MeMórias PóstuMas de Brás CuBas
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Memórias Póstumas de Brás Cubas M achado de 1 A ssis Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados! Machado de Assis. Ao lermos um conto ou romance machadiano percebemos, nos arranjos textuais, as contradições do comportamento humano, por meio de pensamentos, atitudes e silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império (século XIX). Essas personagens compõem um “retrato social” de certos representantes, que, resumidamente, eram proprietários, funcionários (livres), agregados e escravos. Mas observemos que a extraordinária capacidade de Machado de Assis em (re)criar diálogos, considerações e cenas é uma atitude de literato e sua obra é uma invenção, como bem observa o crítico literário Alfredo Bosi: “(...) há em Machado mais do que simples inventário: há invenção. E esta inventividade de romancista permitiu-lhe seguir, graças à mobilidade do seu olhar, os movimentos públicos ou íntimos de personagens, que ora vivem segundo o capricho de sensações imediatas, isto é, vivem como indivíduos na acepção negativa de mônadas1 exteriores umas às outras; ora comportam-se como tipos, seguindo de acordo com os cálculos necessários para manter ou elevar o próprio status; ora, enfim, podem trazer em si o aguilhão da consciência da sua dignidade como pessoas, sem que esta rara disposição interior seja automaticamente causada pela sua classe econômica”. Alfredo Bosi. Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo: Ática, 1999. A biografia de Machado de Assis contraria as concepções deterministas2 de sua época: filho de um pintor e uma lavadeira, o menino, mulato, teria seu Machado de Assis destino traçado pelas dificuldades econômicas e sociais do Brasil escravocrata. Mas Machado construiu sua própria história, superando as expectativas sociais sobre seu futuro. Marcado pelo gosto pela leitura e, quando menino, pela proteção de uma dama da sociedade, que lhe possibilitou o contato com os livros (mesmo depois de deixar a escola para trabalhar), o escritor, como autodidata, adquiriu a vasta cultura filosófica e literária que reverbera em seus textos. Aos dezesseis anos começou a trabalhar em uma tipografia, inicialmente como manipulador das máquinas. Anos depois, foi admitido na redação como jornalista no Correio Mercantil. Começou a escrever versos e teatro. Na maturidade, com uma vida financeira mais estável, enfrentando as crises de epilepsia, casou-se com uma senhora portuguesa, Carolina Xavier de Novais, importante companheira até a morte. Amparado pela carreira de funcionário público, primeiro no Diário Oficial, depois na Secretaria da Agricultura, passou a dedicar-se à escrita mais amplamente. Alcançou a maturidade literária com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que livros e contos posteriores confirmaram. Nos fins do século XIX, já era considerado o maior romancista brasileiro. Tornou-se presidente fundador da Academia Brasileira de Letras. Morreu em 1908, deixando aos brasileiros uma obra que colocou nossa literatura no cenário mundial. Embora associado à Escola Realista, modelo estético seguido pelos escritores de seu tempo (segunda metade do século XIX), Machado (diferentemente dos romances iniciais de Eça de Queirós) não se encaixa “devidamente” nessa classificação, pois não foi evolucionista, nem positivista, nem cientificista, nem republicano, nem socialista. O escritor manteve em sua obra uma marcante sobriedade em relação a todos os pensamentos em moda em sua época. Com o amadurecer de seus escritos, notamos como problemática central em sua obra, através do complexo comportamento de suas personagens, a suspeita de que o engano seja uma necessidade social e de que a aparência funciona universalmente como essência, como observou Bosi: “A partir das Memórias póstumas e dos contos enfeixados nos Papéis avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior.” Alfredo Bosi. Machado de Assis: O Enigma do Olhar. op.cit. 1Mônada: (Biologia) Organismo ou unidade orgânica diminuta e muito simples. 2Hipólito Taine, filósofo que tentou compreender a organização da sociedade, criou uma teoria muito divulgada na época, o Determinismo, que entendia o ser humano como fruto da conjunção de três fatores: o meio ambiente, a classe social e a hereditariedade. memórias postumas de brás cubas CPV 2 Memórias Póstumas Mas, como apontamos, também marcante na escrita machadiana é a sobriedade, isto é, o autor apresenta os casos mais estranhos sem espanto, com moderação. Revela os tormentos do homem e as iniquidades do mundo com nudez e sem retórica. Assim, minimiza o contraste entre o que se toma como normalidade e o que se considera anormal, ao tratar tudo como fato corriqueiro. Machado de Assis tornou-se um mestre da Literatura brasileira, não apenas como escritor de romances, mas também como contista. Nesse gênero, confira textos como “Relíquias da Casa Velha”; “O Alienista”; “A Causa Secreta”; “Sereníssima República”; “O Espelho”; “A Missa do Galo”, que você pode ler para envolver-se mais com o estilo desse autor. Por enquanto, concentrar-nos-emos na leitura obrigatória para o vestibular. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicadas inicialmente em folhetim, ao longo de 1880, e no ano seguinte em volume, inauguram o Realismo brasileiro. Embora Machado de Assis escreva de forma atemporal (como apontamos há pouco), há no livro elementos que o aproximam do Realismo, como o fato de optar por narrar a “vida como ela é”, em detrimento de construções idealizadas. Nas Memórias, prevalecem a ironia e o humor, o que não era frequente no romance romântico. O narrador, o defunto Brás Cubas (sim, ele realmente está morto), despoja-se da preocupação de narrar idílios amorosos e incide seu foco na análise dos caracteres e das complexas situações, revelando-se um observador satírico e desencantado do espetáculo humano. Para ele, a sociedade é sem futuro e sem retorno, a vida dança na valsa de seus caprichos: ora se diverte com os vícios, ora entende incriminálos. Essa dubiedade é constante — Brás Cubas não é linear. Não há linearidade também na narrativa, o “defunto autor” começa a enunciação narrando sua morte, depois o nascimento, indica passagens de sua vida adulta e de sua infância, sem preocupar-se com a organização cronológica. Vejamos o primeiro capítulo: Capítulo I – Óbito do Autor Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto que o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor3 , para quem a campa4 foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. CPV Memórias Póstumas de Brás Cubas de Brás Cubas Moisés, que também contou a sua morte, não o pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco5 . Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: —“Vós que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.” Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula6 dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet7 , sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio do vale, — e... Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse8 , não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. — Morto! morto! dizia consigo. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ateliê, 1998.9 Vocabulário: 3defunto autor: morto que se torna autor 4campa: pedra que cobre a sepultura 5Pentateuco: cinco primeiros livros do Antigo Testamento, dedicados à história de Moisés. 6Cláusula: testamento. 7Undiscovered country de Hamlet: reino desconhecido, mundo da morte. Refere-se à peça Hamlet de Shakespeare. 8Carpir: arrancar o cabelo ou a barba em sinal de dor. 9Todos os excertos das Memórias Póstumas de Brás Cubas citados nesta aula foram extraídos dessa edição. Memórias Póstumas Defunto autor e não autor defunto — para quem a campa foi outro berço — essa diferença esconde fundamentais características da narrativa, como a liberdade de opiniões e de escrita que Brás Cubas pode assumir, pois não está mais preso às regras sociais, nem a modelos consagrados de estilo, diferentemente de nós, pode dar-se ao “luxo” de ser sincero. Essa atitude narrativa explica-se pelo adjetivo póstumas do título, que significa o que vem depois de tudo, inclusive da morte. Portanto, suas memórias são mais do que posteriores: são o depois absoluto. Isso quer dizer que Brás assume uma posição privilegiada em contraste com “os senhores vivos”, que necessitam da dissimulação inerente à sobrevivência social. O defunto autor está livre para exercer o poder de dizer o que pensa e quando pensa, usando dessa “superioridade” para desdenhar do leitor: Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele não se estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados! Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Em relação ao encadeamento da obra, Machado lança mão de um recurso chamado digressão, que consiste em uma suspensão do ato narrativo para enunciar sua opinião, comentar sobre a escritura da obra, narrar outro fato etc. Muitos são os momentos digressivos nas Memórias — como exemplo, observemos, no primeiro capítulo, quando Brás Cubas rompe a narrativa de seu enterro para comentar sobre uma mulher misteriosa (Virgília). Esse recurso permite ao narrador uma autonomia textual ainda maior (de modo alinear), pois um comentário puxa uma lembrança que leva a outro comentário e assim por diante (este livro e o meu estilo são como os ébrios10 , guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...11 ). Além disso, possibilita que Brás se coloque entre nós e as personagens que nos apresenta e valorize suas próprias análises e conclusões. Vocabulário: 10Ébrios: bêbados, alcoolizados. 11Capítulo LXXI: “O Senão do Livro”. de Brás Cubas 3 Outro recurso fundamental de seu estilo é a ironia, da qual não poupa nem a si mesmo ao afirmar que os elogios proferidos ao pé de seu caixão foram bem pagos: Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. Brás Cubas é uma personagem nutrida de características que representam a classe senhorial escravocrata brasileira de meados do século XIX. De família rica, o narrador apresenta-nos desde suas peripécias infantis, em que foi um menino voluntarioso e mimado, passando por seu primeiro amor, a cortesã Marcela (Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos), por sua vida universitária (bacharelou-se em Direito), suas relações sociais em busca de uma carreira política para satisfazer o sonho de seu pai, até sua relação adúltera com Virgília, esposa de Lobo Neves (com quem Brás Cubas disputou na carreira política) e sua amizade com Quincas Borba, personagem excepcionalmente composta, acometida de loucura e que cria uma doutrina filosófica, o Humanitismo. Agora, como defunto autor, confessa-nos que de tudo o que viveu, só apreendeu a “casca”, como observa no trecho a seguir, extraído do capítulo “Bacharelo-me” (capítulo XX), quando termina a universidade: E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; derammo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, — principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, — de prolongar a universidade pela vida adiante... Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Brás, por meio de sua “sinceridade de finado”, compõe momentos em que Machado nos revela os parâmetros da classe social da qual o narrador é representante, o retrato crítico do livro constrói-se na nudez de confessar sua vaidade: Capítulo II – O Emplasto Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurouse-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a espernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas12 de volantim13 , que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te. Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto14 anti-hipocondríaco15 , destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias16 que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que Memórias Póstumas de Brás Cubas CPV 4 Memórias Póstumas me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória. Um tio meu, cônego de prebenda17 inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços da infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e conseguintemente, sua mais genuína feição. Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. Vocabulário: 12Cabriola: salto ágil ou acrobático 13Volantim: equilibrista 14Emplasto: medicamento. 15Hipocondria: preocupação excessiva com o estado de saúde. 16Pecuniárias: relativas a dinheiro. 17Prebenda: renda eclesiástica. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. No primeiro parágrafo desse capítulo, o narrador não comenta que teve uma ideia, mas que a ideia sublime o perseguiu. No segundo parágrafo, ao desvendar o enigma, escreve que o emplasto seria destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade e que chamou a atenção das autoridades para seu empenho: verdadeiramente cristão. Não é difícil perceber que o vaidoso Brás Cubas compara o trabalho de compor o emplasto, que, segundo ele, o levou à morte, com o sacrifício de Cristo: ambos sofrem para “aliviar” a humanidade. Mas, como defunto, despe-se das lantejoulas e apresenta-nos sua verdadeira intenção: a fama, ou melhor, o amor da glória (um eufemismo). Não devemos nos deixar enganar pela aparente liberdade que Brás atribui ao leitor. Observe que, nas considerações finais desse capítulo, o narrador simula deixar para os leitores a decisão de valorizarem ou não sua visão de mundo baseada na vaidade, mas nossas escolhas são: sermos modestos e classificar a fama (segundo o padre) como uma perdição, ou hábeis e, portanto, concordantes com a premissa de que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e conseguintemente, sua mais genuína feição. Entre ser modesto ou hábil, o que você prefere? É importante observar que o leitor atento, para perceber essas malícias do texto, deve sempre desconfiar das opiniões do narrador. Passemos para um dos capítulos mais bem construídos da obra, “O Delírio” (capítulo VII), momento em que o defunto autor, antes de morrer, narra seu delírio, advertindo: Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte ou trinta minutos. Em vários momentos da narrativa, Brás joga com a possibilidade do leitor de avançar nos capítulos (tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar), mas notemos que sempre haverá um motivo para permanecermos em contato com o que esse “excepcional” narrador escreve: CPV Memórias Póstumas de Brás Cubas de Brás Cubas (...) Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era, como se chamava: curiosidade de delírio. — Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga. Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas. (...) Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos. — Pobre minuto! Exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e ser devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota? — Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? E, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me? — Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha. Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, os tumultos dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias — desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, Memórias Póstumas que era um sono entre sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Momento em que o narrador antecipa sua visão pessimista com a qual desfecha a obra, a Natureza de Brás Cubas, fonte primeira de toda a história dos homens, aparece como um ser frio e egoísta (princípios que sustentam as atitudes e opiniões de sua classe). A viagem de Brás Cubas ao segredo do universo mostra-nos que quem não devora é devorado, triste confirmação do “darwinismo social”, pensamento em moda na época. Essa concepção fica evidente em outros momentos, como o capítulo a seguir, em que Brás, após conhecer a história de vida de D. Plácida, reflete consigo mesmo sobre o sentido da existência da agregada, que encobre seu adultério com Virgília por morar na casa da Gamboa: Capítulo LXXV – Comigo Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que D. Plácida saiu da sala. O que eu disse foi isto: — Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã, naturalmente lhe responderiam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos nas costuras, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Como vimos, temos, nesse capítulo, um dos momentos mais angustiantes da reprodução da ideologia dominante entre a elite brasileira da época, o “darwinismo social”, que interpretava a vida em sociedade como um luta em que a vitória seguia a lei do mais forte, do mais astuto, do mais apto. Essa visão foi ironizada pela teoria elaborada por Quincas Borba, o “Humanitismo”, que, a partir da ideia de que os melhores vencem, justifica as atitudes e sentimentos humanos, desde a guerra à inveja, incluindo a “seleção natural” causada pelas epidemias. A máxima da filosofia era: “Ao vencedor, as batatas!”. Vejamos um momento em que o Quincas dá uma explicação sobre ela: de Brás Cubas 5 Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da inveja. O acordo é universal, desde os campos da Idumeia até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas safadas e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Essa teoria soma-se aos pensamentos da época, esforçados em compreender e justificar as diferenças sociais. No livro há vários momentos que confirmariam a teoria sobre a “Ponta do Nariz”, formulada pelo professor Sidney Chalhoub a partir de um capítulo das Memórias: (...) Brás acha possível constatar que a faculdade de concentrar-se assim tão intensamente na ponta do nariz não pertence ao faquir somente; é ‘universal’, tendo cada homem a ‘necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz’. Para ver a luz celeste, dissolverse no impalpável, como o faquir? Decerto que não; ao contrário, para Brás a contemplação do nariz concentra poder, pois permite a eliminação das ‘cousas externas’ — isto é, o não reconhecimento de atores a ações políticas que exprimem antagonismo em relação à sua visão de mundo. Para não deixar dúvida sobre a metáfora de efeito da contemplação do nariz ‘é a subordinação do universo a um nariz somente’, e tal efeito ‘constitui o equilíbrio das sociedades’. Para Brás a contemplação do nariz não é a ‘sublimação do ser’, como para o faquir, mas o próprio centro de um ser político específico, historicamente constituído e datado, e que podemos apelidar, por comodidade, de classe senhorial, vivendo o período de apogeu de seu poder e prestígio social no Segundo Reinado. Sidney Chalhoub. Machado de Assis, Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. A elite que Brás Cubas retrata é movida pela ascensão social de “raposas”, como de Lobo Neves (marido de Virgília) e do próprio Brás Cubas. Nesse círculo social, levado a girar em busca do “amor da glória”, pessoas como D. Plácida nascem à margem do sucesso e da vitória social. O narrador destina às personagens socialmente excluídas o feroz desdém e a cortante ironia de sua classe, evidentes ao compor o retrato da empregada (agregada) ou até de sua amada Eugênia, “a flor da moita”, que, por ser fruto de uma relação não oficial e apresentar um problema físico, seria ilegítima para o casamento com Brás: O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Memórias Póstumas de Brás Cubas CPV 6 Memórias Póstumas de Esse desprezo, destinado aos que não pertencem a sua classe, mostra-nos que, no fundo, o que importa para o narrador é a consideração pública, valor que nos leva ao cerne de sua lógica: “se o que há de mais profundo em nós é no fim de contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece realmente valioso —, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado?”, conclusão que o professor Antonio Candido observou em seu livro Vários Escritos e que encontramos confirmada nas considerações finais das Memórias: Capítulo CLX – Das negativas Entre a morte de Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do Emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário: e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais: não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo18 , que é a derradeira19 negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Vocabulário: 18Saldo: diferença entre receitas e despesas (aqui, positiva – ainda sobrou algo). 19Derradeira: última. Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. op.cit. Seu pessimismo é angustiante, o tempo envelhecendo as pessoas e destruindo as ilusões caras a elas. Entre todas as negativas que o narrador revela ter encontrado, a última desdenha do princípio de perpetuação da espécie humana, o Crescei-vos e multiplicai-vos. Mas, segundo o olhar do defunto autor, que por estar do outro lado conhece o verdadeiro significado da existência, o crédito está justamente no contrário. Harold Bloom, professor de Literatura da Universidade de Yale, crítico literário muito respeitado e contemporâneo a nós, publicou, recentemente, Gênio, obra em que seleciona os Cem autores mais criativos da História da Literatura. Nela, apontou Machado de Assis como o maior literato negro da história da Literatura universal e considerou o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas um gênio da ironia. Resta-nos conferir por que nosso escritor tornou a Literatura Brasileira conhecida no mundo inteiro. Boa leitura! DIÁLOGO ENTRE TEXTOS O Primo Basílio e as Memórias Póstumas de Brás Cubas são classificados como obras realistas por serem romances comprometidos em revelar “a vida como ela é”, através da nudez da vida sem idealizações. Porém, revelam estilos diferentes de cada um dos autores. O estilo lento e descritivo do narrador de Eça de Queirós opõe-se à agilidade das digressões e opiniões de Brás Cubas. Em relação às personagens, observemos a diferente construção do feminino entre as patroas (Luísa, manipulável, e Virgília, voluntariosa) e entre as empregadas: Juliana, no romance português, é representante dos trabalhadores revoltados com a condição de exploração de sua mão de obra; e D. Plácida, no texto brasileiro, mostra-se resignada e agradecida pelos favores que recebe de Virgília e Brás Cubas. CPV Memórias Póstumas de Brás Cubas Brás Cubas ATIVIDADES (FUVEST-SP/2004) Texto para as questões 01 e 02. Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal. Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. 01. A busca de “uma supremacia, qualquer que fosse”, que neste trecho caracteriza o comportamento de Quincas Borba, tem como equivalente, na trajetória de Brás Cubas, a) b) c) d) e) o projeto de tornar-se um grande dramaturgo. a ideia fixa da invenção do emplasto. a elaboração da filosofia do Humanitismo. a ambição de obter o título de marquês. a obsessão de conquistar Eugênia. 02.Considere as seguintes afirmações: I. Excesso de complacência e falta de limites assinalam não só a infância de Brás Cubas e a de Quincas Borba, referidas no excerto, mas também a de Leonardo (filho), das Memórias de um Sargento de Milícias. II. Uma formação escolar licenciosa e indisciplinada, tal como a relatada no excerto, responde, em grande parte, pelas características de Brás Cubas, Leonardo (filho) e Macunaíma, personagens tipicamente malandras de nossa literatura. III.A educação caracterizada pelo desregramento e pelo excesso de mimo, indicada no excerto, também é objeto de crítica em Libertinagem, de Manuel Bandeira, e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa. Está correto apenas o que se afirma em: a)I b)II c)III d) I e II e) II e III Memórias Póstumas de Brás Cubas 7 (FUVEST-SP/2003) Texto para as questões de 03 a 05. (FUVEST-SP/2005) Texto para as questões 06 a 10. Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiamno de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaramse. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. 03.Neste excerto, Brás Cubas discute as acusações dirigidas a seu cunhado Cotrim. A argumentação aí apresentada: a) faz com que, ao defender Cotrim, ele contribua, ironicamente, para confirmar essas acusações. b) confirma a hipótese de que Machado de Assis, ao ascender socialmente, renegou suas origens e abandonou a crítica ao comportamento das elites. c) visa demonstrar que as práticas de Cotrim não contavam com a conivência de Brás Cubas e da sociedade da época. d) comprova a convicção machadiana de que os homens nascem bons, a sociedade é que os corrompe. e) é moralmente impecável, pois distingue o lícito do ilícito, condenando explicitamente os desvios, como o contrabando e a tortura. 04. As relações entre senhores e escravos, referidas no excerto: a) caracterizam-se por uma crueldade que, no entanto, constitui exceção no livro: nas demais ocorrências do tema, essas relações são bastante amenas e cordiais. b) constituem o principal assunto das Memórias Póstumas de Brás Cubas, ocupando o primeiro plano da narrativa. c) aparecem poucas vezes, de maneira direta, no romance, mas caracterizam de modo decisivo as relações sociais nele representadas. d) desenham o pano de fundo histórico do romance, mas não contribuem para a caracterização das personagens. e) servem apenas para caracterizar o comportamento de personagens secundárias, não aparecendo no relato da formação do protagonista. 05.O efeito expressivo obtido em “ferozmente honrado” resulta de uma inesperada associação de advérbio com adjetivo, que também se verifica em: a) b) c) d) e) sorriso maliciosamente inocente. formas graciosamente curvas. sistema singularmente espantoso. opinião simplesmente abusada. expressão profundamente abatida. Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas 06.No trecho, Brás Cubas reflete sobre a história de Dona Plácida, reconhecendo a extrema dureza de sua vida. No contexto do livro, esse reconhecimento revela que Brás Cubas, embora perceba com precisão o desamparo dos pobres, não faz mais que: a) procurar remediá-lo com soluções fantasiosas, como a invenção do emplasto, cuja finalidade era a de eliminar as desigualdades sociais. b) declarar sua impotência para saná-lo, tendo em vista a extensão desse problema na sociedade brasileira do Segundo Reinado. c) considerá-lo do ponto de vista de seus próprios interesses, interpretando-o conforme lhe é mais conveniente. d) transformá-lo em recurso retórico, utilizado por ele nos discursos demagógicos que proferia na Câmara dos Deputados. e) interpretá-lo conforme a doutrina do Humanitismo, segundo a qual os sofrimentos dos indivíduos servem para purgar os pecados cometidos em vidas passadas. 07.A vida de Dona Plácida, referida no excerto, é muito semelhante à vida de trabalhos duros e incessantes de Juliana (O Primo Basílio), com a diferença de que a personagem de Eça de Queirós: a) não mais se fiava no favor dos patrões, passando a arquitetar um plano astucioso, embora indigno, para emancipar-se. b) não era uma agregada, como Dona Plácida, mas uma criada, condição que a tornava ainda mais desprovida de direitos legais. c) pautava sua conduta por uma rígida moral puritana, que a fazia revoltarse contra os amores adúlteros da patroa. d) tinha menos motivos para revoltar-se, tendo em vista a consideração de que gozava na casa dos patrões. e) não temia miséria nem desamparo e, por isso, enfrentava os patrões de modo aberto e corajoso. 08.Tal como narradas neste trecho, as circunstâncias que levam ao nascimento de Dona Plácida apresentam semelhança maior com as que conduzem ao nascimento da personagem: a) b) c) d) e) Leonardo (filho), de Memórias de um sargento de milícias. Juliana, de O Primo Basílio. Macunaíma, de Macunaíma. Augusto Matraga, de Sagarana. Olímpico, de A Hora da Estrela. 09. Consideradas no contexto em que ocorrem, constituem um caso de antítese as expressões: a) b) c) d) e) “disse-lhe alguma graça” – “pisou-lhe o pé”. “acercaram-se” – “amaram-se”. “os dedos nos tachos” – “os olhos na costura”. “logo desesperada” – “amanhã resignada”. “na lama” – “no hospital”. Memórias Póstumas de Brás Cubas CPV Memórias Póstumas 8 10.Dos verbos no infinitivo que ocorrem na resposta do sacristão e da sacristã, o único que deve ser entendido, necessariamente, em dois sentidos diferentes é: a)“queimar”. b)“comer”. c)“andar”. d)“adoecer”. e)“sarar”. 14.(FUVEST-SP/Jan-2013) No excerto abaixo, narra-se parte do encontro de Brás Cubas com Quincas Borba, quando este, reduzido à miséria, mendigava nas ruas do Rio de Janeiro: 12.(FUVEST-SP/Nov-2012) Os momentos históricos em que se desenvolvem os enredos de Viagens na Minha Terra, Memórias de um Sargento de Milícias e Memórias Póstumas de Brás Cubas (quanto a este último, em particular no que se refere à primeira juventude do narrador) são, todos, determinados de modo decisivo por um antecedente histórico comum — menos ou mais imediato, conforme o caso. Trata-se da: a) b) c) d) e) invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. turbulência social causada pelas revoltas regenciais. volta de D. Pedro I a Portugal. proclamação da independência do Brasil. antecipação da maioridade de D. Pedro II. 13.(PUC-SP/2013) Memórias Póstumas de Brás Cubas é um romance de Machado de Assis e integra a estética do Realismo brasileiro. Tem em Brás Cubas o personagem principal da narrativa. Deste personagem é possível afirmar que: a) apaixona-se por Virgília, casa-se com ela mas, depois de algum tempo, ela o trai com Lobo Neves. b) vive uma paixão passageira com Marcela, não se casa com Virgília porque a perde para Lobo Neves, mas mantém com ela um envolvimento adulterino. c) personifica um autor defunto e narra as peripécias de sua vida de forma linear, evitando qualquer tipo de digressão. d) é protagonista e narrador do romance e caracteriza-se pela ascensão social, pelo sucesso político e pela plena realização pessoal. e) partilha com Lobo Neves uma relação honesta e desinteressada, vive os mesmos ideais e entre eles nunca houve concorrência. CPV Memórias Póstumas de Brás Cubas Brás Cubas EXERCÍCIOS DISCURSIVOS 11.(FUVEST-SP/Nov-2012) Em quatro das alternativas abaixo, registram-se alguns dos aspectos que, para bem caracterizar o gênero e o estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas, o crítico J. G. Merquior pôs em relevo nessa obra de Machado de Assis. A única alternativa que, invertendo, aliás, o juízo do mencionado crítico, aponta uma característica que não se aplica à obra em questão é: a) ausência praticamente completa de distanciamento enobrecedor na figuração das personagens e desuas ações. b) mistura do sério e do cômico, de que resulta uma abordagem humorística das questões mais cruciais. c) ampla liberdade do texto em relação aos ditames da verossimilhança. d) emprego de uma linguagem que evita chamar a atenção sobre si mesma, apagando-se, assim, por detrás da coisa narrada. e) uso frequente de gêneros intercalados — por exemplo, cartas ou bilhetes, historietas etc. — embutidos no conjunto da obra global. de Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis, — a menos limpa, — e dei-lha [a Quincas Borba]. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado. – In hoc signo vinces!* bradou. E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis. — Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu. — Sim? acudiu ele, dando um bote para mim. — Trabalhando, concluí eu. *“In hoc signo vinces!”: citação em Latim que significa “Com este sinal vencerás” (frase que teria aparecido no céu, junto de uma cruz, ao imperador Constantino, antes de uma batalha). Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. a) Tendo em vista a autobiografia de Brás Cubas e as considerações que, ao longo de suas Memórias póstumas, ele tece a respeito do tema do trabalho, comente o conselho que, no excerto, ele dá a Quincas Borba: “– Trabalhando, concluí eu”. b) Tendo, agora, como referência, a história de D. Plácida, contada no livro, discuta sucintamente o mencionado conselho de Brás Cubas. Explique sucintamente. 15.(UNICAMP-SP/2013) Leia os seguintes trechos de Viagens na Minha Terra e de Memórias Póstumas de Brás Cubas: Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto de consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações minhas. Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra. Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada. Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás íntimo, por que o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, em Romances, a) No que diz respeito à forma de narrar, que semelhanças entre os dois livros são evidenciadas pelos trechos acima? b) Que tipo de leitor esta forma de narrar procura frustrar, e de que maneira esse leitor é tratado por ambos os narradores?
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