Guia de Estudos - CDI - 2006
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Guia de Estudos - CDI - 2006
SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Carta de apresentação Caros especialistas! É com o maior prazer o orgulho que damo- lhes as boas vindas ao guia de estudos da Comissão de Direito Internacional da SOI 2006. Neste documento vocês encontrão linhas gerais sobre os dois temas que serão discutidos durante nossa sessão em outubro. Confiamos na sua dedicação e afinco, e sintam-se à vontade para contactar a mesa diretora para dirimir qualquer dúvida. Aproveitando o momento ainda informal, e buscando constratar com o clima deveras formalista do resto do documento, vamos agora nos apresentar de uma forma ligeiramente mais exótica que o usual. O mais velho do comitê, Wagner Artur Cabral, está em algum lugar entre o 8° e o 6° período do curso de Direito da UFRN, gosta de rock japonês, é fascinado por filmes que ninguém entende muito bem e, não raro, dorme de dia para pensar em planos de dominação intergalática no meio da noite. Freqüenta simulações da ONU desde o primeiro semestre do curso e diz que só vai parar quando causar uma guerra mundial pela segunda vez, já que a primeira não valeu. Em seguida temos Lucas Galvão de Britto, que cursa atualmente o 7° período do curso de Direito da UFRN, não tem superpoderes e nem voa, mas tenta diariamente desafiar as leis da natureza que estabelecem a duração do dia. Desnecessário dizer: sempre perde. Dia desses conseguiu empatar, mas o juiz mandou voltar. Já representou em simulações tanto Yasser Arafat quanto Ariel Sharon, fato a que se credita sua personalidade contraditória. O padawan Rochester Oliveira Araújo cursa o 4° período do curso de Direito da UFRN, dizem ser originário de Manchester, filho da casa de Winchester e está cansado de receber ligações no Natal que tratam sobre o consumo nada moderado de Chester. Gosta de malabares e outras atividades circenses, e jura que Rondônia não é tão longe assim. Sabe pescar, e faz eventual recurso ao humor negro. Priscylla Fernanda Araújo de Medeiros, atualmente cursa o 8° período do curso de Direito da UFRN, já foi apelidada de Heloísa Helena por sua tranqüilidade e paciência, é faixa preta em caratê – se duvidar apanha - e tem de se virar com esses três loucos no mesmo comitê que ela. Apesar de ter sofrido profundos abalos psicológicos no decorrer dos trabalhos preparativos, dizem que sua recuperação é certa... já os demais... Os temas em questão são complexos, e um trabalho de diplomacia criativa será muito importante para nosso sucesso. A capacidade de trabalhar de forma objetiva em equipe fará toda a diferença. Desta forma, agradecemos desde já a escolha por nossa companhia, e fazemos votos de boa jornada a todos. Sintam-se em casa, vamos aproveitar a oportunidade para aprender, discutir e fazer amigos. Sinceramente, Wagner Artur, Lucas Galvão, Rochester Araújo e Priscylla Dantas. Mesa Diretora da Comissão de Direito Internacional – SOI 2006 1 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL SOBRE A COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Antecedentes Criada em 1948, a Comissão de Direito Internacional – CDI – liga-se a Assembléia Geral da ONU e tem como objetivo a codificação do Direito Internacional Público (DIP), Direito Internacional Privado e do Direito Penal Internacional iniciando estudos e fazendo recomendações, destinando-se a: promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional e a sua codificação 1 . A CDI vincula-se a uma proposta não tão recente de organismos internacionais que vislumbravam a necessidade de uma maior orientação do direito na esfera mundial, tal processo seria alcançado através da codificação de resoluções e normas utilizadas no direito consuetudinário. A idéia de codificar o Direito Internacional não é nova, desde o Século XVIII surgem os primeiros movimentos para a codificação da norma consuetudinária internacional, por intermédio da pessoa de Jeremy Betham2 e de entidades privadas, várias sociedades de estudo do direito, bem como vários Estados passaram a desenvolver estudos com a finalidade de alcançar um denominador comum quanto os dilemas de proporções internacionais que o desafio da codificação colocava. Sobre codificação, já pensava Bentham, esta serviria como valioso instrumento à eliminação das incertezas ocasionadas pela ausência de um direito manuseado e, principalmente, a facilitação da aplicação dos Princípios Gerais do Direito no cenário internacional. Pode-se dizer, então, que foi com os estudos do filósofo inglês que o mundo passou a vislumbrar a possibilidade de materializar a existência de um Direito Internacional em código. Em termos reais, foi a partir de 1873 que o Direito Internacional passou a ter a comunidade jurídica voltada com o propósito de viabilizar sua concatenação, neste tempo podemos destacar as contribuições do Intitute de Droit Internacional, da International Law Association, e posteriormente em 1927 com a fundação do Harvard Institute for Research in International Law. Antes de fundação do Instituto de Harvard, pode-se ainda destacar as contribuições feitas pelo Congresso de Viena (1914 – 1915), onde foram emitidos relatórios sobre o regime internacional dos rios, os tratados de abolição de escravidão. Foi a partir de tal Congresso que diplomatas passaram a se reunir em conferências sobre questões dos mais diversos assuntos desde tratados de guerras em terra e mar, passando pela pacificação e resolução de disputas, mais ainda pela unificação do Direito Internacional Privado, pela proteção intelectual, da 1 NAÇÕES UNIDAS, Organização das. Carta da Organização das Nações Unidas. Artigo 13. 1.a. 2 Em seus princípios de Direito Internacional (escrito entre 1786-1789), Bentham previu que um código internacional, que deveria ser baseado na aplicação de seu princípio da utilidade às relações internacionais, não falharia em prover um cenário de paz eterna. Contudo, o próprio filósofo fez pouco para implementar seus planos em conformidade com o direito existente entre as Nações. NAÇÕES UNIDAS, Comissão de Direito Internacional. Sítio Eletrônico. Disponível em: <http://www.un.org/law/ilc/>. Acesso em: junho de 2006. 2 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações regulação dos serviços postais e telecomunicações, a regulamentação da navegação marítima e aérea e varias outras questões concernentes a áreas sociais e econômicas 3 . E, Embora, muitas destas conferências tenham sido eventos isolados com problemas particulares aplicados muitas vezes a casos geograficamente isolados, o fato de elas existirem resulta de um esforço dos Governos em discutir e desenvolver o direito através de multilaterais convenções e sucessivas conferencias internacionais. Foi desta forma o inicio da codificação e principalmente da discussão sobre a existência de um Direito Internacional, a qual todos os Estados ficaram interligados tendo de forma única uma pacificação diante de fatos ocorridos em diversos pontos do mundo. Então a partir da criação da Assembléia da Liga das Nações de 1924 e do comitê 4 chamado de Comitê de Expertos para a Codificação Progressiva do Direto Internacional que a base estrutural do que hoje e a Comissão de Direito Internacional foi formada. Esse comitê era formado por dezessete especialistas que se uniram para questionar a viabilidade e a realização da codificação do Direito Internacional. Assim, três anos após a primeira reunião surgiu um novo encontro no qual se visou à discussão dos tópicos: nacionalidade, águas territoriais e a responsabilidade do Estado com a pessoa do estrangeiro. Embora só tenha sido discutido o tópico sobre a nacionalidade, esta deflagrou na formulação de importantes considerações para a criação e desenvolvimento do Estatuto 5 da Comissão de Direito Internacional . Competências e procedimentos A partir do Estatuto se tem evidenciados o objetivo e a sistematização da CDI como também de sua importância no quadro de elaboração do DIP e demais ramos do direito, anteriormente citados. Dessa 1º e 2º ter a Internacional Internacional Internacional forma, no que concerne ao objeto material da Comissão, preconiza o art. 1º §§ mesma por objetivo a promoção do desenvolvimento progressivo do Direito e a sua codificação, devendo interessar-se primeiramente com o Direito Público, não devendo furtar-se de versar também sobre questões de Direito Privado. Fazendo uso desta prerrogativa conferida no art. 1º § 2º, a Comissão passou a se questionar sobre sua atuação no campo do Direito Internacional Privado, uma vez que ate meados dos anos 90 tinha atuado majoritariamente no campo do DIP, o que acarretou na união a órgãos como Comissão das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional UNCITRAL e a Conferência de Haia sobre Direito Internaciona Privado 6 em projetos desenvolvidos por tais. Todavia, não há como desassociar a CDI do Direito Internacional Público uma vez que essa foi e sempre será o motivo pelo qual esta existe. 3 Vide, a respeito, A/AC.10/5, “Historical survey of the development of international law and its codification by international conferences”; E A/AC.10/8, “Outline of the codification of international law in the inter-American system with special reference to the methods of codification”. 4 League of Nations, Official Journal, Special Supplement, No. 21, p. 10. (COMISSÃO 2006) 5 Vide o Estatudo da Comis são de Direito Internacional, disponível em inglês no endereço: <http://www.un.org/law/ilc/texts/statueng.htm>. 6 Ver Yearbook of the International Law Commission, 1996, vol. II (Part Two), para. 155. 3 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Neste mesmo diapasão, o Estatuto faz ainda a distinção entre o progressivo desenvolvimento, que significa a preparação de projetos de convenções que sejam esboços, e a codificação propriamente dita, que pode ser entendida pela maior precisão na formulação e sistematização das regras de Direito Internacional naqueles Estados que efetivamente já as praticam, possuem precedentes ou ainda, as tem em doutrina (art 15 do Estatuto da CDI). O Estatuto estabelece ainda que o projeto de convenção deve ser submetida a Assembléia Geral, que ira decidir sobre os próximos passos a serem adotados para a conclusão de uma resolução internacional, que será escolhida dentre duas possibilidades: (1) a publicação dos relatórios emitidos pela Comissão; (2) ou não serem adotados, consoante o artigo 23 § 2º do Estatuto 7 . Outra atribuição da Comissão é trabalhar como órgão consultivo da ONU em questões que envolvam Direito Internacional. Para tanto, a Comissão produz relatórios, que, embora não tenham caráter normativo, possuem importante valor na interpretação e definição das normas costumeiras e positivadas. A metodologia utilizada é a mesma tanto para os projetos de convenções quanto para os relatórios, designando um relator especial para cada tópico, o que será mais esmiuçado a seguir. A partir da escolha de um tema relevante um plano de trabalho é formulado pelos membros da CDI, sendo elaborado um relatório pelo relator especial baseado nas propostas de convenção provisória, após tal procedimento é submetido para apreciação da Assembléia Geral e também as Estados para que estes façam suas ponderações por escrito. Passado a fase de ponderações, será o relator especial o responsável por organizar toas as idéias formulando um documento único o qual será submetido para a apreciação final as Assembléia Geral. Nesta SOI, simularemos a confecção de um (ou dois) relatórios sobre os temas previstos em nossa Agenda. Tais relatórios devem se basear nos costumes e normas de direito internacional já existentes, contendo recomendações para a interpretação dos mesmos e sugestões para a sua melhor aplicação diante dos problemas que decorrem de sua aplicação (ou mesmo da falta dela). Membros Em sua composição, a Comissão de Direito Internacional é formada por 34 membros, eleitos pela Assembléia Geral para um mandato de 5 anos. Esses membros são considerados em suas individualidades, jamais como representantes de paises, pois é necessário que esses tenham reconhecido saber jurídico que se reportam as regras de direito internacional. A maior parte da comissão participa na produção de convenções que versam sobre importantes tópicos de direito internacional, a intenção não deve jamais ser o interesse individual de um Estado, mas sim o desenvolvimento e o comprometimento do mundo para questões que aflijam a coletividade. 7 Article 23 2. Whenever it deems it desirable, the General Assembly may refer drafts back to the Commission for reconsideration or redrafting. 4 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Como forma de estimular a pluralidade dos debates e garantir maior realismo à nossa simulação. Sugerimos aos delegados que, filiados aos países como o foram no ato de inscrição, procurem investigar qual o perfil cultural do país que “representa”. A pluralidade de membros na Comissão é o instrumento pelo qual se fazem representar os diferentes ordenamentos e culturas jurídicas que devem ser combinados na formulação de um direito internacional plural e consonante com os propósitos universais das Nações Unidas. TEMA A: RESERVAS EM TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS Um preâmbulo Particularidades culturais, religiosas, políticas, econômicas e sociais, fazem de cada Estado um cenário ímpar, dotados de temas, interesses e conflitos próprios. Ao mesmo tempo, vivemos uma época na qual o avanço em ritmo frenético dos meios de comunicação, dos transportes e do comércio internacional transformam o que antes eram ilhas apartadas em uma verdadeira aldeia global. Logo, com o avanço das relações entre as pessoas e Estados numa escala supra-estatal surge a necessidade do Direito alcançar tal progresso: numa sociedade global, precisamos de um direito global8 . Porém, como conciliar aquelas particularidades de cada povo com a pretendida abrangência universal da norma? Solver esta questão não foi nada fácil, sobretudo quando se trata de direitos humanos, pois, como a própria denominação reconhece, são direitos inerentes à todos pela simples condição de serem humanos. Pode-se dizer que, quanto ao reconhecimento e proteção desses direitos na esfera internacional, não se observou, em mesma medida do clamor da sociedade internacional, a manifestação positiva por parte dos Estados. Mas de que adiantaria um sistema internacional sem a participação ativa dos Estados? A solução encontrada para tanto, quando da elaboração de normas internacionais, são as reservas aos tratados. Uma reserva, segundo o art. 2° (d) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 significa: [...] uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado. Através dessa flexibilização da norma internacional, o Estado poderia criar condições de ratificar o tratado, sem que isso criasse conflitos com seu ordenamento interno e traços culturais que poderiam impossibilitar a implementação daquele tratado 9 . 8 Numa referência direta aos ensinos clássicos, tomemos o brocardo “Ubi jus, ibi societas” que reflete bem a questão. O Direito deve estar onde a sociedade está, este é um pressuposto desta (REALE, 1998, p. 32). Assim, caberia ao Direito reger as relações da sociedade onde quer que ela esteja, seja isso a nível local ou internacional. 9 Parece oportuno frisar que, quando tratamos de Direito Internacional Público, em que não há um Estado mundial e centralizado, com um poder legislativo comum, capaz de formular normas aplicáveis imediatamente à totalidade dos Estados, predomina a noção do Livre Consentimento, ou princípio do consentimento, o qual afirma que nenhum Estado pode ser considerado parte de um Tratado se não o desejar e 5 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Na visão mais crítica de Jan Klabbers, as reservas carregam consigo a promessa de conciliar os interesses distintos de Estados com aqueles da comunidade internacional no geral realizando assim um verdadeiro “truque de mágica” comparável aqueles do famoso Houdini, “obrigando o Estado sem de fato obrigá-lo integralmente”10 . As reservas, então, são uma anomalia quando consideradas sob o prisma da integridade da norma, mas seriam elas um mal necessário? É preciso sempre a flexibilização de determinadas exigências da norma para que ela possa ser aceita? O direito de se reservar quanto ao cumprimento de determinada cláusula deve ser preservado em todas as circunstâncias? Em estudos recentes, mais abertamente a partir da segunda metade da década de 1980, alguns teóricos11 tem apontado soluções que têm gerado muita controvérsia, sobretudo quando o tema em questão são aqueles direitos tidos como fundamentais à pessoa humana: os direitos humanos. Tais direitos seriam diferenciados, pois não refletem mais a tradicional e clássica imagem dos tratados-contratos bilaterais entre Estados; ao contrário, carregariam em seu corpo outras obrigações, mais assemelhadas àquelas do Contrato Social proclamado pelos Iluministas franceses, já que tratariam de garantias que o Estado deve dar aos seus cidadãos como forma de legitimar sua soberania com base no princípio da auto-determinação dos povos. Tal entendimento tem sido acatado em recentes decisões de Cortes Internacionais de Direitos Humanos, como por exemplo as decisões da Corte Européia de Direitos Humanos nos casos Belilos x Suíça, Weber x Suíça e Louizidou et alli x Turquia. Além dessas decisões, os órgãos de monitoramento de tratados têm produzido relatórios nesse sentido, conclamando os Estados a retirarem suas reservas12 . A pub licação de tais decisões e a reação advinda tem reacendido o debate acerca dos efeitos e critérios para a admissibilidade das reservas sobre os tratados internacionais relacionados a direitos humanos, que acabou por retornar a pauta da Comissão desde 1997. É precisamente este o tema que trataremos nas páginas que seguem e nos dias 11 a 15 de outubro de 2006. Duas concepções em conflito: um breve histórico sobre a questão das reservas e a prática internacional O acirrado debate doutrinário e prático quanto aos efeitos e admissibilidade de reservas não é novo. Ainda antes da segunda guerra mundial, quando a Liga das Nações (LN) explicitar sua vontade através do instrumento de ratificação – ou adesão. Tal conceito será indispensável à compreensão deste texto. 10 KLABBERS, Jan. On Human Rights Treaties, Contractual Conceptions and Reservations. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p.148. 11 Nesse sentido, vide os trabalhos de Ineta ZIEMELE, Percy MacLean, Göran Melander, Jörg Polakiewicz, e Ulf Linderfalk, todos contidos em ZIEMELE, Ineta (Org.), Reservations to Human Right Treaties and the Vienna Convention Regime, Conflict, Harmony or Reconciliation. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. 12 Como faz o Comentário Geral 24 do Comitê de Direitos Humanos 6 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações e a União Pan-Americana (UPA) 13 figuravam entre as principais organizações internacionais, já se discutia se era preferível manter a integridade dos tratados, ainda que para isso fosse necessário sacrificar a sua abrangência – opinião defendida pela LN; ou, se ao contrário, deveria ser defendida uma visão mais flexível acerca da possibilidade da elaboração de reservas, acreditando em seu potencial para a promoção da universalidade e questionando a eficácia de obrigações demasiadamente profundas a nível internacional – ponto de vista preferido pela UPA. Como será brevemente demonstrado adiante, essa mesma discussão sobre as reservas, seus efeitos e validade, assumiu diferentes formas em diferentes momentos históricos, porém todo o debate acerca da questão é reflexo de outra discussão ainda maior: “o que é um tratado?”. Tratados de Direitos Humanos: Contratos x Elementos de Ordem Pública Como colocado, a discussão sobre o tema das reservas aplicadas aos tratados de direitos humanos tem por base outra discussão ainda maior quanto à natureza dos tratados: deveriam esses serem interpretados por uma visão contratualista, na qual os Estados contratam entre si cláusulas, na base da barganha, formulando acordos aplicáveis entre eles? Ou, sob outro enfoque, seriam os tratados, mais especificamente aqueles que versam sobre direitos humanos, normas de formadoras de uma ordem pública multilateral e, por isso, insuscetíveis de exceções? O debate sobre essa natureza e suas repercussões bem como a interpretação das reservas nos tratados nos remete ao final dos anos 40, mais precisamente, 1949, quando a recém-criada Comissão de Direito Internacional (adiante Comissão ou CDI) produzia seu primeiro relatório sobre o Direito dos Tratados 14 . Àquela época, o relator J.L. Brierly tratava do problema das reservas propostas em face da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que em seu texto previa um mecanismo compulsório de solução de conflitos entre as partes (Artigo IX), elegendo o foro da Corte Internacional de Justiça (adiante CIJ). Pode-se afirmar que, a partir daquela reunião consolidou-se uma tendência – vigente à época – de encarar os tratados como contratos, ou seja, seriam pactos firmados entre os Estados para a proteção de um interesse comum 15 . No entender do relator Brierly, por possuírem tal característica, os tratados poderiam admitir reservas, posto que estas seriam parte integrante do processo de negociação e conclusão do texto do Tratado. Tal tendência contratualista fora reafirmada pela opinião consultiva da CIJde maio de 1951, sobre a mesma Convenção sobre o Genocídio, que decidiu que seriam permitidas reservas quando o tratado silenciasse sobre o tema desde que não fossem contrárias ao objeto 13 Em tempo, a primeira é considerada por alguns como antecessora da atual Organização das Nações Unidas, a segunda é tida como precursora da Organização dos Estados Americanos. 14 Tanto es se relatório como todos os outros da Comissão podem ser acessados em inglês através de seu site em <http://untreaty.un.org/ilc/publications/yearbooks/yearbooks.htm>. Especificamente este que citamos consta nos anais da segunda sessão, de 1950, mais precisamente nos registros do 49º encontro. 15 KLABBERS, Op. Cit., chega a enfatizar o papel que as comparações de procedimentos dos tratados com as normas contratuais do Direito Privado exerciam nas discussões da CDI até finais da década de 1960, quando Yepes pergunta se realmente seriam os tratados multilaterais um amontoado de obrigações bilaterais ou um cenário muito mais complexo de obrigações que não poderia ser compreendido por uma ótica contratualista. Infelizmente, ele não chegou a desenvolver mais profundamente essa idéia. 7 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL e o propósito do tratado 16 . Um pouco mais além que o relatório fornecido pela Comissão, a CIJ avançou na discussão e definiu, além do requisito formal (que o tratado, em seu corpo, não vedasse as reservas), um critério subjetivo e material para a admissibilidade de uma reserva: a cláusula implícita do objeto e propósito. O debate sobre as reservas embora tenha sido assunto recorrente na Comissão, salvo por alguns raros e isolados lampejos que não foram muito trabalhados, pouco avançou, mantendo-se um enfoque contratualista e discutindo-se a questão com base no dilema: universalidade vs. integridade 17 . Dentro dos debates nesse dilema, que nada mais é do que uma variação daquele primeiro conflito tratado, aqueles que defendem a universalidade e apresentam suas idéias quase sempre sob o ponto de vista contratualista, costumam considerar as reservas como um mal necessário: imperiosas para atrair Estados, mas malignas em sua tendência de enfraquecer os regimes dos tratados, especialmente aqueles que traçam padrões de Direitos Humanos. As reservas seriam, então, na concepção universalista, o elemento necessário para suprimir a falta de acordo político entre os Estados, a fim de que se conclua o tratado, mesmo com alguma divergência entre as partes. Tal processo, é inegável, funciona de maneira muito mais prática quando considerada sobre um ponto de vista contratualista e de relações bilaterais entre os Estados. Tais idéias viriam a influenciar muito os membros da Comissão nos trabalhos que mais tarde resultariam no texto de uma convenção geral sobre Direito dos Tratados. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 Com a predominância da visão contratualista – e preponderância da universalidade como objetivo do tratado, surgem, a partir de vários relatórios e recomendações da CDI, a primeira convenção sobre direito dos tratados 18 , a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 (CVDT), apontada como o principal diploma sobre o tema em vigor 19 . Após a repercussão da Opinião Consultiva sobre a Convenção sobre Genocídio da Corte Internacional de Justiça, e atendendo a recomendações da Assembléia Geral e a prudência dos membros da própria Comissão, a CDI, em suas propostas para a elaboração para a CVDT, sugeriu a adoção de um regime de reservas aplicável a todos os tratados que 16 A íntegra da opinião pode ser lida, em inglês, no endereço eletrônico: <http://www.icjcij.org/icjwww/idecisions/isummaries/ippcgsummary510528.htm>. 17 KLABBERS, Op. Cit., p. 181, com a ironia que lhe é típica, diz que este debate em nada contribui para o avanço da questão, pois é tão inócuo quanto discutir sobre maçãs e laranjas. 18 Trata-se da primeira convenção a nível global, isto porque em 1928 fora elaborada a Convenção de Havana sobre Direito dos Tratados, tendo esta escopo regional, mas sido adotada como norma geral costumeira de direito internacional. O próprio texto de Viena sofreu modificações em 1986, conservando quase que a integridade de seu conteúdo e acrescentando às Organizações Internacionais como pessoas capazes de concluir tratados. 19 A CVDT, embora date de 1969 só entrou em vigor em 1980, quando conseguiu o número mínimo de ratificações previsto para sua vigência. Uma cópia, em português, de seu texto pode ser encontrada em: <http://www.unifacs.br/revistajuridica/legislacao/marco_2006/Conven%C3%A7%C3%A3o%20de%20Viena%2 0sobre%20o%20Direito%20dos%20Tratados.doc>. 8 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações não dispusessem expressamente sobre o tema. Tal idéia foi aceita pelos Estados que concluíram o referido tratado e consta atualmente nos arts. 19 a 23 do texto da Convenção 20 . Além de oportuno, é por demais importante frisar o caráter subjacente da CVDT, posto que suas disposições não se devem a suplantar os regimes traçados pelos Tratados, mas sim, devem atuar como uma rede de segurança, para que os espaços que sejam eventualmente descobertos pelas provisões de um determinado tratado, sejam estes ocasionados por uma omissão de seu texto ou mesmo por descuido de seus elaboradores, não coloquem em perigo os Estados. Assim, é perfeitamente lícito aos Estados quando da conclusão de um tratado incluir em seu corpo cláusulas que vedem ou restrinjam o direito de fazer reservas 21 . O caso Belilos vs. Suíça e sua repercussão Conforme exposto anteriormente, o intuito da CVDT era pacificar o debate sobre controvérsias a respeito do Direito dos Tratados e, de fato, logrou êxito pelo menos até a segunda metade da década de 1980. Impulsionado pela entrada em vigor dos dois principais Pactos de Direitos Humanos 22 na década de 1970 e toda a transformação de concepções nesta área na seara internacional, o mundo se direcionava para a criação de um sistema legal e jurídico de proteção desses direitos. Surgem, nesse mesmo período, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos (com destaque para os sistemas Interamericano e o Europeu, dotados, inclusive, de verdadeiras cortes internacionais especializadas na matéria). A proteção internacional dos direitos humanos passava, portanto, por um segundo momento, uma vez que, após ter fornecido as normas que serviriam de base para sua interpretação, era tempo de elaborar mecanismos jurídicos para a realização daqueles direitos inscritos num primeiro instante. Foi então que as discussões sobre Direito Internacional dos Direitos Humanos alcançaram um novo patamar: os casos concretos. As declarações, os pactos, as normas, passaram a ganhar vida diante desses casos que eram submetidos às cortes e aos comitês de monitoramento de tratados. Dessa forma, muitos direitos saíram da frieza das palavras com que são descritos nos tratados e, após – e porque não durante – a análise e julgamento dos casos, ganharam nome, sobrenome, idade, sexo, sofrimentos, sentimentos, esperança e liberdade. Se por um lado a criação desses mecanismos de acompanhamento e cumprimento da normativa internacional trouxe consigo a promessa de efetividade ao Direito Internacional dos Direitos Humanos (adiante DIDH), não se pode dizer que teve total êxito em sua tarefa – diga-se nada fácil. Ao mesmo tempo em que as cortes iam proferindo suas decisões, expôs-se a fragilidade da própria normativa internacional, repleta de lacunas, ocasionadas não apenas 20 Para facilitar a consulta a esse importante texto normativo, um excerto com as mencionadas cláusulas está acostado ao final deste Guia de Estudos como Anexo I. 21 O próprio texto da Convenção reconhece em seu art. 19 o caráter subsidiário de seu regime de reservas ao limitar as reservas àquelas que não sejam proibidas pelo tratado, como se observa das alíneas a e b. 22 A saber, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais 9 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL pelas poucas ratificações de determinados Estados aos tratados 23 mas, principalmente, pelo excesso de reservas aos tratados de direitos humanos. Este panorama, assim como esfriou os ânimos dos entusiastas de um sistema universal de proteção aos direitos humanos expondo a dificuldade em tratar de direitos universais num mundo ainda por universalizar-se, despertou um movimento contrário em alguns intelectuais. Exemplo deste grupo foram os magistrados da Corte Européia de Direitos Humanos que, em 1988, durante o julgamento de um caso que se tornaria emblemático para a história do DIDH, desconsiderou as reservas feitas pelo Estado suíço à Convenção Européia de Direitos Humanos, aplicando ao caso concreto as provisões originais do tratado. Resumidamente, pode-se dizer que fizeram história ao fundamentar tal entendimento no caráter de ordem pública do qual são dotados os direitos defendidos na Convenção Européia de Direitos Humanos 24 . As idéias desencadeadas pela decisão da Corte Européia passaram a ser então denominadas corrente da severabilidade, ou, na sucinta definição de Bruno Simma 25 : Strasbourg approach (algo como “abordagem de Strasburgo”) 26 . Contudo, o precedente aberto era significativo e perigoso aos interesses de muitos Estados, isto porque é sabido que as Cortes e Comitês encarregados do monitoramento de tratados e convenções de direitos humanos costumam intercambiar de maneira muito freqüente – e eficiente – seus entendimentos e jurisprudência com vistas a aperfeiçoar suas práticas 27 . Exemplo da expansão deste pensamento foi o Comentário Geral n° 24 de 1994 (CG24) 28 , elaborado pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas 29 , o qual, na esteira da decisão do caso Belilos x Suíça, afirmou: Reservas que ofendam normas peremptórias não devem ser compatíveis com o objeto e propósito do Pacto [Internacional de Direitos Civis e Políticos]. Embora tratados que sejam meras obrigações entre Estados permitam-nos reservar [determinadas provisões] inter se a aplicação de normas gerais de direito internacional, o mesmo não ocorre com tratados de direitos humanos, posto que estes são para o benefício de pessoas contidas em sua jurisdição. 23 Dado o grande número de ratificações dos principais tratados que integram a chamada Carta de Direitos Humanos, as reservas parecem ter cumprido, e bem, seu papel de incentivadoras da universalidade da norma internacional. 24 O texto completo da decisão pode ser encontrato em: <http://www.worldlii.org/eu/cases/ECHR/1988/4.html>.Vide também sobre o mesmo assunto, o texto de POLAKIEWICZ, Jörg. Collective Responsibility and Reservations in a Common European Human Rights Area. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. pp. 130-132. 25 SIMMA, Apud. BARATTA, 2000, p.2. 26 O entendimento da Corte Européia foi reiterado quando do julgamento dos casos Weber x Suíça e Louzirou et alli x Turquia. 27 Sobre isso trataram CARVALHO, 1998, pp. 47 e ss., bem como RAMOS, 2001, pp. 49 e ss. 28 A íntegra do texto do Comentário Geral 24 pode ser encontrada <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>. 29 em: O Comitê organiza relatórios periódicos que devem conter informações sobre o cumprimento e proteção dos direitos assegurados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, contendo em seu corpo além de relatórios de suas investigações in loco, recomendações aos Estados para que os mesmos possam garantir maior efetividade aos direitos que se propõem a realizar. A íntegra do texto do CG24 pode ser lida em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>. 10 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Na mesma esteira, as provisões do Pacto [Internacional de Direitos Civis e Políticos] que representem normas costumeiras de direito internacional (e a fortiori possuem o caráter de normas peremptórias) não podem ser objeto de reservas30. Em resumo, Martin SCHEININ membro do Comitê de Direitos Humanos à época, diz que o CG24 está alicerçado em dois pontos-chave: (a) estipula a competência do Comitê especializado – no caso o Comitê de Direitos Humanos – para considerar a validade de uma reserva e; (b) afirma a doutrina da severabilidade como aquela aplicável aos casos em que uma determinada reserva seja considerada inválida pelo comitê31 . Como era de se esperar, a elaboração de tal documento desencadeou indignação por parte de muitos Estados que replicaram ao Comitê alegando, genericamente, que tal política de se proclamar como órgão legítimo para considerar a validade de uma reserva e determinarlhe as condições de sua aplicação invadia a competência natural dos Estados de se autoregularem, ferindo frontalmente o princípio do Livre Consentimento 32 . Pode-se dizer, de maneira geral, que o CG24 não rompeu com a ordem vigente sobre as reservas, mas por outro lado, expôs algumas das fraturas existentes entre o tratamento desejado pelas cortes e comitês aos tratados de direitos humanos e as provisões contidas em Viena 33 : de um lado, uma visão eminentemente contratualista, na qual os tratados são sempre negociações bilaterais entre os próprios Estados e somente eles, por serem as partes do tratado, poderiam dispor sobre a validade e os efeitos das reservas; de outro, a idéia de que as normas de direitos humanos constituem elementos de ordem pública, obrigações dos Estados não entre si, mas para com seus cidadãos, elementos de um contrato social que lhes assegura a legitimidade necessária ao exercício da soberania... contrato x ordem pública, bilateralismo x multilateralismo, universalidade x integridade, os pontos de debate se repetem, com nova roupagem, elementos e personagens, mas... e as respostas? Poderão elas também ser novas? Elementos doutrinários para um debate De onde – e quando – estamos, algumas questões se mostram como as mais importantes e necessitadas de respostas: se reservas são uma realidade e uma necessidade, quem pode aceitá-las? e quais os efeitos de uma reserva inválida?. A estas perguntas dedicaremos esta sessão fornecendo alguns elementos para sua melhor compreensão e elaboração de respostas. 30 COMITÊ de Direitos Humanos. General Comment N° 24. Genebra, 1994. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/69c55b086f72957ec12563ed004ecf7a?Opendocument>. Acesso em: julho de 2006. Par. 8. Tradução nossa. 31 SCHEININ, Martin. Reservations by States under the ICCPR and its Optional Protocols. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. pp. 42-43.. 32 Alguns exemplos destas reações podem ser encontrados nos comentários de Estados Unidos da América (vide nota infra 37), Reino Unido (ambos disponíveis em A/50/40) e, França (A/51/40). 33 Op.Cit., p. 41. 11 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Da validade das reservas Sabido é que as reservas carregam consigo a possibilidade de firmar acordos onde as diferenças entre os ideais das Nações impossibilitariam a formação de um interesse comum 34 , mas não existiriam limites ao direito de reserva dos Estados? Se existem, pode-se distinguir entre dois grupos de reservas: as válidas e as inválidas. Para discorrer sobre essa diferenciação, o primeiro cuidado o qual se deve é como determinar quais as condições necessárias à admissibilidade da reserva. A CVDT nos fornece bases para iniciar este assunto em seus arts. 19 a 21. Pela leitura simples e superficial do diploma, nos deparamos com um mecanismo em que são válidas as reservas desde que não sejam contrárias ao objeto e propósito nem proibidas pelo texto do tratado. Elas podem ser objecionadas e, desse ato, pode decorrer conseqüências que afetem a aplicabilidade e validade do tratado entre os Estados reservante e objetor. O modelo ali traçado que descrevemos em linhas exageradamente gerais possui algumas particularidades que são facilmente visíveis: baseia-se numa ótica contratualista, na qual a reserva é considerada um elemento de barganha entre os Estados na conclusão de tratados e, num enfoque mais amplo, considera o tratado multilateral como um amontoado de relações bilaterais, ou seja, cada objeção só faz sentido e mostra seus possíveis efeitos – quais sejam tornar inaplicável a cláusula reservada ou o tratado como um todo – dentro daquela relação bilateral entre o reservante e o objetor. A validade de uma reserva, nos moldes estritos do texto da Convenção é afirmada ou pela não objeção de nenhum Estado doze meses após a sua notificação da entrada em vigor para o reservante, ou, pela aceitação expressa daquela reserva. De acordo com este tratado, o limite do direito de reserva é traçado pelo acordo de vontades entre os Estados-partes. Contudo, a criação e o trabalho de interpretação das cortes e comitês de acompanhamento de tratados tem colocado algumas questões a mais neste processo. A sua inserção como atores importantes também envolvidos na proteção internacional dos direitos humanos permitiu a entrada no jogo de interesses de novos pontos de vista, os quais podem influir de maneira significativa na interpretação de alguns conceitos-chave da CVDT, principalmente, ao definir com bases mais jurídicas que políticas 35 qual o objeto e propósito da norma36 e seus efeitos na interpretação de um determinado tratado. A prática destes mecanismos internacionais estaria, pode-se assim dizer, transformando o leque interpretativo do sistema de Viena e acenando para modificações na maneira como se processa a elaboração e a declaração de validade de uma reserva. O Comentário Geral 24 do Comitê de Direitos Humanos – assim como os reflexos desse trabalho nos documentos de outros comitês de acompanhamento e cortes internacionais – tem se mostrado revelador dessa tendência.o 34 De fato, is so foi afirmado também, em outras palavras, pela Opinião Consultiva da Corte Internacional de Justiça sobre as Reservas à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. 35 Esse processo de despoliticização foi muito percebido nas sessões da Comissão de Direito Internacional de 1962, segundo KLABBERS, Op. cit., p. 167, “essa tentativa de despoliticização é claro longe de ser surpreendente, apenas porque a CDI vê (ou pelo menos viu) como seu dever formular projetos de instrumentos normativos [...] e porque juristas internacionais geralmente têm uma tendência de tentar e despoliticizar as coisas”. 36 Já foi anteriormente mencionado que um dos pontos basilares do CG24 foi o de atribuir ao Comitê a competência para determinar quais reservas seriam compatíveis com o escopo do tratado ou não. 12 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Some-se ao trabalho dos órgãos de monitoramento a idéia da exigibilidade compulsória de certos direitos humanos que carregam consigo a marca de normas peremptórias37 . Assim, mesmo quando a previsão do direito é inexistente ou o Estado não a ratifica ou até mesmo se reserva quanto ao seu cumprimento, ele ainda está obrigado àquela regra pela norma geral de Direito Internacional consueto et seruanda. Diante do avanço da norma costumeira que incorpora um número cada vez maior de direitos fundamentais em seu rol de jus cogens, não parece estranha a afirmação de que a ordem estabelecida em Viena começa a ser “invertida”, pois agora, com a compulsoriedade de determinados direitos, a ausência de uma objeção passa a não mais significar que a reserva é compatível com o objeto e propósito do tratado38 . O papel que o uso internacional pode desempenhar como elemento formador de uma norma costumeira parece ser o principal mecanismo na tentativa de harmonizar as disposições de Viena às novas exigências que o avanço da doutrina e prática tem colocado, especialmente no campo de Direitos Humanos. É por demais importante que se considere sua importância para a formulação de novos – ou seriam reciclados – padrões de admissibilidade das reservas. Mas poderia se observar a formação de um uso comum aos Estados quanto ao processo de certificação de validade de reservas? A resposta ainda é incerta. a) Teriam os tratados de Direitos Humanos um caráter diferenciado? Muito já foi argüido que as normas de Viena encontram problemas quanto ao seu tratamento com os tratados de direitos humanos devido às características especiais das quais estes são dotados. Mas que natureza especial é essa? Num pequeno, porém necessário, exercício de digressão, observemos o processo de formação do que hoje consideramos direitos humanos. Sabido é que esses direitos não são imutáveis, definíveis num determinado rol e cristalinizados, ao contrário, são fruto de um processo histórico e, como tal, deve m harmonizar-se às necessidades e valores da época em que são exercidos 39 . Porém, os anos demonstram, desde a Revolução Francesa do final do século XVIII, que a evolução de tais direitos, ao mesmo tempo em que é gradativa, se processa de maneira cumulativa. Existe um acervo de direitos que se amplia com o passar dos anos, tanto em número como em abrangência de aspectos da vida: eram antes apenas as liberdades individuais, depois políticas, seguidas pelas sociais, as econômicas, após o próprio direito ao desenvolvimento... Da mesma forma, os mecanismos utilizados para se auferir o cumprimento e a responsabilidade do Estado têm evoluído consideravelmente em relação àqueles idealizados em 1762 por Rousseau em seu Contrato Social. Passando pelas Cortes Constitucionais 37 Os direitos tidos como jus cogens – ou normas peremptórias na linguagem adotada pelo CG24 – são aqueles cujo costume internacional elencou como indispensáveis e cogentes mesmo quando não exista um dispositivo normativo específico que regule tal direito. Exemplo desse tipo direito é o próprio crime de Genocídio, consolidado pelo costume dos Estados como uma conduta passível de reprovação e punição pela sua natureza. 38 SIBERT-FOHR, Anja. The Potentials of the Vienna Convention on the Law of Treaties with Respect to Reservations to Human Rights Treaties. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p. 208. 39 RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em Juízo. São Paulo: 2001, Max Limonad. P.32. 13 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL nacionais, alcançando o plenário político das Organizações Internacionais e posteriormente buscando a eficácia desses direitos através da criação de Comitês especializados no monitoramento dos diversos tratados internacionais e Cortes Supranacionais Regionais para o julgamento de casos concretos de violação desses direitos. É inegável que a valorização dessa categoria de direitos é resultado do avanço de mentalidade, muito atrelado em termos históricos e conceituais ao desenvolvimento da história constitucional dos países, visto que é dever de toda Carta exemplificar e proteger certas garantias fundamentais – em outros termos, os próprios direitos humanos, de cujo respeito deriva a legitimidade do Estado para governar seu povo. Tal aproximação conceitual, aliada a certos princípios como a não tipicidade dos direitos fundamentais e a alçada da proteção destes direitos a um nível global, tem resultado na idéia de que, assim como as garantias constitucionais encontram um patamar privilegiado nos ordenamentos internos, os tratados de direitos humanos, por tratarem de conteúdo semelhante, devem também ser considerados sob um enfoque diferenciado, que os privilegie sobre outros tipos de direitos no cenário internacional. Evidência dessa idéia foi o relatório da hoje extinta Comissão Européia de Direitos Humanos no caso Temeltasch x Suíça, em que este órgão afirmou que a Convenção Européia de Direitos Humanos “teria natureza específica” e estaria direcionada “a estabelecer uma ordem pública comum às democracias livres da Europa”40 . A idéia de que os tratados de direitos humanos constituiriam uma ordem pública – quase que Constitucional – no direito internacio nal, também é afirmada, em outras palavras, por41 , como um dos fatores que impulsionaram a internacionalização dos direitos humanos42 . Segundo ele, o movimento dos Estados em levar tais conteúdos a tratados internacionais deriva da necessidade de governabilidade e legitimidade destes, fazendo valer a lição – antiga, porém ainda atual – de Rousseau na qual o direito de governar se fundamenta no dever de garantir a liberdade – sobretudo os direitos fundamentais para exercê- la – dos governados. O outro fator que deve ser frisado para se considerar os direitos humanos como dispositivos de caráter diferenciado é a nova lógica que rege o Direito Internacional como um todo: o indivíduo tornou-se o centro de sua atenção e seu objetivo principal. O homem então, para deixar de ser mero objeto e mecanismo na engrenagem internacional, passa a ter respeitados seus direitos como um todo, pois só assim encontra as condições necessárias para tornar-se membro da sociedade internacional43 . Na esteira dessas considerações, o resultado lógico seria que tais tratados não poderiam ser equiparados a outros comuns, teriam caráter diferenciado, mais aproximado ao de norma geral que a um contrato. Seriam tratados deveras multilaterais, pois os deveres dele decorrente não se firmariam ent re Estados apenas, como um contrato, mas entre um Estado e o seu próprio povo, algo mais aproximado aos próprios textos constitucionais. Nesse sentido, os magistrados da Corte Interamericana de Direitos Humanos muito bem colocaram: 40 A íntegra da decisão pode ser lida em: <http://www.corteidh.or.cr/serieapdf/seriea_02_esp.pdf>. 41 RAMOS, Op. cit., p.35 e ss. 42 A vivência internacional comparada tem mostrado que o processo inverso, qual seja, a constitucionalização – e logo a nacionalização – dos direitos humanos assegurados em tratados internacionais, tem sido também rotineiramente observado. 43 Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, Preâmbulo. 14 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Os tratados modernos de direitos humanos em geral, e a Convenção Americana de Direitos Humanos em particular, não são tratados multilaterais tradicionais concluídos para a consecução de obrigações recíprocas e benefícios mútuos dos Estados contratantes. O seu objeto e propósito é a proteção de direitos básicos de indivíduos [...] Ao concluir esses tratados de direitos humanos, os Estados podem ser levados a submeter-se a uma ordem legal na qual eles, pelo bem comum, assumem várias obrigações, não em relação aos outros Estados, mas em favor de indivíduos que estejam sob sua jurisdição.44 Então, se os direitos humanos seriam dotados de outra natureza e são obrigações contraídas para com indivíduos, como então justificar as reservas? Como se poderia auferir a admissibilidade de determinada reserva uma vez que aqueles que recebem a obrigação não podem manifestar-se diretamente no regime de Viena? Ou ainda... como justificar as objeções? O professor Jan Klabbers reconhece que a maior dificuldade para se estabelecer um sistema comum de direitos humanos como elementos de uma ordem pública internacional é o fato de que as reservas encontram suas origens na maioria das vezes em diferenças de opiniões políticas e existe pouco a ser ganho em fingir que essas diferenças não existem ou que são de alguma forma subordinadas a um conjunto de normas legais. A tragédia é que as reservas só podem ser imaginadas numa perspectiva contratual, enquanto que essa mesma perspectiva contratual falha em satisfazer o senso de idealismo e progresso que está ligado intrinsecamente à noção de direitos humanos 45 . Para o professor, assim como se diz que a noção contratual não é adequada para adereçar esse tipo de obrigação multilateral que são as normas de direitos humanos, tampouco a idéia de que os direitos humanos possuem um caráter diferenciado de ordem pública internacional pode ser considerada completa, visto que falha em reconhecer as diferenças e particularidades das opiniões e costumes de determinados povos, que nada mais é do que a justificativa das reservas. b) As objeções e seu papel como formadoras de costume Um mecanismo por demais importante no processamento das reservas é a objeção. Inicialmente previstas no art. 21, § 2° da CVDT, tratam-se de declarações também unilaterais que visam expressar o desacordo de um determinado Estado – seja ele parte ou negociante do tratado reservado – para com a reserva elaborada por um outro Estado. As conseqüências decorrentes de uma objeção a uma determinada reserva estão estampadas no art. 21, §3° da CVDT: Quando um Estado que formulou uma objeção a uma reserva não se oponha à entrada em vigor do tratado entre ele próprio e o Estado autor da reserva, 44 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. El efecto de las reservas sobre la entrada em vigência de la Convención Americana sobre Direitos Humanos (Arts. 74 e 75). 1982. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/serieapdf/seriea_02_esp.pdf>. Acesso em: julho de 2006. Tradução nossa. Grifo nosso. 45 KLABBERS, Op. cit., p.181. Tradução Nossa. 15 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL as disposições sobre que incide a reserva não se aplicam entre os dois Estados, na medida do previsto pela reserva. São, portanto, duas as conseqüências de uma objeção segundo a Convenção de Viena: (a) a regra reservada não é aplicável nas relações entre o Estado reservante e o objetor; ou (b), um pouco mais radical, todo o tratado não é aplicável, sempre, nas relações entre aqueles Estados. Historicamente, tem se observado um contínuo e forte crescimento no número de objeções no decorrer dos anos, notadamente a partir dos anos seguintes à década de 1990. Grosso modo, pode-se justificar este incremento por dois motivos: o primeir o seria a própria quantidade também crescente de tratados – e logo também de reservas – formulados nas décadas seguintes a 1950; o segundo, e mais importante, reflete a mudança de mentalidade por parte dos Estados, que cada vez mais se esmeram em formular reservas mesmo quando não figuram como beneficiários imediatos destas 46 . Embora o artigo de Viena permita uma leitura taxativa, a prática internacional e a nova doutrina tê m mostrado de maneira muito convincente que os reais efeitos de uma reserva estão muito além da previsão de Viena. Exemplo disto é o recente enfoque que as objeções têm tomado, sobretudo aquelas formuladas por Estados europeus, distanciando o seu conteúdo do mero desacordo político e encontrando cada vez mais justificativa no próprio critério do objeto e propósito dos tratados 47 . Sobre essa mudança de enfoque na formulação de reservas, a adoção de uma justificativa pautada no critério do objeto e propósito se mostra extremamente eficiente à defesa da integridade do conteúdo do tratado. Quando formuladas nesse sentido, o aumento do número de objeções elaboradas com este enfoque também poderia contribuir ao ampliar a pressão para a retirada de uma reserva que seja contrária ao objeto e propósito do tratado 48 . Além da pressão política que um grande número de objeções a determinada reserva pode oferecer, outro objetivo importante seu é o de evitar a formação de precedentes negativos à aplicação do tratado, fornecendo em seu conteúdo bases interpretativas para que se possa melhor proceder a realização dos direitos contidos na norma internacional. Nesse enfoque, não há dúvidas quanto ao papel importante que as objeções passam a ter como elementos para a identificação do real sentido da norma, bem como o seu objeto e propósito. Elas ainda atuam como fundamentadoras na formação de um regime costumeiro capaz de fornecer critérios válidos para a interpretação do conceito de incompatibilidade inscrito no art. 19 da CVDT. Porém, mais uma vez observamos que tal instrumento possui bases sólidas quando se considera o tratado como contrato. O grande problema é que, ao se afastar uma visão 46 Por exemplo, citamos a Objeção da Finlândia sobre as reservas do Kuwait ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 25 de julho de 1977. Disponível em: <http://sim.law.uu.nl/SIM/Library/RATIF.nsf/f8bbb7ac2d00a38141256bfb00342a3f/28b35ed76c861be8c12568 b70050e48b?OpenDocument>. 47 Exemplo disso é a objeção formulada pela Suécia em desfavor da reserva do Kuwait sobre o PIDCP, que suplantou o entendimento anterior daquele país quando formulara uma objeção que considerava inaplicável o tratado em suas relações bilaterais com as Maldivas. A íntegra desta reserva encontra-se em: <http://sim.law.uu.nl/SIM/Library/RATIF.nsf/0/24def5b028193edfc12568b70055c6e8?OpenDocument>. 48 SIBERT-FOHR, Anja. The Potentials of the Vienna Convention on the Law of Treaties with Respect to Reservations to Human Rights Treaties. In: ZIEMELE, Ineta. (org.) Reservations to Human Rights Treaties and the Vienna Convention Regime. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2002. p.195. 16 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações contratualista, fecha-se a possibilidade dos Estados utilizarem a única, ou pelo menos a mais legítima das maneiras de formar objeções a tratados: se não há o desrespeito contratual no qual se fundam as objeções, as críticas só poderão se dar no campo ideológico, mantendo sempre a contra-opinião de que a objeção pretende apenas fazer com que determinado país adote aquele modelo cultural pretendido pelo Estado objetor 49 . Eis a grade questão sobre as objeções e o seu papel. c) Reservas relacionadas ao ordenamento jurídico interno Observa-se ainda que um grande número de reservas – e objeções – se dá em face da incompatibilidade da norma internacional com outra presente no ordenamento jurídico interno. Exemplo nítido deste tipo de reserva é aquela formulada pelos Estados Unidos da América sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos sobre o art. 7° (proibição a tortura e ao tratamento desumano) desse instrumento: [...] os Estados Unidos consideram-se obrigados pelo artigo 7° na medida em que por “tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante” signifique o mesmo tratamento cruel e não usual tratado na Quinta, Oitava, e/ou Décimaquarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América50 . Embora submeter a abrangência da norma internacional aos limites da norma doméstica tenha se tornado tarefa banalizada diante do grande número de reservas produzidas nessa linha, a recente formulação de objeções e posicionamentos de órgãos de monitoramento contrários a esse tipo de reservas tem colocado em dúvida a sua legalidade. Em seu CG24, o Comitê de Direitos Humanos afirmou que: [...] Os Estados não devem fazer muitas reservas de sorte que se aceite apenas um limitado número de obr igações de direitos humanos e não o Pacto em si. Daí porque reservas não levam a um estado de não-obrigação permanente aos padrões internacionais de direitos humanos, as reservas não devem sistematicamente reduzir as obrigações tomadas apenas àquelas presentes em padrões menos exigentes de direito doméstico. Tampouco devem ser feitas declarações interpretativas ou reservas que objetivem a anulação do significado autônomo das obrigações do Pacto, seja por pronunciá-las como iguais, ou seja por considerá-las somente nos limites em que forem idênticas, às provisões do direito doméstico51 . Na esteira desse entendimento, a professora Anja SIBERT-FÖHR 52 acrescenta ainda que o propósito de elaborar uma norma internacional sobre direitos humanos é a de fornecer a esses direitos um padrão que seja autônomo e internacionalmente reconhecido como tal, garantindo ao indivíduo um grau de proteção maior do que aquele somente Estatal e, em contrapartida, garantindo ao Estado mais legitimidade para expressar sua soberania. Se assim 49 Nessa esteira o comentário de KLABBERS, parece muito pertinente quando acrescenta: “uma perspectiva contratual de direitos humanos poderia prevenir esse choque de valores de encobrir qualquer coisa a mais. O Estado objetante estaria em posição confortável e possuindo algo tangível, ainda que moralmente neutro, a que se referir: a barganha. Aqui o Estado objetante não poderia ser acusado de impor seus valores à outra sociedade”. Op. Cit., p.179. Tradução nossa. 50 O texto desta reserva e das demais feitas pelo governo americano ao aludido Pacto encontra-se disponível em: <http://www.internationaljusticeproject.org/juvICCPR.cfm>. 51 COMITÊ, Op. Cit., par. 19, Grifo nosso. Tradução nossa. 52 SIBERT -FÖHR, Op. cit., p. 191. Tradução nossa. 17 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL o é, limitar a norma internacional à abrangência e extensão da norma interna é esvaziar a utilidade da norma internacional. Além do problema ora mencionado, observa-se outro de ordem mais prática: a falta de clareza que a referência aos costumes e normas internas traz as reservas. O próprio Comitê de Direitos Humanos reconheceu a dificuldade de compreensão desse tipo de reservas devido a analise das várias que foram submetidas ao PIDCP53 . Ao formular reservas dessa maneira, os próprios Estados são prejudicados, visto que essa falta de clareza da reserva pode possibilitar interpretações diversas daquela desejada quanto a extensão dos efeitos da reserva. Ainda que beire o óbvio, a recomendação de que as reservas devem ser escritas de maneira objetiva, demonstrando quais são as obrigações específicas não aceitas, tal deve ser ressaltado diante da prática de muitos Estados reservantes. As objeções contra esse último tipo de reservas encontram com especial constância o mesmo problema de que se tratou anteriormente: quando não são apoiadas na barganha, faltam- lhes argumentos idôneos que possam afastar a idéia de que os Estados objetores estariam tentando impor seus valores sobre os Estados reservantes. Dos efeitos de uma reserva inválida Exposto o primeiro problema-chave, da validade das reservas realizadas perante tratados de direitos humanos, é necessário compreender os efeitos decorrentes de uma reserva. Se válida, a CVDT é clara: o dispositivo reservado tem seus efeitos cessados na extensão do texto da reserva. Mas o que fazer diante de uma reserva que seja inválida? A Convenção é omissa nesse aspecto, abrindo margem então para que a doutrina, assim como o uso das cortes e comitês abra um leque de alternativas na tentativa de fundar uma norma costumeira que possa fechar a lacuna de Viena. Em artigo sobre o tema, o professor italiano Roberto Baratta afirma que a CVDT deixa incertas, senão apenas parciais, respostas para aqueles autores favoráveis a corrente da “oponibilidade” e nenhuma àqueles favoráveis a corrente da “admissibilidade”54 . Acrescenta ainda, que apesar do vazio normativo de Viena sobre a questão das reservas inválidas, pode-se exaurir de seu texto uma distinção entre reservas que sejam compatíveis com o objeto e propósito e aquelas que não o são 55 . Os dois pontos mais controversos e incertos quanto aos efeitos deste último tipo de reservas são (a) quais os efeitos quanto à aplicação da norma reservada? e (b) qual o status do Estado reservante quanto a sua participação no tratado? 53 Comentário Geral n° 24, par. 19. 54 Em tempo, a corrente da “oponibilidade” apregoa que as disposições de Viena sobre a aceitação e objeções devem ser aplicadas também aquelas reservas que forem consideradas inválidas porque a estas regras não seria necessário o teste do objeto e propósito. Na outra vertente, aqueles adeptos da corrente da “admissibilidade” colocam que tais regras somente poderiam ser aplicadas às reservas que sejam compatíveis com o objeto e propósito do tratado. 55 BARATTA, Roberto. Should Invalid Reservations be Disregarded. In: European Journal of International Law (EJIL). n° 11, 2000, p.414, nota 2. 18 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações a) Aplicação de uma reserva inválida, ou, deve uma reserva inválida ser desconsiderada? Após a decisão da Corte Européia de Direitos Humanos no caso Belilos e a edição do CG 24 do Comitê de Direitos Humanos, surge uma corrente que defende que, quando não for compatível ao objeto e propósito do tratado, uma reserva deve ser desconsiderada 56 . Contudo, somado ao vazio legal sobre a matéria, a grande divergência de idéias de como adereçar o problema que se observa entre Estados, órgãos de monitoramento e doutrina mostra-se um empecilho na formação de um consenso. Existem, basicamente, duas correntes sobre o tema. Uma que entende ser possível a aplicação das normas originais do tratado quando a reserva for considerada inválida; outra que acredita ser impossível proceder desta forma na atual arquitetura do Direito Internacional. Aqueles que defendem a abordagem de Strasburgo, que se consubstancia na corrente adotada pela Corte Européia de Direitos Humanos, consideram, além de uma alegada hierarquia e natureza diferenciada dos tratados de direitos humanos 57 , a distinção que o texto de Viena faz entre as reservas válidas e aquelas inválidas (artigo 19, c). Para estes, ao fazê- lo, procurou-se destinar efeitos distintos a esses dois tipos de reservas. Assim, deveriam as reservas inválidas, ao contrário daquelas válidas, serem desconsideradas e aplicadas às provisões originais do tratado 58 . Como fundamento legal para a continuidade e ampliação da prática nesse sentido, os defensores desta corrente acreditam na formação de uma norma costumeira geral com base no crescente número de objeções de severabilidade 59 e no comportamento dos órgãos de monitoramento na defesa da integridade dos tratados de direitos humanos 60 . A primeira dificuldade para tanto é o fato de que, a despeito de poucas decisões e comentários, não se consegue identificar o uso necessário à formação da norma costumeira. A oposição feita por vários Estados61 é reveladora da falta de homogeneidade dessa prática 56 O tema já foi anteriormente tratado no item 2.3. 57 Também já trabalhado no item 3.1.1. 58 Além do caso Belilos vs. Suíça, observou-se o mesmo argumento nos casos Weber x Suíça e Louizidou et alli vs Turquia, todos no âmbito da Corte Européia de Direitos Humanos. 59 SIBERT-FOHR (2002, p. 200 e 201) assim denomina aquelas objeções que fazem uso da doutrina da severabilidade em seu conteúdo. Como exemplo deste tipo vida a objeção formulada pelo governo dinarmarquês em face de reserva de Botswana sobre o PIDCP, disponível em: <http://www.bayefsky.com/html/denmark_t2_ccpr.php>. 60 Nesse sentido vide as opiniões de KLEIN (2002), POLAKIEWICZ (2002), SCHEINN (2002) e SIBERT-FOHR (2002). 61 Exemplo interessante dessa oposição é a reação dos Estados Unidos da América ao CG24, que considerou a assertiva do comitê de: “completamente contrária a prática legal e os princípios estabelecidos e até contra os claros termos de aderência de vários Estados [...] As reservas contidas no instrumento de ratificação americano são parte integral de seu consentimento de se obrigar ao Pacto e não são separáveis. Fosse determinado que uma delas é ineficaz, a ratificação como um todo poderia ser anulada. Os artigos 20 e 21 da Convenção de Viena definem as conseqüências de reservas e objeções a elas. Apenas duas possibilidades são previstas. Ou (i) o restante do tratado entra em vigor entre as partes em questão ou (ii) o tratado não entra em vigor em absoluto entre as partes. De acordo com o artigo 20 (c), a escolha dentre esses resultados cabe a parte objetante. A convenção sequer contempla a possibilidade de que o tratado entre em vigor para o Estado reservante. A opinião generalizada da doutrina é a de que as reservas são parte essencial do consentimento do 19 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL A idéia de que a integridade do tratado deve prevalecer quando inválida for a reserva que a restrinja, embora muito forte em seu conteúdo idealístico, é contraposta por alguns princípios basilares do Direito Internacional, notadamente o princípio do livre consentimento dos Estados. Este é, inclusive, o principal argumento da corrente oposta. Sobre esse princípio e sua relação com as reservas, ensina Roberto Baratta que uma provisão de um tratado é aplicável a partes que o tenham ratificado se, e apenas se, suas expressões de consentimento possuírem o mesmo conteúdo. Isso implica que não existe espaço para acordo entre os Estados contratantes e o reservante sobre aquela provisão objeto da reserva. Um acordo mútuo sobre os conteúdos do texto, condição essencial na declaração de intenção dos estados em aderir ao tratado de forma que suas cláusulas produzam regras de conduta, falta à provisão reservada62 . Assim, quando falta o consentimento, não se poderia falar em aplicação da norma internacional, pois esta perde um de seus pressupostos de validade. Ao elaborar uma reserva, o Estado está condicionando sua entrada no tratado à aceitação daquela restrição. Visto dessa forma, não há como se obrigar um Estado ao cumprimento de uma provisão com a qual consentiu expressamente, não interessando aqui se é válida ou inválida a reserva. Por outro lado, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas em seu já citado CG 24 afirma que seria seriam outras as conseqüências de uma reserva inválida: [...] a conseqüência normal de uma reserva inaceitável não seria a não aplicação do Pacto para o Estado reservante, ao contrário, essa reserva deve geralmente ser reservável, no sentido de que o Pacto deve ser operante para o reservante sem o benefício da reserva 63 . O Comitê fundamenta tal asserção no caráter diferenciado das normas de direitos humanos, ao que o professor italiano responde: “o princípio do Consentimento se aplica aos Tratados de Direitos Humanos mesmo que eles sejam caracterizados por uma natureza ‘normativa’ ”64 . A dificuldade maior na tentativa de desconsiderar as reservas inválidas quando da aplicação de tratados de direitos humanos é como conciliar os princípios de integridade do tratado, bem como os de universalidade e indivisibilidade desses direitos 65 , com aquele princípio do livre consentimento dos Estados. b) Um Estado autor de reserva inválida é parte de do tratado reservado? Como exposto, ao colocar uma reserva – seja ela válida ou inválida – o Estado expressa a sua falta de consentimento com determinada provisão. Assim, dever-se- ia Estado em se obrigar a um tratado. Um Estado que, expressamente negue o seu consentimento a uma provisão não pode, na base da ficção legal, ser obrigado pela mesma. É lamentável que o Comentário Geral 24 aparente sugira o contrário.” Trecho retirado de BARATTA, Op. cit., p. 417. Tradução nossa. 62 BARATTA, Op. cit., p.419. Tradução nossa. 63 COMITÊ, Op. cit., par. 20. Tradução nossa. 64 BARATTA, Op. cit., p.419. Tradução nossa. 65 Com especial destaque ao Programa de Ação de Viena de 1993, que considera a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos como princípio fundamental a sua proteção e promoção e fora aprovada sem nenhum voto contrário pelos membros da Assembléia Geral da ONU. 20 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações interpretar tal resignação como integrante do instrumento de ratificação do tratado e da adesão da parte. Porém, se a reserva submetida for contrária ao objeto e propósito do tratado? Poderia o Estado reservante ainda ser considerado parte do tratado? A opinião que se forma na doutrina é que isto dependeria do tipo de cláusula que se reserva. Dividir-se-ia então as cláusulas em dois grupos: aquelas essenciais ou peremptórias66 que traçariam os direitos garantidos e outras acessórias, portanto disponíveis. Fosse a reserva feita contra a primeira sorte de cláusulas, o efeito da manutenção da reserva seria a não aplicabilidade de todo o tratado. Quanto às reservas formuladas ao segundo grupo de cláusulas, estas tornariam inócuas as obrigações da cláusula reservada posto que a estas não houve consentimento do Estado. Uma crítica que costuma ser feita a essa concepção é a de que não se distingue quanto aos efeitos uma reserva válida de outra inválida. Soluções propostas Diante do panorama de discordância traçado em rápidas pinceladas nas páginas anteriores, a resposta mais óbvia ao título desta sessão é a formulação de um consenso. Porém, como fazê- lo de maneira a harmonizar todos os princípios e as problemáticas envolvidas é a grande questão que se deve ocupar a Comissão de Direito Internacional em sua próxima reunião. As discussões jurídicas, quase que conflituosas por natureza, ainda mais quando se trata de conflitos de princípios e de teorias no âmbito dos direitos humanos, não se tem como vislumbrar apenas uma resposta possível. Por isso, passa-se então a apresentar algumas propostas colhidas de relatórios da própria Comissão, casos práticos e artigos doutrinários como forma de conferir um norte ao trabalho dos membros da CDI que se desenvolverá durante suas próximas reuniões. Aquiescência Uma forma de levar a cabo a disposição original do tratado sem lesar o princípio do consentimento é a aquiescência. Tal procedimento vem sendo adotado pela Suíça desde os casos Belilos e Weber. Ao fazê-lo, o Estado acolhe as recomendações da Corte sobre a reserva pendente lite, ou seja, reconhece no caso concreto que a reserva pode ser reformulada e o faz espontaneamente na forma que estimula o órgão. Os pontos negativos desta forma de solução são a falta de força política que poderiam sofrer muitos órgãos de monitoramento e a falta de compulsoriedade, o que não é de todo mal, pois como diz KLABBERS opor normas substantivas contra os Estados é raramente uma boa idéia 67 . 66 Essa terminologia é também utilizada no texto do CG24. 67 KLABBERS, Op. cit., p. 153. 21 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Norma específica Embora a CVDT e os princípios possam fornecer senão respostas, mas pelo menos teorias, sobre o tratamento que deve ser dispensado a reservas inválidas sobre tratados de direitos humanos, não há nada que impeça a possibilidade de criação de cláusulas específicas sobre o tema dentro do corpo dos tratados 68 . Ao se adicionarem provisões que versem sobre a admissibilidade e os efeitos das reservas válidas e inválidas – assim como numa previsão contratual –, as partes aumentam a segurança das relações decorrentes daquele tratado, evitando interpretações diversas e efeitos confusos. Tal medida talvez seja a medida mais segura de solução dos problemas decorrentes das lacunas deixadas por Viena. O seu fundamento é simples e efetivo, encontra, porém a adversidade da formulação de seus termos e o perigo que pode representar a universalidade do tratado, visto que alguns Estados poderiam deixar de ratificar um tratado que proibisse reservas. Uma resposta política para um problema político? O relator desde 1995 para o tema das Reservas na Comissão de Direito Internacional afirmou certa feita 69 que o problema das reservas é mais político que legal; sendo assim, seria necessário uma resposta à nível político e não jurídico 70 . Resumidamente, tal ponto de vista parte de uma premissa simples: se existem problemas quanto à validade e efeitos das reservas, isso se dá, pois não existiu ainda vontade política para solver esses problemas. De fato, a conclusão de qualquer tratado, além do esforço jurídico para sua formulação demanda em escala muito maior, esforço político para que o máximo de Estados possam acessar ao regime criado por aquela norma. Segundo Allain Pellet: a verdadeira solução da dificuldade surgida com os tratados multilaterais não depende da formulação de novas regras de direito internacional de aceitação geral dos estados, mas em insistir que os estados quando reunidos no propósito de formarem um novo tratado são donos da situação e devem atuar como tal71 . Atuando como tal, os Estados podem formular normas específicas acrescentando-as aos tratados existentes e também aos novos regimes que venham a ser criados, além de outras medidas de curto-prazo como estimular a aquiescência, por exemplo. 68 Conforme afirmamos no item 2.2. a CVDT possui caráter subsidiário as normas específicas do tratado, assim originalmente, devem-se buscar as provisões contidas no texto normativo em questão antes de se apelar aos artigos de Viena e os princípios gerais do Direito Internacional. 69 First Report on the Law and Practice Realting to Reservations to Treaties (A/CN.4/470). 1995. Disponível em: <http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?OpenAgent&DS=A/CN.4/470&Lang=E>. 70 No mesmo sentido vide KLABBERS (2002, p. 153 e ss.). 71 NAÇÕES UNIDAS, Comissão de Direito Internacional. First Report on the Law and Practice Realting to Reservations to Treaties (A/CN.4/470). 1995. Disponível em: <http://daccessods.un.org/access.nsf/Get?OpenAgent&DS=A/CN.4/470&Lang=E>. Acesso em: julho de 2006. Tradução nossa. 22 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Questões que o relatório final deve contemplar Ao fim de seus trabalhos os membros da Comissão de Direito Internacional devem formular um relatório com recomendações sobre a matéria das Reservas realizadas sobre Tratados de Direitos Humanos. Embora os relatórios da Comissão de Direito Internacional não tenham caráter vinculante, eles desempenham um importante papel na formação da normativa internacional, fornecendo diretrizes para a codificação do direito internacional a partir da prática internacional observada e da evolução doutrinária. Assim, a guisa de sugestão, o relatório a ser redigido pelos membros da Comissão deve abordar os seguintes pontos: • • • • • • • • Os tratados de direitos humanos possuem natureza distinta dos demais tratados? Se possuem, pode tal diferença justificar um tratamento diferenciado quanto ao regime de reservas? E ainda, quem seria capaz de determinar essa natureza distintiva sobre qual tratado é ou não essencialmente sobre direitos humanos (cortes, órgãos de monitoramento, organizações multilaterais através de seus órgãos, o próprio tratado ou apenas a interpretação autêntica da parte do documento)? Podem ser consideradas válidas as reservas que restinjam a interpretação ou aplicação de determinada cláusula aos limites do ordenamento jurídico interno de um país? Qual o papel dos órgãos de monitoramento de tratados na definição de regras de admissibilidade de reservas? Qual o papel das objeções no processo de validação e efeitos das reservas? Uma reserva inválida a um tratado de direito humano pode ser desconsiderada? Qual o papel do princípio do consentimento na definição dos efeitos de uma reserva inválida? Que medidas podem ser tomadas pelos Estados para evitar problemas com reservas em tratados de Direitos Humanos? O debate não precisa se exaurir nestes pontos, tendo os membros da Comissão total liberdade para acrescentar, retirar ou modificar os questionamentos propostos. TEMA B: A LEGALIDADE DO ATAQUE PREVENTIVO “Porque me matais’? Como? Não vives do outro lado da água? Meu amigo, se vivesses deste lado, eu seria um assassino, seria injusto matar-te da mesma maneira; mas, desde que vivas do outro lado, sou um bravo, e isso é justo.”72 (Blaise Pascal, Pensamentos, V, 293) ¹ No original: “’Pourquoi me tuez-vous?’ ‘Et quoi, ne demeurez-vous pas de l'autre côté de l'eau? (...) Si vous demeuriez de ce côté-ci, je serais un assassin et cela serait injuste de vous tuer de la sorte; mais puisque vous demeurez de l'autre côté, je suis un brave, et cela est juste’. 23 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Introdução Qualquer espécie de retorno ao direito da Guerra sempre soa como contradição. Como pode haver império do direito em meio à guerra? Como pode coexistir norma e barbárie? Nós já avançamos tanto, como vamos voltar a conceitos medievais? Nas páginas a seguir, vamos analisar superficialmente o fenômeno do conflito armado e seu tratamento pelo direito, principalmente no que tange a sua única exceção autorizada na contemporaneidade, a legítima defesa. Vamos abordar principalmente seu lado mais complexo e desafiador, a seara da legítima defesa preventiva. Primeiro faremos uma breve introdução histórica, seguindo a evolução histórica do conceito de guerra justa até a doutrina da legítima defesa, seguida por uma análise jurídica do conceito de legítima defesa, alguns casos importantes, e então os últimos desdobramentos da doutrina correlata. Acompanhando a evolução histórica do conceito de guerra justa, chegaremos até a análise do caso prático de algumas situações relevantes, sempre à luz da importância jurídica dessas análises. Veremos o que fala a doutrina acerca do tema e sua evolução, bem como a apreciação das suas garantias formais. A legítima defesa preventiva é uma imensa área nebulosa no Direito. Estudar seus efeitos é ao mesmo tempo um exercício de destruição de conceitos clássicos de conflitos e construção de novas alternativas. É imprescindível que se mantenha uma mente aberta a todas as possibilidades que possam atender à finalidade de garantir a paz e mitigar os conflitos, não de forma ilusória, mas coerente. No estudo da guerra, a difusa margem entre política e direito se escancara, e mesmo diante de toda dificuldade, a sociedade internacional ainda precisa de uma resposta. Histórico Da guerra justa ao banimento da força “Porque, eis que hoje te ponho por cidade forte, e por coluna de ferro, e por muros de bronze, contra toda a terra, contra os reis de Judá, contra os seus príncipes, contra os seus sacerdotes, e contra o povo da terra. E pelejarão contra ti, mas não prevalecerão contra ti; porque eu sou contigo, diz o SENHOR, para te livrar.” (Jeremias 1:18-19) Segundo o estudioso francês François BUGNION73, através da história, quando um Estado pegava em armas e recorria ao conflito armado, o fazia sob a égide de uma guerra justa, cabendo a seu opositor, a carapuça da injustiça. Assim, sua conduta era justificada, mesmo em seus atos mais cruéis. Em uma lógica semelhante à usada pela inquisição no julgamento das bruxas, onde a derrota era um sinal do desagravo divino e confirmação da legitimidade do vencedor. Não raramente, o mais veemente defensor da “palavra de Deus” era o mais atroz combatente. Sendo então a guerra um fator inerente aos Estados, surgiu ² BUGNION, François. Just Wars, wars of aggression and international humanitarian law. International Review on the Red Cross. 2002, no. 847, p 524. 24 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações naturalmente a qualificação da guerra como justa ou injusta bem como posterior disposição da limitação do uso da força. A doutrina da guerra justa surgiu como uma conseqüência da conversão do Império Romano ao cristianismo e conseqüente abandono por parte dos cristãos do pacifismo. A força não só poderia, como deveria ser usada de acordo com a vontade divina. O conceito de guerra justa abarcava elementos da filosofia greco-romana e foi aplicado como sanção suprema para manutenção de uma sociedade ordenada. Geralmente os doutrinadores contemporâneos creditam ao conceito de guerra justa uma origem em comum, formada por um conjunto de pesquisadores antigos que foi vital para a elaboração do direito internacional e da doutrina da guerra justa. Focaremos aqui em alguns dos trabalhos mais relevantes nomeados por Malcom SHAW 74, seguindo a ordem cronológica de seus estudos. Um dos primeiros doutrinadores a definir guerra justa foi Santo AGOSTINHO (354430dc.), que definiu guerra justa como sendo a vingança por dano cuja parte culpada se recusa a reparar o dano causado 75. A guerra deveria ser adotada para punir erros e restaurar o status pacífico, e nada além. Atos de agressão seriam injustos e o recurso à violência seria inteiramente controlado. São Tomás de AQUINO tomou, no séc. XIX, a definição de Guerra Justa um passo além ao declarar que era o dolo subjetivo do culpado que devia ser punido, em vez da atividade errada per se. Ele escreveu que a guerra poderia ser justificada mediante o exercício de autoridade soberana, acompanhada de uma justa causa – punição de ofensores – e embasada pelas intenções corretas por parte dos beligerantes 76. Com o surgimento dos estados modernos europeus, a doutrina começou a mudar. Tornou-se conecta à soberania dos estados e contraposta ao paradoxo das guerras entre Estados cristãos, cada lado plenamente convencido da justiça de sua causa. Esta situação findou a modificar o enfoque do conceito de Guerra Justa. Um novo requerimento de que tentativas sérias de resolução pacífica da disputa seriam necessárias antes do recurso à força começou a surgir. Este refletiu no novo contexto das relações internacionais, haja vista que até então existiam diversos Estados independentes, co-existindo forçosamente numa Europa em um sistema de equilíbrio de poder primitivo. O uso da força contra outros Estados, muito aquém do fortalecimento dessa nova ordem, representava ameaça séria a sua consolidação. Assim, a ênfase da doutrina jurídica se deslocou da aplicação da força para suprimir ofensores para a preocupação – ainda que pouco visível na época, destaca SHAW – na manutenção da ordem por todos os meios pacíficos. Observamos também diversas outras influências no pensamento da época. O grande escritor espanhol do século XVI, Francisco de VITÓRIA, enfatiza que nem todo tipo de força nem todo grau de violação é suficiente para dar ensejo a uma guerra 77. Francisco SUAREZ, por sua vez, destacou que os Estados eram obrigados a chamar a atenção da parte oposta da existência de uma justa causa e requerer reparações antes de qualquer ação ser tomada. A Guerra Justa também implicava na imunidade de pessoas inocentes a ataques diretos e somente o uso proporcional da força para sobrepujar a força em oposição. Gradualmente, ³ SHAW, Malcom Nathan. International Law. 2003. pp 1014-1017. 75 EPPSTEIN, BAILEY, BROWLIE apud SHAW, 2003. p 1014. 76 BAILEY, PARRY, VON ELBE apud SHAW, 2003. p. 1014. 77 BAILEY, apud SHAW, 2003. p. 1014. 25 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL tornou-se aceito que certa parcela de direito pode existir em ambos os lados, mesmo que a situação fosse confusa por referências à justiça objetiva e subjetiva. Finalmente, a legalidade do recurso à guerra foi vista como dependente do processo legal formal. Esse enfoque prenunciou o crescimento do positivismo com sua concentração de poder sobre a soberania do Estado, o qual só poderia ser vinculado ao que consentisse. Hugo GRÓCIO, em sua sistemática, tentou excluir considerações ideológicas dos fundamentos da Guerra Justa, na esteira dos destrutivos conflitos religiosos do século XVII, e tentou redefinir a guerra justa em termos de autodefesa, proteção de propriedade e a punição por violações sofridas por cidadãos do Estado em questão. Filósofo S. Agostinho S. Tomás de Aquino Francisco de Vitória Francisco Suarez Hugo Grócio Idéias principais Punir erros, Restaurar o status pacífico, Recurso à força controlado. Autoridade soberana do Estado, Necessidade de justa causa. A Guerra só deve ser empregada em casos mais graves Exigência de formalização da guerra e negociação prévia. Proteção aos civis. Redução da questão ideológica da guerra justa. Redução maior da questão ideológica. Guerra como auto-defesa, proteção de propriedade e punição por violações aos cidadãos. Tabela I – Quadro comparativo SHAW78 argumenta que com o positivismo e o estabelecimento definitivo do sistema de equilíbrio europeu após a Paz de Vestfália79, em 1648, o conceito de Guerra Justa desapareceu do direito internacional. Estados eram soberanos e iguais, e, portanto, em tese nenhum Estado poderia julgar se a causa de outro era justa ou não. Estados eram vinculados a honrar acordos e respeitar a independência e integridade de outros países, assim como tentar resolver suas indisposições por meios pacíficos. Contudo, seria inevitável a ocorrência de guerras, o que acabou por acontecer, gerando uma série de conseqüências jurídicas que, em seu âmbito, fizeram surgir o jus in bello, o chamado Direito da Guerra. Suas normas começaram a operar entre as partes e Estadosterceiros e uma miríade de novas situações legais surgiu. Posteriormente recebeu também a alcunha de Direito Humanitário Internacional. É necessário um ligeiro aparte para fazer a distinção entre os dois tipos de normas concernentes à guerra. Se por um lado existe o jus in bello, também existe o jus ad bellum, que por sua vez significa Direito à Guerra, versando sobre as condições em que se pode recorrer à guerra. Enquanto um lida com as normas dentro do conflito, o outro lida com as 78 SHAW, Malcom Nathan. International Law. 2003. p 1015. 79 O papel da Acta Pacis Westphalia – Paz de Vestfália – na consolidação da ordem européia é discutível. Enquanto muitos autores destacam a reunião como o ponto de surgimento para conceitos variados como soberania e nações-estado, autores como Martin WIGHT sinalizam que na verdade o evento foi apenas um ponto em uma evolução. WIGHT declara em seu livro “Systems of States” que “o sistema estatal de vestfália não veio chegou ao mundo, mas chegou à idade”, no sentido de que o que aconteceu não foi nada mais que o amadurecimento de conceitos pré-existentes, que na hora devida, deram margem a um novo passo. Frederico SILVA e Lucas FREIRE possuem artigos extremamente interessantes analisando esta questão. 26 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações normas de acesso ao conflito. Durante este documento trataremos eminentemente do jus ad bellum, com eventuais recursos ao jus in bello 80 . O fato de que a guerra poderia ter sido considerada como injusta por algum padrão ético não afetava de forma alguma a legalidade da força como um instrumento do Estado soberano, tampouco alterava de qualquer modo as várias regras da guerra e neutralidade que se espalharam com o início de conflitos. Se a causa era justa ou não, isto se tornou um fato irrelevante em qualquer forma de análise jurídica perante a comunidade internacional – mesmo que, obviamente, importante em termos políticos –, pois o problema principal pairava na questão se de fato um estado de guerra existia. A doutrina da Guerra justa ganhou força com o poder crescente do cristianismo e entrou em declínio com a deflagração das guerras religiosas internas entre os Estados cristãos em conjunto ao conseqüente estabelecimento de uma ordem de Estados soberanos seculares. Apesar de ter se tornado um assunto jurídico corriqueiro dos Estados, no qual se permitia o uso da força e uma série de condições regulatórias eram reconhecidas, existiam vários outros modos de empregar a força além da guerra, com todas as conseqüências jurídicas relativas aos “civis” inocentes durante o conflito. Represálias e bloqueios pacíficos eram exemplos do uso da força como maneiras hostis utilizadas ao invés da tradicional guerra por conflitos de tropas. Estas atividades eram ensejadas visando assegurar direitos ou punir ofensores. Houve diversos casos, particularmente no séc. XIX, da força sendo usada desta forma contra os Estados mais fracos da Ásia e América Latina. Existiam limitações perante o direito internacional ao direito de recorrer a tais medidas, mas provavelmente fossem melhor compreendidas no contexto do mecanismo das relações internacionais de equilíbrio de poder, que em grande parte ajudou a minimizar o recurso à força no séc. XIX, ou ao menos restringiu sua aplicação. No início do século XX ocorreu a segunda Convenção de Haia de 1907, que acordou a “Convenção relativa à limitação do emprego da força para recuperação de dívidas contratuais”, também conhecida pelo cognome de Drago-Porter 81 . Alain PELLET, Patrick DAILLIER e Nguyen Quoc DINH ressaltam que o próprio título do tratado já é sinalagmático quanto à restrição de seu escopo. Esta iniciativa diplomática teve a sua origem nas operações de represálias – bloqueios marítimos e bombardeamento de portos – exercidas pela Itália, a Alemanha e o Reino Unido contra a Venezuela em 1902. O governo venezuelano, confrontado com uma grave crise financeira após um período de guerra civil, teve que suspender o reembolso de dívidas contraídas junto de cidadãos estrangeiros. A expedição marítima de 1902 tinha por objetivo obrigar a Venezuela a respeitar as suas obrigações contratuais. O incidente chocou simultaneamente os outros governos latino-americanos, que freqüentemente enfrentavam as mesmas dificuldades, e os Estados Unidos, que rejeitavam qualquer intervenção européia sobre o continente americano (doutrina Monroe). Por esta ocasião, Drago – na época ministro dos Negócios Estrangeiros da Argentina, - formula a «doutrina» segundo a qual 80 Esses dois camp os, como próximos e eventualmente passíveis de confusão, são também denominados por um critério diferente. Como os mais importantes tratados do Direito da Guerra foram celebrados em Genebra, e os de Direito à Guerra em Viena, também são chamados de Direito de Genebra e de Viena, respectivamente, pra facilitar a distinção. 81 Existe um costume que tratados sejam tratados pelo nome de seus organizadores ou idealizadores, como uma forma de distinção entre a nomenclatura formal dos tratados, já que geralmente usam nomes parecidos. 27 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL a cobrança coercitiva de dívidas públicas era contrária ao Direito internacional. Para ele, o recurso à força, na circunstância, era contrário à soberania do Estado devedor e ao carácter aleatório deste tipo de dívidas. Os Estados Unidos decidiram utilizar a oportunidade oferecida pela segunda Conferência de Haia para fazer desta doutrina uma regra de direito convencional. Porter, o seu plenipotenciário, esforçou-se com sucesso, de onde provém o título dado a esta convenção. (PELLET, et al. 2002, p 954.) PELLET, DAILLIER e DINH82 ainda destacam que esta Convenção foi um divisor de águas por – ainda sem retirar do Estado a discricionariedade do recurso à força armada – lançar as sementes de um “fundamento objectivo ao não-recurso da força e impor o uso de meios de resolução pacífica de conflitos”. O desequilíbrio do século XX: a primeira Grande Guerra. “Esta guerra é, assim como a próxima será, uma guerra para acabar com a guerra.”83 (David Lloyd George, Primeiro-ministro britânico - 1916-1922) A Primeira Guerra Mundial marcou o fim do sistema anterior de equilíbrio de poder e trouxe novamente a questão da guerra injusta. Também resultou em esforços para reconstruir as relações internacionais sobre um fundamento de uma instituição geral internacional que deveria supervisionar a conduta da comunidade internacional de forma a assegurar que atos de agressão não mais ocorressem. A criação da Liga das Nações refletiu um comportamento inteiramente diferente para os problemas da força na ordem internacional. O Pacto da Liga declarou que seus membros deveriam submeter disputas que pudessem gerar eventualmente uma ruptura à arbitragem, decisão judicial ou deliberação pelo Conselho da Liga. Em nenhuma circunstância os membros poderiam recorrer à guerra por um período de até três meses após um juízo arbitral, uma decisão judicial, ou decisão do Conselho 84. A intenção dessa medida era a de ensejar um período de arrefecimento das paixões envolvidas no conflito e refletia a visão que tal atraso poderia muito bem romper a aparentemente irreversível cadeia de tragédia que ligou o assassinato do arquiduque austríaco em Sarajevo com a explosão da guerra total na Europa. Membros da Liga concordaram em não ir à guerra com outros membros em conformidade com tais arbitragens, decisões judiciais ou decisão unânime do Conselho. O sistema da Liga, é preciso ressaltar, não proibia a guerra ou uso da força, mas se configurava em um procedimento destinado a restringir tal fenômeno a níveis toleráveis. Era 82 PELLET, et al. 2002, p 954. 83 No original: “This war, like the next war, is a war to end war.”- Tradução do autor. Fonte desconhecida. 84 Lê-se no pacto: Art.12. Todos os Membros da Sociedade convêm que, se entre eles houver um litígio que possa trazer rompimento, o submeterão ao processo de arbitragem ou ao exame do Conselho. Convêm mais que, em nenhum caso, deverão recorrer à guerra antes de expirar o prazo de três meses depois da sentença dos árbitros ou do parecer do Conselho. Em todos os casos previstos neste artigo a sentença dos árbitros deverá ser dada num prazo razoável e o parecer do Conselho deverá ser lido nos seis meses, a contar da data em que tiver tomado conhecimento da divergência. 28 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações um desafio constante dos anos entre guerras fechar as lacunas no Pacto em uma tentativa de alcançar a total proibição da guerra no Direito Internacional, e isso obteve resultado finalmente na assinatura em 1928 do Tratado Geral para a Renúncia da Guerra, também chamado Tratado de Kellog-Briand 85 . As partes deste tratado condenavam o recurso à guerra e concordaram em renunciá- la como instrumento de política nacional em suas relações entre si. Tendo em vista especialmente que este tratado nunca chegou a ser encerrado ou denunciado, e na esteira de sua ampla aceitação, tornou-se claro que a proibição do recurso à força era agora um princípio válido do Direito Internacional. Já não era mais possível se estabelecer uma relação legal com a guerra na sociedade internacional. Contudo, isto não quer dizer que o uso da força em todas as circunstâncias se tornou ilegal. Reservas ao tratado por parte de alguns Estados tornaram aparente que o direito de dispor da força em legítima defesa ainda era um princípio reconhecido no Direito Internacional. No entanto, a proibição ou não de medidas alheias à guerra, como por exemplo represálias, pelo banimento da guerra disposto no tratado, estava incerto e sujeito a interpretações conflitantes. A despeito do que fora arquitetado, a Liga das Nações e sua estrutura de restrição ao uso da força fracassaram. Apesar do relativo avanço, aponta-se um grande defeito estrutural na Liga. Suas resoluções não possuíam obrigatoriedade e como a organização em si não possuía nenhuma espécie de força armada, suas decisões precisavam ser levadas a cabo por alguma das potências, que nem sempre se dispunham a tanto. Portanto, o poder coercitivo era drasticamente limitado. Os Estados podiam até ter um dever moral ou político de executar as sanções, mas não havia nenhuma obrigação de fato, o que culminou por se ter alto grau de desobediências. Historiadores geralmente creditam também o ocaso da Liga ao comportamento contraditório dos Estados Unidos em sua construção Enquanto seu presidente Woodrow Wilson adotou a idéia entusiasticamente, após o projeto estar concluído o Senado americano vetou a adesão dos Estados Unidos da América à organização. Outros dos chamados “grandes poderes” da época também se afastaram gradualmente, e a eclosão da Segunda Guerra decretou tacitamente a falência da Liga das Nações. Anos cinzentos se passaram e as lições encontradas entre os destroços da Liga ainda serviriam pra um novo recomeço. As Nações Unidas: um projeto de paz. “E ele julgará entre as nações, e repreenderá a muitos povos; e estes converterão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices; uma nação não levantará espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerrear.” (Isaías 2:4 – Inscrição no parque municipal Ralph Bunche, em Nova York, defronte à sede das Nações Unidas.) O surgimento da nova organização internacional, as Nações Unidas, trouxe consigo um projeto de esperança em uma ordem pacífica. Esse sentimento está encravado no próprio preâmbulo da carta de São Francisco, onde se lê que “nós, os povos das nações unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes no 85 O tratado tem esse nome por referência a Frank B. Kellogg, secretário de Estado americano e Aristide Briand, Ministro das Relações Exteriores da França, que são creditados como autores do esboço do tratado. 29 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade... 86 ”. A presença desta declaração como preocupação precípua não deve ser subestimada. Ao término da Segunda Grande Guerra, a Europa restava em escombros e a sociedade internacional precisava, literalmente, reconstruir suas estruturas internacionais, forjando novas alianças e novos votos, objetivando atingir uma consolidação do status pacífico e impedir o retorno ao estado bélico, como recém-ocorrido após a Primeira Guerra. É imperativo que se constate que as duas grandes guerras foram divisores de águas. E mesmo que alguns autores aleguem que a Primeira tenha sido proporcionalmente maior87 , a segunda trazia consigo mais que os estragos de uma guerra vencida a se reconstruir, mas sim um conjunto de lembranças do fracasso em se evitar um conflito armado em grandes proporções. Se na Primeira Guerra existia o sentimento de que conflitos dessa grandeza não devem ocorrer, sendo tomadas medidas atendendo a essa preocupação, a Segunda Guerra provou empiricamente que os meios escolhidos foram insuficientes, e que uma nova ordem seria necessária para impedir uma subseqüente Terceira Guerra 88 . Os negociadores da Conferência de São Francisco optaram por declarar expressamente na Carta das Nações Unidas o repúdio à guerra, e uma – revolucionária – opção pelo banimento do uso da força como instrumento das relações internacionais. A nova estrutura deslocou a segurança internacional para outro foco. Se antes o papel da Liga das Nações era o de exigir o período de três meses de trégua como forma a aliviar o conflito entre estados soberanos exercendo seu direito inerente de recurso à guerra, as Nações Unidas se propunham a eliminar essa possibilidade, restringindo o uso da força a três casos, somente. As três exceções são Medidas contra um Estado Inimigo, Ações do Conselho de Segurança e Legítima defesa (RANDELZHOFER, 2002. pp. 119-121.). Ademais, PELLET, DAILLIER e DINH destacam que esta estrutura de restrição da força empregada nas Nações Unidas seria o estágio final da evolução normativa 89. Os mecanismos adotados em São Francisco são bem mais avançados que os idealizados na Sociedade das Nações, mesmo que infelizmente a prática tenha tornado-os defasados. O artigo principal da estrutura de restrição do uso da força é os 2(4), que versa sobre o banimento total do recurso à força. Diz o artigo: Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. 87 O genial historiador Eric Hobsbawm, em seu livro “A Era dos Extremos” destaca que pra muitos observadores do conflito em crescimento na Primeira Guerra Mundial, a situação em curso era um disparate sem precedentes, portanto de um impacto imenso também no psicológico. Hobsbawm comenta inclusive, que havia a anedota de que se Bismarck e o corpo diplomático da Europa do século anterior acordassem e se deparassem com a realidade naquele momento, não teriam dúvidas em esbravejar que aquilo era um absurdo sem sentido algum. Qualquer mente razoável hodierna é capaz de constatar que a eclosão do conflito foi uma sucessão de confusões e uma diplomacia trôpega, segundo o renomado escritor. 88 Mesmo que não possa se declarar inquestionavelmente a razão da não-ocorrência de um terceiro conflito em escala global, pode-se afirmar, com uma razoável segurança, que provavelmente as novas medidas tomadas tiveram fator determinante, especialmente no auge da Guerra Fria, em crises como o Bloqueio de Berlim de 1948 e a Crise dos Mísseis de Cuba de 1966. 89 PELLET, et al. 2003, p 957. 30 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Esta disposição cristaliza o princípio da interdição do uso da força nas relações internacionais. Porém, como já citado, há exceções a esse princípio. O Artigo 107 faculta aos Estados-parte a usar a força, caso se prove necessário, contra os Estados Inimigos. A mesma carta define no Artigo 53(2) que o conceito de Estado Inimigo “aplica-se a qualquer Estado que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi inimigo de qualquer signatário da presente Carta”. Obviamente esta determinação resta caduca e não possui mais utilidade alguma. Todos os chamados Estados Inimigos da Segunda Guerra hoje são membros das Nações Unidas, excluindo essa exceção de qualquer utilidade. A segunda exceção é o uso da força através de Ações do Conselho de Segurança. Consubstanciando sua vocação de manutenção da ordem e segurança internacional, o Conselho de Segurança pode autorizar o uso da força, como previsto no capítulo VII da Carta. As ordens do Conselho são cogentes. Prevê o artigo 42: No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar e efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas. Durante grande parte do período da Guerra Fria, este artigo foi uma ficção jurídica. Como o Conselho precisa da não-oposição dos membros permanentes para a aprovação de uma resolução, era rara a obtenção de um acordo que envolvesse o uso da força conjunta. As potências tendiam a observar com ceticismo e desconfiança qualquer intenção de uso de força em suas áreas de influência. A situação de engessamento chegou a tal ponto que a Assembléia Geral aprovou em 1950 uma resolução, denominada de “Uniting for peace” (A/RES/377) 90, com o objetivo de superar este bloqueio. Segundo a resolução, caso fosse constatada a incapacidade do Conselho em atingir um resultado em suas deliberações, a Assembléia Geral poderia assumir subsidiariamente a responsabilidade pela segurança – originalmente da autoridade do Conselho de Segurança – e tomar as decisões cabíveis. Esta exceção, contanto, foi pouco usada, tanto em virtude dos países- membros geralmente levarem suas disputas para arbitragem na Corte Internacional de Justiça ou eventuais cortes de arbitragem ad hoc, quanto pelo fato de que os próprios países permanentes empregaram o uso da força em diversos momentos sem autorização ou contrariando determinação do Conselho. Um uso célebre desta exceção foi no caso da Guerra do Golfo. Após a invasão do Kuwait pelo Iraque, o Conselho de Segurança aprovou a resolução S/RES/660 91 condenando a invasão iraquiana e ordenando a retirada das tropas. Após seu não atendimento, o Conselho emitiu mais uma resolução, a S/RES/661 92, que além de instituir um bloqueio econômico também determinou uma data- limite para a retirada das tropas, após a qual o uso da força como forma de retirar o Iraque de sua invasão ilegal estaria autorizado. Uma coalizão de trinta países liderada pelos Estados Unidos realizou a operação “Tempestade no Deserto”, obtendo sucesso com a conseqüente retirada das tropas de Saddam Hussein do Kuwait. Esta operação 90 Resolução disponível em: http://www.un.org/Depts/dhl/landmark/pdf/ares377e.pdf 91 Resolução disponível em: http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=S/RES/660%20 (1990)&Lang=E&Area=RESOLUTION 92 Resolução disponível em: (1990)&Lang=E&Area=RESOLUTION http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=S/RES/ 661%20 31 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL serviu também para fortalecer a estrutura da ONU, pois ficou claro que o sistema de restrição do uso da força funcionou adequadamente. A última exceção é para nós a mais importante, a legítima defesa. Analisaremos a seguir, de forma mais aprofundada o seu conceito, no que se baseia, e qual a prática consuetudinária na sociedade internacional. Análise Jurídica do Uso da Força e da Possibilidade da Legítima Defesa Preventiva O artigo 2(4) da Carta de São Francisco determina a restrição do uso da força nas relações internacionais por parte dos Estados, enquanto o artigo 51 estabelece uma das exceções mais controversas sobre a qual nos focaremos no restante deste trabalho. A seguir, analisaremos juridicamente alguns dos casos internacionais mais célebres que versam sobre legítima defesa (Caroline, Virginius e Nicarágua), assim como os artigos 2(4) e 51 da Carta de São Francisco. Conceito de Legítima Defesa Segundo HUCK93, a legítima defesa é um conceito presente e comum a qualquer sistema de direito. Simbolizado pela máxima vim vi repellere omnia iura permittunt 94 , este preceito autoriza ao indivíduo o uso da força para reagir de quaisquer ameaças a seus bens ou sua integridade física. Segundo BITTENCOURT, é “um dos institutos jurídicos mais bemelaborados através dos tempos”, representando “uma forma abreviada de realização da justiça penal e de sua sumária execução”. Ensina, por sua vez, BETTIOL que: (...) ela na verdade corresponde a uma exigência natural, a um instinto que leva o agredido a repelir a agressão a um seu bem tutelado, mediante a lesão de um bem do agressor. Como tal, foi sempre reconhecida por todas as legislações, por representar a forma primitiva de reação contra o injusto.(BETTIOL apud BITTENCOURT, 2003 p. 265) BITTENCOURT destaca também que o conceito de legítima defesa é resultante da resignação do Estado diante da realidade que é impossível a solução pra todas as violações jurídicas de forma instantânea, assim como tal instrumento jurídico: (...) objetivando não constranger a natureza humana a violentar-se numa postura de covarde resignação, permite, excepcionalmente, a reação imediata a uma agressão injusta, desde que atual ou iminente, que a dogmática jurídica denomina legítima defesa. (BITTENCOURT, 2003 p. 265) Estando disposta até nos sistemas jurídicos mais rudimentares, é uma conseqüência lógica que também esteja presente no Direito Internacional. Na obra O Espírito das Leis, Montesquieu dissertava acerca de uma possível legítima defesa dos Estados, tratando-os como indivíduos em uma sociedade internacional, e concedendo a eles este direito por analogia (HUCK, 1996. pp. 166-167). Estes indivíduos possuíam então a guerra como uma forma de auto-preservação. Mas como supracitado, no início do direito internacional não só não existia proibição do uso da força, como esta era um instrumento corriqueiro de política externa, 93 HUCK, 1997. p 166. 94 Uma tradução possível: Todos os direitos permitem a oposição da força com a força. 32 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações restando a previsão da legítima defesa a inutilidade. Se o uso da força era livre, qualquer justificativa era descartável. Porém, como igualmente destacado, finalmente surge a estrutura de restrição da força, e esta provisão, então inócua, passa a gozar de grande influência. A legítima defesa se tornou uma das poucas exceções inquestionáveis, capaz de “justificar” uma guerra, perante o direito internacional. O Estudo da legítima defesa divide esse fenômeno em modalidades, como defesa contra o terrorismo ou proteção a nacionais no estrangeiro, e a legítima defesa preventiva, que é o foco do nosso trabalho. Conceito de Legítima Defesa Preventiva Este conceito se encontra na raiz da doutrina da legítima defesa por uma construção lógico-histórica. Enquanto a legítima defesa per se não precisava de justificação jurídica, sendo aceita por todos os ordenamentos jurídicos, logo houve casos que ensejaram um desenvolvimento mais claro nesse sentido. A legítima defesa preventiva se configura no ato de, à guisa de impedir que violações posteriores venham a ocorrer, o Estado realize uma ofensiva antes de ser atacado. Dividimos a legítima defesa, por questões metodológicas, em dois tipos: Interceptiva e Antecipatória. A distinção é simples, apesar de ambas serem diferentes gradações do mesmo fenômeno. A Defesa interceptiva ocorre quando as forças de um Estado “interceptam” a ação do inimigo, em vistas de neutralizar seu ataque iminente. É preciso frisar a importância do vínculo temporal. A ameaça inimiga está prestes a se concretizar, então o Estado que logo seria ofendido se lança em um ataque preventivo. A outra hipótese que estudaremos é a do ataque antecipatório, em que um Estado, ciente de uma ameaça grave, decide lançar em ofensiva militar, mesmo estando ausentes as provas da ameaça imediata, devido ao grave risco que pode advir de sua inação. Ou seja, um Estado, mediante provas que há uma ameaça, realiza uma ofensiva militar contra seu hipotético ofensor a despeito da ausência de comprovação da urgência. A distinção clara se encontra no fator tempo. Na legítima defesa convencional, o país reage após ser atacado. Na legítima defesa interceptiva, o faz na iminência de um ataque. Já na antecipatória, o faz diante de uma hipótese futura de ataque. Uma nova definição para a legítima defesa preventiva SOFAER 95 propõe alguns critérios de admissibilidade do argumento da legítima defesa. Segundo ele, a máxima derivada do caso “Caroline” não pode persistir como costume internacional soberano ou uma espécie de lei subtendida. Parece bem claro que o caso Caroline se referia especificamente a uma situação onde o terceiro Estado não era responsável pela ameaça enfrentada pelo Estado que empreende a defesa preventiva. Por exemplo, os Estados Unidos não realizavam atos de ameaça ao Reino Unido, no caso supracitado. SOFAER rejeita que tanto um Estado possa julgar o critério de risco de forma arbitrária, assim como que o Estado não pode lançar uma ofensiva contra outrem, só por este ter atingido 95 SOFAER, 2003, pp. 220-225 33 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL uma posição que pode significar risco em uma futura ofensiva armada. Ao invés, ele sugere que uma nova definição deve ser construída levando em conta que: (...) a necessidade deve ser estabelecida na base de fatores e circunstâncias relacionadas ao estabelecimento da legitimidade do uso da força sob princípios do direito internacional e dos valores da carta da ONU, incluindo: (1) a natureza e magnitude da ameaça envolvida; (2) a probabilidade que a ameaça vai ser concretizada ao menos que uma ação preemptiva seja tomada; (3) a disponibilidade e exaustão de alternativas ao uso da força e (4) se o uso da força preemptiva é consistente com os termos e propósitos da Carta da ONU e outros acordos internacionais aplicáveis. (SOFAER, 2003, p. 220) No primeiro critério, o autor citado acima afirma que ameaças podem variar enormemente de natureza e magnitude As armas empregadas podem variar desde a natureza do ataque – se realizado por forças convencionais ou grupos terroristas – ou a tecnologia empregada, como armas químicas ou biológicas. É claro que as formas de ameaça se diversificaram desde o começo do surgimento da doutrina da legítima defesa, sendo a natureza das ameaças, portanto, um dos critérios passíveis de revisão e debate. A probabilidade de concretização da ameaça seria um segundo critério. Pode ocorrer uma situação em que há uma ameaça enorme, porém ao mesmo tempo improvável. Exagerando um exemplo, é como dizer que um cometa gigante se chocar com a terra seria uma terrível ameaça, porém as chances são extremamente reduzidas. E para assegurar que as ofensivas só sejam feitas mediante uma certeza razoável das ameaças, é preciso provas. A natureza das provas também deve ser levada em questão no debate por uma nova definição. O que deve também ser combatido através da legítima defesa preventiva não é o crescimento de uma possível ameaça, mas uma ameaça que já exista. Autorizar o uso da força contra ameaças que podem se formar transformaria a segurança internacional em um caos. Outro critério é a exaustão de alternativas, segundo o qual o Estado deve seguir por todos os trâmites possíveis antes de recorrer à força, e caberia ao Estado que deseja empregar a força preventivamente que trilhou todo o caminho necessário, pautado sempre pela urgência característica deste tipo de ação. O quarto e último critério seria a adequação aos princípios da Carta da ONU. Para empregar a ação o Estado deveria ter em consideração variáveis como resoluções aprovadas sobre o tema, restrição do uso da força até o máximo sustentável, entre outros. Casos práticos a) Incidente do Navio Caroline – 1837 I. Partes Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. II. Fatos O caso primário na doutrina da legítima defesa é o caso do incidente entre Canadá e Estados Unidos, na destruição do navio Caroline. Durante aquela época, alguns insurgentes 34 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações canadenses ensejavam uma rebelião. Alguns americanos apoiavam o movimento e o governo federal alegava falta de competência legislativa – que cabia ao ente federado – para impor a neutralidade dos americanos no conflito dos rebeldes com a Coroa britânica. No dia 29 de dezembro, um destacamento britânico cruzou o rio Niágara e atacou o navio Caroline - usado freqüentemente para transporte de suprimentos da base rebelde na ilha Navy - que estava ancorado na margem americana, matando pelo menos um americano no conflito. O barco foi posto em chamas e deixado à deriva, findando destruído no fundo das cataratas do Niágara. Relata-se que “várias pessoas embarcadas no navio desapareceram, tragadas pelas águas, dois cidadãos americanos foram mortos, assim como dois canadenses 96 ”. Posteriormente, o caso voltou à tona na ocasião da prisão nos Estados Unidos de um marinheiro que se gabava de ter participado do ataque ao Caroline. III. Análise Apesar do caso jamais ter sido levado a uma corte de justiça internacional – que até então não existia –, o incidente gerou debates fervorosos e conflitos de interpretações divergentes entre as partes. O Reino Unido alegou que o fracasso dos Estados Unidos em impor suas próprias leis na fronteira levou aos oficiais britânicos a tomarem uma atitude buscando a auto-preservação, que no caso significou no “direito de destruir o veículo de pirataria dentro do território norte-americano 97 ” ao: (...) defender o território britânico do ataque não-provocado de um bando de rebeldes britânicos 98 e piratas americanos, os quais foram ‘permitidos’ se armar e organizar em território dos Estados Unidos (...) chegando a invadir uma porção do território de Sua Majestade. (SOFAER, 2003 p. 218 ) Os Estados Unidos responderam com furor ao incidente, alegando que não havia base na doutrina internacional para qualificar o Caroline como um navio pirata. Ademais, reconhece que os cidadãos americanos poderiam ser presos e condenados no Canadá, mas argumenta que a Grã-Bretanha não tinha direito de adentrar outra soberania para prendê- los. Haveria possibilidade de uma ação semelhante, se pautada nos padrões de que “a necessidade precisa ser iminente, extrema, e envolvendo destruição iminente 99 ”. Ambos os países viam a legítima defesa como uma justificativa plausível, apenas discordando se o era o caso ou não. Para o Reino Unido, havia complacência e permissividade dos Estados Unidos com os rebeldes americanos ao longo da fronteira que legitimaria uma ação para, embasada pela necessidade, fazer valer a justiça que os Estados Unidos falharam em prover. Por mais que registros históricos apontem que realmente houve ineficácia por parte dos estadunidenses, a visão norte-americana era a de que os requisitos dos britânicos estavam sendo atendidos pelos Estados Unidos, e que uma ação de legítima defesa preventiva dessa natureza só poderia ser empregada caso a necessidade de agir fosse “instantânea, insuperável, sem qualquer possibilidade de escolha de meios alternativos e sem tempo para deliberação 100 ”, que se tornou a principal máxima na doutrina da legítima defesa. O caso 96 HUCK, 1997, p. 169 97 HUCK, 1997, p. 170 98 Apesar de canadenses, os rebeldes ainda eram, diante da interpretação britânica, súditos de seu império. 99 SOFAER, 2003 p. 216 100 SOFAER, 2003 p. 219 35 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL terminou com um pedido de desculpas do Reino Unido através de notas diplomáticas, sem maiores conflitos, mas tornou-se fundamental na análise da legítima defesa. b) Incidente do Navio Virginius – 1873 I. Partes Estados Unidos, Reino Unido e Espanha. II. Fatos Similar ao caso Caroline, o navio americano Virginius estava sendo utilizado por rebeldes cubanos no transporte de suprimentos, armamentos, insurgentes cubanos e voluntários estrangeiros na luta pela independência de Cuba da Espanha. O navio americano: (...) foi atacado em alto-mar pela armada espanhola, feitos prisioneiros os membros da tripulação e todos os passageiros. Os membros da tripulação que tinham nacionalidade americana e inglesa foram julgados e condenados à morte, acusados da prática de atos de pirataria.(HUCK, 1996 p. 171) III. Análise O caso teve três teses. Para a Espanha, foi um exercício legal do seu direito inerente à legítima defesa. O governo inglês admitia que a tomada do navio pudesse ser justificada como um ato de legítima defesa da Espanha buscando salvaguardar seus interesses nacionais, mas repudiava veementemente a execução dos tripulantes, especialmente os britânicos. Já o governo americano, não só a execução como todo o ato estava revestido de ilegalidade. Segundo os Estados Unidos, era garantido ao barco o direito de livre-navegação em alto mar durante tempos de paz, que obviamente foi violado pelo ataque da armada espanhola. Assim como o caso supracitado, a prática internacional mostrou que a legítima defesa pode justificar até o exercício do direito em um Estado terceiro, alheio ao conflito. c) Crise dos Mísseis de Cuba -1962 I. Partes Estados Unidos, União Soviética e Cuba. II. Fatos Considerada uma das situações críticas da guerra fria, o imbróglio se deu após o estabelecimento de bases avançadas dos Estados Unidos na Inglaterra, Itália e principalmente Turquia, quando, em seguida, se efetivaram ameaças norte-americanas de invasão da ilha de Cuba, o que gerou, conseguinte, que Fidel Castro celebrasse um acordo com a União Soviética, que começou a montar uma base de mísseis balísticos nucleares soviéticos em Cuba. A proximidade dos mísseis ao solo americano criou uma crise sem precedentes, em razão de uma suposta ameaça contida pela sua presença. O então presidente John F. Kennedy ordenou um bloqueio pacífico e exigiu que os mísseis fossem retirados de Cuba. Depois de 36 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações intensa negociação e ameaças tanto da União Soviética quanto dos Estados Unidos, os mísseis foram retirados. III. Análise Durante a crise, os Estados Unidos envidaram uma série de argumentos fundamentando uma possível “quarentena defensiva” e que a simples presença daqueles mísseis estacionados a tão curta distância era uma ameaça permanente. Fidel Castro argumentou, por sua vez, que não era nem poderia ser crime a presença de armamentos em território cubano. Cuba era um Estado soberano, e não havia nenhuma ameaça explícita contra os norte-americanos. Os soviéticos, por sua vez, argumentavam que se a presença de mísseis em Cuba era periclitante, também o era a presença dos mísseis americanos na Turquia. Com um arsenal bem mais limitado que o norte-americano, o líder soviético Nikita Kruschev chegou a exigir que a base na Turquia fosse desmantelada, proposta que não foi aceita pelo governo dos Estados Unidos. Entrementes, além das partes em conflito, a posição da comunidade internacional sobre a admissibilidade da causa como legítima defesa preventiva foi brilhantemente sumarizada pelo delegado de Gana no Conselho de Segurança, que questiona: Existem fundamentos para o argumento de que tal ação é justificada pelo direito inerente de legítima defesa? Pode ser aduzido que existiu, nas palavras de um antigo Secretário de Estado americano cuja reputação como jurista é amplamente aceita neste campo, uma “insuperável necessidade de legítima defesa, sem qualquer possibilidade de escolha de meios alternativos e sem tempo para deliberação”? (AREND, 2003 p. 94) E responde em seguida: Minha delegação não acha que sim, pois como disse antes, ainda não está disponível prova irrefutável do caráter ofensivo dos desenvolvimentos militares em Cuba. Tampouco pode ser argüido que a ameaça é de tal natureza que justifique a escala das ações até agora tomadas, anterior a uma referência a este conselho. (AREND, 2003 p. 94) Mais uma vez, o que se vê é que existe uma previsão costumeira e doutrinária pra a legítima defesa, inclusive jurisprudencial, mas os requerimentos, aos olhos da comunidade internacional, não foram satisfeitos. É preciso ressaltar, porém, que não se sabe se uma inação do governo norte-americano neste ponto da história teria gerado uma escalada armamentista, e qualquer aprofundamento nesta possibilidade não passaria de um exercício de futurologia. Mas a possibilidade de que talvez o relaxamento dos requisitos da legítima defesa tenha sido crucial para a solução de um conflito em formação precisa ser levada em conta. d) Guerra dos Seis Dias – 1967 I. Partes Israel, Egito, Jordânia e Iraque. II. Fatos 37 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Em Junho de 1967 o Estado de Israel lançou uma ofensiva militar que é conhecida como uma das mais breves e eficientes da história da guerra, ganhando em apenas seis dias aquela que viria a derivar do seu curto período de tempo o seu nome, a Guerra dos Seis Dias. Neste conflito, após a tensão e instabilidade provocada pela crise de Suez de 1956, o Egito, liderado pelo presidente Nasser, juntou-se aos exércitos da Síria, Jordânia e Iraque, estacionando as tropas a poucos quilômetros da fronteira israelense após uma disputa sobre o uso de um canal na região. Segundo uma pesquisa feita por Isi LIEBER, na ocasião, Nasser teria declarado: Os exércitos do Egito, Jordânia, Síria e Líbano estão posicionados na fronteira com Israel (…) para enfrentar o desafio, enquanto posicionados em nossa retaguarda estão os exércitos do Iraque, Argélia, Kuwait e Sudão, e toda a nação árabe. Este ato estarrecerá o mundo. Hoje eles saberão que os árabes estão organizados para a batalha, a hora crítica chegou. Nós alcançamos o estágio das ações sérias, não mais declarações. (LIEBER, 1972 p. 60) Israel lançou uma ofensiva contra os exércitos árabes aliados, e no dia 10 de junho, o combate já estava encerrado através de um cessar- fogo, após apenas seis dias de confronto. Após o conflito, Israel tinha triplicado sua extensão territorial, com o domínio das Colinas de Golã, Faixa de Gaza, rio Jordão, Cisjordânia e península do Sinai. Israel optou por retornar Sinai e Golã aos seus Estados originais em troca de acordos de paz e da promessa de manutenção da zona desmilitarizada. III. Análise Segundo AREND101 , ao curso dos debates no Conselho de Segurança, Israel pautou a defesa de seus atos na tese de que realizou uma ação militar antecipatória, em vistas de impedir o que acreditava ser um ataque iminente por parte dos Estados árabes. Não surpreendentemente, de acordo com AREND102 , o apoio e oposição a Israel seguiu traçados políticos. Países como União Soviética, Síria e Marrocos se pronunciaram contrários ao ato israelense, destacando grande importância e responsabilidade ao primeiro ato em um conflito, e conseqüentemente, deslegitimando uma legítima defesa antecipatória. Os apoiadores de Israel, também não foram enfáticos em estabelecer uma doutrina da preempção antecipatória. e) O Caso dos Contras na Nicarágua – 1979 I. Partes Estados Unidos e Nicarágua. II. Fatos 101 AREND, 2003, 95. 102 Idem 38 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações Receando que Sandinistas da Nicarágua estivessem importando o regime socialista de Fidel Castro, o governo norte-americano, autorizado pelo então presidente Ronald Reagan, começou a financiar em 1981, através da CIA os “Contras”, ou seja, uma força contrarevolucionária. O governo da Nicarágua entrou com uma queixa contra os Estados Unidos junto à Corte Internacional de Justiça, exigindo reparações pelo ocorrido, na violação de sua soberania. III. Análise A questão dos Contras é um caso de importância basilar, sendo a primeira oportunidade que a Corte Internacional de Justiça pôde opinar acerca da legítima defesa preventiva. Os Estados Unidos alegaram que agiram em exercício da sua legítima defesa coletiva. Em opinião corroborada em sua decisão separada, o juiz Schwebel declarou que as ações norte-americanas foram justificadas com base na legítima defesa preventiva coletiva. Segundo o nobre juiz, as provas indicam que os Estados Unidos agiram em defesa de El Salvador, com quem tem acordos de defesa coletiva, e seria vítima recorrente de ingerências da Nicarágua. Porém esta opinião foi vencida. A maioria dos juízes concluiu que os Estados Unidos falharam em sua obrigação de não usar a força nas relações internacionais, e de não intervir em outros entes soberanos, como tentou fazer, indiretamente, através dos Contras. Completou a Corte que, se claramente Nicarágua não oferecia riscos aos Estados Unidos, tampouco o fazia a El Salvador, descaracterizando a legítima defesa preventiva coletiva. Um detalhe peculiar deste julgamento é o fato de que a Corte preferiu somente desqualificar o caso prático como legítima defesa preventiva, ao invés de elucidar o conceito, deixando margem pra a doutrina ou prática dos Estados o fazerem103 . As conseqüências deste julgamento foram, além da condenação aos Estados Unidos a pagar as devidas reparações à Nicarágua, os EUA, alegando ter sido vítima de um erro por parte da Corte, retiraram sua ratificação sobre a jurisdição compulsória da Corte, ou seja, só pode desde então ser submetida a julgamento perante este tribunal mediante seu consentimento. f) Ataque ao Reator de Osirak – 1981 I. Partes Israel e Iraque. II. Fatos Em junho de 1981, Israel bombardeou o reator nuclear iraquiano localizado na cidade de Osirak (Iraque), resultando na morte de dez soldados iraquianos e um pesquisador francês. A inteligência de Israel acreditava que o alvo seria usado para produzir armas nucleares com intuitos beligerantes. III. Análise 103 O sumário da decisão está disponível online no endereço: http://www.icj-cij.org/icjwww/icases/inus/inus_isummaries/inus_isummary_19860627.htm 39 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Da mesma forma que em 1976, Israel argumentou suas ações com base na legítima defesa antecipatória. Mas se a ofensiva na Guerra dos Seis Dias foi apoiada por muitos tendo em vista a conjuntura política e as tensões entre os Estados próximos a Israel, a ação em Osirak foi amplamente rechaçada pela comunidade internacional. Até aliados costumeiros como os Estados Unidos fizeram coro a condenar a postura dos israelenses. Mais uma vez, os delegados do Conselho de Segurança argumentaram que a situação em questão não apresentava os requisitos dispostos na ocasião do caso Caroline. AREND104 destaca que, curiosamente, enquanto se opunha ao comportamento israelense, a delegação norte-americana não se pronunciou contra a doutrina do ataque antecipatório, mas simplesmente ao caso concreto. Ou seja, subtende-se que a política externa americana se não apóia, não execra a legítima defesa antecipatória. Posteriormente veremos que esta modalidade passou a integrar a política externa norte-americana no século XXI. g) Intervenção no Afeganistão e Iraque – 2002 e 2003 I. Partes Estados Unidos, Afeganistão e Iraque. II. Fatos Como resposta ao atentado terrorista de 11/9/2001 os Estados Unidos formularam uma nova política externa de guerra contra o terrorismo. Sob a missão de destruir o grupo terrorista Al-Qaeda, os Estados Unidos, juntamente com a Coalizão, invadiram o Afeganistão em 2001, tirando do poder o regime talibã, que governava há décadas. Mesmo após a “pacificação” do país, o proclamado líder da Al-Qaeda Osama Bin Laden não foi encontrado. Posteriormente, em situação seme lhante, mediante provas apresentadas ao Conselho de Segurança de indícios que supunham a presença de armamentos nucleares no Iraque, e em resposta à postura não cooperativa de Saddam Hussein, os EUA empreenderam uma intervenção militar no Iraque novamente junto com a Coalizão 105 . Enquanto o Afeganistão já teve sua autoridade plenamente restabelecida e tendo sido eleito um presidente – atualmente Hamid Karzai, eleito em outubro de 2004 – o Iraque ainda está em processo de transição, com o fortalecimento das instituições democráticas e julgamento de Hussein por seus crimes contra o povo Iraquiano. III. Análise As guerras do Afeganistão e Iraque foram as primeiras guerras do novo milênio, e são símbolos também do que se esperar dos novos conflitos armados. A iniciativa contra o Afeganistão se configura em uma legítima defesa, mesmo que com uma referência nebulosa de quem foi o ofensor. Aceitando-se que o ataque foi executado pela Al-Qaeda, e esta se 104 AREND, 2003, p. 96 105 The “Coalition of the willing”, que teria em “Coalizão dos dispostos” uma possível tradução. Faziam parte da coalizão No caso do Afeganistão, as forças da Coalizão eram: OTAN, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Autrália, França, Irã, Paquistão, Nova Zelândia, Países Baixos, Noruega, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Estônia, Latvia, Ucrânia e Geórgia e Aliança Afegã do Norte. Já no caso do Iraque, era composta por: Estados Unidos, Reino Unido, Polônia, Austrália, Coréia do Sul, Romênia, Espanha, Portugal, Itália, Estônia, Latvia, Lituânia, Ucrânia e Geórgia. 40 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações encastela no Afeganistão, a lógica natural é buscar sufocar o mal em sua fonte.Questiona-se se os critérios da proporcionalidade e necessidade foram atendidos. Percebe-se também que o conflito se deu entre um Estado e ente não-estatal, no caso a Al-Qaeda, e não o tradicional conflito entre Estados. Mas o caso mais controverso é o do Iraque. Diante de alegadas provas, os Estados Unidos empreenderam sua ofensiva, que se configuraria em uma legítima defesa preventiva, mas os critérios não foram plenamente atendidos. O argumento que a ameaça não era grave o bastante pra permitir uma violação de soberania ainda foi agravada pela constatação que as provas apresentadas pelos EUA diante do Conselho de Segurança eram falsas. O critério de aceitação de provas e comprovações de ameaça pode ser discutido. E esse liame da antevisão americana, ou seja, se a ameaça futura era grave ou não, é complicada pela incidência de armamento nuclear no conflito. Em suma: depois do Iraque, temos ainda mais perguntas que respostas, haja vista que este caso ainda não foi submetido a nenhum tribunal interna cional para sua interpretação. h) Ofensiva israelense no Líbano – 2006 I. Partes Israel, Líbano e Hezbollah. II. Fatos Caso semelhante ao da Guerra dos Seis Dias. Membros do grupo extremista Hezbollah atravessaram a fronteira com Israel, seqüestrando dois e matando três soldados israelenses. Israel considerou o governo do Líbano responsável por não impedir a ação do Hezbollah, e lançou uma ofensiva que começou dia 12 de julho, tendo se encerrado dia 14 de agosto, após a aprovação de um cessar- fogo. Durante o ataque Israel usou de força militar aérea, naval e de solo, enquanto o Hezbollah disparava mísseis continuamente contra Israel. III. Análise A despeito da atualidade do assunto tornar a análise mais complexa, podemos concluir que houve no caso em questão um ataque de legítima defesa conjugado com um ato de legítima defesa preventiva. Ao mesmo tempo em que Israel respondeu à ofensa por parte do Hezbollah na questão dos soldados, buscou mitigar as suas forças e reduzir sua ameaça futura. É preciso ressaltar que, assim como no Afeganistão, houve um conflito entre um Estado e um ente não-estatal, o que ainda não está devidamente previsto no direito internacional. O governo do Líbano ficou à margem do conflito. Questiona-se também a proporcionalidade do uso da força no conflito, se ela foi feita realmente de forma desmedida. Pode ser aduzido que se os motivos israelenses de fato eram justos, a forma em que a guerra foi travada não foi tão justa assim. O caso também ainda não foi levado a julgamento internacional. As polêmicas interpretações do Art. 51 Uma espada obriga a outra a ficar na bainha.(George Herbert) 41 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL Sendo então, como já citado, inquestionável o direito intrínseco à legítima defesa, a Carta das Nações Unidas versa em seu - não intencionalmente - polêmico art. 51, a possibilidade de emprego da guerra ou uso de força para assegurar a legítima defesa. O artigo 51 encontra-se no capítulo VII da Carta, que entre os artigos 39 a 51 tratam da Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão. Em síntese, trata das proibições e suas exceções concernentes ao uso da força ou guerra. Como medida para o estabelecimento da paz, firmou-se a proibição da guerra com reservas a três possibilidades, que intencionalmente teriam a liberdade de ação armada com intuitos pacíficos ou garantia da segurança. A primeira possibilidade, como supracitado, trata-se do dispositivo descrito no artigo 107 da Carta, que historicamente perdeu a necessidade: a ação contra Estados Inimigos. Por ser um artigo com limitações circunstanciais e temporais, tal possibilidade de uso da força legalmente é considerada na atualidade inexistente. Por sua vez, a segunda exceção da proibição do uso da força é o uso legitimado pela autorização do Conselho de Segurança. Como a autorização do Conselho passa por uma tramitação consideravelmente importante e complexa para legalizar e autorizar as iniciativas armadas, sendo necessário inclusive que nenhum dos membros permanentes se disponha contrário, durante o período da Guerra Fria, o Conselho esteve diversas vezes imobilizado pelo poder de veto. A terceira exceção para o uso legal da força seria a baseada no princípio da legítima defesa, a única que nos interessa no momento. Contrariamente à intenção de restrição do uso da força, a maioria dos atos de guerra é realizada em invocação do direito à legítima defesa. Tal uso abusivo do artigo 51 tornou-o polêmico, levantando diversas interpretações muitas vezes contraditórias e facilmente “adaptáveis” aos interesses políticos dos Estados. Analisaremos a seguir a redação do referido artigo para demonstrar algumas das possibilidades de interpretação usadas para justificar o uso da força como ataque antecipado ou interceptivo e instamos aos Srs. especialistas que empreendam uma busca por suas entrelinhas a verdadeira intenção de sua redação, enquanto recapitulando alguns conceitos já tratados neste trabalho. ARTIGO 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacional. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. (Carta das Nações Unidas) Na primeira linha - “nada na presente carta prejudicará o direito inerente...” - o artigo afirma abertamente o direito à legítima defesa como uma garantia superior até mesmo a outro artigo que hipoteticamente verse contraditoriamente na Carta. O artigo reconhece que existe um direito adquirido fundamentado em um costume internacional, anterior à sua elaboração. A priori, tal garantia é óbvia e simples, porém, sua grande importância se revela na simples existência de sua provisão no texto da Carta. A legítima defesa, como previamente exposto, é um conceito comum a todos os sistemas jurídicos, e, portanto a necessidade de sua reafirmação denota a preocupação em salvaguardar a sua efetividade perante a nova ordem em 42 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações construção. Ao mesmo tempo em que por uma direção caminhava a forte evolução jurídica no sentido do banimento da força, a legítima defesa age como válvula de escape, uma via alternativa, no próprio texto da Carta. Sendo assim, a exacerbada garantia do instituto da legítima defesa acaba sendo também um atrativo ao abuso desse direito, considerando-se as ações fundamentadas em legítima defesa como a possibilidade de uma ação legal mais eficaz do ordenamento, que mesmo quando indevidamente requisitada, é previamente protegida pela simples possibilidade de coerência jurídica. Por sua vez, quando trata da “Legítima defesa individual ou coletiva”, existe no artigo a possibilidade assegurada, porém não conceituada de legítima defesa coletiva. Muito utilizada também atualmente, entende-se por legítima defesa coletiva quando duas ou mais nações firmam tratados de defesa mútua para assegurar que em caso de ataque ou ameaça, os esforços militares sejam mais eficazes. Porém, no artigo não é impedido, por exemplo, que tal tratado seja firmado posteriormente ao ataque, sendo possível a um país agredido ou ameaçado pactuar com um ou mais Estados, um acordo de legítima defesa coletiva para uma ação de retaliação à agressão ou ameaça que gerou o direito à legítima defesa. A possibilidade de legítima defesa coletiva não é contestada, mas sim as circunstâncias em que esta possa ser alegada. Ian Brownlie acerca do aludido assevera que: O direito à defesa coletiva foi aceito no direito em geral antes do surgimento da Carta das Nações Unidas, mas recebe agora um reconhecimento expresso das provisões do artigo 51 da carta. Pode ser lembrado que, em resposta ao ataque do Iraque no Kwait, a resolução do Conselho de Segurança 661(1980) fez referências expressas em seu preâmbulo ao ‘direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, em resposta ao ataque armado efetuado pelo Iraque contra Kwait’. No caso Nicarágua (méritos), o direito internacional indicou duas condições para o exercício legal da legítima defesa coletiva. A primeira condição é que o Estado vítima declare seu estado como vítima e requeira assistência. A segunda condição é que o ato ilegal reclamado precisa constituir um “ataque armado”.(BROWNLIE, 2003) 106 Sendo essas condições descritas tão vagas quanto a sua não definição no artigo, podem, então, surgir duas contradições ao conceito de legítima defesa. A primeira diz respeito ao princípio da proporcionalidade de força usada na legítima defesa. A associação de diversos Estados que em comum acordo fazem uso de suas forças para reagir a um ataque ou ameaça de um terceiro pode ocasionar no abuso de poder por parte destes países com o uso indevido de suas forças, ferindo este princípio da proporcionalidade. Como vimos anteriormente, nem toda autodefesa é legítima, sendo a proporcionalidade do meio empregado para a repulsa e cessação da agressão componente primordial para caracterizar um ato como legítima defesa. Por sua vez, a segunda contradição pode ocorrer quando, por motivos políticos, alguns países associam-se em um tratado e mascaram uma ofensiva como ato de legítima defesa aguardando alguma oportunidade para invocá- la. Assim sendo, a legítima defesa não estaria sendo usada para garantia de um direito, mas sim para adquirir vantagens e interesses, atitude totalmente contraditório a sua função. Ainda podemos encontrar casos como o da antiga 106 BROWNLIE, Ian. Principles of International Law. 6ª ed. New York: Oxford University Press. 2003. 43 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL União Soviética, em que alguns Estados pactuavam com a superpotência, não por interesse próprio, mas sim por uma certa coação exercida 107. A necessidade de uma ação anterior que justifique tal ação (do artigo: “no caso de ocorrer”) é singular a aplicação do artigo. Se entendido desta forma, o conceito ainda é vago por não prever que ações anteriores serão consideradas e quão anteriores podem ser. Quando na guerra pela Cachemira, a Índ ia e o Paquistão alegaram ambos o artifício da legítima defesa para a guerra, o Conselho não foi capaz de estabelecer qual dos dois havia iniciado a agressão em uma análise histórica. A regra é que se força o Conselho a analisar qual dos dois possui procedência na alegação 108. Mais grave, porém, é se analisarmos o artigo em uma das suas línguas originais. Em inglês, o artigo diz: Nothing in the present Charter shall impair the inherent right of individual or collective self-defense IF an armed attack occurs against a Member of United Nations… (Carta das Nações Unidas). Na tradução para o inglês não houve a aplicação de um termo que limitasse o tempo da ação causadora do ato de legítima defesa. Sendo assim, existe a possibilidade invocar a legítima defesa a um fato que não tenha ocorrido, mas sim que possa ocorrer e então conste como uma ameaça. Este argumento ainda é reforçado pelo artigo 2.4 quando este condena com tanta veemência o uso da força quanto a “ameaça do uso da força”, as equiparando em grau de importância a ser combatido. A possibilidade de agir em legítima defesa frente uma ameaça, ou seja, diante de uma agressão iminente – no caso, uma agressão ainda não ocorrida - é uma das grandes cisões de nossa problemática. Por um lado, alguns defendem que a ameaça não é suficiente para autorizar o uso da força contra um Estado, alegando que a legítima defesa é usada abusivamente quando não está tentando cessar uma agressão existente, e que nem mesmo existem definições de quais ameaças possam ser levadas em consideração. De outro lado estão os que defendem que a ameaça é um risco de uma agressão iminente e deve ser considerada como uma agressão em si, pois aguardar uma agressão propriamente dita para então agir em legítima defesa seria suicídio, visto que não se pode aguardar que um inimigo prepare-se da melhor forma possível para uma agressão, possibilitando que este aja na hora que lhe for mais conveniente, podendo até mesmo não possibilitar uma legítima defesa posterior. Este logicamente é o lado dos que argumentam em defesa da Legítima Defesa Antecipada ou Interceptiva. Na redação do artigo encontramos a expressão “ataque armado”, que por sua vez não é conceituada, mas entendida como quando a força é usada em relativa larga escala e com efeitos substanciais, o que possibilita aos invocadores de tal artigo expor fatos que não entrariam na classificação de ataque armado para justificar uma ofensiva contra outro Estado. Embora na resolução 3314 (XXIX) de 1974 da Comissão de Direito Internacional, tenha se dado um passo grande com a definição do termo “agressão”, que não necessariamente implica 107 Alguns dos países sob influência soviética, mas não partencentes à União Soviética compartilhavam de uma dependência quase fisiológica de Moscou, ao ponto de adquirirem uma política externa declaradamente periférica à União Soviética. A razão pela qual esses Estados permaneciam pro forma era justamente para manter a possibilidade de vários votos para as causas soviéticas, o que no caso de um só pais, significaria só um voto, e um poder de barganha reduzido. 108 Na prática, o Conselho nunca conseguiu por um fim à situação de conflito., tampouco impediu que ambas as partes se tornassem potências atômicas. 44 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações em uso de força ou ataque armado, ao termo “ataque armado” ainda falta sua conceituação e abre espaço para um país que tenha como ameaça um grupo guerrilheiro situado no complacente (negligente) território vizinho a iniciar uma ofensiva contra este Estado, por exemplo. A necessidade de tal conceituação é tão necessária quanto polêmica e difícil. Classificar quais tipos de ações podem ser consideradas ataque armado é classificar em quais situações a legítima defesa poderá ser invocada como justificativa bélica. Como defendido na Carta, a legítima defesa é inerente, porém no texto da carta é limitado (“... contra Membro das Nações Unidas”), deixando transparecer, contraditoriamente, que a legitima defesa só será aceita se for por um membro das Nações Unidas, mesmo sendo considerado um direito superior que deveria ser garantido a todos. Um dos grandes problemas quando algum Estado alega de forma errada estar agindo em legítima defesa, são as conseqüências instantâneas de suas ações. Uma ofensiva baseada na legítima defesa pode ocasionar uma guerra desnecessária ou ainda um massacre ou outra forma de injustiça sem reparações. Um agravante do problema é a extensão indevida das conseqüências. Disposto no artigo, estas conseqüências podem perdurar por mais tempo que o necessário, mesmo quando o Estado estiver agindo corretamente em legítima defesa. Podemos observar isso em “Até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacional”. Possibilitar que a legítima defesa de um país estenda-se até o momento que haja intervenção do Conselho de Segurança pode abrir espaço para o uso excessivo e não proporcional da força, como é garantido pela Legítima Defesa. Estender uma ação militar até o momento em que seja discutida uma ação e iniciada de forma eficaz pelo Conselho, mesmo que este tenha delegações a postos permanentemente para tais casos, é estender o uso da força da legítima além da sua função de conter a ameaça atual ou iminente. Questões que a resolução precisa responder A Comissão de Direito Internacional se reunirá em outubro próximo em Natal, Brasil, para debater acerca da grande polêmica sobre a Legalidade do Ataque Preventivo. É desnecessário ressaltar a importância do tema, e é imperativo que a Comissão se pronuncie a respeito e dê uma resposta à comunidade internacional, nem que a resposta seja a manutenção do impasse, em vistas de se evitar uma discussão apressada sobre um assunto tão crucial. A resolução precisa clarificar diversos pontos polêmicos, dos quais sugerimos alguns a seguir: • A Legítima Defesa, tão assegurada pelo artigo 51 da carta da ONU, uma das exceções ao uso da força legal, mesmo no quadro atual de uso abusivo de tal instrumento deve ser considerado inerente e intocável a todos os membros? • O Instrumento da legítima defesa coletiva deve também ser aceito, mesmo podendo ocasionar a desproporcionalidade do uso da força e ampliar o caráter político e não jurídico desta ferramenta? Como seria regulamentada? • Ações anteriores que justifiquem a legítima defesa devem ser analisadas de que forma? Pode existir uma classificação dos atos anteriores que são capazes de gerar a faculdade da legítima defesa? • O conceito de “ataque armado” pode ser delineado com o intuito de definir quais ações realmente são possíveis de levantar a faculdade da legítima defesa? 45 COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL • Como solucionar o problema da urgência de um ataque baseado na legítima defesa e a sua real classificação como ataque justo? • Como evitar o uso abusivo do instituto da legítima defesa no atual cenário? • A prática atual no cenário internacional pode sugerir uma alteração no artigo 51 para que não hajam tantas interpretações diferenciadas? • A ameaça constitui-se em possibilidade da legítima defesa? Se sim, qual tipo de ameaça pode ser considerada um risco real a um estado que deseja realizar um ataque anterior a agressão? • É o artigo 51 uma permissão para o uso antecipado da força ou uma interpretação diferente (errada) que é feita na atualidade para justificar este uso? • A prática dos Estados autoriza o uso da legítima defesa antecipatória? • A evolução bélica – especialmente no tocante ao armamento biológico e/ou nuclear deve refletir nos limites da legítima defesa? • Estados de dimensões diminutas devem ter seus critérios de legítima defesa relaxados? Estas questões não são obrigatórias, mas sim uma recomendação, e não visam restringir o trabalho da Comissão. A Comissão deliberará sobre quaisquer questões achar necessário, dentro do tema em tela. Contamos com o afinco e dedicação dos Especialistas da Comissão, para que possam, com toda a criatividade necessária, desempenhar adequadamente seus bons ofícios, de modo a trabalhar ativa e responsavelmente na construção do Direito Internacional. Mais informações É importante reiterar que todas as considerações enumeradas neste documento são apenas um ponto de partida. É imprescindível que o participante busque outras fontes de pesquisa, aproveite a bibliografia elencada ao final do texto, e não se acanhe em contatar a mesa diretora para solucionar suas dúvidas. Felizmente a internet é um celeiro quase infindável de informação, então muitos fatos que são somente citados aqui podem ser estudados mais a fundo. Porém é importante distinguir o que é informação fidedigna, e quais websites veiculam informações imprecisas. Sites como a Wikipedia são aceitáveis para buscar um pouco mais de informação sobre as questões históricas aqui suscitadas, por exemplo, mas a informação jurídica mais precisa deve ser procurada em revistas especializadas, ou nos sites das cortes, que em sua grande maioria possuem material digitalizado e disponível na internet. Revistas como The Economist109 e Revista Veja 110fizeram reportagens extensas sobre vários conflitos recentes, como Israel e Líbano. O sítio da Corte Internacional de Justiça mantém documentos sobre seus julgados, incluindo os votos dos juízes. Recomendamos que especialmente os votos divergentes nos 109 Cujo website é www.economist.com 110 Cujo website é www.veja.com.br 46 SOI 2006 – Respeitar Diferenças. Unir as Nações casos analisados sejam observados, por sua riqueza em opiniões variadas, que ajudam a construir um julgamento crítico mais equilibrado. Conclusão “Quem crerá na justiça de sua guerra se ela é feita desmedida?” (François de la Noue) Independente do ordenamento jurídico, a legítima defesa é um instrumento de ga rantia de direitos inerente, chegando a ser garantida no âmbito internacional. Porém, também presente em todas as esferas jurídicas que se pode aplicar a legítima defesa, está abuso da autodefesa. Sendo assim, a legítima defesa torna-se um instrumento perigoso que depende eminentemente de um ponto de vista para se tornar um ato de guerra ou de salvação. Argumentos razoáveis existem de todos os lados, tanto defendendo quanto atacando as teorias de legítima defesa interceptiva e antecipatória, como já citamos ao longo deste documento. E no meio da celeuma internacional, cabe ao Direito propor definições justas e independentes dos interesses políticos, como percurso para garantia da paz, segurança e justiça. REFERÊNCIAS ALVES, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Perspectiva, 2003. 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