Contra a Emoção: Hanslick Tinha Razão Acerca
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Contra a Emoção: Hanslick Tinha Razão Acerca
Contra a Emoção: Hanslick Tinha Razão Acerca da Música Nick Zangwill Devemos entender a música em termos de emoção? Concordo com Eduard Hanslick:1 a resposta é «Não». Permitam-me enumerar os modos pelos quais não há qualquer conexão essencial: não é essencial à música o ter emoção, evocar emoção, exprimir emoção ou representar emoção. A música, em si mesma, nada tem a ver com a emoção. Esta tese negativa restringe-se à música instrumental ou absoluta. Aquilo a que se chama música «programática» ou não absoluta pode envolver emoção quando é concebida com a intenção de ser ouvida à luz de alguma forma de arte representacional ou semântica que efectivamente exprime, evoca ou representa emoção. Por exemplo, numa canção as palavras podem referir emoções. Mas isto é diferente do modo como se tem pensado que a música instrumental ou absoluta envolve emoção. Os meus alvos aqui limitam-se àquelas a que chamo teorias «literalistas», as quais invocam a existência de emoção genuína. Algumas teorias propõem que na experiência musical imaginamos a música de algum modo ligada às emoções, sem que haja emoções reais em jogo. Roger Scruton e Jerrold Levinson apresentaram teorias deste género e não levanto aqui objecções a essas perspectivas. 2 As teorias que critico neste artigo postulam uma relação real entre a música e a emoção genuína. Argumentarei que Hanslick tinha razão na sua crítica negativa às teorias literalistas sobre a emoção na música. Não argumentarei a favor da sua perspectiva positiva, segundo a qual a beleza na música «consiste única e simplesmente em tons e na sua combinação artística»,3 embora tenha grande simpatia por essa perspectiva.4 Outro tema em Hanslick é a sua concepção purista de que a música é melhor quando é absoluta ou instrumental e não quando misturada com outras artes, como na ópera. Em particular, as últimas óperas de Wagner suscitaram a desaprovação por parte de Hanslick.5 Os musicólogos tendem a se centrar particularmente no seu purismo. Como se relacionam estas três perspectivas? A estrutura é a seguinte: se defendemos a perspectiva positiva de que a música consiste em sons artisticamente organizados, temos de defender a tese negativa acerca da emoção. Se defendemos a perspectiva purista, temos de defender simultaneamente as perspectivas positiva e negativa. Contudo, podemos defender a perspectiva negativa sem as perspectivas positiva e purista. Além de que se pode defender simultaneamente a perspectiva negativa e a positiva sem o purismo. Ou seja, podemos concordar com a crítica negativa de Hanslick às teorias da emoção e ao mesmo tempo rejeitar quer a sua perspectiva positiva daquilo em que a música consiste, quer a sua posição purista contra a ópera. Ou então, podemos concordar com a sua crítica negativa das teorias da emoção e com a sua perspectiva positiva acerca daquilo em que a música consiste, rejeitando a sua posição purista contra a ópera. Neste artigo, limitar-me-ei a defender a tese negativa de Hanslick, segundo a qual não é essencial à música absoluta o ter, exprimir, evocar ou representar emoção. Isto é assim ou porque a música absoluta não faz nem pode fazer qualquer dessas coisas, ou porque quando o faz isso não é essencial à música e só o faz por causa do que a música é, independentemente de qualquer relação com a emoção.6 1 Ter Emoção? Comecemos pelo caso mais simples, a teoria da posse, mesmo que ninguém a tenha realmente defendido. Argumento – e creio ser bastante fácil fazê-lo – que a música não pode ter emoções. Pode parecer que me esforço demasiado para refutar uma ideia patentemente implausível, mas na verdade isto mostrar-se-á útil quando enfrentarmos ideias não tão implausíveis sobre a relação entre a música e a emoção. Antes de tratar esta questão, há que fazer algumas observações preliminares sobre a natureza da emoção. A verdade é que não compreendemos adequadamente as emoções. Parece haver uma diversidade desconexa delas, talvez sem qualquer princípio unificador natural. Contudo, não é muito controverso afirmar que muitos casos centrais de emoção têm ao mesmo tempo um conteúdo intencional (são acerca de alguma coisa) e um aspecto qualitativo ou fenomenológico (são sentidas). Estas emoções residem na intersecção de estados intencionais e qualitativos (ao contrário das crenças e das dores). Há a questão de todas as emoções serem ou não assim. Talvez algumas sejam fenomenológicas mas não intencionais e talvez algumas sejam intencionais mas não fenomenológicas. Mas, como veremos, não temos de nos preocupar demasiado com esta questão da generalidade, visto que as emoções em causa na filosofia da música são, na sua maior parte, emoções que têm simultaneamente um aspecto fenomenológico e um conteúdo intencional e não emoções puramente fenomenológicas ou puramente intencionais, se as houver. Estipulo que as emoções têm conteúdo intencional – estão direccionadas ou para um estado de coisas ou para um objecto. Isto exclui estados de espírito sem conteúdo – trato separadamente os estados de espírito na Secção III. Esta estipulação não cairá em petição de princípio. Tomemos alguns exemplos de descrições emocionais da música. Muito flamenco clássico é angustiado; certas passagens da Quinta Sinfonia de Shostakovich são optimistas; muita música tauromáquica para metais é orgulhosa; a guitarra de cordas de aço nas canções country e western de Hank Williams é lamentosa; e os últimos tangos de Astor Piazzolla são meditativos.7 A angústia, o optimismo, o orgulho, o pesar e a melancolia são emoções intencionais sofisticadas e não meras sensações ou estados de espírito. Isto faz parte da nossa concepção psicológica popular destas emoções. A psicologia popular – isto é, a concepção de senso comum que temos dos estados mentais – diz-nos não só que o género de emoções de que me ocupo consiste em atitudes proposicionais com um aspecto qualitativo mas também que têm determinadas relações racionais essenciais com outras atitudes proposicionais, tais como crenças e desejos. Quando afirmo que as atitudes proposicionais estão em relações racionais essenciais, quero dizer que é essencial a uma atitude proposicional ser o tipo de atitude proposicional que é (crença, desejo, esperança ou medo, por exemplo), que dadas outras atitudes proposicionais será racional ou irracional ter essa atitude proposicional ou que ter essa atitude proposicional torna racional ter outras atitudes proposicionais.8 Por exemplo, é irracional sentir orgulho a menos que acreditemos haver algo de bom naquilo de que nos orgulhamos; ter medo de algo torna racional o acto de o evitar. (Trata-se de normas pro tanto – ou seja, podem ser revogadas por outras normas racionais e mesmo por outros géneros de normas.) Há muito que se discute as propriedades racionais da crença e do desejo, mas não ainda da emoção. Não é claro que saibamos ainda o que está em causa. Contudo, parece-me claro que as emoções tal como as concebemos na psicologia popular têm de facto relações racionais essenciais com outras atitudes proposicionais. Tendo em conta o que afirmei, é fácil ver que a música não pode ter emoções. As emoções têm de ser sentidas por um ser racional – isto é, um portador de atitudes proposicionais que estão entre si em relações racionais. Mas uma peça ou trecho musical – seja o que for – não é um ser com atitudes proposicionais que estejam em relações racionais. Pelo que a música não pode literalmente sentir emoções como a tristeza. Esta é a mais fácil e rápida conclusão anti-emoção.9 O leitor poderá pensar que não se trata de um grande progresso. Mas é porque a teoria da posse é tão implausível que muitos procuram uma perspectiva indirecta no sentido de que a música exprime, evoca ou representa emoções. Numa perspectiva indirecta, não se trata de a própria música ser triste ou algo semelhante. Ao invés, a música está numa certa relação com a tristeza. Nas palavras de John Searle, a música tem intencionalidade emocional «derivada» em vez de «intrínseca».10 O problema é que procurar uma teoria indirecta da expressão, evocação ou representação é já colocar uma certa distância entre a teoria e os dados que é preciso explicar. Pois parece que ao descrevermos a música em termos emocionais descrevemos algo que está na música. Passar para uma teoria da evocação, expressão ou representação provavelmente afasta-nos demasiado disto. Pois quando ouvimos música ouvimo-la como sendo ela própria a ter as propriedades (não-relacionais) que descrevemos em termos emocionais. Isto é um problema para todas as teorias indirectas. A teoria da posse, mau grado as suas óbvias imperfeições, respeita melhor esta fenomenologia. A música não tem estados mentais, pelo que não é ela própria lamentosa, angustiada ou optimista. Mas parece que a própria música tem características intrínsecas a que nos referimos quando a descrevemos nestes termos. Não parece que falamos acerca de uma relação em que a música esteja. Assim, apesar dos seus erros óbvios, a teoria da posse tem de facto algo importante a seu favor.11 II Evocar Emoções? Será essencial à música o evocar emoções? Muitos teorizadores afirmam que sim. Contudo, a psicologia popular também exclui a ideia de que a experiência imediata da música seja uma emoção que tem a música por objecto. A psicologia popular afirma que as emoções têm determinadas relações racionais essenciais com crenças e desejos. Suponha-se que descrevemos certa música como orgulhosa – por exemplo, «El Gato Montez» (a mais famosa melodia tauromáquica espanhola para banda de metais). Pensemos na experiência dessa música. O objecto intencional dessa experiência é a qualidade da música que nos leva a descrevê-la como orgulhosa. Facilmente se vê que esta experiência não pode ser a emoção do orgulho. Pois o orgulho tem de estar racionalmente ligado à crença de que se tem alguma propriedade meritosa ou de que se está de algum modo relacionado com algo que tem uma propriedade meritosa.12 Sente-se orgulho por ter essa propriedade ou por estar relacionado com algo que tem essa propriedade. Mas a experiência da propriedade da música que descrevemos como «orgulhosa» não está relacionada desse modo com tal pensamento. Não é preciso ter esse pensamento acerca de si próprio quando se tem experiência da música. Pelo que a experiência não consiste em ter orgulho.13 É crucial atermo-nos ao facto de que o estado de espírito em que nos encontramos quando ouvimos a música tem por objecto a música. (Razão pela qual me parece curioso quando os estetas apelam à ideia de que temos «emoções sem objecto» ao ouvir música.) Em muitas teorias corre-se o risco de perder de vista a ideia de que a experiência musical está direccionada para a música. Trata-se de um ponto que não raro dou por mim procurando defender, ao ler a bibliografia sobre expressão musical. A tendência entre alguns autores é centrarem-se em seja o que for excepto a própria música e a experiência que temos dela.14 É quase como se a música os amedrontasse! Temos de voltar novamente a atenção para a própria música e para o facto de a experiência que temos ser experiência da música em si. Dado que quase todas as emoções, como o orgulho ou o medo, têm um objecto intencional além da música, na medida em que temos essas emoções ao ouvir música, não estamos a ouvir a música ou a pensar nela. Pensamos, ao invés, naquilo acerca de que as emoções são. O objecto dessas emoções não é a música. Tais emoções distraem-nos da experiência musical! Evidentemente, não se pode negar que por vezes nos emocionamos ao ouvir música. A música pode relembrar-nos um acontecimento emocionalmente intenso. Talvez nos entristeça fazendo-nos recordar algo que nos entristeceu no passado. Mas neste sentido puramente causal a música triste pode dar-nos alegria e a música alegre pode dar-nos tristeza. A música triste por vezes dá-nos tristeza, por vezes dános alegria e a música alegre por vezes dá-nos alegria e por vezes dá-nos tristeza; mas isto pouco tem de interessante. O mesmo se aplica aos sentimentos do artista quando faz música. O facto de estar triste pode levá-lo a fazer música triste. Mas pode também não o fazer. Pode levá-lo a fazer música alegre. Muito melhor para contrariar a tristeza! Estas causas e efeitos são irrelevantes para a natureza essencial da música – para o que a música é.15 Este ponto de a música ser o objecto intencional da experiência imediata da música relaciona-se com o seguinte acerca da substituibilidade. Quando se diz que a música evoca emoções, temos de perguntar se algo muito diferente pode evocar as mesmas emoções. Se a evocação é uma questão puramente causal a resposta será «sim». Mas nesse caso a música é uma causa substituível da experiência e perdemos a ideia de que a experiência tem necessariamente aquele objecto intencional. Mas se o objecto intencional da experiência é a própria música, então esta não é uma causa substituível. Essa experiência só podia ser produzida por aquela peça musical em particular ou, em todo o caso, por uma peça muito semelhante.16 Diz-se que reproduzir determinado tipo de música clássica para vacas as faz aumentar a produção de leite. Será que devemos tentar compreender esta música em termos de produção de leite bovino? Tal teoria será talvez mais plausível do que as explicações típicas da música em termos de evocação emocional! Pois pelo menos é em geral verdade que a música tem este efeito nas vacas, ao passo que o efeito da música nas emoções humanas é na realidade muito variável.17 Mas mesmo que a música tivesse efeitos padronizados sobre as emoções humanas, ter tais efeitos não seria essencial, não seria aquilo em que consiste ser música. A música teria estes efeitos típicos em virtude de uma experiência musical independentemente constituída. E quanto à ideia de que a experiência da música é uma emoção especificamente musical? Tal emoção teria a música como objecto intencional. Sou céptico relativamente a esta ideia. Há evidentemente emoções comuns que podemos ter a propósito da música. Por exemplo, pode-se ter orgulho numa música quando se é responsável por ela. Mas o orgulho de muita música espanhola para metais é diferente. Pode-se ter orgulho em música que não é de modo algum orgulhosa. Por contraste, supõe-se que as emoções especificamente musicais diferem das emoções comuns, como o orgulho. Mas o que podemos dizer acerca delas? Se tudo o que afirmamos é que se trata de experiências de características da música que tendemos a descrever em termos emocionais, então a ideia de que uma reacção dessas é uma emoção, em qualquer sentido interessante, desaparece. Por que chamar-lhe «emoção» se não está em qualquer das relações racionais que normalmente consideramos como características das emoções? Ficamos com uma perspectiva potencialmente obscurantista que fala de emoção mas não se dispõe a pagar o preço, que é explicitar as relações racionais que nos dariam justificação para o fazer.18 III Evocar Estados de Espírito? E quanto aos estados de espírito? (Relembremos a minha estipulação de que os estados de espírito diferem das emoções por não terem objecto intencional.) É inegável que por vezes há ligações causais entre ouvir música que queremos descrever como triste e o ocasionar de um certo estado de espírito triste (por contraste com uma emoção) no ouvinte. Como no caso das emoções (intencionais), suspeito que a ligação é variável. Uma peça musical causará diferentes estados de espírito em pessoas diferentes em momentos diferentes. Todavia, algumas pessoas pensam que há uma convergência considerável nas reacções. Mas mesmo que houvesse, ter esses efeitos não seria essencial à música. Duas ideias familiares serão aqui cruciais. Primeiro, por contraste com a ligação meramente causal entre a música e o estado de espírito, a experiência musical genuína está intencionalmente direccionada para os sons e as suas qualidades musicais. Há uma ligação entre música e estado de espírito mais íntima do que uma ligação meramente causal, uma vez que a experiência musical é experiência das qualidades musicais. Mas como os estados de espírito são desprovidos de conteúdo, não podem ter a própria música como objecto. A experiência musical genuína é simultaneamente causada pela música e tem-na como objecto intencional. A música pode também fazer que tenhamos estados de espírito em resultado da experiência genuína. Isto é sobretudo manifesto quando cessa a música e ficamos num dado estado de espírito. Mas tratase de uma relação causal variável e não essencial. Em segundo lugar, sejam essas relações causais variáveis ou padronizadas, verificam-se em virtude da nossa experiência imediata da música. Portanto, os estados de espírito que podem ou não ser causados pela música são irrelevantes para a natureza essencial da música e para a natureza essencial da experiência imediata que dela temos. São secundários quanto ao que realmente nos interessa. Jenefer Robinson argumentou que a música pode evocar emoções.19 Pensa que há uma ligação íntima entre as propriedades expressivas da música e a evocação de emoções ou sentimentos. Concorda que se pode distinguir algumas emoções pelo seu «conteúdo cognitivo». Mas insiste que algumas emoções, tais como a reacção de sobressalto, envolvem apenas reacções afectivas e fisiológicas e a música pode causar essas emoções.20 De facto, Robinson classifica como emoções parte daquilo a que chamo «estados de espírito». Por exemplo, observa, com alguma plausibilidade, que a música nos pode fazer sentir perturbados ou calmos. A música pode ser apaziguadora, excitante, inquietante ou relaxante. Pelo que Robinson pensa que a música pode ser calmante ou inquietante num sentido bastante literal. Assim, pode haver uma relação directa entre as propriedades «expressivas» da música e a evocação deste género de emoção nos ouvintes. É uma sugestão interessante. Porém, na minha perspectiva, não serve como teoria geral da descrição emotiva da música, pois os sentimentos apresentados por Robinson, tais como a calma, são aquilo a que chamo estados de espírito e não emoções, ou, se há que as classificar como emoções, são emoções desprovidas de conteúdo, de tal modo que não se podem ajustar ao género de descrições emocionais que muito frequentemente fazemos da música e da experiência que dela temos. Estas descrições atribuem emoções intencionais que têm condições de racionalidade interessantes. Robinson está no seu direito em chamar a nossa atenção para reacções como a de sobressalto. Mas esses estados não têm a sofisticação cognitiva e racional do género de descrições emocionais que estão normalmente em causa na filosofia da música. Na descrição da música lidamos maioritariamente com o género de emoções para as quais há condições de racionalidade interessantes, ao contrário da reacção de sobressalto. Robinson tem razão quanto a alguma música ser calmante ou perturbadora, em virtude da sua capacidade para evocar em nós os estados correspondentes. Mas também queremos descrever alguma música como optimista, resoluta, orgulhosa, etc., e a explicação de Robinson não abrange estas descrições. Portanto, embora Robinson possa ter razão quanto à música calma nos acalmar e a música exaltada nos exaltar, isso não é suficiente para uma teoria geral das descrições emocionais da música. Concessão: pode ser essencial a uma peça musical particular ter a função de produzir um estado de espírito. Alguma música é música ambiente. Talvez a música de elevadores, as bandas sonoras cinematográficas, a música para marchar, a música que se ouve nos centros comerciais ou a música marcial tenham semelhante função. Tudo isto são exemplos de música não absoluta. (A música não absoluta não tem de ser representacional.) Concedo que a música pode envolver uma função não musical e em alguns casos essa função pode ser, ou pode ser parcialmente, a de produzir um certo género de estado de espírito. (Sou menos hostil à ideia de que a música pode ter a função de produzir estados de espírito do que à ideia de que pode ter a função de produzir emoções.) Contudo, muita música não é assim. Pelo que uma teoria da produção de estados de espírito não pode funcionar como uma explicação geral da música. Além disso, quando a música tem de facto a função de produzir um estado de espírito, a experiência imediata dessa música não é um estado de espírito. Os estados de espírito causados pela música são causalmente posteriores à nossa experiência musical imediata da música. A música causa uma experiência musical, que tem a música por objecto intencional, e essa experiência musical causa um estado de espírito, que não tem objecto intencional. Só pode haver música para elevar o espírito porque a experiência imediata da música não é um estado de espírito. IV Exprimir Emoção? O que poderá ser a expressão de emoções? Alguns autores que escrevem sobre música pensam poder tomar por garantido que a música «exprime» emoção ou que é emocionalmente «expressiva». Mas «exprime» e «expressiva» são normalmente usados como termos técnicos filosóficos na filosofia da música. Não é claro o que se poderá querer dizer com estas palavras. Ou há que lhes dar explicitamente um sentido ou tem de se as fazer corresponder a um ou outro aspecto de um sentido estabelecido. Há um uso redundante de «expressiva» segundo o qual afirmar de uma música que é expressiva da emoção X é simplesmente afirmar que a música é X. Mas isso leva-nos de novo ao ponto de partida, à tentativa de compreender o que afirmamos quando atribuímos emoção à música. Em geral, pensa-se que a expressão difere da representação. Uma obra de arte representacional pode envolver emoção representando pessoas que têm experiência de emoções ou representando cenas que evocam emoções. Se a música pode representar – o que não é óbvio – então poderia representar a emoção deste modo. Mas esta questão difere muito do que está em causa quando as pessoas discutem se a música instrumental não representacional pode exprimir emoção. Representar alguém a ter experiência de uma emoção estaria muito longe de qualquer noção de expressão segundo a qual a música está em relação com uma emoção na mente do compositor ou músico. Para representar alguém a ter emoções ou para representar uma situação com o objectivo de evocar emoções, o conceito dessas emoções teria de figurar nas nossas intenções, mas não seria preciso ter as emoções em causa. Uma teoria possível seria a de que uma pessoa exprime uma emoção quando faz algo que evoca, ou que a pessoa acredita que evoca, uma emoção. Mas nesse caso tal sugestão herdará todas as dificuldades das teorias evocativas. A ideia não é de todo como a noção habitual de expressão, que seguramente envolve uma relação entre a emoção do artista e o que ele produz ou faz, e não uma relação entre o que o artista produz ou faz e as reacções do público. Pelo que podemos pôr de lado esta ideia. Outra perspectiva possível é a de que a música exprime emoção no sentido em que podemos exprimir emoção na acção racional, como quando o meu gesto de estender a mão para agarrar um copo de água «exprime» o meu desejo de beber. Este poderá parecer um modelo mais promissor. Em que poderia consistir a acção «expressiva» artística racional? Segundo tal perspectiva, o artista tem de ter a intenção de exprimir a sua emoção E no objecto O. Que se passa aqui? Qual o conteúdo desta intenção? Como ajuda a explicar o que creio ser tão crucial, que é o modo como E pode ser manifesta em O, no sentido de que a descrição emocional descreve propriedades da música que são objecto da experiência musical? A dificuldade é que apelar à expressão como actividade racional não ajuda a esclarecer a ligação entre E e O. Simplesmente afirma que uma tal relação significativa se dá e que o artista se esforça por a realizar. Mas se é difícil ver como a música orgulhosa está numa relação apropriada com a emoção de orgulho no seu criador, é igualmente difícil ver como este se poderia esforçar por que se desse tal relação entre a música orgulhosa e a sua emoção de orgulho. Na situação normal de acção racional com base numa emoção, agimos com base nas crenças e desejos que são parcialmente constitutivos da emoção. Por exemplo, agimos racionalmente com base no medo quando agimos no sentido de afastar o objecto do medo, visto que presumivelmente desejamos a sua ausência. Mas a expressão musical da emoção evidentemente não seria racional desse modo. Não ajudaria a satisfazer desejo algum que estivesse na raiz da emoção supostamente expressa. Por exemplo, se alguém criasse música orgulhosa, a sua acção não estaria de todo racionalmente ligada àquilo de que a pessoa está orgulhosa. Pelo que este tipo de actividade racional não parece estar em causa na «expressão» musical. Há um sentido puramente causal de «exprimir», segundo o qual a música (absoluta) exprime emoção quando uma emoção é a causa de alguém fazer música. Neste sentido, evidentemente, é incontroverso que a música pode exprimir emoção. A dificuldade aqui é que neste sentido a emoção não tem de se manifestar na música. Ou seja, a emoção que originou a composição da música não tem de ser algo que o público pode ouvir na música. Além disso, estar feliz pode levar alguém a fazer música triste, e estar triste pode levar alguém a fazer música alegre. Pelo que uma relação puramente causal entre a emoção e a música não seria suficiente para um sentido interessante em que a música pode «exprimir» emoção. A relação entre emoção e música tem de ser mais íntima do que isso. Tem de haver um sentido no qual a emoção leva alguém a fazer ou produzir algo e a emoção pode de algum modo ser objecto de experiência naquilo que é feito ou produzido. Por exemplo, pode-se afirmar que uma reacção natural como corar «exprime» uma emoção neste sentido: é causada pela vergonha mas também faz as pessoas parecerem envergonhadas. Mas a música não «exprime» emoção deste modo. Pois a criação musical não é de todo uma reacção involuntária como o corar. A criação musical é actividade volitiva. Por outro lado, pode-se afirmar que sorrir «exprime» felicidade ou prazer quer como reacção involuntária quer como acção volitiva. («Sorria, por favor», pedimos.) A manifestação exterior de emoções internas pode por vezes ser objecto de volição. Uma pessoa pode sorrir deliberadamente (mas não corar deliberadamente) de modo a «exprimir» a felicidade ou prazer que sente. Ou pode desenhar uma cara sorridente ou fazer uma máscara sorridente para mostrar como se sente. Isto abre uma possibilidade, que alguns já exploraram. O rosto de um São Bernardo pode parecer manifestar a emoção de tristeza, ainda que o animal não sinta realmente essa emoção. Analogamente, pode-se adoptar uma expressão facial ou fazer uma máscara com o fim de fazer ou produzir algo que parece resultar de uma emoção, embora tal não suceda. Um aspecto positivo deste fenómeno como modelo para a «expressão» musical é tornar a emoção em algo de que podemos ter experiência na música. Todavia, este modelo não envolve relação entre uma emoção naquele que faz a música e as qualidades da música nas quais se poderá ouvir essa emoção. Pois neste sentido pode-se «exprimir» uma emoção sem ter a emoção em causa. Pelo que afinal esta teoria não apela realmente a emoções, apenas aos pensamentos dos compositores acerca da emoção. Suponhamos que um homem tem orgulho de ser um bom toureiro. Nesse caso pode deliberadamente «exprimir» esta emoção numa expressão facial orgulhosa. Nada de surpreendente. Faz sentido. Mas será que pode também exprimir o seu orgulho fazendo uma máscara com aparência orgulhosa ou fazendo música que soe orgulhosa? Por que faria alguém tal coisa? Parece algo estranho de se fazer! Suponho que podemos imaginar circunstâncias em que Pedro é na realidade um toureiro orgulhoso, mas devido às suas feições inerentemente modestas ganhou uma reputação infeliz de humildade, o que não se ajusta à sua profissão. Pelo que poderá procurar contrariar esta falsa impressão fazendo uma máscara de aparência orgulhosa ou fazendo música que soe orgulhosa. Poderá afirmar «É assim que me sinto!». Ou suponhamos que Gonzales não sente orgulho, mas decide «exprimir» essa emoção numa expressão facial, ou numa máscara, ou através de sons. Por que razão o faria? Podemos imaginar que Gonzales é um toureiro tímido, modesto e medroso, que deseja convencer os seus rivais e o público de que na realidade é orgulhoso e intrépido. É evidentemente possível, portanto, imaginar situações em que alguém «exprime» emoções que não tem. Contudo, isto não serve como modelo da «expressão» musical. Em primeiro lugar, quando temos experiência da tal qualidade da música a que chamamos «orgulho», esta não forma a base para uma inferência acerca das emoções do criador musical. Não temos experiência de música orgulhosa como um sintoma da existência de orgulho no criador musical (real). Em segundo lugar, mesmo que tivéssemos experiência da música «expressiva» desse modo, não é claro por que nos daríamos ao trabalho de, na maioria dos casos, fazer tal música «expressiva». Parece-me incontroverso que não temos de nos sentir orgulhosos para que valha a pena fazer música orgulhosa. Porém, segundo esta noção de «expressão», não é claro por que alguém se daria a esse trabalho. Ou o tipo de situação em que valeria a pena – como nos casos do toureiro orgulhoso mas de aparência tímida ou do toureiro realmente tímido que quer dar aos outros a impressão de que é orgulhoso – é incomum a ponto de não ser minimamente plausível como análise dos motivos de quem, maioritariamente, faz música orgulhosa. A única esperança que entrevejo para as teorias da expressão é apelarem ao sentido em que se pode «exprimir» uma emoção quando se age de modo arracional sobre essa emoção. Rosalind Hursthouse introduziu a útil categoria de uma acção «arracional».21 Um exemplo seria arremessar uma caneca contra a parede por fúria a propósito de um corte salarial. Esse acto é inteiramente intencional, mas não inteiramente racional, pois dificilmente se poderá conceber o acto de destruir a caneca como um meio de reaver o salário. Talvez a música exprima emoção no sentido em que destruir a caneca exprime a minha fúria. Este modelo também parece mais bem ajustado para responder ao problema da manifestação, pois parece que a minha fúria está de algum modo manifesta na destruição da caneca. Parece muito mais apropriado do que afagar delicadamente uma pena! Contudo, não é claro como a acção arracional pode realmente constituir um modelo para a expressão musical de emoção. Em muitos casos de acção arracional, como destruir uma caneca num acesso de fúria, há uma perda de controlo. A destruição é um tipo de libertação – de actividade deslocada. Mas nada de semelhante se passa num caso normal de criação musical. A criação musical é plenamente deliberada. É racional, não arracional. Por outro lado, algumas acções arracionais são plenamente deliberadas. Exemplos disto são acções conscienciosamente simbólicas, tais como levantar-se para receber um convidado importante, ou pisar um copo num casamento judaico. Mais uma vez, parece que estes casos diferem do caso da acção musical. Quando nos levantamos para receber um convidado, estamos cientes de que nos levantamos por causa da sua importância e por respeito. Mas a criação musical certamente não tem de envolver tal imagem de si por parte de quem faz a música. Não é preciso estar ciente de uma emoção independentemente identificável a exteriorizar na acção musical. É óbvio que por vezes produzimos sons (ou os meios de os produzir) porque queremos exteriorizar alguma emoção não musical independentemente identificável, que se tem numa situação não musical. Não nego que isto suceda. Contudo, o problema para o modelo da acção arracional é que quando há uma emoção independentemente identificável, que se exprime de modo arracional na música, a emoção não é uma característica da própria música, da qual tenhamos experiência. Não se manifesta na superfície da música. Por estas razões, penso que o modelo da acção arracional acaba por não nos servir. Constatámos a enorme dificuldade de mostrar como a música é inteligível desde que concebamos a actividade musical como impulsionada pela emoção. Por exclusão de partes, portanto, parece que o único sentido em que a música pode exprimir emoção é o sentido puramente causal, o que é insignificante. V Representar a Emoção? Por fim, o que diremos acerca da ideia de que a música representa a emoção? Seria fácil argumentar que a música não representa a emoção caso pudéssemos derivar essa afirmação a partir da tese de que a música não pode representar seja o que for.22 Mas mesmo que esta tese negativa geral fosse realmente falsa, pode-se pensar que há dificuldades especiais em representar a emoção em particular. Um problema é o de que as emoções são estados psicológicos e não têm qualquer cor, forma ou som. Pelo que parece não haver suficiente em comum entre a representação e aquilo que é representado. Presumo, seguindo Richard Wollheim, que se entre duas coisas há uma relação representacional temos de ser capazes de percepcionar uma na outra ou como a outra.23 Só podemos percepcionar algo noutra coisa ou como essa coisa se entre ambas houver suficiente em comum. Assim, por exemplo, podemos ver um padrão bidimensional como um objecto tridimensional. Mas parece difícil ver como podíamos realmente ouvir uma emoção na música, quando a música é composta de sons e a emoção não. Aqui a diferença categorial é demasiado grande. As emoções não têm natureza sonora. Pelo que é difícil ver como o som pode representar emoções. Por outro lado, talvez este tipo de argumento seja demasiado forte, visto que um argumento semelhante parece também mostrar que as imagens não podem representar emoções. Contudo, mesmo que a música possa representar emoções, apesar da enorme diferença entre o que é representado e aquilo que o representa, são seguramente excepcionais os casos de música que o faz. Dificilmente é isto o que sucede em casos típicos de descrição da música em termos emocionais. Por exemplo, certamente que a música tauromáquica espanhola para metais orgulhosa não representa o orgulho. Orgulho de quem? O orgulho de um toureiro, talvez? Para representar o orgulho deste, a música teria de representar o conteúdo intencional desse orgulho – aquilo de que o toureiro se sente orgulhoso – coisa que a música seguramente não faz. E a ideia de que representamos um tipo abstracto de emoção, independente de qualquer conteúdo particular, é ainda mais bizarra do que a ideia de que representamos casos particulares de emoção. Poderia sugerir-se, em resposta, que a música representa não as próprias emoções, mas a manifestação comportamental ou o resultado da emoção. Estamos assim a representar indirectamente as emoções responsáveis por esse comportamento. Esta teoria evita o problema da ausência de semelhança entre sons e emoções e evita o problema de ter de representar os conteúdos das emoções. Mas a plausibilidade da teoria é quase nula se for apresentada como uma explicação do que sucede em casos típicos de descrição emocional da música. Que manifestação comportamental de orgulho representa a música espanhola orgulhosa, para metais? Pressuponho uma distinção entre simbolismo e representação. Pode evidentemente haver uma relação puramente simbólica entre coisas muito diferentes. Os elementos de algumas peças musicais podem, em princípio, simbolizar diversas emoções, uma vez que praticamente tudo pode ser usado para simbolizar alguma coisa. O compositor pode decidir ou estipular que uma sequência particular de notas simboliza pesar, tal como uma sequência de notas pode simbolizar um lobo ou um naufrágio. Mas, mais uma vez, não há muita música que seja assim – sem dúvida que não há a suficiente para explicar as descrições emocionais comuns da música, com as quais começámos. Além de que tais relações simbólicas são demasiado extrínsecas ao objecto de que temos experiência na música. Daí que a ideia de que se deve explicar as descrições emocionais típicas da música em termos de simbolismo da emoção seja tão irremediável quanto a ideia de que se deve explicar as descrições emocionais típicas da música em termos da representação da emoção. Coda Que papel, portanto, desempenha a emoção naquilo que a música é e na experiência que temos dela? Resposta: nenhum papel importante. A emoção é uma completa distracção quando pensamos na natureza da música. A experiência da música pode causar emoções, tal como o fazer música pode ser causado por emoções. Mas a experiência imediata da própria música não é uma emoção e os pensamentos mais imediatamente envolvidos em fazer ou compor música não são emoções.24 É verdade que a música tem qualidades importantes que não raro descrevemos em termos emocionais metafóricos e é frequente descrevermos a experiência da música em termos emocionais metafóricos.25 Há que dar uma explicação positiva disto.26 Mas é pouco plausível a ideia de que nestas descrições emocionais descrevemos literalmente ou a presença de emoção genuína na música ou alguma relação entre a música e a emoção genuína, tal como não é plausível que a música a que chamamos «delicada» seja literalmente delicada no sentido de se partir facilmente, ou que a música a que chamamos «desequilibrada» seja literalmente desequilibrada nos sentido ter propensão para cair, ou que descrevemos uma relação que a música tem com outras coisas que são literalmente delicadas e desequilibradas. Há que dar uma explicação bastante geral do papel desempenhado pela metáfora nas nossas descrições da música, na medida em que se aplica igualmente a metáforas emocionais e não emocionais. O que é claro é que em nenhum dos casos se trata de descrever emoção genuína ou alguma relação com a emoção genuína. Hanslick tinha razão.27 Notas: Eduard Hanslick, On the Musically Beautiful (Indianápolis: Hackett, 1986). Não seguirei de muito perto o texto de Hanslick. Aceito as suas conclusões principais e os meus argumentos têm afinidade com alguns dos seus argumentos. 1 2 Ver Roger Scruton, «Understanding Music», em The Aesthetic Understanding (Carcanet: Manchester, 1983) [no presente volume: «Compreender a Música»], e The Aestehtics of Music (Oxford: Oxford University Press, 1997); e Jerrold Levinson, «Musical Expressiveness» em The Pleasures of Aesthetics (Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1996). Examino a perspectiva de Scruton na segunda parte de «Aesthetic Realism I», em Oxford Companion to Aesthetics, org. Jerrold Levinson (Oxford: Oxford University Press, 2003). 3 Hanslick, On the Musically Beautiful, p. 28. Ver o §5 do meu «Feasible Aesthetic Formalism», Nous, vol. 33 (1999), pp. 610-629, reimpresso em The Metaphysics of Beauty (Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 2001). 4 5 Hanslick não objectou às operetas ligeiras nos casos em que o texto é talvez um mero meio de exibir a música, ou na circunstância em que o enredo e a música são ingredientes separáveis. Objectou à ideia de que a música e o texto se podem combinar «organicamente» para realizar uma beleza superior. Exploro esta noção de combinação orgânica no meu «Feasible Aesthetic Formalism». A discussão que farei não é decididamente histórica. Claro que as perspectivas de Hanslick sobre a natureza da música foram apresentadas em circunstâncias histórico-musicais particulares, mas ele apresentou teorias gerais. O mesmo se aplica ao formalismo estético visual de Clive Bell e Roger Fry. Compare-se com a ciência: a ciência precisa de um contexto social e histórico, mas isso não significa que as teorias científicas sejam acerca desse contexto social ou que não tenham qualquer pretensão justificável à verdade objectiva. As teorias científicas podem ser avaliadas independentemente do contexto social e histórico sem o qual não podiam existir. O mesmo sucede com as perspectivas de Hanslick acerca da natureza da música. 6 Citando um crítico: Sidney Finkelstein escreve nas suas notas à gravação das Sonatas e Partitas de Bach por Szigetti, «Sentimentos trágicos impregnam a primeira parte da sonata [nº2 em Lá menor] [...] Dirige-se a um clímax pungente e a um desenlace. A Fuga, embora de carácter impetuoso e positivo, tem insinuações trágicas nos seus impressionantes cromatismos [...]» 7 8 Ver o meu «Direction of Fit and Normative Functionalism», Philosophical Studies, vol. 91 (1998), pp. 173-203. Como um dos meus alunos escreveu num exame: «A música triste não é triste por se ter separado recentemente do compositor!» 9 10 John Searle, Intentionality (Cambridge: Cambridge University Press, 1983). A dialéctica é semelhante à da objecção «Humphrey» de Saul Kripke à teoria da modalidade em termos de mundos possíveis, de David Lewis (Saul Kripke, Naming and Necessity [Cambridge, MA: Harvard University Press, 1980]; David Lewis, On the Plurality of Worlds [Blackwell: Oxford, 1986]). Lewis sustenta que afirmar de Humprhey que este podia ter ganho é afirmar que alguém muito parecido a Humphrey noutro mundo possível efectivamente ganhou. Kripke objectou que afirmar que Humphrey podia ter ganho não é falar acerca de uma pessoa distinta, muito semelhante a Humphrey, e acerca dessa pessoa (a pessoa distinta) afirmar que ela ganhou. Estamos a falar de Humphrey, não acerca de alguém muito parecido com ele. A resposta típica a Kripke por parte de Lewis é a de que afirmar de Humphrey que este podia ter ganho é afirmar acerca de Humphrey que este se encontra em relação com alguém muito semelhante a ele, pelo que a afirmação modal é afinal acerca do próprio Humphrey. Mas esta resposta típica é ineficaz, pois Kripke pode ripostar que, intuitivamente, atribuir aquela possibilidade a Humphrey não consiste em atribuir-lhe qualquer propriedade relacional desse género. 11 Evidentemente, podemos sentir orgulho ainda que apenas pensemos em nós próprios como estando em relação, no passado ou no presente, com algo que tem uma propriedade meritória, sem que acreditemos nisso. Trata-se de um orgulho irracional. É essencial ao orgulho que este nos sujeite a restrições racionais, não que nos conformemos a elas. De igual modo, pode-se temer algo sem acreditar que seja perigoso. Mas isso é irracional. 12 Fui ver a célebre cantora iraniana Googoosh cantar em Londres, em 2001. Ela não cantava em público desde a revolução iraniana, vinte e dois anos antes. Foi um evento bastante emocional. A cantora chorava e o público, na sua maioria, chorava. Mas aquilo por que choravam tinha um conteúdo que ia muito além da música. 13 14 Para dar um exemplo, Kendall Walton pensa, implausivelmente, que ao ouvir música sucede muito frequentemente que «[...] examinamos introspectivamente os nossos próprios estados psicológicos [...]» (Kendall Walton, «What Is Abstract about the Art of Music?», Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 46 [1988], pp. 351-364 na página 360, itálico de Walton). Hanslick reconhece que a música pode evocar emoções, tal como ganhar um prémio pode ter o mesmo efeito (Eduard Hanslick, On the Musically Beautiful, p.7). Mas argumenta, muito correctamente, que tal excitação não é de todo essencial à música. 15 Questões análogas a respeito da intencionalidade e substituibilidade transferir-se-ão para a alegada expressão das emoções do artista, que discutirei na Secção IV. 16 Talvez haja alguma convergência no modo como tendemos a descrever a música em termos emocionais; mas isso é muito diferente da convergência na resposta emocional à música. 17 Penso que Peter Kivy tem toda a razão ao exigir aquilo a que chama explicações «simplistas» das emoções comuns. Deve haver alguma razão por que alguém se sente zangado. Ver, por exemplo, o seu «Feeling the Musical Emotions», British Journal of Aesthetics, vol. 39 (1999), pp. 1-13 na página 4 (ou ver o seu New Essays on Musical Understanding [Oxford: Oxford University Press, 2003], p. 102). Contudo, nesse artigo, Kivy prossegue afirmando que de facto sentimos emoções quando ouvimos música, mas que se trata de emoções «sem nome», como as que sentimos ao observar um pôr-do-sol ou o rosto de uma criança ou quando pensamos numa acção generosa e amável. Será que estas emoções supostamente comuns têm explicações simplistas? Se não têm, inclino-me a dizer que são sentimentos de prazer, não emoções, simplesmente porque não têm explicações simplistas e não estão sujeitas a restrições racionais. A teoria de Kivy nesse artigo é uma variedade da teoria da emoção especificamente musical. Mas seguramente que nem todos os prazeres são emoções e na verdade nem todas as emoções são agradáveis ou desagradáveis. Por outro lado, concordo plenamente com Kivy em como estes sentimentos ou experiências – sejam o que forem – têm o pôrdo-sol, o rosto da criança, a acção generosa e amável e a música como objectos intencionais. Ver também a obra de Kivy, Music Alone (Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 1990), em especial o cap. 8. 18 Jenefer Robinson, «The Expression and Arousal of Emotion in Music», Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 52 (1994), pp. 13-22. [Ver o capítulo anterior do presente volume, «Expressão e Evocação de Emoções na Música»] 19 Ibid., pp. 18-19. Ver também: Jenefer Robinson, «Startle», Journal of Philosophy, vol. 92 (1995), pp. 53-74. 20 21 Rosalind Hursthouse, «Arational Actions», Journal of Philosophy, vol. 88 (1991), pp. 57-68. Ver o persuasivo ensaio de Roger Scruton, «Representation in Music», em The Aesthetic Understanding (Londres: Carnet, 1983). Ver também Roger Scruton, The Aesthetics of Music (Oxford: Oxford University Press, 1997), cap. 5. Na minha perspectiva, a argumentação de Scruton é muito forte. Jenefer Robinson responde aos argumentos de Scruton em «Representation in Music and Painting», Philosophy, vol. 56 (1981). Em «Music as a Representational Art», em Philip Alperson (org.), What Is Music? (College Park, PA: Penn State University Press, 1994), a sua posição é a de que a música em princípio pode representar, mas que raramente o faz. 22 Richard Wollheim, «Seeing-as, Seeing-in, and Pictorial Representation», em Art and Its Objects, 2ª edição (Cambridge: Cambridge University Press, 1980). 23 Visto que a música não pode literalmente envolver a emoção de um modo essencial, penso que devemos ser simpáticos à perspectiva de Peter Kivy, de que a música é «papel de parede sonoro», em «The Fine Art of Repetition», em The Fine Art of Repetition (Cambridge: Cambridge University Press, 1993). 24 Não vejo inconsistência no uso que Hanslick faz de descrições emocionais na sua crítica musical, desde que compreendidas metaforicamente. Hanslick não estava empenhado em banir a descrição emocional da música, nem insistia na parafraseabilidade de tais descrições em termos não emocionais, como por vezes se supõe. 25 Ver ainda o meu «Metaphor and Realism in Aesthetics», Journal of Aesthetics and Criticism, vol. 49 (1991), pp. 57-62, reimpresso com revisões substanciais no meu livro The Metaphysics of Beauty (Ithaca, Nova Iorque: Cornell University Press, 2001). Ver também o meu «Music and Aesthetic Metaphor», em preparação. 26 Foram apresentadas versões anteriores deste artigo numa reunião da American Society of Aesthetics, em Washington D.C., em que comentou Lydia Goehr, e numa conferência sobre as emoções em Manchester. Estou muito grato pelos comentários muito úteis de Malcolm Budd, Peter Lamarque e Jerry Levinson, e pelas conversas que tive com Peter Franklin. 27