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ISSN: 2177 - 0786
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 2
ISSN: 2177 – 0786
Editoração eletrônica: Pablo Michel Cândido Alves de Magalhães
Arte e Design (Blogger): Cléber Roberto Silva de Carvalho
Comunicação: Rafael de Oliveira Cruz
Edição e layout para internet: Francisco Cândido de Magalhães Junior
Ilustração da capa: fotografia da Ponte Presidente Dutra, a partir da margem
baiana, s/d. Acervo Centro Educacional Vivência, Petrolina – PE.
EQUIPE DE EDITORAÇÃO
Andrew Jackson Fernandes Cruz (Graduando UPE)
Cléber Roberto Silva de Carvalho (Graduando UPE)
Christoval Araújo Santos Júnior (Graduando UPE)
Pablo Michel Candido Alves de Magalhães (Graduando UPE)
Rafael de Oliveira Cruz (Graduando UPE)
CONSELHO EDITORIAL
Profª Dra. Lina Maria Brandão de Aras
(UFBA)
Profª. Dra. Rossana Regina Guimarães
Ramos Henz (UPE)
Profª Ms. Andréa Bandeira (UPE)
Prof. Ms. Carlos Romeiro (UPE)
Prof. Ms. Moisés Almeida (UPE)
Profª Ms. Sheyla Farias (UPE)
OBJETIVO DA REVISTA
A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia
et Virtute, sendo que seus membros são discentes da Licenciatura Plena em
História da Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina, juntamente com
professores do corpo docente do referido curso. A proposta da Historien é o
incentivo a produção textual dos alunos da licenciatura, visando a expansão do
conhecimento em história por meio da produção dos próprios acadêmicos.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer
meio. A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido
no artigo 184 do Código Penal.
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Petrolina – PE, Nº 1 – Out./Dez. 2009
Sumário
EDITORIAL .............................................................................................................. 6
HISTORIA EM FOCO
- Para dentro e para fora: o samba e o samba de véio da ilha do massangano de
Petrolina-pe. ......................................................................................................... 10
Quércia Oliveira (Graduada UPE e graduanda UNEB)
- A universidade e a formação docente: expectativas e desafios dos alunos do
curso de licenciatura plena em história da UPE campus Petrolina .................... 25
Fábio Pôrto (IFET – Campus Ouricuri)
- A divisão sexual/social do trabalho na hierarquia do terreiro de candomblé “yle
axé omym kaiode”. ............................................................................................... 37
Antonio Carvalho dos Santos Junior (Graduado UPE e graduando UNEB)
- A catedral de pedra como identidade social: a memória coletiva na construção
do “ser petrolinense”. .......................................................................................... 54
Pablo Michel Cândido Alves de Magalhães (Graduando UPE)
- A prática da criação de gado como principal fator na formação da cidade de
juazeiro .................................................................................................................. 77
Afonso Rodrigues França Leitão (Graduando UPE)
RESENHA - ESPECIAL HISTÓRIA EM FOCO
- CORONEL QUELÊ – ADVERSIDADE E BONANÇA .............................................. 93
Moisés Almeida (UPE)
ARTIGOS
- “Mulher macho, sim senhor!” Notas sobre a cultura de gênero no Brasil.....99
Andréa Bandeira (UPE)
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- A aids no jornal: a importância das notícias veiculadas sobre a doença na
formação das impressões da sociedade acerca dessa enfermidade em Fortaleza,
durante
a
década
de
80
do
século
xx.
.....................................113
Érica Cavalcante Lima (Graduanda UECE)
- As marias no cangaço: faces femininas no banditismo social (1930 a 1940)...121
Christoval Araújo Santos Júnior (Graduando UPE)
- A IMPRENSA DERRUBA O GOVERNO GOULART (1963-1964). ...................................... 136
Simão Alves Tannous (Mestrando UFBA)
- Os últimos passos de uma devoção: indícios da religiosidade de um nobre
sergipano oitocentista. ....................................................................................... 149
Magno Francisco de Jesus Santos (UFS)
- Práticas urbanas na escrita memorialista do fim do século xix e início do xx na
cidade de Fortaleza – CE. ................................................................................... 168
Ana Luiza Rios Martins (Mestranda UECE)
- Trans: o gênero do sexo e o sexo do gênero. .................................................... 181
Manoel Vaz da Silva Neto (Doutorando UFPB)
RESENHA
- Resenha do livro Intrépidos Romeiros do progresso: Maçons cearenses no
Império. ............................................................................................................... 189
Adson Rodrigo Silva Pinheiro (Graduando UECE).
ESPECIAL ARTIGOS INTERNACIONAIS
- Una mirada histórica a la investigación con seres humanos. la importancia y
dificultades de los comités de ética en Argentina. ............................................ 196
María Fernanda Sabio (UADE – Universidad Abierta de La Empresa)
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Caro(a) leitor(a),
Aqui estamos nós, entre o texto e o contexto, para mais uma vez trilhar pelos
“caminhos da História”. Somo ainda uma criança, que vai conhecendo o mundo e se
deparando com novos eventos. Escolhemos olhar ao nosso redor, por enquanto, para
depois nos abrirmos de volta ao quase total. É assim que apresento a terceira edição
da Revista Eletrônica HISTORIEN com o foco de perceber o que se passa no Vale do
São Francisco. Não é fácil, anunciar, respeitar prazos, recolher, ler, reler e indicar.
Mas ousamos abrir espaço para os nossos historiadores locais, privilegiando a
produção dos nossos quase profissionais da historia. Estava relendo Burke (1992) e
sua escrita da história, avaliando que a revista tem sido uma nova perspectiva para
aqueles que inspirados nos annales estão proporcionando esse novo olhar.
Sem dúvida, muitos dos vários trabalhos produzidos por
escritores, que operam dentro da tradição dos Annales, não
apenas aprofundaram nosso conhecimento do passado, mas
também
proporcionaram
incríveis
reflexões
metodológicas
demonstrando o uso inovador que pode ser feito das formas
familiares de documentação
e o modo como novas questões
sobre o passado podem ser formuladas. Além disso, a clarificação
dos analistas do conceito de mentalité comprovou–se de grande
valor para os historiadores que tentaram reconstruir o mundo
mental das pessoas das classes inferiores. (BURKE, 1992, p. 51).
Não podemos deixar de inscrever as contribuições e o diálogo com ao outros campos
do saber: “Um intenso intercâmbio com a antropologia permitiu transformar mitos,
rituais e imagens em fontes históricas.” (CASTRO apud CARDOSO; VAINFAS, 1997, p.
51).
Essas trocas interdisciplinares tem proporcionado ânimo aos nossos novos
historiadores, que amparados como os Foucaults, Chatiers, Bourdieus,Ricoeurs da
vida tem constantemente reescrito o movimento pendular, como em espiral sem lados
a direcionar.
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Na
verdade,
os
historiadores
sociais
e
econômicos
estão
empregando cada vez mais tipos de documentação, cuja real
utilidade como evidência histórica repousa no fato de que seus
compiladores
não
estavam
deliberada
e
conscientemente
registrando para a posteridade. Supõe-se que muito desses
compiladores ficariam surpresos, e talvez preocupados, com o
uso que os historiadores recentes fizeram dos casos judiciais,
registros paroquiais, testamentos e transações de terras feudais
que
registraram.
Tal
evidência
pode
ser
empregada,
adequadamente, para explorar ações e idéias explicitas ou
suposições implícitas, e também para propiciar uma base
quantitativa às experiências do passado. (BURKE, 1992, p. 48).
Mesmo com uma temática central, o Vale do São Francisco, o movimento em espiral,
contou as diversas formas de olhares ou como diz Vainfas e Cardoso (1997), como os
diversos “territórios dos historiadores”. Neles destacamos a contribuição da história
oral, da microhistória, da história social entre outros. “Neste tipo de investigação, o
historiador não está simplesmente preocupado com a interpretação dos significados,
mas antes em definir as ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das
possíveis interpretações desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos
simbólicos e também dos recursos materiais.” (BURKE, 1992, p. 136).
Assim, destacamos o trabalho de Érica Cavalcanti Lima, estudante de graduação
que nos brinda com uma olhar sobre Aids na Imprensa de Fortaleza na Década de
oitenta do século vinte. Ainda utilizando a imprensa como recorte histórico, Simão
Alves Tannous escreveu seu texto se reportando à derrubada do governo de João
Goulart. Com a contribuição da história cultural e social, Antônio Carvalho dos
Santos Junior, escreve sobre a divisão sexual/social do trabalho na hierarquia do
terreiro de candomblé; e Quercia Oliveira no seu “Para dentro e para fora: o samba de
véio da ilha do massangano de Petrolina”. Apoiando-se nos olhares sobre a memória,
Pablo Michel Candido, ergue-se sobre a Catedral de Pedra com identidade social e
memória coletiva do petrolinense; e Ana Luiza Ramos Rios verifica as práticas urbanas
na escrita memorialista do fim do século
XIX e inicio do Século XX na cidade de
Fortaleza. Para indicar-nos como o vale foi sendo habitado, Afonso Rodrigues França
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Leitão nos coloca nos caminhos da boiada e fala da prática da criação do gado como
fator preponderante para a formação de Juazeiro-BA.
Percorrendo o tempo quase
recente, Magno Francisco de Jesus, rever os últimos passos de uma devoção na
Sergipe oitocentista. Ainda influenciado pelos jogos de gêneros, número anterior da
revista, Manoel Vaz da Silva Neto discute o Trans: o gênero do sexo e o sexo do gênero.
Como estamos fincados na licenciatura, não deixaríamos de incluir um texto sobre a
formação docente: A universidade e à formação docente – expectativas e desafios dos
alunos do curso de licenciatura plena em História da Universidade de Pernambuco –
Campus Petrolina, de Fábio André Porto. Duas resenhas fazem parte desse terceiro
número da revista: Intrépidos romeiros do progresso: maçons cearenses no império,
obra de Berenice Abreu e resenhada por Adson Rodrigo Silva Pinheiro. E Coronel
Quelê: Adversidade e Bonança do saudoso José Américo de Lima e resenhado por
Moisés Diniz de Almeida.
Nesse número escolhemos também dar espaço aos textos de outros lugares.
Desfrutem em linguagem espanhola “Una mirada histórica a la investigación con seres
humanos. La importancia y dificultades de los comités de ética en Argentina”, de
María Fernanda Sabino, professora de Ensino Médio
e Superior em Filosofia na
Universidad Argentina.
A revista é assim, tal como é a história vista de baixo: “mais profunda do que apenas
propiciar aos historiadores uma oportunidade para mostrar que eles podem ser
imaginativos e inovadores. Ela proporciona também um meio para reintegrar sua
história aos grupos sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinha
conhecimento da existência de sua história.” (BURKE, 1992, p. 59).
Leiam e aproveitem o terceiro número de HISTORIEN.
Os editores.
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PARA DENTRO E PARA FORA: O SAMBA E O SAMBA DE VÉIO DA ILHA DO
MASSANGANO DE PETROLINA-PE
Quércia Oliveira1
Localizada a 15 km do centro de Petrolina-PE, a Ilha do Massangano, segundo os
discursos proferidos pela população local para recontá-la, se constituiu a partir de
movimentos migratórios iniciados há mais de 200 anos e intensificados na década
de 1970, quando a construção da Barragem de Sobradinho alterou o ciclo das
águas do São Francisco e desabrigou centenas de famílias que moravam às
margens do Rio, como nos conta Antonise Coelho de Aquino:
[...] a ilha [do Massangano] foi favorecida pela regularização do
leito do rio, permaneceu com uma boa área de terra o que
possibilitou ainda a cultura de hortaliças, cebola, mandioca
não apenas na época da vazante. Com a relocação da
população que vivia próxima ao lago de Sobradinho, algumas
famílias vieram residir na Ilha do Massangano por não terem
para onde ir ou por não desejaram ser reassentadas em
lugares distantes de parentes e amigos.2
Dessa forma, a Ilha se apresenta como ponto de encontro para diferentes grupos
culturais, sendo, por isso mesmo, palco para diversas manifestações das
religiosidades e culturas populares, como a penitência, as novenas de Santo
Licenciada em História pela UPE e Bacharelanda em Comunicação Social pela UNEB, realiza
pesquisa na área de Festas Populares, possui bolsa Iniciação Científica PICIN, tem realizado
exposições fotográficas, comunicações e publicações em eventos acadêmicos regionais.
1
2
AQUINO, 2004, p. 16.
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Antônio, as rodas de São Gonçalo e o Reisado3, realizados pelos ilhéus do
Massangano há mais de duas gerações.
Segundo Eloísa Brantes (2007), o Reisado – uma referência ao episodio bíblico no
qual os três Reis Magos, guiados pela estrela de Belém, visitam o menino Jesus – foi
trazido nos porões dos navios portugueses e inserida no contexto do catolicismo
popular do Brasil. Assim, a partir do dia 25 de Dezembro, os cortejos dos Festejos
aos Santos Reis nas mais diversas regiões do Brasil visitam as casas de suas
comunidades, abençoando-as com cantos sagrados. Após o ritual religioso, é
realizada a comemoração „profana‟, ritmada pelos batuques comuns a cada
comunidade e regada à bebida e comida ofertadas pelo dono da casa.4
Na Ilha do Massangano, o cortejo do Reisado é acompanhado pelo Samba.
Composto por tamborete, pandeiro, cantadores e, casualmente, triângulo e
atabaque, o Samba dá ritmo ao canto religioso dos moradores da Ilha do
Massangano e seus visitantes que pedem, „ao dono da casa‟, para que abra a porta
e receba a visita dos reis, portadores das notícias do nascimento de Jesus:
[...] Viemos cantar o reis, viemos cantar o reis
Com a luz de quem te adora, com a luz de quem te adora
Quem quiser saber quem é, quem quiser saber quem é
Abra a porta e saia fora, abra a porta e saia fora
Porta aberta, sala franca; porta aberta, sala franca
Recebei com alegria, recebei com alegria
É com a Virgem Maria, é com a Virgem Maria
Recebei seu bento filho, recebei seu bento filho
Oh! Me abra a porta, ô Sinhá ê!
Que eu quero entrar, ô Sinhá ê!
Eu venho da rua, ô Sinhá ê!
Quero vadiar, ô Sinhá ê!
(música de domínio popular,
Massangano)
cantada
no
reisado
do
Neste trabalho utilizares os termos Festas de Reis e Reisado como sinônimos, consensuando as
nomeações mais utilizadas pelos moradores da Ilha do Massangano à diferenciação entre
Reisado/Festas de Reis e Folias de Reis realizada por Brantes (2007).
3
4
BRANTES, 2007.
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Porta aberta, é findada a cerimônia religiosa. A festa, contudo, está apenas
começando. Com o pedido dos anfitriões, é feita, na sala, quintal ou terreiro da casa
visitada, uma roda de samba. Acompanhados pelas palmas e cantos, os ritmistas
embalam a dança até que se acabe a bebida ofertada; os dançadores exaustos
peçam para „se retirar‟; ou a meta de visita diária se imponha.
Na última década, entretanto, a Ilha do Massangano e seus moradores ganharam
grande visibilidade ao levarem a todo o país, com realização de shows em festas e
comemorações populares5, gravação de CDs e recente aprovação do projeto de
Ponto de Cultura6, o produto cultural intitulado de „Samba de Véio‟, manifestação
originada do „Samba‟, momento „profano‟ realizado após a cerimônia religiosa do
reisado do Massangano, acima descrito.
Constituído, como todo acontecimento histórico, de continuidades e rupturas, o
processo de construção do Samba de Véio se deu em meio ao diálogo, muitas vezes
desigual, entre tradição e poder. Em que uma nova ação performática, apresentação
do Samba fora das datas e contextos do Reisado, é sugerida por sujeitos
possuidores
de
um
poder
simbólico,
formação
acadêmica
ou
origem
urbana/metropolitana; financeiro, com doações e ofertas que redimensionam os
festejos já existentes na comunidade; ou político, cargos e proximidade com o
cenário político municipal e estadual.
Assim posto, nossa pesquisa percorre o limiar das relações simbolicamente
instituídas. Pierre Bourdieu (2004), ao trabalhar as representações sociais como
discursos não neutros que tendem a impor determinadas leituras e escolhas nas
vidas das pessoas, nos evidencia a operação por meio da qual as palavras e
símbolos utilizados para a dominação e subjugo do outro, são tidos como
verdadeiros e legítimos.
A exemplo da abertura do carnaval em Olinda (2010), Encerramento do Encontro Regional de
Comunicação em Juazeiro (2008) e Festa da Lavadeira em Recife (anual).
6 Ponto de Cultura é um programa do Governo Federal que visa fomentar a produção cultural das
comunidades tradicionais.
5
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Desta forma, interessou-nos compreender a experiência da comunidade da Ilha do
Massangano-PE com o Samba de Véio, evidenciando o processo de construção deste
produto cultural, ou, em outras palavras, como se deu a “invenção das tradições”7
do Samba de Véio da Ilha do Massangano? Quais as continuidades que esta
manifestação mantém em relação ao Samba praticado nos festejos de reis? Qual o
passado a ele constituído? E, por fim, quais os elementos do passado utilizados
para composição de linguagens, práticas e comunicações simbólicas desta
manifestação e identidade de seus participantes?8
Conceitualmente falando,
Por „tradições inventadas‟ entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e regras de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade
em relação ao passado.9
Para tanto, esta pesquisa, inseriu-se no campo da Nova História Cultural que,
firmando-se como conjunto de proposta, abordagens e procedimentos que
articulando História, Antropologia e crítica cultural, tem as representações e as
práticas como seus aspectos característicos.10
Uma possibilidade é falar em variedade de história
„antropológica‟, pois muitos de seus praticantes (o presente
autor entre eles) confessariam que aprenderam demais com os
antropólogos. Também aprenderam muito com os críticos
literários, como os „novos historicistas‟ nos Estados Unidos,
que adaptaram seus métodos de „leitura rigorosa‟ ao estudo de
textos não-literários, como documentos oficiais, e na verdade
ao estudo de „textos‟ entre aspas, dos rituais às imagens.11
Dessa forma, nosso objeto, grupo de homens e mulheres, toma a posição de sujeito
a ser conhecido, nos circunscrevendo aos estudos da construção cultural do
homem/mulher e suas relações, temática sobre a qual a antropologia tem se
debruçado e de onde virá alguns de nossos aportes metodológicos, com a
7
HOBSBAWM, 1997.
HOBBAWM E RANGER, 1997.
HOBBAWM, 1997, p. 9.
10 BURKE, 2005.
11 BURKE, 2000, p. 244.
8
9
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etnografia, e teóricos, como o conceito de cultura.
O termo Cultura, originador de poucos consensos, tem, desde meados do século
dezoito, com o movimento de unificação dos estados europeus, ganhado terreno nos
estudos acadêmicos, com os quais, a partir da visão pós-positivista, têm
contribuído no processo de relativização, entendimento e contextualização 12 das
práticas e discursos sociais.
Assim, utilizaremos nesse trabalho as definições feitas por Geertz (1989), quando
discute Cultura como uma rede de significações, a partir da qual as práticas,
costumes e ações de determinados indivíduos, ou grupos sociais, podem ser
entendidas ou explicadas.
Para tanto, foram utilizadas as técnicas advindas dos métodos etnográficos e da
História Oral. Oriunda das ciências antropológicas, a Etnografia visa à observação e
“descrição densa” de determinada cultura a partir do intenso contato com esta,
tendo no seu bojo as pretensões de reflexão do homem (pesquisador) sobre o outro
(objeto/sujeito), suas práticas e seus costumes.
Para sua aplicação nesta pesquisa, foram utilizadas as discussões feitas por Geertz
(1997), em especial quando nos fala da postura do pesquisador, nos trazendo
indicativos para a observação participante e a composição do caderno de campo,
elementos fundamentais nesta pesquisa. A estes procedimentos, somou-se a
Antropologia Visual, orientada pelo entendimento de Marcius Freire (2006), para o
qual as câmeras fotográficas e gravadoras desempenham o papel de caderno de
campo, registrando de forma espontânea o comportamento do grupo pesquisado, de
forma a compor a “descrição densa” sobre estes.
Para realização e análise das entrevistas, essa pesquisa recebeu as contribuições
teóricas e metodológicas advindas da História Oral. Maior fonte humana de difusão
e manutenção do saber, o relato oral tem, nas últimas décadas, se firmado
enquanto fonte oficial para a produção do conhecimento cientificamente elaborado.
As falas e discursos das testemunhas e atores sociais podem, ao passo em que se
Conceito advindo dos estudos foucaultianos que nos apontam a necessidade de, em análises de
discursos sociais, serem levadas em consideração informações sobre por quem, quando, onde e que
razões um discurso foi proferido. ALBERTO, 1998.
12
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estruturam enquanto linguagem possuidora de uma lógica interna própria, ser lidas
e interpretadas pelo pesquisador, permitir uma compreensão mais ampla acerca
dos movimentos de ruptura e continuidade que constituem a história de uma dada
sociedade.13
Utilizado na modalidade Trajetória de Vida, o método da História Oral ajudou-nos a
recontar a história do Reisado, do Samba e do Samba de Véio da Ilha do
Massangano, em Petrolina-PE, a partir da memória e falas de seus participantes
que nos possibilitaram apreender as diferenças entre o Samba feito “pra dentro” e o
Samba de Véio feito “para fora” da Ilha do Massangano.
14
Para ilustrarmos esta percepção, transcrevemos a seguir um trecho da entrevista
realizada com D. Amélia15. Após dezessete minutos de entrevista, a conversa, se
torna descontraída e podemos, a partir dos risos, brincadeiras e silêncios de nossa
entrevistada, perceber seus entendimentos sobre o samba, o Samba de Véio, e os
processos de continuidade e ruptura imbuídos em suas apresentações:
QO: A senhora gosta mais de se apresentar aqui, ou fora da
Ilha?
DA: Eu não gosto é em lugar nenhum... eu vou por que me
levam! (risos)
QO: A senhora não gosta de dançar o samba, não? Ah...
descobri um segredo! (provocamos) (risos)
DA: (risos) Do Samba... ah de brincar o Samba eu gosto, agora
pra, pra representar o Samba não (voz mais baixa) é porque,
infelizmente, bota eu pra dizer besteira (risos) e eu fico
dizendo. (risos).
QO: Então a senhora acha que é diferente de quando vocês
sambam e de quando vocês se apresentam?
GONÇALVES E LISBOA, 2007.
SILVA, 2000.
15 Risada fácil e abraços acolhedores, Dona Amélia é uma das estrelas do Samba de Véio e,
reconhecidamente, uma das lideres dos Festejos de Reis, realizados no mês de janeiro pela
comunidade da Ilha do Massangano. Filha de uma ilhéu, Dona Helena Celestina, com Seu Manoel de
Oliveira, que foi morar na Ilha ainda criança, “Amélia, mulher de verdade”, como sempre nos canta
ela, é herdeira de larga tradição cultural de sua família, que por várias gerações se responsabiliza por
momentos importantes dentro das comemorações comunitárias, como o oferecimento do jantar na
Festa de Santo Antônio, padroeiro da Ilha.
13
14
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DA: (silêncio) que aqui nós samba como é! Não tem negócio de
filmagem, nem nada, só toca o samba pra frente! Por onde nós
anda é filmação, é retrato, é tudo... (silêncio).
QO: (Aproveitamos para investigar...) Aquela música (...) ahm...
eita!
DA: (Dona Amélia brinca com nosso esquecimento) Esqueceu
também, pra não ser só eu só!
QO: Como é? “Eu vim da Ilha, eu vim da Ilha”, ela tem quanto
tempo?
DA: Unhum! É velha, menina!
QO: Por que ela tem uma parte que fala assim: “O samba bom
ficou lá!”
DA: Ficou lá! (risos altos).
QO: Então quer dizer que pra conhecer o samba bom, tem que
vir aqui?
DA: (risos)... É o samba bom é... (Dona Amélia recua) o
batuque mesmo que diz isso, mas não é porque ficou aqui,
não. (risos) Que onde nós anda, ele anda atrás... (risos).
QO: Fiquei reparando nessa música, ai eu oxi... (insistimos).
DA: (D. Amélia começa a cantar) Ei vim da Ilha, sambar / O
samba bom ficou laaa... (risos).
QO: O samba bom ficou aqui?
DA: É! (risos).
Percebemos, dessa forma, que D. Amélia não toma o reisado como uma forma de
apresentação, e sim uma prática já instituída no seu cotidiano. As apresentações,
ou “representações” como ela fala, são formas para se referir ao Samba de Véio.
Identificamos também uma clara diferenciação feita por ela entre o Samba que
acompanha o Reisado e o Samba de Véio.
Para referendar essa visão, teremos a fala de Dona Peba, que nos contando sobre
sua história de vida e participações nos festejos da comunidade, nos diz:
QO:Faz quanto tempo que a senhora está no Samba?
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DP: Rapaz, desde quando eu nasci. Que eu tinha sete anos e já
ia pro Samba mais minha mãe. Agora não era assim, era o
samba de... do mês de janeiro. Que o mês de janeiro, tira todas
as casas, né? Santo Reis... ai sai tirando nas casas. Esse
samba ai, desde de... sete anos que eu andava.
QO: E a senhora acha que é a mesma coisa?
DP: Não é... é a mesma coisa que é batendo [se referindo ao
batuque e as músicas cantadas que são as mesmas] mas, o
Santo Reis só sai em Janeiro, né? A diferença é essa.
Assim, a desvinculação com os festejos de Reis realizados no mês de janeiro,
compõe-se como o limiar entre o Samba e o Samba de Véio, pois, como nos contou
o Senhor Berto José,
Quando esse samba começou andar, ficou
mudou de tradição. Antigamente só era
tempo, sabe? No mês de janeiro. Agora
mídia, ai... ai agora é direto. [...] Agora é
que chamar ele vai!
mecanizado, mais...
só no, na... só no
não, ele entrou na
cultural, toda hora
Para melhor compreendermos como se deu esse processo, pedimos a vários
entrevistados que nos falassem sobre o inicio das apresentações fora da Ilha:
quando, a partir de que e de quem teria principiado a construção do Samba “pra
fora”. Para exemplificar esta percepção, trazemos a fala da Senhora Francisca
Maria, quando solicitada para nos recontar esse momento.
Eu sei que veio um pessoal aqui visitar a Ilha... Conceição, a
menina que antes era a vocalista do Samba, [que recebeu os
visitantes] [...]! Ai foi falando negócio sobre cultura, ai ela
apresentou esse negócio da cultura, de que aqui tinha o
Samba, outros tipos de cultura... ai eles foram se
interessando, fazendo apresentação no meio do Rio, andando
de barco, ai depois ele disse assim: por que vocês não
procuram uma pessoa pra divulgar o trabalho de vocês e pra
mostrar, porque é uma cultura muito boa, essa de vocês.
Porque essa cultura ai, já vem do tempo dos escravos, outros
dizem dos quilombolas, do pessoal ai. Ai seria muito
importante vocês apresentar em outro lugar. Ai foi ai que foi
conhecido o samba. Ai apresentaram a Dona Raimunda, ai
Dona Raimunda veio, e ficou gostando ai... Nisso foi negócio de
divulgação, né? Ai nós foi pra... Nós gravamos o nosso
primeiro CD foi em Recife, parece, Recife! Nós gravamos
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também em Garanhuns e o outro foi gravado aqui em
Juazeiro. [...] Nisso aí, assim o pessoal foi comprando o nosso
CD. Ai depois dessa divulgação, ai foi colocando na internet,
esses negócios. Ai o pessoal dee... Portugal viu através da
internet, e eles vieram até aqui. Vieram cinqüenta pessoas de
Portugal, através disso aí. E aqui nós fizemos uma festona,
debaixo da mangueira, que é o nosso encontro, ai embaixo
dessa mangueira. [...]. Ai eles foram mostrar um pouco da
cultura deles para nós, e nós um pouco [pra] eles. [...] e depois
dos portugueses, vieram da Europa, vieram também de...
vieram da França, que vieram um grupo de francês praqui... E
aqui é é ... já tá conhecido como Ponto de Cultura, já!
Acerca da participação de Dona Raimunda, rapidamente citada neste depoimento,
Dona Francisca Maria já havia nos contado que:
Ela veio aqui através da creche, que ela era, ela era
coordenadora da creche na época, ai apareceu um terreno
aqui, ai ela comprou aquela casa e ficou por aqui. Ai daí ela foi
conhecendo um pouquinho do nosso Samba, ai gostou, ai
resolveu tomar de conta do Samba. E hoje ela é presidente do
Samba. E hoje nós estamos apresentando aí, pra onde chamar
nós estamos indo. (risos). [...] ela quem resgatou essa nossa
cultura, por que antes a gente só apresentava aqui mesmo na
Ilha, nós não viajava pra apresentar fora.... ai depois foi com
divulgações, com gravações de CD, foi que nós ficamos
conhecidas. Foi através dela, que foi mostrando nosso
trabalho, nós se apresentava nos colégios, nas faculdades,
também no meio da rua, nós não temos lugar certo para
apresentar, pra onde chama nós vamos. Nós acompanha São
João, Carnaval... tudo nós estamos ái!
Percebemos, desta forma, o papel de produção desempenhado por Raimunda Sol
Posto e pela Associação Cultural Josefa Isabel dos Santos do Samba de Veio da Ilha
do Massangano que, como nos conta o Senhor José Moreno, coordena a
apresentações do Samba de Véio.
Vamos supor, são os quarenta [entre dançadores, cantadores e
tocadores] e tem os dez [da Associação do Samba de Véio] pra
coordenar por fora. Você vai fazer isso; eu vou fazer aquilo, que
é minha parte, pra coordenar ali, trazer a bebida; Terezinha já
vai fazer isso que é a parte dela; Célia já vai anotar tudo aquilo
que tá se passando, tudo, quem foi que veio, quem foi que
faltou, entendeu? Cada um faz sua parte, né?”. (Senhor José
Moreno).
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 18
Assim, contato para realização de shows, negociação e repasse de cachês, garantia
de transporte e outras questões relacionadas à produção, são feitas, em sua
maioria, por pessoas que não são ou não moram na Ilha, mas compõem a
Associação do Samba. Dentre os elementos pertinentes à área de produção,
contudo,
destacamos
dois
que
merecem
uma
maior
atenção
enquanto
demarcadores das diferenças entre o Samba e o Samba de Véio: a bebida ofertada
aos sambistas e o figurino.
Como já descrito acima, as apresentações do Samba na Ilha são regadas a bebidas
e aperitivos ofertados pelos donos das casas visitadas. Durante as apresentações do
Samba de Véio, contudo, é servido apenas refrigerante e água, como nos disse o
Senhor José Moreno: “Que de primeiro, eles tinham que servir através da cachaça,
tinha que beber pra poder sambar, entendeu? Mas hoje a gente [a Associação do
Samba] já mudou, já!”.
Referente aos figurinos, “quem define a roupa é Raimunda Sol Posto, que é ela
quem indica. Eu quero hoje que vocês venham com aquela roupa vermelha, que é a
vermelha e branca... [...] [ao todo são] quatro tipos de roupa”, nos conta o Senhor
José Moreno. Diferente do reisado que, como bem delimita Dona Amélia, “não tem
roupa não, quem tem roupa é o samba de véio!”.
A adoção de figurinos e a proibição à utilização de bebidas alcoólicas durante as
apresentações do Samba de Véio seguem a lógica da Indústria Cultural, que
neutraliza os antagonismos e
peculiaridades
das
manifestações populares,
tornando-as mais fáceis de vender, como nos conta Arantes:
Enxugam-se os eventos artísticos denominados populares de
características consideradas inadequadas ou desnecessárias
sob o pretexto de revelar-lhes mais claramente a estrutura
subjacente. O resultado de procedimentos desta natureza,
entretanto, é o de higienizar esses eventos, ocultando os seus
aspectos de pobreza, o seu caráter tosco e, aos olhos de
muitos, grosseiros.16
As ações que produzem ou propõe modificações no interior das manifestações
oriundas da tradição popular precisam, contudo, possuir um passado que as
16
ARANTES, 1998, p. 20)
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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legitime. Assim, as memórias e falas são redimensionadas, de forma a atribuir aos
seus agentes o papel de guardiães das tradições. O que pode ser percebido no
discurso de Dona Raimunda Sol Posto quando nos fala que:
Era... eu achava muito... muita graça, por que aqui tinha uma
senhora chamada Josefa que ela, no mais ou menos já tinha
quase oitenta e cinco anos a noventa anos, e Zefa usava uma
muleta, mas hora do samba ela jogava a muleta e ia sambar.
Ai eu disse assim, oh! Zefa como é que você... então você não é
aleijada... porque você solta a muleta na hora de dançar,
depois que termina você se agarra com essa muleta e sai man
manquejando, né? Ai ela disse: Raimunda, eu adoro esse, esse
samba. Esse samba é onde a gente faz nossas festas, as
nossas reuniões, e eu gostaria de lhe fazer um pedido, eu sei
que logo Deus vai me levar, eu vou morrer. Mas não deixe esse
samba morrer. Então, em nome de Josefa e do Samba de Véio
da Ilha do Massangano eu peço uma salva de palmas!
(Raimunda sol Posto, discurso di 06.01.10).
Sobre este fato, contudo, a memória de Dona Amélia nos conta que:
Formaram o discurso de Josefa errado. Que Josefa não era
nem filha daqui, ela era de outro lugar, da Lagoa... mas ela
também brincava o Reis mais nós. Mas Dona Raimunda,
porque disse que ela fez um pedido, Dona Raimunda Sol Posto,
que a velha minha sogra [D. Josefa era mãe do Marido de D.
Amélia] fez um pedido a ela, que ela, Raimunda, não era pra
deixar o Samba acabar, era pra ela tomar conta do Samba, pro
Samba não acabar. Ai Dona Raimunda pensando que ela que
era a informante, mas não era ela.
Assim posto, perguntamos a Dona Amélia sobre o fim da história contada: “QO: E ai
Dona Raimunda Sol Posto começou a cuidar do Samba?. E Dona Amélia apressouse a responder: Pra viajar, só pra viajar. Mas aqui, o Reis, é nós mesmo!”.
Vemos dessa forma, que os dançadores do “Samba” e do “Samba de Véio”,
moradores da Ilha e Coordenação da Associação Cultural Josefa Isabel dos Santos
do Samba de Veio da Ilha do Massangano, dimensionam suas memórias de forma a
compor seus discursos e identidades, ou seja, seus lugares sociais, enquanto
agentes mantenedores das tradições da comunidade da Ilha do Massangano.
O ensinar de geração em geração, é, contudo, uma das formas de maior alcance
para a transmissão de tradições orais. Dessa forma, o cortejo do Reisado da Ilha do
Massangano, utiliza o percurso e a organização das cerimônias, como espaços para
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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tentar dialogar com os mais jovens, ensinando-lhes as práticas e “ciências” dos
Festejos de Reis na comunidade.
Durante nossas observações foram constatadas a grande participação de crianças,
adultos e idosos nas rodas do Samba realizadas após as cerimônias religiosas do
reisado. Há, contudo, uma lacuna etária deixada pelos adolescentes que, a parti
dos 13 anos, raramente são vistos nas rodas, a pesar de acompanharem o cortejo
do reisado.
Por outro lado, crianças e adolescentes, até os 18 anos, compõem o grupo de
Samba de Véio Mirim que, assim como o Samba de Véio, possui uma produção e
figurinos próprios, sendo, costumeiramente, convidados a se apresentarem na sede
de Petrolina-PE ou em eventos da comunidade da Ilha do Massangano.
Percebemos, dessa forma, que o Samba de Véio vê na instituição do “Samba de Véio
Mirim” a oportunidade para repassar as histórias e saberes de suas tradições, pois,
como nos conta Dona Maria Francisca, coordenadora do Samba Mirim: “eu vou
passando pra eles como foi o Samba, como começou, como é que se apresenta, pra
um dia que eu não poder mais dar continuidade, eles já sabem e vai passando pra
outros.”.
Assim, tanto as manifestações e festas da cultura popular, com os produtos da
indústria cultural originados destas primeiras, constituem-se como espaços de
memória das comunidades que as possuem, uma vez que o passado, construído e
dimensionado nos contextos políticos e sociais do presente, atuam como
legitimadores de sua existência sendo, por isso mesmo, sempre evocado.
Dessa forma, nos são relatadas diferentes versões acerca das origens do Reisado e
do Samba, nas quais o sujeito da fala tem, sempre, uma proximidade parental com
seus fundadores. Os processos de ruptura, entretanto, são, também, espaços de
disputa identitária. Assim as memórias de alguns de nosso depoentes fazem
referencia a um passado que legitimas suas intervenções e constituição do produto
cultural do Samba de Véio.
O Samba de Véio, por conseguinte, além de agir como agente unificador da
comunidade, atua na promoção e valorização da auto-estima individual e coletiva
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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do grupo. Os relatos sobre as viagens e/ou visitas de turistas das mais diversas
nacionalidades nos pontuam a importância desses reconhecimentos externos para
a constituição de uma auto-imanem positivada por parte dos ilhéus.
Nos depoimentos e memórias de muitos ilhéus, contudo, o Samba de Véio é tido
como o “Samba de dona Raimunda”17, configurando-se como “produto cultural”
dependente de ações externas. Observa-se, contudo, de que no caso de
desligamento
dos
atuais
produtores,
certamente
o
Samba
de
Véio
não
desaparecerá, passando por novo processo de ressignificação, pois, mesmo sendo
produto da indústria cultural, mantém uma estreita relação com Samba realizado
durante os Festejos de Reis, constituindo, por conseguinte, as identidades dos
moradores da Ilha do Massangano.
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2008.
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17
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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A UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO DOCENTE: EXPECTATIVAS E DESAFIOS
DOS ALUNOS DO CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA DA UPE
CAMPUS PETROLINA
Fábio Pôrto
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta uma análise sobre a influência que a
universidade opera na transformação das expectativas dos estudantes em nível
superior, especificamente em relação ao curso de História da Universidade de
Pernambuco, Campus Petrolina, bem como as percepções desses estudantes sobre
o papel que a instituição exerce em seu processo de formação como educadores,
visando contribuir para a discussão, entre professores, licenciandos e instituição, e
a melhoria da educação, tanto no espaço de delimitação pesquisado, quanto no
Brasil.
O trabalho foi realizado no Campus de Petrolina da UPE, curso de História,
envolvendo ingressantes e concluintes do curso no semestre 2008.2. Para efeito de
parâmetro do que se considerou como iniciantes e graduandos, utilizou-se o critério
do ENADE - Exame Nacional de Avaliação do Ensino Superior, feito pelo MEC Ministério da Educação: o II Período do curso, 2008.2, foi considerado como
ingressante (por estar no primeiro ano de formação) e o VII Período, como
concluinte (por estar no ultimo ano de formação). Foi estabelecida uma amostra de
cinco estudantes ingressantes e cinco concluintes, ou seja, 10% do total das duas
turmas, para estabelecer uma relação aproximada condizente com o universo de
alunos de cada período pesquisado.
A pesquisa se fundamenta em uma base analítica de bibliografia, que trata
da formação de professores, destacando Maurice Tardif, Cláudia Vera Jankowski,
Francisco Inbernón e Circe Bittencourt; além de se aprofundar na legislação federal
concernente às diretrizes para os cursos de formação de professores, Projeto
Pedagógico do Curso de Licenciatura em História da UPE e sua matriz curricular;
como também se alicerça em uma pesquisa de campo, em que foi empregado um
questionário misto aos licenciandos em História, com 4 questões dissertativas e 13

Licenciado em História pela UPE – Campus Petrolina. Pós-Graduando em Docência do Ensino
Superior pelo INSTITUTO PROMINAS/FINOM. Professor Efetivo do IFET Sertão Pernambucano
Campus Ouricuri. [email protected]
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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objetivas, e que discorre sobre diversos aspectos: intenção em relação ao curso que
o estudante escolheu; conhecimento sobre as diretrizes curriculares; Projeto
Pedagógico do curso de História e matriz curricular; horas de estudo extra-classe;
atividades acadêmicas desenvolvidas pelo estudante, além de abordarem as
expectativas, a principal contribuição do curso e a definição da formação do próprio
licenciando como docente até este momento. Além disso, foi usada como mais um
elemento de sustentação da reflexão, uma entrevista com os estudantes, a qual
seguiu a mesma linha de pensamento das perguntas abordadas no questionário.
EXPECTATIVAS E DESAFIOS DOS ALUNOS DO CURSO DE LICENCIATURA
PLENA EM HISTÓRIA DA UPE - CAMPUS PETROLINA
A formação inicial do educador se configura no principal alicerce do papel
que esse profissional pode vir a desempenhar em seu campo de trabalho, tendo em
vista que o ambiente no qual está se inserido é similar ao que irá atuar
profissionalmente. É o que o Parecer do Conselho Nacional de Educação CNE/CP
009/2001 aponta sob o conceito da simetria invertida. Consiste na idéia de que o
licenciando aprende a profissão no lugar semelhante àquele em que vai atuar,
porém, numa situação invertida. Isso demanda coerência entre o que se faz na
formação e o que dele se espera como profissional. Além do que, ele já viveu como
aluno a etapa da escolaridade na qual irá atuar como professor.
Nesse particular, Inbernón (2002, 54-55) registrou que:
A socialização do professor começa na formação inicial. É
preciso analisar a fundo a formação inicial recebida pelo
futuro professor ou professora, uma vez que a construção de
esquemas, imagens e metáforas sobre a educação começam no
início dos estudos que os habilitarão à profissão. A formação
inicial é muito importante, já que o conjunto de atitudes,
valores e funções que os alunos de formação inicial conferem à
profissão, será submetido a uma série de mudanças e
transformações em consonância com o processo socializador
que ocorre nessa formação inicial. É ali que se geram
determinados hábitos que incidirão no exercício da profissão.
É claro que quando se fala em educação no Brasil, abordando a questão da
universidade, aprofunda-se o debate em torno da formação de professores. E nesse
contexto, delimitando o âmbito do mote à ciência História e chegando ao intuito de
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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evidenciar as mudanças de intenção e nas expectativas dos licenciandos, é
necessária a contextualização, a análise da estrutura inscrita no bojo desse espaço,
assim como alternativas para a formação.
É nesse ponto que Carmem Rangel (1997, 117-119) se atém na relação entre
licenciando em História e a universidade, apontando que à medida que se afastam
dos meios acadêmicos, os professores, em sua grande maioria vêem afunilarem-se
suas oportunidades de busca de formação e qualificação profissional por motivos
que vão desde a péssima remuneração, passando pela resistência às fórmulas
mágicas oficiais de atualização, até preconceitos diversos quanto a formas
alternativas
de
formação
(participação
sindical,
partidária,
grupos
de
discussão/atuação etc). E, principalmente, em uma época que tanto se aborda a
crucial necessidade de formação continuada, objetivando a melhoria e a consecução
da excelência na educação, pensar um educador que se distancia do meio
acadêmico após sua formação inicial é destituir a idéia de professor-pesquisador,
proposta pelo trinômio ensino, pesquisa, extensão da universidade brasileira.
As lacunas existentes na formação de professores da universidade no Brasil
não são privilégios de academia A ou B, pois quando se observa o contexto vivido, há
uma tendência natural de se pensar e evidenciar o problema, ou os problemas
próximos, como de primeira grandeza, e conseqüentemente exaltar realidades
distantes em que não operam as sutilezas das conclusões sensoriais.
Esta afirmação encontra fundamento no trabalho de Campos (1997, 184186), em que são feitas reflexões sobre o curso de História da UFPel (Universidade
Federal de Pelotas – RS) através de depoimentos de professores e alunos formandos.
Os mesmos externaram seu pensamento sobre as falhas do curso, citando os
problemas relacionados à estrutura curricular; ao ensino e à pesquisa; ao corpo
docente
e
discente;
problemas
externos
ao
curso
e
de
caráter
técnico-
administrativos.
No trabalho consultado, os problemas relacionados ao ensino e à pesquisa
são os que formam a maior contradição do Curso de História. Nesse ínterim, a
formação no que se refere à pesquisa demonstra que o entendimento do licenciando
como autogestor de sua formação, como professor-pesquisador, depende também da
política da universidade quanto à formação de grupos de pesquisa, à preocupação
do corpo docente em planejar tais trabalhos, bem como a inserção do estudante em
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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atividades acadêmicas que propiciem um leque maior de vivências, fundamentando
com mais rigor a construção do futuro profissional em educação.
Dessa forma, a relação existente entre a universidade, a formação que ela
fornece e a mudança que esse processo desencadeia nos estudantes, está em total
consonância com o entorno social que envolve a academia, bem como com as
perspectivas e intenções dos licenciandos ao ingressarem, e também ao saírem, da
graduação.
Tendo em vista que os graduandos possuem suas peculiaridades quanto à
educação básica que receberam, aos anseios em relação ao curso de nível superior
que escolheram e às vivências que o locus acadêmico propicia, é de extrema
importância uma análise tanto desses aspectos citados, quanto do pensamento dos
licenciandos sobre diversos fatores constituintes do processo de formação inicial
que estão recebendo, pois são eles que possuem contato com os professores da
Universidade e sua práxis, a estrutura da instituição, seus problemas e pontos
positivos.
Considerando esses fatores, foi distribuído um questionário aos ingressantes
e concluintes, baseado principalmente nas questões sócio-educacionais propostas
pelo ENADE, e que discorre sobre diversos aspectos: intenção em relação ao curso
que o licenciando escolheu; conhecimento sobre as diretrizes curriculares; Projeto
Pedagógico do curso de História e matriz curricular; horas de estudo extraclasse;
atividades acadêmicas desenvolvidas pelo estudante, além de questões discursivas
que abordam as expectativas, a principal contribuição do curso e a definição da
formação do próprio licenciando como docente até este momento.
Os resultados colhidos por amostragem demonstraram que 60% dos
ingressantes do II História 2008.2 iniciaram a licenciatura com o intuito de seguir
carreira como educadores, enquanto que a totalidade dos concluintes (VII História
2008.2) pesquisados, respondeu que tinha a intenção de se profissionalizar como
professor quando fizeram a escolha do vestibular de História, o que confere mais
responsabilidade ainda ao futuro educador no processo de autogerenciamento de
sua formação.
Em relação à formação básica dos estudantes, o questionário demonstrou
que 90% da amostra pesquisada dos graduandos cursaram o ensino médio todo em
escola pública, revelando uma propensão do curso de História da UPE – Campus
Petrolina, em receber alunos da rede pública, os quais já se depararam, além da
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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realidade pedagógica, com a questão estrutural do ensino público brasileiro no
momento atual.
Sabendo da importância conferida às atividades acadêmico-científicoculturais pelas Resoluções CNE/CP 1/2002 e CNE/CP 2/2002 do MEC, foi
perguntada no questionário qual a atividade acadêmica era desenvolvida pelo
graduando, além daquelas obrigatórias. Entre iniciantes e concluintes pesquisados,
90% não realiza nenhuma atividade acadêmica além da carga horária exigida pelo
currículo, 210 (duzentas e dez) horas-aula. Esse dado expressa a baixa propensão
dos alunos de História em participar de atividades científicas além das exigidas pela
matriz curricular, as quais confeririam uma formação mais ampla, tendo em vista a
necessidade de vivências interpessoais, culturais e interdisciplinares que essas
atividades proporcionam, e que são necessárias para a formação do educador,
conforme o Parecer CNE/CES 492/2001.
Consultados,
através
do
questionário,
sobre
a
relevância
que
eles
(licenciandos) conferiam às disciplinas didático-pedagógicas em sua formação, 50%
anunciaram que era de grande importância o exercício dessas cadeiras acadêmicas,
pois pretendem seguir carreira como professores. No entanto, 40% dessa amostra
pesquisada, conferiram apenas como razoável a importância dessas disciplinas,
devido à questão da carga horária das disciplinas objeto de estudo em História
deixarem a desejar em relação à sua disposição no currículo, exatamente por conta
da exigência mínima de 1/5 do total estabelecida pela Resolução CNE/CP 2/2002 .
Esse dado é de suma importância para efeito de uma constatação: apesar de
uma parte substancial dos alunos pesquisados externarem a sua intenção em
seguir carreira como educadores, metade deles afirma ser apenas como razoável a
importância das disciplinas didático-pedagógicas em sua formação. Esse ponto
revela uma incoerência entre o anunciado como objetivo de formação pessoal e
profissional pelos estudantes pesquisados, e a sua prática acadêmica como futuros
professores.
Dessa forma, há uma divergência entre o que alunos que conferiram um
nível de razoabilidade à importância das cadeiras didáticas e pedagógicas pensam
em relação à sua formação, e o preconizado pela Resolução CNE/CP 1/2002, pois
esta afirma categoricamente, que deve existir uma coerência entre a formação
oferecida e a prática esperada do futuro educador, haja vista a importância de se
observar a questão da simetria invertida, em que o preparo do professor, por
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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ocorrer em lugar semelhante ao que irá atuar, demanda consistência entre o que
faz na formação e o que dele se espera como educador.
Além desse aspecto, a amostra de alunos classificados pelos critérios
estabelecidos como concluintes e ingressantes, foram questionados sobre o que
pensavam em relação ao nível de exigência que o curso oferece. 80% da totalidade
pesquisada dos estudantes demonstraram o interesse em que o curso exija mais
deles como licenciandos, fazendo assim com que obtenham uma formação de maior
qualidade, e que sejam instigados com mais vigor à construção de seu
conhecimento como educadores em História.
As questões abordadas nas entrevistas seguiram a mesma linha de raciocínio
do questionário misto entregue aos estudantes, até porque houve uma observação
atenta das respostas ao questionário antes de cada entrevista coletada. Contudo, a
depender das características de cada aluno entrevistado, de sua história de vida e
dos seus interesses em cursar História em nível superior, as perguntas poderiam
mudar um pouco de foco, porém sem fugir da temática proposta.
Nesse aspecto, a entrevista concedida pelo ingressante “B” revelou a ação da
Universidade na transformação de sua visão de mundo:
Eu estou com 36 anos e estou vendo um mundo mais amplo,
eu procurava enxergar o mundo, parava e pensava qual era a
realidade do mundo, e hoje vejo o mundo por vários ângulos, a
Faculdade está me instruindo muito. Essa metamorfose já
está tomando conta de mim, eu já me sinto outra pessoa, mais
capacitado de entrar numa sala de aula, de trocar uma idéia,
uma coisa mais centrada. Não estou me subornando a certos
tipos de empregos, a certos tipos de opiniões. A Universidade,
em termos gerais, está sendo uma coisa muito boa para mim.
Entretanto, apesar de o graduando externar a ação da UPE na mudança de
sua mentalidade, não só ele, como também todos os outros pesquisados, tocaram
em pontos substanciais para uma formação de qualidade: principalmente a
qualificação e compromisso dos professores, bem como a questão do fomento à
pesquisa.
Abordando essa questão da pesquisa, os estudantes afirmaram que além do
Campus de Petrolina da UPE não possuir um laboratório, nem mesmo um ônibus,
para ser usado em visitas de campo que proporcionariam experiências diversas e
aprofundamento de pesquisas em determinados temas, foram categóricos em
apontar que esse aspecto, na maioria das vezes, fica restrito a iniciativas
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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individuais de professores. Apesar de a faculdade promover incentivos a pesquisas,
como bolsas, elas são em quantidade ínfima à quantidade de estudantes
interessados, e o processo não é explicado de forma adequada para os estudantes
compreenderem quais são os parâmetros utilizados.
Sobre esse fator, o aluno ingressante “A” externa: “O pessoal que se interessa
por pesquisa, não tem o devido apoio da Universidade, até mesmo os professores
efetivos, pois eles são sobrecarregados com excessiva carga horária em sala de
aula”. Dessa maneira, de acordo com os depoimentos dos estudantes do curso de
História, a UPE não obedece inteiramente ao disposto na Proposta de Diretrizes
para a Formação Inicial de Professores do MEC (2000), a qual aborda a pesquisa
como elemento essencial na formação do profissional de educação.
Ainda em relação a esse fator, o aluno “A” complementa: “eu não tenho
esperança de me tornar um professor-pesquisador se for esperar pelo fomento à
pesquisa na UPE, tenho que me valer apenas do esforço pessoal”. Sendo assim, o
pressuposto da formação do professor-pesquisador, que deve estar presente nas
faculdades de formação de professores do país, segundo o preconizado pelo Parecer
CNE/CS 492/2001, fica comprometido no caso do curso de História do Campus de
Petrolina da UPE.
Os alunos concluintes pesquisados também se posicionaram quanto ao
contexto da formação do professor-pesquisador. O concluinte “D” afirma, diante sua
observação sobre o curso e sobre o aspecto da pesquisa, que não apenas a UPE não
fomenta esse âmbito de formação, como também alguns professores não se
interessam em incentivar as pesquisas de campo. Além disso, à sua maneira ver,
grande parte dos alunos gosta disso, porque se acomoda com o esquema tradicional
proposto: conteúdo ministrado/avaliação escrita, e comparece à Faculdade “com a
faca no pescoço”, apenas com o intuito de possuir o nível superior, o que segundo
ele, “causa um grande prejuízo para a formação de um professor-pesquisador.
Ainda há uma distância muito grande entre o professor de História formado aqui na
UPE – Campus Petrolina para um pesquisador”.
A aluna concluinte “F” corrobora o pensamento do estudante “D”, no que diz
respeito à questão da pesquisa na formação do graduando em História da UPE.
Segundo seu pensamento, não há nenhum programa direcionado para que os
estudantes de História se engajem em produzir conhecimento. No entanto, em seu
discurso, a estudante se manifesta de maneira diferente do seu colega concluinte
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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em relação ao papel da UPE, tanto no âmbito da formação do professorpesquisador, quanto na transformação da mentalidade dos estudantes. Para ela, a
Universidade não a influenciou em grande escala, e nem influencia grande parte
dos alunos, na mudança de percepção sobre o mundo e questões que envolvem a
História. Além disso, a responsabilidade em promover projetos que direcionem os
alunos para a pesquisa é da Universidade: “Quem tem que partir com a idéia é a
Universidade, ela tem os meios, mas eu me questiono: onde estão esses meios? Mas
se a instituição não propicia isso o aluno vai fazer como? Eu vou sair daqui no
mesmo patamar de meus futuros alunos”.
É interessante observar o discurso da concluinte “F”, pois ela deixa claro que
a UPE não fornece um aporte de influência na transformação dos pensamentos dos
estudantes de História, como também, transfere toda a problemática da questão da
formação do professor-pesquisador para a ausência de um programa institucional
direcionado com esse fim, e na inoperância da maioria dos professores. Assim, ela
exime a responsabilidade do aluno em autogerenciar sua formação, competência
preconizada pelo Parecer CNE/CS 492/2001, e de construir seu conhecimento,
além do que, se furta ao direito de lutar pela melhoria na formação na Universidade
que estuda, e conseqüentemente, da educação como um todo, o que está totalmente
em desacordo com a competência descrita pelo Projeto Pedagógico do Curso de
História da UPE que aponta: “O formando de Licenciatura em História deverá ser
capaz de: comprometer-se com seu desenvolvimento profissional constante,
participando de suas entidades de classes e apoiando as lutas referentes à melhoria
na qualidade educacional do país”.
Diante
das
colocações
externadas
pelos
estudantes
nas
entrevistas
realizadas, é perceptível a preocupação com a pesquisa no locus de formação
acadêmica,
bem
como
com
a
falta
de
professores
e,
de
qualificação
e
comprometimento de alguns com a qualidade da formação dos docentes em História
do Campus de Petrolina da UPE. Além dessas abordagens, observa-se também nos
discursos a influência da UPE, apesar de todos as mazelas descritas pelos
estudantes, no engendrar de uma nova forma de pensar e de agir na realidade
social pelos graduandos.
Excetuando 20% da amostra pesquisada, a qual não conferiu participação
alguma da instituição pesquisada em sua evolução de mentalidade como
estudantes de História, todo o restante estabeleceu algum vínculo de relação entre
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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a transformação de seu modo de pensar o mundo, a profissão, a importância da
educação e o seu ingresso e processo de formação acadêmica propiciada pelo UPE –
Campus Petrolina.
Além disso, nota-se também, diante do material coletado, a percepção de que
alguns estudantes transferem a sua parcela de responsabilidade com a sua
formação docente, de professor-pesquisador, com os problemas da Universidade em
relação à falta de professores e de apoio a projetos de pesquisa e extensão que
abarquem mais alunos, totalmente para a instituição e para os professores.
Essas questões levantadas demonstram que uma parte dos licenciandos em
História, não apenas desconhecem a abordagem de formação do estudante em nível
superior que observa a diretriz CNE/CS 492/2001, a qual elenca a competência de
autogerenciamento de seu processo formacional, como fazem juízo de valor sem
fundamento coerente, sobre o papel que a UPE deve desempenhar em sua
licenciatura.
Claro que, as entrevistas demonstraram que, na visão dos estudantes de
História, as lacunas na formação de professores fornecida pela UPE existem, e não
é objetivo deste trabalho ocultar fatos. Porém, o escopo dos discursos dos
estudantes, permite a percepção de que cada elemento que faz parte do processo
possui a sua parcela de responsabilidade: a Universidade de Pernambuco, por não
cumprir com todos os requisitos necessários para a consecução dos objetivos
estabelecidos pelo Projeto Pedagógico; alguns professores, devido à falta de
qualificação e comprometimento com a formação de qualidade de seus alunos; e
alguns licenciandos, por não compreenderem a importância que a sua reflexão e
ação dentro da academia devem contribuir para a melhoria da educação no país. E
que essa ausência de luta por uma evolução, e de responsabilidade perante a
instituição da qual fazem parte, não contribui em nada para a mudança do
panorama atual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observando
os
depoimentos
dos
alunos
ingressantes
e
concluintes
que
participaram da amostra pesquisada, e fazendo uma relação desses pensamentos
com tudo o que foi analisado em termos de legislação federal referente aos cursos
de licenciatura, aos documentos relacionados ao curso de História da UPE –
Campus Petrolina, à bibliografia especializada no assunto, é possível visualizar que
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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a Universidade de Pernambuco possui em seu Projeto Pedagógico para a
Licenciatura em História, um arcabouço teórico que está fundamentado nas
diretrizes nacionais para a formação de professores, tanto no que tange à questão
da carga horária, como em relação à organização e composição curricular.
Entretanto, a consecução do seu objetivo como curso, assim como a
construção do perfil do egresso e das atitudes, competências e habilidades
propostas pelo seu Projeto Pedagógico deixa a desejar, não apenas por conta da
questão administrativa; falta de professores, da qualificação necessária para o
magistério em ensino superior de alguns e de estrutura física condizente com a
demanda para que seja alcançada a realização do tripé ensino, pesquisa e extensão;
mas também porque há entre alguns estudantes, o pensamento de que o grosso do
processo de formação deles na universidade é de responsabilidade apenas da
Academia.
Além disso, a falta de um programa sistematizado, coerente, sustentável e
transparente de pesquisa na UPE – Campus Petrolina, na área de História, relega a
formação de professores dessa unidade à esfera apenas técnico-profissional,
dependendo para que isso não aconteça da iniciativa individual de professores
comprometidos com um processo formacional com mais ênfase na questão
científica e filosófica, que promovem grupos de estudo e pesquisa, mas que não
conseguem abarcar um número substancial dos licenciandos, devido às suas
limitações de tempo.
Ademais, alguns estudantes, transferem a responsabilidade pela falta de
apoio às pesquisas e estrutura para uma formação com mais qualidade, única e
exclusivamente à UPE e a alguns professores, revelando que o campo de luta para a
melhoria da qualidade do curso não é algo que dependa também de sua ação como
sujeito de sua própria aprendizagem, o que configura total descompasso com a
tendência de formação de professores atual, a qual aponta o futuro docente como
comprometido com a luta pela melhoria na educação do Brasil.
Todavia, uma parcela substancial dos licenciandos, percebe a UPE como
responsável, apesar de todas mazelas descritas, como espaço de transformação de
seus pensamentos, de ampliação de sua visão de mundo e um ambiente de
formação profissional, que, se possui lacunas, estas devem ser preenchidas através
da busca constante pelo conhecimento, comprometimento incondicional com a sua
formação como docente e com a luta para que Universidade alcance seu objetivo de
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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congregar ensino, pesquisa e extensão, atingindo conseqüentemente a sua função
social.
Enquanto pesquisador do curso de História da UPE em Petrolina a partir de
todo o exposto, consideramos que a instituição promove uma formação condizente
com as diretrizes nacionais relacionadas ao ensino superior, apesar de todos os
infortúnios citados pelos alunos. Sendo que, alguns destes, pensam que a
responsabilidade com o seu processo de construção como docentes, está vinculada
apenas ao que a instituição da qual fazem parte pode oferecer, sem que observem
que o seu comprometimento com a formação inicial, é de suma importância para
que os objetivos propostos pelo Projeto Político Pedagógico do Curso sejam
atingidos. Além disso, inferimos que a UPE possui participação efetiva na mudança
de visão de mundo de uma parcela significativa dos licenciandos em História no
Campus de Petrolina, tendo em vista os pensamentos expostos pelos graduandos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 009/2001. Diretrizes
curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica, em
nível superior, curso de licenciatura, graduação plena. Brasília: MEC/CNE/CP,
2001.
BRASIL. Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da
educação básica, em cursos de nível superior. Brasília: MEC, 2000.
BRASIL. Resolução CNE/CP 1. Institui diretrizes curriculares nacionais, para a
formação de professores da educação básica, em nível superior, curso de
licenciatura, de graduação plena. Brasília: MEC/CNE/CP, 2002.
BRASIL. Resolução CNE/CP 2. Institui duração e carga horária dos cursos de
formação de professores da educação básica, em nível superior. Brasília:
MEC/CNE/CP, 2002
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 492/2001. Diretrizes
curriculares nacionais para os cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço
Social, Comunicação Social, Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia,
Arquivologia e Museologia. Brasília: MEC/CNE/CES, 2001.
CAMPOS, José Inácio Garcia. Reflexões sobre o curso de História da UFPel. In:
SEFFNER, Fernando; BALDISSERA, José Alberto (Org.). Qual História? Qual
ensino? Qual cidadania? Porto Alegre: ANPUH; Unisinos, 1997. (p.184-186)
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 35
IMBERNÓN, Francisco. Formação docente profissional: formar-se para a
mudança e incerteza. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002
RANGEL, Carmem. O ensino de História em tempos de crise. In: SEFFNER,
Fernando; BALDISSERA, José Alberto (Org.). Qual História? Qual ensino? Qual
cidadania? Porto Alegre: ANPUH; Unisinos, 1997. p. 117-119.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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A DIVISÃO SEXUAL/SOCIAL DO TRABALHO NA HIERARQUIA DO TERREIRO
DE CANDOMBLÉ “YLE AXÉ OMYM KAIODE”
Antonio Carvalho dos Santos Junior

PARA INICIO DE CONVERSA
Os seres humanos vivem forjando mecanismos para viver; estão diariamente
construindo e reproduzindo estratégias para permanecerem vivos. Desta forma, o
trabalho é, indiscutivelmente, o meio que utilizamos para produzir tudo o que
necessitamos para manutenção de nossas atividades vitais.
Neste processo de manutenção da vida, vamos realizando uma fragmentação
do trabalho, destinando funções sociais determinadas para grupos humanos
determinados. Forjamos assim, discursos que justificam e legitimam a condição de
cada um na escala produtiva, escamoteando o real para que ele seja despercebido e
não questionado. Toda face real do vivido, fica por detrás da máscara ideológica
como numa espécie de encenação teatral. Aqui nos utilizamos da definição do termo
ideologia proposto por Muniz Sodré, quando diz que:
Ideologia é a mascara com que o conhecimento cobre,
semantizando, semiotizando, toda e qualquer simbolização. É
a lógica de objetivação do mundo, que hoje opera com códigos
hiper-racionalistas, em favor da reprodução cultural da força
de trabalho e das relações de produção1.
Sendo assim, a cultura funciona como um conjunto de práticas e valores
histórico e socialmente acumulado (contudo mutável) para reprodução silenciosa do
nosso modo de ser. A religião, como produto cultural do nosso meio social, também
se insere nesse conjunto de mecanismos reprodutores da realidade vivida. Sua
estrutura é pensada para possibilitar a continuidade do estado de coisas sociais.
Nosso imaginário está povoado de representações que nos possibilitam
modelos a serem seguidos. Por isso, criamos e ocupamos nosso local no espaço
Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco-UPE, bacharelando em Comunicação Social
pela Universidade do Estadual da Bahia-UNEB. [email protected].
1
SODRÉ, 2002, p. 10;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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produtivo, executamos o papel que nos é destinado na práxis social. Nesse
processo, vários elementos são usados discursivamente para creditar nossa
condição. Na divisão do trabalho, o fator sexual tornou-se um destes elementos
determinante de nossa ocupação produtiva. As relações de gênero são assim,
marcadas por uma opressora distribuição dos sexos nas atividades produtivas.
Desta forma, o conceito de Gênero desenvolvido a parti da década de 60,
emergido de uma necessidade dos movimentos feminista à teorização dos papeis
sociais dentro de uma perspectiva sexual/social, vem se mostrando uma
possibilidade de analise aplicável em várias áreas do conhecimento humano. Essa
nova forma de tentar perceber as relações humanas vem se estruturando e se
tornando uma postura científica que, revela para a historiografia, e para outras
áreas do conhecimento humano, novos agentes históricos, secundarizados e porque
não dizer, marginalizados em nossas narrativas.
Ana Maria Colling afirma que:
A história das mulheres é uma história recente, porque desde
o século XIX, quando a História se transforma em disciplina
cientifica, o lugar da mulher dependeu das representações dos
homens, que foram, por muito tempo, os únicos historiadores.
Na década de 60, as mulheres quiseram contar a sua história,
olharam para trás e viram que não tinham nenhuma. Não
existiam, eram somente uma representação do olhar
masculino. Os homens a contavam. Por isso, falar do feminino
é falar das representações que esconderam este feminino ao
longo da História 2.
O movimento da Nova História proporcionou a ampliação multifocal de
analise, sobre as construções historiográficas, pois se percebeu a existência de
múltiplos sujeitos com múltiplas características, indivíduos determinados em locais
e situações determinadas. Ainda nesse movimento, percebeu-se a possibilidade de
construir a história a partir de vários referenciais, sejam eles de ordem culturais,
políticos ou econômicos.
Segundo Rachel
3,
esse processo engendrado pela Nova História foi à
possibilidade das mulheres começarem a integrar essa gama de novos atores na
narrativa histórica, elas foram assim “alçadas à condição de objeto e sujeito da
História”. Começou-se a perceber as mulheres como seres que estavam presentes
2
3
COLLING, 2004, p. 31
RACHEL, 1997;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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no espaço da sociedade e que, de alguma forma, também construíam nosso modo
de ser social.
É impossível, portanto, analisar o discurso histórico
independente da instituição em função da qual ele é
organizado em silêncio; ou sonhar com uma renovação da
disciplina que seria assegurada apenas pela modificação de
seus conceitos, sem que haja uma transformação de situações
estabelecidas 4.
Pensar a sociedade segundo a perspectiva analítica do conceito de Gênero é,
repensar o sujeito universal (o homem), pois esse parâmetro de analise se justifica a
partir da dialética, onde a construção dos indivíduos se dá de forma relacional,
homens e mulheres têm sua definição subordinada um ao outro, o masculino só se
concebe masculino pela negação do feminino. Desta forma, “há uma incômoda
ambigüidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois ela é ao mesmo
tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento radical
dessa história” 5.
Com a preocupação de contribuir com os estudos que pretendem analisar
nossa sociedade levando em consideração as construções relacionais (social/sexual)
dos indivíduos, esse trabalho busca mostrar como homens e mulheres atuam no
sentido de produzir e reproduzir seus papeis sociais. Para tanto, foi utilizado como
campo de estudo o terreiro de Candomblé Yle Axé Omym Kaiode, localizado no
bairro Quidé, na periferia da cidade de Juazeiro/BA. Vamos fazer um estudo dos
serviços destinados às mulheres e aos homens nesse espaço sagrado. Tentaremos,
de alguma forma, adentra ao cotidiano ritualístico dos membros deste Terreiro. As
observações de campo foram feitas durante todo o mês de Março, período de
construção de uma festa em comemoração aos 17 anos de santo do pai-de-santo
daquele espaço.
A DIVISÃO HIERARQUICA DO CANDOMBLÉ
O candomblé está organizado segundo um modelo que recria no plano
místico o nosso padrão familiar, seus praticantes, ao se tornarem membros (filhos)
4
5
CERTEAU apud BRANCO, 2004, p. 36
SCOTT, 1992, p. 75;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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de um determinado terreiro, são agrupados em torno de um mesmo culto, são
instruídos para saber como se comportarem no ambiente sagrado. A camarinha,
espaço destinado ao recolhimento dos iniciados, é um dos espaços reservado para o
aprendizado dos preceitos dessa religião, nela são ensinado todas as coisas
relacionadas ao orixá dono da cabeça do sujeito recolhido, como, por exemplo, a
série de interdições que são posta a ele.
Ao observamos o grupo que compõe o terreiro “Yle Axé Omym Kaiode”, temos
a impressão de estarmos, de fato, vendo uma grande familiar que se reúne
esporadicamente naquele mesmo espaço. Todos os membros daquele terreiro
moram em residências separadas e localizadas em vários bairros da cidade de
Juazeiro, salvo o babalorixa Erivaldo, que reside em um cômodo anexo do barracão.
Mesmo assim, morando geograficamente distante do espaço onde está
localizado o terreiro, os membros dessa família mística, em datas especiais, se
reúnem para realizar os rituais sagrados. Muitos desses indivíduos, em especial as
mulheres, são confinados naquele espaço até que as festividades terminem; isso
pode demorar semanas.
Todos estão naquele espaço para servir suas entidades sagradas, que
segundo essa crença, os orixás são divindades protetoras, que interfere diretamente
em nosso modo comportamental. Dessa forma, cada pessoa tem um orixá que o
protege e defini sua personalidade.
Existem diversas formas de servir aos orixás, uma delas é a de ser
instrumento físico para que a entidade se manifeste materialmente na terra, através
da possessão. Aqueles E aquelas que não são possessos pela entidade, também
devem prestar suas obrigações para com o seu orixá, executam, desta forma,
diversos outros serviços no terreiro, a fim de viabilizar a ocorrência das atividades
ritualísticas.
Por tanto, o Candomblé se organiza segundo uma hierarquia que garante o
funcionamento do espaço, cada membro dessa cadeia hierárquica se ocupa de
funções determinadas. Percebemos que, este sistema de divisão do trabalho tem
como pressuposto a diferenciação sexual do grupo, onde homens e mulheres terão
locais pré-determinados naquela estrutura, uma distribuição do trabalho marcada
pela diferenciação de gênero.
Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele
não se relaciona simplesmente às idéias, mas também às
instituições, às estruturas, às praticas cotidianas, como aos
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é
o instrumento de entrada na ordem do mundo; mesmo não
sendo anterior à organização social, é dela inseparável. Seguese, então, que gênero é a organização social da diferença
sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele
constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é
causa originária da qual a organização social poderia derivar:
ela é, antes, uma estrutura social móvel que deve ser
analisada nos seus diferentes contextos históricos 6.
Desta forma, no topo da hierarquia do candomblé está o pai ou a mãe-desanto, no caso estudado, o terreiro angola “Yle Axé Omym Kaiode”, essa função é
ocupada por um homem. Toda a estrutura organizacional do terreiro é
supervisionada e deliberada pelo pai-de-santo, acima dele só os orixás, as entidades
sagradas que propiciam o axé daquele espaço sagrado. Edison Carneiro percebe
esse local hierárquico, como a extrema concentração de poder, dizendo que:
Os candomblés são comunidades fechadas, no sentido de que
não obedecem a nenhum governo comum, nem a regras
comuns.
A
autoridade
espiritual
emana
direta
e
exclusivamente do pai ou mãe, que só reconhece, acima da
sua própria autoridade, a dos orixás. Essa autoridade –
absoluta em toda força do termo -, o chefe a divide com as
demais pessoas do candomblé, em linhas muito nítidas de
hierarquia 7.
Devemos aqui lembrar que durante muito tempo, desde o período
embrionário do candomblé, esse cargo de liderança dos terreiros esteve fechado às
mulheres. Contudo, com a ampliação dessa religião e talvez pelo seu crescimento
econômico, já que o pai ou mãe-de-santo vivem da prestação de serviços espirituais,
se torna cada vez mais freqüente que homens ocupem esta função. Sobre isso
Edison Carneiro diz que:
Dos sessenta e sete candomblés matriculados na União, trinta
e sete eram dirigidos por pais e trinta por mães. Parece,
porém, que nem sempre houve pais e mães e que,
antigamente, o candomblé era, nitidamente, um oficio de
mulher. indicando, entre outras coisas, a necessidade de
cozinhar as comidas sagradas, de velar pelos altares, de
enfeitar a casa por ocasião das festas, de superintender a
educação religiosa de mulheres e crianças – serviços
essencialmente domésticos, dentro de quatro paredes. Outro
6
7
SCOTT apud: COLLING, 2004, p. 39;
CARNEIRO, 2008, p.117;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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indicio está na marcada preponderância da mulher na história
dos candomblés 8.
Todos os demais membros do grupo que compõe a família mística, vão ser
tidos como filhas e filhos, cabe ao pai (neste caso, pois poderia ser a mãe) orientálos na condução de sua vida espiritual, nos processos ritualísticos que eles devem
realizar. Essa figura de chefia domina alguns segredos que lhes proporciona uma
espécie de poder simbólico, que consequentemente possibilita o subjugo dos demais
membros do terreiro. Esse exercício do poder fica bastante notório quando um filho
ou filha faz reverência ao pai-de-santo, ele ou ela deve deitar-se e rolar-se no chão,
depois beijar a mão estendida pelo seu pai-de-santo.
Abaixo dos pais e mães de santos, temos os pais e mães pequenas, esses são
indivíduos da extrema confiança do superior (pai ou mãe de santo), e que já detém
o conhecimento de determinados rituais.
Quando acontecem as cerimônias, os pães e mães pequenos são os
responsáveis pelo bom funcionamento do evento, eles dão ordens diretas a todos os
membros do grupo, servido como uma espécie de intermediário do pai-de-santo. Na
ausência da chefia superior, esses indivíduos tornam-se chefes imediatos,
obedecendo à hierarquia, se na casa tiver muitas pessoas ocupando esse cargo,
pelo seu tempo de feitura no santo. Devemos observar que em nosso caso estudado,
esse cargo é ocupado por homens e mulheres, todavia, um pai pequeno (por tanto
um homem) ocupa posição de maior confiança do pai de santo daquele terreiro.
Temos ainda os ogãs, esse cargo é ocupado exclusivamente por homens que
desenvolve atividades esporádicas no terreiro, tendo uma frenquência menos
intensa aos trabalhos desenvolvidos nos candomblés. As questões referentes à
segurança são suas obrigações, além disso, eles devem ser os articuladores do
terreiro com o mudo externo. Edison Carneiro faz, de forma ilustrativa, uma
simulação de como é curioso o ritual de escolha dos ogãs da casa de candomblé,
valendo apena recopilá-lo aqui. Ele diz:
Certo dia, a mãe decide levantar ogã do seu candomblé um
cavalheiro que conquistou as simpatias gerais da gente da
casa, seja pela sua liberalidade, seja pela sua atração pessoal,
seja pela posição que desfruta. Em meio a uma cerimônia
pública, a filha A, possuída por Xangô, por exemplo, toma pela
mão o indicado e o leva até diante do altar de Xangô, onde
interroga o orixá, em língua africana, sobre a conveniência de
8
CARNEIRO, 2008, p. 111;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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tomá-lo como seu ogã. Volta depois com ele para o barracão e,
enquanto os atabaques se fazem ouvir, festivamente, outros
ogãs da casa o carregam e o passeiam carregado em volta da
sala, sob os aplausos da assistência. Outras vezes o orixá
escolhe o ogã entregando-lhes as suas insígnias – no nosso
caso, o machado de Xangô 9.
As filhas e filhos de santo são os próximos desse esquema hierárquico, elas e
eles são os indivíduos que servem de cavalo para o orixá, ou seja, são aquelas e
aqueles que durante as cerimônias de possessões servem como instrumento para
que as entidades sagradas se manifestem na terra. Em candomblés tradicionais
essa função é única e exclusivamente ocupada por mulheres, principalmente nos
grupos nagôs e jeje. No entanto, por o terreiro “Yle Axé Omym Kaiode”, pertencer à
nação angola, homens também compõe esse grupo de sujeitos rodantes,
recebedores físicos dos orixás.
Esse grupo são os que melhor representam a continuidade das tradições
religiosas do candomblé, haja vista que eles são os únicos que trazem a
possibilidade de se tornarem lideres religiosos do grupo, pois eles podem, passando
por uma serie de rituais estabelecidos, conseguir se tornarem pais e mães-de-santo.
Essa transição de cargo se dá em um processo de amadurecimento do individuo
nos preceitos religioso, onde o orixá autoriza-o a ocupar esse lugar de mando.
Ainda temos nessa estrutura, a figura das equedes, essas são mulheres que
estão abaixo das filhas e dos filhos de santo. Elas são indivíduos que, também
contam com a proteção de um determinado orixá, pois, como reza a crença do
candomblé, todas as pessoas, sejam elas convertidas ou não, detém uma entidade
que a resguarda. Contudo, essas mulheres feitas equedes, não contam com a
possibilidade de receber em si seu orixá, dessa forma, elas fazem um voto de
servidão a sua entidade protetora, prestando-lhes serviços subalternos. A equede
tem, por obrigação, de cuidar do seu orixá, onde quando este se manifesta em um
filho ou filha-de-santo, nos atos cerimoniais, deve ser sempre amparado por aquela
equede que lhes presta subserviência.
Por ultimo, nesse esquema hierárquico, temos as ambiãs. Estas são pessoas
que ainda não pertencem de fato ao candomblé, são sujeitos que estabeleceram
certa aproximação com o terreiro, contudo ainda não passaram pelos processos de
iniciação na religião, estão numa fase anterior. Digamos que as pessoas que
compõe este grupo são uma espécie de visitantes que, de alguma forma, colaboram
9
CARNEIRO, 2008, p. 120;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 43
para o funcionamento do espaço. “São uma reserva de efetivos, de potencial
humano para os candomblés de amanhã”
10.
Todos esses cargos dispostos na estrutura hierárquica do candomblé são
extremamente necessários para o funcionamento dessa religião. Os indivíduos para
ocupar tais cargos devem ser submetidos a processos iniciatórios, onde a permissão
deve, segundo o pensamento dessa religiosidade, emanar das forças sobrenaturais
que se manifestam no mundo físico através das suas insígnias ou na possessão de
seus adoradores.
AS OBSERVAÇÕES DO CAMPO DE PESQUISA: PREPARANDO A FESTA
Durante todo o mês de março de 2010, foram feitas visitas técnicas ao
terreiro “Yle Axé Omym Kaiode”, em pleno período das festividades, onde o pai-desanto da casa, o senhor Erivado, estava completando 17 anos de feitura do santo,
como se diz no candomblé, cumprido com suas obrigações. Nesse período festivo,
vários rituais foram realizados, onde os vários orixás manifestaram-se no barracão.
Para que todos os processos religiosos acontecessem de forma tranquila, foi
preciso dias de preparação logísticas e estruturais, de arrumação do espaço
sagrado. Esse período foi o escolhido para a realização das observações necessárias
à construção desse trabalho. Observações estas, que serão descritas pra que
possamos evidenciar as relações de trabalhos presentes neste espaço religioso.
O primeiro passo, a ser dando na realização de uma festa religiosa dessa
proporção, é convocar todas as filhas e os filhos-de-santo da casa, para que eles e
elas se engajarem na organização do espaço, muitos deles e delas se confinam no
local da realização dos rituais, passando dias, semanas e até meses naquele espaço.
Os superiores religiosos são convidados a participarem na condução dos trabalhos,
neste caso a mãe Maria e a mãe Adaci (mais conhecida como Dada), vieram da
cidade de Salvador, pois elas são as mães-de-santo responsáveis pela feitura da
cabeça do pai Erivaldo. Neste mês de obrigação, o pai Erivaldo ficou recolhido,
interditado de realizar algumas atividades.
As festas são abertas com uma saudação a Exu, conhecido como samba de
Exu. Este orixá representa uma espécie de intermediário, “é ele que estabelece a
ligação entre os divinos e os humanos e abre o caminho para que aqueles se
10
CARNEIRO, 2008, p. 124;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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aproximem destes” (MAGALHÃES, 2003, p.92), ele garante a tranquilidade da
festividade, abre o caminho para que as coisas aconteçam harmoniosamente.
No desenrolar do samba, são oferecidos a Exu bodes e galos que são
sacrificados em um quanto anexo do barracão, neste espaço estão guardados os
objetos sagrados desta entidade. Todos os filhos e filhas, no momento do sacrifício,
ficaram postos em circulo frente ao quanto de Exu, cantam musicas a fim de
invocar a vinda deste orixá. Dentro do quarto de exu, estavam o pai Erivaldo que
será possuído pela entidade, a mãe Adaci conduzindo os rituais, e um ogã, um
homem responsável pela matança, ou seja, em executar o sacrifício dos animais.
Ao final da matança os animais são postos para fora do quarto, alguns dos
membros destes animais, como por exemplo, a cabeça, são arrancados e deixados
no quarto para compor as oferendas postas a Exu, o padê (despacho). As mulheres
são de imediato convocadas a fazer a limpeza de resíduos de sangue e penas que,
por ventura, ficaram no chão da casa, elas também se encarregam de recolher os
animais mortos, pois este serão depois limpos e preparados para serem servidos
nas refeições posteriores ao culto.
O pai-de-santo Erivaldo sai do quarto possuído por Exu ao som dos
atabaques entoados por dois outros ogãs presente na cerimônia. Exu samba
trazendo consigo uma garrafa de bebida alcoólica, ele a bebe e oferece aos demais
membros da casa. Podemos notar, nos trejeitos desenvolvidos pelo o pai em
possessão, que Exu é a representação do homem viril e festivo, de humor instável e
violento, do individuo que se reveste exacerbadamente de características fálicas
impondo-se ao resto do grupo. Vale ainda notar que, com sua postura rígida, Exu
fuma, bebe, cospe e fala palavrões durante o samba.
Feito o samba para Exu, a família do terreiro esta, se assim podemos dizer,
autorizada a continuar com as festividades ritualísticas. Ao longo do mês foi
invocada diversas outras entidades, mas para que isso acontecesse, foram
desenvolvidas uma série de atividades, no que diz respeito à manutenção do espaço
em que acontece a festa.
Todos os membros da casa ajudam, inclusive financeiramente, para
viabilização dos acontecimentos ritualísticos. Durante todo o dia homens e
mulheres vão se dividindo em diferentes atividades no terreiro. Vale frisar que, as
mulheres são quantitativamente superiores aos homens nestes espaços religiosos,
que segundo mãe Adaci, “elas são a beleza de uma roda de Candomblé”.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Em tempos de obrigação religiosa, o dia mal amanhece e os membros do
terreiro já estão de pé, antes de qualquer coisa eles fazem suas orações. Logo após,
é preciso começar os preparativos para a festa que acontecerá a noite, é necessário
prepara o barracão, deixar a roça organizada e limpa, não só para satisfazer os
orixás, mais também, para receber bem todas as pessoas que irão prestigiar o
evento. E interessante notar que em dias como este, o terreiro fica pequeno para
enorme quantidade de visitantes, várias pessoas de outros terreiros da cidade e
vários moradores do bairro vão participar das festividades.
Ainda pela parte da manhã é preciso organizar o cardápio do dia, esse
cardápio e feito seguindo as preferências do orixá que baixará naquela noite. A mãe
Adaci acompanha tudo de perto, ela é quem melhor sabe quais são os alimentos
propicio a ser servido, às vezes ela própria põe-se a executar parte do processo de
preparação dos alimentos. Parte das mulheres do terreiro se encarrega no
cozimento desta refeição. Podemos observar na imagem 3, 4 e 5 que dentro da
conzinha existe uma divisão de trabalho interna, onde cada uma dessas mulheres
se responsabiliza por uma etapa do serviço, a fim de dinamizar a produção. Os
trabalhos da cozinha são restritamente reservados às mulheres, em momento
algum se percebe um homem envolvido nesta atividade.
No lado externo ao barracão, no imenso quintal que compõe o terreiro, e que
é todo de chão batido, outro grupo de mulheres fica responsável em varrê-lo e regálo, elas são acompanhadas por crianças que lhes auxiliam no recolhimento do lixo
acumulado. Esse espaço do terreiro é um local importante, pois no final da festa, os
visitantes são acomodados em mesas e cadeiras que são postas nele. Percebemos
que quando é preciso recolher um montante de lixo ou qualquer outro material
pesado, alguns homens da casa são acionados para executar o serviço.
O barracão, local onde são realizadas as festas sagradas; espaço de extrema
importância para o terreiro, pois é nele que os orixás se manifestam, também
recebe cuidados no período da manhã ele é varrido e lavado, para isso são
necessárias mão-de-obra de duas ou três mulheres, a elas fica incumbência da
manutenção de um dos locais mais estimados do terreiro de candomblé.
Percebemos que, durante todo o tempo de permanência dos fieis no terreiro,
eles usam roupas típicas da religião; as mulheres sempre com grandes saias,
geralmente posta na altura dos seios; os homens com calças que vão abaixo dos
joelhos e batas com magas longas. Essas vestimentas são na maioria das vezes de
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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cor branca, cor associada a Oxalá, orixá maior do candomblé. Isso pode ser
constatado em todas as imagens posto neste capítulo.
Quando chega a noite, esses trajes são substituídos por outros que seguem o
mesmo padrão, mas que são mais bem elaborados, como uma espécie de trajes de
gala usados em momentos especiais, momentos festivos. Porém, pra que todos os
membros do grupo, em especial as mulheres, fiquem bem apresentados na festa
que acontecerá a noite, é preciso que todas as roupas sejam lavadas, reparadas se
houver algum dano, e engomadas. Todo esse serviço também é feito pelas mulheres
do terreiro, uma ou duas são responsáveis em costurar possíveis rasgaduras,
outras são incumbidas na lavagem, e ainda há um grupo que executa a aplicação
da goma11 para deixa as saias armadas, com a forma arredondada e volumosa. Esse
tratamento às vestimentas pode ser notado nas imagens 1 e 2.
Há ainda nesse momento de preparativos, a necessidade de fazer pequenas
construções, como, por exemplo, uma espécie de alpendre muito simples e rústico
de palha e madeira, que foi feito ao lado do barracão para abrigar as pessoas que
por ventura viessem prestigiar o evento. Para essa edificação foram acionados todos
os homens da casa que estavam presentes no momento, eles subdividiram-se no
processo de construção, enquanto um estava em cima do alpendre outro lhes
fornecia as palhas necessárias à cobertura, embaixo um outro dava instruções de
qual a melhor forma para dispor as palhas, este aparentemente era um dos ogãs
mais velho do terreiro.
As mulheres e as crianças também são solicitadas nesse processo de
edificação. Contudo, a elas são reservada a função de rasgar as palhas, com o
auxilio de um garfo, desse utilizados em refeições. Elas vão desfiando palha por
palha, colocando a disposição dos homens que operam a atividade de montagem do
alpendre. Esse serviço desempenhado pelas mulheres e criança é a parte “delicada”
da construção. As imagens 7 e 8 deixa isso bem perceptível.
Uma cerca de madeira também foi construída nesses momentos de
organização do espaço, para que ela fosse erguida foi necessário um homem (ogã) e
uma mulher (filha-de-santo), como se pode ver na imagem 9. Este deveria ser, via
de regra, um serviço realizado por homens, porém, no momento em que a cerca
deveria ser construída, não havia outro homem disponível para o desenvolvimento
da atividade, desta forma, a mulher foi solicitada para auxiliar na construção.
Goma é uma substância feita a parti da mistura de água e farinha de tapioca que é levada ao fogo
até se transformar em uma espécie de cola;
11
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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O cuidado com as arvores do terreiro é algo bastante especial, pois segundo
as crenças do candomblé algumas entidades sagradas residem nelas. Por isso, elas
são regadas, na maioria das vezes pelas crianças, ou por qualquer pessoa
disponível. Essas arvores também devem ser podadas, esse trabalho foi realizado
por um homem que, utilizando um facão dava forma arredondada nas copas.
O chegar da noite, anuncia o inicio da festa, todos do terreiro ficam prontos,
vestidos nos seus melhores trajes; a multidão de visitantes fica na expectativa dos
sons dos atabaques; o salão é aberto para que todos se acomodem da melhor forma
possível; todos os serviços preparatórios, realizados durante o correr do dia,
culminam nesse momento.
Os ogãs adentram ao barracão, e tomam seus postos, três deles ficam nos
atabaques incumbidos de tocá-los, pois só os homens executam esse serviço; um
quarto ogã fica ao lado dos atabaques, na responsabilidade de auxiliar e animar a
batida deles, um outro fica observando tudo que acontece durante toda a
cerimônia, ele é um espécie de guardião responsável pelo o bom andamentos dos
trabalho, em qualquer imprevisto ele esta posto em resolver os problemas.
Adentram ao barracão todos os filhos e filhas-de-santo, eles e elas são postos em
fila que obedecem à hierarquia da casa, os mais velhos de santo são posicionados
na frente, a mãe Adaci e a mãe Marina ficam à frente desta fila, sendo procedidas
pelo pai Erivaldo. Ao som dos atabaques todos entram dançando, formando uma
grande roda, iniciando de fato o culto.
Durante todo tempo são entoadas varias cantigas, para cada orixá deve-se
cantar três musicas. Para cada entidade sagrada, há musicas e danças especificas,
são desenvolvidas, no barracão, varias coreografias, onde, em grande parte, as
mulheres a protagonizam.
Muitas dessas cantigas são entoadas em línguas
africanas, todos do grupo as desempenham de forma sincronizada, denotando-se
uma apropriação das letras, porém, não fica evidente se existe uma apropriação do
conteúdo.
As musicas cantadas para cada orixá, faz com que eles se manifestem,
incorporando assim em um filho ou uma filha-de-santo que lhes deve obrigação.
Quando isso acontece, a pessoa possessa conta sempre com o auxilio de uma
equede, esta fica o tempo todo alerta e com uma toalha em cima dos ombros, pois
ela deve cuidar do orixá, enxugando seu suor e lhes conduzido na roda, ela deve
ainda encaminhá-lo à camarinha, e chegando lá despachá-lo, suspendê-lo. A
imagem 10 tenta ilustrar esse momento, a mulher de roupa azul e tolha branca no
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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ombro conduz a que esta em sua frente vestida de branco, a qual ela segura pelos
braços.
Neste dia de festa, o terreiro estava prestando homenagens a Oxalá, esse
orixá é o representante direto e filho de Olorum, este é o Deus supremo que não se
manifesta nos corpos humanos. Segundo a discrição de Magalhães, Oxalá seria o
pai de todos os outros orixás. “Assume, no presente caso o aspecto de um velho
trôpego, encurvado, mas de compostura serena, benévola”
12.
Em um momento da festa foram cantadas músicas para Oxalá, nesta hora o
pai Erivaldo participou ativamente da roda, sendo ele possuído por esta entidade,
as mães-de-santo Marina e Adaci, que conduziam os trabalhos, o levaram para a
camarinha junto com algumas equedes, estas são as responsáveis em arrumá-lo,
devem vesti-lo com as roupas adequadas aquele orixá, e lhes colocar todas as
paramentas necessárias a sua aparição publica.
Estando devidamente arrumado, pai Erivaldo, ao som de atabaques, entrou
novamente no barracão, neste momento todos os filhos e filhas-de-santo pararam
de dançar, curvando-se diante da entidade, ele desenvolveu algumas perfumasses,
sempre acompanhado de suas equedes que lhes enxugavam o suor e lhes arruma
as vestis.
Edson Carneiro diz que:
O objetivo principal do candomblé parece ser a presença dos
orixás entre os mortais. Assim, ao menos teoricamente, a festa
está no fim desde que os orixás, já convenientemente vestidos,
penetram na sala. Em geral, quando isso acontece, já se
avizinha a meia-noite. O cansaço geral das filhas, o receio de
incomodar terceiros, uma ordem da policia, etc., serão razões
para terminar a reunião 13.
O fim desta festa no terreiro “Yle Axé Omym Kaiode” acontece assim como o
relatado por Carneiro. Depois da exibição publica do orixá homenageado, são
entoados cânticos que prenunciam o fim daquela noite de culto. As pessoas
presentes são todas convidadas a desfrutar da comida do axé, ou seja, o alimento
que é feito para o orixá homenageado. Neste momento, as pessoas são acomodadas
no lado de fora do barracão, as mulheres do terreiro são as responsáveis em servir
todos os presentes, elas só podem cear depois que todos já foram devidamente
servidos.
12
13
MAGALHÃES, 2003, p. 37;
CARNEIRO, 2008, p. 59-60;
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Chega-se assim o fim de mais um dia no terreiro, as pessoas começam a sair
aos poucos, ficam no local todas as mulheres que estão confinadas no terreiro, elas
devem arrumar e organizar o espaço, a final de contas, no dia seguinte elas terão
que executar novamente todas as tarefas domesticas, pois outro orixá deverá ser
homenageado, e assim acontece até o final das festividades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ser humano se difere dos outros animais pelo seu potencial criativo, pois a
todo
o
momento
ele
estar
se
construindo
enquanto
sujeito.
Criamos
constantemente mecanismos discursivos que justificam nossa presença no mundo;
damos
sentido
ao
que
somos;
inventamos
a
nós
mesmos.
Estamos,
incessantemente, criando estruturas sociais de poder que sirvam para a reprodução
de nós mesmos, ao mesmo passo que, nos digladiamos frente a essas mesmas
estruturas que, de tão solidificadas histórica e culturalmente em nosso fazer
cotidiano, nos aprisionam. Esse enfrentamento só é possível porque estamos
inclinados aos atos revolucionários, haja vista que, nossa subjetividade é mutável,
inserida em um jogo de equilíbrio e desequilíbrio.
Desta forma, podemos dizer que, nós vivemos para viver, nosso modo de ser
só é da forma que é, porque em algum momento necessitamos que ele fosse. Nossa
sociedade é assim, uma cocha de retalhos que costuramos continuamente, cada
novo pedaço de tecido é posto para atender novas necessidade que emergem em
nossa busca diária pela sobrevivência. Sendo assim, podemos dizer que essa cocha
tende a ficar, cada vez mais, complexa, ao ponto de não percebermos as costuras
que as entrelaçam, não percebemos o que esta além do aparente colorido exibido
pelos vários pedaços de tecidos postos.
Estamos assim, frete ao desafio do descortinamento da realidade concreta,
temos desta forma a árdua tarefa de transcender a quarta parede que nos envolvem
nesse imenso teatro da vida. Fazer emergir a verdade, é negar os discursos que
escamoteiam o que de fato nós somos, é romper com a ingenuidade que nos cega.
Por isso, o
ato
da pesquisa cientifica se
mostra um instrumento
interessantíssimo no processo de modificação do estado de coisas sociais. A ciência
é assim, um grande instrumento revolucionário. Podemos, através dos estudos
humanos, problematizar as várias opressões presentes em nossa sociedade, para
que protagonizemos a superação das mesmas. É preciso que nos atentemos para o
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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fato de que, todos os nossos comportamentos têm uma intencionalidade, eles nos
inserem em um local determinado, pois desta forma corroboramos para a
retroalimentação das engrenagens sociais, pois somos o combustível necessário ao
pleno funcionamento dessas engrenagens.
Pensando assim, entendemos que as questões de gênero devem ser uma
pauta de debate sempre presente nas produções acadêmicas, pois analisar como
funciona a distribuição de homens e mulheres nos espaços produtivos da sociedade
é entender quais forças de poder estão intrínsecas em nosso modo de fazer
cotidiano. Sendo assim, estudar a divisão sexual/social do trabalho em um espaço
religioso como o candomblé é perceber que as nossas atividades corriqueiras, se
problematizadas, podem nos levantar repostas para o que realmente somos.
Percebemos então que, o sistema de trabalho de um terreiro colabora para a
reafirmação do papel social destinado à mulher. Podemos então verificar que o
sujeito mulher ainda é o agente necessário à reprodução e manutenção da vida,
responsável pelo o mundo do privado, estigmatizada como a figura zelosa, delicada
e materna. Desta forma, a mulher torna-se indispensável para o espaço religioso,
haja vista, que esta instituição serve para a manutenção do status quo social.
Por tudo isso, percebemos que este estudo deve ser a porta de entrada para
uma pesquisa mais complexa, onde este trabalho é o resultado de uma primeira
aproximação com esse objeto de estudo; é uma primeira problematização feita,
rumo ao desvendamentos de questões referentes à como nos distribuímos nos
espaços produtivos da sociedade. Pretendemos, aguçados por uma cosmovisão
materialista-dialética, ir além do que conseguimos neste trabalho, ainda é preciso
investigar
como
nos
reproduzimos
através
do
divino;
como
forjamos
e
personificamos as entidades sagradas; como provocamos um duplicamento de nós
mesmos no plano espiritual, transferido nossas características para esses seres
sobrenaturais, pois segundo a crença do candomblé nossas características são
diretamente influenciadas pelo o nosso orixá, enquanto podemos tentar uma
explicação ao avesso, sendo as características dos orixás influenciadas por nós
mesmos. Além disso, pretendemos em estudos futuros, investigar como essas
entidades sagradas humanizadas, se assim podemos dizer, colaboram para
normatização e reprodução dos locais sociais de homens e mulheres.
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Página 53
A CATEDRAL DE PEDRA COMO IDENTIDADE SOCIAL: A MEMÓRIA COLETIVA
NA CONSTRUÇÃO DO “SER PETROLINENSE”.
Pablo Michel Cândido Alves de Magalhães1
1- COMÉRCIO, SOCIEDADE, CULTURA.
Um viajante que caísse pelas bandas de cá de Pernambuco, em meados da
década de 1920, acabaria surpreendendo-se com a discrepância existente, nascida
numa proximidade ímpar, de duas cidades sertanejas. De um lado a “rainha do São
Francisco”, considerada “a corte do sertão” 2, situa-se Juazeiro; do outro, muito
menos famosa, simples ligação com o canal de escoamento de produtos advindos,
principalmente, do Piauí, a “passagem para o Joazeiro”, Petrolina, que, dizem uns3,
tem seu nome em homenagem ao imperador Pedro II, e outros, que assim foi
batizada pelo fato de existir uma enorme pedreira, ponto de destaque no local;
desde que existe, por volta de 1730, já é conhecida como o local para o qual os
viajantes, advindos do interior árido, vinham com o intuito de atravessar o rio, para
chegar a Juazeiro, e a partir dessa cidade, levar seus produtos para diversos pontos
da Bahia e Minas Gerais.
Em âmbito econômico as duas cidades avizinhadas distanciavam-se ainda mais,
já que Juazeiro monopolizava a atividade fluvial e, conseqüentemente, o poder de
escoamento dos produtos sertanejos, contando também com sua linha férrea,
conexão direta com a capital, Salvador4; esses eram os meios pelos quais a cidade
baiana mantinha contato com o resto do país.
Em seu livro, que trata da história da construção da catedral de Petrolina,
Francisco José Pereira Cavalcanti, padre responsável pelo Palácio Diocesano, faz
um relato sobre a cidade de Juazeiro da década de 1920.
Graduando do curso de licenciatura plena em História pela Universidade de Pernambuco, Campus
Petrolina. Email [[email protected]].
2 Teodoro Sampaio, durante a expedição que realizou pelo rio São Francisco e a Chapada Diamantina,
compara a cidade de Juazeiro a uma corte sertaneja.
3 Os habitantes da cidade sustentam essas duas hipóteses, sem contudo haver documentação que
prove qualquer uma.
4 GONÇALVES, Esmeraldo Lopes. OPARA: Formação histórica e social do sub-médio São
Francisco. Juazeiro: Franciscana, 1997, p. 116.
1
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 54
Se em 1879 Juazeiro já era importante centro comercial, tendo
sido mesmo comparado a uma „corte do Sertão‟ por Teodoro
Sampaio, a Juazeiro dos anos vinte era considerada a „futura
capital do S. Francisco‟ ou a „fidalga cidade bahiana de
Joazeiro, emporio do Commercio São Franciscano‟. Com
aproximadamente 15.000 habitantes, havia pelo menos mais
de 20 anos que já tinha um comércio florescente. Possuía
também uma bela igreja em estilo barroco, praças (uma com
coreto), vários prédios residenciais e com uma arquitetura
bastante trabalhada e considerada moderna na época. Possuía
também Hospital de Caridade, Viação do S. Francisco
(transporte fluvial), Matadouro Público, Câmara Municipal,
telégrafo, Mercado Público, Correio, Banco do Brasil, sede de
Capitania dos Portos, Prédio Escolar, Club Comercial
(instituição beneficente), Estação de Trem, tipografia e jornal
„O Echo‟.5
Apresentações a parte, é notório que, até meados da década de 1950, existia
uma relação de poder e dependência, gerada, primeiro, pelo fato de Juazeiro exercer
domínio sobre o comércio fluvial da região e, segundo, pela distância geográfica e
política entre Petrolina e a capital do estado ao qual fazia parte, ainda que apenas
nominalmente, Recife6. Nominalmente, sim, porque os laços entre as duas cidades
não ultrapassavam esse aspecto. Petrolina era distante econômica e culturalmente
do estado de Pernambuco, tendo suas relações muito mais estreitas com a Bahia.
Para se ter um exemplo prático, podemos falar sobre como um petrolinense
conseguia chegar até a capital de seu estado: primeiro, era necessário atravessar o
rio até Juazeiro e, daí então, tomar um trem até Salvador; uma vez lá, o cidadão
precisaria ainda pegar um vapor até a cidade de Recife. A volta acontecia da mesma
maneira, tudo isso pelo fato de, até a década de 1950, não existir sequer uma
estrada que fizesse a ligação entre os mais de 700 km que separam Petrolina e a
sua capital Recife.
Sobre este aspecto o senhor João José Nascimento, morador de Petrolina desde
1927 e responsável por grande parte das obras da cidade, inclusive a Catedral do
Sagrado Coração, durante sua atividade como construtor, em seu depoimento
afirma que “naquele tempo não tinha nada, não tinha estrada [...]. Só tinha o trem.
Não tinha estrada, não tinha nada. Eu mesmo viajei muito pra Salvador de trem”.
CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira. Catedral de Petrolina; profecia e evocação. Petrolina:
Editora Franciscana, 1999, p. 13.
6 CHILCOTE, Ronald H. Transição capitalista e a classe dominante no Nordeste. São Paulo:
EDUSP, 1991, p. 57.
5
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 55
A esses argumentos, liga-se o fato de Petrolina possuir, em comparação com sua
vizinha Juazeiro, um comércio modesto, basicamente voltado para a população
local, sem expressividade. O que mais intriga, ainda, é que os maiores comerciantes
da cidade, possíveis investidores, tinham comércio em Juazeiro, mas não em
Petrolina, ou antes, tinham seu principal estabelecimento na cidade baiana e
mantinham um pequeno armazém ou apenas um local para manter o estoque em
Petrolina.7
Somada a todos esses fatores de ordem econômica ainda está a questão da
identidade cultural dos petrolinenses da época. Baianos? Pernambucanos? É claro
que era fato aceite que os moradores da cidade se reconheciam enquanto
pernambucanos8, porém o sentimento coletivo era de um pertencimento à Bahia,
seus valores e cultura. Esse tal fator cultural perdura ainda em nossos dias, mesmo
havendo uma movimentação no sentido de aproximar a cultura petrolinense da
cultura pernambucana oficial. Por exemplo, grupos de frevo e maracatu (lembremos
o grupo Maracatujaba9) receberam um destaque maior nos festivais populares e no
carnaval da cidade de Petrolina, que até meados das décadas de 1990 e 2000 era
marcadamente influenciado pela música baiana.
A expressão “passagem para o Joazeiro”, termo esse que era conhecido
popularmente, por quase 200 anos, atuou como um dos pilares na formação da
identidade coletiva, a partir da memória particular dos petrolinenses. Viajantes,
mercadores, retirantes e aventureiros também se utilizavam desse termo designador
referindo-se ao caminho até a cidade baiana, pelo qual se chegaria ao ponto de
comunicação com o resto do país. Daí, tal idéia, construída na memória dos
diferentes indivíduos que se relacionavam no local, se estabelece como um dos
pontos formadores do sentimento de identidade.
Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um
fenômeno construído social e individualmente, quando se trata
da memória herdada, podemos também dizer que há uma
Idem.
Ronald H. Chilcote desenvolveu pesquisas na década de 1960 e 1970 com moradores da cidade sobre
política e economia. A significação de “pernambucanos” é estritamente política, ou seja, os moradores
de Petrolina reconheciam-se cidadãos pernambucanos, pois eram governados pelo Estado de
Pernambuco.
9 O Grupo Cultural da Escola Municipal Mãe Vitória, conhecido como Maracatujaba, dança o
Maracatu de Baque Virado, mais característico da cidade de Recife-PE, mas considerada uma cultura
genuinamente pernambucana.
7
8
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o
sentimento de identidade 10.
Uma vez que a identidade de um povo se constrói a partir do ou dos pontos de
ligação existentes na memória particular11, esse termo empregado durante tanto
tempo, “passagem para o Joazeiro”, constituía-se como elo entre as memórias dos
indivíduos. Na falta de um elo complementar que os fizesse sentir parte de uma
unidade municipal, apesar de a cidade já possuir uma organização política ligada à
Pernambuco e, conseqüentemente, à Recife, os petrolinenses haviam absorvido o
que lhes era legado por Juazeiro (em se tratando de cultura e organização social),
cidade que tratava sua vizinha pernambucana como simples tributária12. À sombra
do juazeiro, o pequeno aglomerado petrolinense de casas respirava quase que
adormecido.
É nesse contexto histórico-cultural que se insere o momento de maior
importância para a cidade de Petrolina, até a década de 1920: a construção da
Catedral do Sagrado Coração de Jesus.
Em 1924, a paróquia de Petrolina é elevada a Diocese (avanço político que veio
atrelado à municipalização da pequena vila, em 1895). Até a chegada do novo bispo,
a pequena igreja Nossa Senhora Rainha dos Anjos abrigava a cathedra episcopal, e
já nessa época precisava de uma profunda reforma. Com a chegada do Bispo
recém-ordenado Antônio Maria Malan, essa profunda reforma, que já havia sido
cogitada, timidamente, pelo frei José de Monsano, em alguns pontos já decadentes
do prédio, passou a ser questionada pelos membros da Diocese e pelo próprio D.
Malan. Apesar de a igreja ser suficiente para o número de fiéis da cidade, o bispo
italiano tinha aspirações maiores em sua administração13.
Construir uma nova igreja nesta nova diocese parecia o mais acertado a fazer.
Na cidade de Afogados da Ingazeira, no estado de Pernambuco, D. Malan contou
com o trabalho do Padre Carlos Maximino Cottar, engenheiro responsável pelo
desenho da Catedral da supracitada cidade, em estilo neogótico. Foi o padre que
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.
10, 1992, p. 204.
11 Idem. Memória, esquecimento, silêncio. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 3.
12 CHILCOTE, Ronald H, op. cit, p. 80.
13 LIMA, José Américo de. Coronel Quelê: Adversidade & Bonança. Petrolina: Ed. do Autor, 2010, p.
75.
10
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 57
concebeu o projeto da Catedral de Petrolina além de atuar como coordenador do
início das obras até 1926.
Nessa primeira fase de obras, podemos destacar a participação popular no
transporte das pedras que viriam a ser utilizadas na construção. Materiais
extraídos da pedreira ao lado da Igreja Matriz (Nossa Senhora Rainha dos Anjos) e
da grande pedreira do Caldeirão da Raposa, nas imediações do aeroporto antigo,
eram trazidos com auxílio de carroças, mas, em especial, vinham nas cabeças dos
petrolinenses, em enormes procissões que tinham como destino o canteiro de obras
da Catedral14.
Essa relação, do indivíduo que carrega as pedras sabendo que elas integrarão o
edifício da Catedral, solidifica o sentimento de pertencimento a determinado grupo
(comunidade, fraternidade). “O argumento é simples: para que práticas coletivas
exerçam influência sobre indivíduos é necessário que estes encontrem significado
nessas práticas e as percebam”.15 Saber que aquele pequeno grande esforço
contribuiria para a edificação da “Casa de Deus” é também dar um significado a
essa prática. Uma vez que a prática tem seu significado e é percebida por aquele
que dela participa, então a relação entre indivíduo/indivíduo torna-se o vínculo
necessário a idéia de pertencimento a uma comunidade, a, de fato, “ser
petrolinense”.
Afinal de contas, a essência da identidade – a resposta à
pergunta „Quem sou eu?‟ e, mais importante ainda, a
permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada,
qualquer que seja – não pode ser constituída senão por
referência aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas e
ao pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de
estabilidade com o passar do tempo.16
Essa característica, o povo que carrega as pedras na cabeça, como podemos ver
na Ilustração 1, é amplamente utilizada por D. Malan em sua visita à Europa, com
o intuito de angariar fundos para seu projeto. A fotografia abaixo retrata e reforça a
idéia de participação popular, além da precariedade dos recursos e falta de
investimentos suficientes, uma vez que “uma foto não é apenas uma imagem [...],
uma interpretação real; é também um vestígio, algo diretamente calcado do real,
CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p. 23.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e Teoria Social. São Paulo: Annablume, 2003,
p. 58.
16 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.p 74-75.
14
15
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 58
como uma pegada ou uma máscara mortuária”.17 Considerando essa função da foto
calcada do real, sua utilização sensibilizaria os eventuais doadores por transmitir a
realidade dura e ao mesmo tempo admirável desse povo.
Ilustração 1: O povo mobilizado: procissões transportam as pedras da futura
Catedral. Acervo Centro Educacional Vivência.
Ainda atrelado a essa discussão, podemos identificar a problemática do estilo
neogótico da Catedral e seu entendimento ou não entendimento por parte dessas
mesmas pessoas que carregaram pedras na cabeça. Na concepção popular, todos
carregavam aquelas pedras para ajudar na edificação do templo de Deus, seguindo
os pedidos e exortações que o bispo D. Malan havia feito a toda a comunidade 18
sem, contudo, saber exatamente como seria esse templo construído nos moldes
arquitetônicos do gótico. O que podemos afirmar, sem sombra de dúvida, é que a
religiosidade era o que movimentava e impulsionava o povo em prol da construção
do templo, ainda que desconhecessem completamente o que era ou não o neogótico.
Nesse
sentido,
não
significa
que
fossem
essas
pessoas
ignorantes
ou
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 170.
Antônio Maria Malan. Carta Pastoral sobre a construção da Catedral. 08/05/1927. Essa carta
circulou entre as paróquias da Diocese como um pedido de ajuda e apelo do bispo à população.
17
18
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 59
desqualificadas; unicamente havia uma grande distância sócio-cultural e temporal
entre essa arquitetura européia e o homem petrolinense.
Com o decorrer da obra, e o eventual falecimento do então responsável Padre
Cottar em 1926, D. Malan viu-se obrigado a contratar os serviços de uma grande
construtora. Entre a Bellano & Bellano e a Emílio Odebrecht & Companhia, o bispo
preferiu esta última, pelas garantias e prazos, uma vez que o orçamento era mais
caro que o da outra empresa.19 A partir daí, com prazos pré-estabelecidos e o
trabalho de profissionais, como o engenheiro Curt Lungershausen, que passou a
gerenciar as obras, o edifício pôde ser erguido sem mais problemas.
Mesmo com essas significativas alterações, a mão-de-obra do povo da cidade
continuava sendo requisitada, apesar da vinda de vários operários de fora.
A importância destacada aqui, em relação à Catedral e sua construção, não é
demasiadamente exagerada, como podemos constatar: antes, durante e após a obra
completa, existiu uma grande movimentação popular em torno desse ideal, sem
contar no efeito causado nos jornais da época, em especial O Pharol, tanto em
Petrolina quanto em Juazeiro. Só o monumento em si causava espanto, pois era
uma Catedral em estilo neogótico, construída no meio do nada, numa pequena
cidade com pouco mais de 3000 habitantes, sem a expressividade de tantas outras
cidades da região, à época (salvaguardando, é claro, a proporcionalidade da
comparação).
Segundo os arquivos da Diocese, a Bellano & Bellano havia orçado a obra em 478:840$000,
enquanto a Emílio Odebrecht & Companhia propôs as despesas em 745:000$000. O diferencial da
segunda construtora era o de que o preço poderia ser parcelado, tendo incluso já nesse valor fretes e
taxas de transporte dos materiais necessários. Todas essas informações foram redigidas em uma
caderneta.
19
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 60
Ilustração 2: Pedra sobre pedra. Absidíolas (pequenas capelas) são erguidas
primeiro. Acervo Centro Educacional Vivência.
Outro
ponto
que
se
deve
ressaltar
é
que
a
Catedral,
pelo
porte
e
representatividade que exercia entre o casario modesto da cidade, requeria uma
reorganização urbana, condizente com a obra. Esse efeito primeiro surgiu entre a
população, que dirigia críticas à administração da cidade, inclusive por meio do
jornal O Pharol.20 A principal delas estava relacionada ao nivelamento do cemitério
da cidade: a terra, escavada cerca de 1 metro em torno do perímetro, foi despejada
em frente ao canteiro de obras da Catedral. O jornal, por meio de artigo anônimo,
aponta o caso como “uma ameaça a saúde dos moradores”
21.
Tal fato adiaria por
duas vezes a sagração da Catedral ao final das obras.
2- EDIFÍCIOS E DESLUMBRAMENTO: O MONUMENTO E A MEMÓRIA
COLETIVA.
20
21
CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p. 32.
O Pharol, edição do dia 06/07/1929.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 61
No entanto, até que ponto podemos considerar que a obra (Catedral do Sagrado
Coração de Jesus), enquanto elemento iconográfico do sertão petrolinense,
contribuiu para a formação da identidade social dos moradores da cidade? De que
maneira o edifício religioso, o qual podemos chamar “monumento”, contribuiu na
memória particular e, por conseguinte, na memória coletiva dos habitantes de
Petrolina, a ponto de, com auxílio de outros elementos ao longo da construção
histórica da região, forjar e solidificar essa identidade re-significada?
Antes de tudo devemos compreender o que se deve entender por monumento.
O sentido original do termo é do latim monumentum, que por
sua vez deriva de monere („advertir‟, „lembrar‟), aquilo que traz
à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito
é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação
neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva.22
Segundo a definição de Françoise Choay, existem o Monumento e o Monumento
Histórico. O primeiro termo refere-se à criação pensada a priori, com o motivo
intencional de se erguer um edifício responsável por rememorar um evento,
momento histórico, dia especial, heróis especiais. Já o Monumento Histórico é
concebido a posteriori, observado e elevado dentre a massa urbana sem relevante
significado,
pelo
seu
valor
memorial,
sem
precisar
ter
sido
pensado
intencionalmente para representar isso.23 A partir desse conceito, e analisando o
contexto da construção da Catedral, podemos arriscar que a obra gravita entre o
conceito de Monumento e o de Monumento Histórico. Primeiramente, a idéia do
edifício foi concebida, desenvolvida e concluída com o intuito de servir como o
marco do desenvolvimento de Petrolina, que estaria por vir. O próprio D. Malan, à
época, afirmou que “construindo-se a Casa de Deus todo o resto virá por acréscimo”
24,
sem
contar
com
o
sem
número
de
matérias
do
jornal
O
Pharol25,
propagandeando e exaltando o valor da Catedral para a pequena Petrolina dos anos
1920; e é Monumento Histórico também, segundo a própria Françoise Choay,
quando considera que esse segundo tipo pode ser “constituído em objeto de saber e
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação liberdade; Ed. UNESP, 2006, p.p
17 – 18.
23 Idem, p. 25.
24 CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p. 15.
25 As grandes festas de sagração na nossa sunctuosa Cathedral. O Pharol, edição do dia
29/08/1929. Outro artigo importante encontra-se na edição do dia 28/01/1928, onde o bispo é
chamado de “Novo Moisés”, pela obra espiritual e material que construía.
22
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 62
integrado numa concepção linear do tempo [...]; ou então ele pode, além disso,
como obra de arte, dirigir-se à nossa sensibilidade artística, ao nosso „desejo de
arte‟”
26.
Essa dupla definição que encontramos na Catedral do Sagrado Coração de
Jesus, sendo Monumento, enquanto pensada como o marco de desenvolvimento de
Petrolina durante a concepção do ideal da construção e devido a seu caráter
emblemático e comemorativo; sendo Monumento Histórico, uma vez que toca a
memória viva, integrando-se à vida dos petrolinenses e à história da cidade, e ao
mesmo tempo inserindo-se no presente, como nosso “desejo de arte”, faz com que
sua edificação e seu lugar na malha urbana de Petrolina sejam bastante
característicos.
Imprescindível se torna considerar, então, que os grandes monumentos, sua
imagem e memória, exercem uma forte influência na construção da identidade de
um grupo, de uma civilização, de uma nação, a partir de sua memória coletiva. “A
memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro”.27 A partir dessa afirmativa, podemos
lembrar que a cidade de Juazeiro já possuía, na década de 1920, uma gama de
edifícios públicos e privados que provocavam admiração na população, agindo como
elementos iconográficos na memória coletiva. Podemos recordar o exemplo da
Estação Ferroviária e seu imponente edifício, que se localizava na orla de Juazeiro,
sendo hoje o ponto onde a ponte Presidente Dutra chega em terras juazeirenses. O
prédio, construído com uma fachada em estilo neoclássico, ficava voltado para o
outro lado do rio, uma espécie de estigma de poder e hegemonia.
26
27
CHOAY, Françoise, op. cit., p. 26.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, p. 478.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Ilustração 3: Estação ferroviária de Juazeiro - BA, meados da década de 1950:
porte e beleza à beira do São Francisco. Acervo Centro Educacional Vivência.
Voltando os olhares para a Petrolina da mesma época, o pequeno casario e a
inexistência de uma organização urbana davam a cidade ares de vila; a Igreja Nossa
Senhora Rainha dos Anjos, o prédio mais alto de todo o casario, Catedral à época,
estava em péssimo estado de conservação28, como citado anteriormente. Em visita
ao sertão nordestino, entre maio de 1913 e março de 1914, o botânico alemão
Philipp Von Luetzelburg, na descrição da cidade de Juazeiro, que ocupa várias
páginas do breve livro, dedica algumas linhas a Petrolina. Entre outras palavras, o
botânico designa de “a velha cidade” o pequeno aglomerado petrolinense29.
Sob esta perspectiva, devemos considerar que “os quadros sociais da memória –
tais como objetos físicos com os quais estamos em contato direto e que se
modificam muito pouco – fornecem uma imagem de permanência e estabilidade
crucial necessária aos indivíduos”.30 A partir daí, podemos dizer que a memória
particular dos petrolinenses, acostumada com o estigma da supremacia de
Juazeiro, traduzida em seus edifícios, e com o termo designador “passagem para o
Joazeiro”, construiu uma memória coletiva a partir do cruzamento dos pontos
28
29
30
LIMA, José Américo de, op. cit., p. 73
CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p. 14.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos, op. cit., p. 85.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 64
particulares citados anteriormente, baseada na subserviência e dependência da
cidade baiana.
31
Nesse contexto, a Catedral do Sagrado Coração de Jesus aparece como um dos
alicerces para uma mudança de percepção de pertencimento dos habitantes de
Petrolina: é um edifício construído com as mãos dos petrolinenses, com pedras
trazidas sobre as cabeças desses moradores, no meio de suas modestas casas,
atuando como um ponto de referência e ligação entre eles próprios que passa a
fazer parte do seu cotidiano, da “‟interação‟ entre o eu e a sociedade”
32;
além disso,
o templo desperta manifestações artísticas tais como poesias e odes à Catedral
publicadas no Pharol, que traduziam em palavras o sentimento em torno da obra33.
É o que podemos constatar na ode A Cathedral de Petrolina, publicada no dia da
sagração do templo.
Quando da mente santa e iluminada
A idéia surgiu,
No povo, a descrença disfarçada,
Nos lábios floriu.
Dando um exemplo raro à christandade,
Sereno, à deanteira,
D. Malan trouxe – gesto de humildade –
A pedra primeira.
Reproduziu-se a scena da montanha:
As pedras, em feixes,
Cresceram em ruma enorme e tamanha,
Como os pães e os peixes!
Era a serva humilde que ajudava
Una no labor...
Petrolina, sincera, que imitava
O acto do Pastor.
Embora sendo a dádiva menor,
E obscura até,
Tinha de todos o maior valor
O abulo da Fé!
Ei-la serena, altiva, majestosa,
Torres para os céus!
Erguendo na mudez pétrea, gloriosa
Supplicas a Deus!34
Os bancos estavam lá, bem como os correios e a via férrea para o litoral.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 11.
33 A edição do dia 15/08/1929 do jornal O Pharol publica a ode “A Cathedral de Petrolina”, de autoria
de Antônio Santana Padilha, e o “Poema de pedra”, de Raulino Sampaio.
34 O Pharol, edição do dia 15/08/1929.
31
32
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 65
Outra característica que podemos abordar, e que corrobora com nosso
raciocínio, refere-se aos assuntos de interesse apresentados nas edições do jornal O
Pharol. Segundo a análise do pesquisador Ronald H. Chilcote, os assuntos mais
relevantes abordados relacionavam-se, até a década de 1910, à política nacional e
estadual. A partir das décadas de 1920 e 1930, temas como problemas e
desenvolvimento locais, educação e cultura, transporte fluvial e sua melhoria
adquirem maior destaque. O ângulo de observação se volta para a própria
comunidade e suas preocupações. Tanto no primeiro quanto no segundo momento,
as notícias sobre Igreja e religião têm grande ênfase.
35
“A memória, nesse caso, é associada à percepção de pertencimento a um mundo
que engloba e constitui os indivíduos”.36 A partir dessa afirmativa, podemos
considerar que a construção da Catedral, e principalmente o contexto no qual os
indivíduos se relacionam com esse processo de edificação do templo, vem modificar
o foco de atenção da comunidade para si mesma, e o motivo gerador que englobava
essas pessoas (“passagem para o joazeiro”) é realocado e re-significado nesse novo
senso de pertencimento, uma vez que
o „pertencimento‟ e a „identidade‟ não têm a solidez de uma
rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante
negociáveis e revogáveis, e [...] as decisões que o próprio
indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age [...] são fatores cruciais tanto para o „pertencimento‟
quanto para a „identidade‟.37
O sentimento de pertencimento é estruturado e solidificado a partir dos
elementos característicos que constituem uma civilização. Nesse caso, Pollak
elucida que a “memória [...] ao definir o que é comum a um grupo e o que o
diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as
fronteiras
sócio-culturais”
38.
Em
torno
daquilo
que
pode
aproximar um
determinado grupo, por ser algo em comum que possam ter, gravita a idéia de
pertencimento.
E por que a escolha da arquitetura neogótica, em pleno sertão pernambucano,
numa localidade tão pequena? As explicações poderiam ser das mais variadas. A
35
36
37
38
CHILCOTE, Ronald H, op. cit, p.p 86 - 87.
Idem, p.17.
BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 17.
POLLAK, Michael, op. cit., p. 3.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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princípio, podemos evidenciar o fato de D. Malan ser um entusiasta desse estilo.
Italiano de nascença e francês por escolha, europeu, sobretudo, o bispo apreciava o
gótico, originado na França do século XII, mais precisamente no grande canteiro de
obras da Île-de-France organizado por Suger de Saint-Denis39, e na Île de La Citè,
sob a liderança do bispo Maurício de Sully40; a nova arquitetura era comumente
conhecida, à época, como “the Romanesque of the Île-de-France”.41
Pensada para servir como uma espécie de “bíblia de pedra”, com funções
pedagógicas para aqueles que a observassem com bastante cuidado, bem como
representação do poder político dentro da cidade, “above all, [...] the cathedral was
the intimation of ineffable truth”.42 A utilização “de grande número de linhas, com a
predominância de verticais que „jogam‟, visualmente, toda a estrutura para o alto”
43
dá uma idéia de conexão com as alturas, com o céu, com a esfera do divino, da
mesma forma que “Gothic verticalism seems to reverse the movement of gravity”
44.
Esse aspecto faz com que, aos olhos do fiel, todo o prédio fosse envolvido por uma
aura celestial característica: a gravidade nada consegue diante das torres que
parecem tocar o céu.
O gótico viveu seu apogeu entre os séculos XII e XIV, principalmente na França,
Alemanha e Inglaterra. No século XIX, um movimento literário, artístico e cultural
(The Gothic Revival)
45
promoveu o resgate do estilo na Europa, em especial
Inglaterra e França. Apesar de trazer significativas adaptações, pois muito da
simbologia dos portais góticos, que serviam de suporte pedagógico aos fiéis,
retratando ora o Juízo Final, ora a Virgem e o Menino Jesus, ora passagens da vida
do Cristo
46,
foi “resumida”, o neogótico traz de volta, em sua arquitetura, a idéia de
uma arte do sagrado para o sagrado: “architects had come to look on Gothic not as
SIMSON, Otto von. The gothic cathedral - Origins of Gothic Architecture and the Medieval
Concept of Order. New York: Harper & Row Publishers, 1964, p. 62.
40 ERLANDE-BRANDENBURG, Alain. Catedral. IN: LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude (Org.).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006, p. 180.
41 SIMSON, Otto von, op. cit., p. 62. “O Românico da Île-de-France” (Tradução minha). O termo gótico
só é formulado no século XVIII, tendo o estilo arquitetônico sido denominado dessa maneira durante
bom tempo.
42 Idem, p. 8. “Acima de tudo, [...] a catedral era a intimação da fé inefável” (Tradução minha).
43 CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p 42.
44 SIMSON, Otto von, op. cit., p. 4. “o verticalismo Gótico parece reverter o movimento de gravidade”
(Tradução minha).
45 CLARK, Kenneth. The Gothic Revival: an essay in the History of Taste. New York: Holt,
Rineheart and Winston Ed., 1962, p. 7.
46 WILLIAMSON, Paul. Escultura Gótica 1140-1300. Trad. Luiz Antônio Araújo. São Paulo: Cosac &
Naify Edições, 1998.
39
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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a style, but as a religion”
47.
Outro ponto no qual podemos afirmar que o novo
gótico recuperou da arquitetura gótica medieval é a arte dos vitrais, que mantém o
caráter pedagógico, retratando diversas passagens bíblicas e vidas de santos, além
de trabalhar com a idéia de luz x sombras, já que a diversidade de cores apresenta
uma busca incessante pela luz, fugindo das trevas. Segundo a ideologia cristã, as
trevas são sinônimo do mal, do opositor demoníaco, enquanto que a luz é a
referência do Divino, sinônimo do bem.
De acordo com a metafísica platônica, na qual a arquitetura gótica está
embebida por meio da filosofia medieval,
light is the most noble of natural phenomena, the least
material, the closest approximation to pure form. […] light is
actually the mediator between bodiless and bodily substances,
a spiritual body, an embodied spirit […]. Light, moreover, is
the creative principle in all things, most active in the heavenly
spheres, whence it causes all organic growth here on earth,
and weakest in the earthly substances.48
É baseada nesse “novo gótico” (neogótico) que a Catedral do Sagrado Coração de
Jesus foi projetada e construída, sem alterações significativas. É característica dela
a disposição das imagens de Cristo ladeado pelos apóstolos Pedro e Paulo logo
abaixo da rosácea frontal, pensadas pelo engenheiro italiano Da Rin. Afora isso, a
troca dos arcos-botantes por linhas retas não se caracteriza como inovação: o novo
gótico simplifica o gótico. A arte dos vitrais mantém a sua função pedagógica,
trazendo temas recorrentes a novos como, por exemplo, os vitrais do lado direito da
nave, onde é retratada a Batalha de Lepanto49.
Dispor de um engenheiro que tivesse domínio sobre esse estilo tão carregado de
simbologia também é um fator que pode ser levado em consideração como uma
possível explicação, já que Dom Malan pôde contar com Padre Cottar, que conhecia
e manejava tão bem esse tipo de arquitetura, além de ter experiência, algo ímpar
em pleno sertão pernambucano.
CLARK, Kenneth, op. cit., p. 122. “Arquitetos passaram a ver o Gótico não como um estilo, mas como
uma religião” (Tradução minha).
48 SIMSON, Otto von, op. cit., p. 51. “a luz é o mais nobre fenômeno natural, o menor material, o mais
próximo da forma pura. [...] a luz é na verdade a mediadora entre o imaterial e substâncias corpóreas,
um corpo espiritual, um espírito corporal [...]. Luz, mais ainda, é o princípio criativo em todas as coisas,
mais ativo nas esferas celestes, donde causa todo o crescimento orgânico aqui na terra, e um mais fraco
nas substâncias terrestres”. (Tradução minha).
49 Batalha na qual os cristãos venceram os turcos, em 1571, atribuindo a vitória ao auxílio dado pela
virgem mediante as orações do Papa Pio V, que aparece nos vitrais da Catedral de joelhos.
47
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 68
Além
dessas
explicações,
há
ainda
o
ideal
estilístico.
Como
já
dito
anteriormente, no meio de um casario modesto, que correspondia a poucas ruas,
numa cidade com ares de vila, a Catedral despontava, fazendo com que os
moradores e eventuais romeiros, que acabaram sendo atraídos, pasmassem diante
da igreja de pedra.
O mais acertado então, após apontar todas essas possibilidades, é considerar
que os fatores foram diversos para a escolha do estilo neogótico aplicado à Catedral
do Sagrado Coração de Jesus. Escolher apenas uma dentre as possíveis razões
citadas acima seria incorrer em um erro grave, já que Dom Malan não deixou
documentos que apontassem os motivos de sua inclinação para esse tipo de
arquitetura, muito menos declarou abertamente aos seus contemporâneos a razão
de sua escolha. Podemos apenas conjecturar.
Ilustração 4: Uma das primeiras fotografias feitas após o término da obra, em
1929. Acervo Centro Educacional Vivência.
3 – MITOS: O IMAGINÁRIO EM TORNO DA CATEDRAL.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 69
A vidente alemã que predisse o sucesso da obra. A pedra que adveio sobre a
mesa de jantar do bispo. O homem que caiu, em pé, da torre em construção e nada
teve. O relógio doado por padre Cícero e os percalços com o bando de Lampião. “As
mitologias proliferam”50, alimentadas pelo imaginário.
Em torno da edificação da Catedral diversos mitos se constroem, correndo de
boca em boca, maravilhando os petrolinenses. “A linguagem do imaginário
multiplica-se. Ela circula por todas as nossas cidades. Fala à multidão e ela a fala.
É o nosso, o ar artificial que respiramos, o elemento urbano no qual temos de
pensar.”
51
Enquanto cresce o edifício, crescem as expectativas do povo que
trabalha e admira a Catedral que é erguida no meio do nada. É nesse contexto que
o simbolismo da edificação passa a exercer na população grande influência e é onde
o imaginário aflora, falando à população e sendo falado por ela, “transformando as
crenças em legendas ainda mais carregadas de sentido”
52.
Tem-se por imaginário aquilo que ultrapassa o campo da representação com
auxílio do fantástico e que contribui na construção de lendas e mitos. É todo um
conjunto de miragens, fantasias, de um determinado grupo e/ou civilização que
pervertem, destroem e reconstroem a realidade53. Acerca desse imaginário e sua
construção, Patlagean diz que,
O domínio do imaginário constitui-se pelo conjunto das
representações que ultrapassam o limite imposto pelas
constatações da experiência vivida e pelas deduções correlatas
que ela autoriza, o que equivale a dizer que toda a cultura,
portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis de uma
sociedade complexa, possui o seu imaginário.54
O real e o imaginário não têm limites definidos, ou antes, esses limites oscilam,
de maneira que o mito integra-se ao cotidiano das pessoas, como fato real, ou fatos
reais se convertem em mito e são assim tratados por gerações. De fato, “o
imaginário carregaria, na cintilação de suas ficções consumíveis, a verdade que não
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2008, p. 41.
Idem.
52 Idem.
53 LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
54 PATLAGEAN, E. A história do imaginário. IN: LE GOFF, J. (org.). A história nova. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
50
51
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 70
pode oferecer”
55,
a comprovação que não existe, a legitimidade que não possui, mas
ostenta.
Dessa maneira, a tradição que carrega esse imaginário, ainda que inventada e
recente mesmo alegando sua antiguidade56, invade a esfera do real e passa a
integrá-la, mesmo que não se prove sua veracidade.
Em outras palavras, o limite entre o real e o imaginário
mostra-se variável, ao mesmo tempo em que o território
coberto por esse limite permanece, ao contrário, idêntico em
qualquer tempo e lugar, visto que não se trata de outra coisa
senão do campo completo da experiência humana, desde o
mais coletivamente social até o mais intimamente pessoal.57
Nesse aspecto podemos inserir a mitologia e as histórias maravilhosas, factuais
ou não, que nascem e crescem ao redor do canteiro de obras do templo. A própria
imprensa, em especial o Pharol, construiu a imagem de um Dom Malan sobrehumano ao alcunhá-lo de “Super – Homem” e “Novo Moisés”
58.
Não por acaso, dois
dos fatos permeados pelo imaginário da época tem o religioso como personagem
principal.
Em sua viagem à Europa por volta de 1925, com o intuito de angariar fundos
para a obra do templo, o bispo de Petrolina teria visitado a vidente alemã Teresa
Neumann59. Dessa conversa o bispo carregaria para sua diocese, além da
colaboração e apoio de alguns, bons prognósticos sobre sua administração em
Petrolina e, em especial, sobre a edificação da Catedral. Até mesmo a paralisação
das obras e o pouco que se aproveitou do que já havia sido feito, realidade que o
bispo encarou logo ao chegar à cidade60, parece não ter abalado o que a vidente
predisse.
Não há matérias ou referências no Pharol que comprovem ou simplesmente
façam referência ao encontro do bispo com a vidente. No entanto, as palavras
CERTEAU, Michel de, op. cit., p. 52.
HALL, Stuart, op. cit., p. 54.
57 PATLAGEAN, E, op. cit.
58 O Pharol, edição do dia 30/05/1929.
59 A estigmatizada Teresa Neumann (1898 – 1962) foi uma cristã católica, proveniente da Bavária, que
ficou mundialmente conhecida por possivelmente carregar as chagas do Cristo Crucificado. Teresa,
quando tinha suas visões, chorava lágrimas de sangue que inundavam seu rosto completamente. Para
mais informações sobre a mística, consultar BASCHERA, Renzo. As profecias de Teresa Neumann. IN:
_________. Os grandes profetas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
60 CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p 24. Padre Cottar já andava adoentado e não
conseguia fiscalizar a obra de maneira satisfatória. Os trabalhos foram interrompidos em fevereiro de
1926.
55
56
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 71
proféticas tiveram validade e legitimidade apesar das adversidades, como podemos
notar na carta em que o Padre Vallarino comenta a Sra. Hortensinha da Silva
Ramos a maneira incrível pela qual os vitrais e demais materiais advindos da
Europa entraram em terras brasileiras.
Como tinha predito Teresa Neumann, tudo correu bem;
nenhuma dificuldade, nem por parte do Governo, nem por
parte da alfandega. Foi deveras uma cousa fora da regra e
além de toda expectativa! Foi deixado passar tudo sem abrir
um só caixão! Tanta a confiança que o governo tem em D.
Malan!! 61
A previsão maravilhosa de Teresa Neumann sobre a chegada dos materiais
concretizara-se, dando ainda mais ênfase ao caráter sobrenatural e profético da
obra.
Dom Malan aparece ainda como personagem de outra das histórias fantásticas,
contadas à época, esta relacionada com a atividade de extração de material da
pedreira localizada na Rua do Grude, ao lado da Igreja Matriz. O método utilizado
para adquirir as pedras, necessárias para a construção da Catedral, era a explosão
por meio de dinamites e, em seguida, a ação dos cavouqueiros, responsáveis por
retirar as pedras soltas e escavar aquelas que eventualmente não se desprendiam
com picaretas. Tanto na Pedra Grande, da Rua do Grude, quanto na pedreira do
Caldeirão da Raposa esse método de extração foi amplamente utilizado. O senhor
João José Nascimento fornece o relato desse trabalho, no qual esteve envolvido
durante o período em que contribuiu no canteiro de obras.
Era dinamite, era, era cavouqueiro, na mão, não tinha
compressor. Era cavouqueiro. Eu mesmo fui cavouqueiro,
aquele vinha o caba com a marreta [...]. Eu mesmo ia
morrendo porque nas pedra ali onde ta os armazém teve umas
pedra que foi difícil detonar. E eu corri pra perto da Matriz,
onde era a usina que hoje é uma livraria, parece, não sei o que
é. Eu corri pra li, debaixo de uma coisa. Eu usava chapéu de
palha, de palha daqueles de palhinha né. Apois a pedra veio
pegou aqui ainda, triscou aqui.
Carta de Pe. Villarino à Sra. Hortensinha da Silva Ramos, datada de 29/01/1929. O trecho aqui
citado encontra-se transcrito no livro de CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p. 24.
61
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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No decorrer de sua narrativa, João José fala ainda sobre o raio de alcance dessa
explosão: “Apois a pedra voou que deve ter ido uma boa altura que a gente
caminhou de lá pra cá, foi que a pedra chegou. De lá pra usina que dá uns 100
metros”. Em uma dessas explosões, uma pedra teria voado e quebrado o telhado da
cozinha do bispo, caindo profeticamente sobre sua mesa62.
Outro mito que parece ter-se propagado tanto quanto é o do homem que
despencou de uma das torres em construção, caindo em pé sem qualquer eventual
problema. Naturalmente, no decorrer da construção e a cada metro alcançado
acima da terra, os perigos e riscos de acidentes aumentam, caracterizando esse fato
como algo corriqueiro e dentro do comum no canteiro de obras.
Em seu depoimento, a senhora Ana Maria da Silva, esposa de um dos
colaboradores na construção da Catedral, faz alusão a esse evento.
Quando tava na construção da catedral e levaram os
trabalhadores pra cima das torres, aí um homem caiu lá de
cima no patamar da igreja, quando caiu, caiu em pé. Então
continuou com os trabalhos, deram graças a Deus por conta
desse senhor que caiu, continuou trabalhando pra arranjar o
pão da família.
Maravilha? Milagre? O depoimento aqui transcrito nos fornece a idéia de que,
milagrosamente, o tal homem continuou trabalhando sem precisar de auxílio
médico, tendo caído em pé de uma altura superior a 40 metros63. Dona Ana Maria
não estava no canteiro de obras naquele dia e apenas teve conhecimento do fato
através do marido e dos vizinhos, fornecendo assim a perspectiva de alguém que
apenas ouviu falar do acontecido. No entanto, entre os envolvidos na edificação e
exercendo a função de médico encarregado pela saúde dos trabalhadores do
canteiro de obras da catedral, encontrava-se à época o médico Pacífico Rodrigues da
Luz, da família Padilha.
O padre Bernardino Padilha ressalta, em seu depoimento, a função que seu pai
exerceu durante as obras do templo.
Meu pai era médico, era médico, doutor Pacífico Rodrigues da
Luz, era médico, medico naquela época médico parteiro e
operador, fez verdadeiros milagres aqui como médico porque
62
63
Idem, p 23.
Aproximadamente 47 metros de altura.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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naquela época não havia muito recurso, ele fez uma pelo
menos duas intervenções cirúrgicas duas operações ele fez
aqui na construção da Catedral. Acidentes com os operários
ele consertou, e não morreu ninguém daqueles acidentes.
Os dois depoimentos sugerem duas visões de um mesmo evento e apresentam
duas alternativas de uma mesma história. O homem que caiu e sobreviveu
milagrosamente à queda de 40 metros de altura, ou o homem que caiu, sim, mas
recebeu o atendimento do médico Pacífico da Luz e assim pôde sobreviver. Os
jornais da época não noticiaram o tal acontecimento, ou antes, faziam alusão a
acidentes no canteiro de obras genericamente.
Por fim, outra das histórias permeadas pelo imaginário dos petrolinenses faz
referência ao bando de Lampião e ao não menos legendário padre Cícero Romão, de
Juazeiro do Norte no estado do Ceará. O clérigo, após receber carta do coronel João
Clementino, prefeito de Petrolina à época, pedindo contribuição para as obras da
Catedral, confirmou a doação de um relógio para a torre64. No translado do relógio
de Juazeiro do Norte a Petrolina, a caravana liderada por José Rodrigues, enviado
de Dom Malan para exercer essa função, foi interpelada por um grupo de
cangaceiros sob a chefia de Lampião65. O bando teria liberado os viajantes após
saber que se tratava de uma doação de padre Cícero. O relógio foi bento em 1931.
4 – A CATEDRAL DE PEDRA E A IDENTIDADE SOCIAL.
Podemos considerar que, levando em consideração o local que ocupa a Catedral
do Sagrado Coração de Jesus na história da cidade de Petrolina e todo o seu
simbolismo, o templo erigido por Dom Malan aparece como um dos pilares na
formação da identidade do homem petrolinense por meio da memória coletiva.
Além disso, posteriormente, as imagens da Catedral e de seu autor são
assimiladas ao ideal de progresso e desenvolvimento da cidade, como podemos
notar no artigo de Diniz Cavalcanti ao dizer que “as gerações petrolinenses que
sucederam a D. Antônio Maria Malan aprenderam-lhe as lições de arrojo e
progresso. E é por isso que Petrolina não se satisfaz com o pequeno”
64
65
66
66.
O
O Pharol, edição do dia 05/04/1929.
CAVALCANTI, Pe. Francisco José Pereira, op. cit., p 47.
O Pharol, edição do dia 07/07/1979.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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argumento de que Petrolina já não se conforma com o atraso apresenta como marco
dessa mudança o trabalho do bispo, autor da Catedral, símbolo máximo de sua
atuação diocesana.
Em relação à memória coletiva, Halbwachs considera que “para que nossa
memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus
testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas
memórias”
67.
A memória é, destarte, os pontos de relação entre as memórias
particulares que, em determinado momento, se cruzam, formando pontes, “para
que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base
comum”
68.
Os fragmentos de percepção de cada indivíduo fornecem a base comum
para a formação da memória coletiva desde que se cruzem e as lembranças se
reconheçam.
Dessa maneira, a Catedral toma lugar entre os vários pontos que ligam a
memória coletiva do homem petrolinense, contribuindo para a re-significação e
formação da identidade social desse indivíduo, além de promover nele, por meio do
contexto no qual se relaciona com o processo de edificação do templo, a construção
do sentimento de pertencimento a uma sociedade que o engloba.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
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67
68
HALBWACHS apud POLLAK, Michael, op. cit, p. 4.
Idem.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 75
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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A PRÁTICA DA CRIAÇÃO DE GADO COMO PRINCIPAL FATOR NA FORMAÇÃO
DA CIDADE DE JUAZEIRO
Afonso Rodrigues França Leitão1
Na história do Brasil, a prática de criação de gado sempre foi de suma importância
para a sua colonização, desde quando chegou à capitania de São Vicente em 1534,
vindo da ilha de Cabo Verde. No Estado da Bahia, sua chegada foi com o
governador Tomé de Souza, no século XVI, que trouxe em uma caravela, algumas
cabeças de gado vacum para introduzir no litoral baiano.
Resultante da necessidade de alimentação e de um novo incremento para a
economia, a criação de gado foi necessário para a coroa portuguesa manter firme o
projeto de colonização, na legitimação da conquista territorial.
Seguindo o esteio da crescente demanda populacional,
formadora do mercado interno na colônia, e do
desenvolvimento da estrutura produtiva da plantation
açucareira, no século XVI, providenciou-se a introdução do
gado bovino no Brasil, por obra de D. Ana Pimentel, esposa do
capitão Martim Afonso de Souza, na capitania de São Vicente,
em 1534. Ato contínuo, após ser trazido das possessões
lusitanas de Cabo Verde, o gado também foi introduzido na
capitania da Bahia por Tomé de Souza. (LOPES RODRIGO,
2009, p. 12).
Esta prática foi fundamental na colonização do sertão nordestino, facilitando a
invasão e entre outros fatores foram relevantes como: a crescente população da
colônia, um novo tipo de comércio, capacidade de sobrevivência dos animais em
uma região com características completamente diferente do litoral, a expulsão dos
holandeses em que diminuiu a produção e exportação de açúcar no Brasil e a
quantidade de terras disponíveis para a criação extensiva.
A invasão no sertão da colônia tem início no final do século XVI e início do século
XVII. Esta entrada se deu mais pelas margens do rio São Francisco. Com o apoio do
governo, foram formadas tropas que designaram de bandeiras, com muitos homens
armados, prontos para matar, aprisionar e maltratar o nativo. Porém, nessas
1
Licenciando do Curso de História – UPE Campus Petrolina.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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investidas, tinham a participação efetiva do gentio manso que facilitava as
andanças nas matas, pois possuíam o conhecimento do terreno e facilitava a
comunicação.
Por outro lado, na região do Vale São Francisco, principalmente no Submédio São
Francisco, o gentio não aceitou com muita facilidade a dominação, engendrando
derrames de sangue que serviu de alicerce para os currais construídos, as riquezas
e o poder dos senhores da terra. No entanto, os índios tinham de seu lado os
jesuítas,
que
possuíam
grande
força
política e
material
para
protegê-los
incomodando assim os sesmeiros e mais tarde a coroa portuguesa.
O poderio acumulado durante duzentos anos no Brasil, pela
companhia de Jesus, passou a incomodar a coroa Lusitana
nos meados do século XVIII. Comprovam esse fato as
instruções dadas, em 1751, por Carvalho e Melo (Marquês de
Pombal) a seu irmão. Nelas se Dizia que ele investigasse com
grande cautela, circunspecção e prudência o poder excessivo e
grandes cabedais que os jesuítas possuíam. (COELHO, 2005,
p. 22).
O sonho dos metais preciosos também foi um fator que incentivou muitos
bandeirantes a participar das perigosas investidas no Sub Médio São Francisco. Na
região do rio Salitre já se falava em minas de prata e pedras preciosas, como à
ametista. O sonho dos metais preciosos, só foi realizado no final do século XVI, com
a descoberta do ouro na região do Estado de Minas Gerais.
No entanto, além da insistente busca pelos metais preciosos, a criação de gado
vacum, já se fazia necessário para a colônia, pois a população crescia bastante e
precisava da carne para reforçar sua alimentação que era de costume em sua terra
natal. Além de sua importância para o povoamento do sertão, o aumento da
quantidade de gado no interior da colônia fez surgir outro tipo de comércio como: a
venda do couro, que passou a ser praticado constantemente e principalmente no
sertão nordestino, que alguns historiadores caracterizam como a "Idade do Couro".
Portanto, a criação de gado tornou-se o principal fator no povoamento do Vale do
São Francisco.
Para Juazeiro/BA, cidade localizada na mesma região, entende-se também o gado
como fator preponderante em sua formação, que se dá com o constante
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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estabelecimento de fazendas, nas margens do Rio São Francisco. Com o crescente
comércio de carne verde na região metropolitana, a passagem do Juazeiro, caminho
estratégico para as boiadas, foi sendo povoada e ganhando cada vez mais
importância, até se tornar vila em 1823 e cidade em 1878.
O interessante de estudarmos a formação da cidade de Juazeiro com a prática da
criação de gado como motor impulsionador dessa constituição, é que entraremos
em um tema pouco estudado na região, uma visão muito desconhecida pelos
moradores da própria cidade, um assunto que nos instigar a escrever cada vez mais
que nos aprofundamos epistemologicamente do objeto de estudo.
Por ser uma revisão bibliográfica, não nos limitará de pesquisar e analisar
documentos, pois trabalharemos na perspectiva de ampliação do objeto estudado e
na possibilidade de nunca fechar o leque de discussões. Com isso, incentivando
novos estudos, possibilitando outros olhares sobre ele.
Na produção desse texto, é importante destacarmos dois conceitos que serão guias
da nossa ação. Colonialismo e sertão.
No caso do primeiro (colonialismo),
observaremos a visão marxista, analisado do ponto de vista histórico e cultural, em
que as grandes potências, durante muito tempo, usavam de suas forças para
invadir, pilhar, massacrar e exterminar a população local, subjugando aos seus
modos de vida em todos os aspectos, desprezando a cultural nativa.
Colonialismo é Termo utilizado para identificar a doutrina e a
prática da colonização. A teoria marxista (v. Marxismo) aduz
como traços indispensáveis a caracterização desse fenômeno a
conquista e a pilhagem. O colonialismo significa o domínio
institucionalizado de uma potência ou Estado sobre outros
povos, via de regra, localizados em regiões longínquas. O termo
é, também, com frequência, associado a imperialismo,
principalmente no século XIX. Alem disso, o conceito de
colonialismo estende-se a outros contesto para significar
segregação, como no caso do apartheid Sul-africano.
(AZEVEDO, 1999, p. 109).
Quanto ao termo Sertão, usaremos o conceito geográfico e qualitativo de Capistrano
de Abreu, para localizar e compreender melhor o objeto estudado no espaço e no
tempo, analisando as características regionais do contexto cultural.
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Estende-se o sertão da Bahia até a barra do rio de S.
Francisco, oitenta léguas por costa; e indo para o rio acima até
a barra que chamam de Água-Grande, fica distante a Bahia da
dita barra cento e quinze léguas; de Santunse cento e trinta
léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas; das Jacobinas,
noventa, e do Tucano cinquenta... Os currais da parte da
Bahia estão postos na borda do rio de São Francisco, na do rio
das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio
Paramirim, na do rio Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio
Inhambupe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio
Vasabarris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por
informação tomada de vários, que correram este sertão, estão
atualmente mais de quinhentos currais... (ABREU, p. 75).
Com o estabelecimento desses dois conceitos ficará mais fácil entender o local
pesquisado que é a cidade de Juazeiro/BA, localizada no sertão da Bahia.
Interpretamos sertão, como local distante da metrópole, longe da civilização, e com
bastantes dificuldades de se viver, "Daí por diante, arcando com o áspero sertão
despovoado, tais embaraços encontrou, apesar das ordens mais expressas e das
facilidades extraordinárias proporcionadas por seu governo, que gastou anos no
caminho". (ABREU, 1907, p. 101).
Em outro momento, conceituaremos sertão como regiões possuidoras de aspectos
completamente diferentes dos centros urbanos, lugar contrário a metrópole, onde
as características qualitativas são apropriadas constantemente para conceituá-lo.
Veremos o dualismo frequentemente nos conceitos elaborados, principalmente nos
aspectos geográficos.
No Rio Grande do Sul as estações fria e quente já aparecem
melhor delimitadas, as variações de temperatura tornam-se
mais notáveis, e a estação das águas tende a emparelhar-se
com a do frio. Isto se refere ao litoral No interior do país, reina
também o clima tropical, modificado mais ou menos por
fatores locais e revestindo certa feição continental. Geralmente
chove no sertão menos que à beira-mar; as estações seca e
úmida andam mais. (ABREU 1907, p. 04).
Essas duas palavras chave foram escolhidas por estarem presentes constantemente
no objeto estudado, mantendo uma relação profunda com a problemática. Com
isso, tentaremos ao máximo nos aproximar com análise e contextualização dos
conceitos citados nos períodos que serão estudados objeto de estudo, que é a
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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prática da criação do gado como principal fator da formação da cidade de Juazeiro.
Por isso, nossa investigação será norteada pelo seguinte problema: Por que o gado
foi responsável pela formação da cidade de Juazeiro?
A PRÁTICA DA CRIAÇÃO DE GADO COMO PRINCIPAL FATOR NA FORMAÇÃO DA
CIDADE DE JUAZEIRO
A Invasão do Sertão
A invasão do sertão tem início no final do século XVI, como principal objetivo de
capturar índios para suprir a necessidade da mão-de-obra escrava. “Já em 1543 e
1550, os homens rasgavam o São Francisco na perseguição de índios para a
escravidão.” (LINS, 1860, p.13). Também como motivo, teve a busca de minérios
para aumentar os lucros da coroa portuguesa. Os colonos sonhavam com os metais
preciosos, já que outras colônias vizinhas tinham encontrado minas de prata e
ouro, razões bastante relevantes para encorajar o governo português a criar
políticas que incentivasse a invasão do sertão a dentro. Mesmo assim, passaram-se
muito tempo de costa para o interior da colônia realizando suas atividades no
litoral.
Enquanto a coroa tivesse garantias suficientes de lucros com o pau-brasil e depois
a cana-de-açúcar, que eram exportados para Portugal e de lá vendidos para outros
países da Europa, a metrópole iria insistir nessa prática, desfrutando e usufruindo
de todos os produtos acima citados até a sua extinção, trazendo grandes prejuízos à
colônia em favorecimento da metrópole. “Que uns e outros usam da terra, não como
senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixar destruída”.
(FAORO, 1998, v. 1, p. 153).
A invasão do sertão começou de vários pontos intensificando cada vez mais no
decorrer do tempo. “Inicia em épocas diversas, de pontos apartados, até forma-se
uma corrente, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue fio litorâneo”. (ABREU,
1907, p. 05). Surge na colônia uma nova sociedade com aspectos singulares. Essas
características são construídas em um processo histórico, social e cultural de
sobrevivência em que vários fatores interferem na constituição desses aspectos
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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constituindo um novo homem. A partir daí, o sertão começa a ter significado dando
origem à idade do couro.
Na invasão do sertão, foram organizadas tropas de homens que se habilitavam a
enfrentar um chão desconhecido. Para entrar no sertão, as bandeiras eram
formadas por dezenas de homens, entre eles capitães, soldados e escravos, índios
amansados que facilitavam a invasão com seus conhecimentos na interpretação das
línguas, nas participações em guerras e no conhecimento acumulado dos territórios
invadidos. Bandeira, nome derivado de costume indígena, era formada por um
capitão com total poder, índios, brancos e mulatos, que tinham como objetivo
prender e escravizar os nativos. Seus componentes, ou seja, invasores, que são
conhecidos como bandeirantes, que a (historiografia oficial os tratam como heróis),
saiam em uma viagem que podia durar meses ate anos.
Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e
escravizar o gentio indígena. O nome provém talvez do
costume tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se uma
bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição um chefe
supremo, com os mais amplos poderes, senhor da vida e morte
de seus subordinados. (ABREU, 1907, p. 40).
O governo, por sua vez, uniu o útil ao agradável: com algumas políticas favoreceu o
crescimento da criação de gado amarrando-a a penetração do sertão. Algumas
dessas políticas já eram praticadas na colônia, citamos como exemplo: vendas de
títulos, doações de terras e a determinação da distância de 10 léguas estabelecida
por lei para se criar o gado. Além disso, existia no imaginário social, que entrando
no sertão ou desbravando-o, estariam prestando serviços ao rei com honras e
glórias. “Por isso o primeiro governador geral, Tomé de Souza, determina que os
criadores de gado localizassem seus rebanhos a 10 léguas de Salvador, onde os
animais poderiam pastar em campo aberto” (ANDRADE, 1982, p. 62 apud LOPES,
1997, p. 15-16).
A Invasão Do Interior e o Vale Do São Francisco
A penetração intensiva no interior da colônia aconteceu com o sonho das minas de
prata, tendo a necessidade de proteger o canavial do gado vacum, que era criado de
forma extensiva, se alimentava da cana-de-açúcar e a necessidade de povoamento,
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demarcando e garantindo o território conquistado. Neste período, nas fazendas
existiam cercas, mas precárias que possibilitavam a penetração do gado nos
canaviais, trazendo prejuízo para os produtores de açúcar.
A existência de animais no mesmo espaço da agricultura não foi compatível, então
foi preciso separar os animais das plantações, para evitar danos aos canaviais
(LOPES, 1997, p. 15). Por outro lado, o gado começava a despontar como reforço
alimentar para a população colonial que crescia bastante, principalmente com a
descoberta das minas de ouro e prata em Minas Gerais atraindo milhares de
pessoas para seus garimpos.
Nas margens do Rio São Francisco, a penetração no interior da colônia tem início
em 1640, com os Garcia D’Ávilas, protegido do governado geral Tomé de Souza, que
facilitou a doação de terras por parte do governo, na forma de sesmarias. Por outro
lado, os D`Ávilas invadem terras sem o consentimento real. Com eles, a invasão se
dá ao ritmo do gado e o vaqueiro segue seus rastros de sertão adentro.
Em pontos distantes são fixados currais que precisavam de pouca coisa para
progredir: um vaqueiro, uma choupana e algumas novilhas que darão início ao
criatório. Além dos currais, nessas andanças são fixados pontos para descanso dos
homens e animais, que tornariam mais tarde núcleos de povoamentos.
Nos
caminhos feitos pelo gado em suas viagens, surge o local de descanso que dará
origem aos primeiros núcleos de população no interior do nordeste. (FRANÇA, 2008,
p. 28-29),
No Vale do São Francisco, à margem esquerda, do lado baiano a penetração foi
lenta. Com estabelecimento das fazendas de gado, surgem caminhos, passagens e
pontos de descanso que se tornam locais estratégicos na formação de comunidades,
vilas e depois cidades. Para Coelho (2005, p. 26), “a lenta penetração baiana aos
poucos tomava conta das terras marginais do São Francisco, subia o rio
construindo bases, deixando atrás de si os currais, em torno dos quais nasciam os
primeiros núcleos de população”.
No caso da cidade de Juazeiro, com origem no século XVII, possuía duas
passagens, uma fluvial na divisa dos Estados Bahia e Pernambuco, entre Petrolina
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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e a própria Juazeiro e outra terrestre, que derivou-se das passagens dos
bandeirantes pela região, tornando-se a primeira, principal rota de passagem do
gado que vinha de Piauí, Pernambuco e Sergipe para a província de Feira de
Santana, que pertencia a cidade de Salvador. De acordo Ribeiro (2005, p. 21),
“Juazeiro, Capital do Baixo Médio São Francisco, surgiu pelos fins do século XVII,
no ponto de passagem do cruzamento das duas velhas estradas interiores: a fluvial,
representada pelo rio São Francisco e os caminhos terrestres das bandeiras”.
Hoje, a atual cidade de Juazeiro tem como ponto de origem a famosa passagem do
Juazeiro que abrange também a atual cidade de Petrolina, na travessia do Rio São
Francisco, de Pernambuco a Bahia. Essas passagens são caracterizadas como
origens da formação de núcleos populacionais, pois como local de descanso,
tornou-se ponto de encontro em que começou a desenvolver um pequeno comércio
de subsistência. Nessa perspectiva, a população deu início a seu crescimento, que
ocorreu de forma lenta, igual a passos de bois, em fim, no gingado da boiada.
O Gado e Sua Importância
Os portugueses tinham costume de comer carne bovina na Europa, por isso no
século XVI, o governador Tomé de Souza, traz algumas cabeças de gado vacum da
Ilha de Cabo Verde para o Estado da Bahia. Neste momento, como já citamos, o
gado é apenas uma simples alimentação e um pequeno comércio de couro.
No final do século XVI, já introduzido na colônia em 1536, pelo governador Tomé de
Souza, trazendo algumas cabeças da Ilha de Cabo Verde, o gado vacum começa a
ganhar importância para o Brasil. É neste contexto que a coroa portuguesa começa
a incentivar a invasão para o interior da colônia (sertão). Essa penetração se daria
pelos bandeirantes, homens organizados com o intuito de prender índios para
escravizar e que mantinham o sonho de descobrir as minas de metais preciosos.
A invasão e o povoamento, se deu pelas margens do Rio São Francisco, subindo rio
a dentro até atingir Minas Gerais e alguns de seus afluentes. Nessas Expedições,
realizadas pelas bandeiras, o gado se tornou fator preponderante para o seu
sucesso. É o gado que favorece a fixação do homem, com o estabelecimento de
fazendas que eram compostas por um vaqueiro, seis novilhas, uma choupana. De
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acordo Lopes Rodrigo (2009, p. 18), “é consenso na historiografia sobre o
desbravamento dos sertões brasileiros, a importância da atividade pecuária, para a
interiorização e povoamento da Colônia, dando ao gado a alcunha de produto que
se move”.
É nesse contexto da fixação do homem no sertão, em que todas as condições
oferecidas são geradas pela prática da criação do gado. Em lugares tão distantes,
isolados dos centros urbanos, surge um novo ser, o sertanejo, que por sua vez,
constitui uma nova sociedade na Colônia portuguesa chamada Brasil, com novos
costumes, vestuário, comidas e comportamentos. Para muitos autores, esse fato
deu origem a Idade do Couro, onde a roupa era de couro, a cama de couro, a
sandália e até a porta da casa era de couro.
O comércio era o próprio gado que os vaqueiros levavam para os grandes centros
urbanos do país. Chegando à cidade, o gado seria vendido e depois distribuído. No
nordeste, enriquecia as famílias que se tornavam grandes criadoras, tornando-as
poderosas; uma delas, os D’Ávilas, dona de uma grande área inclusive a cidade de
Juazeiro, tinham grandes poderes na Bahia. Apesar de ser usado para outros fins,
a principal serventia foi a de alimentar uma população crescente e que consumia
muita carne bovina.
A produção de carne verde em quantidade suficiente para
abastecer a sociedade em geral, e principalmente, os
populosos centros urbanos no entorno da Baía de Todos os
Santos, no século XIX, teve sua origem nos rebanhos criados
no sertão. No sertão baiano, de atividade econômica
tipicamente agropecuária, as fazendas de gado atingiram bons
níveis de produção de rebanhos, garantindo a sua subsistência
e o abastecimento da capital (LOPES RODRIGOS, 2009, p. 18).
O comércio realizava-se com enormes viagens; nelas o gado e os vaqueiros
enfrentavam bastante dificuldades. Essas andanças durariam dias, semanas e até
meses; a triste e dolorosa seca ocorria quase todos os anos, sem água e sem
alimentação muitos animais morriam de fome e sede, os rios também eram outros
obstáculos. Neles alguns animais morriam afogados; as distâncias, por sua vez,
aumentava o sofrimento das boiadas e dos boiadeiros. Entre um local e outro
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chagavam a ultrapassar quilômetros. Outra razão pelos prejuízos nas viagens, seria
as péssimas condições das estradas.
As duas correspondências anteriores convergem, e apresentam
outros problemas para os transportadores e o gado no século
XIX, após sobreviver à dificultosa travessia do São Francisco,
para entrar no sertão baiano; 1) a distância desde a Vila da
Barra e de Juazeiro até o mercado de Feira de Santana e 2) as
péssimas condições das estradas, muitas delas utilizadas
desde o século XVIII, sem quaisquer manutenções, senão o
leito feito pelo tropel do gado (LOPES RODRIGO, 2009, p. 2728. grifo do autor).
Além da necessidade comercial, a introdução da prática da criação de gado vacum
na região do Vale do São Francisco, tem grande relevância. A abertura de
caminhos, a construção das fazendas com a fixação de currais, o surgimento de
pontos de descanso nas viagens, a atração de pessoas para a localidade, e um
comércio incipiente, são motivos que favorece no povoamento e na formação de
lugarejos, vilas e cidades. A cidade Juazeiro/BA, localizada no Submédio São
Francisco, teve seu nascimento com a vinda do gado e com os invasores que
seguiam seus rastros na beira dos calcanhares.
O Índio e os invasores
No Brasil, a coroa portuguesa adotou o colonialismo que é um sistema político,
econômico e social, que visa o domínio de outros povos e que foi adotado nas
Américas subjugando e oprimindo os nativos. Esse sistema foi aplicado pelos
portugueses em suas colônias, principalmente no Brasil, que perdurou por muito
tempo. Considerando-se como desenvolvidos e cultos, os portugueses julgaram-se
superiores ao gentio, nativo que os colonos encontraram quando chegaram ao novo
mundo. Os índios foram denominados bárbaros, não desenvolvidos e sem cultura.
Estes conceitos que embasam a superioridade europeia em relação ao índio,
justificava sua invasão, domínio; pilhagem sua prepotência e ignorância em não
reconhecer o outro como ser semelhante e possuidor de um cultura completamente
diferente.
Colonialismo é Termo utilizado para identificar a doutrina e a
prática da colonização. A teoria marxista […] aduz como traço
indispensáveis a caracterização desse fenômeno a conquista e
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a
pilhagem.
O
colonialismo
significa
o
domínio
institucionalizado de uma potência ou Estado sobre outros
povos. (AZEVEDO, 1999, p. 109).
Apesar de todo esse eurocentrismo, muitos nativos foram passivos a
subjugação, a invasão, aceitando e ajudando na dominação de outro índio. Muitos
deles foram incorporados na atual população brasileira. Segundo Abreu (1907, p.
06), os tupis e os Cariris, grande parte deles foram inseridos na população
brasileira de hoje. Porém, na região do Submédio São Francisco, não foi diferente
das outras regiões. Localizado no Nordeste do país, as investidas foram dificultosas,
pois nessa área existiam grupos indígenas que rejeitaram a dominação até a morte;
muitos deles pertenciam ao tronco cariri-Caimbé. Foi necessária a vinda de
bandeirantes de São Paulo com seus índios mansos para ajudar na concretização
do despovoamento indígena.
Também se lhes não pode negar que foram os conquistadores
dos palmares de Pernambuco, e também se podem desenganar
que sem os paulistas com seu gentio nunca se há de
conquistar o gentio bravo que tem levantado no ceara, no rio
grande e no sertão da Paraíba e Pernambuco, por que o gentio
bravo por serras, por penhas, por matos, por catinga só com o
gentio manso se há de conquistar e não com algum outro
poder, e dos paulistas se deve valer sua Majestade para a
conquista de suas terras. (ABREU, 1907 p. 44).
O Submédio São Francisco se decompõe em rio de sangue; verdadeiros massacres
acontecem dia e noite ou a qualquer hora, como genocídios, estupros, barbárie,
espancamento, desprezo, separação, solidão, tristeza e ódio. Esta região se
transformou em um verdadeiro campo de batalha: em vez do odor da caatinga, o
cheiro de morte se espalhava pelo ar. Os heróis cicatrizam-se na história com
glórias e honras, os perdedores são colocados no esquecimento. “Os alicerces
assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando e edifício e as
pedras se desfazem, separam e arruínam” (ABREU, 1907, p. 47).
O estabelecimento das fazendas, o comércio e a produção crescente de carne
bovina, favorecem apenas aos donos das terras, que enriqueciam expandindo seu
poder por toda região, desde a metrópole até as fronteiras interioranas sem limites
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que se expande e concretizam no imaginário social. No Submédio São Francisco,
especificamente entre Juazeiro/BA e Petrolina/PE, os D’Ávilas foram donos de
quase toda essa região, como cita França (2008, p. 28): “Grande parte dos atuais
Estados da Bahia, Pernambuco e Piauí, em que incluía a fazenda dos Dias D’Ávilas
detinha um milhão de Km2”.
Concomitantemente nas destruições dos índios e abertura de currais, desenvolvemse os caminhos do gado, que servira para o transporte da boiada para a capital.
Essas estradas tornam-se rotas importantes que serão frequentadas diariamente,
como já citamos, formando núcleos de povoamento. Esses itinerários tornam-se
estratégicos para o desenvolvimento da região: são eles quem guiara o destino do
povoamento.
Juazeiro
No vale do são Francisco, originou-se a uma rota que se tornou relevante não só
para o nascimento da cidade de Juazeiro, mas para o desenvolvimento da região e
também da capital. A passagem do Juazeiro, localizada no Submédio São
Francisco, no Nordeste do país, arquitetada pelo gado, tornou-se uma das rotas
principais para as boiadas que saía de Piauí, Pernambuco, Sergipe e da própria
Bahia para alimentar o mercado de carne verde no Estado da Bahia. Segundo Lopes
Rodrigo (2009, p. 21), “o transporte das boiadas que abasteciam Salvador com
maior frequência, era feito através de rotas que cortavam ou margeavam o Rio São
Francisco, a partir das fazendas e currais, que se estabeleceram na Bahia, Goiás,
Pernambuco, Piauí e Sergipe”.
Essas viagens eram tudo que a passagem do Juazeiro precisava para se
desenvolver, no seu
ponto de descanso das boiadas: na companhia delas vem
homens possuidores de necessidades. Os animais viajavam dias, semanas e até
meses, pois o cansaço da manada e dos vaqueiros eram grande. Para os homens,
era quase uma aventura chegar com a quantidade de bichos que saiu de sua
localidade completa, pois as dificuldades encontradas no decorrer dos caminhos
exigiam muito esforço físico, principalmente nas travessias dos rios, lagoas e
riachos. A falta de alimentação e água, principalmente nos meses de estiagem,
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provocava a seca que deixava o animal com fome e sede até a morte. (LOPES
REODRIGO, 2009, p. 21)
Mapa 1: As rotas do gado do sertão do São Francisco à Salvador.
Rota que sai de Goiás e do Piauí até a Vila de Barra do São Francisco em
direção às soltas de Morro do Chapéu, Feira de Santana e Salvador.
Rota que sai de Pernambuco em direção à Vila de Jacobina, Feira de Santana e
Salvador.
Rota que sai de Sergipe à Vila de Alagoinhas até Salvador.
Com a consolidação da passagem, o movimento intensifica cada vez mais, então
nasce os primeiros moradores, que são formados por: boiadeiros, vaqueiros, índios,
que atraem comerciantes como os caixeiros viajantes, que vinham fornecer
produtos de primeiras necessidades. Com isso, começam a se relacionar formando
aglomerados que mais tarde se transformariam em povoados, vilas e cidades.
Juazeiro/BA, por sua vez, se transforma em cidade primeiro que Petrolina. Apesar
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de um comércio incipiente e uma agricultura de subsistência, é a comercialização
do gado fornece suporte para seu desenvolvimento.
A origem do nome da cidade vem da mesma origem do nome da passagem, que se
originaram das árvores frondosas do juazeiro, planta nativa da região que era
encontrada facilmente, principalmente alguns metros das margens do rio São
Francisco.
Por tanto, a cidade de Juazeiro hoje agradece ao gado vacum que serviu de alicerce
para sua formação, sua generosidade em produzir meios para atingir seu
crescimento e desenvolvimento, que fez nascer no interior do Brasil um novo ser,
que estabeleceu com outro tipo de relações sociais que surgia. Toda essa gênese
tem início no século XVI, com seu auge no século XVII e XVIII, quando no século
XIX, o povoado recebe o título de vila, em 11 de junho 1823. Mais tarde com sua
evolução política, uma administração, uma câmara administrativa já formada, o
comércio e a população crescendo, torna-se cidade em 15 de julho de 1878.
Para
Ribeiro (2005, p. 71), “feito o quê o presidente mandou lavrar a ata, na qual vai
transcrita a lei na sua íntegra, citando-se a data do ofício que mandou dar a ela a
devida execução. Lei n° 1814, de 15 de julho de 1878”.
BIBLIOGRAFIA
ABREU, João A. Capítulo da História Colonial. Biblioteca Nacional. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000127.pdf>. Acesso em:
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Paz e Terra. 2005. 272 p.
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carne verde em: Salvador no século XIX (1830-1873). Disponível em:
<http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/Dissertacao_final.pdf >. Acesso em: 17 abril.
2010, 00: 10: 30. p.153
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RIBEIRO, Edson. Juazeiro na Esteira do Tempo. 2. ed. Juazeiro: Gráfica
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CORONEL QUELÊ – ADVERSIDADE E BONANÇA
Moisés Almeida1
Foi com imensa satisfação que fui convidado para fazer uma apresentação do
trabalho de pesquisa, resultado da obra que está sendo lançada. Gostaria de dizerlhes que foi um trabalho de equipe que contou com a participação do professor
Mestre em História Carlos Romeiro, atualmente docente da UPE-Campus Petrolina;
de Marcos Antônio, na época aluno do curso de História, também da UPE; das
professoras Antonise Coelho,
Nilza Rodrigues e Kátia Simone, além de José
Américo de Lima, que nos presenteia com esta grande “escritura”.
Gostaria de agradecer também às instituições, pessoas da família e amigos do
Coronel Quelê, que gentilmente contribuíram abrindo arquivos, indicando pessoas,
sendo entrevistadas. Sem esse material documental e humano, seria impossível
produzir tal pesquisa.
Falar da obra e consequentemente do biografado, é contar Petrolina, lembrar seu
passado, compreender porque estamos aqui;
dizer que o legado deste grande
homem continua. Falar dessa obra é sentir o sentido dos que foram entrevistados.
E aqui, peço licença para falar da emoção de dois em particular: Um filho e um
empregado. Às vezes o pesquisador precisa ser como o médico, que não sem envolve
com a dor do paciente, mas muitas vezes também chora ou se emociona com o que
vem de dentro. Quando entrevistei José Amadeus de Souza, no Capim, e perguntei
como ele tinha recebido a notícia da morte repentina do Coronel Quelê, encheu os
olhos de lágrimas, parou por um instante, como se tivesse voltado no tempo, e
disse-me: perdemos um grande patrão, um grande pai. Emoção semelhante pude
constatar quando entrevistava Dr. Osvaldo Coelho. Nas rememorações do seu
progenitor, também encheu os olhos de lágrimas, como se dissesse, o que disse
quando escreveu seu texto para esse livro: “Ah, quanta saudade do meu Pai. Quanta
saudade da casa do meu pai”.
Essa obra foi construída assim: como emoção, como amor. Sobre o amor, certa vez
um poeta e novelista francês Theophile Guatier, afirmou: “Amar é admirar com o
1
Historiador e professor assistente na UPE – CAMPUS Petrolina e FACAPE.
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coração. Admirar é amar com o cérebro.” Tenho dito em minhas aulas de história,
que o professor deve se apaixonar pela matéria, assim como o pesquisador deve
também se apaixonar pelo seu objeto de pesquisa. Os pesquisadores desse livro
trilharam esse percurso: fizeram uma investigação apaixonada.
Mas falemos do biografado, para que o leitor também tenham vontade de “paquerar”
e de amar o que foi escrito. Enquanto pesquisador, como posso defini-lo? Vou falar
de três perspectivas: do pai; do empreendedor e do grande acolhedor.
Inicio pelo fim, para dizer que seu habitat, a sua casa, era um espaço de uma
grande acolhida: de tropeiros, viajantes, retirantes, trabalhadores, familiares. Essa
mesma acolhida do Coronel Quelê se confunde com a própria acolhida de Petrolina.
Da mesma forma que ele acolheu em sua casa, a cidade continua a acolher, como
se dizendo: “aqui, ainda cabe mais um”. Sua residência, a casa grande, era palco
dos mais diversos acolhimentos. Vejamos, então, a notícia, publicada no jornal o
Farol de 29 de maio de 1921: “Conforme noticiamos, ontem, às 15h, na residência do
coronel Clementino de Souza Coelho, foi modestamente realizado o enlace nupcial do
coronel Castriciano Coelho com a senhorita Carolina de Amorim Coelho, distintas filha
da Viúva dona Ermelinda Coelho. Serviram de paraninfos no ato civil, os senhores
major Antônio Couto (representando) José Pombo e excelentíssimas senhoras dona
Josefa de Souza Coelho e Maria Julia de Loureiro.”
Vários enlaces matrimoniais
foram realizados em sua casa.
A casa grande era palco de festas, casamentos, reuniões, encontros religiosos. Sua
residência sempre foi uma referencia. Para se ter uma ideia,
no Centenário da
independência do Brasil, em 1922, a comemoração em Petrolina foi realizada em
seu casarão, conforme noticiou o mesmo jornal.
Foi um acolhedor de obras sociais: de hospitais, escolas e até mesmo de construção
de templo religiosos, a exemplo da nossa Catedral. Várias são as notas nos
periódicos dessas acolhidas. Outro livro seria realizado, se nos detivéssemos a elas.
Mas falemos do grande empreendedor, altruístico, preocupado com seus negócios,
mas, sobretudo, com os negócios de Petrolina. Vou elencar três exemplos:
Em 1925, O Coronel Quelê subscreveu uma carta ao Presidente da Republica
Arthur Bernardes, exigindo a continuação da estrada de Ferro Petrolina-Terezina e
o pagamento dos salários dos trabalhadores, que estava atrasado havia meses.
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Vejamos dois trechos da carta: “A suspensão da construção constitui, por si só, um
dano irreparável as lavouras de cereais e de algodão;
suas safras tem se
multiplicado nestes últimos anos na expectativa de fáceis meios de transporte com
construção da estrada. [...] Com o prosseguimento da construção voltará o ânimo aos
lavradores e fazendeiros para o desenvolvimento das indústrias pastoril e agrícola,
que vinham se desenvolvendo de maneira assombrosa e hoje indecisa aguardando
solução satisfatória do governo da República.”
Sua visão empreendedora buscava também no conhecimento formal, o alicerce para
o desenvolvimento sócio educacional da região. Foi com esse espírito que ajudou na
construção do colégio Nossa Senhora Auxiliadora. A nota do jornal o Farol, no ano
de 1936, inicia afirmando: “Um gesto altruístico. Meio milhão de tijolos para as
obras do colégio. Causou a mais viva e simpática repercussão na cidade o gesto
altruístico e edificante do coronel Clementino de Souza Coelho, oferecendo
espontaneamente, a virtuosa e delicadíssima irmã Bibiana Marcial, ilustrada diretora
do conceituado educandário petrolinense no domingo, logo após a solenidade da
colocação da primeira pedra da bênção dos alicerces do colégio Nossa Senhora
Auxiliadora, a valiosíssima contribuição de 500 milheiros de tijolos para as obras do
novo edifício, ora iniciadas, ou seja,
mais de vinte contos de material.
Merece
registro especial esse nobre gesto do capitalista patrício que bem revela o seu amor à
causa da instrução e ao progresso de Petrolina. Congratulando-nos com a diretoria do
colégio, aplaudimos o seu generoso benfeitor.”
Hodiernamente, fala-se em crise energética, em energia. Quando iniciou a
construção da Hidroelétrica de Paulo Afonso, assim o Coronel se pronunciou em
carta destinada a Dr. Antônio José Alves de Souza, responsável pela obra: “Pelos
jornais, li que existe um invejo paranoico denunciando sua grande obra, pelo que na
qualidade de subscritor da hidroelétrica, venho apelar para sua envergadura,
lembrando-lhe que nas curvas das estradas por onde trafegam os homens que se
destacam, sempre aparece aquela qualidade de espectro; nas suas pedradas não
alcançam os dignos por que lhe falta a força da verdade. Na qualidade de piloto
desta grande nau, não esmaeça, pois estou certo que o Nordeste tem suas vistas
voltadas para o grande presidente da Hidro, esperando seu soerguimento para muito
breve. Saudações afetuosas, Clementino de Souza Coelho.”
Poderia aqui elencar uma série de outros elementos que o colocam como um grande
visionário: “aquele que possui a rara habilidade de aliar a visão à competência. Não
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enxerga apenas o presente: enxerga também o futuro. É capaz de prever tendências e
de antecipar mudanças, em vez de ser simplesmente atropelado por elas.”
Mas, para não me alongar, vou falar do Pai. Peço licença a Dr. Geraldo, pois na
para entendermos qual a personalidade do Coronel Quelê para com seus filhos,
reproduzo uma carta de 26 de Fevereiro de 1942:
“Geraldo. Nosso bom Deus, que te dê paz de espirito. Desejo que tenha feito boa
viagem e que tenha uma boa impressão do Colégio. Recomendo-te o maior cuidado
possível com a saúde, não se sacrificando em troca de coisa alguma. Deves estudar,
é tua obrigação, mas nunca com sacrifício da saúde. Recomendo-te que deves
procurar ser bom amigo de todos os professores e colegas, para poder ser querido por
eles, cuja vantagem é muito grande. Não se descuide de quando precisar ouvir seu
médico, as receitas e prescrições devem ser cumpridas à risca. Se você ficar em
depósito em algum estabelecimento de crédito, ninguém precisa saber, a fim de evitar
pedidos de empréstimos. Quanto tiver de sair ás ruas, saia sempre com muito
cuidado, especialmente para evitar os carros em velocidade. Assim, vamos devagar
para poder chegar ligeiro. Enfim, você na Bahia tinha o Nilo, porém aí está só. Mas
prefira ficar só, a se aproximar de gente ruim: ou ricos perdidos, que também são
ruins e perniciosos. Enfim, confio em nosso bom Deus, que te guiará em todos os
passos. Mas Deus diz: Faz por ti que eu te ajudarei! Assim confio que você saberá se
colocar com senso. O José vai sempre melhor, devendo regressar a 28, o Osvaldo está
gripado e todas as demais pessoas sem novidades. Aqui continua sem chuva.
“Abraços do amigo de sempre, Clementino”.
Essa carta traduz o que era seu Quelê, mais do que um pai, um amigo.
Os filhos assim o consideravam. No dia 23 de dezembro de 1932, seu jovem filho
Caio Coelho (em 12 de janeiro de 1993, Caio morreu afogado nas águas do Rio São
Francisco), assim expressara num poema dedicado ao seu pai, em homenagem à
sua data natalícia:
Existem certos momentos nesta vida, em que um poder estranho dotado de
inconcebíveis recursos nos obriga a expandir o que nos vai na alma.
Este poder nasceu com a humanidade, é o amor. Vem primeiro amor fraternal, que
vivendo de esperanças, domina corações que palpita; alegram-se, choram juntos e
cujas fibras quais alvos sílios adotam os mesmos entes dos pais.
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Sobrepujando a este, vem o amor paternal, que existindo já antes de nascermos,
vivendo as nossas alegrias e chorando as nossas dores, dominam o coração cuja
imagem, a mais feliz ideia dum pintor, jamais reproduzira a sua extensão de
bondade, carinho e amor. Eu bem quisera dizer o que minha alma palpita e sente
neste momento. Não irei em busca de ideias fictícias, nem em procura de termos
elegantes para falar do meu contentamento, identificando assim uma nesga da
minha gratidão.
A minha linguagem filial, exprimindo meu sentir, bem demonstra que seria todos,
porém alguns ensinamentos paternos estão bem gravados em minha alma. Hoje
ainda que no calor da juventude que há tantos faz enganar a vida; hoje vendo este
modernismo que asfixia o universo, eu apesar disto já distingo os únicos
verdadeiros e sinceros de todos os outros. E sem mais querido papai, os meus
parabéns de filho e amigo e rogo... Petrolina, 23 de dezembro de 1932. Caio Souza.
Esses dois exemplos refletem quão grande era esse pai:
amigo, sincero, duro,
honesto. Essas marcas devem ficar para história e deve ser o legado para aqueles
que querem construir uma grande história.
Foi na adversidade que se construí a bonança e é muitas vezes na bonança que não
são enxergadas as adversidades. Para terminar, faço minha as palavras de Dalai
Lama: "É durante as fases de maior adversidade que surgem as grandes
oportunidades de se fazer o bem a si mesmo e aos outros".
Leiam e aprendam com esse grande homem que foi o Coronel Quelê.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 97
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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MULHER MACHO, SIM SENHOR! NOTAS SOBRE A CULTURA DE
GÊNERO NO BRASIL.
Andréa Bandeira1
“E Deus disse: que haja luz”.2
Gustave Caillebotte
Homme et femme sous le paraplue
Estudo.
1848 – 1898.
“A relação do homem com a mulher é a relação mais
natural do homem com o outro homem”.3
A proposta deste artigo é analisar, a partir da abordagem de Gênero, a
frase-título deste texto, entendendo a fala como um móvel reprodutor das
relações sociais e a linguagem como símbolo, forma de contato humano
(intercessão da) e modelo de representação da realidade. E, assim, possibilitar
a
desconstrução
da
naturalização
da
inferioridade
e
consequente
subordinação social da mulher em relação ao homem, uma imagem recorrente
no discurso hegemônico em nossa sociedade, entendendo a frase, Mulher
macho, sim senhor!, como uma representação da negação da importância do
papel feminino na sociedade patriarcal, bem como da sua identidade, também,
negativa, concordando com Lacan que a mulher não existe. Busca-se, assim,
para além de desconstruir a frase, observar sua implicação ideológica, propor
uma nova visão do papel social feminino e uma identidade positiva para o Ser
Mulher.
A Comissão de Organização da Semana Universitária da Universidade
de Pernambuco, no ano de 2008, convidou a participar do evento com uma
Professora Assistente da Universidade de Pernambuco e doutoranda na Universidade Federal
da Bahia, sob a orientação da Professora Doutora Lina Maria Brandão de Aras.
2 Genesis, 1:3.
3 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica contra Bruno
Bauer e seus Seguidores (1844). São Paulo: Moraes, 1987. Podendo-se também dizer: a relação
do homem com a mulher é a ralação mais natural da mulher com a outra mulher, do outro
homem com a outra mulher, do outro homem com o outro homem, ampliando ab ovo ad
infinitum o direito à diferença com direito a igualdade.
1
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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palestra. Ante o título proposto, estava-se livre para abordá-lo. No primeiro
momento, o impacto da frase chamou a atenção: como desconstruí-la? E por
que se pensou, imediatamente, em desconstruí-la, quase como um ato
“involuntário”, pré-concebido? Não era a primeira vez que se deparava com a
frase e desde sempre a se colocou em cheque, mas se evitou o início do
exercício de analisá-la, por muitas razões, sendo a mais importante o tempo
sempre escasso. Havia, então, o momento de não mais evitá-la.
Assim, diante a certeza de não se tratar de um elogio ao feminino, mas
antes uma reafirmação da sua negação ou negatividade, posto que a
identidade prima e única é a masculina, tracei o projeto: uma introdução
possível seria estabelecer o objetivo, a viabilidade de concluí-lo, a importância
de fazê-lo e o referencial metodológico cabível, e, por fim, como apresentá-lo ao
eclético público que me esperava. Etapas próprias do trabalho acadêmico. Os
esquemas sempre são muito úteis e são um começo!
Ainda, importa salientar que resultava em falar para um público misto,
alunos e alunas das mais diferentes áreas disciplinares, desde os iniciantes
até os concluintes dos cursos de graduação e pós-graduação. Além de contar
com algum colega que não resiste como eu, a saber mais alguma coisa. Com
um público-alvo tão diverso, não poderia me abster de usar recursos didáticos
para facilitar a compreensão de uma abordagem sobre o tema mais complexo,
e também para não decepcionar outros ouvintes mais exigentes. Uma imagem
logo se estabeleceu: o estudo de Gustave Caillebotte para o quadro
impressionista Rue Paris: Temps de Pluie, 1877. Especificamente, o excerto
talvez até mais famoso que a obra, o estudo feito pelo pintor e intitulado
Homme et femme sous le paraplue. Nunca uma figura foi, tantas vezes,
exemplo das razões dos embates feministas: a inexistência simbólica das
mulheres.4 A partir desta imagem, continuar o caminho do deslocamento da
imagem para a historicização da identidade nordestina. Porém, antes será
necessário situar o referencial teórico para continuar a análise da figura de
linguagem título deste artigo.
Então, apresentar o conceito e iniciar a análise, partindo da imagem,
passando pela frase, desconstruindo-a e retornando à imagem, estabelecendo
um novo padrão de olhar sobre o papel social de mulheres e homens ao longo
da história, desde as últimas décadas dos oitocentos quando se fundou a
identidade do homem macho nordestino, primeira idéia de uma civilização
4
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: UNESP, 1998, 6.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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brasileira per si.5 Sem olvidar que se escreve sobre o passado porque se vive
no seu futuro e se sabe da sua conseqüência.6 No presente, debruça-se sobre
as experiências alheias que dizem sobre os humanos (sobre nós) e dos
humanos (de nós) se falam segredos que muitas vezes se recusam (nós
recusamos). E se recusam (nós recusamos) porque a fala esconde relações de
experiências
humanas,
apenas
racionalizadas
nos
esquemas
teóricos.
Plagiando Marx, fala-se e não se sabe muito do que diz na fala.7 E mesmo os
esquemas mentais têm um lugar de nascimento que exige um contexto
próprio. Assim foi com a abordagem de Gênero, que se utiliza para discutir a
questão apresentada.
Nessa abordagem, o Gênero é o resultado das formulações pósmodernas que reconhecem o sujeito – abrangente, mas não mais universal, no
sentido moderno de universal – como resultado da soma das suas muitas
participações nas diversas relações constituídas socialmente. Observa, ainda,
que a realidade dessas relações é compreendida à luz do discurso. Um
discurso que mesmo arbitrário não é metafísico, pois foi gerado no espaçotempo da matéria, pelo Ser-no-mundo. E, em sendo o discurso uma
compreensão arbitrária que depende dos vários interesses encadeados
dialeticamente – as muitas relações das quais esse sujeito participa – é o
resultado interessado dessas relações. Assim, cria imagens próprias para
reproduzir não apenas as cadeias de relações, mas, também, o próprio
discurso. Este conceito observa que a economia política do sexo faz parte de
sistemas sociais totais, sempre costurados em arranjos econômicos e políticos,
consequentemente a interdependência mútua da sexualidade, da economia e
da política, sem subestimar a total significação de cada uma na sociedade
humana. Uma análise retrospectiva das várias correntes de pensamento está
no cerne da construção da abordagem de Gênero. Desde as teorias marxistas,8
passando pelos estudos estruturais do parentesco de Lévi-Strauss,9 a
contribuição de Michel Foucault,10 a teoria da linguagem de Jacques Lacan e a
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo. Uma história do gênero
masculino (Nordeste – 190/1940). Maceió: Catavento, 2003, passim.
6 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, passim.
7 “O homem não sabe que faz história”. MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann.
São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.
8 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989; A Ideologia Alemã.
São Paulo: Boitempo, 2007.
9 LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, SP: Vozes,
2008.
10 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
5
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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definição de desconstrução de Jacques Derrida,11 importante por desprender
as oposições binárias do lugar da realidade própria das coisas. Joan Scott
conclui e conceitua: “Gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o Gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder”.12
Além disso, a obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Nordestino,
uma Invenção do Falo, contribui para o estudo sobre a construção subjetiva
do Nordeste e do nordestino, cabra macho, na virada do século XIX e que
apenas se estabeleceu em meados dos anos 1950, como resultado de um
contexto de crises e decadência de uma elite agrária. E como bem ressalta o
autor, até as mulheres nordestinas receberam a alcunha de macho, sendo este
um adjetivo justificado pelo caráter bravo, resistente e emotivo desse povo. Um
povo que sobreviveu porque manteve uma luta árdua com o espaço geográfico
adusto do sertão. Um povo que nasceu de um discurso operado num intricado
entendimento eugênico, racial, antropológico, sociológico, etnográfico e
histórico.13 Nesse ecletismo teórico, o homem sertanejo e nordestino, cabra
macho, é fruto do seu meio, de uma evolução das raças – em que o nordestino
sertanejo mistura o melhor do sangue de três “raças” –, adaptado e abrasado
pelo sol na sua história de sobrevivência possível pelos elos de solidariedade
próprios da personalidade do mestiço nordestino. O autor continua afirmando
que somente a ausência do estado federal e a influência de grupos estranhos
(à natureza e ao caráter desse homem nativo) e estrangeiros (os paulistas)
explicam a má formação que degenerou em uma história de messianismos e
banditismos, resultado de uma surpreendente perda do “sentido vital de
realidade” e distanciamento de uma longa hereditariedade cultural.14
Pensar o homem cabra macho é pensar a “casa grande” que recolheu
todos sob seu teto. O homem nordestino é antes de tudo um patriarca, um pai
macio, por isso protetor, mas também forte, por isso severo. Todos, na sua
Sobre as contribuições dos estudos de Lacan e Derrida, ver: RUBIN, Gaule. “O Tráfico de
Mulheres: notas sobre a „economia política‟ do sexo”. Recife: SOS Corpo, 1993 (“The traffic of
Women: Notes on the „Political Economy‟ of Sex”, New York, 1975); SCOTT, Joan. “Gênero: uma
categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991; KALIMEROS. A Mulher: na
psicanálise e na arte. Rio de Janeiro: Conta Capa, 1995.
12 SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991,
7.
13 Ocorre uma verdadeira sobreposição de imagens e enunciados extraídos de discursos de
matrizes teóricas diversas para compor o tipo regional nordestino, que aglutina desde percepções
de base racista, passando por imagens de fundo mesológico, até imagens de tipos sociológica e
historicamente definido. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do
falo – uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió-AL: Catavento, 2003,
188.
14 Idem, 191.
11
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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cerca/cinto, lhes rendem votos e vivem do/no seu curral sem redil, como as
cabras robustas acostumadas aos desertos, mansas vagam livres até os
cintos/cercas. Pensar o homem nordestino é pensar o homem sertanejo, numa
família sertaneja, em que todos que integram a “casa” é feita desta mesma
“fibra” forte e macia15, inclusive as mulheres. Elas são as cabras machos, são
aquelas acostumadas às lidas, aos fardos, à violência nordestina de lutar
cotidianamente pela liberdade, desbravadoras, guerreiras e devotas, quando
não santas e piedosas. Essas mulheres são homens nas ausências dos
homens da casa grande. E elas não podem ser outra coisa ou não gerariam
outros homens cabras machos.
Gerar os filhos dos homens é o “destino” das mulheres e disso resultou
na sua subordinação social com o advento da civilização fundada na
propriedade privada dos meios de subsistência e, depois, de produção desses
meios de subsistência. Essa tese aceita, principalmente entre as teóricas
marxistas, explica a partir de um referencial materialista-histórico, como o
conhecimento sobre a concepção e reprodução humana foram utilizadas para
regular os lugares dos sexos nas sociedades. O poder decorrente da
propriedade sobre a prole resultou na origem da invenção do falo como
representação desse poder. Em estudo etnográfico, intitulado A Vida Sexual
dos Selvagens, Bronislaw Malinowski apresenta dados de grupos humanos
que, ignorando a participação masculina na concepção, já adotaram o pátrio
poder sobre os filhos constituídos em alianças de casamento. Essas
sociedades quando adotaram formas econômicas fundadas na propriedade
privada dos meios de subsistência e reprodução dos meios de subsistência
estabeleceram diferenças de poder entre os sexos, apropriando a força de
trabalho e reservando-a ao masculino. Uma apropriação da prole racionalizada
e explicada pela adoção de divindades de caráter masculino. Na cultura
mística desses povos, os deuses enviavam filhos aos homens como troféus
pelas suas vitórias através das suas esposas.16 Do que se pode concluir que a
submissão das mulheres pode ser/é anterior ao conhecimento da participação
do homem na reprodução da espécie. Importa mais saber que essa mística
representante da submissão feminina antes de tudo integra a economia
baseada na propriedade privada, reafirmando a teoria defendidas por Friedrich
O homem sertanejo e nordestino foi comparado à fibra do algodão mocó, da melhor qualidade
e da mais resistente fibra de todas as Américas. A Voz da Manhã apud Idem, 187.
16 MALINOWSKI, Bronislaw. A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, passim.
15
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Engels na obra As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado 17,
materializando e historicizando a teoria do patriarcado.
A invenção do Falo, o falo como representação de poder, importa o
estabelecimento das diferenças entre os sexos e a consequente subordinação
da mulher ao masculino. As teorias psicanalíticas colaboram para uma
compreensão da reprodução das identidades dos sujeitos ao entender o
Simbolismo do Falo, o Falo como o lugar de poder de que se quer ter
propriedade, mas não explicam suas origens. Os conflitos entre os sexos que
se reproduzem no consciente coletivo são o resultado das máscaras das lutas
pelo poder que se produzem no inconsciente coletivo. Jacques Lacan explica a
produção e a reprodução de identidade do sujeito a partir da linguagem e da
representação do sujeito através do símbolo. Apenas a teoria marxista permite
a formulação de um modelo de compreensão da realidade que perceba a
complexidade da produção das relações materiais e a reprodução dessas
relações, integrando as subjetividades de classe aos entendimentos do Gênero
– este buscou na Teoria do Parentesco de Lévi-Strauss o modelo para pensar a
importância das relações étnicas na reprodução das sociedades, bem como
nas relações entre os sexos, as gêneses das diferenças que se mantém entre
eles e as razões para manutenção dessas desigualdades.
A diferença naturalizada no discurso, então, reafirma a construção de
uma identidade que exclui outras identidades. Na Antiguidade, Aristóteles
afirmou na sua Poética que as personagens femininas no teatro não poderiam
ser ou ter atitudes viris, porque deveriam representar a realidade daquela
sociedade, na qual as mulheres porque não possuíam alma, eram imperfeitas
e, por isso, necessariamente, submissas aos homens.18 Tal afirmativa do
filósofo ajuda a compreender que o Ser é uma invenção social que deve
solucionar os conflitos resultantes do lugar de propriedade estabelecido na
constituição da desigualdade fundada na economia de subsistência baseada
na propriedade privada dos seus meios de produção. O abismo entre o Público
e o Privado, a divisão sexual do trabalho e a opressão do sexo feminino
(gerador da vida) servem para reprodução do produtor da mercadoria primária:
a força de trabalho, os filhos, e para reprodução da força de trabalho, as
filhas, reprodutoras da vida. Hannah Arendt, na sua obra A Condição
ENGELS, Friedrich. As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, passim.
18 ARISTÓTELES, “Caracteres, Verossimilhança e Necessidade. Deus ex machina”. Ética à
Nicômaco; Poética/ Aristóteles, São Paulo: Nova Cultural, 1987, passim.
17
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Humana, adverte para a dicotomia dos lugares próprios a cada sexo: a
produção e a reprodução da propriedade, lugar do público, do Ser; reprodução
da força de trabalho, da vida, lugar do privado, do doméstico, do outro, do
Não-ser.19
Tais entendimentos resultam na crença num essencialismo próprio do
humano, na naturalização dos papeis sociais dos sexos, e na representação
imagética e lingüística dos lugares de poder ocupados por homens e mulheres
na hierarquia social, primeira forma de diferenciação entre os sexos e de
divisão de poder. A exemplo do significado de Ser-homem, Ter-poder, Serproprietário, muito bem representado no grito de He-man, herói de um
desenho infantil televisivo, “I have a power!”.20 A dicotomia presente nas
contradições próprias do sistema revela o significado de Não-ser-homem e Sero-outro como característica inata do feminino, isto é Ser-Mulher (!?).
Mulher macho, sim, senhor! O que é Ser Macho? Segundo Durval Muniz
de Albuquerque Júnior, em sua obra já citada, ser macho na sociedade
nordestina qualifica o masculino ao lugar de poder na sociedade burguesa em
avanço para o modelo de propriedade nas colônias abrasadas pelo sol, porque
o torna hábil para o desenvolvimento do sistema de mercadoria sob a linha do
Equador: o caráter bravo, resistente e emotivo desse homem, fruto do seu
meio, de uma evolução das raças – em que mistura o melhor do sangue de três
“raças” –, adaptado e “soleado” na sua história de sobrevivência só é possível
porque aliado pelos elos de solidariedade próprios da personalidade do mestiço
nordestino.21 Uma marca inerente de “cordialidade”, que nem mesmo o
pensamento moderno mais pragmático conseguiu negar como sendo do
caráter da identidade do povo brasileiro.22
ARENDT, Hanah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, passim.
Tradução livre: Eu [Ele-homem] tenho a força! He-Man é o personagem principal da série de
brinquedos Masters of the Universe, lançados pela americana Indústria de Brinquedos Mattel,
em 1983, animados pela produtora Filmation Studios, e desenhados em gibi pela DC Comics. O
seriado foi popularizado no Brasil através da Rede Globo de Televisão, na sua programação
infantil, pela Editora Abril, distribuidora dos gibis, e pela Mesbla, comerciante de brinquedos,
entre os anos 1983 e 1985. E ainda hoje é transmitido em rede particular de televisão. He-Man
pretende ser a representação do homem forte, masculino e sexualmente viril. Personagens
femininas secundárias foram criadas paralelamente, sempre subordinadas ao herói, a exemplo
de She-Ra.
21 Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Nordestino, uma invenção do falo. Op. cit., passim.
22 No capítulo em que analisa a obra Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, José
Carlos Reis observa essa cordialidade se deslocando do rural (onde ela é a expressão da
igualdade entre as elites e também a manifestação das formas paternalistas e de dominação
entre os grupos sociais hierarquicamente estabelecidos; fazendo-se e se reproduzindo nos
bastidores, para poucos, em que ela é sinônima de “ausência de espaço público”, de regalia) para
uma afetividade urbana (dominada pelas regras sociais; em que uma revolução lenta liquidaria
as desigualdades) que possibilitaria a inserção das camadas menos favorecidas: “No Brasil, são
inconsistentes os preceitos de raça e cor, recusamos toda hierarquia muito rígida, somos cada vez
19
20
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Em situações adversas, a sociedade pode aceitar uma revisão do papel
social da mulher, desde que se afirme e reconheça o deslocamento provisório.
Um exemplo, entre outros similares, que não destoa, portanto, dos ideais
propostos pela sociedade para a mulher e colabora com o fortalecimento da
cultura patriarcal. Nessa tradição, a mulher apenas se coloca como
reprodutora da natureza humana e, quando necessário, dos bens de
produção, sendo, então, inserida na economia formal, mas sempre de modo
indireto e inconstante, apenas quando as estratégias para manutenção do
sistema exigem o seu Exército de Reserva.23
A revisão do papel social de homens e mulheres foi narrada e ao se
observar a literatura do período a partir do último quartel do século XIX aos
anos de 1940, desde os romances até as reportagens que circulavam em
lugares distintos do mundo, encontraremos imagens construídas de mulheres
e homens associados a um contexto de avanço da industrialização e da
crescente urbanização, com seus ares cosmopolitas e progressistas. Homens e
mulheres que a partir de estratégias diversas vivenciaram os novos tempos e
experimentaram esses momentos de transição e de deslocamento dos valores.
Através dos textos jornalísticos e dos retratos fotográficos, sabe-se que
Maria Bonita, no sertão nordestino, e Amélia Robles, na área rural mexicana,
a partir de leituras distintas do papel feminino em meio aos valores
masculinos, atuaram de modos diversos ao participarem do mundo público,
mas as duas reafirmaram a inversão dos lugares de gênero que ocuparam,
refazendo imagens do feminino e do masculino arraigadas culturalmente nas
sociedades em que estavam inseridas. Os discursos construídos e os “retratos
de estúdio procuravam estabelecer a identidade social do indivíduo fotografado
segundo um código visual de elegância” admitidos, conclamados e usados por
essas sujeitas, bem como pelos seus redatores e leitores.
A baiana Maria Déa ou Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, em
1929, aos 18 anos de idade, integrou um grupo cangaceiro como esposa do
mito Virgulino Ferreira da Silva, nascido pernambucano de Serra Talhada. Foi
mais urbanos e rejeitamos a violência. Estes valores cordiais são também democráticos. Poderia
haver uma articulação entre sentimentos do homem cordial e as idéias da democracia liberal. Não
podemos trocar simplesmente o nosso ser cordial por esquematismos rígidos e impessoais. Não
podemos ignorar o nosso ritmo espontâneo próprio. O que não podemos fazer é nos abandonar a
Ele. [...] Nossa realidade contraditória precisa ser incluída de alguma forma na construção de
nossa sociedade democrática”. Apud REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem
a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2000, 138.
23 BANDEIRA, Andréa. “O Sagrado”. In: Gênero & História. Cadernos de História. Ano 1. Nº 1.
Recife: Universitária UFPE, 2002, 69-82; As Beatas de Ibiapina: do mito à narrativa histórica
(1860-1883). Dissertação de História. Recife: UFPE, 2003, passim.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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a primeira mulher participante do banditismo, alterando o cotidiano rude da
peleja com o colorido das roupas e maquilagens, introduzindo relações
domésticas na vida pública da guerrilha, reforçando o papel de coronel
pretendido por Lampião. Nas fotos, aparece fardada, armada e bem penteada.
Era apreciada na sua beleza – tinha o porte baixinho, era rechonchuda, com
olhos e cabelos castanhos – e também na sua valentia e intolerância nos
julgamentos
e
condenações,
quando
as
mulheres
eram
consideradas
“naturalmente” benevolentes e melindrosas. Morreu lutando e foi decapitada
como exemplo na Serra dos Angicos, em Sergipe, no ano de 1938. Com
Lampião, teve uma filha, deixada muito cedo com a avó.
Amélia Robles, por sua vez, participou no exército camponês em plena
guerra civil mexicana, assumindo mais que o papel de soldado, transvestindose de homem nesse processo,
“um perfeito janota: terno escuro, camisa branca, gravata,
chapéu preto de aba larga, sapatos de pelica e nesga de
lenço branco no bolso do casaco. De pé e com um charuto
numa mão, a outra posta sobre o revólver como para fazer
ressaltar a arma que levava dependurada no coldre da
cintura”.24
Amélia Robles, nascida em 3 de novembro de 1889, no povoado de
Xochipala, no estado de Guerrero, registrada e batizada Malaquias, segundo o
calendário religioso, foi reconhecida uma menina no seu primeiro documento.
Em casa, chamada pelo nome de Amélia, cresceu cumprindo os rituais da
época, fazendo os serviços domésticos e integrando uma congregação católica
responsável por encaminhar espiritualmente as jonvens, Filhas de Maria. O
que não a impediu de aprender a domar cavalos e manejar as armas,
habilidades reconhecidas e necessárias no momento em que resolveu torna-se
soldadera. Zapatista, lutou sob as ordens de vários chefes por mais de cinco
anos, até que a decadência do movimento e a morte de Zapata a inclinaram
por outros rumos dentro e fora das batalhas. Na maturidade teve o
reconhecimento de sua identidade masculina, Amélio Malaquias Robles Ávila,
a partir dos documentos que atestaram a sua participação em diversos
grupos, tais como: filiação ao Partido Socialista de Guerrero (1934), delegado
CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho: fotografia e masculinidade na
Revolução Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp, março de 2004, 115-150.
24
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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em Xochipala da Liga Central das Comunidades Agrárias (1945) e membro da
Associação Pecuarisra de Zumpango (1956 e 1958), entre outros, incluindo
um exame médico atestando a sua virilidade, pelo doutor Pedro González
Peña.25 Foi entrevistada em vários momentos de sua vida, por jornais locais e
estrangeiros, e sua figura foi avaliada por jornalistas homens e mulheres de
modos diversos, sempre sensacionalistas, dos quais são exemplos dois
episódios: Em El Universal, talvez o jornal de maior circulação na década de
1920, na cidade do México, quando a figura de Amélia Robles foi descoberta e
sua identidade feminina estampada,26 mas nem por isso menos valorizada a
virilidade que imprimia na foto acompanhando a entrevista. E, décadas mais
tarde, nos anos de 1940, outra vez entrevistada por Gertrude Duby, jornalista
suíça exilada no México e militante socialista. Nessa entrevista, a figura de
Amélia Robles sofre um giro completo e transforma-se em memória das
mulheres que combateram na Revolução, referindo-se a Robles como “à
coronela Amélia Robles no feminino”.27 Observa-se, assim, como os usos da
imagem “reproduzem a polaridade de gênero dos papéis feminino e masculino”
[e como] “a história de Robles ao mesmo tempo subverte e fortalece as normas
culturais de gênero”.28 É possível também a partir dessa experiência perceber
os usos das falas para a construção e reconstrução das identidades, inclusive
de gênero, e como se forjam historicamente no enfrentamento de criar um
sentido e um re-alinhamento social necessário.
Maria Bonita e Amélia Robles ocuparam o vazio deixado pelo masculino
em situações adversas e foram retratadas de formas distintas pelos grupos de
interesse. As fotos produzidas em estúdio ou fora deles são as marcas dessas
sujeitas, que usaram as tecnologias possíveis para divulgar uma imagem, o
retrato fotográfico: “Os elementos formais da fotografia – enquadramento,
iluminação uniforme, entorno e, sobretudo, a pose contida e serena do sujeito
colocado no centro da cenografia – se ajustam às convenções do retrato
burguês, em que a pessoa fotografada usa seu melhor traje e posa com
Idem.
Segundo Gabriela Cano, a identidade feminina de Amélia Robles não era um segredo e ao
longo da sua vida ela foi tratada ora assumindo sua identidade masculina, ora assumindo sua
identidade feminina, sendo então chamada de coronela Robles. CANO. Gabriela. “Amélio Robles,
Andar de Soldado Velho: fotografia e masculinidade na Revolução Mexicana”. Cadernos Pagu. N.
22. Campinas-SP: Unicamp, março de 2004, 115-150.
27 CANO. Gabriela. “Amélio Robles, Andar de Soldado Velho: fotografia e masculinidade na
Revolução Mexicana”. Cadernos Pagu. N. 22. Campinas-SP: Unicamp, março de 2004, 115-150.
28 Idem.
25
26
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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decoro”.29 Reconstruíram os modelos de feminilidade a partir das brechas que
favoreceram suas inserções no mundo do público.
No romance, as personagens Luzia-homem e Capitu permitem notar as
contradições dos discursos que socializaram a nova imagem da mulher no
processo de da industrialização brasileira.
Luzia-homem, na obra-título de Domingos Olímpio, é o retrato de uma
mulher nordestina, do interior do Ceará, que no final dos anos 1870, retirante
da seca, necessita sobreviver num meio hostil a sua condição de mulher e a
sua opção sexual, que, em princípio, é apenas implícita e assim continua,
apesar de um contraído casamento que não se consuma pelo fim dramático
escolhido pelo escritor. Mulher robusta, acostumada ao trabalho braçal, fazia
as tarefas ditas masculinas, e por isso, a sua alcunha. Descrita como recatada
e silenciosa, uma conduta própria para a feminina, usava desses atributos
para recusar o amor dos homens que por ela se apaixonavam e tentavam dela
se aproximar, inclusive à força, pelo soldado Capriuna; o leal e respeitoso
Alexandre, de quem ela aceita apenas a relação de amizade e ajuda mútua.
Luzia não se interessa por esses amores. No fim do romance, o poeta formado
no determinismo característico da literatura Romântica e Naturalista, decide
tragicamente pela solidão humana ou por manter o disfarce da conduta sexual
da personagem.
Capitu é uma mulher subentendida na fala da figura dramática de
Bentinho. Um homem com uma curiosa percepção da realidade. A personagem
feminina
não
existe
senão
através
da
palavra
e
do
juízo
do
seu
narrador/personagem. Machado de Assis narra a estória da história da vida
contada por Bentinho. Machado de Assis não sabe quem é Capitu e ela é
apenas secundária na sua ficção, intitulada Dom Casmurro. Quem é Capitu?
Ela é a mulher inventada por Bentinho e existe no entrelaçamento das duas
vidas. Na ausência de ser a mulher amada e odiada pelo amante e esposo, ela
não existe. E, no entanto, se torna fundamental, porque, como afirma o
personagem no inicio do conto, ele vai narrar o seu drama e seu drama é a
sua vida e a sua vida começa quando ele encontra e se encanta com os olhos,
o olhar oblíquo, de Capitu. Ela desliza nos seus sonhos entre a virtude e o
pecado, a crueldade e a ingenuidade. A obra machadiana, publicada em 1899
é um conto que utiliza a metalinguagem para desenvolver uma perspectiva
subjetiva da realidade da sociedade carioca do fim do século, construída numa
29
Idem.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 109
narrativa
fantástica
e
romântica,
onde,
ainda
assim,
predomina
o
determinismo próprio do realismo característico da obra machadiana. Duas
imagens de ser feminina num mundo onde impera o masculino e o masculino
tem a fala.
Amélia Robles, Luzia-homem, Capitu, Maria Bonita, todas as mulheres,
elas são adivinhadas. Descritas, sem falas, são inventadas. Lembradas, são
ignoradas. É mister historicizar as mulheres. Buscar as fontes construídas por
elas sobre si, e ainda assim, serão transversadas. Mas quem existe per si?
Quem é? Que modelo ou olhar esconde-se do demasiadamente humano? Mas
como também garantir que elas se escondem nas epistemologias existentes,
que elas não reconhecem a si? Desde quando homens e mulheres não
participam sob o mesmo sol de primavera? Mas, este é um outro diálogo.
A proposta-resposta desse artigo foi o possível, a desconstrução do
papel subserviente da mulher na atual sociedade, observando a importância
da linguagem na manutenção das diferenças entre os sexos e sua implicação
ideológica, e propor uma nova visão do papel social feminino, passo para a
conclusão do projeto de criar uma identidade positiva para o Ser Mulher. A
desconstrução da naturalização da inferioridade e consequente subordinação
social da mulher em relação ao homem resultará em relações de equidade
entre homens e mulheres e o fim de uma era patriarcal. Assim, entender a
frase, Mulher macho, sim, senhor! como uma representação da inexistência do
feminino na nossa sociedade varonil e misógina é uma forma de identificar os
modos como se conservam o papel superior e a identidade única do masculino
e re-avaliar as transversalidades discursivas. É, também, uma forma de iniciar
uma prática de equidade entre os sexos.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 110
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hbagREurD9iTO3LpUy4_kp6LW5g&hl=pt-BR&ei=AiiPSbbpPNBtweVjoGZCw&sa=X&oi=book_result&resnum=3&ct=result#PPA159,M1,
acessado 06/2009.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 112
A AIDS NO JORNAL: A IMPORTÂNCIA DAS NOTÍCIAS VEICULADAS
SOBRE A DOENÇA NA FORMAÇÃO DAS IMPRESSÕES DA SOCIEDADE
ACERCA DESSA ENFERMIDADE EM FORTALEZA, DURANTE A DÉCADA
DE 80 DO SÉCULO XX
Érica Cavalcante Lima1
No início da década de 1980 surge uma nova doença que modificou
significativamente os mais variados setores da sociedade. Grandiosamente, a
AIDS movimentou segmentos que iam muito além dos campos da saúde, pois
se acreditava, inicialmente, que a proliferação da doença estava intimamente
vinculada ao comportamento “condenável” dos seus portadores, dessa
maneira, a necessidade de mobilização das diversificadas frações.
O doente-pecador atrai o raio celeste sobre todo um
grupo. [...] A AIDS atinge homossexuais e drogados
porque estes pecaram contra a moral, a religião, a ordem
estabelecida. A sodomia constitui um desafio permanente
á natureza. É uma ofensa grave à sociedade. Os
sodomitas, como os drogados, são culpados: é normal
que sejam punidos.2
Igrejas, escolas e o boom de Organizações Não-Governamentais (ONGs)
de alguma maneira uniam forças no combate a essa doença tão assustadora
que, ainda por cima, vinha acompanhada de temas que sempre foram
rechaçados, como a sexualidade e a homossexualidade, representando, dessa
maneira, uma forçosa “quebra de tabus”, pois esses assuntos que antes eram
reprimidos foram levados a tona, fazendo parte de todas as conversas e
discussões.
Por conta da inexistência de respostas quanto aos seus agentes
etiológicos, e logo, a inexistência de um tratamento, a doença rapidamente
atingiu níveis de epidemia, transformando-se, dessa maneira, em um
fenômeno social. Era através dos periódicos, que a sociedade obtinha boa
parte das informações sobre a nova doença. Dessa maneira, os jornais
permitem a observação da forma pela qual a doença e as suas vítimas foram
abordadas nas notícias difundidas, e as impressões que as mesmas causavam
1
Aluna de graduação do curso de Historia da Universidade Estadual do Ceará - UECE
Em seu artigo Le châtiment des dieux (O castigo dos deuses), Jaques Ruffié assinala a
“culpabilidade” dos infectados.
2
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 113
na
sociedade
acerca
da enfermidade.
“Homossexuais
masculinos, em
particular os viciados em drogas, estão sujeitos a uma enfermidade misteriosa,
que reduz a imunidade natural às infecções e com freqüência os leva à
morte”.3
Através das notícias, temos acesso às medidas profiláticas tomadas em
combate à doença. Podemos verificar a posição tomada pela Igreja em relação
às inúmeras tentativas de explicações do surgimento da síndrome: “O cardeal
Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio de Araújo Salles, afirma em
programa radiofônico semanal, „A Voz do Pastor‟, que a AIDS era a vingança
da natureza”.4 Verificamos assim, a atitude de isolamento dos infectados
diante do estigma da doença e a resistência homossexual através dos
inúmeros movimentos gays que surgiram nesse período, como o MGB
(Movimento Gay da Bahia) e o grupo OUTRA COISA em São Paulo, que em
1983 tomou uma das primeiras iniciativas comunitárias que se tem notícia em
combate à epidemia, distribuindo folhetos com informações sobre a doença e
formas de prevenção.
A repercussão alcançada pela AIDS na sociedade vai muito além da
preocupação em níveis de saúde pública. A doença, estava, acreditava-se de
início, diretamente ligada ao comportamento dos infectados. A doença incutia
um caráter desmoralizante
aos
seus
portadores. Percebemos
que
as
dificuldades no seu tratamento não estavam ligadas somente ao pouco
conhecimento de causa por parte da medicina, mas, sobretudo, à posição dos
doentes, que silenciavam ao máximo a sua condição por medo do preconceito.
O medo de ver a sua homossexualidade trazida aos olhos
de todos leva alguns a recusar todo o controle médico,
mesmo na presença de sintomas inquietantes. Em casos
extremos, os distúrbios de identidade homossexual
podem conduzir ao abandono de si: a desidentificação
leva então ao desespero e ao suicídio; ou a uma de suas
formas disfarçadas, a negligência, sinônimo de „deixar-se
morrer‟.5
Os jornais participaram como veículo fundamental de divulgação dos
esforços da comunidade científica, assim como no reforço de compreensão do
“Doença misteriosa leva a morte de homossexuais”, O Globo, 11/12/1981.
Disponível em: <http://www.ibvivavida.org.br/Historia-da-AIDS.asp>. Acesso: em 14 de
julho de 2010.
5 POLLAK, Michael. Os Homossexuais e a AIDS: Sociologia de uma epidemia. São Paulo, p. 84.
3
4
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 114
imaginário coletivo quanto às concepções da doença, enquanto efeitos
necessários de condutas socialmente reprováveis.
Podemos verificar que a constatação da síndrome equivalia a descobrir
que o paciente fazia parte de um “grupo de risco”. A doença assoalhava uma
condição estigmatizante de homossexualidade, além de “revelar” elementos da
intimidade de alguns pacientes, representava a “morte anunciada”, e a
limitação do convívio com as pessoas.
A imunodepressão é conseqüência da própria maneira
como os homossexuais se relacionam sexualmente. A
relação anal é imunossupressora. O esperma introduzido
no homossexual inocula antígenos que desequilibram o
sistema de defesa do organismo que o recebe.6
Através das notícias de jornais do período, principalmente, (década de
80 do século XX), teremos a oportunidade de ter um maior contato com a
importantíssima representatividade da AIDS no que diz respeito a sua
magnitude como doença, que marcou intensamente uma época, despertando
as mais variadas sensações.
Estudar a AIDS como fenômeno social, verificando sua repercussão nos
primeiros anos do seu surgimento (década de 1980), bem como perceber o que
a doença representou em termos de sensações para os envolvidos como o
desespero, desinformação e, principalmente, o medo, induz o desenvolvimento
dessa pesquisa. No período que recortamos para nossa análise, a doença era
um assunto extremamente polêmico, noticiado em todos os jornais do mundo,
apavorando a todos em virtude do desconhecimento dos seus agentes
etiológicos e tratamento adequado.
Por se tratar de um fenômeno social, a doença “aliou-se” a outros
problemas já há muito existentes no nosso país e no mundo, entre eles, o
preconceito. Tendo em vista a inexistência de conhecimento acerca da doença,
podemos observar as respostas dadas à sociedade, quer pelo discurso médicocientífico, quer pelo poder público ou pelas organizações alternativas, bem
como pelos indivíduos. Levando em conta as manifestações do imaginário
social, a do conhecimento científico e a das estratégias institucionais,
conexões
sempre
referenciadas
aos
traços
de
transmissibilidade
e
incurabilidade da doença.
6
“Vírus atinge também grupo de gays sadios”, Jornal do Brasil, 24/08/1985.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 115
Quanto mais aleatório parece o risco, mais ele é definido
como ameaça para todo o equilíbrio social e econômico, e
mais o desejo de segurança é expresso na reivindicação
de garantias institucionais e jurídicas. O sentimento de
ter
de
enfrentar
um
fenômeno
incontrolável,
potencialmente catastrófico, com o qual, ainda por cima,
poucas pessoas estão familiarizadas, elava ao máximo a
aversão a essa doença e leva à exclusão daqueles que
simbolizam o perigo e a decadência.7
São acessíveis vários estudos da AIDS como doença, mas não são
comuns estudos da síndrome como fenômeno social que exige um olhar
cultural, possibilitando a revelação de outros sentidos, que analisem,
sobretudo, a maneira como a sociedade se relaciona com as doenças de
grande impacto. Levando em consideração essas questões, esse trabalho
poderá contribuir academicamente para os estudos que bebem da história das
enfermidades, mostrando, a partir de uma doença tão estigmatizante como a
AIDS, uma gama de questões, densas e pouco exploradas, pois de acordo com
as palavras de Charles Rosemberg:
[...] a doença é ao mesmo tempo problema substantivo e
instrumento analítico, ela não é percebida unicamente
como entidade biológica ou física, mas como amálgama
que envolve tanto sua natureza biológica como os
sentidos que lhe são atribuídos pelas sociedades.
Desse
modo,
como
objeto
de
estudo,
a
doença
possibilita
o
conhecimento sobre estruturas e mudanças sociais, dinâmica demográfica e
de
deslocamento
questões,
populacional e
tentaremos
responder
relações
as
societárias.
perguntas
que
Partindo
aparecem
dessas
quando
observamos a maneira como a sociedade se comporta diante das doenças
impactantes.
Como já foi dito, interessa-nos, mormente, analisar o impacto da
doença na cidade de Fortaleza através das noticias adjudicadas. Selecionamos
um fragmento de uma notícia publicada no Jornal O Povo em meados dos
anos 1980, que aponta como este veículo de comunicação a tratava:
POLLAK, Michael. Os Homossexuais e a AIDS: Sociologia de uma epidemia. São Paulo, 1990,
p. 176.
7
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 116
Não há evidência de que a doença seja transmitida
através do suor, da saliva ou do contato ocasional. [...].
Na verdadeira paranóia que a síndrome está provocando,
muitos estão preocupados, não apenas com a fatalidade
da doença, mas com o estigma dos infelizes portadores e
seus parentes e amigos, segregados como pecadores,
pecaminosos, condenados à desgraça. O que vai existir
dentro de algum tempo, caso a ciência não encontre a
vacina e a cura tão sonhada, é o medo entre as pessoas,
a desconfiança generalizada, o pavor diante do mal tão
microscópico e tão poderoso. Valores como a amizade, a
afeição, a solidariedade serão questionados frente ao
receio da AIDS. É o terrorismo disfarçado, advertem. Um
estigma assim, tão forte, pode destruir laços que
pareciam perenes, como os do amor entre as pessoas. A
AIDS, com o medo generalizado, trouxe de volta conceitos
que pareciam ultrapassados, como o da virgindade.
Pesquisas recentes mostraram que 40 por cento das
norte-americanas estão casando virgens, e é cada vez
maior o número de casais com fidelidade absoluta. A
troca de parceiros é uma atividade condenável. [...]. O
combate e o controle das doenças sexualmente
transmissíveis (a AIDS é a pior delas, mas há também a
sífilis, gonorréia, condiloma acuminado, linfogranuloma
venéreo, cancromole, herpes genital e outras.), ganharão
no Ceará a sua primeira batalha, que será a destinação
de um local apropriado para o tratamento dos doentes. O
Centro de Saúde Manuel Duarte Pimentel, na Av. Barão
de Studart, 2605, na Aldeota, será o ponto de referência.
Para tanto já foi encaminhado o plano para o Ministério
da Saúde. Falta apenas a liberação de verba no valor de
Cr$ 500 milhões, para sua efetivação. Apesar da
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida ser de
notificação compulsória, tal qual a meningite, a
Secretária de Saúde sabe que os casos acontecem (e há
quem fale em mais de dez diagnósticos positivos), mas os
próprios médicos não comunicam os casos à divisão de
vigilância epidemiológica. As informações chegam através
de terceiros.8
A nota referente a 22 de agosto de 1985 do jornal O Povo, supracitada,
revela alguns problemas alusivos aos sentimentos despertados pela síndrome,
assim como o impacto causado nas relações sociais, tendo em vista a
desinformação quanto aos meios de contágio e o preconceito em relação aos
portadores.
A partir das leituras realizadas constatamos a repercussão da doença
em níveis que iam além das responsabilidades governamentais. Como é
8
“AIDS já registra duas mortes no Ceará”, O Povo, 24/08/1987.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 117
colocado em um trecho da notícia: laços tidos como perenes são facilmente
rompidos diante do pavor causado pela doença. É colocada em xeque a luta
pela sobrevivência dos portadores frente ao medo de “morrer” dos não
infectados. A doença responde por uma reviravolta dos costumes, causando
mudança nos comportamentos. Desse modo, constatamos que é importante
observar e analisar as mudanças comportamentais causadas na sociedade a
partir do pavor da doença.
Quando se alude à „quebra de tabus‟, entende-se a
doença em termos de punição: o doente é castigado por
haver-se rebelado contra imperativos religiosos ou
sociais. Deuses e almas de antepassados punem os
homens que não se curvam diante dos mandamentos
vigentes. É preciso, em certas circunstâncias, distinguir a
culpa individual da coletiva: males que afligem a tribo são
associados a uma culpa coletiva, um erro ou
desobediência generalizada, que dá origem aos males e às
epidemias.9
A citação anterior diz muito, embora indiretamente, sobre o imaginário
que se criou acerca da doença. Percebemos o quanto a nossa evolução, em
termos científicos e sociais, é vulnerável quando nos deparamos com o
inesperado, o inexplicável, e rapidamente, embora resistindo, voltamos às
nossas angústias, e aos nossos medos mais primitivos, como o medo da morte.
A análise das notícias nos diz, também, acerca das respostas
governamentais em combate à doença. Ainda tendo como exemplo a notícia
citada, examinamos que em Fortaleza em 1985 foi criado o Centro de Saúde
Manuel Duarte Pimentel, que servira como primeiro ponto de referência
voltado para o tratamento dos enfermos. Analisamos, ainda, a posição dos
médicos que tentavam, segundo a nota, esconder os casos, levando, inclusive,
à incerteza dos números de ocorrências existentes na cidade.
Este é um trabalho que se encontra ainda em processo de elaboração.
Porém, a fonte com a qual iniciamos um diálogo aponta para os benefícios do
alargamento da agenda histórica e de áreas florescentes, como a história
demográfica, a antropologia social, a história da cultura material e mental.
Nessa pesquisa, mormente, analisamos as implicações sociais, políticas e
culturais advindas dos entendimentos das significações das doenças, a AIDS,
especificamente. Utilizando-nos, principalmente, de fontes hemerográficas
9
HEGENBERG, Leonidas. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro, 1998, p. 18.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 118
para esse fim. Percebemos, que “assim como a história, a doença, como
fenômeno social, também é uma construção”.
10
Dentre outros objetivos, esse trabalho propende uma contribuição nas
iniciativas da valorização do estudo da doença e do seu papel na história,
considerando as dificuldades que são encontradas por aqueles que pretendem
fazer um estudo nessas perspectivas, assim como, favorecer os estudos que
acreditam na seriedade dos jornais quanto fontes que possibilitam uma
colaboração no entendimento do período abordado, bem como, na sua
importância na formação das opiniões, podendo interferir significativamente
nas idéias produzidas sobre os mais diversificados temas.
FONTES:
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10
Lucien Febvre, na sessão inaugural do Collège de France, em 13 de dezembro de 1993, disse:
“Dado? Não, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a ajuda de
hipóteses e conjecturas, por um trabalho delicado e apaixonante... Elaborar um fato é construílo”. Cf. Jacques Le Goff, “História”, Enciclopédia Einaudi, Vol. 1, Imprensa Nacional/ Casa da
Moeda, 1984, p. 167.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 119
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TRONCA, Ítalo Arnaldo. As máscaras do medo: Lepra e AIDS. São Paulo:
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 120
AS MARIAS NO CANGAÇO: FACES FEMININAS NO BANDITISMO SOCIAL
(1930 a 1940)
Christoval Araújo Santos Júnior1
INTRODUÇÃO
A abordagem dada por Michelle Perrot2 (1988) incita que para tratar a
exclusão da mulher na história é necessário que se leve em conta toda a
contribuição positivista e o fazer história de historiadores que a escrevem no
masculino; no seu campo de abordagem de ação e poder masculinos,
ignorando a mulher improdutiva no aspecto econômico, privilegiando classes e
negligenciando sexos, generalizando o ser humano; seja qual for o tipo de
mulher, “trabalhadora ou ociosa, doente, manifestante, a mulher é observada
e descrita pelo homem”.
Outrossim, uma fase da história do sertão nordestino brasileiro foi
negligenciada durante décadas. O período do Cangaço revelou uma “mulher
macho”, uma mulher inventada dentro do arraigado conceito de uma
burguesia falocrata3 que separa sexos e impõe seus locais exclusivos de poder.
Diante disso, a Historia das Mulheres no Cangaço se perde no tempo e
espaço, uma segregação que no século XIX demonstra seu auge, onde, o lugar
feminino seria a maternidade e a casa, sendo assim, estas que participaram de
um movimento que por si já é marginal, são ainda mais marginalizadas por
não se enquadrarem num estereótipo de como ser mulher neste determinado
espaço.
A mulher de princípios do século XX era educada para ter uma vida
voltada ao lar, com uma lista de trabalhos pré-estabelecida, onde o exemplo
da rendeira seria o principal retrato de um arquétipo feminino estabelecido
nessa região:
Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as
chamadas „prendas domésticas‟ – orientar os filhos, fazer
Graduando em História, VII período, UPE - Universidade de Pernambuco.
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2 Michelle Perrot (1928) é professora e historiadora titular da Universidade de Paris, França. Faz
parte da geração da Escola Nova Francesa de Estudos Sociais na Europa. É uma das
precursoras da história das mulheres no ocidente.
3 Derivado de falocracia, atitude tendente a assegurar e a justificar a dominação das mulheres
pelos homens; machismo.
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ou mandar fazer a cozinha, costurar e bordar. Outras,
menos afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida,
faziam doces por encomenda, arranjos de flores,
bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim
puderam ajudar no sustento e na educação da numerosa
prole. (FALCI, 2004, p. 249).
Investiremos um debate tomando a cangaceira como um marco
feminino, uma nova forma de ser mulher dentro do sertão nordestino
brasileiro. Sua participação ficou restrita aos estados de Pernambuco, Bahia,
Sergipe e Alagoas (ARAUJO, 1985, p. 89).
Estes estados, ainda no século XX, essencialmente regidos pelo
patriarcado, são palco dessas mulheres, sendo a Bahia espaço de uma em
especial, Maria Gomes de Oliveira, a primeira mulher a entrar em um grupo
de cangaceiros. Nasceu no dia 08 de Março de 1911, na fazenda Malhada da
Caiçara, região de Paulo Afonso – BA. O dia do seu nascimento coincide com o
Dia Internacional da Mulher, data esta que foi adotada somente em 1975 e
tem origem nas lutas feministas do início do século XX por melhores condições
de trabalho e direito ao voto. Este se torna um evento que representa muito
mais que operárias ou cangaceiras, representa todas as mulheres que sempre
lutaram pela equidade e são descritas por Perrot (1988) como:
[...] fogo, devastadora das rotinas familiares e da ordem
burguesa, devoradora, consumindo as energias viris,
mulher das febres e das paixões românticas, que a
psicanálise, guardiã da paz das famílias, colocará na
categoria de neuróticas; filha do diabo, mulher louca,
histérica herdeira das feiticeiras de outrora. A ruiva
heroína dos romances de folhetim, essa mulher cujo calor
do sangue ilumina a pele e cabelos, e através da qual
chega a desgraça, é a encarnação popular da mulher
ígnea que deixa apenas cinzas e fumaça. (PERROT, 1988,
p. 187-188).
Uma exaltação que remete não só às operarias européias ou norteamericanas, mas que remonta o espírito desta sertaneja, nordestina,
brasileira, que ingressa em grupos de Cangaceiros em 1930, algo inédito em
pouco mais de 200 anos de cangaço, quebrando paradigmas e traçando uma
nova fase da história das mulheres.
Assim, desmistificaremos a invenção mulher macho de ser, enfocando as
particularidades de um jeito mulher de ser e fazer. Argumentando signos,
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enaltecendo valores, conquistas, referenciando-a como exemplo de força, de
luta por objetivos, seja este, materialista ou sentimental, a mulher cangaceira
muito mais que uma amante coadjuvante foi uma parte protagonista que
deixou sua marca dentro da história das mulheres do Brasil.
SOBRE O CANGAÇO
Pode-se definir cangaço como reunião de objetos menores e confusos,
utensílios das famílias humildes, mobília de pobre e de escravos ou conjunto
de armas que costuma conduzir os valentões. (CASCUDO, s.d, p. 68).
Entender a formação do cangaço no aspecto de movimento de
bandoleiros requer buscar as raízes de um contexto sócio histórico e se faz
necessário compreender alguns aspectos do Brasil Colonial, onde a gênese
desse fato sócio-cultural se encontra na divisão primária das terras em
Capitanias Hereditárias e posteriormente nas sesmarias, porções menores de
terra, latifúndios, doadas a nobres famílias ibéricas. A partir dessa formação
burguesa social, surge o cangaço em meados do século XVIII como um
instrumento desses latifundiários para impor sua lei, garantindo a disciplina e
manutenção da propriedade, executando vinganças e eliminando inimigos
políticos, espalhando terror entre a população sertaneja.
Numa perspectiva panorâmica da situação regional, temos um nordeste
brasileiro movido pelo ciclo do gado e da cana de açúcar, onde o sedentarismo
como forma de vida sugerida pelo sistema de produção, vai ficando para trás.
A nascente pecuária, ao contrário, sugere o nomadismo, o que é de fácil
compreensão se atentar para a pobreza do pasto nas regiões semiáridas,
intensificando as caminhadas em busca de água e alimento para os animais.
Referindo-se ao cangaço no imaginário popular, logo nos remetemos a
figuras “mitológicas”, homens destemidos, que para uns são heróis, para
outros, bandidos, continuam sendo tidos como um marco quase que folclórico
da história do sertão nordestino brasileiro. Para essa construção romântica do
cangaceiro, temos como principal arma a literatura de cordel, que enaltece sua
figura e promove uma antagônica visão no que se refere à transfiguração de
violência em ato heróico.
É possível perceber assim a ambiguidade que o cangaço manifesta na
visão principalmente das pessoas que vivem distantes da região onde o
movimento aconteceu, pois ao mesmo tempo em que são apresentados como
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facínoras perversos, são também mostrados como generosos ao realizar atos
de caridade para com os mais humildes, protegendo-os contra os desmandos
dos poderosos, que inicialmente são patrões, porém com o destaque que os
cangaceiros obtiveram, são também, sócios e inimigos.
Porém, para que não se invista numa discussão sobre heroicidade ou
vilania, Eric Hobsbawm (1975) analisa a formação desse cangaceiro estando
ligada a um modo de reação campesina aos desmandos dos grandes
latifundiários, denominado assim de banditismo social. Anton Block (1972)
contesta e principalmente argumenta que o banditismo social em sua prática
seja um banditismo antissocial, haja vista a revolta desses bandidos também
para com os camponeses.
Diante disso, para a conseqüente construção do perfil da cangaceira,
analisaremos os estudos de Paul Saint Cassia (2001), que após uma queda na
década de 1970 no debate historiográfico acerca do banditismo, retoma no
inicio dos anos 1990 a questão a partir da construção de um modelo que parte
de uma dimensão antropológica sem deixar de abordar a legalidade, o social e
a literatura, seja ela popular ou não, que são basilares para o Banditismo.
Os autores citados anteriormente focalizaram seus estudos nas
condições sociais políticas e econômicas em que se desenvolveu o banditismo
social e não se pode deixar de levar em conta que a criminalização está
totalmente ligada também à posição que o Estado toma com relação a essa
questão, como ocorreu em várias ocasiões que esses grupos passaram a
combater junto ao Estado, exemplo disso é o caso da aliança oferecida ao
grupo de Lampião para lutar contra a Coluna Prestes, por intermédio do Padre
Cícero, no Ceará.
Diante principalmente dessa proposta antropológica, Saint Cassia
(2001) analisa elementos como: a estrutura social e ecológica regional;
acumulação de capital e a forma com que a mesma se torna legítima;
distribuição de terra; um sistema eleitoral favorável à imposição de resultados;
e a inconstante insegurança que se torna maior que a miséria em que vivem
os camponeses. O autor apresenta um modelo que aborda a questão, porém
não apresenta pontos que retratam a resistência dos camponeses à opressão.
Este é um modelo elaborado para a compreensão de uma violência
endêmica a regiões que são tomadas pelo capitalismo, exercendo este o seu
principal modo de produção. Assim, as relações de Banditismo e até de outras
formas de protestos rurais são praticamente inexistem em regiões onde as
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comunidades rurais, o proletariado, conseguem se organizar segundo normas
trabalhistas, como as ligas camponesas de 1930.
Não esquecendo as questões culturais do banditismo, a violência que
tanto foi alvo da preocupação de Hobsbawm (1975) e Block (1972), adquire
outra concepção na visão de Saint Cassia (2001), que aborda esta violência
como um discurso numa linguagem que precisa ser interpretada, e esta
interpretação é a relação do discurso com a cultura. Munido do resultado
dessa equação, este será unido aos aspectos econômicos que podem ver o
bandido como um exemplo de ascensão social ou um intermédio de relações
econômicas principalmente voltadas aos desmandos de poderosos regionais
com quem os cangaceiros tratariam de estabelecer uma relação “amistosa”,
servindo para sua proteção, e recebendo devida gratificação financeira pelos
serviços prestados.
Após o analisado, conceber os grupos de cangaceiros somente como
indivíduos marginalizados, que são originários, de um modo geral, das classes
pobres rurais, sendo oprimidos por um sistema econômico e político que deu
privilégio aos grandes arrendatários/proprietários de terra que expropriam o
pequeno produtor, se torna defasado quando atentamos para a relação que
estes bandidos mantinham com esses grandes fazendeiros e partir da analise
de Saint Cassia (2001), sobre a estrutura endêmica do cangaço, faremos uma
relação com os aspectos dos modos e meios de vida da Mulher do Sertão
Nordestino, analisando os fatores que contribuíram para o ingresso feminino
em grupos de cangaceiros a partir da década de 1930 e o consequente
significado dessa entrada para a história local.
A CONSTRUÇÃO DA CANGACEIRA, UMA RUPTURA, UMA NOVA FACE
FEMININA
COMO SER MULHER (MACHO)
Tratamos alguns aspectos do sertão nordestino que são basilares para o
entendimento da divisão social corrente na época, podendo-se colocar a vida
da mulher do grande fazendeiro, e a conseqüente riqueza que isso lhe
proporcionava como a marca do seu “reconhecimento social”, onde “o princípio
da cor poderia confirmá-lo” e “ser filha de fazendeiro, bem alva [...] era o ideal
de mulher naquele sertão”. (FALCI, 2004, p. 242)
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Dentro de uma hierarquia social, Falci (2004) divide as mulheres
primeiramente pelas categorias mais altas de senhora, dama, ou apenas dona.
“Pipira” ou “cunhã" e roceiras, como categorias secundárias, e por fim,
escravas e negras. Assim, para a construção do perfil de uma classe
cangaceira de mulher, incluiremos esta com oriunda da classe dita secundária
e que procura nesse meio de vida cangaço4, uma alternativa de destaque e/ou
ascensão social.
A mulher não precisa e não deveria ganhar dinheiro, assim descreve
Falci (2004) no seu artigo Mulheres do Sertão Nordestino, relatando que esta
foi uma visão comum à época e que diante dessa falta de “necessidade”, as
mulheres acabavam tendo poucas atividades fora do lar, onde desde cedo
eram induzidas ao trabalho doméstico, orientação aos filhos, costura,
bordado, doces por encomenda. Porém, estes quando vendidos, eram passados
a
um
intermediário
para
que
não
tirasse
do
homem
da
casa
a
responsabilidade do sustento da família. Já para as mulheres consideradas da
classe secundária, roceiras era comum que:
Na enxada, ao lado de irmãos, pais ou companheiros,
faziam todo o trabalho considerado masculino: torar
paus, carregar feixes de lenha, cavoucar, semear, limpar
a roça do mato e colher. (FALCI, 2004, p. 250)
Diante disso, mulheres que desenvolvem atividades além do trabalho
doméstico, só podem ser classificadas como machos, “concordando com Lacan
que a mulher não existe”. (LACAN apud BANDEIRA, 2008, p. 1). Não existe
para a história, como já foi debatido no começo desse artigo, e não existe fora
das suas funções domésticas e reprodutoras da sociedade patriarcal.
A referência mais próxima que estas roceiras terão da riqueza (ou pelo
menos uma forma de galgar essa riqueza) é se submetendo a uma função em
duas opções5: ser cunhã6 de coronel ou de cangaceiro, sendo que há uma
diferença entre esses dois falos7: O primeiro, “sedentarizado”, mantinha seu
casamento oficial e concomitantemente relações extraconjugais com a(s)
cunhã(s). Já para os cangaceiros, nômades, não existia a prática do
Entendendo assim que há também uma vontade particular de fazer parte desse movimento, e
que estas mulheres não participaram somente como coadjuvantes ou seqüestradas que viveram
uma relação subserviente.
5 Levando sempre em consideração que muitas foram contra sua própria vontade.
6 tupi ku'ñã 'mulher, mulher indígena', p.ext. 'esposa ou companheira de índio, caboclo ou
homem branco (HOUAISS, 2010).
7 Entendendo os dois como constituintes de uma sociedade falocrata.
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casamento, muito menos a relação extraconjugal, já que não era da sua práxis
possuir esposa nem moradia fixas. Ser cunhã consistia num meio de
subsistência para muitas que:
[...] sem status ou sem bens [...] não haviam conseguido
casamento numa terra de mercado matrimonial estreito,
encontravam num homem mais velho, mesmo sendo
casado, o amparo financeiro e social que precisavam.
Mesmo sendo a segunda ou terceira „esposa do juiz‟, o
poder e o prestigio que adivinham do seu cargo era
partilhado pela mulher. (FALCI, 2004, p. 269)
Porém, para que tal prestígio surtisse efeito dentro do meio, mesmo
sendo esta a amasia (cunhã), era necessário que ela fosse ciente do seu papel
e lugar, completamente diferente do ocupado pela esposa oficial; devendo ser
cuidadosa e prudente nas suas atitudes e se dessa relação houvesse um filho,
o respeito advindo dessa sociedade ainda era mais garantido.
A função da esposa legítima é ser mulher do seu marido; é ser mulher
casada, que após o enlace matrimonial se vestia de preto, não se perfumava
mais, nem “embelezava” os cabelos, sendo o recato sua principal virtude.
Presas ao lar, ao honesto trabalho do lar, logo estas mulheres perdem as
linhas de beleza “e deixaram-se ficar obesas e descuidadas [...]”. (PRIORI apud
FALCI, 2004, p. 269). É importante frisar que este perfil é pertinente à mulher
do sertão, não se aplicando a do litoral, tomada pelos ditos europeus.
A
sociedade
sertaneja,
no
seu
isolamento,
desenvolveu
formas
particulares principalmente quanto à moralidade, fazendo até com que fossem
aceitas famílias ilegítimas, que se formaram a partir dessas uniões dos
coronéis com as cunhãs e como cita Falci (2004) sobre a conduta de um
vigário de setenta a oitenta anos, que era pai de seis filhos naturais, indo de
encontro os também oficiais mandamentos da igreja.
Para aquelas mulheres pobres que procuravam o casamento, este não
havia acerto prévio ou dote, desde cedo há o interesse do casamento pelo
homem e pela mulher pobre; levavam uma vida voltada ao trabalho, sem
muitos recursos e diversões:
O „matuto‟
domingueira,
modesta casa
essas coisas
só casava quando tinha uma roupa
um cavalo para começo de vida e uma
de palha. Pedir a mão da moça antes de ter
seria receber um não na certa, mesmo
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porque o „matuto‟ não gostava de morar com a outra
família (cunhado ou sogra). (FALCI, 2004, p. 263)
Após o já descrito, organizaremos assim três classes de importância
para a mulher dentro da hierarquia social do sertão nordestino brasileiro
onde, estas submetidas ao patriarcado comumente são subjugadas tanto pela
sociedade em geral, como pela sua família e marido: - A primeira, esposa
oficial do coronel, cabe a categoria mais alta, relacionando claro, a posição do
seu esposo; - A segunda categoria, a amasia, por também estar se
relacionando com um coronel, de acordo com sua prudência, também tinha
benefícios e respeito diante da sociedade; - A terceira categoria, a mulher
pobre, roceira, que casou com um homem também pobre, roceiro, “matuto”,
além de sofrer os percalços das imposições advindas da sua posição, trabalha
na roça para ajudar no sustento da família.
SOBRE VALORES
Antes de entender sobre essas faces femininas no cangaço, tentaremos
desconstruir o estereótipo de Mulher Macho, que é comumente usado para
descrevê-la. Para isso usaremos como aporte o artigo que Bandeira (2008, p.
1) intitulado Mulher Macho, Sim, Senhor! Ela propõe a desconstrução do
termo enfocando que este é mais uma forma de negação do ser mulher
feminina dentro da sociedade patriarcal, e também da anulação de sua
identidade, “observando a importância da linguagem na manutenção das
diferenças entre os sexos e sua implicação ideológica”. Assim, desconstrução
terá como resultado uma “equidade entre homens e mulheres e o fim de uma
era patriarcal”.
Entendida a frase mulher macho sim senhor, como uma afirmação da
inexistência de um símbolo feminino nessa sociedade patriarcal e um
consequente estabelecimento de valores e deveres aos homens e mulheres,
dando a elas, por exemplo, todos os afazeres domésticos e aos homensmachos o sustento da família, torna-se importante salientar a postura do
cangaceiro Lampião que em 1930 introduz no seu grupo, sua companheira,
Maria Bonita.
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O cangaço pode ser entendido não só como um mundo particular, mas
como um sistema de pensamento8, uma feitura de novas formas de linguagem
que se constituiu na transformação da prática discursiva9 patriarcal através de
suas regras e da forma que o sertão impunha a condução de suas vidas. Não
comungam da mesma ordem que distribui trabalhos característicos a
masculinidade e feminilidade, pois, até então, o fato de pertencer a um grupo
de bandoleiros nômades implica na não constituição de uma família (sendo
assim, não haveria mulheres no grupo), não era permitido ao cangaceiro
manter uma relação estável com uma mulher, sob alegação de risco a
integridade do bando, haja vista que essa pudesse sob tortura entregar o
paradeiro dos bandoleiros, muito menos, que essas pudessem acompanhá-los
nas longas jornadas de caminhadas e lutas10.
Assim, analisando o sistema funcional (modelo) cangaço, sempre foi
papel masculino “cuidar do lar”: lavar roupas, cozinhar, costurar - todas as
práticas que seriam (patriarcalmente) das mulheres eram desempenhadas
pelos homens, que eram completamente responsáveis pelo trato das tarefas
diárias. Assim como num grupo militar, estando em constante conflito, não
seria nada seguro buscar roupas e comida pronta fora do coito ou do
esconderijo no mato ou mesmo ter mulheres no bando que cuidassem dessas
tarefas, pois estas eram consideradas lentas, impróprias para compor uma
milícia armada e combater como homens.
A antiga decisão do “Sinhô” Pereira, ex-chefe de Lampião, de organizar
um grupo formado somente por homens, ajudou na transformação do
discurso patriarcal formando-se um discurso do Cangaço, um modelo que
surge dentro do patriarcado e caminha ao lado deste, porém, com as novas
práticas introduzidas por Virgulino. Um modelo de comportamento restrito,
característica que a priori exclui mulheres, porém esta relação de exclusão
acaba moldando esse espaço, favorecendo a ascensão feminina nesse meio,
dando espaço para que a mulher se portasse de forma distinta da que era
imposta no meio social.
O meio sertão de viver é estar sempre buscando adaptações para que se
possam ter opções de subsistência. A moralidade é sempre adaptada as
FOUCAULT, Michel. Annuaire du Collège de France, 71 année, p. 245-49: Histoire des
systèmes de pensée. Termo extraído do resumo dos cursos dados no collège de France.
9 Ibdem
10 Diferentemente de um grupo militar, que era constituído somente por homens, porém, tinham
suas famílias, voltavam para casa, e continuavam a exercitar os valores patriarcais vigentes à
época.
8
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necessidades desse povo, sendo assim, os valores existentes na divisão de
tarefas
da
sociedade
“comum”
são
extirpados
dentro
do
cangaço,
estabelecendo uma forma cangaceira de ser, viver e se relacionar com seu
meio. Assim os cangaceiros formulam seus próprios conceitos, deixando de
lado (devido as suas necessidades) a essência o ideal patriarcal socialmente
estabelecido sobre o que é papel do homem e papel da mulher, e organiza um
grupo que estabelece uma nova regra (modelo). Diante disso, homens não
mudariam suas obrigações devido à entrada dessas mulheres.
Se dentro da patriarcal família do Coronel, costurar, cozinhar e lavar
eram papéis femininos, no cangaço continuava sendo papel masculino mesmo
com a inserção das mulheres:
A maioria das pessoas julga que as cangaceiras
desempenhavam o papel de dona-de-casa no mundo
estranho e controvertido do cangaço. Visualizavam
as cangaceiras fazendo comida, costurando ou
cuidando de crianças. Ledo engano. A comida
sempre foi tarefa dos homens, nos coitos, nos
acampamentos, antes e depois das mulheres serem
admitidas. [...] Das mulheres, ao que se sabe
através da narrativa delas próprias e dos
companheiros sobreviventes, somente Dadá, às
vezes, ajudava na distribuição da comida ao pessoal
do grupo, e ao estar Lampião presente, este pedialhe que o fizesse. A grande maioria esperava ser
servida. Até mesmo que lhe dessem a comida na
boca, como o faria Zé Baiano com sua amada.
(ARAÚJO, 1985, p. 239)
Assim, relembrando o verso da canção: “Acorda Maria Bonita, levanta
vai fazer o café! Que o dia já vem raiando e os cangaceiros já estão de pé”,
podemos ver certa contradição com o que se praticava. Como afirma Araujo
(1985) não que as mulheres fossem proibidas de qualquer trabalho, mas,
mesmo após o seu ingresso dentro do grupo de Virgolino, a comida e os
afazeres do “lar” continuaram sendo feitos pelos homens do bando.
A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA FACE FEMININA
Resgatados os primórdios do cangaço e a constituição de valores
referentes a este meio de viver, concluiremos com o processo de formação da
identidade de uma cangaceira, analisando os símbolos que constituem uma
nova forma de ser mulher no sertão nordestino brasileiro, desmistificando o
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aspecto de mulher-macho e constituindo uma nova forma feminina de ser
mulher; cangaceira.
Albuquerque Jr (2003, p. 193), em sua obra: Nordestino uma Invenção
do Falo, no capítulo sobre a feminização da sociedade, aborda uma
transformação desde o império até a república das práticas patriarcais: “o
império era homem, a república era mulher”. Uma modificação que é visível
mais a leste, pelo litoral, completamente influenciada pelos ditos europeus,
onde a família patriarcal entra em declínio no final do século XIX, abrindo
espaço e sendo “substituída, paulatinamente, pela família nuclear burguesa”.
Em seu trabalho, Albuquerque Jr (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p.
101) sempre faz referência à Freyre e seu conceito de patriarcado:
Freyre entende que outro fator decisivo para o que
ele identificou como crise da sociedade patriarcal foi
a vitória progressiva da cidade sobre o campo. [...] A
cidade passa a ditar modas, a difundir idéias, a
alterar a própria sensibilidade social cada vez mais
voltada para o novo, para o moderno, para o
artificial, para o não-famliar.
A cidade, palco do capital, começa a ditar as regras, porém, para o
sertão nordestino essas idéias não chegam com facilidade e quando chegam
não são bem recebidas. Tem-se a construção de uma imagem de nordestino
macho, aquele que luta contra a feminização da sociedade:
O mundo masculino parecia se bastar a si mesmo, ser
um mundo fechado, do qual não deveriam fazer parte as
mulheres, a não se em momentos e espaços específicos e
quando fossem requisitadas, embora, numa sociedade
rústica e agressiva como a do Nordeste tradicional, as
mulheres pareciam ter que se masculinizarem também.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 247)
Há uma visível dicotomia entre o litoral e o sertão, onde os valores são
referentes às necessidades e debates regionais. No litoral, capitalizando-se,
industrialmente almejando uma ascensão, a presença da família nuclear
burguesa favorece a um destaque dessa mulher-república. Para o sertão,
ainda mais o sertão nordestino, em crise, torna-se extremamente necessária a
preservação do macho, daquele ser central que emana poder. Uma crise que
vai desencadear no fim de uma sociedade de um núcleo patriarcal para uma
sociedade individual, vigilante, burocrática.
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É dentro dessa confusão de sentimentos e modificações nas instituições
de poder que surge uma figura com idéias no mínimo revolucionárias para sua
época. Virgolino Ferreira da Silva, O Lampião, a própria imagem da
preservação do cabra macho, torna pública a participação das mulheres em
seu grupo e sub-grupos de cangaceiros na década de 1930. Uma atitude que
gera “estranheza para a população geral”, como cita o Sargento Elias Marques
de Alencar11, 94 anos, (que participou da volante que foi designada para
exterminar o grupo de Lampião) e sua esposa Maria Pereira de Alencar, 87
anos.
Em
1930,
ano
em
que
Maria
Bonita
ingressou
no
cangaço,
respectivamente tinham 16 e 9 anos. Aos 20 anos Elias ingressa na Polícia
Alagoana, nessa época já era casado com Maria Pereira. O Sargento Elias vive
até hoje com as lembranças “dessa época”. Sempre emocionado, mesmo com
uma rouquidão que atrapalha sua fala, não deixou que nada o fizesse
esquecer os momentos em que foi “herói”.
Elias conta que o ingresso de mulheres no grupo de cangaceiros não foi
bem visto dentro da sociedade em geral e principalmente não apoiavam ou
valorizavam uma mulher que fazia parte do cangaço. Porém, o poder dos
cangaceiros, principalmente de Lampião, outorgava uma posição favorável a
estas mulheres, sendo assim, o que era comentado pela população, acabava
por perder-se no temor aos cangaceiros.
Sua esposa, Maria Pereira, muito mais lúcida, citou detalhes que são
chave para a construção de um estereótipo da cangaceira. Ela relata que na
região em que vivia, Piranhas – AL, a população geral era muito pobre, sem
recursos, porém, as mulheres que viviam no cangaço tinham aparatos que
mulheres ricas da região não tinham. Um exemplo é uma máquina de costura
Singer, posse do grupo de Lampião. Era um ambiente perigoso, mas que
proporcionava possibilidades e recursos que em outro ambiente (situação)
essas mulheres não haveriam de conseguir.
Analisando assim os retratos da mulher do sertão nordestino descritos
por Falci (2004) com a entrevista cedida por dois sujeitos que participaram
ativamente na época que é foco deste trabalho, percebe-se uma confluência
nos discursos.
Muitos foram roubados, violados, assassinados, tanto homens quanto
mulheres, porém, essa mulher sertaneja que se permitiu enxerga nesse meio
cangaço não só uma forma de amar, mas de poder ser mulher sem
11
Entrevista cedida ao autor. 2008.
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determinadas barreiras impostas pelo patriarcado. O cangaço favoreceu para
que estas mulheres fizessem uma diferença dentro do seu meio. Modificação
essa que já estavam fazendo em outros núcleos influenciados pelos ditos
burgueses europeus e que no sertão, até então, não tinha experimentado
aparecer de forma tão insurgente. A formação de um nordestino cabra macho
como revolta à feminização da sociedade negou a proliferação de ideais e da
possibilidade de ascensão. Um Nordeste em crise não viabilizava essa quebra
valores.
Diante disso, uma hipótese para a modificação do discurso do cangaço
foi o constante contato de Lampião com a capital e com tudo que era novidade.
Os costumes europeus faziam parte da vida daquele cabra macho sertanejo. O
perfume francês, o uísque e o conhaque, o armamento e principalmente a
visão do local, o contato com gente da capital, podem ter influenciado e
favorecido o ingresso das mulheres no seu grupo. Fora isso, o sucesso advindo
das suas façanhas heróicas, que lhe propiciava o título de Rei, dava brecha
para que ele fizesse o que bem entendesse.
Sendo assim, Maria Bonita foi a escolhida ou seria Lampião o escolhido
por ela? Também não se pode descartar a hipótese sentimental para que a
inclusão ocorresse. Porém, analisaremos o aspecto social de Maria Bonita para
entender também seus possíveis interesses. Era de uma típica família de
roceiros do interior da Bahia, lugar conhecido como fazenda Malhada da
Caiçara. Foi casada com um sapateiro, mas logo se separou. Em 1928,
Lampião esteve na sua fazenda, e somente dois anos depois é que este a levou
para o seu grupo. Nos estudos sobre o cangaço não há descrição que revele
alguma contrariedade partindo de Maria; ela foi por livre vontade.
Foi a primeira, e é provável que não tivesse certezas do que poderia lhe
acontece. Porém, sendo mulher do Rei do Cangaço, não seria mais uma
cunhã, amasia, amante, que estava em sua casa esperando o dia em que o seu
homem (cangaceiro) passasse novamente por lá. Ela era parte do grupo, e
depois dela, muitas outras puderam participar.
A Mulher Cangaceira estabelece assim uma extrema quebra nos valores
patriarcais preservados na sociedade do sertão nordestino brasileiro, pois
dentro do grupo não havia um papel secundário, tarefas pré-estabelecidas. Se
estas cozinhavam ou costuravam, assim o faziam por sua própria vontade,
não porque era obrigatoriamente uma tarefa de mulher. Se o homem fazia
estas tarefas, não implicava em que estes fossem classificados como mulheres,
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 133
ou como menores pelas atividades “domésticas” que desempenhavam. O
cangaço ativa um mecanismo de poder que viabiliza uma feminização social.
Com o fim do Cangaço, entre 1938-1940, perpetua a história de
mulheres que durante oito anos praticaram e participaram de uma
desconstrução, tanto das praticas referentes aos homens, quanto das praticas
referentes ao que é ser mulher, ajudando a construir uma modificação na
estrutura dos discursos patriarcais.
De certo, as cangaceiras não tiveram como objetivo uma revolução, uma
união pela equidade, porém, seus atos, por mais isolados que sejam, dentro do
contexto já descrito, são a representação do princípio da modificação nas
práticas e discursos de gênero no Sertão.
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Paulo: Traço Editora, 1985.
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Página 135
A IMPRENSA DERRUBA O GOVERNO GOULART (1963-1964)
Simão Alves Tannous
.
INTRODUÇÃO
A compreensão do papel do jornalismo na derrubada do governo de
João Goulart merece incorporação aos esquemas explicativos que estudam o
processo da queda do regime constitucional em 31 de março de 1964.
Observando a obra de Francine Grazziotin, percebemos que a retomada do uso
do jornal como fonte histórica se deu a partir dos anos setenta no Brasil. Para
o autor:
A possibilidade de abordar novas temáticas, tais como
estudo de gênero, de relação de trabalho, a „história dos
vencidos‟ em geral, deram espaço também para os
estudos regionais e a chamada microhistória. Com essa
busca pelos temas regionais aumentou também a busca
por novas fontes [...]”1.
O uso do jornal possibilita a análise do universo das relações pessoais e
políticas das mais diversas regiões, além de poder acompanhar a tomada de
posição no contexto macro e micro da região estudada. É relevante a
capacidade da imprensa em encaminhar o debate sobre determinados
assuntos, interferindo no rumo dos acontecimentos e obrigando os atores ou
instituições a se posicionarem.
A década de 1960 foi marcada por movimentos de renovação cultural
impregnados de grande politização e radicalização, tanto por parte da direita e
extrema direita, quanto da esquerda e extrema esquerda. Foi neste contexto
que a mídia conheceu o apogeu do jornalismo político, que acompanhava
reivindicações e contestações político-ideológicas. Segundo Alzira Alves de
Abreu, outra característica da imprensa:

Licenciado e Bacharel em História, mestrando em História Social pela Universidade Federal da
Bahia.
1 GRAZZIOTIN, 2005, p. 1.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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“[...] é que, até os anos 1960, quando a indústria de
comunicação de massa era incipiente, ela podia ser
considerada partidária. Embora os jornais não fossem
sustentados por qualquer facção política, refletiam os
interesses ideológicos dos partidos, faziam parte de uma
imprensa que tinha uma concepção missionária de sua
atividade”2.
Na década de 1960, o engajamento da imprensa se dava em um
contexto político de grande exaltação contra o comunismo e contra a
Revolução Cubana. Assim, a mídia foi uma das responsáveis pela divulgação
do fantasma comunista, exacerbando a divulgação de notícias sobre um caos
administrativo que rondava o país, sendo necessário o restabelecimento da
ordem. Ainda, é importante refletir que os posicionamentos contra o
comunismo e as mudanças da estrutura da sociedade ocorriam devido à visão
conservadora dos proprietários de jornais e de alguns jornalistas.
Analisando os estudos de Alzira de Abreu, podemos destacar que num
curto espaço de tempo a imprensa adotou vários posicionamentos. Em um
primeiro momento, logo após a renúncia de Jânio Quadros, a maioria dos
jornais abriu espaço para discursos favoráveis a preservação do regime e a
posse
de
João
Goulart.
Posteriormente,
a
mídia
apoiou
a
solução
parlamentarista (02/09/1961) e, depois, o plebiscito (06/01/1963). A seguir,
com a ocorrência da Revolta dos Sargentos (12/09/1963) a imprensa começou
o distanciamento do governo de João Goulart, apresentando como solução o
impeachment do presidente e, portanto, sua substituição dentro da legalidade.
Por fim, com o Comício das Reformas (13/03/1964), o Levante dos
Marinheiros (26/03/1964), a reunião dos sargentos no Automóvel Clube do
Rio de Janeiro (30/03/1964) e a intensificação da mobilização ideológica
quando o governo acabou perdendo o apoio dos grupos de centro, aproximouse da esquerda levando a maioria dos jornais (FERREIRA, 2006, p. 108) a
pedir a substituição do governo dentro dos preceitos constitucionais, enquanto
a minoria exigiu (ABREU, 2006, p. 108) a intervenção militar como única
forma de restabelecer a ordem.
2
ABREU, 2006, p. 108-109.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 137
Não podemos esquecer que o Executivo nacional-reformista do período
presidencialista
do
Governo
João
Goulart
e
seu
desenvolvimentismo
ameaçavam a industrialização capitalista que fora financiada pelas políticas
inter-relacionadas de associação do capital estrangeiro e da exploração da
força de trabalho. Agindo contrariamente aos anos anteriores, o governo
brasileiro que, beneficiava a expansão e corporações multinacionais, objetivou
redirecionar o tipo de produção, estimulando as indústrias de porte médio e
setores agrários. Por outro lado, as empresas estatais responsáveis pelo setor
de infraestrutura começam a acompanhar a crise e decair. Enfim, os
interesses multinacionais-associados e as demandas das classes médias
começavam a questionar o posicionamento do governo Goulart.
O mandato do presidente João Goulart foi cindido pelo impasse sobre a
forma de governo, ou seja, parlamentarismo e presidencialismo. Seu governo
tinha de estar atento aos compromissos políticos com os trabalhadores, estava
encurralado pelos anseios da elite nacional e pelo contexto internacional da
Guerra Fria. No âmbito econômico, a instabilidade político-institucional
refletia-se e estava intimamente ligada à execução da política econômica de
curto prazo que visava à estabilização da economia, mantendo sempre vivas as
metas de crescimento com reformas sociais.
É importante enfatizar também o impacto da mobilização anticomunista
no período anterior a derrubada de Goulart. O temor ao comunismo teve papel
preponderante no processo de arregimentação dos grupos adversários ao
governo, fornecendo o principal argumento que unificou os setores da
oposição. Desde a renúncia de Jânio Quadros em 1961 o conservadorismo
anticomunista já se sentia incomodado com a presença de João Goulart,
segundo Rodrigo Patto Sá Motta o “episódio levou os anticomunistas ao
desespero, pois o vice-presidente era um político conhecido por cultivar
ligações com a esquerda”3.
Observando a relação entre a imprensa e o governo presidencialista de
João Goulart podemos destacar duas relevantes análises. A primeira aponta
para a transformação ocorrida na mídia dos anos 1960. Os jornais passaram
a questionar o papel do jornalismo e do jornalista, incorporando a idéia de
objetividade,
neutralidade
e
imparcialidade.
Outro
aspecto
aponta
a
necessidade de compreensão do papel do medo de uma propagação do
3
MOTTA, 2006, p. 129.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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comunismo no país, entendo como este temor se relacionou com o escândalo
político no governo João Goulart.
É sobre estas duas possibilidades de entendimento da relação entre
imprensa e o governo presidencialista de João Goulart que tentaremos
analisar.
O APOGEU DO JORNALISMO POLÍTICO
No contexto dos anos 1960, havia um engajamento político expresso em
prol de uma sociedade mais justa e igual, o que poderia ser alcançado através
da orientação dos diversos movimentos políticos através de um regime
democrático ou de um regime socialista. Foi nos anos 1960 que conhecemos o
apogeu do jornalismo político, a imprensa acompanhava as reivindicações e
contestações político-ideológicas posicionando-se e opinando.
Monique Benati Rangel destaca a mudança de influência estrangeira
ocorrida no Brasil. O jornalismo brasileiro até a década de 1950 tinha
aproximações com a cultura européia, a partir de então, as relações entre
Brasil e Estados Unidos aumenta, levando a uma ascendência da cultura
norte-americana sobre o Brasil.
A influência dos Estados Unidos levou a uma nova forma de fazer
jornalismo. A mídia norte-americana adotou no início do século XX as idéias
de objetividade, imparcialidade e neutralidade. Influenciados pelas praticas
norte-americanas, a imprensa brasileira tenta incorporar em seus diários os
mecanismos que estabelecem a objetividade. Buscando uma “exclusão de
valores pessoais nas notícias, a busca dos dois lados na história, a não
utilização de adjetivos e de juízos de valor, o uso de aspas, a separação de
„opinião‟ e da „informação‟, etc.”4
O termo objetividade jornalística levanta inúmeras questões. Não
devemos esquecer que esta questão perpassa pelos interesses institucionais,
profissionais e sociais pretendidos. É necessário compreender que a relação do
jornalista com o mundo que ele analisa é mediada pelos interesses de
determinados contextos. A notícia acaba sofrendo influência de fatores como:
“o contexto histórico, o contexto jornalístico, os interesses práticos que
permeia a atividade, etc.”5
4
5
RANGEL, 2005, p. 4.
RANGEL, 2005, p. 8.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 139
Com a tomada do discurso da objetividade o jornal se afirmou como fala
autorizada, tornando-se uma fonte segura, garantida, não havendo a
necessidade de buscar outras fontes de notícia. A imprensa torna-se um
espaço de confiança para o leitor.
A análise do jornal pelo historiador não descartar estas preocupações
que envolvem o contexto estudado, o documento histórico não é algo puro,
além do mais, ele é o reflexo de uma época, assim sendo, para Le Goff:
Mas, do mesmo modo que se fez no século XX a crítica da
noção de fato histórico, que não é um objeto dado e
acabado, pois resulta da construção do historiador,
também se faz hoje a crítica da noção de documento, que
não é um material bruto, objetivo e inocente, mas
exprime o poder da sociedade do passado sobre a
memória e o futuro: o documento é monumento. Ao
mesmo tempo, ampliou-se a área dos documentos, que a
historia tradicional reduzia aos textos e aos produtos da
arqueologia, de uma arqueologia muitas vezes separada
da história6.
Não podemos esquecer também, que a imprensa é um espaço de luta
pela preservação de uma memória. É o local onde podemos analisar que fatos
sociais tornaram-se sólidos e duráveis. O estudo da mídia imprensa é um bom
espaço para o estudo da política, no entanto é necessário o reconhecimento
também de outras representações sociais como a memória ou memórias
coletivas, bem como outras praticas discursivas associadas ao poder. Jacques
Le Goff aponta que a memória coletiva é disputada pelas forças sócias na
tentativa de conquista do poder, assim “Tornar-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos
indivíduos que dominaram e dominas as sociedades históricas”7.
Os jornais impressos da época são um bom demonstrativo da disputa
pela memória que se quer preservar. A maioria dos editores e donos de jornais
associava-se aos interesses de grupos conservadores, e num contexto de
exacerbação do comunismo, deram mais atenção às notícias relacionadas à
6
7
LE GOFF, 2003, p. 9-10.
LE GOFF, 2003, p. 442.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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crise do Executivo do que as conquistas e tentativas de reformas. Não devemos
esquecer que estes administradores eram homens influentes que usavam seus
veículos de comunicação como arma política. Este jornalismo panfletário
buscava a adesão dos leitores as suas posições através de imagens e alusões,
utilizando para isto expressões fáceis de serem identificadas e repetidas, como
“governo do mar de lama8”.
A mídia acaba sendo um bom espaço para perceber qual a memória que
se tenta manter da administração do presidente João Goulart. Não devemos
excluir a existência de uma imprensa alternativa, que tentasse demonstrar
conquistas e possibilidades de transformações pretendidas pelo presidente e
seus assessores. No entanto como a maior parte dos integrantes dos jornais
impressos acreditava no seu trabalho como importante instrumento de
questionamento e reivindicação de transformações da sociedade, além de
estarem em sintonia com grupos que questionavam as atitudes do presidente
Goulart, grande parte da mídia acabou destacando e preservando uma
imagem desastrosa do presidente.
Entre os anos 1950-1960 podemos perceber importantes mudanças na
imprensa brasileira. A linguagem buscava ser mais objetiva, a notícia passa a
ocupar mais espaço do que a opinião e houve o incremento de inovações
gráficas. Alzira de Abreu destaca que durante o governo Jânio Quadros, a
aprovação da instituição n° 204 da Superintendência da Moeda e do Crédito
(Sumoc) determinou algumas mudanças nos jornais impressos. A importação
do papel era feita com subsidio do governo, a medida extinguiu o cambio
favorecido para a imprensa, o que levou a um aumento excessivo dos custos.
Sendo
assim,
alguns
jornais
tradicionalmente
contrários
a
Goulart
aproximaram-se do governo como forma de sobrevivência.
As mudanças ocorridas na imprensa ocorriam no contexto de grande
exaltação contra o comunismo e contra a Revolução Cubana. Ao mesmo
tempo, as organizações de esquerda se reestruturam através de novas
orientações ou criação de novos grupos com tendências mais radicais. O
Partido Comunista Brasileiro (PCB), ainda na ilegalidade, alcança importante
influência tanto no meio sindical como no jogo político-partidário. No mais,
não
podemos
esquecer
que
as
posições
político-ideológicas
contra
o
comunismo e as mudanças das estruturas da sociedade expressas na mídia,
8
RANGEL, 2004, p. 10.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
Página 141
refletiam uma visão conservadora dos proprietários de jornais e de alguns
jornalistas.
A IMPRENSA E A QUEDA DO GOVERNO GOULART
O campo jornalístico é um espaço estratégico no destacamento de um
acontecimento. Como analisamos, os jornais através de seus proprietários e
integrantes era um espaço de levantamento dos debates políticos. Devido a
esta importância de condução dos fatos, os políticos também tentam
influenciar os meios de comunicação. Assim, compreender o jornalismo como
uma força poderosa no encaminhamento de discussões sobre determinados
assuntos pode ajudar a perceber o quanto a imprensa é decisiva em
determinados momentos de crise.
Devido a uma visão conservadora dos seus proprietários, a maioria dos
jornais da década de 1960 adotava uma visão contra o comunismo, bem como
as mudanças na estrutura da sociedade.
Nos
anos
1950-60
a
imprensa
brasileira
passa
por
grandes
transformações. Estas mudanças ocorriam num contexto de exaltação contra
o
comunismo
e
a
Revolução
Cubana.
Neste
período,
houve
uma
reestruturação das organizações de esquerda, novas orientações e criações de
novos grupos no país, com tendências políticas mais radicais. O Partido
Comunista brasileiro (PCB), ainda na ilegalidade, tinha bastante influência no
meio sindical e no jogo político-partidário.
Os grupos de direita e extrema-direita organizavam-se em torno do
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), do Movimento Anticomunista
(MAC), da Tradição, Família e Propriedade (TFP), do Instituto Brasileiro de
Ação Democrática (IBAD), do Grupo de Ação Patriótica (GAP), entre outros. O
anticomunismo foi usado para amedrontar a classe média, propagando a idéia
de que as “reformas de base” do governo Goulart seriam uma passagem para o
regime comunista.
Os jornais, com maior ou menos intensidade, participavam da pregação
anticomunista. O engajamento em torno de um contexto político contrário ao
comunismo e a Revolução Cubana era marca de alguns proprietários e
jornalistas.
Não devemos esquecer que a década de 60 foi um momento delicado
para liberais e conservadores no Brasil. A crise se deu em 1961 com a
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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renúncia de Jânio Quadros, estabelecendo um terreno fértil para os
conservadores. Os anticomunistas desesperaram-se, pois para alguns o vicepresidente era um político conhecido por suas ligações com a esquerda, é
importante destacar que sua eleição teve o apoio dos comunistas. Assim, os
ministros militares declararam-se contrários a posse de Goulart, o impasse foi
resolvido com a solução parlamentarista.
A solução não impediu que a direita se mobilizasse, a conjuntura foi
marcada
pela
proliferação
de
organizações
anticomunistas.
Nos
anos
anteriores ao golpe de 64 surgiram várias entidades desta natureza, em
muitos casos de forma passageira. Temos com exemplo a Cruzada Brasileira
Anticomunista e a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade (TFP). Algumas entidades conservadoras tinham profundos
vínculos com os valores cristãos, é o caso dos Voluntários da Pátria para a
Defesa do Brasil Cristão. Parte destas organizações eram responsáveis pela
divulgação de propagandas contrarias ao comunismo, era o exemplo da
Cruzada
Cristã
Anticomunista.
Existiam
as
organizações
claramente
terroristas, como o Movimento Anticomunista (MAC). Também houve o
envolvimento de parlamentares que fundam a Ação Democrática Brasileira
(ADP) que tinham como objetivo agregar políticos na luta contra o comunismo.
A década de 60 não marcou a politização e radicalização apenas dos
conservadores contrários ao comunismo, à esquerda e a população também
acompanhavam este processo de posicionamento e cobranças no cenário
nacional. Houve uma intensa mobilização da sociedade pelas reformas sociais,
buscando a efetivação de uma reforma agrária, a luta contra o capital
estrangeiro, liberdade sindical e luta salarial.
Logicamente, os conservadores não viam a luta popular por melhorias
como algo saudável, para eles o governo era conivente e dava espaço à
subversão. Refletir sobre as decisões do governo João Goulart implica não
desprezar
todas
as
forças
políticas
que
atuavam
naquele
contexto,
principalmente os conservadores (representados fortemente pela União
Democrática Nacional - UDN), os progressistas (esquerda) e os comunistas
(especialmente através do PCB, enraizados nos órgãos sindicais e organizações
sociais). Todos tentavam pressionar o presidente da República no limite da
ordem institucional.
Infelizmente,
a
campanha
dos
conservadores
conseguiu
ofuscas
inúmeras realizações do governo João Goulart: política externa independente,
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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implantação de uma política nacional de saúde, programa de emergência para
a educação, financiamento para 100 mil famílias adquirirem casas próprias,
regulamentação do Estatuto do Trabalhador Rural, entre outras. Análises
mais aprofundadas demonstram que o governo tinha metas e um projeto
ambicioso.
O governo de Goulart foi marcado pelas divergências entre grupos
políticos heterogêneos, a parte conservadora não aceitava as reformas sociais
que poderiam provocar mudanças no nosso capitalismo excludente e desigual.
Do outro lado, o compromisso assumido com a classe trabalhador impedia
uma política de arrocho salarial.
Com a vitória de Jango no plebiscito de 1963, os conservadores
esperavam que o presidente pudesse amenizar as tensões. Considerando como
problemas sociais mais sérios a crise política e a crise econômica, eles
voltaram a acirrar as críticas ao governo após a decepção nos resultados
iniciais do governo. No plano econômico a esperança de estabilização decai
com o fracasso do Plano Trienal. A decepção é ainda maior no plano político, o
fracasso de pacificação política foi provocado em grande parte pelas ações de
grupos de esquerda próximos ao presidente, ganhando grande destaque o
papel de Leonel Brizola. Para piorar a situação, a partir dos meados de 1963
intensifica-se uma onda de greves, levando os conservadores a questionar a
capacidade do presidente na manutenção da ordem.
Consolidado o presidencialismo no plebiscito de janeiro de 63, Goulart e
seu grupo tinha uma falsa idéia de que grande parte do país era favorável a
sua política de reformas de base. Não devemos esquecer, que as mudanças
propostas pelo governo incluíam o controle sobre o capital estrangeiro,
nacionalização de setores básicos da economia, direito de voto a analfabetos e
praças de pré, extensão de direito de elegibilidade a todos os militares e a
legalização do Partido Comunista.
Neste contexto, o discurso contra o regime cubano começou a ter mais
espaço nos jornais. A difusão do perigo comunista era feita também por
produções de textos encartados nos jornais comerciais, material produzido por
entidades voltadas para a propaganda anticomunista,como o Ibad e o Ipês.
Durante a campanha de outubro de 1962 para a renovação do Congresso,
ocorre uma intensa mobilização dos conservadores contra os candidatos
supostamente “comunistas”. Toda este preocupação podia ser acompanhada
nos jornais diariamente.
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A deterioração do quadro político e econômico colocou o presidente
numa situação difícil. Goulart decepciona os progressistas e comunistas por
não conseguir aprovar as reformas de base, especialmente a reforma agrária.O
medo e a decepção do campo centrista e conservador resultou numa
aproximação com as posições de direita anticomunista. No final de 1963, os
setores conservadores e liberais estavam unidos e mobilizados contra a
esquerda, intensificando a campanha anticomunista.
Com a Revolta dos Sargentos (12/9/1963) acelera-se o afastamento e a
crítica da imprensa sobre a política do governo Goulart. A rebelião provocada
por cabos, sargentos e suboficiais da Marinha e Aeronáutica, foi motivada pela
decisão do Supremo Tribunal Federal de manter a inelegibilidade dos
sargentos para os órgãos do Poder Legislativo. A rebelião juntamente com o
apoio de Goulart as reivindicações dos sargentos levantaram a questão da
disciplina militar, aumentando a desconfiança dos oficiais mais graduados das
Forças Armadas de que o presidente preparava um golpe para permanecer no
poder. O discurso sobre o perigo comunista e da cubanização do Brasil
começou a se intensificar nos principais jornais do país.
O ano de 1964 iniciou-se num clima de incertezas, com suspeitas da
possibilidade de um golpe pelo presidente Goulart. Havia dissensões entre os
grupos tanto de esquerda quanto de centro e direita. Diante de tal situação o
presidente decidiu apoiar a esquerda radical e promover comícios nas
principais cidades do país a fim de buscar apoio para as reformas de base.
Sendo que o primeiro ocorreu no dia 13 de março no Rio de Janeiro na Central
do Brasil. Jornais, políticos, Igreja e empresários trataram de relacionar o
comício com o perigo do comunismo no país. Depoimentos de personalidades
públicas e militares sobre o tema comunização do Brasil ocupavam diversas
páginas da imprensa impressa.
As especulações anticomunistas ganharam força no início de 1964,
Goulart aproximava-se da esquerda e dava indícios de que pretendia entrar
em choque com o Congresso e mesmo dar um golpe. Com o apoio aos
sindicatos, o Comício da Central, a Revolta dos Marinheiros, e outros
acontecimentos, o clima era propício para a crença de um risco iminente do
comunismo. Neste quadro de incertezas e radicalização, até segmentos sociais
que apoiaram a ascensão de Goulart e a proposta de reformas voltaram-se
contra o presidente.
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Diante do exposto, o temor ao comunismo foi o cimento da mobilização
antiGoulart, o elemento que unificou setores diferenciados da sociedade numa
frente favorável a derrubada do presidente. Não devemos esquecer que a
imprensa foi um dos principais veículos de divulgação do fantasma comunista.
O medo do comunismo foi o eixo central que uniu imprensa, militares, Igreja,
classe média, empresários rurais e urbanos e diferentes setores da sociedade
na derrubada do governo de João Goulart. Para a imprensa a intenção não era
o estabelecimento de um regime autoritário, mas sim o restabelecimento da
ordem, da hierarquia e a eliminação do perigo comunista. Este risco foi
construído ao longo de décadas no Brasil, no entanto, na conjuntura da
Guerra Fria houve uma expansão para todos os setores das camadas sociais.
CONCLUSÃO
O período do governo João Goulart foi cercado por contradições. Os
interesses e demandas de vários grupos dificultam um entendimento mais
consensual sobre o período. Neste sentido, sobra ao presidente uma imagem
de um político sem rumos definidos. Contudo, uma análise mais específica do
contexto demonstra a necessidade do Executivo de responder aos interesses,
pressões e questionamentos dos mais variados grupos da sociedade.
Não devemos esquecer também, que além da tentativa de se fazer uma
imprensa mais participativa, a mídia impressa é uma mercadoria. Segundo o
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) cerca de 40% da população
entre 15 anos ou mais era analfabeta nos anos 609. Infelizmente, a educação
no contexto abordado era um privilegio em grande parte da classe média e das
elites do país. Sendo assim, a imprensa está interessava em abordar as
preocupações dos seus consumidores. Daí surge o interesse nos temas como
comunismo e subversão, reforma agrária e terras ocupadas, e demandas da
classe média, assuntos quem em grande quantidade preenchiam as páginas
dos jornais daqueles anos.
Uma mídia mais engajada nos debates políticos e os interesses
classistas contribuíram na construção das opiniões jornalísticas sobre o
governo presidencialista de João Goulart. A idéia de um presidente confuso e
de opiniões variáveis esconde as dificuldades de Goulart em responder todas
Dados retirados do site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP) em 18 de Julho de 2009.
9
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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as demandas postas naquela conjuntura. Por outro lado, a falta de
entendimento
daquele
contexto,
conjuntamente
com
interesses
que
pretendiam ofuscar uma tentativa de mudança no nosso capitalismo
excludente ajuda a consolidar uma memória negativa do Executivo entre os
anos de 1963-1964.
O jornal impresso pode ser um dos principais espaços para o
entendimento destas contradições e interesses que cercavam a conjuntura
analisada. Nele podemos compreender as visões políticas dos donos e
representantes de um determinado veículo impresso. E somente uma análise
mais cautelosa permite entender os meandros de um contexto marcado por
lutas de classe e interesses internacionais cercados pela Guerra Fria, sem cair
na idéia de falsa objetividade pretendida pela mídia.
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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OS ÚLTIMOS PASSOS DE UMA DEVOÇÃO: INDÍCIOS DA RELIGIOSIDADE DE
UM NOBRE SERGIPANO OITOCENTISTA
Magno Francisco de Jesus Santos1
INTRODUÇÃO
Um velho diante da expectativa da morte convida seu advogado e prepara
seu testamento. Sentado na ampla e ventilada sala o velho resignado descreve
suas intenções, seus últimos desejos. Foi um momento de relembrar a
importância de todos aqueles que o acompanharam ao longo de sua vida e
avaliar o mérito ou não de ser contemplado em seus escritos. Familiares
esperavam o que poderia surgir naquelas páginas manuscritas. Haveria, afinal de
contas, alguma surpresa?
Um momento de tensão pairou em seu casarão. Lembranças afortunadas
o perturbaram e reafirmaram sua decisão. Era a hora de repartir sua fortuna
entre familiares, sem esquecer de agraciar àqueles que porventura o auxiliaria na
temerosa tentativa de adentrar no reino da salvação: os santos também foram
lembrados pelo devoto benevolente. O mesmo ocorreu com as irmandades e
ordens terceiras. Assim, ele declarou que ―segui a Religião do Christo e sou firme
Catholico Apostólico Romano (TESTAMENTO, 1904).
O
homem
fragilizado
tenta
reafirmar
sua
expressividade
católica
anunciando todo capital simbólico, com títulos e honrarias que denunciavam sua
nobreza. Entre os beneficiados pelo ancião estava uma igreja, a Igreja do Senhor
dos Passos na cidade de São Cristóvão, que recebeu umas apólices de valor
considerável a juros de cinco por cento ao ano2. O barão estava tranqüilo, pois
poderia finalmente morrer em paz. No dia 13 de abril de 1903 o barão expressou
sua decisão:
Mestre em Educação e especialista em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Sergipe
(UFS). Possui publicações acerca da religiosidade sergipana dos séculos XIX e XX, com ênfase para
as manifestações de religiosidade popular, como romarias e peregrinações.
1
Sobre as apólices deixadas ao Senhor dos Passos confira o testamento de Antônio Dias Coelho e
Mello, Barão da Estância. Testamento. Cartório do 1º Ofício. São Cristóvão, cx. 11, nº 77.
2
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Deixo a Igreja de Nosso senhor dos Jesus dos Passos da
cidade de S. Christovão huma apólice de hum conto de réis
de juros a 5% e com os juros desta apólice devem dizer
huma Missa Cantada todos os annos no dia da [ilegível].
Esta apólice ficará em poder do parocho de freguesia e q.
deixa a seo sucam tanto direito de cobrar os preços do anno
q. a de Missa cantada. Não poderá em tempo algum passar
a outro e sem der salão justifica q. a Igreja precisa de
reparos, e neste caso poderá ser negociada (TESTAMENTO,
1903).
Na fazenda Escurial todos sabiam do apreço que o velho Barão da
Estância tinha com o santo protetor da velha capital. As doações foram
constantes e o lugar do barão nas procissões de penitência já era cativo. Desse
modo, não foi surpresa a lembrança que Antônio Dias Coelho e Mello teve de seu
fiel santo devocional. Foi o último ato de gratidão ao santo querido e respeitado.
Partindo da reflexão acerca dos sinais produzidos ao longo do tempo e que
foram deixados, intencionalmente ou não, temos o propósito de compreender a
participação do Barão da Estância nas procissões do Senhor dos Passos na
segunda metade do século XIX e início do século XX. Trata-se de um estudo que
se debruça sobre os vestígios produzidos pelo homem e que sobreviveram às
ações do tempo e da sociedade. São fragmentos de memória que provocam ecos
de uma devoção
Para compreender essa atmosfera religiosa torna-se necessário adentrar
no universo que envolvia a realização da procissão dos Passos, que ao longo do
século XIX se tornou a maior solenidade religiosa da província de Sergipe.
Romeiros pobres, caminhantes pelas estradas da província e senhores de
engenhos do Vaza-Barris compartilhavam dos fiéis que lotavam as estreitas ruas
de São Cristóvão. Um cenário teatral, receado de promesseiros, atores, cenas e
plateia ávida por bênçãos.
1
A CASA DO SENHOR
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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Segundo o romeno Mircea Eliade o homo religiosus tem a necessidade de
caminhar, de ir ao encontro do umbigo do mundo, do santuário (2001). Em
Sergipe oitocentista, essa busca era direcionada a cidade de São Cristóvão,
capital da pequena província até 1855. Todos os anos, ao se aproximar o
segundo final de semana da quaresma, diferentes segmentos sociais rompiam
com suas rotinas ordinárias e adentravam em um universo místico, maculado
pela sacralidade. Era a sagrada semana dos Passos.
Nesses dias, todos os caminhos pareciam convergir na velha capital. A pé
ou em carros puxados por bois, de acordo com as posses de cada um, os
sergipanos caminhavam em busca da proteção da imagem sagrada que os
aguardava na Igreja da Ordem Terceira do Carmo da primeira capital. A jornada
era
longa
e
poderia
durar
vários
dias.
Mas
a
fama
do
santo
era
proporcionalmente grandiosa e o caminho árduo se tornava uma ocasião propícia
para a purificação do corpo para o momento solene: o encontro com o santo de
devoção.
Nos caminhos o assunto principal eram as proezas do Senhor dos Passos,
santo milagroso, dos olhos vivos (a imagem possui olhos de vidro). O relato dos
milagres só aumentava a emoção e a expectativa de poder encontrar a imagem
possuidora de tanto poder e bênção. Milagres e bênçãos não faltavam nos
depoimentos a respeito do Senhor dos Passos de São Cristóvão. A devoção era
consideravelmente difundida na província, mas a atenção maior recaía sobre a
imagem da referida cidade, que teria sido encontrada às margens do rio
Paramopama, que banha São Cristóvão. Observe o depoimento de um
memorialista da localidade:
Um homem praiano, cujo nome não me lembro, encontrou
certo dia, rolando pela costa que fica ao sul da cidade, um
grande caixão, resultado talvez de um naufrágio de alguma
sumaca; elle cuidadosamente rolou para terra, abri-o e
surprehendido ficou verificando a existência de
uma
perfeitíssima Imagem de roca em tamanho natural. O
homem de educação religiosa e muito honesto tomou uma
canoa e nella acomodou o referido caixão, e com outros
companheiros transportou para a velha cidade, o felis e
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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milagroso achado. Foi esta sagrada Imagem ali entregue aos
frades jesuítas Carmelitas que a collocaram em uma
capellinha na Egreja-Ordem Terceira do Carmo, e depois de
longos annos, mudada para o Trono do altar-mor da mesma
egreja (SANTIAGO, 1920, p. 20).
Como se pode perceber, a origem da devoção ao Senhor dos Passos na
primeira capital de Sergipe possui características místicas, pois teria sido
resultante de um achado, ou seja, na visão religiosa o santo é que teria escolhido
a localidade para estabelecer morada. Situações semelhantes foram comuns na
maioria dos santuários católicos do Brasil. Entre os de maior apelo popular
quase sempre percebe-se a presença de elementos consagradores que permeiam
a trajetória da devoção. Exemplos não faltam, como os de Nossa Senhora
Aparecida, Bom Jesus de Pirapora e Bom Jesus da Lapa. Certamente essa
origem mítica era mais um dos ingredientes que fortalecia o apelo devocional ao
Senhor dos Passos.
Os passos firmes dos devotos buscavam exasperadamente o encontro com
o sagrado. Eles estavam adentrando em outra dimensão simbólica, em uma nova
temporalidade, sob novo ritmo marcado pela agitação. Além da emoção e
esperança, os devotos carregavam consigo ex-votos, imagens-testemunhos das
benesses alcançadas. Eram os promesseiros que aguardavam ansiosos pelo
segundo final de semana da quaresma para deslocar-se até São Cristóvão no
intuito de depositar seus objetos de agradecimento pelo milagre do santo.
Assim, ao longo de dois séculos, o claustro da Igreja da Ordem Terceira do
Carmo foi transformado em uma verdadeira sala dos milagres, com inúmeros
objetos de agradecimento espalhados nos dois pavimentos, representando a
popularidade que a devoção alcançou em Sergipe.
2 OS PASSOS DA PAIXÃO NA JERUSALÉM SERGIPANA
O principal documento sobre a solenidade de Nosso Senhor dos Passos no
período entre 1886 e 1920 é o Annuario Christovense de Serafim de Santiago. A
obra é um relato detalhado e minucioso da trajetória dos romeiros até o
santuário sancristovense. No texto memorialístico pode ser evidenciado seis
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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momentos, sendo eles: caminhada, chegada e contemplação, depósito, encontro,
despedida e retorno dos devotos.
O primeiro momento descrito por Santiago é o da caminhada. De forma
breve, porém atenta, o autor narra que:
Quando se aproximava o segundo Domingo da quaresma,
dia consagrado a tradicional procissão dos Passos na
legendária cidade de São Christovão, desde cedo e alguns
dias antes, a multidão se dirigia para ali em continua
romaria afim de assistir a dolorosa memoração da tragédia
da rua da Amargura, ‗o encontro da formoza filha de Sião
com seu filho unigenito‘, acto que ainda hoje se celebra na
ex-Capital Sergipana (SANTIAGO, 1920, p. 19).
O relato acima é revelador. O autor demonstra que nas primeiras semanas
quaresmais as estradas que levavam a São Cristóvão ficavam repletas de
romeiros que buscavam participar da celebração dos Passos. A caminhada
descrita apresenta algumas peculiaridades, por se tratar de uma romaria, ou
seja, a busca pela contemplação e experiência com o universo sagrado. Neste
sentido,
a
romaria
representa o
deslocamento
espacial
do
devoto
que
temporariamente afasta-se da realidade cotidiana caótica para adentrar na
ordem
cósmica
sacralizada.
É
a
busca
do
santuário.
Isso
explica
o
comportamento dos romeiros no itinerário entre a sua localidade de origem e a
cidade de São Cristóvão, vista pelo autor como sendo ―romaria com maior
reverência‖. É óbvio que esta versão é a penas um olhar lançado sobre as
estradas que ligavam São Cristóvão às demais cidades nas primeiras semanas da
quaresma. Além disso, Santiago não é um observador qualquer, mas sim um
cidadão sancristovense, católico e acima de tudo, admirador da solenidade de
Passos. É muito provável que o silêncio predominante nem sempre fosse
respeitado, pois em uma longa caminhada a alegria e os risos também deveriam
está presentes, mesmo se tratando de uma romaria de penitência.
Santiago também retrata os diferentes ritmos da romaria. De acordo com o
segmento social ou o voto do romeiro, o deslocamento até São Cristóvão era
vencido por diferentes meios. A penitência era iniciada com o sacrifício da
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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jornada a ser cumprida a pé. No período estudado (1886- 1920) a trajetória
devocional variou com as mudanças nos meios de transportes, levando-se em
consideração que em 1914 foi implantada a ferrovia ligando a Velha Capital às
praias de Aracaju. Com isso, em 1920 Santiago afirmou que:
Hoje que nosso Estado acha-se dotado de uma estrada de
ferro, havendo um trem diário para aquella cidade,
desapareceu a grande influencia dos romeiros costumados,
que alguns dias antes começavam a viajar, uns a pé, outros
em carros puchados a bois, fazendo um agradável descanço
nas margens do Rio Pitanga (SANTIAGO, 1920, p. 19).
Sob a ótica do memorialista, a implantação da ferrovia entre São Cristóvão
e Aracaju resultou na redução de romeiros que seguiam a pé pelas estradas. A
partir de 1914 o trem passou a ser o principal meio de transporte para a
solenidade de Passos, o que não significou o fim dos demais. O que chama mais
atenção no depoimento é a predominância dos romeiros que seguiam a pé até o
santuário no período anterior a 1914. A caminhada rumo ao santuário
representa uma importante simbologia no universo cristão. Em diferentes épocas
e localidades destacaram-se as longas caminhadas para santuários como
Santiago de Compostela, Roma e Jerusalém (BALBINOT, 1998, p. 77). Nos
primeiros dias da quaresma o afluxo de romeiros que adentravam em São
Cristóvão era considerável, como atesta mais uma vez o memorialista local:
No correr da primeira semana da quaresma, principiavam a
chegar muitas famílias de todos os pontos da Província,
principalmente da nova Capital de Aracaju, donde a maior
parte da pequena população era natural de S. Christovão.
Chegava finalmente no sabbado a tarde o Exmo Senhor
Presidente da Província, de seu estado-maior, assim como
um grande número de funcionários públicos gerais e
provinciais e a musica do corpo de policia. Grande era a
concorrência de carros conduzindo famílias a entrarem dia
e noite na velha cidade (SANTIAGO, 1920, p. 20).
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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O depoimento demonstra que o afluxo de romeiros a São Cristóvão no
período da solenidade era realmente considerável. Com a proximidade das
celebrações, os devotos de diferentes segmentos sociais começavam a
chegar à terra do Senhor dos Passos. Nesta ocasião ocorria um dos
principais momentos da solenidade: o encontro dos romeiros com a
imagem do Senhor dos Passos. A relevância deste momento é devido a
interação do fiel com a imagem, o contato íntimo com o desejado universo
sagrado. A contemplação inicial ao pé da charola era peculiar. Na sextafeira da quadragésima a imagem era transportada do Carmo Pequeno para
o Grande, local onde era preparada a charola para a procissão. A imagem
permanecia velada, ou seja, coberta com pano roxo a espera da penitencial
procissão do depósito. A contemplação nesse momento era intensa, pois
durante todo o sábado sagrado os romeiros visitavam a igreja do Carmo
com o intuito de observar e poder tocar ao menos nos pés da imagem. A
contemplação continuava no dia seguinte, após a celebração da missa das
dez, como relembra Serafim de Santiago:
A proporção que os fieis iam entrando no referido templo de
N. S. da Victoria, viam do lado do Evangelho, isto é com
frente à capella do Santíssimo, postos os mesmos dois
cavalletes e sobre elles a rica charola, já sem o encerro do
sabbado à noite; nella achava-se o grande vulto do
Nazareno exposto a veneração dos fies que anciosos
procuravam admiral-o. ali estava elle de joelho em terra no
centro da charola, vestido em rica túnica de gorgurão roxo,
supportando o pezo do grande madeiro, com aquelle rosto
venerável,
os
olhos
injectados
fitos
para
o
chão,
demosntrando a grande agonia cauzada pelo pezo da cruz.
Finda a missa, era repetida a mesma scena dada na egreja
Ordem 3ª do Carmo, isto é, os fieis rodeavam a charola
admirando da mesma forma, tamanha perfeição, dizendo
alguns: ‗não tenho coragem de me tirar deste sagrado
lugar‘. Assim conservava-se a grande concorrência dos
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romeiros até as 4 horas da tarde quando os sinos da Matriz
começavam a dobrar, chamando de novo os fieis para o
acto mais notável de minha terra natal (SANTIAGO, 1920,
23v).
O depoimento do memorialista é elucidativo, por demonstrar o quanto a
imagem do Senhor dos Passos era venerada. Por isso mesmo ter acesso a charola
nos dias de solenidade não aparentava ser tarefa fácil, levando-se em conta o
elevado número de romeiros e a insistência de devotos em permanecer
contemplando a imagem durante todo o dia. Visando demonstrar a lotação da
matriz da cidade, o autor resolveu descrever a entrada no mesmo de forma
ritmada, ou seja, é como Santiago estivesse assumindo o papel de emissário
correspondente do evento para o leitor. Ao ler o texto, o leitor sente-se
adentrando passo a passo na grande matriz sancristovense e percebe,
detalhadamente, a escultura do Senhor dos Passos.
No universo simbólico religioso do romeiro, o local onde está depositada a
charola do Nazareno constitui uma sacralização privilegiada. O templo em si já é
visto enquanto local sagrado, no entanto, a presença da imagem agrega uma
nova função, reforça a sacralidade. Sob esse prisma, a elevada procura pelo
Senhor dos Passos pode ser interpretada como uma forma de sentir, presenciar,
vivenciar a sacralidade.
O terceiro momento que pode ser evidenciado no Annuario Christovense é
o da procissão do depósito. No plano penitencial, este é o ápice da solenidade,
por ser o momento em que diferentes segmentos sociais cumprem seus atos de
desobriga no curto trajeto processional entre as igrejas do Carmo e da Matriz. No
período estudado a cidade de São Cristóvão ainda não possuía rede elétrica.
Mesmo assim, a tradicional procissão do sábado à noite não transcorria às
escuras. Além do luar, as ruas do trajeto eram iluminadas com lanternas
depositadas nas fachadas do casario e com as velas dos inúmeros romeiros que
lotavam a igreja e praça do Carmo. Embora o itinerário da procissão fosse curto,
a procissão era demorada, pois além de passar pela praça do Carmo, rua da
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Imperatriz e praça da Matriz, o cortejo parava por três vezes para o canto dos
passos3.
O quarto momento da narrativa de Santiago é a procissão do Encontro,
realizada no segundo domingo da quaresma. Mesmo não tendo muitos romeiros
cumprindo sacrifícios como no cortejo da noite anterior, a procissão também
apresenta aspectos penitencias, por relembrar ―a tragédia da rua da Amargura, o
encontro da formoza filha de Sião com o filho unigênito‖ (SANTIAGO, 1920, p.
19). Através da narrativa do autor sancristovense podemos constatar uma série
de aspectos presentes na procissão, dos quais o mais marcante é o caráter
teatral. O longo cortejo que saía pelas ruas da Velha Capital ao entardecer de
domingo era uma verdadeira encenação dos últimos momentos da paixão. Vários
elementos somavam-se para fortalecer a teatralidade barroca da solenidade como
o ritmo, os cânticos, o encontro, as cenas representando os sete passos, as
imagens em tamanho natural, a mistura sincrônica de imagens e personagens
bíblicos representados por moradores da cidade e o cenário, cercado pelo casario
barroco. No teatro dos Passos, é difícil distinguir o público dos atores, pois o
público formado por romeiros interagia constantemente com a encenação, ou
seja, desempenham função ativa na celebração, como evidencia o memorialista:
Alguns momentos antes de sair a procissão da Matriz uma
pequena força composta de 8 praças e um sargento do
corpo de policia para guarnecer as charolas e o Pallio.
Dadas às 5 horas, e já estando presentes todos os
sacerdotes, o Prior dirigia-se ao vigário Barrozo pregador do
encontro e tratavam de mandar sahir a procissão. O vigário
chamava o Senhor Jozé Antônio de Souza Leal, antigo
devoto de carregar o pendão e a elle dava ordem para sahir
primeiramente aquelle grande estandarte de pano grosso de
damasco roxo levantada em uma haste de pau, superior a
20 palmos de altura [...]. Sahia então a procissão da Matriz;
Na procissão noturna eram cantados apenas três passos, respectivamente na casa da esquina da
rua da Imperatriz, na casa de João Florêncio de Almeida (praça da Matriz) e na casa de dona Maria
Barretto. Além destes passos, os músicos também cantavam versículos nas igrejas do Carmo e da
Matriz. Mesmo considerando esses dois versículos como passos, não chegamos a quantidade
tradicional de passos cantados nos dias atuais (sete). Provavelmente as outras duas paradas foram
acrescentadas posteriormente.
3
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era agradavel ver apparecer a venerável Imagem do Senhor
dos Passos, que ia percorrer algumas ruas da velha cidade
e fazer o seu encontro doloroso. Ao chegar a charola na
porta principal, carregada pelos
Irmãos
3°s de
São
Francisco, o sargento, commandante da pequena força
policial,
mandava
por
joelhos
em
terra
a
seus
commandados e o pôvo admirado curvava-se reverente
deixando passar o famoso Nazareno (SANTIAGO, 1920,
24v).
O texto acima citado é enfático. Demonstra o grau de reverência que havia
na solenidade de Passos, em que até o corpo policial ajoelhava-se diante da
imagem. Este ato simbólico é revelador, por demonstrar o poderio atribuído à
religião no período imperial, ainda regulamentado pelo padroado régio. A
interação do publico com a procissão torna-se explícita ao se observar o
momento em que os devotos curvam-se em reverência à imagem. Deste modo, o
público passa a ser ator na dramática encenação dos sete passos da paixão.
Também demonstra o grau de teatralidade da procissão o fato da imagem ser
erguida somente ao sair da igreja Matriz, ou seja, apresenta-se solenemente ao
público de devotos. O mesmo ocorria na hora do encontro das imagens do
Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Soledade, na praça São Francisco.
Nesta ocasião a eloqüência do sermão do vigário Barrozo ritmava a entrada da
Virgem no palco lotado pela platéia ansiosa, pois:
Findo este terceiro cântico, surgia no púlpito o vulto do
Orador consumado vigário Jozé Gonçalves Barrozo que
lançando um olhar prescutador sobre o enorme audictório
que enchia a praça, principiava a falar, desenrolando os
martyrios e soffrimentos da victima ali presente. O povo já
ancioso esperava aquellas palavras inspiradas. Naquelle
momento já estavam parados todos os sinos e reinava o
completo silencio, esperando os ouvintes o momento mais
tocante d‘aquelle acto, o encontro doloroso da santíssima
Virgem com seu unigênito filho em completa afflição na rua
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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da Amargura. O povo, attento, ouvindo o orador, prestava
ao mesmo tempo attenção a aproximação da charola da
Virgem de Sião pela entrada do beco, e os devotos
carregadores prestavam também attenção ao pregador ,
que, no correr do sermão, de quando em vez, fazia sinal
mandando que a Virgem se approximasse. Estes sinaes
erão tão bem representados, que os espectadores não
percebiam, somente entendiam aquelles gestos do orador,
os antigos devotos, carregadores da charola. Sublime as
figuras grandiosas, as epopéias do verbo, os justos
pensamentos sahiam-lhe dos lábios incendiados, quando
elle, já tendo ao pé do púlpito a charola da Santíssima
Virgem que já era vista pela maior parte da multidão dizia:
‗o voz todos, que passaes por aqui, attendei, e considerai,
se há dor igual a minha dor e afflição‘. Ao pronunciar elle,
estas afflitas e angustiosas palavras, arrancava lágrimas da
maior parte dos ouvintes (SANTIAGO, 1920, 25v-26).
A longa e minuciosa descrição do encontro acima citada é contundente.
Apresenta claramente os elementos da teatralidade barroca, na qual a praça São
Francisco é transformada em um grande auditório. Este é um dos principais
momentos da encenação, pois diferentes atores se cruzam como o Senhor dos
Passos, a Virgem da Soledade, a Verônica, o pregador e a grande massa de fiéis.
A proposta artística barroca era mais um mecanismo aglutinador de fiéis, pois
visava educar e ao mesmo tempo legitimar a imagem sacralizada.
O penúltimo momento da solenidade presente na obra de Santiago é a
despedida dos devotos. Após o retorno da procissão do encontro para a igreja do
Carmo Pequeno os romeiros iniciavam a despedida do santuário, ou seja,
preparavam-se para retornar para o seu universo cotidiano e caótico. Antes do
retorno inevitável, os romeiros cumpriam os últimos atos penitenciais, os últimos
contatos com o sagrado. Com isso, era costume os devotos visitarem durante a
noite de domingo os sete passos expostos ao longo do trajeto processional,
seguindo o mesmo itinerário da tarde. A despedida era concluída com a
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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veneração das ―imagens que ficavam expostas até as 11 horas da noite‖
(SANTIAGO, 1920, p. 27).
Por fim, os devotos retornavam para suas localidades de origem. Nas
noites iluminadas pelo luar do domingo da quadragésima4 os romeiros
caminhavam para diferentes destinos e realidades de vida. No depoimento de
Santiago é possível ouvir algumas vozes de tais romeiros, com discursos que
exalam o sentimento de dever cumprido mesclado com saudade e com a
promessa do retorno certo. O desfecho da romaria era marcado pelo elevado
número de fiéis pelas estradas sancristovenses. Assim,
terminada a procissão começavam a sahir os cavalleiros
para
a
nova
Capital
de
Aracaju,
para
Laranjeiras,
Itaporanga, etc. Grande era a multidão de pessoas que a pé
seguiam para Aracaju depois da visita dos Passos às 11
horas, aproveitando o lindo luar, e enquanto caminhavam
diziam: ‗Adeus!!! Adeus!!! Até para a Semana Santa se Deus
não mandar o contrário. Pelo caminho os viajantes
elogiavam o sermão do vigário Barrozo, analysando alguns
tópicos proferidos por elle [...] Deus te dê saúde, Padre
Barrozo, e a mim conceda vida, que de ontem a hum mez
estarei de volta por este caminho para ouvir outro Sermão
do nosso Vigário na Semana Santa. Estas cinco leguas
eram
sempre
vencidas
com
a
mesma
satisfação
(SANTIAGO, 1920, 27v).
Podemos constatar que no retorno os romeiros firmavam o compromisso de
voltar para assistirem as solenidades da semana santa. Esta constatação reforça
a idéia de que a cidade de São Cristóvão neste período desempenhava a função
de santuário local, aglomerando em suas celebrações, devotos de diferentes
partes de Sergipe. Com isso, para tentar empreender a solenidade de Passos,
torna-se eminente o estudo dos elementos constitutivos do santuário dos Passos.
Segundo o calendário cristão, as sete semanas que antecedem a paixão possuem uma
nomenclatura específica. Assim, a semana anterior ao carnaval é chamada de setuagésima; a do
carnaval, sexagésima; a primeira semana da quaresma, qüinquagésima, a segunda, quadragésima
e assim sucessivamente.
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3 INDÍCIOS DE UMA DEVOÇÃO
A procissão dos Passos e a devoção do Barão da Estância deixaram muitos
rastros além do testamento que garante as apólices à igreja do Carmo Pequeno.
São inúmeros sinais deixados em localidades distintas que podem auxiliar na
reconstituição do cenário devocional.
Antônio Dias Coelho e Mello foi um devoto assíduo, pois sempre buscou
participar com afinco das solenidades do Senhor dos Passos na Velha Capital.
Assim, na segunda semana da quaresma ele e sua família se organizavam e
seguiam da Escurial para a cidade. Certamente aquela viagem familiar não era
mais uma atribuição burocrática que tantas vezes eles eram imbuídos de
realizar. Tratava-se de uma viagem de cunho sócio-religioso, na qual haveria
momentos de devoção pública. A solenidade dos Passos representava a
externalidade dos laços de afinidade entre o devoto e o santo. A visibilidade na
religião era notória na religiosidade dos oitocentos, pois a atmosfera barroca
ainda prevalecia na mentalidade religiosa. Ser público, exagerado e teatral faziam
parte das exigências dos grandes eventos religiosos.
O espetáculo iniciava com a chegada das diferentes famílias de devotos. A
elite afortunada com seus imponentes carros puxados por bois, adentrando na
cidade com um ruído peculiar que despertavam os olhares curiosos da
população. Os devotos desfilavam pelas ruas da cidade e se tornavam a atração
principal antes do desfile da imagem desfigurada. Entre os carros de bois
seguiam os pobres, romeiros andarilhos que andavam por quilômetros em busca
do amparo da religião para expiar seus sofrimentos rotineiros. Em São Cristóvão
pobre e ricos se encontravam diante do olhar cabisbaixo do Cristo ajoelhado.
Dona Aurélia Dias Rollemberg revela em seu diário a ida de sua família para a
procissão penitencial dos Passos, em carros de bois, demonstrando que a
religiosidade e sociabilidade estavam entrelaçadas na solenidade dos Passos.
Assim ela narrou que ―Depois dos mezes no sítio do Pontal, que todos gostavam
muito, íamos com muitas saudades para São Cristóvão, assistirmos a Procissão
de
Passos,
Semana
sancta,
que
eram
muito
bonitas
e
concorridas‖
(ROLLEMBERG, 2005, p. 17).
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Outra obra de cunho memorialista apresenta o destaque que tinha o
referido barão dentro dos festejos penitenciais dos Passos. Trata-se de Serafim
Santiago, que no Anuário Cristovense descreveu minuciosamente o maior evento
religioso de sua terra natal. Fé e poder desfilavam juntas na procissão do sábado
à noite. Sob a penumbra do alvo luar caminhavam os nobres açucareiros
sergipanos carregando nos ombros a pesada charola do Senhor dos Passos. A
procissão de penitência que seguia o ritmo dos sinos chorosos era um campo
propício para a legitimação política e social. Ter sobre os ombros um dos varões
do andor representava muito mais do que a devoção dos alardes, da teatralidade
barroca. Era um ato público de legitimação das figuras políticas da província.
Caminhar sob a imagem de maior devoção de Sergipe poderia ser uma ocasião de
se apropriar do capital simbólico que a mesma possuía.
As disputas pelo sagrado eram notórias. Elite açucareira se apoderava do
bem simbólico, a imagem do Senhor dos Passos. O Barão devoto também estava
lá, ao lado do santo alvo de sua devoção, em seu lugar cativo. A charola do Cristo
com a cruz sobre os ombros se transformava na antecâmara da elite política
local. Presidente da província e deputados se encontravam diante do Senhor,
para desfilar sob o silêncio da penitência. Observem o depoimento deixado por
Serafim Santiago (1920, p. 21):
Ao toque da Ave-Maria eram repetidos os dobres chamando
o povo para o acto da concorridíssima procissão que sahia
da Egreja do Carmo; esta a maior de São Christovão não
comportava
o
extraordinário
numero
de
fieis
que
espalhavam-se pela praça do Carmo aguardando a sahida
da imponente procissão. Momento antes da sahida da
Imagem, já ali estavam reunidos um crescido numero de
músicos que iam prestar por antiga devoção, seus serviços
gratuitamente, segundo ao antigo e respeitável costume. Via
também ao pé da charola, aguardando o momento da
sahida, o Presidente da Provincia com seu estado-maior,
Barão
da
Estância,
Comendador
Sebastião
Gaspar
d‘Almeida Botto, coronel José Guilherme da Silveira Telles,
coronel Domingos Dias Coelho e Mello, Dr. Silvio Anacleto
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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de Souza Bastos, Dr. Simões de Mello e muitíssimos outros
abastardos proprietários do Vaza-barris, antigos devotos da
respeitável imagem do Senhor dos Passos.
Como se pode perceber, as agitações no entorno da imagem devocional
eram constantes, proporcionando o encontro de lideranças políticas. Na semana
dos Passos, São Cristóvão voltava a viver sob a esfera de capital, assistindo
circular por suas ruas presidentes de província, deputados e senhores de
engenho, além de centenas de populares, anônimos nos registros oficiais, que
davam corpo a procissão e assistiam o desfile dos senhores do poder. Todavia, os
segmentos populares não permaneciam como público passivo, na platéia da
trama histórica. Impávidos caminhavam pelas ruas e disputavam o toque na
imagem sagrada, a intimidade com o sagrado. Os rogos dos andarilhos descalços
ecoavam aos pés da charola, intrépidos em ludibriar com palavras os quase
nunca solícitos senhores. Mais uma vez Serafim Santiago flagrou esse episódio
da trama dos Passos:
A charola nesta procissão era carregada exclusivamente
pelo excelentíssimo Senhor Presidente e seus imediatos;
então os homens que naquelle tempo, faziam votos para
naquelle dia carregarem a charola, era necessário que
rogassem para serem cedidos alguns dos varões aos devotos
que haviam feito a promessa (SANTIAGO, 1920, p. 21).
Mesmo entre os que carregavam a charola havia distinção. O barão tinha
um lugar privilegiado, pois seguia em frente, tendo no lado inverso o presidente
da província. A honraria o distinguia dos demais nobres sergipanos, pois a
solenidade dos Passos tinha atributos que a qualificavam como procissão oficial.
Nobiliarquia e camadas populares acompanhavam o cortejo e ser o primeiro na
seqüência de carregadores do andor era um privilégio para poucos.
O cenário se torna mais palatável por meio de Gumersindo Bessa que
descreve um episódio ocorrido em 1886, ano em que participou pela primeira e
única vez da solene procissão. O intelectual sergipano ironicamente espantou-se
com a postura nobre e inabalável do barão. Observe a narrativa:
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Noite cerrada, MARFÓRIO voltou ao Carmo para ver a
procissão de trasladação. Viu ao pé da charola, numa
posição indescriptivel de fidalgo e penitente, um velho
esguio, alto, aprumado, moreno, barba branca cerrada e
curta, cabelleira rebelde, trajado com elegância e modéstia,
silencioso, immovel, aguardando a sahida da procissão
naquelle posto, para que ninguém lhe roubasse o goso de
pôr aos hombros um dos varões do andor (BESSA, 1915).
Sob o pseudônimo de Marfório, Bessa apresenta a postura de Antônio
Dias, que mesclava a fineza de um nobre e a humildade de um penitente, como
exigia o momento. Ensimesmado aguardava de posto a saída da procissão na
qual detinha uma posição privilegiada. Era o Barão da Estância o primeiro nobre
a adentrar na Igreja do Carmo e assim recebia os demais senhores do Vazabarris e o presidente da província, em ato solene e formal.
Mas, no mesmo instante, entram na igreja o Manuel Góes,
presidente da província, o Rastelli, juiz de direito da
comarca, e o Oséas, secretário do governo. E vão entrando e
vão dizendo: Sr. Senador – diz o Góes. Sr. Barão – diz o
Rastelli. Meu chefe – diz o Oséas (BESSA, 1915).
O prestígio do Barão da Estância era notório e a procissão dos Passos se
transformava no palco em que esse status era exposto publicamente. Os dois
senhores desfilavam lado a lado. Um balançava em sua charola, sob o peso da
cruz com seu manto roxo e olhar fito para os devotos. O outro carregava o
primeiro, com um dos varões sobre seus ombros, num ato de submissão e
piedade, contrastando com a postura imponente de fidalgo. Ambos vestidos como
nobres, ambos olhando para baixo.
Outro sinal de devoção é uma gratificação doada pelo Barão ao Senhor dos
Passos. Trata-se de uma túnica doada ainda no século XIX, tecida com pano roxo
e linhas douradas. Uma vestimenta que reflete a nobreza do doador e a devoção
dos romeiros. O tempo passou e deixou suas marcas. A túnica doada pelo barão
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não é mais usada, mas traz em si as marcas de devoção, como o desgaste do
tecido em partes em que os romeiros tocavam. O tato devocional passou milhares
de vezes pelo manto, em busca de bênçãos, deixando suor, lágrimas e preces.
São algumas das facetas da devoção ao Senhor dos Passos, que conseguia unir
em um mesmo percurso, sob o mesmo tecido um nobre e tantos flagelados da
sociedade aristocrática e excludente de Sergipe oitocentista.
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PRÁTICAS URBANAS NA ESCRITA MEMORIALISTA DO FIM DO SÉCULO XIX E
INÍCIO DO XX NA CIDADE DE FORTALEZA – CE
Ana Luiza Rios Martins1
INTRODUÇÃO
O fim do século XIX e início do século XX foi um período de profundas
transformações na cidade de Fortaleza. Novas práticas sociais foram chegando
através dos primeiros contatos com comerciantes e investidores estrangeiros, que
ajudavam na abertura de fábricas em nossa capital. Ernesto Pimentel aponta que a
aproximação com o nascente capitalismo, oriundo da chegada de mercadorias
inglesas e francesas, resultou numa apropriação de valores e comportamentos por
parte da elite e dos governantes, gerando o imaginário da exclusão. Os intelectuais
selecionavam manifestações e criações lítero-filosóficas tipicamente elitistas e com
vistas a doutrinar a alma dos citadinos, conforme os ideais positivistas. Quem não
aderisse a este campo simbólico de usos, práticas e idéias, estaria excluído do
“moderno” e do “progresso”.
Foi nesse ambiente que Eduardo Campos (1985) escreveu o livro Capítulos
de História da Fortaleza do século XIX: O social e o urbano. Eduardo Pinheiro
Campos nasceu em Guaiúba em 1923 e morreu em Fortaleza em 2007. Foi
radialista, jornalista, teatrólogo e escritor, seu gênero predominante era a crônica
histórica. Foi também presidente de várias instituições intelectuais, entre elas a
Academia Cearense de Letras, Comissão Cearense de Folclore, Conselho Estadual
de Cultura, Rádio Araripe, Ceará Rádio Clube e Instituto Histórico, Geográfico e
Antropológico do Ceará.
O autor, assim como Raimundo Girão, Mozart Soriano e Antônio Bezerra,
escreveu artigos publicados na Revista do Instituto.
Esses textos tinham como
características centrais a escrita linear, aos moldes positivistas, além de trazerem
idéias abolicionistas e republicanas. Os intelectuais inseridos nessa instituição
Possui Graduação em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA (2008),
Especialização em História do Brasil pelo Instituto Superior de Teologia Aplicada - INTA (2009).
Lecionou no curso de graduação em História da UVA-IDECC e no curso de Pós-Graduação em História
do Brasil no INTA. Atualmente é Mestranda em História e Culturas pela Universidade Estadual do
Ceará - UECE, pesquisando como bolsista da CAPES: O coro polifônico das modinhas fortalezenses:
Representações da cidade e seu tecido social na trama sonora (1888-1920).
Email: [email protected]
1
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chegaram a agregar a Eduardo Campos e Raimundo Girão o “rótulo” de folcloristas,
pelos seus textos terem uma pretensão e cuidado de “capturar” e “cristalizar”
manifestações populares rurais e urbanas, para finalmente funcionários do governo
as selecionarem para comporem o imaginário da nascente República. Para Michael
de Certeau (1995), no livro A cultura no plural, cultura popular era um tesouro
abandonado pelos eruditos ou instituições ligadas ao poder, embalsamando-a a fim
de a encerrarem no túmulo, entregue ao esquecimento.
A obra Capítulos de História da Fortaleza do século XIX absorveu alguns
elementos desse tipo de escrita, mas o forte nela é a análise social e o interesse de
disciplina e enquadramento dos espaços e dos habitantes da cidade. Na crônica A
curiosidade pelas manifestações sociais, o sereno, bilhete do sereno..., já fica
evidente essa afirmação. Eduardo Campos aponta que no século XIX os citadinos
eram pouco sensíveis em aceitarem a moda “sob conceito formal”, ou seja, as
manifestações tituladas por elegantes que ocorriam nos salões atraiam o olhar
curioso e zombeteiro das camadas empobrecidas. Segundo o autor, o sereno
consistia na participação dos populares, como platéia não convocada, nos bailes e
comemorações da elite. Eles usufruíam do espaço da rua como forma de driblarem
a tentativa de controle social exercido pelo governo e elite.
O sereno e o bilhete do sereno são práticas que aumentam a possibilidade
de compreendermos os espaços citadinos como locais de constantes disputas.
Essas tensões que eram fomentadas na busca de educar, moralizar e higienizar os
corpos e as mentes, fizeram com que esses grupos economicamente abastados se
isolassem nas comemorações fechadas a um público seleto como forma de
distinguirem-se dos demais.
A distinção social se deu principalmente através da exposição de bens de
consumo ou culturais. Na segunda crônica do livro intitulada A crônica social em
seus começos. O prelúdio da moda em Fortaleza. Fotos de senhoras elegantes e seus
vestidos, o autor suscita esta impressão. Por volta da década de 1860-69 já
existiam casas especializadas no Brasil para a confecção de vestidos. As senhoras
da
capital
fortalezense
sabiam,
por
intermédio
dos
periódicos
e
revistas
especializadas em moda, o que estava em alta e encomendavam essas costuras
para as casas cariocas. Quando os primeiros modistas chegaram aqui por volta do
fim do século XIX, Paris era o centro da alta costura. Em nossa cidade os pedidos
acompanhavam esse padrão, mas o intrigante era assistir o “desfile” nas ruas de
mulheres com roupas que não condiziam com o clima da nossa capital.
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Além da moda, foi definido um “padrão” de etiqueta a vigorar nos salões da
elite. É o que aponta a terceira crônica do livro Os bailes e seus detratores. A
etiqueta imposta aos seus freqüentadores. Esse texto se inicia com comentários a
respeito dos bailes, reuniões sociais ditas como as mais elegantes. Existiam desde
grandes elogios até críticas de pessoas que achavam as danças, os risos e o
entretenimento de uma forma geral pecaminoso e imoral. José Maria Pereira
Baptista tece um comentário a respeito disso: “Nunca gostei de bailes. E com
effeito, como deixarei de desprezar companhias, onde só se conversa em
frivolidades, onde se tomam conhecimentos sem intimidade, onde vamos mais para
matar o tempo do que por gosto?” (CAMPOS, 1985, p. 28) .
Exatamente por um número grande de críticos, que iam pros bailes na
tentativa de moralizar os hábitos de falar, dançar, flertar, entre outros, as pessoas
tinham todo o cuidado de se controlarem perante o público.
A quarta crônica do texto vai se aprofundar nos bailes da cidade. Como já
suscita o título: As três categorias de bailes. O que se dançavam neles. Bailes
Políticos.
Bailes
de
Máscaras.
Como
se
comportar,
usando
disfarces...,
o
entretenimento dos grupos sociais era bem distinto. Havia várias categorias de
bailes: os que se realizavam intimamente a um concerto, geralmente de canto e
piano, a mais das vezes de benefícios, os cívicos e os popularescos, que eram
organizados em teatros com ingresso cobrado à porta ou vendidos por antecipação.
Sobre o concerto-baile, o periódico A Constituição do dia 27 de agosto de
1874 apresentou a seguinte publicação que dizia respeito à construção do Asilo dos
Alienados:
Tomão parte no concerto vocal e instrumental diversas
senhoras das mais gradas e talentosas desta capital,
secundadas por distintos cavalheiros, e no baile todo aquelle
que se dignar acceitar o convite que lhe foi endereçado em
nome das mesmas excelentíssimas senhoras promotoras desta
festa cujo objecto dispensa encarecimento: CARIDADE.
Começará às 8 horas em ponto. Os convites são
intransferíveis. Se alguém, o que não é de esperar, recuzar
contribuir com o seu obulo para o pio estabelecimento, devolva
o convinte logo que receber. [sic] (CAMPOS, 1985, p. 32)
O comentário é rico em detalhes sobre esse tipo de baile e seus
freqüentadores. Num primeiro momento percebemos a supremacia do piano
perante os outros instrumentos. Eles eram importados da França para ocupar o
espaço central da sala, sendo, muitas vezes, usados como móveis, já que alguns
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indivíduos faziam a aquisição desse objeto apenas para exercer o consumo
conspícuo, ou seja, quando há uma necessidade de adquirir bens na tentativa se
distinguir dos demais para finalmente serem aceitos por determinados grupos
“fechados” da sociedade.
As moças brancas da elite e da classe média recebiam uma cobrança maior
para dedicarem seu tempo às aulas de piano com o intuito de mostrarem seus
dotes para seus maridos e amigos da família nos bailes-concertos. O canto e o
piano eram disciplinas obrigatórias nas primeiras escolas femininas. As professoras
mais requisitadas em aulas particulares lecionavam na Casa das Irmãs de Caridade
e no Colégio Nossa Senhora de Lourdes.
A publicidade ainda se referia que o motivo do baile era unicamente a
caridade. Mas Eduardo Campos deixou de comentar o conteúdo de alguns
exemplares do jornal A Constituição, que traziam nomes de indivíduos convidados
para bailes com as respectivas quantias que esses deveriam doar. Quem
contribuísse com a maior quantia figurava no topo da lista seguido dos demais.
Essas práticas contribuíam bastante
para uma hierarquização das
festividades. Bailes popularescos, os quais Eduardo Campos se referiu na obra,
aconteciam em torno dos areais2, ao som dos lundus e sambas, gêneros oriundos
dos negros, muito discriminados pelas camadas abastadas.
Enfim, Capítulos de História da Fortaleza do século XIX: O social e o urbano
demonstra que a expansão capitalista marcou a vida dos citadinos que viveram na
Fortaleza do fim do século XIX e início do XX, palco de inúmeras transformações.
Pelo porto cearense desembarcavam oriundos da Europa, além da moda e dos
ideais de progresso e civilidade, ritmos musicais como a cançoneta, a polca, a
mazurca e o schottisch, o gosto por retratos, a literatura de Zola, Spencer, Comte,
festas mundanas como o carnaval e o entrudo, ou seja, todos os bens culturais
parisienses que eram consumidos com a finalidade de “civilizar” a capital que, para
o autor, naquele tempo era ainda tão provinciana.
Esse pensamento também é compartilhado por Raimundo Girão (1979) na
obra intitulada Geografia Estética de Fortaleza. Raimundo Girão nasceu em Morada
Nova no ano de 1900 e faleceu em Fortaleza em 1988. Assim como Eduardo
Campos, foi presidente do Instituto Histórico do Ceará, escrevendo inúmeros artigos
relacionados a temas da Geografia e da História de Fortaleza. Sua escrita era
bastante peculiar para o período, merecendo grande destaque na referida obra.
No caso da expressão areia significa o lugar, muito retirado, periferia onde moravam as pessoas
empobrecidas.
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Geografia Estética de Fortaleza é uma obra de cunho memorialista e
ensaísta, dividida em vários tópicos que relatam o desenvolvimento da cidade. Na
primeira parte Girão modificou o padrão de escrita conceituando os termos
Geografia Estética e Geografia Física. O primeiro diz respeito à Geografia que une o
humano e o físico, ligada as sensibilidades e formada a partir do senso de estética
dos homens de cada época. A segunda é a paisagem natural que se forma sem a
ajuda do homem. Mas Girão é partidário da opinião que a paisagem natural e o
homem são um único organismo, onde um necessita do outro. Ele se fundamenta
em análises de teóricos do período como Paul Vidal de la Blache e Jean Brunhes,
ambos franceses que discutiam como o fator geográfico modificava o homem e viceversa.
A segunda e a terceira parte definem a formação dos primeiros espaços
arquitetônicos, lugares de sociabilidade que deram “vida” a colônia. O forte
Schoonenborch, construção
dos
holandeses, foi
um dos primeiros
planos
arquitetônicos pensados para a defesa da região contra outros colonizadores e
índios que tentavam invadi-lo.
No capítulo A dança do pelourinho, inicia-se com um questionamento de
Matias Beck a respeito da falta de meios para a colônia crescer e aumentar seus
habitantes. O autor coloca uma gravura, desta vez da planta de Fortaleza de 1726.
Nela podemos perceber que a vila era bastante pequena, cheia de areia, ainda sem
calçamento, tendo um número pequeno de casas habitadas, em sua maioria, por
pessoas humildes.
No quinto e sexto capítulo o historiador descreve como a vila foi tomando
ares e o número de casas foi aumentando. Os telhados foram gradativamente sendo
modificados de taipas para telhas. Isso simbolizava um lento, mas crescente
desenvolvimento que fica evidente quando a vida política e militar floresceu nesses
espaços.
O que definiria Fortaleza como uma das principais capitais brasileiras seria
a disciplina urbanística que lhe foi imposta por volta do fim do século XIX. Há duas
designações nesta obra para a concepção de cidade, existem as criadas e as
espontâneas. Fortaleza fazia parte desse segundo grupo, pois a “manutenção da
ordem” só foi estabelecida após o traçado das ruas criado por Silva Paulet e
colocado em prática pelo Boticário Ferreira e em seguida, após sua morte, por
Adolfo Herbster. O formato era em quadrilátero e compreendia o perímetro central
que era feito de calçamento. A parte suburbana chamada de Areal Moura Brasil
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virou um problema, pois a insalubridade e os labirintos de casas, que muitas vezes
se localizam em ruas sem saídas ou ruelas, atordoavam o equilíbrio estético da
planta da cidade.
Isso fez com que Raimundo Girão entendesse, embora se opusesse, que as
cidades por mais projetadas que fossem seriam sempre reelaboradas, algumas
vezes, sem muita simetria pelos seus habitantes. Sobre isso o historiador Michael
de Certeau comenta:
„A cidade‟, à maneira de um nome próprio, oferece assim a
capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um
número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas
uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operações
„especulativas‟ e classificatórias, combinam-se gestão e
eliminação. (CERTEAU, 1994, p. 173)
Essas transformações no plano arquitetônico e em outros setores da
sociedade só foram possíveis após a próspera venda de algodão cearense para
países europeus. Com a província crescendo e ganhando ares de cidade, seus
habitantes sentiram a obrigação de fundar grêmios literários, clubes, livrarias, tudo
aquilo que contribuísse na formação intelectual dos citadinos para rapidamente
chegarem aos padrões de modernidade impostos pelos seus aliados países
europeus, sobretudo a França, modelo mais seguido naquele momento.
Curiosamente na planta urbanística havia também um projeto de
arborização, com a finalidade de tornar os espaços mais frescos. É muito
interessante analisar essa preocupação já nesse período em unir “progresso” com
um toque de natureza. Nas crônicas de Gustavo Barroso (1962), de João Nogueira
(1954) e Otacílio de Azevedo (1980), percebemos que a sombra das árvores eram
espaços de sociabilidade. Eles descrevem inclusive a estima que os habitantes
tinham pelo cajueiro da mentira, ponto de encontro da “arraia miúda”,3 que se
reuniam pra falar mal da vida alheia e zombarem dos passantes.
Aos poucos, a vida estática guiada pelo tempo da natureza dava espaço ao
movimento que era fruto do trabalho disciplinado pelo relógio. As pessoas que
ficavam conversando nos horários de lazer nas calçadas eram aos poucos colocadas
dentro de suas casas, para que a cidade, que aumentava em número de habitantes,
não entrasse num verdadeiro colapso.
Essa era uma designação degradante que os grupos elitistas faziam das camadas empobrecidas,
sobretudo aqueles que bebiam e freqüentavam bordéis na cidade.
3
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A Praça do Ferreira foi uma das primeiras praças a “aderir” as exigências da
modernidade. Foram surgindo cinemas, prédios, cafés e restaurantes, todos
freqüentados por pessoas “requintadas”, segundo a própria expressão de Girão.
Alguns membros de um grêmio literário chamado Padaria Espiritual se reuniam
nesses cafés para discutirem os conteúdos que seriam publicados no Pão, periódico
que discutia desde assuntos mundanos até as principais tendências da literatura,
música e peças teatrais. Liderados por Antônio Sales, os membros da Padaria
faziam críticas sobre o consumo intenso de bens culturais franceses e ingleses,
apesar de não serem totalmente contra. Na verdade eles queriam que a população
fortalezense desse mais valor aos “artistas da terra” como diz o Estatuto da Padaria
no ARTIGO 32 – “A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve
prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense”.4
No capítulo A princesa diverte-se, encontramos as descrições das primeiras
festas nos salões e nos clubes da cidade. As mudanças trazidas pelos processos de
apropriação dos costumes franceses foram, segundo o autor, determinantes na
formação de um público de cultura “elitista” que se contrapunha a do povo,
surgindo por parte desses populares festas improvisadas em bares, botequins e
prostíbulos. “A princesa” foi título dado por Raimundo Girão a jovem cidade de
Fortaleza. Sobre isso ele apontou:
À Princesinha não alegrava mais o triciclo infantil, em rodeios
descuidosos pelo velódromo caseiro e esteiro. Queria postas
mais largas, abertas, onde pudesse correr em viaturas ligeiras,
haurindo o ar refrescante da mocidade, estendendo os olhos
para horizontes novos e mais panorâmicos. Aquelas
brincadeiras, que relembravam costumes dum primarismo
distante – os congos, os fandangos, o bumba-meu-boi; as
piedosa aglomerações dos novenários na matriz, com o cântico
da ladainha em mistura com namoricos furtivos, receosos de
mamãe; as partidas de danças nas casas ricas, entrecortadas
de recitativos monótonos, ou mesmo os sambas da plebe das
areais, as mais das vezes interrompidos a cacetadas e
correrias – nada lhe trazia mais prazer completo. (GIRÃO,
1979, p. 137).
A Padaria Espiritual (1892 - 1898) foi um movimento de cunho intelectual fundado em 30 de maio de
1892 no Ceará, cujo lema era "alimentar com pão o espírito dos sócios e da população em geral". A
instalação contou com programa escrito por Antônio Sales, o qual foi transcrito em um jornal da então
capital federal, o Rio de Janeiro, o que deu notoriedade ao movimento. A cada domingo, um
jornalzinho de oito páginas chamado O Pão era "amassado" e fez circular 36 números
4
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Diferente de Eduardo Campos, Raimundo Girão descreve “o fim” dos
congos, dos sambas de areia e do bumba-meu-boi com um tom saudosista, como se
a queda desses costumes revelasse uma Fortaleza madura e não mais inocente
como antigamente. A perca da “inocência”, era interpretada por alguns como a
modernidade trazendo consigo a degradação.
Nessa mesma crônica o autor cita que a construção do Teatro José de
Alencar trouxe consigo mudanças significativas na mentalidade dos habitantes que,
aos poucos, deixaram de lado as festas tradicionais por concertos e peças com
autores de várias nacionalidades. O Teatro José de Alencar foi fundado no ano de
1910, ainda no governo de Nogueira Acióli. O ferro utilizado em sua construção foi
todo importado da Europa por uma empresa inglesa e em seu estilo predominava a
Art Noveau. Com a construção dele, outro conceito de teatro foi implantado na
cidade, pois os até então existentes eram instalados nos bairros, onde a vizinhança
trazia as suas próprias cadeiras para a apreciação das peças.
No que diz respeito à vivência do público fortalezense nos espaços do
Teatro, o autor aponta certo provincianismo nos hábitos dos citadinos. Isso porque,
segundo Girão, as pessoas não sabiam se comportar nesse ambiente. Muitos
cuspiam da “torrinha” nos que ficavam na platéia, outros jogavam frutas podres
nos atores. Vários imprevistos desses foram relatados em sua obra. Para o autor, o
despreparo era tamanho que uma companhia italiana, pela falta de um piano, teve
de “tocar” num móvel que tinha uma aparência do instrumento, mas sendo que
este havia sido pintado e fechado, tendo grandes problemas a protagonista da peça
no momento da execução da música. Outro inconveniente narrado foi a entrada
desastrosa do anjo em uma peça no Teatro José de Alencar. No momento em que o
ator se preparava para falar, suas calças caíram e todo público deu uma forte
gargalhada. Para Raimundo Girão esses imprevistos só reforçavam a idéia de que os
habitantes não estavam tão preparados para o progresso.
No último capítulo de Geografia Estética de Fortaleza, Girão termina com o
seguinte comentário:
Com todas essas coisas, em suma, que tecem os conjuntos
humanos superexcelentes: as cidades grandes, cidades
imensas, opressoras, triunfo absurdo do Homem contra a
Paisagem, do artificioso contra o natural, da ilusão deste
mundo de hoje, vítima de reivindicações e distorções,
perseguindo uma felicidade de hedonismo e prazer, porém
cada vez mais distanciado da obra divina posta à sua
disposição, dadivosamente, na majestosa dos mares, do
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firmamento, das florestas, dos rios, de tudo o que Deus souber
criar. (GIRÃO, 1979, p. 253).
Isso mostra sua preocupação com o crescimento urbano desenfreado. A
estética da cidade estava cada vez mais “corrompida” com o desenvolvimento
habitacional. Os imóveis comerciais e residenciais já não estavam obedecendo ao
plano urbanístico e dia após dia eram abertas ruas estreitas que iam de encontro
ao aformoseamento de Fortaleza.
No livro de Mozart Soriano (1974) intitulado História abreviada da cidade
de Fortaleza e crônica da cidade amada, a relação com a cidade é bastante distinta
das outras obras suscitadas nesse artigo. Mozart Soriano Aderaldo foi crítico
literário, historiador, jornalista, membro da Academia Cearense de Letras e
colaborador do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. Nasceu em
1917 no Maranhão e ainda jovem veio morar na cidade de Fortaleza, terra que criou
laços afetivos, escrevendo detalhes sobre a paisagem e seus habitantes que viveram
entre o fim do século XIX e início do XX.
Em sua obra há um maior interesse em relação aos espaços de convivência
e com as paisagens sentimentais, termo posteriormente conceituado por Massimo
Canevacci (2004) no livro A cidade polifônica como um lugar que em cada momento
que nos deparamos com ele um fragmento da memória afetiva é reativada.
Percebemos também a preocupação do autor em deter uma escrita linear,
iniciando a descrição da cidade pela vinda dos Europeus a Fortaleza, os projetos de
remodelação e as mudanças trazidas pela urbanização adquiridas pelo contato com
comerciantes ingleses e, sobretudo, franceses.
Otacílio Colares tentou explicar o sentido duplo da palavra “crônica” na
obra História abreviada de Fortaleza. O moderno, que subentende literatura em
prosa utilizando poeticamente fatos e coisas conhecidas do dia-a-dia, e o antigo,
que significa recomposição sentimental de fatos e coisas que merecem ser
resguardadas, sob pena de, com o tempo, ficarem perdidos sob pátina do tempo.
Mozart Soriano passa seu olhar minucioso em cada rua que se encontra na
sua memória. Tenta assim reviver o passado, pois o presente é muito caótico em
seu entendimento. Lembra em uma de suas crônicas sobre os primeiros bondes de
tração animal, da estrada de ferro e da iluminação a gás. Encontra nas idéias
liberais, assim como vários intelectuais do período, o fundamento para as suas
teorias progressistas.
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A chegada ao progresso se dava em cada adesão que os habitantes faziam
de bens de consumo, como o telefone a manivela. Esse discurso chegava mais
rápido as casas dos citadinos por este contribuir com a escrita dos jornais O
Cearense, O libertador e A Quinzena. Ele compartilhava suas idéias também nos
grêmios literários e clubes como o Iracema, fundando em 1884. Nesses locais os
intelectuais discutiam os clássicos franceses como a literatura de Victor Hugo, com
a finalidade de chegarem mais rápido a um desenvolvimento dos citadinos.
O cinema foi, segundo o autor, um dos grandes colaboradores para os
habitantes aderirem mais rapidamente aos costumes europeus. Os donos do Cine
Diogo e do Magestic colocavam em cartaz filmes estrangeiros que traziam
mensagens moralistas e educativas. Nas peças teatrais também havia uma maior
preocupação de exibir conteúdos educativos, sendo que a maioria delas era no
estilo de críticas de costumes. Essas peças traziam lições do moral para mulheres
que desobedeciam a seus maridos e por isso eram punidas pela sociedade.
O autor faz uma crítica contundente à relação que os citadinos tinham com
os espaços das salas cinematográficas, descrevia que eles se comportavam mal,
xingavam, falavam alto, se alimentavam. Essas pessoas eram rotuladas de
provincianas, pois estavam distantes de um comportamento adequado digno dos
ideais de modernidade.
Mas uma das maiores preocupações de sua escrita é com a falta de
estrutura
da
sociedade
para
receber
essas
novas
aquisições
dos
países
“desenvolvidos”. Percebemos isso quando o autor comenta a respeito da chegada do
primeiro automóvel e os piores meios para que esse circulasse na cidade. Critica
também a ausência do alargamento de todas as ruas, já que as mais distantes não
participaram desse plano urbanístico. Ruas largas e asfaltadas eram boas para
manter o controle dos passantes pela polícia e para aumentar o número de
automóveis circulando na cidade.
O cronista também viu com grande esperança e alegria a chegada do rádio
na cidade. Dizia que o rádio trazia a notícia instantânea para um maior número de
ouvintes. Naquele período havia uma preocupação dos intelectuais de como a
educação seria levada aos lares, já que uma grande parte dos citadinos era
analfabeta.
Um dos momentos mais emblemáticos da obra diz respeito ao período da
seca que desolou uma boa parte do Ceará e fez com que os retirantes migrassem
para Fortaleza. Ele comenta que uma cidade que estava no caminho certo para se
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adequar aos padrões foi desolada por uma tormenta de homens famintos que se
instalavam por toda a parte pregando a desordem. Não havia nenhum controle da
polícia ou do governo perante essa situação. O máximo que conseguiram foi colocar
os retirantes, mendigos e loucos nos asilos de medincidade. Todos esses indivíduos
eram empecilhos e deveriam ser “varridos” da sociedade. No restante do livro
Mozart Soriano vem narrando os trajetos das ruas, descrevendo como elas eram
antes do plano urbanístico e como ficaram após as reformas.
A última obra analisada neste artigo é do escritor Bezerra de Menezes
intitulada Descrição da cidade de Fortaleza. Antônio Bezerra de Menezes (1992)
nasceu em Quixeramobim em 1841 e faleceu em Fortaleza no ano de 1921. Foi um
naturalista, historiador e poeta. Na juventude escreveu vários livros de poesia, mas
foi como cronista social que o seu trabalho como escritor foi reconhecido. Participou
ativamente da campanha abolicionista, colaborando com os jornais O Ceará e O
Libertador. Também foi membro da Academia Cearense de Letras e um dos
fundadores do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.
Como o título já menciona, a obra trata da descrição da cidade de Fortaleza.
Mas as escolhas dos espaços não são feitos aleatoriamente, pois Antônio Bezerra
tinha a preocupação de analisar apenas aqueles que estavam ligados aos processos
de modernização e instituições moralizadoras da cidade. Edifícios como o Excelsior
Hotel, Palacete da Assembléia Legislativa, Quartel do batalhão de segurança,
Secretaria da Fazenda, Palácio Municipal e a Câmara Municipal são modelos
arquitetônicos suntuosos construídos entre meados do século XIX e início do século
XX.
O Seminário da Prainha era uma instituição que tinha o intuito de
“moralizar o espírito”, enquanto o Asilo de Medincidade buscava controlar os corpos
e as mentes. Eles eram localizados nas zonas periféricas por estratégia dos
governantes de deixarem as doenças espirituais e mentais bem distantes do
quadrilátero central, símbolo do progresso citadino. O Matadouro Público e o
Cemitério São João Batista foram sendo afastados pela preocupação que se tinha
com a salubridade. O vento dos cadáveres enterrados nos cemitérios podia levar,
segundo os sanitaristas, os miasmas e contaminar a população de grandes
epidemias.
Já o Colégio Imaculada Conceição, antiga Casa das Irmãs de Caridade, era
responsável pela educação das moças de família, que eram ensinadas a serem boas
esposas e donas de casa. Enquanto o Liceu do Ceará tratava do ensino masculino
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dos filhos de grandes comerciantes e intelectuais da cidade. A Biblioteca Pública
Menezes Pimentel foi, desde sua inauguração, considerada o recanto do saber,
lugar destinado ao amadurecimento dos bons hábitos e da etiqueta.
Antônio Bezerra descreve, além das escolas e externatos, instituições
intelectuais como Instituto Histórico do Ceará, Academia Cearense de Letras,
Centro Literário, Fênix Caixeral e Padaria Espiritual, que tinham a preocupação de
repassarem os valores da cultura européia, padrão, segundo seus freqüentadores,
para todas as outras. A imprensa foi veículo importante nessa empreitada de exibir
para os citadinos esse novo estilo de vida oriundo dos países “desenvolvidos”.
Por último o autor comenta a respeito dos lugares de recreio e cita o Passeio
Público como um dos principais. A divisão simbólica que lá se encontrava era
bastante emblemática. Na parte da Avenida Caio Prado os indivíduos da elite e da
classe média partilhavam seus sonhos e aspirações de uma cidade limpa e
organizada, enquanto do lado da Mororó, onde eram encontrados “gente de todo o
tipo”, os grupos tentavam driblar os padrões e si reinventarem.
As obras que foram suscitadas nesse artigo possuíam uma preocupação de
manter condições viáveis para a chegada do progresso e da modernidade em
Fortaleza. Essa mentalidade fortifica a ligação da cidade com o consumo de bens
culturais oriundos de países europeus e com o processo de inserção do capitalismo.
Percebemos que essas mudanças fizeram parte de um processo lento e bem distinto
dos principais países europeus. Segundo Gilberto Freyre (1996) os antigos
costumes foram muitas vezes se entrelaçando com os novos nessa sociedade
miscigenada e culturalmente pluralizada.
Eduardo Campos, Raimundo Girão, Mozart Soriano e Antônio Bezerra
tentavam enquadrar a sociedade num modelo bem dicotômico, ou seja, os ricos
tentavam viver dentro de um modelo de educação burguesa, padrão em toda a
Europa, enquanto os pobres faziam com que o provincianismo, que degradava,
segundo os pesquisadores, as mentes e os corpos, vigorasse nos “labirintos” da
cidade.
BIBLIOGRAFIA
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Imprensa Universitária do Ceará. 1974.
Abreviada
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
de
Fortaleza.
Fortaleza:
Página 179
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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do século XIX. O social e
o urbano. Fortaleza: Edições UFC, 1985.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: Ensaio sobre a antropologia da
comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.
CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. Rio de Janeiro: Papirus, 1995.
______. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
FILHO, José Ernesto Pimentel. Urbanidade e Cultura Política: A cidade de
Fortaleza e o liberalismo cearense no século XIX. Fortaleza: Edições UFC, 1998.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência
desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Record, 1996.
do
patriarcado
e
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza: Banco do
Nordeste, 1979.
MENEZES, Antônio Bezerra de. Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza:
Editora UFC, 1992.
NOGUEIRA, João. Fortaleza Velha. Fortaleza, Editora Instituto do Ceará, 1954.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [3]; Petrolina, abr./set. 2010.
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TRANS: O GÊNERO DO SEXO E O SEXO DO GÊNERO
Manoel Vaz da Silva Neto1
Quando nos indagamos a respeito das essencializações do gênero e nos
deparamos com uma volta ao passado essencialista quando diante de nós se
nos apresenta uma mulher que deseja fazer do seu corpo uma prótese para o
seu pensamento, quer dizer, fazer com que seu corpo se trans-forme em um
corpo essencialmente designado como feminino, o que devemos pensar? Quer
dizer, quando lemos por todos os lados questionamentos sobre a idéia de
naturalidade, essencialidade corporal, sexual e de gênero e de repente nos
deparamos com alguém que, a princípio, questiona2 as ordens naturalizantes
(corpo, mente e prática), mas por outro se adéqua a elas, o que fazer, o que
dizer, o que pensar? O que dizer de uma mulher transexual que inicialmente
reivindica o direito de ser mulher, mas que “só” pode ser e “só” poderá sentirse mulher transgenitalizando-se também; quer dizer, ao mesmo tempo em que
se vai mais adiante, ousa, desafia, parece que recua, amedronta, teme,
retroage
(volta
ao
princípio),
enfim,
por
que
imaginamos
que
os
questionamentos só têm uma direção e que, a princípio, não retroagem?
Como, pois, entender que “só se pode ser” mulher (de verdade) mediante um
adequamento genital? Por que o aparelho genital é tão importante e, por que,
em alguns casos, ele funciona como um dispositivo de poder tão opressor de
modo que nos baseamos nele para nos constituir/identificar homem e
mulher?
A mim me parece bastante claro o problema que se nos apresenta: não
sabemos pensar complexamente3; estamos ainda muito envolvidos com as
essências (ontologia, metafísica da substância, etc.), com as unidades,
lateralismos e o estágio intelectual mais complexo, parece, que podemos
chegar é ao binarismo essencializador; não conseguimos pensar que o que
Graduado em História (Universidade Estadual da Paraíba – UEPB); Mestre e Sociologia
(Universidade Federal da Paraiba – UFPB) e Doutorando (Universidade Federal da Paraíba –
UFPB) E-mail: [email protected]
1
Não estou certo que haja um questionamento deliberado por parte das mulheres trans. Penso,
pois, que esta idéia de questionamento de gênero é muito mais fruto de uma política aplicada ao
gênero no universo da academia do que a contestação pessoal, individual de um indivíduo ou
por um conjunto deles.
3 Cf. Morin, 2008.
2
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vemos pode ser dual, múltiplo, plural a um só tempo em um único corpo e em
uma única prática e, assim, parece-nos fácil acusar – como já o fizeram4 – as
transexuais de voltarem a um passado das essências, de um tipo de mulher
submissa ou mesmo nem as aceitar como mulheres sem antes lhes adjetivar
de trans para poder assegurar o estatuto ontológico do sujeito feminino.
Portanto, o trans de transexual não é algo apenas que ousa, questiona, inverte
a lógica do gênero, mas em alguma medida e, principalmente, em medidas
teórico-epistemológicas (dominação epistemológica) é algo que assegura pelo
próprio prefixo o estatuto ontológico do essencialmente feminino, quer dizer,
aquela que dispensa o trans para investir-se e empoderar-se deste “natural”
que lhe aparenta ser fazendo sempre referência à mulher trans o seu passado
biológico (genital). Quer dizer, mulheres não trans parecem não conseguir
enxergar que o processo de formação da identidade de gênero (o seu próprio),
do próprio gênero que professa (e acredita ser natural) também é uma
invenção que lhe impuseram (à criança) e que ligaram esta imposição a partes
do seu corpo (vagina e seios, por exemplo) e que elas aceitaram durante
décadas, séculos, milênios sem questionar. O que, talvez, cause incômodo nas
outras mulheres diante das transexuais – nome5 que a propósito penso que não
serve para nada - é ver que o processo transexual – o tornar-se mulher – não é
algo concebido pela natureza, mas algo que é eminentemente inventado e sem
originalidade pela qual todas as mulheres passam, portanto, o que incomoda
não é tanto uma feminilidade que beira à inércia política (não feminista) e ao
pseudoconformismo de gênero em que estavam imersas, mas, talvez, a
visualização, a tomada de consciência do próprio processo do “tornar-se
mulher” que é comum e até idêntico em alguns casos.
Berenice Bento em seu “A Reinvenção do Corpo” a este respeito se
pergunta se
Não seria equivocado exigir que as/os transexuais sejam
naturalmente
compartilham
subversivos/as,
os
sistemas
quando
simbólicos
também
socialmente
significativos para os gêneros? Será que a própria
experiência já não contém em si um componente
Cf. Chiland, 1999 apud. Bento, 2006.
Uma vez que reduzimos, novamente, gênero à questão sexual, por conseguinte, reduzimos
sexo e sexualidade a genitalidade.
4
5
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subversivo, na medida em que desnaturaliza a identidade
de gênero? (BENTO, 2006, p. 100).
A mim me parece um pouco chocante quando Bento (2006) lança mão
de uma citação de Collete Chiland (1999) quando diz que
O discurso dos transexuais interrogados sobre o que é a
masculinidade ou a feminilidade é notavelmente pobre e
conformista.
O
discurso
típico
de
um
transexual
biologicamente homem é: „Me casaria, ficaria em casa, me
ocuparia da cozinha, esperando que meu marido voltasse
para casa, passearia com a criança (adotada) em um
Landau‟. Para não se encontrar reduzida a esta situação,
as mulheres de nossa cultura lutaram durante décadas,
inclusive séculos (CHILAND, 1999, p. 71 apud BENTO,
2006, p. 100).
Se por um lado Bento (2006) tenta razoabilizar, contornar as acusações
feitas por Chiland (1999) – para quem se é biologicamente macho ou fêmea,
homem ou mulher, masculino ou feminino - contra as transexuais, por outro
parece ratificar as críticas de Chiland (1999) quando observa que o próprio
caráter da experiência conta como subversão de um gênero que se quer
natural e, no limite, é assim interpretado. Ao passo que Chiland (1999) busca
por definições políticas – do que é ser homem e mulher nas relações de gênero
mediadas por contextos de força e essências de gênero – e, em tais, procura
enquadrar a todos, ou melhor, todas. Bento (2006) parece mais compreensiva,
mais amigável e, assim, procura nos contornos a razão para sua composição
de gênero como uma experiência que em si mesma parece já ser subversiva o
que é também em alguma medida questionável.
Mas, de fato, não posso concordar quando Bento (2006) faz uma
menção a respeito da desnaturalização da identidade de gênero. A mim me
parece que a este respeito Chiland (1999) tem alguma razão. Mas, o fato não é
a identidade viciada, mas sim, a própria idéia de constituição de gênero que
está em jogo. Chiland (1999) parece ressentida com a resposta da transexual e
Bento (2006) parece conformada com o que imagina a desnaturalização da
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identidade de gênero pela constituição de um gênero que não é natural, mas
fabricado6. Quer dizer, há uma contestação de uma para outra (de Bento para
Chiland), mas ambas estão em situação e posição distintas fazendo perguntas
a respeito do mesmo objeto7. Se o que importa para Bento (2006) é a
subversão da invenção do gênero que se supunha natural e isto é relevante
para a constituição de gênero, Chiland (1999) procura por definição de gênero
pelos caminhos do feminismo politizado, da contestação a um gênero opressor
(masculino/homem) que a transexual parece personificar, acordar, obedecer.
Enfim, o acordo entre ambas se torna um pouco difícil porque o olhar de uma
é a respeito da constituição e o da outra é da consciência política que, em tese,
seria a única possibilidade possível de constituição necessária. Ou seja, a
invenção de um gênero forte o suficiente para pelejar (o feminino). O que
ocorre é que há um radicalismo nas idéias, principalmente, nas de Chiland
(1999).
A pergunta, pois, é: que identidade de gênero os/as transexuais
subvertem através de suas experiências de gênero8? Por que considerar o/a
transexual como subversiva/o do gênero quando já não mais entendemos o
gênero
por
uma
questão
substancial,
ontológica
(posição
teórico-
epistemológica)? Encarar a/o transexual como subversiva/o em alguma
medida não esconde ainda posições essencialistas, uma vez que, só se
subverte o que se imagina como normal/natural9, ou seja, considerar a
mulher trans como mulher trans não significa que estamos lidando com
algum tipo de essencialismo embutido nas análises? E mais: em que medida a
feminilidade ou a masculidade pode ser mensurada em um quantum de
pobreza ou riqueza? E quem poderá dizer o que é rico ou pobre em relação à
Mas, afinal, há um gênero que não seja fabricado?
A crítica, portanto, de ambas, recai nas epistemologias de gênero e nunca, porém, no próprio
objeto. É muito comum a confusão que pesquisadores sempre fizeram a respeito da pergunta e
geralmente sem resposta “o que é um objeto de pesquisa?”. Tendemos a nos encaminhar, pois,
para algo que é subjetivo, recortado de um determinado contexto, que é, como em Weber, um
ordenamento subjetivo (ideal) da realidade. Pois assim, partindo deste ponto temos que o nosso
objeto tem o seu estatuto ontológico assegurado, isto é, ele não poderá ser outra coisa que não
ele mesmo e tudo o que ele aparenta são apenas leituras – nalguns casos má feitas e
ideologizadas – pelas quais nós lutamos. O que vemos, pois, como “objeto de pesquisa” é algo
morto que vamos ali com nossas ferramentas (métodos) escarafunchar e depois lamentar ou
guerrear contra os que se anteciparam a nós nesta arte legista e sobre este corpo morto
disseram o que desejavam dizer mediante os instrumentos que usaram e o pensamento que
confeccionaram.
8 A „subversão‟ está na propria experiência de quem experimenta o „fenômeno‟ ou na percepção
do observador que nomeia a experiência do seu observado?
9 Neste contexto, especificamente.
6
7
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feminilidade e masculinidade? Quem se arrogaria a esta função, a este lugar
de poder?
O
extremismo,
a
radicalidade
de
algumas
análises
impede
a
visualização de que há um plural no singular, isto é, a mim me parece que
Chiland (1999) deixa de considerar ou apenas considera como válida uma
„feminilidade feminista‟ se é que podemos considerar deste modo. A descrição
de feminilidade da transexual que Chiland (1999) nos oferece não fere o
princípio da igualdade do gênero, muito menos a busca por uma consciência
política feminista, uma vez que, esperar o marido, passear com a criança ou
mesmo
se
ocupar
da
cozinha
não
significa
que
a
mulher
tenha
necessariamente que ser submissa na relação de gênero ou que estas práticas
constituam, elas mesmas, toda a realidade da vida da mulher ou mesmo que
estas práticas sejam essencialmente interpretadas como femininas. Se algum
dia isto significou o modo pelo qual os homens oprimiam as mulheres hoje o
contexto é diferente, porque isto não é uma determinação, uma lei inexorável
ad infinitum. Considerar que “ficaria em casa, me ocuparia da cozinha,
esperando que meu marido voltasse para casa, passearia com a criança
(adotada) em um Landau” como algo pobre e conformista significa dizer que há
algo no gênero (feminino) que é essencial (riquíssimo) e que a mulher tem de
descobrir; que há qualquer outra coisa no gênero (feminino) de superior a
estas práticas constitutivas do gênero (masculino e feminino) e que,
„substancialmente‟, a mulher feminista procura se afastar. Resta, então, saber
quem vai lavar os pratos depois do jantar caso a feminista seja casada e em
caso de ser solteira se vai usar o serviço de uma outra mulher ou de um
homem. Pois, não vejo estas práticas constitutivas do gênero como algo,
eminentemente, problemático para o gênero feminino, mas o enxergo como
algo extremamente
delicado quando observamos práticas
constitutivas
historicamente do gênero feminino praticadas cotidianamente pelo masculino
sem nenhuma alteração substancial ao seu respeito. Quer dizer, há milhares
de homens que – por diversas razões – esperam suas mulheres em casa,
pegam as crianças na escola, fazem o jantar e logo depois de ver a novela
lavam os pratos. A pergunta, então, é: estas práticas, em tese, constitutivas do
gênero feminino quando praticadas pelo masculino faz dele feminino? Parece,
então, que voltamos ao caráter da diferença substancial dos corpos, mas não
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da prática, para a compreensão do que é o gênero. A este respeito Kate
Bornstein (apud BENTO, 2008, p. 49) nos diz que
Penso que o biológico e, em particular, os genitais são
decisivos para a noção que esta cultura tem de gênero. E
acredito que vai passar muito tempo antes que a essa
influência diminua. E acredito também que durante esse
tempo, que eu vejo muito, muito longo, sempre vai haver
pessoas para quem a cirurgia de conversão vai ser algo
imprescindível para sentir-se bem.
Portanto, a mim me parece que o “biológico e, em particular, os genitais” são
mecanismos de estratégias na composição de identificação do gênero que nos
remete para mecanismos de estratégias políticas na relação de gênero, mas
que não define, nem reduz nenhum dos gêneros às suas práticas, uma vez
que, é mais do que evidente que “lavar pratos, ou esperar o companheiro ou
companheira” já não é mais uma prática eminentemente e inexoravelmente
determinada e, portanto, que se aplique exclusivamente a qualquer dos
gêneros como elemento fundante de seu gênero. Ler, portanto, o “biológico e,
em particular, os genitais” numa perspectiva de poder significa que a relação
que se pretende margeada pela força (política) deve ser interpretada como um
gênero fantasmagórico, um gênero que sobrevive das ruínas e das crenças que
depositamos nelas, mas também significa o meio pelo qual ganhamos ou
perdemos “coisas” nesta mesma relação; significa ainda que o gênero nega
„substancialmente‟ esta perspectiva biologizante10 pelo qual homens oprimiram
mulheres, mas
também meio
pelo
qual
mulheres
questionaram este
fundamento e se posicionaram diferentemente no campo das relações de
gênero exigindo igualdade nas relações de forças. Significa, em última
instância, declarar que o gênero que olhamos no início como fruto de nossa
observação, como objeto de nossa pesquisa, deixou de ser ele mesmo, gênero,
para transformar-se diante de nossos olhos em fantasma, ruínas de um tempo
que ainda deseja se impor na forma de um monumento (gênero), mas que é
preciso, pois, ousar e erguer a marreta e a golpes duro quebrar-lhe, afastar de
E o biológico aparece como uma artimanha, uma estratégica no jogo das relações política do
gênero, uma vez que, as práticas de gênero não são exclusivas, determinadas.
10
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nós os seus escombros. É preciso, pois, olharmos mais adiante lá onde o
possível se ergue e nos oferece as suas possibilidades que não se quer homem,
nem se quer mulher, mas nos convida à experiência de sermos os frutos das
nossas imaginações até onde formos capazes de nos imaginarmos.
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ABREU, Berenice 1. Intrépidos Romeiros do progresso: Maçons cearenses no Império.
Fortaleza: Museu do ceará, 2009, 187 p.
Adson Rodrigo Silva Pinheiro 2
No ano de 2009, devido à comemoração dos 150 anos de fundação da loja
Fraternidade e a singularidade do assunto sobre Maçonaria, o Museu do Ceará convidou a
pesquisadora Berenice Abreu para publicar sua pesquisa realizada no mestrado em Sociologia
na UFC sob a orientação da professora Maria Auxiliadora Lemenhe.
Vinda de um período em que havia poucas produções acadêmicas sobre a Maçonaria e
motivada pela provocação formulada pela professora Célia Marinho no artigo de 1997 sobre
Historiografia e Maçonaria acerca do desinteresse, ou melhor, do silêncio atual em torno da
história dessa instituição, a autora se propõe, nesse livro, a contribuir de forma significativa na
composição da história da maçonaria cearense, divulgando, assim, o que se passou sob e fora
das colunas dessas lojas na segunda metade do século XIX, em que esses intelectuais
gestados, no interior dessa instituição, em Fortaleza, encravaram a sua participação na
composição das páginas da história da nossa cidade.
A obra é composta por 4 capítulos os quais se remetem à problemática central da
autora, que se propõe em analisar a sociabilidade maçônica a partir dos anos setenta do século
XIX. Nesse período, a Maçonaria teve de redefinir suas práticas e representações em virtude
do confronto estabelecido com a Igreja Católica, conflito que ganha força com a Questão
Religiosa, episódio relacionado com os dias últimos do império. Nesse confronto, entendido
aqui pela autora em um campo político e intelectual, eram disputadas posições de prestígio
frente a alguns espaços fundamentais, como os das irmandades religiosas e da educação
popular em que estava em jogo a legitimidade da construção de representações sobre o social.
Porém, confrontos como esses aconteceram de forma mais assídua pela imprensa por
meio do jornal Fraternidade, que circulou entre 1873 a 1875, e o Tribuna Católica, onde a
troca de acusações, a disputa por espaços e a sobreposição de ideologias da Maçonaria e da
Igreja Católica, respectivamente, eram inflexíveis. No plano de fundo de toda essa discussão,
a Maçonaria tentava combinar a condição de vanguarda das ideias iluministas a um tipo de
sociabilidade marcada pela recorrência à tradição, recurso usado para a construção da imagem
1
Berenice Abreu é graduada em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Questões
Teóricas e Metodológicas em História, mestre em Sociologia na mesma universidade em que se graduou e é
doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou pelo Museu do Ceará a obra
“Do Mar ao Museu: a saga da jangada São Pedro” e hoje é professora adjunta no curso de História da
Universidade Estadual do Ceará (Uece).
2
Graduando em História – Universidade Estadual do Ceará (Uece).
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de um passado ideal e glorioso, a fim de legitimar o presente, usado tanto pelos intelectuais
ilustrados maçons quanto pelos católicos ultramontanos conservadores.
Mesmo diante das dificuldades de reunir e localizar as fontes, a autora consegue, com
densidade e desenvoltura, desenvolver e revelar o importante envolvimento da maçonaria
brasileira na esfera política, religiosa e intelectual da época do período imperial brasileiro, que
em seu seio pode contar com um significativo número de homens intelectuais da elite
brasileira, os quais buscavam criticar o conservadorismo católico e entrar em defesa da
formação de uma cidade moldada nos padrões da modernização ilustrada.
Com criatividade e com uma essência de escritora nata, Berenice Abreu introduz seu
livro com uma passagem do romance A Rainha do Ignoto, em que narra o clima de
curiosidade gerado pela volta de uma personagem, o jovem bacharel Edmundo a Passagem
das Pedras vindo da Escola de Direito de Recife. Essa personagem se torna importante na
narrativa devido a suas características e às reações daqueles que o circundava: a vizinhança ao
se deparar com o mistério que está embutido sobre a sua condição de maçom. Essa
obscuridade e esses estereótipos sobre a figura do maçom e da Maçonaria, que carregava a
imagem de Edmundo, vão extrapolar as páginas da obra de Emília de Freitas, e se manifestar
além do século XIX, persistindo em nossos dias, apesar de menores proporções, com bem
afirma a autora.
Além disso, perguntas como o que é ser maçom realmente, ou o que fazem no interior
de suas “lojas”, bem como os seus objetivos e se esta instituição é uma religião ou uma seita,
são curiosidades dos leitores, compartilhadas também por Berenice Abreu, que através do seu
instinto de historiadora, vai buscar empreender uma investigação sobre essas questões.
Outro importante ponto da obra são as discussões de conceitos apresentados na
introdução do livro e percebidos no decorrer da narrativa. Por exemplo, para se entender as
situações vivenciadas pelos maçons cearenses, a autora utiliza-se do conceito de campo de
BOURDIEU que ao ser aplicado para se entender o relacionamento entre Maçonaria e Igreja
Católica na sociedade do século XIX se pressupõe “a existência de luta, de concorrência, e
nesse sentido sugere que há algo sendo disputado e agente envolvidos nessa disputa”
(ABREU, 2009, p.14) por esse campo. Outra forma de se utilizar desse conceito é entender
que esses agentes são capazes de impor suas representações e apresentá-las enquanto legítima.
Esse conceito é bem trabalhado quando a autora analisa os jornais Fraternidade e Tribuna no
3º Capítulo.
Outra consideração apresentado por Berenice Abreu é o de habitus também apropriado
de BOURDIEU onde o autor pressupõe a existência de conhecimentos adquiridos pela
experiência em outros jogos, em que é interessante por afirmar não apenas a carga histórica /
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conceitual que marca o indivíduo e que o faz agir de acordo com essa aprendizagem
(ABREU, 2009, p.15). Experiências adquiridas por cada uma das instituições mencionadas
nesse texto, a Católica e a Maçônica, em seus confrontos através da imprensa.
Depois da apresentação do quadro teórico posto pela autora, podemos analisar o 1º
Capítulo – “A Maçonaria Alimentando Utopias de Liberdade e fraternidade universais” em
que Berenice Abreu inicia apresentando uma das principais fontes de sua pesquisa – O jornal
Fraternidade, que se propunha como mesmo sugere a pesquisadora, abalar profundamente a
católica e provinciana sociedade cearense de então. O ideário liberal / ilustrado e positivista,
tão presente na Maçonaria, orientava os trabalhos dos jovens redatores do Fraternidade, nos
quais se defendiam as principais bandeiras das reflexões postas pelos maçons , tais como a
liberdade religiosa, Estado e ensino laicos, casamento civil, educação popular e muitas outras
que são retomadas principalmente no 2º Capítulo no embate do jornal Fraternidade com o
jornal Tribuna.
Um ponto interessante ressaltado aqui é o papel da imprensa no período imperial, pois
o entendimento da luta travada nesse meio de comunicação protagonizada no Ceará leva a
compreensão do conflito travado por esses dois segmentos na disputa do poder na sociedade
cearense naquela época. Nesse capítulo, são apresentadas algumas figuras relevantes no
quadro da Maçonaria, uma dessas é o Imperador D. Pedro I, Grão Mestre, dirigente da
Maçonaria, que nos leva a compreender a razão de certa calmaria entre essa instituição
supramencionada e o Estado, bem como com a própria Igreja Católica que estava atrelada ao
último pelo regalismo, padroado e beneplácito por algum tempo no cenário social. Outros
nomes ilustres como os do Visconde do Rio Branco responsável pela lei do Ventre Livre e
Saldanha Marinho, importante membros maçônico são lembrados como ícones pela
instituição.
A maçonaria encontrará defesa também no Ceará. Os maiores representantes locais da
ilustração do século XIX listados são Tomas Pompeu, João Brígido dos Santos, Araripe
Júnior, Raimundo Farias Brito, nomes conhecidos por grande parte dos historiadores
cearenses eram maçons. Ter o conhecimento desses nomes tão importantes nos leva, assim
como a autora, a pensar sobre o que teria levado, ou que força “magnética” era essa que atraiu
tantos homens ilustrados, e tanta aversão da instituição Católica? A resposta aparentemente
dimanará, caso o leitor elucubre sobre a época em que a Maçonaria se desenvolveu. Um
período marcado pelo positivismo e pelo cientificismo, onde a ideia de progresso e civilização
permeavam o cenário político, econômico e intelectual da sociedade cearense e que procurava
por em xeque o tradicionalismo de muitas instituições, sendo uma delas, a religiosa.
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Ademais, Berenice faz uma análise da chegada da maçonaria no Brasil e o importante
papel da mesma em momentos de emancipação política como os movimentos no período
colonial, a Inconfidência Mineira e a Sedição dos Alfaiates, e posteriormente as Revoluções
Pernambucanas de 1817 e 1824. A obra também presta o olhar sobre o envolvimento da
maçonaria com a política, relação que acabou gerando o surgimento das primeiras lojas e as
primeiras cisões internas devido às divergências de opiniões encaminhadas desde a
independência do Brasil.
A autora conclui em “A Maçonaria Alimentando Utopias de Liberdade e fraternidade
universais”, apontando o caráter cosmopolita e secreto dessa instituição, que reúne homens de
diferentes raças, religiões e línguas e que, embora apresente diferenças, tem um único
objetivo chegar à perfeição por meio do simbolismo de natureza místico e/ou racional, da
filantropia e da educação.
O 2º Capítulo intitulado “A maçonaria no Ceará e as novas elites urbanas” aborda os
primeiros registros que se tem de loja Maçônica no Ceará que remontam à década de 1830,
mas é possível que já houvesse notícias da maçonaria na província bem antes como nos alvitra
Berenice Abreu. O espírito maçônico cearense encontrava, na figura do padre José Martiniano
de Alencar, defesa e proteção. Essa figura nos lembra a participação de membros da Igreja
Católica atuando na Maçonaria. Talvez o leitor se pergunte: O que levava esses padres a
aderirem ao pensamento maçom? Esses vigários encontravam a formação liberal, encontrada
na doutrina maçônica que permitia ao clérigo possibilidades eficaz de uma ação política.
Concordo com a autora, em um ponto muito interessante, em que discute a gênese e o
desenvolvimento das lojas e da instituição. Berenice Abreu associa o surgimento e a
ancoragem das lojas ao desenvolvimento econômico da província. Um exemplo disso é o
aparecimento das primeiras em Aracati, cidade que se estruturou com a ajuda da pecuária.
Posteriormente, no século XIX, as lojas se fomentam em Fortaleza quando o surto do algodão
desenvolve e gera transformações tanto na estrutura quanto nos hábitos da população da
cidade. Nesse clima de mudanças, a imprensa se configura como campo fértil em que ideias e
concepções de mundo distintas se apresentavam e se digladiavam. Nessa “arena” como já
falamos se encontrava o Fraternidade e a Tribuna Católica.
Em “Maçons e ultramontanos: o campo de combates” se vê o conflito entre os jornais
supracitados. A construção e utilização de imagens para degredar uma instituição ou outra é
feita de forma direta. Os maçons criticavam o conservadorismo, associado com aquilo que
denominariam de jesuitismo, identificando e fazendo alusão à ordem dos jesuítas, defendidas
pela Igreja de Roma. Essa ordem é acusada pelos maçons pelo “retrocesso mental” e atraso do
processo de “civilização”. Queriam uma educação que estimulasse por excelência o acesso ao
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conhecimento pelo povo, com uma proposta de uma Escola Popular capaz de instruir as
camadas populares.
A Igreja respondia as provocações e procurava criar um clima de suspeita e de tensão
sobre os segredos e o caráter revolucionário da Maçonaria, chamando-a de conspiradora e de
ameaça contra o trono e o altar. A Maçonaria contrapunha; buscava espaços além da imprensa
que tinham forte influência da Igreja, como as instituições religiosas e a educação.
É interessante como a autora descreve esse confronto pela disputa desses espaços, os
argumentos e a busca de formas para a manutenção do poder apresentadas por Berenice
Abreu é descrito de forma ímpar. Apresentam, principalmente, reações mais duras contra a
maçonaria da Igreja Católica como a privação de seus membros de participarem de
sacramentos como o batismo.
No último capítulo, “A cidade e a loja maçônica” a autora vai trabalhar a loja e a
esfera pública burguesa e ensejar partes da ritualística no interior das lojas. A autora se
apreende as formas de como são realizados os trabalhos nas lojas, bem como a hierarquia que
marca os rituais com seus de objetos e vestimentas.
Berenice Abreu encerra esse capítulo com a “sociabilidade Maçônica” apontando o
caráter burguês e moderno desse espaço de sociabilidade representado pela loja, onde a
Maçonaria é uma instituição que se fundamenta na aprendizagem moral e intelectual pela
utilização de símbolos e alegorias, revelados pelo ritual. Isso quer dizer que vivenciar essa
sociabilidade é compartilhar desse aprendizado ritualizado oferecido, em parte pelo menos,
pela tradição (ABREU, 2009, p.153).
Podemos assim concluir com a leitura, que a Maçonaria desenvolveu-se no mundo
moderno como uma espécie de abrigo seguro, na qual as novas camadas burguesas em
ascensão, os intelectuais, particularmente, poderiam vivenciar a aprendizagem de novas
práticas e ideias que não podiam ser experimentadas abertamente. A maçonaria encontrou no
caráter cosmopolita, secreto e iluminado das lojas, um campo capaz de desafiar os poderes
das instituições dominantes a Monarquia Absoluta e a Igreja. A supremacia do indivíduo, a
garantia jurídica da liberdade, a laicização de várias instancias sociais, a liberdade religiosa
são algumas bandeiras levantadas pela Maçonaria e que lhe custou à própria imagem
representada durante os séculos seguintes. Trocas de acusações na imprensa entre
ultramontanos e maçons marcaram o cenário político do século XIX, porém as cicatrizes
causadas pela Igreja Católica, ou seja, os estereótipos persistem até hoje, em pleno século
XXI. E concluo essa análise esperando que novas “luzes” surjam como propuseram o
movimento Ilustrado do século XIX, para assim compreendermos melhor, sem pré-conceitos,
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e de forma clara os segredos e a mística que envolve os interiores das lojas dos “intrépidos
romeiros do progresso”.
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UNA MIRADA HISTÓRICA A LA INVESTIGACIÓN CON SERES HUMANOS. LA
IMPORTANCIA Y DIFICULTADES DE LOS COMITÉS DE ÉTICA EN ARGENTINA1
2
María Fernanda Sabio3
Resumo
A história da pesquisa com seres humanos mostra os abusos que podem chegar
os investigadores livres em sua “boa consciência”. Atualmente o panorama é muito
mais complexo que outrora: a presença de patrocinadores externos e a colaboração
multicêntrica dão lugar a um novo quadro no qual aparecem as agencias reguladoras
estatais e os comitês de ética. Por outro lado, o nascimento dos comitês de ética
responde a necessidades distintas no âmbito internacional e argentino. Neste trabalho
se apresenta uma breve resenha da história da investigação com seres humanos e do
surgimento dos comitês de ética. Finalmente, se apresenta uma análise da importância
dos mesmos e dos problemas que enfrentam na Ciudad Autónoma de Buenos Aires e
arredores.
Introducción
A pesar de su halo de asepsia, la supuesta neutralidad de las ciencias es, en el
mejor de los casos, una ficción no percibida como tal y, en el peor de ellos, simple
hipocresía. La evolución de la investigación médica puede explicar la cuestión.
1 El presente trabajo de investigación fue realizado con el apoyo de la Universidad Argentina de la
Empresa y una Beca “Ramón Carrillo-Arturo Oñativia” a nivel de Servicios de Salud, Categoría
Perfeccionamiento, otorgada por el Ministerio de Salud de la Nación a través de la Comisión Nacional
Salud, Ciencia y Tecnología.
2 Agradezco muy especialmente a la Prof. Dra. Florencia Luna por su confianza y su guía inapreciable, no
sólo en este trabajo, sino desde mis comienzos en la bioética. Al Dr. Martín Cuesta y al Mg. Juan
Battaleme por su contribución incondicional y constante apoyo. A la Lic. Alicia Lanzilotta por la
información acerca de CEI de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Al señor Demián Argento Díaz por
facilitar las tareas administrativas más allá de su función como secretario del comité de bioética del Htal.
Nacional Prof. Dr. Alejandro Posadas y a todos los comités de bioética que hicieron posible este trabajo al
participar en él. Finalmente, agradezco al señor Christoval Araujo Santos Junior por su valiosa ayuda en
esta publicación.
3 Profesora de Enseñanza Media y Superior en Filosofía. Investigadora y docente de Filosofía en la
Universidad Argentina de la Empresa y docente de Bioética de la Facultad de Medicina de la Universidad
de Buenos Aires. Miembro del Comité de Bioética del Hospital Nacional Prof. Dr. Alejandro Posadas y de la
clínica de fertilización asistida Procrearte. Doctoranda de la Facultad de Medicina de la Universidad de
Buenos Aires.
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Durante años, la experimentación con seres humanos se dio bajo un modelo
paternalista en el que el médico, portador indiscutible del saber y la autoridad, hacía
sus descubrimientos mediante prueba y error en su práctica cotidiana. No se pensaba
que de los actos médicos se podían derivar consecuencias negativas y se confiaba en la
buena voluntad de los investigadores. Pero la complejidad que esta actividad ha
alcanzado hoy en día deja al descubierto lo que antes estaba solapado: un acto médico
que repercute en la salud de una persona no puede ni debe ser pensado como un
hecho aislado o privado, y menos aun, cuando de experimentación se trata. Así, las
nuevas características de la relación sujeto de investigación-investigador4 explican el
papel de las agencias reguladoras estatales y de los comités de ética de la
investigación. Estos últimos deben tener un lugar central en la regulación de la
investigación médica, ya que son la mejor alternativa ante dos fuerzas: los
patrocinadores que en muchas circunstancias se manejan con la lógica del mercado5 y
el peligro de un Estado autoritario o con una administración corrupta.
Este trabajo comienza con una breve historia de la investigación con seres
humanos y una presentación de los actores que hoy en día entran en juego en la
misma, junto con la historia del surgimiento de los comités de ética. A partir de dicha
historia, se analiza la importancia de los comités de ética que se encuentran insertos
en instituciones de salud para la descentralización de la evaluación y aprobación de
protocolos. Finalmente, se presentan algunos resultados de una investigación sobre
comités para conocer sus dificultades.
Sobre la historia de la investigación
Entenderemos por práctica médica todo acto realizado en el cuerpo de un
paciente con el objetivo de diagnosticar y tratar sus enfermedades; mientras que por
investigación médica, aquella actividad encaminada a conocer el posible carácter
diagnóstico o terapéutico de una intervención o un producto de aplicación médica. La
4 Ya no se puede pensar en un investigador aislado, preocupado por aumentar su conocimiento. Uno de
los nuevos actores es la industria farmacéutica. La misma maneja millones de dólares y sus intereses
son exclusivamente comerciales. Y si bien no se debe obviar lo importante que resulta la subvención que
esta aporta como patrocinadora de la investigación científica, no se pueden dejar en sus manos
decisiones que competen a toda la población.
5 No hay que limitar lo que se debe entender por investigación médica a la investigación farmacológica
patrocinada por la industria farmacéutica. Nos centramos en esta porque es la que hace más evidente lo
político.
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investigación médica se encuentra dirigida a validar las herramientas que son
utilizadas en la práctica médica en general.
La relación entre práctica e investigación ha tenido dos momentos: en el
primero, lo central era la intención; en este período, se buscaba el beneficio del
paciente y sólo de manera colateral el aumento cognoscitivo que se daba, simplemente,
como un doble efecto en la práctica médica; en el segundo, ambos aspectos pasan a
diferenciarse por la validación. Hoy se habla de “medicina basada en la evidencia” 6
justamente como parte de este segundo momento en la relación entre la práctica
médica y la investigación médica. La función de la investigación está claramente
definida: validar la práctica.
El pasaje de un momento a otro se da de manera más o menos abrupta. La
historia de la investigación con seres humanos está conformada por tres períodos: el
primero va desde los comienzos de la medicina hasta fines del siglo XIX; el segundo,
desde entonces hasta 1947; y el tercero se extiende hasta nuestros días.
En la primera etapa, la medicina era considerada esencialmente como
beneficente; es decir, los descubrimientos se daban por accidente. La investigación
pura sólo era lícita si se llevaba a cabo con animales, cadáveres y condenados a
muerte.
A finales del siglo XIX, se empieza a pensar que todo acto médico debía ser
validado; es decir, debía mostrar su temple a través de la investigación. Así, una
práctica será beneficiosa para el paciente, si ha pasado por la etapa de prueba
correspondiente. Varias razones explican el pasaje de un modelo de investigación a
otro. Entre ellas, el reconocimiento de que el principio de analogía no es suficiente
para conocer a ciencia cierta el comportamiento de los fármacos en el cuerpo
humano7. Por otro lado, se empieza a reconocer la necesidad de controlar los
experimentos. Es decir, crece el afán de manejar la mayor cantidad posible de
variables implicadas en las investigaciones médicas; intento de hacer desaparecer el
azar. De esto modo, la beneficencia quedó desdibujada: se hizo necesario justificar
6 Esta es una traducción poco feliz de la expresión en inglés evidence based medicine; ya que el término
evidence está más ligado al nuestro prueba. La connotación de evidencia en español es tan fuerte que
casi implica la imposibilidad de refutación, además de que supone la no necesidad de demostración; una
evidencia es un axioma que se toma por cierto; mientras que prueba puede ser entendido como un
argumento que nos permite sostener nuestra posición.
7 No basta la experimentación con animales; esta no se puede extrapolar de manera acabada a los seres
humanos.
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investigaciones que pudiesen ser nocivas para el sujeto que participara en ellas8. Pero,
al igual que en el período anterior, se concebía a la ciencia como una actividad ajena a
otras esferas como la política: se creía que los científicos eran capaces de
autorregularse y cualquier injerencia en su quehacer era impensable.
El tercer y último momento se da a partir de 1947; año en el que se firmó el
Código de Nüremberg, cuyo eje era el respeto de la autonomía del paciente. En él,
teniendo en cuanta las atrocidades cometidas por los investigadores avalados e
impulsados por el Estado nazi, se decide la prohibición de toda investigación en la que
el sujeto de estudio no tenga conocimiento de su status de tal y/o no consienta en
participar de la misma. Es decir, el consentimiento informado aparece como forma de
garantizar que los participantes de un proyecto de investigación están al tanto de su
papel en el mismo; dado que la etapa anterior demostró que no es posible confiar en la
moralidad de los investigadores. Este tipo de protección es necesaria, pero no
suficiente; ya que se han cometido infinidad de abusos en nombre de la autonomía. Se
ha confundido durante años al consentimiento informado con un requisito legal que
sirve de prueba de que una persona (o su representante legal) dijo que estaba
dispuesta a someterse a la nueva práctica médica que se desea estudiar. Por esta
razón, surgen dos posturas: una, crítica del principio de autonomía y nostálgica de la
beneficencia del primer momento; la otra, defensora de la necesidad de buscar
principios más complejos.
La perspectiva nostálgica queda plasmada en la Declaración de Helsinki de
1964. En ella, hay una vuelta al modelo clásico y, aunque no se desconoce el principio
de autonomía, existe un corrimiento del mismo. El texto es bastante confuso y no
parece entender la nueva concepción de actos médicos que ya no es posible soslayar:
la validación es ineludible; y no se puede evitar poner entre paréntesis la beneficencia
del sujeto que forma parte de un protocolo de investigación científica.
Nos encontramos frente a un problema: la medicina es una profesión basada
esencialmente en la beneficencia. Y, si no se puede beneficiar, al menos, se debería
evitar provocar daño. El famoso primum no nocere hipocrático que guía al quehacer
médico. Pero, al entrar en un protocolo de investigación, los riesgos que se corren son,
8 Esto no quiere decir que la validación a través de la experimentación sea última y definitiva. De hecho,
la fase cuatro de investigación es lo que se conoce como “farmacovigilancia”; momento en el que los
medicamentos y procedimientos terapéuticos entran en el mercado porque ya han sido validados.
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en líneas generales, mucho más altos que los posibles beneficios. Así, teniendo en
cuenta el pasado poco favorable a la conciencia de los científicos, junto con la
experiencia de Estados autoritarios o con una administración corrupta que resultaron
promotores de los peores abusos (como en el caso nazi), se explica que la segunda
postura defienda la necesidad de encontrar principios más complejos que regulen la
investigación médica. Es así como surgen, impulsados por los NIH (National Institutes
of Health) de EE.UU. en 1966, normas internacionales para la investigación con
sujetos humanos. En estas normas se explicita, entre otras cosas, la necesidad de la
revisión de todo protocolo científico por un comité de ética.
Los actores y el nuevo escenario
Durante las últimas décadas, la investigación en medicina se ha complejizado,
dejando al descubierto, como nunca antes, sus implicancias políticas. Con el fin de
entender de manera acabada el nuevo escenario, presentamos sus distintos
integrantes.
1) Sujetos de investigación: si bien es necesario tener presente que existen
distintas fases en la investigación, resulta complicado suponer que algún
participante de cualquiera de ellas no es, de algún modo, vulnerable 9.
Pensarlos como simples contratantes es ignorar este dato. Es cierto que con
el consentimiento informado existe, de hecho, una suerte de contrato, pero el
mismo está enmarcado en una situación con características peculiares. Por
otro lado, clasificarlos como víctimas sería afirmar que serán tratados
injustamente o dañados adrede. Según Florencia Luna, los sujetos de
investigación tienen características tanto de contratantes, como de víctimas.
Esto explica la importancia del consentimiento informado y la necesidad de
una regulación que vaya más allá de la confianza en la moralidad de los
investigadores o de las agencias reguladoras estatales.
2) Investigadores: muchas veces realizan el diseño de la investigación. Pero no
siempre es así. Hoy en día, gran parte de los protocolos no se dan de manera
aislada en un centro particular, sino que suponen la colaboración de varios
9
Incluso en la primera fase, en la que muchas veces se trabaja con voluntarios sanos, estos
suelen ser coaccionados a través de retribuciones económicas.
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centros al mismo tiempo. Es lo que se conoce como investigación
multicéntrica. En los países en vías de desarrollo, aquellos llamados
investigadores que participan en ensayos multicéntricos patrocinados desde
el exterior (muchas veces por la industria farmacéutica), suelen ser los que
conducen el ensayo y velan por su correcta implementación y no quienes los
diseñan; son simples colaboradores. Así, podemos identificar dos tipos de
investigadores: 1) el “académico”, probablemente, interesado en conseguir
publicaciones; cosa que no siempre sucede; ya que esta posibilidad está
sujeta a las respuestas positivas en el ensayo; 2) el que trabaja para la
industria10, que estará más interesado en su salario y se guiará por el
mercado.
3) Patrocinadores: la industria farmacéutica y algunas compañías privadas
suelen financiar gran parte de la investigación11. Su interés primordial es
que los protocolos se realicen de manera correcta; dado que aquellos
procedimientos o drogas que resulten validados deberán ser aprobados por
las agencias regulatorias. Desde su perspectiva, el proceso de investigación
debe ser lo más veloz posible; ya que cada día se gastan miles de dólares y
una investigación completa puede durar de ocho a doce años. Esto sin tener
en cuenta la competencia existente entre las distintas compañías y el apuro
por conseguir las patentes. Este hecho explica la necesidad de la
colaboración multicéntrica12.
4) Agencias regulatorias: son las encargadas de aprobar las nuevas drogas,
evaluar efectos secundarios y brindar información confiable. Lo central para
estas agencias es el cuidado de la salud pública y, por lo tanto, de la
población que utilizará estas drogas. Con este fin, realizan inspecciones y
formulan regulaciones.
5) Comités de ética de la investigación: su principal función es la de velar por la
seguridad de los sujetos de investigación. Su trabajo gira en torno a la
10 Los protocolos promovidos por la industria vienen acompañados de incentivos económicos muy
jugosos.
11 Las universidades y ciertos organismos de gobierno también financian parte de las investigaciones en
salud.
12 Para la fase II y III de la investigación, la inclusión rápida de sujetos en el protocolo acorta los
tiempos.
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evaluación de los aspectos éticos de los protocolos de investigación. En la
última revisión de la Declaración de Helsinki, en el año 2000, se abre la
posibilidad del monitoreo en campo de los protocolos una vez aprobados. Es
decir, de verificar que no sólo en los papeles se respeten las pautas éticas.
Sobre la definición e historia de los comités de ética
Los comités de ética son grupos interdisciplinarios que intentan clarificar y
resolver racional o razonablemente los conflictos de valores que se presentan en la
investigación o en la práctica clínica. Los mismos pueden diferenciarse en comités que
analizan y discuten los dilemas de la práctica clínica y comités que evalúan protocolos
de investigación con el fin de garantizar que se respeten las declaraciones éticas
internacionales.
Las funciones e historia de cada uno de ellos son diferentes. Los comités de
ética clínica tienen como función contribuir al respeto de los derechos de los pacientes;
ayudar al personal sanitario, ante posibles conflictos morales, a tomar la mejor
decisión posible; promover la reflexión ética mediante cursos y ciclos informativos;
asesorar a los agentes sanitarios cuando surjan conflictos éticos; atender a la
formación en bioética; desarrollar políticas y orientaciones. Mientras que los comités
que evalúan protocolos tienen como función evaluar protocolos de investigación desde
la perspectiva ética y velar por la calidad de la investigación con sujetos humanos y la
protección de estos últimos.
En Argentina, el origen de los comités que evalúan protocolos parece más
relacionado con una necesidad burocrática que con la convicción de su importancia.
La diferenciación entre los comités de ética asistenciales que
analizan y discuten
dilemas relacionados con la práctica clínica y los comités de ética que evalúan
protocolos de investigación se pierde en el decreto Nº 857 de 1993 del Ministerio de la
Salud y Acción Social de la Nación, el que ordena la creación de comités de ética en
todos los hospitales descentralizados de autogestión, con dos funciones: una axiológica
o consultiva (dilemas éticos relacionados con la práctica clínica) y otra evaluadora o
normativa
(evalúan
proyectos
de
investigación).
Lo
que
parece
traslucir
desconocimiento de la pericia con la que deben contar los miembros de los diversos
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tipos de comité. De hecho, la distinción entre los comités tiene una explicación
histórica. Como ya se ha dicho, cada uno de ellos responde a necesidades diferentes.
Los comités de ética que evalúan protocolos de investigación tienen su origen en
la Declaración de Helsinki, documento en el cual se remarca la necesidad de crear
organismos que resguarden la calidad de los protocolos de investigación.
Son varios los acontecimientos que colaboraron en el surgimiento de estos
comités. Más allá de los experimentos llevados a cabo por los médicos del nazismo, el
caso de la Thalidomida tuvo un papel central en la regulación de las investigaciones y
la aparición de comités. Este medicamente era utilizado por las embarazadas para
aliviar sus malestares y provocó el nacimiento de 8.000 niños con malformaciones
graves entre 1959 y 1962. Se trataba de un medicamento estudiado en Alemania en
1953 y comercializado en 1957.
Otro hito es el conocido caso Tuskegee: un estudio clínico llevado a cabo entre
1932 y 1972 en Tuskegee, Alabama, en el que los servicios públicos de salud de EEUU
estudiaron una población de aparceros negros, en su mayoría analfabetos, para
observar la progresión natural de la sífilis no tratada. En este estudio no se informó a
los pacientes de su enfermedad y se les ofreció, luego de decirles que su sangre era
“mala”, atención médica y transporte gratuito, comida y un seguro de sepelio en caso
de fallecimiento.
Al comenzar la investigación se pretendía realizar un balance costo beneficio en
relación a los tratamientos existentes, dado que los mismos eran peligrosos y de
dudosa efectividad. Pero la aparición de la penicilina como tratamiento estándar desde
1947 cambió significativamente el escenario, haciendo superfluo dicho trabajo. Sin
embargo, jamás se comunicó a los pacientes de la verdadera naturaleza de su afección
o del tratamiento para la misma. En 1972, luego de un escándalo periodístico, el
estudio fue cerrado, pero para ese entonces, habían fallecido de sífilis 28 pacientes y
otros 100 de complicaciones médicas relacionadas. Además, 40 mujeres y 19 niños
contrajeron la enfermedad.
Lo ilegítimo de este estudio trajo como consecuencia el Belmont Report (Informe
Belmont) de 1978, el
National Human Investigation Board (Consejo Nacional de
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Investigación en Humano) y la petición de la creación de los Consejos Institucionales
de Revisión.
En cuanto a los comités de ética que analizan y discuten dilemas de la práctica
clínica, su creación se puede asociar al comité de Seattle y al caso Karen Ann Quinlan.
El comité de Seattle nace a raíz de la aparición de un centro que realizaba
homodiálisis en los años 60. Dada la cantidad de pacientes que requerían el
tratamiento fue necesaria la creación de dos comités: uno clínico y otro ético. Este
último, conocido como “el comité de la muerte”, debía decidir quién podría someterse
al tratamiento basándose en pautas éticas.
Por otro lado, en 1975, Karen Ann Quinlan, una joven de 21 años, había
mezclado en una fiesta barbitúricos y alcohol, lo que le produjo un coma vegetativo.
Luego de meses de tratamiento sin mejora, sus padres solicitaron la desconexión de la
ventilación asistida, pero sus médicos no aceptaron esa opción. Lo que llevó el caso a
la corte. Y, a pesar de que K. A. Quinlan fue desconectada en 1976, vivió hasta 1985.
Lo más importante fue el veredicto del juez Richard Hughes. En el mismo se sostenía
que este tipo de conflictos morales debían ser resueltos en el ámbito de la clínica y
aconsejaba la creación de comités de ética que pudieran realizar ese trabajo. Esta
recomendación fue el inicio de los comités hospitalarios de ética clínica.
Como se ha señalado, en Argentina, ambos tipos de comités se encuentran
fundidos en uno solo. Son pocas las instituciones que cuentan con comités separados
para la discusión de dilemas éticos de la práctica clínica y la evaluación de protocolos.
Lo que hace el escenario aún más complejo es el hecho de que algunos comités de
ética no se encuentran separados de los de docencia e investigación (dedicados a la
formación médica y la evaluación metodológica de los protocolos de investigación). La
principal razón para esta situación probablemente sea que los mismos surgieron, en
primera instancia, para dar respuesta a la necesidad burocrática de responder a las
declaraciones internacionales que requieren la evaluación de un comité para la puesta
en marcha de una investigación. Por otro lado, la existencia en las instituciones de
comités de docencia e investigación como organismos reconocidos desde hace años
provocó que la creación de nuevos comités que evalúen protocolos generara malestar;
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ya que dicha evaluación formaba parte del quehacer histórico de los primeros. Sin
embargo, los comités de ética cumplen una función particular y específica que justifica
su relevancia.
La importancia de los comités de ética que evalúan protocolos
La existencia de mecanismos estatales que regulan la investigación como, en el
caso de la Argentina, la ANMAT (Agencia Nacional de Medicamentos, Alimentos y
Tecnología Médica), no
resulta suficiente
para resguardar a los sujetos de
investigación, entre otras razones, por las nuevas características de la experimentación
con seres humanos. Es así que a pesar de que no se debe olvidar lo que la historia nos
ha enseñado en relación a los investigadores librados a su propio arbitrio, los ensayos
multicéntricos financiados desde el exterior implican un desamparo hasta ahora
desconocido: lo que prima ya no es la salud, sino la lógica de mercado. Así se revela
que no toda investigación es lícita. Basta leer los protocolos que se presentan en los
hospitales para que la pregunta por la relevancia y la pertinencia de lo que se quiere
investigar se imponga. Muchas inquietudes surgen al respecto: ¿la población que se
utilizará como sujeto de investigación se verá beneficiada en el futuro?; ¿tendrá acceso
a los procedimientos o drogas que en ellos se prueben?; ¿la patología estudiada tiene
una incidencia considerable, que justifique el estudio?; ¿en caso de que surjan eventos
adversos serios, los patrocinadores cubrirán los gastos de su tratamiento?, etc.
Uno de los papeles de los comités de ética es tratar de responder estas
preguntas con el fin de que no se realicen investigaciones que no supondrán más que
un riesgo injustificado para los sujetos que participen en ellas13. Y aunque el Estado
no puede estar ausente14, porque aquello que ocurre durante la investigación en seres
13 Por supuesto que no debe olvidarse que la investigación no se da solamente a través de
patrocinadores externos y estudios multicéntricos. La investigación local, sea subvencionada por el
Estado o por agentes privados, también debe ser regulada por lo dicho anteriormente.
14 Esto queda claramente ejemplificado si se tiene en cuenta que gran parte de la investigación
multicéntrica se da en hospitales públicos. En ellos, los investigadores mezclan su función de atención
con la de investigación y, muchas veces, reciben sobresueldos pagados por los patrocinadores. Este
hecho, si no es en sí mismo malo, es, por lo menos, injusto. No sólo en relación con los colegas que no
realizan investigación, sino también con los pacientes; ya que, en muchos casos, los que participan en
protocolos reciben atención privilegiada y el afán por conseguir pacientes, puede llevar a los
investigadores a intentar reclutarlos a como de lugar. Esto sin tener en cuenta que existe un conflicto de
interés entre la institución que paga un sueldo y la industria que paga uno mucho más alto; lo que
quiere decir que la injusticia sobrepasa la actividad médica misma, extendiéndose a la población
completa del país. Por otro lado, los centros de los países en desarrollo cuentan con profesionales
formados y con infraestructura, sino suficiente, por lo menos, adaptable. Así, las instituciones públicas
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humanos repercute en el conjunto de la comunidad, el peligro de que el mismo sea
autoritario o que su administración sea corrupta, hace necesario un nuevo espacio que
distribuya las decisiones y el poder que estas suponen. En otras palabras, es
imprescindible una decisión política que avale y resguarde el lugar de los comités de
ética como fuerza que contrarreste dos frentes que pueden perder de vista (y muchas
veces pierden) los intereses y la seguridad de los participantes de ensayos clínicos: el
patrocinador
(ya
sea
un
investigador
solitario
o
la
todopoderosa
industria
farmacéutica) y el Estado, cuyos administradores pueden verse seducidos por las
grandes ganancias de estas investigaciones.
La función de los comités es la protección de la población que se somete a estos
ensayos y/o asiste a los centros en los que se llevan a cabo. Cabe recalcar que, en
nuestro país, se distinguen dos tipos de comités de ética de evaluación de protocolos:
los que no se encuentran insertos en una institución asistencial y aquellos sí que lo
están. La diferencia es importante y existe una discusión sobre las ventajas,
desventajas y conflictos de interés que pueden surgir en cada uno de los casos. Entre
los primeros, el principal problema es que son pagados en forma directa por el
patrocinador. Este hecho hace que sus decisiones puedan estar, en parte,
condicionadas. Su ventaja reside en que al estar por fuera de las instituciones y lejos
de donde se desarrolla la investigación no sufren la presión del medio y de los propios
investigadores. Por otro lado, el número de comités institucionales es incierto. Varios
hospitales cuentan con uno propio y existe una iniciativa del ANMAT para que en cada
institución en la que se realiza investigación se conforme uno; ya que los miembros de
un comité institucional conocen mejor la población hospitalaria y las necesidades de la
comunidad que se atiende en la institución. Estos comités tienen el problema de estar
demasiado cerca de los investigadores; lo que puede traer aparejado conflictos de
interés. De todos modos, la conformación de los mismos (como requisito sine qua non
debe haber miembros externos a la institución) hace de estos la mejor herramienta a la
hora de garantizar la descentralización de las evaluaciones y aprobaciones de los
protocolos de investigación; además de la salvaguarda de los sujetos que participan en
los ensayos.
parecerían subvencionar a la industria. Piénsese que, por ejemplo, las camas de los hospitales, cuando
se usan para una investigación, no siempre son pagadas por los patrocinadores.
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Los problemas a los que se enfrentan los comités de ética
A pesar del papel central que los comités que se hayan insertos en una
institución cumplen, un estudio15 realizado en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y
el Conurbano Bonaerense, entre el 15/05/08 y el 05/05/09, revela que estos, no
encuentran el reconocimiento necesario para llevar a cabo su tarea.
Se pudo constatar16 que la mayoría de las dificultades con las que se encuentran
los comités están íntimamente relacionadas con decisiones políticas e institucionales.
Casi todos encuentran dificultades de tiempo para realizar su tarea. Además, todos
cuentan con miembros que trabajan también en la institución en la que el mismo está
inserto. Las instituciones permiten a sus miembros asistir a las reuniones en el
horario de trabajo, pero no siempre el tiempo que les asignan para estas reuniones es
suficiente para terminar la tarea. Por otro lado, parte de los participantes son externos
y asisten voluntariamente sólo a las reuniones. Y, el personal no médico del hospital
(enfermería, administración, asistencia social, etc.) tropieza con mayores dificultades
para contar con el tiempo necesario para participar de las reuniones; y muchas veces,
los superiores no estimulan o no lo autorizan dicha participación porque se considera
que la actividad asistencial debe ser atendida prioritariamente por sobre las reuniones
del comité. Así, la falta de reconocimiento de las instituciones para los miembros suele
resultar un problema.
Si a esto se le agrega la falta de recursos (hecho que alegan como una de las
dificultades mayores), se observa que el trabajo depende de la buena voluntad de los
miembros de los comités. Por otro lado, la mayoría de los comités no tenían asignado
un lugar fijo, sino que el mismo se “mudaba” al servicio al que perteneciera su
15 Sabio, María Fernanda.. Funcionamiento de los comités de ética de la investigación
en salud,
institucionales, de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y el Conurbano Bonaerenses y sus problemas para
el monitoreo de los estudios en su fase clínica. Estudio observacional, caunti-cuantitativo, trasversal.
Informe final beca Carrillo Oñativia, Comisión Saludinvestiga, Ministerio de Salud de la Nación. Inédito.
Investigación llevada a cabo entre el 15/05/08 y el 05/05/09.
16 Se habló con la Dirección de 139 centros asistenciales. Fue imposible contactarse telefónicamente con
otros 23 de la lista elaborada (162) como universo a explorar. Solamente 90 instituciones de salud
afirmaron tener un CEI y dieron su dirección electrónica y/o nº de fax para recibir más información sobre
el estudio. Un total de 41 CEI completó y devolvió el formulario.
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coordinador. Lo mismo puede decirse de la existencia de secretarios administrativos
para las tareas de los CEI: la mayoría carece de los mismos.
En cuanto a la visión que los investigadores tienen del papel del comité es confusa.
Estos consideran que la evaluación no es al protocolo, sino a su persona. Así, muchas
veces existe reticencia por parte de los investigadores a la hora de recibir el informe de
la evaluación hecha por el comité y poca colaboración de los mismos durante la
investigación
Así, los CEI no parecen haber contado con el debido reconocimiento y haberse
convertido, en parte, en simples organismos burocráticos, cuya función, desde la
perspectiva de algunas instituciones, investigadores y del Estado, se limita a cumplir
con los requerimientos de los tratados internacionales y las necesidades de la
industria.
La
creación
de
comités
parece
estar
determinada
por
exigencias
internacionales y la necesidad de la industria, más que por políticas serias desde el
Estado o de las instituciones de salud. Ni la institución ni el Estado son los que
definen la necesidad intrínseca de la existencia de estos organismos.
La verdadera función de los mismos, es decir, la salvaguarda de los sujetos de
investigación, la protección de la institución y de los pacientes que asisten a la misma
(más allá de que ingresen o no a un protocolo de investigación) y, finalmente de los
investigadores, parece desdibujarse ante la necesidad burocrática de la industria. En
otras palabras, en lugar del reconocimiento y el apoyo que estos organismos requieren,
terminan ocupando un lugar por compromiso y no por convicción de las instituciones
o el Estado.
Si los comités han de ocupar un lugar real y serio en la investigación, es
imprescindible tener presente que la labor de estos organismos es central y necesaria.
Para que esto sea posible, lo primero que se debe hacer es reconocer la necesidad de
los comités y la importancia de su función.
Conclusión
La presencia de patrocinadores externos y la colaboración multicéntrica dan
lugar a un nuevo cuadro en el que aparecen las agencias reguladoras y los comités de
ética y, con ellos, se explicita lo que antes parecía oculto: la ingerencia de lo político.
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Resulta imperiosa una toma de decisión política en el marco de la investigación
científica, porque la historia muestra que su supuesta asepsia es, precisamente, sólo
apariencia. Suponer que se puede, desde una posición unilateral, resolver qué
investigar, cómo hacerlo, cómo proteger a los sujetos reclutados, etc. es, como mínimo,
peligroso. No hay que perder de vista que tanto los intereses centralmente económicos
de los patrocinadores como la posibilidad de un Estado autoritario o de una
administración corrupta pueden poner en riesgo a los sujetos de investigación. Es por
esta razón que el lugar de los comités de ética es central. Los mismos garantizan una
distribución más equitativa de las decisiones en investigación y velan por la seguridad
de los sujetos que participan en los ensayos, así como por los intereses de los
establecimientos y la población en su conjunto. Y, en especial, aquellos comités
pertenecientes a una institución están mejor posicionados para cumplir su cometido
por estar en contacto con los sujetos que resultan más vulnerables: los pacientes del
sistema de salud.
Sin embargo, los datos que se pueden desprender del estudio realizado durante
el año 2008, muestran que no existen, a pesar de la disposición Nº 6550/07 de la
ANMAT17, políticas estatales ni institucionales que garanticen el buen funcionamiento
de estos comités.
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