’d “throne” in Ps 89,38; 2Sm 7,16; S f 3,8, Sacra Pagina, Gembloux, 1959, 276-278. J. M . Ward, The literary form and liturgical background o fP s 89, VT 11 (1961) 321-339. O. Eissfeldt, The promises o f graces to David in Is 55,1-5, em FS Muilenburg, Nova York, 1962, 196-207. N. Sarna, Ps 89: A study in inner biblical exegesis, em Biblical and other studies, Cambridge M A, 1963, 29-46. L. 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Análise filológica 2. ‘wlm : uso adverbial temporal, paralelo de Idr wdr. 3. ‘wlm: a mesma coisa. shmym: adverbial de lugar, ou nominativo completado com bhm GK 143 c. 6. shmym: sujeito do proclamar, ou adverbial local paralelo de bghl com wywdy impessoal regendo todo o versículo Joüon 155 b. 7. íym: plural como SI 29,1; Vg Dei. 8. n‘rç: temido, paralelo de nwr\ glorificado LXX Vg Eutímio Belarmino. rbh: unido ao anterior segundo os massoretas: como adj de swd Sím •Jerôn, como adv Qim Marini Ros. Lêem adjetivo de Deus LXX Vg, mudando em rb hw’, Graetz; forma arcaica qatala conservada pela rima de nwr’. 9. hsyn: predicado de yh com elipse da cópula ’th-, para a forma nominal Joüon 88 Eg. 10. bsw’: infinitivo apocopado de ns’, elationes Jerôn. 11. rhb: os antigos traduzem o nome próprio por Soberbo, Arrogante; identificam-no com o Faraó TargTeodor; Eutímio distingue: sentido sensí vel qualquer homem soberbo, sentido inteligível o diabo, outros dizem o Faraó. 14. ydk: tua esquerda, polarizado porymynk tua direita DBHEyd 1 a). 18. trym: ketib hif sujeito Deus, quere qal sujeito qrn. 19.1-... 1-: preposição de pertença, de origem ou autoria Jerôn a Do mino-, nota de nominativo Ros como Is 32,1, Wellhausen; adv realmente como El Amarna Gaster Dah. 20. ‘zr: auxílio LXX Jerôn Ros Del, complemento de shwyty com regime í como SI 21,6; ‘l hostil contra Hitzig; corrigem para nzr diadema / coroa Olshausen, Duhm Gun Kraus. Dah ‘zr como ugar gzr moço, campeão, shwh como ugar twy governar, ‘l comparativo de preferência, segue-lhe Rav. 22. ’shr: relativo referido a ‘mw Jerôn Del Gun Kraus; explicativo equivalente de K ’shr LXXgar GB 74-75. 23.ysh ’: hif de nsh’ enganar Sím Jerôn; aproveitar-se de LXX Vg; de nsh exigir, cobrar imposto Qim; corrige parais' Dah. Salmo 89 1 12 0 24. ’gwp: com mater lectionis GK 8 c. 47 f. 29. ’shmwr: ketib com mater lectionis. 33. wpqdty: apódose depois das condicionais de 31-32. 34. ’pyr: de pwr alomorfo de prr cf. SI 33,10; Ez 17,19; dispersar LXX Vg; corrigem para ’syr retirarei Duhm Gun cf. Jerôn auferam. 36. ’m: partícula de juramento negativo GK 149. 38. ykwn: relativa assindética Joüon 158 a. ‘d: testemunho referido a lua; muitos antigos referem-no a Deus Sím Eusébio Teodoreto Atanásio Eutímio; da lua Qim Calmet; arco-íris Geier. 40. n’rth: para a mater lectionis GK 44 g. 41. mhth: de htt piei quebrar, arrasar; Vg in formidinem objeto de espanto. 44. çwr: a ponta ou o fio da espada Qim; auxílio LXX Yg, robur Jerôn. 45. mthrw: subst com performante e dages eufônico Qim, cf. mqdsh Ez 15,17; lêem a prep min Vg Phil Del; traduzem purificação cultual Targ Eutímio Teodor. mgrth: GK 44 g. 48. ’ny mh hld: frase com predicado exclamativo, completiva de zkr-, hyostasis LXX, substantia Vg, de profundo Jerôn. ‘I mh shw’\ por que em vão? BHS propõe corrigir ‘wlm unido ao hemistíquio precedente e hshw’ interrogativa e adv. 49. yahyh, ymlt: relativas assindéticas. 50. nshb‘t: idem. 51. rbym : anteposto ao subst SI 32,10; Pr 7,26; Ne 9,29 Del; rbym ‘mym regido por hrpt: subentendido antes de kl Ros, lendo Z- em vez de kl Hitzig; corrigem: para klmt Kraus, rbym para ríbê Gun. 52. ’shr: eqüivalente de k’shr GB 74-75; de ky depois de zkr Davidson, Hebrew Syntax 3â ed. 146. 4. Estudo global a) Gênero: duplo? — Já o primeiro versículo nos diz, com o seu “vou cantar”, que come um hino. Continuamos lendo, e confirma-se a definição: o céu soma-se ao louvor do Deus incompreensível. No v. 20 começa amplo oráculo, que se estende até o v. 39; mas devidamente se introduz como um dos temas recordados no hino. Se o v. 16 introduz uma bem-aventurança com ’shry, fálo sem romper a estrutura do hino. Até o v. 38 temos um hino ao Senhor por suas ações cósmicas e por uma insigne ação histórica. Estudo global 1121 — No v. 39, com um simples “mas tu”, muda o tom e abre-se uma súplica que se prolonga até o final, em quatorze versículos. O gênero de súplica é inconfudível, com a descrição da desgraça presente, a menção dos inimigos, as perguntas e imperativos dirigidos a Deus. Como se soldam essas duas peças? Encontramos caso parecido no SI 40, que da ação de graças passa à súplica. Junta o SI 89 duas peças autônomas? A relação temática e os contatos verbais da última secção com a precedente são demais fortes. Uma das duas peças está em função da outra? Ao definir a relação, separam-se as opiniões. — Pode-se imaginar que o hino existia completo: basicamente um hino pela eleição da dinastia davídica, concebida em contexto cósmico. Um acontecimento trágico questionou o valor do hino e alguém decidiu atualizálo acrescentando uma súplica de circunstâncias. Mas esse não é o modo normal de proceder: em circunstâncias semelhantes, teriam encomendado ou composto uma súplica específica, como os SI 44 e 74, sem ligá-la artificialmente a hino tradicional. — Parece-me mais acertado partir da súplica. Em momento trágico para o rei e a dinastia, compõe-se uma súplica em que se recorda o passado por contraste e canta-se a grandeza de Deus como motivação e apela-se a suas promessas. Tudo isso é lógico e tem paralelos. Recordar por contraste o pas sado pessoal ou nacional feliz fazem-no outros salmos de súplica, por exemplo 22,5.10; 44,2; 71,6.17, e a imagem da vinha no SI 80. Aduzir como motivação a grandeza de Deus ou apelar à sua promessa pode-se ilustrar com outros exemplos (71,19; 56,5). Particularmente apropriado é o SI 74, que comparti lha de vários dados com o 89: perguntas e imperativos, menção do ultraje hrp) e da aliança e recordação da ação cósmica de Deus nos versículos 12-17. — Situação. Uma desgraça grave do rei ou da dinastia é o mais que podemos delimitar com certeza. Buscar mais precisão histórica é passar ao terreno do provável. Alguém sugeriu a morte trágica e escandalosa de Josias (escandalosa em termos de retribuição); outros propõem a catástrofe de 586, no mesmo espírito da quarta Lamentação: 20 Ao Ungido do Senhor, ao que era nosso alento, caçaram-no numa armadilha; aquele de quem dizíamos: A sua sombra viveremos entre os povos. b) Hino paradoxal à lealdade de Deus Sem desdenhar o que se disse até aqui, façamos a prova de levar a sério, tal como soa, o começo do salmo. O orante começa com uma declaração de propósito. Não a emendemos: Cantarei eternamente a lealdade do Senhor. Em meio à tribulação, um canto à lealdade do Senhor. Apesar da tribulação, Salmo 89 1122 cantamos a lealdade do Senhor. Quando os fatos parecem desmentir essa lealdade, nós a afirmamos e a cantamos. E continuaremos a cantá-la não obstante tudo. Porque a lealdade fundamental não se apóia em nossa prestação, mas no compromisso com que Deus se empenhou. Porque cremos em sua promessa, cantamos sua lealdade. O que dizia o SI 56: “glorio-me na promessa do Senhor”. Há outro salmo que canta pura e simplesmente a lealdade / misericór dia de Deus: por sua grandeza sobre todos os deuses, por sua ação criadora, sua ação libertadora, por sua ajuda quotidiana. Mas, que diferença de tom! O SI 136 repete como estribilho “porque eterna é sua misericórdia / lealdade”, longe de desgraças ou ameaças. E fácil cantar a lealdade de Deus quando tudo vai bem; o difícil é cantá-la quando os fatos parecem desmentila. E esse o paradoxo do SI 89. c) Composição Podemos estudar a composição do poema a partir de vários pontos de vista: desenvolvimento do tema, disposição de seus componentes, relações entre as peças, eixo semântico. Uma primeira impressão de conjunto dizme que o salmo procede de grande coerência intelectual, quase demasiada. Sente-se o teólogo mais que o poeta. — Palavras-chave e eixo semântico. Dois termos impõem-se à primeira leitura: hesed (com um hsyd) e variações da raiz ’mn. Ambas percorrem por todas as subdivisões do salmo: hsd ’mn 2a 2b 3a 3b 6b 9b 15b 15b 25a 25a 29a 29b 34a 34b 50a 38b 50b O paralelismo nos sete casos de hsd demonstra a eqüivalência de ambos os termos, confirmando longa tradição. Fazem parte do mundo dessa lealdade: a aliança (4.29.35.40), seu conteúdo é o trono dinástico (5.15.30.37.45), o vassalo beneficiário (4.29.35.40), que é Davi (4.21.36.50). Também fazem parte dele a estabilidade: kwn (3.5.22.28) e a perpetuidade (2.3.5.29.37.38). No outro pólo do eixo agrupamse por ambas as partes o enganar e mentir (23.36), profanar (32.40), mudar e rejeitar (35.39), não seguir e não guardar (31.32), também a vaidade (48). Lealdade e fidelidade, assim como também seus contrários, realizamse numa série de ações positivas e negativas que constituem em grande parte o desenvolvimento do poema, por exemplo, pôr o diadema e ungir, derrotar os inimigos e ajudá-los, etc. — Palavras repetidas. Muitas vezes, o poeta hebreu repete palavras com função estrutural, como sinais externos da organização do poema. Nesse longo salmo, se bem que sejam muitas as palavras que se repetem Estudo global 1123 duas ou mais vezes, são sinal de unidade temática sem função estrutural rigorosa. Tomemos, por exemplo, “braço, mão, direita”: o braço de Deus age na criação (11.14) e na história (22), a mão de‘Deus (14 e 22), a do rei (26), a do inimigo último ou o Abismo (49); a destra de Deus (14), do rei (26), do inimigo (43). Notável é a repetição de ’atta = tu (11.12.13.18.27.39): sua função é enfática, não estrutural. A abundância de palavras repetidas está condicionada pela amplidão do poema e por sua unidade temática, ainda que com mudança de situação. — Disposição. Considero os versículos 2-5 como introdução progra mática de todo o poema: propósito hínico do orante e antecipação do oráculo dinástico, citando palavras de Deus. Uma divisão maior separa a parte hínica e a súplica com o corte em 38 / 39. O hino divide-se na secção cósmica e na histórica (6-19 e 20-38). A súplica divide-se numa secção enunciativa e outra argumentativa (39-46 e 47-52). Divisões e subdivisões aparecem num quadro que é esquema e resumo: 0 1 II 2-5 Introdução: 2-3 fala o orante 4-5 fala Deus (em citação) 6-38 Primeira parte: hino 6-19 ação cósmica de Deus 6-9 grandeza incomparável do Senhor 10-15 senhorio cósmico 16-19 resposta do povo 20-38 promessa à instituição dinástica 20-30 instituição 31-38 condições 39-52 Segunda parte: súplica 39-46 ações recentes do Senhor 47-52 perguntas e petições d) Relações entre as partes A relação entre hino e súplica é tão óbvia que dispensa insistir sobre ela: apresenta simplesmente o que Deus fez outrora e o que faz agora. Verbos de ação divina na segunda pessoa sucedem-se em cascata: não é a inação de que se queixam textos como 74,11 ou 60,12. Mais importante e menos visível é o paralelismo entre o senhorio celeste do Senhor e o domínio terrestre do monarca: assim na terra como no céu. Com um texto difícil e duvidoso, o v. 3 nos alerta: lealdade e fidelidade são inicialmente realidade ou construção celeste, antes de se voltar sobre um segmento de história humana. Na altura celeste reside uma corte formada pelos shmym e os qdshym = Céus e Santos. Não detêm o poder supremo, mas reconhecem a superio Salmo 89 1124 ridade incomparável de seu Soberano: nenhum “ser divino” se lhe pode comparar (7). Yhwh ganhou-se o título derrotando as forças cósmicas do caos, pelo que lhe pertence o universo e se senta no trono real (15). Na terra, Deus “escolhe” um entre o povo, ergue-o sobre os demais, faz com que vença seus inimigos (23-24). Assim se realiza na terra, por doação e imagem, a fidelidade “construída” no céu. Dessa forma, o teólogo inverteu a ordem do conhecer para falar da ordem do ser. Na ordem do conhecer, primeiro é a experiência humana da realeza; num segundo tempo, esta se projeta como símbolo sobre a divinda de; num terceiro momento, a realeza divina apresenta-se como origem e modelo da humana. O processo repete-se com outros símbolos: por exemplo, o repouso sabático, o juízo. Se a dinastia se extingue, não só falta na terra a lealdade divina, mas desaparece uma imagem e mediação do Senhor. Pode tolerá-lo o Senhor construtor da lealdade? E conciliável com seu juramento sacrossanto? e) O modelo babilónico: uma suspeita Ao refletir sobre a cena de Yhwh vencedor do caos, que se assenta no trono e recebe a aclamação dos seres celestes, a pessoa sente-se assediada pela recordação de mitos babilónicos e chega a suspeitar que o autor hebreu os levou polemicamente em conta e os “purificou sete vezes” (cf. SI 12). Se aceitarmos datação exílica para o salmo, a suspeita adquire força. Façamos a prova com o grande hino de exaltação do Deus Marduk, que costumanos denominar por seu começo Enuma Elis: Diante da rebelião e ameaça de Tiamat, a deusa do oceano tempestuoso, com seu exército aniquilador, fracassam duas grandes divindades, Ea e Anu. Então os deuses convidam Marduk a lutar para vencê-la, e ele aceita com condições: “Se marcho como paladino vosso, venço Tiamat e vos salvo, pro clamai que meu decreto será supremo... que quanto eu ordenar será irrevo gável” (tabuinha II, 23-29 e III, 57-63). Os deuses aceitam e num banquete lhe conferem honras supremas e o aclamam: “Declararam-no seu paladino, fizeram-lhe um estrado, e ele se sentou para receber mando. Disseram: “Tu és supremo entre os deuses e tua decisão é suprema. De hoje em diante, tuas ordens serão incontrastadas. Elevar e humilhar estará em teu poder. O quanto disseres, será verdadeiro, e tua palavra não se dirá em vão. Nenhum dos deuses usurpará teus direitos”. Depois de superar uma prova, recebe as armas e marcha ao combate, derrota Tiamat e de seu cadáver criou o universo: céu e terra, fixou o firmamento, definiu o ano assinalando zonas. “Mandou sair a lua e lhe encarregou a noite”, ainda que cedendo o posto ao sol (IV, 10-22). “Definiu os limites da noite e do dia” (V, 46). Os deuses o reconhecem a aclamam: “Antes Marduk era nosso amado filho, agora é nosso rei” (V, 109. 152). Estudo global 1125 Depois Marduk cria o homem do sangue do capitão rebelde, Kingu, para serviço dos deuses. Estes propõem que se construa um santuário, uma morada e um trono: e se constrói Babilônia. Do poema babilónico o que mais nos interessa aqui é a homenagem dos deuses a Marduk como soberano, sua vitória sobre o oceano Tiamat, sua ação criadora e soberania cósmica, sua entronização. A esses dados corres ponde a secção hínica de nosso salmo (6-19). Chegados a esse ponto, em vez de criação do homem encontramos a eleição e nomeação dum rei e duma dinastia terrena. Em outras palavras, o que o poema acãdico diz de Marduk o diz o poeta hebreu de Yhwh. Terminada a comparação e apontadas algumas correspondências sugestivas, repito o que se disse. A inspiração e alusão polêmica ao mito babilónico é uma suspeita de leitor. Resta como seu valor primário a ilustração por semelhança. D O tema do construir Duas vezes no começo do salmo (3.5) encontramos o verbo bnh = construir, e cinco vezes o paralelo e quase sinónimo kwn = estabelecer (3.5.15), mkwn (22.38). O segundo predica-se da fidelidade, da estirpe, do trono, da mão e da lua; o primeiro predica-se da fidelidade e do trono. O que significa que a lealdade “é construída”? Antes de tudo é preciso notar que bnh tem em hebraico arco maior de significados: construir, fabricar, modelar (Eva em Gn 2), formar família. Contudo, outros autores preferem yçr = modelar, formar: em Is 40-55 conto três casos de bnh diante de dezoito de yçr-, o SI 79 na passagem paralela usa yçr. Creio que a repetição de bnh é no começo do salmo intencionada e significativa. O orante vai cantar a lealdade e fidelidade de Deus para sempre: a garantia é que essa virtude primeiro foi “fabricada” no céu e como virtude celeste poder-se-á transferir e atuar na terra. No citado poema babilónico (VI, 113) leio: “Que faça na terra uma imagem do que fez no céu”. A duração celeste está automaticamente garantida, a terrestre estará garantida pela “construção” dum trono duradouro “como o sol e a lua” (30,37s), e pela fundação duma “estirpe” perene (5.30.37). O trono assim “construído”, a imagem do divino (15), e assegurado (30.37), poderá ser “testemunho” ou sinal sobre as nuvens (38, se não se refere à lua). Segundo ponto, menor, é que no citado Enuma Elis cada vitória ou ação criadora tem que desembocar numa construção: sobre o Apsu (I, 70-77), o estrado ou trono para Marduk (IV, 1), as estações celestes dos deuses maiores (V, 1), e, finalmente, Babilónia (VI, 51 e seguintes). 1126 Salmo 89 Terceiro ponto. O eixo da promessa dinástica, segundo 2Sm 7, que é modelo ou corresponde ao salmo, é a “construção”: Davi quer “construir” uma Casa = templo; o Senhor responde que ele “construirá” para Davi uma Casa = dinastia. O salmo extrema o jogo: o Senhor constrói para Davi e sua estirpe um trono perpétuo, aplicando-lhe a lealdade / fidelidade que construíra no céu. Se a expressão “se constrói lealdade” desconcerta no começo do salmo, não é preciso eliminá-la nem retocá-la, mas buscar seu sentido e seguir sua presença no resto do poema. g) O Sl 89 e 2Sm 7 O parentesco de ambos os textos, com coincidências de palavras e frases, é indubitável; a relação de precedência ou dependência é duvidosa. Precisamente pela identidade de tema e pelas coincidências verbais, destaca-se mais a diversa formulação do salmo. Para facilitar a consulta comparada, copio aqui algumas frases do oráculo de Natã e seu contexto (2Sm 7): 5 7 8 9 11 12 13 14 15 16 26 27 E s tu que vais construir uma casa para que eu habite nela? Porventura encarreguei alguém... de me construir uma casa de cedro? Eu te tirei dos apriscos... para ser chefe de meu povo, Israel. Eu estive contigo... aniquilei teus inimigos. O Senhor comunica-te que te buscará uma dinastia (y‘sh byt). Estabelecerei depois de ti uma estirpe tua (hqymty sr‘k). Ele edificará um templo em minha honra (ybnh byt), e eu consolidarei seu trono real para sempre (wknnty ’t ks’ mmlktw ‘d ‘wlm). Eu serei para ele pai, e ele será para mim filho; se se desviar, eu o corrigirei com varas e golpes (bshbt wbng‘y m ), mas não lhe retirarei minha lealdade (whsdy 1’ ysw r mmnw). Tua casa e teu reino durarão sempre em minha presença, teu trono permanecerá para sempre. Que a Casa de teu servo Davi permaneça em tua presença. Tu revelaste a teu servo Davi: Edificar-te-ei uma casa (byt ’bnh lk). Os comentadores estão de acordo em que o oráculo foi submetido a sucessivas elaborações, mas não conseguem definir um processo certo ou bastante provável. O texto de 2Sm contém frases com paralelismos e imagens poéticas junto a frases de feitura prosaica. Inclino-me a pensar que o Sl 89 está mediata ou imediatamente inspirado no texto tradicional de 2 Sm ou numa versão semelhante não conservada. O poeta elabora ou amplifica livremente seu modelo: com paralelismos binários ou quaternários, com linguagem mais imaginativa e mais expressiva, incorporando reminiscências de outras tradições. 1127 Exegese Outros textos paralelos ou aparentados são: 2Sm 23,1-5; Is 55,3; Jr 33,20-22, e salmos reais: 2, 110, 132. 5. Exegese 2-5. Formam a introdução programática, com frases do orante e palavras oraculares de Deus; muda o sujeito sem aviso prévio. O canto do salmista é para a posteridade, perdurável como o tema de que trata e como sua garantia celeste. Lealdade e fidelidade (hendíade) são antes de tudo construção celeste e como tal perdurável (cf. SI 36,6); do céu podem agir e comunicar-se, sem perder eficácia e perenidade. O momento atual, desgra çado e humilhante, não anula o programa de longo alcance e a longo prazo. O canto será resposta e memorial do benefício divino. Deus toma a iniciativa: “escolhe” “Davi como vassalo” e concede-lhe “com juramento” “uma aliança”, em favor dele e de seus “sucessores” no “trono”: 2Sm 23,5 Minha casa está firme junto de Deus, que me concedeu um pacto eterno, bem formulado e mantido. O termo bhyr é típico de Is 40-65 e SI 105 e 106: o sujeito que escolhe é sempre Deus. Juramento a Davi (2Sm 3,9; SI 110,4; 132,11). 6-9. O que diz o orante e o que dizem os celestes fundem-se sem distinção clara, ainda que tudo fique englobado no ato de dizer do orante. A pergunta: quem como... ? soa na terceira pessoa em 7, em segunda pessoa em 9: a primeira poderia ser a aclamação dos celestes, a segunda é pronunciada pelo homem; se aplicarmos esse critério, os celestes também dizem 8. Mas a atribuição é duvidosa e talvez menos importante diante do conteúdo. Os celestes reconhecem Yhwh como supremo e incomparável; o orante escuta-o ou sabe-o e se faz eco. Os Céus estão personificados; a assembléia dos Santos está formada por seres divinos (bny íym ), que são a corte e conselho do Senhor. 6. No SI 19,2: “os céus proclamam” (e não mais existem divindades). E normal apelar aos céus como testemunhas, por exemplo, Is 1,2; Dt 32,1. Santos (qdshym) como nome ou título de divindades ou seres celestes (Jó 5,1; 15,15; Dt 33,3; Zc 14,5); equivalem a mVkym e ‘bdym segundo Jó 4,18 comparado com paralelos. Compare-se com a expressão “deuses santos” de Dn 4,5.6.15; 5,11, e a explicação “anjos santos” de Lc 9,26. 7. Para a comparação usa os verbos ‘rk e dmh, verbos que junta Is 40,18; dmh também em Is 40,25; 46,5. 1128 Salmo 89 8. O Deus terrível (Sl 76; Is 2,9-19). O conselho de Deus (Jr 23,18.22; Jó 15,8). 9. Introduz novo elemento: um título (hsyn = poderoso) ou uma qualidade (hosen = poder), que acompanha a fidelidade; alguns corrigem para ler hsdk. O rodear implica pluralidade. 10-15. Não é puro reconto, mas proclamação. Notável por seu estilo categórico, com cortes e variações oportunas, insistente no pronome tu e é generoso em verbos de ação, com mudanças acertadas de sujeito. (Percebese em texto como esse necessidade de declamar em voz alta). Dedicam-se quatro hemistíquios à luta primordial e à vitória sobre as forças do caos; outro hemistíquio completa com a “fundação” do orbe (sobre as águas). Em vez da criação, enuncia-se o domínio sobre “céu e terra”. No orbe definiu limites e alturas. E curioso que dos pontos cardeais só se mencionam dois, e que todas as montanhas estejam representadas por duas. Ao terminar, senta-se em seu trono, que se monta sobre duas figuras personificadas (como os animais fantásticos que se abaixam ou se erguem sustentando os tronos orientais). Outras duas personificações mantêm-se em pé em frente ou lhe abrem caminho. Podemos imaginar a cena quieta ou em movimento, sobre um silhão gestatório. 10-11. O monstro primordial chama-se Yam ou Rahab; a “elevação” (ou estrondo, se se ler sh’wn) é sua soberba e arrogância. Acompanha-o um esquadrão de “inimigos”. A ação de Yhwh é dominar, amansar, triturar, atravessar, dispersar. Em seguida, céu e terra são seu domínio. O autor deEnumaElis descreve com complacência abatalha (tabuinha IV, desde v. 70): O mútuo desafio: “Põe-te de pé, que travemos combate singular!”. A reação de Tiamat: “então lutaram em combate singular, travados na peleja” (94). Marduk estende-lhe sua rede e lança seu Vento Funesto; Tiamat abre a boca para devorá-lo, mas o vento penetra e distende seu ventre. “Então Marduk dispara sua Flecha, rasga-lhe o ventre, atravessa suas entranhas, rompe-lhe o coração” (95-102). Já vencida e morta, atira seu cadáver e coloca-se em cima dele, enquanto “seu esquadrão se dispersa, sua tropa debanda” (106). Depois Marduk faz prisioneiros a todos, inclusive Kingu o capitão, e dirige-se de novo ao cadáver de Tiamat: “com o machado lhe tritura a cabeça” (130)... parte-a como concha em duas valvas. Um a coloca como céu” (137s). A outra como terra. “Assim criou o céu e a terra” (V, 6). Compare-se com o Sl 74,12-17. 13.0 norte e o sul. Uma das tarefas de Marduk depois da vitória se descreve assim (V, 8-10): “Colocou as estações de Enlil e Ea: abriu as portas dos dois extremos e assegurou os ferrolhos à esquerda e à direita”(o norte = esquerda pertence ao Deus Enlil, o sul = direita ao Deus Ea). Exegese 1129 Não sabemos porque o autor do salmo escolheu duas montanhas não judaicas, Tabor e Hermon. SegundoEnumaElis (V, 53.57), Marduk formou as montanhas (sem nome próprio) da cabeça e dos úberes de Tiamat. Jr 46,18 menciona como mais conspícuos Tabor e Carmelo; o prestígio do Hermon resulta do SI 133,3 e Ct 4,8. 15.0 trono real de Yhwh tem como escabelo e base ajustiça. Lemos nos Provérbios: 16,12 Seu trono firma-se na justiça (bçdqh ykwri). 20,28 Misericórdia e lealdade guardam o rei, a justiça assegura seu trono (segundo LXX). 25,5 Seu trono firmar-se-á na justiça (ykwn bçdq). 29,14 Quando um rei julga lealmente o desvalido, seu trono está sempre firme (l’d ykwn). Vejam-se também SI 9,5 e 97,2. 16-18. O soberano dos deuses tem na terra um povo que o reconhece como senhor e guia. Essa é sua dita, seu gozo e sua exaltação (não como os homens criados por Marduk para dispensar os deuses do trabalho). O ser viço desse povo é gozoso e benéfico, porque desfruta da “justiça” e “bene volência” de seu Deus. 16. Ditoso o povo (SI 144,15). Entre as 26 bem-aventuranças d saltério, estas são as duas únicas ditas de “um povo”. A trw‘h é o alarido de guerra ou o canto triunfal: corresponde à vitória de Yhwh há pouco can tada. Caminham à luz de teu rosto: no caminho da vida e da conduta ilumina-os como um sol o rosto benévolo de Yhwh. Para os sumérios, Utu é o deus solar, encarregado da justiça. O eqüivalente acádico é Samas. Um dos hinos a Samas começa assim: “Rei do céu e da terra, juiz do universo no alto e em baixo, que pronuncia sentenças” (Seux 67). 18.Levantar o chifre: veja-se o SI 75; do Ungido (ISm 2,10), de Davi (SI 132,16), de Israel (Ez 29,21). 19. Disputam-se a preferência duas interpretações: — Tomando a partícula l- como preposição para introduzir de antemão e enfaticamente um sujeito: “quanto a Yhwh, referindo-nos a, falando de”; segundo essa leitura, o povo reconhece e aclama a Yhwh como Rei e Escudo. Escudo (SI 3,4; 18,3.31; 28,7) e outras oito vezes no saltério (Pr 30,5). Rei é freqüente. Em momento de desgraça para o monarca davídico, o povo levanta-se para reconhecer Yhwh como seu rei. — Com l- de pertença ou de causa e sujeito o monarca humano, que leva o duplo título de “nosso Rei, nosso Escudo”: o segundo título seria caso único no AT, mas coerente com a concepção do monarca desde sua instauração. Nessa leitura, o versículo serve de transição. O soberano celeste dos deuses 1130 Salmo 89 tem na terra um povo que o reconhece, e nesse povo um rei que ele próprio escolheu e nomeou. O rei terrestre é portanto vassalo do celeste. 20-30. Contando a introdução, o oráculo abarca doze versículos que pronuncia Yhwh em primeira pessoa. Dez verbos de ação do Senhor e dois equivalentes: nada cabe fazer ao rei humano, a não ser invocar a Deus como pai. Quanto aos inimigos, nega-se seu êxito. A ordem das ações não é cronológica: algumas fazem parte da investidura, como diadema, unção e trono; duas referem-se à eleição; outras à autoridade política e militar do monarca. Este oráculo tem parentesco com os Sl 2 e 110. Pode-se comparar também à segunda parte do Sl 18. A estabilidade do reinado e do trono, a vida longa, a vitória sobre os inimigos, o reinado para os descendentes são dons que pedem normalmente os reis da Mesopotâmia a suas divindades (Seux, Prières du roi et prières de rois, 489-526; Prières pour le roi, 526-530). 20a. O texto fala duma visão destinada a “teus leais” (no plural), um grupo seleto ou todo o povo que receberá de Deus um monarca. Ao invés, 2Sm7,17 e a leve variante de lCr 17,15 falam duma visão que recebeNatã e comunica a Davi. 20b. Literalmente significa “dispus auxílio para um soldado”. Poderse-ia tomar como alusão ao combate singular de Davi com Golias, com a ajuda de Deus: “Eu vou até ti em nome do Senhor dos Exércitos, Deus das hostes de Israel... esta é uma guerra do Senhor” (ISm 17,45.47). — Tomando ‘zr como derivação fonética do cananeu gzr = moço, adolescente. O sentido seria: coloquei um moço (Davi) sobre um soldado (Saul). Ainda que corresponda à tradição davídica, parece-me rebus cado. — Corrigindo para nzr = diadema ou coroa, segundo o v. 40. Solução simples e razoável, ainda que sem apoio documental. Sl 132,18 menciona o “diadema” real de Davi; 2Sm 1,10 menciona o diadema real de Saul, que o amalecita entrega a Davi; segundo 2Rs 11,12, impõe-se ao menino Joás o diadema real. A frase seguinte pode significar que exalta “um moço do povo” ou “um soldado da tropa”. Davi afirmou-se no contexto militar, tendo abandonado apriscos e ovelhas. 21.0 verbo mç’ é raro predicado de Deus. Pode ter sentido restrito d eleger; ou é alusão à busca de Samuel na casa de Jessé (ISm 16,1-13). A unção real de Davi se referem muitos textos, a partir de ISm 16. 22. Braço e mão (14) exercem aqui sua atividade na história. O verbo ’mç faz jogo sonoro com o precedente mç’ e não é raro em contextos de nomeação (Sl 80,18). 23. O verbo usado para “enganar” é pouco freqüente e em geral tem matiz de provocar falsas ilusões, enganar com falsas promessas: Gn 3,13: Exegese 1131 a serpente a Eva; Jr 29,8: os falsos profetas ao povo. Pode-se tratar de inimigos externos ou internos, como no SI 18. 24. O verbo ktt emprega-se de ordinário com objetos materiais: o bezerro (Dt 9,21), um caco de louça (Is 30,14), as espadas (J1 4,10). “Que minhas armas sejam agudas e desbaratem as armas dos inimigos” (Seux 508); “Que tuas armas furiosas, que não perdoam ao inimigo, sejam afiadas e que marchem a meu lado para matar meus adversários” (Seux 514). 26. Do mar Mediterrâneo ao rio Eufrates, limites do domínio dum soberano sobre reinos vassalos (lRs 5,1; Zc 9,10. SI 80,12; Mq 7,11). Os babilônios falam de “as quatro regiões”(Seux 505). 27-28. Como título supremo, o rei de Israel é chamado Filho de Deus e pode invocar pessoalmente o Senhor como Pai (vejam-se SI 2,7 e 2Sm 7,14). O SI 89 acrescenta um matiz: “primogênito”. Assim como Israel é pri mogênito do Senhor entre os povos (Ex 4,23), assim também o é o rei entre os reis. Para essa primogenitura não conta a precedência cronológica, mas a nomeação de Deus. O rei recebe como privilégio pessoal títulos que se concedem ao povo como coletividade: filho (Dt 8), primogênito (Ex 4), excelso (Dt 26,19; 28,1). 29-30. A lealdade do Senhor desborda a vida de Davi, de cada monarca, e assegura uma descendência e um trono. A afirmação vai além de mera continuidade e estabelece uma medida cósmica para a fidelidade do Senhor e a duração do trono: E a medida celeste anunciada no começo. Em si pode soar a hipérbole convencional: promete-o Dt 11,21 ao povo na terra, sob con dições; desmente-o o desterro; Bar 1,11 o diz de Nabucodonosor e Baltazar; Eclo 45,15 de Aarão e sua descendência. No contexto do salmo e em seu mo mento histórico, a frase parece abrir-se a horizonte ilimitado. “Que seus descendentes governem para sempre todos os lugares habitados” (Seux 528). 31-38. Acrescentam um condição muito elaborada, cujo precedente se lê em 2Sm 7. Com afã de precisão jurídica, estabelecem-se cláusulas penais e limites de castigo. Pode-se olhar de dois modos: a) a fidelidade radical à aliança não exclui penas limitadas; b) os castigos não anulam nem desmentem o compromisso radical. De passagem acrescenta o autor uma página de teodicéia, justificando o castigo divino, ao mesmo tempo que convida à esperança. Porque a fidelidade radical de Deus não se baseia em prestações humanas nem depende delas, mas baseia-se na pura iniciativa de Deus e em seu compromisso garantido por juramento. Em termos jurídicos soa o espírito de algumas páginas do profeta do desterro, o Segundo Isaías: 40,2 Cumpriu-se seu serviço e está pago o seu crime. 51,17 Bebeste da mão do Senhor a taça de sua ira... 22 Olha, eu tiro de tua mão a taça da vertigem. 1132 Salmo 89 31-32.0 delito formula-se num quaternário composto de três elemen tos convencionais e um desacostumado. Profanar costuma ter por objeto o nome, o templo, o sábado; aqui seu objeto são preceitos ou estatutos. Podese comparar com Ml 2,10: “profanar a aliança” e Sl 55,21: “violar os pactos”. Por ser citação nos lábios de Deus, a aliança aqui não é outorgada a Davi, mas é o pacto com o povo. E a linguagem do Deuteronomista. 33. As varas permitem castigo calibrado e numerado, não aniquilam como o fogo ou a espada (cf. Ex 21,20). 34-35. Outro quaternário de sinônimos reafirma enfaticamente a lealdade básica do Senhor. A primeira frase é invalidar ou anular a lealdade, ou seja, o compromisso. Invalidar a aliança (hpr bryt) é fórmula freqüente (pelo menos 19 vezes no AT). Como termo de comparação escolho Jz 2,1: “Jamais quebrantarei meu pacto convosco, com a condição de que não pactueis com gente deste país”. O Sl 89 substitui “aliança” por “lealdade”, numa fórmula nova. Também é original a segunda frase: desmentir a fidelidade / defraudar a confiança. Pode-se comparar com o Sl 44,18, tendo “aliança” por objeto. A terceira é “profanar a aliança”, que faz eco à profanação do v. 32 e vem a dizer: ainda que eles profanem as estipulações, eu não profanarei a aliança. O verbo profanar supõe que o objeto é sagrado: é-o porque o garante a divindade e o sela um sacrifício. A quarta também é original: não mudarei o que pronunciei / prometi, não denunciarei o compromisso nem mudarei suas cláusulas. 36. Recalca o quaternário precedente: o Senhor interpôs um juramento pelo mais sagrado, que é sua santidade. Deus não pode ser pexjuro. 37-38. Reafirmam o prometido no v. 30. De quem se diz “testemunho fiel nas nuvens”? Há três candidatos ao ofício: a descendência, o trono, a lua. Na concepção hebraica, um objeto pode servir de testemunha (nós diríamos de sinal): um altar (Js 22,27); uma baliza (Gn 31,44.48.52); um obelisco (Is 19,20); Jó apela a uma testemunha no céu. a) A descendência, ou seja, a continuidade da família dinástica seria testemunho vivo de que o Senhor cumpre com seus compromissos; mas a descendência está na terra, b) O trono é emblema da dinastia e do reino e tem uma aura celeste, como imagem do trono celeste (15) e pela garantia de Deus. E como “o arco-íris nas nuvens”, sinal dum pacto perpétuo com Noé e a nova humanidade (Gn 9,16). c)Alua. Poderiam citar Eclo 43,8, que chama a lua de “sinal militar, instrumento celeste, que atravessa o céu com seu brilho”. Teria algo de paradoxal, pois a lua permanece em suas mutações. Na Babilônia, Sin (deus lunar) pode ser oracular e “anula sinais e presságios funestos e desfavoráveis” (Seux 414). Uma prece assíria diz de Sin que “pronuncia decisões e manifesta sinais” (Seux 528). A localização celeste quadra melhor com a lua. 1133 Exegese 39-46. Com uma simples adversativa (“mas tu”) introduz-se a virada de todo o precedente. Quinze verbos de ação para o Senhor, quatorze po sitivos e um eqüivalente. Como se o Senhor tivesse pressa e se empenhas se a fundo em destruir o construído, arrancar o plantado e invalidar as pro messas: Jr 45,4 Olha, o que construí, eu destruo; o que plantei, eu o arranco. Contudo, é o Senhor quem atua, e não uma divindade estrangeira; inclusive os inimigos são complemento de sua ação verbal. Vem à mente a terrível ameaça de Dt 28: 63 Assim como gozou o Senhor fazendo-vos o bem, fazendo-vos crescer, assim também há de gozar destruindo-vos e exterminando-vos. Um pouco menos violenta é a ameaça de Josué na grande renovação da aliança: 24,20 Não perdoará vossos delitos nem vossos pecados. Se abandonardes o Senhor e servirdes a deuses estrangeiros, ele se voltará contra vós, e depois de ter-vos tratado bem, maltratar-vos-á e aniquilar-vos-á. O texto está deliberadamente desenvolvido como reverso do bloco precedente. Lancemos um olhar numerativo. Diante da eleição (mç0, rejeição (m’s ); diante da benevolência (rçwn), cólera (Jitbr)-, a aliança quebrantada, o diadema profanado; diante da honra (tp’rt), o ultraje (hrp); o que exaltou (hrymwty) a um moço, exalta (hrymwt) o inimigo; o gozo (gyl) do povo opõe-se a alegria (smh) do inimigo; o trono pelos solos, o senhor de reis vestido de ignomínia. Toda a cena concentra-se em Deus como agente e o Ungido como paciente: o povo fica fora. Talvez seja o povo quem recita esses versículos, afligido por seu rei, “o que era nosso alento” (Lm 4,20). Inclusive algumas desgraças coletivas, como muralhas desmanteladas e praças fortes derro cadas, são vistas como “suas”, como propriedade do rei. 39. Encolerizado: o soberano com seu Ungido, seu vassalo. Teorica mente é o vassalo quem provoca a cólera do senhor por alguma traição ou deslealdade. No texto não se confessa culpa nenhuma do rei, pelo que alguns pensam em Josias; a cólera irrompe no salmo imotivada. 40. Rompeste: o verbo só se lê aqui e em Lm 2,7 dito do santuário. Profanar (32.35). Pode sugerir que os eventos atuais são o castigo enun ciado como cláusula penal no protocolo da aliança. Salmo 89 1134 41. Brecha: literalmente, derrubaste suas cercas, como na imagem da vinha (Is 5 e Sl 80). Derrocadas: o termo mhth é especialidade de Pr. Esses detalhes não se encaixam na história de Josias, mas sim na destruição de Jerusalém. 42. No primeiro hemistíquio continua a imagem da vinha, segundo Sl 80,13b. O segundo pode proceder do Sl 79,4. 43. Significa a exaltação do poder militar e a alegria e os festejos pela vitória (veja-se Sl 30,2). 44. hrb é a espada ou punhal, çwr pode ser a faca de pederneira (Ex 4,25; Js 5,2s). O fio da espada costuma-se chamar depy hrb (boca). Chamálo aqui de çwr pode ser contaminação lingüística ou licença poética ou influência do acádico corrente. A idéia de voltar-se a espada pode ser reminiscência da elegia por Saul e Jônatas (2Sm 1,22). Sustentar na luta: nos salmos reais 20-21. 45. Propõem-se duas explicações: a) Mantendo o significado mais freqüente da raiz thr, que é pureza, purificação. Quase sempre se usa em sentido cultual como antônimo de tm’ = impuro; também pode-se dizer de metais acrisolados, e metaforicamente de outros seres, como a palavra. Nessa linha, o sentido da frase seria: fizeste-os cessar em seu estado de pureza, ou seja, contaminaste-os, como são por antonomásia os cadáveres. A contaminação ou impureza pode provir também da resistência, por exemplo no desterro, b) Da pureza dos metais segue o brilho, que é outro significado do termo. Poderia aludir a esse halo ou resplendor que envolve o rei e irradia na batalha infundindo terror ao inimigo. Equivaleria a dizer: apagaste sua auréola. “Faz com que vá a meu lado, como aspecto senhoril e glória real, o resplendor de teus raios, para que conquiste o país de meus inimigos” (Seux 520). Lançar: em piei é caso único; em qal só em Ez 21,17. 46. Pode significar que o fizeste prematuramente ancião, fraco, invá lido; ou que o truncaste em plena juventude. Josias morre aos 49 anos, Jeconias é deposto e desterrado aos 21. Um dos dons para o rei é “anos que se prolongam sem termo” (Sl 21,5). E tema recorrente nas citadas preces da Assíria e Babilônia. Vestido de ignomínia (veja-se Sl 109,29). Despojado de suas vestes reais, o rei veste o traje dos cativos. A essa humilhação refere-se o final de 2Rs, a reabilitação de Jeconias. Também Jó alude ao costume: 12,17 Conduz desnudos os conselheiros, 18 despoja os reis de suas insígnias e lhes ata uma corda na cintura, 19 conduz desnudos os sacerdotes, 21 afrouxa a cintura aos robustos. Exegese 1135 Veja-se também a mudança de veste de Josué em Zc 3,4s. 47-52. Terminada a alegação de desgraças, causadas todas por Deus, sucede a argumentação para que mude de conduta e volte à sua atuação precedente. São quatro argumentos não dispostos por ordem de importân cia. — O mais forte está no v. 50: onde ficou tua lealdade de outrora? Aceitase e sofre-se o castigo, mas está durando demais. A lealdade, porém, deve ser mais forte que pecado e castigo. Como diz Jr 31,3: “Com amor eterno te amei, por isso prolonguei minha lealdade”. De mais a mais, Deus não pode faltar a seu juramento. Retorna assim no final o tema enunciado no princípio: “cantarei para sempre a lealdade do Senhor”, ainda que o canto tome agora a forma de pergunta apaixonada. — O argumento da duração, da prolongação, é clássico, e não é estranho que abra a série (47), como expressão de impaciência. No saltério destaca-se o SI 13; numa prece a Enlil repete-se a pergunta como estribilho mais de dez vezes (Seux 146s). — Em 48-49 aduz-se um argumento inesperado: a caducidade da vida humana. Que tem a ver com o tema presente? Creio que dum lado se enlaça com o v. 46: “encurtaste os dias de sua juventude”, doutro lado com o sentimento de impaciência. Como se dissesse: em todo caso, o rei é mortal como qualquer homem, não há razão para que se malogre fora de tempo sua vida; só tu podes livrá-lo da morte. Quanto a nós, estamos impacientes porque nossa vida é caduca, não somos como Deus que pode esperar: “mil anos em tua presença são um ontem que passou” (SI 90,4). — O quarto argumento é mais conhecido: consiste em chamar a atenção de Deus sobre o que está acontecendo, a insolência do inimigo e a humilhação do Ungido. Repete três vezes a raiz hrp, que já soou no v. 42, e que como tema domina o final do SI 74. 47. Arde a ira (Is 30,27; SI 79,5; Lm 2,3): Inflamado de ira truncou o vigor de Israel... e pegaram as chamas em Jacó consumindo tudo ao redor. 48. Sobre a radical “vaidade” da vida humana, vejam-se SI 39 e Eclesiastes: ambos preferem o termo hbl. 49. O SI 49 pode servir de comentário. 50. A renovada lealdade pode ligar-se com a antiga porque uma corrente simultânea as une: em rigor, são a mesma. 51.0 versículo passa do plural “teus servos” ao singular do orante: rei? Se se mantiver o texto hebraico, significará que o orante sente-se unido à comunidade e solidário com o Ungido (se não for o mesmo). 1136 Salmo 89 52. Ultrajar as pegadas é expressão original: como se uma multidão se juntasse atrás do rei que vai cativo e o cobrisse de insultos; recorde-se o episódio de Semei e Davi (2Sm 16,5-13). Autores antigos interpretam as pegadas (commutationem da Vg) como os sucessores de Davi Teodor, a dilação do Messias Targ. A última palavra do salmo é “teu Ungido / teu Messias”. Pode-se ligar a ela uma leitura escatológica do salmo; compare-se com Jr 33: 15 17 20 Naqueles dias e naquela hora suscitarei a Davi um rebento legítimo que fará justiça e direito na terra. Não faltará a Davi um sucessor que se sente no trono da Casa de Israel. Se se pode romper minha aliança com o dia e a noite ... também se romperá minha aliança com Davi meu servo. 6. Transposição cristã O Sl 89 trata do Ungido, o descendente legítimo de Davi, e express uma esperança inquebrantável em virtude da promessa e fidelidade divinas. Já durante a economia antiga leu-se esse salmo em chave messiânica e escatológica. Assim preparado, passa ao contexto cristão, no qual desdo bra seu potencial de sentido. Parte do v. 21 cita-se em At 13,22: Paulo falando ajudeus em Antioquia da Pisídia. O v. 28b cita-se em Ap 1,5. Mais que um par de citação incidentais, pesa o conjunto do pensamento. Antes de tudo, o título de Messias e Filho de Deus, que ouvimos na confissão de Pedro (Mt 16,16: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”). O título “Eleito” enuncia-se na transfiguração. O título de servo (pais em grego) entra por uma citação de Is 42,1-4 em Mt 12,18-21, e se faz comum em Atos (3,13.26; 4,27.30). A unção do v. 21b reaparece no título Messias e em formas verbais, ligadas também a outras citações (por exemplo, Lc 4,18; At 10,38). A imagem de “levantar o chifre”(v. 25b) é acolhida no Benedictus (Lc 1,69). Da relação Filho-Pai (v. 27) está cheio o evangelho de João. O título de Primogênito repete-se com variações (Rm 8,29; Cl 1,15.18; Ap 1,5; Hb 1,6). O trono é imaginado como escabelo compartilhado em Ap 3,21. Mais que a uma leitura cristã, o salmo presta-se a uma meditação cristã. Guiados por Santo Agostinho, tomamos o tema do canto, “misericór dia e fidelidade”, que no salmo são equivalentes. Paulo distingue-as em: fidelidade ao prometido aos judeus e misericórdia gratuita aos pagãos: Transposição cristã 1137 Rm 1,5.8 Quero dizer que Cristo se fez ministro dos circuncisos, em virtude da fidelidade de Deus, cumprindo as promessas dos patriarcas; 9 enquanto os pagãos glorificam a Deus por sua misericórdia. A lealdade prometida com juramento cria um problema de teodicéia, que se resolve em parte com a cláusula condicional do castigo limitado (3134) e no todo com a esperança da lealdade radical do Senhor. O problema volta a propor-se com extrema agudeza quando os judeus não aceitam a Jesus como Messias. São Paulo discute amplamente o problema na carta aos Romanos. Santo Agostinho toma outro ponto de vista ao comentar a última secção do salmo. Cito algumas frases para mostrar a linha parado xal de seu pensamento: “Prometeste tudo aquilo, fizeste o contrário. Onde estão as promessas das quais antes nos alegrávamos? Como se alguém prometesse e o outro transtornasse... Eu afirmo que fez aquilo para confirmar a promessa... Anulou em Davi a promessa para que, ao ver que não se cumpriu nele o que tinha que cumprir-se, busquem outro em quem apareça cumprido”. Depois vem a aplicação aos cristãos da promessa com sua cláusula penal. De novo, o radical é a lealdadejurada, que, porém, não exclui castigos limitados. Então, o que dizer dos cristãos que se perdem? De novo Santo Agostinho: “Cada um há de ser castigado por seus pecados; mas, se és cristão, não por isso se afasta de ti sua misericórdia... M as se rejeitas a mão que fere e escapas ao Pai que te golpeia..., tu mesmo te privaste da herança, não te rejeita ele. Pois se castigado permanecesses, não ficarias deserdado (nam si maneres flagellatus, non remaneres exhaeredatus)”. Poderíamos sugerir a Agostinho o texto de 2Tm 2,11-13: Se morrermos com ele, viveremos com ele; se perseverarmos, reinaremos com ele; se o negarmos, também nos negará; se formos infiéis, ele permanece fiel, porque negar-se a si mesmo não pode. Comentando a parte final, escreve Eusébio: “Tu não desdenhas os homens que criaste com honra, que criaste à tua imagem. Não os criaste em vão, para o nada; criaste-os para a grande esperança posta em ti, fundada em ti. Não permitas que se perca tua obra, tua imagem. E como os homens não podem resgatar-se por si mesmos, envia o Messias e com ele todos os bens. Apressa-te, antes que pereça a humanidade inteira. Manda o único que pode livrar da morte a si mesmo e aos demais”. Segundo Gregório Magno, a testemunha fiel no céu é Cristo ressusci tado (Moralia sobre Job 16,19). Salmo 90 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Senhor, tu foste nosso refúgio1 de geração em geração. Antes que nascessem as montanhas ou fosse gerado o orbe da terra, desde sempre e para sempre tu és Deus. Tu devolves o homem ao pó, dizendo: Voltai, filhos de Adão! Para ti mil anos são como o ontem que passou, uma vigília noturna. Tu os arrastas; são um sono ao amanhecer; renovam-se como a erva: pela manhã renova-se e floresce, pela tarde seca e a ceifam. Como nos consumiu tua cólera e nos transtornou tua indignação! Puseste nossas culpas diante de ti, nossos segredos à luz de teu olhar, e todos os nossos dias foram-se debaixo de tua cólera, consumimos os nossos anos como um murmúrio. Ainda que vivamos setenta anos e os mais robustos até oitenta, seu afã é fadiga inútil, pois passam depressa e nós voamos. Quem compreende a veemência de tua ira, quem aprecia o ímpeto de tua cólera? Ensina-nos a fazer boa conta de nossos dias para que adquiramos um coração sensato. Volta-te, Senhor! até quando? Tem compaixão de teus servos. 1morada Bibliografia 1139 14 Sacia-nos pela manhã de tua misericórdia, e todos os nossos dias serão alegria e júbilo. 15 Dá-nos alegria pelos dias que nos afligiste, pelos anos em que sofremos desditas. 16 Que tua ação se manifeste a teus servos, e a seus filhos tua glória. 17 Venha a nós a bondade do Senhor nosso Deus, consolida a obra de nossas mãos. Consolida-a, a obra de nossas mãos! 2. Bibliografia E. F. Sutcliffe, The labor and sorrow o f life, Scripture 5 (1952) 97-98. J. Herrmann, Und wenn es köstlich gewesen ist. Eine Untersuchung zu Ps 90,10, em Spiritus Domini manet in aeternum, Wittenberg, 1953, 57-70. G. Bernini, Sal 90: preghiera per Vumanità afflitta, em Le preguiere penitenziali dei saltério, Roma, 1953, 119-128. E. Beaucamp -J. P. de Relies, Ps 90. Impatiemment le Serviteur de Dieu attend un retour en grace, VieSp 99 (1958) 481-486. F. Baumgärtel - C. Westermann, Lehre us bedenken, dass wir sterben müssen. Zur Predigt des 90. Ps in der christilichen Gemeinde, MonPastTh 50 (1961) 425-439. C. Westermann, Der 90. Psalm, emFS Küpisch, Munique, 1963,344-350. S.D. Goitein, M a ’on - A reminder o f sin, JSS 10 (1965) 52-53. E. E. Pilchir, How the spider got into the Psalm, Science 151 (1966) 404405. L. Wächter, Drei umstrittene Psalmenstellen, ZAW 78 (1966) 61-69. D. Winton Thomas, A note on zeramtam sena jihejü in Ps 90,5, VT 18 (1968) 267-268. F. Hesse, Und wenn es hoch geht, so sind’s achtzig Jahre. Zum Verständnis des 90. Ps, Pastoraltheologie 57 (1968) 297-302. M. Dahood, Ps 90,4, Bib 50 (1969) 346. R. Tounay, Notes sur les Psaumes, RB 79 (1972) 50-53. A. A. Macintosh, The spider in the Septuagint version ofP s 90,9, JTS 23 (1972) 113-117. W. J. Urbrock, Mortal and miserable man: a form-critical investigation o fP s 90, SocBL SemPapers 110 (1974) 1-33. G. von Rad, Das 90. Psalm, em Gottes Wirken in Israel (ed. Steck), Neukirchen, 1974, 268-283. B. Vawter, Postexilic prayer and hope, CBQ 37 (1975) 460-470. R. 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Análise filológica 1. m ‘wn: morada; alguns manuscritos gregos e vários comentadores preferem ler m ‘wz cf. 91,9. 2. yld: metáfora; não se justifica o fierent da Vg. wthwll: polel ativo: sujeito 2- pess Deus Qim Ros, sujeito 3ã pess fem terra Phil Gun Kraus Rav; vocalizando poial passivo paralelo de yld LXX Jerôn Duhm Cast Dah. 3. tshb: Vg duplica í e lê part negativa ne convertas-, seguem-na muitos: cadere ne sinas in miseriam Sa Belarmino Teodor. d k pó; contrição Jerôn, a morte Targ Agélio, cf. Gn 3,19. 4. ky: com função de relativo LXX Jerôn cf. Ges Thes 676; com valor temporal Ros Del Duhm Gun Kraus. 5. zrmtm: denominativo de zrrn = chuva, chuvarada Del Baethgen Du triffst sie wie ein 'Wetter Hupfeld Nowack; LXX ta exoudenomata auton o Análise filológica 1141 nulo deles Vg, justifica-o Belarmino fluxus eorum. Corrigem para zr‘tm = os semeias Duhm Kraus. shnh - sono; anos LXX Vg, um ano Sir; como partic Sím, enquanto dormem Hupfeld Nowack. bbqr = TM une-o com o segundo hemistíquio, também LXX Vg; omitem Duhn Kraus. yhlp : predicado de erva, relativa assindética Joüon 158 a que se renova; predicado dos homens como coletivo, coloca a comparação. Brotar TargEcker; passar, perecer LXX Vg Jerôn, cf. Is 2,18; SI 102,27; lê hifil com valor intransitivo Hitzig cf. Ewald 127 b. 6. ymwll: polel de mil (alomorfo de ’ml) secar LXX Vg decidat Hitzig Duhm Gun Kraus; de mil / mwl ceifar com sujeito impessoal Del; idem poial passivo Phil; cf. Jó 14,2; 18,16; 24,24. 8. ‘Imnw: de ‘lm estar oculto; aion LXX, saeculum Vg, ameleias Sím, negligentias, pecados de juventude Targ. 9. pnw : marcham, desaparecem cf. Jr 6,4. klynw: transitivo Jerôn Qim = intransitivo LXX Vg Sir. kmw hgh: meditação, pensamento, murmúrio, um falar Jerôn, como um respirar no inverno Targ. Seguindo os LXX, compôs Vg a famosa comparação anni mei sicut aranea meditabuntur: a aranha parece tirada do SI 39,12, Eutímio tenta explicá-lo: são considerados como uma teia de aranha, parafraseia-o Belarmino reconhecendo que é adição de LXX. 10. bhm: a soma Del, em si Cast, omitem-no But Kraus. uorhbm: seu orgulho, soberba Ros Phil Hitzig Del Gun Kraus; afã, ímpeto Duhm Rav; pressa Michaelis; to pleion auton LXX Vg Jerôn o que passa daí (os oitenta); corrige para rbm la loro ampiezza Cast. gz: de gwz passar. hysh: funciona como advérbio de pressa, talvez infin Del cf. ketib do SI 71,12 e o acádico hiashum. LXX e Vg traduzem sobrevirá a mansidão e se remos corrigidos: pelo que parece, derivaram hysh de hshh estar inativo, o paideusometha poderia ser corrupção de petasthesometa (Ecker); alguns co mentaristas referem a “mansidão” a Deus, outros ao homem, sua senilidade. 11.wkyr’tk: como pede teu temor / respeito Ros Hitz Del. Vocalizando de outra forma, resulta um paralelo rigoroso: mi yôd e‘ ‘oz ’appeka mi ro’e tok‘ebrateka Assim Gun Kraus Rav. 12. kn: e assim Ges Thes 688 Hitzig Dah, isso Duhm Kraus. wnb’: hifil trans metáfora agrícola colhamos Del, produzamos Hitzig cf. 2Sm 9,10; Ag 1,6. Intrans Jerôn veremos. 1142 Salmo 90 Ibb hkmh: com função de adjetivo um coração sensato Phil HitzigDel Duhm Kraus Rav, o coração (miolo) da sabedoria Dah; pôr sabedoria no coração Bickell Budde Gun Kautzsch 4-Bertholet. wnbw’ Ibb hkmh: entremos pela porta de Wellhausen SBOT 14 Leipzig, 1895. 13.shwbh: volta-te, entende-se para o orante como SI 6,5; 80,15; ou afasta-te (da ira) como Ex 32,12 que leva também o paralelo hnhm. 14.hsdk: complemento segundo de sacia GK 117 z. 15.kymwt: em proporção a, em troca de LXX. ‘nytnw ... r’ynw: relativas assindéticas Joüon 129 p.q. shnwt: regido por k-, 16.yr’h: passiva; LXX leu wr’h ativa Vg respice. whdrk: tua glória; LXX Vg leu hif de drk encaminha. 17. ‘lynw: em nosso favor GB 587. kwnnhw: o sufixo pronominal refere-se ao casus pendens wm’sh. A petição acrescenta força Qim, resposta coral Olshausen. 4. Estudo global a) Gênero literário Dos gêneros clássicos oferece-se a súplica como o mais acertado para a classificação. Aplicando seu esquema, identificamos o louvor de Deus que pode funcionar como motivação, a desgraça do orante que é sua condição mortal, as perguntas e petições. No entanto, os versículos 1-2 parecem mais uma meditação sobre Deus e o homem, com algo de cunho sapiencial. Fala-se dos homens em geral sem aludir a Israel; fala-se da condição humana com imagens vegetais genéri cas. Se uma comunidade israelita pronuncia a súplica, contempla-se aqui em sua dimensão de natureza mais que de história. Remonta-se ao Gênesis, ao tempo primordial antes de qualquer diferenciação. Nisso se parece com o SI 49, de que se distingue porque este não é didático. A relação entre meditação e súplica pode-se conceber de duas manei ras: a) partindo da súplica, a descrição da desgraça própria apodera-se da consciência e de grande parte do texto; b) partindo da meditação, que desemboca numa súplica esperançosa. Nossos catálogos de gêneros não têm uma secção para a “meditação”, só concebemos ou imaginamos a recitação. No entanto, alguém que pratica habitualmente a meditação como forma de oração possui horizonte prático mais amplo para se confron tar com os salmos. Alargar o horizonte não é impor um preconceito moderno Estudo global 1143 a um texto antigo, mas antes abrir-se para perceber sinais e indícios. Pois bem, os indícios de “meditação” cristalizaram-se no saltério: a raiz hgh, contraposta a qr\ não é só voz baixa / voz alta; acrescentam-se as referên cias ao coração = mente como sede de palavras ainda não pronunciadas; outras vezes é o movimento do salmo que faz ver ou deixa entrever espaços de meditação. No caso presente, creio que compreende-se melhor o salmo como meditação. O que quer dizer duas coisas. Na etapa de produção, o salmo é a formulação poética duma meditação espiritual sobre um tema fundamen tal da vida humana. Na etapa de apropriação, é preciso abrir um espaço de meditação para acolher o texto do salmo e deixar que ressoe. (Tentarei fazêlo utilizando a paráfrase na parte exegética). b) Situação Dir-se-ia que um tema tão universal como é a condição humana não necessita dum contexto histórico único nem dum típico repetível. Não pensam assim todos os comentadores. — Seguindo a velha tradição dos “títulos” e levando a sério o títul excepcional do presente salmo, Delitzsch atribui o poema “a Moisés, homem de Deus” (= profeta). Depois busca e encontra uma conjuntura histórica em que encaixa o salmo (Nm 13-14) (tomando sem mais como história esses capítulos). Passa a descrevê-lo: “Por sua rebelião, o Senhor condenou os israelitas a perambular pelo deserto até se acabar a geração presente. Depois das gerações dos patriarcas (1), a geração do deserto passa seus dias “sob a cólera de Deus” (9); ainda que cumpram setenta e mesmo oitenta anos (10), fracassará seu empenho, pois não chegarão a contemplar a grande obra de Deus (16), quando os fizer entrar na terra prometida. A ordem de morrer (3) é a sentença ditada contra os rebeldes, que morrerão no deserto; o renovar-se da erva é metáfora da nova geração (5); “nós” ou “teus servos” (7.16) refere-se à comunidade de Israel, a aflição (15) é o tempo do deserto”. Depois Delitzsch confirma sua explicação articulada com uma série de correspondências verbais entre o salmo e o Deuteronômio, sobretudo Dt 3233: algumas genéricas, outras típicas, outras exclusivas de ambos os textos: 1. 2. 2. ’y sh ’Ihym (Dt 33,1; Js 14,6). ’dny: frequente nos lábios de Moisés dwr wdwr (Dt 32,7) m‘wn (Dt 33,27) hwll (Dt 33,27) ’l como predicado (Dt 3,24) montanhas antigas (Dt 33,15) (por exemplo, Dt 3,24) 1144 Salmo 90 6. 7. 10. 13. 15. 16. 17. mil: veja-se mlylt (Dt 23,26) ’p / hmh (Dt 9,19; 29,22.27) shnwt (Dt 32,7 exclusivo) hysh (Dt 32,35) shwbh (Ex 32,12) ‘bdyk (Dt 9,27; 32,36) ym w t (Dt 32,7 exclusivo) ‘nh (Dt 8,2s) p ‘l (Dt 32,4) hdr (Dt 33,17) m ‘sh ydynw : freqüente no Dt. A tese de Delitzsch poder-se-ia aceitar como retificação importante: não são os acontecimentos do deserto o que ocasiona e explica esse salmo, mas as narrações do Pentateuco e os poemas finais do Dt. O autor não é Moisés pouco antes de morrer, mas um poeta posterior que se deixou inspirar por textos que a tradição atribuía a Moisés. Essa inspiração é só parcial, pois muitos dados do salmo não se encaixam na situação proposta. Para a secção da cólera e os versículos imediatos pode-se aduzir a semelhança do SI 51, com os seguintes termos em comum: ‘w w n , Ingd, hsd, hw dy\ hkm h, sm h , rnn, lb. A semelhança explica-se pelo tema penitencial comum. Pela primeira secção, o salmo se emparenta com o 39, que é mais patético. E também parente espiritual de Jó e Eclesiastes, de Eclo 40,1-17 e, com outra perspectiva, de Sb 2,1-5. Mais próximo, apesar da situação diferente, é o SI 102. c) O cam po sem ântico do tem po Chama imediatamente a atenção a reiteração dos termos dias-anos, inclusive com a estranha variante masculino / feminino: dia (4.9.12.14.15), ano (4.9.10.15). Formas binárias: d w r w d w r geração após geração, m ‘w lm w ’d ‘w lm desde sempre e para sempre, bqr e ‘br manhã e tarde (e noite); os advérbios, antes, até quando, de pressa (infinitivo?); os verbos de passagem ou decadência, passar, ir-se, voar, murchar, voltar ao pó; os números como medida do tempo. Acima dessa acumulação levanta-se bem nítido, duplica do, o verbo de estabilidade kw nn h. O campo do tempo governa com rigor o poema. Em ordem descendente de duração podemos colocar: perpetuidade, geração, anos, dias, ontem, noite, vigília, manhã, tarde. Em direção ascendente colocamos: a duração duma planta, a vida dum homem, a história humana, o tempo cósmico, a perpe tuidade de Deus. Dentro do poema, as peças temporais entram em relação e formam figuras diversas, que se descobrem em leituras sucessivas. A ordenação semântica do salmo não coincide com a disposição externa do mesmo, como veremos. Estudo global 1145 d) Teologia ou antropologia Externamente, o salmo começa falando de Deus, o que é e o que faz; no final (16), fala-se de sua manifestação eficaz e gloriosa. No meio discorre a reflexão sobre a vida humana. Isso nos leva a duvidar entre duas propo sições: 1) O tema da meditação é Deus e sua duração incomparável. Par tindo dessa visão vertiginosa, o orante dirige o olhar para si e descobre espantado sua caducidade. Esta é uma proposição teológica da meditação. 2) O homem experimenta sua caducidade, e medita sobre ela; para superar ou aliviar sua tristeza, transfere a meditação para a presença de Deus, de forma que sua meditação seja oração. O resultado é o contrário: em vez de alívio, a imensidade temporal de Deus o empequenece e esmaga. A oração intensifica a tristeza e deixa como única saída uma petição limitada. Esta é uma proposição antropológica da meditação. Não ouso meter-me na mente do autor para definir a gênese do poema. Só me atrevo a dizer que, embora me incline pelo segundo, ambos são legítimos quando chegamos à fase de apropriar-nos do salmo. e) Caducidade e pecado A caducidade humana, segundo o salmo, é condição ou castigo? O pecado é causa da morte ou agravante? De momento não apelemos à autoridade de Paulo nem de Agostinho. Dir-se-á que o v. 3 cita a sentença de condenação de Gn 3, que se pronuncia depois do pecado e por causa dele: é a aplicação duma cláusula penal acrescentada ao mandato ou proibição: “o dia em que comerdes... sereis réus de morte”. Mas uma pena de morte só se pode cominar e infligir a um ser mortal (não valeria para uma pedra ou um metal). O que é condição toma-se como castigo, ou então se antecipa violentamente a execução ineludível. E possível que um justiçado maduro tenha vivido mais anos que um jovem morto em acidente ou por doença; uma catástrofe natural pode ser desgraça para uns, castigo para outros. Talvez o autor não tenha esgotado os termos do problema. Se a segunda parte (7-11) acha-se marcada pela ira divina pelo pecado, nessa mesma parte menciona-se uma longevidade e uma futilidade que parecem antes condição, e não castigo. A não ser que os setenta e oitenta anos contenham uma alusão aos cento e vinte anos de Gn 6,3 (no dilúvio, a maioria morre prematuramente e aos sobreviventes se lhes reduz a longevidade). E curioso que o orante não peça expressamente perdão dos pecados, mas sensatez para aceitar um destino e, de mais a mais, compaixão (13) para com a miséria. A vida é assim, por decreto de Deus: a ele cabe preenchê-la de sentido. 1146 Salmo 90 f) Composição Ou antes, disposição. Pelo tema e pela inclusão menor delimitam-se os versículos 7-11. A inclusão é: b’p k bhmtk / ’p k ’btk, o tema é a ira pelo pecado. Isso nos deixa uma primeira parte de reflexão (1-6), e uma terceira de súplica (12-17). Sobrepõe-se uma articulação que não coincide com os confins precisos, mas que contrapõe vigorosamente a primeira parte à terceira. É o duplo imperativo de shwb: Voltai!, intima Deus aos homens; Volta!, clamam os homens a Deus (3.13). Um procedimento reiterado no salmo é ligar dois versículos com uma palavra repetida (1.2: ‘th-, 3a.b: shwb-, 5.6: bqr hlp; 9.10: shnh; 11.12: yd‘\ 14.15: smhywm; 15.16: r’h). Outro procedimento é a acumulação de sufixos -ka e -nü na segunda e terceira parte. 5. Exegese 1-6. A primeira parte compõe-se de seis versículos repartidos em três dísticos, com alargamento de dois versículos dedicados a Deus (2.4). Seu tema é o contraste entre a duração humana e a de Deus. O poeta remonta rapidamente no tempo: humano, cósmico, divino. 1. m‘wn - morada (m‘wz = refúgio). Aimagem espacial não surpreende numa primeira leitura; em leituras sucessivas surpreende o contraste com o tema temporal. Morada ou refúgio: algo de estável no fluxo das gerações; para além delas e acessível como espaço acolhedor e seguro. Donde vem a segurança? Situa-se totalmente fora da corrente que arrasta as gerações? Parece antes que o fluir acontece dentro dum espaço, dentro dum leito que as contém e unifica a todas. Deus morada é título não corrente, Deus refúgio é corrente. A quem designa o nós? Os que falam nesse momento são uma geração definida pela contemporaneidade num lapso limitado, ou há um nós que en globa vários grupos sucessivos? Assim é: “nós” diz grupo de algum modo ho mogêneo; mas aqui se trata dum grupo que só se realiza na continuidade. Re tirando-se uns, virão outros, e uns com outros formam um nós. Capazes de acolher a Deus como grupo contínuo, ou grupo contínuo porque se acolhe a algo, a alguém estável? O mero suceder não basta para a identidade do nós; é-lhe preciso um ponto estável e comum de referência. E o tu. O Deus que trans cende o tempo, ao fazer-se um tu apelável, permite estabelecer um nós que, sem transcender o tempo, transcende e engloba cada indivíduo, cada geração. Desde o primeiro momento do poema domina a consciência do existir e falar só como geração: algo que adveio e partirá: Exegese 1147 Ecl 1,4 Uma geração vai, outra geração vem, enquanto que aterra sempre está quieta. Em vez de “a terra”, o salmo diz: Tu és nossa morada. “Quereres tu viver sempre seria fazer agravo aos que morreram para que vivesses e aos que esperam que tu vás para vir” (Quevedo, La cuna y la sepultura). Quais são essas gerações? O Cronista preocupa-se por registrá-las, para perpetuar seus nomes num escrito. Nomes e livro: bem pouco diante da consciência intensa de viver e ter um refúgio ou morada em Deus. 2. Para além das gerações humanas, o orbe com as antiquíssimas montanhas, “as velhas montanhas, as colinas primordiais” (Hab 3,6). Segundo Gn 1, as montanhas precedem à humanidade um par de dias, são praticamente contemporâneas. Ou são diversos os dias de Gn 1, enquanto dias de Deus? Não existentes fora dele e antes dele, como existe a semana antes que o trabalhador se ponha a trabalhar? A visão supõe um grande salto para trás, como na grande série “antes de que” de Pr 8. O poeta quer remontar muito além de qualquer geração israelita ou humana, e tropeça com as montanhas que já estavam aí. E por que não os astros ou as constelações como em Jó 38? Porque o poeta fixa o olhar no território humano, a terra. Que sendo seu território, dure mais que ele; que sendo olhado e calcado, lhe sobreviva...! Com os verbos esco lhidos, a criação da terra é como um parto: estará também ela condenada à morte? 3. Desde seu posto que transcende o tempo, Deus dirige-se ao homem cominando-lhe seu destino e executando-o. A história do Gênesis é evocada num versículo. O que modelou o homem dando-lhe consistência, fê-lo des trutível; o que integrou suas partes, deixa-o desintegrar-se. “Recorda que me fizeste de barro, e agora me devolves ao pó?” (Jó 10,9). Tritura-o, pulveriza-o: capricho de artesão cansado de sua obra, ou é que o artesão precisa do barro para modelar novas figurinhas? (cf. Jr 18,4). Não é essa a visão bíblica. Trata-se antes do destino de voltar: o que é filho de ’adam, e como tal filho de ’adama, pertence a ela. E não são destrutíveis as montanhas? Que erosão se enfurece com a estrutura humana que respeita as monta nhas ou não pode com elas? Jó 14: 18 19 Uma montanha inclina-se e desmorona, uma rocha move-se de seu lugar, a água desgasta as pedras; a enchente inunda as terras; e tu destróis a esperança do homem: morto o varão, pode reviver? 1148 Salmo 90 Em todo o salmo, Deus fala só uma vez, dando a ordem de voltar. Um imperativo tão genérico não poderá funcionar em outra direção? Voltai: — Para onde? Se são de terra, para a terra; mas se são de Deus, como imagem, como não hão de voltar para Deus? Voltai: Para onde voltaremos, a quem voltaremos? Não é ele nosso refúgio e morada de geração em geração? “O que vem da terra volta à terra, o que vem do céu volta ao céu” (Eclo 40,11). 4. As medidas humanas do tempo não servem para Deus. Ou melhor nenhuma medida é aplicável a Deus. 2Pd 3,8 completa a frase: “Para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia”. Atendo-nos ao salmo, poderíamos raciocinar: multipliquemos por 365.000 para começar a dizer algo de Deus. Tal proporção pode ter sentido conceituai, mas desborda a imaginação. E o que se nos passa quando contamos em anos-luz, uma medida matemática desproporcionada para nossa imaginação. Não pode mos aplicar a Deus as dimensões do espaço; tampouco em anos-luz se mede sua distância. Os conceitos e representações que chamamos de dias, noites, anos, não fazem sentido aplicados a Deus. A medida que os círculos concêntricos se aproximam de seu centro, o segmento de circunferência compreendido entre dois raios é mais curto, e vice-versa. Chegados ao centro, toda a dimensão extensa fica fora: mil quilômetros duma circunferência distante e um milímetro duma próxima são a mesma coisa. O homem emprega essas circunferências de raio diverso: um girar de tantas horas que chama dia, um girar de tantos dias que chama ano. Está Deus no centro, presente a cada ponto giratório? Pemán transpõe assim o pensamento de Raimundo Lúlio: “Que vano ha sido mi empeno de hacerte claro y preciso! Tú eres el punto indiviso que ni es grande ni pequeno, ni tiene orilla ni lado, ni llena un ser limitado que se afirma ni se niega... Díme, Amor, adónde llega lo que nunca ha comenzado!” (Homenaje a Raimundo Lulio, XXXII) Está Deus fora de todos os círculos, abarcando a todos? As duas coisas e nenhuma. Pode aparecer de improviso em qualquer momento, revelando sua ação (16) e pode prolongar sua misericórdia por mil gerações (Ex 34,7). Essa visão, que surpreende por sua grandeza, é consoladora ou de soladora? Por ora parece reforçar a melancolia do salmo: a grandeza de Deus me empequenece. Em lógica humana poderíamos argüir: se a Deus dão no mesmo mil anos e um dia, por que não nos concede mil anos? (como às personagens antediluvianas). Pouco importa: mil anos seriam a nova medida da mesma caducidade. “No túmulo ninguém discutirá por mil anos ou cem ou dez” (Eclo 41,4). Exegese 1149 5-6. Como um sonho, como a erva. Aceitando o significado proposto de zrm, parafraseio. Umas choças de adobe erguidas sobre o páramo, com a solidez de sua secura. De repente descarrega-se uma chuva torrencial, corrói-as e esfacela-as, dilui-as em brejo e as arrasta. Fica o páramo devastado com a recordação dum sonho: existiu aquele povoado de choças ou sonhamos com ele? Assim os homens da terra: “casas de argila cimen tadas de barro” (Jó 4,19): sobrevêm a chuva torrencial e teofânica de Deus, e a vida é um sonho ao amanhecer. Sim, ao amanhecer lança um broto a planta e florece para seu destino efêmero. Cantaram-no os poetas: “et, rose, elle a veçu ce que vivent les roses, l’espace d’un matin” (Malherbe). “cuna y sepulcro en un botón hallaron” (Calderôn). “amago de la humana arquitectura, ejemplo de la vana gentileza, en cuyo ser uniô Naturaleza la cuna alegre y triste sepultura” (Sor Joana Inès da Cruz). Como crescem as folhas numa árvore frondosa, uma murcha, a seguinte brota, assim as gerações de carne e sangue: uma morre e a outra nasce (Eclo 14,18). Quatro verbos neste versículo excelente por sua concentração: quanta atividade para passar mais depressa. Na meditação já se ouve o zumbido da foice, a grande foice da morte. O paralelismo bem rimado do versículo conduz a uma pausa depois da primeira parte. 6-11. A segunda parte compreende outros seis versículos, definidos pela inclusão da “ira”. Continua martelando o tema dos dias e dos anos. Se a primeira parte via o tempo humano à luz da duração divina, esta parte vê-o à luz da cólera divina. 7.0 verbo “consumir-se” pode fazer pensar numa vida malograda, num morte prematura como castigo. Na morte antes do tempo revela-se mais tra gicamente a caducidade humana. Ezequias queixava-se: “No meio da vida, tenho que marchar para as portas do Abismo, privam-me do resto de meus anos” (Is 38,10). A geração do deserto não morre no ato, seu castigo é não entrar na terra prometida; tampouco seu guia, Moisés, morre prematuramen te, mas é castigado a não entrar. Pelo contrário, um ancião pode morrer sere namente, sem que o espante a cólera divina. Inclusive um malvado, declara Jó: “Assim acaba sua vida docemente e desce serenamente ao sepulcro” (21,13). Por isso, deixando o caso da morte prematura, que pode estar sugerido pela erva “cortada”, passamos à visão não diferenciada do salmo. A melancolia dos versículos precedentes, com seu ingrediente de doçura, dá Salmo 90 1150 vez ao sentimento trágico quando duas realidades estreitamente ligadas se erguem perante a consciência: pecado do homem e ira de Deus. Na sentença “voltai” já despontava um gesto de ira, que se tornava mais espesso no aguaceiro teofânico. Agora “se revela a desaprovação de Deus” (Rm 1,18). 8. Percebemos que não é simplesmente um princípio intrínseco de desintegração o que nos faz destrutíveis, mas antes uma força extrínseca que nos consome e desarranja com sua eficácia. Ou melhor, que essa força, em vez de inibi-lo, ativa nosso princípio de desintegração. E terrível essa força, e mais terrível que proceda de Deus, “nosso refúgio”. Isso nos des concerta. Tem alguma explicação essa força hostil? Uma explicação que a domestique e serene nossa angústia, não; uma explicação que inclusive a agrava, sim. E que a provoca e a desata o nosso delito. Quereríamos esconder ou enterrar isso que nos envergonha amarga mente, e tu o agarras e o colocas diante de ti e diante de mim; e tenho que confessar que é justificada tua ira. Inclusive a mim se me ocultam movi mentos, desejos, atitudes nos antros da consciência. E tu diriges para aí teu rosto como foco que ilumina o recôndito; e tenho que confessar que tua cólera é justificada. 9. Efetivamente, é a ira de Deus que imprime essa absurda velocidade a nossos dias, que tira consistência a nossos anos. Um suspiro ou um murmúrio, ou seja, um sutil mover dos lábios, um rumor mal audível para quem o pronuncia, e se acabou; retornam a imobilidade e o silêncio. Isso é cada ano de nossa vida. Vale a pena contá-los? Formarão entre todos uma sentença memorável, ou farão uma frase sem sentido? “Ayer se fue, manana no ha llegado; hoy se está yendo sin parar un punto. Soy un fue y un será e un es cansado” (Quevedo, Ah de la vida!) 10a. Façamos a prova: não em nós, que para fazer anos temos que os ir anulando, mas nos outros. Não em qualquer um, mas nos que não malogram na vida. Na conta resultam setenta anos, com muita saúde oitenta. Uma criança imagina que setenta anos são tempo exorbitante; um jovem impaciente pensa que o tempo não avança. Logo passará esse sentimento: “La vida nueva que en ninez ardia, la juventud robusta y enganada, en el postrer invierno sepultada, yace entre negra sombra y nieve fria. No senti resbalar mudos los anos; hoy los lloro passados y los veo riendo de mis lágrimas y danos”. (Quevedo, Huye sin percibirse). Exegese 1151 10b. Já que não bastam os números, pesemos sua substância. O resultado é puro déficit: afanar-se em vão. Como se o puro afanar-se fosse o sentido da vida, já que não o é o resultado. Afanar-se para continuar vivendo e viver para afanar-se (Jó 5,6-7): Não nasce do barro a miséria, a fadiga não germina da terra; é o homem que nasce para a fadiga, como as chispas para alçar o vôo. Quando eu chegar ao final e voltar-me para olhar atrás, parecer-meá contemplar uma carreira que ganhei para perder: os anos correm velozes, eu vôo. 11. Pois se tal é o resultado da ira divina aplicada ao tempo humano, se em nossa estéril caducidade revela-se a ira de Deus, “quem poderá compreender a veemência de tua ira, quem poderá apreciar a violência de tua ira?” Mais que a duração de Deus, ultrapassa-nos sua ira: aquela nos oferecia um refúgio para além de nosso fluir sem descanso, esta nos aterroriza com seu peso imediato e incompreensível. Não a abarcamos nem a entendemos, só sabemos que é justificada. Com essa pergunta sem resposta, com essa ignorância trágica termina a segunda parte do salmo, e ocorre uma pausa. Cabe também ligar 12 com 11, unidos pela repetição de y d ’, como resposta à pergunta. No v. 12 começam os imperativos de uma série. Pode-se considerar transição. 12-17. A terceira parte está pontuada por sete imperativos mais dois jussivos. O salmo até agora foi descenso: da tristeza de ter que morrer à tragédia do pecado e da cólera divina. Ao tocar o ponto mais baixo, o orante busca sair do apuro orando a Deus. Podemos distinguir três momentos do processo de subida, ainda que os dois últimos estejam real e poeticamente sobrepostos. O primeiro é a aceitação resignada, sem ilusões: é sensatez. O segundo pede uma compensação de bens pelas desgraças passadas, ainda com algo de cálculo; como se o sofrimento fosse uma espécie de mérito para o gozo ou ao menos sua medida. O terceiro pede a fecundidade da ação. Essa terceira parte consta de outros seis versículos. 12. Com a arte de contar resignadamente os anos, o homem espera atesourar cordura. Vale a pena? Se Deus se faz de mestre, certamente vale a pena. A passagem dos anos vai dando sua colheita amadurecida: o coração amadurecerá de sensatez. Já que não podemos contar os anos de Deus nem estimar a veemência de sua ira, fiquemos com esse cômputo proporcionado a nossas forças. Iremos fazendo anos, os nossos, os que nos tocam; e essa será nossa realização: 1152 Salmo 90 “morir al paso de edad espero; pues me trajeron, llévenme los dias”. (Quevedo, Si no temo). 13. O primeiro imperativo ainda deixava bastante atividade ao ho mem: contar os anos e colher sensatez. Era condição para quanto segue. A partir da aceitação radical, pode ocorrer a mudança decisiva; se faltasse essa cordura básica, não se poderia seguir adiante. Não que o contrário seja o pecado específico a que se refere o salmo, pois aqui se fala de sensatez, não de obediência a Deus. Ainda que não se possa negar que a falta de sensatez deformará eticamente a condição humana. Contudo, a verdadeira mudança, o começo do ascenso, há de ocorrer por ação inteiramente divina, que o homem só pode suplicar. Ter sido admitido à oração, ter chegado a essa petição audaz já é muito e justifica a angústia precedente. O homem apresentando sua miséria apela à compai xão divina e, pressentindo já a compaixão, sente-se “servo”. 14-15.0 v. 13 gritava dois imperativos para iniciar o movimento. Os versículos 14-15 juntam dois imperativos de ação divina em favor do povo. Estão aliterados, no princípio de ambos os versículos, e articulam o processo em dois momentos: “sacia-nos, alegra-nos”; longe da resignação do v. 12. Pedem saciedade, que gerará gozo vitalício. A capacidade de desejar e receber define os limites da saciedade, já que a misericórdia de Deus não tem limites. A misericórdia Qisd) opõe-se à cólera: o homem sentia-se incapaz de suportar a cólera divina; considera-se, porém, capaz de saciar-se, de modo que a saciedade compense todo o sofrimento precedente. Não fica curta a petição? Compensar: por que não superar? Só até aqui chega a capacidade de saciar-se? Pôr o tempo, um tempo por própria confissão limitado, “como os anos”, parece desacerto. Deus, que desborda em ambas as direções o tempo humano, não poderia presentear o homem com algo seu que desborde sua medida temporal? Tem outras dimensões o espírito. Se é capaz de superar seus limites meditando a imensidade de Deus, não poderá superá-los desejando uma participação? Não deveria desejar e pedir segundo sua capacidade de saciar-se, mas segundo a capacidade que Deus tem de dar: “Te conozco, Senor, por lo que siento que me sobra en deseo y en afán: porque el vacío de mi descontento tiene el tamano de tu inmensidad!” (Pemán, Poesia sacra). Ou então a capacidade de saciar-se deve crescer à medida que progride a experiência. Exegese 1153 Pela manhã. A mudança ou volta a Deus alumia uma manhã nova que iniciará uma série de dias dos quais não se menciona a tarde. Manhã única e dias numerosos: é a manhã de Deus. O que não obsta que essa manhã inicial atualize seu esplendor cada manhã dos dias que restam, de modo que “pela manhã” equivalha a “cada manhã”. Mas é importante con servar o caráter inaugural do versículo 14 (compare-se com o amanhecer do SÍ57). 16-17.0s versículos finais estão organizados por um sistema simples de correspondências formais: Deus: tua ação, tua glória, tua bondade apareça, desça Homem: nossa tarefa, nossa tarefa consolida, consolida Deus é chamado ’dny, ou seja, senhor meu, dono meu, amo, que é cor relativo de “teus servos ou criados ou vassalos”. Podemos imaginar um modelo doméstico: o amo tem servos, os quais têm filhos nascidos na casa do amo, em servidão. Tocaria aos servos realizar a tarefa, ao amo dar ordens e instruções e controlar o trabalho. Em virtude do modelo, surge uma ano malia expressiva: os servos pedem ao amo que comece ele fazendo e que dê eficácia à tarefa encomendada. Ou seja, a atividade dos servos fica condi cionada pela iniciativa do amo e pela manutenção de seu apoio. Podemos ensaiar o modelo político: o Senhor é o soberano, o povo e seus filhos são os vassalos. O soberano toma a iniciativa numa ação libertadora (p‘l. SI 44,2; 64,10; 77,13; 95,9); nessa ação manifesta-se sua nobreza e honra; haverá depois de inaugurar uma relação de favor e benevolência para com seus súditos. Recomenda-lhes uma tarefa (na terra prometida). Então os vassalos compreendem que toca ao soberano dar eficácia e êxito à tarefa recomendada. E mais do Senhor que dos servos: “todas as nossas empresas no-las realizas tu” (Is 26,13). Há alguma relação entre a ação manifesta de Deus e o dar consistência e êxito à tarefa humana? A primeira parece fundacional, a segunda de continuidade. Da primeira, o homem é espectador e receptor, na segunda deve atuar. Da parte de Deus há relação: se começa, é para continuar: “não abandones a obra de tuas mãos” (SI 138,8). Enquanto servos, são tarefa sua e não pode desentender-se deles. Exigem-no o empenho inicial de sua “atuação” e a continuidade de sua “bondade”. A vida humana é “afã” (10) e “tarefa” (17), um empreender e realizar. Não só “germinar e florecer”, mas também dar fruto. Se a ação do homem é estéril, a vida mais longa revela-se frustrada. Se a ação é fecunda, realizase a vida. Por isso pede o orante um acordo do atuar divino (p í) e do humano Cm‘sh). A ação divina revela a majestade de Deus, é teofania (16), sua eternidade (2) não é inerte. Essa ação, de mais a mais, pode transmitir-se 1154 Salmo 90 à atividade humana (como turbina que move uma máquina). O atuar humano, afirmado e dirigido por Deus, é mostra de sua bondade, participa de sua eficácia e fecundidade, dá sentido e plenitude à vida. O homem será o que tiver feito: ele e Deus nele. 6. Transposição cristã O homem é o que fez. Quando o homem termina, terminam também suas obras? Se o homem “ao morrer não levará nada” de suas posses (SI 49,18), levará suas obras? Deixa-las-á como recordação? Vamos introduzir a transposição cristã com um texto que servirá de fundo de contraste (Eclo 41,11-13): 11 12 13 O homem é um sopro num corpo, mas o nome do compassivo não perece. Respeita teu nome porque ele te acompanhará mais que mil tesouros preciosos. Os bens da vida duram poucos anos, a boa fama anos sem conta. Eis o que resta: um nome que se recorda, uma fama que sobrevive. O homem poderá desfrutar de sua esperança enquanto vive; não da realidade, uma vez morto. Antes de tudo, a revelação cristã não suprimiu a tristeza de ter que morrer, também ao cristão contristai certa m oriendi conditio. E tema que se pode levar à meditação com o texto do salmo. Só que a meditação muda profundamente de sentido à luz do mistério de Cristo. Cristo assume inteira a condição humana, salvo o pecado; inclusive a morte e seu precursor o sofrimento. Em sua morte inocente e prematura revela-se, não contra ele, a veemência da ira divina. Em Cristo glorificado revela-se a ação do Pai, que é misericórdia e bondade, esplendor e beleza. Com ela começa a nova manhã sem tarde, a nova vida que é alegria e júbilo. E mostra-se que são fecundas todas as ações e paixões de Cristo. Os cristãos também, “naturalmente, estávamos destinados à reprova ção” (em etha tekna p h y s e i orges = era m u s natura filii irae, Ef 2,3). Uma “volta” de Deus nos faz voltar: Mas Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor que nos teve, quando estávamos mortos pelas culpas, nos deu vida com o Messias — estais salvos por pura generosidade — , com ele nos ressuscitou e com ele nos fez sentar no céu, na pessoa do Messias Jesus. Com essa bondade sua para conosco, por meio do Messias Jesus, queria mostrar às idades futuras sua esplêndida e incomparável generosidade (Ef 2,4-7) Transposição cristã 1155 O cristão pode contemplar a ação gloriosa do Pai e desfrutar dela Ainda que tenha que sofrer, sabe que “os sofrimentos do tempo presente são coisa de nada comparados com a glória que se vai revelar refletida em nós” (Rm 8,18). Todas as suas obras, vitalizadas pela virtude do Ressuscitado, adquirem consistência e fecundidade, “porque é Deus quem ativa em vós esse querer e esse atuar que ultrapassm a boa vontade” (F12,13). Sabe que quando morrer poderá “descansar de seus trabalhos, pois suas obras os acompanham” (Ap 14,13). Com essa esperança vai entesourando uma sabedoria cristã, que o acompanha até a manhã definitiva sem ocaso. “Depois, antecipando os bens futuros, como se já estivessem realizados, diz: Nós nos cumulamos de tua misericórdia. Por isso, no meio destes tra balhos e dores noturnos acendeu-se-nos a profecia, como lâmpada no escuro, até que amanheça o dia e brilhe a estrela d’alva em nossos corações. Felizes os de coração limpo, porque verão a Deus. Então encher-se-ão os justos do bem de que agora sentem fome e sede, enquanto desterrados do Senhor se guiam pela fé. Por isso se diz: Encher-me-ás de gozo em tua presença. Pela manhã esperarão e contemplarão. Como disseram outros intérpretes: Pela manhã nos saciamos de tua misericórdia. Então saciarse-ão como diz outro texto: Saciar-me-ei quando se manifestar tua glória. E assim diz: Mostra-nos o Pai e basta-nos; e ele responde: Mostrar-me-ei a eles. Até que isso aconteça, nenhum bem nos basta nem deverá bastar, para que fique no caminho um desejo que deve durar até a chegada. Pela manhã nos cumulamos de tua misericórdia, nos alegramos e goza mos todos os nossos dias. Aquele dia será dia sem fim. Todos os dias estarão juntos, e por isso saciam. Não dão lugar aos que sucedem, pois não há algo que ainda não seja, porque não chegou; nem deixe de ser, porque já chegou. Estão todos juntos, porque é um dia que está e não passa: tal é a eternidade... Ferva nosso espírito desejando aqueles dias, arda de sede veemente; assim nos saciaremos ali, nos cumularemos, diremos o que agora dizemos antecipadamente: Pela manhã nos saciamos de tua misericórdia, nos alegra mos e gozamos todos os nossos dias. Gozamos pelos dias que nos afligiste, pelos anos em que passamos desditas” (Agostinho). Salmo 91 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 Tu, que habitas na proteção do Altíssimo e te hospedas à sombra do Onipotente, diz ao Senhor: “Meu refúgio, minha fortaleza, Deus meu, confio em ti”. Pois ele te livrará da rede do caçador, da peste funesta; cobrir-te-á com suas plumas, refugiar-te-ás sob suas asas. Não temerás o espanto noturno, nem a flecha que voa de dia, nem a peste que se desliza em trevas, nem a epidemia que faz estragos ao meio dia. Cairão a teu lado mil, e dez mil à tua direita, a ti não te alcançarão porque seu braço1é escudo e armadura. Basta olhar com teus olhos, verás a paga dos malvados. 9 Porque fizeste do Senhor teu refúgio,2 tomaste o Altíssimo por morada.3 10 Não se aproximará de ti a desgraça nem a praga chegará até tua tenda; 11 porque a seus anjos ele deu ordens para que te guardem em teus caminhos. 12 Levar-te-ão em suas palmas para que teus pés não tropecem na pedra. 1fidelidade 2tu, Senhor és meu refúgio 3por defesa (m‘w z) Bibliografia 1157 13 Caminharás sobre leões e víboras, pisarás leõezinhos e dragões. 14 Porque me quer, pô-lo-ei a salvo, pô-lo-ei no alto porque conhece meu nome. 15 Quando me chamar, eu lhe responderei, estarei com ele no perigo, defendô-lo-ei e honrá-lo-ei. 16 Saciá-lo-ei de longos dias4 e fá-lo-ei gozar de minha salvação. 2. Bibliografia N. Nikolsky, Spuren magischer Formeln in den Psalmen, Giessen, 1927. S. Landesdorfer, Das daemonium meridianum in Ps 91, BZ 18m(1929) 294-300. R. Caillois, Les démons du midi, RHR (1937) 54-83. R. Gordis, Note on Ps 91,6, JThS 41 (1940) 39-40. I. Löw, Remarks on Ps 91, em FS Goldziher, Budapeste, 1 9 4 8 ,1, 328. O. Eissfeldt, Jahwes Verhältinis zu Eljon und Schadday nach Ps 91, WeltOr 2 (1957) 343-348. A. Caquot, Le Ps 91, Sem 8 (1958) 21-37. J. Magne, Répétitions de mots et exégèse dans quelques Psaumes et le Pater, Bib 39 (1958) 177-197. R. Arbesmann, The Daemonium meridianum (Ps 91,6) and Greek and Latin exegesis, Traditio 14 (1958) 17-31. J. de Fraine, Le démon du midi (Ps 91,6), Bib 40 (1959) 372-383. M. Sabre, Geborgenheid bij God. Ps 91, ColBibGand 7 (1961) 68-85. A. Rose, Le Psaume du premier dimanche du carême: Ps 91, AssSeign 26 (1962) 7-20. M. Mannati, Le Ps 91. Contribution à l’étude des psaumes, Paris, 1965. J. van der Ploeg, Le Ps 91 dans une recension de Qumran, RB 72 (1965) 210-217. G. D. Kilpatrick, Ps 90,1-4 (LXX), ZA W 78 (1966) 224. 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Lista alfabética Arbesmann Beaueamp Caillois Caquot Eissfeldt de Fraine Gordis Hugger Kilpatrick Landesdorfer Löw Luke 58 67 37 58 57.68 59.66 v.d. 40 71 66 29 48 72 Macintosh Magne Mannati Nikolsky Ouellette Ploeg Post Quacquarelli de Relies Rose Sabre 73 58 65 27 69 65 82 74s 67 62 61 3. Análise filológica 1.yshb: LXX Vg tomam-no como sujeito dos dois verbos finitos que seguem, da mesma forma Targ Ros Michaelis. Hitzig e muitos modernos consideram-no vocativo que se prolonga num verbo finito, cf. Joüon 121 j. 2. ’mr: lêem part Jerôn Ros que tenta justificá-lo alegando particípio com patah na segunda sílaba Dt 32,28; SI 94,9; 136,6 (em estado constructo!). Duhm considera-o falha de ortografia por yiqtol. Del respeita a primeira pess do TM e explica-o pela mudança de vozes. Lêem impor Hitzig Dah e outros modernos. lyhwh: pode-se tomar como compl indir de dizer, ou como começo do que se diz, seja vocativo com l-, seja de pertença ou causa; mas bw está na terc pess. 3. yçylk: Vg põe sufixo de primeira pess. mdbr: TM peste, o que antecipa fora do tempo o v. 6; vocalizando como constructo de dabar, que significa palavra ou fato, acontecimento. Palavra LXX Vg, morte Jerôn, morte da alma Belarmino. 4. b’brtw: com suas plumas. Vgscapulis mudando a metáfora. ysk: de skk; para a vocalização Joüon 31c. Estudo global 1159 wshrh: trad incerta, algo que rodeia: escudo, muralha? ’mtw: mudando as vogais, seu braço Dah. 5-6. y ‘wp ... yhlk ... yshwd: relativas assindéticas Joüon 158 a. mdbr: apopragmatos LXX, a negotio Vg; explicam-no: Atanásio qual quer prazer diabólico, Eutímio enumerando ações imorais, Agélio cilada peste TM Jerôn Sím, morte Targ. yshwd: leram shêd = demônio LXX Vg e seus comentadores, que explicam de modos diversos esse “demônio do meio dia”, por exemplo, Eutímio a preguiça ou os pensamentos impuros ou o desenfreio. 7. min adverbial. 9. Respeita o texto supondo mudança de falante, o orante dirige-se ao Senhor Del; supre um verbo diz atrás de ’th Hitzig. Mudam para mhsk e tra duzem: mas tu / o que és tu / quanto a ti, teu refúgio é o Senhor Lowth Wellhausen Duhm Kraus, cf. GK135 f. Considra o -y radical em escritura arcaica Dah. m‘wnk: como 90,1. 12. ys’ wnk: com um nun paragógico conservado antes de sufixo GK47 m. 60 e. 14. w’ plthw: com waw de apódosis Joüon 176 e. 16. ’rk: segundo complemento de sb‘. 4. Estudo global a) Gênero e situação Se atendermos ao tema e ao desenvolvimento, este salmo é sem dúvida um ato de confiança. Se atendermos a critérios e indícios formais, assomam gêneros diversos a partir do salmo. Os comentadores, tomando algum ou alguns dos indícios, elevam-nos à categoria definitória, em instrutiva divergência de diagnósticos: liturgia de enfermo, liturgia de asilo no tem plo, liturgia real, liturgia de entrada no templo, exortação sapiencial, cate quese. Cada tentativa de catalogação apóia-se em algum dado certo e lança mão de alguma conjetura. A maioria das propostas orienta-se para a litur gia, a qual pode ser o gênero ou a situação: um texto que fixa as fases da ceri mônia ou um texto que se recita em contexto cultual. A referência litúrgica é provocada pela mudança de vozes no salmo. b) Os falantes (prosopologia) O que se debate é em boa parte a execução do texto como ato litúrgico: em que ocasião, onde, por que pessoas. Pois bem, aceitando que é uma oração de confiança e renunciando a precisar mais o gênero, ensaimos outro 1160 Salmo 91 modo de análise, velho de séculos: a definição dos falantes (veja-se na introdução geral o capítulo dedicado à prosopologia). A sua maneira, é o que propunha Delitzsch (Análise filológica). — Três versículos começam com ky e algum pronome: 3 ky hw’ = que ele; 9 ky ’th = que tu; 14 ky by = que a mim (o ky do v. 11 tem outra figura, ainda que se pudesse tomar o sufixo -yw). Só o v. 2 apresenta um verbo de dizer; nos demais é preciso inferir o falante pelo jogo de pronomes e complementos. Partimos do esquema básico: N dirige-se a L falando de H. No jogo mudam-se os papéis de eu-tu-eles. Em nosso caso contamos com o orante (Or), um instrutor ou liturgo (Lit) e Deus. Vamos propor um esquema atendo-nos ao texto atual: 1 2 3-4 5-8 9a 9b-13 14-16 Lit Or Lit Or Lit D enuncia em terceira pessoa, ou interpela em vocativo dirige-se a Deus: enunciado programático fala ao Or de Deus: ele te protegerá fala ao orante de personagens perigosas dirige-se a Deus, repetindo sua confissão dirige-se ao orante: fala de seres hostis e protetores fala do Or Segundo essa distribuição de papéis, o orante pronuncia duas vezes sua profissão de confiança em Deus. O peso do salmo recai sobre o instrutor ou li turgo, que se encarrega de ampliar a motivação, evocando perigos para vencê-los por adiantado, para subministrar um contraforte espiritual à confiança do orante. No fim, ouve-se um oráculo de Deus, que, curiosamente, não se diri ge em segunda pessoa ao orante (como é tradicional), mas fala dele em ter ceira pessoa. Supõe-se que essa personagem aludida é a mesma que figurou no princípio do salmo e que funciona como tipo mais que como indivíduo. — Pode-se representar um texto assim dramatizado, com distribuição de papéis. A presença de três personagens em cena aclara o processo (o autor não incluiu no texto rubricas, indicações para sua execução). Também se pode recitar mentalmente, como quem lê uma cena simples de teatro. Se em geral o orante é o protagonista da oração, neste salmo roubamlhe o papel para fortificá-lo na confiança. O orante pode ser uma comuni dade, que pronuncia a profissão em uníssono, multiplando a força. Deus reserva-se a última palavra. — Alternativa. Corrigindo 9a, pode-se englobar a sentença no discurso do instrutor: de repente se dirige a Deus em segundo pessoa ou cita de passagem uma frase do orante. A correção tem leve apoio documental. O sentido do conjunto não muda substancialmente. Outra conjetura é supor que 9a seja um estribilho que o orante repete várias vezes, alternando com o instrutor. E conjetura impossível de provar, que pode constar como sugestão para nossa apropriação e execução. Estudo global 1161 c) As outras personagens (1) — Comecemos pelo famoso quaternário dos versículos 5-6. Ainda que a “flecha” seja arma empírica conhecida, o grave dessa seta é que voa sem saber donde nem aonde; com um disparo ao acaso (recorde-se a morte de Acab em campanha, lRs 22,34). Os outros três seres estão personificados e pertencem a um mundo que o israelita não compreende nem controla. O primeiro chama-se Espanto: não como efeito psicológico, mas como objeto e causa que atua de noite. O terceiro chama-se Peste, aproveita-se da escuridão para seus movimentos. O quarto chama-se Epidemia, está à espreita quanto mais brilha o sol. Aliados, os quatro formam um esquadrão terrorífico que ameaça o homem sem cessar e com armas incontroláveis. Entram no salmo elementos mitológicos ou crenças populares em espíritos malignos? Podemos ensaiar duas resposta. — Acudindo à literatura religiosa da Assíria e Babilônia, encontramos dois tipos de orações com seu ritual: um contra feitiçarias, outro contra espectros e almas de defuntos. Interessa-nos aqui porque falam de perse guição incessante, dos males físicos e mentais que causam, e enumeram tipos de demônios e espectros (Seux 414-442): Seja um Utukku maligno, um Alu maligno, um espectro maligno, a Lamustu, o Labasu, o Ahhazu, o Lilu, a Lilitu eu o jovem Lilu ou o maligno sem nome (Seux 433). Seja um Utukku maligno, um Alu maligno, um espectro maligno, um gallu inimigo, um deus maligno, um rabisu maligno, a Lamastu ou o Labasu ou o Ahhazu, o Lilu, a Lilitu, ou [a jovem Lilu] o Promotor do mal, o Mal Total e todos os que têm nome (Seux 437). Pega-me sem descanso, persegue-me sem cessar todo o dia aterroriza-me sem cessar toda a noite (Seux 416). Que não se aproxime, que não me alcance (Seux 418). Buscou-me, voltou-se contra mim na vigília do crepúsculo, na vigília da meia noite, na vigília da alvorada, cada dia me penetra (Seux 420). Estou enfermo de enfermidade que tu, ó Deus, conheces, que eu não conheço, que ninguém conhece, porque um espectro familiar me aflige (Seux 425). 1162 Salmo 91 Na cama aterroriza-me sem cessar, aterroriza-me e espanta sem cessar (Seux 437). — Não podemos postular uma dependência formal e imediata, pode mos apreciar certo parentesco no modo de conceber e explicar fenômenos estranhos, em que a ignorância das causas intensifica o medo e obriga a imaginar explicações. Em Israel, como em povos vizinhos ou distantes, existe uma crença difusa em espíritos malignos, seres misteriosos, influências arcanas (os italianos ainda chamam de “influenza” a gripe, ou seja, influência dos astros; fóssil linguístico de velhas crenças). O NT faz-se eco dessas crenças. Mas devem-se notar as diferenças. Na Babilônia, um remédio era invocar as divindades: Ea, Samas (o mais freqüente), Marduk; também conjura-se o deus infernal da morte, apela-se aos manes, inclusive ao espectro anônimo causante dos males. Ritos mágicos acompanham a súplica. Pedese que sejam destruídos ou reduzidos à impotência ou que se aplaquem. No salmo campeia o domínio inconteste de Yhwh sobre todos os “espíritos” (chamemo-los assim). O orante não deve temê-los, inclusive poderá pisálos. Não só os demônios, mas também deve vencer seu medo. d) As outras personagens (2) — No v. 13 encontramos outro quaternário: dois tipos de leões, animal conhecido e temido, emblema de força animal mortífera. Mais sinistra ainda a áspide ou víbora. O Dragão pertence ao mundo da fantasia mitológica e costuma ser marinho (faltam as aves de rapina na lista). O Dragão pode ser a visão imaginativa do caos primordial e sempre ameaça dor, a versão positiva do nada devorador. — Outros seres completam o exército hostil. O v. 8b diz “os malvados”, termo genérico que se pode aplicar a homens e poder-se-ia aplicar a personificações de seres “malignos”. O v. 10 é personagem metafórica conhecida que não tem especial relevo aqui. — A todos os inimigos se opõem seres protetores, “enviados” do Senhor: mensageiros, encarregados, anjos. Têm figura humana (sem asas), capazes de transportar voando e seguros no caminhar. e) Composição e eixo imaginativo — A composição está definida pelo suceder dos falantes. Pode-se tomar 1-2 como introdução que define tema e tonalidade; 3-13 como discurso do liturgo, interrompido talvez por uma confissão do orante em 9a; 14-17, oráculo de Deus. Pode-se surpreender um movimento alternante e crescen Exegese 1163 te: porque Deus protege, o homem confia; porque o homem confia, Deus o protege. — A proteção divina articula-se em dois momentos: refúgio e caminho. O refúgio indica um recinto fechado e protegido que pode estar no alto, inacessível: é amparo, sombra, asas e plumas, escudo e adarga. Da realida de empírica do templo ascende-se à relação pessoal com Deus. Caminho, ainda que pareça contrário, é antes complementar. No refúgio Deus está presente, para o caminho despacha os seus encarregados. O mundo dos espíritos tenta insinuar-se no recinto do refúgio, como flecha lançada desde fora; o mundo das feras aguarda pelo caminho. O autor dá espaço a referências bélicas em 4b e 7b. Pode-se emparelhar o salmo com o 27, especialmente 27,1-7.13-14; também com o SI 3. 5. Exegese 1-2.0 começo apresenta uma construção sintática difícil. Uma tradu ção literal, atenta à vocalização massorética, soa assim: “Habitante no amparo do Altíssimo, à sombra do Todo-poderoso se hospeda, digo ao Senhor: Refúgio meu ...”. E uma apresentação do orante típico em particípio? (recurso freqüente nos Provérbios). E um vocativo que pronuncia o liturgo antes de falar em segunda pessoa ao orante? Alguns mudam sem violência o particípio em imperativo. Apesar das dúvidas, o sentido geral está suficientemente claro: a exortação é para alguém que sabe e quer confiar no Senhor. Não é preciso supor que se trate de sacerdote ou levita que reside habitualmente no templo, posto que o Senhor, do templo, protege toda a comunidade. Quatro nomes divinos se apertam em quatro hemistíquios. Altíssimo, título tomado de culturas religiosas vizinhas; título de avoengo (Gn 14) e favorito do saltério (21 vezes). Sadday, que costumamos substituir com os LXX por Todo-poderoso: raro em profecias e salmos, favorito de Jó. Yhwh, que reaparece só em 9a. Deus meu, que coloca Yhwh na categoria dos “deuses pessoais”. Com esse quaternário não resta lugar para outro, porque o Senhor ocupa todo o espaço: o quaternário do Único contrasta com os quaternários que vão sobrevir. Refúgio é título freqüente no saltério (12 vezes); um pouco menos "fortaleza”. Confio: estabelece o tema e a tonalidade. 3. A rede ou armadilha do caçador usa-se com freqüência como metáfora ou comparação. Podem-no ilustrar dois textos sapienciais: 1164 Salmo 91 Pr 7,23 Como pássaro que se precipita na armadilha. Ecl 9,12 Como pássaros pegos na armadilha. Em paralelo dbr hwwt, que é, literalmente, funesta. Mudando a voca lização, obtém-se o genérico palavra, assunto. Uma palavra funesta pode ria ser um malefício ou difamação (cf. SI 38,13; Pr 17,4; Jó 6,30). Aconteci mento, assunto: DBHE dbr A 2. 4. Plumas: o hebraico costuma mencionar as penas de preferência no ato de voar: “Quem me dera plumas de pomba para voar” (SI 55,7); “levouos sobre suas plumas” (Dt 32,11). O salmo fixa-se no ato de cobrir e proteger, com um verbo skk em que ressoa o tema da tenda. Com as “asas” ocorre o contrário. Ainda que alguns textos as refiram ao voar: “estendeu as asas e os tomou” (Dt 32,11); “levei-os em asas de águia” (Ex 19,4), a maioria dos usos no saltério referem-se à proteção, e podem ir acompanhados de “sombra, esconderijo, refugiar-se”. Se a ima gem das asas alude também aos querubins do camarimX?) no templo (Sancta sanctorum), então é preciso estabelecer uma proporção: como os querubins cobrem com suas asas a arca, assim o Senhor pessoalmente co bre seus fiéis. Na imagem poética transcende-se a representação material. 5. Não temerás. Quando Deus pronuncia um oráculo de salvação, costuma dizer: Não temas. Aqui ocorre como se o instrutor estivesse comentando essa frase sóbria de Deus. E para comentá-la, convoca em suas palavras os seres mais ignotos e temíveis. Um texto babilónico falava do “mal sem nome”; os do salmo têm um nome que não diz sua essência nem sua tática destrutiva. Quanto à flecha, com nome e função conhecidos, não leva firma nem destinatário. Acertadamente começa com o Espanto noturno. Uma oração babilónica diz “horripilante” que faz eriçar os cabelos, e menciona duas divindades ou demônios noturnos: o Lilu e a Lilit. Ct 3,8 menciona os terrores noturnos, que em São João da Cruz se convertem em “los miedos de la noche veladores”. Ninguém no AT o descreveu como o livro da Sabedoria, no capítulo dedicado à praga das trevas (c. 17). Pode servir de comentário ao condenado do quaternário nefando: 4 Nem o rincão que os retinha os salvaguardava do medo; retumbavam a seu redor ruídos aterradores e se lhes apareciam tétricos fantasmas de lúgubres rostos. 14 Durante aquela noite realmente impotente, saída dos rincões do impotente Abismo, enquanto dormiam o mesmo sono, 15 ou os perseguiam monstruosos espectros, ou ao dar-se por vencidos ficavam paralisados, pois invadiu-os medo repentino e inesperado ... Exegese 1165 6. A Peste é terrível por sua força de contágio e sua violência mortífera. O poeta personifica-a, Jó chama-a de “Primogênito da Morte” (18,13). Jeremias e Ezequiel a mencionam entre as pragas (17 e 12 vezes); ainda assoma no Apocalipse. E não é preciso recordar a “morte negra” que cobriu a metade da Europa com seus mortos e seu terror. A peste age “no escuro”: se a repartição de horário nos dois hemistíquios é conseqüente, o que o meio-dia é para o dia, será a vigília intermédia (segunda) para a noite. A “Epidemia” corresponde a qtb, que se lê quatro vezes no AT. Associada à tormenta em Is 28,2, ao Abismo em Os 13,14, parte de uma série de desgraças em Dt 32,23-25: desgraças, flechas, fome, febre, epide mia, dentes de feras, veneno de serpentes, espada e espanto. 7ab + 4c. A imagem é militar, em termos hiperbólicos. Quem é o sujeito de cair ou aproximar-se? Uns pensam em dardos ou armas de atirar, que dei xam incólume o orante, porque Deus “o escuda”; mas em nenhum caso se pre dica o verbo npl de armas de atirar, ao passo que é freqüente dito de homens, sobretudo de “caídos” em campanha. Fica a outra alternativa, também difícil: como os mil caem “ao lado, à direita”, tratar-se-ia de companheiros na bata lha ou de concidadãos numa epidemia. E preciso ler o versículo como encare cimento hiperbólico, sem lhe tirar demasiadas conseqüências lógicas. Compa re-se com o SI 3,7: “não temerei um exército de dez mil”; ou a copla dedicada aDavi: “Davi matou dez mil” (ISm 18,7); ou Dt 32,30: “mil põem em fuga dez mil”. Leio aqui 4c, que menciona (provavelmente) o escudo redondo ou adarga, embraçada a meia altura, e o escudo alto e recurvo que cobre o corpo, e que muitas vezes é sustentado por um escudeiro. Aceito a sugestão de que a vocalização “fidelidade” é espiritualização do original ’mh, que no AT se usa com freqüência como unidade de medida, côvado, braça. 8. Este versículo transfere-nos à esfera ética: as mortes interpretamse como castigo ou retribuição dos malvados. Ou simplesmente muda de registro, para dar a entender que, quando Deus enviar seus castigos aos malvados, protegerá o inocente. Um conceito afinado de retribuição, que encontramos em outros lugares. 9. Aqui começa segunda onda, mais breve, segundo costume do saltério. Arepetição da capo podejustificar e explicar mudança abrupta do discurso, a fra se repetida do primeiro solista. A “morada”, sinônimo de habitar e hospedarse tl), alude ao direito de asilo transcendido: o Altíssimo em pessoa é a morada. 10. Praga: pode significar uma enfermidade (Lv 13-14), ferida, golpe ou qualquer desgraça (DBHE). 11. O serviço “angélico” de encarregados divinos para se contrapor a demônios e feras. E mais freqüente a designação anjo do Senhor, como manifestação sua ou como substituto: 1166 Salmo 91 Ex 23,20 Enviarei um anjo diante de ti para que cuide de ti no caminho e te leve ao lugar que preparei. 32,34 Agora vai guiar teu povo ao lugar que te disse: meu anjo irá diante de ti. 33,2 Enviarei diante de ti meu anjo para que expulse os cananeus... SI 34,8. O anjo do Senhor acampa em redor de seus fiéis e os protege. O livro de Tobias “domestica” esse anjo tão importante, impõe-lhe o nome de Gabriel e põe-no a serviço de uma família no desterrro. O autor do salmo distribui as funções: no templo é Deus em pessoa, pelo caminho são seus encarregados. 12. Suspeito que esse versículo seja a origem da expressão castelhana “llevar en palmitas”. Este é o versículo citado por Satã em Mt 4,5 e paralelo. 13. Os hebreus têm quatro termos para designar o leão ou quatro espécies de leões: ’ryh, lby\ kpyr, shhl. Neste versículo figuram dois: ptn é nome genérico de ofídio venenoso; tannln é um dragão marinho mitoló gico. Em Enuma Elis, ao se dispor Tiamat a dar batalha aos deuses, encarrega a confecção de armas e monstros terroríficos: “A víbora, o dragão e a esfinge, o leão, o cachorro raivoso e o homem-escorpião, poderosos leões demoníacos, o dragão voador, o centauro” I, 140-142 (ANET 62B). No final da batalha, Marduk fá-los prisioneiros e “os pisa” (IV, 118). Pisar o inimigo é gesto de vitória (Is 26,6; 41,25; 63,3). 14-16. Oráculo de Deus. Sete verbos na primeira pessoa enunciam a ação de Deus, três versículos na terceira pessoa a ação do homem. Salvo no terceiro, “chamar-responder”, não se dá correspondência lógica definida. No centro da série e sem verbo ergue-se a fórmula mais sóbria e substancial; literalmente, “com ele, eu no perigo”. A forma do oráculo é muito elaborada: um perfeito quiasmo em 14; abc cba; outros menos marcado em 16 ab ba; uma série insistente de rimas em -ehü; um ritmo curioso de rigor e alternância (3 + 3 2+3+2+3+2). — Ações do homem. Querer: quando se usa hshq em sentido próprio significa enamorar-se: o jovem Siquém de Dina (Gn 34,8), um homem de uma mulher (Dt 21,11). Depois se transfere ao amor ou enamoramento do Senhor por seu povo (Dt 7,7; 10,15); no salmo significa o amor afetuoso do orante para com Deus. Conhece meu nome: conhece-o e reconhece-o, usao na relação pessoal, com ele me chama ou invoca. Há correspondências entre conhecer o nome e pronunciá-lo chamando: como categoria ou grupo de “invocadores de seu nome” (SI 99,6); “os povos que não reconhecem, que não invocam teu nome” (Jr 10,25); qr’ bshm (Is 12,4; 64,6; SI 105,1; Transposição cristã 1167 116,4.13.17). (Creio que o salmo é anterior ao constume de não pronunciar o nome de Yhwh). — Ações de Deus. São comuns pôr a salvo, libertar, responder; as outras são específicas, sgb em piei é pôr no alto, em lugar inacessível e seguro. Honrar é raro tendo Deus como sujeito (ISm 2,30; Is 60,13). Saciar de longitude de anos é a longevidade como bênção clássica. Fazer des frutar (r’h b-) permite que a última palavra do salmo seja “minha sal vação”. O orante leva para casa a instrução de experiente e o oráculo do Senhor. Pode confiar: se está no templo, está sob as asas de Deus; se está em “sua tenda” (10), não corre perigo; se vai pelo caminho, anjos o acompanham (11). Pode vencer o temor (5) e confiar (2). 6. Transposição cristã Na narrativa das tentações de Jesus no deserto, o tentador cita os versículos 11-12 do salmo para defender sua proposta (Mt 4,5ss; Lc 4,9-11). Essas citações põem em marcha nossa reflexão. — O jogo é engenhoso: o diabo tenta a Jesus para que Jesus tente a Deus, e para isso tira do gonzo alguns versículos, todo um salmo, da espiritualidade hebraica. Todo o salmo é instrução, profissão e ratificação da confiança. O diabo pretende deformar a confiança em presunção e :emeridade. Tenta fazer com que Jesus, em vez de apoiar-se na promessa ie Deus, se aproveite dela para exibição espetacular. Não são asas de Deus nem palmas de anjos; são asas de ícaro fabricadas para um salto mortal. A resposta de Jesus é categórica, e é outro versículo da Escritura Dt 6.16). Agudamente observa Eusébio que o diabo não inclui na citação o v. 13, “caminharás sobre a áspide”, porque sabia que o Messias haveria de caminhar sobre ele e seus rebeldes. — Para vencer todo medo, o salmo conjura e exorciza o poder de algumas criaturas demoníacas e de um dragão mitológico rebelde a Deus. Agora ocorre que o demoníaco e o Satã ou Rival está aí, personagem dramática no deserto. Não terrorífico, mas insinuante; não com ameaças, mas com ofertas. O rival de Deus apresenta-se com múltiplas máscaras para sua ação; o salmo enuncia umas quantas intimidatórias. Jesus no evangelho o desmascara. — Pedro escolhe uma das máscaras, leão, e a identifica. Opõe-no à fé, que é raiz de confiança, e numa espécie de oráculo promete a proteção divina: Salmo 91 lP d 5,8 Desembaraçai-vos, sede vivos, pois vosso adversário o diabo, vos rodeia como leão a rugir, procurando a quem devorar. 9 Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge vossos irmãos espalhados pelo mundo. 10 Depois de breve padecer, Deus, que é todo graça e que vos chamou pelo Messias à sua eterna glória, ele em pessoa vos restaurará, firmará, robustecerá e dará estabilide. Salmo 92 1. Texto 2 3 4 5 É bom dar graças ao Senhor e tocar em teu louvor, ó Altíssimo, proclamar pela manhã tua lealdade e tua fidelidade de noite. Com harpas de dez cordas e com alaúdes, sobre harpejos de cítaras; porque tuas ações, Senhor, são minha alegria, e meu júbilo as obras de tuas mãos. 6 Quão magníficas são tuas obras, Senhor, quão profundos teus desígnios! 7 O ignorante não os entende, o néscio não os compreende. 8 Ainda que cresçam como erva os malvados e floreçam os malfeitores, 9 serão destruídos para sempre. Tu, porém, Senhor, és sempre excelso. 10 E certo, Senhor, teus inimigos, é certo, teus inimigos perecerão, os malfeitores se dispersarão. 11 Eleva-se meu chifre como de um búfalo, estou ungido com óleo fresco. 12 Meus olhos verão a derrota de meu rival. Quando se levantarem contra mim os perversos, meus ouvidos escutarão: 13 O honrado florescerá como palmeira, elevar-se-á como cedro do Líbano, 14 plantado na casa do Senhor, florescerá nos átrios de nosso Deus. 1170 Salmo 92 15 Na velhice continuará dando fruto e estará verdejante e frondoso, 16 proclamando que o Senhor é reto, “Rocha minha, em que não há maldade”. 2. Bibliografia A. H. Golbey, The Unicom in the OT, AJSLL 56 (1939) 156-296. J. Klotz, Notes on the Unicom, ConTM 32 (1961) 286-287. N. M. Sarna, The Psalm for the Sabbath Day, JBL 81 (1962) 155-168. H. Donner, Ugaritismen in der Psalmenforschung, Z A W 29 (1967) 344346. M . Dahood, Ps 32,5; 77,14; 92,10; 118,24, Bib 52 (1971) 117-123. S. E. Loewenstamm, Balloti beshãmàn ra‘anan, TJF 10 (1978) 111-113. J. Magonet, Some concentric structure in Psalms, HeyJ 23 (1982) 369-372. Th. Booij, The Hebrew text o fP s 92,11, VT 38 (1988) 210-214. 3. Análise filológica 2. Observe-se a marcada aliteração em l-, que segue no v. 3. 4. A tríplice repetição de ’ly produz contraponto rítmico. 5. m‘sy: poderia ser sgl com a terceira radical Y conservada. 6. Observe-se a aliteração em m-, 8. wyçyçw: forma finita atrás de infin com prep Joüon 124 q. Ihshmd: eqüivale a final ou consecutiva: é para, cf. Jó 27,14; Jr 17,2; Is 66,2. 11. wtrm: ou hif 2a pess masc sgl com sujeito Deus, ou hif intrans 2a. fem sgl. blty: de blh - gastar-se, donde envelhecer to geras mou LXX senectus mea Vg, semelhante Sím Jerôn Sa Genebrardo Baethgen. De bll = ungir: qal instrans Del, passivo Dah, Qimchi propunha as duas alternativas, na variante trans suplindo compl minha cabeça. Corrigem para bltny: 2~ pess + suf Olshausen Duhm Gun Kraus. bshmn r‘nn: com óleo fresco: assim quase todos, Sím como oliveira verdejante; Vg. misericórdia, por confusão fonética de elaio com olei. 12.bshwry: retém um subs do tip gwr çwr Del; contração fonética de shrry Hitzig cf. Ewald 160 a. Corrigem para shwrry ou srry Duhm Gun. tsm‘nh: verbo que com ò- rege o segundo hemistíquio, paralelo de tbt b- que rege o primeiro. Dah e outros lêem pausa em mr’y m e tomam o que segue como introdução de discurso direto 13-16. Estudo global 1171 16. çwry: título em aposição a yhwh, ou casus pendens ao que segue frase com waw de apódosis GK 143 d. ‘Ith: qere ‘wlth, talvez com desinência de acusativo conservada GK 90 g. 4. Estudo global a) Gênero e situação O tom jubiloso, o acompanhamento musical e a motivação que são as obras divinas dizem-nos que neste salmo temos um hino. Abre-se com um canto, encerra-se com uma proclamação (Ihgyd). Alguns aspectos pouco comuns conferem-lhe seu perfil individual. — O primeiro é que tematiza o gozo e o ato de louvar. Os hinos ordinários começam com um imperativo: “cantai”, ou com um coortativo: "vou cantar”; este transforma o ato em sujeito gramatical e dele predica uma qualidade: louvar ao Senhor é ação boa e agradável. Outros introdu zem o gozo em forma adverbial: “cantarei com alegria”; este se volta a observar o sentimento e sua causa: “o Senhor me enche de alegria”. Deste modo, a loa é de Deus e da música, da música em honra de Deus. A canção brota da alegria, a alegria é infundida por Deus; de modo que o homem toca seus instrumentos sendo instrumento movido por Deus. — Outra peculiaridade é a veia sapiencial. Explicita o versículo 7, a partir do qual se precisa o anterior e se descobre o estilo sapiencial da comparação vegetal, o uso de “honrado” (çdyq) como categoria, a retribuição constrastada de maus e bons. Pelo contexto sapiencial definiremos o alcance e função dos quatro versículos finais. O sapiencial não sabe prescindir da intenção didática. O orante tem um pé na canção e outro no ensinamento. Pela primeira parte de Provérbios e por várias passagens do Eclesiástico sabemos que os mestres passam às vezes do ensinamento ao hino religioso. O mestre ensaia seu talento modesto e seu artesanato poético numa canção, trabalhando com motivos tradicionais. Seu talento musical não podemos julgar. Introduz-se em sua tarefa um problema que resolverá cantando, sem entrar a fundo. b) O problema da retribuição No v. 8 assoma o problema clássico da retribuição: a prosperidade dos malvados. Como e por que se apresenta no salmo? Podemos imaginar duas explicações: 1) O mestre põe-se a cantar com todo entusiasmo: começa com uma introdução instrumental, ataca em seguida o tema, as obras e ações do 1172 Salmo 92 Senhor. De repente assoma à sua consciência a objeção: sim, “são grandes”, mas o que dizer da prosperidade dos malvados? O problema é “fundo”, mas tem fácil solução; é questão de inteligência. Explica-se que o ignorante não o compreenda. Basta considerar o desenlace, que Deus tem previsto. Naturalmente, o orante não forma parte do grupo dos néscios ignorantes, pois sabe meditar sobre “os planos” de Deus. 2) O autor por si ou por outro viu-se confrontado com o problema da retribuição. Responde tomando-o como ponto de partida para a reflexão que proporá cantando, combinando a didática com a lírica; de maneira simples, cantável, sem aprofundar o assunto. Também o mestre do SI 49 cantava com a lira sua instrução. O problema irrompe inesperadamente no canto; o problema é a origem do mesmo. Eis aí as duas respostas genéticas. Se uma resposta segura é difícil, a proposição servir-nos-á para exercício de comparação. O SI 92 constitui parte da família do 37 e do 73. O problema da retribuição é dramático no SI 73: conduz a um fracasso da reflexão humana, que é salva de um salto pela revelação divina. O mestre do SI 92 não vive dramatica mente o problema: roça-o, canta-o, sente-se superior a ele. Mais próximo parece-me o SI 37, que também tem ponto de partida dramático: o que dizer das vítimas inocentes dos malvados triunfantes? A resposta é meditação, ensino, exortação; também emprega a comparação vegetal, menciona a velhice, antecipa como resposta o desenlace. Comparado com esses dois salmos, o presente sai perdendo, mas fica iluminado. A última frase do salmo é uma nota de teodicéia: “em minha Rocha não há maldade”. c) Composição — O primeiro que observamos é uma inclusão formal dos versículos 2 e 16, formada pelo tema e pela repetição de Ihgyd; mostra-o um esquema: anunciando tua lealdade tua fidelidade anunciando que Y hwh é reto minha Rocha sem delito A inclusão não é puramente formal, mas ensina-nos duas coisas. Primeiro, que entre as qualidades admiráveis que canta o orante encontram-se a lealdade e a retidão; qualidades que regem “ações e projetos” do Senhor: louvor e justificação de Deus. O segundo refere-se ao orante. Considerando que o sujeito de anunciar é no v. 16 o ancião honrado, o final diz que ao cabo dos anos pode exercitarse numa atividade que no começo declarou “boa”, agradável e gozosa. Que, depois de longa experiência, pode fazer balanço e “declarar que o Senhor é reto” e sem mancha. O ancião do SI 71,17-19 propõe “relatar as maravilhas Estudo global 1173 de Deus”; o do SI 37,25 declara: “Fui jovem, já sou velho: nunca vi um justo abandonado”. — O que podia ser simples introdução do hino cresce até formar uma parte, um hino minúsculo: canto e motivação. O nome Yhwh pronuncia-se três vezes, a primeira em paralelo com ‘lywm. O v. 7, com seu demonstrativo “isto”, serve de transição: é o desígnio, é sua descrição. — No centro do salmo encontramos uma disposição paralela: 8-10 O Senhor eleva-se glorioso sobre seus inimigos aniquilados. 11-12 O orante eleva-se triunfante sobre seus inimigos vencidos. São os mesmos os inimigos? São duas vitórias? Se os inimigos não fossem os mesmos indivíduos, seriam da mesma categoria: malvados, malfeitores, perversos. A vitória do orante é triunfo de Deus: o orante não canta suas proezas pessoais, mas as de seu Deus. A vitória do orante articula-se em dois momentos: ver e ouvir, de modo que o ouvir sirva de introdução aos versículos restantes (Análise filológica). — Propus tomar 13-16 como texto da mensagem que “escutam meus ouvidos”. Que tipo de mensagem é? Quanto à forma, temos que recordar outros salmos em que se interpõe ou se introduz outra voz (81,9; 85,9): “Escuta, povo meu ... Ouço uma mensagem desconhecida”; “Escutarei o que diz o Senhor”; também 91,14-16 sem introdução. Costumam-se explicar esses casos como introdução de oráculo divino na oração, seja resposta ou admoestação. Creio que no salmo presente não escutamos um oráculo divino, mas uma instrução sapiencial, tradicional, pronunciada pelo mestre cantor. Seria fácil entrescolher de Provérbios uma antologia ponderando as venturas do “hon rado” (Salmos e Provérbios são os dois livros que têm a maioria de presença de çdyk, em geral como categoria). Essa mensagem ou instrução generaliza a experiência pronunciada em primeira pessoa em 11-12. Repetindo do v. 8 a imagem vegetal e o verbo prh, o final olha de soslaio os malvados. Em conclusão, o salmo desenvolve coerentemente uma idéia. Sem apelar a recursos salientes, deixa-se levar por uma lógica interna, apta para o ensinamento. Uma redução a esquema fa-lo-á compreender: E grato, Senhor, louvar tua fidelidade, pois me alegram tuas ações e projetos arcanos (que o néscio não compreende): Tu triunfas de teus inimigos, os destróis, e a mim me fazes vencer. Tal é o destino do honrado: prosperar e louvar tua justiça. É preciso encher de carne esse esqueleto para em seguida lhe apor música. 1174 Salmo 92 d) Imagens — A dupla imagem vegetal, erva e árvores corpulentas, é de cunho sa piencial, como mostram: no saltério: 37,2.35; 90,5s; fora do saltério: Jó 8 ,lls; Jr 17,6-8; Pr 11,28. O poeta dá à imagem um toque pessoal introdu zindo a palmeira, pouco freqüente na literatura bíblica, usando o verbo raro nwb = prosperar, crescer; sobretudo transladando suas árvores ao recinto do templo. Com esse artifício, o salmo entra em comunicação com alguns textos do livro de Isaías: 60,21 É o broto que eu plantei, a obra de minhas mãos, para glória minha. 61,3 Chamá-los-ão Carvalhos do Justo, plantados para a glória do Senhor. Recordemos também “os dois rebentos de oliveira” (Zc 4,3.11-14) que representam Zorobabel e Josué. Dado o comum da imagem, não se pode tirar dela elementos para datar o salmo. — Para a imagem do chifre, veja-se o SI 75. A menção de búfalos (ou bisontes) enlaça-se com textos tradicionais como Nm 23,22; 24,9; Dt 33,17. 5. Exegese 2. A forma do começo é muito cuidada. Além da aliteração, já aponta da, convém escutar o ritmo. Tomando nossa acentuação usual do hebraico e representando com o sílaba átona e com 6 sílaba tônica, a fórmula é a seguinte: ó ooó ooó ooó ooó ooó. Esse é o único salmo que começa com o adjetivo “bom”, numa declara ção de valor que se aproxima da bem-aventurança ou macarismo. O mais próximo é o SI 147: “Louvai ao Senhor (halelüYâh), pois é bom tocar para o nosso Deus”. O nome divino Yhwh soará no salmo sete vezes. 3. As virtudes de Deus escolhidas são lealdade e fidelidade, uma parelha corrente. Não tiraríamos sentido especial dela se não dispusésse mos do antecedente do SI 89, onde têm função importante. À luz da com posição do salmo presente, polariza-se o sentido dessas virtudes: ainda que o projeto de Deus seja arcano e sua conduta nem sempre fácil de entender, o honrado pode descobrir gozosamente que a conduta de Deus é regida por lealdade e fidelidade a um compromisso de retribuição. O ritmo poético do paralelismo ajusta-se ao ritmo sideral de noite e dia. 1175 Exegese 4. Dos instrumentos citados não sabemos muito. O primeiro tem nome de dez, talvez o número de cordas; os outros são lira e cítara (só corda). O termo hgywn sugere um rumor ou murmúrio como de sussurro: nós o interpretamos por arpejos ou zangarreio, enquanto diverso do ponteado. 5-6. Ações e projetos. E importante observar a distribuição das peças no quaternário: ação / obras / obras / desígnios. Formalmente, a última tem que equilibrar três peças de ação. O homem é capaz de sentir gozo e admiração ao perceber ou descobrir a ação de Deus na vida, mas chega um momento em que da ação sobe ao projeto ou desígnio. As ações foram a execução de projeto, e este se revela arcano, ‘mq - profundo não tem em hebraico o mesmo valor que entre nós, mas significa o incompreensível. O homem esforça-se para puxá-lo à superfície para que perca sua profundidde ' obscuridade, para entendê-lo. Algo mais que simples gozo e admiração: Pr 20,5 Água profunda é um plano na mente: o homem hábil o surripia. Pode o homem surripiar a Deus seu projeto? Pode deduzi-lo das ações ou pode recebê-lo por revelação. Is 55,8s diz que os projetos de Deus são diversos e “elevados” com respeito aos humanos; Jr 29,11 menciona os projetos benéficos de Deus contra o desígnio humano na história de José (Gn 50,20). Um desígnio é um desenho: dá forma e sentido a uma atuação. 7. Sirvam de comentário alguns versículos de Dt 32: 27 28 29 Temo a má interpretação do adversário, que diria: Nossa mão venceu, não é o Senhor quem o fez. Porque são uma nação que perdeu o juízo e carece de inteligência. Se fossem sensatos, o entenderiam, compreenderiam seu destino. Algo semelhante diz o versículo final de Oséias. Com respeito aos agressores, insiste Mq 4,12: “Não entendem os planos do Senhor, não compreendem seus desígnios”. 8-10.Isso é o que o néscio não entende, e ele o entendeu e o pode explicar e cantar. A disposição é original e estudada: malvados: três hemistíquios Yhwh exaltado inimigos: três hemistíquios 3+3+3 4 3+3+3 Em três sentenças descreve rapidamente o crescimento vegetal dos malvados e sua destruição definitiva (‘dy ‘d: não perpétua ou indefinida, mas definitiva). No meio o Senhor, sublime e eterno (Vwlm: definitivo e 1176 Salmo 92 indefinido). Depois reforça o fracasso dos inimigos de Deus. Seu crescer e florecer é o enigma, seu destino trágico é o desígnio revelado em ação. 11-12. A vitória humana prolonga e manifesta a divina. A segun da sentença hebraica significa “estou misturado / untado com óleo fresco”, ou seja, não rançoso. Untar com óleo era costume litúrgico (38 vezes): o pão sai mais mole e saboroso, conserva-se melhor. O orante sente, junto ao vigor da cornamenta que se eleva, a flexibilidade dos músculos “untados com óleo”; também poderíamos traduzir por “massagem” (que vem de massa, como amassar). Nunca bll significa ungir. 12. Ainda que olhos estejam em paralelo com ouvidos e ver com ouvir as peças não são de todo paralelas. Existem verbos de ver com b- que significam gozar de, desfrutar de; não existem verbos de ouvir com b- com o significado equivalente. Por isso prefiro tomar “escutam” como introdu ção ao que segue. 13-16. çdyk vai sem artigo, como é costume em Pr. Ao ler “planta dos”, esperamos algo como “junto a um rio ou a um tanque”, e nos encon tramos “na casa do Senhor”. Donde outros imaginam um manancial milagroso (Ez 47 e J14,18). Aí desfrutam de vitalidade e louçania que não cede à velhice. Como na nova criação de Is 65: 20 22 será jovem quem morrer aos cem anos ... os anos de meu povo serão os de uma árvore Para dshn: Pr 11,25; 13,4; 15,30; 28,25. Para r‘nn: Os 14,9; SI 37,35. No último versículo, o ky introduz um texto pronunciado, o que explica o possessivo de primeira pessoa. Explicar a “rétidão” com um paralelo nega tivo inesperado mostra o tom apologético da reflexão: ninguém pode acusar a Deus de delito nem prová-lo. Esse pensamento, bastante comum, provoca um último eco e um desenvolvimento intenso na teodicéia de Sb 12: 12 Quem pode te dizer: O que fizeste? Quem protestará contra tua falta? Quem te denunciará pelo extermínio das nações que tu fizeste? 6. T ransposição cristã Um texto tardio diz: “Realizastes maravilhas, desígnios antigos, fir mes e seguros”. Apliquemos o tema ao destino de Cristo. Humanamente falando, sua morte é “um escândalo e uma estultícia” (ICor 1,23). Na realidade, corresponde a um desígnio admirável de Deus. É “misterioso”, o néscio não o compreende e o declara nescidade. Deus revela seu desígnio completo na ressurreição, e o Espírito faz compreender o mistério, e quem Transposição cristã 1177 o compreende “enche-se de gozo”. Porque “o profundo de Deus” só é conhecido pelo Espírito de Deus (lCor 2,11) que o ensina a “homens de espírito”. Jesus Cristo venceu seus inimigos e “está exaltado para sempre”. O último inimigo que tem que debelar é a morte (lCor 15,26). Quem são “inimigos de Deus e de Cristo”? São Tiago dirá que “quem decide ser amigo do mundo faz-se inimigo de Deus (Tg 4,4): mundo representa neste texto o sistema de valores opostos aos que Cristo propõe. A imitação de Cristo, também o cristão sofre a perseguição de inimigos perversos, em particular dos inimigos interiores “que batalham contra o Espírito” (lPd 2,11). Ainda que o mistério do desígnio divino sobre a paixão de Cristo já tenha sido revelado, ao vivê-lo em sua carne, torna-se enigmá tico ao homem fraco. Precisa escutar uma voz que lhe assegure: o que está bem plantado na casa de Deus, que é a Igreja, crescerá vigoroso e viçoso até ser transportado para a casa definitiva do Pai, “conforme o projeto daquele que atua segundo seu plano e desígnio” (Ef 1,11). Salmo 93 1. Texto 1 O Senhor reina, vestido de majestade; o Senhor, vestido e cingido de poder. Assim está firme o orbe e não vacila. Teu trono está firme desde sempre,1 tu és eterno. 2 3 4 5 Levantam os rios, Senhor, levantam os rios sua voz, levantam os rios seu fragor. Mais que a voz de águas caudalosas, mais potente que os escolhos do mar, 2 mais potente na altura3. Teus mandatos são eficazes; à tua casa corresponde a santidade, Senhor, por dias sem termo. 2. B ibliografia A. J. Wensinck, The Ocean in the literature o f the western Semites, A tv» q f p r n ç \m 1 Q "1 Q H. G. Jefferson, Psalm 93, JBL 71 (1952) 155-160. L. Koehler, Jahwäh malak, VT 3 (1953) 188-189. H. G. 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Análise filológica 1. tkwn: lêem uma forma ativa LXX Vgfirmavit, lê o verbo tkn Jerôn append.it. 4. mqlwt: min comparativo: sujeito o da frase precedente, o fragor dos rios Qim, regendo também o segundo hemistíquio e sujeito yhwh Ros; causal Geier Phil. 1180 Salmo 93 ’dyrym mshbry ym: inciso Kõster, regido por min Ros; corrigem para ’dyrmmshbryym sujeito yhwh Dyserinck Graetz Duhm Gun; rbym e ’dyrim títulos divinos Dah, ou dois adjetivos de myn em aposição Ecker. 5. n’ wh\ nif de ’wh GK75xBL422, vogal a conservada BL 48 k; den’h palel com alef por contaminação ou nifal de ’wh GB 477a; deM W Y com alef por contaminação com nif de ’wh de Bergstrás. ser II 20 a. 4. Estudo global a) Gênero e situação É um hino ao Senhor Rei por sua vitória sobre as forças do caos e pela fundação do orbe. Faz parte duma espécie particular do gênero hino, definida por temas e fórmulas. Falta a costumeira introdução ou convite ao louvor. O texto descreve brevemente o acontecimento primordial: é simples recordação de passado meta-histórico? E repetição cultual cíclica, talvez com representação dramática? E o anúncio de vitória escatológica? Creio que tais distinções se referem ao uso mais que ao texto. O salmo é disponível, o que não exclui que tenha sido composto originalmente para alguma festa particular. Pelo tema da batalha cósmica emparenta-se com muitos textos demitizados do AT. Pela forma Yhwh mlk forma grupo com os SI 96, 97 e 99. b) O Senhor reina Esta é uma forma peculiar, que foi amplamente estudada e discutida. Seleciono e resumo alguns dados que estimo mais pertinentes. Nos livros históricos do AT diz-se de muitos reis que reinaram em tal lugar e durante tanto tempo. As fórmulas mais correntes são: malak N em L(ugar) sobre S(súditos) X anos; ou então wN malak, etc. A esses módulos se reduzem uns quantos textos cujo sujeito é Yhwh-. Is 24,23 ky mlk yhwh çv’wt bhr çywn = porque reina Yahweh Sebaot no monte Sião Is 52,7 ’mr Içywn mlk ’Ihyk = diz a Sião: Reina teu Deus SI 47,9 mlk ’Ihym ‘l gwym = reina Deus sobre as nações ’Ihym yshb ‘l ks’ qdshw = Deus se senta em seu trono santo O SI 93 parece com o SI 47 porque menciona reinado e trono. Dos textos históricos retoma o esquema básico; em vez de contar os anos do reinado, afirma que é eterno. Estudo global 1181 Num ponto se afastam os quatro salmos mencionados, que alguns consideram substancial, e é que invertem a ordem pondo diante o nome (sem copulativa): Yhwh mlk. Com vários autores penso que essa inversão é enfática: Yhwh (e não outro) reina, é Yhwh quem reina. c) Batalha primordial Esta é uma peça da mitologia dos povos vizinhos, que conhecemos por algumas peças medianamente conservadas e que são provavelmente uma fração de tudo o que se compôs e recitou. No mito babilónico Enuma Elis distinguem-se as massas aquáticas: o Apsu, de águas doces, e a Tiamat, de águas salgadas; podem-se chamar de Abismo ou Oeano (ou se conservam seus nomes originais). As duas provo cam uma crise entre as divindades. Ea, o deus da sabedoria, vence Apsu, deixa-o inerte e confina-o ao mundo subterrâneo construindo sobre ele sua morada. Mais grave é a crise provocada por Tiamat (veja comentário ao SI 91). O jovem deus Marduk desafia-a, trava combate dramático com ela, vence-a, dá-lhe morte e constrói o céu, a terra e os homens. Os deuses aclamam a Marduk: “agora és nosso rei”. No mito ugarítico, o deus Baal luta e vence a Yam = Mar, chamado também Juiz Nahar (= Rio). Cito três versos sugestivos por seu aspecto formal: Agora Baal, a teu inimigo, agora vais ferir teu inimigo, agora vais aniquilar teu adversário. Um tema que se repete em mitos e hinos é que a divindade correpondente determina os destinos e pronuncia decretos firmes e irrevogáveis: “Firmes eram seus decretos, eram irresistíveis” (1,144; II, 31); “Minha palavra, não a vossa, determinará os destinos; o que eu fizer será inalterável; o que ordenarem meus lábios não será retratado nem mudado” (II, 127-130). Neste mundo mitológico e poético desenvolve-se o breve SI 93. Talvez como afirmação polêmica diante de pretensões babilónicas, se é que o salmo faz parte do contexto espiritual do Segundo Isaías. A comparação permitirnos-á propor algumas observações sobre o salmo. — A batalha primordial está estilizada em estilo quase hierático. A tremenda agitação de Tiamat em Enuma Elis resume-se em três ondadas de ritmo perfeito e rica sonoridade. O esforço desencadeado pelo jovem Marduk desaparece, porque o Senhor está por cima, inacessível ao tumulto. — O salmo menciona nhrwt = rios e correntes, mym rbym = águas caudalosas, mshbryym = escolhos do Mar / Oceano. São os mesmos Yam e Naharotl Enuma Elis distingue Apsu e Tiamat; se o tomarmos como 1182 Salmo 93 critério, o nhrwt do salmo representará correntes subterrâneas que afloram em rios com força torrencial. Ao invés, o mito de Baal junta Yam e Nahar como dois nomes da mesma divindade oceânica; se o tomarmos como critério, o nhrwt do salmo seria um coletivo que designa o mar agitado em correntes, marés ou lufadas de vento. — O tema da realeza domina o salmo. O Senhor é rei, tem uma casa ou um palácio, senta-se num trono estável, veste-se de manto real e cinge a faixa do poder (o tema da veste não é importante no texto babilónico); pronuncia decretos imutáveis. — Ainda que não se diga, subentende-se que “o orbe está firmado” acima das águas subterrâneas (do Apsu?, cf. SI 24,2). A “santidade” do templo de Yhwh pode corresponder ao “santuário” ou Esagila que se erige na Babilônia como morada de Marduk (VI, 49-68). d) Cosmologia e história O salmo, como os mitos das culturas circundantes, está confinado no mundo cósmico; não faz nenhuma alusão histórica. O céu é a “altura”, morada sublime e inacessível do Senhor; as águas são as forças impotentes do caos, o orbe está firme. Se a “casa” alude de algum modo ao templo de Sião (cf. Is 24,23; 52,7), é enquanto representação do celeste. A duração do reinado é a perpetuidade acima da história. Outra coisa é a leitura do salmo em chave histórica. Para isso é preciso partir do valor simbólico das águas oceânicas, que representam o caos ou as forças destrutivas. Convém explicá-lo. No mundo estelar e em nosso minúsculo planeta, que é nosso lar, con templamos forças que destroem e reconstroem: estrelas que se apagam, supernovas que explodem, continentes que se rompem e navegam no magma, terremotos, raios que incendeiam bosques, glaciais lentos, rígidos, bosques mortos e petrificados, animais mortos convertidos em petróleo, desintegra ções que desprendem energia. Como um fatídico ciclo de destruição a que se sobrepõe um ciclo glorioso de criação. O nada não destrói nem devora, porque não é; contudo, nós o imaginamos ativo e tragando em seu vazio seres que deixam de ser. O caos é o nada imaginado como potência aniquiladora. Pois bem, também o homem pode desencadear forças que destroem: guerras, matanças, explosões nucleares, desflorestação, chuva ácida, con taminação. O homem às vezes é satânica e caoticamente culpado, outras vezes é patético aprendiz de feiticeiro. Imaginamo-nos o homem aliado do nada destruidor e devorador. O SI 65,8 di-lo explicitamente num versículo de cunho semelhante: “Tu, que reprimes o estrondo do mar, o estrondo das ondas e o tumulto dos povos”. O SI 93 no-lo diz, mas tampouco resiste à Transposição cristã 1183 leitura nessa chave simbólica. Concretamente, lido no contexto do desterro, o salmo podia deslanchar grande força polêmica contra os deuses e o poder político da Babilônia, como lemos em várias páginas do profeta do desterro. 5. Exegese Dito já tudo o importante para entender o salmo em seu contexto cultural, bastará acrescentar algumas ligeiras considerações. la.O versículo tem um ritmo staccato de fórmula 2+2 2+2. “Cingir-se” a secas costuma ser operação prévia para entrar em combate ou pôr-se a trabalhar (Jr 1,17; Jó 38,3). O segundo complemento pode referir-se a uma dignidade ou cargo político ou militar (Is 11,5; 45,5). O contexto do salmo deixa o sentido do salmo pendente entre as vestiduras reais de poder político e as militares que pede o combate com o caos. lb . A denominação tebel = orbe é freqüente sobretudo nos textos tardios de Is e no saltério (veja-se em particular SI 96,10). 2. O “trono” de Deus é celeste (cf. Is 6,1. 66,1); no saltério pode ser um trono de julgar ou tribunal (9,5.8), santo (47,9), de majestade (89). m’z e m‘wlm indica tempo remoto indefinido (Gn 6,4; Js 24,2). 3. Por ora não se assiste a uma ação agressiva e concertada; só à gritaria, às vozes, aos golpes estrondosos do marulho; dky: da raiz que significa golpear, malhar. 4. ’d yr como título divino junta majestade com poder (SI 8,2; 76,5). É preciso escutar a sonoridade deste versículo, com seus oito emes e cinco erres. 5. ‘dtyk: segundo todo o contexto, creio que se refere aos decretos e disposições cósmicas, de qual há abundantes exemplos. Em Gn 1, Deus atribui função ao sol e à lua; com o termo equivalente (hq) di-lo o SI 148,6; Jó 28,26 refere-o à chuva; Jr 5,22 ao mar. Muito significativo, por tratar-se de juramento, Jr 31: 35 Assim diz o Senhor 36 que estabelece o sol para iluminar o dia, o ciclo da lua e as estrelas para iluminar a noite, que agita o mar, e mugem suas ondas ... Quando falharem essas leis que eu d e i... 6. Transposição cristã Partindo da visão simbólica das forças de destruição, podemos con templá-las na violência desencadeada contra Jesus: contra a pessoa, o prestígio, a mensagem, os milagres; até a aparente vitória do caos = moi te. 1184 Salmo 93 E a vitória da ressurreição, pela qual é exaltado e constituído rei universal. Vitória escatológica que inaugura um reinado. Uma cena dos evangelhos representa narrativamente a vitória de Jesus sobre as águas. Dos três sinóticos escolhemos Mateus: 8,24 De repente se levantou tal tempestade no lago, que as ondas cobriam a embarcação; ao passo que ele continuava dormindo ... 26 Levantou-se, repreendeu aos ventos e ao lago, e sobreveio calma perfeita. 27 Os homens diziam assombrados: — Que espécie de indivíduo é este, para que lhe obedeçam até os ventos e o lago? Lê-se um prolongamento do tema no episódio de Jesus caminhando sobre as águas e Pedro tentando fazer outro tanto (Mt 14,24-33 par); cena em que Jesus começa a transferir seu poder e vitória aos discípulos. Lucas introduz o tema em seu discurso escatológico: 21,25 Aparecerão portentos na lua, no sol e nas estrelas, e na terra ficarão angustiados os homens, enlouquecidos pelo estrondo do mar e das ondas. O Apocalipse repete o tema em várias ocasiões. Primeiro na visão da mulher grávida em transe de dar à luz: trava-se uma batalha celeste de Miguel e seus anjos contra o dragão e suas hostes. A mulher foge com o menino varão ao deserto, e o dragão sai em sua perseguição: 12,15 A serpente lançou pela boca água como um rio atrás da mulher, para arrastá-la na corrente. 16 M as a terra veio em auxílio da mulher abrindo a boca e bebendo o rio que tinha sido lançado pela boca do dragão. Em outra cena apresenta “a grande prostituta que está entronizada entre torrentes caudalosas” (17,2), e em seguida explica: “as torrentes que viste, onde está entronizada a prostituta, são povos, multidões, nações e línguas” (17,15). Chegará a vitória definitiva e a instauração do reinado perpétuo: 21,1 V i um céu novo e uma terra nova. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram; o mar já não existe. O mar é o oceano, o caos primordial. Salmo 94 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 Deus justiceiro, Senhor, Deus justiceiro, resplandece. Eleva-te, Juiz da terra, paga o merecido aos soberbos. Até quando, Senhor, os malvados, até quando triunfarão os malvados? Discursam proferindo insolências, jactam-se todos os malfeitores; trituram, Senhor, o teu povo e oprimem tua herança; assassinam viúvas e imigrantes, degolam1órfãos; e comentam: O Senhor não o vê, não toma conhecimento o Deus de Jacó. 8 Inteirai-vos, os mais insensatos; néscios, quando refletireis? 9 Quem plantou o ouvido, não verá? Quem formou o olho, não vai ver? 1.0 Quem educa os povos, não castigará2?; quem instrui o homem, não saberá? 11 Sabe o Senhor que os planos humanos são vaidade. 12 Feliz o homem a quem tu educas, Senhor, a quem ensinas tua lei, 13 dando-lhe descanso depois dos anos duros. enquanto cavan uma fossa para o malvado. 14 Pois o Senhor não rejeita seu povo nem abandona sua herança. 1assassinam 2 reprovará 1186 Salmo 94 15 O inocente recuperará seu direito e há um futuro para os retos de coração.3 16 Quem se põe em meu favor diante dos perversos, quem se põe do meu lado diante dos malfeitores? 17 Se o Senhor não me tivesse auxiliado, já estaria minha vida4 habitando o silêncio. 18 Quando me parece que tropeça meu pé, tua lealdade, Senhor, me sustenta; 19 e ainda que se multipliquem minhas preocupações, teus consolos deleitam meu ânimo5. 20 Poderá aliar-se contigo um tribunal iníquo que dita injustiças invocando6 a lei ? 21 Ainda que atentem contra a vida do justo e condenem à morte o inocente, 22 o Senhor será o meu castelo, meu Deus será minha Rocha de refúgio. 23 Ele lhes pagará sua iniqüidade, destruí-los-á por suas maldades, destruí-los-á o Senhor nosso Deus. 2. Bibliografia A. Allgeier. Ps 94. Ein auslegungs- und bedeutungsgeschichtlicher Beitrag, em FS Bertholet, Tubinga, 1950, 15-28. O. Glombitza, Betende Bewältigung der Gottesleugnung. Versuch einer existentiellen Interpretation der drei Psalmen 59; 94; 137, NedTT 14 (195960) 329-249. A. Maillot, La justice contra la justice? Ps 94, BVC 79 (1968) 54-57. F. de Meyer, La sagesse psalmique et le Ps 94, Bijdr 42 (1981) 22-45. P. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 94, BN 24 (1984) 44-72. 3. Análise filológica 1. hwpy‘: imperativo: forma rara Del cf. Is 43,8; Jr 17,18; corrigem pa hwpy‘h Hitzig Gun Kraus cf. GK 69 v. perfeito LXX Dah Rav. 3 Pois Direito voltará para Justiça e atrás dele os retos de coração 4 meu alento 5 são minha delícia 6 em nome da Estudo global 1187 4.yby‘w: absoluto como 59,8 Ecker; descreve o significado com sinôni mos Lorin cum affluentia, impetu, ebullitionte ... cura ampullis bullisve, quae in ebulliente exsistunt acqua. yfm rw : hitpael único gabar-se,jactar-se, loquenturVg,garrient Jerôn. 11. ky: introduz sentença completiva depois do substantivo GB 342 a. 12. mtwrtk: min provavelmente partitivo cf. Gn 2,16s; 3,6. 13. mymy: min temporal: depois GB 433 b, ou durante GB idem. 15. Mantém o texto tomando çdq e mshpt como personificações poéticas Phil e reconstrói uma cena, em que Direito, seguido de todos os retos de coração, vai em busca da Justiça, desterrada ou seqüestrada, para fazê-la voltar (poderia ter citado como confirmação Is 59,13s). Gun e outros seguindo-o corrigem para çdyq mshptw e ’hryt: seu direito retorna ao honrado (= o honrado recupera seu direito) e há futuro ... Dah toma ‘d em sentido de tribunal^s/iiüò como transitivo, apoiado no paralelismo ugarítico ‘d / ksi de UT 127: 22-24: o tribunal de justiça restabelece a eqüidade. 16. ‘m ... ‘m: contra GB 595 a. 17. ‘zrth: o subst faz de predicado em vez de verbo GK 141 c. km’t: partícula de apôdosis irreal, paulo minus Vg, propemodum Agélio, paulo post Belarmino. dwmh: silêncio, ades LXX inferno Vg sepulcro Targ Qim. 20. hyhbrk: qal com vocalização anômala GK 60 b; pual Ges Thes 441 b o sufixo com valor de dativo BL 48 h. yçr: referiram-no a Deus: Vg qui fingis Eusébio Deus faz difícil o preceito, Genebrardo arduapraecepta-, unido aks’: a maioria Jerôn Eutímio Agélio; Titelmann lê ks’ como vocativo a que se dirige todo o versículo. ‘ly: em nome de, invocando, como lei. 21. ygwdw: copulabantur Jerôn Qim; thereusousin LXX leu talvez yçwdw, captabunt Vg Sir. 23. wbr‘tm: b- de causa GB 81 a. 4. Estudo global a) Gênero e situação Se olharmos a pessoa a quem se dirige o salmo, Deus como juiz e rei, forma parte da categoria de salmos do Senhor Rei ou da realeza divina, encaixando-se bem na série 93-99. No salmo precedente, o Senhor, ataviado regiamente, senta-se no trono real; neste começa seu exercício de julgar. Da mesma forma que Salomão: ao começar a reinar, tem que julgar um caso difícil (lRs 3). No salmo seguinte, o povo aclamará ao Deus Soberano. 1188 Salmo 94 Se atendermos aos elementos tradicionais, esse salmo é uma súplica. Com efeito, descreve-se a desgraça do orante, a violência do inimigo, pede-se ajuda com perguntas retóricas e imperativos, expressa-se a confiança. Se atendermos aos dados mais específicos, o salmo toma a forma de reclamação judicial perante o soberano, com denúncia do delito, apelação à justiça e jurisdição do juiz, petição de pena merecida para o culpado, sinais e gestos judiciais. Na requisitória, o fiscal ou apelante lança mão de argumentos gerais de cunho sapiencial: Deus criador e educador do ho mem, a sorte de honrados e malvados. Estes dados revelam-nos a complexidade do salmo e também sua unidade. E súplica ao Senhor Juiz, posta como apelação para que se faça justiça. Pode-se comparar formalmente com o SI 17, de acusado inocente. O padrão judicial faculta-nos explicar sem dificuldade todos os versículos cujo texto não seja duvidoso. b) O rei e a justiça — Dei como suposto que o salmo trata da realeza de Yhwh, ainda que não se lhe dê o título de rei. Para a mentalidade bíblica e oriental antiga, a coisa é óbvia: as duas funções principais do rei são defender seu povo na guerra e administrar justiça na paz: a espada e o cetro do SI 45. Entre os muitos textos que se poderiam aduzir, escolho Jeremias, que fez balanço do fracasso da monarquia e legou-nos textos exemplares: 21,11 12 22,3 22,15 16 Escutai a palavra do Senhor, Casa de Davi: Assim diz o Senhor: Ide cedo administrar a jutiça, livrai o oprimido do opressor. Praticai a justiça e o direito, livrai o oprimido do opressor, não exploreis o imigrante, o órfão e a viúva, não derrameis sangue inocente neste lugar. Se teu pai comeu e bebeu, e passou bem, é porque praticou a justiça e o direito, fez justiça aos pobres e indigentes, e isso sim que é conhecer-me. Administrar justiça é competência suprema do soberano. Abraão argumenta com Deus: “O juiz de todo o mundo, não fará justiça?” (Gn 18). — Justiça vindicatiua. E importante traduzir bem a palavra e o conceito da invocação inicial, “Deus justiceiro”, que com freqüência se traduziu por “Deus das vinganças”, Deus ultionum, theos ekdikeseon. A justiça vindicativa é componente essencial da justiça. Se o juiz responsável deixa incólumes os criminosos, torna-se praticamente cúmplice deles e Estudo global 1189 condena à desgraça vítimas inocentes. Um juiz justo não pode ser neutro entre o criminoso e sua vítima, não pode desentender-se; tem que agir em tempo. A vingança podia ser competência do ofendido ou da família quando não havia instâncias superiores; quando a vida civil está organiza da, a justiça vindicativa é competência da magistratura; em última ins tância, do rei (SI 72 com o verbog ’l); e de Deus, como se vê em muitíssimos casos: Dt 32,25 Minha será a vingança e a desforra. Ou seja, é competência minha impor a pena aos culpados. Dt 32,43 Ele vinga o sangue de seus servos, toma vingança do inimigo. Ou seja, castiga os assassinos de seus servidores, sentencia e castiga os inimigos culpados. SI 18,48 O Deus que me fez justiça = que me deu a vingança. 2Sm 4,8 Por intermediários: dois homens por própria conta dão morte a Isbaal, rival e inimigo de Davi, trazem a cabeça do assassino a Davi e dizem: Aqui está a cabeça de Isbaal, filho de Saul, teu inimigo, que tentou matarte. O Senhor vingou hoje o rei. Ou seja, executamos a sentença ditada pelo Senhor. c) Ojuízo e o resplendor — O esquema do juízo. Se no AT não encontramos textos de direito processual, que descrevem puntualmente em todas as suas fases um processo judicial, ainda menos podemos pedir a um poema. Mas os dados soltos acumulados são indubitáveis. Seguindo a ordem do texto: v. 1: o dito da sentença vindicativa; v. 2: o título de juiz; v. 7: “não vê, não toma conhecimento”, por oposição; v. 15: texto duvidoso, talvez recuperar o direito; v. 16: pôr-se em pé junto de; v. 20: tribunal; v. 23: pagar o merecido. Quanto à repartição dos papéis, são manifestas as duas partes diante do juiz. Segundo o v. 20s, os acusados são juizes iníquos que condenam à morte o inocente. O que transforma toda a causa em processo de apelação: diante da corrupção da justiça humana, o orante apela ao juiz supremo, o Senhor. De juizes iníquos e corrompidos não faltam exemplos no AT, desde Is 1,21-26 até os anciãos da história de Susana. O orante apresenta-se diante do juiz e age em papéis que nós repartiríamos entre vários: denúncia e acusação, dirige-se ao juiz pedindo pronta justiça, volta-se ao réu pronun ciando uma requisitória, dirige-se aojuiz apelando à suajustiça incorruptível, solicita a pena correspondente. — O resplendor. Não se deve discutir o valor teofânico do verbo hwpy‘ (Dt 33,2; SI 50,2). A questão é ver sua colocação no presente contexto. Dizse que o exercício da justiça divina é teofania, e é certo. Há algum outro ponto de apoio que justifique aqui o verbo “resplandece”? Creio que influi tacitamente a concepção religiosa oriental, que atribui ao deus Sol a 1190 Salmo 94 administração da justiça: o deus Utu dos sumérios, Samas dos assírios e babilônios. Entre os muitos textos que o provam, seleciono um hino a Samas, composto provavelmente no final do segundo milênio e conservado em cinco cópias na biblioteca de Assurbanipal (668-627). Sigo o texto de Seux (51-63) e seleciono alguns versos que podem ilustrar nosso salmo, indicando o versículo do salmo com que se podem comparar: 3 9 49 56 58 70 95 97 149 153 Samas, que iluminas o céu inteiro, que alumias a escuridão de cima abaixo. Em cada momento, seus raios conhecem os segredos; quando te ergues brilhando, percebe-se sua pegada. De todos os países, de todas as línguas conheces os planos, observas os passos. Diante de ti se ajoelham o malvado e o honrado, pronuncias a sentença do malfeitor e do malvado. Fazes subir o que descia ao Abismo, dando-lhe asas. Ao que trama um delito lhe embotas os chifres. Tu fazes prender o juiz corrompido, o que aceita suborno para julgar injustamente tu o castigas. Samas, aos humanos abres os ouvidos, por todo o mundo habitado lhes abres a inteligência. 94,1 9s 9-11 3-15? 2.23 17 23b 20s 9 10 E m confirm ação do parentesco costu m a-se citar M l 3 ,2 0 : “O s ■ respeitam meu nome ilumina-los-á o sol da justiça”. Se a comparação é pertinente, o resplendor do salmo não só é a manifestação divina, mas também o descobrimento e a revelação dos delitos ocultos do homem. A propósito disso escreve o Eclesiástico: 23, 19 Só teme o olhar dos homens e não sabe que os olhos do Altíssimo são mil vezes mais brilhantes que o sol e contemplam todos os caminhos dos homens e penetram até o mais escondido. d) Elementos sapienciais O cunho sapiencial invade o poema configurando-o sem violência. A coisa não é estranha. Pelo que parece, os empregados públicos recebiam uma formação “sapiencial” em e para a corte: ler e escrever, redigir, técnicas de registro, um saber tradicional feito em boa parte de provérbios e instruções. Manifesta-se no salmo de várias maneiras. Primeiro, a oposição generalizada de bons e maus; enquanto a oposição concreta de um malvado euxn honrado, um culpado e um inocente, é própria do âmbito forense. Segundo, a terminologia do saber: entender, insensatos, 1191 Estudo global néscios, instruir, repreender, desígnios, educar, ensinar. Terceiro, o quali ficar de nescidade o ateísmo prático, como no SI 14 e no livro de Jó. Quarto, a bem-aventurança do versículo 12. e) Composição, relações, personagens — Composição. A travação interna do poema é muito forte, sua manifestação externa não utiliza recursos sugestivos. Pode-se observar uma inclusão temática em 2 e 23: “dar o merecido, pagar o delito”. No v. 8 muda o destinatário, no v. 15 repousa o movimento. No v. 16, o discurso torna-se pessoal e vai se voltando para Deus. Com esses dados podemos traçar o desenvolvimento: 1-7.0 orante dirige-se a Deus com imperativos (1-2), com a pergunta clássica “até quando?” (3); explícita ou implicitamente essa pergunta engloba a descrição de 4-7. Os limites nessa primeira secção ficam indeci sos. 8-15. A segunda parte entra com um enlace engenhoso e de efeito retórico. Em 8-11 interpela os malvados com perguntas e princípios genéricos, que equivalem a ameaça; em 12-15 pronuncia a bem-aventurança do honrado com dupla motivação. 16-21.Isolando os versículos finais como resumo conclusivo, sorte do justo e do malvado, ficamos com duas subdivisões: 16-19: o assunto e a experiência pessoal; 20-21: a justiça do tribunal supremo. O desenvolvimento é claro, sem artifícios, e ajuda-nos a examinar algumas relações significativas. — Relações. Primeiro (1-7 com 16-23). Perante o juiz divino que não age, os malvados proclamam seu ceticismo que os faz sentir impunes, ao passo que o orante grita sua impaciência, como que censurando a Deus sua dilação. Na parte final, o orante lança um novo olhar para trás, para a atividade dos malvados; mas agora se sente seguro por uma experiência passada e uma esperança de futuro. A confiança expressa no final equilibra a impaciência gritada no começo. Continuam sem mudar os malfeitores, pelo que lhes advém a sentença de condenação. Segundo (5.14 e 17-19), ou sej a, o problema coletivo e o individual. Povo teu e herança tua referem-se normalmente ao povo eleito, o que faz pensar em inimigos externos. Todavia, muitos textos proféticos levam-nos a compreender que os inimigos do povo podem estar dentro e deter o poder. Em nome de todos cito Isaías: 3,12 Povo meu, menininhos te oprimem, mulheres te governam; povo meu, teus guias te extraviam destroem tuas veredas. 1192 Salmo 94 Em todo caso, trata-se de comunidade. Em 17-19, o orante recorre à experiência de sua libertação: de um perigo mortal, de tentação ou ameaça grave, de preocupações interiores. Não fala expressamente de julgamento, mas considera sua experiência pertinente: para corroborar a justiça de Deus e provavelmente para reanimar os aflitos da comunidade (algo como o SI 4). Terceiro (8-11 e 12-15). A distribuição eqüitativa de versículos e a justaposição em contraste sublinham a diferença. Aos malvados dedica um discurso refutando suas teorias. Ao honrado dedica uma bem-aventurança. — Personagens. Os malvados: além de descrever concisamente sua atividade criminosa, atribui-lhes vários nomes ou predicados: soberbos, malvados, malfeitores, insensatos, néscios; todos nomes genéricos. No v. 20, um dado concreto é “um tribunal iníquo”. Ao descrever sua atividade, condu-los até ao extremo do crime, o assassínio. O honrado é alguém instruído por Deus, é inocente (21). Como de costume, aparece no singular diante do plural dos malvados; pode identifi car-se com o “povo e herança” enquanto vítima. Inclui-se o orante no grupo? O contexto diz que sim, embora por sua função litúrgica de porta-voz se destaque do grupo, e talvez também por sua formação sapiencial. Deus, embora no começo pareça inativo, mostra-se disposto: criador do homem com seus órgãos e funções, educador da consciência do homem, libertador do inocente, preocupado com o seu povo e administrador de castigo definitivo. 5. Exegese 1. Começa com o nome divino ’el que, quando se usa genericamente designa o Deus supremo, aqui identificado com Yhwh. Sobre sua função justiceira podem-se consultar muitos textos: de caráter histórico (ISm 24,13; 2Rs 9,7); contra Babilônia (Is 47,3; Jr 50,15.28; 51,6.11); escatológico (Is 59,17; Mq 5,14); o dia de fazer justiça (Is 34,8; 61,2; 63,4; Jr 46,10). Merece citado íntegro o começo de Naúm: O Senhor é um Deus ciumento e justiceiro, o Senhor é justiceiro e sente cólera; o Senhor se faz justiça de seus rivais, está irado contra seus inimigos. Agostinho volta o título também contra o fiel que protesta e censura a Deus por sua tardança, ou duvida de sua justiça. Para provar que a justiça pode-se voltar contra seu povo, poderia citar textos como Ez 24,8; Is 1,24; SI 99,8. Exegese 1193 Para o resplendor no juízo, além do citado SI 50,2, veja-se Hab 3: 3 seu resplendor eclipsa o céu e a terra enche-se de seu louvor. 4 Seu brilho é como o sol. 2. Juiz do mundo: texto clássico o citado Gn 18,25; com atributo de justiça (Jr 11,20; SI 7,12; 9,5). Levantar-se como gesto do juiz para pro nunciar sentença (Is 33,1). Pagar o merecido: com a fórmula hshyb gmwl usa-se em J1 4,4; SI 28,4; Pr 12,14; Lm 3,64; outras vezes se usa shlm. Os soberbos: santo Agostinho os define “os que, não contentes de cometer o pecado, o defendem”, pois os que o confessam são humildes. 3. Até quando? Conhecemos a pergunta da impaciência sobretudo pelo SI 13 e como estribilho numa prece a Enlil. Agostinho comenta: “pergunta com respeito, não repreendas com soberba”. Triunfar: celebran do a vitória, como em 2Sm 1,20; Sf 3,14. 4. O verbo hebraico nb ‘ sugere a imagem do brotar de manancial, com espontaneidade e abundância (Análise filológica) (Pr 1,23; 15,2.28). Gabam-se do sucesso de suas empresas criminosas, perante Deus e os homens. 5. Repetindo o possessivo “teu povo, tua herança”, quer comprometer o Senhor em assunto que lhe diz respeito. 6. A medida da justiça é dada, como tantas vezes, pelos desvalidos e marginalizados da sociedade: viúvas, órfãos e imigrantes como categoria social (veja-se entre outros SI 68,6). 7. Concedendo a palavra aos malvados, o orante apresenta o ponto de vista deles, para sobrepor por contraste o próprio. Ora, o ponto de vista depende da identificação dos que falam. Se são estrangeiros, expressam mentalidade politeísta que podemos parafrasear: “O Deus desse povo que se chama Yah, não está informado de nossas atividades e por isso não pode defender os seus”. Se são israelitas, distanciam-se de sua comunidade e blasfemam contra seu Deus. Em outras palavras, em vez de intitulá-lo de “nosso Deus”, como de costume, esquivam-no dizendo “o Deus de Jacó” (como se não fosse também o deles). 8. A reação do orante vale em muitos casos. Ele também tem um título com que os chamar: não “cavalheiros / fidalgos” (SI 4), mas “insensatos / néscios”. Com o que fica desacreditado seu inteiro raciocínio; como no SI 14: “diz o néscio”. Não contente com isso, aceita o desafio e entra na polêmica. Escutemos a sutil repetição: até quando (Deus se cala)?; até quando não compreendereis? 9-10. A argumentação é simples e empírica; em sua vertente filosófica corresponde ao argumento ontológico de causalidade: o que dá a um ser uma capacidade, de alguma forma a possui. O desenvolvimento do argu mento é antropomórfico. Dando o órgão da função. 1194 Salmo 94 Pr 20,12 Ouvido que escuta, olho que olha: ambas as coisas fez o Senhor. Educa e repreende. A repreensão, como nos ensinam abundantemente os Provérbios, é parte integrante da educação; ai de quem a rejeita! Deus “educa” “as nações, o homem”, sem distinção; através da consciência “que é lâmpada do Senhor” (Pr 20,27). Argüindo assim, apelando ao Deus educador (não ao justiceiro), o orante dá um giro positivo e saudável ao seu discurso. Se seus ouvintes quisessem compreender e aceitassem um cas tigo correcional, não incorreriam no julgamento sem apelação (também o discurso do SI 4 busca a conversão dos pecadores). Deste modo, o “até quando” do v. 8 oferece um tempo de conversão. O último hemistíquio coxeia metricamente num quaternário até agora uniforme. Alguns corrigem o versículo para igualá-lo, e é razoável. Não menos razoável é deixá-lo como está, como quebra métrica para ligar com d ‘t o imediato yd‘. 11. Com efeito, esse versículo dá-nos um último particípio: plantadormodelador-educador-instrutor e sabedor. Os planos humanos enquanto tais, autônomos ou contrários aos de Deus, como no SI 33,10s. Em particu lar, os planos dos soberbos descrentes. Vaidade = da que falam SI 39 e Eclesiastes. 12. Costuma-se usar a bem-aventurança depois de ’shry ’y sh / ’nmsh / ’dm / gbr. A do salmo integra o último grupo (SI 34,9; 40,5; 127,5). Não sabemos se a passagem de ’dm (v. 10) a gbr deve-se simplesmente ao desejo de variar. Mais importante é distinguir a “educação” universal de todo “homem” e a “educação” particular por meio da “instrução / lei”. Assistimos aqui à passagem do meramente sapiencial (Pr 6,20; 7,2; 13,14) à revelação. Essa instrução pode concretizar seu conteúdo no versículo que segue, 13. que explica a dilação do juízo divino. Quem se deixa educar por Deus passará tempos difíceis e amargos, aos quais seguirão paz e sereni dade; para o pecador (impenitente), a dilação emprega-se para lhe cavar a sepultura. Em outros textos é o malvado quem cava a sepultura, e cai nela. Deus, que permite o sofrimento, dá a calmaria. Compare-se com o SI 90,15: “dá-nos alegria pelos anos em que nos afligiste”. 14. Veja-se ISm 12,22. 15. Veja-se Análise filológica. Lendo çdyq em lugar de çdq, yshwb faz eco a hshb / yshb de 2 e 23. Se não corrigirmos w’hryw, o sentido seria, em paráfrase: uma vez que o juiz tenha restituído o direito ao inocente, “atrás dele”, defenderá todos os “de coração reto”. 16. Estou diante do tribunal, junto com perversos e malfeitores* um diante de muitos: há alguém com autoridade no processo que se ponha de Exegese 1195 minha parte? O juiz justo pôr-se-á do lado do inocente na sentença. À pergunta respondem os dois versículos seguintes. 17-18. Remontam a tempo anterior à pergunta; ou então, em vir tude da certeza que dá a esperança, antecipam mentalmente um fato fu turo. O v. 17 é condicional irreal das que escasseiam no AT; ainda que ne gativa na forma, funciona como uma sólida confissão. O segundo hemistíquio pode soar assim: “já estaria minha alma habitando em Duma / Silêncio”. A palavra lê-se também no jogo de Is 21,11, no SI 115,17; a idéia também no SI 31,18 e talvez em Is 47,5. No contexto do salmo toma outro matiz: seria hóspede do silêncio, sem poder dar gritos a Deus nem fazer discursos aos néscios, porque seria demasiado tarde. 19. Da tragédia evitada, e recordada com calafrios, salta a uma re cordação íntima e gozosa. O rigor formal não amortece a vibração lírica. Na forma fazem-se sentir os constrastes: minhas preocupações / teus consolos. O conteúdo refulge pela concisa oposição, que tento amplificar: eu estou cheio de preocupações, provocadas desde fora e crescidas dentro, como se eu as cultivasse; nesse reduto íntimo penetram consolos que procedem de ti e que dissipam toda minha angústia. Elifaz pergunta a Jó: “Parecem-te pouco os consolos de Deus?” (20,11). O verbo sh‘ sh‘ significa jogar acari ciando, deleitar com ternura (Is 11,8; 66,12; cf. Jr 31,20 e Pr 8,30). 20. Nova pergunta enfocando juizes corrompidos, com duas fórmulas intensas e felizes. Primeiro o apelativo (oxímoron) “tribunal de crimes”, contrastando com o “Deus justiceiro”. A segunda parte descreve sua tarefa: elaboram (artesanalmente) desgraças (indevidamente) sobre (usando, invo cando, manipulando) a lei. Vejam-se: Is 10,10 Jr 8,8 Ai dos que decretam decretos iníquos, dos registradores que registram prejuízos! Por que dizeis: Somos sábios, temos a lei do Senhor, se a falsificou a pena falsa dos escrivães? 21. Explicita o anterior. Se se corrige o primeiro versículo para ygwrw, significa espreitam (como SI 56,7; 59,4). Se se conserva j/gwdw, significa conchavar-se, dando idéia de cumplicidade calculada. O segundo verbo, em aposição quiástica, é em campo forense condenar: pode-se recordar a his tória de Jezabel e Nabot (iRs 21). Resulta assim um jogo de palavras macabro: rsh‘y myrshy‘w = os malvados condenam à morte o inocente como malvado. 22-33. Acima do juízo humano iníquo levanta-se o juízo justo de Deus: libertando, pondo em segurança o inocente, retribuindo sua maldade e acabando com os malvados. O orante termina com o título clássico Yhwh nosso Deus, o que corresponde deveras ao “Deus de Jacó” na boca dos malvados (7). O versículo final alarga-se com uma repetição enfática. 1196 Salmo 94 6. T ransposição cristã Opondo a ciência humana ao saber de Deus, Paulo cita a versão grega de 94,11 mudando uma palavra: “O Senhor conhece quão fúteis são as argúcias (dialogismous) dos espertos”. Tratando o salmo do juízo humano iníquo contra o inocente, corrigido pelo juízo de Deus, é muito fácil aplicálo como chave ao julgamento de Jesus. Como o temajá foi exposto repetidas vezes, recorro em seguida a santo Agostinho numa reflexão hermenêutica aplicável a muitos salmos, porque se refere à apropriação. O bispo dedica ao salmo um longo sermão (no fim pede perdão por lhe ter saído), um grande sermão. Chegando ao v. 3, a pergunta da impaciência: “Comove-te? Pergunta com respeito, não repreendas com soberba. Como ve-te? O salmo compadece-se de ti e pergunta contigo; não porque não o saiba, mas pergunta contigo o que sabe, para que encontres nele o que não sabias ... Do mesmo modo, quem quer consolar a outrem, não consegue animá-lo se não se compadece primeiro dele ... De modo semelhante, o salmo e o Espírito de Deus, que sabe tudo, pergunta contigo, faz suas as tuas palavras. (v. 22) Parece-te injusto porque perdoava aos malvados? Olha como se corrige o salmo: corrige-te tu com ele. Para isso tomou o salmo tua voz: qual?; ‘até quando, Senhor, até quando triunfarão os malvados?’ O salmo tomava tua voz; toma tu agora a do salmo: qual?: ‘O Senhor foi meu refúgio, meu Deus auxílio de minha esperança’ ”. Não aponta santo Agostinho nessas frases a “fusão de horizontes”? Para o v. 19, Paulo oferece-nos um a boa amplificação, tomando dos L X X o termo grego paraklesis, que traduzo por “consolo”: 2Cor 1,3 Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai carinhoso e Deus de toda consolação, que nos consola em nossas tribulações, para que possamos consolar os outros em suas tribulações, com o consolo com que nos consola Deus ... 6 Se sofremos tribulação, é para vosso consolo e salvação; se somos consolados, é para vosso consolo ... O tema do consolo parece interessar a Paulo, pois volta a ele em 2,7; 7,67.13 e em outras cartas. Salmo 95 1. Texto 1 2 3 4 5 Vinde, aclamemos ao Senhor, demos vivas à Rocha que nos salva; entremos em sua presença com ações de graças, dando-lhe vivas ao som de instrumentos. Porque o Senhor é o Deus supremo,1 Soberano de todos os deuses2. Em suas mãos as profundidades da terra, são seus os cumes dos montes. Seu é o mar, porque ele o fez, e a terra firme que suas mão modelaram. 6 Entrai, prostrados rendamos homenagem3 bendizendo ao Senhor, Criador nosso, 7 pois ele é nosso Deus, e nós povo de seu aprisco, ovelhas a seus cuidados. Oxalá lhe façais caso hoje! 8 — Não endureçais o coração como em Meriba4, como no dia de Massa no deserto: 9 Quando vossos pais puseram-me à prova e tentaram-me, ainda que tivessem visto minha ação. 10 Quarenta anos me desgostou aquela geração; disse: São um povo de coração extraviado que não reconhece o meu caminho. 11 Por isso juro indignado que não entrarão em meu decanso. 1um Deus grande 2 Rei supremo 3 ajolhemo-nos diante 4 Fonte do Acareamento 1198 Salmo 95 2. Bibliografia J. Finkel, Some problems relating to Ps 95, AJSLL 50 (1933-34) 32-40. W. E. Barnes, Two Psalm notes. Ps 22,17; 95,6, JTS 37 (1936) 385-387. R. Rios, A call to worship. Ps 95, Scripta Biblica 1 (1946) 74-77. L. Kunz, Die formale Anlage des 95. Psalms, MüTZ 4 (1953) 349-356. H. Duesberg, Le psaume inuitatoire. Ps 95, BVC 12 (1955-56) 83-90. J. Racette, La spiritualité du psaume 95, ScEccl 10 (1958) 385-392. O. Schilling, Die Anbetung Gottes-Wurzel und Konsequenz. Auslegung von Ps 95, BiLe 2 (1961) 105-120. S. Lehming, Massa und Meriba, ZAW 73 (1961) 71-77. A. C. Tunyogl, The rebellion o f Israel, JBL 81 (1962) 385-390. J. Kremer, Kommet, lasset uns jauchzen dem Herrn! Anregungen zur Meditation über Ps 9 ”, BiLe 3 (1962) 131-137. N. Tromp, Die bronnen van lofen dank. Ps 95,l-7a , OnsGeest Leven 43 (1966-67) 308-312. G. W. Coats, Rebellion in the wilderness, Nashville, 1968. C. Spicq, Vie chrétienne et pérégrination selon le N T, Paris, 1972,94-111. R. 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Análise filológica 2. nqdmh: de apresentar-se, com valor espacial; muitos antigos lhe deram sentido temporal madruguemos, adiantemo-nos Vge comentadores. btwdh: ação de graças; interpretam-no como confissão de pecados Teodor Eutímio Atanásio Agostinho Haymo Belarmino. 4. mhqry: o que se deve sondar, o profundo: exikhniasmoi Aq, katota Sím, fundamenta Jerôn, fines Vg. 5. w h w w - causal GK 158 a Joüon 170 c. 6. nbrkh: ajoelhemo-nos Targ; leram o verbo bkh = chorar Vg LXX Teodor Eutímio Belarmino; em piei bendigamos. 7. ’m: optativo oxalá Hitzig Duhm Gun Kraus Rav cf. GK 151, e; condicional com apôdosis em v. 8 LXX Vg Jerôn Del. 8. kmrybh ... msh: traduzem os topónimos explicando a paranomásia LXX Vg Jerôn Targ. 9. ’shr: temporal referido a ywm, ou espacial referido a mdbr. gm: pode ser concessivo. Estudo global 1199 10. t‘y : pl correspondente ao coletivo ‘m Joüon 148 a. whm: w- não diferenciado; pode-se tomar como consecutivo ou causal, Joüon 169 b, 170 c. 11. ’shr: consecutivo Joüon 169 f. ’m: de juramento negativo. 4. Estudo global a) Gênero e situação O típico desse salmo, como do 81, é a montagem de duas peças, à primeira vista heterogêneas. Começa com procissão festiva, com um hino alegre e comunitário. De repente se eleva a voz de Deus com admoestação grave e ameaça condicionada. A voz de Deus irrompe sem introdução, como que interrompendo o canto e gelando os festejos. Deus, desmancha-prazeres da festa que lhe dedicam: curioso modo de receber uma homenagem. Como se um filho dissoluto e esbanjador viesse festejar o pai pelo aniver sário, com efusivas demonstrações de carinho, e o pai, em vez de recebê-las e agradecê-las, lhe desse severa reprimenda; mais ainda, ameaçasse deserdá-lo como irmão maior. Essa é a sensação que produz o salmo, que não se deve embotar com falsa piedade ou com operações críticas (como quebrando-o em dois salmos autônomos). Para apreciar melhor o efeito, pode-se emparelhar com o SI 132, estilizado como procissão de translado ao templo. Como no presente, a comunidade diz em 132,7: “entremos em sua morada, prostremo-nos diante do estrado de seus pés”; Deus responde-lhes com um oráculo aceitando a morada e prometendo bênçãos sem conta. No SI 95 não é que rechace o povo, mas ameaça rechaçá-lo se não obedecer. Por essa montagem, que condiciona a permanência na terra e a con tinuidade do culto, este salmo entra em contato com “liturgias de entrada”, como apontaram vários comentadores. Mas a diferença é fundamental: num caso, a procissão detém-se à porta e pergunta pelas condições para entrar; noutro caso, estando já dentro e em plena cerimônia, ressoa o inesperado oráculo. O salmo é o terceiro na série 93-99, dedicada à realeza de Yhwh. Justifica-se a colocação? — Com certeza. O título de rei ou imperador ou soberano (mlk gdwl) abre a primeira motivação. De mais a mais, se um rei recebe a homenagem dos súditos, não menos exige obediência. Desta perspectiva, o salmo é coerente e compreensível. A série vai avançando: vitória e reinado do Senhor (93), atividade judicial (94), homenagem e imposição de autoridade (95). Salmo 95 1200 Uma execução litúrgica do salmo, com distribuição de papéis e vozes, dá razão de seu desenvolvimento e desdobra sua força dramática. Num segundo momento, o salmo passa à piedade individual. b) Entrada e repouso Essas duas palavras me parecem as duas chaves para a compreensão unitária do salmo. Começo pela segunda. — Repouso. O termo hebraico é mnwhh. Pode ser de Deus e do povo e ambos funcionam como correlativos. Primeiro, do povo: Dt 12,9 Ainda não alcançastes vosso repouso, a herança que te vai dar o Senhor teu Deus (mnwhh e nhlh). Nm 1 0 ,3 3 A arca da aliança do Senhor marchava diante deles buscandolhes um lugar onde descansar (Itwr Ihm mnwhh). lR s 8,56 Bendito seja o Senhor, que deu descanso a seu povo Israel, conforme suas promessas (ntn mnwhh l’mw). Is 32,18 Meu povo habitará em pastagens pacíficas, em moradas tran qüilas, em mansões sossegadas (acumula sinônimos). - Notemos o contexto de aliança em Dt 12, a presença da arca em Nm 10, a presença no templo em lRs 8, a promessa escatológica em Is 32. São aspectos teológicos de rico conceito. Segundo, repouso do Senhor, o templo: lC r 28,2 Irmãos, eu tinha pensado em construir um templo para descanso da arca da aliança do Senhor e como estrado dos pés de nosso Deus (mnwhh). SI 132,8 14 Is 66,1 Levanta-te, Senhor, vem à tua mansão, vem com a arca de teu poder ... Essa é minha mansão para sempre: aqui viverei porque a quero. O céu é meu trono e a terra estrado de meus pés: que templo podereis construir-me ou que lugar para meu descanso? Na teologia do Cronista, a epopéia do êxodo só termina quando Salomão constrói o templo e o Senhor entra em seu descanso; só então descansa finalmente o povo. O SI 132 relaciona o templo com a dinastia davídica: Davi não se pode dar descanso enquanto o Senhor não tiver onde repousar. O mais significativo desses textos para nosso propósito é a correlação: o repouso de Deus garante e modela o do povo. Se o salmo é pós-exílico, o que é o mais provável, é preciso ler em filigrana a experiência terrível do desterro. Não é possível festejar a esse rei em sua morada de repouso sem recordar lições estremecedoras. Estudo global 1201 — Entrar. É palavra-chave na teologia da libertação do povo. Sintetiza a terceira e definitiva etapa do processo libertador. De pouco serviria multiplicar citações para comprová-lo ou ilustrá-lo. Fixo-me só num texto litúgico que explora o verbo bw’ em suas variantes para interpretar teologicamente a oferta das primícias. Simplifico o texto de Dt 26,1-11, montado sobre a repetição seis vezes desse verbo: 1 Quando entrares na terra que ... 2 tomarás das primícias que produz (= faz entrar) a terra ... 3 Apresentar-te-ás (entrarás) ao sacerdote ... e lhe dirás: 4 Professo hoje diante do Senhor que entrei na terra ... 5 (Recita-se o credo: descida ao Egito, opressão, saída) 9 e nos fez entrar nesse lugar e nos deu essa terra. 10 por isso trago (faço entrar). Na colheita anual atualiza-se a entrada histórica na terra, e na oferta das primícias reconhece-se e consuma-se essa entrada. Pois bem, essa relação é explorada pelo salmo de modo dramático, opondo os dois usos do verbo entrar: “Vinde ... avancemos ... en tra i... — Não entrarão!” Ou seja: não entrareis em meu repouso / templo, que é o vosso; se perderdes o templo, perdereis a terra, como vos fez compreender Ezequiel. Entrar na terra / repouso não é fato consumado que garanta a perpetuida de; entrar no templo não é rito isolado de toda exigência. Cada dia é preciso voltar a entrar, na terra como tarefa, no culto como compromisso. c) A lição da história Se o salmo é pós-exílico, por que não apela à experiência recente do desterro? — Porque quer remontar às origens do povo, ao tempo do deserto como situação exemplar, antes de entrar na terra prometida. Com o binário Massa e Meriba remete-nos ao episódio da água que brota da rocha, referido em Ex 17,1-7. Convém destacar aqui alguns versículos: 2 O povo encarou (wyrb, de ryb) Moisés dizendo: Dá-nos água para beber. Ele lhes respondeu: Por que me encarais (trybwn ‘mdy) e tentais o Senhor? (;tnswn ’t Yhwh) 7 E chamou o lugar de Tentação e acareação (msh mrybh), porque os israelitas encararam e tentaram o Senhor perguntando: Está ou não está o Senhor entre nós? O relato tem todos os traços de lenda etiológica montada sobre dois topónimos. A acareação ou querela vai contra Moisés e, através dele, contra Deus; a tentação vai diretamente contra Deus. E como um desafio: se está conosco, como afirma, que o demonstre com um milagre patente e benéfico. Nada diz o relato de castigo definitivo dos culpados. Salmo 95 1202 A referência de Dt 33,8 é claramente um aproveitamento secundário de nomes, pondo como sujeito a Deus e os levitas como complemento: “pusestes à prova em Massa, desafiaste-o em Meriba”. O tema do tentar a Deus governa parte do SI 78 e reaparece em 106,14, que distingue vários atos: tentar a Deus pedindo carne, irritá-lo em Meriba (my mrybh), desconfiar, protestar; tudo isso provoca o juramento divino (cf. Nm 13-14). O desenvolvimento ou síntese narrativa do SI 106 permite-nos ver que o autor do SI 95 não tenta retomar uma referência histórica precisa, mas reúne e mistura dados para propor uma situação exemplar. Se o povo se empenha em praticar o culto sem obedecer a Deus, tenta a Deus,desafia-o, renega a entrada na terra e pode perdê-la (de novo). d) Composição Seguindo as marcas lingüísticas tradicionais, é fácil seguir o desenvol vimento da primeira parte ou hino: 1-2 invitatório 6 invitatório 3 ky de motivação 7 ky de motivação 4-5 títulos cósmicos título de eleição A segunda parte, como indiquei, age por contraste; as relações que mantém com a primeira parte são mentais e tácitas. 5. Exegese 1-2.0 invitatório é jubiloso e ruidoso, com acompanhamento instru mental, gritos simples e aclamações. Dois verbos indicam movimento. 3. Todos os outros deuses lhe são inferiores ou lhe estão sujeitos. Crei que se refere polemicamente a divindades estrangeiras, sem discutir sua entidade, sem posição taxante como a de Is 40-55. Esse versículo faz companhia a 96,4 e 97,7; veja-se também o SI 29. Deus grande: no panteão babilónico distinguem-se deuses maiores e menores. 4-5. Soberania sem esforço, criação sem luta. Com os dois verbos tra dicionais: ‘sh (Gn 1) eyçr (Gn 2). Em quatro hemistíquios nos oferece uma panorâmica de espaço: profundezas e cumes, mar e terra firme. No panteão da Mesopotâmia, as diversas zonas e funções se distribuem entre diversas divindades; em Israel, Yhwh concentra todo o poder. 6. Triplica o gesto de homenagem, ou o duplica: inclinar-se ou dobrar se, prostrar-se por terra, ajoelhar-se? (ou bendizer). Fazedor (Is 17,7; 27,7; 29,16; 44,2; 51,13, etc.). Transposição cristã 1203 7 a. A imagem do rebanho quadra com a recordação do êxodo (vejam se SI 74,1; 79,13; 100,3). 8. Endurecer o coração: ser teimoso, contumaz, como em Pr 28,14; em geral se diz endurecer a cerviz. Ezequiel fala de coração de pedra (11,19; 36,26). Sobre o reincidir, SI 78. ll.Veja-se Nm 14,28-30: Por minha vida que vos farei o que me disseste na cara; neste deserto cairão vossos cadáveres; e de todo vosso censo, contando de vinte anos para cima, os que protestastes contra mim não entrareis na terra onde jurei que vos estabeleceria. 6. Transposição cristã L. Venard, L ’utilization des Psaumes dans l’Epitre aux Hébreux, em FS Podechard, Lyon, 1945, 253-264. J. Frankowski, Requies, bonum promissum populi Dei in VT et in Hebraismo (Heb 3,7-4,11), VD 43 (1965) 124-149; 225-240. A. Vanhoye, Longue marche ou accès toutproche? Le contexte biblique de Hébreux 3,7-4,11, Bib 49 (1968) 9-26. O. Hofius, Katapausis. Die Vorstellung vom endzeitlichen Ruheort im Hebräer Brief, Tubinga, 1970. A perícope mencionada da carta aos Hebreus oferece-nos um comen tário homilético ao oráculo do salmo, aplicado à vida cristã. Não vamos suplantá-lo com nosso comentário, mas citaremos o texto remetendo aos comentários pertinentes. Depois de citar SI 95,7-11 segundo os LXX, comenta o autor da carta: 3,12 Cuidado, irmãos: que nenhum de vós tenha um coração perverso e incrédulo, desertor do Deus vivo. 13 Antes, animai-vos uns aos outros cada dia, enquanto soa esse “hoje”, para que ninguém se endureça seduzido pelo pecado. 14 Porque se mantivermos firmes até o fim nossa posição de prin cípio, somos companheiros do Messias. 15 Quando diz: “Se hoje escutardes sua voz, não endureçais o coração, como quando o irritaram”, 16 quais, ainda que ouvissem, o irritaram? Certamente, todos os que saíram do Egito guia dos por Moisés. 17 Com quem se indignou durante quarenta anos? Com certeza, com os pecadores, cujos cadáveres caíram no deserto. 18 A quem jurou que não entrariam no descanso? Aos rebeldes; 19 e assim vemos que por sua incredulidade não puderam entrar. 4,1 Enquanto está em pé a promessa de entrar em seu descanso, sejamos cautos, para que a nenhum de vós aconteça que fique suspenso; 2 pois nos anunciaram a boa notícia da mesma forma que a eles. Mas a mensagem que ouviram não lhes valeu, porque não se compenetraram pela fé com o que ouviram. 3 No descanso entramos os que temos crido, como fica dito: “Jurei irado que não entrarão no meu descanso”. Salmo 95 As tarefas, com certeza, concluíram-se com a criação do mundo, 4 como se diz num texto sobre o sétimo dia: “No sétimo dia descansou Deus de todas as suas tarefas”; 5 e neste outro: “Não entrarão em meu descanso”. 6 Ora, como restam alguns para entrar nele, e os que receberam primeiro a boa notícia, por sua rebeldia não entraram, 7 assinala outro dia, um “hoje”, pronunciando muito depois por meio de Davi o texto antes citado: “Se hoje escutardes sua voz, não endureçais o coração”. 8 Se Josué lhes tivesse dado o descanso, não se falaria depois de outro dia. 9 Logo resta um descanso sabático para o povo de Deus. 10 Alguém que entrou em seu descanso, descansa de suas tarefas, da mesma forma que Deus das suas. 11 Portanto, esforcemo-nos para entrar naquele descanso, para que ninguém caia segun do o exemplo daquela rebeldia. A propósito do v. 3 do salmo, podemos citar algumas linhas de ICor 8: 4 Ninguém é Deus mais que um; 5 pois, ainda que haja os chamados deuses no céu e na terra — e de fato há numerosos deuses e numerosos senhores — , 6 para nós não há mais que um Deus, o Pai de quem procede o universo e a quem estamos destinados, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem existe o universo e existimos nós. Salmo 96 1. Texto 1 2 3 4 5 6 Cantai ao Senhor um cântico novo; cantai ao Senhor, a terra inteira; cantai ao Senhor, bendizei seu nome, apregoai dia após dia sua vitória. Cantai aos povos sua glória, suas maravilhas a todas as nações. Porque é grande o Senhor e muito digno de louvor1. mais temível que todos os deuses. Pois os deuses dos pagãos são aparência, ao passo que o Senhor fez os céus. Honra e Majestade estão em sua presença, Força e Beleza2 estão em seu santuário. 7 Tributai ao Senhor, famílias dos povos. tributai ao Senhor glória e poder. 8 Tributai ao Senhor a glória de seu nome, entrai em seus átrios trazendo-lhe oferendas. 9 Prostrai-vos diante do Senhor no átrio sagrado, trema em sua presença a terra inteira. 10 Dizei aos pagãos: O Senhor é rei: ele firmou o orbe, e não vacilará; ele governa os povos com retidão. 11 Alegrem-se os céus, goze aterra. estronde o mar e quanto contém3 12 exulte a campina e quanto há nela, aclamem as árvores silvestres 13 diante do Senhor, que já chega já chega para reger a terra; 1muito famoso 2e elegância 3o povo 1206 Salmo 96 14 regerá o orbe com justiça e os povos com fidelidade. 2. B ibliografia Veja-se a bibliografia do SI 93. R. Tournay, Les psaume s complexes, RB 54 (1947) 533-542. A. Caquot, In splendoribus sanctorum. Ps 29,2; 96,2; 1 Cr 16,29, Syria 33 (1956) 36-41. J. Brinktrine, Dominus regnavit a ligno, BZ 10 (1966) 105-107. M. Massini, Sal 96,1-3.11-13; L u c a 2 ,ll. Inno al Salvatore, ParAsFest 7 (1970) 25-35. N. C. Habel, Yahwe maker o f heaven and earth: a study in tradition criticism, JBL 91 (1972) 321-327. M. Russ, Singet Ihm einen neuen Gesang! Eine Anmerkung zu Ps 96, em FS Schelkle, Düsseldorf, 1973, 15-21. S. Springer, Om eftearsfesten som Baggrund for tronbestigelssalmer og kongesalmer, Lumen 18 (1975) 98-112. C. Houtman, Dejubelzang van de struiken der wildernis in Ps 96,12b, FS Ridderbos, Amsterdam, 1975. 3. Análise filológica 4. wmhll, nwr’: particípio passivo com valor modal (como latim em -ndus) GK 116 d, Joüon 121 i. 5. ’lylym: daemonia Vg, epiplastoi Aq, anyparktoi = nulidades Sím, sculptilia Jerôn, vazio Sir, engano Targ, idola Pagnini, cf. lCor 10,20. 6b. variante em lCr 16,27. 7-9. variação do SI 29. 9. bhdrt qdsh: ornamento ornato sacro Jerôn Aq Sím Hitzig Del Gun Cast; átrio LXX Vg Sir; Qim entende-o como esplendor e identifica-o com o templo; quando aparece o Santo Dah Rav. 10. tkwn: está firme; leram verbo ativo LXX Sím Jerôn appendit. 11. yr‘m: ressoe, retumbe Aq Sím Teod Jerôn; agite-se LXXVgEutímio. 12. ’z: antes de repetição GB 20a. 4. Estudo global a) Gênero e situação E um hino à realeza do Senhor, colocado na série 93-99: dos quais, o primeiro canta a tomada de posse solene, o segundo o começo da atividade judicial, o terceiro a admoestação do soberano, o quarto é um hino triunfal. Estudo global 1207 O autor cita versos de outros, adata, imita, e consegue uma composição unificada pela perspectiva coerente e animada pelo entusiasmo. Quer cantar o reinado sereno e universal, para o que apaga os mo mentos de luta ou justiça vindicativa. E preciso fazer algum esforço para rastrear pegadas dessa luta: na palavra vitória, pode-se imaginar a luta precedente; na firmeza do orbe, imagina-se as águas movediças por baixo; no não vacilar, entreolham-se perigos velados. Imaginações nossas condi cionadas por nossa familiaridade com textos aparentados, que funcionam como contexto mental. Mas o que contempla o poeta é a serenidade e tran qüilidade do reinado. A universalidade manifesta-se em todo o desenvolvimento, de caráter enumerativo. Pode-se apreciar na reiteração de kol = todo, inteiro, que soa sete vezes: a terra inteira, todos os povos, todos os deuses, tudo quanto há nele, todas as árvores. Tudo e todos devem participar da festa e do louvor. Todos menos os deuses, porque todos os deuses não passam de ídolos inertes. Não se menciona Sião nem Israel, que poderiam limitar o horizonte universal. Ainda que alguém haja de contar e dizer aos povos, fá-lo sem identificar-se. b) Modelos e semelhantes O campo de trabalho do autor é principalmente o saltério e a segunda parte de Isaías (40-66), ou restringindo (40-55). No caso desse salmo, a comparação nos prestará bons serviços (deixo para o SI 98 a explicação dos dois símbolos finais). — Atividade cultual. Tomando o começo como invitatório costumeiro, isolamos os verbos shyr, brk, bsr, spr - cantar, bendizer (ou ajoelhar-se), apregoar, contar. E preciso isolar o primeiro em seu sintagma: “cantai ao Senhor um cântico novo”: encontramo-lo no SI 33,3, no gêmeo 98, imita-o o tardio 149 e aparece em Is 42,10, que apresenta outro material paralelo. Apregoar (bsr) uma boa notícia por um arauto: está já presente no SI 40,10, e é típico do Segundo Isaías (40,9; 52,7; 41,27), e as imitações de 60,6; 61,1. O imperativo hbw e os jussivos vê-los-emos no seu lugar. — O louvor universal: de povos, nações, todo o mundo. Podem-se distinguir: a mensagem missionária a todos os povos (3.10) e a participação dos pagãos no louvor (7). O primeiro encontra-se, por exemplo, no SI 9,12 e 105,1; o segundo no salmo “de ascensão” 67, no 86,9 e no exílico 102. Supondo que Is 2,2-5 seja autêntico, a idéia é antiga, mas firma-se e estende-se em épocas posteriores, quando também para os judeus o culto em Jerusalém teve que suprir outras carências. O começo da terceira parte do livro de Isaías anuncia: 1208 Salmo 96 56,7 Minha casa é casa de oração, e assim a chamarão todos os povos. Algo semelhante diz o texto posto nos lábios de Salomão para a inauguração do templo: lR s 8,41 Também o estrangeiro, que não pertence a teu povo, Israel, quando vier de país estrangeiro atraído por tua fama 42 — porque ouvirão falar de tua grande fama, de tua mão forte e teu braço estendido — , quando vier rezar nesse templo, 43 escuta-o tu desde o céu onde moras. Esses textos e outros semelhantes não mencionam a realeza do Senhor; os dois citados falam de súplica e não de louvor, que facilmente se subentende. — Louvor da natureza, ou melhor, da criação. E uma participação gozosa e festiva. Em outras culturas vizinhas organiza-se uma distribuição de zonas e competências entre divindades diversas: há um deus celeste, uma divinda de telúrica, uma agrária, outra florestal, outra marinha ... Em nosso salmo as criaturas estão personificadas para participar do louvor, mas não são divindades. O parenteso com Is 40-55 é patente. Devo citar vários textos para mostrar que é quase um motivo condutor do grande retorno: 42,10 44,23 49,13 55,12 Cantai ao Senhor um cântico novo ... brame o mar e quanto contém, as costas e seus habitantes ... Aclamai, céus, porque o Senhor agiu; dai vivas, profundezas da terra; rompei em aclamações, montanhas; e tu, bosque, com todas as tuas árvores. Exulta, céu; alegra-te, terra; rompei em aclamações, montanhas. Montes e colinas irromperão a cantar diante de vós, e aplaudirão as árvores silvestres. O tema coagula-se na grande liturgia do SI 148. — Os deuses pagãos não são convidados a participar do louvor, porque não passam de ídolos. O termo ’lylym aplica-se aos deuses / ídolos do Egito em Is 19,1.3 e Ez 30,13 (paralelogllym = esterco?), proíbe-se sua fabricação (Lv 19,4; 26,1) junto com outros objetos cultuais. A melhor explicação oferece-nos Is 2,8.18.20 e 31,7. A atitude do autor é tão radical que, ao citar o princípio do SI 29, subs titui bny ’lyrti por mshphwt ‘mym = famílias dos povos. Essa mentalidade corresponde perfeitamente à do Segundo Isaías, ainda que seja diversa a terminologia. Sobre a “vinda” do Senhor, veja-se o comentário ao SI 98. Exegese 1209 c) Composição e estilo Os diversos materiais estão dispostos no salmo segundo o esquema de hino, em duas ondas desiguais: 1-3 4-6 7-10 11-12 13 invitatório com seis imperativos duplo ky e motivação: títulos e atributos invitatório com oito imperativos invitatório com cinco jussivos duplo ky motivação: reinado universal. Aprecia-se o desequilíbrio entre o espaço dedicado a convocar partici pantes e a brevidade das duas motivações, especialmente da segunda. Se aos humanos interpela em imperativos, aos seres da natureza apela em jussivos. A síntese das duas motivações dá-nos o tema articulado: o Senhor é rei acima de todos e vem tomar posse do reino e exercer seu reinado. E um remado de signo terrestre e histórico, “o mundo e os povos”; por essa atividade do Senhor em favor da humanidade, o cosmo deve se somar ao louvor festivo. Em outras palavras, o estabelecimento do reinado do Senhor sobre os homens deve encher de gozo toda a criação. Os seres vivos, animais, estão metidos sem consideração em fórmulas genéricas: “tudo o que o enche, o que há nela”. Bem diversa a visão do SI 8, que apresenta o homem como vice-rei de aves, quadrúpedes e peixes. Também é diversa a integração harmoniosa do homem na natureza serena como a apresena o SI 104. Aqui os homens são meros súditos de único soberano (sem mediadores), e a natureza assiste como gigantesco coro. O estilo caracteriza-se pelas repetições de palavras e de formas gramaticais: tríplice shyrw (1-2), tríplice hbw (7-8), dez vezes Yhwh aclamado e reconhecido, imperativos e jussivos em cascata. Também a sonoridade cuidada revela um poeta de bom ouvido. 5. Exegese la. A frase completa conhecemos pelo SI 33, que canta a soberania do Senhor sem usar o título de rei; acolhê-la-ão salmos tardios (144,9 e 149,1). Teoricamente, o canto é novo a primeira vez que se canta, deixa de sê-lo quando se repete. Mais estranho é declarar novo um canto feito de retalhos usados. Contudo, creio que não é mera fórmula, que o autor é sincero e move-se com o espírito de novidade que anima o profeta do desterro, como mostram algumas expressões: o citado 42,10, anúncio de coisas novas (42,9), faço algo novo (43,19), prego coisas novas (48,6); cf. o nome novo de Is 62,2. Salmo 96 1210 lb . O plural cantai mostra que “toda a terra” designa aqui (e em 9) os habitantes, como em português “todo o mundo”. 2a. O verbo e o gesto de ajoelhar-se (qal de brk) lê-se numa adição pessoal do Cronista (2Cr 6,13), e tem valor histórico muito duvidoso que Salomão tenha se ajoelhado em seu estrado. Inclino-me a ler o piei tradicional de brk. Bendizer o nome é fórmula que se coagula mais tarde no saltério: 100,4 de tom semelhante sem título real, 103,1 e a imitação de 145,1.21 com título real. 2b. Um arauto apregoa a boa notícia (bsr) da vitória (yshw‘h). Ilustrao Is 52,7: Quão belos são sobre os montes os pés do arauto que anuncia a paz, que traz a boa nova, que apregoa a vitória, que diz a Sião: Teu Deus é rei! 3. Para apreciar o alcance expressivo, missionário, do verbo, comparese com 78,3: “nossos pais nos contaram”, que se confina no âmbito da nação. Pela lei do paralelismo, trata-se da glória revelada nos portentos. 4.nwr’: que infunde respeito, reverência (cf. SI 76). Em textos babilónicos diz-se algo semelhante do deus declarado supremo; por exemplo, no hino a Nabu, deus e patrono de Nabucodonosor (604-562): “Deuses e homens aprendem a respeitar sua divindade augusta” (Seux 127). 5. E anômalo mencionar só os céus, sem acrescentar a terra, falando do criador. A razão poderia ser o contexto próximo, que trata dos deuses, seres supostamente “celestes”, e que o autor relega a mera manufatura terrena. 6. Pelo contexto refere-se ao “santuário” celeste, onde assistem o soberano quatro personificações, não divindades. 7-9. O autor toma os dois primeiros versículos do SI 29, substitui as divindades por “famílias de povos” e acrescenta duas peças nos postos quarto e sexto da série. Com elas introduz o tributo próprio da vassalagem e estende o horizonte a toda a terra enquanto povoada. O verbo hylw está no plural, como o shyrw do v. 1; contudo, os LXX leram no singular, e em outros salmos da série é a terra que estremece e se agita. A prostração (hshthww) é tradicional (não, porém, o ajoelhar-se). A segunda frase procede de 93,1, onde se encaixa melhor, falta no pa ralelo de lCr 16,31 e em alguns manuscritos, da mesma forma que a terceira frase. Por isso alguns se inclinam a eliminá-las para ficar com a aclamação sóbria (Yhwh mlk). E certo que o versículo assim podado ganha força expressiva. Tal como lemos o versículo, a aclamação amplia-se e comenta com dois efeitos correlativos: a estabilidade do orbe, a justiça internacional. Transposição cristã 1211 11. O bramido do mar, é rebelde e ameaçador ou é linguagem própria do mar para expressar seu entusiasmo em harmonia com céus e terra? (como se fosse a voz do baixo no coro polifônico). O contexto do salmo impõe leitura festiva. 12. Pelo que sei, esse é o versículo mais original de todo o salmo, sdy representa o campestre (Dt 32,13; Os 10,4) antes que o agreste (Is 56,9; SI 50,11; 80,14). Seu paralelo correlativo é o silvestre ou selvático, as árvores não cultivadas. 13. O verbo shpt tem aqui o sentido genérico de governar, que inclui como tarefa capital o julgar. Porque governa “com fidelidade”, o homem pode confiar nele. 6. Transposição cristã Podem-se seguir duas pistas: a vinda ou o advento e o reinado. Deixando a primeira para o SI 98, escolho a segunda. Pode-se tomar o reinado de Deus (Pai) ou o de Cristo glorificado. A segunda carta de Timóteo junta os dois temas (talvez como reminiscência do salmo): “Diante de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar vivos e mortos, peço-te encarecidamente, em nome de sua vinda e de seus reinado...” (4,1). O Apocalipse é o texto mais rico em referências ao tema. — Sobre o reinado de Deus Pai. A homenagem dos vinte e quatr anciãos soa assim: 11,17 Nós te damos graças, Senhor, Deus Todo-poderoso, o que és e eras, porque assumiste o poder supremo e o reinado. A visão do c. 12 interrompe-se com uma aclamação no céu: 12,10 12 Chegou a vitória, o poder e o reinado de nosso Deus, e a autoridade de seu Messias ... Por isso, festejai-o, céus e os que habitais neles. Ai da terra e do mar!, porque baixou a vós o diabo ... O reinado e a alegria no céu coincidem com o salmo; por isso chama mais a atenção a mudança de situação na terra e no mar. A razão é que o autor ou visionário descreve a fase pendente duma luta, cuja batalha celeste já foi combatida e vencida. Pelo final do livro, volta a soar a aclamação: Salmo 96 1212 19,6 — Já reina o Senhor Deus nosso Todo-poderoso, façamos alegre festa dando-lhe glória ... Reinado de Jesus Cristo: 11,15 Chegou o reinado no mundo de nosso Senhor e de seu Messias: reinará pelos séculos dos séculos. Podemos ampliá-lo com dois textos das cartas: ICor 15,25 Cl 1,13 Tem que reinar até submeter todos os seus inimigos sob seus pés. Arrancou-os do poder das trevas e transladou-os ao reino de seu Filho querido. Pode-se ver também o episódio intercalado na parábola das “minas” (Lc 19,14). O NT acrescenta outro dado ao tema, e é que os cristão participarã deste reinado: Ap 5,10 Ap 20,6 5 Fizeste deles o reino de nosso Deus e sacerdotes, e reinarão na terra. anuncia o reino milenário; 22,6 anuncia a consumação Ilumina-os o Senhor Deus, e reinarão pelos séculos dos séculos. Salmo 97 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 O Senhor reina, a terra exulta, alegram-se as ilhas inumeráveis. Nuvens densas e grandes o rodeiam,1 Justiça e Direito sustentam seu trono. Diante dele avança Fogo abrasando em torno seus inimigos. Seus relâmpagos deslumbram o orbe; ao vê-lo, a terra estremece. Os montes derretem-se como cera diante do Senhor, diante do Dono da terra inteira. Os céus proclamam sua justiça e todos os povos contemplam sua glória Envergonham-se os que adoram estátuas e os que põem seu orgulho2 nos ídolos. Diante dele prostram-se os deuses. 8 Ouve-o Sião e faz festa3, regozijam-se as povoações de Judá por tuas sentenças, Senhor; 9 porque tu, Senhor, és Altíssimo sobre toda a terra, elevado sobre todos os deuses. 10 O Senhor ama quem detesta o mal,4 guarda a vida de seus leais, livra-os da mão dos malvados. 1 envolvem-no 2 gloriam-se em seu 3alegra-se 4os que amais ao Senhor, aborrecei o mal, ao que guarda Salmo 97 1214 11 Amanhece5 a luz para o honrado e a alegria para os retos de coração. 12 Festejai, justos, ao Senhor, dai graças a seu nome santo. 2. Bibliografia R. Bornert, Le psaume 97: Hymne pour la manifestation du Seigneur, AssSeig 17 (1962) 7-20. S. Morag, Light is sown. Ps 97,11, Tarbiz 33 (1963-64) 140-148. D. Colombo, Salmo 96 (7),1.6.11-12. Per il giusto è spuntata la luce, PaarAsFest 7 (1970) 80-90. W . A. Beuken, De vreugde om JH W H ’s Heerschappij. Een structuuranalyse van Ps 97, em Verkenniger in een Stroomgebied, Amsterdam, 1974,102-109. A. van den Branden, Il Dio Eljôn, BiOr 16 (1974) 65-85. 3. Análise filológica I. tgl. jussivo LXX Vg Hitzig Duhm Gun Kraus Dah Rav; indicativo Jerôn Del. 4. wthl: wayyiqtol, para o acento Joüon 47b. 10. TM os que amais o Senhor odiai o mal, que guarda a vida de seu fiéis Del Rav; resolvendo shmr em indicativo LXX. Corrigem o texto: ama o Senhor os que odeiam o mal, guarda Duhm Gun Wellhausen Kraus. II. zr‘: está semeada (destinada, preparada) Ros; se esparze Dahte Phil Hitzig Dah. Corrigem para zrh = amanhece Vg Jerôn Dyserinck Bickell Duhm Kraus (o aneteilen da LXX diz-se de astros e vegetais). Traduz ’wr por campo Dah; Phil cita e rejeita os que interpretam ’wr como planta, hortaliça. 12. Izkr: nome, porque pelo nome o recordamos Qim; memoriae Vg. 4. Estudo global a) Gênero e colocação Cântico à realeza de Yhwh, o quinto da série “real”. Vimos que julgar é tarefa primordial do rei, o que nos explica a espécie dentro do gênero e o movimento da série. No SI 93, o Senhor assume a dignidade do poder real, 5 semeia-se Estudo global 1215 em 94 julga os malvados e descrentes, em 95 admoesta a seus súditos, em 96 canta-se com entusiasmo a tomada de posse, em 97 celebra-se um julgamento de idólatras e malvados em favor dos honrados. Ocupa posto semelhante ao do 94, mas o desenvolvimento é muito diverso: aqui falta a interpelação apaixonada e o julgamento é uma festa. b) Teofania judicial A teofania é parte do aparato judicial. Ojuiz supremo não se apresenta com modéstia burocrática, mas com atributos imponentes de sua autorida de. E cena que, partindo de alguns dados empíricos, converte-se em visão espetacular. Há um trono ou sede do tribunal, o juiz, exaltado num estrado celeste, acompanha um séquito que abre passagem e evacua toda oposição, sentado num trono ojuiz avança (trono gestatório?). As polaridades tornam mais impressionantes a cena: envolto em grandes e densas nuvens, des lumbra com relâmpagos, e a terra alegra-se e estremece. A teofania como elemento da guerra e do juízo (muitas vezes fundidos) é coisa conhecida. Recordarei dois casos. O primeiro é o primeiro ato de liturgia penitencial, em forma de juízo contraditório. O Senhor apresentase e convoca a outra parte: SI 50,1 2 3 O Deus dos deuses, o Senhor fala, convoca a terra do oriente ao ocidente. De Sião, epítome de beleza, Deus resplandece ... Precede-lhe fogo voraz, cerca-o tempestade violenta. Miquéias apresenta um juízo de condenação contra a idolatria de Samaria (e de Judá no v. 5c, provavelmente acrescentado): 1,3 4 7 Olhai o Senhor que sai de sua morada e desce e caminha sobre o dorso da terra. Sob ele derretem-se os montes e fendem-se os vales como cera junto ao fogo, como água precipitada pela correnteza ... Todos os ídolos serão triturados ... arrasarei suas imagens. Se em Miquéias o delito é religioso, de idolatria, no SI 50 é ético e religioso enquanto se apóia na aliança. Há um pormenor no SI 97 que se poderia tomar como traço bélico, o fogo que abrasa os inimigos (cf. SI 68,2s e 21,10). Mas também pode ser motivo tópico, como mostram algumas citações babilónicas. 1216 Salmo 97 De um hino a Marduk: “Abrasas teus inimigos como fogo furioso” (Seux 73). De hino acróstico a Marduk convém citar vários versos, também os que mencionam a submissão dos demais deuses a Marduk: “Quando convoca os Igigu e os Anunnaku, ajoelham-se diante dele, e os deuses procriadores mantêm-se em silêncio ... Estão submetidos a ti os Igigu e os Anunnaku, deuses e deusas de templos e santuários ... Filho primogênito de Nudimmud, valente, poderoso, tempestade inexorável, fogo furioso, chama que abrasa seus inimigos” (Seux 118). c) Réus e inocentes A presença de duas partes diante do juiz respeita uma lógica mínima, não aplicada com todo rigor e coerência. Fixar-me-ei nos idólatras, os deuses e os inocentes. — Os idólatras são os principais culpados (os únicos?). Esses homens servem “estátuas” e as veneram, põem seu orgulho nos ídolos. A designação é polêmica. Instruído talvez pela teologia de Is 40-55, em particular de 44, 12-20, o orante não os chama deuses alheios ou estrangeiros, como o Deuteronômio, mas os reduz a estátuas inertes. Os que se gloriavam de seus ídolos “ficam confundidos” com o rubor do fracasso, da condenação judicial. São estes idólatras os mesmos que os “malvados” do v. 10? Dada a experiência histórica, a identificação é possível: poderiam ser os babilônios. Por outro lado, rsh‘y m está perto e oposto a çdyqym (11.12) segundo fórmula tradicional: ao passar à esfera ética, assomam os malvados / culpados (o termo rsh‘ym não é favorito de Is 40-55). — Deuses e divindades. Se a expressão “elevado sobre todos os deuses” (9b) soa ambígua, pelo precedente de 96,4, a expressão de 7b reconhece entidade subordinada a outras divindades (sem precisar, como 96,5a, que são de outros povos). Os deuses acorrem para prestar homenagem a Yhwh como vassalos submissos. Como se ter deuses como súditos fosse título honorífico para Yhwh. Cf. “Deus de deuses” (SI 50,1) comparado com rei de reis. A representação é afim à antes mencionada sobre Marduk e a outras semelhantes. Por exemplo, num hino a Istar lemos: “Todas as deusas dos povos ajoelham-se diante dela, todas juntas ajoelhadas a imploram”. E num hino a Nabu (que pode ser adatação posterior dum antigo hino a Marduk) se diz: Exegese 1217 “Os deuses do céu e da terra ... vêm temerosos ajoelhar-se diante de ti” (Seux 127). — Os inocentes. São seus “leais” ou vassalos: ainda não como grupo político definido. Estão ameçados de morte pelos malvados, e o Senhor salva suas vidas, provavelmente por meio desse julgamento. A lealdade do Senhor engloba as exigências éticas de odiar o mal, a honradez, a retidão de coração. Descer à esfera ética pessoal, depois do grandioso quadro precedente, parece a alguns comentadores uma queda; inclusive suspeitam alguns que os versículos finais são adição tardia para adatar o salmo. Invertendo o raciocínio, pode-se pensar que o autor quis dar transcendência inusitada aos deveres éticos: como no julgamento do SI 7,8: “Que te cerque a assembléia das nações, preside-a desde o alto: o Senhor é juiz dos povos”. d) Composição e relações — Uma inclusão maior, de 1 e 12, encerra todo o cântico numa tonalidade de alegria; o gozo aflora de novo no v. 8. A vinda impressionante do Rei para fazer julgamento é acontecimento gozoso. A luz do v. 11 faz eco ao resplendor do v. 4, se bem que o tipo e a função da luminosidade sejam diversos. Os malvados do v. 10 poderiam ser os inimigos do v. 3. Com esses enlaces, não muito fortes, vincuala-se a última parte com a primeira. A repetição de terra em 4 e 5 leva-nos a tomar os cinco primeiros versículos como secção compacta. Nos versículos 6-9 a justiça e a glória do Senhor vão se opondo à confusão dos idólatras, e essa ao gozo de Sião e Judá, e o último versículo traz a motivação. Temos assim uma divisão tripartida do salmo (1-5.6-9.10-13). Mas não se deve dar muita importância à divisão, que turva outras relações. Amortecendo as divisões, o salmo avança com grande fluidez e com discreta irregularidade. — Terra e costas se alegram, orbe e montanhas estremecem, os céus declaram e os povos contemplam, os idólatras se enrubecem e os deuses se prostram, Sião e Judá se alegram e os honrados fazem festa. Nessa série se destaca o papel dos céus, testemunhas notariais do Senhor. A cena do juízo tem um protagonista e muitas personagens. 5. Exegese 1. ’yym são as costas, ilhas e penínsulas; em geral, o mundo ocidenta mediterrâneo; coletividade que não forma uma nação nem existe com nome próprio; rbym diz multidão e totalidade. Polarizado por “costas”, “terra”, 1218 Salmo 97 pode designar a terra firme onde se encontra quem fala. O interesse pelas costas é típico do Isaías do desterro (reagindo contra o imperialismo ba bilónico?) (41,1.5; 42,4.10.12; 49,1; 51,5; Is 11,11 dependente dos anterio res); vejam-se também os oráculos “fenícios” de Ezquiel (27) e uma frase do SI 72,10. 2a. O binário aliterado ‘nn w‘rpl funciona como hendíade; pode-se traduzir por “nuvens grandes e espessas, nuvens escuras, nuvem plúmbea, etc.”; também podem-se imaginar personificadas como membros do séqui to. Formam parte costumeira do aparato teofânico (Dt 4,11; J12,2: Sf 1,15). O Senhor mostra-se ... encoberto. 2b. Alude ao pedestal ou embasamento, muitas vezes com figuras esculpidas, onde se assenta o trono. Para a idéia: Pr 16,12; 20,28; 25,5; SI 89,15. 3 .0 fogo é elemento da divindade: torna-a inacessível e devoradora de tudo o que se lhe venha a opor. Além dos textos citados, veiam-se Is 29,6; 30,27; Dn 7,10. 4. Vejam-se SI 77,19, a teofania do SI 18, a visão de Ez 1,13. Os relâm pagos, não os trovões, fazem estremecer a terra. 5. De um hino a Marduk (da biblioteca de Assurbanipal): “Suas chamas consomem as altas montanhas” (Seux 77). Como cera (SI 68,3; Mq 1,4). O derreter-se das montanhas pode-se referir aos rios de lava de vulcão (que o autor tinha visto ou conhecia por ouvir dizer). 6. Os dois hemistíquios não se harmonizam bem: os céus declaram, os povos vêem; esperava-se ouvir como correlativo de declarar. O primeiro hemistíquio atribui papel privilegiado aos céus, o segundo recorda textos como Is 35,2 e 40,5. 7a. O fracasso e a estultícia dos idólatras convertem-se em motivo convencional: Is 32,17 Is 44,20 Jr 2,28 Retrocederão envergonhados os que confiam no ídolo, os que dizem à estátua: Tu és nosso Deus. Apascenta-se de cinza, uma mente iludida o extravia; não é capaz de salvar-se dizendo: Não é engano o que tenho na destra? E onde estão os deuses que te fazias? Que se levantem e se salvem do apuro! 7b. Para a homenagem das divindades, veja-se também o SI 29. A versão grega fez dos deuses anjos. 8. E citação literal do SI 48,12, que é dedicado ao Grande Rei e centrad em Sião. Mudado o texto, muda o alcance. Sião é aqui o único lugar definido pelo nome; dela se aproximam as “cidades de Judá”. Transposição cristã 1219 9. Vejam-se os SI 47,3 e 83,19. 10. Para as duas leituras propostas na análise filológica podem-se encontrar paralelos. Em ambas se dão um amor e um ódio correlativos e a oposição irreconciliável de Deus para com o mal. Se o homem detesta o mal moral, o Senhor o libertará do mal físico, livrará sua vida. Detestar o mal (Am 5,15 eM q 3,2). 11. Se se aceita a correção de zr’ para zrh, a frase encerra duas alusões sutis: à manhã como hora de pronunciar sentença e fazer justiça: Jr 21,12: “ide cedo administrar justiça”. Veja-se também SI 112,4, que extrema o paradoxo. 12. Parece inspirado em 33,11. 6. Transposição cristã A carta aos Hebreus (1,6) aplica a Cristo um versículo do salmo, segundo a versão grega (LXX): “Que o adorem os anjos de Deus”. Concebe os anjos como criaturas celestes. A competência de julgar atribui-se a Cristo, tanto em sua primeira vinda como na última. Lê-se em Jo 5,25: O Pai não julga ninguém, delegou ao Filho todo o poder de julgar, para que todos honrem ao Filho como honram a ele. Segundo Jo 9,39, já começa agora seu exercício. At 10,42 afirma: “Deus nomeou-o juiz de vivos e mortos”. Mt 25,31-46 dramatiza em cena o juízo final ou definitivo como exercício do poder real: a teofania é simplificada, reduzida ao séquito e ao “esplendor”; há castigo definitivo, pelo fogo, para os culpados. Para os bons será alegria escutar: “vinde, benditos de meu Pai”. Também nos discursos escatológicos dos evangelhos soam temas semelhantes, por exemplo, Mt 13,26s. Lucas dá a entender que para os eleitos é momento de felicidade: 21,28 Quando começar a acontecer isso, incorporai-vos e erguei a cabeça, pois se aproxima vossa libertação. Quanto à sorte dos malvados e dos maus, diz o Apocalipse na breve cena do juízo final: 20,14 A Morte e o Abismo foram jogados ao lago de fogo. O lago de fogo é a segunda morte. 15 E todos os que não estavam escritos no registro dos vivos, lançá-los-ão ao lago de fogo. O notável desse texto é que, entre os inimigos condenados à destruição destacam-se os dois poderes aliados, Morte e Abismo. Salmo 98 1. Texto 1 2 3 4 5 6 Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas: sua direita lhe deu a vitória, seu santo braço. O Senhor dá a conhecer sua vitória, revela sua justiça à vista dos povos. Lembrou-se de sua lealdade e fidelidade para com a Casa de Israel. Os confins da terra contemplaram a vitória de nosso Deus. Dai vivas ao Senhor, terra inteira, gritai, aclamai, tocai: tocai a cítara para o Senhor, a cítara ao som1de instrumentos. Com clarins e ao som de trombetas dai vivas ao Senhor e Rei. 7 Estronde o mar e o que ele contém2, o orbe e quantos o habitam; 8 batam palmas3 os rios, aclamem juntas as montanhas 9 diante do Senhor, pois já chega para reger a terra. 10 Regerá a terra com justiça, os povos com retidão. 1acompanhada 2o povoa 3 aplaudam 1221 Estudo global 2. Bibliografia Veja-se a bibliografia do SI 96. E. Beaucham, L ’universe acclame le justicier d ’Israël. Ps 98, BVC 70 (1966) 36-40. A. M. Serra, Salmo 97 (98), 1,6. Il giorno délia salvezza, ParAsFest 7 (1970) 111-120. H. Ringgren, Behold your king comes, VT 24 (1974) 207-211. T. Longman, Ps 98. A divine warrior victory song, JETS 27 (1984) 267-274. 3. Análise filológica 4. pçhw: irrompei a, vociferamini Jerôn, entoai Qim, fazei brotar Targ, expressar em voz alta Hirsch, cantate Vg. 6. bhççrwt: os antigos explicam que são feitas de metal (bronze) batido, tubis ductilibus Vg, diversas das fabricadas de chifre de animal. 7. yr‘m: ressoa Sím Jerôn, moveatur Vg. 4. Estudo global a) Gênero e situação — Este salmo é gêmeo do 96 e pertence à série 93-99. É hino à realeza do Senhor que, depois de vitória patente, vem para tomar posse de seu reino universal. Observa pontualmente os cânones do gênero hino, ou seja: convite — ky — motivação. O peculiar do salmo é que reparte a motivação em duas peças colocando-as no primeiro versículo e nos dois últimos. — Embora o salmo cante em termos genéricos uma vitória do Senhor e a inauguração de seu reinado, alguns dados induzem a situá-lo na conjuntura do profeta do desterro, o Segundo Isaías, quer no tempo da predição esperançosa, quer na realização inicial. Temos que ler aqui alguns versículos desse profeta: 52,7 8 Quão formosos são sobre os montes os pés do arauto que anuncia a paz, que traz a boa nova, que apregoa a vitória, que diz a Sião: Teu Deus reina! Escuta: teus vigias gritam, cantam em coro, porque vêem face a face o Senhor que volta a Sião. 1222 Salmo 98 9 10 Rompei a cantar em coro, ruínas de Jerusalém, pois o Senhor consola seu povo, resgata Jerusalém. O Senhor desnuda seu santo braço à vista de todas as nações, e verão os confins da terra a vitória de nosso Deus. A semelhança, em certos pontos quase identidade, é patente; à qual é preciso acrescentar alguns dados. Lê-se quase no começo da profecia um breve hino à vitória, com participação coral de homens, mar e montanhas, em âmbito universal: 42,10 Cantai ao Senhor um cântico novo ... ruja o mar e o que contém, as costas e seus habitantes ... 11 clamem desde o cume das montanhas ... 12 anunciem seu louvor nas costas. Conhecemos (pelo SI 96) o interesse desse profeta pela novidade de ação e anúncio (41,15; 42,9; 43,19; 48,6). O verbo pçh só figura aqui e cinco vezes nesse profeta. A idéia, porém, de que a vitória foi conseguida com suas forças, “seu braço”, só encontramos em Is 59,16; 63,5). — Na perspectiva histórica proposta, o salmo interpreta-se assim: O Senhor Deus de Israel, que parecia vencido pelos deuses da Babilônia, conseguiu agora a vitória (por meio de seu vassalo Ciro); foi vitória patente no âmbito internacional. Agora, com os seus resgatados, volta à sua capital e ao seu palácio, como rei triunfante, para tomar posse de seu legítimo reino universal. O povo de Israel é o beneficiário, os outros povos contemplam-no, a natureza soma-se à festa. Naturalmente, o ponto de vista é a fé de Israel, que pode afirmar tranqüilamente a soberania universal de seu Deus, o Deus único, segundo o profeta do desterro. Neste salmo não estão presentes outras divindades. A visão do salmo, porém, desborda a realidade empírica do retorno e assume facilmente orientação escatológica. b) Composição — Aplicando o esquema tradicional do hino, o salmo procede em duas ondas desiguais. Vejamos o esquema: imperativo louvai — vocativo — NN — complemento — ao Senhor — — motivação porque fez Terminado o processo, recomeçam os imperativos. O salmo fica assim dividido em duas partes desiguais: 1223 Estudo global o convite a cantar lb-3 motivação 4-6 convite a cantar com instrumentos 7-8 convite à natureza 9 motivação As duas motivações, no começo e no fim, formam inclusão de termos com plementares. Poderíamos chamá-la de motivação articulada em dois tempos e abarcando o salmo inteiro. O material distribui-se desigualmente entre as duas partes: a primeira dá muito espaço à motivação, explicando seu caráter e seu alcance; a segunda parte dá grande espaço aos participantes no louvor coral. A fidelidade do salmo ao padrão do hino permite agrupar e observar dois paradigmas de cada elemento do esquema, já que este se amplifica por enumeração (projeção do paradigma no sintagma). Imperativos e jussivos: cantai, dai vivas, entoai, aclamai, tocai, tocai, dai vivas; ressoe, aplaudam, aclamem. Sete imperativos e três jussivos; descontando repetições: sete verbos diferentes. Convidados ao louvor: todo o mundo, um grupo instrumental de três classes, quatro seres da natureza. Motivações. Sete verbos: fez, salvou, manifestou, revelou, recordou; vem, regerá. Sete qualidades ou atributos: maravilhas, vitória, justiça, lealdade, fidelidade, justiça, eqüidade. A reiterada estilização numérica delata gosto formal sem revelar muita fantasia poética. Dentro de cada paradigma, as relações não são particulamente significativas. Baste notar a duplicação da raiz çdq: a justiça regulou a vitória e regulará o governo. c) Vitória e governo Para mostrar a relação de ambos os elementos, proponho um sintagma complexo: “Obtida uma vez a vitória, o rei vem para instaurar um regime de justiça”; que se pode variar assim: “o rei é entronizado para vencer o inimigo agressor e para administrar a justiça”. A primeira formulação dános o contexto próximo do salmo, a segunda permite-nos alargar sua base. — Diante do perigo constante filisteu, os israelitas pedem um rei, e Deus finalmente condescende: ISm 8,20 guerra ... Que o nosso rei nos governe e saia à nossa frente para lutar na 10,24 Então Samuel disse a todo o povo:— Vede quem elegeu o Senhor; não há como ele em todo o povo. Todos o aclamaram: Viva o rei! Quando Davi é ungido rei de todo Israel, os mensageiros alegam suas vitórias precedentes: 1224 Salmo 98 2Sm 5,2 Já antes, quando Saul era nosso rei, tu eras o verdadeiro capitão de Israel. Antes de morrer, Davi menciona a justiça como primeira tarefa do monarca (2Sm 23,3s). Atalia tenta exterminar toda a família real, mas salva-se Joás, escon dido no templo. Chegado o momento oportuno, o sacerdote Jojada organiza uma conjuração para estabelecer como rei o pequeno herdeiro: 2Rs 11,12 Então Jojada tirou o filho do rei, pôs-lhe um diadema e as insígnias, ungiu-o rei, e todos aplaudiram aclamando: Viva o Rei! Muitos reis faltaram com sua dupla missão. O salmista invoca o reinado direto do Senhor. — Sugeri como contexto próximo provável o grande retorno à pátria, o segundo êxodo. Ainda que seja próprio do Segundo Isaías, completo com uma citação posterior, que reúne vários temas do salmo: Is 62,1 11 63,2 5 até que rompa a aurora de sua justiça e sua salvação arda como uma tocha ... O Senhor fá-lo ouvir até os confins da terra. Dizei à cidade de Sião: olha o teu Senhor que chega ... Eu, que sentencio com justiça e sou poderoso para salvar ... meu braço me deu a vitória. 5. Exegese 1-3. O complemento plural (npl’wt) do primeiro enunciado parece referir-se a uma série de ações, ao passo que a amplificação parece referirse a ato singular. Como se resolve essa leve tensão? Pode-se responder que numa ação libertadora singular realizam-se muitas maravilhas. Pareceme melhor resolver a tensão apelando ao verbo “recordar”. Canta-se uma ação singular, uma “vitória” da “justiça”, na qual o Senhor “lembrou-se”, teve presente sua “lealdade”. Podemos parafrasear: o Senhor foi coerente consigo, levou em conta seus compromissos, manteve sua “lealdade”. De certa maneira é algo que o Senhor deve a si, ainda que seja a favor da outra parte: lealdade refere-se a outra pessoa e exige continuidade. Pois bem, essa lealdade que é recordação põe a ação singular numa longa série de maravilhas: ao cantar a ação recente, o orante recorda também a série e situa o que viu no contexto do que ouviu. Um “canto novo” pressupõe outro a que sucede e substitui. A série é mantida por “lealdade e fidelidade”, em cada ato manifestam-se “salvação (vitória) e justiça”. Assim obtemos o primeiro quaternário que articula as “maravilhas” do primeiro versículo. Exegese 1225 Em segundo lugar note-se a correspondência Israel-nações (pagãs). A “ação” foi em favor de “Israel”, a quem o Senhor mantém “fidelidade”; sua “manifestação” oferece-se a todos os povos. Através de Israel, todas as nações podem ser testemunhas oculares da ação histórica de Deus. Israel serve no meio das nações como cenário vivo de Deus, como personagem de drama idealizado e realizado por Deus. A articulação do primeiro enunciado genérico avança em três ondas regulares: lb 2 3a o Senhor para si: ganhou uma “vitória justa” o Senhor para as nações: manifestou sua vitória o Senhor para Israel: manteve sua lealdade. A conclusão resume os dados por correspondência ou eqüivalència: 3b os confins da terra contemplaram a vitória de nosso Deus todas as nações revelaram a vitória do Senhor 2 2 2 lb . O peculiar desse versículo é o dativo, que equivale a reflexivo: a vitória salvadora foi em proveito próprio. Outras vezes o verbo hwshy‘ é em favor de outros. Como se o Senhor tivesse sido agredido e tivesse tido que defender-se. 2. E significativo que a “vitória” seja “justa”. Sabemos que “justiça” significa também a razão ou o direito que alguém tem num pleito. Vencendo os inimigos, o Senhor demonstrou que ele tinha razão. 3. E não é que o Senhor deva a salvação emjustiça a seu povo, mas devea a si; se a Israel deve “fidelidade”, é porque espontaneamente ele se comprometeu. 3b. O povo reconhece-o e canta a Yhwh como “nosso Deus”. 4-8. Em cinco versículos, o diretor dá entrada a toda a orquestra e a um coro cósmico de quatro vozes. 4-6. A escritura para a direção da orquestra é curiosa, tem algo de contraponto ou de desenvolvimento por imitações. O autor executa-o talvez sem pretendê-lo) por meio de repetições e eqüivalências simétricas. Atribuindo letras às palavras, e representando em maiúsculas as repeti das, obtemos o seguinte esquema: a F i b B H c g j d G A e h k f F 1 A importância concedida ao acompenhamento orquestral é significa tiva. E provável que nos hinos houvesse espaços exclusivamente instru mentais: o texto menciona corda e vento, outros mencionam também a 1226 Salmo 98 percussão. Conhecemos os gostos musicais do Cronista, que preferia a harmonia das vozes e instrumentos aos mugidos de touros degolados. Porém não se trata só de gostos musicais, mas o salmista reconhece na música um ato superior de louvor. Podem ver-se: Sl 92,2; 101,1; 108,2; 147,1. A música vocal exalta a palavra, intensifica a expressão; a instru mental tempera e harmoniza os sons convertendo-os em louvor. O homem domestica sons selvagens, humaniza sons naturais, submete-os à sua própria ordem a fim de submetê-los, em movimento de retorno, a seu criador. Assim se torna o homem “voz das criaturas”. (E estranha e dificilmente explicável a oposição de alguns Padres à música instrumental na liturgia). 7-8. Os ruídos da natureza também podem-se incorporar na música (uma espécie de música concreta). Como se o autor escrevesse partitura generosa e audaz. O mar e os continentes lançam e repetem uma espécie de trovão (r‘m): um som potente, prolongado, não temperado. Montanhas e rios humanizam seus ruídos. Os rios aplaudem: som esmiuçado em múlti plos e pequenos golpes e fundido em fragor homogêneo; ou então rítmico bater palmas (more hispânico). E os montes, devolvendo e fundindo a variedade de ruídos, expressam sem palavras seu júbilo. Agostinho comen ta o júbilo: “Si quod gaudetis loqui non potestis, iubilate ... non sit mutum gaudium”. O salmo reúne em contexto litúrgico o que o Segundo Isaías distribui ao longo da procissão dos repatriados (44,23; 49,13; 55,12). Se aguçarmos um pouco o ouvido, escutaremos a rica sonoridade desses cinco versículos do salmo. 9. Vem, chega o Senhor. O verbo bw’ ê raro predicado do Senhor: além de algumas “vindas” hostis (Abimelec, Labão, Egito), podem-se recordar: para um pleito (Is 50,2), para julgar (66,15), ao templo (Ez 44,2; Zc 2,14; Ml 3,1); particular importância para o salmo tem Is 40,10 porque menciona outros motivos contextuais: 5 revelar-se-á sua glória ... verão todos 10 vem com força ... seu braço domina. O autor tem pressa em terminar aqui, ou termina com um tema que começo. Sobre seu governo justo, veja-se o comentário ao Sl 96. 6. Transposição cristã Essa reação que espera o remédio das injustiças com a vinda de novo monarca ou chefe está profundamente arraigada nos homens. E a necessi dade e o direito de esperar. Os exemplos do AT não são exceção nem Transposição cristã 1227 peculiaridade, são testemunhos de desejos e esperanças simplesmente humanos. A universalidade desse afã humano facilita a transposição cristã do salmo. Para fazê-la, fixamo-nos nos símbolos fundamentais e vincula dos: o advento e o reinado. — Advento deriva de vir. Em seu primeiro sentido, oferece-nos uma matáfora espacial, de movimentos em nossa direção. Concebemos um Deus distante, que se aproxima e chega. O êxodo do Egito terminou com o anúncio sóbrio: “Cheguei” (Js 5,14); repete-o o êxodo da Babilônia. Também conce bemos a encarnação como uma vinda de Deus ao mundo: quando a Palavra se faz homem, vem ao mundo e habita entre nós. Não menos importante é o uso temporal do verbo. O hebreu represen ta-se o homem num ponto do tempo e vê o futuro vindo de atrás até alcançálo (qdm é adiante / passado, ’hr é detrás / futuro). Nas etimologias portuguesas percebemos concepção parecida: chamamos o futuro de por vir, esperamos o vindouro, falamos do ano que vem, aspiramos quando chegará o dia. Os hebreus tardios chamaram a era escatológica de o mundo vindouro, e um título do Messias é “o que deve vir”. Nosso advento faz parte da concepção temporal mais que da espacial. A teologia e a liturgia ensinam-nos a contar três adventos: a vinda histórica do Salvador ao mundo, sua vinda final ou parusia, a celebração litúrgica de ambas. O SI 98 é salmo de advento, seu caráter é litúrgieo, seu símbolo pode abarcar qualquer vinda, desde o nascimento de Cristo até a parusia. No plano litúrgieo pode-se especificar sua vinda sacramental. A transposição desse símbolo é tão fácil que se pode usar o salmo pedagogicamente para ilustrar as leituras “alegórica, tropológica e analógica” do Antigo Testamento. Se o salmo fala do Senhor, nós celebramos sua vinda no Messias Senhor. — O segundo símbolo do salmo é o reino ou reinado. O Messias “vem” para inaugurar novo regime, para pregar e estabelecer o reinado de Deus na história. Ensina-nos a pedir “que venha teu reinado”, descreve-nos com muitas imagens o caráter e desenvolvimento do novo regime. O tema é tão central no NT, sobretudo nos evangelhos, que parece desatino querer resumi-lo aqui. Ainda que não seja demais recordar que um de seus conteúdos centrais é a justiça. Lido em chave cristã, o salmo canta uma ação central de Deus na história: sua “vitória” sobre o pecado e a morte, e a ressurreição de seu Filho: “Este é o dia em que agiu o Senhor: foi um milagre patente” (SI 118, 23). Ação maravilhosa, realizada à vista de todos, ação que inaugura a nova era definitiva da humanidade, que é o reinado de Deus. Pode-se falar dum “canto novo”. O primeiro cântico de Moisés, regis trado em Ex 15, comemora a vitória de Deus sobre o mar Vermelho e o 1228 Salmo 98 exército egípcio. O título grego do Sl 98 atribui-o a Davi; na realidade, propusemos considerar esse salmo como celebração da vitória do Senhor sobre a Babilônia e como canto do segundo êxodo. Em Ap 15,3 lemos que os vencedores da fera cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro dizendo: Grandes e admiráveis são tuas obras, Senhor Deus, soberano de tudo; justo e verdadeiro teu proceder, rei das nações. Ap 5,9s cita o “cântico novo” que cantavam os viventes e os anciãos em honra do Cordeiro. Em Ap 14,2-3 lemos: Ouvi também um fragor que descia do céu, parecido ao estrondo do oceano e ao estampido de forte trovão: era o som dos citaristas que tocavam suas cítaras diante do trono, diante dos quatro viventes e dos anciãos, cantando um cântico novo. Ninguém podia aprender aquele cântico fora dos cento e quarenta e quatro mil, os adquiridos da terra. Salmo 99 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 O Senhor reina, tremam as nações, entronizado sobre querubins, vacile a terra. O Senhor é grande em Sião, excelso sobre todos os povos. Confessem seu nome, grande e terrível: ele é Santo. O poder real ama a justiça1, tu estabeleceste a retidão; tu administras para Jacó justiça e direito. Exaltai ao Senhor nosso Deus, prostrai-vos à frente do estrado de seus pés: ele é Santo. Moisés e Aarão entre seus sacerdotes, Samuel entre os que invocam seu nome: invocavam o Senhor, e ele respondia. Deus lhes falava da coluna de nuvens; cumpriam suas ordens e a lei que lhes deu. Senhor Deus nosso, tu lhes respondias. Tu eras para eles um Deus de perdão, ainda que vingador de suas maldades. Exaltai ao Senhos Deus nosso, prostrai-vos em direção de seu monte santo: Santo é o Senhor nosso Deus. 1 Rei poderoso que ama 1230 Salmo 99 2. Bibliografia I. Fransen - P. Leyris, Psaume 99, BVC 19 (1957) 49-51. A. Rose, Le règne du Dieu saint: lecturejuive du Ps 99, BVC 19 (1957) 9197. — Celui qui est assis sur les chérubins. Lecture chrétienne du Ps 99, BVC 20 (1957) 101-108. W . Schmidt, Wo hat die Aussage: Jahwe der Heilige ihren Ursprung?, ZA W 74 (1962) 62-66. R. N. Whybray, Their wrongdoings in Ps 99,8, ZA W 81 (1969) 237-239. C. F. Whitley, Psalm 99,8, ZA W 85 (1973) 227-230. J. Luzárraga, Las tradiciones de la nube en la Biblia y en ei judaísmo primitivo, Roma, 1973, 185-186. P. Mommer, Samuel in Ps 99, BN 31 (1986) 27-30. 3. Análise filológica 1. tnwt: indicativo; lêem subjuntivo LXX Vg. 2. ‘mym : alguns manuscritos gregos respondem a ’Ihym. 4. Del: mlk vocativo, mshpt ’hb relativa assindética, ’th sujeito, ‘z complem de kwnnt, myshrym advérbio; Dah: %mlk adj superlativo o mais forte, cf. SI 48,3, segue-o Rav; Gunk corrige para mlk ‘azy suprime mshpt ’hb-, Vg tu parasti directiones; os antigos flutuam entre retidão subjetiva e direito objetivo. 8. 'lylwtm: sufixo com valor objetivo: dirigidas contra eles Qim Ecker Belarmino; Eutímio explica: ou ajudando seus empreendimentos em favor do povo ou rechaçando as agressões contra eles. Os modernos tomam-no em geral como subjetivo: suas maldades. Hitzig corrige para wnhm. 9. ky: causal, ou asseverativo GB 341 b. 4. Estudo global a) Gênero e colocação Este é o último da série dedicada à realeza de Yhwh, mas é muito diverso dos precedentes. Compartilha com o SI 93 da visão da majestade real e com o 95 do julgamento do povo. Mas é único na série e em todo o saltério. A classificação pode obscurecer sua individualidade. O tema da realeza unifica a composição imaginativa. E um rei grande, soberano de povos, impressionante por sua majestade; tem um trono sustentado por querubins e um estrado no monte Sião (não se menciona Estudo global 1231 coroa nem vestes). Tem em sua corte três ministros privilegiados, três homens (não há divindades no salmo). E legislador que “estabelece” o regime da justiça, é executivo que administra a justiça; dá decretos, exige seu cumprimento, castiga os delitos e pode indultar. Os povos lhe rendem homenagem, seus ministros tratam com ele. E provável que o autor se tenha inspirado na visão da vocação de Isaías: “está sentado” (no trono), “elevado”; assistem-no “serafins” (não querubins); soa o triságion; é rei, provoca um tremor (terra / templo), ouve a voz e dialoga, cobre-se de fumaça (nuvem); tudo isso em contexto litúrgico. Se houver dependência, o autor do salmo terá desligado a visão de seu contexto profético transferindo-o a um contexto de aliança com mudança de persongens, mas conservando o cenário Sião / templo. Se não depender de Isaías, alguma fonte litúrgica comum terá inspirado a ambos. b) Estribilho santidade — Há uma tríplice repetição qdwsh hw’, que se alarga levemente na terceira vez; há, de mais a mais, um tríplice invitatório em 3.5.9, com repetição parcial em 5.9. E provável que a execução litúrgica tenha condicionado a forma. Em virtude do efeito de ressonância do estribilho, estende-se uma como que ponte de unidade e se tornam complementares os três versículos. Menciona-se “seu nome” sem pronunciá-lo, com predicados, no v. 3; pronuncia-se em 5 e 9; o “estrado de seus pés” (5) identifica-se com “seu monte santo” (9). Afirma-se, de mais a mais, a identidade de “nosso Deus” e o Deus das personagens mencionadas. — A santidade de Deus domina o salmo, como é central no livro de Isaías — “o Santo de Israel” como título divino — ; como é central na experiência de Ezequiel e em sua obra; como o é na tradição sacerdotal !Levítico e textos afins). Santidade celeste e inacessível de Deus, santidade em aliança com um povo consagrado, santidade cultual da liturgia, santi dade de exigências éticas. A santidade, como qualidade exclusiva da divindade, imprime seu caráter a outras manifestações afins. Santidade e grandeza (3), como em Ez 38,23: “Mostrarei minha grandeza e santidade e dar-me-ei a conhecer a muitas nações, e saberão que sou o Senhor”. Santidade e elevação (rm 2), como em Is 6,1 e 57,15: Assim diz o Alto e Excelso, o sentado no trono, cujo nome é Santo. Santidade temível, surpreendente, “mysterium fascinans et tremendum”, como no Sl 111,9: “Seu nome é santo e temível”. Santidade na administração da justiça (4), como em Is 5,16: 1232 Salmo 99 O Senhor dos Exércitos será exaltado ao julgar, o Deus Santo mostrará sua santidade na sentença. Santidade que perdoa o ofensor (8), como em Os 11,9: Não cederei ao ardor de minha cólera, não voltarei a destruir Efraim, pois sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti. Santidade que castiga toda profanação (8), como a do fogo ilegítimo de Nadab e Abiú em Lv 10: 2 Da presença do Senhor saiu um fogo que os devorou, e morreram na presença do Senhor. 3 Moisé disse a Aarão: a isso se referia o Senhor quando disse: Mostrarei minha santidade em meus ministros e minha glória perante todo o povo. A santidade de Deus não se deixa domesticar nem manipular e apresen ta-se em polaridades: atrai e mantém à distância, castiga e perdoa, dá ordens e escuta súplicas; quando mais se aproxima, mais se faz sentir. Creio que a santidade condiciona o tema sacerdotal (como veremos na exegese). 5. Exegese 1. Quanto ao formal, o versículo aplica o esquema A B / a b, que constitui infração da ordem simples A a / B b, ou seja: O Senhor reina, sentado sobre querubins: estremecem os povos e cambaleia a terra. A manifestação prescinde aqui do aparato teofânico espetacular, e só se sugere pela reação dos que assistem. O cenário é universal. Querubins, animais fantásticos de esfera sobre-humana, suportam o trono da divindade. 2. A capital do reino e residência do soberano encontra-se em Sião. Recorde-se o Sl 48,3: “E o monte Sião, vértice do céu, capital do Grande Rei”. Sem rei humano, Sião é a capital do rei divino. “Sobre todos os povos”: assim corrige o Sl 97,9, eliminando todo vestígio de outros deuses; vejam-se também 95,3 e 96,4. 3. O sujeito parece ser os povos antes mencionados, a não ser que se tome o verbo como forma impessoal. O tema do nome santo, que não deve ser profanado, é típico de Ezequiel, como mostram algumas citações: 36,22 Não o faço por vós, Casa de Israel, mas por meu santo nome, pro fanado por vós nas nações aonde fostes. 23 Mostrarei a santidade de meu nome ilustre. Exegese 1233 39,25 Agora mudo a sorte de Jacó, tenho pena da Casa de Israel, e sou ciumento de meu santo nome. “Es santo”: sujeito é agora o nome ou o próprio Deus. O texto pede aqui pausa. 4. Pode-se manter a vocalização massorética tomando ’z por substituto da pessoa; como nós dizemos “sua majestade”: o poder real, a autoridade real. Se se mudar a vogal, guiando-se por Is 19,4, o sujeito será um rei poderoso, enérgico. De quem se predicam três qualidades que se podem ler como sequência lógica ou como acumulação retórica. Mais matizada é a primeira proposta. Começa por uma atitude: seu amor e estima do direito, como em SI 45,8: “amas a justiça e odeias a maldade, por isso ... o Senhor te ungiu ...”. O segundo é instaurar e manter um regime de retidão e equidade, como no SI 45,7: “cetro de retidão é teu cetro real”. O terceiro é a administração da justiça e do direito como tarefa de governo, como no SI 72,2: “para que reja teu povo com justiça e teus humildes com retidão”. Essas citações e outras que se podiam acumular dizem-nos que o autor afasta ou encontra afastado o rei humano e reconhece como rei o Senhor. Mas conserva a capital tradicional da monarquia. A comunidade traz agora o nome de Jacó, equivalente de Israel, como povo escolhido ideal, sem divisão de reinos. Veja-se o SI 59,14: “para que se saiba que Deus governa em Jacó”. Num oráculo de restauração do livro de Isaías, em vez do consabido “Santo de Israel” lemos “o Santo de Jacó, o Deus de Israel” (29,23); em Is 41,21 lê-se o título “Rei de Jacó”. A visão da santidade estreitou-se para a esfera ética, e o horizonte universal encolheu-se para abarcar um povo; mas intensifica-se a consciên cia da santidade divina. 5. O sujeito do louvor é logicamente a comunidade de Jacó, há pouco mencionada, a comunidade que chama o Senhor “Deus nosso”. “Estrado de seus pés” é “o monte santo” (9 e Lm 2,1), é o templo segundo SI 132,7 e lCr 28,2, é a terra segundo Is 66,1. O templo como morada do Senhor é trans cendido em imagem de proporções gigantescas, mas próxima da visão vocacional de Isaías e do citado Is 66,1. Seguindo-se a imagem com coe rência, os querubins não podem ficar encerrados no camarim, mas devem ser celestes. 6. Deparamo aqui o ternário enigmático, que devemos respeitar. Nossos gostos e nossas opiniões não nos autorizam a expulsar nenhum dos três. Melhor seria confessar nosso estupor ou ignorância. Podemos consi derar Moisés como mediador da lei, Aarão como representante do sacerdó cio, Samuel da profecia. Moisés e Aarão estão firmemente ancorados na tradição do êxodo e da aliança; Samuel pode ser observado quando resiste ao regime monárquico ou quando unge os reis. Se quisermos uni-los na 1234 Salmo 99 intercessão, citaremos Nm 14,5: “Moisés e Aarão lançaram-se com o rosto por terra diante de toda a comunidade israelita”. Como se fossse leve o problema, o autor nô-lo complica juntando os três no “sacerdócio”. Ora, Moisés era de estirpe levítica como seu irmão, e Samuel servira no santuário de Silo. Mas creio que é outra a explicação: o autor quis frisar sua qualidade de “santidade” ou consagração, inscreven do-os na categoria que melhor a representava em sua época, o sacerdócio (de modo semelhante Sl 105,15 chama os patriarcas de “meus ungidos, meus profetas”). Basta recordar a vocação à santidade do povo escolhido em Ex 19,6 e por todo o Levítico. Entrar a serviço do Senhor como mediadores e interlocutores é ofício “sacerdotal”. 6b-7a. A resposta de Deus é principalmente oracular e pode abarcar qualquer situação. O Deus “santo” torna-se acessível ao chamado. Porém mantém a distância e o mistério na “coluna de nuvem” ou em seu equiva lente, a coluna de incenso, que insinuam a presença velada do Senhor: Ex 24,15 Quando Moisés subiu ao monte, a nuvem cobria-o e a glória do Senhor repousava sobre o monte Sinai, e a nuvem cobriu-o durante seis dias. 17 No sétimo dia Deus chamou Moisés da nuvem. A glória do Senhor apareceu aos israelitas como fogo voraz sobre o cume do monte. 18 Moisés penetrou na nuvem e subiu ao monte. 7ab. Combinando os dois hemistíquios como correlativos, temos que o “falar” de Deus consiste principalmente nos dbrym ou mandamentos. A observância, naturalmente, não é tarefa exclusiva dos três eleitos; por isso o versículo alarga o olhar a toda a comunidade da aliança, na qual “oficiam” alguns eleitos. 8. O Deus que perdoa e que castiga é tema fundamental da aliança. Tem sua expressão clássica nas bênçãos e maldições, e brevemente em Ex 34,7 perdoa culpas, delitos e pecados, ainda que não deixe impune e castigue a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos. 9. Na última secção, Deus aproximou-se ainda mais: abre-se ao diálogo, responde aos chamados, reage perante a conduta dos seus. Nem por isso diminui a experiência de sua santidade. 6. Transposição cristã O tema da santidade é tão dominante no NT, que temos que nos limitar a uma síntese de sugestões. — Começamos pela oração dominical, cuja primeira petição é “santi ficado seja teu nome”. No que pedimos que os homens reconheçam a Transposição cristã 1235 santidade de Deus, que ele a faça conhecer e sentir, contra toda tentativa de empequenecer ou manipular a divindade. Uma vez que entramos nessa oração dominical, descobrimos que, como o salmo, confessa a Deus como rei e pede que se realize seu reinado. Em vez de preceitos e decretos, fala da vontade ou desígnio que há de se cumprir. Não esquece do perdão dos pecados. Mas a vingança é substituída pela prevenção: “faz com que não sucumbamos na prova”. — Depois passamos a aplicar o triságio à “Santíssima” Trindade, começando pelo Pai, a quem Jesus invoca : “Pai Santo!” (Jo 17,11). O tema ressoa no Apocalipse: o triságio de Isaías é retomado e adatado em 4,8. Na visão dos sete anjos com as sete pragas ressoam cantos, dos quais seleciono alguns versículos: 15,3 Grandes e admiráveis são tuas obras, Senhor Deus, soberano de tudo; justo e verdadeiro teu proceder, rei das nações. 4 Quem não te respeitará? Quem não dará glória a teu nome, se só tu és santo? Todas as nações virão prostrar-se diante de ti, porque tuas justas sentenças foram promulgadas. 16,5 Tu, o rei que eras e é, o Santo, tens razão ao dar essa sentença. — O Filho já é anunciado como santo em Lc 1,35: “o que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus”. Em Jo 6,69, Pedro confessa em nome dos discípulos: “nós cremos e sabemos que tu és o Santo (consagrado) de Deus”. O ofício sacerdotal de Jesus é tema central da carta aos Hebreus. — De maneira especial tem o título o Espírito Santo, espírito de santificação. Com mais de quarenta menções, pode-se dizer que é o protagonista dos Atos dos Apóstolos. — Como conseqüência, toda a comunidade consagrada por Deus a Deus é e deve ser santa. Jo 17,19: “Por eles me consagro a ti, para que também eles sejam consagrados de verdade”. Para concluir, leiamos lPd l,15s. Da mema forma que é santo aquele que vos chamou, sede também vós santos em toda a vossa conduta, porque a Escritura diz: Sereis santos porque eu sou santo”. Nossa celebração eucarística retomou o triságio de Isaías. Salmo 100 1. Texto 1 2 4 5 Dai vivas ao Senhor, terra inteira, servi ao Senhor com alegria, entrai em sua presença aclamando. Sabei que o Senhor é Deus, ele nos fez e somos seus, povo seu e ovelhas de seu aprisco. Entrai por suas portas com ação de graças, por seus átrios com hinos, dai-lhe graças, bendizei seu nome: “O Senhor é bom, sua misericórdia é eterna, sua fidelidade de idade em idade”. 2. Bibliografia C. L. Feinberg, Old-Hundreth-Psalm, BiblSacra 103 91946) 53-66. K. Koch, Denn seine Güte währet ewiglich, EvTh 21 (1961) 531-544. J. O. Lewis, An asseverative V in Ps 100,3, JBL 86 (1967) 216. G. Fohrer, Der Mittelpunkt einer Theologie des AT, TZ 24 (1968) 161-172. J. L. Mays, Worship, world and power: an interpretation o f Ps 100, Interpr 23 (1969) 315-330). B. Gherardini, Noi, il suopopolo. Ps 99,3, Divinitas 15 (1971) 405-420. C. F. Whitley, Some remarks on lü and lo’; ZA W 87 (1975) 202-204. R. Morneau, Ps 100: a mini-theology, SpLife 23 (1977) 26-36. R. Auffret, Essai sur la structure littéraire du Ps 100, BN 20 (1983) 7-14. W . Brueggemann, Psalm 100, Intepret 39 (1985) 65-69. 3. Análise filológica 3. wV: um dos quinze casos registrados pelos massoretas em que V se deve ler lw (dativo) Jerôn Del Gun Kraus; trata-se de duas variantes gráficas comopo’ I pô (Jó 38,11; Ez 40,10.12), ’epo’ / ’epô (Gn 27,33; 43,11; 1237 Exegese Jó 9,24; 17,15) DBHE Ros. Lêem o ketib LXX Vg Phil. Dão valor enfático ao WRav J. O. Lewis C. F. Whitley. 4. b’w: regendo complementos diretos. 5. ky. causal, ou partícula completiva GB 342a-b. 4. Estudo global Gênero e composição — É hino com invitatório ampliado e motivação simplificada. Será hino à realeza do Senhor como os anteriores? Contra está que não se menciona o título ou a função real e que o teor é muito genérico, sem alusões ao trono ou ao estrado ou à função de governo. A favor está o lugar que ocupa como pos sível sétimo de uma série e por alguns pontos de contato com os precedentes. A saber: v. 1, como 98,4, a aclamação hry‘w como em 95,1-2, o gozo como em 97,11, o dar vivas como em 95,1; 98,4.8, a entrada como em 95,6; 96,8, ove lhas e aprisco como em 95,7, a confissão twdh como em 95,2, entrar nos átrios como em 96,8, bendizer seu nome como em 96,2, lealdade e fidelidade como em 98,3. Aforça desse argumento cumulativo debilita-se quando se consideraque muitas são coincidências genéricas. Em todo caso, a imagem consabida das ovelhas poderia sugerir o governo do Senhor Rei, ainda que deforma vaga. — Se separarmos o último versículo, da motivação,resta-nos um invitatório construído sobre sete imperativos, colocados de tal sorte que o central se destaque e atraia a atenção. Representando cada palavra (execeto partículas) com um sinal O, obtemos o seguinte esquema: aclamai O O servi O O entrai O O sabei O O O O O O O O O O O entrai O O O O confessai O bendizei O O curioso é que esse centro tão destacado não seja a motivação, ma parte ou condição do invitatório. Todos os versículos têm articulação ternária, que não coincide com a ordenação rítmica. Também distribui-se irregularmente, no começo e no fim, a tríplice menção de Yhwh. Em horizonte universal de “toda a terra” coloca-se a eleição de rebanho. 5. Exegese 1. Aclamai: hry‘w. Santo Agostinho explica o termo latino correspon dente, iubilate, por duas características: pura expressão sem articulação de conteúdo, expressão de conteúdo inefável: 1238 Salmo 100 “O que aclama (qui iubilat) não pronuncia palavras ... É a voz de ânimo dilatado por gozo, que expressa enquanto pode o sentimento sem entender seu sentido. O homem que goza em sua exaltação, partindo de palavras que não se podem pronunciar nem entender, prorrompe em grito de exultação sem palavras. Deste modo manifesta no grito sua alegria; mas vê-se que está tão repleto de gozo, que não pode explicá-lo com palavras ... Quando aclamamos (iubilamus)? Quando louvamos o que é inefável”. 2. Servi com alegria: ‘bdw pode ter aqui sentido cultual (como Service em inglês ou Gottesdienst em alemão). Mas mesmo sendo palavra genéri ca, não perde a ressonância do serviço que o povo deve a seu soberano. Por esse aspecto surge o paradoxo: servir ou ser escravo é condição triste e dolorosa, como o experimentaram os hebreus no Egito; servir, ser escra vos do Senhor pode ser fonte de gozo. Sua expressão no culto deve ser “festiva”, pois é um dos sentidos de smh. Também esse aspecto é comen tado por Agostinho: “Toda escravidão é am arga... Não temas a escravidão daquele Senhor... Grande felicidade é ser servo nesta grande casa ... Junto do Senhor, a escravidão é livre, porque não serve a necessidade, mas a caridade ... Que a caridade te faça servo, já que a verdade te fez livre”. Gramaticalmente, o sujeito deverá ser o precedente, a terra inteira; pelo sentido parece que o or ante estreita sua visão abarcando a comunidade litúrgica. 3. Sabei: é muito raro interpelar com esse imperativo; no saltério encontramos outros dois casos em tom de admoestação (4,4 e 46,11). O que encarece a importância da oração completiva, que enuncia a doutrina central. Ele nos fez: refere-se à criação do homem em geral ou à do povo em especial? O que segue estreita o alcance: “nós” refere-se à comunidade de Israel, “ovelhas de seu aprisco”. Mesmo com essa limitação, a frase é densa. Fez-nos fisicamente, biologicamente, pela bênção da fecundidade dos patriarcas: Gn 12,2 soa literalmente: “farei de ti um grande povo”. Fez-nos politicamente, fazendo de massa de escravos um povo livre, uma nação autônoma. Fez-nos religiosamente pela aliança: “sereis meu povo, serei vosso Deus”. Com o mesmo horizonte limitado interpela Malaquias: “Não temos todos um só Pai? (Jacó), não nos criou um mesmo Deus?” Ao mesmo grupo pertencem textos como Is 27,11; 44,2; 51,3; Os 8,14, e em particular SI 95,6. Mas pode-se alargar o enunciado para abranger qualquer homem. Como diz, por exemplo, Is 17,7: “Naquela dia, o homem verá o seu fazedor”; Is 29,16: “Como obra que dissesse de quem a fez”; Jó 31,15: “O que me fez a mim no ventre, não o fez a ele?”. Transposição cristã 1239 5. O primeiro membro da motivação, Yhwh é bom, aparece muitas vezes no saltério e chega a fixar-se como estribilho: por exemplo, 106,1; 107,1; 118,1.29; 135,3; 136,1. Para matizar seu conteúdo, seria preciso examinar os termos com os quais se associa: aqui com o binário conhecido “lealdade e fidelidade”. 6. Transposição cristã Podemos fixar-nos na confissão: “ele nos fez”. Paulo alarga o horizonte para abarcar todos os homens sem distinção (discurso no Areópago: At 17,26). Em sentido restrito aplicaremos a frase à Igreja como povo de Deus e rebanho de Jesus Cristo pastor. No discurso de Jo 10 insiste Jesus nesse aspecto de propriedade e interesse: 12 O assalariado, como não é pastor, nem as ovelhas são suas ... 14 Eu sou o bom pastor, conheço as minhas, e elas conhecem-me a mim. 16 Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também a essas tenho que conduzi-las: escutarão minha voz, e far-se-á um só rebanho com um só pastor. Jesus declara enfaticamente que só Deus é bom (Mt 19,17 par). Salmo 101 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Cantarei a bondade e a justiça: para ti é minha música, Senhor. Explicarei o caminho perfeito: quando virás a mim? Quero proceder com reta consciência dentro de minha casa. Não dedicarei minha atenção a assuntos indignos; detesto as ações criminosas, não me contagiarão. Longe de mim uma consciência torcida, não quero trato com a maldade. Ao que em segredo difama seu próximo farei calar. Olhos altivos, mentes ambiciosas, não os suportarei. Ponho os olhos1 em gente de confiança para que habitem comigo. O que segue um caminho perfeito estará a meu serviço. Não habitará dentro de minha casa quem cometer fraudes. O que diz mentiras não durará em minha presença. Cada manhã farei calar2 os malvados do país, para excluir da cidade de Deus todos os malfeitores. 1escolho 2 reprimirei Estudo global 1241 2. Bibliografia K. Galling, Der Beichtspiegel. Eine gattungsgeschichtliche Studie, ZA W 47 (1929) 125-130. J.B .B a u er,Incedaminviaimmaculata(Ps 100 / 101 ), V D 3 0 (1 9 52 )2 19 224. O. Kaiser, Erwägungen zu Ps 101, ZA W 74 (1962) 195-205. E. Beaucamp, L ’espoir d ’une ère de justice et de paix (Ps 101), BVC 73 (1967) 32-42. H. A. Kenik, Code o f conduct for a king: Ps 101, JBL 95 (1976) 331-403 J. E. Weir, A study o f wisdom motifs in Ps 101, EvQ 53 (1981) 51-59. J. S. Kselman, Ps 101: royal confession and divine oracle, JSOT 33 (1985) 45-62. Th Booij, Ps 101,2 When wilt Thou come to me?, VT 38 (1988) 458-462. 3. Análise filológica 1. Qualidades objetivas (Mq 3,8) Hitz. 2. ’skylh: rhapsodize componho um poema A. R. Johnson Allen (cf. título do SI 88); dedicar a atenção Hitz Duhm Gun. mty: corrigem para ’mt Gun Kraus; conjunção rei quando (drk) vier a mim, apresentar-me um assunto (Ex 18,22) Hitz que corrige byty para bytk. 3. ‘sh: inf constr GK 75 n. 5a. mlshny: para a vogal final GK 90 m. 5b. ’wkl: cum hoc no edebam (de ’kl em vez deykl) Mow; não o agüento; não conviverei com ele perpetuamente Targ; para a forma Joüon 75 i. 4. Estudo global a) Gênero, situação e colocação — O salmo começa como hino ou canto com acompanhamento dedicado ao Senhor. De repente, no segundo versículo, o orante começa a enumerar seus propósitos, em forma positiva e negativa, e com suas conseqüências para outras pessoas. Quem fala e o que pretende? A série de propósitos tem sentido nos lábios de rei ou de governante superior. O que diz são propósitos ou promessas de governo. Por essa série temática definiu-se esse salmo como “espelho de príncipes”, com a particularidade de que não é um moralista que a propõe e inculca ao monarca presente ou futuro, mas propõe-na o governante responsável. Poder-se-ia pensar que um mestre ensina ao herdeiro designado seus deveres fazendo-os aprender e recitar. 1242 Salmo 101 O curioso é que uma declaração de bons propósitos se qualifique de canto em honra do Senhor. Ora, o paradoxo é parte do sentido: um governante que se compromete a governar com justiça canta em honra do Senhor. — Há outro pormenor estranho, e é essa pergunta do v. 2: quando virás a mim? Como resposta ao canto e ao propósito, o Senhor acorrerá a um encontro combinado ou a um lugar. Qual? Creio que o salmo está estilizado como se o pronunciasse Davi antes de transladar a arca para sua casa. Recordemos alguns versículos do episódio, as duas etapas do translado: 2Sm 6,9 Naquele dia Davi teve medo do Senhor e disse: Como virá à minha casa a arca do Senhor? 12 Então foi Davi e levou a arca de Deus da casa de Obededon até a cidade de Davi, fazendo festa. Sobre a justiça no governo não temos declaração prévia de Davi, mas um testamento explícito (ISm 23,1-7). O que alguns chamam de espelho de príncipes, outros chamam de discurso da coroa; outro inclusive assemelha-o ao juramento da constitui ção (teocrática) por parte do rei. E aduzem a visão, retrospectiva e crítica, da monarquia que se acha codificada em Dt 17,18-19: Quando subir ao trono, far-se-á escrever num livro uma cópia desta lei, segundo original de sacerdotes levitas. Levá-la-á sempre consigo e lê-la-á todos os dias de sua vida, para que aprenda a respeitar o Senhor seu Deus, pondo em obra as palavras desta lei. Podemos imaginar que, ao aceder ao trono, o rei em cerimônia litúrgica pronuncia sua promessa de governo justo (SI 101), e alguém ou a comunidade responde com a súplica pelo rei (SI 72). Imaginar assim ajuda-nos a compreen der o sentido, porém não prova que assim tenha sido na realidade. O que não é imaginação, e sim dado significativo do texto, é que se canta o discurso programático com acompanhamento e dedica-se ao Senhor. Nesse caso distingue-se formalmente de outras declarações de governo que lemos em códigos orientais. Por exemplo, no prólogo ao código legal de Lippit-Istar: “Quando (nomes e atributos de deuses) chamaram Lippit-Istar para governar o país e estabelecer nele ajustiça, desterrar reclamações e rechaçar o inimigo pelas armas ...” (ANET 159B). No epílogo enumera suas realizações em prol da justiça. Algo seme lhante lemos no prólogo do código de Hammurabi: “Então Anu e Enlil nomearam-me a mim, Hammurabi - príncipe devoto e religioso para promover o bem-estar do povo, para fazer prevalecer a justiça no país, para destruir o malvado e o perverso, para que o forte não oprimisse o fraco, para levantar-me como o sol sobre os mortais e iluminar o país” (ANET 164). Estudo global 1243 No extenso epílogo reconta suas realizações, que soam como eco amplifica do do prólogo. — Resta examinar a posição do salmo. Um progresso temático parece uni-lo aos anteriores. O SI 99 anunciava a dimensão ética da santidade divina: “Reinas com poder e amas a justiça, estabeleceste a retidão, tu administras a justiça e o direito”. No SI 100 responde o mundo todo e a comunidade exaltando a lealdade e fidelidade de Deus. No SI 101 respon de o suposto Davi com um programa de governo baseado na justiça e misericórdia. O soberano imita em sua função a Deus e age como seu mediador. b) Composição e desenvolvimento Por uma razão formal, por mudança patente de ritmo, e pelo conteúdo, é preciso pôr à parte os versículos l-2a como introdução. Anunciando a execução musical e o tema geral, os dois versículos mostram a relação pessoal entre o Senhor, que recebe a homenagem, e o rei, que espera a vinda de seu Senhor: Deus entra no poema em segunda pessoa. Como tomará a iniciativa acorrendo a uma invocação? Parece ressoar o tema da vinda dos 31 96 e 98, centrada na casa ou palácio do monarca. O que segue é uma enumeração, forma que não se presta a refinamen tos de composição. Os poucos pormenores formais que se podem observar adquirem particular importância no desenvolvimento do tema. Descontan do os três coortativos de l-2a, restam três verbos positivos na primeira pessoa, mais um gerúndio (2b.5a.8ab), e outras três negativos (3a.4b.5b), aos quais se pode acrescentar o sintagma sem verbo explícito de 6a. Como correlativos do sujeito que fala figuram outras personagens em três binários marcados (3b.4a.6ab.7ab). Mais curiosa é a alternância de positivo e negativo fazer / não fazer: 2b 3b 4 5 6 caminharei / 3a não me ocuparei detesto / não me contagiarão se afastará / não atendo farei calar / não suporto escolho, servirá / 7 não habitará, não durará O ideal ético israelita implica fazer o bem e rejeitar o mal, coisa que o salmo expressa com a alternância de fazer e evitar. O ritmo é bastante regular, mais do comum no saltério. Suspeitamos que ajudava a memória e prestava-se ao tom firme de declaração. Entre as repetições de palavras na série destaca-se uma seqüência tríplice de advérbios em duas fases: Salmo 101 1244 2a 2b 3a bdrk bqrb Ingd tmym byty ‘y n y 6b 7a 7b Estes pormenores formais acusam trabalho minucioso mais que inspi ração poética. c) O tema da justiça Dada a importância do tema, examinamo-lo mais devagar, inserindo-o em amplo contexto de pensamento bíblico. A justiça do salmo diz respeito a dois grupos: os súditos governados e os colaboradores no governo; os segundos têm que observar as exigências positivas e as negativas. — Os súditos podem estar representados em enunciados genéricos: soberbos, ambiciosos, malvados, mafeitores. Só figuram os malvados: onde fi cam os honrados? No salmo 72 eram sobretudo os honrados, os desvalidos, as vítimas inocentes o objeto do bom governo. Aqui muda o enfoque, porque é preciso fazer frente aos opressores para proteger os oprimidos. A coisa é óbvia e não é difícil documentá-la com textos bíblicos, como o citado SI 72 ou Is 11. — Os colaboradores são todos os demais no salmo. Essa é novidade que reclama nossa atenção. A monarquia israelita era absolutista à medida que o rei concentrava todo o poder executivo e judicial, e era autoridade supre ma inapelável; era constitucional a medida que o rei estava sujeito ao legis lador supremo, que era o Senhor (como frisa a citada passagem de Dt 17). De mais a mais, o monarca israelita tinha que tolerar e aceitar essa espécie de “oposição” declarada que era a palavra profética. Mas, mesmo supondo que o rei se oponha à erosão e corrupção do poder, precisa de colaboradores de con fiança. Grande parte do governo justo consiste em escolher e rejeitar cola boradores. Se bem que a idéia nos pareça óbvia, é interessante constatar que o salmo lhe dá respaldo litúrgico e teológico. Algo semelhante lemos em textos sapienciais: Pr 20, 26 25,5 29,2 Eclo 10,1 2 Rei prudente expulsa os malvados. Afasta o malvado do rei, e seu trono firmar-se-á na justiça O governante que faz caso de embustes terá criminosos por ministros. Governante prudente educa seu povo, o governo inteligente é ordenado. A tal governante, tais ministros; a tal alcaide, tais súditos. Os livros bíblicos não vêem a monarquia absoluta como intrinseca mente perversa, mas consideram-na em princípio perigosa (lSm 8) e declaram seu fracasso no balanço final: Estudo global Eclo 48,16 49,4 1245 Alguns reis agiram corretamente, outros cometeram males monstruosos ... Exceto Davi, Ezequias e Josias, todos se perverteram, abandonaram a lei do Altíssimo os reis de Judá até o final. Por isso o Deuteronômio projeta em seu programa retrospectivo o que devia ter sido e não foi. Numa frase um profeta sintetiza a esperança invencível: “Olhai, um rei reinará com justiça e seus chefes governarão segundo o direito” (Is 32,1). — O tema geral da justiça no governo está presente em todos os corpos bíblicos: o rei (SI 45 e 72), os ministros (Is 1,21-26), os governantes (Sb 1 e 6). d) Justiça e misericórdia São as duas primeiras palavras do salmo, tema do canto, programa de governo. Lealdade e fidelidade, justiça e direito são binários freqüentes: o binário presente é cruzamento menos freqüente, ainda que não inaudito. Mq 6,8 oferece uma alternativa ao culto com sacrifícios: “que defendas o direito e ames a lealdade / misericórdia, e que sejas humilde com teu Deus”. — Primeira pergunta: são qualidades de Deus ou do homem? O começo hímnico leva-nos a pensar que são de Deus, e o resto do salmo assegura-nos que são do homem. Não se exclui que o autor pense nas qualidades de Deus como modelo da conduta humana. Numa prece de Asur-nasir-apli I (10501032) diz-se da deusa Istar: “à deusa misericordiosa que ama a justiça”. A conduta do rei é imitação e mediação da ação divina. — Segunda pergunta: qual é seu conteúdo e relação mútua? Não formam uma simples hendíade, como a citada “justiça e direito”, mas são complementares. Justiça temperada pela misericórdia: tal é “o caminho perfeito”, a conduta cabal de governante. Ora, no decorrer do salmo não encontramos propósitos que pertençam especificamente à misericórdia; essa se deve deduzir ou pressupor como finalidade do bom governo. A exclusão implacável de governos corrompidos é justiça e misericórdia com os súditos. Se não podemos comentar as qualidades programáticas com textos do salmo, temos que nos valer de outros textos. Citei Mq 6,8. Na reconciliação com a esposa infiel (Os 2,21s), o marido oferece como dote novo “justiça e direito”, “afeto e carinho”, “fidelidade”: o afetivo complementa o jurídico \Profetas, II, 879). O episódio de Davi com a mulher de Técua (2Sm 14) é magnífico exemplo de tensão entre a exigência de justiça legal e a necessi dade de piedade paterna; é a autêntica “sensatez”, que faz de Davi “um enviado de Deus”. Fazer justiça sem piedade, executando o fratricida, seria 1246 Salmo 101 brutal e injusto: summum ius summa iniuria. Cito de memória Dostoyewski: “Não conhecem a piedade, só conhecem a justiça; por isso são injustos”. O livro da Sabedoria, já em contato com a cultura grega, diz em seu capítulo de teodicéia: 12, 18 19 Mas tu, dono de tua força, julgas com moderação (en epieikeiai) e nos governas com muita indulgência. Agindo assim ensinaste a teu povo que o homem justo deve ser humano. (hoti dei ton dikaion einai philanthropon). Por essa ponte passamos à cultura greco-latina: a justiça é para o bem do homem, não é valor abstrato a que se possa sacrificar o homem. Se a justiça não estiver animada pelo amor ao homem (philanthropia), pervertese e torna-se injusta. Por isso juizes e governantes devem, junto com a justiça (dykaiosyne), ter moderação (epieikeia). Os latinos traduziram iustitia et aequitas. O binário do salmo e de outros textos bíblicos não expõem a esse res peito doutrina elaborada; mas penso que o programa do salmo coloca-se na linha desse pensamento. — Mas são essas qualidades tema do canto? Sim; pois também cantam outros a liberdade ou a alegria. O salmo ensina-nos que semelhante música agrada a Deus. 5. Exegese la . Em Pr 20,28, segundo a versão grega apoiada em 16,12, sinteti zam-se as virtudes: “Misericórdia e lealdade guardam o rei, a justiça assegura seu trono”. lb.O suposto Davi dedica sua música ao Senhor: no contexto imediato é o canto que vai entoar. No contexto mais amplo pode aludir à tradição de um Davi músico e organizador do canto no templo (lCr 15-16; 25), Quando jovem, Davi, chamado à corte, tocava harpa para acalmar os ataques de que sofria o rei Saul (ISm 16,14-23); sendo rei, dedica sua música ao Senhor. 2a. O caminho / conduta perfeito de Deus menciona-se na parte central do SI 18 (= 2Sm 22), posto nos lábios de Davi; dele se passa à conduta do rei: 31 Perfeito é o caminho de Deus. 33 Deus torna perfeito meu caminho. Em Pr 11,20, a relação muda: “Ao Senhor ... agrada uma conduta irrepreensível / os perfeitos em seu caminho”. Exegese 1247 O verbo hskyl parece termo sapiencial que se abriu caminho no saltério: o caminho / conduta não se apresenta aqui como revelado, traçado concretamente por Deus, mas como tema de reflexão humana. 2b. Mais sugestiva ainda é a inversão de papéis neste hemistíquio, pois o normal é que o homem vá a Deus, acorra ao templo, apresente-se diante dele, e não o contrário, Deus ao homem. Na ficção de um Davi orante do salmo, o dado alude a 2Sm 6. 2b. Com reta consciência. Em Gn 20,5, o rei de Gerar desculpa-se de sua conduta com a mesma frase: “eu o fiz de boa fé e com mãos limpas”; o SI 78,72 di-lo de Davi, pastor de seu povo; em lRs 9,4 diz-se de Davi como exemplo para Salomão. Ou seja que “o caminho perfeito” procede de “coração perfeito”, sugere a repetição de tmm. Dentro de minha casa. Dado o posto central que o termo Casa ocupa na teologia davídica, é possível que byt conserve aqui sua bivalência: casa = palácio e Casa = dinastia. No primeiro plano está a referência espacial, que é um eixo semântico do salmo: dentro de minha casa, diante de mim, cidade do Senhor. E como uma limpeza geral, uma grande purificação, começando pelo palácio real e continuando pela capital do reino. Josias empreendeu uma purificação cultual começando pelo templo e continuando pelos san tuários do reino; o suposto Davi do salmo empreende uma purificação ética do governo, como preparação para a vinda do Senhor. 3a. Assuntos indignos. O adjetivo bly‘l (etimologicamente, “sem pro veito”) usa-se com preferência em casos de delitos graves: idolatria (Dt 13,14), violação (Jz 19,22), falso testemunho em julgamento capital (lRs 21,13), etc. O rei não aceitará que lhe façam propostas criminosas. Recordese que Is 1,23 chama os governantes “sócios de ladrões”. 3b. Detesto. Veja-se Pr 16,12: “O rei detesta agir mal porque seu trono se firma com ajustiça”. Não me contaminarão: com o complemento “as mãos palmas” (Dt 13,18), “nada destinado ao extermínio”; Jó 31,7 no juramento de inocência. 4. A raiz ‘qsh é típica de textos sapienciais (doze casos de dezessete) lê-se o adjetivo também no SI 18,27. Torcido de coração: com inversão sintática, em Pr 11,20: “O Senhor detesta a mente tortuosa”; 17,20: “cora ção tortuoso não fará fortuna”. 5a. O verbo hlshyn só se lê aqui e em Pr 30,10 (em castelhano antigo existia o derivado “malsín”). O SI 15,3 utiliza o sinônimo rgl: compare-se Pr 30,10 com 2Sm 19,28. 5b. Olhos altivos expressam soberba. Com leves variações encontra-se a expressão no grande oráculo de Isaías sobre o abatimento da soberba humana (Is 2,11.17; também 5,15). Expressões equivalentes sobre olhos e coração no SI 133,1. Largueza de coração significa aqui cobiça. Lê-se com 1248 Salmo 101 binação semelhante em Pr 21,4: “olhos altivos, mente ambiciosa”. Esse versículo é muito importante no salmo porque delata a raiz do mau governo: soberba, ambição, cobiça. O salmo não menciona explicitamente o suborno, como fazem, por exemplo, Is 1,21-26 e SI 15,5. 6. Nesse versículo concentra-se a parte positiva, a escolha de colabo radores. A escolha de conselheiros dedica Ben Sira soborosa instrução (Eclo 37,7-15), mas fica na esfera privada, não pensa em governantes. Qualidade muito estimada é a fidelidade da pessoa com a qual se pode contar, em quem se pode confiar. Louva-se em Moisés (Nm 12,7), em Samuel (ISm 3,20), num sacerdote (ISm 2,35), em testemunhas (Is 8,2), num mensageiro ou portador de recados (Pr 25,13). 7. Fraude e engano contam-se entre os pecados sociais mais citados. Bom exemplo é a primeira parte do SI 52; vejam-se também SI 50,19s e a liturgia de entrada 15,3. 8. A manhã é hora de pronunciar sentença, com indica Jr 21,12; recorde-se a tática de Absalão (2Sm 15,2). Jó descreve a aurora “sacudindo a terra dos malvados” (Jó 38,13). hkryt pode significar expulsar, desterrar, e também extirpar. Para maldades e eqüivalêntes, Dt prefere a expressão b‘r mn / mqrb (salvo 26,13s). Quando se trata de pessoas, Dt e Lv costumam usar hkryt, como o presente salmo. O rei sonha com uma cidade ideal em que não haja malvados, uma vez que é a Cidade do Senhor. O orante do SI 104 estende o desejo a toda a terra, como criação de Deus. 6. Transposição cristã Por sua visão límpida e por sua concentração em pontos éticos funda mentais, o salmo conserva hoje sua validez, também em sociedades não teocráticas. O suposto rei de Israel quer oferecer ao Senhor uma canção comprometida e uma consciência limpa: sabe que as duas coisas agradam a Deus. Se o Senhor não quer ver impureza física no acampamento israelita (Dt 23,13-15), quanto menos quererá ver maldade ética em sua cidade. O AT dá à exigência ética uma nova dimensão religiosa. Vale o salmo também para a Igreja? A chave nô-la pode dar Santo Agostinho, que intitula uma de suas obras principais A Cidade de Deus. Dir-se-ia que, por sua consagração a Deus e pela maneira mais piramidal ou hierárquica de exercer o poder, o que têm autoridade deveriam fazer seu esse salmo. O veneno da ambição, cobiça e soberba não estão de todo extirpados; o método do engano e da difamação de rivais continuam ten tando como recursos fáceis. Os esquemas básicos de mau governo podem adotar formas múltiplas. Se os que exercem poder na Igreja muitas vezes Transposição cristã 1249 presidem ou dirigem o culto, recordem que exame de consciência e propósito articulado também são música para o Senhor. Em sua obra Política de Deus e governo de Cristo (II) exclama Quevedo: “O governo de Cristo! Ó política de Deus! Toda cheia de justiça clemente, e de clemência justiceira”. Salmo 102 1. Texto 2 3 4 5 6 7 8 Senhor, escuta minha súplica, que meu grito de socorro chegue a ti. Não me escondas o rosto em meu aperto. Presta-me ouvidos quando te chamo, responde-me depressa. Pois meus dias se desvanecem como fumaça e meus ossos queimam como brasas. Meu coração ferido seca como erva, pois eu me esqueço de comer meu pão1. Ao som de meus queixumes cola-me a pele nos ossos. Estou como coruja no deserto, estou como mocho entre ruínas. Estou sem sono e me sento2 como pássaro sem parelha no telhado. 9 Todo o dia3 me afrontam meus inimigos, furiosos contra mim me maldizem. 10 Em vez de pão como cinza. misturo minha bebida com pranto; 11 por tua cólera e indignação, porque me ergueste ao ar e me arrojaste4 12 Meus dias são uma sombra que se alarga, e vou secando como erva. 1de tomar alimento 2gemendo 3continuamente 4atiraste Salmo 102 13 Tu, porém, Senhor, reinas sempre, teu nome passa de uma geração à outra. 14 Tu te levantarás e te compadecerás de Sião, pois é hora de piedade, chegou o prazo. 15 Teus servos amam suas pedras, dói-lhes até sua poeira. 16 Os pagãos temerão teu nome, Senhor; todos os reis do mundo, tua glória. 17 Quando o Senhor reconstruir Sião e aparecer em sua glória, 18 e voltar-se para as súplicas dos indefesos e não desprezar sua súplica, 19 fique isso escrito para a geração futura, e o povo recriado5 louvará ao Senhor: 20 Pois o Senhor assomou de seu excelso santuário, do céu fitou a terra, 21 para escutar os lamentos dos cativos e livrar os condenados à morte. 22 Assim se anunciará em Sião a fama do Senhor e seu louvor6em Jerusalém, 23 quando se reunirem unânimes os povos e os reinos para servir7ao Senhor. 24 Ele esgotou minhas forças pelo caminho e encurtou os meus dias. 25 Eu disse: Deus meu, não me arrebates na metade de meus dias, teus anos se medem por gerações. 26 No princípio alicerçastes a terra, o céu é obra de tuas mãos: 27 eles perecerão, tu permaneces, gastar-se-ão como a roupa, serão como vestido que se muda. 28 Tu, porém, és aquele cujos anos não se acabam. 29 Os filhos de teus servos e sua linhagem habitarão estavelmente em tua presença. 5que será criado 6seu elogio 7dar culto 1251 1252 Salmo 102 2. Bibliografia A. Vaccari, Note al Salmo 102,7, Bib 21 (1940) 310-311. S. Kistemaker, The Psalm citations in the epistle to the Hebrews, Amsterdam, 1961. A. Urban, Verrinnendes Leben und ausgeschüttete Klage. Meditation überPs 102, BiLe 10 (1969) 137-145. D. Fehling, Noch eimal der Passer solitarius (Ps 101,8), Philologus 13 (1969) 217-224. N. Airoldi, Note critiche ai Salmi, Aug 10 (1970) 174-180. F. Ascensio,El salmo 102 yla antropologia teológica, Greg55 (1974)541-553. J. C. McCullough, The OT quotations in Hebrews, NTS 26 (1980) 367-373. R. Brandscheidt, Ps 102. Literarische und theologische Aussage, TTZ 96 (1987) 51-75. 3. Análise filológica 3. bywm ’qr’: constr com relativ assindética Joüon 129 q. 4. sicut cremium = lenha Vg, frigideira / assador Aug Cas Próspero, quasi frixa Jeron, Glut Baeth, Brand Kau, lar Qim, like embers Allen. 5. hwkh: hof de nkh, para o w GK 8 c. 7. mdbr hrbwt: pode-se atribuir-lhe função adjetiva. 9. mhwlly. qui laudabant me (de hll), exsultantes Jeron, fingern louvar me Phil, os que me tomam por louco BHS, furiosos contra mim Del. nshb‘ b-: tomam meu nome para imprecar desgraças (cf. Is 65,15; Jr 29,22) Hitz. 12. alarga-se aproximando do fim Hitz Gun. 13. zkrk: lê trono (segundo Lm 5,19) Ibn Ezra; yshb estar sentado no trono, reinar Ges Thes 634b. 14. Ihnnh: inf + suf fem GK 61c. ky b’ mw‘d: alguns omitem-no como glosa; ky repetido por ênfase. 15. ‘pr: escombros Ne 3,34; 4,4. ky: temporal, segundo outros causal; seguem verbos em futuro per feito. 17. ky: temporal causal ou completiva. 18. hYr de ‘rr: subst coletivo. 22. Ispr: final ou consecutiva cf. Joüon 124 s. 24. respondit ei in via virtutis suae, paucitatem dierum meorum nuntia mihi Vg. 25. ’mr: lê imperativo Gr. 28. w’ th hw’: sy de autos ei Gr, tu autem ipse es Jeron Del Hitz Gun cf GK 135 a. Estudo global 1253 4. Estudo global a) Gênero e situação O salmo 102 é uma súplica pela capital, Sião ou Jerusalém, em ruínas, e supõe a época do desterro ou um tempo imediatamente depois. Do gênero recolhe a descrição da desgraça e diversos motivos para mover Deus a intervir; mas menciona somente os inimigos pessoais, não os da nação, como fazem os SI 44 e 74. A esperança de ser escutado atravessa o salmo sem ser enunciada formalmente; a promessa de ação de graças ou sua formulação antecipada estão ausentes ou apenas aludidas. A desgraça da cidade funde-se com a situação pessoal do orante e provoca uma meditação sobre a eternidade ou perduração de Deus. Esses dado acumulados dizem-nos que o gênero aqui é molde usado para ser quebrado, ou um recipiente de que transborda o rico conteúdo. Do coteúdo faz parte a dualidade orante / cidade. Até o v. 13, a desgraça pessoal ocupa toda a cena, depois duma instrodução bastante convencional. Quan do o orante volta a interpelar a Deus com seus imperativos (14), entra em campo a visão da cidade destruída. Eu / Sião: Qual é o verdadeiro ponto de partida da súplica? Dão-se duas alternativas: 1) a desgraça pessoal, que o torna sensível à desgraça nacio nal; 2) a desgraça nacional, que torna agudo o sofrimento pessoal. Ou então o decisivo é a tensão entre os dois sentimentos. Sigamos a ordem do salmo. Começa uma súplica individual, comparável ao SI 77, só que o orante transcende sua experiência pessoal em duas dimensões: a comunitária, porque é membro do povo e sente como própria a dor da capital, pede por ela e por seus irmãos; a temporal, porque sua vida curta é um segmento na série de gerações que continuam, e quer deixar um legado escrito para os vindouros, como testemunho do Deus libertador. As duas dimensões vêem-se assumidas na universalidade e perduração de Deus, que abarca outros povos e nações, que desborda todas as gerações. O orante supera de algum modo sua limitação. O que não impede que suplique com insistência: para si, parar que não malogre sua vida; pela cidade, pois já é hora de restaurá-la. Se isso constitui a originalidade do salmo, convém desenvolvê-lo com mais detalhe. b) Os eixos semânticos — O primeiro e mais conspícuo é o temporal, que podemos definir como tempo e eternidade ou, mais exatamente, caducidade e perduração. A dimensão temporal inferior do salmo é a vida humana do orante. Se a 1254 Salmo 102 vida humana dura setenta anos, e em casos de saúde robusta oitenta (SI 90), a vida do salmista malogra na metade. Como a de Ezequias, segundo Is 38: 10 12 Eu pensei: Com a vida pelo meio tenho que marchar para as portas do Abismo; privam-me do resto de meus anos. Levantam e enrolam minha vida, como tenda de pastores Como um tecedor eu tecia minha vida, e me cortam a trama. O sentimento da brevidade natural da vida humana torna-se agudo perante a ameaça próxima de morte prematura. Dizem-no os versículos 2425. De mais a mais, essa vida breve, abreviada, discorre exposta à hostili dade dos inimigos (9) e sob a cólera de Deus (11). De modo paralelo, a vida da cidade parece malograda: reduzida a escombros, é como se estivesse morta. Recordemos como se burlam os rivais do reconstrutor Neemias: 3.34 Crêem que vão terminar num dia e que vão ressuscitar de montões de pedras algumas pedras calcinadas? — Ressuscitar é “dar a vida” (piei de hyh) ao que está morto. Como no SI 90, o orante confronta sua breve vida com a duração de Deus, que supera a vida de um indivíduo, a vida de gerações, a duração do cosmo (26-27); é duração idêntica a si e imutável. Acolhido na transcendência perdurável de Deus, poderá o indivíduo superar a caducidade? No contexto mental do AT, a vida individual fica superada pela vinda das gerações (25.29); a cidade será reconstruída e chegará a ser centro de louvor uni versal. — O eixo indivíduo / comunidade. Ao começar o salmo, o orante parece encerrado em sua dor. Sua consciência é ocupada pelos ossos, pela pele, pelo coração (4-6); olha em torno, e sente-se solitário num deserto desolado (7). Se aparece alguém em seu estreito horizonte, são inimigos que o insultam e maldizem (9). Por um ponto rompe o cerco e faz-se consciente da dor da cidade amada: sua compaixão torna-se dor física, compartilhada com outros que também a amam (14-15). Todo um povo participa da dor e é penhor de esperança (1819). Não só a comundade de vizinhos e cidadãos, mas também outros povos, a comunidade internacional. Começarão com um sentimento de respeito sagradao (16); mais tarde acorrerão para participar no culto (23). Os dois eixos cruzam-se nos versículos 17-19: pela presença de Sião, de grupo que sofre e ora, e pela esperança de futuro feliz. Exegese 1255 — Alguns comentadores perguntam-se se a tensão indivíduo / cidade é original ou fruto da união de duas peças autônomas, ou fruto de releitura comunitária de uma súplica individual. As razões a favor de uma explicação ou de outra não estão tanto no texto como no modelo que se adote de antemão para explicá-lo. Na época em que se cristaliza o salmo, já eram tradicionais as súplicas individuais e as coletivas; ambas podiam fundir-se numa criação original. Seja qual for a gênese do poema, tentemos explicar o texto que se nos apresenta: um poema insigne. c) Desenvolvimento Em comparação com outros, este salmo distingue-se pela liberdade do desenvolvimento: o lirismo impera sobre a arquitetura. Um dado é particu larmente sugestivo: quando a súplica parece ter alcançado seu ponto de repouso, numa visão gloriosa que constrasta com a ruína presente, o orante retorna ao tema inicial de seus dias (24 e 12) em contraste com a duração do Senhor (27s e 13). E como se o orante ou poeta se tivesse esquecido de algo e o acrescentasse no final, em vez de inseri-lo em seu lugar lógico. Somos autorizados a emendar a disposição das peças no poema? Os dois eixos semânticos dão travação ao poema, mas não subministra esquema rigoroso. Ainda que se possam registrar muitas repetições de palavras ou de sinônimos, não chegam a delinear uma figura. Antes é preciso falar de ondas sucessivas. Por exemplo, o movimento de 14-16 — ação de Yhwh-atitude do povo-reação de estrangeiros, repete-se aproxima damente, com variação de sinônimos, em 17-23. No v. 13 soa uma forte adversativa “Tu, porém”, que em outros textos assinala começo de secção. Também aqui? Com o mesmo direito pode-se dizer que encerra por contraste o precedente, o mesmo que ocorre no v. 28 com respeito ao que precede. Deste e de outros dados tiramos a conclusão de que, para saborear o salmo, o melhor não é tomar distâncias, mas deixar-se levar. Chama a atenção a abundância de comparações, quase todas concen tradas numa zona (4b.5a.7ab.8.10.12ab.27a). 5. Exegese 2-3. Os três versículos da introdução, embora soem como convencio nais, pronunciam-se sinceramente, com uma nota de urgência. Comparemse com 69,17s e 143,7. 4-6. A primeira impressão que sente o orante é física, de esgotamento que vai penetrando até o coração e os ossos. São três versículos originais e expressivos. 1256 Salmo 102 4. Em Seguida anuncia-se o tema do tempo: “meus dias” ou meus anos. Vemos uma fumaça, adivinhamos um fogo. O orante sente o fogo escondido dentro: seus ossos são braseiro que se vai queimando e reduzindo a fumaça os dias da vida. Como se cada dia fosse um pouco de combustível com que ali mentar o horrível fogo interior; como se o homem levasse dentro a força que o con some. Dos dias dizia o SI 90,10 que “passam depressa”; a comparação da fumaça soa no SI 37,20; SI 69,4 fala do ardor na garganta; Ez 24,10, do fogo da cozinha que queimam alguns ossos. A palavra temática “dias” retoma no v. 12 e 24. Num dos sonetos de Quevedo lemos estes versos: “Fue sueno ayer; manana será tierra!; poco antes nada y poco después humo!” 5. Nós usamos a metáfora, já desativada, da “aridez espiritual”; o salmo usa a imagem em sentido físico. O coração pode representar aqui toda a vida interior, que vai secando por falta de alimento. O tema da comida retorna no v. 10; a imagem da erva no v. 12; mais desenvolvida no SI 90. 6. Traduzido literalmente, o versículo soa de maneira estranha: “pela voz de meus gemidos se me colam os ossos na carne”. Para que entra aqui a voz ou o ruído? Alguns corrigem o texto para obviar a dificuldade. Talvez mqwl tenha debilitado seu significado acústico e equivalha simplesmente “por causa de”, como ocorre com mpny na ordem visual, mqwl e mpny ocupam o primeiro lugar dos versículos 6 e 11; estão próximos como sinônimos em SI 55,4. Nós costumamos dizer que a pele cola nos ossos; o hebraico descreve a mesma coisa com menor precisão anatômica. Jó oferece-nos a seguinte descrição: 33,20 21 até detestar com toda a alma a comida e sua garganta o manjar favorito; consome-se-lhe a carne até não se ver, e os ossos, que não se viam, se descobrem. 7-9. Solidão e hostilidade sobrepõem-se nesses três versículos. A solidão sugere comparações originais, a hostilidade cai no convencional. 7. Trata-se de animais impuros tomados talvez das listas legais (Lv ll,17s; Dt 14,16s). O grego e a Vulgata traduziram “pelicano”, que é animal aquático. Is 13,20-22 e o paralelo 34,13-15 compraz-se em descrever uma espécie de ruído de animais lúgubres e repelentes: “dela se apossam a gralha e o mocho, a coruja e o corvo a habitam”. No salmo, o deserto pode sugerir o desterro, enquanto as ruínas sugerem e preparam a visão de Jerusalém reduzida a escombros. 8. Na solidão humana, a companhia são animais noturnos de mau agouro. Eles não faltam à combinação e encontro; como diz Is 34,14s: “o cabrito chama sua companheira ... não falta o macho à fêmea”. Sobre a solidão, veja-se especialmente Jó 19. Exegese 1257 9. A presença hostil parece contradizer a solidão precedente. É a única companhia ou, melhor, presença, e pode sugerir a hostilidade contra Sião e os judeus. Se lermos mhwlly como forma de hll = ser demente, significaria que me declaram ou chamam demente. O juramento contra ele poderiam ser conjuros e feitiçarias, tão comuns na literatura da Mesopotãmia, onde dão origem a preces e ritos especiais para se opor a eles. 10. Cinza e pranto formam parte do ritual do luto por morte ou uma desgraça. No ritual fúnebre costumava-se oferecer um banquete como comida e bebida de consolo. No luto do orante não há mais comida senão puros sinais e gestos do luto (veja-se SI 42,3). 11. Em seu sofrimento extremo, em sua vida malograda, o orante reconhece a cólera de Deus. Não a impotência diante de outros poderes, não a despreocupação como se não lhe importasse. Porque leva a sério o homem, encoleriza-se Deus. E não é cólera irracional ou incompreensível, mas provocada pela conduta do homem. As Lamentações, que formam parte do mesmo contexto espiritual, deixam-no bem claro: com incomparável vigor descrevem a ira de Deus, que parece se enfurecer; com não menor lucidez confessam a culpa. Também o orante do SI 90 descobre a cólera de Deus: “Como nos consumiu tua cólera, como nos transtornou tua indignação!” O orante ainda se acha no horizonte pessoal. Também diz em primeira pessoa, por ora, a tremenda frase do segundo hemistíquio, imitada por Jó 30,22: “Levantas-me no ar, moves e me sacodes no furacão”. Imagem de vida humana malograda, do destino dos judeus desterra dos (da humanidade mortal?). E o homem que se alça com soberba, ou é Deus que o levanta para arrojá-lo de maior altura? 12-13. Há razões fortes para tomar juntos estes dois versículos como contraste levado ao extremo. Primeiro, a razão formal patente: w’ny / w’th = e eu / mas tu, dias / gerações. Segundo, o precedente do SI 90, que esta belece o contraste entre a caducidade humana e a duração divina; a imagem da erva seca reforça o parentesco de ambos os salmos. Pois bem, esse contraste é libertador ou oprimente? No presente salmo, o descobrimento terá função libertadora, convidará à esperança. O versículo aponta duas imagens da caducidade: a sombra que se alarga, a erva que murcha. — A sombra. Em proporção geométrica, a uma sombra que se alarga deveria corresponder uma duração que se prolonga. Mas a sombra tem aqui função simbólica. A imagem pede algumas linhas de comparação: SI 109,23 144,4 Jó 8,9 vou passando como sombra que se alarga o homem é como sopro, seus dias sombra que passa nossos dias são uma sombra sobre o solo 1258 Salmo 102 14,2 Eclo 6,12 Sb 2,5 foge como a sombra sem parar Quem sabe o que valem na vida do homem esses dias contados de sua tênue vida que transcorrem como sombra? nossa vida é a passagem de sombra. Ninguém o disse melhor que Emily Dickinson: “Presentimiento es esa larga sombra sobre el césped que indica que el sol está ya bajo; un aviso a la hierba sobresaltada de que va a pasar la oscuridad”. — A comparação da erva é mais conhecida, pelo que me contento com uma citação que insiste nos sinônimos: Is 37,27 foram como erva do campo, como verde dos prados, como grama de terraço murcha antes de crescer. 13. O verbo yshb predica-se de Deus com valor de reinar, sentar-se no trono real (SI 9,8; Lm 5,19). O segundo texto é mais pertinente porque na perduração de Deus vê uma esperança para Sião, e emprega quase a mesma fórmula que o salmo: 18 19 porque o monte Sião está desolado, e os zorros passeiam por ele. M as tu, Senhor, reinas sempre; teu trono dura de idade em idade. O salmo diz “nome” com o sinônimo zkr. Se o nome é perpétuo, também o é o ser e não só sua recordação. Recordemos o texto clássico de Ex 3,15: Este é meu nome para sempre, minha apelação de geração em geração. 14-16. No v. 14, a súplica muda de enfoque e olha a cidade com afeto intenso. Os três versículos articulam uma síntese apertada: 14 a ação solicitada ao Senhor; 15 motivada pela dor e compaixão pelo povo; 16 reação do inimigo. Do Senhor apela às qualidades tradicionais: é rhwrti whnwn (Ex 34,6: Jn4,2; SI 86,15; 111,4; 112,4; 145,8); reforça-o com o tema do tempo, próprio do salmo. Do povo comenta o amor terno e compassivo pela capital, que pode recordar os sentimentos aludidos em Ez 24,21: meu santuário, vosso soberbo baluarte, o encanto de vossos olhos, o tesouro de vossas almas. Exegese 1259 Dos inimigos predica um genérico e inclusivoyr’ - respeito, veneração, reverência. A relação entre a dor pessoal e a da cidade, com outras coincidências temáticas, está bem exposta na terceria Lamentação, da qual cito alguns versículos mais próximos ao salmo, sublinhando palavras para chamar a atenção: 4 8 22 43 48 50 61 consumiu-me a pele e a carne, e rompeu-me os ossos por mais que grito, faz-se surdo à minha súplica a misericórdia do Senhor não termina, não se acaba sua compaixão envolto em cólera nos perseguiu choramos rios de lágrimas pela ruína da capital até que o Senhor do céu assome e me veja ouviste, Senhor, como me insultam O parentesco histórico e espiritual é patente, de forma que ambos os textos mutuamente se iluminam. 14. Com a tranqüila duração de Deus confronta-se a impaciência humana, que mede o tempo em anos e dias, e assinala prazos. Não pode o homem assinalar prazos a Deus, mas pode recordar a Deus seus prazos. Judite retoma uma larga tradição quando censura aos chefes de Betúlia terem posto prazo a Deus (Jt 8,11-17); os profetas condenaram a atitude desafiante dos que põem prazos a Deus, por exemplo, Is 5,9: que apresse sua obra para que a vejamos: que se cumpra logo o plano do Senhor de Israel para que o comprovemos. Vejam-se os estribilhos de Ez 12,21-28. Por livre iniciativa, Deus pode assinalar prazos e ocasiões, como diz o SI 75,3: “quando escolher a ocasião, julgarei retamente”; Hab 2,3: “a visão tem um prazo, ofega rumo à meta”; também Is 49,8 fala da ocasião propícia. Com esses e outros textos seme lhantes combina a petição do orante: soou para Sião a hora da compaixão. 15. O versículo toma o binário precedente e substitui rhwm por rçh. O SI 74,3 convidava Deus a vir inspeccionar a cidade em ruínas: “dirige teus passos a essas velhas ruínas”; aqui o orante com seus companheiros tentam contagiar Deus com sua compaixão. Ou estão, sem sabê-lo, contagiando-se eles com a compaixão divina? Deste magnífico versículo ficam muito distantes Is 55,2.9: “Sacode-te o pó, Jerusalém cativa... Rompei a cantar em coro, ruínas de Jerusalém”. 16. Não se trata ainda de conversão de nações pagãs, mas do reconhe cimento reverenciai de Yhwh como divindade poderosa. A restauração de Jerusalém manifestará a glória de Deus em cenário universal. Is 59,19 (provavelmente posterior) anuncia: “Os do ocidente temerão o Senhor, os do oriente respeitarão sua glória”. 1260 Salmo 102 17-23. É muito difícil acertar com a correta distribuição sintática desses versículos, pela ambigüidade da partícula ky e pela indecisão dos tempos verbais. Exponho brevemente algumas alternativas. O ky do v. 17 dá razão do versículo precedente, referindo o qatal a um tempo anterior: respeitarão porque construiu / porque para então terá construído. Ou então: ky é partícula temporal que introduz a subordinada cuja principal chega no v. 19 (sem waw de apódose): quando reconstruir ... que se escreva / escrever-se-á. O ky do v. 20 introduz o que se haverá de escrever, ou seja o v. 21 e talvez o 22. Ou então: 22 é conseqüência de 1721 e ao mesmo tempo da temporal que segue: “e assim se contará em Sião ... quando os povos”. Através de nossa perplexidade sintática abre-se passagem uma percepção clara e articulada: que Sião será reconstruída pela compaixão de Deus pelos oprimidos, que é o fato que se haverá de registrar por escrito para futuras gerações, que redundará em culto universal de Deus. 17. Tomemo-lo como futuro perfeito. A reconstrução da capital será obra do Senhor. Ez 36,33-36 dá uma versão realista e estilizada: 33 Quando vos purificar de vossas culpas, farei com que se repovoem as cidades e se reconstruam a ruína ... Os povos que ficarem a vosso redor saberão que eu, o Senhor, reedifico o destruído e planto o arrancado. Is 54,lls compraz-se em descrever uma reconstrução fantástica; Am 9,11 refere-o à dinastia davídica, indicando mentalmente também sua cidade: Naquele dia levantarei a choça caída de Davi, taparei suas brechas, levantarei suas ruínas, até reconstruí-la como era outrora. O SI 51,20 (adição) di-lo em forma de petição: “Digna-te, Senhor, favorecer Sião, reconstrói as muralhas de Jerusalém”. 18. Yr significa desnudo, indefeso, desguarnecido (Gn 42,9). Para o segundo hemistíquio, veja-se SI 22,25. 19. Tomo tktb como jussivo: seja escrito, fique escrito. O que indica uma lúcida e firme consciência histórica sobre o destino do povo: o valor permanente do passado, a função da escritura no processso histórico. O Moisés de Dt 31-32 contenta-se com a recitação do cântico, conservado na memória. Isaías, no que alguns chamam de seu testamento, diz: 30,8 Agora vai escrever numa tabuinha, grava-o em bronze, que sirva para o futuro de testemunho perpétuo. Exegese 1261 Jr 30,2 e 36 mencionam a escritura de oráculos proféticos. Jó 19,24 aspira a uma escritura lapidar para a posteridade. A geração futura (SI 48,14 e 78,4, em termos de tradição oral). O povo que será criado (SI 22,32). 20. Assomar é um modo de dizer que não se desentende: olhar hostil em Ex 14,24, vigilante no SI 14,2, benévolo em Dt 26,15. Outros textos preferem o verbo hbyt com sentido menos diferenciado. 21. A libertação de prisioneiros e condenados acrescenta um elemento complementar: não basta reconstruir a cidade se faltam homens para repovoá-la. Em alguns textos do profeta do desterro, o fator humano parece inclusive mais urgente. Is 49,22 ocupa-se disso num diálogo amoroso; Is 42,7 aponta como tarefa do servo “tirar da prisão os cativos”, que é tema recorrente (Is 49,9; 61,1; Zc 9,lls; SI 68,7; 69,34). Os condenados à morte: a expressão, como o resto do versículo, é quase citação literal do SI 79,11. Os condenados à morte estão encerrados numa masmorra esperando a execução. Ez 37,lls descreve o desterro como sepulcro e a repatriação como ressurreição. 22. O louvor é conseqüência lógica da libertação. Reconstruída e repovoada a capital, poder-se-á celebrar de novo em Jerusalém. Um exem plo posterior nô-lo oferece Neemias. 23. Em Jerusalém unem-se povos e reinos para prestar culto a Yhwh. O que é mais que o simples reconhecimento reverente do v. 16. É uma visão maravilhosa que o orante prevê num futuro indefinido. Talvez inspirado em textos como Is 2,2-5; Mq 4,1-4; Sf 3,9s. É visão semelhante a de Is 60,4; 66,18. Com essa visão gloriosa, superposta a um panorama de ruínas, poderia terminar o salmo. Mas, depois de pausa, desvane-se a visão e o orante dobra-se sobre si. 24. Sujeito dos verbos é Deus. Pelo caminho da vida, o orante sentese peregrino cansado e desfalecido, incapaz de chegar até o fim. 25. Na metade de sua vida: como em Is 38,10 e SI 55,24. É estranha a expressão bdwr dwrym: talvez se deva tomar a preposição como b- essentiae. Geração de gerações só se lê aqui, em Is 51,8 com l- e no SI 72,5. Pode-se tomar como uma espécie de superlativo (cf. shyrhshyrym com artigo). É possível que o autor tenha escolhido uma formulação paradoxal para falar da duração de Deus: se quisermos medi-la, teremos que usar medidas de outro sistema temporal: uma geração de gerações; como quem diz, elevada ao quadrado. Contudo, o autor continua usando o termo “anos”, para desbordá-lo. 26. Este versículo introduz a duração cósmica, da criação, para além das gerações humanas. Veja-se Is 48,12s: “Eu sou o primeiro e o último, minha mão fundou a terra”. 27. Como roupa: recorda Is 51,6. A roupa é preciso ir substituindo-a; por isso falamos de “mudas” (cf. o italiano mutandè). O hebraico emprega a mesma expressão (dehlp - mudar: Gn 45,22; Jz 14,12s; 2Rs 5,22s). Pensa 1262 Salmo 102 o orante que, consumidos céus e terra, Deus criará outros novos de recâmbio? Is 66,22 é quase uma resposta: “Como os céus novos e a terra nova que farei durarão diante de mim 28. O contraste é sóbrio no original (’th hw0. Soa como eco humano da autoafirmação divina (’ny hw’), que se lê em Is 41,4; 43,10; 48,12. 29. O citado Is 66,22 continuava: “assim durará vossa estirpe e vosso nome”. O salmo termina com uma confissão de esperança: não na imorta lidade pessoal, mas na do povo. Com um monte Sião, centro de culto universal, e um povo escolhido perdurável, consola-se o orante. 6. Transposição cristã A carta aos Hebreus (1,10-12) cita os versículos 26-28 do salmo (segundo os LXX) para exaltar a dignidade do Filho de Deus. Santo Agostinho, cedendo a um gosto conceitualista, comenta o final do salmo: Ao lado desse grande É, o que é o homem, seja lá o que for? Quem compreenderá aquele Ser? Quem participará dele? Quem o desejará e aspirará por e le ?... Não desesperes, fragilidade humana. Eu sou, diz o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó. Ouviste o que sou em mim, ouve o que sou para ti. Essa eternidade nos chamou, e da eternidade brotou a Palavra. Já há eternidade, já há Palavra, e ainda não há tempo. Por que não? - Porque o tempo foi criado. Como é que também o tempo foi criado? Tudo foi feito por ele e sem ele não se fez nada. O Palavra antes do tempo, por quem se fez o tempo, nascido no tempo, ainda que seja vida eterna, chamando os temporais para fazê-los eternos!”. Também podemos ensaiar a leitura eclesiológica, segundo a conhecida equação Jerusalém = Igreja. Recordemos Inocêncio III, que numa visão contempla Francisco reconstruindo o templo fendido, que representa a Igreja. O salmo ensina-nos a inscrever nossas penas pessoais num contexto eclesial largo. Se vemos em nossa Igreja algumas ruínas e bastante pó, o salmo ensina-nos a sentir a dor do amor, não o desprezo distante e sufi ciente. Quanto ao grande tema de nossa caducidade, a fé na ressurreição de Cristo e esperança da nossa põem o salmo num horizonte novo que, sem eliminar a tristeza de nossa condição mortal, contempla-a acolhida pela eternidade de Deus. Também por nossos corpos se diz: “Destruí esse templo, e eu o reconstruirei”. Salmo 103 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Bendiz, alma minha, ao Senhor, e todo o meu interior seu santo nome. Bendiz, alma minha, ao Senhor, e não olvides seus1 benefícios. Ele perdoa todas as tuas culpas, cura todos os teus males2. Ele resgata tua vida da fossa e te coroa3 com sua bondade e compaixão. Ele te sacia de bens na adolescência e renova-se tua juventude como a de uma águia. O Senhor faz justiça e defende os oprimidos. Manifestou seus caminhos a Moisés e suas façanhas aos israelitas. “O Senhor é compassivo e clemente, paciente e misericordioso”. Não está sempre pleiteando nem guarda rancor perpétuo. Não nos trata como merecem nossos pecados nem nos paga segundo nossas culpas. Pois como se eleva o céu sobre a terra, assim vence sua misericórdia seus fiéis. Como dista o oriente do ocaso, assim afasta de nós nossos delitos. Como um pai se enternece por seus filhos. assim se enternece o Senhor por seus fiéis. 1nenhum de seus 2enfermidades 3rodeia, envolve 1264 Salmo 103 14 Pois ele conhece nossa condição e lembra-se que somos barro. 15 O homem dura como a relva, floresce como flor campestre, 16 que mal o vento roça e já não existe; não volta a vê-la seu lugar. 17 Mas a misericórdia do Senhor com seus fiéis dura desde sempre e para sempre; sua justiça passa de filhos a netos, 18 para os que guardam a aliança e recitam e cumprem seus mandatos. 19 O Senhor firmou no céu seu trono, seu reinado governa o universo. 20 Bendizei ao Senhor, anjos seus, poderosos executores de suas ordens, prontos para cumprir sua palavra. 21 Bendizei ao Senhor, Exércitos seus, servidores que cumpris sua vontade4. 22 Bendizei ao Senhor, todas as suas obras, em todo lugar de seu império. Bendiz, alma minha, ao Senhor. 2. Bibliografia I. Zolli, Note esegetiche, em FS Heller, 1941, 297-305. G. Bernini, Salmo 103. Inno di Iode alia misericórdia divina, em Le preghiere penitenziali dei saltério, Roma, 1953, 131-133. J. Herrmann, Der 103 Psalm, em FS Schreiner, Gütersloh, 1953, 82-93. E. Beaucamp, Guérison etpardon (Ps 103), BVC 29 (1959) 13-25. A. A. Macintosh,A third root ‘dh inBiblical Hebrew ?, VT 24 (1974) 454-473. T. Federici, II salmo dei Kyrios Polyeleos. II sal 103, inno di Iode, OrCr 16 (1976) 36-73. A. Lauha, Dominus benefecit. Die Wortwurzel gm l und die Psalmenfrõmmigkeit, AnSwThlnst 11 (1977-78) 57-62. K. Koch, Redemption and creation in Psalms 103-105. A study on redaction history within the Book o f Psalms, em FS Amirtham, Mysore, 1980, 64-69. S. Lach, Le sens de Vattribut de Dieu hannun à la lumière des Psaumes, FollOr 21 (1980) 93-102. A. Sicari,LarivelazionedellapatemitàdiDio, Communio 10 (1981) 7-23. 4seus desejos Estudo global 1265 O. Betz, Jesu Lieblingspsalm. Die Bedeutung von Ps 1-3 fixr das Werk Jesu, ThBei 15 (1984) 253-269. 3. Análise filológica 1-5. Insiste na rima interna -ki Allen. 5. ‘dyk: ornamento, epiphymia Gr, corr ‘dky / ‘wdky tua existência. tthdsh: fem sgl com sujeito pl abstrato GK 145 k. 9. ytwr: forma elíptica guarda rancor. 11. gbr: alguns corrigem paragò/z.; melhor conservar o jogo gbh / gbr (cf. Gn 4,19). 14. zkr: partic com valor ativo Joüon 50 a, ou adj BL 61 u. 20.shm^bqwl-: obedecer DBHE. 4. Estudo global a) Gênero e situação — Esse salmo é uma ação de graças, em que é fácil apreciar quão próximos estão hino e ação de graças. O verbo brk, quando corresponde a benefício recebido, significa agradecer, dar graças. O salmo concentra-se nesse verbo repetindo-o duas vezes no começo e três no final, com grande ênfase e sem dar lugar a sinônimos. Vamos repassar os elementos que compõem e definem o gênero. — Convidados a dar graças. Em desdobramento interior, de observa ção psicológica, bem conhecido e praticado no saltério, o orante incita-se a si mesmo: alma minha / alento meu / meu interior. Se bem que npsh muitas vezes signifique garganta, nunca, porém, como órgão de falar. Opõe-se npsh a voz, como sugere santo Agostinho? Creio que npsh quer expressar aqui o empenho da pessoa, como quando se diz “com toda a alma”; numa visão mais física denota o alento vital. Não é duvidoso seu valor para expressar o desdobramento do orante. Ao invés, “meu interior” é que se contrapõe à voz externa. E ao dizer “todo”, o orante pode incluir coração e rins e câmaras do ventre, ou seja, todo o mundo cognoscitivo, volitivo, emocional, passional, imaginativo, etc. E verdadeira mobilização geral do orante. A ela corresponde no final uma mobilização de criaturas celestes e terrestres. O primeiro grupo contrasta com a mobilização da humanidade e a natureza que contemplamos nos SI 96 e 98 e outros semelhantes. O segundo grupo está reunido num sóbrio “toda as tuas obras”. Desapareceu 1266 Salmo 103 a corte celeste de divindades que ainda encontrávamos em vários salmos: estão subsitituídas por “anjos” e “exércitos” (estelares). — Motivação. Está bastante estililizada. Em 3-6 adota a forma clássica do particípio que condensa e fixa ações individuais ou repetidas, ou modos de proceder. O desenvolvimento seguinte emprega outros procedimentos, como a quádrupla negação, a tríplice comparação, a antítese. Tema domi nante é a misericórdia do Senhor em seu duplo aspecto: livrar de males e conceder bens. E misericórdia entranhável, generosa e duradoura. — Individual ou coletivo? O salmo começa com assunto e experiência pessoal. No v. 10 entra em cena o plural: “nós, nossos”. Quem forma esse grupo? Os versículos 6-9 e 17-18 remontam à recordação histórica de Moisés e da aliança; logo “nós” são os judeus, que de novo experimentaram a misericórdia do Senhor. Os versículos 14-16 remontam, porém, à criação do homem (Gn 3) falando do “homem” com alcance universal. Ora, o salmo parece estreitar a misericórdia do Senhor a seus fiéis, os que “o respeitam” (são o povo escolhido) e, entre eles, os que observam a aliança e cumprem suas cláusulas. A misericórdia de Deus não alcança outros fora da aliança? Levanta o “nós” valo infranqueável? Assistimos no salmo a duplo processo, de alargamento e estreitamento. O salmo começa com a experiência pessoal; dela remonta à recordação histórica de Israel, em que descobre uma experiência humana coletiva e universal. Do momen to presene sobe-se à história e dela à permanência de Deus abarcando os tempos. Em sentido oposto, a misericórdia divina, fundada em seu conhe cimento e compreensão da debilidade humana (14), atua e manfesta-se num povo, de acordo com sua observância. Então, é condicionado o exercíco da misericórdia? Quem pode mais para mover Deus à misericórdia: a débil condição humana ou o condicionamento da observância de compromisso? E preciso sentir no salmo a interação dos dois pólos produzindo a energia do mesmo: presente e passado, indivíduo e comunidade, judeus e humani dade. E sistema que se mantém aberto, com capacidade de albergar experiências humanas semelhantes. — Situação ou ponto de partida. E difícil decidir qual seja o ponto de partida histórico, à luz da análise precedente. Se seguirmos a ordem do texto, o ponto de partida é pessoal; mas esse não é critério decisivo. Podemos imaginar como ponto de partida um fato pessoal: o orante foi “curado” (3) de doença grave, foi “resgatado da fossa” (4). Inundado de alegria e agradecimento, transcende sua experiência pessoal e vai se abrindo a horizonte mais amplo. Também podemos imaginar como ponto de partida um fato nacional: os desterrados “oprimidos” (6) obtiveram a liberdade e voltaram à pátria. Nesse fato de novo se manifestou o que a tradição contava de Moisés e da aliança (7,18). Um dos repatriados toma a Estudo global 1267 palavra para dar graças (1-2), inserindo no contexto sua experiência pes soal. Finalmente, podemos imaginar que umjudeu devoto medita a definição clássica do Senhor “compassivo e clemente” (8), projetando-a em sua expe riência pessoal, na de sua comunidade nacional, na da condição humana. Nenhuma dessas três imaginações tem a pretensão de acertar com a origem histórica real do salmo; as três alegam o direito e a função de iluminar o sentido do salmo e abrir caminhos para sua apropriação plural. A datação pós-exílica parece mais provável. Mas deve-se notar que não se menciona Sião nem Jerusalém e que os “oprimidos” é termo genérico. Ainda que o salmo surja numa situação concreta, pessoal e comunitária, é composto como peça de repertório, e como tal é acolhido na coleção oficial do saltério. b) A tradição de Moisés O v. 7 menciona Moisés: é o único nome pessoal do texto; em paralelo ajuntam-se os “israelitas” como grupo. Esse nome é índice que orienta para tradições ligadas à personagem. Vamos reduzi-las a três: a saída do Egito como libertação de oprimidos; a aliança com suas conseqüências; a revela ção culminante de Ex 34. — Está presente a primeira? Se soubéssemos de antemão que está presente, pelo menos mentalmente, referiríamos a ela a libertação de “oprimidos” como ato de justiça (6). Ao nos faltar esse pressuposto, temos que apoiar a possibilidade no que segue. — A aliança menciona-se no v. 18, e seu cortejo próximo recorda de perto o ensinamento de Ex 20, como mostrarão duas colunas paralelas: Ex 20,6 Atuo com lealdade por mil gerações quando me amam e guardam meus preceitos SI 103,17 a misericórdia (hsd) com seus fiéis; sua justiça de filhos e netos, para os que guardam a aliança e cumprem seus preceitos. O parentesco serve para descobrir uma diferença importante: Ex 20,5 afirma que Deus “castiga a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos”. Se o salmo foi composto pela volta do desterro, passaram já as gerações que sofreram o castigo e ocupa o lugar uma das “mil gerações” que desfrutam do perdão. — A grande revelação do Deus misericordioso (Ex 34,6) é assumida quase literalmente. E verdade que se trata de fórmula litúrgica, presente com variações em corpos diversos. No presente salmo, o nome de Moisés orienta-nos para o texto fundacional (na estrutura atual do Pentateuco). O que Moisés escutou dos lábios do próprio Yhwh, experimentou-o hoje um 1268 Salmo 103 israelita: enche-lhe a alma e a transborda. Já não por assentimento intelec tual e de oitiva, mas por experiência pessoal, sente-se de acordo com Moiés: SI 48,9 Jó 42,5 O que temos ouvido, nós o vimos. Eu te conhecia de oitiva; agora meus olhos te viram. Abre-se o salmo dizendo-nos que o que ele experimentou também nós podemos experimentar, que não nos contentemos em sabê-lo de oitiva. Por esse capítulo, o salmo faz companhia ao 99, pondo “misericórdia” onde o outro punha “santidade”. Também coincidem no tema da realeza de Yhwh. c) Desenvolvimento por comparações As comparações são: como a águia (5), cósmicas (lis), paternidade (13a), como a relva (15). — Começo pela última, que é mais geral e talvez menos importante. Os versículos 15-16 desenvolvem com acerto a conhecida comparação vegetal “como a erva”. Acabamos de lê-la no SI 102,5.12, com uma diferença: ali o termo oposto era a perpetuidade de Deus, aqui é a duração e prolongação da misericórdia divina (em Is 40,8 é a eficácia da palavra divina). Deixandonos sugestionar pela imagem, contemplamos, em clima de seca e estiagem, a humilde e efêmera erva, pendente da chuva que a misericórdia divina envia (também em Is 40,7 sopra um vento árido sobre a erva). — As duas comparações cósmicas (11-12) são de altura e de distância. Altura não de montanhas e nuvens, mas do céu com respeito à terra: tal a misericórdia de Deus com respeito a seus fiéis. Compare-se com dois salmos: 36,6 57,11 Tua lealdade chega ao céu, tua fidelidade até as nunvens, tua justiça é como as altas cordilheiras. Tua lealdade chega ao céu, tua fidelidade alcança as nuvens. Estes parecem olhar de baixo para cima; o 103, com a partícula ’l, parece olhar de cima para baixo; Is 55,9 usa o min de comparação: “como o céu é mais alto que a terra”. Resumindo e parafraseando: o céu eleva-se sobre a terra, cobre-a e agasalha-a; assim também a misericórdia do Senhor para com os seus fiéis. A segunda comparação encarece a força do perdão. Nada mais distante para um hebreu que os dois extremos de seu horizonte. Assim afastará de nós os nossos delitos: não mais nos mancham, não se nos colam, não os carregamos como carga; nem se vêem, ficam longe. Essa é uma das muitas metáforas do perdão no AT. O mais próximo dela é Mq 7,19: “lançará no 1269 Estudo global fundo do mar todos os nossos pecados”. Numa súplica a Ea, Sarnas e Marduk, lê-se: “Que meu delito se afaste 3.660 léguas” (Seux 201). — As comparações cósmicas não bastam ao autor: são impressionan tes, mas falta-lhes emoção humana. Ter que saltar do cósmico ao humano para falar de Deus é parte do sentido do salmo. Um particular estilístico aponta-o: os versículos consecutivos 12 e 13 começam krhq - krhm, também a repetição de “seus fiéis” em 11 e 13.0 autor diz “como um pai” e da mesma forma poderia dizer “como de mãe”. Numa prece acádica ao Deus juiz apelase a “teu coração, como o de mãe carnal, com o de pai carnal” (Seux 157). De uma oração a Marduk: “Sua cólera é um dilúvio; seu perdão, o de pai misericordioso” (Seux 169). A paternidade de Deus com respeito ao povo foi declarada em termos de domínio e responsabilidade em Ex 4,23, em termos de educação em Dt 8,5 e Is 1,2, em termos de adoção do rei em 2Sm 7 e SI 2; ele é chamado “pai dos órfãos” no SI 68,6. Selecionamos dois textos proféticos que se fixam no aspecto emotivo da paternidade (Os 11 e Jr 31). Oséias representa Deus na figura de pai (poderia ser mãe) de Efraim (o povo). Depois de tudo o que fez o pai pelo menino e rapaz, esse se rebela. O pai decide castigá-lo, rechaçando-o de todo, quando de repente se sente invadir pelo afeto e se interrompe: 11,8 9 Como poderei deixar-te, Efraim ...? Dá-me um sobressalto no coraçáo, revolvem-se-me as entranhas ... Não cederei ao ardor de minha cólera ... pois sou Deus e não homem. Em Jr 31, Deus vê chegar Efraim “novilho indómito”, mas “escar mentado”; aproxima-se “confundido e envergonhado”. Quando Deus o vê chegar, exclama: 20 Se é meu filho querido, Efraim, meu menino, meu encanto! Toda vez que o repreendo, lembro-me disso, comovem-se-me as entranhas, e cedo à compaixão. Tal é o sentido do salmo: a revelação paternal de Deus no perdão. Então, é o perdão competência do pai e não da mãe? Segundo Baruq 4 (texto tardio), toca a Deus perdoar como pai e a Jerusalém interceder como mãe; ocorre que, na relação Yhwh-Jerusalém, os papéis masculino e feminino são fixos. Os textos de Provérbios que se referem à educação dos filhos tratam por igual do pai e da mãe. 1270 Salmo 103 A comparação paterna prolonga-se num magnífico versículo (14) que incorpora o tema do Deus criador e modelador. — A comparação da águia, legendária, serve de contrapeso à da erva livre movimento na altura, efêmero florescer no nível da terra. Vê-la-emos na exegese. d) Composição Mais que de arquitetura temos que falar de desenvolvimento: encerra do num quadro largo e firme, e sujeito a algumas repetições verbais mais ou menos sugestivas. O quadro é formado por duplo “bendiz” no começo (1-2) e quáduplo imperativo no final (20-22), com perfeita inclusão total. Este quadro inusitado define o gênero e expressa um sentimento exaltado. O orante, que começa a sós, tem que recorrer finalmente a um coro excepcional. Segue uma série de seis particípios predicados de Deus (o último sem artigo) em quatro versículos compactos e bem ritmados. Com um qatal (perfeito) entra no v. 7 a referência histórica e segue uma pregação litúrgica no v. 8. Esta desencadeia uma grande reflexão, por meio de comparações, com seus versos, de novo bem ritmados. Seguem quatro versículos (15-18) que contrapõem a caducidade humana à misericórdia divina histórica e supra-histórica: o ritmo torna-se irregular. O v. 19 serve de conclusão ao que precede e dá passagem à segunda parte do quadro. Repetições. A mais importante, que insiste no tema central, é a de rhm + hsd em 4b e 8, com rhm em 13 e hsd em 11.17. O orante não sabe des prender-se dessas duas palavras. Importante é a repetição de gml em 2 e 10, porque revela o paradoxo de retribuição divina que consiste em perdoar. A repetição de ‘wlm em 9 e 17 é simplesmente correlativa: nega-se da ira, afirma-se da misericórdia. Menos conspícua é a insistência na totalidade (kl), repetido em 1.2.3.6.19.22. Finalmente, notemos a “execução” das ordens exigida dos homens, prestada pelos seres celestes. 5. Exegese 1. Santo Agostinho insiste na bênção interior silenciosa: “Tem ouvidos Deus, tem voz o coração ... Clame tua voz, se alguém te escuta, cale tua voz se ninguém te escuta; que em teu interior haja sempre alguém que o escute. As vezes cantamos e às vezes calamos: deve teu interior calar sem louvar a Deus? Soe às vezes alternadamente a voz, soe sempre a voz de teu interior”. Exegese 1271 2. Prescindindo do caso de Ezequias na versão de 2Cr 32,25 e dos Provérbios impessoais, a “retribuição” administrada por Deus é sempre de castigo (em Is 35,4 é de duplo fio). O versículo presente muda-lhe o sentido corrente ao fazê-lo objeto de bênção e ação de graças. O v. 10 esclarecerá em que consiste essa retribuição digna de agradecimento. A enumeração que segue encaminha-nos na mesma direção. 3-6. Os seis particípios são enumerativos, não compõem uma figura definida. Os três primeiros podem-se ler como série coerente: perdoa o pecado, causa, cura a enfermidade; conseqüência, liberta da morte, castigo ou destino. O quarto e o quinto são positivos, introduzem os três termos hsd, rhm, twb. O sexto passa do particular ao geral. 3. Pecado e doença supõem-se vinculados (por exemplo, SI 38). slh é raro no saltério (só aqui e em 25,11), é normal em outros corpos. Com referência ao êxodo e ao desterro, podemos apontar Ex 34,9; Nm 14,19s; Is 55,7; a passiva aparece em textos cultuais do Lv e Nm; o adjetivo no SI 86,5, o substantivo no SI 130,4. Do verbo rp\ o sujeito ordinário é Deus: veja-se em particular Ex 15,26: “Eu sou o Senhor, teu médico”. 4. O Resgatador: título freqüente de Deus em Is 40-55 (dez vezes), também no SI 19,15 e 78,35. As formas finitas do verbo são mais variadas em uso e distribuição. Resgatar é recobrar uma propriedade ou uma liberdade: aqui Deus resgata uma vida do poder incontrolável da Morte, que já tinha declarado sua possessão. O Coroador: o verbo significa coroar, cingir uma coroa ou um turbante, também significa rodear protegendo e cercando. O sentido de rodear protegendo encaixa-se melhor no contexto, porque não se trata de objeto honorífico imposto na cabeça do pecador perdoado. (Os antigos preferiram o significado de coroa, pensando na “coroa da glória”). 5. O Saciador: a metáfora é tomada do mundo material para espiritualizálo; no SI 65,5 ainda se alude aos sacrifícios com banquete. O verbo em hifil quase sempre tem Deus como sujeito e é freqüente no saltério. A breve comparação da águia é tomada de alguma lenda zoológica da antiguidade, que pensa na mudança de plumagem ou inclusive de asas. Do mesmo mundo mental parece fazer parte Is 40,31: Os que esperam no Senhor renovam suas forças, lançam asas como as águias. Superada uma doença mortal, o homem sente-se rejuvenescido. (Os antigos aplicaram-no à renovação do batismo ou à ressurreição). 6. O versículo funciona como dobradiça: ainda leva o predicado em particípio, já que sua esfera é a comunidade humana. Olhando para trás, serve para generalizar uma experiência pessoal; olhando adiante, sugere a primeira etapa de Moisés, a “opressão” no Egito (ainda que ‘shq não 1272 Salmo 103 apareça em contextos do êxodo). Fazer justiça ao oprimido é defender seus direitos, livrá-lo do opressor. Pelo resultado, é ato de misericórdia e com paixão. 7. Pela lei do paralelismo, os dois predicados valem para os dois sujeitos: a Moisés e ao povo mostra seus caminhos e suas façanhas. Postos a distinguir, diríamos que os caminhos os ensina por mediação de Moisés, segundo Ex 19,13: “Se gozo de teu favor, enina-me teus caminhos”. A palavra ‘lylwt é favorita do saltério e de Ezequiel. 8. Em Ex 34,6 apresenta-se a fórmula como autoproclamação do Senhor. Outros textos litúrgicos dão como variações a fórmula ampla (J1 2,13; Jn 4,2; SI 86,15; 145,8; Ne 9,17). 9-10. Começa o comentário com quatro orações negativas que não negam os verbos, mas os advérbios. Na verdade, acusa, pleiteia e irritase, mas não perpetuamente; na verdade, paga e castiga, mas não como merecemos. O desterro superado é prova disso. Queixava-se a quinta Lamentação (5,20): “por que nos esqueces para sempre?” (cf. SI 79,5); contesta o salmo: “não para sempre”. Perguntava o SI 77,8: “será que o Senhor nos rejeita para sempre?”; “não é para sempre”, responde o presente (cf. Jr 3,12). E certo que nos castiga, e até o duplo do previsto, dizia Is 40,1; “não como merecemos”, corrige o salmo. Assim é sua “retribuição”: a medida do castigo não é o delito, porque sua justiça é temperada e superada pela misericórdia (cf. Jr 16,18). Há delitos que se castigam com dupla restituição ou com recarga (por exemplo, Ex 22,3.8): a isso podem aludir os citados textos de Is 40 e Jr 16, que o salmo corrige. À luz desse versículo seria preciso ler muitos oráculos proféticos como ameaça. 11. Seguem as três comparações já comentadas, mais uma implícita. A altura dos céus é a maior que um israelita pode imaginar (Is 55,9; Jó 11,8; 22, 12). 12. Se o desterro foi um “afastar” os culpados da pátria (Jr 27,10; Ez 11,16), o perdão é um “afastar” o pecado para fora de alcance. 14. Com os termos de olaria e ‘p r fabrica o poeta sua imagem. Além de pai, Deus é oleiro que toma a argila e a modela. Ninguém como ele conhece o material empregado e o modelado impresso. Pois bem, Deus trabalhou com barro, e o modelado resultou o que diz Gn 6,5, antes do dilúvio. Porque conhece como ninguém, Deus compreende e perdoa. Nossa fragilidade de cerâmica, nossa contextura cediça, é nossa maior vantagem, sobretudo porque nosso oleiro é nosso pai. 15-16.0 homem de barro tem vida vegetal: não de alto cedro nem de carvalho perene, mas de humilde relva ao rés do chão, de beleza efêmera, indefesa perante o vento cálido ou violento (Is 40,7). Jó 7,10 parece inspirar- Exegese 1273 se na última frase: como a relva tem um lugar no solo, o homem tem um lugar no mundo; quando se vai, não volta, e o lugar acostumado o espera em vão; não reconhece sua volta, porque não volta. 17-18.Como no v. 13, a misericórdia parece limitar-se à comunidade dos fiéis, os que veneram Yhwh; ao mesmo tempo, hsd parece deslocar-se da misericórdia rumo à lealdade própria da aliança. Em cujo contexto, a ‘‘justiça de Deus consiste em cumprir seus compromissos” (por isso se a reconhece na confissão de pecados, Dn 9,7). O v. 18 parece saltar do regime de misericórdia ao regime de observân cia. Se a lealdade de Deus está condicionada pelo cumprimento humano, de um homem ou povo frágil, que lugar resta para a misericórdia? Creio que o versículo admite outra explicação, segundo o que nós chamamos de emen da: “estás perdoada, não voltes a pecar” (Jo 5,14; 8,11). Também essa idéia é tradicional e lógica, porque a misericórida e o perdão não são carta branca para o delito. Da emenda falam, por exemplo, Is 1,20; SI 50,23, etc. O con trário seria presunção, contra a qual previne lucidamente o Eclesiástico: 5,4 5 6 Não digas: pequei e nada de mal me aconteceu, porque ele é um Deus paciente. Não digas: o Senhor é compassivo e apagará todas as minhas culpas. Não te fies de seu perdão, para acrescentar culpas a culpas, pensando: é grande sua compaixão e perdoará minhas muitas culpas ... Veja-se o abuso em Jr 3,5. 19. Esse versículo colhe-nos de surpresa: é original ou acrescentado com toda a grande bênção angélica? Como se insere no contexto? O Senhor senta-se no trono real depois de vitória cósmica (SI 93,2) ou histórica (47,9); no presente salmo foi a vitória da misericórdia. 20-21. Nesses versículos consumou-se uma mudança: a corte celeste está agora formada de “anjos” encarregados de transmitir mensagens ou executar tarefas. E um plural, como na rampa que viu Jacó (Gn 28,12), como os protetores (SI 91,11), como os ventos (SI 104,4); e não se devem confundir com o singular m VkYhwh-o anjo do Senhor. A eqüivalência ou vinculação de anjos e astros a serviço de Deus ilustra-se-nos por vários textos de Jó comparados entre si, que tratando do mesmo tema mudam os sujeitos: 4,18 15,15 25,3.5 38,7 seus servos / seus anjos seus santos / os céus suas tropas / lua e estrelas entre a aclamação unânime dos astros matutinos e os vivas de todos os anjos. 1274 Salmo 103 Visto que em 20b evocam-se fortes campeões e paladinos vigorosos, é preciso recordar que no SI 19,6 o sol é “como um campeão”. Todos esses seres celestes estão a serviço imediato do Senhor para cumprir ordens; mas agora devem abandonar outras tarefas e, escutando o imperativo, o convite do orante, devem acompanhá-lo na bênção de Deus: eles são muitos e sabem fazê-lo melhor. 22. Todas as suas obras: o SI 148 encarregar-se-á de enumerá-las. Apêndice à guisa de comentário Antes de passar ao contexto cristão, recorde uma reflexão sobre o tema pouco conhecida ou pouco usada, apesar de seu inegável valor. Num contexto de retribuição e perdão explica Eclo 18: 8 9 10 11 12 13 14 O que é o homem, para que serve? Qual é sua bondade e sua maldade? Os dias do homem são contados, e é muito se chega a cem anos. Um a gota do mar, um grão de areia: isso são mil anos comparados com o dia eterno. Por isso o Senhor tem paciência com eles e derrama sobre eles sua compaixão; pois sabe muito bem que estão inclinados ao mal, e por isso abunda seu perdão. O homem compadece-se de seu próximo, o Senhor de todos os viventes: avisa e educa e ensina e guia como pastor o seu rebanho. Compadece-se dos que recebem a correção e se esforçam para cumprir seus mandamentos. 6. Transposição cristã Carece de semelhante exercício com um salmo que antecipa no AT a revelação da paternidade de Deus? Ponhamos diante de Jesus Cristo revelando a Deus como Pai, e proceda cada um com seus textos favoritos. A parábola culminante do filho pródigo (Lc 15); a intercessão na cruz: “Pai, perdoa-lhes” (Lc 23,34); “temos um defensor diante do Pai, Jesus” (lJo 2,1); as cartas de Paulo, começando por Rm 8,31-34. Para concluir nossa série ou cada um de nossos atos, a oração dominical dirigida ao Pai pedindo perdão. Sobre o v. 14 comenta Gregório Magno: “O que tem de estranho se conhece tudo? Mas seu modo de conhecer nosso barro foi assumi-lo por amor”. Salmo 104 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Bendiz, alma minha, ao Senhor: Senhor Deus meu, és imenso. Tu te revestes de beleza e majestade, a luz envolve-te como manto. Desdobras os céus como tenda, teus altos salões acima do teto das águas. Servem-te de carro as nuvens, e passeias1nas asas do vento. Servem-te de mensageiros os ventos; o fogo chamejante, de ministro. Assentaste a terra sobre suas bases,2 e não vacilará jamais. Cobriste-a com a veste do oceano, e as águas assaltaram as montanhas. Mas a teu bramido fugiram, ao fragor de teu trovão precipitaram-se, enquanto subiam os montes e baixavam os vales, cada qual ao posto atribuído. Traçaste fronteira infranqueável3 para que não voltem a cobrir a terra. 10 Dos mananciais tiras torrentes que correm entre os montes; 11 nelas bebem os animais selvagens, mata sua sede o asno selvagem. 12 Junto a elas habitam as aves do céu, das ramagens enviam sua canção. 1avanças 2seus alicerces 3que não transpassarão 1276 Salmo 104 13 De teus salões regas as montanhas, e a terra sacia-se de tua ação fecunda. 14 Fazes brotar relva para o gado e forragem para as tarefas do homem4: para que tire pão dos campos 15 e vinho que lhe alegra o ânimo, e azeite que dá brilho a seu rosto, e alimento que o fortalece. 16 Enchem-se5 de seiva as árvores do Senhor, os cedros do Líbano que ele plantou. 17 Aninham-se aí os pássaros, em seu topo põe sua casa a cegonha. 18 Os penhascos são para as cabras; e as penhas, covas de arganazes. 19 Fizeste a lua com suas fases, e o sol conhece seu ocaso. 20 Lanças trevas e faz-se a noite, e rondam as feras da selva. 21 Os leõzinhos rugem por sua presa, reclamando de Deus sua comida. 22 Quando brilha o sol, recolhem-se entocando-se em suas guaridas. 23 O homem sai para sua faina, para seu trabalho até o entardecer. 24 Quantas são tuas obras, Senhor!, e todas fizeste com mestria: a terra está cheia de tuas criaturas. 25 Aí está o mar: largo e extenso, nele se agitam, sem número, animais pequenos e grandes; 26 Sulcam-no os navios e o Leviatã que fizeste para jogar6 com ele. 27 Todos eles aguardam que lhes lances comida a seu tempo. 28 Se a lanças, eles a apanham; abres a mão, e saciam-se de bens. 4 bestas de carga 5 saciam-se 6 para brincar nele Bibliografia 1277 29 Escondes o rosto, e se espantam; retiras-lhe o alento, e perecem voltando ao pó. 30 Envias teu alento e os recrias, e renovas a face7da terra. 31 Glória ao Senhor para sempre, e goze o Senhor com suas obras! 32 Quando olha a terra, ela treme; toca os montes, e eles lançam fumaça. 33 Cantarei ao Senhor enquanto viver, tocarei para o Senhor enquanto existir. 34 Que lhe seja agradável meu poema, e eu me alegrarei com o Senhor. 35 Que se acabem os pecadores na terra, que os malvados nunca mais existam. Bendiz, alma minha, ao Senhor. Aleluia. 2. Bibliografia K. Fullerton, The feeling for form in Ps 104, JBL 40 (1921) 43-45. P. Joüon, Notes philologiques sur le texte hébreux des Psaumes. 104,20, Bib 11 (1930) 81-85. F. S. Porporato, Laudes in Deum omnium animantium conservatorem e moderatorem (Ps 103/104, 27-31), VD 12 (1932) 111-116. — Emitte Spiritum tuum et creabuntur et renovabitur faciès terrae (Ps 103/104, 30, V D 12 (1932) 140-147. P. Humbert, La relation de Genèse 1 et du Ps 104 avec la liturgie du Nouvel An israélite, RHPhR 15 (1935) 1-27. H. F. D. Sparks, A textual note on Ps 104,16, JTS 48 (1947) 57-58. A. van der Woort, Genèse 1,1 à 2,4 e le Ps 104, RB 58 (1951) 321-347. A. Jirku, Die Sprache der Gottheit in der Natur, TLZ 76 (1951) 631. E. F. Sutcliffe, A note on Ps 104,8a, VT 2 (1952) 177-179. S. Grill, Textkritische Notizen zu Ps 104,26, BZ 3 (1959) 102. A. Deissler, Menschen und Schöpfung. Eine Auslegung von Ps 104, OberrheinPast 61 (1960) 15-22. M . L. 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Iht: part masc corrigido por alguns, subst em aposição ou assíndeto Dah. 6. ksytw: suf masc referido a thwm\ lêem suf fem referido à terra A Teodor Jerôn Targ. 8. y ‘lw: alguns fazem sujeito as águas e compl de lugar aonde hrym bq’wt; mqwm constr antes de relativo. 10. qui emittis fontes in convalibus Jerôn como Gr Del. 11. hytw: variante de hyh GK 90 o; sdy forma arcaica com 3a radical conservada. 12. de medio petrarum (qp’) Vg. 13. mpry m‘syk: interpretação duvidosa: refere-se à chuva, ã vegeta ção? (Gn 1,11-12)? 14. l“bdt: ambíguo: para o serviço do homem Graetz Gun, para que o cultive (Gn 2,5), para os que servem Dah. 14b-15. Jogo estilístico repetindo gerúndios, min, Ihm e Ibb ’nwsh. 17. herodii domus dux est eorum Vg (não entenderam o brwshym). 19. lmw‘dym: poderia ser: para (assinalar) as festas (cf. Gn 1,14). yd‘: pode ser cláusula de relativo. 20. tsht: talvez temporal Joüon 167a; tsht ... wyhy jussivos talvez como condicional e apôdosis Hitz Del cf. Joüon 167 a. 25. spatiosum manibus Vg, weit und breit Ecker. 26. draco iste quem formasti ad illudendum ei Vg, “para brincar no mar, porque com todos os seres marinhos brinca, pois come de todos os que caem em seu domínio” Qim, na água Eut Bei Teodor; brincar com o Leviatã Baeth (Jó 40,29). zh: relativo DBHE zh 4. 27. Itt: suj implícito Joüon 124s. 4. Estudo global a) Gênero literário Este salmo é um hino a Deus pela criação: assim costumam catalogálo os exegetas. Começa como o anterior com o imperativo brky, que inter pretamos como ação de graças: vale a interpretação para o caso presente? 1281 Estudo global Antes, considerando a proximidade entre louvor e ação de graças, coloca mos o salmo entre ambas, mas inclinado para o louvor. Aceito, pois, a catalogação como hino, com o que bem pouco se diz sobre o salmo em particular. Hino a Deus pela criação, não da criação. As criaturas, a numerosa população do salmo, não são convidadas a bendizer ou louvar ao Senhor, como pedia o salmo precedente dirigindo-se a “todas as suas obras”, ou como fará o SI 148; tampouco louvam como os céus do SI 19, mas por elas o orante louva a Deus. O papel das criaturas é portanto revelar. Em termos litúrgicos é como que um eco amplificado dos serafins (Is 6,3): “a terra está cheia de sua glória” / a plenitude, o que enche a terra, é a sua glória. Em termos de filosofia elementar, di-lo-ão mais tarde dois quase coetâneos: Sb 13,5 Rm 1,20 Pela magnitude e beleza das criaturas descobre-se por analogia aquele que lhes deu o ser. Seu eterno poder e sua divindade são visíveis para quem reflete sobre suas obras. Costuma-se citar como paralelo ou inspirador do presente salmo o hino ao Deus Sol de Akhenaton. Um recente artigo mostra que é cananéia a pátria mental e espiritual desse salmo, e que o Egito assimila a influência cananéia. Cf. Uehlinger, Leviathan und die Schiffe in Ps 104,25-26, Bib 71 (1990) 499-526. Mais que as influências externas, logo perceptíveis, interessa-me o sistema de relações que o poema estabelece. O salmo não é enunciado teórico, mas um canto, de que podemos aprender coisas importantes. b) Deus e a criação Deus é o criador, portanto; mas sua relação com o universo criado não é exatamente a de Gn 1. Na primeira página da Bíblia, Deus é criador transcendente, que se mantém fora de sua obra; dá ordens eficazes, contempla, impõe nomes, cria espécies, imprime-lhes impulso gerador; e retira-se para descansar. No SI 104, Deus permanece dentro do universo celeste, como soberano em sua corte, e continua ocupando-se de suas criaturas. O salmo precedente apresentava o Senhor como soberano de um império: 103,19 22 O Senhor pôs no céu seu trono e seu reinado em todo o seu império. Bendizei ao Senhor, todas as suas obras, em todo o território de seu império. 1282 Salmo 104 Semelhante é a visão do presente salmo: a de um soberano em seus domínios. Imanente à criação? Não; sua soberania universal é sua trans cendência. O poeta não recorre ao símbolo espacial de “fora, para além, por cima de” com respeito à totalidade criada. Isso diz respeito à visão poética, porque se sente Deus próximo e presente. Gn 1 oferece-nos uma nobilíssima visão hierática (muito admirada pelo autor do tratado Sobre o sublime). O poeta do SI 104 transmite-nos um encontro contemplativo e cordial. (Mais pormenores na exegese). Por outro lado, Deus aqui não é artesão, como em Pr 8, mas soberano (apesar do v. 24). Podemos olhar (a relação) a partir de perspectiva temporal. Se Deus um dia plantou cedros (16) e fez a lua (19), agora entra nos ritmos do tempo: rega os montes (13) e faz germinar (estações 13s), dispõe das trevas noturnas (ritmo diário, 20), joga comida (tarefa quotidiana, 28), retira o alento e o envia (ritmos biológicos, 29s). O Deus do salmo não repousa num sétimo dia perpétuo, continua, ao invés, atuando (cf. Jo 5,17). c) O homem na criação — O homofaber. Nesse mundo de céu, terra e mar, de seres inorgânicos, montanhas e rios, de vegetais, árvores e outras plantas, de animais selvagens e domésticos, ocupa lugar pouco conspícuo o homem: pela manhã sai para suas fainas e retorna ao entardecer. A aparição do homem podia ter centrado o poema, como no SI 8: “O que é o homem?” Não ocorre assim, mas o trabalhador do poema atravessa os versículos como se fossem sulcos, e afasta-se. Contudo, sua efêmera pre sença poética revelará ao poeta, diretamente e por contraste, dois tipos humanos: o trabalhador e o contemplador. A audácia e originalidade do poeta consiste em englobar o homo faber dentro da natureza, como parte harmônica dela. O homem ocupa nada mais que os versículos 14-15 e 23. O que faz? O que busca? Os animais dispõem de rios para beber água (11), as feras “rugem pela presa reclamando de Deus a comida” (21). O homem não tem tudo feito nem ruge: simplesmente “sai para suas fainas até o entardecer”. Olhai-o respeitando o ritmo do tempo, inserido nele. Suas fainas ordenam-se a tirar da terra pão, vinho e azeite. Pão para recuperar as forças, porque não come os frutos como os encontra; vinho para alegrar o ânimo, pois não se contenta com beber água; azeite para dar brilho ao semblante, para realçar sua presença natural. Nem o pão aparece assado nos sulcos, nem o vinho brota de mananciais, nem o azeite jorra de árvores. O homem interpõe seu trabalho e artesania. O artificial é o natural para o homem. Com seu artifício insere-se o homem na natureza. Estudo global 1283 É o homo faber, que domina e submete a terra com seu trabalho inteligente, que a explora sem exauri-la. Não é o Adão desterrado de Gn 3, regando com seu suor para colher entre abrolhos. E trabalhador sereno, pontual, sem sentimentos explícitos, que se assenhoreia modestamente de parcela de terra. O autor do salmo não teria inconveniente em subscrever que pão e vinho e azeite são fruto da terra e da videira e da oliveira e do trabalho do homem. O homem trabalhador é parte integrante duma natureza que revela a Deus; portanto, também ele revela singelamente. — O homem navegante. E uma variação do anterior. E curioso o interesse pelo elemento aquático nesse poema (rastro de influêcia fenícia?): as águas celestes (3), a agressão do oceano turbulento (6.7.9), os animais junto a rios (10-11), a rega da chuva (13). Ora, no orbe há outras águas que não são o oceano hostil ou tehom. E o mar tranqüilo, comedido: nele se agitam sem número animais pequenos e grandes (25). Esse mar oferece o dorso aos navios que o homem constrói, sustenta-os. O mar, onde os peixes tecem e destecem sendas (SI 8,9), não amedronta o homem, ainda que não seja seu elemento: SI 107,23 Sb 14,2 Entraram em navios pelo mar comerciando pelas águas imensas. Navios que projetou o afã do lucro e armou a perícia técnica. Da mesma forma que o homem abandona seu elemento, que é a terra firme, para aventurar-se pelo mar inquieto e desconhecido, ousará um dia sulcar a atmosfera das aves e os espaços celestes? Nenhum poeta bíblico o diz ou o sonha. Viagens celestes, em carros ou cavalgando ventos, são competência de Deus (3). O que dizem Dt 30,12; Am 8,9 e SI 139,8 são puras hipóteses poéticas. d) O homem contemplador Dentro do poema observamos uma paisagem humanizada pelo homo faber. Fora do poema descobrimos o poeta como homo contemplator. Sentase para olhar ao passo que os demais se movem, se afanam, trabalham e descansam. Afinando conceitos, podemos distinguir entre observar e contemplar. O observador registra e cataloga fenômenos, o contemplador os ultrapassa. O botânico e o entomólogo devem ser bons observadores, o contemplativo transcende os fenômenos. Claro está que muitos observadores, amantes da natureza, sabem controlar cientificamente a obervação e depois desbordála. Contemplar é um modo de abertura do homem, de penetração através de superfícies translúcidas. O menino é contemplador inocente, o poeta é 1284 Salmo 104 contemplador comunicativo, o homem religioso pode ser contemplador inspirado. Fazia-me falta essa digressão para situar o SI 104 e muitos outros textos poéticos do AT. Como observador, é superior Salomão (lRs 5,13s); como contemplador, faz companhia ao autor de Jó e dá exemplo ao Eclesiástico (Eclo 43). Ninguém lerá o presente salmo para aprender história natural, nem sequer para averiguar o que os homens antigos sabiam de ciências naturais. Para apropriar-se do salmo, é preciso comun gar com o seu cunho contemplativo. e) O poeta, contemplador e artesão — Contemplador. O autor, além de deixar-nos um poema insigne, dános uma lição. Contemplar é ato gratuito, amoroso e alegre. É descobrir sem interesse utilitário, é tomar sem gastar, pode-se compartilhar sem perder. Contemplando equilibra-se o afã febril, enxuga-se o suor do rosto, serenase o homem, como Jó da mão de Deus. Enquanto o homo faber dentro do poema “sai para suas fainas até o entardecer”, o poeta fora do salmo contempla. Não está inativo, ainda que não esforce os músculos nem se ponha a raciocinar. Seu repouso não é preguiça, mas atenção desperta. — Artesão. O poeta é contemplador comunicativo. O círculo dos contemplativos é mais largo que o dos poetas. Porque o poeta não se contenta com contemplar, mas faz algo. Na língua grega, sua atividade é poesis (ação) e seu produto é poema (ato, obra). Em termos modernos diríamos que sua tarefa é transformar em palavra poética sua experiência contemplativa para torná-la comunicável e participável. Se nos ocupamos do anônimo autor do SI 104, não é só nem principalmente por seu exemplo de contemplador, mas porque nos deixou um poema. Foi homem da palavra. Enquanto o homo faber passa o dia, de sol a sol, inclinado sobre o campo da lavoura e “preocupa-se de traçar os sulcos” (Eclo 38,26), o poeta passou horas do dia, e talvez da noite, sobre campos de linguagem, glebas de sintagmas e sulcos de paralelismos poéticos. Não é mais fácil nem menos laborioso tirar um poema da pedreira da linguagem que transformar o suor em fecundidade e tirar da terra pão e vinho e azeite. Esses produtos foram consumidos pelo homem para seu alimento, gozo e valor físico. O produto do poeta é um poema que pervive e continua alimentando espiritualmente muitos homens de muitas gerações. O homem contemplativo não ficou extasiado e em silêncio, mas transformou a contemplação em poema para que comunguemos com o poeta no louvor de Deus, na possessão desinteressada e gozosa da criação. Estudo global 1285 O Eclesiástico formula em diversas passagens a tensão entre contemplação e palavra: 42,25 43,31 39,14 Uma obra excede a outra em beleza: quem se saciará de contemplar sua formosura? Quem o viu que possa descrevê-lo, quem o louvará como ele é? Elevai a voz em canto de louvor, bendizei ao Senhor e a suas obras. Primeiro a contemplação nunca saciada, depois a impossibilidade de expressar-se, finalmente a necessidade de proclamar-se. A tensão entre o homo faber e o homo ludens (o poeta) está resolvida no ato poético do salmo. E este é um de seus valores permanentes. f) Deus e o poeta Partindo da experiência humana, alguns autores bíblicos imaginam um Deus artesão, Deus faber, e contemplador. O primeiro capítulo do Gênesis é exemplar: Deus é soberano que dá ordens, “disse Deus”, e artesão que executa, “fez Deus”; também é contemplador de sua obra, “e viu Deus”. O artista contempla sua obra acabada, e lhe agrada. O SI 104 o dá a entender com o uso dos verbos. Ao passo que a terra “se sacia” e os animais “pegam a comida e se saciam”, ao passo que o homem “tira pão e vinho e azeite”, Deus ■‘alegra-se com suas obras”. Tê-las feito, bem feitas, é o pagamento do artesão. Pode Deus se alegrar também pelas obras de outros? O poeta espera que assim sej a. O poema é tudo o que ele pode oferecer a Deus. Caim oferecia espigas, Abel oferecia cordeiros, os israelitas ofereciam animais e frutos agrícolas. Quando “agradam” a Deus, as oferendas são válidas, ficam consagradas. A oferenda do poeta é seu poema. Por isso pede “que lhe seja agradável meu poema, e eu me alegrarei com o Senhor” ou “festejarei o Senhor”. A última frase é significativa. Vimos que o contemplador não tira partido, não se sacia, mas goza. Pois bem, recitando seu poema, o poeta quer compartilhar do “gozo” de seu Senhor. Que melhor prêmio para a contem plação poética? O salmo fez-nos refletir sobre questões fundamentais da palavra poética na oração de Israel e em ordem à nossa apropriação dessa palavra. g) Composição Até o v. 24, o salmo procede em ordem. Depois do brevíssimo invitatório, canta a Deus no céu em nove versículos (1-9). Seguem nove versículos dedicados à terra, alternando o mundo selvagem (10-12) com o domesticado 1286 Salmo 104 (13-15) e outra vez o selvagem (16-18). Depois contempla o ritmo de dia e noite com suas correspondentes atividades (19-23). Encerra-se com uma exclamação que poderia ser o final do poema, ao acrescentar em inclusão o invitatório. A partir daí, dá a impressão de que o poeta acrescenta coisas esqueci das ou que ocorreram mais tarde. Oferece-nos uma visão marinha (25-26). O v. 27 começa com um “todos eles” que logicamente devem ser os animais da primeira parte, e não só os precedentes, do mar; 27-28 enlaçam-se pelo tema com 21; 29-30 contemplam o ritmo misterioso de vida e morte. O v. 31 poderia ser uma nova conclusão, que se alarga no v. 32; 33-34 são a dedica tória do poema ao Senhor. Antes de voltar ao invitatório, como petição impor tante, como se por acaso, pronuncia-se o v. 35. Certamente, em poema dedicado à beleza e harmonia da criação podíamos esperar composição mais harmoniosa. As quebras lógicas são patentes; e se há alguma razão poética para a ordem atual, ela se nos esconde. Tampouco estamos autorizados a mudar o texto atual. Não seria difícil melhorá-lo. Faça-se a prova de transferir o mar (25-26) para depois das montanhas (18); de juntar o ritmo do alimento e da vida e da morte (2730) atrás dos ritmos quotidianos (19-23); de concluir com 33-34, mais o versículo do invitatório. Essas mudanças não alterariam o sentido, mas dar-nos-iam um objeto poético que não é o que nos toca comentar. 5. Exegese 1. Para o invitatório, veja-se o salmo precedente e observe-se a bre vidade sóbria desse começo. A segunda frase do versículo já faz parte do tema: uma espécie de exclamação, dirigida ao Senhor em segunda pessoa. A segunda pessoa será abandonada na súplica dos versículos 31-32 e logicamene na dedicatória do poeta. Es grande: se o adjetivogadol predicado de Deus é freqüente, o verbo é raro. O orante quer resumir tudo nesse versículo programático: no SI 99 era a santidade, no 103 a misericórdia, nesse a grandeza. lb-9. Propõem imagem unitária do Senhor como soberano real: apre senta-se com vestes régias, construiu-se um palácio nas alturas. Quando sai a percorrer seus domínios, dispõe de carro de nuvens ou de cavalgaduras aladas de ventos. Despacha seus legados e servidores com mensagens e encargos. Cimenta solidamente a terra. E se, lá em baixo, alguma de suas criaturas rebela-se e tenta assaltar a outra, o oceano à terra, com um bramido a reprime, e impõe sua ordem distribuindo zonas e traçando fronteiras. Exegese 1287 Não há outros deuses em sua corte. O tehom perdeu sua grandeza mitológica e está reduzido a veste que recobre; se por acaso se desmanda, Deus não tem que lutar contra ele; basta-lhe um bramido. Alargando-nos um pouco no v. 10, que funciona como enlace pelo tema aquático, observa mos as águas terrestres pacíficas e postas nos leitos por Deus. Nada é dramático por ora nos domínios do Senhor. lb-2a.Como em Gn 1, a primeira critura mencionada é a luz. Mas, que diferença! Lá Deus fá-la existir como uma ordem contemplando-a de fora. Aqui o Senhor envolve-se nela como que num manto. Não um manto como o do Senhor em Is 6, nem como o manto de poder do SI 93,1, mas a luz invisível manifestando e ocultando a Deus, revelando sua majestade. O Deus bíblico não é como os deuses gregos, que exibem a nudez para exaltar a beleza. 2b-3a. Os céus são como que lona estendida de tenda de campanha, como que esplêndida barraca real (cf. Ct 1,5). Com salões superiores acima das águas celestes (veja-se SI 29,10). Também essa corresponde à segunda criatura de Gn 1, com a mudança conveniente: em vez do firmamento ou abóboda laminada e resistente, a lona de barraca; e as águas superiores ficam sob os altos salões do palácio. 3b. Abandonamos por ora o Gênesis e, sem perder de todo o contato, passamos aos meteoros. O Senhor passeia pela órbita ou espaços celestes; as nuvens, no plural, servem-lhe de carro: com sua mobilidade e ligeireza transladam para toda parte o seu Senhor. Compare-se com Is 1 9 ,1 : “Vede o Senhor cavalgando em ligeira nuvem”; Is 1 4 ,1 4 , onde o imperador soberbo se propõe: “subirei ao dorso de uma nuvem”. O primeiro vento, no singular, poderia ser transformação do “vento divino” que pairava sobre o caos (Gn 1 ,2). O versículo inteiro pode estar inspirado no SI 1 8,1 1 , onde um querubim faz a função da nuvem. 4. Continua a série de meteoros: ventos, no plural, e fogo chamejante de raios e relâmpagos. Os ventos, com sua mobilidade em todas as direções, prestam-se como mensageiros ou portadores de recados do Senhor, que os controla e envia (vejam-se SI 148,8 e Eclo 39,28). Outros textos aplicam o verbo Iht a incêndios diversos; aqui creio que estamos ainda na zona de meteoros superiores. 5-6.0 terceiro dia de Gn 1 emprega-se para separar a terra firme do mar. A mesma coisa aqui. A terra está solidamente alicerçada, de modo que, ainda que trema, não se desencaixa de seu lugar. A expressão é freqüente (por exemplo, SI 93,1; 96,10). O terrível tehom reduz-se à mera função de veste. Como o Senhor veste-se de luz, assim também a terra veste-se de oceano. Tomo o segundo hemistíquio como tentativa de agressão, como assalto, sabendo que outros o interpretaram de outra maneira. Imaginam-se as águas cobrindo toda a superfície da terra, inclusive acima das montanhas; 1288 Salmo 104 e depois retirando-se, ao escutarem a censura de Deus. Seria alusão ao dilúvio ou a uma situação primordial semelhante. Creio mais provável a outra explicação: de águas não se predica o verbo ‘amad (Gn 7,19 emprega gbr); ‘md ‘l significa em geral atacar, assaltar (DBHE ‘md 4); a censura que segue supõe conduta censurável. Essa interpretação não exclui a alusão ao dilúvio, que parece soar no v. 9; o que afirma é o movimento agressivo das águas como personagem “má” do drama, ainda que bem controlada. 7. Cinco vezes em quinze o sujeito do verbo g ’r é Deus e dez vezes em quinze do substantivo. Um versículo de Isaías ilustra o versículo presente porque apresenta uma exército em figura de ondas marinhas, desbaratado pela censura / bramido do Senhor: 17,2 13 Ai! retumbar de multidões como retumbar de águas que retumbam; bramar de povos como bramar de águas caudalosas que bramam! Ele lhes lança um grito, e fogem para longe. Veja-se também Is 50,20: “com um grito secou o mar”. 8. O que dizemos em sentido próprio, referindo-nos aos gigantescos movimentos geológicos da crosta terrestre, diz o poeta bíblico como imagem da origem dos acidentes terrestres. As montanhas sobem e os vales descem. Compare-se com o SI 65,7, onde Deus coloca os montes bem aprumados. 9. Aos hebreus fascinou a misteriosa e segura fronteira da terra e do mar, e os poetas expressaram o estupor de diversas formas. Entre eles destaca-se Jó 38,10s: quando lhe impôs um limite com portas e fechaduras e lhe disse: Até aqui chegarás e náo passarás, aqui se quebrará a arrogância de tuas ondas. Vejam-se também Jr 5,22; SI 148,6; Pr 8,29. 10-12.Esses três versículos são no AT o que há de mais próximo de tentativa de paisagem como nós a concebemos. São pinceladas sem desenvolvimento, mas a atitude do poeta é a de paisagista que conta com Deus. Sua paisagem é animada e dirigida pela água: vê-a brotar de mananciais, correr entre montanhas, atrair animais sedentos, alimentar árvores onde se aninham e cantam pássaros. O sujeito de tudo é o Senhor, que despacha os arroios como se estivesse presidindo e controlando os mananciais. De novo vemos a Deus metido dentro de sua obra e atuando nela. Exegese 1289 13-15. Esses quatro versículos ocupam-se da terra enquanto fértil e cultivada. Dois dados são duvidosos. O primeiro as montanhas (13): referese à vegetação espontânea e aos frutos silvestres de que se alimentam os animais selvagens?; ou refere-se já a montes cultivados pelo homem? O primeiro coloca esse versículo fora e em contraste com o cultivo humano que segue; o segundo está em consonância com o SI 65,13. Tendo em conta Gn 1, podemos pensar que o salmo fala primeiro em geral, expondo a ação de Deus, que será base e condição do trabalho humano. O terceiro dia criou Deus as plantas (csb) de semente e árvores frutíferas que se reproduzem por sementes. O SI 104 pensa primeiro nas árvores e menciona logo a erva. Mas agora a ação de Deus não é criadora, e sim sustentadora. Dos altos salões de seu palácio celeste, Deus “dá de beber” aos montes, e com sua atividade faz com que produzam frutos destinados ao alimento. Gn 1 explica-o em 29-30: Eis que eu vos entrego todas as ervas... e todas a árvores frutíferas... vos servirão de alimento. E a todos os animais da terra ... a erva verde lhes servirá de alimento. Ao concentrar-se na chuva como condição e agente de fertilidade, o salmo enlaça-se com Dt l l ,l l s . A atividade do lavrador insere-se nesse contexto. 13. Em Gn 1, Deus ordena que as árvores produzam fruto; aqui o alimento terrestre é “fruto da ação” de Deus, que não descansa. Apresenta-se aqui a segunda dúvida, a propósito de ‘bdh. Em paralelo com bhmh, pode ser um abstrato por concreto e significar os que trabalham, as bestas de carga. Em texto suficientemente claro para nosso propósito atual diz Pr 14,4: Onde não há bois, o celeiro fica vazio, a força do touro traz rica colheita. Veja-se também Jó 39,9-12. A outra alternativa é que ‘bd.h significa já as “fainas” agrárias do homem, que se especificam em seguida. 14-15. O poeta escolhe três produtos básicos, que não faltam na lista ie coisas essenciais (Eclo 38,26). O sujeito do gerúndio Ihwçy’ é o homem, que assim fica subordinando sua atividade à ação de Deus. O pão dá forças, 3 vinho alegria, o azeite brilho. 16-18. Com esses três versículos voltamos à zona silvestre e monta nhosa. Começa pelas árvores corpulentas que o homem não plantou nem cultivou: também elas “saciam-se” como a terra (13b, primeiro enlace). Tam bém delas se ocupa o Senhor enviando-lhes chuva. O Líbano com seus cedros e talvez com ciprestes e zimbros) representa a região não habitável, dificilmene acessível e cobiçada desde tempos muito antigos (Gilgamés e Huwawa). Salmo 104 1290 Mas não despovoada de animais, que se aninham em suas árvores (como 12, segundo enlace). 19-20. Em divisão tripartida de céu, terra e mar, este seria o lugar opor tuno para o terceiro. O poeta prefere passar a outra categoria, ligada à criação do quarto dia: o sol e a lua, que marcam o ritmo do dia e da noite, a lua com suas fases, o ciclo do mês. Neste mundo estelar, Deus surge simplesmente como criador (‘sh), sem atividade particular e contínua. No versículo seguin te, porém, diz o poeta “traz as trevas”, o que sugere ação diária. 20-21. A criação de animais em Gn 1 distribui-se entre o quinto e o sexto dia. O salmo distribui-os em vários versículos, sem esquecer a divisão tripartida de celestes, aquáticos e terrestres. Interpreta-se o rugido do leão como pedido que o animal dirige a seu dono, como sua maneira natural de pedir a quem convém; esse rugido não infunde terror (Am 3,8). 22. Como os animais têm seus postos designados, assim têm as feras seus tempos definidos, que são diversos dos humanos. 23. O versículo recolhe as duas últimas palavras do v. 14, talvez decidindo a interpretação de ‘bdh. E trabalho essencialmente diuturno, pois enquanto o homem dorme (SI 127,2), Deus encarrega-se de ativar a fecundidade da terra. Ben Sira conhece outros trabalhadores que “empre gam a noite como dia” (Eclo 38,27). 24. Nesse versículo, como em outros semelhantes, hkmh não é conhe cimento intelectual, mas saber fazer, destreza artesanal, habilidade e tino. Por tudo o que antecede, m‘sy são obras e ações, toda a atividade divina; ao passo que qnym são as criaturas. 25-26. Do mar retém o poeta três aspectos. O primeiro, a imensidade (cf. Is 11,9; Eclo 43,24); o segundo, os animais inumeráveis (Gn 1 fala de “pulular”): é visão de navegante e pescador; o terceiro é a navegação. Esse modo de olhar o mar é mais fenício ou cananeu do que egípcio: o poeta egípcio está demais embebido no Nilo para fixar-se no mar; sua navegaçãc é principalmente fluvial: “O Nilo celeste é para os povos estrangeiros e para todos os animais que caminham pelos desertos; ao invés, o Nilo é para o Egito e brota de seu mundo subterrâneo”. (Do hino de Akhenatonj. Nesses três dados não apareceu Deus, o que difere da secção preceden te. Deus apresenta-se no gratuito, num quarto dado inesperado e bemvindo. A última frase admite duas traduções, segundo a repartição de sujeito e possessivo. Essas são as soluções possíveis: O Leviatã que modelaste para brincar com ele. O Leviatã que modelaste para que brinque nele. Exegese 1291 Na primeira leitura, temos um Deus desportista, que brinca com uma de suas criaturas, com uma das mais temíveis; como brincam com outros animais os homens: Jó 40,29 Brincarás com ele como um pássaro, ou o atarás para que brinquem tuas filhas? fala do Leviatã = crocodilo). O que os homens não podem, fá-lo Deus. Na segunda leitura mostram-se-nos o espírito e o destino brincalhão do Leviatã = golfinho. Em ambas as soluções, o Leviatã passou de monstro mitológico terrorífico a povoador inofensivo e festivo dos mares. 27-28. “Todos” tem que se referir a todos os animais até agora men cionados: todos dependem diretamente de Deus para seu sustento quotidiano como os animais domésticos e de carga na fazenda dos homens). Todos dependem de Deus: com seu instinto, acrescentamos nós. 29-30. Não encontro nesse versículo nenhuma idéia de ressuscitar animais mortos. Creio que o poeta contempla o maravilhoso e misterioso continuar das espécies sob o controle imediato de Deus. Segundo Gn 1, Deus cria todos os animais “segundo suas espécies”, em indivíduos e parelhas fecundas. Uns morrerão, outros nascerão, e assim continuará o ciclo da vida segundo as formas criadas por Deus (o pensamento bíblico é fixista, não evolucionista). Ora, toda vida é alento (ruh) de Deus (Gn 6,17; 7,15). Deus controla esse alento de vida: “em sua mão está o respiro dos viventes e o alento do homem de carne” (Jó 12,10). Por isso, se Deus “retira” aos seres vivos seu espírito, expiram: Jó 34,14 15 Se decidisse por sua conta retirar seu espírito e seu alento, expirariam todos os viventes, e o homem viraria pó. Retirando-o a uns, e comunicando-o a outros, assim são “criados'”. É o alento de Deus e deles: “enquanto eu tiver respiro e o alento de Deus mas narinas” (Jó 27,3). E como se Deus possuísse um alento único do qual retira e comunica muitas participações: “todos têm um só alento” (Ecl 3,19). 31. Soa como nova conclusão, eco da primeira (24). A “glória do Senhor” parece ser aqui o reconhecimento mais que a manifestação. Parafraseando: seja conhecida a glória do Senhor que se manifestou e se manifesta continuamente em suas criaturas. E que Deus continue ale grando-se com todas elas, como se alegrou ao criá-las, vendo que eram tão boas e belas. 32. Por que esse versículo aqui para caracterizar a relação do Senhor com sua criatura terrestre? O sentido do versículo é claro e conhecido: descreve a reação do mundo inanimado à teofania de Deus: tremor e 1292 Salmo 104 estremecimento da terra, fumegar de vulcões nas montanhas (Ex 19,18: Sinai e casos semelhantes). Mas, por que aqui? Ocorre-me pensar que o poeta, depois de ter sentido a fascinação de Deus na criação, quer assinalar também o aspecto tremendo de sua grandeza: “fascinosum et tremendum”. Respeito reverenciai deve acompanhar a contemplação extasiada. 33-34. O poeta terminou e parece contente com sua obra: saiu-lhe bem a letra e dispõe-se a cantá-la com acompanhamento instrumental. Agrada rá também a Deus? Assim o espera, e essa será sua maior alegria: não tanto o acerto poético como a aceitação divina. 35. Tudo concluído, eis que soa um versículo inesperado. Há algo alguém que perturba a harmonia e beleza da criação: os pecadores, os malvados. Se pudessem ser desterrados dessa terra de maravilhas ... O assalto do oceado foi reprimido, e traçou-se fronteira que não ultrapassa. Não seria possível reprimir os pecadores? Não era tudo bom quando Deus criou o mundo? A beleza da criação é denúncia desse corpo que sente como estranho, do qual quereria desfazer-se. E também um convite a sonhar com uma criação em que não exista o pecado. 6. Transposição cristã Desta vez, Santo Agostinho, com seus quatro sermões sobre o salmo, ensina-nos o que não devemos fazer. Vai substituindo cada criatura sensível por uma realidade espiritual: os salões superiores são a caridade, virtude suprema, as nuvens são os pregadores que explicam a Escritura, os ventos são as almas e suas asas são as virtudes e boas obras. No fim, eliminou do salmo, não os pecadores, mas as belas criaturas. As breves observações que oferece sobre o sentido literal não compensam. Desta vez tenho que deixar Agostinho e tomar por mestre um contemplativo cristão. Porque o que buscamos é recitar esse salmo incluin do Jesus Cristo: como ele o recitou, como ele o transformou ao fazer-se parte da criação e ao transfigurar a criação em sua glorificação. Do Tabor, onde manifesta sua glória luminosa, estendemos a vista em torno dessa nossa terra; da nuvem que o transporta ao céu, olhamos para cima e para baixo. Escolherei, como mestre de contemplação e poeta, São João da Cruz, de quem copio algumas estrofes do Cântico espiritual: “O bosques e espessuras plantados pela mão do Amado; ó prado de verduras de flores esmaltado; dizei se por vós ele passou. Transposição cristã 1293 Mil graças derramando, passou por esses bosques com pressa, e, indo os olhando, só com sua figura vestidos os deixou de sua formosura ... Meu Amado, as montanhas, os vales solitários, nemorosos, as ilhas estranhas, os rios sonorosos, o silvo dos ares amorosos”. Pode-se completar a leitura desse salmo com o capítulo 43 do Eclesiás tico. Pode-se ler também a tradução desse salmo por Fray Luiz de León. Finalmente, é oportuno recordar o importante papel da contemplação da natureza num autêntico programa de educação ecológica. Salmo 105 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Dai graças ao Senhor, invocai seu nome, informai suas façanhas aos povos. Cantai-lhe ao som de instrumentos, comentai todas as suas maravilhas. Gloriai-vos de seu nome santo, que se alegrem os que buscam o Senhor. Recorrei ao Senhor e ao seu poder, buscai sempre sua presença1. Recordai as maravilhas que fez, seus prodígios e as sentenças de sua boca. Estirpe de Abraão, seu servo; filhos de Jacó, seu eleito! O Senhor é nosso Deus, ele governa toda a terra. Recorda-se sempre de sua aliança, da palavra dada, por mil gerações; da aliança selada com Abraão e dojuramento feito a Isaac, 10 confirmado como lei para Jacó, como aliança eterna para Israel. 11 A ti darei o país cananeu como lote de tua herança2. 12 Quando eram uns poucos mortais, contados e emigrantes no país, 13 quando erravam de povo em povo, de um reino a outra nação, 1seu rosto 2lote hereditário Salmo 105 14 a ninguém permitiu oprimi-los, e por eles castigou reis: 15 “Não toqueis nos meus ungidos, não maltrateis meus profetas”. 16 Chamou a fome sobre aquele país, cortando o sustento de pão. 17 Adiante tinha enviado um homem, José, vendido como escravo. 18 Travaram-lhe os pés em grilhões, meteram-lhe o pescoço na argola, 19 até que se cumpriu sua predição, e acreditou-o a palavra do Senhor. 20 O rei mandou libertá-lo3, o soberano lhe abriu a prisão. 21 Nomeou-o administrador de sua casa e senhor sobre todas as suas posses, 22 para que a seu gosto instruísse os nobres e lecionasse aos conselheiros4. 23 Então Israel entrou no Egito, Jacó emigrou para o país de Cam. 24 Deus fez seu povo muito fecundo e mais poderoso que seus inimigos. 25 Mudou-lhes o coração para que odiassem seu povo e usassem de más artes com seus servos. 26 Enviou Moisés, seu servo; e Aarão, seu eleito, 27 que executaram contra eles sinais e prodígios contra o país de Cam. 28 Enviou a obscuridade, e escureceu, mas eles resistiram a suas palavras. 29 Converteu suas águas em sangue e deu morte a seus peixes. 30 Puluvam5 rãs pelo país, até nos aposentos reais. 31 Ordenou que viessem tavões e mosquitos por todo o território. 3 soltou 4 senadores 5coaxavam 1295 1296 Salmo 105 32 Em vez de chuva deu-lhes granizo e raios por todo o território. 33 Danificou figueiras e vinhas e quebrou as árvores do país. 34 Ordenou que viesse gafanhoto, saltões inumeráveis, 35 que roíam a erva da terra e devoravam os frutos de seus campos. 36 Feriu os primogênitos do país: primícias de sua virilidade. 37 Tirou-os carregados de ouro e prata, e entre suas tribos nenhum tropeçava. 38 Os egípcios alegraram-se com sua partida, porque os intimidou o terror. 39 Estendeu uma nuvem para os cobrir e um fogo para os alumiar de noite. 40 Pediram, e enviou codornizes, e os saciou com pão celeste. 41 Fendeu a penha, e brotou água, que correu feita um rio pelo deserto. 42 Porque se recordava da palavra sagrada que tinha dado a Abraão, seu servo. 43 Tirou seu povo com alegria, seus escolhidos com aclamações. 44 Atribuiu-lhes as terras dos pagãos, e possuíram as fazendas das nações. 45 Para que assim guardem seus segredos e observem sua lei. Aleluia. 2. Bibliografia A.Lauha, Die Geschichtsmotive in den alttestamentlichen Psalmen, ActAcadScFinnicae 56 (1945). H. Bückers, Zur Verwertung der Sinaitraditionen in den Psalmen, Bib 32 (1951) 401-422. J. Brinktrine, Zur Übersetzung von Ps 105,18 barzel ba’ napzo, ZAW 64 (1952) 251-258. J. Harvey, La typologie de l’Exode dans les Psaumes, ScEccl 15 (1963) 383-405. S. Du Toit, Psalms and History, emStudies on the Psalms, Potschefstroom. 1963, 18-29. Análise filológica 1297 D. Winton-Thomas, Hebrew ‘oní “captivity”’, JTS 16 (1965) 444-445. S. E. Loewenstamm, The number o f plagues in Ps 105, Bib 52 (1971) 3438. S. Holm-Nielsen, The Exodus traditions inP s 105, AnSwTIns 11 (197778) 22-30. C. H. Middleburgh, The mention o f vine and fig-tree in Ps 105,33, VT 28 (1978) 480-481. R. J. Clifford, Style and purpose in Ps 105, Bib 60 (1979) 420-427. A. C. C. Lee, The context and function o f historical recitation in Ancient Israel. 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Ez 4,16; 5,16. 18. ferrumpertransiit animam eius, in ferrum venit anima eius Jerôn = Sím; bzl faz de complemento de b’h. 19. inflamavit eum Vg, probavit Jerôn, como prata purificada Qim. 22. l’sr: leia-se lysr (cf. o paralelo hkm) com Gr Jerôn Gun But Kraus. bnpshw: equivale a brçwnw Jerôn Qim Hitz Del. 27. smw: sgl Gr Sir; dbry redundante cf. SI 65,4; 145,5; DBHE dbr Cl. 28. I’mrw. corr suprimindo V Gr Sir ou lendo shmrw ou shm‘w Hitz. 30. ’rçm: suj fem do verbo masc antecipado Joüon 150 b, rãs compl; Dah inverte as funções. 33. videira e figueira são projeção da cultura da Palestina Holm Nielsen. 36. laboris, partus Jerôn; possessões Eut. 38. phdm: sufixo de genitivo objetivo. 40. sh’l: leia-se pl (haplografia), ou sing com sujeito indeterminado Joüon 155 d. 1298 Salmo 105 4. Estudo global a) Gênero e colocação — Se guiados pela versão grega unimos o aleluia precedente ao SI 105 como encabeçamento, dispomo-nos a entendê-lo como hino; o que se corrobora com várias expressões do invitatório. Doutro lado, o primeiro verbo do salmo significa em geral dar graças, e o teor do salmo confirma o dado ao expressar sentimentos de agradecimento pelas ações e dons do Senhor. Ou seja, o salmo, por forma e conteúdo, situa-se nessa zona pouco diferenciada entre hino e ação de graças. Pelo conteúdo, o salmo é meditação histórica com bastante profissão de fé (credo histórico) e uma ponta parenética. Pelo tema histórico, pode-se agrupar com os SI 78, 106 e 136. — Esse salmo vem depois do grande hino pela criação, e, ainda que sejam muito diversas a entoação e a qualidade poética, têm algo comum que permite ajuntá-los sem dissonância. E a visão do Deus metido em sua criação e na história, deslanchando sua ação benéfica. Que a história se ponha a olhar o passado é lógico: é seu ofício; mas pode-se olhar também a criação como primeiro capítulo da história. Assim parece concebê-lo Gn 1 em sua posição atual. O SI 104 contempla a criação presente, em seu desen volvimento normal e mesmo quotidiano; o SI 105 ocupa-se de etapa histó rica, ficando no fim aberto à continuidade da observação. Os dois olham com olhos límpidos o seu Deus dirigindo de perto a criação e a história. Outro tanto faz Ben Sira = Eclesiástico: na última parte de seu livro entoa longo hino a Deus, primeiro pela criação e depois pela história de seu povo. Talvez lhe tenha fornecido a pauta o SI 136 com sua síntese apertada e estilizada de criação e história. b) Deus protagonista A história pode ser contada e repassada de muitas maneiras. O orante é aqui, como em muitos textos bíblicos, o narrador onisciente que abarca tempos e espaços e personagens. Desde o versículo 11, quando começa a fluir a história, a maioria dos verbos têm por sujeito a Deus; e, quando os homens agem, agem subordinados a Deus. Deus age algumas vezes pela palavra, dando ordens que se cumprem: “ordenou que viesse” (31.34). Outras vezes envia uma personagem ou um acidente: José, Moisés, trevas (17.26.28); também pode ferir ou golpear diretamente (33.36). E mais, pode penetrar na vontade do homem para dirigir por ela os acontecimentos: “mudou-lhes o coração” (25). No final, não é o povo que sai, mas Deus que tira. Estudo global 1299 Em alguns momentos parece que o homem toma a iniciativa, “lhe travaram os pés com grilhões” (18); mas por breve tempo, definido pelo cumprir-se de uma profecia, “até que se se cumpriu sua predição” (19). Se à primeira ação resistem os egípcios (28), no final “se alegram” de que partam os israelitas (38). Tudo o que fazem os israelitas é descer ao Egito durante uma carestia (23) e pedir comida no deserto (40). Semelhante maneira de contar, minimizando a iniciativa humana, tira dramatismo à história. Não há encruzilhadas em que a história esteja perfeitamente aberta à decisão humana. A razão é que não se trata aqui tanto de contar como de louvar a Deus: se a história é tema, a atividade é louvar. c) Aliança e promessa A história que conta e canta o orante é regida por unidade de projeto e realização. E curioso que o verbo recordar, tão próprio do historiador, tão recomendado ao povo no Deuteronômio, o salmo o atribua a Deus; e isso formando uma inclusão decisiva (8.42), oferecendo a chave para entender unitariamente a história: 8 42 recorda-se da aliança eternamente recordava-se da palavra sagrada A assembléia é convidada a recordar no invitatório (5). Aliança ou promessa? A pergunta propõe problema teológico grave (de que se ocupará expressamente Paulo). O texto fala duas vezes de “aliança”: sua “aliança, aliança perpétua” (8.10). E sabido que o termo berit é usado com sentido diverso por duas escolas teológicas. A deuteronômica refere-o a uma aliança bilateral condicionada pelo cumprimento das cláusulas; a sacerdotal refere-o ao compromisso unilateral que Deus assume, e que não é condicionado, ainda que possa impor exigências. Onde se situa o salmo? Usando o termo técnico krt, parece mover-se na área deuteronômica, já que a sacerdotal usa o verbo hqym. Mas outros dados desautorizam essa conclusão. No salmo, berit é sinônimo de palavra e juramento; seu conteúdo é pura promessa, “darei” (11), e o cumprimento é “deu” (44). Deus compro meteu-se com os patriarcas para os sucessores, e não pode faltar com sua palavra. Tal é a teologia simples e linear do salmo. Objetar-se-á que a dilatada história desemboca na observância: “para que guardem e cumpram”. Não há contradição. Desde a promessa feita a Abraão até a entrada dos israelitas em Canaã impera a promessa; a partir daí, toca ao povo responder cumprindo a lei. A recordação do salmo não se ocupa da aliança do Sinai. Quanto à terminologia, o salmo representa um estádio ou uma mentalidade menos rigorosa. 1300 Salmo 105 d) Composição e estilo — A composição é relativamente simples. Chama a atenção o invitatório por sua extensão em sete versículos, com dez imperativos (e um jussivo equivalente); os convidados são “estirpe de Abraão, filhos de Jacó”. O corpo estende-se do v. 8 (ou do v 7) até o final. A inclusão já apontada dezkr (8.42,' e ntn (11.44) é formal e significativa. No corpo, os versículos 8-11 são como que a proposição; no v. 12, a ação põe-se em movimento. O que segue articula-se irregularmente em etapas históricas. — Além do ponto de vista já exposto, há alguns aspectos dignos de menção. Cronologia invertida: na realidade narrada, o evento do v. 23 segue como conseqüência do v. 16: houve uma carestia, e desceram ao Egito. O narrador mete entre ambos, em cunha, um evento precedente (traduzimos em mais-que-perfeito). Essa inversão narrativa mostra que tanto o narrador como o protagonista controlam de antemão os fatos. E ao mesmo tempo como projeção em escala reduzida do esquema maior: antecipar um acon tecimento em previsão de outro posterior é como antecipar uma promessa em previsão de seu cumprimento. Um esquema semelhante, em escala mais reduzida, ocorre no episódio de José: a prisão dura até que se cumpra uma predição; a predição antecipa o acontecimento para que o cumprimen to seja fator decisivo. Desapareceu toda linguagem mitológica ou imaginativa. Repassa-se a história com traços empíricos; alguns pormenores descritivos retêm por um instante a atenção. Recorde-se em contraste que no SI 18 o suposto Davi transforma sua experiência vital numa batalha mitológica do Senhor com as forças mortíferas do caos. O recurso dominante é o paralelismo sinonímico com pouca originali dade, bastante acadêmico. Ainda que o salmo esteja redigido em versículos bastante regulares, o estilo é prosaico. 5. Exegese l-7.Longo invitatório como que avisando que tratamos de tempo lento, andante ou adagio. Quem entoa o convite parece ter querido acumular todas as expressões tradicionais e convencionais do gênero. Mesmo assim se repete no nome, nas maravilhas, no buscar. Ainda que seu tema seja rigorosamente nacional, quer audiência internacional (1), já que seu Deus é Deus universal (7). Na coordenada do tempo, a comunidade atual entronca-se com os patriarcas (6), preparando assim o corpo do salmo. Exegese 1301 3. Nesse versículo solicita-se a participação emotiva da comunidade: gloriai-vos, alegrem-se. O louvor redunda em benefício de seus atores. 4. O verbo drsh, que um tempo teve sentido específico de consultar, passou a significar a veneração ou simples recurso. “Buscar o rosto” é psicologicamente desejar a presença, culticamente acorrer ao templo (veja o SI 27). 5. As “sentenças” são tanto judiciais como legais, são genericamente atos de governo; o v. 7 indica seu alcance universal. Um governante governa em grande parte por meio da palavra. 6 .0 paralelismo deixa lugar para dois patriarcas; mais abaixo figura rão os três (9-10). Pode-se citar um texto paralelo: Is 41,8: “Tu, Israel, servo meu; Jacó, meu eleito, estirpe de Abraão, meu amigo”. 7. Pela forma, esse versículo pode ser começo do corpo, o primeiro motivo de louvor. Também pode-se considerar como final do invitatório; depois de identificar os que cantam, identifica-se o destinatário com nomes e títulos: Deus de um povo, Senhor universal. 8-11. Proposição da história sucessiva. Personagens os três patriar cas, o terceiro com seu nome duplo. Fora do Gênesis e da fórmula clássica, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o segundo patriarca não é hóspede habitual das páginas bíblicas (o binário Isaac e Jacó de Am 7,9.16 é anô malo). Dois textos podem iluminar o nosso, pelo ternário patriarcal (subli nho algumas palavras pertinentes): Lv 26,42 Então eu recordarei meu pacto com Jacó, meu pacto com Isaac, meu pacto com Abraão: recordar-me-ei da terra (cf. 2Rs 13,23). Jr 33,26 Escolherei entre sua descendência os chefes da estirpe de Abraão, Isaac e Jacó. Nos textos da vocação de Moisés que põem em marcha o êxodo repetese o trio patriarcal, como no SI 105. Não menos imporante que os três nomes é o sistema artificioso dos complementos, distruibuídos em três versículos. Abre e encerra a “aliança” de vigência “perpétua” (8a. 10b); no meio se sucedem como sinônimos: "palavra, juramento, lei/ decreto”, aos quais se aplicam os verbos “mandar, estipular (krt), confirmar”. E o conteúdo de toda essa rede é “a ti te darei” 11). Esse jogo artificioso mostra que o autor sintetiza livremente elemen tos tradicionais que num tempo estavam mais bem diferenciados. Sobre o dom da terra como conteúdo do juramento: Gn 26,3; Dt 7,8; Jr 11,5. A expressão hbl nhlt é rara (Dt 32,9; SI 78,55). 12-15.Começam as andanças patriarcais, com o verbo tradicionalgur. De todos os episódios que lhe oferece a tradição, o autor escolhe e apresenta por alusão os três em que a matriarca, Sara ou Rebeca, está ameaçada: Gn 12,10-20 Abrão e o Faraó; 20,1-18 Abraão e Abimelec; 26,1-11 Isaac e 1302 Salmo 105 Abimelec. Com isso acentua o tema da “estirpe” legítima e mostra ao mesmo tempo a relação dos patriarcas com reis. Por que merecem tanto respeito alguns estrangeiros peregrinantes? Porque o Senhor os considera “os meus ungidos, os meus profetas”: dois títulos surpreendentes: ungidos: como sacerdotes ou como reis? Teríamos um Abraão equiparado a Melquisedec, o rei sacerdote de Jerusalém (Gn 14); Abraão e Jacó exercem funções cultuais que mais tarde serão reservadas a sacerdotes. O título de “profeta” é dado por Deus a Abraão por sua função de intercessor (Gn 20,7). Com isso alcançamos notável quaternário de títulos: “servo, eleito, ungidos, profe tas”. O autor transfigura a era patriarcal. 16-23.Descida ao Egito. Já expliquei a artificiosa inversão cronológica que permite introduzir José desempenhando papel principal na história. Sem ser quarto patriarca, tem papel preponderante entre os irmãos. Como em algumas tradições particulares (Dónde está tu heramano?, 245). Ao delito fraterno alude-se de passagem, numa passiva sem sujeito agente: os recitadores do salmo sabem de que se trata. O importante para o autor é que “o tinha enviado Deus” como peça de seu projeto. 16.0 “sustento” é, literalmente, a vara ou bastão. Alguém o explicou como uma vara ou pau em que se enfiavam rosquinhas de pão para seu fácil transporte: romper essa vara equivale a privar de pão. 18.0 paralelismo serve desta vez para concentrar a descrição em dois traços eficazes: acorrentado de pés e pescoço. 19. Muito original é a segunda frase. Que a palavra do Senhor é pura e acrisolada, o sabemos (SI 12,7; 18,31; 119,140; Pr 30,5). O novo é dizer que a palavra / predição acrisolou José, demonstrando seus dotes proféticos; ou então o acerto de sua predição limpa-o da falsa acusação demonstrando sua inocência. 20. Também José, como os três patriarcas, relaciona-se com reis. 21-22. A julgar pelas categorias empregadas, o governo entra numa categora sapiencial (ysr e hkm). Is 19,11 fixa-se nos sábios conselheiros da corte do Faraó; o SI 105 fá-los discípulos sujeitos a José. Também a sabedoria egípcia era proverbial, mas José sabe mais que eles (como Daniel na corte babilónica). 24. Num versículo resumem-se séculos: em território estrangeiro amadurece a promessa de descendência feita a Abraão. O verbo prh é técnico. 25-26. Como no livro do Êxodo, o tempo de narração não coincide com o tempo narrado: séculos num versículo, um episódio em dois versículos. Começa introduzindo os protagonistas imediatos. A mudança de atitude dos egípcios é atribuída em Ex 1,18 à mudança de dinastia: “um rei novo que não tinha conhecido José”; o salmo atribui-o imediatamente a Deus (cf. ISm 1303 Exegese 10,9). Depois apresenta os outros atores do confronto, Moisés e Aarão, aos quais confere os títulos dados a Abraão e Jacó (6); como se a nova parelha, sem ser patriarcal, ocupassse o lugar dos antepassados. Sua tarefa será taumatúrgica: fazer sinais e portentos. 28-36. Ficam nove versículos para as sete pragas selecionadas. Sabi do é que o Êxodo apresenta dez e dispõe-nas numa estrutura de grande valor narrativo. Para faciliar a comparação, proponho as duas listas. Ex S l105 Nilo-sangue Nilo-sangue rãs tavões peste úlceras granizo gafanhoto trevas primogênitos trevas rãs mosquitos tavões e mosquitos granizo gafanhoto primogênitos O granizo com seu aparato de tempestade perde no salmo sua posição culminande da segunda ronda; as trevas adiantam-se como premonição de quanto segue e dando força à última ronda. O autor selecionou e ordenou com liberdade, mas não igualou a versão do Êxodo; logicamente tinham que coincidir na última praga. Outra versão no Sl 78,44-51. 29. O sangue, que é sede da vida, dá morte aos peixes, alimento básico dos egípcios. 30. Se se aceita a correção conjetural e simples de mlkyhm (plural não justificado) por melek yehmu, obtemos um traço acertado: “nos aposentos reais coaxavam”; a conjetura não tem apoio documental. 32. Recordemos que a tormenta é fenômeno inusitado no Egito e que os hebreus consideravam-na teofania. 34-35. Gafanhoto: pode-se ver a transformação imaginativa de J1 2. 36. Primícia da virilidade (Gn 49,3; Dt 21,17; Sl 78,51). A insistência nos sufixos -hem e -am, somados à palavra ham e dam, conferem unidade sonora e ênfase à série. 37-38. Assim culmina a saída, sem o grande episódio do mar Verme lho. Saem ricos, compensados do trabalho forçado, e fortes, prontos para as novas jornadas (cf. em contexto militar Is 5,27). O “pânico” como em Ex 15,16. 39-41. A etapa do deserto estiliza-se em três elementos básicos: guia e proteção pelo caminho, comida e bebida. Desaparecem fadigas e motins, não há parada para o grande episódio do Sinai. Se o silêncio é intencionado e calculado, o autor quer levar a aliança à raiz da promessa aos patriarcas. 1304 Salmo 105 O maná chega depois das codornizes e supera-as como manjar “celeste”. Os israelitas não fazem senão deixar-se levar. Inclusive Moisés, terminada a função dos sinais, não tem tarefa pessoal. 42. A chave de tão suave eficácia é dada por esse versículo, fazendo eco a 8-10; mas aqui a aliança desaparece, e tudo remonta à promessa. 43-44. Dois versículos resumem a epopéia: saída alegre e triunfal, entrada na terra para tomar posse dela. 45. Uma vez assentados na terra prometida com juramento, o que lhes toca fazer? — Cumprir a lei do Senhor. Onde e quando a deu? O salmo supõeno conhecido. Tudo procedeu sem tropeço, e é fácil entoar o aleluia final. Mas cuidado, pois após o Sl 105 vem o Sl 106 com seus sete pecados capitais. 6. Transposição cristã Promessa. Começamos com um texto de Paulo que combina ambas as coisas: Rm 9,6 E não é que a promessa de Deus tenha falhado. E que nem todos os que procedem de Israel são israelitas, nem por estirpe de Abraão são filhos, pois (se diz): Em Isaac continuará teu nome. Ou seja, não são os filhos carnais por sê-lo filhos de Dios, mas consideram-se estirpe os filhos da promessa. Paulo estabeleceu aí um princípio que supera a geração carnal. Na carta aos Gálatas, expondo o tema da promessa, acrescenta uma nova identificação: 3.16 As promessas fizeram-se a Abraão e a sua estirpe. Não diz estirpes no plural, mas estirpe no singular, “tua estirpe”, que é o Messias. 17 Explico-o: Um testamento outorgado por Deus não é anulado por uma lei promulgada quatrocentos e trinta anos mais tarde, invalidando assim a promessa. 18 Pois se a herança se desse em virtude da lei, não o seria em virtude da promessa. Ora, Deus faz a Abraão uma doação com uma pro messa. 3,26 Todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27 Pois os que fostes consagrados a Cristo pelo batismo, vos tendes revestido de Cristo. 28 Já não há judeu ou grego, já não há escravo ou livre, já não há varão ou mulher. Porque todos formais uma unidade por Jesus Cristo. E se sois de Cristo, sois estirpe de Abraão, herdeiros em virtude da promessa. A doutrina enriquece-se na carta aos Romanos: 4.16 Por isso depende a promessa da fé, para que seja gratuita e válida para toda a estirpe: não só na linha da lei, mas na linha da fé de Abraão, que é pai de todos nós, como diz a Escritura: Farei de ti pai de muitos povos. Transposição cristã 1305 Além de subministrar matéria para reflexão teológica, ensina-nos o salmo a meditar a história com afeto de louvor. A de Israel, sentindo-a como história ou pre-história nossa; a da Igreja, na qual continuam presentes e ativos Deus Pai e o Cristo glorificado. Os Atos dos Apóstolos poderiam oferecer matéria para um salmo histórico cristão. E não é preciso deter-se aí: outras etapas da história da Igreja são dignas de ser meditadas com espírito de louvor e ação de graças. A matéria para o aleluia não se esgotou. Salmo 106 1. Texto 1 2 3 4 5 Dai graças ao Senhor, porque ele é bom, porque é eterna sua misericórdia. Quem poderá contar as proezas do Senhor ou fazer seu elogio completo? Felizes os que respeitam o direito e praticam em toda ocasião a justiça. Recorda-te, Senhor, de mim, por amor a teu povo, ocupa-te de mim com tua salvação, para que goze da dita de teus eleitos e compartilhe da alegria de teu povo e me glorie com tua herança. 6 Temos pecado com nossos pais, temos cometido maldades e iniqüidades. 7 Nossos pais no Egito não compreenderam tuas maravilhas; não se recordaram de tua insigne lealdade, rebelaram-se contra o Altíssimo junto ao mar Vermelho. 8 Mas ele os salvou pela honra de seu nome, para manifestar seu poder. 9 Increpou o mar Vermelho, e ele secou; conduziu-os entre as ondas como pelo deserto. 10 Salvou-os da mão do adversário, resgatou-os da mão do inimigo. 11 As águas cobriram1os atacantes, sequer um só ficou vivo. 12 Então creram em suas palavras e cantaram seu louvor. 1 afogaram Salmo 106 13 Bem cedo se esqueceram de suas obras e não contaram com seu desígnio. 14 Seu apetite foi insaciável no deserto e tentaram a Deus na estepe. 15 Ele lhes concedeu o que pediam, mas enviou-lhes uma cólica pela gula. 16 Invejaram Moisés, no acampamento, e Aarão, consagrado do Senhor. 17 Abriu-se a terra e tragou Datã e fechou-se sobre Abiram e seus sequazes. 18 Um incêndio abrasou seu bando, uma chama consumiu os culpados. 19 Em Horeb fabricaram um bezerro e adoraram um ídolo de fundição2. 20 Mudaram sua glória pela imagem de touro que come capim3. 21 Esqueceram-se de Deus, seu salvador, que fizera prodígios no Egito, 22 maravilhas no país de Cam, portentos junto ao mar Vermelho. 23 Já falava de aniquilá-los; mas Moisés, seu eleito, plantou-se na brecha diante dele para afastar sua cólera do extermínio. 24 Desprezaram uma terra invejável desconfiando de sua palavra, 25 e murmuravam4 nas tendas desobedecendo ao Senhor. 26 Alçando a mão lhes jurou que os faria cair no deserto, 27 que dispersaria sua estirpe entre os pagãos e os expulsaria por várias regiões. 28 Ligaram-se com Baal Fegor e comeram sacrifícios de mortos5. 2 uma imagem fundida 3herbívoro 4 nas tendas 5de sacrifícios fúnebres 1307 1308 Salmo 106 29 Provocaram-no com suas ações, e uma praga irrompeu no meio deles. 30 Mas ergueu-se Fineés para fazer justiça, e a praga cessou. 31 E foi-lhe apontado em seu favor, por gerações sem fim. 32 Irritaram-no junto a Fonte do Acareamento6, e por sua causa aconteceu mal a Moisés: 33 tinham-lhe amargurado o ânimo e desvairaram seus lábios. 34 Não exterminaram os povos que o Senhor lhes tinha mandado; 35 emparentaram-se com os pagãos e imitaram seus costumes; 36 adoraram seus ídolos e caíram em seus laços; 37 imolaram a demônios seus filhos e filhas; 38 derramaram sangue inocente e profanaram a terra ensangüentando-a7. 39 Contaminaram-se com suas obras e prostituíram-se com suas ações. 40 A ira do Senhor acendeu-se contra eles e abominou sua herança. 41 Entregou-os em mãos de pagãos, e seus adversários os submeteram; 42 seus inimigos os tiranizavam e os dobravam sob seu poder. 43 Quantas vezes os livrou; mas eles, obstinados em sua atitude, pereciam por suas culpas. 44 Mas ele olhou sua angústia ao escutar seus clamores, 45 recordando seu pacto com eles e compadeceu-se por sua insigne bondade. 6Meriba 7com homicídios Análise filológica 1309 46 Fez com que se movessem à compaixão os que os tinham deportado. 47 Salva-nos, Senhor nosso Deus, reúne-nos dentre os pagãos, e daremos graças a teu nome santo, e louvar-te será nossa glória. 48 Bendito o Senhor Deus de Israel, desde sempre e para sempre. (Responde todo o povo) Amém. Aleluia 2. Bibliografia A. Bentzen, Die Schwindsucht in Ps 106,15b, ZA W 16 (1939) 152. H. Bückers, Zur Verwertung der Sinaitraditionen in den Psalmen, Bib 32 (1951) 401-422. G. Bernini, Salmo 106. Confessione di tutto il popolo, em Le preguiere penitenziali del Salterio, Roma, 1953, 115-119. F. N. Jasper, Early Israelite traditions and the Psalter, V T 17 (1967) 50-59. G. W . Coats, Rebellion in the wilderness, Nashville, 1968. L. Rost, Ein Psalmenproblem, TLZ 93 (1978) 241-246. M. Wittenberg, Aspekte israelitischer Geschichtsbetrachtung in den Psalmen 105 bis 107, em FS Augustana-Hochschule in Neuendettelsau, Munique, 1972, 23-50. J. Kühlewein, Geschichte in den Psalmen, Stuttgart, 1973. W . Beyerlin, Der nervus rerum in Ps 106, ZA W 86 (1974) 50-64. H. Motzki, Ein Beitrag zum Problem des Stierkultes in der Religions geschichte Israels, VT 25 (1975) 470-485. R. Adamiak, Justice and History in the OT. 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Ez 20,23). 28. initiati sunt, consecrati Jerôn; mtyrn deuses inertes, pelos mortos Weiser. 29. wyk‘ysw: uso absoluto. 31. thshb: feminino por neutro. 33. hmrw : rebelaram-se, ou de mrr amargaram Jerôn, distinxit in labiis suis Vg, inconsiderate loqueretur Münster, haesitavit / dubitavit Genebr, amphiboliam Teodor. 38. Suprimido como glosa: o sangue de seus filhos e filhas que sa crificaram aos ídolos de Canaã. 42. wykn‘w : paranomásia de Canaã Allen. 45. literalmente, recordou-se em atenção a eles de seu pacto. 4. Estudo global a) Gênero literário — O salmo divide-se comodamente em introdução (1-5), corpo (6-46) conclusão (47). O corpo é uma confissão coletiva de pecados, o epílogo é uma petição. A introdução é enigmática: começa dois versículos de hino ou ação de graças, continua com uma bem-aventurança, termina com uma súplica individual. Como se unem essas peças entre si e com o corpo? Para responder, o melhor é orientar-se pelo mais seguro, que é o corpo. E constituído por uma confissão de pecados históricos, não típicos nem genéricos: são sete, cometidos durante a etapa do êxodo, de fronteira a fronteira, mais um continuado na terra prometida. Por seu caráter de repasse histórico, este salmo pode-se agrupar com os 78,105 e 136. De modo particular com o 105, como anverso e reverso de medalha: benefícios de Deus, rebeliões do povo. Fariam boa parelha na liturgia. Como confissão de pecados, é preciso buscar-lhes os parentes em outra parte: no gênero “confissão de pecados”, que se cristaliza e se afirma durante o desterro e depois. Formam um grupo homogêneo que compreen de as peças seguintes: Esd 9,6-15; Ne 9; Dn 3,24-45 (grego); Dn 9; Bar 1,15- Estudo global 1311 3,8. A comunidade do desterro, da diáspora ou dos repatriados dirige-se a Deus pelos lábios de presidente da assembléia (não explícito em Baruc), reconhecendo uma relação bilateral do povo com o Senhor: ele foi fiel à aliança, cumpriu com todos os seus compromissos; o povo, porém, pecou, confessa-o e pede perdão e libertação. Nessa confissão entra um fator de teodicéia explícito: Deus é inocente, o desterro e outros castigos justificamse pela reincidência e contumácia do povo em seu pecado. Os benefícios recordados e o perdão reiterado, além de justificar a conduta de Deus, acrescentam um agravante à conduta do povo. O perdão reiterado permite ao mesmo tempo esperar hoje novo ato de clemência. Fator importante nessas confissões é a consciência de solidariedade no delito; quase uma espécie de cumplicidade. Solidariedade do povo com os chefes e solidariedade através do tempo com os antepassados. Ao confessar os pecados, sentem-se unidos e pecadores de nascimento: ou seja, desde que nasceram como povo. — Este é o mundo espiritual do salmo, e em seu contexto é preciso explicar a introdução e analisar ou ilustrar com paralelos seus componen tes. Fá-lo-emos na exegese. Os versículos finais do salmo dizem-nos que o povo ou parte dele encontra-se desterrado ou disperso. Essa situação explica a amplidão e o modo de tratar a conduta do povo na terra prometida. Se perderam sua terra, foi por seus pecados; se esperam recuperá-la, é pela misericórdia do Senhor. A situação influi também em alguns particulares que soam como antecipação ou premonição do desterro. b) Composição — O corpo do salmo consta, como já indicamos, de sete pecados mais um. Não digo oito, porque o último difere em extensão e caráter. Pela forma, o oitavo poder-se-ia suprimir, e ganharia a composição; pelo conteúdo, como a etapa do deserto desemboca na terra prometida, é lógico que se leve expressamente em conta. Mas o poeta trata-o com técnica diversa. Os sete pecados históricos não se submetem a padrão comum único: nem todos são perdoados por Deus. Quando Deus concede seu perdão, no primeiro, quarto e sexto, variam a motivação e o esquema: no primeiro “pela honra de seu nome”, no quarto pela intercessão de Moisés, no sexto porque Finéias fez justiça. Esse dado da composição revela a soberania de Deus e mostra que o perdão não é mecânico: convida à esperança, refreando a presunção. Ainda que o autor pareça conhecer a versão do Pentateuco, não segue a ordem tradicional dos eventos, e sim faz duas inversões. O episódio do bezerro de outro ocupa o quarto lugar, ou seja, o central de sete, o culmi 1312 Salmo 106 nante; daí observamos que Moisés figura nominalmente no terceiro e no sétimo. O episódio da água reserva-se para o final, talvez porque assim explica imediatamene o fato de Moisés não ter entrado na terra prometida. O oitavo apresenta-se primeiro num movimento encadeado, até o v. 42. Depois se quebra a linha em favor de desenvolvimento por contrastes. — O estilo mantém um compromisso entre exigências narrativas e gosto pelo paralelismo sinonímico. Como a disposição é de blocos sucessi vos, poderíamos ir comparando-os em busca de analogias e contrastes. Por exemplo, a duas figuras destacadas de Moisés e Finéias; os egípcios “cobertos” pelas águas e o bando de Abiram “coberto” pela terra. Parece que o autor não explorou essa possibilidade. Muitas ações dos israelitas são específicas; outras são genéricas, positivas ou negativas: “não se recorda ram, esqueceram-se” (7b. 11.12), “rebelaram-se, irritaram”, “não se fiaram, não atenderam, não obedeceram”. Essas peças representam passagem para generalizar e categorizar os pecados específicos. 5. Exegese 1-5. Vimos que se compõe de três peças heterogêneas: um ato de louvor, uma bem-aventurança, uma petição pessoal. Têm relação entre si? Como afetam o corpo do salmo? A bem-aventurança. Olhando para cima, poderíamos tomá-la como resposta à pergunta retórica: quem poderá? — Quem respeita. Olhando para baixo, poderíamos tomá-la como princípio genérico ao qual se acolhe o orante: felizes os que observam ... conta-me pois com eles. Ambas as explicação revelam-se forçadas. Provemos unir esse salmo ao precedente. O louvor (1-2) faz eco ao hino histórico que se acaba de recitar. A bem-aventurança (3) comenta o último versículo do Sl 105: para que observem sua l e i ... felizes os que a observam. Isso é menos forçado, mas é difícil de provar. Outro particular: o orante pede aqui que Deus “se recorde dele” (4); o Sl 105 apóia-se na repetição de recordar-se (8.42). Também essa relação é difícil de provar. Contudo, a leitura unificada dos dois salmos sucessivos suavizaria alguns problemas. Tentemos noutra direção, lendo esses versículos em função do corpo do salmo. Louvor e confissão sugerem-nos relação dialética: apesar dos bene fícios de Deus, o povo persiste em seus pecados; apesar dos pecados do povo. Deus o protege. Mas Deus também castiga, pelo que não se deve submeter fatalmente nem confiar presunçosamente, pois a verdadeira dita consiste em praticar a justiça. Exegese 1313 1-2. O primeiro versículo é uma fórmula litúrgica de uso múltiplo; o segundo pondera a grandeza do tema. Por que começamos com um ato de louvor uma confissão de pecados? Talvez nos dê a resposta Ne 9, ao explicar as circunstâncias da celebração: 3 Permaneceram em seus postos um a quarta parte do dia, enquanto se lia o livro da lei do Senhor seu Deus, e passaram outra quarta parte confessando e rendendo homenagem ao Senhor seu Deus ... E os levitas disseram: Levantai-vos, bendizei ao Senhor vosso Deus, desde sempre e para sempre; bendizei seu nome glorioso, que supera toda bênção e louvor. A cerimônia penitencial começa com louvor, e acrescenta-se que é impossível louvar a Deus como ele merece. Exatamente como no salmo. O mesmo encontramos em outra cerimônia penitencial que começa com louvor e continua com a teodicéia e a confissão (Dn 3, grego): 26 27 29 Louvado e glorificado seja teu nome para sempre O que fizeste conosco é justificado ... porque temos pecado Como se relaciona esse começo ao corpo do salmo? Inserindo a confis são em quadro de louvor, atitude mais radical, anterior ao pecado e poste rior ao perdão. Confessar a grandeza de Deus induz a confessar o próprio pecado; ser perdoado induz a louvar a Deus. Lidos desse modo, os dois primeiros versículos consitutem parte de quadro que influencia no sentido de quanto segue. 3. Bem-aventurança. mshpt e çdqh em seu significado genérico abar cam as exigências éticas (segundo Ez 18 e 33, especialista no binário). Mas mshpt poderia aludir globalmente às cláusulas da aliança (cf. Ex 15,25 e Js 24,25). Na segunda interpretação, podemos apelar a Dn 9,4: “que guardas a aliança e és leal para com os que te amam e cumprem teus mandamentos”. Nessa hipótese e no lugar que ocupa, o versículo ilumina por contraste a desgraça de não o ter cumprido. 4-5. Alegando os privilégios da comunidade, um indivíduo pede a Deus poder desfrutar deles. Como relação do indivíduo com a comunidade, esses versículos são notáveis; como introdução à confissão dos pecados, são enigmáticos. E verdade que em outras liturgias penitenciais não é raro que 3 presidente fale de si em primeira pessoa (por exemplo, Dn 9,3-6), mas não para suplicar como o orante do salmo. Outra explicação encontra-se descendo ao final do salmo (47), que é uma súplica comunitária. Unindo os versículos 4-5 ao 47, a súplica individual antecipa a comunitária e se acolhe nela, a confissão inteira é enquadrada na súplica, e isso tudo segue a um pórtico de louvor. 1314 Salmo 106 6. Alguns comentadores atribuem esse versículo à introdução, mas as convenções do gênero o dissuadem. Compare-se o versículo com outros co meços: Dn 9,5 temos pecado, temos cometido crimes e delitos. Bar 1,17 porque pecamos contra o Senhor não fazendo caso dele. A partícula ‘m e a menção dos antepassados expressam a solidarie dade histórica no pecado, a condição pecadora antepassada. E normal no gênero: Esd 9,7 desde o tempo de nossos pais até hoje Ne 9,2 seus pecados e a culpa de seus pais Dn 9,16 pelos nossos pecados e delitos de nossos pais Bar 1,19 desde o dia em que o Senhor tirou nossos pais do Egito até hoje não fizemos caso do Senhor nosso Deus 7-11. Primeiro pecado: na passagem pelo mar Vermelho (Ex 14): “Não compreenderam”, porque não estavam dispostos. Ainda que compreen der seja atividade sapiencial, está condicionada pela atitude ética e religio sa. Por isso não entender considera-se muitas vezes culpável; é não querer entender (cf. Sl 14,2; 94,8; Dt 32,29). Também é culpável “não recordar”, eqüivalente de lançar em esquecimento (Sl 78). O perdão não se concede por méritos do povo nem por intercessão de Moisés, mas unicamente pela honra de Deus. Doutrina freqüente em Ezequiel (20,9.14.22.44; 36,21s; também Is 48,9; Jr 14,7.21). Outros parti culares segundo Ex 14,31; 15,1. 13-15. Segundo pecado: avidez (Nm 11). No pecado, a penitência. Não se contentar com a comida normal qualifica-se de “tentar a Deus” (Sl 78,18). Concedendo o que pedem, Deus os satisfaz e os castiga (Nm ll,19s). 16-18. Terceiro pecado: rebelião de Datã e Abiram (Nm 16). O relato de Nm entrelaça com pouco êxito duas rebeliões: a sacerdotal de Coré, castigada com o fogo, e a civil de Datã e Abiram, castigada fazendo com que a terra os trague vivos. O salmista elimina da cena Coré e retém o duplo castigo, ainda que se revele incoerente. Contudo, ao mencionar Aarão e Moisés, soa por alusão o tema sacerdotal. Como em Nm 16, o castigo se circunscreve ao “bando de malvados”. 19-21. Quarto pecado: o bezerro de ouro (Ex 32). Esse pecado parte também dum esquecimento: do Deus salvador e de suss proezas no Egito. Não há esse esquecimento em Ex 32, pois Aarão explica claramente: “Este é teu Deus, Israel, o que te tirou do Egito” e logo dedica a festa a Yawh. O delito consistiu em quebrantar um mandamento fabricando-se uma ima gem que representasse Yhwh ou sustentasse sua presença. O salmista não Exegese 1315 aceita tal precisão. Segundo ele, os israelitas adoram uma imagem, uma manufatura humana, substituindo com ela a “Glória” do Senhor, que é presença sem imagem. O epíteto “herbívoro” condensa todo o seu desprezo. A grande intercessão de Moisés (Ex 32,11-14) chama-a o autor de “pôrse na brecha e afastar a cólera”. O delito abriu larga brecha no acampamen to ou na muralha espiritual do povo: por ela vai entrar a ira aniquiladora do Senhor para difundir-se por todo o recinto. Moisés põe-se na brecha e fecha a passagem para a cólera. Ato valente e audaz de confrontar-se com Deus, que é o que Deus deseja. Ezequiel utiliza a imagem, com uma variação, polemizando com os falsos profetas: 13,5 Não acudiram à brecha nem levantaram cerca em torno da Casa de Israel, para que resistissem na batalha, no dia do Senhor. O verbo hshhyt é empregado por Dt 9,26 para outro episódio de intercessão de Moisés. 24-27. Quinto pecado: recusam entrar na terra prometida (Nm 13-14). O salmista interpreta-o como falta de fé ou confiança na promessa de Deus, que quer cumprir-se em seguida, e falta de obediência à ordem de entrar. Não separa Josué e Caleb, nem menciona outra intercessão de Moisés. A terra tem um adjetivo: hemda = preciosa, desejável, invejável. Adjetivo que se lê em outros dois contextos significativos: denunciando a profanação desta terra (Jr 3,9) e recordando sua desolação (Zc 7,14). É possível que o autor já esteja pensando no que aconteceu séculos mais tarde. O adjetivo "invejável” resume todo o informe positivo dos exploradores. No v. 26 resume o discurso de Deus (Nm 14), mas a ampliação do v. 27 (corrigido) não se lê nem em Nm 14 nem em Dt 9. Palpamos aqui o trabalho de atualização. O autor conhece os fatos do desterro e da dispersão e pro jeta-os ao tempo fundacional do povo: como então muitos morreram no deserto e não chegaram a possuir a terra, asssim muitos perderam aquela terra e vivem e morrem em país estrangeiro. Não quer dizer o autor que a rebelião de Nm 13-14 tenha sido a causa do desterro, mas que em ambos os acontecimentos operou o mesmo espírito de rebeldia e desobediência. Acen tua a continuidade, a solidariedade no pecado. O presente ou passado próximo remonta-se à sua raiz mais profunda. Moisés dizia: “Desde que vos conheço, fostes rebeldes ao Senhor” (Dt 9,24). “Aventar pelo país” é expressão típica de Ezequiel. 28-31. Sexto pecado: prostituição em Baalfegor (Nm 25). O episódio está bem resumido, inclusive repetindo algumas frases mais escolhidas: “ligar-se, cessou a praga”. Ao invés, “irrompeu” parece inspirar-se em Ex 19,22.24. Ao sacerdócio não se alude absolutamente. O mais notável é que 1316 Salmo 106 a reação violenta de Finéias transforma-se em “intercessão”. Nm 25 falava de “afastar a cólera” e “expiar”. Pois bem, o primeiro atribui-se a Moisés (23b), o clássico “interceder” de Moisés (Nm 11,2; 21,7) atribui-se a Finéias (30s). “Contou-se em seu favor, contou-se-lhe como mérito” (Gn 15,6). 32-33. Sétimo pecado: ao fato se referem três textos narrativos (Ex 17,l-7;Nm20,l-13;Dt9,7-8); aludem a ele vários salmos (81,8; 95,8s; 99,8). Apesar de tal abundância, o acontecimento permaneceu na penumbra, especialmente o que diz respeito à conduta de Moisés. O autor, sem negar a culpa de Moisés — dado tradicional — , busca-lhe atenuante na provoca ção do povo. A vocalização massorética diz que “fizeram-no rebelar-se”; com mais acerto seguem as versões outra vocalização que produz o significado de “amargaram”, que se apóia em formas eqüivalentes de mrr com npsh (ISm 30,6; 2Rs 4,27; Jó 27,2). O pecado não é de ação, mas de palavra. Como o verbo “desvairar” aparece só aqui e em Lv 5,4; em Pr 12,18, não é possível precisar mais seu alcance. Vê-se que toda a posteridade quis deixar na penumbra o pecado específico de seu grande chefe. 34-42. Para ganhar clareza, dividimos o pecado oitavo em duas sec ções. A primeira descreve um processo coerente, quase uma dialética fatal de ações e conseqüências. O salmo precedente terminava deixando os israelitas, ao chegar à terra prometida, com a tarefa de guardar a lei do Senhor. A última parte do Sl 106 toma-os nesse movimento e descobre nele o ponto de paítida para a tragédia histórica. O encadeamento é parte do sentido dessa meditação histórica. Vejamos o processo em esquema. Entram na terra e não eliminam seus habitantes — antes a eles se unem em relações matrimoniais — , com o que imitam seus costumes e praticam a idolatria — a qual inclui entre suas práticas os abomináveis sacrifícios humanos — , os quais profanam a terra santa — pelo que o Senhor os castiga submetendo-os aos pagãos. As etapas do processo têm seus antecedentes em diversos textos legais e proféticos. 34. Exterminar. A legislação de Ex e Dt exclui a aliança com as populações de Canaã (Ex 23,32; 34,15; Dt 7,2). Mas, enquanto o Êxodo manda que não os deixem viver no território adquirido (Ex 23,33) e Números manda expulsá-los (Nm 33,52), o Deuteronômio recrudesce retrospectivamente uma lei de exterminar {hrm), acrescentando que é mandato do Senhor (Dt 7,2; 20,16s). O salmo segue o rigorismo do Deu teronômio. 35. Emparentaram-se: voltamos a encontrar o verbo ht‘rb só quando da reforma rigorista contra os matrimônios mixtos (Esd 9,2 e o substantivo: Ne 13,3); Dt 7 usa o verbo mais corrente hthtn. Imitar / aprender pode proceder diretamente de Dt 20,18: “para que não vos ensinem a cometer as abominações que eles cometem”. Exegese 1317 36. Se o Dt fala de “deuses estrangeiros”, o salmo chama-os despectivamente “ídolos”. O narrador de ISm 30,9 e 2Sm 5,21 designa com esse termo os ídolos dos filisteus. Para as estátuas costumam empregarpsyZy/n. Armadilha / laço: lê-se como motivação na legislação (por exemplo, Ex 23,33; 34,12; Dt 7,16). 37. Sacrifícios humanos oferecidos a “demônios”: tal é a tradução tradicional do bíblico shedim. Ainda que o termo original acádico designe os guardiães fantásticos dos templos, estátuas intimidatórias de animais polimorfos, os dois autores bíblicos que retomam o termo dão-lhe sentido pejorativo para designar de maneira burlesca as divindades estrangeiras. Se o Segundo Isaías nega aos deuses pagãos toda realidade, o salmista rebaixa-os a condição desprezível e perversa. Algo semelhante fará uma tradição eclesiástica considerando os deuses pagãos como demônios. O AT fala repetidamente de sacrifícios humanos. Ofereciam-se em geral a certo deus Moloc, e o lugar do ritual encontrava-se no Vale Hinon = Gehenna. Podem-se consultar: Lv 20,2; Dt 12,31; 2Rs 16,3; 17,31; 23,10; •Jr 7,30-32; 19,3-5; Ez 16,20-21; Sb 12,4-6. 38. O versículo alarga-se com uma glosa inconfundível, que identifica o “assassínio” com os sacrifícios humanos precedentes. “Derramar sangue inocente” é forma fixa para designar o homicídio e o assassínio; figura na legislação, em textos narrativos, proféticos e sapienciais. Assim se passa da esfera cultual para a esfera ética da justiça. Também “profanar a terra” é fórmula fixa; podem mudar suas causas: Jr 3,2.9 atribui-o à idolatria, o salmo aos homicídios. Veja-se Nm 35,33: Não profanareis a terra em que viveis: com o sangue profana-se a terra, e pelo sangue derramado não há mais expiação do que pelo sangue daquele que o derramou. 34 Não contamineis a terra em que viveis e em que eu habito. 39. Possui valor de resumo. Contaminar-se e prostituir-se são termos freqüentes na pregação de Ezequiel. 40. A ênfase recai sobre o complemento: contra seu povo, sua herança; não contra os inimigos ou pagãos. E ira amplamente justificada (teodicéia). 41-42. A seqüência “irritou-se — entregou em poder de” é empregada pelo Deuteronomista para compor seu quadro teológico para episódios dos juizes. Os outros verbos, oprimir, subjugar e dominar, encontram-se em contextos variados. Podem-se aplicar à etapa dos juizes, antes da monar quia, ou abarcar toda a história até o desterro inclusive. 43-46. Pondo diante “muitas vezes”, o autor parece indicar que preten de resumir um processo repetido, de modo que o advérbio modal abarca o final do v. 46, deixando implícitas algumas etapas. O Senhor os liberta — eles se rebelam — em castigo perecem — no aperto suplicam — o Senhor 1318 Salmo 104 os escuta — recorda-se do pacto — muda de atitude — faz com que movam à compaixão. Assim muitas vezes. 43. Condensa três etapas do processo em dois verbos comuns e um raro (mkk). Suspeito uma variante fonética de mqq, dado que a expressão mqq b‘wwn lê-se em textos aparentados (Lv 26,39; Ez 4,17; 24,23; 33,10). 44. Deus vê e escuta, segundo o binário tradicional, inaugurado no Egito (Ex 3,7). 45. Recorda-se da aliança (SI 105,8; 111,5; Ez 16,60): logo, o pecado não chega a invalidar a aliança concedida por Deus. Arrepende-se: muda de atitude; já se diz em Ex 32,12.14, intercessão de Moisés, e depois em textos proféticos, sobretudo de Jeremias. 46. Moveu à compaixão. O capítulo das maldições (Lv 26) termina com este parágrafo de esperança: 26,44 Porém mesmo com tudo isso, quando estiverem em país inimigo, não os rejeitarei nem detestarei até a ponto de exterminá-los e romper meu pacto com eles. 45 Porque eu sou o Senhor seu Deus. Recordarei em favor deles o pacto com os antepassados ... Na oração de Salomão pela inauguração do templo, ouve-se: lR s 8,47 Se no país dos vencedores te suplicarem dizendo: Pecamos, falhamos, somos culpados ... 49 escuta tu do céu onde moras, porque são teu povo e tua herança. Ainda que o v. 43 do salmo haja começado na época dos juizes, o desenlace leva-nos até ao desterro e à dispersão: lugar e momento em que pronuncia a petição final. 47a. A mesma situação é suposta por Dt 30, e usa o mesmo verbo “reunir”. 47b. O desenlace feliz celebra-se bendizendo a Deus. Na oração penitencial de Baruc diz-se algo semelhante, em tom patético (Bar 2,17s). 48. Esse versículo acrescenta-se para encerrar a quarta coleção de salmos. 6. Transposição cristã Se ancoramos rigidamente esse salmo no passado de Israel, de modo que a nós, os cristãos, não nos alcance; se nos distanciamos daqueles “pecadores” pensando que somos justos; se não soubemos solidarizar-nos com eles no pecado e na condição pecadora, então não nos apropriamos do salmo. Porque todo o seu sentido consiste nesse solidarizar-se histórico. Cada geração do seu lugar põe-se em fila e a prolonga, e pela fila remonta- Transposição cristã 1319 se ao começo. Não pensemos que a redenção de Cristo seja um corte total que impeça essa humilde solidariedade. Não invoquemos a Igreja “sem mancha nem ruga” para nos desentender do Sl 106. Ao contrário, o salmo ensina-nos a confessar pecados históricos e comunitários, também em nossa situação. Como dizia, a propósito do Sl 105, que se podia compor um salmo de ação de graças pela história gloriosa da Igreja, assim também acrescento que devemos compor um salmo histórico de pecados da Igreja. Se nos Atos dos apóstolos deparamo-nos em geral com pecados indivi duais, de cristãos, nas cartas de Paulo (e discípulos) descobrimos comuni dades que têm que confessar e arrepender-se de diversos pecados. Vejamse as divisões e partidos na Igreja de Corinto, os escândalos públicos tolerados; comprove-se a situação da Igreja da Galácia. Inclusive na celebração eucarística encontra Paulo coisas a censurar. Somos capazes de nos solidarizar com os pecados daquelas primeiras comunidades? Subindo algo mais, com a negação de Pedro, para chorá-la com ele? Em vez de restringir cuidadosamente a “escribas e fariseus hipócritas” os ais do evangelho, deveríamos tomá-los como programa de acusações para exami nar nossa conduta pouco cristã, pouco conforme ao evangelho. Estamos acostumados a pensar em categorias: nossos sete pecados capitais são tipos; também são genéricos os mandamentos que transgredi mos. Os sete pecados capitais do Sl 106 são históricos. A imitação do salmo, poderíamos compilar listas tiradas de toda a história ou de alguma zona ou etapa. Seria um modo de nos apropriarmos do salmo e educar nossa soli dariedade. Salmo 107 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Dai graças ao Senhor, porque ele é bom, porque é eterna sua misericórdia. Digam-no os resgatados pelo Senhor, os que resgatou do poder inimigo; os que reuniu em várias regiões: oriente e poente, norte e sul. Erravam por um deserto solitário, não acertavam com a direção de povoados; passavam fome e sede, e desfalecia seu alento. Mas gritaram ao Senhor em sua angústia, e ele os libertou da tribulação. Guiou-os por um caminho plano para que deparassem um povoado. Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia, pelas maravilhas que faz pelos homens. Saciou as gargantas sedentas, e aos famintos cumulou de bens. 10 Jaziam em escuridão e trevas, cativos de ferros e desgraças, 11 porque se rebelaram contra a ordem de Deus desprezando o plano do Altíssimo. 12 Quebrantou seu ânimo com trabalhos, sucumbiam e ninguém os socorria. 13 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia, e ele os libertou da tribulação. 14 Tirou-os da escuridão e das trevas, e fez saltar suas correias. 15 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia, pelas maravilhas que faz pelos homens. Salmo 107 16 Quebrou as portas de bronze e arrancou os ferrolhos de ferro. 17 Andavam pasmados por suas maldades por suas culpas tinham que jejuar1: 18 repugnava-lhes qualquer manjar e já tocavam as portas da morte. 19 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia, e eles os libertou da tribulação. 20 Enviou sua palavra para curá-los, para salvá-los da extinção. 21 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia, pelas maravilhas que faz pelos homens. 22 Ofereçam-lhe sacrifícios de ação de graças e contem suas ações aclamando-as. 23 Entraram em navios pelo mar, comerciando pela extensão do oceano. 24 Contemplavam as obras de Deus, suas maravilhas no profundo2. 25 Mandou levantar-se um vento tempestuoso que inchava as ondas. 26 Subiam aos céus, baixavam ao abismo, o estômago revolto pelo mareio3; 27 rodavam e cambaleavam como bêbados, e não lhes valia sua perícia. 28 Mas gritaram ao Senhor em sua angústia, e ele os livrou da tribulação. 29 Apaziguou a tormenta em leve brisa e emudeceu as ondas. 30 Alegraram-se por aquela bonança, e conduziu-os ao porto ansiado. 31 Dêem graças ao Senhor por sua misericórdia, pelas maravilhas que faz pelos homens. 32 Aclamem-no na assembléia do povo, louvem-no no conselho dos anciãos4. 1mortificar-se 2 em alto mar 3 a garganta com náuseas 4 senadores 1321 1322 Salmo 107 33 Transforma os rios em deserto, e os mananciais em secura; 34 a terra fértil em salinas, pela maldade de seus habitantes. 35 Tranforma o deserto em tanques e a terra agreste em mananciais. 36 Assenta aí os famintos, e fundam um povoado. 37 Semeiam campos, plantam pomares, que dão fruto na colheita5. 38 Ele os bendiz e multiplicam-se, e não lhes diminui o gado. 39 Se minguam abatidos pelo peso de infortúnios e penas, 40 o que lança desprezo sobre nobres e os descarrilha por uma imensidade sem caminhos, 41 levanta os pobres da miséria e multiplica suas famílias como rebanhos. 42 Os retos o vêem e se alegram, à maldade lhe tapam a boca. 43 O inteligente, que retenha esses fatos e medite na misericórdia do Senhor. 2. B ibliografia G. Loinger, Israel et l’appel de la mer, Itinéraires bibliques (1959) 27-30. D. Winton-Thomas, Hebrew ‘ont “captivity”, JTS 16 (1965) 444-445. W. Michaux, Le chemin des sources du salut (Sl 107), BVC 83 (1968) 4655. K. Borger, Weitere ugaritologische Kleinigkeiten (Ps 107,20.30), UF 1 (1969) 1-4. M. Ströle, Der 107 Psalm, ErbAuf 46 (1970) 297-302. R. Schatz, The commentary ofR . Israel Baal Tov to Psalm 107. The mith and the ritual o f the “descent to Sheol”, Tarbiz 42 (1972-73) 154-184. J. Mejia, Some observations on Ps 107, BibThBul 5 (1975) 56-66. J. Lust, A gentle breeze o ra roaring thunderous voice, VT 25 (1975) 110115. R. Meye, Ps 107 as horizon for interpreting the miracle stories o f Mark 4,35-8,26, em FS G. E. Land, Grand Rapids, 1978, 1-13. 5para a terra Estudo global 1323 W. Beyerlin, Werden und Wesen des 107 Psalms, Berlim-NY, 1979. O. Loretz, Baal-Jahwe als Beschützer der Kaufleute in Ps 107, UF 12 (1980) 417-419. Y. Bazaq, O give thanks to the Lord for his steadfast love and his wondrous deed to humankind (Ps 107,15), BetMik 32 (1986-87) 301-319. S. Weisblueth, Ps 107. An echo o f the return to Zion, BetMik 34 (1988-89) 185-190. 3. Análise filológica 3. wmym: o sentido pede mymyn - sul. 8. hsdw: acusativo de causa GK 118 ac, ou complemento de agrade cer. 10. yshby: predicado com sujeito implícito Joüon 154 c. 17. ’wlym: corrigido para hwlym Gun, ou ’mllym Olsh Wellh BH, dementes Del. 20. mshshytwtm: forma variante de shht (Lm 4,20); corr mshht hytm BHS, mshht tmym Kraus, variante de shhyn Dah. 29. yqm: jusssivo com valor de indicativo GK 109 k. 35. como v. 29. 37. tbw’h: nativitatis Vg, colheita anual Hupf Now Luth, et facient fruges (suj) gramina (compl) Jerôn Baeth. 40. V drk: com valor de adjetivo Zorell 385a. 4. Estudo global a) Gênero e composição — O SI 107 é um grande cântico de ação de graças, com uma espécie d meditação acrescentada à maneira de apêndice. Comecemos pela parte mais clara e coerente em sua arquitetura (versículos 4-32). São quatro episódios típicos, balizados em seu procedimento por dois estribilhos. Embora a extensão varie, o esquema é rigoroso: tribulação — súplica — libertação — ação de graças; o segundo estribilho ocupa cada vez o penúltimo versículo. Podemos falar de estrofes por analogia, já que o número de versos muda: 6 - 7 —6 —10. Com uma breve introdução e uma conclusão, ficaria o salmo perfeito, quadrado. Poderíamos percorrê-lo ou contemplá-lo como um pórtico quadrangular. Por razões que se nos ocultam, o texto não é assim, e toca-nos descrevêlo como aparece hoje, com sua introdução específica e sua prolongação 1324 Salmo 107 heterogênea. O belo quadrilátero limita por cima com uma — introdução ou invitatório, cujo primeiro versículo é uma fórmula litúrgica de uso vário. Dois versículos nomeiam os convidados de tal modo que permiti riam deduzir a situação histórica do salmo: são os “resgatados” (do desterro) e “reunidos” (da diáspora). Duas situações que podem sobreporse e separar-se. Coincidem, como veremos, no retorno do desterro. Porém concorda tal convite com o corpo quadripartido do salmo? Os convidados são específicos, os episódios contados são genéricos. Ao ver reunido um coro de repatriados, esperávamos um canto com temas do Segundo Isaías, não uma composição apta para qualquer conjuntura. Por outro lado, há um ponto de concordância, que é o número quatro: quatro pontos cardeais, quatro episódios exemplares. E apurando correspondên cias, a repatriação pode incluir saída da prisão, viagem pelo deserto e viagem pelo mar; ou seja, três dos episódios. Mas não apuremos demais as correspondêncais. Então, concorda o invitatório com a meditação adicional ou apêndice? Dificilmente: o retorno é continuação depois da ruptura; no máximo, novo começo; o apêndice considera uma situação que chamaríamos fundacional. ■ — O quadrilátero mencionado limita por baixo com uma reflexão de estilo diverso e sem estribilhos (33-41 ou 42). Também é louvor teológico, também é protagonista o Senhor. O demais, tema e estilo, discrepa noto riamente. De artista que planeja e constrói com tanta harmonia, não se espera nem se explica que estropie sua obra com um anexo que se revela um emplastro. A adição, é verdade, é interessante e valiosa; mas não se encaixa. Alguém com outras preocupações, com menos sentido arquitetônico, com menos escrúpulos artísticos construiu seu anexo. Teremos que estudálo pelo que vale em si. — A conclusão, unida ao invitatório, costuma formar quadro homogê neo. O do Sl 107 é peculiar. O versículo 42 refere-se à adição, ao corpo original ou à combinação atual de ambos? Por sua antítese de retos e malvados, concorda melhor com o apêndice (32-41). Por sua situação atual, pode tocar a totalidade: tudo podem e devem contemplar os retos com alegria. O versículo final é de tipo sapiencial: dirige-se ao homem douto ou sensato e exorta-o a meditar “essas coisas”. Este versículo, mais facilmen te do que o anterior, pode referir-se a todo o salmo atual: é preciso meditar na harmonia do desenho /desígnio de Deus, e também em sua condu ta para com nobres e humildes. Contudo, dá-me a sensação de que a atitude sapiencial concorda melhor com a límpida construção do corpo do salmo. Exegese 1325 b) Estilo Fixar-me-ei no quadrilátero central. É patente a vontade construtiva, temperada com certa liberdade lírica. Se corrigirmos a primeira palavra do versículo 4 (BHS aparato), os quatro episódios começam em forma nominal, com particípio ou substan tivo. E como tomar personagens de vários acontecimentos, fixá-las numa designação e pô-las diante do leitor. Em outras palavras: imaginemos numa sala quatro quadros pendurados que têm em baixo um título: "Perdidos no deserto”, “Prisioneiros no escuro”, “Pasmados”, “Navegantes”. O mais próximo que encontro desta técnica é o quaternário de Pr 30,11-14, como pura apresentação de quatro tipos humanos, mas sem elementos narrativos ou descritivos (Provérbios, 515-516). Na execução dos quadros, o autor cede ao gosto descritivo, que exerce com traços seletos e breves. Ainda que seu tema sejam as personagens ameaçadas e libertadas, interessa-lhe também o espaço onde se desenvolve a cena, exceto no terceiro quadro. O deserto sem caminhos e sustento, o cárcere tenebroso com suas portas e ferrolhos, o mar em tempestade e em calmaria. Sem chegar a descrever paisagens, oferece-nos observações valiosas, pouco freqüentes na poesia bíblica. Comparando com os salmos precedentes, o corpo desse usa de outra forma o paralelismo. Economiza sinonímicos, usa os correlativos, em geral acrescenta dados no segundo hemistíquio. Em suas mãos, o paralelismo é mais formal do que de conteúdo: oferece margens ao leito antes que trilhos ao movimento. O estilo da adição é diverso. Deus toma a iniciativa, e os homens agem em conseqüência (para o particípio do v. 40, veja-se a Exegese). O ritmo de todo o salmo é bastante regular, e o recurso sonoro preferido é a aliteração com a reiteração de algum fonema dominante. 5. Exegese 1. Fórmula litúrgica, começo dos SI 106, 107, 118 e 136; a segunda parte, estribilho do 136. 2-3. Quem introduz esses versículos pensa em repatriados do desterro babilónico e de diáspor a universal. O primeiro soa na conhecida designação de “resgatados” (Is 35,9; 51,10; 62,12); o verbogY e seu particípio são típicos do Segundo Isaías. Os quatro pontos cardeais indicam à primeira vista diáspora mais ampla e tardia; todavia podem também ser hipérbole, como mostra Is 43,5-6: 1326 Salmo 107 Do oriente trarei tua estirpe, do ocidente reunir-te-ei; direi ao norte: entrega-o; ao sul: não o retenhas. (As designações de oriente e norte coincidem com as do salmo). Essa introdução pode ter sido acrescentada em ocasião particular; porém também pode ser original. Ponhamo-la em relação com o corpo do salmo. Quatro pontos cardeais condensam e articulam a totalidade do orbe; quatro episódios de libertação podem condensar e articular os benefícios do Senhor. O Segundo Isaías refere-se muitas vezes à viagem dos repatriados através do deserto; da viagem pelo mar ocupa-se Is 60, mas com função diversa, já que o salmo não descreve a navegação como retorno. O segundo episódio, que junta prisão com trevas, tem antecedente em Is 49,9: para dizer aos cativos: saí, aos que estão em trevas: vinde à luz. 4-9. O primeiro quadro, por seu caráter genérico, pode referir-se a caravanas habituais, profissionais, ou a outras ocasionais. Inclusive guias profissionais podem extraviar-se. “Povoado” vai sem artigo: não parece referir-se a um determinado, termo previsto da viagem, mas a qualquer que ofereça salvação. O livro de Jó brinda-nos com uma boa descrição dessas caravanas perdidas, buscando água em leitos conhecidos que encontram secos: 6,18 19 20 Por sua culpa as caravanas mudam de rota, adentram na imensidade e se extraviam. As caravanas de Temã buscam-no e os beduínos de Sabá contam com ele, mas fica burlada sua esperança, ao chegarem se vêem decepcionados. Fome e sede indicam que acabaram as provisões: desfalecem e não têm forças para seguir adiante. A história patética de Agar, vagando com seu filho Ismael, concentra a atenção na falta de água (Gn 21,9-18). 6. Primeiro estribilho. Para o binário çr mçwq, vejam-se Jr 19,9; Sf 1,15; Sl 119,143. Grito e libertação estão aliterados e colocados nos extre mos do versículo, em quiasmo; os dois verbos e os dois substantivos insistem no fonema p. 7. Deus remedia a situação sem milagres e em dois passos: encaminha os extraviados até um povoado e ali os provê de sustento. Um “povoado” é o que eles buscavam (4.7). 8. O segundo estribilho menciona os “humanos”, com alcance univer sal, não limitado à Casa de Israel; por outro lado, a divindade invocada é Yhwh. Cortando a frase de outro modo, poder-se-ia traduzir: “Dai graças ao Senhor: sua misericórdia e suas maravilhas são para os homens”. Exegese 1327 O caminho perigoso pelo deserto, além de seu sentido imediato e empírico, suscita muitas recordações: patriarcais, do êxodo, do retorno. Contando com isso e com o valor metafórico corrente de “extravio, encami nhar”, o quadro abre-se a uma leitura simbólica. “Este salmo sintetiza a condição humana: a dor do castigo ou da penitência, as misericórdias de Deus, a vocação dos pagãos” (Jerônimo). 10-16. Segundo quadro: encarcerados. Nesse quadro, à referência genérica sobrepõem-se traços que podem soar como alusões históricas. Visto de outro ângulo, o genérico é também aplicável à situação na Babilônia. E genérica e universal a situação; o nome da divindade: “Deus Altíssimo” não é o exclusivo do Deus de Israel (Gn 14,18-20). Aprisão como castigo por rebelar-se contra Deus translada-nos ao contexto de Israel. 10. Facilmente imaginamos portas metálicas, grades e ferrolhos; acrescentemos à imagem masmorras escuras, calabouços sombrios, cepos e grilhões. Os metais destinados ao serviço do homem foijam-se em armas para matar o homem e em grades para encarcerá-lo. Um estilema supreendente desse versículo consiste em ligar dois elementos heterogêne os: “ferros e desgraça”; compare-se com o binário precedente: “escuridão e trevas” (surpreende numa estilística bíblica o que é corrente entre nós). Não seriam mais agradáveis os cárceres da Babilônia, onde viveram e morreram muitos deportados (cf. 2Rs 25,27 para o rei Jeconias). De mais a mais, o mero desterro, mesmo com liberdade, era sentido por muitos como cárcere; da mesma forma que Ezequiel sentiu-o como sepulcro (Ez 37). 11. A prisão é merecida, como acontece com um criminoso réu de rebeldia ao soberano. O soberano é nesse caso o Altíssimo, e a rebeldia consiste em “desprezar seu plano” ou desígnio. Em chave histórica, a política dos reis de Judá com respeito à Babilônia, contra o desígnio de Deus comunicado por Jeremias; política que acarretou o desterro e o cativeiro. 12.0 castigo também entra no plano de Deus, sua finalidade é “dobrar o ânimo”, conduzi-lo à conversão. Que buscassem auxílio no seu Deus, não no Egito nem em aliados menores, pois “ninguém os socorria”. Também esse ato do drama admite leitura generalizada. 14. Tirar da escuridão, como Is 42,7: para que tires os cativos da prisão e da masmorra os que habitam em trevas. Fazer saltar as correias pode sugerir, pelo menos por associação, ojugo da escravidão ou trabalhos forçados (Jr 2,20; 5,5; 30,8; Na 1,13; Sl. 2,3). Com o verbopth diz Is 52,2: “desata as correias de teu pescoço, Sião cativa”. 1328 Salmo 107 16. Portas e ferrolhos costumam-se aplicar a cidades muradas (Jr 49,31; Ez 38,11). Lemos em Is 45,2: “Despedaçarei as portas de bronze, arrancarei os ferrolhos de ferro”. “O Senhor, como luz, tira-nos das trevas; como vida, tira-nos da morte; como poder, rompe nossas cadeias” (Orígenes). 17-22.Terceiro quadro: enfermos. É o menos definido quanto a traços descritivos da desgraça, mas segue uma pauta coerente que podemos esquematizar assim: pecado — enfermidade grave — súplica — palavra / oráculo de cura — ação de graças com sacrifícios e relato da graça obtida. Salvo a coordenada temporal, é esquema conhecido pelas súplicas de enfermos, por exemplo, Sl 32 e 38. 17. O pecado é conduta formada por uma série de atos. Creio que ’wylym pertence à enfermidade, pois apresenta-se como efeito do pecado. Não é claro se concebe como doença física ou como perturbação mental. Talvez os hebreus não fizessem distinção tão clara. Proponho duas linhas de explicação: a) estavam como abobados, entontecidos, sem capacidade para reagir; b) estavam desorientados, sem saber que remédio aplicar, tomando medidas contraproducentes. O verbo ‘nh em hitpael pode signifi car privar-se, jejuar (Esd 9,21; Eclo 11,18). 18. Sintoma grave que conduz à inanição. Pela pena, diz Sl 102,5: “esqueço de comer meu pão” (de tomar alimento). Jó 33,20 descreve-o com maior amplidão: até rejeitar com toda a alma a comida e sua garganta o manjar favorito; consome-se-lhe a carne, até que não mais se a vê, e os ossos, que não se viam, se lhe descobrem. Sua alma aproxima-se da sepultura e sua vida dos Exterminadores. Este texto (de Eliú) continua mencionando uma intercessão, a cura completa e a proclamação ou louvor público de Deus. 20. A cura é efeito de “palavra” que Deus “envia”, como se se tratasse de ordem categórica e eficaz. Pode-se pensar em oráculo que anuncia com certeza cura, ou em intervenção profética como a de Isaías com Ezequias (Is 38). Em todos esses casos, curar é salvar da morte ou da sepultura. 22. A ação de graças oral acrescentam-se sacrifícios pertinentes, provavelmente os estatuídos em Lv 7,12.13.15 e 22,29. Nesses sacrifícios, o ofertante participava do banquete: aquele que há pouco “detestava todo manjar”, agora é comensal do banquete litúrgico. 23-32. Quarto quadro: navegantes. Uma vez que os israelitas não eram povo marinheiro, os comentadores suspeitam de origem fenícia, Exegese 1329 próxima ou remota, desse fragmento. Mas é difícil provar que não houve israelitas com experiência marinheira. O relato de Jonas sugere o contrá rio; Ben Sira conhece-o pelo menos de oitiva (Eclo 43,24); vejam-se também lRs 9,27; 10,22. O que é indubitável é que o autor ou seu informante conheceu por experiência sensações e impressões de tempestade marinha. E o material que o poeta utiliza com singular acerto: as ondas que se encres pam, o subir e descer alternados e vertiginosos do navio, o mareio, a perda de equilíbrio, a inutilidade da perícia marinheira. 23. As personagens deste quadro fazem-se ao mar exercendo o comér cio. Assim Ezequiel descreve Tiro (Ez 27), e o autor do livro da Sabedoria explicará (Sb 14,2-3: projetou-a o afã do lucro e armou-a a perícia técnica; mas é tua providência que a pilota. 24. Supõe-se que no mar alto percebem-se e admiram-se ações e obras peculiares de Deus (Eclo 43,25; SI 104,25-26). Até aqui, a navegação é profícua e interessante; até que de repente 25. Deus, que controla os ventos (SI 104,4), despacha com uma ordem a borrasca que encrespa as ondas. 26. Descrição do mareio. Sujeito é npsh, a garganta em sua extensão de baixo para cima; verbo é htmgg (de mwg), que significa agitar-se ou desfazer-se. A causa é um r’h, que no contexto é o mal próprio do mar, o mareio (italiano mal di maré). 29-30. Também é notável como descreve o cessar da borrasca: Deus tranforma a ventania em brisa, e as ondas emudecem; depois Deus, como se fosse o timoneiro, guia a nave ao porto (Sb 14,3). 32. A ação de graças, a última, amplia-se em ato litúrgico comuni tário, na presença das autoridades. Se a menção da assembléia não é rara no saltério (por exemplo, 22,23; 35,18; 40,11), a menção do senado é única. 33-41. A reflexão é unitária, e suas peças estão bem travadas. Con templa a ação de Deus para que um povo se torne sedentário e cresça, em contraste com “nobres” habitantes que, por suas culpas, perderão seus territórios e se extraviarão. A ação de Deus diz respeito à natureza e aos dois grupos: a natureza em função dos homens. “As maravilhas do Senhor são tanto mais prodigiosas quanto mais muda contrários com contrários” (Orígenes). 33-35. A preparação é uma mudança total e oposta de territórios ou terrenos: o chão cultivado fica seco, e o chão seco fica cultivável. Na tradição do êxodo, a terra de Canaã não se torna deserto, mas é ocupada com suas 1330 Salmo 107 riquezas pelos israelitas (Dt 6,10-11; 8,7-10). E estes não ficam num deserto transformado, mas caminham rumo a povoados. Isso mostra que o autor pretendeu outra coisa. Primeiro, exaltar o poder de Deus sobre os elementos: como em Is 35,1-2 (provavelmente do Segundo Isaías), como em Sb 19,18-22 (em mudança interina), como em Jó 38-26-27: “para que chova nas terras despovoadas ... para que se sacie o deserto desolado”. Segundo, mostra a solicitude de Deus em preparar o terreno aos seus: assim já se descreve o paraíso (Gn 2); assim o concebe o Sl 68,10-11: Derramaste em tua herança uma chuva generosa, ó Deus, aliviaste a terra extenuada, e teu rebanho habitou na terra que tua bondade, ó Deus, preparou para os pobres. (Cinco palavras dos versículos 33-35 aparecem também em Is 35). 36. Com este versículo se enlaça a adição ao corpo do salmo: os “famintos” encontraram o que buscavam, um “povoado” (4.7). Não construído, porém, de antemão, mas que eles hão de fundar. 37-38. Nesse terreno agora fértil e nesse povoado começa o ritmo tranqüilo de população agrícola, bem alimentada e crescente. 38-39. Apresentam uma antítese entre “multiplicar-se, não min guar” e “minguar”. E o mesmo o sujeito? Em caso afirmativo, o texto recorda alternâncias históricas sem aduzir causas, ainda que implicando que Deus controla o movimento demográfico. Há mudança de sujeito e os que minguam são os malvados? Nesse caso falta o sujeito explícito novo, ou o v. 39 vai depois do 40, como propõem alguns. 40-41. Apresentam outra antítese semelhante: a ação de Deus humi lhando nobres e enaltecendo pobres. Não se lê no lugar motivo ético para a humilhação dos “nobres”; a não ser que estes sejam os mesmos do v. 34: “pela maldade de seus habitantes”. O autor quer mostrar a soberania de Deus sobre os destinos humanos. Essa é sua meditação. A natureza distingue deserto e terra fértil: Deus inverte os papéis. Os seres vivos multiplicam-se, contraem-se: Deus contro la ambos os movimentos e faz passar de um a outro. A sociedade distingue nobres e plebeus: Deus muda as sortes. Algo semelhante proclama o canto de Ana (ISm 2), mencionando, entre outras oposições e transformações, fecundidade / esterilidade, nobreza / pobreza; as duas oposições reapare cem no Sl 113 e em seus equivalentes no Magnificat. 42. Nova oposição: reação de dois tipos de testemunhas diante da ação de Deus. Os retos alegram-se e festejam-no, os perversos ficam sem palavra. Compare-se com o final do Sl 63: Transposição cristã 1331 mas o rei celebrará a Deus, gloriar-se-ão os que juram por ele, quando taparem a boca dos mentirosos. 43. O último versículo é uma espécie de firma à adição, que quer abarcar todo o salmo. As quatro libertações e as três mutações ficam rubricadas e compreendidas como atos de “misericórdia”. Pelo que têm de estranho e copioso, devem ser objeto de “meditação”, que se deve conduzir com sensatez e penetração. Não basta contar, é preciso meditar (cf. o final de Oséias). “Para compreender, é preciso ser expertos nos mistérios de Deus” (Atanásio). 6. Transposição cristã Aproveitando o valor simbólico dos episódios, Agostinho propõe uma explicação (ou aplicação) engenhosa e saborosa. Os quatro quadros repre sentam quatro provas ou tentações de um itinerário espiritual. (É provável que no itinerário entre algo da experiência pessoal de Agostinho). O primeiro é o extravio, a desorientação junto com a fome de verdade de quem busca: “Clama a Deus e é conduzido ao caminho da fé, por onde segue para a cidade da paz”. O segundo é a dificuldade de praticar o que se aprendeu: “Sente-se atado por sua concupiscência; com os pés nos grilhões não consegue caminhar, tropeça com um muro de impossibilidade e, com as portas fechadas, não acha saída para viver honestamente”. O terceiro é o tédio da palavra de Deus, o enfado, “não leve tentação”. O quarto não é de todos, mas de quem foi nomeado timoneiro na nave da Igreja: “quanto mais honras, mais perigos”. Neste quarto estádio, todos correm perigo. Também Agostinho, como o autor da adição, convida-nos e ensina-nos a meditar este e os outros salmos. Outra possível leitura cristã do salmo consiste em contemplar no evangelho episódios correspondentes. Por exemplo: o povo faminto, em lugar despovoado, alimentado por Jesus (Mc 6,30-46 par); o endemoninhado nos sepulcros “sombrios”, com “grilhões e cadeias”, libertado por Jesus (Mc 5,1-20); diversos tipos de doentes curados (Mc 6,53-56 e 7,24-37); a tempes tade acalmada (Mc 4,35-41). Também pode-se ensaiar uma leitura anagógica, ou seja, projetando as provas para nossa peregrinação ou navegação pelas areias ou pelas águas deste mundo, rumo à cidade prometida (Hb 11,16). O cárcere escuro representa a morte, da qual se sai pela ressurreição. Naquela pátria revelase e canta-se o mistério da misericórdia de Deus para os humanos. Salmo 108 1. Texto 2 Meu coração está firme, 6 Deus, meu coração está firme: cantarei e tocarei. 3 Desperta, honra minha! Despertai, cítara e harpa! Despertarei a aurora. 4 Dar-te-ei graças diante dos povos, Senhor, tocarei para ti diante das nações: por tua lealdade, que chega até ao céu; por tua fidelidade, que alcança as nuvens. 5 6 Levanta-te sobre o céu, ó Deus, e encha a terra tua glória! 7 Para que se libertem teus prediletos, que tua dextra os salve. Responde-nos! 8 Deus falou em seu santuário: Triunfante repartirei Siquém, parcelarei o Vale das Cabanas. 9 Para mim Galaad, para mim Manassés, Efraim é o elmo de minha cabeça, 10 Judá meu cetro de comando. Moab uma bacia para lavar-me, sobre Edom lanço minha sandália. Filistéia, grita contra mim! Estudo global 1333 11 Quem me levará à cidade fortificada, quem me conduzirá a Edom! 12 Mas tu, ó Deus, nos rejeitaste e já não sais com nossas tropas ? 13 Envia teu auxílio contra o inimigo, pois é v ã a vitória humana. 14 Com Deus faremos proezas, ele pisoteará nossos inimigos. 2. Bibliografia R. Arconada, Moab olla (Ps 59,10) vel lebes (Ps 107,10) spei meae, VD 16 (1936) 120-122. C. R. North, ’eflozah ‘ahaleqah shekem (Ps 60,8 / Ps 108,8), V T 17 (1967) 242-243. A. J. Brawer, Ps 60,10; 108,10, BetMid 14 (1969) 124-125. J. W . McKay, M y glory - a mantle ofpraise, ScJT 31 (1978) 167-172. 3. Análise filológica (Vejam-se os SI 57 e 60) 4. Estudo global Com alguns toques leves, que não mudam a substância do texto, o presente salmo é combinação de 57,8-12 e 60,7-14; ou seja, as duas metades posteriores dos dois salmos. São assim supressas as duas colocações das súplicas, que eram a descrição da desgraça original. Com essa operação, ambas as peças reforçam sua tonalidade positiva e esperançosa. Não desaparece, porém, completamente a menção da desgraça presente, pois no 31 60 e no presente, ao oráculo divino correspondem uma queixa e uma petição. Inclino-me a pensar (a suspeitar) que a operação realiza-se já passado o desterro, na época de domino persa. Tomando a proposta como hipótese de leitura, temos o seguinte: o território tradicional de Israel acha-se des membrado e reorganizado como província do império, e a população vive em grande parte dispersa. Também foram absorvidos os reinos vizinhos, Moab, Edom e Filistéia. 1334 Salmo 108 Nessa situação de submissão e impotência, a comunidade suplica “com coração animoso”, invoca a luz de um novo dia em que Deus mostre sua “glória” e venha “salvar seus prediletos”. Como resposta de Deus, recita-se antigo oráculo, no qual Deus afirmava sua soberania sobre Israel e os reinos vizinhos; e que agora são figura de outras realidades políticas. O povo responde com a velha queixa, dirigida contra Edom, que agora é a figura do poder opressor (pela participação de Edom na destruição de Jerusalém, Sl 137). Termina com uma súplica confiante. Tudo isso é mera hipótese, baseada em modos de pensar e expressarse de autores bíblicos. Mas nem essa nem outras semelhantes aspiram a ser tomadas como a verdade histórica. O que pretendemos com essas hipóteses é captar a capacidade de atualizar um salmo e apropriar-se de seu sentido. O salmo é também testemunho de modo de elaborar com peças preexistentes novas composições. Do que se podem tirar duas conclusões diversas: a) que esse modo de proceder por combinação deve-se supor comum e freqüente, ainda que tenham desaparecido as formas anteriores; o salmo aduz-se, em tal suposição, como justificação de modelo geral; b) que quando um autor compõe com materiais preexistentes, trata-os com muito respeito e não elimina as formas precedentes; o salmo, nesse caso, recomen da cautela ao crítico. 5. Notas para a exegese Ao começar assim, de repente, o orante impõe uma entoação de entusiasmo e alegria. A mobilização geral de espírito, instrumentos musi cais e fenômeno cósmico desembocam numa invocação audaz ao Deus solar. Não a luz criada, mas Deus-Luz em pessoa; e não chega repentina, “que haja luz”, mas preparada pela aurora do desejo e expectação do homem. Invocam uma luz ativa e benéfica, que sustenta a petição seguinte: “para que se salvem teus prediletos, responde-nos com tua mão salvadora”. A petição acolhe-se imediatamente no triunfo invocado da luz. Do símbolo cósmico, magnífico, passa-se à relação pessoal com Deus, “teus prediletos”. A luz do Deus solar, ao calor de seu afeto de predileção, pronuncia-se um antigo oráculo, que afirma a perpétua e renovada soberania política do Senhor. Mas esse oráculo está outra vez pendente de realizar-se (como o “hoje” do Sl 95,7); razão pela qual o povo conclui com petição confiante. Excluem todo auxílio humano, que a história e o presente demonstraram inúteis. Notas para uma leitura cristã 1335 6. Notas para uma leitura cristã Contento-me com citar a proposta apresenta por Jerônimo: “Sinto-me animoso; despertai, cítara e harpa, porque fostes criadas para cantar a Deus. A luz é preciso cantar a Deus; mas, mesmo que cantemos à noite, à plena luz bendizemos a Deus: existe a noite para o cristão? Sempre amanhece para o cristão o sol da justiça. Porém eu descubro um sentido mais profundo: é o Senhor quem canta: Sinto-me animoso. Canta pelo presente e pelo futuro, pela terra e pelo céu, pelos anjos e pelos homens. O Senhor dirige-se a seu corpo, harpa que foi colocada no sepulcro e desceu ao abismo: Que se levante seu corpo para louvar a Deus”. Salmo 109 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Deus de meu louvor, não te faças o surdo, pois uma boca perversa e traiçoeira abre-se contra mim, discute comigo uma língua mentirosa. Com discursos de ódio me cercam e me combatem sem motivo. Em paga de meu amor1 me denunciam2 enquanto eu rezava. Devolvem-me mal por bem, ódio por amor. [Dizem]: “Nomeia contra ele um malvado, um acusador que se ponha à sua direita. Saia condenado do julgamento, que fracassem suas súplicas. Que seus dias sejam poucos e seu emprego outro o ocupe. Que seus filhos fiquem órfãos e sua mulher viúva. Que seus filhos mendiguem3 vagabundos, expulsos de suas ruínas. Que um usurário apodere-se4de seus bens, que estranhos arrebatem seus suores. Que ninguém lhe demonstre clemência nem se compadeça de seus órfãos. Que sua posteridade seja exterminada e numa geração se apague o seu nome. 1afeto 2 acusam 3pedindo esmola 4 aproprie-se Salmo 109 14 Que o Senhor recorde a culpa de seus pais e não apague os pecados de sua mãe; 15 que o Senhor os tenha sempre presentes e extirpe da terra sua memória”. 16 - “Pois já que não se lembrou de agir com clemência, perseguiu o pobre desgraçado e o atribulado, para dar-lhe morte; 17 já que amou a maldição, recaia sobre ele!; não quis a bênção, fique longe dele! 18 Que se vista de maldição como de um traje, que lhe empape como água as entranhas, como azeite as medulas; 19 seja uma veste que o cubra, como um cinturão que sempre o cinja”. 20 Assim pague o Senhor aos que me acusam5, aos que falam mal de mim. 21 Tu, porém, Senhor meu dono, trata-me como pede teu nome6, por tua bondade benfeitora livra-me; 22 pois sou um pobre desgraçado, carrego dentro o coração transpassado; 23 vou passando como sombra que se alarga, sacodem-me como ao gafanhoto; 24 dobram-se-me os joelhos de jejuar7, estou fraco e descarnado8. 25 Sou a burla deles, ao verme sacodem9 a cabeça. 26 Socorre-me, Senhor Deus meu, salva-me por tua misericórdia. 27 Reconheçam que por aqui anda 10tua mão; que tu, Senhor, o fizeste. 28 Que eles maldigam, tu me abençoarás; que meus rivais fracassem enquanto teu servo se alegra. 5 me caluniam 6fama 1 não comer 8 descarnado e sem gordura 9 meneiam 10 está 1337 1338 Salmo 109 29 Que se vistam de infâmia os que me acusam, que a confusão os envolva como um manto. 30 Muitas graças dará minha boca ao Senhor, louva-lo-ei no meio de multidão, 31 porque se pôs à direita do pobre para salvar sua vida dos juizes. 2. Bibliografia F. Steinmetzer, Babilonische Parallelen zu den Fruchpsalmen, BZ (1912) 133. G. Meier, Die assyrische Beschwörungssammlung Maqlü, Berlim, 1937. A. Lods, Les origines de la figure de Satan, ses fonctions à la cour celeste, em FS Dussaud, Paris, 1939, 649-660. H. L. Craeger, Note on Ps 109, JNES 6 (1947) 121-123. E.J. Kissane, The interpretation ofPs 108 (109), IrTQ 18 (1951) 1-8. A. Vaccari, Il salmo 108 (109), RivBib 1 (1953) 55-60. L. Randellini, Satana nell’AT, BiOr 5 (1963) 127-132. A. Guillaume, A note on Ps 109,10, JTS 14 (1963) 92-93. M. Z. Kaddary, hll=bore, pierce? Note on Ps 109,22, V T 13 (1963) 486-489. B. Martin Sànchez, Salmo 108 (109). Imprecaciones contra impios enemigos, CuBi 22 (1965) 173-174. P. Hugger, Das ist meiner Ankläger Lohn... ?Zur Deutung von Ps 109,20, BiLe 14 (1973) 105-112. W . Dürig, Die Verwendung des sogennanten Fluchpsalms 108 (109) in Volksglauben und in der Liturgie, MüTZ 27 (1976) 81-84. M . Mannati, Salmo 109, em Pregare con i salmi, Turim, 1978, 11-16. M. J. Ward, Ps 109: David’s poem of vengeance, AndUnSemSt 18 (1980) 163-168. C. M. Cherian,Attitude to enemies in the Psalms, Biblebhashyan 8 (1982) 104-117. 3. Análise filológica 2. wpy mrmh: sumprimem-no Gun Kraus; Ishwn shqr instrumenta ou adverbial, a mesma coisa 3a. 4. pro eo ut me diligerent Vg, eos diligebam Jerôn, propõe suprimi-lo BHS. tplh: lê verbo Gr, acrescenta “por eles” Sir; equivale a ’y sh tplh (como Dn 9,23) Qim Ros, “ich aber bin ganz Gebet” Hitz Del. 6. diabolus Vg, Satã Jerôn Qim, adversário opinião comum. Estudo global 1339 7. oratio eius fiat in peccatum Vg, eis apotykhian Eut Hitz; fracassar DBHE ht’ 1. 8. pqdtw: episcopatum Vg, apostolado antigos, “o que lhe tinham confiado, posses ou esposa” Qim, haveres Baeth. 10. wdrshw: ekblethetosan (lê ygrsh?) Gr, como Ex 12,39 Ros Gun Briggs Duhm; peçam Qim Del Olsh. mhrbuityhm: min causal Targ Olsh, local Del Duhm Gun Kraus. 11. ynqsh: scrutetur ibqsh) Vg, illaqueet Flamínio, Genebr. 13. yhy ... Ihkryt: para a construção GK 114 hk. ymh: nifal de mhh. 17. tbw’hw: suf acusativo de lugar. 19. y ’th: relativa assindética. 21. ky twb: lêem ktwb Gun e outros. 22. hll: tetaraktai Gr, vulneratum est Jerôn, polel de hyl retorce-se (SI 55,5) Gun, passiva qal de hll Dah. 24. propter oleum, por falta de unção Sím Eut Agel; min privativo sem gordura Bell Hupf Now. 28. qmw wybshw: corrigem para qmy ybshw Gr Graetz Well Gun. 4. Estudo global a) Proposição judicial Este é um dos salmos mais difíceis do saltério. O texto não propõe graves problemas; o difícil é aceitar a violência dos sentimentos expressos e da linguagem usada. O que diz o orante está claro, mas como é possível que sinta o que disse? Quem ou que pessoas pronunciam semelhante texto? Começaremos por algo que é bastante claro e não provoca resistência no leitor: a posição judicial. Vários termos e expressões são sem dúvida forenses; outros, por especificação do significado, encaixam-se em contexto forense. Aos primeiros pertencem shpt em dois lugares-chave (7.31), no princí pio de um discurso e no final de outro e de todo o salmo, stn como nome e como verbo refere-se ao rival que acusa perante a autoridade (Jó 1-2; Zc 3,2); sai quatro vezes no salmo (4.6.20.29); ‘md ‘l ymyn = estar em pé à direita é posição judicial; rsh‘ pode designar o culpado, e yç‘ rsh’ é sair condenado do processo; klm pode significar a reação psicológica da derrota ou condenação; zkr, dito de delitos, é pronunciá-los na acusação ou aduzilos no debate. As múltiplas referências ao falar e não calar são exigência do processo. (Para a terminologia, veja-se P. Bovatti, Ristabilire la giustizia, índice de palavras hebraicas). 1340 Salmo 109 Faltam elementos típicos de julgamento: o protesto de inocência com a raiz çdq, a indagação ou conhecimento adquirido pelo juiz, o gesto de pôrse de pé, a menção de delitos particulares. Pede-se uma pena grave sem motivá-la com o delito correspondente. Para o sentido de tplh (4), veja-se a exegese. A descrição da própria desgraça (22-25) é mais própria de súplica ordinária que de julgamento de apelação. Deus é o juiz a quem se apela em última instância, mas no salmo não tem o título de juiz nem se menciona como atributo clássico sua “jus tiça”. Não podemos precisar se se trata de juízo de ordálio ou de simples juízo no templo ou de estilização poética em figura de juízo. A comparação com o modelo típico (Sl 17) mostra tantas discrepâncias como semelhan ças. b) Distribuição de papéis Toca-nos o mais difícil, que é distribuir os papéis: decidir quem pro nuncia tais e tais versículos. Que o orante pronuncia 1-5 e 21-31 não se duvida. O problema está na série de imprecações dos versículos 6-20. Propõem-se três formas básicas de execução ou leitura, as três apoiadas em argumentos de peso. — Primeira hipótese. Os versículos 6-20 são citação textual do que disse o acusador ou denunciante, o satã. O orante denuncia uma “língua mentirosa” e “discursos de ódio” (2-3). E razoável esperar que se citem suas palavras. Pelo final resume: “Que eles maldigam, abençoa-me tu” (28); pode referir-se à série de maldições que pronunciaram e que o orante pede que sejam neutralizadas pelas bênçãos de Deus. No v. 20, z’t resume todo o anterior como conclusão; o versículo seguinte (21) é começo de secção, com a forma adversativa “tu, porém”. Contra essa explicação é preciso notar que nem toda a secção 6-19 pode-se entender como pronunciada pelos acusadores. Pelo que se acres centa uma correção que nos oferece a — Segunda hipótese. O salmo acolhe e cita dois discursos, das duas partes, diante do juiz. Primeiro falam os acusadores, numa série apertada e coerente de maldições (6-15). A elas responde, depois de corte sintático, o acusado, retorcendo a petição contra seus adversários. O v. 17 mostra às claras a dialética do processo ao invocar simplesmente a lei do talião. Segundo essa hipótese, a parte mais odiosa é pronunciada pelos malvados, “discurso de ódio”, ao passo que o orante, o acusado, não pede mais do que em outros salmos semelhantes. Invocar a lei do talião é perfeitamente legítimo. Estudo global 1341 — Terceira hipótese. O orante pronuncia a série inteira de imprecações (6-20) seguindo modelos rituais conhecidos e amplamente usados na Mesopotâmia, adatando-os com maldições da aliança (segundo Dt 28). Essa hipótese requer a leitura de textos paralelos. c) Paralelos babilónicos Eram usuais na Babilônia orações contra feitiçarias que eram acom panhadas de rito em que se queimavam imagens de cera dos feiticeiros. Supunham a crença no poder de artes mágicas e a confiança em preces que se contrapunham à influência maligna. As preces dirigiam-se a divindades benévolas, particularmente deuses noturnos (Girra, Nusku) e também Samas e Istar. Para entrar nesse mundo estranho, cito versos escolhidos, segundo a tradução e estudos de Seux: “A Nusku (deus do fogo): Um bruxo me fez bruxaria: faz bruxaria para ele com as bruxarias que me fez; uma maga tramou contra mim: volta contra ela as tramas que tramou contra mim”. (Seux 380) Equivale a invocar a lei do talião, como o versículo 17 do salmo: “Aos deuses da noite: Um a vez que usou de más artes contra mim, tramando vilanias, morra ela, e viva eu. Sejam neutralizados suas feitiçarias, melefícios e encantamentos. Que sua língua se torne de sebo, sua língua se torne de sal: que se desfaça como sebo a feitiçaria, que se dissolva como sal” (376-377). Compare-se com os versículos 18-19 e 28-29 do salmo (depois de uma lista de malefícios e efeitos mágicos continua) “Eu te invoco como a Samas, o juiz: julga minha causa, pronuncia minha sentença, queima o bruxo e a bruxa; devora meus inimigos, consome os que me prejudicam. Que teu furacão violento os apanhe, que desapareçam como água derramada” (379). “A Nusku: Conserva-me a vida, para que proclame tuas façanhas e cante teu louvor”. (382) Compare-se com o v. 30 do salmo. 1342 Salmo 109 A Girra: Que eles morram, e eu viva; que eles tenham que se afastar, e eu prospere. Que eles acabem, e eu me multiplique; que eles se debilitem, e eu me robusteça. Girra esplendoroso, o mais alto dos deuses, que agarras o malvado e o inimigo, agarra-os para que eu não sofra dano. Que teu servidor viva são e salvo, e chegue à tua presença. Tu és meu Deus, tu és meu protetor e vingador. Que alguém mais forte se apodere de seus bens, que um bandoleiro saqueie suas posses ...”. (384-386) Pode-se comparar com os versículos 21.26.31; o final com 10-11. “A Samas (deus solar da justiça): Que suas ações recaiam sobre eles como uma rede que os apanhe. Que deus e rei, notável e príncipe olhem-no com maus olhos” (396). “A uma divindade: Que o vento leve tudo o que fez, que passe seus dias aflita e abatida, que acabe seus anos entre tormentos; que ela morra, e viva eu”. Há outra série de orações especiais contra as maldições. Os fragmentos citados mostram algumas coincidências com o material bíblico, um paren tesco genérico, e transladam-nos a uma mentalidade consistente. Mas tam bém é preciso sublinhar as diferenças. O Deus do salmo não é um entre tantos, mas o único Senhor; no texto bíblico não se mencionam práticas de magia nem se alude a um rito de queimar em efigie. Segundo a terceira hipótese, o orante pronuncia as palavras dum ritual composto em estilo hiperbólico e apaixonado, como se pronunciam liturgicamente as maldições da aliança. A oração realmente pessoal começa no v. 22. Inclino-me para a segunda hipótese, consciente das dificuldades que entranha qualquer das soluções. Aceita essa hipótese mencionada, creio que os paralelos babilónicos ilustram a linguagem bíblica. d) Composição e estilo Dentro de marco tradicional sucedem-se quatro blocos ou secções, segundo o seguinte esquema: 1 2-5 6-15 16-20 invocação propõe-se a causa série de imprecações réplica às maldições 1343 Exegese 21-29 30-31 súplica tradicional promessa conclusiva A repetição de hll em 1 e 30 produz inclusão que encerra todo o texto no louvor. De mais a mais, o final é recapitulação: boca (30 e 2), pôr-se à direita (31 e 6), juizes (31 e 7), pobre (31 e 22), salvar (31 e 26). No corpo do salmo são importantes as repetições já apontadas de “satã” e “bênção / maldição”; talvez também de hsd (12.21.26); o que os homens negam, concederá o Senhor. O estilo é pródigo em paralelismos sinonímicos e correlativos, comprazse nas séries, busca imgens expressivas; tudo a serviço de tom apaixonado. 5. Exegese 1-3.0 salmo começa com um grande silêncio no meio de conflagração de vozes: o orante invoca e louva, os rivais acossam com suas calúnias: poderá Deus ficar calado? O silêncio de Baal era sinal de impotência (lRs 18); o desterro foi um silêncio de Deus: “Há tempo guardo silêncio, calavame, agüentava” (Is 42,14); Hab 1,13 protesta: “por que contemplas em silêncio os traidores, o culpado que devora o inocente?” Os salmos retomam a idéia: o silêncio pode ser fatal (28,1); o silêncio de Deus deixa campo livre a seus inimigos (22,3; 35,32; 39,13; 83,2). O orante descreve o discurso do inimigo com traços militares: “ro deiam” como num cerco, “atacam” como num assalto. E batalha verbal cujas armas são a mentira e a calúnia. E trata-se de batalha de morte. 3b-4a. Ele não deu motivo para esses ataques; pelo contrário, sua conduta foi ditada pelo amor. Santo Agostinho distingue quatro correspon dências positivas e duas negativas, e ilustra-as com exemplos bíblicos: devolver bem por mal, não devolver mal por mal, devolver bem por bem, mal por mal, não devolver bem por bem, devolver mal por bem. ISm 24,18 ISm 25,21 Jr 18,20 Pr 17,13 Tum epagastecom bens,eeutepagueicom m ales(SaulaD avi). Agora me paga mal por bem (Davi de Nabal). Pagam-se bens com males? (Jeremias). Quem paga mal por bem, o mal não se afastará de sua casa. No salmo 109 começam os inimigos pagando amor com hostilidade; responde o orante devolvendo mal por mal (com medida, lei do talião); vejam-se também Sl 35,12; 120,7 e 38,21 com stn. 4b. E duvidosa a interpretação de tplh: a) Súplica pelos rivais (como Jr 15,11); é um modo de devolver bem por mal. b) Súplica por si mesmo, como em 21-26; do louvor passa-se à súplica, de thlh a tplh. c) Da raiz pll = 1344 Salmo 10S arbitrar, á luz de Ex 21,22; Dt 32,31; Jó 31,11.28; Is 28,7; o orante apela ao julgamento de Deus ou do templo. 5. Serve de resumo e para introduzir como citação o discurso dos rivais (conforme a segunda hipótese, que preferi). 6-15, Se nos ativermos à forma, contaremos vinte petições ou impre cações, em imperativo ou jussivo, positivas ou negativas. Como que um apedrejar verbal da vítima. Se nos fixarmos no conteúdo, observaremos blocos temáticos. Para entender esse gênero em contexto do AT, devemos nos valer de Dt 27-28. As maldições concebem-se em oposição às bênçãos, apresentam-se em séries; estão condicionadas ao não-cumprimento das cláusulas da aliança e portanto funcionam como castigo, são cláusulas penais; pronun ciam-se liturgicamente numa cerimônia que anuncia Dt 27,12-13 e se refere Js 8,30-35. As maldições consideram-se eficazes pela ação de Deus. ou se estão justificadas (Jz 9,57); do contrário, são ineficazes (Pr 26,2). Deus pode mudar a maldição em bênção (Balaão, Dt 23,6). Um exemplo de efeito de maldição a longo prazo lê-se em Js 6,26, com o cumprimento em lRs 16.34. As maldições de Dt 28 dirigem-se ao povo como coletivida de, as do salmo dirigem-se a um indivíduo; talvez por isso não coincida o conteúdo. 6-7. A primeira imprecação é talvez a mais estranha, por dirigir-se a Deus em imperativo, e pelo que pede. Suponhamos que alguém deseje a outrem: “que caias nas mãos de juiz sem consciência, de polícia brutal”; seria triste desventura. Mas pedir a Deus que nomeie um “fiscal” injusto, de forma que fracasse a defesa do inocente e saia condenado, é pedir a cumplicidade de Deus. E certo que Deus às vezes entrega ao poder de inimigos ferozes: conseqüências de guerras, castigos merecidos. Outra coisa é instituir formalmente um tribunal para que triunfe a injustiça (seria talvez como enviar um “espírito mentiroso” para enganar o rei, lRs 22). Essas palavras entendem-se melhor como “expressões de ódio” do inimigo do que como petição devota do orante. 8. Que malogre sua vida: em princípio pode ser por execução capita como desenlace do processo (é o caso de Nabot, lRs 21) e também por doença ou acidente que frustram a bênção da longevidade. Para a segunda frase podem-se aduzir como ilustração alguns casos do AT: o sacerdócio e a família de Eli (ISm 2,35); o poder real e a família de Saul (ISm 15); o mordomo Sobna (Is 22,19-25): 19 20 21 tirar-te-ei de teu posto, destituir-te-ei de teu cargo ... chamarei o meu servo Eliaquim ... vestirei nele tua túnica, cingi-lo-ei com tua faixa, dar-lhe-ei teus poderes. Exegese 1345 A frase do salmo é citada em Atos dos Apóstolos (1,20) aplicada a Judas; donde tomaram pé comentadores antigos para aplicar toda a série a Judas. 9. A imprecação alarga-se para a família, que fica pobre e desampara da pela morte do marido e pai. Diz Lm 5,3 de toda a comunidade: “Ficamos órfãos de pai, e nossas mães ficaram viúvas”. Semelhante Jr 18,21. 10-12. Sobre as posses. Formam um bloco lógico. Legal ou ilegalmente gente estranha, não da família, apodera-se de seus bens; os órfãos ficam reduzidos à mendicidade; pedem, e ninguém tem compaixão deles. A crueldade está se recrudecendo. Compare-se com Dt 2,29.33. Sobre a mendicidade afirma o Sl 37,25: “Nunca vi um justo abandona do nem sua linhagem medigando o pão”. 13. A descendência. Veja-se a terrível maldição pronunciada contra o sacerdote Eli (ISm 2,31-36): mortes, vida malograda, mendicidade. 14-15a. Os herdeiros deverão pagar os delitos dos pais, ou seja, pagam as conseqüências. Compare-se com o Sl 79,8: “Não recordes contra nós as culpas de nossos pais”. 15b. Extirpada a descendência, fica abolida também a recordação, em geral ligada aos filhos e ao nome. De acordo com sua teoria da retribuição, descreve Bildad o destino do malvado (Jó 18): 17 18 Sua recordação acaba no país e esquece-se de seu nome na região. Sem prole e descendência entre seu povo, sem sobrevivente em seu território. Vejam-se também Dt 32,26; Is 26,14; Sl 34,17; Ecl 9,5. Com a extinção do nome, chega-se ao fim. 16. Até agora sucederam maldições ou imprecações sem motiva ção explícita, ou seja, sem mencionar o delito que as provoca e justifica. O versículo 16 começa no estilo típico de motivação de sentença: “uma vez que fizeste XX, eu te farei / te acontecerá / que te aconteça ZZ”. Quando fala ojuiz, emprega o futuro; quando a vítima dirige-se aojuiz, pede emjussivo. Na segunda hipótese, o orante toma aqui a palavra e faz balanço do texto precedente: realmente seus rivais “amam a maldição e não querem a bên ção”; portanto merecem... 17. Pede simplesmente que se aplique a lei do talião, como se prevê na legislação. Não se toma vingança, mas se pede justiça. 18-19. Ampliação expressiva, enérgica, do anterior: a maldição que pronunciou há de se voltar contra ele com toda a sua força envolvente e penetrante, sobre a pele até aos ossos. O Deuteronômio tem uma lei contra as testemunhas falsas, aplicável por analogia a outros casos: 1346 Salmo 109 19,16. Se se apresentar contra alguém uma testemunha de má fé acusando-o de rebelião, 17 as duas partes comparecerão diante do Senhor, diante dos juizes e sacerdotes que estejam em funções então, 18 e os juizes investiga rão a fundo. Se resultar que a testemunha é falsa e que caluniou o seu irmão. 19 fareis a ele o que pretendia fazer para o seu irmão, e assim extirparás de ti a maldade, e os demais ficarão escarmentados ao saber. 20. Considero esse versículo a conclusão do discurso do orante: Seja essa a paga ou recompensa, da parte de Deus — a quem cabe aplicar a lei que eu invoquei — , para os que falam contra mim — pronunciando as maldições acima citadas. Pela ação de Deus, sua eficácia voltar-se-á contra os que as pronunciaram. Paga, salário (Lv 19,13; Is 49,4; Ez 29,30). 21-31.Marcada adversativa assinala o começo de nova secção, com mudança clara de pessoa verbal. Os pronomes pontuam essa fase: tu (21.27), eu (22.25), eles / tu (28). O estilo é dialogai: sente-se a relação pessoal do orante com seu Deus. A súplica contém os elementos típicos do gênero: tribulação do orante, des crição de sua situação, hostilidade do inimigo, apelação à misericórdia ou leal dade de Deus, petição de castigo para os culpados, promessa de ação de graças pela libertação seguramente esperada. 21. A motivação no que Deus é ocupa o primeiro lugar. 22-24. Segunda motivação, em estilo imaginativo, com dados convencionais. A sabida comparação da “sombra” renova-se pelo predicadc “que se alarga / distende” e pelo nifal de hlk (caso único no AT). O poeta judeu G. Henríquez (século XVII) descrevia: “porque são nossas vidas na terra caduca sombra que no ar erra”. O poeta hebreu vê a sombra estendida no solo. Segunda imagem: um inseto daninho que se sacode (terá inspirado a Kafka para sua Metamorfo se?). O terceiro, se bem que menos original, está bem formulado: um jejum, voluntário ou forçado, deixa-o fraco; falto de “gorduras” (magras), está desgordurado; falto de carne, des-carnado. A fórmula de reconhecimento é típica de Ezequiel; veja-se também o final do SI 64. 28-31. Os últimos versículos vão contrapondo as partes, rivais e oran te, como no desenlace de julgamento. Primeiro maldição e bênção, depois derrota e festa, finalmente confusão e ação de graças. Notemos que à confusão dos rivais derrotados não se contrapõe o gloriar-se do vencedor, mas o louvor de Deus: o louvor com que começou o salmo, agora plenamente justificado. 31. Versículo final de recapitulação. Transposição cristã 1347 6. Transposição cristã É possível leitura, reza cristã desse salmo? Comentadores antigos, entre os quais Agostinho, afirmam que o salmo não contém imprecações, e sim profecias: o que soa como expressão dum desejo é na realidade predição. Guiados pela citação de At 1,20, aplicam o salmo a Judas, não tanto como indivíduo, quanto como tipo dos inimigos e perseguidores de Jesus Cristo. As desgraças anunciadas são a pena imposta num julgamento, para eles final ou definitivo. A distribuição de papéis que propus tornará mais fácil ou menos difícil a leitura cristã. Contudo, quero mencionar outro aspecto do salmo. Diante das injustiças inveteradas, a exploração dos fracos, a corrupção dos pode rosos, a violência, a tortura, sente-se ferver a indignação, subir e buscar saída. O salmo pode ser expressão dessa indignação legítima e nobre; embora depois não se o faça, porque nem se pensava fazê-lo. Imaginemos um médico transbordando de indignação contra um criminoso e operandoo com anestesia e com todos os cuidados da profissão. Lido dessa forma, talvez o salmo contribua para que não se nos apague a indignação contra a injustiça, que é uma maneira de sede de justiça. Vejase o comentário ao Sl 58. Salmo 110 1. Texto 1 Oráculo do Senhor ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita até que faça de teus inimigos escabelo de teus pés” 2 O Senhor estenderá de Sião o poder de teu cetro. Submete na batalha os teus inimigos. 3 Teu exército é de voluntários no dia da mobilização. Uma majestade sagrada levas desde o seio materno1, da aurora um rocio de juventude. 4 O Senhor jurou e não se arrepende: “Tu és sacerdote eterno segundo o rito de Melquisedec”. O Senhor à tua direita, no dia de sua ira quebrantará reis; julgará os pagãos, amontoará cadáveres, quebrantará crânios sobre a imensa terra. 5 6 7 No caminho beberá da torrente, e assim levantará a cabeça. 1nascimento Variante do v. 3: Tua família é de nobres. O dia do teu nascimento, no átrio sagrado, te dei à luz, como rocio do seio da aurora. Bibliografia 1349 2. B ibliografia A bibliografia sobre o Sl 110 é muito abundante. Alguns autores concen tram-se em problemas textuais, como Herkenne, Coppens e Schedl. Uns fixam-se mais no aspecto da realeza, outros no do sacerdócio; outros ainda estudam a leitura messiânica e a leitura cristã. Os temas se misturam, mesmo em estudos monográficos, porque os problemas estão sobrepostos. Como fórmula prática, citarei primeiro estudos de conjunto; à parte estudos sobre o messianismo do salmo; depois estudos sobre versículos determina dos. Reservo para a secção Transposição cristã a bibliografia pertinente. T. H. Gaster, Psalm 110, JManchEgypOrSoc 31 (1927) 37-44. L. Dürr, Ps 110 im Lichte der neueren altorientalischen Forschung, Munique, 1929. H. Herkenne, Ps 110 (109) Dixit Dominus domino meo in neuer textkritischer Beleuchtung, Bib (1930) 450-457. S. Sisto, Exegesis Ps 110 (109), VD 10 (1930) 169-175; 201-210. J. Coppens, Notes philologiques sur le texte de VA.T. Le Ps 1 0 9 /1 1 0 , Museon 44 (1931) 177-198. H. L. Jansen, Den 110 Psalmen, SvTKvart 16 (1940) 263-276. G. Widengren, Ps 110 och det sakrala kungadömet i Israel, Upsalia, 1941. N. H. 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Lista alfabética Auffret Baumgärterl Beaucamp Bowker Caquot Coppens Delorme Driver Dürr Gammie Gaster Gerleman Hardy Herkenne Jansen Jeferson Kaznowsky Kida Kissane Krinetzky Kunz 82 53 61 67 56 31.59.77 54 65 29 69 27 27 45 30 40 54 60 64 54 61 82 Mannati Möller Nácar Podechard Reali de Relies Ridderbos Rowley Sauer de Savignac Schedl Schildenberger Schreiner Sisto Stoebe Strauss Tournay Treves Vriezen Widengren 78 80 46 48 78 61 44 67 68 51 61 80 77 30 59 69 45.60 65 44 41.76 Messianismo A. Miller, Gibt es direkt messianische Psalmen?, em FS Ubach, Montserrat, 1953, 201-209. F. Segula, Messias rex in Psalmis, VD 32 (1954) 23-33; 77-83; 142-154. Z. Kaznowsky, Mesiajiizm. Ps 110, Lublim, 1958. Análise filológica 1351 Hesse, Zur Frage der 'Wertung und Geltung alttestamentlicher Texte em FS Baumgärtel, Erlangen, 1959, 74-96. A. Luger, Der Messianismus der Psalmen, Viena, 1959. S. Amsler, David roi etMessie. La tradition davidique dans l’AT, Neuchâtel, 1963. B. 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Análise filológica 2. rdh: imperativo com valor consecutivo. bqrb: Dah lê biqrab na batalha. 3b. ‘mk ndbt: lendo sujeito e predicado, este abstr por concreto Ros Marini Phil Hitz Del Wei Rav “il tuo popolo é (tutto slancio)” Cast; lendo 1352 Salmo 110 ‘immeka Gr Aq ekousiasmoi, “possuis gabarito de príncipe” Gun; “em torno de ti nobres” Kraus; ndbt militar (Jz 5,2). bywm hylk: poder Gr Jerôn Duhm Wei, exército Ros Del Rav. bhdry qdsh: com ornamentos sagrados (da guerra santa), ou seja, as armas Hitz; alude a Jerusalém Qim; corrigem para hrry montes Sím Jerôn Kraus. mrhm mshhr: do seio da aurora (o hebraico tem o subst mshhr) Hitz Del Ecker; muitos antigos leram min comparativo ou temporal ante luciferum Gr Vg; separando os dois substantivos Gun. tlyldtyk: o rocio de tuajuventude =juvenil ros adulescentiae tuae Jerôn Hupf Now Reinke, juventude =jovens soldados fortes e numerosos Hitz Del Baeth Rohling; lêem ktl (haplografia) Luth Wei, rocio matutino = dom de Deus na hora do favor Wolff; suprimem lk tl e lêem verbo te gerei Gr Vg. Duas leituras íntegras: “Tecum principium in die virtutis tuae, in splendoribus sanctorum; ex utero ante luciferum genui te”; Vg. “Dein Volk (ist) Freiwilligkeit(en) an deinem Heertage; in heiligen Schmuck aus dem Schoss der Morgenröte (kommt) dir der Tau deiner Jugend” Ecker. Interpretação cristã: o principado do Messias, de Cristo muitos; do Pai Oríg. No dia: cruz ou encarnação Oríg. Geração eterna do Logos muitos antigos; do útero (só) de Maria Tert Just; ante luciferum, pois nasceu de noite Ag; a aurora é Maria LeBlanc. 4. dbrty: para o -y final GK 90 1. 5. ’dny: pode ser sujeito ou vocativo. 6. ml’: adj cheio Marini, rodeado Wei, verbo intrans impessoal Del Duhm, verbo trans com complemento implícito ’rç Targ Phil, com comple mento cadáveres Gr, ou vales Jerôn. gwywt: (implevit) valles Jerôn, lêemg ’wt majestade Podechard Kissane Driver; r’sh coletivo. 7. mnhl bdrk yshth: mudando a pontuação lê Nober “dar-lhe-á em herança o domínio”, idem lendo part hofal Schreiner. 4. Estudo global a) Gênero e situação Este é um salmo régio, que faz companhia aos SI 2,20-21, 45, 72 e 132. Sabemos que esse gênero caracteriza-se pelo conteúdo, salmo de um rei ou para um rei, e pode apresentar-se em múltiplas formas. Como as tarefas primordiais do rei de Judá são assegurar a continuidade da dinastia davídica, governar com justiça, defender na guerra, esses temas podem-se Estudo global 1353 tocar ou deles se tratar em salmos régios segundo a ocasião a que se destinem. Por exemplo, o 45 canta-se por ocasião de boda real, o 72 concentra-se no governo justo, 20-21 situam-se antes e depois da batalha, o 2 supõe uma rebelião de vassalos. Onde se situa o SI 110? Alguns comentadores pensam numa cerimônia de entronização (em nossa cultura a chamamos de coroação), que se realizava no templo ou no palácio. Por ocasião ou como parte da cerimônia, um encarregado oficial, talvez sacerdote, pronunciava um oráculo para o rei. E suposição plausível, que não pode aduzir provas documentais. No caso de Salomão (lRs 3), o rei recebe o oráculo diretamente de Deus, sem intermediários. Em Is 9 e 11 lemos oráculos proféticos pelo nascimento de herdeiro dinástico; mas não consta que tivessem sido parte de cerimônia litúrgica. O caráter oracular é explícito no SI 110, como também as referências ao governo e à guerra. Mas o salmo acrescenta um dado que, em vez de esclarecer, complica a explicação: o tema do sacerdócio. b) Três interpretações O governo e a guerra encaixam-se naturalmente na profissão real; como entra o sacerdócio? Semelhante anomalia admite três explicações básicas: o rei é também sacerdote, o sacerdote substitui o rei, rei e sacerdote são figuras coexistentes. — O rei é também sacerdote. Assim era Melquisedec, o rei sacerdote da Jerusalém jebuséia nos tempos de Abraão: “Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, tomou pão e vinho, e os bendisse” (Gn 14). Mencionando-o nominalmente, o salmo oferece-nos uma pista: agora o rei judeu sucederá ao rei jebuseu em ambas as funções. Alguns dados confir mam as funções sacerdotais dos reis antigos: 2Sm 6: ao transladar a arca, Davi ofereceu sacrifícios. Poder-se-ia inter pretar que ofereceu as vítimas para que as pessoas competentes fizessem o rito do sacrifício. 2Sm 8,18: “Os filhos de Davi oficiavam no culto”, não sendo de estirpe levítica. 2Sm 24,25: Davi construiu ali um altar ao Senhor, ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão”. Isso sucede na localização do futuro templo. lRs 3,15: “Salomão então foi a Jerusalém e, de pé diante da arca da aliança do Senhor, ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão e deu um banquete à corte”. lRs 8: toda a cerimônia da dedicação do templo, na qual o rei “voltou-se para lançar a bênção a toda a assembléia de Israel”. Segundo essa explicação, o salmo é antigo e refere-se a transferência de instituições e atribuições da cidade jebuséia a seu conquistador, o rei Davi. Seu poder sobre vassalos estrangeiros e suas vitórias militares de que fala o salmo compreendem-se à luz de 2Sm 8,5: 1354 Salmo 110 Davi matou vinte e dois mil homens e impôs governadores aos sírios de Damasco, que ficaram vassalos tributários de D av i... 13: Derrotou Edom em Vale do sal, matando oito mil homens, e aumentou sua fama; impôs governdores a Edom, que ficou como vassalo de Davi. 15: O Senhor deu a Davi a vitória em todas as suas campanhas. Davi reinou sobre Israel e governou com justiça o seu povo. O último dado não é mencionado pelo salmo. — O sacerdote desempenha as funções do governo real. Passaram séculos e não há rei em Judá, porque o território faz parte agora de província persa. O que fica de governo autônomo está encomendado à casta sacerdotal, de modo que o sumo sacerdote é a suprema autoridade para os assuntos internos da comunidade. O salmo evita a terminologia da realeza. Quem o compõe e os que o recitam sonham com reconquistar a independên cia e as glórias do passado, na linha de Am 9,11-12 e textos afins. Ora, como a época persa é avara em notícias, desce-se à era selêucida. antes da perseguição de Antíoco IV Epífanes (175-163). O salmo pretende legitimar os poderes do sumo sacerdote, e em forma de oráculo lança seus protestos contra o poder opressor da Síria. Dentro dessa datação situam-se as tentativas de precisar o sumo sacerdote do qual se trata, supondo que o salmo corresponde a uma situação histórica e não é mera peça de repertório. Dessa época (pelo ano de 180 a.C.) temos a obra de Ben Sira, o Eclesiástico, na qual se cantam com entusiasmo as glórias do sumo sacerdote Simão (Eclo 50): de suas funções profanas mencionam-se a reconstrução das muralhas e assegurar o serviço de águas para a cidade. Mas o salmo fica muito amplo para esse sacerdote. Contudo, alguns (Treves, com bibliografia) recorrem a outro argumento: lendo os quatro primeiros versículos do oráculo como acróstico, temos shm‘n = Simão. Como os dados bélicos do salmo não se encaixam nas etapas indicadas, alguns descem até as revoltas dos macabeus, ou inclusive até a instauração da monarquia asmonéia, a partir do terceiro dos macabeus, Simão, que foi comandante supremo do exército, sumo sacerdote e governador com pode res absolutos; e a seu filho nomeou rei (lM c 13-14). O salmo seria a legitimação litúrgica de sua dupla autoridade; dever-se-á ler em relaçãG com o elogio de lMc 14,4-15: 5 6 7 Acrescentou a seus títulos de glória a conquista de Jafa com o seu porto, abrindo assim caminho para o tráfego marítimo. Estendeu as fronteiras de sua pátria, apossou-se do país. Apoderou-se de Guézer, Betsur e da Acrópole; não houve quem lhe resistisse. Estudo global 9 13 1355 Os moços vestiram gloriosos uniformes militares. Acabou com os inimigos no país, em seu tempo os reis acabavam derrotados. O espírito bélico do salmo adata-se bem às gestas dos macabeus; mas, se temos que julgar pelo texto hebraico do Eclesiástico, o estilo do salmo está a muita distância. — Os dois poderes. O salmo inclui duas introduções: uma de oráculo, outra dejuramento (la.4a). Aprimeira fala do poder real, a segundo do poder sacerdotal. A primeira dirige-se ao rei — digamos a Davi —, a segunda ao sacerdote — digamos a Sadoc —. Apurando esses dados, Rowley põe o salmo no momento do estabelecimento de Jerusalém, com suas instituições, como capital do novo reino. Ainda mais: imagina que o oráculo é dito por Sadoc a Davi, selando com oráculo sacerdotal o poder real; ojuramento é pronunciado por Davi para Sadoc, reconhecendo-lhe sua dignidade sacerdotal vitalícia. A divisão dos dois poderes é assim sancionada desde o começo. Séculos mais tarde, dará testemunho dela Zacarias e defendê-la-á polemicamente o cronista (2Cr 26,16). O rei de Judá nunca terá o título de kohen, ainda que exerça algumas cerimônias públicas ocasionais. Nessa interpretação, se o relato de Gn 14 foi produzido para justificar o translado de Jerusalém ao reino de Israel, por que fantasiaram um rei sacerdote? Responderiam que para frisar o contraste: o que Melquisedec concentrava numa pessoa, os israelitas vão separar cuidadosamente. — E comum às três linhas de interpretação buscar uma conjuntura histórica para explicar a origem e o teor do salmo. Quanto mais querem precisar as circunstâncias, mais duvidosa torna-se a explicação. Em oposi ção às três apresenta-se a hipótese de considerar o salmo como peça de repertório, para ocasiões semelhantes repetidas, como ocorre com o:Sl 45. Mas resta sem explicação o sacerdócio, a não ser que se tome o termo kohen em sentido metafórico, equivalente a “ungido”, ou restringindo-o à função de “bendizer”, o que faz Melquisedec. Em vista dessas dificuldades, resta como último recurso considerar o salmo como messiânico em sua origem, com uma visão do Messias englo bando todos os poderes históricos e institucionais de Israel. Não se deve confundir isso com a leitura messiânica do salmo em tempo posterior à sua composição; leitura de que não podemos duvidar. c) Composição Os dois elementos introdutórios indicam claramente a divisão ê® salmo em duas partes: “oráculo”, “jurou”. O uso de formas verbais ® pronominais definem ulteriormente o salmo pela distribuição de papéis.. 1356 Salmo 11C Quem pronuncia de fato as duas introduções e por elas o resto dc salmo? O óbvio é pensar que a mesma pessoa, o presidente da liturgia ou cerimônia. (Vimos a teoria diversa de Rowley). Imediatamente depois de cada introdução, pronuncia as palavras Yhwh, dirigindo-se em segunda pessoa ao eleito. Em seguida, o chefe da cerimônia ou um encarregado especial amplia o texto falando em segunda pessoa ao eleito. Assim chega mos até 5a. A partir de 5b, os verbos estão em terceira pessoa: quem é o sujeito? Em 5b-6 é ambíguo, pode ser ’adonay ou o rei. Do v. 7: “beber da torrente” tem que ser sujeito o rei, e, não tendo outra indicação nem mudança de sujeito, o lógico é que seja o mesmo o sujeito de 5b-6, o rei. Com o que temos que os versículos 5-7 não comentam o sacerdócio, mas a atividade militar do monarca. Ou seja, que a divisão do salmo em duas partes pelo conteúdo é de todo irregular. O tema do sacerdócio fica isolado e sem comentário no centro do salmo. Tendo em conta a polaridade clássica de “sentar-se / caminhar” (Dt 6,7), o salmo começa e termina com a dupla atividade do rei: “sentado” no trono, indo “a caminho”. Por proximidade, essa polaridade arrasta a outra: “de Sião / a imensa terra” (2a.6b). Acrescenta-se o duplo “à direita” corr mudança de ponto de vista: o rei à direita do Senhor sentado, o Senhor à direita do rei lutando. Menos importância tem outra polaridade: os pés pisando, a cabeça alta (lb.7b). Esses dados acumulados mostram no autor uma vontade construtiva que se manifesta na disposição de superfície rigorosa. A que acrescem os problemas textuais com que nos depararemos na exegese. 5. Exegese la. A direita é o lugar privilegiado, de honra ou de autoridade (lRs 2,19, Betsabéia à direita de Salomão como rainha-mãe). O rei é lugartenente do Senhor. Alguns autores perguntam-se se é precioso tomá-lo ao pé da letra, topograficamente; argumentam que o palácio real estava construído à suleste do templo, ou seja, à direita. No SI 80,18, o eleito chama-se “o homem de tua destra”. Sentar-se implica um trono: o tema real é transparente. lb . Em sentido material, o escabelo onde o rei apóia os pés pode levar talhadas ou pintadas figuras de inimigos vencidos (como se vê no museu egípcio de Cairo). Em sentido realista, pôr o pé sobre o vencido é rito de vitória: Exegese 1357 Josué disse a seus oficiais: Aproximai-vos e pisai o pescoço desses reis (Js 10,24). “O Senhor ia pondo seus inimigos debaixo de seus pés (lR s 5,17); cf. SI 18,39. 2. Segundo o SI 45, o cetro é “reto”, simbolizando a retidão ou justiça no governo; aqui é “poderoso”, afirmando a força (não há referência à justiça nesse salmo). Sião converte-se na capital de reino a que pagam tributos reis vassalos. Pelo contexto do salmo, os inimigos são externos (o SI 18 menciona va inimigos externos e internos). E o Senhor que dilata o poder do rei de Judá. 3. Eis um versículo impossível de explicar: arena em que se exercita o engenho dos filólogos sem que nenhum dê com a solução. O número das propostas é diretamente proporcional às dificuldades do texto. Podemos reduzir as explicações a dois grupos principais: militar, de entronização. — Explicação militar, ‘m significa povo e pode significar exército (SI 45,6. DBHE ‘m 11,1); ndbt pode ter função adjetiva, um exército de voluntários, soldados entusiastas: “pelos voluntários do povo / exército” ibhtndb ‘m, Jz 5,2.9). Sendo hyl o exército,ywm hyl é o dia da mobilização, quando o rei convoca ou revista suas tropas (cf. lRs 20,1; Is 43,17). hdry qdsh pode ser a “sacra majestade” do rei ou uma manifestação divina de proteção antes da batalha. Como penhor de consagração e dom de valentia militar, o rei recebe a bênção celeste em forma de rocio matutino, como frescor adolescente. Segundo essa explicação, o v. 3 continua o precedente e desenvolve-se no ternário final. O salmo é intensamente militarizado; a guerra é o centro da atividade régia, como nos SI 20-21. — Entronização ou investidura. A investidura real é vista como um nascimento ou adoção por parte de Deus. Em vez de hylk lê-se hllk, o dia que foste gerado (SI 90,2; 51,7; Jó 15,7; Pr 8,24). yldtyk vocaliza-se como primeira pessoa, “eu te gerei”; rhm é seio materno; mrhm pode ser “de nascimento” (Is 46,3; Jr 20,17; SI 58,4). Em torno desses três elementos constrói-se ou conjetura-se o resto até obter uma espécie de nascimento celeste. Feito isso, as peças restantes admitem interpretações diversas: do seio da aurora, como a aurora gera o rocio, assim eu te gerei; de nascimento mrhm, investidura) recebes a sacra majestade. Essa é a linha que seguiram as versões grega e latina. Ou leram outro texto ou introduziram correções. O resultado é uma versão misteriosa pelo que tem de enigmática, que convida a imaginar um fato transcendente. Dentro de ambas as explicações, cabem múltiplas variações, segundo o significado que se atribua a cada palavra e sua função sintática em cada fra se. Pensava-se que o rocio descia do céu como a chuva e era sinal de bênção; uma vez que aparece em contexto agressivo (Aquitofel, 2Sm 17,12), quer des- 1358 Salmo 110 crever a descida sigilosa e simultânea. Jó pergunta: Quem gera as gotas do rocio? (hwlyd, 38,28). A propósito de shhr - aurora, cita-se um texto curioso (Ecl 11,12) que chama a meninice e a juventude de hayyaldüt weshahrüt. 4a. Não se arrepende, não volta atrás (ISm 15,11.15). 4b. O relato de Gn 14 contém muitos enigmas para poder explicar a breve alusão do salmo. A maioria considera-o relato etiológico inserido no Pentateuco para justificar ou explicar alguma instituição: poderes sacerdo tais, paga de dízimos, Jerusalém como capital... O sacerdócio perpétuo é concedido a Aarão e seus filhos em Ex 40,15, a Finéias em Nm 25,13. 5-6. Depois do intermédio sacerdotal, voltamos ao contexto bélico. O Senhor assiste à direita do rei protegendo-o, como a Moisés (Is 63,12), como ao orante (SI 16,8; 121,5). Ao definir o sujeito dos verbos que seguem, oferecem-se três soluções: a) continua sendo sujeito Adonai, como pede a sintaxe, o qual derrota os reis e julga / governa os povos (cf. SI 7,9); b) é sujeito o rei, que exerce as ações com a ajuda do Senhor, e assim realiza o que diz o v. 2; isso supõe mudança de sujeito e passagem da segunda para a terceira pessoa; c) em disposição artificiosa e conhecida, de fórmula A B / A’ B’, cabem a Deus 5a e o primeiro sintagma de 6, o resto toca ao rei. Outra pergunta: são duas atividades diversas a guerra e o governo, ou executa-se o julgamento na guerra? Distinguir corresponde à colocação inicial, que distingue “sentar-se” no trono e “dominar na batalha”. Identi ficar corresponde ao modelo do SI 76, que apresenta a derrota do inimigo como julgamento e execução da ira de Deus. Os contatos entre ambos os salmos são notáveis: Sião como centro, os guerreiros, a ira, o julgamento, os nobres. Duas diferenças notáveis: no SI 76 destroem-se as armas antes que os soldados (a não ser que o sono signifique a morte); no SI 76, o rei humano não intervém. A visão violenta e prazeirosa da guerra pode-se ilustrar com exemplos bíblicos e extrabíblicos. Do saltério: 18,38-43; 21,9-11; da literatura profé tica: Hab 3,12-14 e oráculos contra povos pagãos; de textos provavelmente escatológicos: Is 34,5-8; 63,1-6; Ez 39; de textos narrativos: Nm 31,1-12. Da literatura do Egito e da Mesopotâmia escolhemos algumas amostras: Das campanhas de Seti (cerca de 1318-1301): “Goza marchando para o combate ... Seu coração desfruta vendo sangue. Corta a cabeça aos malvados. Prefere um momento pisoteando a um dia de festa” (ANET 254A). Das campanhas de Assurbanipal II (883-859): “Desbaratei-os, derrubei suas muralhas, incendiei as cidades; os sobreviventes eu os empalei diante das cidades” (ANET 276). Transposição cristã 1359 Das campanhas de Salmanasar III (858-824): “Assaltei a cidade e a conquistei; matei a fio de espada trezentos de seus soldados. Derrotei-os e reduzi a escombros suas cidades. Cobri a grande planície de cadáveres de soldados... Tingi de sangue como lã as montanhas” (ANET 277). “A planície era estreita para dar passagem às almas que desciam (ao inferno); a extensão não deu para sepultá-los. Com seus cadáveres, antes que houvesse ponte, fez vadeável o Orontes” (ANET 279). O autor do salmo parece contagiar-se desse espírito belicista que se compraz em contar as baixas inimigas. 7. O versículo final é perfeitamente claro no texto e obscuro em sua referência. Que rito é este de beber água? De que torrente se fala? Talvez seja o mais acertado tomá-lo em seu sentido óbvio, que podemos parafrasear: o soldado na campanha (drk) está sedento e desfalecido; depara-se em seu caminho com uma torrente providencial de que bebe em abundância; recupera as forças, sente-se vigorizado e segue adiante com a cabeça erguida. Ou, fortalecido com a água, derrota o inimigo e levanta a cabeça como vencedor. Os soldados de Gedeão (Jz 7,4-6) oferecem um exemplo afim; a sede caprichosa de Davi (2Sm 23,15-17) ilustra um aspecto. Outros comentadores buscam sentido ritual ao beber e sentido metafórico à torrente: para as duas coisas podem-se encontrar paralelos no AT. 6. Transposição cristã E curioso que um salmo tão militarista seja um dos preferidos do Novo Testamento. Mas se fez necessária dupla operação: selecionar alguns versículos e mudar a identificação dos inimigos. Ofereço aqui materiais, remetendo o leitor para a bibliografia especia lizada. Sobre o versículo 1: M t 22,41-46; Mc 12,35-37; Lc 20,41-44. M t 26,64. Diante do Grande Conselho, Jesus aplica a si mesmo combina dos 110 com Dn 7,13 sentado à direita e vindo nas nuvens. Paralelos: Mc 14,61-64. Lc 22,69 cita só 110,1. Mc 16,19: “O Senhor Jesus subiu ao céu e sentou-se à direita de Deus”. A t 2,34-35. Pedro no pentecostes cita o v. 1. Rm 8,34: “O que morreu, ou melhor, que ressuscitou, o mesmo que está à direita de Deus”. ICor 15,25-26. No capítulo sobre a ressurreição de Cristo e do cristão, Paulo cita uma frase de 110,1 e oferece nova identificação dos “inimigos”: “Porque seu reinado tem que durar até que ponha todos os seus inimigos debaixo de seus pés; como último inimigo aniqulará a morte; pois tudo submeteu a seus pés”. Salmo 110 E f 1,20: “Ressuscitando-o e sentando-o à sua direita no céu, 21 acima de toda soberania ... 22 Tudo submeteu debaixo de seus pés”. Cl 3,1: “Se resuscitastes com Cristo, buscai o de cima, onde Cristo está sentado à direita de Deus”. lPd 3,22 cita livremente o v. 1: “fundado na ressurreição de Jesus Cristo, a quem se submeteram anjos, autoridades e poderes, chegou ao céu e está à direita de Deus”. A carta aos Hebreus utiliza e explora o versículo 4 do salmo. Aplica-o ao sacerdócio de Cristo, que não é de estirpe levítica, mas da linha de Melquisedc (5,6); nomeado ou proclamado por Deus (5,10), com validade perpétua (6,10). Todo o capítulo 7 da carta é comentário ao versículo 4 do salmo, levando em conta Gn 14. Não é estranho que a liturgia e os Santos Padres tenham empregado esse salmo como um dos principais textos messiânicos. Salmo 111 1. Texto 1 Aleluia. Dou graças ao Senhor de todo o coração no conselho dos retos e na assembléia. 2 Grandes são as obras do Senhor, dignas de estudo para os que as amam. 3 Sua ação é magnífica e esplêndida, sua justiça sempre se afirma. 4 Faz recordar suas maravilhas: o Senhor é piedoso e clemente. 5 Dá o alimento a seus fiéis, recordando-se sempre de sua aliança. 6 Mostrou a seu povo a eficácia de sua ação dando-lhe a herança dos pagãos. 7 Suas obras são verdade e justiça, todos os seus preceitos merecem confiança1; 8 são válidos para sempre e eternamente, hão de se cumprir fiel e retamente. 9 Enviou a redenção a seu povo, ratificou para sempre a aliança, seu nome é sagrado e temível. 10 Primícia de sensatez é respeitar o Senhor, têm bom juízo os que o realizam2. O elogio do Senhor dura para sempre. 2. B ibliografia J. de Cantanzero, Fear, knowledge and love: a study in OTpiety, CanJT 9(1963)166-173. W. Zimmerli, Zwillingspsalmen, em Studien zur alttestamentlichen Theologie und Prophetie, Munique, 1974, 261-271. 1são de se fiar 2põe em obra 1362 Salmo 111 J. D. Koster, Gods grote weken: Gods grote daden. Opmerkingen er. bescouwingen over en naar anleidning van Ps 111,2, N edThT33 (1979) 1026. P. Auffret, Essai sur la structure littéraire des Ps 111 et 112, V T 30 (1980 257-279. J. Schildenberger, Das Psalmenpaar 111 und 11, ErAuf 56 (1980) 203207. S. Lach, Le sens de l’attribut hannun à la lumière des Psaumes, FolOr 21 (1980)93-102. 3. Análise filológica 2. drwshym: particip modal exquirenda Jerôn a maioria. hpçyhm: exquisita in omnes voluntates eius Vg, expedita ad Agélio. perfecte facta pro sua voluntate vel excitantia ad faciendam eius voluntatem Sa, para todas as suas funções Halévy Ehrlich; lê partie Dah; Ikl segundo Hitz Phil. 7. n’mnym: partie modal. 8. partie com valor de gerundivo Weiser Kraus; wyshr lêem subst yosher Gr Jerôn Sim. Salmos 111-112 Esses dois salmos apresentam-se-nos como dois irmãos gêmeos e pedem-nos primeiro um olhar de conjunto. Se considerarmos a composição alfabética como gênero à parte, os dois fazem companhia a 9-10,25,34,37,119 e 145.0 específico desses dois é que aplicam o esquema alfabético aos hemistíquios, e assim resultam de onze versículos normais. O acróstico alfabético pode servir para guiar a memória. O autor vê no artifício uma afirmação de totalidade: o alfabeto inteiro, em ordem rigoro sa, é convocado a serviço da prece. Como todo começo é dominante para os hebreus, cada linha ou sentença é regida por uma letra do alfabeto, à qual se submete. De passagem, o artifício pode mostrar a argúcia e destreza do poeta (nada espetaculares). O autor destes dois salmos quis competir em brevidade, como o autor do 119 em comprimento. A idéia de ordenar de modo estável as letras de um alfabeto e por elas os fonemas de uma língua é própria de culturas que usam a escrita. Um passo a mais é utilizar essa ordem convencional para ordenar uma série de idéias ou inclusive para produzi-las ou recordá-las. (Lembro-me de jogo de Estudo global 1363 minha infância em que um, lançando a outro do grupo um sinal dizia: “de Havana veio um navio carregado de dizia um objeto, e os demais que iam recebendo o sinal tinham que nomear outro objeto que começasse com a mesma letra). Minha lembrança não é de todo inoportuna, uma vez que o artifício alfabético tem não pouco de jogo. O segundo salmo buscou mudar os começos (em nosso jogo não se permitia repetir uma palavra); contudo, em três versículos o começo é igual: wh s. Descontando partículas, mais de um terço das palavras de ambos os salmos coincidem, o que é considerável, dado que cada linha contém três ou quando muito quatro palavras. Há uma linha em que aparece uma vez no primeiro salmo e duas vezes no segundo, talvez reclamando a hegemonia. Se atendermos ao conteúdo, os dois salmos pertencem a gêneros diversos. O primeiro, como indicam começo e final, encontra-se entre ação de graças e hino; o segundo apresenta-se como bem-aventurança do honrado, contraposta à sorte do malvado. O primeiro é dedicado a Deus, o segundo ao homem em relação com Deus. Tal colocação permite correspondência sutil e sugestiva, pois o segun do refere ao homem o que o primero refere a Deus. Adiantemos algum exemplo. A frase repetida sobre “sua justiça / generosidade”: em 111 é a de Deus, em 112 a do homem; em 111 são estáveis / seguros os preceitos de Deus, em 112 é-o o homem; o verbo ntn = dar diz-se de Deus em 111, do homem em 112; a retidão predica-se de Deus em 111, do homem em 112; finalmente, a perpetuidade de Deus de 111 transfere-se a seu modo ao homem em 112. 4. Estudo global . Composição e estilo — A estrutura de superfície do salmo é o alfabeto, que, como vimos, não favorece arquitetura bem planejada. Cabe perguntar, porém, se há no salmo algum princípio de unidade, alguma idéia condutora que trave e dê consistência ao rosário de sentenças. Pois bem, há uma reiteração que salta à vista, dada a brevidade do texto: a raiz ‘sh fazer, com o sinônimo p ‘l. Uniformizando a tradução para reproduzir o efeito original, temos: 2a ações do Senhor, 3a sua obra, 4a faz maravilhas, 6a suas ações, 7a as ações de suas mãos, 8b feitos (particípio), 10b os que o fazem. Sete menções em breve espaço de 22 sentenças sóbrias é coeficiente sugestivo, quase um terço. A reiteração tem um reverso, ou seja, generaliza em vez de enumerar ações concretas, como fazem outros hinos (compare-se, por exemplo, com o SI 1364 Salmo 111 136). O salmo é reflexivo, não descritivo; é como que um balanço sóbrio, de entradas globais. Há, porém, um grupo de ações que parecem rondar a mente do autor e que se acham polarizadas pelo tema da “aliança”, mencionada em 5b e 9b. Ao redor da aliança gravitam as “maravilhas” da libertação do povo, os atributos divinos “piedoso e clemente”, a comida (no deserto), a terra entregue, os mandamentos, o “nome” respeitável, o título “povo seu”. Vaga ou formalmente, o autor está polarizado pela “recordação que Deus estabe leceu” (4a). Se o salmo for tardio, como parece, os elementos mencionados formam na consciência do israelita uma constelação tácita, que não é preciso tematizar cada vez. E o leitor que precisa tomar consciência disso. Outro tema reiterado é o da perpetuidade: Vwlm em 5b.8a.9b, l‘d em 3b.8a. 10a. Perpetuidade para o autor não significa atemporalidade, mas duração eficaz de fatos na memória, de instituições em sua validez. Perpétua é a aliança com seus preceitos, perdurável deve ser o louvor. O orante atualiza o passado na recordação e na meditação, sem anunciar nem contar nem proclamar. O salmo tem certo ar de recolhimento. Quase no fim (10ab), duas linhas atraem sem violência um tema sapiencial. O autor parece compartilhar de certa forma da concepção tardia que unifica e quase identifica hkmh com twrh, sensatez com lei. O que fazem explícito as últimas linhas, está difundido por todo o texto, que soa com tonalidade sapiencial. — O estilo do salmo é prevalentemente nominal: a um substantivo ou nome aplica-se um predicado sem cópula explícita. O predicado pode ser adje tivo ou particípio ou substantivo. Adjetivo e particípio: grandes, de estudar, de fiar-se, válidos, de cumprir-se; piedoso, clemente, sagrado, temível. Substantivos: honra e dignidade (3), verdade e justiça (para o substantivo como predicado, compare-se com o português “o que dizes é verdade”). Um salmo que medita e exalta as ações do Senhor quase não lhe atribui verbos: fez, deu, recordou, mostrou, enviou, mandou: em vinte e duas sentenças, e segundo os cânones hebraicos, é proporção muito baixa. Em vez de dizer “redimiu”, diz “redenção”; em vez de prometer “louvarei”, diz “louvor”. Os enunciados ficam como que congelados em forma de provérbios ou aforismos. 5. Exegese la . Como 9,2; 86,12 e 118,1. A expressão de “todo o coração” é típica do Deuteronômio e tem seu lugar privilegiado em Dt 6,5; retoma-a (como não?) o SI 119,34.58.145. Podemos deixá-la passar como frase feita, podemos dar- Exegese 1365 lhe toda a intensidade que significa em si. É o ponto de partida de todo o salmo: o rosário de aforismos quer ser expressão cordial. lb . Não é corrente chamar a comunidade de swd. Quando Pr 3,32 diz ’tyshrym swd, com as mesmas palavras diz outra coisa, ou seja, que os “retos” gozam da “confiança / confidência” de Deus; versão ética do que diz em versão religiosa o SI 25,14. O salmista descreve a assembléia como “congregação de homens retos”, retirando o cultual para segundo plano. 2a. Dada a pobreza de adjetivos da língua hebraica, gdwl é um dos mais genéricos que se possa escolher. Como adjetivo e em formas verbais os salmos o predicam com freqüência de Deus e de suas obras. 2b. Tomo o verbo drsh no significado tardio de estudar, que se coagula na expressão bet midrash = escola. O particípio passivo equivale a um gerundivo: que se devem estudar, dignas de estudo. Encontramos o subs tantivo hpç no SI 1,2 com o significado de ocupação, deleite. Assim se perfila o caráter do grupo convocado. 3a. p ‘l significa obra e ação, com freqüência tem valor coletivo. Deus manifesta sua ação (SI 90,16), o homem medita sobre ela (143,5), anunciaa (64,10). A hendíade aliterada hwd whdr é freqüente e genérica: honra e dignidade, majestade e glória, fasto e esplendor... 3b. Também é em si genérico çdqh, embora seu significado básico seja justiça. Pode designar qualidade ou virtude da pessoa, ação concreta ou conjunto delas. Predomina o aspecto benéfico, de justiça em favor do necessitado. Diz lapidarmente Sb 1,15: “A justiça é imortal”. 4a. O sintagma ‘sh zkr é único no AT e não tem parentes próximos. Não significa que Deus recorda, mas que estabelece a recordação, faz com que os homens se recordem. Mudando as funções, chegamos à equivalên cia “faz maravilhas memoráveis”, em linha com o “dignas de estudo” do v. 2b. 4b. Talvez por razões métricas, reduz a dois termos a predicação clássica do Senhor (texto clássico: Ex 34,6). A grandeza e majestade adquirem nesse versículo tom afetuoso e entranhável. 5a. Tomo-o como alusão concentrada ao caminho pelo deserto. E raro chamar trp o alimento humano, pois ordinariamente significa a presa das feras. Tem um único paralelo exato no abecê da boa dona de casa (Pr 31,15). 5b. O Senhor recorda sem falta, tem sempre presente, não falta à sua aliança. A expressão é freqüente a partir de Ex 2,24 e 6,5. Muitas vezes refere-se a situações e tempos difíceis, quando a recordação da aliança motiva a intervenção de Deus. (Podem-se consultar Lv 26,42; Jr 14,21; SI 105,8; 106,45). 1366 Salmo 111 6a. kwh é aqui a força ou eficácia de sua ação; em Ex 9,16, Deus fazse ver ou sentir-se ao Faraó. E curioso que neste salmo não haja projeção para fora, para os povos. 6b. Somente figuram nesse aspecto negativo: tira-se-lhes sua heran ça para entragá-la ao povo eleito. Nisso empregou e manifestou sua eficácia. Em contexto pós-exílico, provável, inclui a posse recuperada do território, pela ação poderosa de Deus e de acordo com as promessas da aliança. 7a. O binário ’mt wmshpt é inusitado (alguns riscam uma palavra); tem vaga aparência de hsd wmshpt do SI 101,1. O sentido aproximado parece ser: o que ele faz é autêntico e justo, corresponde a verdade e direito. 7b.pqwdym é um dos oito sinônimos de mandatos do SI 119; fora dele, lêse apenas aqui e no SI 19,9; 103,108. Inspiram confiança, pode-se ater a eles. 8a. Mantêm sua validez perdurável como a aliança, não são abolidos nem derrogados. 8b. Particípio passivo com valor de gerundivo: hão de se cumprir com exatidão e sinceridade, não os torcendo nem os falsificando. Compare-se com: “falsificou-a a pena falsa dos escrivães” (Jr 8,8). 9a. O substantivo abstrato pdwt é raro (Is 50,2 e SI 130; muito duvidoso, Ex 8,19). O verbo é relativamente freqüente, sobretudo no saltério. Em contexto pós-exílico pode referir-se à repatriação. 9b. O verbo çwh significa aqui estabelecer, constituir; está mais próximo de hqym do que de krt. A não ser que escutemos no verbo alusão aos mandamentos. Compare-se com Dt 4,13 (texto tardio), cuja tradução literal soa assim: “comunicou-vos a aliança que vos manda cumprir os dez mandamentos”. 9c. E o nome revelado para a invocação e protegido de abusos; nome que é preciso respeitar e santificar. Só a menção deve infundir temor reverenciai. 10a.Este provérbio lê-se com leves variações em Pr 1,7; 9,10; 15,33; Jó 28,28 e Eclo 1,14. Primícia: “é o princípio e o principal, cabeçalho e recapitulação, cifra e síntese” (Provérbios, 158). 10b. Também procede do mundo sapiencial (skl twb), cujo sentido é difícil de definir (Pr 3,4 e 13,15). Como qualidade parece designar o bomjuízo, o senso comum; como resultado parece indicar o acerto; acompanha hn favor, contrapõe-se a ele a perfídia. Uma expressão semelhante é twb skl = sensata (Abigail, ISm 25,3). O sufixo plural refere-se aos mandamentos. 10c. Diz o SI 84,5: “Felizes os que habitam em tua casa louvando-te sempre”; e o SI 48,11 lhe dá extensão universal. O autor pensa que o louvor do Senhor transmitir-se-á de geração em geração sem jamais cessar. Transposição cristã 1367 6. Transposição cristã O autor parece não saber nada da “nova aliança” que anunciou Jr 31,31, pois conta com a perpetuidade de uma só. Os cristãos que se apropriam desse salmo pensarão logicamente na “nova e eterna aliança”. Pode-se meditar em sua realização terrena e em sua consumação celeste. Assim Agostinho projeta no céu o louvor perpétuo: “De que são redimidos senão do cativeiro da presente peregrinação? Não se deve buscar descanso a não ser na pátria celeste”. Sobre o v. 5 comenta: “O alimento incorruptível, o pão que desce do céu e dá-se não por méritos ... Ninguém daria tal alimento senão o Senhor Piedoso e Compassivo”. Lucas reparte dois versículos do salmo entre o Benedictus e o Mag nificat: “enviou a redenção ... seu nome é santo” (1,68.49). Salmo 112 1. Texto 1 Aleluia. Feliz quem respeita o Senhor e é entusiasta de seus mandatos. 2 Sua linhagem será poderosa na terra, a descendência dos retos será bendita. 3 Em sua casa haverá riquezas e abundância, sua justiça afirma-se sempre1. 4 Nas trevas amanhece para os retos o Piedoso e Clemente e Justo. 5 Feliz o homem que tem piedade e empresta e administra retamente seus assuntos: 6 porque não vacilará jamais e será perpétua a recordação do honrado. 7 Não temerá as más notícias2; sente-se firme confiante no Senhor. 8 Seu ânimo está firme, sem temer, até ver derrotados seus inimigos. 9 Distribui esmola aos pobres, sua justiça sempre se afirma3 levantará o chifre com honra4. 10 O malvado ao vê-lo irritar-se-á, rangerá os dentes até consumir-se. A ambição do malvado fracassará. 2. Bibliografia (Veja-se o salmo precedente). J. Jacquet, Le bonheur du juste. Ps 112, BVC 38 (1961) 35-42. L. Bolzani, Fermezza del giusto, ParVi 10 (1965) 431-436. 'dura 2 a má fama 3seu mérito é duradouro 4 a fronte com dignidade Estudo global 1369 J. K. Kuntz, The retribution motive in Psalmic wisdom, Z A W 89 (1977) 223-233. S. K. Sherwood, Ps 112 - a royal wisdom Psalm?, CBQ 51 (1989) 50-64. 3. Análise filológica 4. wçdyk: suprimem w- para torná-lo sujeito Duhm Buhl Gun. 5. dbryw: seus assuntos ou seus pleitos Gun. 8. yr’h b-: DBHE r’h 5. 10. wnms: nif de mss. 4. Estudo global • Gênero, composição e estilo — Pelo começo, o salmo é uma bem-aventurança, do tipo dos SI 1,32 e 41. A fórmula inicial ’shry prolonga-se em dois sinônimos: bênção (2b) e felicidade (5a); para a equivalência, veja-se SI 128,1-2. Uma bem-aventurança típica ajusta-se ao esquema “feliz o que C — porque será / terá X”. O sujeito enuncia ou descreve uma conduta, a partícula “porque” pode ficar implícita (substituída por: na tradução); a segunda parte do esquema especifica algum bem como conseqüência da mencionada conduta. Ainda que se mencione a intervenção de Deus, a relação entre conduta e felicidade é de conseqüência antes que de retribui ção. Ou, se quisermos, atua retribuição imanente. Elimina-se a Deus? Não, porque é ele quem estabeleceu de antemão essa relação de conseqüência. Vejamos algum exemplo: Jó 5,17 18 Pr 8,34 SI 41,2 Feliz o homem a quem Deus corrige ... porque o fere e venda a ferida. Feliz o homem que me escuta ... quem me alcança, alcança a vida. Feliz o que cuida do desvalido: no dia aziago pô-lo-á a salvo o Senhor. O NT propõe-nos bem-aventuranças em série (Mt 5); Lucas contrapõe bem-aventuranças e mal-aventuranças (Lc 6). — O esquema básico do gênero governa o desenvolvimento do salmo. Do começo a 9c alternam sem total regularidade uma conduta e suas conseqüências (l-4.5-8.9a-c). As conseqüências ocupam mais espaço. Atrás delas e com enlace suave, vem uma mal-aventurança, também articulada em conduta e conseqüências. 1370 Salmo 112 Como no salmo precedente, perguntamos se o artifício alfabético gera simples série ou se rege alguma idéia central. A primeira fase de conduta é genérica e programática: fidelidade ao Senhor e a seus mandamentos. A segunda especifica: “quem tem piedade e empresta”; a mesma coisa a terceira: “distribui esmola”. A seqüência é significativa: o autor sugere que a fidelidade ao Senhor realiza-se no amor ao próximo necessitado. No Levítico, o Senhor convida: “sede santos como eu sou santo”; o SI 112 poder-se-ia sintetizar assim: “feliz o que é compassivo porque o Senhor é com passivo”. Este enfoque do salmo obriga-nos a nos perguntar sobre o signifi cado de çdq, honradez ou generosidade ou esmola. Discuti-lo-ei na exegese. — O estilo desse salmo é semelhante ao do anterior no tom aforístico e em algumas sentenças nominais. Há mais travação, segundo o esquema indicado. Em conjunto, o estilo é muito mais verbal e ativo, tendo o homem como sujeito. A ligação está explícita duas vezes. — Passando revista nas bênçãos ou bens enumerados, notamos a ausência de alguns tópicos da aliança: posse da terra (cf. 111,6b), vida longa. O salmo menciona: autoridade e prestígio, riquezas, segurança, descendência, recordação. Podem-se comparar com os bens que promete a Sensatez em Pr 3 e 8. 5. Exegese la . Assume de 111,10a o respeito ou reverência ao Senhor para propôlo como programa de vida feliz (cf. 128,1). lb . Em paralelo rigoroso com respeito, segundo a mentalidade tardia, está a observância dos mandamentos. Não usa o termo raro de 111,7, mas o clássico de Dt. Numa exortação de Ben Sira temos essas duas frases: Eclo 2,15 Os que respeitam o Senhor não desobedecem a suas palavras. 9 Vós, que respeitais o Senhor, esperai bens. O salmo cunha uma expressão nova (hpç m’d): ocupam-se diligente mente, são entusiastas. (Um m’d que traduzirá em termos quantitativos o SI 119). A primeira dita mencionada refere-se à descendência. E estranho prometer que “tua descendência / descendente será guerreiro na terra / no país”. Se não se debilitou o sentido militar de gbwr, será melhor ler gbyr, como nàbênção testamentária de Isaac a seu filho Jacó (Gn 27,29): significa autoridade sobre outras pessoas. Pode significar simplesmente um cargo de governo na administração local, o que com outras palavras diz Pr 31,23. Compare-se com Jr 9,2: gbrw b’rç = dominam o país. Exegese 1371 2a. dor designa um grupo definido por alguma qualidade, aqui a retidão; a frase faz eco a 111,1b (swd yshrym). Compare-se com SI 14,5 e 24,6.0 sujeito agente da bênção é Deus (passiva teológica). Abênção divina é central no salmo sapiencial e alfabético 37. 2b. hôn é palavra típica de Provérbios (18 vezes de 26); não tão própria é ‘shr. A idéia repete-se em textos sapienciais, atribuindo os bens à Sensatez: Pr 3,16 8,18 21 22,4 na esquerda traz honra e riquezas (‘shr wkbwd). eu trago riquezas, glória, fortuna copiosa (‘shr hwn). para legar riquezas a meus amigos e cumular seus tesouros. Atrás das pegadas da humildade e do respeito ao Senhor caminham riqueza, honra e vida. 3b. Primeira pergunta: continua a série de bens ou começa outra ronda de conduta? A copulatia w- favorece o primeiro; mas w- está condicionado pelo artifício alfabético, çdqh significa uma virtude, uma conduta, não um bem de que se desfruta. Pode-se argüir que o bem reside no predicado, na estabilidade de uma conduta: sua honradez será duradoura, perpétua. A explicação parece-me forçada; penso que o versículo refere-se à conduta. Segunda pergunta: o que significa çdqh aqui e neste salmo? O significa do específico de base é justiça e se alarga para honradez; em textos tardios desloca-se para generosidade e chega a significar esmola; por exemplo: Eclo 3,30 29,12 A água apaga o fogo ardente. a esmola expia o pecado. Guarda esmolas em tua dispensa, e elas te guardarão de todo mal. (cf. Provérbios, 257s). Sobre a permanência da esmola e de suas conseqüên cias para outra geração diz o mesmo Eclesiástico: 3,14 A esmola do pai não será esquecida, será tida em conta para pagar teus pecados. Para defender o significado simples de justiça, pode-se aduzir Sb 1,15: "a justiça é imortal” (a imortalidade é tema dominante da primeira parte desse livro). Segundo essa analogia, a frase do salmo equivaleria a: “sua honradez é valor permanente”, valor que não passa. 4a. Luz e retidão. Para o homem honrado, inocente, amanhece uma manhã libertadora em que se pronuncia sentença em seu favor (SI 5,4; 17,15; talvez 57,12). O tema e as palavras pronunciam-se em favor do homem generoso em Is 58,10: quando repartires teu pão com o faminto e saciares o estômago do indigente, brilhará tua luz nas trevas, tua escuridão tornar-se-á como meio-dia. (Vejam-se Is 9,1 e Ml 3,20). 1372 Salmo 112 4b. Quem é o sujeito, Deus ou o honrado? A predicação “clemente e compassivo” é própria de Deus, acabamos de escutá-la em 111,4b. Um judeu que ouve essas duas palavras unidas, sem duvidar aplica-as a Deus, se não há razões fortes em contrário. Creio que essas não existem. A luz que brilha no escuro é esse Deus Piedoso e Compassivo (assim o entenderam e formularam alguns manuscritos antigos). Contra se propõe ler çdyq como sujeito; mas o texto o introduz com copulativa, e o predicado çdyq não é alheio a Deus (Ex 9,27; Dt 32,4; Is 45,21; SI 116,5; 119,137, etc.). Insiste-se citando o SI 97,11: “amanhece a luz para os honrados”; mas, embora as palavras sejam idênticas, a construção é de todo diversa. 5a. Isso sim, da compaixão divina o homem aprende a compadecer-se e emprestar, ainda que seja a fundo perdido. Quase o mesmo diz o SI 37,26; mais agudo Pr 11,24: “Quem tem piedade do pobre, empresta ao Senhor”. 5b. Tomo dbr no sentido menos freqüente de assunto. Dando preferên cia ao significado mais corrente do termo, alguns interpretam: mantém sua palavra, cumpre sua promessa; equivalente do SI 15,4b: “não retrata”. 6a. Não vacilará-, é corrente no saltério, com negação bal. Veja-se Pr 10,30, que é quase igual, e com imagem de arraigar (Pr 12,3). 6b. Sua recordação conserva-se em sua família e em seu povo. De modo semelhante diz Pr 10,7: “bendita a memória do honrado”; o contrário em SI 9,7; Jó 18,17. 7a. Aconselha Jr 51,46: “Não vos acovardeis nem temais pelas notícias que se propalam”; pondera-se o valor de boa notícia em Pr 15,30 e 25,25. 7b-8b. Ampliam o tema da segurança, que procede do confiar no Senhor, apesar da perseguição do inimigo. O autor quis acumular três particípios passivos e por issso introduz o anômalo btwh. Deparamo-nos com o consabido jogo yr’ / r’h. 9b. Distribui. Diz Pr 11,24: Há quem distribui e aumenta seu haver, quem retém o que deve e empobrece. Sobre a atenção devida ao pobre, vejam-se Pr 14,21 e 31,20. 9c. Sobre a imagem do chifre, veja-se o comentário ao SI 75. 10. Ranger os dentes é em geral gesto agressivo, de burla ou ameaça aqui se torna inofensivo. O malvado não pode suportar o triunfo do honrado. O salmo termina com a mesma palavra que o SI 1. O grande fracasso do malvado é que não se realize o quanto deseja, pois diz Pr 13,12: “Desejo que se cumpre é árvore da vida”. Os paralelos acumulados na exegese fazem sentir o caráter sapiencial do salmo. Transposição cristã 1373 6. T ransposição cristã Em seu bilhete para promover a coleta em favor dos cristãos necessi tados de Jerusalém, Paulo cita os versos 9ab. Do bilhete cito um parágrafo inteiro: 2Cor 9,6 Recordai aquilo: semeadura mesquinha, colheita mesquinha; semeadura generosa, colheita generosa (Pr ll,2 4 s ). 7 Cada um dê do que tiver decidido em consciência, não com pena nem por compromisso, pois Deus agradece a quem dá de bom grado (Pr 22,8); 8 e Deus tem poder para cumular-vos de todo tipo de favores, de modo que, além de ter sempre e em tudo plena suficiência, vos sobre para todo tipo de boas obras. Como diz a Escritura: Distribui esmola aos pobres, sua esmola é constante, sem falta. 10 O que subministra semente para semear e pão para comer (Is 55,10), subministrará e fará crescer vossa semeadura e multiplicará a colheita de vossa esmola; sereis ricos de tudo para serdes generosos em tudo, e essa generosidade, passando por vossas mãos, produz ação de graças a Deus. Fixando-nos na generosidade do homem como imitação da divina, podemos recordar o conselho evangélico: “Sede perfeitos como vosso Pai do céu é perfeito” (Mt 5,48); sentença que foi explicada antes: “para ser filhos de vosso Pai do céu, que faz sair seu sol sobre maus e bons e manda chuva sobre justos e injustos”. Essa observação de “fazer sair o sol”, de fazer amanhecer a luz, não corrige a limitação do SI 112,4, que diz “para os bons”? Salmo 113 1. Texto 1. 2 3 4 Aleluia. Louvai, servos do Senhor, louvai o nome do Senhor. Bendito seja o nome do Senhor agora e para sempre. Da saída do sol até o ocaso, seja louvado o nome do Senhor. O Senhor eleva-se sobre todos os povos, sua glória sobre os céus. Quem como o Senhor nosso Deus, que eleva seu trono, e abaixa o olhar, no céu e na terra? 5 6 7 8 9 Levanta do pó o desvalido, eleva do lixo o pobre, para sentá-lo com os nobres, com os nobres de seu povo; e põe à frente da casa a estéril, mãe feliz de filhos. Aleluia. 2. Bibliografia I. W . Stotky, Omnipresence, condescension and omniscience in Ps 113,5JTS 32 (1931) 367-370. A . Vaccari, Hyperbaton in Ps 1 1 3 1112,5-6, VT 20 (1940) 181-182. S. E. Loevenstamm, Ps 113,2, Tarbiz 32 (1962-63) 313-316. J. T. Willis, The song o f Hannah and Ps 113, CGQ 35 (1973) 139-154. M. J. Minella, A Christian look ot Ps 113, BiTo 72 (1974) 1613-1618. J. A. Loader, A structural analysis ofP s 113, Die OT Werkgemeenkap van Suid-Afrika 19 (1976) 57-68. D. N. Freedman, Ps 113 and the song o f Hanna, Eretzlsr 14 (1978) 56-69. 6, Estudo global 1375 N. Tromp, Hij is niet ver van ieder vann ons. Een inleiding tot hed bidden Ons GeestLev 56 (1979) 50-51. D. Marcus, The barren womanofPs 113 and the housewife: an antiphrastic dysphemism, JANES 11 (1979) 81-84. M. Kaspi, Moshbi ‘aqqeret’ em habbanim semeha, BetMik25 (1979-1980) 365-366. P. C. Craigie, Ps 113, Interpr 39 (1985) 70-74. K. K. Sacon, A methodological remark on exegesis and preaching oPs 113, Nihon no Shingaku 25 (1986) 26-42. Sobre o Hallel: Salmos 113-118 L. Finkelstein, The origin o f the Hallel (Ps 113-118), HUCA23 (1950-51) 319-337. S. Zeitlin, The Hallel, JQR 53 (1962-63) 22-29. Y. Bazak, The six chapters o f the Hallel. The numerological orna mentation and formal structure (Psalms 113-118), BetMik 34 (1989-1990) 182-191. van Ps 113,9, 3. Análise filológica 1. ‘bdy: vocativo pl Gr Aq Sím Teod Jerôn. 5b. enlaçando com 6a em posição quiástica Allen; particípios em -y GK 90 m. 8. Ihwshyby: lêem suf 3a pess Gr Jerôn Sím Graetz Duhm Gun Kraus. 9. mwshyby. corrige para mshyby (de shwb) Well. 4. Estudo global a) Gênero e situação Diz-nos o começo que se trata de hino dedicado ao nome de Yhwh e a um aspecto de sua ação entre os homens. A ocasião é típica: os dois casos descritos são genéricos e não permitem deduzir uma situação definida. b) O nome do Senhor Nós costumamos distinguir entre nome próprio e comum: Fernando, cedro. Os hebreus, sem trabalhar com categorias gramaticais, sabiam distinguir de modo empírico. Todavia, podiam impor nomes comuns como próprios de pessoa: Gazela, Abelha, Pomba, e empregavam nomes comuns em topónimos: Costa dos Escorpiões, Fonte do Cabrito. Impor nomes a um ser é fixar sua existência e natureza. Recorde-se o começo do mito acádico da criação Enuma Elis: 1376 Salmo 113 “Quando no alto o céu ainda não tinha sido nomeado, quando no fundo o solo ainda não tinha sido nomeado ... Quando não tinham sido criados deuses nem se lhes tinham dado nomes nem fixado seu destino ... Lahmu e Lahamdu foram criados e receberam um nome”. No primeiro capítulo do Gênesis, o próprio Deus encarrega-se de ir pondo nomes às criaturas: noite, dia, mar ... No capítulo 2 passa a tarefa a Adão, que põe nomes corretos nos animais. Quem põe nome a Deus? E “Deus” nome próprio ou comum? Se se aceita alguma forma de politeísmo, tem que haver um nome comum para esses seres que compartilham da natureza divina. Os sumários falavam dos Igigu e dos Anunnaka, nome comum ou coletivo; os hebreus chamam-nos de elohim, uma vez que aceitam por certo tempo a existência de deuses de outros povos. Ora, o nome comum não serve para identificar um indivíduo ou pessoa, é preciso um nome próprio e pessoal. Quem o impõe? Não é competência do homem, tem que ser Deus mesmo no ato de identificar-se. Pode recusar esse tipo de informação, como em Gn 32,30 e Jz 13,6.17-18: Manué perguntou-lhe: como te chamas? Para que, quando se cumprir tua promessa, te façamos um obséquio. O anjo do Senhor contestou: Por que me perguntas meu nome? E Misterioso. Em outras ocasiões pronuncia seu nome: em Ex 3, quando Moisés lhe pede a identificação; em Ex 34, quando Moisés solicita uma revelação. O nome próprio escreve-se com quatro letras (tetragrammaton), e nós conjeturamos a pronúncia Yahwé (soa o h). Ao comunicar seu nome, Deus se arrisca: dá-o para o uso, expõe-no ao abuso. Por isso acrescenta um mandamento que o proteja: o homem não deve usá-lo em falso nem profaná-lo. Conhecer o nome comum de grupo de seres é tomar posse intelectual deles. Conhecer o nome próprio de pessoa é porta para o trato com ela. Com respeito a Deus, o homem pode doravante “tomar esse nome nos lábios”, pode invoca-lo qr’ shm (freqüente), respeitálo (SI 86,11), ou temê-lo (SI 102,16), pode louvá-lo e bendizê-lo, inclusive amá-lo (Is 56,5). Também pode dar a seus filhos nomes teofóricos, que tomam como componente o nome divino: Yirmiyahu, Yehoyqim; pode tatuar o nome no antebraço (Is 44,5). Nesse contexto espiritual insere-se o SI 113, com sua quádrupla repetição do nome na primeria secção (1-3). Um nome ou vários? Num extremo ponhamos os cinquenta nomes (ou títulos) de Marduk ao ser reconhecido como Deus supremo; noutro extremo, o anúncio (tardio) de Zc 14,9: O Senhor (Yhwh) será rei de todo o mundo. Naquele dia o Senhor será único, e seu nome único. Estudo global 1377 O nome próprio do Deus de Israel é Yahwe. Com bastante freqüência chamam-no também elohim , ’eloh, sh a d d a y (de significado desconhecido), ‘elyôn (título usado como nome próprio), ’el (nome do Deus supremo). O SI 113 quer exaltar o nome pessoal, único, supremo (imaginemos que o autor se chamava Semias). c) A ação d o S en h or Fixamo-nos na ação do Senhor como se descreve nos três últimos versículos (7-9), comparando-a com dois textos paralelos famosos. O autor seleciona duas situações de inferior-idade, de estar em baixo, de humilha ção (hum iliare / hum ilare vem de h u m u s = terra), e apresenta a Deus mudando essa situação para superior-idade, elevação. O miserável é nomeado conselheiro ou senador, a estéril dá à luz e “reina” no lar: campo sociopolítico e campo familiar, oposição e mudança de situação. E provável que este salmo seja posterior ao cântico de Ana (ISm 2). Alguns pensam que o SI 113,7 foi acrescentado em segunda instância ao cântico de Ana (versículo 8), o qual opera com três oposições e três mudanças correlativas de situação (4-5). Valente-derrotado / covardevitorioso; rico-mendigando / pobretão-farto; estéril-mãe / mãe-esgotada. Três situações e três mudanças análogas, do campo militar, econômico e familiar. O Magnificat (Lc 1,52-53) assume a fórmula de oposição e mu dança correlativa de situação, e ilustra-a no campo sociopolítico e no econômico (o da maternidade encontra-se no contexto imediato). O salmo afasta-se de ambos porque assume só a ação de exaltar, não a oposta. Com uma exceção estranha, paradoxal: há alguém alto e exaltado que, por própria iniciativa e bondade, “abaixa-se” para elevar os humildes. É o Senhor, o de nome sublime, que não desmerece descendo, condescendendo, mas que por isso mesmo merece antes maior louvor. Para completar o quadro de paralelos, teríamos que citar Jó 12 (fala Jó despeitado), que descreve a Deus como complacente em arruinar e despojar e privar. No que mostra sua força. d) C om posição e estilo — Pode-se dividir o salmo em duas partes desiguais: o louvor do nome 1-3), a descrição de seu modo de ser e agir (4-9). A segunda parte pode-se subdividir em duas: o Senhor no céu (4-6), sua ação na terra (7-9). Dessa forma temos três estrofes de três versos cada uma. Um princípio significativo de composição (não meramente formal) são as coordenadas de tempo e espaço: desde agora para sempre, do levante ao poente, em cima e em baixo. Já vimos a função decisiva da última. Tanto 1378 Salmo 113 que os versículos 7-9 teriam perfeito sentido como comentário ao nome ou título divino ‘elyôn = Altíssimo, Sublime. Daí não podemos deduzir que o poema estivesse dedicado em sua origem ao Deus Elion e que mais tarde tenha sido adatado a Yhwh; só podemos suspeitar que o autor tinha mentalmente presente esse título de seu Deus. — Traço notável de estilo é o duplo quiasmo de 2-3 e de 5-6. Alguns propuseram reordenar 5-6, passando o quarto hemistíquio ao segundo lugar; o que é tirar-lhe a graça. E preciso escutar o segundo quiasmo orientados pelo primeiro, como mostra o seguinte esquema (versão literal): o nome bendito desde agora para sempre do levante ao poente louvado o nome Quem como o Senhor? que eleva para sentar-se que desce para olhar no céu e na terra? Outro particular de estilo são as repetições. Antes de tudo o nome repetido 4 + 2 vezes, hll 3 vezes, shm duas vezes e ressoando em shmsh e shmym\yshb três vezes e ressoa em shpt; h lltrês vezes. Podem-se escutar as aliterações de 2b e 3, e outros efeitos sonoros de consoantes e vogais ao longo do texto. A redação do breve poema é primorosamente elaborada, como que para compensar a falta de imagens impressionantes. 5. Exegese 1.0 nome de Deus é uma de suas meditações, como ml’k,pnym, kbwd, dbr: louvar o nome é louvar a pessoa. O nome pronunciado dirige o louvor. Servos podem ser em geral os israelitas, em particular um grupo sacerdotal. 2. Nessa cadeia perpétua insere-se o texto do salmo para ser repetido. O de menos é o agora, o de mais é a perpetuidade. 3. Se o orante quer abarcar toda a terra, por que não acrescenta de norte a sul? Porque segue o movimento do sol, que abarca em seu percurso todo o mundo (SI 19). Então, o que dizer da viagem noturna do sol? Que é uma viagem subterrânea, por um reino onde não se louva a Deus. 4. Comparando o SI 97,9 com o 99,2, observávamos que um fala da exaltação dé Yhwh sobre todos os deuses e o outro sobre todos os povos; o presente salmo vai com o segundo, não dando lugar a outras divindades. Yhwh é único, e único é seu nome, dizia-nos Zc 14,9. Ao orante interessa aqui a “glória” celeste de Deus; compare-se com o canto dos serafins: “aterra está cheia de sua glória” (Is 6). 5-6. Pelo artifício do quiasmo temos que escutar mentalmente unidos “quem como Iahweh — nos céus e na terra” (cf. SI 86,8; 89,9). Um bom comentário a esse versículo lê-se em Is 57,15: Exegese 1379 Assim diz o Alto e Excelso, o sentado no trono, cujo nome é santo: Estou sentado na altura sagrada, mas estou com os de ânimo humilde e quebrantado para reanimar os humildes, para reanimar o coração quebrantado. Estar sentado indica a dignidade real. Sobre o olhar de Deus combina mos dois textos da parte final de Isaías: 63,15 66,2 Observa do céu, olha de sua morada santa e gloriosa ... Nele porei meus olhos: no humilde e abatido. 7-9. Dois autores sapienciais parecem temer as mudanças de fortuna, porque olham o assunto com outros olhos e temem as conseqüências. Pr 30 oferece-nos essa série numérica: 21 Por três coisas treme a terra e a quarta não a pode suportar: servo que chega a rei, idiota farto de pão, aborrecida que encontra marido, serva que sucede a sua senhora. 22 23 O autor desses versículos pensa em ânimo servil, em sentimento de despeito e desquite, a vingança de rebaixar e enxovalhar o nobre. No lugar da ‘‘aborrecida” poder-se-ia pôr a estéril a quem o marido despreza. O outro texto procede do Eclesiastes: 10,5 6 Há um mal que vi sob o sol, um erro de que é responsável o soberano: o ignorante ocupa postos altos enquanto nobres e ricos se sentam em baixo; vi escravos a cavalo ao passo que príncipes iam a pé como escravos. Também esse autor teme a vileza, a ignorância ressentida e armada de poder. Ambos os textos iluminam por contraste o final do SI 113. 7-8. No SI 107,41 líamos: “Levanta os pobres da miséria”, referindo-se à condição do povo, enquanto o salmo fala de indivíduo típico. Pobres e indi gentes viviam da caridade pública, sem voz nem autoridade para intervir nos assuntos públicos (não pertence a época imemorial a legislação que reserva va o direito de voto aos que possuíam terras). Deus faz com que participem do conselho ou senado, administrando os assuntos locais ou nacionais. 9. A nova mãe dá-lhe um assento, ou seja, um posto de autoridade nos assuntos domésticos. Como ensina Pr 31, a casa é o reino da mãe, ao passo 1380 Salmo 113 que o marido ocupa-se dos assuntos públicos. Os filhos são sua alegria. Esgota-se o sentido nessa figura individual e típica? Is 54,1-3 dá-nos uma pista para alargar o alcance do versículo; veja-se também Is 49,20-21. Esses textos de Isaías e outros semelhantes ensinam-nos que é fácil ler o SI 113 em perspectiva nacional: o pobre e desvalido é o povo judeu submetido e explorado, a estéril é a comunidade diminuída. Deus fixa-se neles para mudar sua sorte. Tal é o estilo do Deus que se chama Yhwh e tem o título de Altíssimo. 6. T ransposição cristã O movimento de abaixar chega ao extremo na encarnação do Filho de Deus. O hino de Filipenses é a melhor tradução cristã do movimento do SI 113, com um sentido insuspeitável, inimaginável: 2,6 7 8 9 10 11 Apesar de sua condição divina, não fez alarde de ser igual a Deus, mas esvaziou-se de si e tomou a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens. E mostrando-se em figura humana, humilhou-se, fez-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe concedeu um título superior a todo título, para que, perante o título de Jesus, todo joelho se dobre, no céu, na terra e no abismo; e toda língua confesse para a glória de Deus Pai: Jesus Cristo é o Senhor! A isso enlaça a doutrina sobre a humildade: “quem se humilha será exaltado”, e algumas bem-aventuranças. Por meditação do texto de Is 54 e sua citação em G14,27, passamos a uma leitura eclesiológica do salmo, aplicando o último versículo à Igreja. Dois “gozos” conhece a Igreja: o amor do Esposo (Sf 3,17) e o número dos filhos. Salmo 114 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 Ao sair Israel do Egito, Jacó de um povo balbuciante, foi Judá seu santuário, Israel seu domínio. O mar, ao vê-los, fugiu, e o Jordão retrocedeu1 Os montes saltaram como carneiros, as colinas como cordeiros. — O que te sucede, ó mar, para fugires; a ti, Jordão, para retrocederes ? A vós, montes, para saltardes como carneiros; colinas, para saltardes como cordeiros ? Na presença de seu Dono estremece a terra, na presença do Deus de Jacó, que transforma a rocha em lagos, a pedreira em mananciais. 2. Bibliografia H. van den Bussche, Psahymne: Ps 114, CoIBibGand 3 (1957) 77-82. H. Lubszcyk, Einheit und heilsgeschichtlithe Bedeutung vonPs 114/ 115, BZ 11 (1967) 161-173. F. I. Andersen, Biconsonantal by forms o f weak Hebrew roots, ZAW 82 (1970) 270-275. R. Rutherford, Ps 113 (114-115)and Christianburial, StPatr 13(1975)391-396. B. 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Estudo global a) Gênero e situação Ninguém duvidará que esse salmo seja hino de louvor a Deus pela libertação do Egito; o que ocorre é que esse salmo prescinde de todos os câno nes tradicionais do gênero. Não há convite a participantes, nem dedicatória ao Senhor, nem fórmula de motivação. O Senhor esconde-se primeiro nos possessivos sem antecendente e pelo final se apresenta com dois títulos (o contrário do salmo precedente). O orante quer cantar seu fervor e entusias mo religioso e, como não lhe vale o modelo costumeiro, cria sua forma pessoal. Sabemos que o salmo foi cantado e continua sendo cantado como hino pascal, mas não sabemos se nasceu com esse destino nem quando começou esse costume. Inegável é só seu caráter alegre e festivo. b) O Deus transformador Costumamos aplicar em português o termo “transformador” a enor mes instalações ou a cômodos aparelhos que servem para domesticar energias elétricas colossais e muito potentes. Para entender o salmo, detemo-nos nesse terreno da energia e transformação: transformador é o título atribuído ao Senhor no último versículo do poema. A saída do Egito é o momento fundacional de Israel, assim como tam bém o artigo fundamental de sua fé. O esquema do êxodo, com suas va riações, serve para entender e interpretar outras libertações passadas ou futuras. Como tal aplicar-se-á a eventos díspares. O relato do êxodo é uma epopéia no Pentateuco, clara no traçado, complexa no desenvolvimento. Seus momentos decisivos são a saída do Egito e a entrada em Canaã. Pois Estudo global 1383 bem, o poeta transformará a épica em lírica, abarcando e concentrando. O que mais o impressiona é o dinamismo dos eventos. Já começa na saída, sem tempo para a peleja intensa e tenaz das dez pragas. Ao pôr-se em movimento um povo, transforma-se, e a mudança provoca novas mudanças colossais. O poeta não segue os movimentos, lentos meandros do povo pelo deserto, mas projeta o movimento em criaturas inertes, intensificando assim o efeito de potência com dimensões cósmicas. Contagiado de dinamismo, o poeta não soube encerrar-se em molde preestabelecido. Quis concentrar-se em pouco espaço para obter poesia de alta voltagem. Audazmente abarca um horizonte dilatado e controla-o com visão unitária: nas duas peças de um paralelismo emparelham-se mar Vermelho e Jordão, agrupam-se montanhas e colinas. De repente, o lirismo torna-se dramático, quando o poeta depara-se com seres inertes que se agitam e os apostrofa. Como um dia Josué ao sol e á lua. As criaturas não respondem verbalmente; toca ao poeta descobrir que uma presença misteriosa desencadeou o colossal dinamismo: o Deus transformador. O primeiro capítulo do Gênesis apresenta-nos o mundo criado como cosmo, por separação de funções, fixação de natureza e imposição de nomes. A bênção, dinamismo dos seres vivos, atuará “segundo suas espécies”. Tudo fica definido, de sorte que qualquer mudança violenta é catástrofe (katastrepho = transtornar, inverter). A apocalíptica explora o mecanismo das catástrofes ou mudanças. O que encontramos no salmo e em textos semelhantes é a suspensão ou mudança de funções para libertação de um povo. Por isso o melhor comentário do salmo a esse respeito é um texto tardio, o final do livro da Sabedoria. Seu autor, judeu grego da diáspora alexandrina, canta a potência transmutadora do Senhor e resolve-a em harmonia musical. E preciso citar o texto inteiro de Sb 19: 18 19 20 21 22 Os elementos da natureza intercambiavam-se suas propriedades, da mesma forma como na harpa, continuando igual o tom, mudam as cordas o caráter da música, como se pode coligir exatamente à vista do que passou; pois os seres terrestes tornavam-se aquáticos e os que nadam passeavam pela terra; o fogo acrescentava sua própria virtude na água e a água esquecia sua condição de extintor; as chamas, pelo contrário, não abrasavam as carnes dos frágeis animais que por ali perambulavam, nem derretiam aquela espécie de manjar divino, cristalino e solúvel. Porque em tudo, Senhor, enalteceste e glorificaste teu povo, e nunca nem em nenhum lugar deixaste de olhar por ele e socor rê-lo. 1384 Salmo 114 Também o poeta é transformador. Como o poeta do SI 77, não lhe interessa imitação fiel, mesmo estilizada, da realidade, mas cria mundo poético novo em que se revelam sentidos da história de outra maneira recônditos. Na exegese ampliarei alguns desses aspectos. 5. Exegese 1. Este infinitivo constructo de yç’ com preposição b- encontra-se nove vezes no AT: nem em todas começa frase, só aqui começa um texto. Dessa for ma, o poema começa em plena ação, mas ação sintaticamente subordinada a uma transformação. A saída pode-se estreitar na fronteira geográfica, ao cruzar o mar Vermelho, como conta Ex 14 e canta Ex 15. Em muitos casos, e aqui tam bém, a saída é o movimento inteiro de abandonar e afastar-se difinitivamente. O Egito é para o poeta um “povo de língua estranha”. Outros fixam-se na escravidão (mbyt cbdym), outros nas cargas (sbl) dos trabalhos forçados. Por que seleciona o poeta esse dado pelo que parece tão pouco dramático? Talvez sofra pela incapacidade de comunicar-se, talvez inclua o Egito na esfera da confusão babilónica. Uma língua incompreensível considera-se maldição de Deus (Dt 28,49-50). Is 28,11 33,19 com língua balbuciante, em linguagem estranha. Não tornarás a ver o povo insolente, um povo de linguagem ininteligível de falar obscuro e sem sentido. Jr 5,15. Por isso na grande conversão do Egito, um dos primeiros passos é: “Naquele dia haverá no Egito cinco cidades que falarão a língua de Canaã” (Is 19,18). 2. Alguns interpretam Judá e Israel como os territórios respectivos. Eu creio que se refere às duas partes do povo. Se bem que o nome Israel seja mais ambíguo, quando se usa o nome de Judá para designar seu território, costuma levar alguma determinação: terra de, cidades de, em; ou outra indicação contextuai. Tomo o binário como em ISm 18,16; lRs 4,20.25; Jr 51,5. Por exigência do paralelismo, o autor articula nas duas partes tradi cionais o que considera unidade indivisível. Os dois predicados aplicam-se aos dois sujeitos: ambos são ao mesmo tempo e por igual “santuário e reino / domínio”; “povo santo e reino sacerdo tal” (Ex 19,6). Nas andanças pelo deserto, uma tenda, a tenda do encontro, era o santuário móvel da comunidade; no salmo é a comunidade o santuário móvel. Dão-se duas interpretações a esse versículo: a) quando Israel saiu do Egito, no fim da viagem e do assentamento na terra, constitui-se o território em santuário e reino do Senhor; b) pelo caminho da saída, o povo era o Transposição cristã 1385 santuário móvel, o reino itinerante do Senhor. Em ambas as interpreta ções, o mais importante é a transformação (yhy l- = chegou a ser, converteuse em). Uma massa de escravos, ao ser libertados, converte-se em santuá rio, âmbito móvel da presença divina. De certa forma, eles transportam a presença grandiosa do Senhor: sente-o a natureza e se ressente. 3. O mar Vermelho foge como exército derrotado. Desapareceram do salmo o Faraó e seu exército, a coluna de fogo e nuvem. O inimigo é o mar hostil, que se põe em fuga. O poeta transforma os dados de Ex 14-15, sem deixar ressonâncias mitológicas do oceano ou caos primordial. O Jordão não é agressivo, mas defensivo, como barreira natural que obstrui a passagem. Ao chegar o “santuário”, o povo e não a arca, o rio dá meia volta e flui leito acima. Segundo Js 2-3, a água “se detém”. 4. A nota sóbria de Ex 19,18: “a montanha tremia” transforma-se poeticamente. O desmesurado faz-se doméstico, entre festivo e assustadi ço. As montanhas, antigas e bem aprumadas, soltam-se de seus postos e entregam-se a movimentos vivos e caprichosos: o que lhes aconteceu? 5-6. Os movimentos inusitados provocam o estupor: estupor calculado pelo poeta ou sentido em ato poético. A figura retórica ou poética de apostrofar seres inertes não é freqüente no AT. O exemplo mais próximo é o SI 68,17, às montanhas de Basã. Nos SI 98 e 148 trata-se antes de convocação litúrgica ao louvor. Se dermos a rqd o sentido raro e tardio de “dançar” (Davi diante da arca, lCr 15,29), as montanhas executam a dança sacra que corresponde aos homens. Mas a comparação com cabras e cordeiros não recomenda essa interpretação. 7 .0 versículo responde. Se rios e montanhas provocaram o estupor do poeta, é porque estremeceram ao sentir a presença de seu amo, o Deus de Jacó. Que o estremecimento da terra seja de parto parece-me precisar demais. Não o recomendam os textos semelhantes do verbo hyl com sujeito "rç (Jr 51,29; SI 96,9; 97,4; o verbo está em hofal em Is 66,8). A terra já é seca e árida; quanto mais rocha e pedreira. Pois bem, Deus transforma o mais renitente e estéril em fonte de vida (compare-se com Is 35). Lagos e mananciais tranformam o deserto em terra de cultivo; por isso o último versículo inaugura uma era de felicidade e abundância. O final é começo. 6. Transposição cristã Diz Santo Agostinho que o autor do salmo, ao transformar os fatos e o relato do êxodo, dá a entender que se refere a outro êxodo futuro; pelo que devemos lê-lo como texto de salvação realizada ou de esperança de consu- 1386 Salmo 114 mação. Salmo da nova páscoa e da páscoa celeste, definitiva. O poema, com suas imagens originais, é rico de insinuações. Comecemos pelo lugar ou situação de onde é preciso sair, simbolizado pelo Egito: idolatria, paganismo, sistemas de falsos valores. E toda a espiritualidade da “saída”, até a fórmula ascética “sair de si mesmo”. Segue o tema do novo santuário da presença de Deus na história: primeiro em Jesus Messias, depois na Igreja como povo seu. Presença de Deus misteriosa, que podem sentir as fortes barreiras e os altos obstáculos. As grandes “correntes” do sentir e pensar podem mudar seu curso ao sentir sua presença; o que parecia ser a coisa mais sólida parece cambalear. Porque avança o Deus capaz de mudar tudo: e quem põe limites a seu poder transformador? Se do ventre fechado de Maria faz brotar manancial de vida nova e celeste; se da mente obstinada de Saulo fará brotar torrente de doutrina vivicante ... Apliquemos o título de transformador ao Espírito Santo, segundo Sb 7,22.27: E um espírito inteligente, santo, único, múltiplo ... sem mudar em nada, renova o universo. e rezemos: Lava o que é sórdido, rega o que é árido, cura o enfermiço; dobra o rígido, aquece o frígido, guia o torcido. Pensando no Espírito Santo, voltemos ao primeiro versículo, à desgra ça de não entender a língua. Sair do Egito remediava o problema? No dia de Pentecostes, o Espírito anula a maldição de Babel, inspirando mensa gem e língua que todos entendem, “cada um na sua língua”. Uma língua que não se entende não é sinal do mistério cristão; antes, uma língua que se entende põe-nos de frente ao mistério inesgotável. Como diz um teólogo espanhol do século XVI: “O que se manifestou em línguas, em todas quer ser escutado”. Salmo 115 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Não a nós, Senhor, não a nós! Dá honra a teu nome, por tua leladade e tua fidelidade. Por que hão de dizer os pagãos: Onde está seu Deus ? — Nosso Deus está nos céus e fez tudo o que quis. Seus ídolos são prata e ouro, feitura de mãos humanas: têm boca e não falam, têm olhos e não vêem, têm orelhas e não ouvem, têm nariz e não cheiram, têm mãos e não tocam, têm pés e não andam, não tem voz sua garganta. Sejam como eles os que os fabricam e todos os que confiam neles. Israel, confia no Senhor: ele é seu auxílio e seu escudo. Casa de Aarão, confiai no Senhor: ele é seu auxílio e seu escudo. Fiéis do Senhor, confiai no Senhor: ele é seu auxílio e seu escudo. O Senhor lembra-se de nós e nos abençoa: bendiga a Casa de Israel, bendiga a Casa de Aarão; bendiga os féis do Senhor, pequenos e grandes. Que o Senhor vos multiplique, a vós e a vossos filhos; 1388 Salmo 115 15 benditos sejais do Senhor, que fez o céu e a terra. 16 O céu pertence ao Senhor, a terra ele a deu aos homens. 17 Os mortos já não louvam ao Senhor nem os que descem ao silêncio. 18 Mas nós bendizemos ao Senhor agora e para sempre. Aleluia. 2. Bibliografia J. Fichtner, D erATText der Sapientia Salomonis, ZAW 57 (1939) 183-184. P. W . Skehan, Borrowing from the Psalms in the Book ofW isdom , CBQ 10 (1948) 384-397. K. Luke, The setting o fP s 115, IrTQ 34 (1967) 347-357. H. Lubszcyk (veja-se o salmo anterior). M. Gilbert, La critique des dieux dans le livre da la Sagesse (Sg 13-15 . Roma, 1973, 82-83.234-237. K. Waaijman, De hemel is de heml van God, de <iarde heeft Hij aan de mensen gegeven (Ps 115), Schrift 67 (1980) 10-15. A. Hurvitz, The history ofa legal formula: kol ’asher hapeç ‘asa (Ps 115,3: 135,6), VT 32 (1982) 257-267. 3. Análise filológica 3. Gr acrescenta no céu e na terra (segundo 135,6). 4. Gr lê os ídolos dos pagãos (segundo 135,15). 8. yhyw: com valor volitivo. 9. bth: leu indicativo Gr. 12. ybrk: lê indicativo Allen. 4. Estudo global a) Gênero e situação Aquilo com que mais parece esse salmo é com um hino, porque busca a glória de Deus. Logicamente, no louvor expressa-se a fé em sua pessoa e obras. Do louvor passa-se suavemente ã bênção, que equivale à ação de graças. Da fé desliza-se suavemente para a confiança. Por muito suaves que sejam os deslocamentos, não ajudam a manter o rigor de gênero definido e único. Também o salmo não se atém à forma e ao esquema tradicionais do hino. À profissão de confiança acresecenta-se uma bênção divina, que descora ainda mais o gênero do hino. Estudo global 1389 A variedade de elementos e a liberdade formal de sua organização levam-nos a considerar o salmo como ação litúrgica, capaz de unificar contextualmente atos e formas diversos. Não temos meios para reconstruir o desenvolvimento orignal da cerimônia; sendo asssim, todas as “reconstru ções” propostas por alguns comentadores são pautas ou sugestões para uma execução atual desse texto. Ou seja, ato legítimo de apropriação, não descrição do fato histórico. A situação donde emerge essa oração é o desterro: uma série de indí cios, que irei ampliando, convergem nessa conjuntura espiritual. Não consta que se compusesse para uma uma cerimônia particular conhecida. O autor parte do primeiro mandamento, completado com o segundo, quase fundidos em unidade. A isso acrescenta a recordação do Deus criador de acordo com o começo do Pentateuco (Gn 1). b) Primeiro mandamento e idolatria O primeiro mandamento proíbe aos israelitas ter outros deuses rivais de Yhwh; o segundo proíbe fabricar imagens de Yhwh ou de qualquer divindade. Antes do desterro, o problema religioso capital, como o sentem os profetas, era o culto a Baal ou aos Baais. O episódio do bezerro de ouro no Sinai e o culto correspondente em Betei ilustram a tendência popular de fabricar imagens de seu Deus para tê-lo presente. No desterro a na diáspora muda a situação. Na Babilônia, os deporta dos são residentes de segunda categoria. Não possuem templo central nem santuários locais dedicados a seu Deus nacional, pois o templo está em Jerusalém, em ruínas. Também não levaram para o desterro imagens transportáveis de seu Deus, porque não as têm nem as fabricam: é-lhes proibido. Em contraste, o panteão babilónico é nutrido e de milenária tradição; as diversas divindades contam com santuários locais e suas estátuas são veneradas com grande solenidade. Um juízo histórico super ficial diz que o Deus protetor da Babilônia derrotou o Deus de Judá. A quem perguntasse a um babilônio: onde está tal ou tal divindade?, este lhe res ponderia sem duvidar indicando a cidade e o santuário. Nesse clima nasce a polêmica antidolátrica, que pode apresentar duas formas: uma mais popular e superficial, centrada no culto das imagens e sua identificação não crítica com a divindade; outra mais metafísica, que desmascara a nulidade ontológica das supostas divindades. O Segundo Isaías é o grande expoente exílico de ambas as formas: à primeira dedica especialmente 44,12-20 e 46,1-7, a segunda atravessa toda a sua pregação. O SI 115 assume a primeira forma da polêmica e dramatiza-a para obter triunfo fácil e irônico, ainda que rico de implicações. Como os judeus 1390 Salmo 115 deportados recusam ou não estão autorizados a participar do culto dos deuses babilónicos, os novos amos lhes perguntam, misturando curiosida de com burla: “onde está o vosso Deus?” Os judeus não podem apontar um lugar de seu desterro nem tampouco o templo de Jerusalém; mas essa carência ou aparente ausência serve-lhes de trampolim para remontar ao mais alto e lançar daí sua resposta ad hominem: Nosso Deus está no céu e fez céu e terra; vossos deuses estão na terra, e fizeram-nos os homens; o nosso tem querer e poder, os vossos são inertes. E verdade que as pessoas ilustradas do país poderiam replicar que seus deuses estavam no céu e que Marduk criara o universo, e que as estátuas eram meras representações dos deuses celestes ou infernais. O autor do salmo não lhes concede vez para replicar, com o que a polêmica, em vez de proceder com razões, esgota-se na burla. As implicações do texto são mais ricas que sua superfície. Uma é a necessidade ou costume do homem de ver para reconhecer a presença: uma como que estrutura sacramental. Ou pelo menos a dialética de presença e representação. Outra é a capacidade ou tendência do homo faber a fabricar o que quer que seja, também imagens que imitam a realidade. Ora, se Deus faz o homem, o homem não pode fazer Deus. — Mas pode fazer imagens de Deus. — Sim; mas começando a fazer imagens de Deus, corre o risco de fazer deuses à sua imagem, e assim o homo faber acaba fabricante de deuses. Aí terminam as implicações, condicionadas pela legislação religiosa de Israel. Não continuaram a crítica. Os que proíbem toda imagem plástica, inclusive de seu Deus, são pródigos de imagens literárias, poéticas, e das imagens mentais de seu Deus. Como vimos, comentando o SI 82, as imagens mentais de Deus, sendo necessárias, podem revelar-se mais perigosas, porque se expõem menos à crítica. Dizer que Deus “está no céu”, que é “nosso escudo” são imagens mentais da divindade. Não é implicação, mas enunciado, o dado de assemelhar-se: vê-lo-emos ao comentar o versículo 8. c) O Deus criador de Gn 1 Os egípcios com sua milenária tradição, os babilônios herdeiros da cultura suméria e acádica, cananeus e outros podiam ter explicado ao autor do salmo como suas respectivas divindades criaram outros deuses e o universo. Do Egito podiam contar a criação pelo “coração / mente e a língua”; ou, segundo outra versão mais grosseira e enérgica, pelo cuspe ou pela masturbação do deus Re (baseada em fisiologia deficiente e na fascinação Exegese 1391 pela misteriosa fecundidade humana) (ANET 6B). Da Babilônia contariam como Marduk dividiu o cadáver de Tiamat em duas metades, “como as valvas de uma concha”, fazendo de uma o céu e da outra (supõe-se) em baixo a terra; e do sangue do chefe rebelde, a humanidade (ANET 67-68). O autor do salmo não polemiza neste terreno. Ele conta tranqüilamen te com a versão de Gn 1, dela extraindo vários elementos. Como dado primário e global, a criação de céu e terra, substituindo br’ por ‘sh; a criação do homem ampliada em vários pormenores: a “imagem” de Deus, a bênção que faz crescer e multiplicar-se, o domínio da terra (8.12.14.16). (O tema dos mortos procede de outro contexto). Nada parecido podem fazer os ídolos estrangeiros. Na ação litúrgica atualiza-se o processo da criação do homem. d) Composição e estilo — Após breve introdução (1), desenvolve-se a polêmica contra a idolatria (2-8); segue a tríplice profissão de confiança (9-11) e a correspon dente bênção divina (12-14), ampliada com a recordação da criação (15-16); conclui com o silêncio dos mortos e a bênção dos vivos (17-18). O autor cuidou das transições: entre a primeira secção e a segunda, pelo verbo confiar: nos ídolos, no Senhor. Entre a terceira e quarta, pelo verbo abençoar. O “fazer” do v. 3 fica pendente até sua resolução no v. 15; o bendizemos final do v. 18 faz eco à bênção divina de 12.13.15. O nome de Yhw h, completo ou abreviado, pronuncia-se doze vezes. — O estilo do salmo distingue-se pelas repetições em série: são de mais efeito se se recitam coralmente. Já desde o princípio, com a duplicação enfá tica “não a nós” e a quíntupla aliteração em /-; logo depois, a preposição duplicada. Segue a série de sete (pelo que parece, escrita defectivamente nos elementos quinto e sexto). Vem depois do duplo ternário de repetições literais. No final aplaca-se o desejo de repetir e só se destaca o comentário a “céu e terra”. O gosto pelas oposições preside em grande parte o desenvolvimento não a nós / a teu nome, dizem eles / (replicamos), têm / não podem, o homem confia / Deus abençoa, o céu / a terra, os mortos / nós. 5. Exegese l.D ar glória. Glorificar (kbd em piei) é um dos verbos de louvor, pou co freqüente no saltério (por exemplo, 22,24; 86,12). O orante sente-se incapaz de fazê-lo, e também não considera suficiente a assembléia, e pede a Deus que “se glorifique”, mostrando sua glória naquele momento e lugar. 1392 Salmo 115 Glorificar-se é ação que Deus realiza em suas intervenções históricas: por exemplo, “derrotando o Faraó” (Ex 14,4.17); derrotando Sídon (Ez 28,22); desbaratando Gog (Ez 39,13). Nesses casos, o hebraico costuma empregar o nifal de kbd; o salmo emprega a fórmula equivalente ntn kbd = dar glória (o mesmo que Ez 39,21 sobre Gog). Dois textos de Isaías nos transladam ao contexto histórico do salmo: 42,8 48,11 Eu sou o Senhor, este é meu nome, não cedo minha glória a ninguém nem minha honra aos ídolos. Por mim, por mim o faço, porque meu nome não deve ser profanado e minha glória não cedo a ninguém. Com o verbo sinônimo hbw diz o SI 29,1: “filhos de Deus, dai ao Senhor glória e poder”, e o SI 96,7 corrige o sujeito: “famílias dos povos”. Pois bem, no presente salmo nem deuses — que não existem — , nem povos — que não bastam—, nem o presidente com sua assembléia, mas Deus mesmo há de se glorificar. Não mostrando sua figura, mas sua ação. Na qual se mostram suas duas qualidades típicas, “lealdade e fidelidade” (hsd w’mt). 2. A mesma pergunta fazem os habitantes a um israelita desterrado em país estrangeiro (SI 42,4.11), e a podem fazer os invasores ao conquistar Jerusalém (SI 79,10). 3. A fórmula expressa o poder incontrastado e supremo: lR s 9,1 Quando Salomão terminou de construir o templo, o palácio e tudo o que queria e desejava ... Is 46,10 Meu desígnio se cumprirá, minha vontade se realizará. 4 .0 termo ‘çb tinha-o usado Oséias em várias passagens: “com sua prata e seu ouro fizeram-se ídolos para sua perdição” (4,17; 8,4); “fazem-se ídolos de prata, obras de puro artesanato” (13,2; 14,9). Entre outros retoma o termo Is 46,1; 48,5. Escolhendo como materiais ouro e prata, o salmo está mais perto de Oséias. O livro da Sabedoria escolhe madeira e barro para duas reflexões originais (Sb 13,10-14,11 e 15,7-13). Santo Agostinho comenta: “Empregam o ouro, que fez o Deus verdadeiro, para fazer um deus falso”. 5-7. No texto atual é claro que o autor busca o número sete; o SI 135 menciona só quatro. Na controvérsia, provavelmente exílica, de Jr 10 mencionam-se: “não falam, não andam ... são imagens falsas, sem alento, são vaidade, embuste”. A chamada Carta de Jeremias (= Bar 6) desenvolve temas semelhantes em chave burlesca e de modo bastante superficial. Is 46 parece pensar em procissões com estátuas de divindades: 1 Carregam sua imagens sobre bestas e azêmolas, e as estátuas que levam em andores são uma carga esmagadora. Exegese 7 1393 Onde o põe, ali fica, não se move de seu lugar. Por muito que lhe gritem, não responde, não os salva do perigo. Dos sentidos falta o gosto e com ele o comer (que é o tema do episódio burlesco “A fraude descoberta” de Dn 14,1-22). O primeiro lugar ocupa a incapacidade de falar e, portanto, de comunicar-se. Habacuc combina duas coisas pelo que parece inconciliáveis, a mudez e a falsidade dos oráculos (Hab 2,18-19). Sem dúvida a chamada “Teologia de Mênfis” (ANET 5-6), justificando a hegemonia de coração / mente e língua, explora com mais inteligência a imagem da experiência humana: A vista dos olhos, o ouvido das orelhas, o cheirar o ar com o nariz, comunicam-se ao coração. Desse modo se formam os conceitos, e a língua comunica o que pensa a mente. 8 .0 processo de imitar para tirar uma imagem provoca um movimento fatal de ida e volta. Deus faz o homem à sua imagem — o artífice faz uma estátua à sua imagem — o artista torna-se semelhante àsua obra. Chamando o ídolo de hbl = vaidade, vazio, diz Jr 2,5: “Seguiram atrás de vacuidades e tornaram-se vazios” (= 2Rs 17,15). É original a reflexão de Sb 15, que se pode esquematizar assim: o artesão — homem feito de barro — modela com barro imagens de deuses — e não supera sua condição de barro. Numa versão moderna e secularizada diríamos que o homem, deslum brado com a tecnologia, torna-se robô ou computador. Sobre confiar no ídolo ou em algo negativo, podem-se ver: Is 42,17 Retrocederão envergonhados os que confiam no ídolo, os que dizem à estátua: tu és meu Deus. 47,10 confiar na maldade, na mentira; Sb 62,11. 9-11. Dos três grupos interpelados, o primeiro é o antigo e novo no me de toda a comunidade, o segundo engloba os sacerdotes como supostos descendnentes de Aarão (sem mencionar Sadoc), o terceiro é designação corrente da comunidade, que só em tempos posteriores se aplicou aos prosélitos. Confiar. Entre os diversos termos com que o Dt significa a fé ou fidelidade do povo a seu Deus não figura bth. Na literatura profética faz-se mais corrente e entra em contraste com outras confianças; no saltério é freqüente. Entre os textos mais significativos cabe citar: o desafio de Senaquerib (Is 36), o sermão do templo (Jr 7), uma instrução sapiencial (Jr 1394 Salmo 115 17). A invocação com os títulos “seu auxílio e seu escudo” tem ar militar. Na hipótese de origem exílica do salmo, explica-se como reação a um ambiente hostil; pode-se comparar com a referência militar do SI 27. 12-13. A confiança do povo responde a bênção de Deus, pronunciada em forma de súplica. “Pequenos e grandes” servem ao autor, no formal, para passar do ternário para o quaternário que pede o paralelismo. A expressão é especialidade de Jeremias (6,13; 16,6; 31,34) e faz-se corrente em textos tardios como Ester e Crônicas. Mas o recheio pode ter alcance significativo. Nas narrações patriarcais, a bênção paterna passa para um filho, o maior e o menor: Sem / Cam = Canaã, Jacó / Esaú, Efraim / Manassés. Esaú queixa-se a seu pai: “só tens uma bênção?” (Gn 27). A bênção invocada no salmo não faz distinção. 14. Efeito clássico da bênção é crescer e multiplicar-se, aqui com o verbo ysp ‘l, como em outros textos: “Que o Senhor vosso Deus vos faça crescer mil vezes mais, abençoando-vos como prometeu” (Dt 1,11; cf. lCr 21,3). Abênção da fecundidade prolonga-se na descendência, compensando assim pelos que morreram na catástrofe ou no deserto. 15. E a bênção eficaz daquele que só com sua palavra fez céus e terra (cf. SI 134). Chamar os membros da comunidade de benditos / abençoados do Senhor é raro: além de fórmulas de agradecimento (ISm 23,21; 2Sm 2,5), é preciso citar Is 65,23. 16.0 Senhor reserva-se o céu como morada e não a compartilha com outras divindades; a terra ele a dá ao homem como morada e tarefa. No contexto da aliança, Deus “dá a terra” a seu povo, ou seja, o território de Canaá aos israelitas. O salmo elimina fronteiras para abarcar a terra inteira e toda a humanidade. 17. Quem ou o que atrai para esse lugar a recordação dos mortos? Talvez a conjuntura histórica, os muitos que morreram quando da destrui ção de Jerusalém. Um texto tardio, que finge a situação do desterro babi lónico, suplica: Bar 2,18 Inclina, Senhor, teu ouvido e escuta, abre os olhos e olha: os mortos na tumba, os seus corpos já sem vida, não podem cantar tua glória e tua justiça. Outra explicação é que a região subterrânea dos mortos completa a articulação céu e terra. (Veja-se o comentário ao SI 88 e os textos ali citados). 18. Nós designa a comunidade presente, incluídos descendentes que asseguram a continuidade e perpetuidade do louvor. Se louvamos, estamos vivos; se vivemos, é para louvar. Transposição cristã 1395 6. Transposição cristã A polêmica contra ou sobre a idolatria coloca-se hoje em termos mais profundos, não menos radicais. De uma parte estão os ídolos seculares de nossa cultura, que solicitam nossa dedicação e confiança, como sucedâneo da atitude religiosa. Por outra parte temos que nos confrontar com nossas representações mentais de Deus não criticadas. Nessa nova perspectiva, o salmo conserva sua validez, como se pode ver no comentário ao SI 82. Apontei o tema do robô e do ordenador, que tentam modelar o homem à sua imagem complexa e mecânica. Em rigor, essas invenções são uma conse qüência do fato de Deus ter dado a terra aos homens. Devemos entender que Deus nos atribuiu este espaço e este tempo, que no-los deu como tarefa. O que vale também para a Igreja: os cristãos não podem desentender-se das tarefas mundanas, como se o seu fosse somente esperar e aguardar o céu. Não se diz no NT que Deus nos dá o céu, mas a vida eterna. Por outra parte, as tarefas mundanas não esgotam o sentido do homem. Lucas descreve ou dramatiza a glorificação de Jesus Cristo ressus citado como um “subir ao céu”. Usando a linguagem do salmo, podemos dizer que “nosso Senhor está no céu, tudo o que quer faz”. Nele pomos nossa confiança, ele nos consegue do Pai toda sorte de bênçãos (Ef 1), que se sintetizam no dom do Espírito. Contudo, algo permanece pendente, e nossa perpetuidade não é só de gerações. Somos já os “abençoados do Senhor”, e um dia nos tocará escutar: “Vinde, benditos de meu Pai, para possuir o reino”. Salmo 116 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Eu amo!, porque o Senhor escuta minha voz suplicante1, porque inclina o ouvido para mim quando o chamo. Envolviam-me redes mortais, alcançavam-me os laços do Abismo, caí em tristeza e angústia. Invoquei o nome do Senhor: por favor, Senhor, põe a salvo minha vida! O Senhor é clemente e justo, nosso Deus é compassivo. O Senhor guarda os incautos: estando eu sem forças me salvou. Alma minha, recupera a calma, pois o Senhor foi bom contigo. Arrancou minha vida da morte, meus olhos das lágrimas, meus pés do empurrão. Caminharei na presença do Senhor no país da vida. 10 Eu cria, quando dizia: que desgraçado sou eu. 11 Eu pensava em meu apuro: os humanos são falazes. 12 Como pagarei ao Senhor todo o bem que me fez? 1minha petição de graça Bibliografia 1397 13 Elevarei o cálice da salvação 2 invocando o nome do Senhor. 14 e cumprirei ao Senhor meus votos na presença de todo o povo. 15 O Senhor faz pagar cara a morte de seus leais. 16 Favor, Senhor, pois sou teu servo, servo teu, filho de tua escrava! Rompeste minhas correias! 17 Oferecer-te-ei um sacrifício de ação de graças invocando o nome do Senhor, 18 e cumprirei ao Senhor meus votos na presença de todo o povo3, 19 nos átrios da casa do Senhor, no meio de ti, Jerusalém. Aleluia. 2. Bibliografia L. Suárez, Ps 114 / 116,1, VD 18 (1938) 262-268. P. Joüon, Ben ’amateka = Filius ancillae tuae, Bib 23 (1942) 190-191. J. Hennig, Ps 116 in the liturgy, IrThQ 19 (1952) 192-195. L. Deiss, Je marcherai en présence de Yahvé (Ps 116), BVC 39 (1961) 3753. T. Delforge, Le calice du salut (Ps 116), BVC 44 (1962) 49-53. H. A. Brongers, Die Wendung besen jhw h im AT, ZA W 77 (1965) 1-20. L. Rost, Ein Psalmenproblem, TLZ 93 (1968) 241-246. M . Dahood, Ps 116,1, em FS; Coppens, Paris, 1 9 6 9 ,1, 25. N. Airoldi, Salmi 116 e 130. Saggi di traduzione, Aug 13 (1973) 141-147. F. Luciani, Camminare davanti a Dio. Problemi di filologia bïblica, Aevum 47 (1973) 287-297; 468-476; 48 (1974) 477-499; 49 (1975) 330-348; 51 (1977) 121-144. P. E. Bonnard, Un psaume pour vivre. Le Ps 116, EspVie 88 (1978) 696702. J. A. Emerton, How does the Lord regard the death o f his Saints in Ps 116,15, JTS 34 (1983) 146-156. P. Auffret, J e marcherai à la face de Yahvé. Etude structurelle du Ps 116, NRT 106 (1984) 383-396. — Essai sur la structure littéraire du Ps 116, BN 23 (1984) 32-47. P. C. H. Wernberg-Moller, The old accusative ending in Biblical Hebrew: Observations on hammawetah in Ps 116,15, JSS 33 (1988) 155-164. M . L. Barré, Ps 116: its structure and its enigmas, JBL 109 (1990) 61-78. 2brindarei com o cálice do tempo 3 seu povo 1398 Salmo 116 3. Análise filológica 1. ’hbty: complemento tácito ou acrescentado Yhwh Qim, acrescenta -ka Baethgen, agrada-me (Is 56,10; Jr 5,31) Ibn Ezra, com ky completivo “agrada-me que” Ewald Olshausen Hitz; corrige para b’ty Gun. qwly thnwny: assíndeton ou aposição, lê bthnwny adverbial Ibn Ezra. 2. bymy: de por vida, sgl sem sufixo Gr. 3. hbly: laços, dores Vg, como de mulher em parto Targ. mç’wny ’mç’: assecuti sunt I expertus sum. mçry: Lm 1,3, corrigem para mçdy Hupf Berth. 6.p t’y m: pl de pty DBHE. 7. Imnwhyky: oposto ao mçry de 3 Ibn Ezra, refere-se a Deus Qim. 8. hlçt: 3a pess sgl Jerôn. 9. ’rçwt: sgl (27,13) Gr Sir. 10. Discute-se o valor de ky: por isso = dio Gr (2Cor 4,13) Agos (cita Mt 10,32), Gertho Agélio, “a fé me dá ânimo para falar / professá-la” Heser; quando falei / disse Ewald Baeth Hupf; ainda que (Ex 13,17; Dt 29,18) de Wette. 11. kzb: falha Teod, subst Jerôn, “solus Deus verax, fidem et promissa in utraque fortuna retinens” Marini. 15.hmvoth: corrigem tmwth Del Olsh Cast. 16. Citado em Sb 9,5. 4. Estudo global a) Gênero e situação O SI 116 é canto de ação de graças. Como pede o gênero, o orante recorda as desgraças das quais o livrou Deus, como nelas pediu auxílio e foi escutado, recorda sua confiança passada e expressa seu agradecimento presente. A ação de graças é acompanhada de algum rito litúrgico, cum prindo o voto que fez no perigo. De que desgraça foi libertado? O texto menciona quatro coisas: um grave perigo de morte, um aflição interior, uma situação social de desvalimento, a escravidão. E raro que as quatro se tenham acumulado sobre um indivíduo, a não ser que o orante seja outro Jó. Por isso, ou se tomam como situações típicas num salmo de repertório, de uso múltiplo, ou se supõe que três são metáforas de uma real. Estudo global 1399 Aceitando a segunda suposição, o mais provável é um perigo de morte, por doença ou outra causa; mais provável por doença. Mencionam-se morte e abismo (3), morte e lágrimas (8), vida (9), de novo morte (15). A aflição profunda e o desvalimento (3b.6) podem acompanhar o perigo; a escravidão seria metáfora audaz. Assim entendido, o salmo faz boa companhia ao 30, como mostram o tom e uma série de coincidências verbais e temáticas: SI 30,4 5 6 7 9 12 npsh sh’ wl hsydym hyym bky ’mrty qr’ pth 116,4.7.8 3 15 9 8 11 2.4.13.17 16 b) O sentimento Mais do que o salmo 30, impressiona-nos o 116 pela intensidade de seu sentimento. A ação de graças será ritual, comunitária, mas a oração é intensamente pessoal. O orante volta-se sobre si para observar e descobrir seus sentimentos, desdobra-se internamente para diálogo mental consigo mesmo. Recorda o que dizia e pensava, a situação afetiva de onde brotava. Pergunta-se antes de propor. Suposta a situação de doença grave superada, pode-se comparar esse salmo com outros semelhantes. O 31 menciona olhos, garganta, ventre, ossos, vigor; o 116 menciona olhos e pés com outra função, e concentra-se nos afetos. O 38 fala de carne, ossos, chagas, costas, coração; constitui salmo intenso, porém sem a introspecção do presente. Pelo desdobramento da pessoa, deve-se comparar com o 42-43, mais elaborado e mais bem explo rado graças ao estribilho. A intensidade do sentimento expresso deve-se a grande mobilidade das formas empregadas: relato com Yhwh em terceira pessoa irrupção do perigo personificado cita a jaculatória com Yhwh em segunda pessoa enunciado geral em tom objetivo exortação própria com recordação e propósito recordação de pensamentos passados pergunta duvidosa, propósito concreto enunciado geral com Yhwh em terceira pessoa e propósito final. 1400 Salmo 116 Não é fácil encontrar outro salmo com tal mobilidade. O melhor é que o orante não perde o fio, e nós o seguiremos sem resistência. Quem tiver experiência de oração não se surpreenderá desses movi mentos de espírito. Quem quiser apropriar-se desse salmo deve entrar de cheio em seu desdobramento afetivo. c) Amor e fé Encabeçando o salmo e pela metade, abrindo o v. 10, lêem-se dois verbos em primeira pessoa: ’hbty h’mnty = amei, amo e cri, confiava. Ressalta-se o primeiro por construção sintática tão estranha, que duvida mos se se deverá a erro de copista. O segundo prolonga-se em ’mrty = dizia. O primeiro põe todo o salmo na esfera do amor de Deus, amor agradecido, grande demais para expressá-lo como gostaria. O segundo expressa uma fé que se apóia em Deus e não no homem. Há algo que falta no salmo, algo cuja ausência descobrimos por compa ração com outros: o arrependimento das culpas. Por exemplo, o citado SI 3C contrapõe ira a favor e menciona ritos de luto; mais explícitos são o 32 e o 38. O orante do presente salmo não se confessa réu de delitos passados que tives sem provocado sua grave doença, nem em tal conjuntura sentiu a cólera de Deus. Considera-se “leal”, sem por isso alegar méritos de virtude ou de observância. Amor e fé são virtudes teologais, que se dirigem a Deus, e admitem graus. O orante revela em suas palavras uma relação direta e confiante com seu Deus, cujo nome não se cansa de repetir. d) Composição Como já mostrei, o típico desse salmo é a mobilidade afetiva, que não aceita as travas de esquema rigoroso. Contudo, para dar leito ao movimento e para que não se soltem as peças, o poeta põe alguns sinais de coesão formal. Os principais são: a quádrupla repetição de “invocar” e dentro dela a tríplice de “invocar o nome” (qr’ bshm): a primeira na desgraça, a segunda ao brindar, a terceira ao sacrificar; também é importante o estribilho, com ligeira variação que vincula cálice e sacrifício. Os dois verbos em primeira pessoa já comentados e o séquito que os acompanha e amplifica; a repetição enfática “eu” em 10.11.16ab. 5. Exegese 1.0 começo do salmo com o verbo ’hbty em primeira pessoa e em forma absoluta, é único no saltério e merece nossa atenção. Pelo uso de ’hb, tem antecedentes ou companheiros no saltério: “eu amo a casa onde moras’: Exegese 1401 (26,8), alegando-o como mérito; o SI 119 repete o verbo dez vezes, e seu objeto é a lei; pelo fim do SI 31 soa um convite: “amai o Senhor, seus leais”, que nos interessa porque o orante do 116 insere-se entre os “leais”. Com sinônimo de amar (rhm) começa o SI 18, forma que alguns consideram suspeita por ser inusitada (veja-se comentário); podemos retê-la e empare lhar ambos os salmos, já que o presente cita o 18,5. Fora do saltério, os textos fundamentais são Dt 6,5; 11,1, em que soa como mandato, ao passo que no salmo brota espontâneo do agradecimento. A expressão “voz suplicante” é comum no saltério e em súplicas fora dele. 3. A primeira frase procede do SI 18,5 (variante em 2Sm 22,5), em que a ameaça toma figura aquática; outro tanto na imitação de Jn 2,6. No presente salmo, a imagem perde concretude, domina o aspecto de estar cercado sem saída. Segue duplo movimento de “alcançar” (que salta a etapa de perseguir e fugir): o cerco do xeol me alcança, ao passo que me deixo alcançar pelo aperto e pela pena. Repetem-se o verbo mç’ e a raiz çrr’ Como se, fugindo em vão da morte, viesse a parar num cerco interior de penas. Segundo Gn 42,38 e 44,31, a “pena” pode levar à “tumba”; segundo o SI 31,11, com a “pena” consome-se a vida. Em três frases breves de verbo longo, o poeta logra descrever uma situação desde o ponto de vista da experiência subjetiva: a consciência percebe imaginativamente uma ameaça corpórea mortal e vive lucidamen te sua angústia. 4. A petição com ’anna soa mais pessoal, mais encarecida: como a dos irmãos a José (Gn 50,17). Moisés intercedendo (Ex 32,21), Ezequias suplicando em transe de morte (Is 38,3), Jonas suplicando e protestando ■Jn 1,14 e 4,2). O versículo dá-nos a conhecer uma fórmula concreta de "invocar o Senor”. 5. Citação livre de fórmula litúrgica que se apóia em Ex 34,6. Aos atributos tradicionais, Piedoso e Compassivo, acrescenta Justo, exatamen te como o SI 112,4. Da adição não se pode deduzir alusão judicial ao Senhor fazendo justiça a desvalido. Tratando-se de fórmula litúrgica, usa o plural Deus nosso e não o esperado singular Deus meu. 6. Prolongação ou comentário do anterior. Os p t’ym são típicos de Provérbios (16 vezes de 20). São os simples ou simplórios, inexpertos, incautos, crédulos; vítimas fáceis dos astutos e arteiros; mas capazes de aprender se quiserem. Podem-se ver: Pr 14,15 o simples crê em qualquer palavra 1.4 para ensinar cautela aos incautos 8.5 incautos, aprendei a cautela 1402 Salmo 116 No saltério: 19,8; 119,130. O verbo dll e o adjetivo dl podem designar categoria social: necessitados, desvalidos; categoria freqüente na literatu ra sapiencial e profética. No saltério: 4152; 72.13; 82,3s; 113,7. 7-9. Como conseqüência imediata da libertação concedida, podíamos esperar a expressão do agradecimento. Em vez disso, o orante olha para dentro de si, dirige a si a palavra. Convida sua alma a “voltar” a seu lugar de “repouso”, ela que estava cercada de angústia (3b). Um oráculo de libertação começa muitas vezes por “não temas”; vencendo o temor, respon demos a Deus com nossa confiança. Algo semelhante ocorre aqui: recupe rando a calma, o orante reconhece o poder libertador de Deus. O desdobra mento psicológico mostra que não é doutrina aprendida, mas experiência pessoal. O termo mnwhh tem aqui valor psicológico, com em Is 28,12 (cf. Rt 1,9; lRs 8,56). 8. O trístico cinzelado corresponde formalmente ao trístico trágico do v. 3. Também pode-se articular o conteúdo por correspondências: a morte e abismo, vida; a laços, pés firmes; a penas, enxugar lágrimas. O empurrão é metáfora, busca a queda moral. Morte e lágrimas reaparecem unidas no famoso texto escatológico de Is 25,8. 9. Caminhar na presença ou proceder de acordo com: protegido por Deus, que não o perde de vista. O país dos vivos é esta terra superior, à luz do sol, contraposta à região subterrânea dos mortos. O versículo forma a conclusão categórica do SI 56; o presente continua. 10-11.0 orante recorda de novo a situação pretérita: era tempo de aflição e desconcerto. Um desses momentos em que, pelo pânico e pela pressa, o homem procede “precipitadamente”, sem serenidade nem lucidez (Ex 12,11; Dt 30,3; SI 48,6). Naquele momento, o orante descobriu e comprovou que o homem não é de se fiar, que não oferece garantias, e con fiou em Deus: SI 60,13 Is 2,22 Jr 17,5 Auxilia-nos contra o inimigo, pois a ajuda do homem é inútil. Deixai de confiar no homem que respira pelo nariz: em quanto o taxareis? Maldito quem confia em homem e busca apoio na carne afastando seu coração do Senhor. Não se trata de mendacidade ética congênita no homem, mas de sua invalidez ontológica. O imperador Senaquerib o dizia com a imagem da cana ou bastão partido (Is 36,6). A expressão “eu dizia em minha ansiedade” procede do SI 31,23 com mudança de aplicação. Exegese 1403 12. Em textos legais, hshyb significa devolver, restituir, em espécie ou em dinheiro (Ex 21,34; 22,25; 23,4; Lv 5,23; SI 69,5). No saltério, o sujeito desse verbo costuma ser o Senhor (21 vezes de 28). Não é normal dizer que o homem “restitui” a Deus, pois não pode. Sua única restituição aproxima da é o reconhecimento, que pode manifestar com algum dom ou oferta. Quando o orante se faz a pergunta, já está reconhecento sua gratidão e seu desejo de reciprocidade, e sua impossibildidade de satisfazê-la. Deus não dá para que o homem lhe dê, nem o homem tem que dar a Deus para que Deus lhe dê: a religiosidade do “do ut des” falha em ambas as direções. 13-14. Expressará sua gratidão num rito público com invocação e cumprimento de votos. O rito consiste em elevar o cálice invocando o nome de Yhwh. E cálice de libação, vinho que se derrama em honra da divindade, ou é cálice de comunhão que se vai passando entre os comensais de sacrifício? Da primeira falam: Ex 29,40-41; Lv 23,18.37; Ez 20,28, etc. À segunda pode aludir o SI 23,5, talvez Am 2,8; Is 62,9. Como o texto o chama “cálice de salvação”, parece mais provável que se refira a um banquete cultual festivo, de ação de graças, como o aludido no SI 22,27. Fazer um voto acompanhando súplica em momentos de perigo é costume religioso comum. O SI 66,13-14 oferece-nos exemplo claro: Entrarei em tua casa com vítimas para cumprir meus votos: os votos que pronunciaram meus lábios e prometeu minha boca no perigo. Uma legislação abundante regula o cumprimento dos votos (Lv 7,1617; 22,17-25; Nm 6; 15,1-10); Pr 20,25 previne contra votos precipitados, Ecl 5,3-5 aconselha cautela. 15. Nós dizemos “vendeu cara a vida”, ou então “fez pagar muito cara sua vida”. Temos a instituição do “seguro de vida”, que paga uma soma em caso de morte. Quanto vale a morte, ou seja, a vida de uma pessoa? O orante pensa em Deus como dono e taxador: vende muito cara a vida de um de seus leais, faz pagar muito cara sua morte. Na legislação da aliança lemos o seguinte caso: Ex 21,29 Trata-se de um touro que já investia antes, e seu dono, advertido, não o tinha prendido, então, se o touro mata um homem ou uma mulher, será apedrejado, e também o seu dono é réu de morte. 30 Se lhe puserem um preço de resgate, pagará em troca de sua vida o que lhe pedirem. O texto não diz em quanto costumavam taxar essa vida. O SI 49 diz que a vida vale muitíssimo, tanto que o homem não tem dinheiro para comprar a imortalidade; no SI 72 é o rei que taxa muito alto a vida de pobre ou indigente. No SI 30,10 pergunta o orante: “O que ganhas com minha 1404 Salmo 116 morte?” O versículo que comentamos perguntaria antes: quanto perdes pela vida de um leal teu, quanto pagarias para lhe salvar a vida? A taxa de Deus é muito alta se se trata de seus leais, entre os quais se inclui o orante. 16. Do conceito de leal, devotado, passa ao de servo. A afirmação “sou teu servo” pode ser convencional: qualquer orante pedirá a Deus que proteja “seu servo”. Mas aqui a toma o orante para desenvolvê-la coerente mente em chave jurídica: quem nasce de escrava é escravo de nascimento (Ex 21,4; Gn 15,3; 17,12; veja-se SI 86,16-17). O dono pode alforriar o escravo. A figura jurídica converte-se em imagem de libertação: inclusive da escravidão da morte. Mas aqui não se fala de resgate, e sim de alforria. 17-18. Repete 13-14 substituindo o cálice por um sacrifício de ação de graças. 19. O estribilho alarga-se com versículo inesperado. Mencionar os átrios do templo para celebração litúrgica não é estranho; tampouco é inusitado recordar Sião ou Jerusalém. O estranho é que o orante aqui se dirige a Jerusalém em segunda pessoa, como a um ser querido. Recorda-nos por contraste Ezequiel, que perde a esposa como o povo perde o templo e a cidade (Ez 24). O que provoca esse último pormenor cordial? Só podemos suspeitá-lo. Talvez o diga um desterrado em país estrangeiro, ou um repatriado ao encontrar o templo reconstruído. Esse pormenor minúsculo abre o salmo a uma leitura comunitária. O doente salvo da morte é o povo desterrado que retorna à pátria, sua escravidão é o cativeiro, da qual é emancipado por ação de seu dono. O Senhor taxa muito alto a vida de seu povo, e este não sabe como dar graças a seu Deus. Retorna a seu lugar de repouso, enxugadas as lágrimas, porque o Senhor foi bom para com ele. 6. Transposição cristã De modo semelhante abre-se o salmo a uma leitura cristã pessoal ou comunitária. Mas comecemos pelas citações do salmo no NT. Rm 3,4 cita 11b deslocando ligeiramente o sentido: “Deus há de sair verdadeiro / leal, e todo homem mentiroso / desleal”; com o que prova que nenhum homem pode justificar-se diante de Deus. 2Cor 4,13 cita 10a adatando o sentido: “Possuindo o mesmo espírito de fé que se expressa na Escritura: Cri, por isso falo, também nós cremos e por isso falamos”. Um salmo que trata da vida que vence a morte, de como Deus estima a vida de seus leais, de escravidão e alforria, presta-se a profunda reflexão no quadro do NT. Que vida Deus Pai estimou mais que a de seu Filho? Muitc Transposição cristã 1405 lhe custava, e, no entanto, entregou-a. Saiu-lhe cara nossa vida. Graças à morte e ressurreição de seu Filho, emancipamo-nos da escravidão da morte. Rm 8,20 A humanidade está submetida, não por seu gosto, à vaidade; mas com esperança, porque a mesma humanidade será libertada da escra vidão à corrupção, para alcançar a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Também libertou-nos Jesus Cristo da escravidão ao pecado e à lei. Para dar-lhe graças devidas, levantamos o cálice da salvação: ICor 10,16 Esse cálice de bênção que bendizemos não significa solidariedade com o sangue do Messias? (cf. 11,25; Lc 22,20). A vida do Messias glorificado “retorna” ao lugar do seu “repouso”,junto ao Pai, que “arrancou sua vida da morte, seus olhos das lágrimas”. Também o cristão está destinado a esse repouso, onde dará graças a Deus na Jerusalém celeste. Salmo 117 1. Texto 1 2 Louvai ao Senhor, todas as nações; aclamai-o, todos os povos, porque a lealdade do Senhor pode mais do que nós1. e a fidelidade do Senhor é perpétua. 2. Bibliografia H. Duesberg, Le psaume d ’invite aux nations (Ps 117), BVC 14 (1956) 9197. A. Diez Macho, Ps 117,1-2; 118,1-5.16.23, Aug 10 (1970) 37-38. T. Stramare, Salmo 116 (117): La misericórdia e la fedeltà di Dio, ParY: 24 (1979) 397-398. O. Rickenbacher, Quelques problèmes du Ps 117 en malgache, em FS Barthélémy, Friburgo-Gotinga, 1981, 309-316. 4. Estudo global O salmo mais curto e o mais longo estão muito próximos no saltério: 117 e 119. Seria salmo completo o presente? Seria antífona aplicável a outros? Seria esquema para o presidente da liturgia desenvolver livremente? Efetivamente, o esquema transparece: imperativo de convite, destina tários, partícula causal, motivo do louvor. Dois paralelismos sinonímicos: a clássica hendíade “lealdade e fidelidade” repartida. Tudo normal e evi dente. Só um particular nos chama a atenção: a motivação é nacional, “nós", o convite é universal. Por que todas as nações hão de louvar a Deus por bene fício que fez a nós? Não sentirão os pagãos e eleição de Israel como dis criminação? Eles prefeririam louvar os seus deuses, deixando a Israel o seu. O paradoxo leva-nos a pensar que a lealdade e fidelidade do Senhor vão se alargar para abarcar a todos, que a experiência de Israel não é exclusiva, mas exemplar. Assim o sentiu Paulo no final da carta aos Romanos, citandc 1nos supera Estudo global 1407 o salmo numa série de citações bíblicas. Dando valor especializado a ambos os termos, distingue ’mt / hsd como fidelidade / misericórdia. Deus é fiel cumprindo para os judeus o prometido, é misericordioso salvando os pagãos. Em seguida cita em série: SI 18,50; Dt 32,43 (LXX); SI 117; Is 11,10. Todos os povos já formam um povo, que podem dizer “nós”; e todas as gerações acolhem-se na fidelidade de Deus. A liturgia emprega esse salmo na festa dos apóstolos e missionários. Quanta espiritualidade aberta e expansiva inspirou esse minúsculo salmo. Salmo 118 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Dai graças ao Senhor, porque é bom, porque é eterna sua misericórdia. Diga a casa de Israel: é eterna sua misericórdia. Diga a casa de Aarão: é eterna sua misericórdia. Digam os fiéis do Senhor: é eterna sua misericórdia. No assédio clamei ao Senhor: respondeu-me o Senhor dando-me espaço. O Senhor está do meu lado: não temo o que possa fazer-me um homem. O Senhor está do meu lado e me auxilia: verei a derrota de meus inimigos. Melhor é refugiar-se no Senhor que confiar no homem1, melhor é refugiar-se no Senhor que confiar nos nobres2. Todos os povos me cercavam: em nome do Senhor me desfiz deles. Cercavam-me e acurralavam-me: em nome do Senhor me desfiz deles. Cercavam-me como abelhas3, apagaram-se como fogo de sarças: em nome do Senhor me desfiz deles. Davam empurrões para derrubar-me, mas o Senhor foi meu auxílio. 1fiar-se de homem 2 fiar-se dos chefes 3 vespas Salmo 118 14 O Senhor é minha força e meu brio: ele foi meu salvador4. 15 Escutai clamores de vitória nas tendas dos vencedores5: A destra do Senhor faz proezas, 16 a destra do Senhor é sublime, a destra do Senhor faz proezas”. 17 — Não hei de morrer, viverei para contar as façanhas do Senhor. 18 Escarmentou-me, escarmentou-me o Senhor, mas não me entregou à morte6. 19 Abri-me as portas do triunfo, e entrarei para dar graças ao Senhor! 20 — Esta é a porta do Senhor: os vencedores entrarão por ela. 21 — Dou-te graças porque me respondeste e foste minha salvação7. 22 — A pedra que rejeitaram os arquitetos 8. é agora a pedra angular. 23 Foi o Senhor quem o fez, e parece-nos milagre. 24 Este é o dia em que agiu o Senhor: vamos festejá-lo e celebrá-lo! 25 Salva-nos, por favor, ó Senhor; por favor, dá-nos êxito, Senhor! 26 — Bendito em nome do Senhor o que vem! Abençoamo-vos da casa do Senhor. 27 O Senhor é Deus, ele nos ilumina. Organizai uma procissão com ramos até os ângulos do altar. 28 — Tu és meu Deus, eu te dou graças; Deus meu, eu te exalto. 29 — Dai graças ao Senhor, porque é bom, porque eterna é sua misericórdia. * ele me deu vitória 5justos 6 não me deixou morrer 7e me deste a vitória 8pedreiros 1409 1410 Salmo 118 2. Bibliografia W. Robinson, Ps 118. A liturgy for the admission o f a proselyte, ChQR 144 (1947) 179-183. J. J. Petuchowski, Hoshïah na’ in Ps 118,25. A prayer for rain, VT 5 (1955) 266-271. T. F. Torrance, The last o f the Halle Psalms, EvQ 28 (1956) 101-108. J. Meysing, A text reconstruction o fP s 117 (118), 27, VT 10 (1960) 130137. L. Jacquet, Chant liturgique d ’action de grâces (Ps 118, BVC 36 (1960) 3140. S. B. Frost, Ps 118. An exposition, CanJT 7 (1961) 155-166. S. Grill, Synonyme Engelnamen im AT, TZ 18 (1962) 240-246. E. Kutsch, Deus humiliât et exaltat. Zu Luthers Übersetzung von Ps 118,21 und Ps 18,36, ZTK 61 (1964) 193-220. P. Vanbergen, Le Ps 117 (118). Une Eucharistie qui éclaire l’Eucharistie de Jésus, QLiPar 45 (1964) 65-81. E. Beaucamp - J. P. de Relies, Plaidoyer por le Ps 118, VieSp 116 (19671 64-77. H. S. May, “Ps 118: the Song o f the Citadel”, em FS Goodenough, Leiden, 1968, 97-106. S. E. Loevenstamm, The Lord is m y strength and my glory, VT 19 (1969) 464-470. G. R. Driver, Things old and new in the O T (Ps 84,6-8; 118,27), MelUnBeyrouth 45 (1969) 463-478. A. Diez Macho (veja-se o salmo anterior). B. J. Oosterhoff, Het loven van God in Ps 118, em FS Ridderbos, Amsterdam, 1975. A. Berlin, Ps 118,24, JBL 96 (1977) 567-568. E. Jenni, Vom Herrn ist dies gewirkt, Ps 118,23, TZ 35 (1979) 55-62. J. L. Kugel, The adverbial use o f kî tob, JBL 99 (1980) 433-435. M. R. Hauge, Salme 1 1 8 - initiasjon av en Rettferdig, NorskTT 83 (1982 101-117. R. M. Hals, Psalm 118, Interpr 37 (1983) 277-283. 3. Análise filológica 2. ysrí: acrescentam ky twb segundo fórmula litúrgica Gr Vg. 5. qr’ty: põem-no nos lábios de Davi Targ, do Messias Qim, de Jesus Cristo os padres comumente. Omitem o segundo Yh Gr Sím. hmçr: cárcere H. Schmidt. 7. b‘zry: entre meus auxiliadores, com eles Ibn Ezra Qim; b- essentia DBHE b- 1 i. ’r’y b: ver / gozar da derrota (cf. Eclo 25,8). 10. kl gwym: sem art toda classe de gente, qualquer povo (cf. Is 32,20 Hupf Hitz, acrescenta artigo, todos Gun. Estudo global 1411 ’mylm: de mwl circuncidar Briggs, corrigem ’p ylm Duhm, ’kylm Hupf, ’akallem outros, ’mn‘m Cast; de mil Kittel Del, exscinderem eos Ros. 12.dbwrym: Dt 1,44; Is 7,18. 13. dhytny: 2- pess TM Gun, passiva Gr Vg Sir Jerôn. 15. Introduz a citação que segue em 16 Mar Ros. 16. rwmmh: part sem m-, intrans Hitz, trans Gun. 14. zmrt: canto, força ou proteção Dah Craigie Allen. 11. ky: adversativa ou asseverativa. ld.çdq: a justiça de 24,7ss Hitz, a de Is 26,2 Gun; vitória outros. 24. ‘sh: intransitivo atuar DBHE, trans outros. 26. bshm Yhwh: vai combrwk e não hb’ (Dt 21,5; 2Sm 6,18); o contrário Brongers (citado por Allen). 27. ’rw hg: dança sacra Gun; bt cordas (SI 2,3; Jz 15,13), ramos (Ez 19,11; 20,28), atando Ros, ou agitando Talmud; “atai com cadeias o cordeiro do sacrifício festivo até que roceis com sangue os degraus do altar” Targ, “schmücket das Fest mit Mayen” Luth; corrige para ’çh fire-offering Meysing. 4. Estudo global a) Gênero e situação — O salmo 118 pode-se catalogar como liturgia de ação de graças. “Liturgia” refere-se ao cerimonial da celebração; “ação de graças” refere-se ao conteúdo. Muitos salmos são litúrgicos, ou seja, destinados a cerimônia do culto; porém não são “liturgia”. O peculiar do presente salmo é que os elementos da execução litúrgica entram e se alojam no texto. Costumamos chamar de rubricas essas indicações para a execução, porque se escrevem com letras vermelhas (latim rubrum). São do tipo: “Os oficiantes avançam pelo centro, param e fazem genuflexão nas grades do presbitério; o povo de pé responde unanimemente ...”. Há frases no salmo que soam a rubricas: “Diga a Casa de Aarão” (o mestre de cerimônias dando a entrada), “organizai uma procissão”. A execução litúrgica, além de entrar no texto como rubricas, configura o texto com suas repetições, sua alternância de solo e coro, suas mudanças de pessoa. O salmo é um texto que pede ser executado em movimento. Nenhum salmo do saltério ostenta tão claras pegadas de execução litúrgica. — O conteúdo é uma ação de graças individual. Como o pede o gênero, o orante recorda sua situação difícil, quase desesperada, e como então pediu ajuda ao Senhor; este o escutou e livrou prodigiosamente; por isso quer dar 1412 Salmo 118 graças publicamente ao Senhor e contar a todos o que fez seu Deus. Isolando no salmo os versículos pronunciados pelo orante em primeira pessoa, obtemos um texto clássico de ação de graças. Faça-se a prova lendo seguidos os versículos 5-7.10-14.17-19.21.28. Ocupam quase um terço do salmo e, se se descontam repetições, quase a metade. A ação de graças ou o relato são acompanhados pelo coro da assem bléia, que exalta as qualidades do Senhor, suas ações gloriosas, ou pondera o valor da confiança. Ou seja, a ação de graças do orante é o que provoca e define as intervenções corais. Em termos musicais, este salmo tem bastan te de cantata, sem chegar a oratório. — A situação do salmo é típica, elude a concretude individual. O perigo é descrito em imagens que generalizam; os inimigos podem ser internos e externos; os que desprezaram a personagem estão representados na figura de arquitetos que calibram o valor de uma pedra. Não faltaram tentativas de buscar ao salmo conjuntura histórica precisa: por exemplo, a consagração do templo na volta do desterro no ano 515, ou a reconstrução das muralhas no ano 444, ou a vitória de Judas Macabeu no ano 164... Semelhantes tentativas parecem-se com o exercício dos antigos autores de dar títulos aos salmos. Outros buscaram como situação alguma festividade litúrgica: uma das registradas nos calendários bíblicos (Lv 23; Dt 16), ou uma das postuladas pelo comentador. Essas suposições valem mais para o uso do salmo do que para descrever seu destino original. No curso da exegese tropeçaremos com indícios de diversa entidade. As principais questões que nos interessam agora são a identificação do orante e a descrição da cerimônia. b) A personagem Tratando-se de textos literários e poéticos, é importante distinguir a personagem dentro do poema do que lhe corresponde na realidade, seu referente. Pois bem, a personagem que fala em primeira pessoa é indivíduo importante, reconhecido pela comunidade, que superou com a ajuda de Deus perigo grave e vem dar graças publicamente. Em torno dele agrupamse outras pessoas, algumas identificáveis expressamente, outras facilmen te deduzíveis por informação bíblica externa ao salmo. A quem corresponde historicamente essa personagem? Com essa per gunta passamos da significação à identificação. Repassemos opiniões. E um rei, se estamos em tempos da monarquia: muitos reis oferecem-se como can didatos. E uma personagem-chave depois do desterro: não faltam os candida tos. E o povo repatriado, uma coletividade representada no salmo por uir indivíduo. A maioria dos comentadores inclinam-se a uma datação pós-exílica do salmo, o que favorece, ainda que não imponha, uma leitura coletiva. Estudo global 1413 Em qualquer caso, o salmo desprende-se de seu contexto original e oferece-se como texto dipsonível para outras personagens importantes em situações análogas. Isso é mais importante que a identificação individual exclusiva. Se se tratou de Zorobabel, ponhamos um caso, o importante é que o puderam recitar sem forçá-lo outras personagens. c) A cerimônia Trata-se de fazer a distribuição de papéis e descrever as etapas sucessivas da cerimônia. Algumas rubricas, como vimos, foram conserva das: “diga ... diga Outras podem-se inferir razoavelmente: quem diz “organizai a procissão”? — O mestre de cerimônias. Quem pronuncia o comentário “mais vale...”? (8-9). Quem chama a atenção sobre os “gritos de vitória’? (15). A petição (25) é pronunciada pela personagem ou pela comu nidade? — Não sabemos, já que segue uma bênção para ele e para “vós”. Sem arredar-se perante tanta lacuna em nossa informação, alguns comentadores lançam-se para reconstruir o livrete da execução de tantos pormenores, num trabalho da imaginação com o que esperam atingir a cerimônia histórica real. Então, é preciso renunciar a imaginar a cerimônia litúrgica? — Não necessariamente; o que faz falta é uma sã hermenêutica da imaginação. Quando lemos textos poéticos, segundo nossa sensibilidade e treina mento, imaginamos cenas, vozes, figuras, paragens ... “Ali ficou dormindo, e eu o afagava, e o vento de cedros ar dava... O ar da ameia, enquanto seus cabelos eu acariciava, com sua mão serena em meu pescoço tocava ...” Imaginar-se um cenário avilense ajuda a compreender o poema e a deixarse envolver por sua sugestão, ainda que não sirva para identificar a paragem que João da Cruz imaginava. A imaginação ajuda a concretizar, infunde vida aos textos. Não se deve temer a imaginação, mas deve-se conhecer sua função precisa. Imaginemos os coros ou grupos bem organizados, a personagem que avança pelo centro, que se detém e fala em voz alta; ouvir como lhe respondem em coro os presentes, escutar vozes que chegam de fora; ver como pára a personagem diante de grande porta, e aí se desenvolve breve diálogo, ver as filas da procissão com ramos verdes, ouvir o canto alternado do estribilho ... Imaginando não damos com a cena primigênia, mas recuperamos um texto vivo e atual. As indicaçõses que farei na exegese não pretendem senão ajudar esse exercício da imaginação do leitor. Uma última vantagem desta proposição é que permite tomar o texto como livrete para execuções diversas e legítimas. O que constitui uma maneira de apropriação. 1414 Salmo 118 d) Composição e estilo — Dois fatores determinam a composição ou desenvolvimento do salmo, e são os indicados: a cerimônia litúrgica com suas fases, o relato e ação de graças da personagem. E difícil separá-los porque se entrelaçam irregularmente. E patente a grande inclusão por repetição, do estribilho, no começo e no fim (1.29). Os versículos 2-4 dizem-nos que a segunda parte do estribilho se repete mais vezes: só nestes três versículos? ou periodicamente durante a cerimônia? E provável que no final, enquanto avança a procissão, perso nagem e coro repitam alternando o estribilho. Por dirigir-se aos destinatários em jussivo, os versículos 2-4 cumprem a função de invitatório. Por outros salmos sabemos que o invitatório pode reiterar-se em ondas sucessivas. No versículo 5 começa o relato em primeira pessoa, que se articula em etapas separadas pelos comentários corais; em todas as suas fases mencio nam-se perigo humano e proteção divina. 5-7 8-9 10-14 15-16 17-18 19-21 20-24 25-27a 27b-29 Primeira fase: recorda a súplica e a resposta, e expressa sua confiança Responde (um coro?) com duplo enunciado de tipo proverbial. Segunda fase: pormenoriza o ataque e a libertação. Respondem vozes exaltando o Senhor. Terceira fase: interpreta a tribulação como escarmento. Cerimônia diante da porta: pede entrada, ela é concedida, dá graças (cede a palavra a outros). Reflexão sobre o acontecido interpretando-o como intervenção do Senhor. Nova cerimônia: súplica e bênção. Procissão conclusiva com alternativa de vozes. O desenvolvimento em esquema numérico, separando na linha supe rior a voz do orante principal: 5-7. 1.2-4. 10-14. 8-9. 17-19. 15-16. 20. 21. 28. 22.24.25.26.27. 29 Houve quem contasse as vezes em que se pronuncia o nome de Yhwh: 27 vezes = 3 x 3 x 3 ; nas intervenções atribuídas ao orante, 12 vezes. — O estilo do salmo distingue-se pelo uso da repetição em diversas formas; é quase um mostruário (veja-se E. Zurro, Procedimientos iterativos, índice bíblico). Temos a repetição pura de sintagmas ou frases, em forma litânica e antifonal: “porque é eterna sua misericórdia”, “é melhor ...”, “em nome do Senhor”, “eia, Senhor ...”. A repetição de verbo em infinitivo e forma finita: dhh dhytny, ysr ysrny (13.18); repetição com mudança de 1415 Exegese forma: sbwny sbbumy, brwk brknwkm (11.26); repetição em diálogo: “porta ... entrar... porta... entrar” (19-20); repetição próxima: “salvação” (14b. 15a), “fez-ações” (15b. 17). Repetições de sons em rima (25ab); de sons em aliteração (6-7). E outras que se poderiam acrescentar. — No campo imaginativo não há muito que apontar. O orante parece pensar em situação bélica: cerco ou estreitamento, cerco apertado, pressão ou empurrões para derrubá-lo de sua posição. E curiosa a combinação de duas comparações heterogêneas: um enxame de abelhas cercando e perseguindo uma pessoa e fogo de sarças que arde efemeramente. A celebração da cerimônia no templo sugere a comparação da pedra angular ou de remate. 5. Exegese 1. Também pode-se traduzir: “porque sua lealdade é perdurável” referindo hsd ao contexto da aliança. Na restauração anunciada por Jr 33,11 cita-se o versículo com uma variante, aplicando-o à repatriação: A voz dos que cantam ao entrar com ação de graças no templo: Dai graças ao Senhor dos Exércitos, porque é bom, porque é eterna sua misericórdia. Porque mudarei a sorte desta terra, fazendo-a como antes, diz o Senhor. Da citação não se pode deduzir nada de preciso para datar o salmo, porque a fórmula litúrgica é de uso múltiplo: lC r 16 2Cr 5,13 Esd 7,3 3,11 celebração da transferência da arca por Davi na dedicação do templo quando desce fogo do céu, a glória enche o templo na restauração do altar e do culto No saltério: 100,5; 106,1; 107,1; em parte e com variações: 52,11; 54,8; 63,4; 69,17. 2-4. Veja-se o SI 115,9-11. 5. Encontramos a mesma oposição “estreiteza / largura” que nos SI 4,2 e 25,17; vejam-se também SI 18,2 e 31,9. O símbolo espacial admite múltiplas especificações; o resto do salmo favorece o campo militar. 6. E normal em oráculos de salvação que o Senhor inculque “não temas”. Aqui o orante adianta-se com a resposta, porque sente que o Senhor está do seu lado e consigo. A afirmação “não temo” é típica, ainda que não exclusiva, do saltério: no singular (SI 3,7), com imagem pastoril (23,4), com importante desenvolvimento (SI 27), no plural (46,3) e em outros. É enfática a oposição: o Senhor / um homem: yhwh ly / ly ’dm (nos extremos do versículo). 1416 Salmo 118 7. O começo repetido (anáfora) atrai a atenção sobre o jogo dos doi verbos em primeira pessoa: ’y r’ ’r’h - temo, verei. 8-9. Para o paralelismo homem / príncipes, veja-se o SI 82,7. Homem eqüivale a simples homem. Refugiar-se pode ter conotação militar, como se o templo fosse um baluarte que oferece asilo. 10. kol goyim (sem artigo) pode significar “toda classe de gente” ou “nações de toda classe”. Parece hipérbole para sugerir a multidão, da mesma forma que a próxima imagem do enxame. 11. Chegamos ao discutido verbo ’mylm, de raiz que em sentido próprio significa circuncidar. Eerdmans toma-o ao pé da letra imaginando uma circuncisão de prosélitos; mas o contexto pede um grupo hostil, e não um grupo de convertidos devotos; de mais a mais, não sabemos que se invocasse o Senhor nesse rito. Outros o tomam literalmente, como sinal de vitória, e citam a famosa ou lendária façanha de Davi, portador de duzentos prepúcios de filisteus matados em combate como dote para a boda com a princesa (ISm 18,21-27). Mas o relato não fala de costume, mas de prova excepcional que Davi deve apresentar. De outro lado, o verbo mwl usa-se sempre em qal ou nifal. A que corresponde que o hifil significa “fazer circuncidar”: em vida? para quê? Prefiro tomá-lo como imagem: ou recordando proverbialmente a façanha de Davi, ou jogando com o verbo sbb e significando: “desprendiame, defazia-me deles, sacudi-me-os”. 12. A imagem das abelhas é eficaz: nós a lemos já em Dt 1,44. Os antigos e alguns modernos traduzem por “vespas, tavões” o sr’h de Ex 23,28; Dt 7,20 e Js 24,12, que outros traduzem por “pânico”. 13. Em sentido próprio, dhh significa dar um empurrão para que um muro ou um homem perca o equilíbrio, abandone seu posto, sua posição, sua postura. Encaixa-se em contexto militar, da mesma forma que o “auxílio” ou reforço do Senhor. 15.b ’hly çdyqym: ambas as palavras prestam-se a várias interpreta ções. Alguns pensam que essas “tendas” de campanha são outra designa ção das choças ou cabanas erigdas no festa outonal de sukkot; outros imaginam um acampamento militar fora do templo: fora da cidade?; suas vozes chegariam de longe. Mas “tendas” é designação clássica das mora das ou habitações dos israelitas; metáfora que alude às andanças pelo deserto ou à era patriarcal (por exemplo, ISm 13,2; lRs 12,16). Dado que a cerimônia se celebra no templo, podemos imaginar que as vozes chegam da cidade; mas não está a comunidade reunida no templo? çdyqym em contexto militar pode designar os “vencedores” (Is 49,24); em contexto judicial, os inocentes (2Rs 10,9); pode designar toda a comunidade (Is 60,21). No salmo prepara o diálogo diante da porta de 1920 . Exegese 1417 15b-16.0 texto do canto é elaboração de Ex 15,2. 17-18. Em certo sentido, este é um ponto culminante por duas razões: porque leva a libertação ao limite da vida e da morte, e porque interpreta o grave perigo como “educação” dirigida por Deus. Na tradição do Deuteronômio, viver ou continuar vivendo depende da observância dos mandamentos. Neste salmo, como no SI 71, o homem continua vivendo para contar as ações de Deus: 71,20 Fizeste-me passar por perigos, muitos e graves; far-me-ás reviver elevando-me das furnas da terra. Eu te darei graças, Deus meu ... A “educação” pela prova e pelo sofrimento é tradicional. Dt 8,5 oferece uma formulação clássica: “para que reconheças que o Senhor teu Deus te educou como um pai educa o seu filho”. Jeremias fala de “corrigir com medida” (Jr 10,24; 30,11; 46,28). Projetando a luz da libertação sobre o tempo da tribulação, essa pode revelar a atividade de Deus: o processo inteiro é controlado por ele. Pela ação de Deus esteve à morte, pela ação de Deus agora está vivo; agora, vivo, pode contar as ações de Deus. 19-20. Chega o momento de passar a outra zona, ao âmbito da ação de graças formal, e simboliza-se a passagem atravessando uma porta ritual: a Porta da Inocência ou da Vitória: só os vencedores / inocentes podem atravessá-la. O rito parece-se com as “liturgias de entrada” executadas na porta externa do templo (SI 15 e 24; Is 33,14-16). A escatologia de Is 26,23 imita o presente versículo: Abri as portas para que entre um povo justo que mantém a lealdade: seu ânimo está firme e conserva a paz porque confia em ti. 21. A ação de graças sintetiza os dois mementos do processo, aflição e salvação; também como Dt 8,2.16: “afligiu-te para te provar”. Com a mesma lógica canta Is 12,1: “Eu te dou graças porque, estando irado contra mim, cessou tua ira e me consolaste”. 22-23. Uma reflexão coral em imagem arquitetônica. Os “construto res”, arquitetos ou mestres-de-obra avaliam a qualidade de cada pedra para construir a cidade, as muralhas, o templo... Descartam uma pedra que não lhes parece de boa qualidade ou está mal talhada, ou não se encaixa na construção. Algum tempo depois, Deus revela o valor único daquela pedra, que será usada como ângulo de união de duas alas do edifício, da muralha, ou como remate do templo. Consulte-se em lRs 6 os trabalhos de construção 1418 Salmo 118 do templo, especialmente o versícuo 7; também Zc 4,7 referido a Zorobabel: “Ele tomará a pedra de remate entre aclamações: Que bela! Que bela!”. 24. Não é um dia que “tenha feito” o Senhor: ele os faz a todos ou nenhum, faz o sol e a luz para que haja dia. O verbo ‘sh usa-se aqui com o valor absoluto de agir, intervir. É um dos dias históricos em que o Senhor atuou de modo especial; outro modo de dizer “dia do Senhor” em sentido favorável. Tampouco é um dia cíclico (Eclo 33,7-9), mas histórico. A comunidade celebra e festeja o Senhor, não o dia. 25. hwsy‘h rí conserva ainda o valor de imperativo enfático (como em 2Sm 14,4 e 2Rs 6,26). Mais tarde se converte em simples aclamação, apocopada em Hosana. 26-27a. A distribuição sintática correta da frase é: ao que vem / entra bendizemos invocando o Senhor / em nome do Senhor; a invocaçao forma parte do bendizer, não do vir ou entrar. A personagem não vem “em nome de Deus”, representando a Deus. A benção, como nos ensina Nm 6,23-27. pronuncia-se invocando o nome de Yhwh: “Assim invocarão meu nome sobre os israelitas, e eu os abençoarei”; e o mesmo texto fundamental menciona a luminosidade do rosto divino: “o Senhor vos mostre seu rosto radiante”. O nome divino pronuncia-se três vezes na breve fórmula. A bênção é primeiro pessoal, depois comunitária. 27. O verbo usado para pôr em marcha a procissão é ’sr que significa ligar, sujeitar: talvez seja fórmula convencional. Os ramos nos recordam espontaneamente os da festa das tendas (Lv 23,40; Ne 8,15; 2Mc 10,7), mas não é legítimo afirmar que foram exclusivos dessa festa. Os ramos podem ser símbolo de vitalidade, ligado a tantas imagens vegetais do AT. 6. Transposição cristã Este é o salmo pascal por excelência. Assim nos ensina a tradição a partir do NT. Por isso começaremos reunindo as citações expressas e as alusões claras. O versículo 22 sobre a pedra rejeitada cita-se como conclusão na parábola dos vinhateiros: Lc 20,17 cita só o versículo 22. Mt 21,42 e Mc 12,10s citam também o versículo seguinte, segundo a versão grega, que aplica o feminino à pedra: “é o Senhor quem a fez, e parece-nos maravilho sa”. A citação desborda a parábola, que menciona só o assassínio do filho. Em seu discurso perante o Grande Conselho, Pedro aplica um versículo do salmo a Jesus, “a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou da morte”; e explica em que consiste ser a “pedra angular”: “a salvação não está em nenhum outro; ou seja, sob o céu não temos os homens outro diferente Transposição cristã 1419 dele que devamos invocar para nos salvar” (At 4,11-12). Em sua carta, Pedro cita o versículo 22 unindo-o a Is 28,6 (lPd 2,6-7). Os três sinóticos e também João citam 25-26a como grito da multidão que recebeu com ramos a Jesus quando chegou a Jerusalém (Mt 21,9; Mc 11,9s; Lc 19,18; Jo 12,13). A frase hebraica já mudou de sentido, e agora é Jesus “o que vem em nome do Senhor”; “hosanna” já é mera exclamação. Mateus cita outra vez o v. 26a na lamentação por Jerusalém (Mt 23,39). Ap 7,9 apresenta uma multidão “com palmas nas mãos”. Nossa páscoa é a memória da morte e ressurreição de Jesus Cristo, e o salmo ajuda-nos de modo admirável a meditar suas etapas principais. O enxame de inimigos que o cercam e tentam derrubá-lo; enquanto ele permanece firme, não confiando em homens e príncipes, mas invocando o seu Pai. Deus quis prová-lo com a tribulação até deixá-lo morrer, não o entregou, porém, ao poder onímodo da morte, mas o ressuscitou. Pelo que pode ele dizer: “não morrerei para sempre, mas viverei” (cf. Rm 6,9). Glorificado, Jesus ascende entrando no santuário celeste (cf. At 9), aí entrando como vencedor. Como Lucas dramatizou a ascensão, mas não a entrada no céu, encarregaram-se os pregadores de imaginar a cena aduzindo também a segunda parte do salmo 24, a invocação às portas. Agora o Messias glorificado converteu-se na chave do novo templo, que é sua Igreja. Ele encabeça nossa liturgia de ação de graças, no céu e em nossa celebração eucarística. Com ele e por ele damos graças ao Pai, “porque é bom” (cf. Mt 19,17 par), “porque é eterna sua misericórdia”. E agora, como corpo seu, podemos apropriar-nos do salmo. Com efeito, dois textos do NT aplicam o salmo aos cristãos. Parece soar em 2Cor 6,9 uma alusão ao versículo capital (17a). Paulo diz dos apóstolos: “somos os moribundos que estão bem vivos, os punidos nunca sentenciados à morte...” Pelo fim da carta aos Hebreus (13,6), o autor exorta os cristãos: "De modo que podemos dizer animosos: O Senhor está do meu lado: não temo o que possa fazer-me um homem”. Salmo 119* 1. Texto 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Felizes os de conduta irrepreensível, que seguem1 a vontade do Senhor. Felizes os que guardam seus preceitos e o buscam de todo o coração. Que não cometem iniqüidade e seguem seus caminhos2’ Tu mandaste que teus decretos se observem exatamente. Oxalá estejam firmes meus caminhos para cumprir tuas ordens. Então não ficarei defraudado ao fixar-me em teus mandatos. Dar-te-ei graças com coração sincero ao aprender teus justos mandamentos. Hei de guardar tuas normas: não me abandones de todo. Como limpará um jovem sua vereda1 ? — observando tua consigna. * Nota sobre a tradução. O hebraico usa oito termos básicos, mal diferenciados, que se intercambiam sem dificuldade: tôra, miçwot, mishpatim, ‘edot, piqqudim, huqqim, dabar, ’imra. Em português dispomos de repertório mais amplo, de que entrescolho: lei, preceito, decreto, estatuto, mandato, mandamento, ordem, disposição, norma, regra, consigna, diretiva, instrução. Isso suposto, estabelecemos algumas correspon dências de princípio, sem renunciar a mudanças exigidas ou aconselhadas em casos particulares: tôra vontade / lei miçwot mandatos mishpatim mandamentos / disposições huqqim estatutos / ordens piqqudim decretos / normas ‘edot preceitos / regras dabar palavra / consigna ’imra promessa / instrução (Para identificar a palavra empregada em hebraico é preciso consultar o texto original). 1precedem 2 diretivas Salmo 119 10 Eu te busco de todo o coração: não me desvies de teus mandatos. 11 Guardo no coração tua promessa para não pecar contra ti. 12 Bendito és, Senhor, ensina-me tuas normas. 13 Meus lábios recitarão tudo o que manda tua boca. 14 No caminho de teus preceitos me alegro mais do que com qualquer fortuna. 15 Meditarei teus decretos e fixar-me-ei em tuas veredas. 16 Tuas ordens são minha delícia: não me esqueço de tua palavra. 17 Cuida de teu servo, e viverei para cumprir tua palavra. 18 Aclara meus olhos, e contemplarei as maravilhas de tua lei. 19 Sou peregrino na terra: não me ocultes teus mandatos. 20 Meu alento consome-se desejando continuamente teus mandamentos. 21 Censuraste os arrogantes: malditos os que se desviam de teus mandatos! 22 Retira de mim afronta e desprezo, porque guardo teus preceitos. 23 Ainda que nobres se sentem para criticar-me: teu servo medita tuas ordens. 24 Também teus preceitos são minha delícia, são meus conselheiros. 25 Meu alento está pegado ao pó: dá-me vida por tua palavra. 26 Contei-te minhas andanças, e me respondeste: ensina-me teus estatutos. 27 Instrui-me na direção de teus decretos, e meditarei tuas maravilhas. 28 Meu alento desfalece de pena: conforta-me3com tua palavra. 3consolida-me 1421 1422 Salmo 119 29 Afasta de mim o caminho falso e dá-me a graça de tua vontade. 30 Escolhi o caminho seguro dispondo de teus mandamentos. 31 Apego-me a teus preceitos, Senhor, não me defraudes. 32 Pelos caminhos de teus mandatos correrei quando me alargares o coração. 33 Ensina-me, Senhor, o caminho de teus estatutos, e o seguirei pontualmente. 34 Ensina-me a cumprir tua vontade e a observá-la de todo o coração. 35 Encaminha-me pela vereda de teus mandatos, porque a quero. 36 Inclina meu coração para teus preceitos e não ao lucro. 37 Afasta meus olhos de olhares vazios, em teu caminho dá-me vida. 38 Cumpre a teu servo a promessa que fizeste a teus fiéis. 39 Afasta-me da afronta que temo; teus mandamentos são bons. 40 Olha como anseio por teus decretos; com tua justiça dá-me vida. 41 E que me chegue tua misericórdia, Senhor, tua salvação segundo tua promessa, 42 e poderei responder ao que me ultraja que confio na tua palavra. 43 Não afastes de minha boca a palavra autêntica; pois espero em teus mandamentos. 44 Quero cumprir continuamente tua vontade, para sempre e eternamente. 45 E seguirei um caminho largo porque busco teus decretos. 46 E falarei de teus preceitos diante de reis sem sentir vergonha. 47 E serão minha delícia teus mandatos que tanto amo. 48 E levantarei as mãos para ti e meditarei tuas normas. Salmo 119 49 Recorda a palavra que deste a teu servo, da qual fizeste minha esperança. 50 Este é meu consolo na aflição: que tua promessa me dê a vida. 51 Insolentes insultam-me gravemente: eu não me afasto de tua vontade. 52 Recordando teus antigos mandamentos, Senhor, fiquei consolado. 53 Domina-me a indignação pelos malvados, que abandonam tua lei. 54 Tuas normas eram minha música em casa estrangeira. 55 De noite pronuncio teu nome, Senhor; e velando, tua vontade. 56 Esta foi minha tarefa: observei teus decretos. 57 Minha porção é o Senhor. Resolvi observar tuas consignas. 58 Aplaco-te de todo coração; tem piedade de mim segundo tua promessa. 59 Calculei meu caminho para voltar meus passos a teus preceitos. 60 Dei-me pressa, não me dei largas, para observar teus mandatos. 61 Os laços dos malvados me envolviam; não me esqueci de tua lei. 62 A meia-noite levanto-me para te dar graças por teus justos mandamentos. 63 Junto-me a todos os teus fiéis que guardam teus decretos. 64 De tua bondade, Senhor, está cheia a terra: ensina-me tuas normas. 65 Trataste bem a teu servo, Senhor, segundo tua palavra. 66 Ensina-me a discernir e entender, porque confio em teus mandatos. 67 Antes do escarmento, eu não o advertia, mas agora cumpro tua instrução. 68 Insolentes enlameiam-me de calúnias; eu guardo de todo coração teus decretos. 1423 1424 Salmo 119 69 Bom és tu e fazes o bem: ensina-me tuas normas. 70 Seu coração é espesso como gordura; eu me deleito em tua vontade. 71 Fez-me bem o escarmento: assim aprendi tuas ordens. 72 Mais vale para mim a lei de tua boca que mil moedas de ouro e prata. 73 Tuas mãos me fizeram e me afirmaram: instrui-me para que aprenda teus mandatos. 74 Teus fiéis verão com alegria que esperei em tua palavra. 75 Reconheço, Senhor, que teus mandamentos são justos, que com razão me afligiste. 76 Seja tua misericórdia meu consolo como o prometeste a teu servo. 77 Que me alcance tua compaixão, e viverei, porque tua lei é minha delícia. 78 Que fracassem os insolentes quando me desprestigiam com mentiras; eu meditarei em teus decretos. 79 Voltem a mim teus fiéis tomam em consideração teus preceitos. 80 Que meu coração se aperfeiçoe com tuas normas, e assim não fracassarei. 81 Meu alento consome-se por tua salvação: espero em tua palavra. 82 Meus olhos consomem-se por tua promessa: quando me consolarás ? 83 Quando estava como odre enfumaçado, não me esquecia de tuas normas. 84 Quantos anos me restam? Quando me farás justiça de meus perseguidores ? 85 Cavam covas para mim insolentes que não se ajustam ã tua lei. 86 Todos os teus mandamentos são legítimos; sem razão me perseguem, socorre-me. 87 Quase deram comigo na tumba, mas eu não abandonei teus decretos. Salmo 119 1425 88 Segundo tua misericórdia, dá-me vida, e guardarei a instrução de tua boca. 89 Tua palavra, Senhor, no céu está firme para sempre. 90 De geração em geração tua fidelidade: firmaste a terra, e permanece. 91 Por tua disposição permanecem até hoje; o universo está a teu serviço. 92 Se tua vontade não fosse minha delícia, teria perecido em minha aflição. 93 Jamais me esquecerei de teus decretos, pois com eles me deste vida. 94 Eu sou teu, salva-me, pois consulto teus decretos. 95 Os malvados espreitavam-me para perder-me, eu meditava em teus preceitos. 96 Eu vi o termo de todo o acabado; teu mandato dilata-se sem termo. 97 Com amo tua vontade! Medito-a todo dia. 98 Teus mandamentos fazem-me mais hábil que meus inimigos, sempre vão comigo. 99 Sou mais douto que todos os meus mestres, porque medito em teus preceitos. 100 Sou mais sagaz que os anciãos, porque observo teus decretos. 101 Desvio meus pês de todo mau caminho, para observar tua palavra. 102 Não me afasto de teus mandamentos, porque tu me instruíste. 103 Quão doce é tua promessa ao paladar! mais que mel á boca. 104 Reflito sobre teus decretos, por isso detesto toda vereda falsa. 105 Tua palavra é lâmpada para meus passos, luz em minha vereda. 106 Jurei e cumprirei: observar teus justos mandamentos. 1426 107 Sinto-me gravemente afligido: dá-me vida, Senhor, por tua palavra. 108 Aceita, Senhor, minha oferta generosa e ensina-me teus mandamentos. 109 Continuamente arrisco a vida, mas não me esqueço de tua vontade. 110 Os malvados me põem armadilhas: eu não me desvio de teus decretos. 111 Teus preceitos são minha herança perpétua, são o gozo de meu coração. 112 Inclinei meu coração para cumprir tuas normas sempre e cabalmente. 113 Detesto os que se degarraram e amo tua vontade. 114 Tu és meu refúgio e meu escudo: espero em tuas palavras. 115 Afastai-vos, perversos, de mim, e guardarei os mandatos de meu Deus. 116 Sustenta-me com tua promessa, e viverei, não deixes frustrar-se minha esperança. 117 Dá-me apoio, e estarei a salvo, e fixar-me-ei continuamente em tuas normas. 118 Avalias os que se afastam de tuas normas como mentira e engano. 119 Avalias como escória os malvados, por isso amo teus preceitos. 120 Eriçam-me os pelos com teu terror e assustam-me teus mandamentos. 121 Pratico a justiça e o direito: não me entregues a meus opressores. 122 Sê fiador de teu servo, para que não me oprimam os insolentes. 123 Consomem-se-me os olhos por tua salvação, por tua promessa de justiça. 124 Trata teu servo com misericórdia e ensina-me tuas normas. 125 Sou teu servo, instrui-me, e compreenderei teus preceitos. 126 É hora de agir, Senhor, transgrediram tua lei. Salmo 119 Salmo 119 127 Por isso amo teus mandatos mais que o ouro mais puro. 128 Por isso sigo direito tuas normas e detesto toda vereda enganosa. 129 Admiráveis são teus preceitos: por isso os observa minha alma. 130 A explicação de tua palavra ilumina, instrui os inexpertos. 131 Abro bem a boca para respirar com ânsia de teus mandatos. 132 Volta-te a mim com piedade, 133 Firma meus passos com tua promessa, não me entregues ao poder de nenhuma maldade. 134 Livra-me da opressão humana, e guardarei teus decretos. 135 Mostra a teu servo teu rosto radiante, ensina-me tuas normas. 136 Arroios descem de meus olhos pelos que não guardam tua lei. 137 Justo és tu, Senhor, reto é teu mandamento. 138 Prescreveste preceitos justos, sumamente estáveis. 139 Consumo-me de zelo porque meus inimigos se esquecem de tuas palavras. 140 Tua promessa é acrisolada, e teu servo a ama. 141 Sou pequeno e desprezado, mas não me esqueço de teus decretos. 142 Tua justiça é justa para sempre, tua vontade é autêntica. 143 Assaltam-me angústia e aperto; teus mandatos são minha delícia. 144 Teus preceitos são justos para sempre; instrui-me, e viverei. 145 Clamo de todo o coração: responde-me, Senhor, guardarei tuas normas. 146 Eu te chamo: salva-me, e observarei teus preceitos. 1427 1428 147 Adianto-me à aurora e peço auxílio aguardando tuas palavras. 148 Meus olhos adiantam-se às vigílias meditanto em tua promessa. 149 Escuta minha voz por tua misericórdia, dá-me vida, Senhor, como é tua norma. 150 Aproximam-se os que perseguem infâmias e de tua lei se afastam. 151 Perto estás, tu, Senhor, e todos os teus mandatos são autênticos. 152 Há tempo compreendi que estabeleceste teus preceitos para sempre. 153 Olha minha aflição e livra-me, pois não esqueço tua vontade. 154 Defende minha causa e resgata-me, por tua promessa dá-me vida. 155 Longe fica dos malvados a salvação, pois não consultam tuas normas. 156 Grande é tua compaixão, Senhor, dá-me vida segundo tua norma. 157 Muitos são os inimigos que me perseguem, eu não me afasto de teus preceitos. 158 Vendo os renegados, sentia asco, porque não observam tuas instruções. 159 Olha como amo teus decretos; Senhor, por tua misericórdia dá-me vida. 160 O compêndio de tua palavra é a verdade, é eterno teu justo mandamento. 161 Príncipes me perseguem sem motivo; meu coração treme por tuas palavras. 162 Eu me alegro por tua promessa, como quem encontra rico butim. 163 Detesto e aborreço a mentira, amo tua vontade. 164 Sete vezes no dia te louvo por teus justos mandamentos. 165 Muita paz têm os que amam tua lei, nada os faz tropeçar. 166 Aguardo tua salvação, Senhor, e cumpro teus mandatos. Salmo 119 Bibliografia 1429 167 Minha alma guarda teus preceitos, ama-os intensamente. 168 Guardo teus preceitos e decretos, tens presentes todos os meus caminhos. 169 Chegue o meu clamor à tua presença, Senhor, instrui-me com tua palavra. 170 Que minha súplica chegue á tua presença: livra-me segundo tua promessa. 171 De meus lábios brota o louvor, porque me ensinaste tuas normas. 172 Entoa minha língua tua promessa, porque todos os teus mandatos são legítimos. 173 Que tua mão me auxilie, pois escolho teus decretos. 174 Anseio por tua salvação, Senhor, tua vontade é minha delícia. 175 Viva minha alma para louvar-te; teu mandamento me auxiliará. 176 Extraviei-me como ovelha desgarrada: busca o teu servo, que não se esquece de teus mandatos. 2. Bibliografia M. Löreh, Alphabetische und, alphabetisierende Lieder im A T , ZAW (1905)173-198. A. Robert, Le sens du mot “loi” dans le Ps 119, RB 46 (1937) 182-206. — Le Ps 119 et les Sapientiaux, RB 48 (1939) 5-20. H. J. 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Estudo global 1431 49. yhltny: piei anômalo, talvez yhlty BH. 50. nhmty: subst, verbo 2- pess Gr Vg. 58. hnny: lê hyny Sir. 61. hbly: insídias, caterva (ISm 10,10) Jerôn Targ. 67. !‘nh: lêem nifal Gr Vg. 70. khlb: como leite Gr Vg. 71. ‘nyty: lêem 2- pess Gr Vg. 83. qytwr: fumaça, escarcha Gr Vg. 85. krw ... shyhwt: narraverunt fabulationes Vg. 91. hywm: usque hodie Jerôn. 96. tklh: synteleian Gr, consummationem Vg, esperança (aramaico) Michaelis. 113. s ‘ypym: perversos, ambíguos (lRs 18,21). 117. w ’sh‘h: lêem w’sht‘sh‘ Gr Sir Teod Jerôn Gun Cast. 119. sgym: escória, de swg Gr Vg; hshbt leia-se hshbt Aq Sím Jerôn Berger. 120. smr: clavis confige Vg. 122. ‘rb: dar fiança (Gn 43,9; Jr 30,21), deleita (Pr 13,19) Sir Targ Qim. 128. kl: de toda classe (Ez 44,3) Ros. 130. pth: imperativo Sir. 133. tshlt: verbo fem com suj masc. 136. ‘I: equivale a Vsh. 139. qn’ty: suf 2- pess Sir. 143. Tríplice aliteração em mç-, 158. w’tqwtth: contender (aramaico) Targ Qim. 172. t‘n: canta (Ez 32,18). 4. Estudo global Já disse que o salmo mais breve dos saltério e o mais longo estão separados pela parede do 118: dois versículos diante de 176. Qual abrange mais? O que se dirige a todas as nações e canta uma fidelidade eterna ou o que repete 176 vezes sua devoção à lei? Certo dia, quase seguro depois do desterro, um autor teve uma idéia peregrina: cantar sua devoção à lei pelo procediemento alfabético em alarde de virtuosismo. O autor do SI 111-112 mostrou sua habilidade comprimindo as 22 letras do alfabeto no espaço de onze versículos ou 22 hemistíquios. O triunfo da brevidade. O autor do SI 119 quer demonstrar sua habilidade dedicando a cada letra do albebeto oito versículos seguidos. O triunfo da longitude. 1432 Salmo 119 O resultado literário tem algo de réstia, e para preencher suas porções o autor está disposto a pôr qualquer coisa que se relacione com seu tema: a lei. Por isso o salmo começa com bem-aventurança ou macarismo, tem muita reflexão misturada com petição, exorta ou propõe um programa, louva e dá graças. Inútil buscar neste produto gênero rigoroso ou coerente. Porque aqui manda o alfabeto, com seu apetite voraz de oito palavras que comecem com a mesma letra e produzam sentença significativa. A brevida de normal da sentença hebraica e o estilo paratático facilitam o trabalho do autor. Muitos comentadores foram generosos neste salmo. Santo Agostinho lhe dedica 112 páginas (da edição de Brepols), distribuídas em 32 sermões; Jacquet lhe consagra 80 páginas, Ravasi contenta-se com 64. Tento ser mais comedido: explicarei alguns aspectos de conjunto, depois comentarei blocos ou versículos seletos. Farei primeiro observações de tipo formal e depois comentarei brevemenente alguns conteúdos. a) O procedimento alfabético — É simplesmente um acróstico que, em vez de formar palavras com os começos de versículo, forma um alfabeto ou alefato. O peculiar, e terrível, do salmo, é que cada letra leva uma estrofe de oito versículos. A técnica é simples: sendo o tema a lei ou a devoção à lei, o autor toma oito sinônimos básicos da lei e alguns de reserva, com os quais enche os oito versículos. O princípio aplica-se com bastante regularidade e com algumas licenças que não posso chamar de poéticas. Porque de poético o salmo não tem nada; é um exercício materialmente bem logrado. As palavras hebraicas escolhidas são: twrh, ‘dwt pqswd hq mçwh mshpt dbr ’mrh. As oito são tratadas como sinônimos e são praticamente intercambiáveis. Para traduzi-las, o mais prático é estabelecer uma corrrespondência básica fixa e ater-se a ela no desenvolvimento. Complementar das oito pode-se considerar drk. — Há algo mais nesse procedimento tão artificioso e extrínseco? Falei da função mnemotécnica, quando se trata de casos mais moderados. Não sei se a seqüência de oito, alguns repetidos, ajuda a memória ou antes a recar rega e afadiga. Outra função do procedimento é demonstrar a perícia artesanal: suspeito que o autor ficou satisfeito e mesmo orgulhoso de sua façanha. Um pouco como nossas rimas consoantes ou algumas assoantes: a quantos rípios obriga, por exemplo, a oitava real em série; inclusive a redondilha ou o quarteto introduzem palavras de recheio. Nossos poetas e versificadores conhecem a rima pobre e a rica; até se publicam dicionários de rimas. Algo Estudo global 1433 assim o escritor do texto bíblico, só que dá atenção ao começo da palavra, e não ao final como a rima. Pelo que sabemos, o autor não dispunha de dicionário; tinha que tirar tudo de seus conhecimentos lingüísticos. Muitas vezes tem que recorrer a soluções pobres, a repetição da mesma palavra ou raiz. Pensemos no waiv, com tão poucas palavras em seu haver; em proporção, um tanto como o nosso ene. — Postos a imaginar, por que temos que pensar em autor único? Suponhamos que se reuniram 22 mestres e a cada um tocou compor uma estrofe sobre o tema da