Evangelho segundo S. Marcos 8,1-10.

Transcrição

Evangelho segundo S. Marcos 8,1-10.
Evangelho segundo S. Marcos 8,1-10. – cf.par. Mt 15,32-39
Naqueles dias, havia outra vez uma grande multidão e não tinham que comer. Jesus chamou
os discípulos e disse: «Tenho compaixão desta multidão. Há já três dias que permanecem
junto de mim e não têm que comer. Se os mandar embora em jejum para suas casas,
desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe.» Os discípulos responderam-lhe: «Como
poderá alguém saciá-los de pão, aqui no deserto?» Mas Ele perguntou: «Quantos pães
tendes?» Disseram: «Sete.» Ordenou que a multidão se sentasse no chão e, tomando os sete
pães, deu graças, partiu-os e dava-os aos seus discípulos para eles os distribuírem à multidão.
Havia também alguns peixinhos. Jesus abençoou-os e mandou que os distribuíssem
igualmente. Comeram até ficarem satisfeitos, e houve sete cestos de sobras. Ora, eram cerca
de quatro mil. Despediu-os e, subindo logo para o barco com os discípulos, foi para os lados
de Dalmanuta.
Baudoin de Ford (?- c. 1190), monge cisterciense
O Sacramento do Altar, II,1
«Tomando os sete pães e dando graças, partiu-os»
Jesus partiu o pão. Se não tivesse rompido o pão, como é que as migalhas chegariam até nós?
Mas ele partiu-o e distribuiu-o: « Distribuiu-o e deu-o aos pobres» (Sl 111,9 Vlg). Partiu-o
por amor, para quebrar a ira do Pai e a Sua. Deus tinha-o dito: ter-nos-ia aniquilado, se o seu
Único, «o seu eleito, não se tivesse posto diante dele, erguido sobre a brecha para afastar a sua
cólera» (Sl 105, 23). Ele colocou-se diante de Deus e apaziguou-o; pela sua força indefectível,
manteve-se de pé, não quebrado.
Mas Ele próprio, voluntariamente, partiu e distribuiu a Sua carne, rasgada pelo sofrimento.
Foi então que Ele «quebrou o poder do arco» (Sl 75,4), «quebrou a cabeça do dragão» (Sl
73,14), todos os nossos inimigos, com o Seu poder. Então, partiu de algum modo as tábuas da
primeira aliança, para que já não estejamos sob a Lei. Então quebrou o jugo da nossa prisão.
Quebrou tudo o que nos quebrava, para reparar em nós tudo o que estava quebrado, e para
«enviar livres os que estavam oprimidos» (Is 58,6), Com efeito, nós estávamos «cativos da
miséria e das correntes» (Sl 106,10).
Bom Jesus, ainda hoje, se bem que tenhas aniquilado a ira, partido o pão para nós, pobres
pedintes, continuamos com fome... Parte pois cada dia esse pão para aqueles que têm fome. É
que hoje e todos os dias recolhemos algumas migalhas, e cada dia precisamos de novo do
nosso pão quotidiano. «Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.» (Lc 11,3) Se Tu não o dás,
quem o dará? Na nossa privação, na nossa carência não há ninguém para nos partir o pão,
ninguém para nos alimentar, ninguém para nos refazer, ninguém senão Tu, ó nosso Deus. Em
todo o consolo que nos mandas, recolhemos as migalhas desse pão que nos partes e
saboreamos «como é doce a tua misericórdia» (Sl 108,21 Vlg).
S. João Crisóstomo (c. 345-407), bispo de Antioquia depois de Constantinopla, doutor da
Igreja
Homilias sobre S. Mateus
O nosso pastor dá-se a si próprio como alimento
«Quem poderá dizer as proezas do Senhor? Quem fará ressoar todo o Seu louvor?» (Sl 106,2).
Que pastor alimentou alguma vez as suas ovelhas com o seu próprio corpo? Mas que digo eu,
um pastor? Muitas vezes as mães confiam os seus filhos a amas, desde que nascem. Mas Jesus
não pode aceitar isso para as suas ovelhas; alimenta-nos Ele mesmo com o Seu próprio
sangue, e assim faz-nos ser um só corpo com Ele.
Considerai, meus irmãos, que Cristo nasceu da nossa própria substância humana. Mas, direis,
que importa isso? Isso não diz respeito a todos os homens. Perdão, meu irmão, é para proveito
de todos eles. Se Ele se fez homem, se veio tomar a nossa natureza, isso diz respeito à
salvação de todos os homens. E, se Ele veio para todos, veio também para cada um em
particular. Direis talvez: Então por que é que nem todos os homens receberam o fruto que
deveriam obter dessa vinda? Não acuseis Jesus que escolheu esse meio para salvação de
todos; o erro está naqueles que rejeitam esse benefí cio. Uma vez que na Eucaristia Jesus
Cristo se une a cada um dos seus fiéis, fá-los renascer, alimenta-os de Si próprio, não os
abandona a outrem e assim convence-os, uma vez mais, de que tomou verdadeiramente a
nossa carne.
Evangelho segundo S. Marcos 8,11-13. – cf.par. Mt 16,1-12
Apareceram os fariseus e começaram a discutir com Ele, pedindo-lhe um sinal do céu para o
pôr à prova. Jesus, suspirando profundamente, disse: «Porque pede esta geração um sinal? Em
verdade vos digo: sinal algum será concedido a esta geração.» E, deixando-os, embarcou de
novo e foi para a outra margem.
Santo Hilário (v. 315-367), Bispo de Poitiers e Doutor da Igreja
A Santíssima Trindade, livro 12, 52-53 (trad. Sr Isabelle de la Source, Lire la Bible,
Mediaspaul 1988, t. 1, p. 19)
«Por que pede esta geração um sinal?»
Pai Santo, Deus Todo Poderoso [...], quando levanto para o Teu céu a fraca luz dos meus
olhos, posso duvidar de que é o Teu céu? Quando contemplo o caminho das estrelas, o seu
regresso no ciclo anual, quando vejo as Plêiades, a Ursa Menor e a Estrela da Manhã e
considero como cada uma brilha no lugar que lhe foi assinalado, compreendo, ó Deus, que Tu
estás aí, nesses astros que eu não compreendo. Quando vejo «as belas ondas do mar» (Sl
92,4), não compreendo a origem dessas águas, não compreendo sequer o que põe em
movimento os seus fluxos e refluxos regulares, e no entanto, creio que existe uma causa –
certamente impenetrável para mim – para estas realidades que ignoro, e também aí eu
pressinto a Tua presença.
Se volto o meu espírito para a terra, que, pelo dinamismo das forças escondidas, decompõe
todas as sementes que acolheu no seu seio, as faz germinar lentamente e as multiplica, e
depois lhes permite crescerem, não encontro nada que possa compreender com a minha
inteligência; mas esta ignorância ajuda-me a discernir-Te a Ti, porque, se não conheço a
natureza posta ao meu serviço, reencontro-Te, no entanto, pelo facto de ela estar lá para
minha utilização.
Se me volto para mim, a experiência diz-me que não me conheço a mim próprio e admiro-Te
tanto mais quanto sou para mim um desconhecido. De facto, mesmo que não os possa
compreender, tenho a experiência dos movimentos do meu espírito que julga, destas
operações, da sua vida, e esta experiência a Ti a devo, a Ti que me deste a partilhar esta
natureza sensível que faz a minha felicidade, mesmo que a sua origem esteja para além da
minha inteligência. Eu não me conheço a mim próprio, mas dentro de mim encontro-Te e, ao
encontrar-Te, adoro-Te.
Beata Teresa de Calcutá (1910-1997), fundadora das Irmãs Missionárias da Caridade
Um Caminho Simples
"Para o porem à prova, pediram-lhe um sinal"
Deus está em toda a parte, em tudo, e sem Ele não podemos existir. Nem um só instante
duvidei da sua existência mas sei que alguns vivem na dúvida. Se não acreditais em Deus,
podeis, no entanto, ajudar os outros com actos inspirados pelo amor e o fruto dessas obras
serão graças suplementares que descerão à vossa alma. Começareis então a desabrochar
lentamente e aspirareis à alegria de amar a Deus.
Há tantas religiões! Cada um segue Deus à sua maneira. Quanto a mim, sigo o caminho de
Cristo: Jesus é o meu Deus, Jesus é o meu Esposo, Jesus é o meu único Amor, Jesus é o meu
Tudo em tudo, Jesus é tudo para mim.
Eis a razão por que nunca tenho medo. Faço o meu trabalho com Jesus, faço-o por Ele,
dedicando-lho; por isso, os resultados são seus e não meus. Se precisais de um guia, só tendes
que voltar os olhos para Jesus. Deveis entregar-vos a Ele e contar inteiramente com Ele.
Quando fazeis isso, a dúvida dissipa-se e a segurança invade-vos. Mas Jesus disse: "Se não
vos tornardes semelhantes a uma criança, não podereis vir a mim" (Mt 18,3).
Santo (Padre) Pio de Pietrelcina (1887-1968), capuchinho
CE,57 ; Ep 3,400s (Um Pensamento)
“Porque é que esta geração exige um sinal?”
O mais belo acto de fé é o que sai dos teus lábios em plena obscuridade, no meio dos
sacrifícios, dos sofrimentos, o esforço supremo de uma vontade firme em fazer o bem. Como
um raio, este acto de fé dissipa as trevas da tua alma; no meio dos relâmpagos da tempestade,
ela eleva-te e conduz-te a Deus.
A fé viva, a certeza inquebrantável e a adesão incondicional à vontade do Senhor, eis a luz
que alumia os passos do povo de Deus no deserto. É esta mesma luz que resplandece a cada
instante em todo o espírito agradável ao Pai. Foi também esta luz que conduziu os magos e os
fez adorar o Messias recém-nascido. É a estrela profetizada por Balaão (Nm 24,17), o archote
que guia os passos de todo o homem que procura Deus.
Ora esta luz, esta estrela, este archote, são igualmente o que ilumina a tua alma, o que dirige
os teus passos para te impedir de vacilar, o que fortifica o teu espírito no amor de Deus. Tu
não a vês, tu não a compreendes, mas isso não é necessário. Tu só verás trevas, certamente
não as dos filhos da perdição, mas sim as que rodeiam o Sol eterno. Tem por certo que esse
Sol resplandece na tua alma; o profeta do Senhor cantou a seu respeito: “na tua luz é que
vemos a luz” (SL 36,10).
Santo [Padre] Pio de Pietrelcina (1887-1968), capuchinho
Um Pensamento
“Porque é que esta geração pede um sinal?”: Acreditar mesmo na obscuridade
O Espírito Santo diz-nos: Não deixeis o vosso espírito sucumbir à tentação e à tristeza porque
a alegria do coração é a vida da alma. A tristeza não serve para nada e cria a morte espiritual.
Acontece por vezes que as trevas da prova oprimem o céu da vossa alma; mas elas são luz! É
graças a elas que vós credes na obscuridade; o espírito sente-se perdido, receoso por já não
ver, por já nada compreender. Mas é nesse momento que o Senhor fala e se torna presente à
alma; e esta escuta, compreende e ama no temor de Deus. Para “ver” Deus, não espereis pois
pelo Tabor (Mt 17,1) quando já o contempláveis no Sinai (Ex 24,18).
Progredi na alegria de um coração sincero e de grande abertura. E se vos é impossível
conservar esta alegria, pelo menos não perdeis a coragem e conservai toda a vossa confiança
em Deus.
Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (Norte de África) e doutor da Igreja
Sermão 126
“Porque é que esta geração pede um sinal?”
Vês então duas coisas: de um lado, obras divinas; de outro lado, um homem. Se só Deus pode
realizar obras divinas, então presta bem atenção e vê se Deus não estará escondido naquele
homem. Sim, está bem atento ao que vês e crê no que não vês. Aquele que te chamou a
acreditar, não te abandonou a ti mesmo; mesmo quando te pede que creias no que não podes
ver, não te deixou sem nada para ver, não te deixou privado de alguma coisa que te possa
levar a crer naquilo que não vês. Será que, para ti, a própria criação é um sinal pobre, uma
manifestação frágil do seu Criador? Repara que ele vem e faz milagres. Não podias ver Deus,
mas podias ver um homem; então Deus fez-se homem, para unificar em ti o que vês e o que
crês.
Evangelho segundo S. Marcos 8,14-21.
Os discípulos tinham-se esquecido de levar pães e só traziam um pão no barco. Jesus
começou a avisá-los, dizendo: «Olhai: tomai cuidado com o fermento dos fariseus e com o
fermento de Herodes.» E eles discorriam entre si: «Não temos pão.» Mas Ele, percebendo-o,
disse: «Porque estais a discorrer que não tendes pão? Ainda não entendestes nem
compreendestes? Tendes o vosso coração endurecido? Tendes olhos e não vedes, tendes
ouvidos e não ouvis? E não vos lembrais de quantos cestos cheios de pedaços recolhestes,
quando parti os cinco pães para aqueles cinco mil?» Responderam: «Doze.» «E quando parti
os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de bocados recolhestes?» Responderam:
«Sete.» Disse-lhes então: «Ainda não compreendeis?»
Santo Hilário (cerca de 315 - 367), bispo de Poitiers e doutor da Igreja
Tratado sobre a Trindade
"Não compreendeis ainda? Tendes os vossos corações cegos?"
Pai, Deus todo-poderoso, é a ti que devo consagrar a principal ocupação da minha
vida. Que todas as minhas palavras e pensamentos se ocupem de ti. Porque somos
pobres, pedimos aquilo que nos falta; faremos um esforço desmedido para entender
as palavras dos teus profetas e dos teus apóstolos, bateremos a todas as portas que
nos dêem acesso a uma compreensão que nos está vedada.
Mas é a ti que cabe atender o nosso pedido, conceder o que procuramos, abrir a
porta fechada. Na verdade, vivemos numa espécie de torpor por causa do nosso
adormecimento natural; estamos impedidos de compreender os teus mistérios por
uma ignorância invencível devida à fraqueza do nosso espírito.
Mas o zelo pelos teus ensinamentos fortalece a nossa percepção da ciência divina e
a obediência da fé nos ergue acima da nossa capacidade natural para conhecer.
Esperamos, assim, que tu estimules os começos desta difícil empresa, que a
fortaleças com um sucesso crescente, que a chames a partilhar o espírito dos
profetas e dos apóstolos. Quereríamos compreender as suas palavras no sentido
com que eles as pronunciaram e empregar os termos exatos para transmitir
fielmente as realidades que eles exprimiram. Concede-nos o sentido exato das
palavras, a luz da inteligência, a elevação da linguagem, a ortodoxia da fé; aquilo em
que acreditamos, concede-nos que também o afirmemos.
São Vicente de Lerins (?-antes de 450), monge
Commonitorium, 23
“Não vedes? Ainda não compreendeis?”
Não pode haver progresso na doutrina na Igreja de Cristo? […] Mas certamente que tem de
haver, e progresso considerável! Quem poderá ser tão invejoso dos homens e inimigo de Deus
que tente opor-se a ele? Mas desde que se trate de verdadeiro progresso, e não de alterações à
fé. […] É necessário, pois, que aumentem e progridam fortemente, quer num homem só, quer
na Igreja inteira, no decurso dos tempos e dos séculos, a inteligência, a ciência e a sabedoria;
mas é necessário que cada uma delas progrida segundo a sua natureza própria, isto é, na
mesma doutrina, no mesmo sentido, na mesma afirmação.
Que a religião das almas imite, pois, o desenvolvimento dos corpos que, ainda que evoluam e
aumentem com o passar dos anos, continuam a ser o que eram. Há grande diferença entre a
eclosão da infância e os frutos da velhice, mas é sempre a mesma pessoa, a que passa da
infância à idade madura. É sempre o mesmo homem, aquele cuja estatura e cujas maneiras se
modificam, mantendo ele a mesma natureza, permanecendo ele uma só e a mesma pessoa. Os
membros das crianças são pequenos, os dos jovens são grandes; mas são sempre os mesmos
[…], os que já existiam no embrião. […]
Também a fé cristã deve seguir estas leis do progresso, a fim de se fortalecer com os anos, de
se desenvolver com o tempo, de se enobrecer com a idade. Os nossos pais semearam o
fermento da fé para a colheita da Igreja. Seria injusto e chocante que nós, os seus
descendentes, em vez do trigo da verdade autêntica, recolhêssemos o erro fraudulento do joio
(Mt 13, 24 ss.). Pelo contrário, é justo e é lógico que não haja discordância entre os começos e
o fim, e que recolhamos esse trigo que se desenvolveu a partir da sementeira do mesmo trigo.
Assim, embora uma parte das primeiras sementes deva evoluir com o tempo, convirá sempre
fertilizá-las e aperfeiçoar o seu cultivo.
Jean Pierre de Caussade (1675-1751), jesuita
Abandono na Providência divina (§26)
«Ainda não entendestes nem compreendestes?»
Se perfurássemos o véu, e se estivéssemos vigilantes e atentos, Deus revelar-Se-nos-ia sem
cessar e usufruiríamos da Sua acção em tudo quanto nos acontece, dizendo perante todas as
coisas: «Dominus est, é o Senhor!» (Jo, 21, 7). E descobriríamos em todas as circunstâncias
um dom de Deus.
Consideraríamos as criaturas frágeis instrumentos nas mãos de um obreiro omnipotente; e
reconheceríamos sem dificuldade que nada nos falta, e que a contínua atenção de Deus O leva
a proporcionar-nos em cada instante aquilo que nos convém. Se tivéssemos fé, teríamos boa
vontade para com todas as criaturas; haveríamos de as acariciar, interiormente gratos pelo
facto de elas servirem e se tornarem favoráveis à nossa perfeição, aplicada pela mão de Deus.
Se vivêssemos ininterruptamente uma vida de fé, estaríamos em permanente comércio com
Deus, falando com Ele a todo o momento.
A fé é intérprete de Deus; sem os esclarecimentos que ela proporciona, não compreendemos a
linguagem das criaturas. Esta é uma escrita em números, onde apenas vemos confusão; uma
amálgama de espinhos, de onde não nos ocorre que Deus possa falar. Mas a fé permite-nos
ver, como Moisés, o fogo da caridade divina que arde no seio destes espinhos (Ex 3, 2); a fé
dá-nos a chave destes números, permitindo-nos descobrir, no meio da confusão, as maravilhas
da sabedoria do alto. A fé confere um rosto celeste a toda a terra; é por meio dela que o
coração é transportado, arrebatado, para conversar no céu. [...] A fé é a chave dos tesouros, a
chave do abismo, a chave da ciência de Deus.
Evangelho segundo S. Marcos 8,22-26.
Chegaram a Betsaida e trouxeram-lhe um cego, pedindo-lhe que o tocasse. Jesus tomou-o pela
mão e conduziu-o para fora da aldeia. Deitou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e
perguntou: «Vês alguma coisa?» Ele ergueu os olhos e respondeu: «Vejo os homens; vejo-os
como árvores a andar.» Em seguida, Jesus impôs-lhe outra vez as mãos sobre os olhos e ele
viu perfeitamente; ficou restabelecido e distinguia tudo com nitidez. Jesus mandou-o para
casa, dizendo: «Nem sequer entres na aldeia.»
S. Gregório de Nissa (cerca de 335 - 395), monge e bispo
Homilias sobre as Bem-aventuranças
"Verão a Deus"
A impressão que se tem quando lançamos os olhos sobre a imensidão do mar é a mesmo que
o meu espírito experimenta quando, do alto das palavras escarpadas do Senhor, tal como do
cimo de uma falésia, eu contemplo o seu abismo infinito. A minha alma experimenta a
vertigem diante desta palavra do Senhor: "Felizes os que têm o coração puro, porque verão a
Deus" (Mt 5,8). Deus oferece-se ao olhar dos que têm o coração puro. Ora "nunca ninguém
viu Deus" (Jo 1,18), diz S. João. E S. Paulo confirma esta ideia ao falar daquele que "nenhum
de entre os homens viu nem pode ver" (1 Tm 6,16). Deus é aquele rochedo abrupto e aguçado,
que não oferece a menor hipótese à nossa imaginação. Também Moisés lhe chamava o
Inacessível: "Ninguém, diz ele, pode ver o Senhor e viver" (Ex 33,20). Mas como então? A
vida eterna é a visão de Deus e estes pilares da nossa fé certificam-nos que ela é impossível?!
Que abismo!... Se Deus é a vida, aquele que o não vê também não vê a vida...
Ora o Senhor estimula a nossa esperança. Não deu ele uma prova disso em relação a Pedro?
Debaixo dos pés desse discípulo que quase se afogava, ele firmou e endureceu as ondas do
mar (Mt 4,30). Será que a mão do Verbo se estenderá também sobre nós, que somos
submergidos nestes abismos, será que ela nos tornará firmes? Podemos então confiar, porque
seremos firmemente dirigidos pela mão do Verbo.
"Felizes os que têm o coração puro, porque verão a Deus". Uma tal promessa ultrapassa as
nossas maiores alegrias; depois dessa felicidade que outra poderíamos desejar?... Aquele que
vê a Deus possui, com esta visão, todos os bens imagináveis: uma vida sem fim, uma
incorruptibilidade perpétua, uma alegria inesgotável, um poder invencível, delícias eternas,
uma luz verdadeira, as suaves palavras do espírito, uma glória incomparável, um júbilo jamais
interrompido, todos os bens, enfim. Que grandes e belas esperanças nos oferece pois esta
bem-aventurança!
S. Teófilo de Antioquia, (? - cerca de 186), bispo
Primeiro discurso a Autólico
"Felizes os puros de coração, porque verão a Deus" (Mt 5,8)
Tal como um espelho brilhante, o homem deve ter uma alma pura. Quando a ferrugem se
instala no espelho, o homem deixa de poder ver nele o reflexo do seu rosto. De igual forma,
quando há pecado no coração do homem, deixa de lhe ser possível ver Deus...
Mas, se quiseres, podes curar-te. Confia-te ao médico; Ele abrirá os olhos da tua alma e do teu
coração. Quem é o médico? É Deus que cura e vivifica pelo Verbo e pela Sabedoria. Foi pelo
Seu Verbo e pela Sabedoria que Deus criou o universo. "Pelo Seu Verbo foram fundados os
céus, e pelo Seu Espírito os poderes dos ceus" (Sl 32, 6). A Sua Sabedoria é omnipotente:
"Pela Sabedoria, Deus fundou a terra e estabeleceu os céus com inteligência" (Pr 3, 19)...
Se souberes isto, ó homem, e se levares uma vida pura, santa e justa, poderás ver Deus. Que a
fé e o temor de Deus tomem antes de tudo lugar no teu coração, e compreendê-lo-ás. Quando
tiveres abandonado a condição mortal e revestido a incorruptibilidade, então serás digno de
ver a Deus. Porque Deus terá ressuscitado a tua carne, tornada imortal como a tua alma. E
então, tornado imortal, verás o Imortal, desde que agora deposites nele a tua fé.
Evangelho segundo S. Marcos 8,27-33. – cf.par. Mt 16,13-23; Lc 9,18-22
Jesus partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No caminho, fez aos
discípulos esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?» Disseram-lhe: «João
Baptista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas.» «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.» Ordenou-lhes, então, que
não dissessem isto a ninguém. Começou, depois, a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha
de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei,
e ser morto e ressuscitar depois de três dias. E dizia claramente estas coisas. Pedro,
desviando-se com Ele um pouco, começou a repreendê-lo. Mas Jesus, voltando-se e olhando
para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo-lhe: «Vai-te da minha frente, Satanás, porque
os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens.»
Liturgia Latina
Hino de matinas do tempo da Paixão: "Pange, lingua, gloriosi"
"Começou então a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito"
Canta, língua gloriosa,
o combate singular
em que o Salvador do mundo,
pregado na dura cruz,
com o preço do seu sangue
resgatou a humanidade.
Como Adão no Paraíso
comeu o vedado pomo,
assim o Criador do mundo
decretou, compadecido,
que uma árvore nos desse
o que na outra perdemos.
Deus quis vencer o inimigo
com as suas próprias armas;
a Sabedoria aceitou
o tremendo desafio
e, onde nascera a morte,
brotou a fonte da vida.
Mandou o Senhor aos homens,
na plenitude dos tempos,
Deus de Deus, seu próprio Filho,
que do céu baixou à terra
e que no seio da Virgem
tomou um corpo mortal.
Ao chegar a sua hora,
o Homem Deus percorreu
o caminho do Calvário
como inocente cordeiro,
pois Ele viera ao mundo
para morrer numa cruz.
Elevemos jubilosos
à Santíssima Trindade
o louvor que lhe devemos
pela nossa salvação:
ao Eterno Pai, ao Filho
e ao Espírito de amor.
Amen.
Paulo VI, Papa entre 1963 e 1978
“E vós, quem dizeis vós que Eu sou?”
Tenho de proclamar o seu nome: Jesus é “o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16). Foi Ele
quem nos revelou o Deus invisível, é Ele o “Primogénito de toda a criação”, é nele que “todas
as coisas têm a sua subsistência” (Col 1, 15, 17). Ele é o senhor da humanidade e o seu
redentor, que nasceu, morreu e ressuscitou por nós.
Ele é o centro da história do mundo; conhece-nos e ama-nos; é o companheiro e o amigo da
nossa vida, o “homem das dores” (Is 53, 3) e da esperança; é aquele que há-de vir, que será
finalmente o nosso juiz e também – assim confiamos – a nossa vida plena e a nossa beatitude.
Por mais que diga, sempre me resta muito a dizer sobre Ele; Ele é a luz, Ele é a verdade; mais
ainda, é “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). É o pão e a fonte de água viva, que nos
sacia a fome e a sede. É o nosso pastor, o nosso chefe, nosso modelo, nosso conforto e nosso
irmão. Como nós, e mais do que nós, foi pequeno, pobre, humilde, trabalhador, oprimido,
sofredor.
São César de Arles (470-543), monge e bispo
Sermão 159, 1, 4-6
«Siga-Me.»
Quando o Senhor nos diz no evangelho: “Se alguém quer vir após Mim, renuncie a si
mesmo”, achamos que Ele nos manda fazer uma coisa difícil, e consideramos que nos impõe
um fardo pesado. Mas se Aquele que manda nos ajuda a realizar aquilo que manda, deixa de
ser difícil cumpri-lo. […]
Para onde devemos seguir Cristo senão para onde Ele foi? Ora, nós sabemos que Ele
ressuscitou e subiu aos céus; é para aí que temos de O seguir. Não devemos deixar-nos tomar
pelo desespero porque, se nada podemos por nós mesmos, contamos com a promessa de
Cristo. O céu estava longe de nós antes de a nossa Cabeça ter ascendido até ele. A partir de
agora, se somos membros do corpo a que esta Cabeça pertence (Col 1, 18), por que havemos
de desesperar de chegar ao céu? Se nesta terra são muitas as preocupações e os sofrimentos
que nos afligem, sigamos a Cristo, em quem se encontram a felicidade perfeita, a paz suprema
e a tranquilidade eterna.
Mas o homem desejoso de seguir a Cristo ouvirá est a palavra do apóstolo João: “Aquele que
diz que está nele deve também andar como Ele andou” (1 Jo 2, 6). Queres seguir a Cristo? Sê
humilde, como Ele foi humilde. Queres juntar-te a Ele nas alturas? Não desprezes o Seu
abatimento.
Pregador do Papa: «Para você, que sou eu?«, continua perguntando Jesus a cada um
Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre a liturgia do próximo domingo
ROMA, sexta-feira, 15 de setembro de 2006 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do Pe.
Raniero Cantalamessa, ofmcap. -- pregador da Casa Pontifícia» -- sobre a liturgia do próximo
domingo, XXIV do tempo comum.
***
E vós, quem dizeis que eu sou?
XXIV Domingo do tempo comum (B)
Isaías 50, 5-9a; Tiago 2, 14-18; Marcos 8, 27-35
Os três [evangelhos] sinópticos referem o episódio de Jesus, quando em Cesaréia de Filipe
perguntou aos apóstolos quais eram as opiniões das pessoas sobre Ele. O dado comum nos
três é a resposta de Pedro: «Tu és o Cristo». Mateus acrescenta: «o Filho do Deus vivo» (Mt
16, 16) que poderia, contudo, ser uma manifestação devida à fé da Igreja depois da Páscoa.
Logo, o título «Cristo» converteu-se em um segundo nome de Jesus. Encontra-se mais de 500
vezes no Novo Testamento, quase sempre na forma composta «Jesus Cristo» ou «Nosso
Senhor Jesus Cristo». Mas ao princípio não era assim. Entre Jesus e Cristo se subentendia um
verbo: «Jesus é o Cristo». Dizer «Cristo» não era chamar Jesus pelo nome, mas fazer uma
afirmação sobre Ele.
Cristo, sabemos, é a tradução grega do hebreu Mashiah, Messias, e ambos significam
«ungido». O termo deriva do fato que no Antigo Testamento os reis, profetas e sacerdotes, no
momento de sua eleição, eram consagrados mediante uma unção com óleo perfumado. Mas
cada vez mais claramente na Bíblia se fala de um Ungido ou Consagrado especial que virá
nos últimos tempos para realizar as promessas de salvação de Deus a seu povo. É o chamado
messianismo bíblico, que assume diversos matizes segundo o Messias é visto, como um
futuro rei (messianismo real) ou como o Filho do homem de Daniel (messianismo
apocalíptico).
Toda a tradição primitiva da Igreja é unânime ao proclamar que Jesus de Nazaré é o Messias
esperado. Ele mesmo, segundo Marcos, se proclamará tal ante o Sinédrio. À pergunta do
sumo sacerdote: «És tu o Cristo, o Filho do Bendito?», Ele responde: «Sim, eu o sou» (Mc 14,
61 s).
Tanto mais, portanto, desconcerta a continuação do diálogo de Jesus com os discípulos em
Cesaréia de Filipe: «E lhes mandou energicamente que a ninguém falassem acerca d’Ele».
Contudo, o motivo está claro. Jesus aceita ser identificado com o Messias esperado, mas não
com a idéia que o judaísmo havia construído sobre o Messias. Na opinião dominante, este era
visto como um líder político e militar que livraria Israel do domingo pagão e instauraria,
através a força, o reino de Deus na terra.
Jesus tem que corrigir profundamente esta idéia, compartilhada por seus próprios apóstolos,
antes de permitir que se falasse d’Ele como Messias. A isso se orienta o discurso que segue
imediatamente: «E começou a ensiná-los que o Filho do homem devia sofrer muito...». A dura
palavra dirigida a Pedro, que busca dissuadi-lo de tais pensamentos: «Afasta-te de mim,
Satanás!», é idêntica à dirigida ao tentador do deserto. Em ambos casos, trata-se, de fato, do
mesmo intento de desviar-lhe do caminho que o Pai lhe indicou -- o do Servo sofredor de Javé
-- por outro que é «segundo os homens, não segundo Deus».
A salvação virá do sacrifício de dar «a vida em resgate de muitos», não da eliminação do
inimigo. De tal maneira, de uma salvação temporal se passa a uma salvação eterna, de uma
salvação particular -- destinada a um só povo -- se passa a uma salvação universal.
Lamentavelmente, temos de constatar que o erro de Pedro se repetiu na história. Também
determinados homens de Igreja, e até sucessores de Pedro, se comportaram em certas épocas
como se o reino de Deus fosse deste mundo e como se fosse necessário afirmar-se com a
vitória (se é necessário também das armas) sobre os inimigos, em vez de fazê-lo com o
sofrimento e o martírio.
Todas as palavras do Evangelho são atuais, mas o diálogo de Cesaréia de Filipe o é de forma
de todo especial. A situação não mudou. Também hoje, sobre Jesus, existem as mais diversas
opiniões das pessoas: um profeta, um grande mestre, uma grande personalidade. Converteu-se
em uma moda apresentar Jesus nos espetáculos e nas novelas, nos costumes e com as
mensagens mais estranhas. O Código da Vinci é só o último episódio de uma longa série.
No Evangelho, Jesus não parece surpreender-se com as opiniões das pessoas, nem se
preocupa em desmenti-las. Só propõe uma pergunta aos discípulos, e assim o faz também
hoje: «Para vós, para você, quem sou eu?». Existe um salto por dar, que não vem da carne
nem do sangue, mas que é dom de Deus que é preciso acolher mediante a docilidade a uma
luz interior da qual nasce a fé. Cada dia, há homens e mulheres que dão este salto. Às vezes,
trata-se de pessoas famosas -- atores, atrizes, homens de cultura --, e então são notícia. Mas
infinitamente mais numerosos são os crentes desconhecidos. Em certas ocasiões, os não
crentes interpretam estas conversões como fraqueza, crises sentimentais ou busca de
popularidade, e pode dar-se que em algum caso seja assim. Mas seria uma falta de respeito à
consciência dos outros arrojar descrédito sobre cada história de conversão.
Uma coisa é certa: os que deram este salto não voltarão atrás por nada do mundo, e mais
ainda, se surpreendem de ter podido viver tanto tempo sem a luz e a força que vem da fé em
Cristo. Como São Hilário de Poitiers, que se converteu sendo adulto, estão dispostos a
exclamar: «Antes de conhecer-te, eu não existia».
[Tradução realizada por Zenit]
ZP06091501
S. João da Cruz (1542-1591), carmelita, doutor da Igreja
Cântico Espiritual
"Os teus pensamentos não são os de Deus"
A profundidade da sabedoria e da ciência de Deus é imensa, a tal ponto que a alma, ainda que
numa certa medida lhe reconheça as maravilhas, pode sempre penetrar ainda mais longe.
Perante estas riquezas incalculáveis, S. Paulo lançava este grito de admiração: "Oh
profundidade dos tesouros da sabedoria e da ciência de Deus! Como são incompreensíveis os
seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!" (Ro 11,33)
A alma deseja ardentemente mergulhar cada dia mais nestas divinas profundezas, neste
abismo imprescrutável dos juízos e dos caminhos de Deus; conhecê-los é um gozo
inestimável que ultrapassa qualquer sentimento... Oh! se se compreendesse como é
impossível... possuir estes imensos tesouros sem passar pelo sofrimento! Com que ardor a
alma desejaria a graça de sofrer a cruz! Com que consolação, com que alegria ela a acolheria
para poder entrar nos segredos dessa sabedoria divina!... Porque a porta que introduz nos
tesouros da sabedoria é tanto mais estreita (Mt 7,13) que não é outra senão a própria cruz. Um
grande número de almas, é certo, aspira a gozar das delícias que ela nos dá; mas bem poucas
há que desejem passar pela única porta que aí conduz.
Evangelho segundo S. Marcos 8,34-38.9,1. – cf.par. Mt 16,24-28; Lc 9,2-27
Chamando a si a multidão, juntamente com os discípulos, disse-lhes: «Se alguém quiser vir
após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Na verdade, quem quiser salvar a
sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, háde salvá-la. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Ou que
pode o homem dar em troca da sua vida? Pois quem se envergonhar de mim e das minhas
palavras entre esta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará
dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.» Disse-lhes também: «Em
verdade vos digo que alguns dos aqui presentes não experimentarão a morte sem terem visto o
Reino de Deus chegar em todo o seu poder.»
Santo Isaac o Sírio (sec. VII), monge de Nínive, perto de Mossoul no actual Iraque
Discursos Ascéticos, 1ª série, nº 4
«Aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas aquele que perder a sua vida por
mim e pelo Evangelho salvá-la-á»
O caminho de Deus é uma cruz quotidiana. Nunca ninguém chegou ao céu confortavelmente.
Sabemos aonde nos leva essa via do conforto. Deus nunca deixa sem inquietação quem se
consagra a Ele de todo o coração; concede-lhe a inquietação da verdade. É aliás nisso que se
percebe que Deus guarda um tal homem: condu-lo através de aflições.
A Providência nunca deixa cair na mão dos demónios aqueles que passam a vida em
provação. Sobretudo se beijam os pés dos seus irmãos, se ocultam as suas faltas (1Pd 4,8) e as
escondem como se fossem as suas próprias faltas. Aquele que quer estar no mundo sem
inquietação, aquele que tem esse desejo e que, ao mesmo tempo, procura trilhar o caminho da
virtude, esse saiu do caminho. É que os justos, não só lutam com toda a vontade para cumprir
as boas obras, mas lutam também contra si nas tentações; assim se comprova a sua paciência.
Cardeal Joseph Ratzinger [Papa Bento XVI]
Um só Senhor
"Siga-me!"
Os sacramentos da Igreja são, tal como a própria Igreja, o fruto do grão de trigo que morre (Jo
12,24). Para os receber, devemos entrar no dinamismo de onde eles mesmos provêm. Esse
dinamismo consiste em perdermo-nos para nós próprios, sem o que nunca nos encontraremos:
"Quem quiser guardar a vida, perdê-la-á; mas quem a perder por causa de mim e do
Evangelho, esse a guardará". Esta palavra do Senhor é a fórmula fundamental de uma vida
cristã. Acreditar, em definitivo, é dizer "sim" a essa santa aventura da "perda de si mesmo";
na sua essência, a fé não é outra coisa senão o verdadeiro amor. Assim, a forma característica
da vida cristã vem-lhe da cruz. A abertura cristã ao mundo, tão falada nos nossos dias, só
pode encontrar o verdadeiro modelo no lado aberto do Senhor (Jo 19,34), expressão deste
amor radical, o único capaz de salvar.
Isaac de l'Etoile (? - cerca de 1171), monge cisterciense
Sermão 12
“Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”
Feliz a alma, queridos irmãos, que pode seguir em tudo o Senhor Jesus “para onde quer que
ele vá” (Ap 14,4): ela sobe no repouso da contemplação, serenamente ocupada a ver Deus, e
desce pelo exercício da caridade, seguindo-o até se abaixar no serviço, amar a pobreza,
suportar a fome, a sede, a fadiga, o trabalho, as lágrimas, a oração, a compaixão enfim, e a
paixão; porque Cristo veio obedecer até à morte, servir e não ser servido, dar não o ouro ou a
prata, mas o seu ensino e a sua assistência à multidão, e a sua vida pela multidão...
Que seja pois este, irmãos, o modelo da vossa vida; porque esta é a regra de uma conduta
santa: com Cristo, pelo pensamento e pelo desejo, viver na pátria eterna; por Cristo, não se
recusar a nenhuma obra de caridade neste duro exílio terrestre; atrás de Cristo subindo em
direcção ao Pai, deixar-se reduzir, simplificar, unificar no repouso da meditação. Atrás de
Cristo descendo na direcção do seu irmão, deixar-se distender, partilhar, repartir, fazer-se tudo
para todos na acção; nada rejeitar do que diz respeito a Cristo, não se ocupar de nada que não
seja por Cristo; ter sede somente dele, dar o lazer somente a ele, lá, onde não há senão o
próprio Cristo; colocar-se voluntariamente ao serviço de todos, onde a sua presença está
multiplicada (cf. Mt 25,35).