Guia de Estudos - CDI - 2006

Transcrição

Guia de Estudos - CDI - 2006
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Carta de apresentação
Caros especialistas!
É com o maior prazer o orgulho que damo- lhes as boas vindas ao guia de estudos da
Comissão de Direito Internacional da SOI 2006. Neste documento vocês encontrão linhas
gerais sobre os dois temas que serão discutidos durante nossa sessão em outubro. Confiamos
na sua dedicação e afinco, e sintam-se à vontade para contactar a mesa diretora para dirimir
qualquer dúvida. Aproveitando o momento ainda informal, e buscando constratar com o clima
deveras formalista do resto do documento, vamos agora nos apresentar de uma forma
ligeiramente mais exótica que o usual.
O mais velho do comitê, Wagner Artur Cabral, está em algum lugar entre o 8° e o 6°
período do curso de Direito da UFRN, gosta de rock japonês, é fascinado por filmes que
ninguém entende muito bem e, não raro, dorme de dia para pensar em planos de dominação
intergalática no meio da noite. Freqüenta simulações da ONU desde o primeiro semestre do
curso e diz que só vai parar quando causar uma guerra mundial pela segunda vez, já que a
primeira não valeu.
Em seguida temos Lucas Galvão de Britto, que cursa atualmente o 7° período do curso
de Direito da UFRN, não tem superpoderes e nem voa, mas tenta diariamente desafiar as leis
da natureza que estabelecem a duração do dia. Desnecessário dizer: sempre perde. Dia desses
conseguiu empatar, mas o juiz mandou voltar. Já representou em simulações tanto Yasser
Arafat quanto Ariel Sharon, fato a que se credita sua personalidade contraditória.
O padawan Rochester Oliveira Araújo cursa o 4° período do curso de Direito da
UFRN, dizem ser originário de Manchester, filho da casa de Winchester e está cansado de
receber ligações no Natal que tratam sobre o consumo nada moderado de Chester. Gosta de
malabares e outras atividades circenses, e jura que Rondônia não é tão longe assim. Sabe
pescar, e faz eventual recurso ao humor negro.
Priscylla Fernanda Araújo de Medeiros, atualmente cursa o 8° período do curso de
Direito da UFRN, já foi apelidada de Heloísa Helena por sua tranqüilidade e paciência, é faixa
preta em caratê – se duvidar apanha - e tem de se virar com esses três loucos no mesmo
comitê que ela. Apesar de ter sofrido profundos abalos psicológicos no decorrer dos trabalhos
preparativos, dizem que sua recuperação é certa... já os demais...
Os temas em questão são complexos, e um trabalho de diplomacia criativa será muito
importante para nosso sucesso. A capacidade de trabalhar de forma objetiva em equipe fará
toda a diferença. Desta forma, agradecemos desde já a escolha por nossa companhia, e
fazemos votos de boa jornada a todos. Sintam-se em casa, vamos aproveitar a oportunidade
para aprender, discutir e fazer amigos.
Sinceramente,
Wagner Artur, Lucas Galvão, Rochester Araújo e Priscylla Dantas.
Mesa Diretora da Comissão de Direito Internacional – SOI 2006
1
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
SOBRE A COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Antecedentes
Criada em 1948, a Comissão de Direito Internacional – CDI – liga-se a Assembléia
Geral da ONU e tem como objetivo a codificação do Direito Internacional Público (DIP),
Direito Internacional Privado e do Direito Penal Internacional iniciando estudos e fazendo
recomendações, destinando-se a: promover cooperação internacional no terreno político e
incentivar o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional e a sua codificação 1 .
A CDI vincula-se a uma proposta não tão recente de organismos internacionais que
vislumbravam a necessidade de uma maior orientação do direito na esfera mundial, tal
processo seria alcançado através da codificação de resoluções e normas utilizadas no direito
consuetudinário.
A idéia de codificar o Direito Internacional não é nova, desde o Século XVIII surgem
os primeiros movimentos para a codificação da norma consuetudinária internacional, por
intermédio da pessoa de Jeremy Betham2 e de entidades privadas, várias sociedades de estudo
do direito, bem como vários Estados passaram a desenvolver estudos com a finalidade de
alcançar um denominador comum quanto os dilemas de proporções internacionais que o
desafio da codificação colocava.
Sobre codificação, já pensava Bentham, esta serviria como valioso instrumento à
eliminação das incertezas ocasionadas pela ausência de um direito manuseado e,
principalmente, a facilitação da aplicação dos Princípios Gerais do Direito no cenário
internacional.
Pode-se dizer, então, que foi com os estudos do filósofo inglês que o mundo passou a
vislumbrar a possibilidade de materializar a existência de um Direito Internacional em
código.
Em termos reais, foi a partir de 1873 que o Direito Internacional passou a ter a
comunidade jurídica voltada com o propósito de viabilizar sua concatenação, neste tempo
podemos destacar as contribuições do Intitute de Droit Internacional, da International Law
Association, e posteriormente em 1927 com a fundação do Harvard Institute for Research in
International Law.
Antes de fundação do Instituto de Harvard, pode-se ainda destacar as contribuições
feitas pelo Congresso de Viena (1914 – 1915), onde foram emitidos relatórios sobre o regime
internacional dos rios, os tratados de abolição de escravidão. Foi a partir de tal Congresso que
diplomatas passaram a se reunir em conferências sobre questões dos mais diversos assuntos
desde tratados de guerras em terra e mar, passando pela pacificação e resolução de disputas,
mais ainda pela unificação do Direito Internacional Privado, pela proteção intelectual, da
1
NAÇÕES UNIDAS, Organização das. Carta da Organização das Nações Unidas. Artigo 13. 1.a.
2
Em seus princípios de Direito Internacional (escrito entre 1786-1789), Bentham previu que um código
internacional, que deveria ser baseado na aplicação de seu princípio da utilidade às relações internacionais, não
falharia em prover um cenário de paz eterna. Contudo, o próprio filósofo fez pouco para implementar seus
planos em conformidade com o direito existente entre as Nações. NAÇÕES UNIDAS, Comissão de Direito
Internacional. Sítio Eletrônico. Disponível em: <http://www.un.org/law/ilc/>. Acesso em: junho de 2006.
2
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
regulação dos serviços postais e telecomunicações, a regulamentação da navegação marítima
e aérea e varias outras questões concernentes a áreas sociais e econômicas 3 .
E, Embora, muitas destas conferências tenham sido eventos isolados com problemas
particulares aplicados muitas vezes a casos geograficamente isolados, o fato de elas existirem
resulta de um esforço dos Governos em discutir e desenvolver o direito através de
multilaterais convenções e sucessivas conferencias internacionais.
Foi desta forma o inicio da codificação e principalmente da discussão sobre a
existência de um Direito Internacional, a qual todos os Estados ficaram interligados tendo de
forma única uma pacificação diante de fatos ocorridos em diversos pontos do mundo.
Então a partir da criação da Assembléia da Liga das Nações de 1924 e do comitê
4
chamado de Comitê de Expertos para a Codificação Progressiva do Direto Internacional
que a base estrutural do que hoje e a Comissão de Direito Internacional foi formada. Esse
comitê era formado por dezessete especialistas que se uniram para questionar a viabilidade e a
realização da codificação do Direito Internacional. Assim, três anos após a primeira reunião
surgiu um novo encontro no qual se visou à discussão dos tópicos: nacionalidade, águas
territoriais e a responsabilidade do Estado com a pessoa do estrangeiro. Embora só tenha sido
discutido o tópico sobre a nacionalidade, esta deflagrou na formulação de importantes
considerações para a criação e desenvolvimento do Estatuto 5 da Comissão de Direito
Internacional .
Competências e procedimentos
A partir do Estatuto se tem evidenciados o objetivo e a sistematização da CDI
como também de sua importância no quadro de elaboração do DIP e demais ramos do direito,
anteriormente citados.
Dessa
1º e 2º ter a
Internacional
Internacional
Internacional
forma, no que concerne ao objeto material da Comissão, preconiza o art. 1º §§
mesma por objetivo a promoção do desenvolvimento progressivo do Direito
e a sua codificação, devendo interessar-se primeiramente com o Direito
Público, não devendo furtar-se de versar também sobre questões de Direito
Privado.
Fazendo uso desta prerrogativa conferida no art. 1º § 2º, a Comissão passou a se
questionar sobre sua atuação no campo do Direito Internacional Privado, uma vez que ate
meados dos anos 90 tinha atuado majoritariamente no campo do DIP, o que acarretou na
união a órgãos como Comissão das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional UNCITRAL e a Conferência de Haia sobre Direito Internaciona Privado 6 em projetos
desenvolvidos por tais. Todavia, não há como desassociar a CDI do Direito Internacional
Público uma vez que essa foi e sempre será o motivo pelo qual esta existe.
3
Vide, a respeito, A/AC.10/5, “Historical survey of the development of international law and its
codification by international conferences”; E A/AC.10/8, “Outline of the codification of international law in the
inter-American system with special reference to the methods of codification”.
4
League of Nations, Official Journal, Special Supplement, No. 21, p. 10. (COMISSÃO 2006)
5
Vide o Estatudo da Comis são de Direito Internacional, disponível em inglês no endereço:
<http://www.un.org/law/ilc/texts/statueng.htm>.
6
Ver Yearbook of the International Law Commission, 1996, vol. II (Part Two), para. 155.
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COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Neste mesmo diapasão, o Estatuto faz ainda a distinção entre o progressivo
desenvolvimento, que significa a preparação de projetos de convenções que sejam esboços, e
a codificação propriamente dita, que pode ser entendida pela maior precisão na formulação e
sistematização das regras de Direito Internacional naqueles Estados que efetivamente já as
praticam, possuem precedentes ou ainda, as tem em doutrina (art 15 do Estatuto da CDI).
O Estatuto estabelece ainda que o projeto de convenção deve ser submetida a
Assembléia Geral, que ira decidir sobre os próximos passos a serem adotados para a
conclusão de uma resolução internacional, que será escolhida dentre duas possibilidades: (1) a
publicação dos relatórios emitidos pela Comissão; (2) ou não serem adotados, consoante o
artigo 23 § 2º do Estatuto 7 .
Outra atribuição da Comissão é trabalhar como órgão consultivo da ONU em questões
que envolvam Direito Internacional. Para tanto, a Comissão produz relatórios, que, embora
não tenham caráter normativo, possuem importante valor na interpretação e definição das
normas costumeiras e positivadas.
A metodologia utilizada é a mesma tanto para os projetos de convenções quanto para
os relatórios, designando um relator especial para cada tópico, o que será mais esmiuçado a
seguir.
A partir da escolha de um tema relevante um plano de trabalho é formulado pelos
membros da CDI, sendo elaborado um relatório pelo relator especial baseado nas propostas de
convenção provisória, após tal procedimento é submetido para apreciação da Assembléia
Geral e também as Estados para que estes façam suas ponderações por escrito.
Passado a fase de ponderações, será o relator especial o responsável por organizar toas
as idéias formulando um documento único o qual será submetido para a apreciação final as
Assembléia Geral.
Nesta SOI, simularemos a confecção de um (ou dois) relatórios sobre os temas
previstos em nossa Agenda. Tais relatórios devem se basear nos costumes e normas de direito
internacional já existentes, contendo recomendações para a interpretação dos mesmos e
sugestões para a sua melhor aplicação diante dos problemas que decorrem de sua aplicação
(ou mesmo da falta dela).
Membros
Em sua composição, a Comissão de Direito Internacional é formada por 34 membros,
eleitos pela Assembléia Geral para um mandato de 5 anos. Esses membros são considerados
em suas individualidades, jamais como representantes de paises, pois é necessário que esses
tenham reconhecido saber jurídico que se reportam as regras de direito internacional.
A maior parte da comissão participa na produção de convenções que versam sobre
importantes tópicos de direito internacional, a intenção não deve jamais ser o interesse
individual de um Estado, mas sim o desenvolvimento e o comprometimento do mundo para
questões que aflijam a coletividade.
7
Article 23 2. Whenever it deems it desirable, the General Assembly may refer drafts back to the
Commission for reconsideration or redrafting.
4
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Como forma de estimular a pluralidade dos debates e garantir maior realismo à nossa
simulação. Sugerimos aos delegados que, filiados aos países como o foram no ato de
inscrição, procurem investigar qual o perfil cultural do país que “representa”. A pluralidade de
membros na Comissão é o instrumento pelo qual se fazem representar os diferentes
ordenamentos e culturas jurídicas que devem ser combinados na formulação de um direito
internacional plural e consonante com os propósitos universais das Nações Unidas.
TEMA A: RESERVAS EM TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS
Um preâmbulo
Particularidades culturais, religiosas, políticas, econômicas e sociais, fazem de cada
Estado um cenário ímpar, dotados de temas, interesses e conflitos próprios. Ao mesmo tempo,
vivemos uma época na qual o avanço em ritmo frenético dos meios de comunicação, dos
transportes e do comércio internacional transformam o que antes eram ilhas apartadas em uma
verdadeira aldeia global.
Logo, com o avanço das relações entre as pessoas e Estados numa escala supra-estatal
surge a necessidade do Direito alcançar tal progresso: numa sociedade global, precisamos de
um direito global8 . Porém, como conciliar aquelas particularidades de cada povo com a
pretendida abrangência universal da norma?
Solver esta questão não foi nada fácil, sobretudo quando se trata de direitos humanos,
pois, como a própria denominação reconhece, são direitos inerentes à todos pela simples
condição de serem humanos. Pode-se dizer que, quanto ao reconhecimento e proteção desses
direitos na esfera internacional, não se observou, em mesma medida do clamor da sociedade
internacional, a manifestação positiva por parte dos Estados. Mas de que adiantaria um
sistema internacional sem a participação ativa dos Estados? A solução encontrada para tanto,
quando da elaboração de normas internacionais, são as reservas aos tratados.
Uma reserva, segundo o art. 2° (d) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados
de 1969 significa:
[...] uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou
denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um
tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito
jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado.
Através dessa flexibilização da norma internacional, o Estado poderia criar condições
de ratificar o tratado, sem que isso criasse conflitos com seu ordenamento interno e traços
culturais que poderiam impossibilitar a implementação daquele tratado 9 .
8
Numa referência direta aos ensinos clássicos, tomemos o brocardo “Ubi jus, ibi societas” que reflete
bem a questão. O Direito deve estar onde a sociedade está, este é um pressuposto desta (REALE, 1998, p. 32).
Assim, caberia ao Direito reger as relações da sociedade onde quer que ela esteja, seja isso a nível local ou
internacional.
9
Parece oportuno frisar que, quando tratamos de Direito Internacional Público, em que não há um
Estado mundial e centralizado, com um poder legislativo comum, capaz de formular normas aplicáveis
imediatamente à totalidade dos Estados, predomina a noção do Livre Consentimento, ou princípio do
consentimento, o qual afirma que nenhum Estado pode ser considerado parte de um Tratado se não o desejar e
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COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Na visão mais crítica de Jan Klabbers, as reservas carregam consigo a promessa de
conciliar os interesses distintos de Estados com aqueles da comunidade internacional no geral
realizando assim um verdadeiro “truque de mágica” comparável aqueles do famoso Houdini,
“obrigando o Estado sem de fato obrigá-lo integralmente”10 .
As reservas, então, são uma anomalia quando consideradas sob o prisma da
integridade da norma, mas seriam elas um mal necessário? É preciso sempre a flexibilização
de determinadas exigências da norma para que ela possa ser aceita? O direito de se reservar
quanto ao cumprimento de determinada cláusula deve ser preservado em todas as
circunstâncias?
Em estudos recentes, mais abertamente a partir da segunda metade da década de 1980,
alguns teóricos11 tem apontado soluções que têm gerado muita controvérsia, sobretudo
quando o tema em questão são aqueles direitos tidos como fundamentais à pessoa humana: os
direitos humanos. Tais direitos seriam diferenciados, pois não refletem mais a tradicional e
clássica imagem dos tratados-contratos bilaterais entre Estados; ao contrário, carregariam em
seu corpo outras obrigações, mais assemelhadas àquelas do Contrato Social proclamado pelos
Iluministas franceses, já que tratariam de garantias que o Estado deve dar aos seus cidadãos
como forma de legitimar sua soberania com base no princípio da auto-determinação dos
povos.
Tal entendimento tem sido acatado em recentes decisões de Cortes Internacionais de
Direitos Humanos, como por exemplo as decisões da Corte Européia de Direitos Humanos
nos casos Belilos x Suíça, Weber x Suíça e Louizidou et alli x Turquia. Além dessas decisões,
os órgãos de monitoramento de tratados têm produzido relatórios nesse sentido, conclamando
os Estados a retirarem suas reservas12 . A pub licação de tais decisões e a reação advinda tem
reacendido o debate acerca dos efeitos e critérios para a admissibilidade das reservas sobre os
tratados internacionais relacionados a direitos humanos, que acabou por retornar a pauta da
Comissão desde 1997.
É precisamente este o tema que trataremos nas páginas que seguem e nos dias 11 a 15
de outubro de 2006.
Duas concepções em conflito: um breve histórico sobre a questão das reservas e a
prática internacional
O acirrado debate doutrinário e prático quanto aos efeitos e admissibilidade de
reservas não é novo. Ainda antes da segunda guerra mundial, quando a Liga das Nações (LN)
explicitar sua vontade através do instrumento de ratificação – ou adesão. Tal conceito será indispensável à
compreensão deste texto.
10
KLABBERS, Jan. On Human Rights Treaties, Contractual Conceptions and Reservations. In:
ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden:
Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p.148.
11
Nesse sentido, vide os trabalhos de Ineta ZIEMELE, Percy MacLean, Göran Melander, Jörg
Polakiewicz, e Ulf Linderfalk, todos contidos em ZIEMELE, Ineta (Org.), Reservations to Human Right Treaties
and the Vienna Convention Regime, Conflict, Harmony or Reconciliation. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers,
2002.
12
Como faz o Comentário Geral 24 do Comitê de Direitos Humanos
6
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
e a União Pan-Americana (UPA) 13 figuravam entre as principais organizações internacionais,
já se discutia se era preferível manter a integridade dos tratados, ainda que para isso fosse
necessário sacrificar a sua abrangência – opinião defendida pela LN; ou, se ao contrário,
deveria ser defendida uma visão mais flexível acerca da possibilidade da elaboração de
reservas, acreditando em seu potencial para a promoção da universalidade e questionando a
eficácia de obrigações demasiadamente profundas a nível internacional – ponto de vista
preferido pela UPA.
Como será brevemente demonstrado adiante, essa mesma discussão sobre as reservas,
seus efeitos e validade, assumiu diferentes formas em diferentes momentos históricos, porém
todo o debate acerca da questão é reflexo de outra discussão ainda maior: “o que é um
tratado?”.
Tratados de Direitos Humanos: Contratos x Elementos de Ordem Pública
Como colocado, a discussão sobre o tema das reservas aplicadas aos tratados de
direitos humanos tem por base outra discussão ainda maior quanto à natureza dos tratados:
deveriam esses serem interpretados por uma visão contratualista, na qual os Estados
contratam entre si cláusulas, na base da barganha, formulando acordos aplicáveis entre eles?
Ou, sob outro enfoque, seriam os tratados, mais especificamente aqueles que versam sobre
direitos humanos, normas de formadoras de uma ordem pública multilateral e, por isso,
insuscetíveis de exceções?
O debate sobre essa natureza e suas repercussões bem como a interpretação das
reservas nos tratados nos remete ao final dos anos 40, mais precisamente, 1949, quando a
recém-criada Comissão de Direito Internacional (adiante Comissão ou CDI) produzia seu
primeiro relatório sobre o Direito dos Tratados 14 . Àquela época, o relator J.L. Brierly tratava
do problema das reservas propostas em face da Convenção para a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio, que em seu texto previa um mecanismo compulsório de solução de
conflitos entre as partes (Artigo IX), elegendo o foro da Corte Internacional de Justiça
(adiante CIJ). Pode-se afirmar que, a partir daquela reunião consolidou-se uma tendência –
vigente à época – de encarar os tratados como contratos, ou seja, seriam pactos firmados entre
os Estados para a proteção de um interesse comum 15 . No entender do relator Brierly, por
possuírem tal característica, os tratados poderiam admitir reservas, posto que estas seriam
parte integrante do processo de negociação e conclusão do texto do Tratado.
Tal tendência contratualista fora reafirmada pela opinião consultiva da CIJde maio de
1951, sobre a mesma Convenção sobre o Genocídio, que decidiu que seriam permitidas
reservas quando o tratado silenciasse sobre o tema desde que não fossem contrárias ao objeto
13
Em tempo, a primeira é considerada por alguns como antecessora da atual Organização das Nações
Unidas, a segunda é tida como precursora da Organização dos Estados Americanos.
14
Tanto es se relatório como todos os outros da Comissão podem ser acessados em inglês através de seu
site em <http://untreaty.un.org/ilc/publications/yearbooks/yearbooks.htm>. Especificamente este que citamos
consta nos anais da segunda sessão, de 1950, mais precisamente nos registros do 49º encontro.
15
KLABBERS, Op. Cit., chega a enfatizar o papel que as comparações de procedimentos dos tratados
com as normas contratuais do Direito Privado exerciam nas discussões da CDI até finais da década de 1960,
quando Yepes pergunta se realmente seriam os tratados multilaterais um amontoado de obrigações bilaterais ou
um cenário muito mais complexo de obrigações que não poderia ser compreendido por uma ótica contratualista.
Infelizmente, ele não chegou a desenvolver mais profundamente essa idéia.
7
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
e o propósito do tratado 16 . Um pouco mais além que o relatório fornecido pela Comissão, a
CIJ avançou na discussão e definiu, além do requisito formal (que o tratado, em seu corpo,
não vedasse as reservas), um critério subjetivo e material para a admissibilidade de uma
reserva: a cláusula implícita do objeto e propósito.
O debate sobre as reservas embora tenha sido assunto recorrente na Comissão, salvo
por alguns raros e isolados lampejos que não foram muito trabalhados, pouco avançou,
mantendo-se um enfoque contratualista e discutindo-se a questão com base no dilema:
universalidade vs. integridade 17 .
Dentro dos debates nesse dilema, que nada mais é do que uma variação daquele
primeiro conflito tratado, aqueles que defendem a universalidade e apresentam suas idéias
quase sempre sob o ponto de vista contratualista, costumam considerar as reservas como um
mal necessário: imperiosas para atrair Estados, mas malignas em sua tendência de enfraquecer
os regimes dos tratados, especialmente aqueles que traçam padrões de Direitos Humanos.
As reservas seriam, então, na concepção universalista, o elemento necessário para
suprimir a falta de acordo político entre os Estados, a fim de que se conclua o tratado, mesmo
com alguma divergência entre as partes. Tal processo, é inegável, funciona de maneira muito
mais prática quando considerada sobre um ponto de vista contratualista e de relações
bilaterais entre os Estados.
Tais idéias viriam a influenciar muito os membros da Comissão nos trabalhos que
mais tarde resultariam no texto de uma convenção geral sobre Direito dos Tratados.
A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969
Com a predominância da visão contratualista – e preponderância da universalidade
como objetivo do tratado, surgem, a partir de vários relatórios e recomendações da CDI, a
primeira convenção sobre direito dos tratados 18 , a Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados de 1969 (CVDT), apontada como o principal diploma sobre o tema em vigor 19 .
Após a repercussão da Opinião Consultiva sobre a Convenção sobre Genocídio da
Corte Internacional de Justiça, e atendendo a recomendações da Assembléia Geral e a
prudência dos membros da própria Comissão, a CDI, em suas propostas para a elaboração
para a CVDT, sugeriu a adoção de um regime de reservas aplicável a todos os tratados que
16
A íntegra da opinião pode ser lida, em inglês, no endereço eletrônico: <http://www.icjcij.org/icjwww/idecisions/isummaries/ippcgsummary510528.htm>.
17
KLABBERS, Op. Cit., p. 181, com a ironia que lhe é típica, diz que este debate em nada contribui
para o avanço da questão, pois é tão inócuo quanto discutir sobre maçãs e laranjas.
18
Trata-se da primeira convenção a nível global, isto porque em 1928 fora elaborada a Convenção de
Havana sobre Direito dos Tratados, tendo esta escopo regional, mas sido adotada como norma geral costumeira
de direito internacional. O próprio texto de Viena sofreu modificações em 1986, conservando quase que a
integridade de seu conteúdo e acrescentando às Organizações Internacionais como pessoas capazes de concluir
tratados.
19
A CVDT, embora date de 1969 só entrou em vigor em 1980, quando conseguiu o número mínimo de
ratificações previsto para sua vigência. Uma cópia, em português, de seu texto pode ser encontrada em:
<http://www.unifacs.br/revistajuridica/legislacao/marco_2006/Conven%C3%A7%C3%A3o%20de%20Viena%2
0sobre%20o%20Direito%20dos%20Tratados.doc>.
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SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
não dispusessem expressamente sobre o tema. Tal idéia foi aceita pelos Estados que
concluíram o referido tratado e consta atualmente nos arts. 19 a 23 do texto da Convenção 20 .
Além de oportuno, é por demais importante frisar o caráter subjacente da CVDT,
posto que suas disposições não se devem a suplantar os regimes traçados pelos Tratados, mas
sim, devem atuar como uma rede de segurança, para que os espaços que sejam eventualmente
descobertos pelas provisões de um determinado tratado, sejam estes ocasionados por uma
omissão de seu texto ou mesmo por descuido de seus elaboradores, não coloquem em perigo
os Estados. Assim, é perfeitamente lícito aos Estados quando da conclusão de um tratado
incluir em seu corpo cláusulas que vedem ou restrinjam o direito de fazer reservas 21 .
O caso Belilos vs. Suíça e sua repercussão
Conforme exposto anteriormente, o intuito da CVDT era pacificar o debate sobre
controvérsias a respeito do Direito dos Tratados e, de fato, logrou êxito pelo menos até a
segunda metade da década de 1980. Impulsionado pela entrada em vigor dos dois principais
Pactos de Direitos Humanos 22 na década de 1970 e toda a transformação de concepções nesta
área na seara internacional, o mundo se direcionava para a criação de um sistema legal e
jurídico de proteção desses direitos. Surgem, nesse mesmo período, os sistemas regionais de
proteção dos direitos humanos (com destaque para os sistemas Interamericano e o Europeu,
dotados, inclusive, de verdadeiras cortes internacionais especializadas na matéria). A proteção
internacional dos direitos humanos passava, portanto, por um segundo momento, uma vez
que, após ter fornecido as normas que serviriam de base para sua interpretação, era tempo de
elaborar mecanismos jurídicos para a realização daqueles direitos inscritos num primeiro
instante.
Foi então que as discussões sobre Direito Internacional dos Direitos Humanos
alcançaram um novo patamar: os casos concretos. As declarações, os pactos, as normas,
passaram a ganhar vida diante desses casos que eram submetidos às cortes e aos comitês de
monitoramento de tratados. Dessa forma, muitos direitos saíram da frieza das palavras com
que são descritos nos tratados e, após – e porque não durante – a análise e julgamento dos
casos, ganharam nome, sobrenome, idade, sexo, sofrimentos, sentimentos, esperança e
liberdade.
Se por um lado a criação desses mecanismos de acompanhamento e cumprimento da
normativa internacional trouxe consigo a promessa de efetividade ao Direito Internacional dos
Direitos Humanos (adiante DIDH), não se pode dizer que teve total êxito em sua tarefa –
diga-se nada fácil. Ao mesmo tempo em que as cortes iam proferindo suas decisões, expôs-se
a fragilidade da própria normativa internacional, repleta de lacunas, ocasionadas não apenas
20
Para facilitar a consulta a esse importante texto normativo, um excerto com as mencionadas cláusulas
está acostado ao final deste Guia de Estudos como Anexo I.
21
O próprio texto da Convenção reconhece em seu art. 19 o caráter subsidiário de seu regime de
reservas ao limitar as reservas àquelas que não sejam proibidas pelo tratado, como se observa das alíneas a e b.
22
A saber, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos
Econômicos Sociais e Culturais
9
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
pelas poucas ratificações de determinados Estados aos tratados 23 mas, principalmente, pelo
excesso de reservas aos tratados de direitos humanos.
Este panorama, assim como esfriou os ânimos dos entusiastas de um sistema universal
de proteção aos direitos humanos expondo a dificuldade em tratar de direitos universais num
mundo ainda por universalizar-se, despertou um movimento contrário em alguns intelectuais.
Exemplo deste grupo foram os magistrados da Corte Européia de Direitos Humanos que, em
1988, durante o julgamento de um caso que se tornaria emblemático para a história do DIDH,
desconsiderou as reservas feitas pelo Estado suíço à Convenção Européia de Direitos
Humanos, aplicando ao caso concreto as provisões originais do tratado. Resumidamente,
pode-se dizer que fizeram história ao fundamentar tal entendimento no caráter de ordem
pública do qual são dotados os direitos defendidos na Convenção Européia de Direitos
Humanos 24 .
As idéias desencadeadas pela decisão da Corte Européia passaram a ser então
denominadas corrente da severabilidade, ou, na sucinta definição de Bruno Simma 25 :
Strasbourg approach (algo como “abordagem de Strasburgo”) 26 . Contudo, o precedente
aberto era significativo e perigoso aos interesses de muitos Estados, isto porque é sabido que
as Cortes e Comitês encarregados do monitoramento de tratados e convenções de direitos
humanos costumam intercambiar de maneira muito freqüente – e eficiente – seus
entendimentos e jurisprudência com vistas a aperfeiçoar suas práticas 27 .
Exemplo da expansão deste pensamento foi o Comentário Geral n° 24 de 1994
(CG24) 28 , elaborado pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas 29 , o qual, na
esteira da decisão do caso Belilos x Suíça, afirmou:
Reservas que ofendam normas peremptórias não devem ser compatíveis com
o objeto e propósito do Pacto [Internacional de Direitos Civis e Políticos].
Embora tratados que sejam meras obrigações entre Estados permitam-nos
reservar [determinadas provisões] inter se a aplicação de normas gerais de
direito internacional, o mesmo não ocorre com tratados de direitos humanos,
posto que estes são para o benefício de pessoas contidas em sua jurisdição.
23
Dado o grande número de ratificações dos principais tratados que integram a chamada Carta de
Direitos Humanos, as reservas parecem ter cumprido, e bem, seu papel de incentivadoras da universalidade da
norma internacional.
24
O
texto
completo
da
decisão
pode
ser
encontrato
em:
<http://www.worldlii.org/eu/cases/ECHR/1988/4.html>.Vide também sobre o mesmo assunto, o texto de
POLAKIEWICZ, Jörg. Collective Responsibility and Reservations in a Common European Human Rights Area.
In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden:
Martinus Nijhoff Publishers, 2002. pp. 130-132.
25
SIMMA, Apud. BARATTA, 2000, p.2.
26
O entendimento da Corte Européia foi reiterado quando do julgamento dos casos Weber x Suíça e
Louzirou et alli x Turquia.
27
Sobre isso trataram CARVALHO, 1998, pp. 47 e ss., bem como RAMOS, 2001, pp. 49 e ss.
28
A íntegra do texto do Comentário Geral 24 pode ser encontrada
<http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>.
29
em:
O Comitê organiza relatórios periódicos que devem conter informações sobre o cumprimento e
proteção dos direitos assegurados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, contendo em seu corpo
além de relatórios de suas investigações in loco, recomendações aos Estados para que os mesmos possam
garantir maior efetividade aos direitos que se propõem a realizar. A íntegra do texto do CG24 pode ser lida em:
<http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>.
10
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Na mesma esteira, as provisões do Pacto [Internacional de Direitos Civis e
Políticos] que representem normas costumeiras de direito internacional (e a
fortiori possuem o caráter de normas peremptórias) não podem ser objeto de
reservas30.
Em resumo, Martin SCHEININ membro do Comitê de Direitos Humanos à época, diz
que o CG24 está alicerçado em dois pontos-chave: (a) estipula a competência do Comitê
especializado – no caso o Comitê de Direitos Humanos – para considerar a validade de uma
reserva e; (b) afirma a doutrina da severabilidade como aquela aplicável aos casos em que
uma determinada reserva seja considerada inválida pelo comitê31 .
Como era de se esperar, a elaboração de tal documento desencadeou indignação por
parte de muitos Estados que replicaram ao Comitê alegando, genericamente, que tal política
de se proclamar como órgão legítimo para considerar a validade de uma reserva e determinarlhe as condições de sua aplicação invadia a competência natural dos Estados de se autoregularem, ferindo frontalmente o princípio do Livre Consentimento 32 .
Pode-se dizer, de maneira geral, que o CG24 não rompeu com a ordem vigente sobre
as reservas, mas por outro lado, expôs algumas das fraturas existentes entre o tratamento
desejado pelas cortes e comitês aos tratados de direitos humanos e as provisões contidas em
Viena 33 : de um lado, uma visão eminentemente contratualista, na qual os tratados são sempre
negociações bilaterais entre os próprios Estados e somente eles, por serem as partes do
tratado, poderiam dispor sobre a validade e os efeitos das reservas; de outro, a idéia de que as
normas de direitos humanos constituem elementos de ordem pública, obrigações dos Estados
não entre si, mas para com seus cidadãos, elementos de um contrato social que lhes assegura a
legitimidade necessária ao exercício da soberania... contrato x ordem pública, bilateralismo x
multilateralismo, universalidade x integridade, os pontos de debate se repetem, com nova
roupagem, elementos e personagens, mas... e as respostas? Poderão elas também ser novas?
Elementos doutrinários para um debate
De onde – e quando – estamos, algumas questões se mostram como as mais
importantes e necessitadas de respostas: se reservas são uma realidade e uma necessidade,
quem pode aceitá-las? e quais os efeitos de uma reserva inválida?. A estas perguntas
dedicaremos esta sessão fornecendo alguns elementos para sua melhor compreensão e
elaboração de respostas.
30
COMITÊ de Direitos Humanos. General Comment N° 24. Genebra, 1994. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>.
Acesso
em: julho de 2006. Par. 8. Tradução nossa.
31
SCHEININ, Martin. Reservations by States under the ICCPR and its Optional Protocols. In:
ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden:
Martinus Nijhoff Publishers, 2002. pp. 42-43..
32
Alguns exemplos destas reações podem ser encontrados nos comentários de Estados Unidos da
América (vide nota infra 37), Reino Unido (ambos disponíveis em A/50/40) e, França (A/51/40).
33
Op.Cit., p. 41.
11
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Da validade das reservas
Sabido é que as reservas carregam consigo a possibilidade de firmar acordos onde as
diferenças entre os ideais das Nações impossibilitariam a formação de um interesse comum 34 ,
mas não existiriam limites ao direito de reserva dos Estados? Se existem, pode-se distinguir
entre dois grupos de reservas: as válidas e as inválidas. Para discorrer sobre essa
diferenciação, o primeiro cuidado o qual se deve é como determinar quais as condições
necessárias à admissibilidade da reserva.
A CVDT nos fornece bases para iniciar este assunto em seus arts. 19 a 21. Pela leitura
simples e superficial do diploma, nos deparamos com um mecanismo em que são válidas as
reservas desde que não sejam contrárias ao objeto e propósito nem proibidas pelo texto do
tratado. Elas podem ser objecionadas e, desse ato, pode decorrer conseqüências que afetem a
aplicabilidade e validade do tratado entre os Estados reservante e objetor.
O modelo ali traçado que descrevemos em linhas exageradamente gerais possui
algumas particularidades que são facilmente visíveis: baseia-se numa ótica contratualista, na
qual a reserva é considerada um elemento de barganha entre os Estados na conclusão de
tratados e, num enfoque mais amplo, considera o tratado multilateral como um amontoado de
relações bilaterais, ou seja, cada objeção só faz sentido e mostra seus possíveis efeitos – quais
sejam tornar inaplicável a cláusula reservada ou o tratado como um todo – dentro daquela
relação bilateral entre o reservante e o objetor.
A validade de uma reserva, nos moldes estritos do texto da Convenção é afirmada ou
pela não objeção de nenhum Estado doze meses após a sua notificação da entrada em vigor
para o reservante, ou, pela aceitação expressa daquela reserva. De acordo com este tratado, o
limite do direito de reserva é traçado pelo acordo de vontades entre os Estados-partes.
Contudo, a criação e o trabalho de interpretação das cortes e comitês de
acompanhamento de tratados tem colocado algumas questões a mais neste processo. A sua
inserção como atores importantes também envolvidos na proteção internacional dos direitos
humanos permitiu a entrada no jogo de interesses de novos pontos de vista, os quais podem
influir de maneira significativa na interpretação de alguns conceitos-chave da CVDT,
principalmente, ao definir com bases mais jurídicas que políticas 35 qual o objeto e propósito
da norma36 e seus efeitos na interpretação de um determinado tratado.
A prática destes mecanismos internacionais estaria, pode-se assim dizer,
transformando o leque interpretativo do sistema de Viena e acenando para modificações na
maneira como se processa a elaboração e a declaração de validade de uma reserva. O
Comentário Geral 24 do Comitê de Direitos Humanos – assim como os reflexos desse
trabalho nos documentos de outros comitês de acompanhamento e cortes internacionais – tem
se mostrado revelador dessa tendência.o
34
De fato, is so foi afirmado também, em outras palavras, pela Opinião Consultiva da Corte
Internacional de Justiça sobre as Reservas à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.
35
Esse processo de despoliticização foi muito percebido nas sessões da Comissão de Direito
Internacional de 1962, segundo KLABBERS, Op. cit., p. 167, “essa tentativa de despoliticização é claro longe
de ser surpreendente, apenas porque a CDI vê (ou pelo menos viu) como seu dever formular projetos de
instrumentos normativos [...] e porque juristas internacionais geralmente têm uma tendência de tentar e
despoliticizar as coisas”.
36
Já foi anteriormente mencionado que um dos pontos basilares do CG24 foi o de atribuir ao Comitê a
competência para determinar quais reservas seriam compatíveis com o escopo do tratado ou não.
12
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Some-se ao trabalho dos órgãos de monitoramento a idéia da exigibilidade
compulsória de certos direitos humanos que carregam consigo a marca de normas
peremptórias37 . Assim, mesmo quando a previsão do direito é inexistente ou o Estado não a
ratifica ou até mesmo se reserva quanto ao seu cumprimento, ele ainda está obrigado àquela
regra pela norma geral de Direito Internacional consueto et seruanda.
Diante do avanço da norma costumeira que incorpora um número cada vez maior de
direitos fundamentais em seu rol de jus cogens, não parece estranha a afirmação de que a
ordem estabelecida em Viena começa a ser “invertida”, pois agora, com a compulsoriedade de
determinados direitos, a ausência de uma objeção passa a não mais significar que a reserva é
compatível com o objeto e propósito do tratado38 .
O papel que o uso internacional pode desempenhar como elemento formador de uma
norma costumeira parece ser o principal mecanismo na tentativa de harmonizar as disposições
de Viena às novas exigências que o avanço da doutrina e prática tem colocado, especialmente
no campo de Direitos Humanos. É por demais importante que se considere sua importância
para a formulação de novos – ou seriam reciclados – padrões de admissibilidade das reservas.
Mas poderia se observar a formação de um uso comum aos Estados quanto ao processo de
certificação de validade de reservas? A resposta ainda é incerta.
a)
Teriam os tratados de Direitos Humanos um caráter diferenciado?
Muito já foi argüido que as normas de Viena encontram problemas quanto ao seu
tratamento com os tratados de direitos humanos devido às características especiais das quais
estes são dotados. Mas que natureza especial é essa?
Num pequeno, porém necessário, exercício de digressão, observemos o processo de
formação do que hoje consideramos direitos humanos. Sabido é que esses direitos não são
imutáveis, definíveis num determinado rol e cristalinizados, ao contrário, são fruto de um
processo histórico e, como tal, deve m harmonizar-se às necessidades e valores da época em
que são exercidos 39 .
Porém, os anos demonstram, desde a Revolução Francesa do final do século XVIII,
que a evolução de tais direitos, ao mesmo tempo em que é gradativa, se processa de maneira
cumulativa. Existe um acervo de direitos que se amplia com o passar dos anos, tanto em
número como em abrangência de aspectos da vida: eram antes apenas as liberdades
individuais, depois políticas, seguidas pelas sociais, as econômicas, após o próprio direito ao
desenvolvimento...
Da mesma forma, os mecanismos utilizados para se auferir o cumprimento e a
responsabilidade do Estado têm evoluído consideravelmente em relação àqueles idealizados
em 1762 por Rousseau em seu Contrato Social. Passando pelas Cortes Constitucionais
37
Os direitos tidos como jus cogens – ou normas peremptórias na linguagem adotada pelo CG24 – são
aqueles cujo costume internacional elencou como indispensáveis e cogentes mesmo quando não exista um
dispositivo normativo específico que regule tal direito. Exemplo desse tipo direito é o próprio crime de
Genocídio, consolidado pelo costume dos Estados como uma conduta passível de reprovação e punição pela sua
natureza.
38
SIBERT-FOHR, Anja. The Potentials of the Vienna Convention on the Law of Treaties with Respect
to Reservations to Human Rights Treaties. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties
and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p. 208.
39
RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em Juízo. São Paulo: 2001, Max Limonad. P.32.
13
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
nacionais, alcançando o plenário político das Organizações Internacionais e posteriormente
buscando a eficácia desses direitos através da criação de Comitês especializados no
monitoramento dos diversos tratados internacionais e Cortes Supranacionais Regionais para o
julgamento de casos concretos de violação desses direitos.
É inegável que a valorização dessa categoria de direitos é resultado do avanço de
mentalidade, muito atrelado em termos históricos e conceituais ao desenvolvimento da
história constitucional dos países, visto que é dever de toda Carta exemplificar e proteger
certas garantias fundamentais – em outros termos, os próprios direitos humanos, de cujo
respeito deriva a legitimidade do Estado para governar seu povo.
Tal aproximação conceitual, aliada a certos princípios como a não tipicidade dos
direitos fundamentais e a alçada da proteção destes direitos a um nível global, tem resultado
na idéia de que, assim como as garantias constitucionais encontram um patamar privilegiado
nos ordenamentos internos, os tratados de direitos humanos, por tratarem de conteúdo
semelhante, devem também ser considerados sob um enfoque diferenciado, que os privilegie
sobre outros tipos de direitos no cenário internacional.
Evidência dessa idéia foi o relatório da hoje extinta Comissão Européia de Direitos
Humanos no caso Temeltasch x Suíça, em que este órgão afirmou que a Convenção Européia
de Direitos Humanos “teria natureza específica” e estaria direcionada “a estabelecer uma
ordem pública comum às democracias livres da Europa”40 .
A idéia de que os tratados de direitos humanos constituiriam uma ordem pública –
quase que Constitucional – no direito internacio nal, também é afirmada, em outras palavras,
por41 , como um dos fatores que impulsionaram a internacionalização dos direitos humanos42 .
Segundo ele, o movimento dos Estados em levar tais conteúdos a tratados internacionais
deriva da necessidade de governabilidade e legitimidade destes, fazendo valer a lição – antiga,
porém ainda atual – de Rousseau na qual o direito de governar se fundamenta no dever de
garantir a liberdade – sobretudo os direitos fundamentais para exercê- la – dos governados.
O outro fator que deve ser frisado para se considerar os direitos humanos como
dispositivos de caráter diferenciado é a nova lógica que rege o Direito Internacional como um
todo: o indivíduo tornou-se o centro de sua atenção e seu objetivo principal. O homem então,
para deixar de ser mero objeto e mecanismo na engrenagem internacional, passa a ter
respeitados seus direitos como um todo, pois só assim encontra as condições necessárias para
tornar-se membro da sociedade internacional43 .
Na esteira dessas considerações, o resultado lógico seria que tais tratados não
poderiam ser equiparados a outros comuns, teriam caráter diferenciado, mais aproximado ao
de norma geral que a um contrato. Seriam tratados deveras multilaterais, pois os deveres dele
decorrente não se firmariam ent re Estados apenas, como um contrato, mas entre um Estado e
o seu próprio povo, algo mais aproximado aos próprios textos constitucionais. Nesse sentido,
os magistrados da Corte Interamericana de Direitos Humanos muito bem colocaram:
40
A íntegra da decisão pode ser lida em: <http://www.corteidh.or.cr/serieapdf/seriea_02_esp.pdf>.
41
RAMOS, Op. cit., p.35 e ss.
42
A vivência internacional comparada tem mostrado que o processo inverso, qual seja, a
constitucionalização – e logo a nacionalização – dos direitos humanos assegurados em tratados internacionais,
tem sido também rotineiramente observado.
43
Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, Preâmbulo.
14
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Os tratados modernos de direitos humanos em geral, e a Convenção
Americana de Direitos Humanos em particular, não são tratados multilaterais
tradicionais concluídos para a consecução de obrigações recíprocas e
benefícios mútuos dos Estados contratantes. O seu objeto e propósito é a
proteção de direitos básicos de indivíduos [...] Ao concluir esses tratados
de direitos humanos, os Estados podem ser levados a submeter-se a uma
ordem legal na qual eles, pelo bem comum, assumem várias obrigações,
não em relação aos outros Estados, mas em favor de indivíduos que
estejam sob sua jurisdição.44
Então, se os direitos humanos seriam dotados de outra natureza e são obrigações
contraídas para com indivíduos, como então justificar as reservas? Como se poderia auferir a
admissibilidade de determinada reserva uma vez que aqueles que recebem a obrigação não
podem manifestar-se diretamente no regime de Viena? Ou ainda... como justificar as
objeções?
O professor Jan Klabbers reconhece que a maior dificuldade para se estabelecer um
sistema comum de direitos humanos como elementos de uma ordem pública internacional é o
fato de que as
reservas encontram suas origens na maioria das vezes em diferenças de
opiniões políticas e existe pouco a ser ganho em fingir que essas diferenças
não existem ou que são de alguma forma subordinadas a um conjunto de
normas legais. A tragédia é que as reservas só podem ser imaginadas numa
perspectiva contratual, enquanto que essa mesma perspectiva contratual
falha em satisfazer o senso de idealismo e progresso que está ligado
intrinsecamente à noção de direitos humanos 45 .
Para o professor, assim como se diz que a noção contratual não é adequada para
adereçar esse tipo de obrigação multilateral que são as normas de direitos humanos, tampouco
a idéia de que os direitos humanos possuem um caráter diferenciado de ordem pública
internacional pode ser considerada completa, visto que falha em reconhecer as diferenças e
particularidades das opiniões e costumes de determinados povos, que nada mais é do que a
justificativa das reservas.
b)
As objeções e seu papel como formadoras de costume
Um mecanismo por demais importante no processamento das reservas é a objeção.
Inicialmente previstas no art. 21, § 2° da CVDT, tratam-se de declarações também unilaterais
que visam expressar o desacordo de um determinado Estado – seja ele parte ou negociante do
tratado reservado – para com a reserva elaborada por um outro Estado.
As conseqüências decorrentes de uma objeção a uma determinada reserva estão
estampadas no art. 21, §3° da CVDT:
Quando um Estado que formulou uma objeção a uma reserva não se oponha
à entrada em vigor do tratado entre ele próprio e o Estado autor da reserva,
44
CORTE Interamericana de Direitos Humanos. El efecto de las reservas sobre la entrada em vigência
de la Convención Americana sobre Direitos Humanos (Arts. 74 e 75). 1982. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/serieapdf/seriea_02_esp.pdf>. Acesso em: julho de 2006. Tradução nossa. Grifo
nosso.
45
KLABBERS, Op. cit., p.181. Tradução Nossa.
15
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
as disposições sobre que incide a reserva não se aplicam entre os dois
Estados, na medida do previsto pela reserva.
São, portanto, duas as conseqüências de uma objeção segundo a Convenção de Viena:
(a) a regra reservada não é aplicável nas relações entre o Estado reservante e o objetor; ou (b),
um pouco mais radical, todo o tratado não é aplicável, sempre, nas relações entre aqueles
Estados.
Historicamente, tem se observado um contínuo e forte crescimento no número de
objeções no decorrer dos anos, notadamente a partir dos anos seguintes à década de 1990.
Grosso modo, pode-se justificar este incremento por dois motivos: o primeir o seria a própria
quantidade também crescente de tratados – e logo também de reservas – formulados nas
décadas seguintes a 1950; o segundo, e mais importante, reflete a mudança de mentalidade
por parte dos Estados, que cada vez mais se esmeram em formular reservas mesmo quando
não figuram como beneficiários imediatos destas 46 .
Embora o artigo de Viena permita uma leitura taxativa, a prática internacional e a nova
doutrina tê m mostrado de maneira muito convincente que os reais efeitos de uma reserva
estão muito além da previsão de Viena. Exemplo disto é o recente enfoque que as objeções
têm tomado, sobretudo aquelas formuladas por Estados europeus, distanciando o seu
conteúdo do mero desacordo político e encontrando cada vez mais justificativa no próprio
critério do objeto e propósito dos tratados 47 .
Sobre essa mudança de enfoque na formulação de reservas, a adoção de uma
justificativa pautada no critério do objeto e propósito se mostra extremamente eficiente à
defesa da integridade do conteúdo do tratado. Quando formuladas nesse sentido, o aumento
do número de objeções elaboradas com este enfoque também poderia contribuir ao ampliar a
pressão para a retirada de uma reserva que seja contrária ao objeto e propósito do tratado 48 .
Além da pressão política que um grande número de objeções a determinada reserva
pode oferecer, outro objetivo importante seu é o de evitar a formação de precedentes
negativos à aplicação do tratado, fornecendo em seu conteúdo bases interpretativas para que
se possa melhor proceder a realização dos direitos contidos na norma internacional.
Nesse enfoque, não há dúvidas quanto ao papel importante que as objeções passam a
ter como elementos para a identificação do real sentido da norma, bem como o seu objeto e
propósito. Elas ainda atuam como fundamentadoras na formação de um regime costumeiro
capaz de fornecer critérios válidos para a interpretação do conceito de incompatibilidade
inscrito no art. 19 da CVDT.
Porém, mais uma vez observamos que tal instrumento possui bases sólidas quando se
considera o tratado como contrato. O grande problema é que, ao se afastar uma visão
46
Por exemplo, citamos a Objeção da Finlândia sobre as reservas do Kuwait ao Pacto Internacional de
Direitos
Civis
e
Políticos
de
25
de
julho
de
1977.
Disponível
em:
<http://sim.law.uu.nl/SIM/Library/RATIF.nsf/f8bbb7ac2d00a38141256bfb00342a3f/28b35ed76c861be8c12568
b70050e48b?OpenDocument>.
47
Exemplo disso é a objeção formulada pela Suécia em desfavor da reserva do Kuwait sobre o PIDCP,
que suplantou o entendimento anterior daquele país quando formulara uma objeção que considerava inaplicável
o tratado em suas relações bilaterais com as Maldivas. A íntegra desta reserva encontra-se em:
<http://sim.law.uu.nl/SIM/Library/RATIF.nsf/0/24def5b028193edfc12568b70055c6e8?OpenDocument>.
48
SIBERT-FOHR, Anja. The Potentials of the Vienna Convention on the Law of Treaties with Respect
to Reservations to Human Rights Treaties. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties
and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p.195.
16
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
contratualista, fecha-se a possibilidade dos Estados utilizarem a única, ou pelo menos a mais
legítima das maneiras de formar objeções a tratados: se não há o desrespeito contratual no
qual se fundam as objeções, as críticas só poderão se dar no campo ideológico, mantendo
sempre a contra-opinião de que a objeção pretende apenas fazer com que determinado país
adote aquele modelo cultural pretendido pelo Estado objetor 49 . Eis a grade questão sobre as
objeções e o seu papel.
c)
Reservas relacionadas ao ordenamento jurídico interno
Observa-se ainda que um grande número de reservas – e objeções – se dá em face da
incompatibilidade da norma internacional com outra presente no ordenamento jurídico
interno. Exemplo nítido deste tipo de reserva é aquela formulada pelos Estados Unidos da
América sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos sobre o art. 7° (proibição a
tortura e ao tratamento desumano) desse instrumento:
[...] os Estados Unidos consideram-se obrigados pelo artigo 7° na medida em
que por “tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante” signifique o
mesmo tratamento cruel e não usual tratado na Quinta, Oitava, e/ou Décimaquarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América50 .
Embora submeter a abrangência da norma internacional aos limites da norma
doméstica tenha se tornado tarefa banalizada diante do grande número de reservas produzidas
nessa linha, a recente formulação de objeções e posicionamentos de órgãos de monitoramento
contrários a esse tipo de reservas tem colocado em dúvida a sua legalidade.
Em seu CG24, o Comitê de Direitos Humanos afirmou que:
[...] Os Estados não devem fazer muitas reservas de sorte que se aceite
apenas um limitado número de obr igações de direitos humanos e não o Pacto
em si. Daí porque reservas não levam a um estado de não-obrigação
permanente aos padrões internacionais de direitos humanos, as reservas
não devem sistematicamente reduzir as obrigações tomadas apenas
àquelas presentes em padrões menos exigentes de direito doméstico.
Tampouco devem ser feitas declarações interpretativas ou reservas que
objetivem a anulação do significado autônomo das obrigações do Pacto,
seja por pronunciá-las como iguais, ou seja por considerá-las somente
nos limites em que forem idênticas, às provisões do direito doméstico51 .
Na esteira desse entendimento, a professora Anja SIBERT-FÖHR 52 acrescenta ainda
que o propósito de elaborar uma norma internacional sobre direitos humanos é a de fornecer a
esses direitos um padrão que seja autônomo e internacionalmente reconhecido como tal,
garantindo ao indivíduo um grau de proteção maior do que aquele somente Estatal e, em
contrapartida, garantindo ao Estado mais legitimidade para expressar sua soberania. Se assim
49
Nessa esteira o comentário de KLABBERS, parece muito pertinente quando acrescenta: “uma
perspectiva contratual de direitos humanos poderia prevenir esse choque de valores de encobrir qualquer coisa
a mais. O Estado objetante estaria em posição confortável e possuindo algo tangível, ainda que moralmente
neutro, a que se referir: a barganha. Aqui o Estado objetante não poderia ser acusado de impor seus valores à
outra sociedade”. Op. Cit., p.179. Tradução nossa.
50
O texto desta reserva e das demais feitas pelo governo americano ao aludido Pacto encontra-se
disponível em: <http://www.internationaljusticeproject.org/juvICCPR.cfm>.
51
COMITÊ, Op. Cit., par. 19, Grifo nosso. Tradução nossa.
52
SIBERT -FÖHR, Op. cit., p. 191. Tradução nossa.
17
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
o é, limitar a norma internacional à abrangência e extensão da norma interna é esvaziar a
utilidade da norma internacional.
Além do problema ora mencionado, observa-se outro de ordem mais prática: a falta de
clareza que a referência aos costumes e normas internas traz as reservas. O próprio Comitê de
Direitos Humanos reconheceu a dificuldade de compreensão desse tipo de reservas devido a
analise das várias que foram submetidas ao PIDCP53 . Ao formular reservas dessa maneira, os
próprios Estados são prejudicados, visto que essa falta de clareza da reserva pode possibilitar
interpretações diversas daquela desejada quanto a extensão dos efeitos da reserva. Ainda que
beire o óbvio, a recomendação de que as reservas devem ser escritas de maneira objetiva,
demonstrando quais são as obrigações específicas não aceitas, tal deve ser ressaltado diante da
prática de muitos Estados reservantes.
As objeções contra esse último tipo de reservas encontram com especial constância o
mesmo problema de que se tratou anteriormente: quando não são apoiadas na barganha,
faltam- lhes argumentos idôneos que possam afastar a idéia de que os Estados objetores
estariam tentando impor seus valores sobre os Estados reservantes.
Dos efeitos de uma reserva inválida
Exposto o primeiro problema-chave, da validade das reservas realizadas perante
tratados de direitos humanos, é necessário compreender os efeitos decorrentes de uma reserva.
Se válida, a CVDT é clara: o dispositivo reservado tem seus efeitos cessados na extensão do
texto da reserva. Mas o que fazer diante de uma reserva que seja inválida? A Convenção é
omissa nesse aspecto, abrindo margem então para que a doutrina, assim como o uso das cortes
e comitês abra um leque de alternativas na tentativa de fundar uma norma costumeira que
possa fechar a lacuna de Viena.
Em artigo sobre o tema, o professor italiano Roberto Baratta afirma que a CVDT deixa
incertas, senão apenas parciais, respostas para aqueles autores favoráveis a corrente da
“oponibilidade” e nenhuma àqueles favoráveis a corrente da “admissibilidade”54 . Acrescenta
ainda, que apesar do vazio normativo de Viena sobre a questão das reservas inválidas, pode-se
exaurir de seu texto uma distinção entre reservas que sejam compatíveis com o objeto e
propósito e aquelas que não o são 55 .
Os dois pontos mais controversos e incertos quanto aos efeitos deste último tipo de
reservas são (a) quais os efeitos quanto à aplicação da norma reservada? e (b) qual o status do
Estado reservante quanto a sua participação no tratado?
53
Comentário Geral n° 24, par. 19.
54
Em tempo, a corrente da “oponibilidade” apregoa que as disposições de Viena sobre a aceitação e
objeções devem ser aplicadas também aquelas reservas que forem consideradas inválidas porque a estas regras
não seria necessário o teste do objeto e propósito. Na outra vertente, aqueles adeptos da corrente da
“admissibilidade” colocam que tais regras somente poderiam ser aplicadas às reservas que sejam compatíveis
com o objeto e propósito do tratado.
55
BARATTA, Roberto. Should Invalid Reservations be Disregarded. In: European Journal of
International Law (EJIL). n° 11, 2000, p.414, nota 2.
18
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
a)
Aplicação de uma reserva inválida, ou, deve uma reserva inválida ser
desconsiderada?
Após a decisão da Corte Européia de Direitos Humanos no caso Belilos e a edição do
CG 24 do Comitê de Direitos Humanos, surge uma corrente que defende que, quando não for
compatível ao objeto e propósito do tratado, uma reserva deve ser desconsiderada 56 .
Contudo, somado ao vazio legal sobre a matéria, a grande divergência de idéias de
como adereçar o problema que se observa entre Estados, órgãos de monitoramento e doutrina
mostra-se um empecilho na formação de um consenso.
Existem, basicamente, duas correntes sobre o tema. Uma que entende ser possível a
aplicação das normas originais do tratado quando a reserva for considerada inválida; outra que
acredita ser impossível proceder desta forma na atual arquitetura do Direito Internacional.
Aqueles que defendem a abordagem de Strasburgo, que se consubstancia na corrente
adotada pela Corte Européia de Direitos Humanos, consideram, além de uma alegada
hierarquia e natureza diferenciada dos tratados de direitos humanos 57 , a distinção que o texto
de Viena faz entre as reservas válidas e aquelas inválidas (artigo 19, c). Para estes, ao fazê- lo,
procurou-se destinar efeitos distintos a esses dois tipos de reservas. Assim, deveriam as
reservas inválidas, ao contrário daquelas válidas, serem desconsideradas e aplicadas às
provisões originais do tratado 58 .
Como fundamento legal para a continuidade e ampliação da prática nesse sentido, os
defensores desta corrente acreditam na formação de uma norma costumeira geral com base no
crescente número de objeções de severabilidade 59 e no comportamento dos órgãos de
monitoramento na defesa da integridade dos tratados de direitos humanos 60 .
A primeira dificuldade para tanto é o fato de que, a despeito de poucas decisões e
comentários, não se consegue identificar o uso necessário à formação da norma costumeira. A
oposição feita por vários Estados61 é reveladora da falta de homogeneidade dessa prática
56
O tema já foi anteriormente tratado no item 2.3.
57
Também já trabalhado no item 3.1.1.
58
Além do caso Belilos vs. Suíça, observou-se o mesmo argumento nos casos Weber x Suíça e
Louizidou et alli vs Turquia, todos no âmbito da Corte Européia de Direitos Humanos.
59
SIBERT-FOHR (2002, p. 200 e 201) assim denomina aquelas objeções que fazem uso da doutrina da
severabilidade em seu conteúdo. Como exemplo deste tipo vida a objeção formulada pelo governo dinarmarquês
em
face
de
reserva
de
Botswana
sobre
o
PIDCP,
disponível
em:
<http://www.bayefsky.com/html/denmark_t2_ccpr.php>.
60
Nesse sentido vide as opiniões de KLEIN (2002), POLAKIEWICZ (2002), SCHEINN (2002) e
SIBERT-FOHR (2002).
61
Exemplo interessante dessa oposição é a reação dos Estados Unidos da América ao CG24, que
considerou a assertiva do comitê de: “completamente contrária a prática legal e os princípios estabelecidos e
até contra os claros termos de aderência de vários Estados [...] As reservas contidas no instrumento de
ratificação americano são parte integral de seu consentimento de se obrigar ao Pacto e não são separáveis.
Fosse determinado que uma delas é ineficaz, a ratificação como um todo poderia ser anulada. Os artigos 20 e
21 da Convenção de Viena definem as conseqüências de reservas e objeções a elas. Apenas duas possibilidades
são previstas. Ou (i) o restante do tratado entra em vigor entre as partes em questão ou (ii) o tratado não entra
em vigor em absoluto entre as partes. De acordo com o artigo 20 (c), a escolha dentre esses resultados cabe a
parte objetante. A convenção sequer contempla a possibilidade de que o tratado entre em vigor para o Estado
reservante. A opinião generalizada da doutrina é a de que as reservas são parte essencial do consentimento do
19
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
A idéia de que a integridade do tratado deve prevalecer quando inválida for a reserva
que a restrinja, embora muito forte em seu conteúdo idealístico, é contraposta por alguns
princípios basilares do Direito Internacional, notadamente o princípio do livre consentimento
dos Estados. Este é, inclusive, o principal argumento da corrente oposta.
Sobre esse princípio e sua relação com as reservas, ensina Roberto Baratta que
uma provisão de um tratado é aplicável a partes que o tenham ratificado se, e
apenas se, suas expressões de consentimento possuírem o mesmo conteúdo.
Isso implica que não existe espaço para acordo entre os Estados contratantes
e o reservante sobre aquela provisão objeto da reserva. Um acordo mútuo
sobre os conteúdos do texto, condição essencial na declaração de intenção
dos estados em aderir ao tratado de forma que suas cláusulas produzam
regras de conduta, falta à provisão reservada62 .
Assim, quando falta o consentimento, não se poderia falar em aplicação da norma
internacional, pois esta perde um de seus pressupostos de validade. Ao elaborar uma reserva,
o Estado está condicionando sua entrada no tratado à aceitação daquela restrição. Visto dessa
forma, não há como se obrigar um Estado ao cumprimento de uma provisão com a qual
consentiu expressamente, não interessando aqui se é válida ou inválida a reserva.
Por outro lado, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas em seu já citado
CG 24 afirma que seria seriam outras as conseqüências de uma reserva inválida:
[...] a conseqüência normal de uma reserva inaceitável não seria a não
aplicação do Pacto para o Estado reservante, ao contrário, essa reserva deve
geralmente ser reservável, no sentido de que o Pacto deve ser operante para
o reservante sem o benefício da reserva 63 .
O Comitê fundamenta tal asserção no caráter diferenciado das normas de direitos
humanos, ao que o professor italiano responde: “o princípio do Consentimento se aplica aos
Tratados de Direitos Humanos mesmo que eles sejam caracterizados por uma natureza
‘normativa’ ”64 .
A dificuldade maior na tentativa de desconsiderar as reservas inválidas quando da
aplicação de tratados de direitos humanos é como conciliar os princípios de integridade do
tratado, bem como os de universalidade e indivisibilidade desses direitos 65 , com aquele
princípio do livre consentimento dos Estados.
b)
Um Estado autor de reserva inválida é parte de do tratado reservado?
Como exposto, ao colocar uma reserva – seja ela válida ou inválida – o Estado
expressa a sua falta de consentimento com determinada provisão. Assim, dever-se- ia
Estado em se obrigar a um tratado. Um Estado que, expressamente negue o seu consentimento a uma provisão
não pode, na base da ficção legal, ser obrigado pela mesma. É lamentável que o Comentário Geral 24 aparente
sugira o contrário.” Trecho retirado de BARATTA, Op. cit., p. 417. Tradução nossa.
62
BARATTA, Op. cit., p.419. Tradução nossa.
63
COMITÊ, Op. cit., par. 20. Tradução nossa.
64
BARATTA, Op. cit., p.419. Tradução nossa.
65
Com especial destaque ao Programa de Ação de Viena de 1993, que considera a universalidade e
indivisibilidade dos direitos humanos como princípio fundamental a sua proteção e promoção e fora aprovada
sem nenhum voto contrário pelos membros da Assembléia Geral da ONU.
20
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
interpretar tal resignação como integrante do instrumento de ratificação do tratado e da adesão
da parte.
Porém, se a reserva submetida for contrária ao objeto e propósito do tratado? Poderia o
Estado reservante ainda ser considerado parte do tratado?
A opinião que se forma na doutrina é que isto dependeria do tipo de cláusula que se
reserva. Dividir-se-ia então as cláusulas em dois grupos: aquelas essenciais ou peremptórias66
que traçariam os direitos garantidos e outras acessórias, portanto disponíveis.
Fosse a reserva feita contra a primeira sorte de cláusulas, o efeito da manutenção da
reserva seria a não aplicabilidade de todo o tratado. Quanto às reservas formuladas ao
segundo grupo de cláusulas, estas tornariam inócuas as obrigações da cláusula reservada posto
que a estas não houve consentimento do Estado.
Uma crítica que costuma ser feita a essa concepção é a de que não se distingue quanto
aos efeitos uma reserva válida de outra inválida.
Soluções propostas
Diante do panorama de discordância traçado em rápidas pinceladas nas páginas
anteriores, a resposta mais óbvia ao título desta sessão é a formulação de um consenso.
Porém, como fazê- lo de maneira a harmonizar todos os princípios e as problemáticas
envolvidas é a grande questão que se deve ocupar a Comissão de Direito Internacional em sua
próxima reunião.
As discussões jurídicas, quase que conflituosas por natureza, ainda mais quando se
trata de conflitos de princípios e de teorias no âmbito dos direitos humanos, não se tem como
vislumbrar apenas uma resposta possível. Por isso, passa-se então a apresentar algumas
propostas colhidas de relatórios da própria Comissão, casos práticos e artigos doutrinários
como forma de conferir um norte ao trabalho dos membros da CDI que se desenvolverá
durante suas próximas reuniões.
Aquiescência
Uma forma de levar a cabo a disposição original do tratado sem lesar o princípio do
consentimento é a aquiescência. Tal procedimento vem sendo adotado pela Suíça desde os
casos Belilos e Weber. Ao fazê-lo, o Estado acolhe as recomendações da Corte sobre a
reserva pendente lite, ou seja, reconhece no caso concreto que a reserva pode ser reformulada
e o faz espontaneamente na forma que estimula o órgão.
Os pontos negativos desta forma de solução são a falta de força política que poderiam
sofrer muitos órgãos de monitoramento e a falta de compulsoriedade, o que não é de todo mal,
pois como diz KLABBERS opor normas substantivas contra os Estados é raramente uma boa
idéia 67 .
66
Essa terminologia é também utilizada no texto do CG24.
67
KLABBERS, Op. cit., p. 153.
21
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Norma específica
Embora a CVDT e os princípios possam fornecer senão respostas, mas pelo menos
teorias, sobre o tratamento que deve ser dispensado a reservas inválidas sobre tratados de
direitos humanos, não há nada que impeça a possibilidade de criação de cláusulas específicas
sobre o tema dentro do corpo dos tratados 68 .
Ao se adicionarem provisões que versem sobre a admissibilidade e os efeitos das
reservas válidas e inválidas – assim como numa previsão contratual –, as partes aumentam a
segurança das relações decorrentes daquele tratado, evitando interpretações diversas e efeitos
confusos.
Tal medida talvez seja a medida mais segura de solução dos problemas decorrentes
das lacunas deixadas por Viena. O seu fundamento é simples e efetivo, encontra, porém a
adversidade da formulação de seus termos e o perigo que pode representar a universalidade do
tratado, visto que alguns Estados poderiam deixar de ratificar um tratado que proibisse
reservas.
Uma resposta política para um problema político?
O relator desde 1995 para o tema das Reservas na Comissão de Direito Internacional
afirmou certa feita 69 que o problema das reservas é mais político que legal; sendo assim, seria
necessário uma resposta à nível político e não jurídico 70 .
Resumidamente, tal ponto de vista parte de uma premissa simples: se existem
problemas quanto à validade e efeitos das reservas, isso se dá, pois não existiu ainda vontade
política para solver esses problemas. De fato, a conclusão de qualquer tratado, além do
esforço jurídico para sua formulação demanda em escala muito maior, esforço político para
que o máximo de Estados possam acessar ao regime criado por aquela norma.
Segundo Allain Pellet:
a verdadeira solução da dificuldade surgida com os tratados multilaterais não
depende da formulação de novas regras de direito internacional de aceitação
geral dos estados, mas em insistir que os estados quando reunidos no
propósito de formarem um novo tratado são donos da situação e devem atuar
como tal71 .
Atuando como tal, os Estados podem formular normas específicas acrescentando-as
aos tratados existentes e também aos novos regimes que venham a ser criados, além de outras
medidas de curto-prazo como estimular a aquiescência, por exemplo.
68
Conforme afirmamos no item 2.2. a CVDT possui caráter subsidiário as normas específicas do
tratado, assim originalmente, devem-se buscar as provisões contidas no texto normativo em questão antes de se
apelar aos artigos de Viena e os princípios gerais do Direito Internacional.
69
First Report on the Law and Practice Realting to Reservations to Treaties (A/CN.4/470). 1995.
Disponível em: <http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?OpenAgent&DS=A/CN.4/470&Lang=E>.
70
No mesmo sentido vide KLABBERS (2002, p. 153 e ss.).
71
NAÇÕES UNIDAS, Comissão de Direito Internacional. First Report on the Law and Practice
Realting to Reservations to Treaties (A/CN.4/470). 1995. Disponível em: <http://daccessods.un.org/access.nsf/Get?OpenAgent&DS=A/CN.4/470&Lang=E>. Acesso em: julho de 2006. Tradução nossa.
22
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Questões que o relatório final deve contemplar
Ao fim de seus trabalhos os membros da Comissão de Direito Internacional devem
formular um relatório com recomendações sobre a matéria das Reservas realizadas sobre
Tratados de Direitos Humanos.
Embora os relatórios da Comissão de Direito Internacional não tenham caráter
vinculante, eles desempenham um importante papel na formação da normativa internacional,
fornecendo diretrizes para a codificação do direito internacional a partir da prática
internacional observada e da evolução doutrinária.
Assim, a guisa de sugestão, o relatório a ser redigido pelos membros da Comissão
deve abordar os seguintes pontos:
•
•
•
•
•
•
•
•
Os tratados de direitos humanos possuem natureza distinta dos demais tratados?
Se possuem, pode tal diferença justificar um tratamento diferenciado quanto ao regime
de reservas? E ainda, quem seria capaz de determinar essa natureza distintiva sobre
qual tratado é ou não essencialmente sobre direitos humanos (cortes, órgãos de
monitoramento, organizações multilaterais através de seus órgãos, o próprio tratado ou
apenas a interpretação autêntica da parte do documento)?
Podem ser consideradas válidas as reservas que restinjam a interpretação ou aplicação
de determinada cláusula aos limites do ordenamento jurídico interno de um país?
Qual o papel dos órgãos de monitoramento de tratados na definição de regras de
admissibilidade de reservas?
Qual o papel das objeções no processo de validação e efeitos das reservas?
Uma reserva inválida a um tratado de direito humano pode ser desconsiderada?
Qual o papel do princípio do consentimento na definição dos efeitos de uma reserva
inválida?
Que medidas podem ser tomadas pelos Estados para evitar problemas com reservas
em tratados de Direitos Humanos?
O debate não precisa se exaurir nestes pontos, tendo os membros da Comissão total
liberdade para acrescentar, retirar ou modificar os questionamentos propostos.
TEMA B: A LEGALIDADE DO ATAQUE PREVENTIVO
“Porque me matais’? Como? Não vives do outro lado da água? Meu amigo,
se vivesses deste lado, eu seria um assassino, seria injusto matar-te da
mesma maneira; mas, desde que vivas do outro lado, sou um bravo, e isso é
justo.”72
(Blaise Pascal, Pensamentos, V, 293)
¹ No original: “’Pourquoi me tuez-vous?’ ‘Et quoi, ne demeurez-vous pas de l'autre côté de l'eau? (...) Si
vous demeuriez de ce côté-ci, je serais un assassin et cela serait injuste de vous tuer de la sorte; mais puisque
vous demeurez de l'autre côté, je suis un brave, et cela est juste’.
23
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Introdução
Qualquer espécie de retorno ao direito da Guerra sempre soa como contradição. Como
pode haver império do direito em meio à guerra? Como pode coexistir norma e barbárie? Nós
já avançamos tanto, como vamos voltar a conceitos medievais?
Nas páginas a seguir, vamos analisar superficialmente o fenômeno do conflito armado
e seu tratamento pelo direito, principalmente no que tange a sua única exceção autorizada na
contemporaneidade, a legítima defesa. Vamos abordar principalmente seu lado mais
complexo e desafiador, a seara da legítima defesa preventiva.
Primeiro faremos uma breve introdução histórica, seguindo a evolução histórica do
conceito de guerra justa até a doutrina da legítima defesa, seguida por uma análise jurídica do
conceito de legítima defesa, alguns casos importantes, e então os últimos desdobramentos da
doutrina correlata.
Acompanhando a evolução histórica do conceito de guerra justa, chegaremos até a
análise do caso prático de algumas situações relevantes, sempre à luz da importância jurídica
dessas análises. Veremos o que fala a doutrina acerca do tema e sua evolução, bem como a
apreciação das suas garantias formais.
A legítima defesa preventiva é uma imensa área nebulosa no Direito. Estudar seus
efeitos é ao mesmo tempo um exercício de destruição de conceitos clássicos de conflitos e
construção de novas alternativas. É imprescindível que se mantenha uma mente aberta a todas
as possibilidades que possam atender à finalidade de garantir a paz e mitigar os conflitos, não
de forma ilusória, mas coerente.
No estudo da guerra, a difusa margem entre política e direito se escancara, e mesmo
diante de toda dificuldade, a sociedade internacional ainda precisa de uma resposta.
Histórico
Da guerra justa ao banimento da força
“Porque, eis que hoje te ponho por cidade forte, e por coluna de ferro, e por
muros de bronze, contra toda a terra, contra os reis de Judá, contra os seus
príncipes, contra os seus sacerdotes, e contra o povo da terra. E pelejarão
contra ti, mas não prevalecerão contra ti; porque eu sou contigo, diz o
SENHOR, para te livrar.”
(Jeremias 1:18-19)
Segundo o estudioso francês François BUGNION73, através da história, quando um
Estado pegava em armas e recorria ao conflito armado, o fazia sob a égide de uma guerra
justa, cabendo a seu opositor, a carapuça da injustiça. Assim, sua conduta era justificada,
mesmo em seus atos mais cruéis. Em uma lógica semelhante à usada pela inquisição no
julgamento das bruxas, onde a derrota era um sinal do desagravo divino e confirmação da
legitimidade do vencedor. Não raramente, o mais veemente defensor da “palavra de Deus” era
o mais atroz combatente. Sendo então a guerra um fator inerente aos Estados, surgiu
² BUGNION, François. Just Wars, wars of aggression and international humanitarian law. International
Review on the Red Cross. 2002, no. 847, p 524.
24
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
naturalmente a qualificação da guerra como justa ou injusta bem como posterior disposição da
limitação do uso da força.
A doutrina da guerra justa surgiu como uma conseqüência da conversão do Império
Romano ao cristianismo e conseqüente abandono por parte dos cristãos do pacifismo. A força
não só poderia, como deveria ser usada de acordo com a vontade divina. O conceito de guerra
justa abarcava elementos da filosofia greco-romana e foi aplicado como sanção suprema para
manutenção de uma sociedade ordenada.
Geralmente os doutrinadores contemporâneos creditam ao conceito de guerra justa
uma origem em comum, formada por um conjunto de pesquisadores antigos que foi vital para
a elaboração do direito internacional e da doutrina da guerra justa. Focaremos aqui em alguns
dos trabalhos mais relevantes nomeados por Malcom SHAW 74, seguindo a ordem cronológica
de seus estudos.
Um dos primeiros doutrinadores a definir guerra justa foi Santo AGOSTINHO (354430dc.), que definiu guerra justa como sendo a vingança por dano cuja parte culpada se recusa
a reparar o dano causado 75. A guerra deveria ser adotada para punir erros e restaurar o status
pacífico, e nada além. Atos de agressão seriam injustos e o recurso à violência seria
inteiramente controlado. São Tomás de AQUINO tomou, no séc. XIX, a definição de Guerra
Justa um passo além ao declarar que era o dolo subjetivo do culpado que devia ser punido, em
vez da atividade errada per se. Ele escreveu que a guerra poderia ser justificada mediante o
exercício de autoridade soberana, acompanhada de uma justa causa – punição de ofensores – e
embasada pelas intenções corretas por parte dos beligerantes 76.
Com o surgimento dos estados modernos europeus, a doutrina começou a mudar.
Tornou-se conecta à soberania dos estados e contraposta ao paradoxo das guerras entre
Estados cristãos, cada lado plenamente convencido da justiça de sua causa. Esta situação
findou a modificar o enfoque do conceito de Guerra Justa. Um novo requerimento de que
tentativas sérias de resolução pacífica da disputa seriam necessárias antes do recurso à força
começou a surgir. Este refletiu no novo contexto das relações internacionais, haja vista que
até então existiam diversos Estados independentes, co-existindo forçosamente numa Europa
em um sistema de equilíbrio de poder primitivo. O uso da força contra outros Estados, muito
aquém do fortalecimento dessa nova ordem, representava ameaça séria a sua consolidação.
Assim, a ênfase da doutrina jurídica se deslocou da aplicação da força para suprimir ofensores
para a preocupação – ainda que pouco visível na época, destaca SHAW – na manutenção da
ordem por todos os meios pacíficos.
Observamos também diversas outras influências no pensamento da época. O grande
escritor espanhol do século XVI, Francisco de VITÓRIA, enfatiza que nem todo tipo de força
nem todo grau de violação é suficiente para dar ensejo a uma guerra 77. Francisco SUAREZ,
por sua vez, destacou que os Estados eram obrigados a chamar a atenção da parte oposta da
existência de uma justa causa e requerer reparações antes de qualquer ação ser tomada. A
Guerra Justa também implicava na imunidade de pessoas inocentes a ataques diretos e
somente o uso proporcional da força para sobrepujar a força em oposição. Gradualmente,
³ SHAW, Malcom Nathan. International Law. 2003. pp 1014-1017.
75 EPPSTEIN, BAILEY, BROWLIE apud SHAW, 2003. p 1014.
76 BAILEY, PARRY, VON ELBE apud SHAW, 2003. p. 1014.
77 BAILEY, apud SHAW, 2003. p. 1014.
25
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
tornou-se aceito que certa parcela de direito pode existir em ambos os lados, mesmo que a
situação fosse confusa por referências à justiça objetiva e subjetiva.
Finalmente, a legalidade do recurso à guerra foi vista como dependente do processo
legal formal. Esse enfoque prenunciou o crescimento do positivismo com sua concentração de
poder sobre a soberania do Estado, o qual só poderia ser vinculado ao que consentisse.
Hugo GRÓCIO, em sua sistemática, tentou excluir considerações ideológicas dos
fundamentos da Guerra Justa, na esteira dos destrutivos conflitos religiosos do século XVII, e
tentou redefinir a guerra justa em termos de autodefesa, proteção de propriedade e a punição
por violações sofridas por cidadãos do Estado em questão.
Filósofo
S. Agostinho
S. Tomás de
Aquino
Francisco de
Vitória
Francisco
Suarez
Hugo Grócio
Idéias principais
Punir erros, Restaurar o status pacífico, Recurso à força controlado.
Autoridade soberana do Estado, Necessidade de justa causa.
A Guerra só deve ser empregada em casos mais graves
Exigência de formalização da guerra e negociação prévia.
Proteção aos civis. Redução da questão ideológica da guerra justa.
Redução maior da questão ideológica. Guerra como auto-defesa, proteção
de propriedade e punição por violações aos cidadãos.
Tabela I – Quadro comparativo
SHAW78 argumenta que com o positivismo e o estabelecimento definitivo do sistema
de equilíbrio europeu após a Paz de Vestfália79, em 1648, o conceito de Guerra Justa
desapareceu do direito internacional. Estados eram soberanos e iguais, e, portanto, em tese
nenhum Estado poderia julgar se a causa de outro era justa ou não. Estados eram vinculados a
honrar acordos e respeitar a independência e integridade de outros países, assim como tentar
resolver suas indisposições por meios pacíficos.
Contudo, seria inevitável a ocorrência de guerras, o que acabou por acontecer, gerando
uma série de conseqüências jurídicas que, em seu âmbito, fizeram surgir o jus in bello, o
chamado Direito da Guerra. Suas normas começaram a operar entre as partes e Estadosterceiros e uma miríade de novas situações legais surgiu. Posteriormente recebeu também a
alcunha de Direito Humanitário Internacional.
É necessário um ligeiro aparte para fazer a distinção entre os dois tipos de normas
concernentes à guerra. Se por um lado existe o jus in bello, também existe o jus ad bellum,
que por sua vez significa Direito à Guerra, versando sobre as condições em que se pode
recorrer à guerra. Enquanto um lida com as normas dentro do conflito, o outro lida com as
78 SHAW, Malcom Nathan. International Law. 2003. p 1015.
79 O papel da Acta Pacis Westphalia – Paz de Vestfália – na consolidação da ordem européia é
discutível. Enquanto muitos autores destacam a reunião como o ponto de surgimento para conceitos variados
como soberania e nações-estado, autores como Martin WIGHT sinalizam que na verdade o evento foi apenas um
ponto em uma evolução. WIGHT declara em seu livro “Systems of States” que “o sistema estatal de vestfália
não veio chegou ao mundo, mas chegou à idade”, no sentido de que o que aconteceu não foi nada mais que o
amadurecimento de conceitos pré-existentes, que na hora devida, deram margem a um novo passo. Frederico
SILVA e Lucas FREIRE possuem artigos extremamente interessantes analisando esta questão.
26
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
normas de acesso ao conflito. Durante este documento trataremos eminentemente do jus ad
bellum, com eventuais recursos ao jus in bello 80 .
O fato de que a guerra poderia ter sido considerada como injusta por algum padrão
ético não afetava de forma alguma a legalidade da força como um instrumento do Estado
soberano, tampouco alterava de qualquer modo as várias regras da guerra e neutralidade que
se espalharam com o início de conflitos. Se a causa era justa ou não, isto se tornou um fato
irrelevante em qualquer forma de análise jurídica perante a comunidade internacional –
mesmo que, obviamente, importante em termos políticos –, pois o problema principal pairava
na questão se de fato um estado de guerra existia.
A doutrina da Guerra justa ganhou força com o poder crescente do cristianismo e
entrou em declínio com a deflagração das guerras religiosas internas entre os Estados cristãos
em conjunto ao conseqüente estabelecimento de uma ordem de Estados soberanos seculares.
Apesar de ter se tornado um assunto jurídico corriqueiro dos Estados, no qual se permitia o
uso da força e uma série de condições regulatórias eram reconhecidas, existiam vários outros
modos de empregar a força além da guerra, com todas as conseqüências jurídicas relativas aos
“civis” inocentes durante o conflito. Represálias e bloqueios pacíficos eram exemplos do uso
da força como maneiras hostis utilizadas ao invés da tradicional guerra por conflitos de tropas.
Estas atividades eram ensejadas visando assegurar direitos ou punir ofensores. Houve
diversos casos, particularmente no séc. XIX, da força sendo usada desta forma contra os
Estados mais fracos da Ásia e América Latina. Existiam limitações perante o direito
internacional ao direito de recorrer a tais medidas, mas provavelmente fossem melhor
compreendidas no contexto do mecanismo das relações internacionais de equilíbrio de poder,
que em grande parte ajudou a minimizar o recurso à força no séc. XIX, ou ao menos restringiu
sua aplicação.
No início do século XX ocorreu a segunda Convenção de Haia de 1907, que acordou a
“Convenção relativa à limitação do emprego da força para recuperação de dívidas
contratuais”, também conhecida pelo cognome de Drago-Porter 81 . Alain PELLET, Patrick
DAILLIER e Nguyen Quoc DINH ressaltam que o próprio título do tratado já é sinalagmático
quanto à restrição de seu escopo.
Esta iniciativa diplomática teve a sua origem nas operações de represálias –
bloqueios marítimos e bombardeamento de portos – exercidas pela Itália, a
Alemanha e o Reino Unido contra a Venezuela em 1902. O governo
venezuelano, confrontado com uma grave crise financeira após um período
de guerra civil, teve que suspender o reembolso de dívidas contraídas junto
de cidadãos estrangeiros. A expedição marítima de 1902 tinha por objetivo
obrigar a Venezuela a respeitar as suas obrigações contratuais. O incidente
chocou simultaneamente os outros governos latino-americanos, que
freqüentemente enfrentavam as mesmas dificuldades, e os Estados Unidos,
que rejeitavam qualquer intervenção européia sobre o continente americano
(doutrina Monroe). Por esta ocasião, Drago – na época ministro dos
Negócios Estrangeiros da Argentina, - formula a «doutrina» segundo a qual
80 Esses dois camp os, como próximos e eventualmente passíveis de confusão, são também
denominados por um critério diferente. Como os mais importantes tratados do Direito da Guerra foram
celebrados em Genebra, e os de Direito à Guerra em Viena, também são chamados de Direito de Genebra e de
Viena, respectivamente, pra facilitar a distinção.
81 Existe um costume que tratados sejam tratados pelo nome de seus organizadores ou idealizadores,
como uma forma de distinção entre a nomenclatura formal dos tratados, já que geralmente usam nomes
parecidos.
27
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
a cobrança coercitiva de dívidas públicas era contrária ao Direito
internacional. Para ele, o recurso à força, na circunstância, era contrário à
soberania do Estado devedor e ao carácter aleatório deste tipo de dívidas. Os
Estados Unidos decidiram utilizar a oportunidade oferecida pela segunda
Conferência de Haia para fazer desta doutrina uma regra de direito
convencional. Porter, o seu plenipotenciário, esforçou-se com sucesso, de
onde provém o título dado a esta convenção. (PELLET, et al. 2002, p 954.)
PELLET, DAILLIER e DINH82 ainda destacam que esta Convenção foi um divisor de
águas por – ainda sem retirar do Estado a discricionariedade do recurso à força armada –
lançar as sementes de um “fundamento objectivo ao não-recurso da força e impor o uso de
meios de resolução pacífica de conflitos”.
O desequilíbrio do século XX: a primeira Grande Guerra.
“Esta guerra é, assim como a próxima será, uma guerra para acabar com a
guerra.”83
(David Lloyd George, Primeiro-ministro britânico - 1916-1922)
A Primeira Guerra Mundial marcou o fim do sistema anterior de equilíbrio de poder e
trouxe novamente a questão da guerra injusta. Também resultou em esforços para reconstruir
as relações internacionais sobre um fundamento de uma instituição geral internacional que
deveria supervisionar a conduta da comunidade internacional de forma a assegurar que atos de
agressão não mais ocorressem. A criação da Liga das Nações refletiu um comportamento
inteiramente diferente para os problemas da força na ordem internacional.
O Pacto da Liga declarou que seus membros deveriam submeter disputas que
pudessem gerar eventualmente uma ruptura à arbitragem, decisão judicial ou deliberação pelo
Conselho da Liga. Em nenhuma circunstância os membros poderiam recorrer à guerra por um
período de até três meses após um juízo arbitral, uma decisão judicial, ou decisão do
Conselho 84. A intenção dessa medida era a de ensejar um período de arrefecimento das
paixões envolvidas no conflito e refletia a visão que tal atraso poderia muito bem romper a
aparentemente irreversível cadeia de tragédia que ligou o assassinato do arquiduque austríaco
em Sarajevo com a explosão da guerra total na Europa. Membros da Liga concordaram em
não ir à guerra com outros membros em conformidade com tais arbitragens, decisões judiciais
ou decisão unânime do Conselho.
O sistema da Liga, é preciso ressaltar, não proibia a guerra ou uso da força, mas se
configurava em um procedimento destinado a restringir tal fenômeno a níveis toleráveis. Era
82 PELLET, et al. 2002, p 954.
83 No original: “This war, like the next war, is a war to end war.”- Tradução do autor. Fonte
desconhecida.
84 Lê-se no pacto:
Art.12. Todos os Membros da Sociedade convêm que, se entre eles houver um litígio que possa trazer
rompimento, o submeterão ao processo de arbitragem ou ao exame do Conselho. Convêm mais que, em nenhum
caso, deverão recorrer à guerra antes de expirar o prazo de três meses depois da sentença dos árbitros ou do
parecer do Conselho.
Em todos os casos previstos neste artigo a sentença dos árbitros deverá ser dada num prazo razoável e o
parecer do Conselho deverá ser lido nos seis meses, a contar da data em que tiver tomado conhecimento da
divergência.
28
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
um desafio constante dos anos entre guerras fechar as lacunas no Pacto em uma tentativa de
alcançar a total proibição da guerra no Direito Internacional, e isso obteve resultado
finalmente na assinatura em 1928 do Tratado Geral para a Renúncia da Guerra, também
chamado Tratado de Kellog-Briand 85 . As partes deste tratado condenavam o recurso à guerra
e concordaram em renunciá- la como instrumento de política nacional em suas relações entre
si.
Tendo em vista especialmente que este tratado nunca chegou a ser encerrado ou
denunciado, e na esteira de sua ampla aceitação, tornou-se claro que a proibição do recurso à
força era agora um princípio válido do Direito Internacional. Já não era mais possível se
estabelecer uma relação legal com a guerra na sociedade internacional. Contudo, isto não quer
dizer que o uso da força em todas as circunstâncias se tornou ilegal. Reservas ao tratado por
parte de alguns Estados tornaram aparente que o direito de dispor da força em legítima defesa
ainda era um princípio reconhecido no Direito Internacional. No entanto, a proibição ou não
de medidas alheias à guerra, como por exemplo represálias, pelo banimento da guerra
disposto no tratado, estava incerto e sujeito a interpretações conflitantes.
A despeito do que fora arquitetado, a Liga das Nações e sua estrutura de restrição ao
uso da força fracassaram. Apesar do relativo avanço, aponta-se um grande defeito estrutural
na Liga. Suas resoluções não possuíam obrigatoriedade e como a organização em si não
possuía nenhuma espécie de força armada, suas decisões precisavam ser levadas a cabo por
alguma das potências, que nem sempre se dispunham a tanto. Portanto, o poder coercitivo era
drasticamente limitado. Os Estados podiam até ter um dever moral ou político de executar as
sanções, mas não havia nenhuma obrigação de fato, o que culminou por se ter alto grau de
desobediências.
Historiadores geralmente creditam também o ocaso da Liga ao comportamento
contraditório dos Estados Unidos em sua construção Enquanto seu presidente Woodrow
Wilson adotou a idéia entusiasticamente, após o projeto estar concluído o Senado americano
vetou a adesão dos Estados Unidos da América à organização. Outros dos chamados “grandes
poderes” da época também se afastaram gradualmente, e a eclosão da Segunda Guerra
decretou tacitamente a falência da Liga das Nações. Anos cinzentos se passaram e as lições
encontradas entre os destroços da Liga ainda serviriam pra um novo recomeço.
As Nações Unidas: um projeto de paz.
“E ele julgará entre as nações, e repreenderá a muitos povos; e estes
converterão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices; uma
nação não levantará espada contra outra nação, nem aprenderão mais a
guerrear.”
(Isaías 2:4 – Inscrição no parque municipal Ralph Bunche, em Nova York,
defronte à sede das Nações Unidas.)
O surgimento da nova organização internacional, as Nações Unidas, trouxe consigo
um projeto de esperança em uma ordem pacífica. Esse sentimento está encravado no próprio
preâmbulo da carta de São Francisco, onde se lê que “nós, os povos das nações unidas,
resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes no
85 O tratado tem esse nome por referência a Frank B. Kellogg, secretário de Estado americano e
Aristide Briand, Ministro das Relações Exteriores da França, que são creditados como autores do esboço do
tratado.
29
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade... 86 ”. A presença desta
declaração como preocupação precípua não deve ser subestimada. Ao término da Segunda
Grande Guerra, a Europa restava em escombros e a sociedade internacional precisava,
literalmente, reconstruir suas estruturas internacionais, forjando novas alianças e novos votos,
objetivando atingir uma consolidação do status pacífico e impedir o retorno ao estado bélico,
como recém-ocorrido após a Primeira Guerra.
É imperativo que se constate que as duas grandes guerras foram divisores de águas. E
mesmo que alguns autores aleguem que a Primeira tenha sido proporcionalmente maior87 , a
segunda trazia consigo mais que os estragos de uma guerra vencida a se reconstruir, mas sim
um conjunto de lembranças do fracasso em se evitar um conflito armado em grandes
proporções. Se na Primeira Guerra existia o sentimento de que conflitos dessa grandeza não
devem ocorrer, sendo tomadas medidas atendendo a essa preocupação, a Segunda Guerra
provou empiricamente que os meios escolhidos foram insuficientes, e que uma nova ordem
seria necessária para impedir uma subseqüente Terceira Guerra 88 .
Os negociadores da Conferência de São Francisco optaram por declarar expressamente
na Carta das Nações Unidas o repúdio à guerra, e uma – revolucionária – opção pelo
banimento do uso da força como instrumento das relações internacionais. A nova estrutura
deslocou a segurança internacional para outro foco. Se antes o papel da Liga das Nações era o
de exigir o período de três meses de trégua como forma a aliviar o conflito entre estados
soberanos exercendo seu direito inerente de recurso à guerra, as Nações Unidas se propunham
a eliminar essa possibilidade, restringindo o uso da força a três casos, somente. As três
exceções são Medidas contra um Estado Inimigo, Ações do Conselho de Segurança e
Legítima defesa (RANDELZHOFER, 2002. pp. 119-121.). Ademais, PELLET, DAILLIER e
DINH destacam que esta estrutura de restrição da força empregada nas Nações Unidas seria o
estágio final da evolução normativa 89. Os mecanismos adotados em São Francisco são bem
mais avançados que os idealizados na Sociedade das Nações, mesmo que infelizmente a
prática tenha tornado-os defasados.
O artigo principal da estrutura de restrição do uso da força é os 2(4), que versa sobre o
banimento total do recurso à força. Diz o artigo:
Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça
ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de
qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das
Nações Unidas.
87 O genial historiador Eric Hobsbawm, em seu livro “A Era dos Extremos” destaca que pra muitos
observadores do conflito em crescimento na Primeira Guerra Mundial, a situação em curso era um disparate sem
precedentes, portanto de um impacto imenso também no psicológico. Hobsbawm comenta inclusive, que havia a
anedota de que se Bismarck e o corpo diplomático da Europa do século anterior acordassem e se deparassem
com a realidade naquele momento, não teriam dúvidas em esbravejar que aquilo era um absurdo sem sentido
algum. Qualquer mente razoável hodierna é capaz de constatar que a eclosão do conflito foi uma sucessão de
confusões e uma diplomacia trôpega, segundo o renomado escritor.
88 Mesmo que não possa se declarar inquestionavelmente a razão da não-ocorrência de um terceiro
conflito em escala global, pode-se afirmar, com uma razoável segurança, que provavelmente as novas medidas
tomadas tiveram fator determinante, especialmente no auge da Guerra Fria, em crises como o Bloqueio de
Berlim de 1948 e a Crise dos Mísseis de Cuba de 1966.
89 PELLET, et al. 2003, p 957.
30
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Esta disposição cristaliza o princípio da interdição do uso da força nas relações
internacionais. Porém, como já citado, há exceções a esse princípio. O Artigo 107 faculta aos
Estados-parte a usar a força, caso se prove necessário, contra os Estados Inimigos. A mesma
carta define no Artigo 53(2) que o conceito de Estado Inimigo “aplica-se a qualquer Estado
que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi inimigo de qualquer signatário da presente
Carta”. Obviamente esta determinação resta caduca e não possui mais utilidade alguma.
Todos os chamados Estados Inimigos da Segunda Guerra hoje são membros das Nações
Unidas, excluindo essa exceção de qualquer utilidade.
A segunda exceção é o uso da força através de Ações do Conselho de Segurança.
Consubstanciando sua vocação de manutenção da ordem e segurança internacional, o
Conselho de Segurança pode autorizar o uso da força, como previsto no capítulo VII da Carta.
As ordens do Conselho são cogentes. Prevê o artigo 42:
No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no
Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar e
efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar
necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.
Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações,
por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações
Unidas.
Durante grande parte do período da Guerra Fria, este artigo foi uma ficção jurídica.
Como o Conselho precisa da não-oposição dos membros permanentes para a aprovação de
uma resolução, era rara a obtenção de um acordo que envolvesse o uso da força conjunta. As
potências tendiam a observar com ceticismo e desconfiança qualquer intenção de uso de força
em suas áreas de influência. A situação de engessamento chegou a tal ponto que a Assembléia
Geral aprovou em 1950 uma resolução, denominada de “Uniting for peace” (A/RES/377) 90,
com o objetivo de superar este bloqueio. Segundo a resolução, caso fosse constatada a
incapacidade do Conselho em atingir um resultado em suas deliberações, a Assembléia Geral
poderia assumir subsidiariamente a responsabilidade pela segurança – originalmente da
autoridade do Conselho de Segurança – e tomar as decisões cabíveis. Esta exceção, contanto,
foi pouco usada, tanto em virtude dos países- membros geralmente levarem suas disputas para
arbitragem na Corte Internacional de Justiça ou eventuais cortes de arbitragem ad hoc, quanto
pelo fato de que os próprios países permanentes empregaram o uso da força em diversos
momentos sem autorização ou contrariando determinação do Conselho.
Um uso célebre desta exceção foi no caso da Guerra do Golfo. Após a invasão do
Kuwait pelo Iraque, o Conselho de Segurança aprovou a resolução S/RES/660 91 condenando a
invasão iraquiana e ordenando a retirada das tropas. Após seu não atendimento, o Conselho
emitiu mais uma resolução, a S/RES/661 92, que além de instituir um bloqueio econômico
também determinou uma data- limite para a retirada das tropas, após a qual o uso da força
como forma de retirar o Iraque de sua invasão ilegal estaria autorizado. Uma coalizão de trinta
países liderada pelos Estados Unidos realizou a operação “Tempestade no Deserto”, obtendo
sucesso com a conseqüente retirada das tropas de Saddam Hussein do Kuwait. Esta operação
90 Resolução disponível em: http://www.un.org/Depts/dhl/landmark/pdf/ares377e.pdf
91 Resolução disponível em: http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=S/RES/660%20
(1990)&Lang=E&Area=RESOLUTION
92 Resolução disponível em:
(1990)&Lang=E&Area=RESOLUTION
http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=S/RES/ 661%20
31
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
serviu também para fortalecer a estrutura da ONU, pois ficou claro que o sistema de restrição
do uso da força funcionou adequadamente.
A última exceção é para nós a mais importante, a legítima defesa. Analisaremos a
seguir, de forma mais aprofundada o seu conceito, no que se baseia, e qual a prática
consuetudinária na sociedade internacional.
Análise Jurídica do Uso da Força e da Possibilidade da Legítima Defesa Preventiva
O artigo 2(4) da Carta de São Francisco determina a restrição do uso da força nas
relações internacionais por parte dos Estados, enquanto o artigo 51 estabelece uma das
exceções mais controversas sobre a qual nos focaremos no restante deste trabalho. A seguir,
analisaremos juridicamente alguns dos casos internacionais mais célebres que versam sobre
legítima defesa (Caroline, Virginius e Nicarágua), assim como os artigos 2(4) e 51 da Carta de
São Francisco.
Conceito de Legítima Defesa
Segundo HUCK93, a legítima defesa é um conceito presente e comum a qualquer
sistema de direito. Simbolizado pela máxima vim vi repellere omnia iura permittunt 94 , este
preceito autoriza ao indivíduo o uso da força para reagir de quaisquer ameaças a seus bens ou
sua integridade física. Segundo BITTENCOURT, é “um dos institutos jurídicos mais bemelaborados através dos tempos”, representando “uma forma abreviada de realização da justiça
penal e de sua sumária execução”. Ensina, por sua vez, BETTIOL que:
(...) ela na verdade corresponde a uma exigência natural, a um instinto que
leva o agredido a repelir a agressão a um seu bem tutelado, mediante a lesão
de um bem do agressor. Como tal, foi sempre reconhecida por todas as
legislações, por representar a forma primitiva de reação contra o
injusto.(BETTIOL apud BITTENCOURT, 2003 p. 265)
BITTENCOURT destaca também que o conceito de legítima defesa é resultante da
resignação do Estado diante da realidade que é impossível a solução pra todas as violações
jurídicas de forma instantânea, assim como tal instrumento jurídico:
(...) objetivando não constranger a natureza humana a violentar-se numa
postura de covarde resignação, permite, excepcionalmente, a reação imediata
a uma agressão injusta, desde que atual ou iminente, que a dogmática
jurídica denomina legítima defesa. (BITTENCOURT, 2003 p. 265)
Estando disposta até nos sistemas jurídicos mais rudimentares, é uma conseqüência
lógica que também esteja presente no Direito Internacional. Na obra O Espírito das Leis,
Montesquieu dissertava acerca de uma possível legítima defesa dos Estados, tratando-os como
indivíduos em uma sociedade internacional, e concedendo a eles este direito por analogia
(HUCK, 1996. pp. 166-167). Estes indivíduos possuíam então a guerra como uma forma de
auto-preservação. Mas como supracitado, no início do direito internacional não só não existia
proibição do uso da força, como esta era um instrumento corriqueiro de política externa,
93 HUCK, 1997. p 166.
94 Uma tradução possível: Todos os direitos permitem a oposição da força com a força.
32
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
restando a previsão da legítima defesa a inutilidade. Se o uso da força era livre, qualquer
justificativa era descartável.
Porém, como igualmente destacado, finalmente surge a estrutura de restrição da força,
e esta provisão, então inócua, passa a gozar de grande influência. A legítima defesa se tornou
uma das poucas exceções inquestionáveis, capaz de “justificar” uma guerra, perante o direito
internacional.
O Estudo da legítima defesa divide esse fenômeno em modalidades, como defesa
contra o terrorismo ou proteção a nacionais no estrangeiro, e a legítima defesa preventiva, que
é o foco do nosso trabalho.
Conceito de Legítima Defesa Preventiva
Este conceito se encontra na raiz da doutrina da legítima defesa por uma construção
lógico-histórica. Enquanto a legítima defesa per se não precisava de justificação jurídica,
sendo aceita por todos os ordenamentos jurídicos, logo houve casos que ensejaram um
desenvolvimento mais claro nesse sentido.
A legítima defesa preventiva se configura no ato de, à guisa de impedir que violações
posteriores venham a ocorrer, o Estado realize uma ofensiva antes de ser atacado. Dividimos a
legítima defesa, por questões metodológicas, em dois tipos: Interceptiva e Antecipatória. A
distinção é simples, apesar de ambas serem diferentes gradações do mesmo fenômeno. A
Defesa interceptiva ocorre quando as forças de um Estado “interceptam” a ação do inimigo,
em vistas de neutralizar seu ataque iminente. É preciso frisar a importância do vínculo
temporal. A ameaça inimiga está prestes a se concretizar, então o Estado que logo seria
ofendido se lança em um ataque preventivo.
A outra hipótese que estudaremos é a do ataque antecipatório, em que um Estado,
ciente de uma ameaça grave, decide lançar em ofensiva militar, mesmo estando ausentes as
provas da ameaça imediata, devido ao grave risco que pode advir de sua inação. Ou seja, um
Estado, mediante provas que há uma ameaça, realiza uma ofensiva militar contra seu
hipotético ofensor a despeito da ausência de comprovação da urgência.
A distinção clara se encontra no fator tempo. Na legítima defesa convencional, o país
reage após ser atacado. Na legítima defesa interceptiva, o faz na iminência de um ataque. Já
na antecipatória, o faz diante de uma hipótese futura de ataque.
Uma nova definição para a legítima defesa preventiva
SOFAER 95 propõe alguns critérios de admissibilidade do argumento da legítima
defesa. Segundo ele, a máxima derivada do caso “Caroline” não pode persistir como costume
internacional soberano ou uma espécie de lei subtendida. Parece bem claro que o caso
Caroline se referia especificamente a uma situação onde o terceiro Estado não era responsável
pela ameaça enfrentada pelo Estado que empreende a defesa preventiva. Por exemplo, os
Estados Unidos não realizavam atos de ameaça ao Reino Unido, no caso supracitado.
SOFAER rejeita que tanto um Estado possa julgar o critério de risco de forma arbitrária,
assim como que o Estado não pode lançar uma ofensiva contra outrem, só por este ter atingido
95 SOFAER, 2003, pp. 220-225
33
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
uma posição que pode significar risco em uma futura ofensiva armada. Ao invés, ele sugere
que uma nova definição deve ser construída levando em conta que:
(...) a necessidade deve ser estabelecida na base de fatores e circunstâncias
relacionadas ao estabelecimento da legitimidade do uso da força sob
princípios do direito internacional e dos valores da carta da ONU, incluindo:
(1) a natureza e magnitude da ameaça envolvida; (2) a probabilidade que a
ameaça vai ser concretizada ao menos que uma ação preemptiva seja
tomada; (3) a disponibilidade e exaustão de alternativas ao uso da força e (4)
se o uso da força preemptiva é consistente com os termos e propósitos da
Carta da ONU e outros acordos internacionais aplicáveis. (SOFAER, 2003,
p. 220)
No primeiro critério, o autor citado acima afirma que ameaças podem variar
enormemente de natureza e magnitude As armas empregadas podem variar desde a natureza
do ataque – se realizado por forças convencionais ou grupos terroristas – ou a tecnologia
empregada, como armas químicas ou biológicas. É claro que as formas de ameaça se
diversificaram desde o começo do surgimento da doutrina da legítima defesa, sendo a
natureza das ameaças, portanto, um dos critérios passíveis de revisão e debate.
A probabilidade de concretização da ameaça seria um segundo critério. Pode ocorrer
uma situação em que há uma ameaça enorme, porém ao mesmo tempo improvável.
Exagerando um exemplo, é como dizer que um cometa gigante se chocar com a terra seria
uma terrível ameaça, porém as chances são extremamente reduzidas. E para assegurar que as
ofensivas só sejam feitas mediante uma certeza razoável das ameaças, é preciso provas. A
natureza das provas também deve ser levada em questão no debate por uma nova definição. O
que deve também ser combatido através da legítima defesa preventiva não é o crescimento de
uma possível ameaça, mas uma ameaça que já exista. Autorizar o uso da força contra ameaças
que podem se formar transformaria a segurança internacional em um caos.
Outro critério é a exaustão de alternativas, segundo o qual o Estado deve seguir por
todos os trâmites possíveis antes de recorrer à força, e caberia ao Estado que deseja empregar
a força preventivamente que trilhou todo o caminho necessário, pautado sempre pela urgência
característica deste tipo de ação.
O quarto e último critério seria a adequação aos princípios da Carta da ONU. Para
empregar a ação o Estado deveria ter em consideração variáveis como resoluções aprovadas
sobre o tema, restrição do uso da força até o máximo sustentável, entre outros.
Casos práticos
a)
Incidente do Navio Caroline – 1837
I. Partes
Estados Unidos, Canadá e Reino Unido.
II. Fatos
O caso primário na doutrina da legítima defesa é o caso do incidente entre Canadá e
Estados Unidos, na destruição do navio Caroline. Durante aquela época, alguns insurgentes
34
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
canadenses ensejavam uma rebelião. Alguns americanos apoiavam o movimento e o governo
federal alegava falta de competência legislativa – que cabia ao ente federado – para impor a
neutralidade dos americanos no conflito dos rebeldes com a Coroa britânica. No dia 29 de
dezembro, um destacamento britânico cruzou o rio Niágara e atacou o navio Caroline - usado
freqüentemente para transporte de suprimentos da base rebelde na ilha Navy - que estava
ancorado na margem americana, matando pelo menos um americano no conflito. O barco foi
posto em chamas e deixado à deriva, findando destruído no fundo das cataratas do Niágara.
Relata-se que “várias pessoas embarcadas no navio desapareceram, tragadas pelas águas, dois
cidadãos americanos foram mortos, assim como dois canadenses 96 ”. Posteriormente, o caso
voltou à tona na ocasião da prisão nos Estados Unidos de um marinheiro que se gabava de ter
participado do ataque ao Caroline.
III. Análise
Apesar do caso jamais ter sido levado a uma corte de justiça internacional – que até
então não existia –, o incidente gerou debates fervorosos e conflitos de interpretações
divergentes entre as partes. O Reino Unido alegou que o fracasso dos Estados Unidos em
impor suas próprias leis na fronteira levou aos oficiais britânicos a tomarem uma atitude
buscando a auto-preservação, que no caso significou no “direito de destruir o veículo de
pirataria dentro do território norte-americano 97 ” ao:
(...) defender o território britânico do ataque não-provocado de um bando de
rebeldes britânicos 98 e piratas americanos, os quais foram ‘permitidos’ se
armar e organizar em território dos Estados Unidos (...) chegando a invadir
uma porção do território de Sua Majestade. (SOFAER, 2003 p. 218 )
Os Estados Unidos responderam com furor ao incidente, alegando que não havia base
na doutrina internacional para qualificar o Caroline como um navio pirata. Ademais,
reconhece que os cidadãos americanos poderiam ser presos e condenados no Canadá, mas
argumenta que a Grã-Bretanha não tinha direito de adentrar outra soberania para prendê- los.
Haveria possibilidade de uma ação semelhante, se pautada nos padrões de que “a necessidade
precisa ser iminente, extrema, e envolvendo destruição iminente 99 ”.
Ambos os países viam a legítima defesa como uma justificativa plausível, apenas
discordando se o era o caso ou não. Para o Reino Unido, havia complacência e permissividade
dos Estados Unidos com os rebeldes americanos ao longo da fronteira que legitimaria uma
ação para, embasada pela necessidade, fazer valer a justiça que os Estados Unidos falharam
em prover. Por mais que registros históricos apontem que realmente houve ineficácia por
parte dos estadunidenses, a visão norte-americana era a de que os requisitos dos britânicos
estavam sendo atendidos pelos Estados Unidos, e que uma ação de legítima defesa preventiva
dessa natureza só poderia ser empregada caso a necessidade de agir fosse “instantânea,
insuperável, sem qualquer possibilidade de escolha de meios alternativos e sem tempo para
deliberação 100 ”, que se tornou a principal máxima na doutrina da legítima defesa. O caso
96 HUCK, 1997, p. 169
97 HUCK, 1997, p. 170
98 Apesar de canadenses, os rebeldes ainda eram, diante da interpretação britânica, súditos de seu
império.
99 SOFAER, 2003 p. 216
100 SOFAER, 2003 p. 219
35
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
terminou com um pedido de desculpas do Reino Unido através de notas diplomáticas, sem
maiores conflitos, mas tornou-se fundamental na análise da legítima defesa.
b)
Incidente do Navio Virginius – 1873
I. Partes
Estados Unidos, Reino Unido e Espanha.
II. Fatos
Similar ao caso Caroline, o navio americano Virginius estava sendo utilizado por
rebeldes cubanos no transporte de suprimentos, armamentos, insurgentes cubanos e
voluntários estrangeiros na luta pela independência de Cuba da Espanha. O navio americano:
(...) foi atacado em alto-mar pela armada espanhola, feitos prisioneiros os
membros da tripulação e todos os passageiros. Os membros da tripulação
que tinham nacionalidade americana e inglesa foram julgados e condenados
à morte, acusados da prática de atos de pirataria.(HUCK, 1996 p. 171)
III. Análise
O caso teve três teses. Para a Espanha, foi um exercício legal do seu direito inerente à
legítima defesa. O governo inglês admitia que a tomada do navio pudesse ser justificada como
um ato de legítima defesa da Espanha buscando salvaguardar seus interesses nacionais, mas
repudiava veementemente a execução dos tripulantes, especialmente os britânicos. Já o
governo americano, não só a execução como todo o ato estava revestido de ilegalidade.
Segundo os Estados Unidos, era garantido ao barco o direito de livre-navegação em alto mar
durante tempos de paz, que obviamente foi violado pelo ataque da armada espanhola. Assim
como o caso supracitado, a prática internacional mostrou que a legítima defesa pode justificar
até o exercício do direito em um Estado terceiro, alheio ao conflito.
c)
Crise dos Mísseis de Cuba -1962
I. Partes
Estados Unidos, União Soviética e Cuba.
II. Fatos
Considerada uma das situações críticas da guerra fria, o imbróglio se deu após o
estabelecimento de bases avançadas dos Estados Unidos na Inglaterra, Itália e principalmente
Turquia, quando, em seguida, se efetivaram ameaças norte-americanas de invasão da ilha de
Cuba, o que gerou, conseguinte, que Fidel Castro celebrasse um acordo com a União
Soviética, que começou a montar uma base de mísseis balísticos nucleares soviéticos em
Cuba. A proximidade dos mísseis ao solo americano criou uma crise sem precedentes, em
razão de uma suposta ameaça contida pela sua presença. O então presidente John F. Kennedy
ordenou um bloqueio pacífico e exigiu que os mísseis fossem retirados de Cuba. Depois de
36
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
intensa negociação e ameaças tanto da União Soviética quanto dos Estados Unidos, os mísseis
foram retirados.
III. Análise
Durante a crise, os Estados Unidos envidaram uma série de argumentos
fundamentando uma possível “quarentena defensiva” e que a simples presença daqueles
mísseis estacionados a tão curta distância era uma ameaça permanente. Fidel Castro
argumentou, por sua vez, que não era nem poderia ser crime a presença de armamentos em
território cubano. Cuba era um Estado soberano, e não havia nenhuma ameaça explícita contra
os norte-americanos. Os soviéticos, por sua vez, argumentavam que se a presença de mísseis
em Cuba era periclitante, também o era a presença dos mísseis americanos na Turquia. Com
um arsenal bem mais limitado que o norte-americano, o líder soviético Nikita Kruschev
chegou a exigir que a base na Turquia fosse desmantelada, proposta que não foi aceita pelo
governo dos Estados Unidos.
Entrementes, além das partes em conflito, a posição da comunidade internacional
sobre a admissibilidade da causa como legítima defesa preventiva foi brilhantemente
sumarizada pelo delegado de Gana no Conselho de Segurança, que questiona:
Existem fundamentos para o argumento de que tal ação é justificada pelo
direito inerente de legítima defesa? Pode ser aduzido que existiu, nas
palavras de um antigo Secretário de Estado americano cuja reputação como
jurista é amplamente aceita neste campo, uma “insuperável necessidade de
legítima defesa, sem qualquer possibilidade de escolha de meios alternativos
e sem tempo para deliberação”? (AREND, 2003 p. 94)
E responde em seguida:
Minha delegação não acha que sim, pois como disse antes, ainda não está
disponível prova irrefutável do caráter ofensivo dos desenvolvimentos
militares em Cuba. Tampouco pode ser argüido que a ameaça é de tal
natureza que justifique a escala das ações até agora tomadas, anterior a uma
referência a este conselho. (AREND, 2003 p. 94)
Mais uma vez, o que se vê é que existe uma previsão costumeira e doutrinária pra a
legítima defesa, inclusive jurisprudencial, mas os requerimentos, aos olhos da comunidade
internacional, não foram satisfeitos. É preciso ressaltar, porém, que não se sabe se uma inação
do governo norte-americano neste ponto da história teria gerado uma escalada armamentista, e
qualquer aprofundamento nesta possibilidade não passaria de um exercício de futurologia.
Mas a possibilidade de que talvez o relaxamento dos requisitos da legítima defesa tenha sido
crucial para a solução de um conflito em formação precisa ser levada em conta.
d)
Guerra dos Seis Dias – 1967
I. Partes
Israel, Egito, Jordânia e Iraque.
II. Fatos
37
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Em Junho de 1967 o Estado de Israel lançou uma ofensiva militar que é conhecida
como uma das mais breves e eficientes da história da guerra, ganhando em apenas seis dias
aquela que viria a derivar do seu curto período de tempo o seu nome, a Guerra dos Seis Dias.
Neste conflito, após a tensão e instabilidade provocada pela crise de Suez de 1956, o
Egito, liderado pelo presidente Nasser, juntou-se aos exércitos da Síria, Jordânia e Iraque,
estacionando as tropas a poucos quilômetros da fronteira israelense após uma disputa sobre o
uso de um canal na região. Segundo uma pesquisa feita por Isi LIEBER, na ocasião, Nasser
teria declarado:
Os exércitos do Egito, Jordânia, Síria e Líbano estão posicionados na
fronteira com Israel (…) para enfrentar o desafio, enquanto posicionados em
nossa retaguarda estão os exércitos do Iraque, Argélia, Kuwait e Sudão, e
toda a nação árabe. Este ato estarrecerá o mundo. Hoje eles saberão que os
árabes estão organizados para a batalha, a hora crítica chegou. Nós
alcançamos o estágio das ações sérias, não mais declarações. (LIEBER, 1972
p. 60)
Israel lançou uma ofensiva contra os exércitos árabes aliados, e no dia 10 de junho, o
combate já estava encerrado através de um cessar- fogo, após apenas seis dias de confronto.
Após o conflito, Israel tinha triplicado sua extensão territorial, com o domínio das Colinas de
Golã, Faixa de Gaza, rio Jordão, Cisjordânia e península do Sinai. Israel optou por retornar
Sinai e Golã aos seus Estados originais em troca de acordos de paz e da promessa de
manutenção da zona desmilitarizada.
III. Análise
Segundo AREND101 , ao curso dos debates no Conselho de Segurança, Israel pautou a
defesa de seus atos na tese de que realizou uma ação militar antecipatória, em vistas de
impedir o que acreditava ser um ataque iminente por parte dos Estados árabes.
Não surpreendentemente, de acordo com AREND102 , o apoio e oposição a Israel
seguiu traçados políticos. Países como União Soviética, Síria e Marrocos se pronunciaram
contrários ao ato israelense, destacando grande importância e responsabilidade ao primeiro
ato em um conflito, e conseqüentemente, deslegitimando uma legítima defesa antecipatória.
Os apoiadores de Israel, também não foram enfáticos em estabelecer uma doutrina da
preempção antecipatória.
e)
O Caso dos Contras na Nicarágua – 1979
I. Partes
Estados Unidos e Nicarágua.
II. Fatos
101 AREND, 2003, 95.
102 Idem
38
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
Receando que Sandinistas da Nicarágua estivessem importando o regime socialista de
Fidel Castro, o governo norte-americano, autorizado pelo então presidente Ronald Reagan,
começou a financiar em 1981, através da CIA os “Contras”, ou seja, uma força contrarevolucionária. O governo da Nicarágua entrou com uma queixa contra os Estados Unidos
junto à Corte Internacional de Justiça, exigindo reparações pelo ocorrido, na violação de sua
soberania.
III. Análise
A questão dos Contras é um caso de importância basilar, sendo a primeira
oportunidade que a Corte Internacional de Justiça pôde opinar acerca da legítima defesa
preventiva. Os Estados Unidos alegaram que agiram em exercício da sua legítima defesa
coletiva. Em opinião corroborada em sua decisão separada, o juiz Schwebel declarou que as
ações norte-americanas foram justificadas com base na legítima defesa preventiva coletiva.
Segundo o nobre juiz, as provas indicam que os Estados Unidos agiram em defesa de El
Salvador, com quem tem acordos de defesa coletiva, e seria vítima recorrente de ingerências
da Nicarágua. Porém esta opinião foi vencida. A maioria dos juízes concluiu que os Estados
Unidos falharam em sua obrigação de não usar a força nas relações internacionais, e de não
intervir em outros entes soberanos, como tentou fazer, indiretamente, através dos Contras.
Completou a Corte que, se claramente Nicarágua não oferecia riscos aos Estados Unidos,
tampouco o fazia a El Salvador, descaracterizando a legítima defesa preventiva coletiva. Um
detalhe peculiar deste julgamento é o fato de que a Corte preferiu somente desqualificar o
caso prático como legítima defesa preventiva, ao invés de elucidar o conceito, deixando
margem pra a doutrina ou prática dos Estados o fazerem103 .
As conseqüências deste julgamento foram, além da condenação aos Estados Unidos a
pagar as devidas reparações à Nicarágua, os EUA, alegando ter sido vítima de um erro por
parte da Corte, retiraram sua ratificação sobre a jurisdição compulsória da Corte, ou seja, só
pode desde então ser submetida a julgamento perante este tribunal mediante seu
consentimento.
f)
Ataque ao Reator de Osirak – 1981
I. Partes
Israel e Iraque.
II. Fatos
Em junho de 1981, Israel bombardeou o reator nuclear iraquiano localizado na cidade
de Osirak (Iraque), resultando na morte de dez soldados iraquianos e um pesquisador francês.
A inteligência de Israel acreditava que o alvo seria usado para produzir armas nucleares com
intuitos beligerantes.
III. Análise
103 O sumário da decisão está disponível online no endereço:
http://www.icj-cij.org/icjwww/icases/inus/inus_isummaries/inus_isummary_19860627.htm
39
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Da mesma forma que em 1976, Israel argumentou suas ações com base na legítima
defesa antecipatória. Mas se a ofensiva na Guerra dos Seis Dias foi apoiada por muitos tendo
em vista a conjuntura política e as tensões entre os Estados próximos a Israel, a ação em
Osirak foi amplamente rechaçada pela comunidade internacional. Até aliados costumeiros
como os Estados Unidos fizeram coro a condenar a postura dos israelenses. Mais uma vez, os
delegados do Conselho de Segurança argumentaram que a situação em questão não
apresentava os requisitos dispostos na ocasião do caso Caroline.
AREND104 destaca que, curiosamente, enquanto se opunha ao comportamento
israelense, a delegação norte-americana não se pronunciou contra a doutrina do ataque
antecipatório, mas simplesmente ao caso concreto. Ou seja, subtende-se que a política externa
americana se não apóia, não execra a legítima defesa antecipatória. Posteriormente veremos
que esta modalidade passou a integrar a política externa norte-americana no século XXI.
g)
Intervenção no Afeganistão e Iraque – 2002 e 2003
I. Partes
Estados Unidos, Afeganistão e Iraque.
II. Fatos
Como resposta ao atentado terrorista de 11/9/2001 os Estados Unidos formularam uma
nova política externa de guerra contra o terrorismo. Sob a missão de destruir o grupo terrorista
Al-Qaeda, os Estados Unidos, juntamente com a Coalizão, invadiram o Afeganistão em 2001,
tirando do poder o regime talibã, que governava há décadas. Mesmo após a “pacificação” do
país, o proclamado líder da Al-Qaeda Osama Bin Laden não foi encontrado. Posteriormente,
em situação seme lhante, mediante provas apresentadas ao Conselho de Segurança de indícios
que supunham a presença de armamentos nucleares no Iraque, e em resposta à postura não
cooperativa de Saddam Hussein, os EUA empreenderam uma intervenção militar no Iraque
novamente junto com a Coalizão 105 . Enquanto o Afeganistão já teve sua autoridade
plenamente restabelecida e tendo sido eleito um presidente – atualmente Hamid Karzai, eleito
em outubro de 2004 – o Iraque ainda está em processo de transição, com o fortalecimento das
instituições democráticas e julgamento de Hussein por seus crimes contra o povo Iraquiano.
III. Análise
As guerras do Afeganistão e Iraque foram as primeiras guerras do novo milênio, e são
símbolos também do que se esperar dos novos conflitos armados. A iniciativa contra o
Afeganistão se configura em uma legítima defesa, mesmo que com uma referência nebulosa
de quem foi o ofensor. Aceitando-se que o ataque foi executado pela Al-Qaeda, e esta se
104 AREND, 2003, p. 96
105 The “Coalition of the willing”, que teria em “Coalizão dos dispostos” uma possível tradução.
Faziam parte da coalizão No caso do Afeganistão, as forças da Coalizão eram: OTAN, Estados Unidos, Reino
Unido, Canadá, Autrália, França, Irã, Paquistão, Nova Zelândia, Países Baixos, Noruega, Itália, Alemanha,
Espanha, Portugal, Estônia, Latvia, Ucrânia e Geórgia e Aliança Afegã do Norte. Já no caso do Iraque, era
composta por: Estados Unidos, Reino Unido, Polônia, Austrália, Coréia do Sul, Romênia, Espanha, Portugal,
Itália, Estônia, Latvia, Lituânia, Ucrânia e Geórgia.
40
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
encastela no Afeganistão, a lógica natural é buscar sufocar o mal em sua fonte.Questiona-se
se os critérios da proporcionalidade e necessidade foram atendidos. Percebe-se também que o
conflito se deu entre um Estado e ente não-estatal, no caso a Al-Qaeda, e não o tradicional
conflito entre Estados. Mas o caso mais controverso é o do Iraque. Diante de alegadas provas,
os Estados Unidos empreenderam sua ofensiva, que se configuraria em uma legítima defesa
preventiva, mas os critérios não foram plenamente atendidos. O argumento que a ameaça não
era grave o bastante pra permitir uma violação de soberania ainda foi agravada pela
constatação que as provas apresentadas pelos EUA diante do Conselho de Segurança eram
falsas. O critério de aceitação de provas e comprovações de ameaça pode ser discutido. E esse
liame da antevisão americana, ou seja, se a ameaça futura era grave ou não, é complicada pela
incidência de armamento nuclear no conflito. Em suma: depois do Iraque, temos ainda mais
perguntas que respostas, haja vista que este caso ainda não foi submetido a nenhum tribunal
interna cional para sua interpretação.
h)
Ofensiva israelense no Líbano – 2006
I. Partes
Israel, Líbano e Hezbollah.
II. Fatos
Caso semelhante ao da Guerra dos Seis Dias. Membros do grupo extremista Hezbollah
atravessaram a fronteira com Israel, seqüestrando dois e matando três soldados israelenses.
Israel considerou o governo do Líbano responsável por não impedir a ação do Hezbollah, e
lançou uma ofensiva que começou dia 12 de julho, tendo se encerrado dia 14 de agosto, após
a aprovação de um cessar- fogo. Durante o ataque Israel usou de força militar aérea, naval e de
solo, enquanto o Hezbollah disparava mísseis continuamente contra Israel.
III. Análise
A despeito da atualidade do assunto tornar a análise mais complexa, podemos concluir
que houve no caso em questão um ataque de legítima defesa conjugado com um ato de
legítima defesa preventiva. Ao mesmo tempo em que Israel respondeu à ofensa por parte do
Hezbollah na questão dos soldados, buscou mitigar as suas forças e reduzir sua ameaça futura.
É preciso ressaltar que, assim como no Afeganistão, houve um conflito entre um Estado e um
ente não-estatal, o que ainda não está devidamente previsto no direito internacional. O
governo do Líbano ficou à margem do conflito. Questiona-se também a proporcionalidade do
uso da força no conflito, se ela foi feita realmente de forma desmedida. Pode ser aduzido que
se os motivos israelenses de fato eram justos, a forma em que a guerra foi travada não foi tão
justa assim. O caso também ainda não foi levado a julgamento internacional.
As polêmicas interpretações do Art. 51
Uma espada obriga a outra a ficar na bainha.(George Herbert)
41
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
Sendo então, como já citado, inquestionável o direito intrínseco à legítima defesa, a
Carta das Nações Unidas versa em seu - não intencionalmente - polêmico art. 51, a
possibilidade de emprego da guerra ou uso de força para assegurar a legítima defesa.
O artigo 51 encontra-se no capítulo VII da Carta, que entre os artigos 39 a 51 tratam
da Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão. Em síntese, trata das
proibições e suas exceções concernentes ao uso da força ou guerra. Como medida para o
estabelecimento da paz, firmou-se a proibição da guerra com reservas a três possibilidades,
que intencionalmente teriam a liberdade de ação armada com intuitos pacíficos ou garantia da
segurança.
A primeira possibilidade, como supracitado, trata-se do dispositivo descrito no artigo
107 da Carta, que historicamente perdeu a necessidade: a ação contra Estados Inimigos. Por
ser um artigo com limitações circunstanciais e temporais, tal possibilidade de uso da força
legalmente é considerada na atualidade inexistente.
Por sua vez, a segunda exceção da proibição do uso da força é o uso legitimado pela
autorização do Conselho de Segurança. Como a autorização do Conselho passa por uma
tramitação consideravelmente importante e complexa para legalizar e autorizar as iniciativas
armadas, sendo necessário inclusive que nenhum dos membros permanentes se disponha
contrário, durante o período da Guerra Fria, o Conselho esteve diversas vezes imobilizado
pelo poder de veto.
A terceira exceção para o uso legal da força seria a baseada no princípio da legítima
defesa, a única que nos interessa no momento. Contrariamente à intenção de restrição do uso
da força, a maioria dos atos de guerra é realizada em invocação do direito à legítima defesa.
Tal uso abusivo do artigo 51 tornou-o polêmico, levantando diversas interpretações muitas
vezes contraditórias e facilmente “adaptáveis” aos interesses políticos dos Estados.
Analisaremos a seguir a redação do referido artigo para demonstrar algumas das
possibilidades de interpretação usadas para justificar o uso da força como ataque antecipado
ou interceptivo e instamos aos Srs. especialistas que empreendam uma busca por suas
entrelinhas a verdadeira intenção de sua redação, enquanto recapitulando alguns conceitos já
tratados neste trabalho.
ARTIGO 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de
legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado
contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança
tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da
segurança internacional. As medidas tomadas pelos Membros no exercício
desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao
Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e
a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a
efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao
restabelecimento da paz e da segurança internacionais. (Carta das Nações
Unidas)
Na primeira linha - “nada na presente carta prejudicará o direito inerente...” - o artigo
afirma abertamente o direito à legítima defesa como uma garantia superior até mesmo a outro
artigo que hipoteticamente verse contraditoriamente na Carta. O artigo reconhece que existe
um direito adquirido fundamentado em um costume internacional, anterior à sua elaboração.
A priori, tal garantia é óbvia e simples, porém, sua grande importância se revela na simples
existência de sua provisão no texto da Carta. A legítima defesa, como previamente exposto, é
um conceito comum a todos os sistemas jurídicos, e, portanto a necessidade de sua reafirmação denota a preocupação em salvaguardar a sua efetividade perante a nova ordem em
42
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
construção. Ao mesmo tempo em que por uma direção caminhava a forte evolução jurídica no
sentido do banimento da força, a legítima defesa age como válvula de escape, uma via
alternativa, no próprio texto da Carta.
Sendo assim, a exacerbada garantia do instituto da legítima defesa acaba sendo
também um atrativo ao abuso desse direito, considerando-se as ações fundamentadas em
legítima defesa como a possibilidade de uma ação legal mais eficaz do ordenamento, que
mesmo quando indevidamente requisitada, é previamente protegida pela simples possibilidade
de coerência jurídica.
Por sua vez, quando trata da “Legítima defesa individual ou coletiva”, existe no artigo
a possibilidade assegurada, porém não conceituada de legítima defesa coletiva. Muito
utilizada também atualmente, entende-se por legítima defesa coletiva quando duas ou mais
nações firmam tratados de defesa mútua para assegurar que em caso de ataque ou ameaça, os
esforços militares sejam mais eficazes. Porém, no artigo não é impedido, por exemplo, que tal
tratado seja firmado posteriormente ao ataque, sendo possível a um país agredido ou
ameaçado pactuar com um ou mais Estados, um acordo de legítima defesa coletiva para uma
ação de retaliação à agressão ou ameaça que gerou o direito à legítima defesa. A possibilidade
de legítima defesa coletiva não é contestada, mas sim as circunstâncias em que esta possa ser
alegada. Ian Brownlie acerca do aludido assevera que:
O direito à defesa coletiva foi aceito no direito em geral antes do surgimento
da Carta das Nações Unidas, mas recebe agora um reconhecimento expresso
das provisões do artigo 51 da carta. Pode ser lembrado que, em resposta ao
ataque do Iraque no Kwait, a resolução do Conselho de Segurança
661(1980) fez referências expressas em seu preâmbulo ao ‘direito inerente
de legítima defesa individual ou coletiva, em resposta ao ataque armado
efetuado pelo Iraque contra Kwait’. No caso Nicarágua (méritos), o direito
internacional indicou duas condições para o exercício legal da legítima
defesa coletiva. A primeira condição é que o Estado vítima declare seu
estado como vítima e requeira assistência. A segunda condição é que o ato
ilegal reclamado precisa constituir um “ataque armado”.(BROWNLIE,
2003) 106
Sendo essas condições descritas tão vagas quanto a sua não definição no artigo,
podem, então, surgir duas contradições ao conceito de legítima defesa. A primeira diz respeito
ao princípio da proporcionalidade de força usada na legítima defesa. A associação de diversos
Estados que em comum acordo fazem uso de suas forças para reagir a um ataque ou ameaça
de um terceiro pode ocasionar no abuso de poder por parte destes países com o uso indevido
de suas forças, ferindo este princípio da proporcionalidade. Como vimos anteriormente, nem
toda autodefesa é legítima, sendo a proporcionalidade do meio empregado para a repulsa e
cessação da agressão componente primordial para caracterizar um ato como legítima defesa.
Por sua vez, a segunda contradição pode ocorrer quando, por motivos políticos, alguns
países associam-se em um tratado e mascaram uma ofensiva como ato de legítima defesa
aguardando alguma oportunidade para invocá- la. Assim sendo, a legítima defesa não estaria
sendo usada para garantia de um direito, mas sim para adquirir vantagens e interesses, atitude
totalmente contraditório a sua função. Ainda podemos encontrar casos como o da antiga
106
BROWNLIE, Ian. Principles of International Law. 6ª ed. New York: Oxford University Press. 2003.
43
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
União Soviética, em que alguns Estados pactuavam com a superpotência, não por interesse
próprio, mas sim por uma certa coação exercida 107.
A necessidade de uma ação anterior que justifique tal ação (do artigo: “no caso de
ocorrer”) é singular a aplicação do artigo. Se entendido desta forma, o conceito ainda é vago
por não prever que ações anteriores serão consideradas e quão anteriores podem ser. Quando
na guerra pela Cachemira, a Índ ia e o Paquistão alegaram ambos o artifício da legítima defesa
para a guerra, o Conselho não foi capaz de estabelecer qual dos dois havia iniciado a agressão
em uma análise histórica. A regra é que se força o Conselho a analisar qual dos dois possui
procedência na alegação 108.
Mais grave, porém, é se analisarmos o artigo em uma das suas línguas originais. Em
inglês, o artigo diz:
Nothing in the present Charter shall impair the inherent right of individual or
collective self-defense IF an armed attack occurs against a Member of
United Nations… (Carta das Nações Unidas).
Na tradução para o inglês não houve a aplicação de um termo que limitasse o tempo da
ação causadora do ato de legítima defesa. Sendo assim, existe a possibilidade invocar a
legítima defesa a um fato que não tenha ocorrido, mas sim que possa ocorrer e então conste
como uma ameaça. Este argumento ainda é reforçado pelo artigo 2.4 quando este condena
com tanta veemência o uso da força quanto a “ameaça do uso da força”, as equiparando em
grau de importância a ser combatido.
A possibilidade de agir em legítima defesa frente uma ameaça, ou seja, diante de uma
agressão iminente – no caso, uma agressão ainda não ocorrida - é uma das grandes cisões de
nossa problemática. Por um lado, alguns defendem que a ameaça não é suficiente para
autorizar o uso da força contra um Estado, alegando que a legítima defesa é usada
abusivamente quando não está tentando cessar uma agressão existente, e que nem mesmo
existem definições de quais ameaças possam ser levadas em consideração. De outro lado
estão os que defendem que a ameaça é um risco de uma agressão iminente e deve ser
considerada como uma agressão em si, pois aguardar uma agressão propriamente dita para
então agir em legítima defesa seria suicídio, visto que não se pode aguardar que um inimigo
prepare-se da melhor forma possível para uma agressão, possibilitando que este aja na hora
que lhe for mais conveniente, podendo até mesmo não possibilitar uma legítima defesa
posterior. Este logicamente é o lado dos que argumentam em defesa da Legítima Defesa
Antecipada ou Interceptiva.
Na redação do artigo encontramos a expressão “ataque armado”, que por sua vez não é
conceituada, mas entendida como quando a força é usada em relativa larga escala e com
efeitos substanciais, o que possibilita aos invocadores de tal artigo expor fatos que não
entrariam na classificação de ataque armado para justificar uma ofensiva contra outro Estado.
Embora na resolução 3314 (XXIX) de 1974 da Comissão de Direito Internacional, tenha se
dado um passo grande com a definição do termo “agressão”, que não necessariamente implica
107
Alguns dos países sob influência soviética, mas não partencentes à União Soviética compartilhavam
de uma dependência quase fisiológica de Moscou, ao ponto de adquirirem uma política externa declaradamente
periférica à União Soviética. A razão pela qual esses Estados permaneciam pro forma era justamente para manter
a possibilidade de vários votos para as causas soviéticas, o que no caso de um só pais, significaria só um voto, e
um poder de barganha reduzido.
108
Na prática, o Conselho nunca conseguiu por um fim à situação de conflito., tampouco impediu que
ambas as partes se tornassem potências atômicas.
44
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
em uso de força ou ataque armado, ao termo “ataque armado” ainda falta sua conceituação e
abre espaço para um país que tenha como ameaça um grupo guerrilheiro situado no
complacente (negligente) território vizinho a iniciar uma ofensiva contra este Estado, por
exemplo. A necessidade de tal conceituação é tão necessária quanto polêmica e difícil.
Classificar quais tipos de ações podem ser consideradas ataque armado é classificar em quais
situações a legítima defesa poderá ser invocada como justificativa bélica.
Como defendido na Carta, a legítima defesa é inerente, porém no texto da carta é
limitado (“... contra Membro das Nações Unidas”), deixando transparecer, contraditoriamente,
que a legitima defesa só será aceita se for por um membro das Nações Unidas, mesmo sendo
considerado um direito superior que deveria ser garantido a todos.
Um dos grandes problemas quando algum Estado alega de forma errada estar agindo
em legítima defesa, são as conseqüências instantâneas de suas ações. Uma ofensiva baseada
na legítima defesa pode ocasionar uma guerra desnecessária ou ainda um massacre ou outra
forma de injustiça sem reparações. Um agravante do problema é a extensão indevida das
conseqüências. Disposto no artigo, estas conseqüências podem perdurar por mais tempo que o
necessário, mesmo quando o Estado estiver agindo corretamente em legítima defesa. Podemos
observar isso em “Até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias
para a manutenção da paz e da segurança internacional”. Possibilitar que a legítima defesa de
um país estenda-se até o momento que haja intervenção do Conselho de Segurança pode abrir
espaço para o uso excessivo e não proporcional da força, como é garantido pela Legítima
Defesa. Estender uma ação militar até o momento em que seja discutida uma ação e iniciada
de forma eficaz pelo Conselho, mesmo que este tenha delegações a postos permanentemente
para tais casos, é estender o uso da força da legítima além da sua função de conter a ameaça
atual ou iminente.
Questões que a resolução precisa responder
A Comissão de Direito Internacional se reunirá em outubro próximo em Natal, Brasil,
para debater acerca da grande polêmica sobre a Legalidade do Ataque Preventivo. É
desnecessário ressaltar a importância do tema, e é imperativo que a Comissão se pronuncie a
respeito e dê uma resposta à comunidade internacional, nem que a resposta seja a manutenção
do impasse, em vistas de se evitar uma discussão apressada sobre um assunto tão crucial. A
resolução precisa clarificar diversos pontos polêmicos, dos quais sugerimos alguns a seguir:
•
A Legítima Defesa, tão assegurada pelo artigo 51 da carta da ONU, uma das exceções
ao uso da força legal, mesmo no quadro atual de uso abusivo de tal instrumento deve
ser considerado inerente e intocável a todos os membros?
•
O Instrumento da legítima defesa coletiva deve também ser aceito, mesmo podendo
ocasionar a desproporcionalidade do uso da força e ampliar o caráter político e não
jurídico desta ferramenta? Como seria regulamentada?
•
Ações anteriores que justifiquem a legítima defesa devem ser analisadas de que
forma? Pode existir uma classificação dos atos anteriores que são capazes de gerar a
faculdade da legítima defesa?
•
O conceito de “ataque armado” pode ser delineado com o intuito de definir quais
ações realmente são possíveis de levantar a faculdade da legítima defesa?
45
COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL
•
Como solucionar o problema da urgência de um ataque baseado na legítima defesa e a
sua real classificação como ataque justo?
•
Como evitar o uso abusivo do instituto da legítima defesa no atual cenário?
•
A prática atual no cenário internacional pode sugerir uma alteração no artigo 51 para
que não hajam tantas interpretações diferenciadas?
•
A ameaça constitui-se em possibilidade da legítima defesa? Se sim, qual tipo de
ameaça pode ser considerada um risco real a um estado que deseja realizar um ataque
anterior a agressão?
•
É o artigo 51 uma permissão para o uso antecipado da força ou uma interpretação
diferente (errada) que é feita na atualidade para justificar este uso?
•
A prática dos Estados autoriza o uso da legítima defesa antecipatória?
•
A evolução bélica – especialmente no tocante ao armamento biológico e/ou nuclear deve refletir nos limites da legítima defesa?
•
Estados de dimensões diminutas devem ter seus critérios de legítima defesa relaxados?
Estas questões não são obrigatórias, mas sim uma recomendação, e não visam
restringir o trabalho da Comissão. A Comissão deliberará sobre quaisquer questões achar
necessário, dentro do tema em tela. Contamos com o afinco e dedicação dos Especialistas da
Comissão, para que possam, com toda a criatividade necessária, desempenhar adequadamente
seus bons ofícios, de modo a trabalhar ativa e responsavelmente na construção do Direito
Internacional.
Mais informações
É importante reiterar que todas as considerações enumeradas neste documento são
apenas um ponto de partida. É imprescindível que o participante busque outras fontes de
pesquisa, aproveite a bibliografia elencada ao final do texto, e não se acanhe em contatar a
mesa diretora para solucionar suas dúvidas.
Felizmente a internet é um celeiro quase infindável de informação, então muitos fatos
que são somente citados aqui podem ser estudados mais a fundo. Porém é importante
distinguir o que é informação fidedigna, e quais websites veiculam informações imprecisas.
Sites como a Wikipedia são aceitáveis para buscar um pouco mais de informação sobre as
questões históricas aqui suscitadas, por exemplo, mas a informação jurídica mais precisa deve
ser procurada em revistas especializadas, ou nos sites das cortes, que em sua grande maioria
possuem material digitalizado e disponível na internet. Revistas como The Economist109 e
Revista Veja 110fizeram reportagens extensas sobre vários conflitos recentes, como Israel e
Líbano.
O sítio da Corte Internacional de Justiça mantém documentos sobre seus julgados,
incluindo os votos dos juízes. Recomendamos que especialmente os votos divergentes nos
109 Cujo website é www.economist.com
110 Cujo website é www.veja.com.br
46
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações
casos analisados sejam observados, por sua riqueza em opiniões variadas, que ajudam a
construir um julgamento crítico mais equilibrado.
Conclusão
“Quem crerá na justiça de sua guerra se ela é feita desmedida?”
(François de la Noue)
Independente do ordenamento jurídico, a legítima defesa é um instrumento de ga rantia
de direitos inerente, chegando a ser garantida no âmbito internacional. Porém, também
presente em todas as esferas jurídicas que se pode aplicar a legítima defesa, está abuso da
autodefesa.
Sendo assim, a legítima defesa torna-se um instrumento perigoso que depende
eminentemente de um ponto de vista para se tornar um ato de guerra ou de salvação.
Argumentos razoáveis existem de todos os lados, tanto defendendo quanto atacando as teorias
de legítima defesa interceptiva e antecipatória, como já citamos ao longo deste documento.
E no meio da celeuma internacional, cabe ao Direito propor definições justas e
independentes dos interesses políticos, como percurso para garantia da paz, segurança e
justiça.
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