Texto de Henrik Ibsen Tradução de Léo Gilson Ribeiro
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Texto de Henrik Ibsen Tradução de Léo Gilson Ribeiro
PEER GYNT Texto de Henrik Ibsen Tradução de Léo Gilson Ribeiro PERSONAGENS AASE (Pronuncia-se OS), viúva de um lavrador / PEER GYNT (Pronuncia-se GUNT), seu filho / DUAS VELHAS que carregam sacos de trigo / ASLAK, ferreiro / CONVIDADOS DO CASAMENTO / MESTRE-CUCA / MÚSICO AMBULANTE / CASAL DE LAVRADORES IMIGRADOS / SOLVEIG, filha dos lavradores imigrados / HELGA, irmã de Solveig / LAVRADOR RICO de Haegstad / INGRID, sua filha / O RECÉM-CASADO e SEUS PAIS / TRÊS MOÇAS FEITICEIRAS / UMA MULHER VESTIDA DE VERDE / O VELHO DE DOVRE / GNOMOS / FEITICEIROS / DUENDES / NINFAS / BRUXAS / UM RAPAZ FEIO / UMA VOZ NAS TREVAS / GRITOS DE PÁSSAROS / KARI, mulher de um agregado / MISTER COTTON, viajante / MONSIEUR BALLON, viajante / HERR EBERKOPF, viajante / HERR VON TROMPETERSTRAALE (Pronuncia-se TROMPETERSTROLE), viajante / UM LADRÃO / UM RECEPTADOR / ANITRA, filha de um chefe beduíno / ÁRABES / ESCRAVAS / BAILARINAS / A ESTÁTUA DE MEMNON / A ESFINGE DE GIZEH / PROFESSOR BEGRINFFENFELD, doutor em filosofia e diretor do hospício de Cairo / HUHU, reformador malabar / HUSSEIN, Ministro de um potentado do oriente / UM FELLAH, que carrega uma múmia real / LOUCOS e SEUS GUARDAS / CAPITÃO DE NAVIO NORUEGUÊS / MARINHEIROS / PASSAGEIRO / SACERDOTE / UM CORTEJO FÚNEBRE / UM ALTO FUNCIONÁRIO / UM FUNDIDOR DE BOTÕES / UM PERSONAGEM MAGRO. A ação começa nos primeiros anos do século XIX e termina por volta de 1860. Desenrola-se no Vale de Gudbrande; nos Fiordes vizinhos; na Costa de Marrocos; no deserto do Saara; no Hospício do Cairo; no mar, etc. PRIMEIRO ATO Um arvoredo junto à cerca que delimita a casa de Aase. Um regato corre ao fundo. Do outro lado, um velho moinho. É um dia quente de verão. Peer Gynt, jovem de 20 anos, robusto e bem feito, desce por uma vereda, seguido por sua mãe Aase, miúda e delicada, que está ralhando com ele, e parece estar furiosa. AASE – Peer: você está é mentindo! PEER (Sem parar) – Não estou nada! AASE – Então jura que é verdade! PEER – Pra que você quer que eu jure? AASE – Ah: está vendo? Você não tem coragem. Vai embora, seu desgraçado! Você só sabe mesmo é pregar mentira! PEER (Parando) – Não senhora: é tudo verdade, tintim por tintim. AASE (Colocando-se diante dele) – Menino: você não tem vergonha de mentir pra sua mãe, não? Era só o que faltava! Você sai para caçar renas nos fiordes, durante meses, sem se preocupar nem um pouco com a colheita. Depois, com a maior calma, volta sem o fuzil, sem caça, com o casaco de peles todo rasgado e ainda quer que eu acredite nas suas lorotas de caçadas! Conversas fiadas pra boi dormir! Então vamos ver: esse cabrito montês onde foi que você pegou? PEER – A oeste de Gendin. AASE (Fingindo acreditar) – Ah é, é? E o que mais? PEER – Bom: eu estava andando contra o vento, um vento muito forte. Aí, atrás de um tronco caído, apareceu o cabrito montês, que estava procurando plantinhas debaixo da neve. AASE (Fingindo acreditar) – Ah, sei: e depois? PEER – Eu estava à espreita, prendendo a respiração. Estava ouvindo a camada de neve se quebrar debaixo dos cascos dele e conseguia ver a ponta de um chifre... Aí, eu fui deslizando, deslizando bem devagar... Me arrastei até pertinho dele... e escondido no meio das pedras, fiquei espiando ele. Olha mãe: não estou brincado! Você nunca viu um cabrito montês como aquele – tão gordo, com o pelo brilhando, lindo! AASE – Não vi, nem em sonhos! PEER – Pum! Atirei, não é? O cabritinho cai ferido no chão. Mais do que depressa, eu salto em cima dele, seguro na orelha esquerda, e já vou enfiar a faca nas costas dele, quando, de repente, o bandido dá um rugido de assustar; fica em pé nas quatro patas, jogando a cabeça pra trás uma porção de vezes, e me faz cair a faca das mãos e começa a me apertar os rins com os chifres, dando marradas como se estivesse preso numa roda, e assim vai me levando pelo fiorde de Gendin! AASE (Involuntariamente) – Jesus Santíssimo! PEER – Você sabe aquele fiorde, que deve ter meia milha de comprimento, cheio de arestas afiadas que nem uma foice, e que termina numa ladeira abrupta, cheia de desmoronamentos e de blocos de neve endurecida, chicoteado pelos ventos? Dos dois lados, a rocha bruta despencando em linha reta até o fundo do fiorde – um abismo preto, sinistro, vertiginoso, profundo – de umas trezentas varas de fundo! Atirados do cume abaixo, o bicho e eu atravessamos os ares! Nunca cavalguei montaria igual! Parecia que nós estávamos galopando em direção ao sol! Debaixo de nós, no despenhadeiro, águias de asas escuras pareciam voar para trás, como palhas sopradas pelo vento. Lá embaixo vi um bloco de gelo se espatifar de encontro à costa, mas o barulho nem chegou até meus ouvidos! Só os diabos, os demônios da vertigem cantando e dançando em torno eram os donos de todos os olhos e de todos os ouvidos! AASE (Assustada) – Jesus bendito: tende misericórdia! PEER – De repente, de um ponto da rocha escarpada se levantou um bando de perdizes escondidas numa toca e assustadas pelas patas do cabrito. Ele, de supetão, dá uma meia-volta brusca e se joga no abismo, com um salto mortal! (Aase vacila e busca apoio numa árvore. Peer continua, sem parar) Atrás de nós, os penhascos sombrios; na nossa frente, o abismo sem fundo! Primeiro furamos uma camada de névoa, depois uma nuvem de gaivotas que levantaram vôo grasnando gritos de espanto! Fomos caindo, rápidos que nem um raio! Lá no fundo, eu percebia uma mancha brilhante, branca como o ventre de uma rena! Mãe: era a nossa própria imagem refletida no lago tranqüilo e que subia para a superfície da água com a mesma velocidade estonteante que nós caíamos! AASE – Peer: pelo amor de Deus! Acaba de uma vez! PEER – Chifre contra chifre chocaram-se afinal os dois cabritos: o do ar e o do lago! Esguichou para o alto uma onda espumante bem no lugar onde eles se encontraram. E nós ficamos nos debatendo na água, um tempão enorme, enorme! Fomos nadando, sempre para adiante: o cabrito na frente me rebocando, até chegar à margem norte do fiorde. Aí eu desci não é? - e vim andando de volta pra cá... AASE – Sim, senhor! E o cabrito que fim levou? PEER – O cabrito? Acho que ainda está correndo, até agora! (Estala os dedos e faz uma pirueta.) Quem conseguir pegar ele, é um sujeito muito esperto! AASE – E você não quebrou o pescoço, meu filho? Nem as pernas? Ou quem sabe a espinha? Oh, não - milhões de graças a Deus quem me devolveu meu Peer são e salvo! Mas olhe: sua calça está rasgada. Não tem importância! Não me queixo, quando penso que podia acontecer coisa mil vezes pior! (Levanta-se de repente, olha para Peer boquiaberta, fica um tempo longo sem achar palavras, até que berra, finalmente.) Ah, seu bandido! Ah, seu mentiroso de uma figa! Tudo inventado, petas do diabo! A história que você acabou de me contar, é uma que já ouvia contarem desde que era menina de colo! Foi um caso que se deu com Gudbrand Glese, e não com você! PEER – Se deu com nós dois! São casos fáceis de acontecer mais de uma vez, não é? AASE (Com raiva) – Ah são, sim senhor! São sim! É fácil pegar uma mentira, alterá-la, embelezá-la com mil detalhes e preparála tão bem que nem se reconhece o esqueleto por debaixo! E é isso que você faz! Você inventa asas de águias e outros enfeites maravilhosos ou apavorantes: e pronto - todo o mundo cai nessa armadilha de episódios mirabolantes, que deixam a pessoa sem respirar, sem poder falar! Nem se reconhece a história batida há tanto tempo! PEER – Mãe: se não fosse você a me dizer isso, eu matava o atrevido de tanta pancada! AASE (Chorando) – Meu Deus do céu! Quem me dera poder morrer e descansar debaixo da terra! Ele não se comove com nada: nem chorando nem implorando! Ah, Peer, Peer: você está perdido, não tem mais quem salve você! PEER – Está bem, mamãe. Você é uma santa e tem toda a razão. Vamos: não fique zangada. Vamos: alegria, alegria! AASE – Cala a boca! Que alegria que eu posso ter com um filho porcaria como você? Não é um castigo para uma pobre viúva ser humilhada assim, por essa vergonha? Esse é o pago que eu tenho! (Chora de novo.) O que é que restou da fortuna do teu avô? Onde estão aqueles alqueires de prata do velho Rasmus Gynt? Onde estão suas moedas de ouro? Seu pai botou todas pra dançar! Semeou elas como se fossem areia, comprando terras por toda a vizinhança, passeando como um grão-senhor em carruagens douradas. E o dinheiro, todo, malbaratado naquela festança grande de inverno, quando as garrafas voaram em pedaços, quando todos os convidados atiraram as taças contra a parede. Onde está; que fim levou aquela dinheirama toda? PEER – E as neves de outrora, onde estarão agora? AASE – Respeito com a tua mãe! Olha a casa, olha o cercado! Quase todas as vidraças foram substituídas por trapos velhos. As sebes estão derrubadas, as cercas também. O gado não tem mais lugar para se refugiar; os campos ninguém cultiva e cada mês é uma penhora que aparece!... PEER – Deixa de caduquice, mãe! A sorte muda quando menos se espera! AASE – A sorte? Há muito tempo que ela nem passa por aqui. Ninguém diria que você é um homem, mas na verdade você é mesmo um rapagão forte e sacudido, que o padre que veio de Copenhague pra te batizar, ao perguntar teu nome, disse que não havia em toda a Dinamarca um príncipe que tivesse uma cara tão arrogante como a tua! Por causa disso, teu pai, mais do que depressa, deu-lhe de presente um cavalo e ainda por cima um trenó. Pois é: naqueles tempos, todos elogiavam tudo o que viam em nossa casa. O Deão; o capitão, a turma toda não arredava o pé de nossa casa, com comes e bebes e farras até o sol raiar. Mas é na desgraça que se conhecem as pessoas. Desde o dia em que João Mascate foi-se embora, por esses caminhos, com a trouxa nas costas, tudo ficou silencioso por aqui. Não passou mais ninguém por essas paragens. (Enxuga os olhos com o antebraço.) É meu filho: você é alto, é forte, e devia ser como um guardião para sua velha e doente mãe. Devia cuidar de nossas terras, defender os últimos restos do nosso patrimônio, mas não, seu malandro! Deus é testemunha de que você nunca se esforçou pra nada! Em casa só sabe fazer estripulias e se espreguiçar diante da lareira, remexendo as brasas. Quando é para sair, você quando vai a uma festa afugenta logo as moças e caça briga com os nossos vizinhos da vila. Por tua causa, todos riem de mim, às gargalhadas. PEER (Afastando-se dela) – Ah, vê se me deixa em paz, vê! AASE (Seguindo-o) – Você é capaz de negar que foi você que armou aquele bruto escândalo em Lunde, rolando por terra como cachorros raivosos? Não foi você que quebrou o braço de Aslak, o ferreiro, ou pelo menos lhe fraturou um dedo? PEER – Quem andou te enchendo a cabeça com essas lorotas? AASE (Com raiva) – A mulher do agregado ouviu ele gemendo. PEER (Esfregando o cotovelo) – Não foi nada ele: fui eu! AASE – Você? PEER – Eu, mamãe. Fui eu que levei a pior. AASE – Como assim? PEER – Ele é um valentão, sabe? AASE – Ele quem? PEER – Aslak! AASE – Qual: sai pra lá! O quê? Quer me contar que você apanhou de um bêbado ordinário, um reles bebedor de botequim, um farrista da laia dele? (Chora de novo.) Ah, já passei muita vergonha e muita humilhação, mas esta é a pior de todas. Um valentão, o Aslak? E, mesmo que seja, é razão pra você deixar ele te bater? PEER – Preso por ter cão e preso por não ter cão: com você não tenho chance... (Rindo.) Fica descansada, mãe! AASE – Já vem outra mentira? PEER – Desta vez pode secar as lágrimas, minha velha. (Fechando o punho esquerdo.) Olha só: com este braço fiz uma bigorna e com o outro um martelo pra golpear o ferreiro! AASE – Ah, seu brigão ordinário! Você ainda me mata com essa conduta de louco! PEER – Qual o quê, mamãezinha! Mãezinha malvada, tão boa mãezinha: você merece muito mais! Confia em mim! Todo o mundo, na vila, um dia vai se inclinar diante de você. Espera só, até eu realizar uma ação formidável, uma coisa grandiosa mesmo! AASE (Irônica) – Você? PEER – Ninguém sabe o que pode acontecer. AASE – Eu já me dava por satisfeita se você aprendesse a remendar suas calças. PEER (Enraivecido) – Pois eu vou ser Rei, Imperador! AASE – Deus que me perdoe! O coitado perdeu o restinho de juízo que lhe sobrava! PEER – Vai ser como eu te digo. Só preciso de tempo. AASE – Ah, claro, é como diz o outro: ‘dá-me tempo e serei príncipe’. PEER – Você vai ver só, mamãe. Você vai ver. AASE – Será que já não chega de variar? Você está louco varrido! Mas não posso negar que é verdade. Você podia ter sido alguma coisa na vida se desde que amanhece até que anoitece você não tivesse a cabeça cheia de embustes e invencionices bobas. A filha de Haegstad te olhava de um jeito todo especial. Ela podia ser tua, se você quisesse a sério. PEER – Você acha? AASE – O pai não tem forças para dizer ‘não’ à filha. É um velho genioso, mas no fim, a Ingrid é que vence sempre. Resmungando, ele acaba fazendo só o que ela quer. (Chora de novo.) Ah, Peer, meu filho: uma moça como aquela, rica, riquíssima, filha de um homem proprietário! E pensar que você, se quisesse, podia agora ser o esposo feliz dela, em vez de vagabundear por aqui, todo sujo e esfarrapado! PEER (Com vivacidade) – Vem: vamos logo! AASE – Vamos! Vamos onde? PEER – A Haegstad. AASE – Coitado do meu filhinho! Eles iam bater com a porta na nossa cara! PEER – Por quê? AASE – Ah, porque você deixou passar a oportunidade, só por isso. PEER – Desembucha o resto! AASE (Soluçando) – Enquanto você cavalgava pelos ares teu cabrito montês, Matz Moen pediu sua mão! PEER – Quem? Aquele espantalho que dava medo nas moças? O Matz Moen? AASE – É esse mesmo com quem ela vai se casar. PEER – Espera um minuto: vou atrelar os cavalos. (Começa a afastar-se.). AASE – Pode poupar esse trabalho: as bodas se celebram amanhã. PEER – Ótimo! Chego ainda hoje à noite! AASE – Oh, Peer, desgraçado! Será que você quer aumentar minha tristeza, servindo de saco de risadas para os outros? PEER – Fique calma! Tudo vai dar certo! (Gritando e rindo.) Alegria! Alegria! Vamos atrelar a carroça. Vou buscar o burro. (Erguendo Aase nos braços.). AASE – Me larga! PEER – Não! Vou te levar assim até o casamento! (Caminha em direção à torrente.). AASE – Socorro! Senhor tende piedade de nós! Peer: vamos nos afogar, Peer! PEER – Não seria uma morte digna de nós. Eu nasci para destinos mais elevados. AASE – Tem razão: da altura de uma forca. (Puxando-lhe os cabelos.) Ah, seu patife! PEER – Quieta! Quieta! Olha que o lugar aqui é escorregadio, hein? AASE – Seu burro! PEER – Isso! Bate com a língua nos dentes! Não faz mal a ninguém. E agora vamos subir de novo. AASE – Não me larga! PEER – Quer brincar de Peer e de cabrito montês? Upa! (Galopando.) Eu sou o cabrito montês e você é o Peer! AASE – Ui! Ai! Não sei mais onde estou! PEER – Está vendo? Já passamos o vau. (Continuando por terra firme.) Vamos: uma beijoca para o cabrito, por ter te atravessado o rio! AASE (Dando-lhe um bofetão) – Tá aí a tua paga! PEER – Ai! Essa moeda não vale!... AASE – Me larga! PEER – Só depois que a gente chegar na casa da noiva. Você vai falar por mim. Você é inteligente. Faz esse velho louco voltar atrás. Diz para ele que Matz Moen é um chato. AASE – Me larga! PEER – E diz para ele que Peer Gynt é um rapaz formidável! AASE – Ah, sem dúvida que vou dizer! Vou fazer um retrato teu que te reconhecerão de frente e de costas. Sem tirar nem pôr nenhuma de tuas façanhas endiabradas. Um retrato de corpo inteiro. PEER – Está falando sério? AASE (Sapateando de raiva) – Não fecharei a boca até o velho mandar soltar os cachorros em cima de você, como se você fosse um bandoleiro perigoso! PEER – Uhm!... Então, prefiro ir sozinho. AASE – Eu vou com você. PEER – Não, mamãezinha querida, você está sem forças. AASE – Eu, sem forças? Estou tão furiosa que era capaz de quebrar pedra com os dentes, com os dedos. Me deixa! PEER – Bem, se você prometer... AASE – Que prometer, que nada! Vou atrás de você! Vou dizer pra todo o mundo quem você é! PEER – Não senhora: você vai ficar aqui mesmo. AASE – Nunca! Quero ir com você! PEER – Pois não vai. AASE – Como você vai me impedir? PEER – Te largando em cima do moinho. (Ergue-a até o telhado do moinho, apesar dos protestos de Aase, que grita e se debate.). AASE (No telhado do moinho) – Me desce daqui! PEER – Desço, mas antes escuta o que vou te dizer. AASE – Estou pouco ligando para o que você vai me dizer! PEER – Mãezinha querida: eu te suplico! AASE (Atirando-lhe uma pedra) – Me desça já, já! PEER – Bem que eu queria, mas não tenho coragem! (Aproxima-se dela.) Presta atenção e fica quieta! Se você se mexer, se começar a atirar pedras, pode acabar mal: você pode dar com a carcaça no chão! AASE – Canalha! PEER – Não se mexa tanto! AASE – Tomara que você seja varrido do mundo como lixo imundo que você é! PEER – Puxa, mãe! AASE – Te cuspo em cima! PEER – Você devia era me dar a bênção! À bênção, mamãe! Não quer? AASE – Eu queria te dar uma boa surra, com todo o teu tamanho! PEER – Está bem. Neste caso, então, mãezinha querida, adeus! Tenha paciência! Volto logo, viu? (Afasta-se. Volta-se e com um gesto de advertência acrescenta.) Cuidado, hein? Não fica se mexendo muito! (Sai.). AASE – Peer! Pelo amor de Deus, Peer! Pois o danado vai embora de verdade! Ah, ginete de cabra, embusteiro semvergonha, escuta! Não! Olha que ele vai mesmo! (Gritando.) Socorro! Ai, que estou me sentindo mal, ai, meu Deus! (Duas velhas, cada uma com um saco nas costas, descem lateralmente, encaminhando-se em direção ao moinho.). PRIMEIRA VELHA – Jesus! Quem está gritando desse jeito? AASE – Sou eu! SEGUNDA VELHA – Aase! Que é que você está fazendo trepada no telhado? AASE – Ah, ai, não vou agüentar muito tempo! Está soando minha hora derradeira! PRIMEIRA VELHA – Então, boa viagem! AASE – Depressa, uma escada! Quero descer daqui! Esse Peer maldito! SEGUNDA VELHA – Quem: seu filho? AASE – Agora vocês podem contar que já viram as artes que ele faz! PRIMEIRA VELHA – Ah, isso é: somos testemunhas! AASE – Mas primeiro vocês precisam me ajudar. Tenho que ir correndo a Haegstad. SEGUNDA VELHA – É pra lá que ele estava indo agora há pouco? PRIMEIRA VELHA – Nesse caso, você já está vingada. Lá ele vai topar de cara com o ferreiro. AASE (Torcendo as mãos) – Deus misericordioso! Vão acabar matando o meu pobre rapaz! PRIMEIRA VELHA – Meu Deus! Já que ele tem que morrer cedo ou tarde, que importância tem um dia a mais ou um dia a menos, se for esse o destino dele? SEGUNDA VELHA – Ela desmaiou! (Gritando.) Ei: vocês aí! Eyvind, Anders: venham aqui, depressa! VOZ DE HOMEM (Fora de cena) – O que foi? SEGUNDA VELHA – Foi o Peer Gynt que deixou a mãe dele plantada no telhado do moinho! Uma colina coberta de arbustos e de urzes. No fundo, uma estrada rural, ladeada por uma sebe. Peer Gynt chega por um atalho, dirige-se com passos rápidos ao caminho e contempla a paisagem que se estende diante dele. PEER – É aquela lá embaixo, Haegstad. Não demoro a chegar. (Vai atravessar a sebe, mas detém-se.) Quem sabe? Pode ser que a Ingrid esteja sozinha em seu quarto. (Protegendo os olhos, olha para longe.) Não. Os convidados são muitos, pela estrada. Uhm... Talvez seja melhor eu voltar! (Retirando o pé que colocara por cima da sebe.) Ainda estão lá, cochichando, rindo nas minhas costas. Estou farto disso! (Dá alguns passos, afastando-se da sebe e arranca – distraído - algumas folhas.) Ah, se eu pudesse ao menos tomar alguma coisa ou passar sem que me percebessem! Ou se eu não fosse conhecido de todo o mundo! O melhor mesmo era ter um bom copo de bebida! Uma coisa forte. Que me fortificasse contra as risadas dos outros. (Olha em torno de si, assustado, e se oculta entre os arbustos. Convidados a caminho do casamento passam, levando víveres.). UM CONVIDADO (Falando com os outros) – O pai era um beberrão, a mãe é uma mexeriqueira e tanto. UMA CONVIDADA – Com esses pais, é natural que o filho seja um João Ninguém. (Passam. Pouco depois sai Peer Gynt, corado de vergonha e os segue com a vista.). PEER (Em voz baixa) – Era de mim que eles estavam falando? (Fingindo indiferença.) Muito bem, e daí? Que me importa? Me comer eles não podem! (Atira-se de novo entre os arbustos e fica longo tempo deitado, de costas, contemplando o céu.) Que nuvem mais esquisita! Parece um cavalo selado e preso pelo freio... Tem um cavaleiro montado... E detrás... Vem uma velha numa vassoura... (com um sorriso malicioso.) É mamãe. Está ralhando, gritando: ‘Peer: pára aí, sua besta!’ (Pouco a pouco ele fecha os olhos.) Você vai ver só, sua velha!... Quem cavalga tão galante ao sol do meio-dia? É Peer Gynt, o valente, com toda a galhardia. A fronte alta, as mãos em luvas bordadas, Reluz uma espada de ouro em sua cintura É o chefe de soldados equipados de ouro Com selas de prata e rubis na armadura. Com seu longo manto de seda, cruza montes e despenhadeiros, O olhar benigno sobre a multidão imensa; As mulheres lhe fazem solene reverência E bem alto proclamam: ‘ele é o mais belo de todos os cavaleiros!’ Por onde ele passa, chovem moedas de ouro Todos se tornam senhores, da noite para o dia Não há mais mendigos nem vagabundos com tanto tesouro. E entre a turba maravilhada passa o Imperador Peer Gynt Seguido dos mil escudeiros de sua grandiosa Infantaria! Cavalgando sobre os mares ele chega à outra terra, Além do Oceano recebe-o cordialmente o Rei da Inglaterra. As inglesas rivalizam em mostrar-lhe seus encantos E para agradá-lo - os poderosos e os nobres Para ele passar -, jogam ao chão seus ricos mantos. O grande Imperador da Inglaterra, também, erguendo a mão Sobre a digna fronte coroada, aproxima-se majestoso E Sua Majestade Augusta solene exclama!... Aslak, o ferreiro, passa pela estrada em companhia de outros convidados. ASLAK – Ué? É o Peer Gynt? Está bêbado esse porco! PEER (Levantando-se Imperador?... bruscamente) – O quê? O ASLAK (Apoiando-se na sebe e fazendo pouco de Peer) – Vamos: levanta daí, seu malandro! PEER – Que diabo: o ferreiro! O que é que você quer? ASLAK (Aos seus companheiros) – Está de ressaca desde a última vez em que nós o encontramos. PEER (Dando um salto) – Vai em frente, vai! ASLAK – Eu vou, mas antes, meu caro, me diga o que você tem feito nestas últimas seis semanas. Você sumiu rapaz! Por acaso você foi visitar o velho da montanha, hein? PEER – Mestre Aslak: eu fiz coisas espantosas! ASLAK (Piscando o olho para os companheiros) – Ah é? Conta pra nós, Peer, conta! PEER – São coisas que não são da conta de ninguém. ASLAK (Depois de uma pausa curta) – Você, é claro, vai a Haegstad, não é? PEER – Não vou, não. ASLAK – Antigamente diziam que a moça gostava de você... PEER – Você quer calar essa boca azarenta? ASLAK (Recuando um pouco) – Ora, não fique zangado, Peer. Se Ingrid te deu o bolo, logo você vai achar outras. Imagina só! O filho de Juan Gynt! Vem ao casamento: você vai encontrar muita carne tenra, sem contar as viúvas... PEER – Que o diabo te... ASLAK – Você vai encontrar uma que te queira. Então, até logo! Vou cumprimentar a noivinha, por você. (Afastam-se rindo e conversando. Peer Gynt os segue com a vista algum tempo. Dá de ombros e dá meia-volta.). PEER – A filha de Haegstad que se case com quem ela bem entender. Eu estou pouco ligando! (Examinando-se.) Minhas calças estão que é um remendo só! (Dando pontapés no ar.) Ah, a zombaria dessa corja! Se eu tivesse o prazer de arrancarlhe da barriga toda essa zombaria com uma faca de açougueiro... (Olhando de repente para trás.) Quem está aí? Alguém zombando de mim? Não, não tem ninguém aí. Vou voltar para a casa da minha mãe. (Encaminha-se rumo à colina, mas pára e ouve com atenção os ruídos que vêm de longe, de Haegstad.) Ah, quantas moças! Puxa! Umas sete ou oito para cada homem! Ah, maldição, massacre e infortúnio! Eu tenho que ir! Está certo... Mas e minha mãe, que deixei pendurada em cima do telhado do moinho? (Contra a vontade, olha novamente para Haegstad e começa a pular e a rir.) Olha lá: estão começando a dançar a Halling (dança folclórica norueguesa.). Como toca bem o violino esse Guttorm! Mexe com a gente, ferve que nem uma correnteza! E que enxame de moças lindas brilhando à luz do sol! Ah, maldição, massacre e infortúnio dez vezes! Eu tenho que ir nessa festa! (Com um único salto ele pula a cerca e corre naquela direção.). A propriedade de Haegstad. Ao fundo, a fazenda. Grupos de convidados. Baile animado sobre o gramado. Sentado em cima de uma mesa, o violinista amador. No umbral da porta, o Mestre-Cuca. Cozinheiras passam e repassam pelo cenário. As pessoas de mais idade estão sentadas aqui e ali, conversando. UMA MULHER (Reunindo-se a um grupo sentando sobre troncos de árvore) – A noiva? É verdade. Está chorando um pouco. Mas isso é natural. MESTRE-CUCA (A outro grupo) – Então, amigos: vamos esvaziar as jarras de vinho! UM HOMEM – Muito obrigado! Não estou fazendo pouco, é que você nem espera para encher de novo! UM MENINOTE (Dando a mão a uma menina e passando durante um passo de dança diante do violinista) – Vamos Guttorm! Não poupa as cordas do teu violino! A MENINA – Capricha na melodia, Guttorm! GRUPO DE MENINAS (Em torno de um menino que está dançando) – Que passo bonito! UMA MENINA – Deram corda nas pernas dele! O MENINO (Dançando) – Que gostoso é aqui! O teto é alto, a sala é tão grande! O NOIVO (Choramingando, aproxima-se de seu pai, que está conversando com alguns convidados e puxa-o pela aba do paletó) – Ela não quer nem por nada, pai! É tão teimosa! PAI – Não quer o quê? NOIVO – Fechou-se no quarto, à chave. PAI – Pois então manda trazer a chave. NOIVO – Não posso. PAI – Que imbecil! (Dá-lhe as costas. O noivo se afasta e atravessa o pátio.). UM MENINO (Que chega correndo, vindo de trás da fazenda) – Ei, moças! Agora é que vamos nos divertir: Peer Gynt está chegando! ASLAK (Que acabou de chegar) – Quem o convidou? MESTRE-CUCA – Ninguém. (Dirige-se para a casa.). ASLAK (Para as moças) – Se ele falar com vocês, não dêem atenção! UMA MOÇA (Para as demais) – Isso mesmo. Vamos fingir que nem o enxergamos. PEER (Chega, sem fôlego, com os olhos brilhantes. Pára no meio do grupo e bate palmas) – Qual é a mais linda de todas? UMA MOÇA (Da qual ele se aproxima) – Eu não sou. OUTRA (Idem) – Nem eu. OUTRA MAIS (Idem) – Nem eu. PEER (À outra) – Muito bem! Então venha você mesma, antes que se apresente uma melhor! A MOÇA (Dando-lhe as costas) – Não tenho tempo. PEER (Dirigindo-se a uma quinta moça) – Então vai ser você! A MOÇA (Afastando-se) – Vou me retirar. PEER – Nesta noite? Onde você está com a cabeça? ASLAK (Depois de uma curta pausa, à meia-voz) – Olha Peer: é melhor você dançar com um velho. PEER (Voltando-se rapidamente para um velho que está perto dele) – Você não conhece nenhuma que não esteja comprometida? O VELHO – Procure. (Afasta-se dele. Peer Gynt acalma-se imediatamente e dirige a um grupo de convidados um olhar tímido e indeciso. Todos olham para ele, mas ninguém fala com ele. Tenta aproximar-se de outros grupos. Assim que ele chega perto o grupo aproximado se cala. Quando ele se afasta seguem-no com os olhos e com sorrisos de mossa.). PEER (À parte) – Ah, esses olhares!... Esses sorrisos!... Esses pensamentos venenosos! Me dão um arrepio de fazer bater os dentes! (Passa deslizando, sorrateiramente, ao longo da grade. Solveig de mãos dadas com Helga entra em cena, acompanhada de seus pais.). UM CONVIDADO (Para outro que está um pouco longe de Peer) – Olhe só: os forasteiros. O OUTRO – Os que se instalaram lá? O PRIMEIRO – Sim, em Hedal. O OUTRO – É mesmo. São eles. PEER (Fechando o caminho aos recém-chegados, diz ao pai, indicando Solveig) – Posso dançar com a tua filha? O PAI (Cordialmente) – Com muito prazer. Mas primeiro devemos cumprimentar os donos da casa! MESTRE-CUCA (Para Peer Gynt, oferecendo-lhe bebida) – Já que você veio, tem que beber um pouco. PEER (Que acompanha com os olhos os recém-chegados) – Obrigado. Quero dançar. Não estou com sede. (O Mestre-Cuca se afasta. Peer Gynt olha para o lado da casa e sorri.) Como é loura! Nunca vi nada igual! Com os olhos baixos sobre a saia branca e sobre os escarpins, ela andava segurando com uma das mãos o avental da mãe e com a outra um missal envolto num lenço! Não posso perder aquela moça de vista. UM RAPAZ (Acompanhado por outros) – Você não dança Peer? PEER – Danço. RAPAZ – Então você começou com o pé esquerdo. (Lhe segura por um braço para obrigá-lo a dar meia-volta.). PEER – Deixa eu passar! RAPAZ – Você está com medo do ferreiro? PEER – Com medo? Eu? RAPAZ – Você já esqueceu o que aconteceu em Lunde? (Os rapazes riem e se aproximam do baile.). SOLVEIG (Da porta da casa) – Foi você quem me convidou para dançar? PEER – Eu mesmo. Não me reconhece? (Toma-a pela mão.) Vem! SOLVEIG – Por pouco tempo: mamãe não quer. PEER – ‘Mamãe não quer’. ‘Mamãe não quer’. Será que você nasceu ontem, por acaso? SOLVEIG – Está debochando de mim? PEER – É verdade que você é quase uma menina. Que idade você tem? SOLVEIG – Fiz a primeira comunhão na primavera. PEER – Como você se chama? Assim podemos falar melhor. SOLVEIG – Eu me chamo Solveig. E você? PEER – Peer Gynt. SOLVEIG (Retirando a mão) – Ah!... PEER – O que foi? SOLVEIG – Minha liga desatou. Vou consertá-la. (Sai.). NOIVO (Puxando sua mãe pela saia) – Mamãe: ela não quer nem por nada! MÃE – O quê? O que é que ela não quer? NOIVO – Abrir. PAI (Furioso, à meia-voz) – Você não devia sair nunca da cachoeira! MÃE – Não implique com ele. Coitadinho! Tudo vai dar certo, meu caro! (Afastam-se para um lado.). UM RAPAZ (Chegando da dança, com vários outros) – Quer um pouco de aguardente, Peer? PEER – Não. RAPAZ – Um gole só! PEER (Olhando-o com olhar ameaçador) – Você tem pra me dar? RAPAZ – Talvez. (Tira um frasco pequeno do bolso, e bebe.) Uhm!... É uma delícia! Então, não quer? PEER – Deixa eu experimentar. (Bebe.). OUTRO RAPAZ – Agora prova da minha. PEER – Não. OUTRO RAPAZ – Deixa disso! Se fazendo de rogado! Bebe logo, Peer! PEER – Me dá só uma gota, hein! (Bebe.). UMA MOÇA (À meia-voz) – Vem, vamos embora. PEER – Senhorita: por acaso está com medo de mim? UM TERCEIRO RAPAZ – Quem não tem medo de você? UM QUARTO RAPAZ – Nós vimos em Lunde do que você é capaz! PEER – Vocês ainda não viram nada. Quando eu pego fogo... O PRIMEIRO RAPAZ (À meia-voz) – Já está pegando... MUITOS RAPAZES (Circundando-o) – Conta! Conta! O que você faz? PEER – Esperem até amanhã. OS RAPAZES – Você sabe fazer feitiçaria, é? PEER – Sei invocar o Diabo. UM CONVIDADO – Minha avó também sabia antes de eu nascer. PEER – Mentira! Ninguém é capaz de igualar minhas façanhas! Uma vez fiz o Diabo entrar dentro de uma avelã. Uma avelã cheia de vermes; entenderam? MUITOS – Claro! Claro: já sabíamos. PEER – Ele ficou gritando, chorando, queria me tentar de mil maneiras! UM RAPAZ – Mas não adiantou nada... PEER – Não mesmo! Tapei o buraco com um pedacinho de madeira. Caramba! Como ele zumbia: preso na casca! UMA MOÇA – Meu Deus do céu! PEER – Parecia uma vespa enfurecida! A MOÇA – E ainda está preso na avelã? PEER – Não, já foi embora. Foi por causa dele que Aslak e eu brigamos. UM RAPAZ – É verdade? PEER – Eu fui lá na forja, onde ele trabalha, para pedir pra ele quebrar a casca de avelã. Ele prometeu que sim, e deixou ela lá em cima de um banco. Mas, como vocês sabem, o Aslak tem a mão pesada e usa o martelo a torto e a direito. UM RAPAZ – E daí? Esmigalhou o Diabo? PEER – Deu uma martelada desse tamanho! Mas o Diabo fugiu e atravessou o teto como um raio... Zum!... MUITOS – E o ferreiro? PEER – Não deu nem um pio. Ficou com as mãos queimadas. A partir desse dia estamos brigados. (Riso generalizado.). VÁRIOS – É bem boazinha essa história! OUTROS – Acho que é a melhor que você já inventou! PEER – Ah, vocês pensam que eu estou inventando, é? UM CONVIDADO – Não, isso eu posso afirmar que não. Meu avô já tinha me contado a maior parte das histórias que você conta. PEER – Mentira! Tudo isso aconteceu mesmo comigo! UM CONVIDADO – Ah, é o que todos dizem! PEER (Com élan) – Pelo santo nome de Deus! Eu sou capaz de atravessar os ares montado num cavalo com ferraduras de prata! E faço muitas outras coisas, se vocês querem saber. (Novas gargalhadas gerais.). UM RAPAZ – Então dá uma demonstração pra gente. Vamos, Peer! VÁRIOS – Isso mesmo, Peer! Por favor! PEER – Não é preciso pedir tanto! Vou passar como um furacão, por cima da cabeça de vocês, e a cidade inteira vai cair de joelhos diante de mim! UM HOMEM DE IDADE – É louco varrido! OUTRO – Embusteiro! OUTRO – É só prosa! OUTRO – Palhaço! PEER (Com gestos de ameaça) – Pois esperem só! Vocês vão ver! UM CONVIDADE (Meio bêbedo) – Você sim que não perde por esperar. Vão-te dar uma surra! MUITOS – Você vai ver estrelas em pleno meio-dia! (Dispersam-se. Os velhos, irritados; os jovens rindo e fazendo troça.). NOIVO (Aproximando-se dele) – Me diga uma coisa, Peer: é verdade que você é capaz de cavalgar pelos ares? PEER (Com energia) – É sim, Matz. Sou um homem destemido! NOIVO – Então quer dizer que você deve ter também a roupa que torna as pessoas invisíveis? PEER – O chapéu, você quer dizer. Tenho, tenho sim. (Voltase. Solveig, de mãos dadas com Helga, atravessa o pátio. Peer, animando-se e caminhando rumo a ela.) Solveig! Que bom que você veio! (Segura-a pelos pulsos.) Agora você vai ver como vou fazer você dançar! SOLVEIG – Me larga! PEER – Por quê? SOLVEIG – Você é um brutamonte! PEER – Sou rude como o cervo quando se aproxima o tempo bom. Vamos, menina, não seja teimosa! SOLVEIG (Retirando a mão) – Não me atrevo. PEER – Por quê? SOLVEIG – Porque você andou bebendo. (Afasta-se com Helga.). PEER – Ah, enfiar a faca na barriga de todos! NOIVO (Dando uma cotovelada nas costelas de Peer) – Será que você não arranjava um jeito de me fazer entrar onde está minha noiva? PEER – A noiva? Onde é que ela está? NOIVO – No celeiro. PEER – Ué: e daí? NOIVO – Olha Peer, escuta: por favor, experimenta, eu te peço! PEER – Eu não. Você que se arranje sozinho. (Mudando de idéia, à meia-voz e com tom áspero.) Ingrid está no celeiro. (Aproxima-se de Solveig.) Você já pensou nisso? (Solveig quer afastar-se, mas ele lhe barra o caminho.) Você tem vergonha de mim por que eu tenho aspecto de vagabundo, não é? SOLVEIG (Vivamente) – Não é verdade! Você não tem nem um pouco aspecto de vagabundo! PEER – E além do mais, estou meio bêbado! Mas é só por despeito, porque você me magoou! Vem cá! SOLVEIG – Vontade não me falta, mas não tenho coragem. PEER – De que é que você tem medo? SOLVEIG – De meu pai, principalmente. PEER – Do teu pai? Ah, é verdade. Ele tem cara de crente. E é mesmo, por acaso, hein? Responde! SOLVEIG – Que é que você quer que eu diga? PEER – Se teu pai é rato de igreja. Quem sabe tua mãe também é? E você, hein? Fala, fala! SOLVEIG – Deixa eu passar! PEER – Não. (À meia-voz e com tom rude e ameaçador.) Eu sei me transformar em fantasma. À meia-noite vou aparecer à beira da tua cama. Se você ouvir o barulho de alguém ofegando e gemendo feito um gato, não pense que é o gatinho, não. Sou eu! Está ouvindo? Vou chupar teu sangue e botar numa xícara. E tua irmãzinha, sabe o que é que eu vou fazer com ela? Comer. Porque de noite – está entendendo? – eu viro fantasma. E vou te morder a barriga da perna. (Mudando de tom imediatamente, e agora, com angústia.) Vem dançar comigo, Solveig! SOLVEIG (Olhando tristemente para ele) – Você foi malvado. (Entra para dentro de casa.). NOIVO (Voltando com passos arrastados) – Se você me ajudar eu te dou uma vaca de presente! PEER – Vem cá. (Desaparecem atrás da casa. Ao mesmo tempo, um grupo de homens - na maioria bêbados - chega, vindo do salão de baile. Barulho. Tumulto. Solveig, Helga, seus pais e algumas pessoas de idade saem da casa e ficam paradas no umbral.). MESTRE-CUCA (Para Aslak, que anda na frente do grupo) – Calma! Calma! ASLAK (Tirando o paletó) – Não! Quero liquidar este assunto de uma vez! Peer Gynt ou eu! Um dos dois vai comer a poeira do chão! VÁRIOS – Isso mesmo! Os dois têm que brigar! OUTROS – Não, brigar, não. Só ver quem diz mais besteira, dos dois! ASLAK – Palavra não resolve nada. O que interessa é a força dos punhos! PAI DE SOLVEIG – Calma rapaz! HELGA – Mamãe: vão bater nele, é? UM RAPAZ – É melhor a gente mandar ele contar mentiras pra gente rir dele! OUTRO – Vamos expulsá-lo daqui a pontapés! OUTROS – Vamos cuspir na cara dele! OUTRO (Para Aslak) – Você que vai começar? ASLAK (Jogando o paletó para o chão) – Vamos tirar sangue desse fanfarrão! O FORASTEIRO (Para Solveig) – Viu como ninguém respeita esse malandro? AASE (Chegando com um bastão ou vara nas mãos) – Meu filho está por aqui? Vou dar uma sova nele que ele vai ver! Vai me fazer um bem! ASLAK (Dobrando as mangas da camisa) – Não é de vara que esse gaiato está precisando, não! VÁRIOS – O ferreiro vai acabar com a vida dele! Vou botar asinhas no teu filho! OUTROS – Vai quebrar as costelas do Peer! AASE – Você? No meu filho? Experimenta só, pra ver a velha Aase! ASLAK (Cuspindo nas palmas das mãos e olhando para Aase) – Ainda tem unhas e dentes! Onde é que ele está? Peer! NOIVO (Chegando, correndo) – Ah, meu Deus! Meu Deus do céu! Pai! Mãe! Venham todos! PAI – O que foi? O que foi? NOIVO – Peer Gynt... AASE (Gritando) – Mataram ele? NOIVO – Não, Peer Gynt... Olhem lá pra cima! TODOS – Peer e a noiva! AASE (Deixando cair a vara) – Ah, bandido! ASLAK (Estupefato) – Senhor Todo-Poderoso! Olha como ele escala o fiorde! Parece um cabrito montês! NOIVO (Chorando) – Mamãe: ele carrega ela nos braços como se ela fosse uma ovelhinha! AASE (Ameaçadora) – Quem dera que você despencasse lá do alto e... (Com angústia.) Cuidado! Não vá resvalar!... O PROPRIETÁRIO DE HAEGSTAD (Chegando, sem chapéu, pálido de raiva) – Eu vou matar aquele descarado! AASE – Ah, isso é que não! Primeiro você tem que passar por cima do meu cadáver, por Deus do céu! FIM DO PRIMEIRO ATO SEGUNDO ATO Uma estrada apertada, na montanha. Amanhece. Peer Gynt anda, rapidamente, visivelmente contrariado. Ingrid, em parte ainda vestida de noiva, procura detê-lo. PEER – Me deixa: vai-te embora! INGRID (Chorando) – Depois do que aconteceu? Vou pra onde? PEER – Pra onde você quiser! Estou pouco ligando. INGRID (Torcendo as mãos) – Ah, meu Deus do céu! Traidor! Traidor! PEER – Pra que perder tempo com bobagens? Cada um é livre de seguir seu caminho. INGRID – Não! Não! Estamos ligados por um crime! PEER – O passado que vá para o diabo que o carregue! As mulheres que vão para o diabo que as carregue. Menos uma! INGRID – Quem? PEER – Você não é. INGRID – Então, quem é? Vamos, diz! PEER – Ah, vai-te embora, vai! Volta pra casa de onde você saiu! Anda logo! Volta pra casa do teu pai! INGRID – Peer, meu amor! PEER – Cala essa boca, viu? INGRID – Você não pensa no que está dizendo. PEER – Penso e quero. INGRID – Então, primeiro você me seduz e depois me abandona? PEER – Por que não? O que é que você tem pra me oferecer? INGRID – A propriedade de Haegstad e outros bens mais. PEER – Você por acaso anda com um missal envolto no lenço e uma trança dourada na nuca? Por acaso anda com os olhos baixos voltados para uma saia branca, segurando no avental da tua mãe? Fala! INGRID – Não, mas... PEER – Ou será que você fez a primeira comunhão na primavera? INGRID – Não, mas Peer... PEER – Ou quem sabe o teu olhar é tímido? Ou você é capaz de dizer ‘não’ quando eu te implorar? INGRID – Jesus: acho que ele ficou louco! PEER – É uma festa para os olhos, olhar pra você? Responde, vamos! INGRID – Não, mas... PEER – Então, que me importa o resto? (Quer afastar-se.). INGRID (Impedindo-lhe a passagem) – Você sabe que é infame me trair assim? PEER – Ah é, é? E daí? INGRID – Se você não me deixar, você vai ficar rico e respeitado por todo o mundo... PEER – Isso é impossível! INGRID (Chorando) – Ah, você me seduziu! PEER – Você nem resistiu. INGRID – Eu estava tão infeliz... PEER – E eu estava bêbado. INGRID (Com um gesto de ameaça) – Pois sim! Mas você me paga! PEER – O preço você é quem faz! Não vou regatear... INGRID – É sua decisão final? PEER – Sólida como uma rocha! INGRID – Muito bem! Vamos ver quem chora por último! (Desce pelo caminho.). PEER (Fica um momento imóvel e depois grita) – O passado que vá para o diabo que o carregue! As mulheres que vão para o diabo que as carregue! INGRID (Voltando a cabeça para ele, com sarcasmo) – Menos uma! PEER – Isso mesmo: menos uma! (Afastam-se em direções opostas.). Um lago de montanha de margens úmidas e pantanosas. Está iminente uma tempestade. Aase olha para todos os lados e grita angustiada. Solveig, ao seu lado, tem dificuldade de segui-la. Pouco atrás, os pais de Solveig e Helga. AASE (Gesticulando e arrancando os cabelos) – Estão todos contra mim! Tudo me esmagando! O céu, a água e todos esses fiordes malditos! O céu manda neblina para ele se perder nos vales! A água traiçoeira se esconde para pegá-lo! Os fiordes ameaçam com avalanches! E os homens? Os homens ficam caçando ele, para matá-lo! Ah meu Deus Todo-Poderoso! E se conseguirem? Coitadinho, que caiu na tentação do Diabo! (Voltando-se para Solveig.) E então? É coisa de se acreditar? Ele, que só sabia contar mentiras e inventar lorotas, que só era forte de palavras e nunca fez nada que prestasse! Logo ele! Já nem sei se é pra rir ou pra chorar! Ah, sempre estivemos unidos, nos tempos bons e nos ruins! Porque você - fique sabendo que o meu marido só sabia beber e bater perna pela aldeia! Em loucuras, em besteiras, consumiu tudo o que nós tínhamos! E o tempo todo eu, em casa, cuidando do meu menino Peer. A gente – o único remédio que tinha – era procurar não se afanar, porque nunca tive coragem de enfrentá-lo de peito aberto! Nunca pude encarar a vida cara a cara! Era horrível demais! Depois, é fácil deixar de lado a tristeza e não se preocupar com nada. Tudo serve pra isso: uns agarram a garrafa de aguardente, outros apelam pra imaginação. Pois é: foi assim que nós apelávamos pras histórias da carochinha, os contos de príncipes, de gnomos, de bichos encantados! E de noivas raptadas diante da igreja! Ah, quem podia imaginar que todas essas invencionices do Demônio iam acabar virando o juízo dele? (Voltando a ficar angustiada.) Ah, que grito é esse? De alguma assombração ou de um vampiro, por Deus do céu? Peer! Peer! Ali! Ali! Lá no alto daquela colina! (Corre rumo a uma pequena colina e olha para longe, além das águas do lago. Os pais de Solveig conseguem alcançá-la.) Não dá pra ver nada! PAI (Pensativo) – Azar o dele! AASE (Chorando) – É, é. Ele está perdido! PAI (Concordando, compadecido, com a cabeça) – Perdido. É a palavra certa. AASE – Nem diga isso! Ele é tão esperto! Não existe ninguém mais sabido do que ele! PAI – Você é uma malvada. AASE – É verdade, eu não valho nada. Meu filho é que é um tesouro! PAI (Sempre no mesmo tom velado e com a mesma doçura grave na voz e no olhar) – Ele tem um coração de pedra e vendeu a alma ao Diabo. AASE (Com angústias) – Não, não é possível! Nosso Senhor não é sem misericórdia! PAI – Você acha que seu filho é capaz de se arrepender? AASE (Com vivacidade) – Ah, isso eu não garanto! O que eu sei é que ele é capaz de voar montado num cabrito montês! MÃE – Jesus Santíssimo! Você ficou louca? PAI – O que é que você está dizendo? AASE – Não existe o que ele não possa fazer! Vocês ainda hão de ver, se Deus lhes der vida para tanto! PAI – É melhor desejar-lhe força! AASE (Gritando) – Ai, meu Jesus misericordioso! PAI – Pode ser que na mão do carrasco, o coração dele amoleça e ele se arrependa! AASE (Confusa e abatida) – Você ainda vai me fazer desmaiar! Precisamos achá-lo de qualquer maneira! PAI – Sim, para salvar sua alma. AASE – E o corpo também! Se ele estiver atolado na lama, nós vamos tirá-lo! Se o velho da montanha se apoderou dele, subiremos até lá para libertá-lo! PAI – Ah, por aqui há um caminho! AASE – Deus te abençoe por me ajudar assim! PAI – É dever de cristão. AASE – Então os outros são todos pagãos, pois nenhum quis me acompanhar. PAI – Porque já o conhecem de sobra. AASE – Vale mais que eles todos juntos! (Torce as mãos de desespero.) Ah, quando eu penso que talvez nem o encontre mais vivo! PAI – Por aqui há uns rastros. AASE – É por aqui que a gente tem que ir. PAI – Mandaremos dar busca em torno da nossa casa. (Vai em frente acompanhado da mulher.). SOLVEIG (Dirigindo-se a Aase) – Fale mais dele. AASE (Enxugando as lágrimas) – Do meu filho? SOLVEIG – É. Me conte tudo. AASE (Sorrindo e empertigando-se de orgulho) – Tudo? Teria muito que contar! Você ia perder a paciência de escutar. SOLVEIG – É mais fácil a senhora se cansar de falar do que eu de escutar. Colinas vistas desde o sopé dos fiordes. Ao longo, picos nevados. Alongam-se as sombras. Declina o dia. PEER (Chegando esbaforido de correr e parando na colina) – A aldeia toda está atrás de mim! Estão armados de bastões e de fuzis! O primeiro da fila é o pai da noiva, gritando como um possesso! Muito bem! Pelo menos já se fala agora de Peer Gynt! É uma coisa séria, não é como uma briga banal com um ferreiro! Ah, isso sim que é viver! Faz a gente se sentir feroz como um urso, da cabeça aos pés! (Dá pulos e luta à direita e à esquerda com inimigos imaginários.) É desafiar! Lutar! Nadar contra a correnteza! Atacar! Derrotar! Arrancar as árvores pela raiz! Isso é que se chama viver! Faz bem à alma e reanima o coração! Para o inferno com as lorotas e coisas de criança! (Vê-se três moças correr pela colina, gritando e cantando.). A PRIMEIRA – Trond! A SEGUNDA – Kore! A TERCEIRA – Bord! AS TRÊS – Olha só pro diabinho! Dorme comigo bem quentinho! PEER – O que é que vocês querem suas tontas? AS TRÊS – Para os gnomos nossas camas já estão mais do que prontas! A PRIMEIRA – Para Trond, o forte. A SEGUNDA – E Kore, o brando. A TERCEIRA – Pra dormirem conosco / É que estamos chamando! A PRIMEIRA – Força é brandura! A SEGUNDA – Brandura é força! A TERCEIRA – Quem não agarra um rapaz / Com um gnomo se segura! PEER – Pra onde foram seus rapazes? AS TRÊS (Rindo ruidosamente) – Ha, ha, ha... Adeus! Foramse embora! A PRIMEIRA – O meu, que me jurava um amor imortal, / Casou com uma viúva, herdeira / De uma fortuna colossal! A SEGUNDA – O meu se contentou / Com uma puta banal. A TERCEIRA – O meu afogou nosso filho natural / E foi logo enforcado por ordem do Tribunal. (As três começam novamente a chamar Trond, Kore, Bord, etc.). PEER (Colocando-se de salto entre elas) – Três gnomos? Mais valho eu, então! AS TRÊS (Fazendo pouco caso) – Ha, ha, ha... PEER – Pois provem e verão! A PRIMEIRA – Você está falando sério? A SEGUNDA – Você quer mesmo dormir conosco? A TERCEIRA – Vou sem medo, então, machão! / Esquentar a nossa cama / E arrebentar o colchão! A PRIMEIRA – Bebemos muito em nossa casa. A SEGUNDA (Abraçando-o) – Meninas, ele queima como brasa! A TERCEIRA (Idem) – Que homem ardente! / Que boca deliciosa! PEER (Dançando no meio delas) – Gnomo: tenho vigor para valer, / Tenho três corpos para escolher / Por isso – mulheres vamos com calma! / Pois se meu corpo é todo alegria / É toda tristeza a minha alma! AS TRÊS (Com o polegar no nariz, num gesto de desprezo, onde pondo a língua para fora, para o lado das colinas, gritando e dançando) – Trond, Kore, Bord, boa noite, diabinho! / Até de manhã dança e gira sozinho! (Dançando, arrastam Peer para as montanhas.). A Cordilheira do Ronden. Pôr-do-sol. Até o horizonte seguem iluminados pelo crepúsculo. PEER (Chega descabelado e confuso) – Detei-vos, castelos de sonhos, / Palácios em chamas. Torres de luz! / Quero guardar vossa imagem / Antes da noite apagar vossa luz! / Da torre da igreja mais alta, / Vejo um galo bater asas e voar / Nas trevas submerge o abismo, / Deixando-me triste a cismar! / Que troncos, que raízes retorcidas / Brotam do coração da rocha fria, / Como pés de gigantes varridos / Por uma tristonha ventania! / Ou é o arco-íris etéreo / Que se desfaz com brilho soturno / Cegando-me a vista e morrendo / Tocados pelo ar noturno? / Que dor de cabeça atroz! / Sinto na testa um anel de ferro me apertando / Parece que a mão do Diabo / Nas profundezas do inferno comigo está brincando! (Cai por terra.) O cabrito montês? Que mentira enfadonha! / O roubo da noiva? Lembrança tristonha, / Um capricho bobo, punido com a forca, / Conclusão mais medonha! / É verdade, andei fazendo das minhas... / Será que banquei lobisomem, / Com três feiticeiras nuinhas? / Que coisas chatas que a gente sonha!... (Olhando para cima, longe.) Lá, rumo ao céu, uma águia orgulhosa voa / O pato selvagem os montes mais altos sobrevoa, / Rumo ao sul! / Enquanto eu aqui embaixo perco o tempo, à toa... (Levantando-se de um pulo.) Não, não, quero seguir seus vôos distantes, / Quero, como as aves, fundir-me com o vento / Iluminar-me de sol, cavalgar nuvens rutilantes! / Quero cruzar mares e terras, / Para brindar à saúde de reis / E abraçar meu amigo / O príncipe da Inglaterra! / Adeus, moças com quem sonhei! / Vou para onde eu quero, / Como inconstante centelha / E só volto a estas bandas / Se um dia me der na telha!... / Entre as nuvens perdeu-se a águia triunfante / E os patos selvagens – olha lá: são um ponto distante... / O que vejo agora? Uma casa conhecida... / Que restauram com cuidado... / Pois não é que essa ruína / Readquire nova vida? / Reconheço – Deus ouviu minha voz! / Reconheço a casa de meus avós! / Han-han... Cercas novas foram erguidas... / E nas janelas... Botaram cortinas coloridas! / Viva! As vidraças estão brilhando, / É casamento, festa boa! / Comes e bebes; música... / E o dinheiro escorrendo à toa! / O pastor encerra a boda / Com um discurso edificante, / O capitão se ergue, hesitante, / E rindo atira uma taça no ar / Lá vai ela contra um espelho / Todinha se espatifar! / ‘Mamãe, não faça essa cara de enterro! / Hoje é dia de festa, alegria, / Acabou nosso desterro! / Você não está vendo Jan Gynt / Dar esta festa que entra hoje para a história? / E é uma festa em nossa honra, / Que celebra nossa glória!’ / E aí o capitão me diz, solene e majestoso! / ‘Menino Peer, meu filho, rebento de linhagem sem jaça, / Amanhã provarás que vens da mais ilustre das raças!’ (Lança-se correndo para diante, mas tropeça de encontro a uma rocha, cai e fica estendido de costas.). Um bosque de árvores frondosas, de folhas agitadas pelo vento. Em meio à ramagem, vêem-se as estrelas cintilando. Pássaros cantam nas copas das árvores. Uma mulher vestida de verde atravessa o bosque. Peer Gynt segue-a com gestos amorosos. A MULHER DE VERDE (Parando e voltando-se) – É sério? PEER (Com um gesto que indica juramento) – Tão certo como eu me chamo Peer. Tão certo quanto você ser bela. Quer ser minha? Você vai ver como sou gentil e delicado! Era uma vez ter que dobrar lã, era uma vez ter que tecer panos: você não vai ter mais nada pra fazer. Só comer, o dia inteiro. Nem será nunca arrastada pelos cabelos. A MULHER – E você não vai me bater nunca? PEER – O que é que você está dizendo? Onde já se viu um filho de rei bater numa mulher? Seria insólito! A MULHER – Ah, você é filho de rei? PEER – Sou sim. A MULHER – E eu sou a filha do rei da Serra de Dovre. (É uma personagem lendária dessa região montanhosa da Noruega.). PEER – Ah é, é? Sim senhora, hein? Quem diria, hein? Pois olha: eu acho isso formidável, sabe? A MULHER – Meu pai tem um castelo em Ronden. PEER – Ah, mas o da minha mãe é muito maior! A MULHER – Você conhece o meu pai, o rei Brose? PEER – Você conhece a minha mãe, a rainha Aase? A MULHER – Quando meu pai se zanga, a montanha toda treme. PEER – Quando a minha mãe ralha, desmorona avalanches. A MULHER – Não existe um arco que meu pai não possa retesar. PEER – Não existe um cavalo que minha mãe não possa montar. A MULHER – Você não tem outras roupas, além desses farrapos? PEER – Se você visse o meu traje de gala... A MULHER – Eu vivo sempre no meio de ouro e de sedas. PEER – Eu acho que é mais entre a relva e a estopa! A MULHER – É uma aparência ilusória. Fique sabendo que entre nós, tudo tem um aspecto duplo. Assim, por exemplo, se você for visitar o castelo do meu pai, pode ser até que você, a princípio, pense que está diante de um montão de pedras. PEER – É igualzinho como na nossa casa. Você vendo o nosso ouro, vai pensar que é palha e barro, e nossas janelas, em vez de vidraças, só vai ver pedaços de papelão. A MULHER DE VERDE (Abraçando-o) – Peer! Já vi que fomos feitos um para o outro! PEER – Como um para de botas nos complementamos! A MULHER (Chamando) – Ei! Meu corcel de festa! Vem cá, vem! (Chega correndo um enorme porco ou javali. Em vez de sela tem às costas um saco velho e em vez de rédeas um pedaço de corda. Peer monta nele e acomoda a Mulher de Verde sentada à sua frente.). PEER – Upa, upa, meu valente corcel! Para o castelo dos Ronden! A MULHER (Com ternura) – E dizer que há pouco eu estava tão triste! Ninguém sabe o que pode acontecer de um momento para o outro! PEER (Chicoteando o javali que o carrega para fora de cena) – Altivo na montaria! É a marca do bom sangue! No castelo do Velho de Dovre. A sala do trono. Reunião geral dos Trolls ou duendes, gnomos e ninfas. O Velho de Dovre está sentado no trono, com a coroa na cabeça e o cetro real na mão. Dos dois lados do trono, seus filhos e sua família. Peer Gynt está de pé diante dele. Grande agitação na sala. OS DUENDES – Que morra! Um cristão seduziu a filha de nosso rei, do Velho de Dovre! UM GNOMO – Será que eu posso cortar um dedo dele? OUTRO GNOMO – E eu puxar-lhe os cabelos? UMA FILHA DE DUENDE – E eu dar-lhe uma mordidona na perna? Tra, lalalá! UMA BRUXA (Segurando uma colher de pau) – Devo prepará-lo com sal e pimenta? OUTRA BRUXA (Com um facão de cozinha) – Devo colocá-lo na grelha para assar ou fervê-lo em fogo brando? O VELHO DE DOVRE – Silêncio! Sangue frio! (Mandando aproximar-se com um gesto, sua família e seus confidentes.) Nada de palavras ocas! Já faz tempo que estamos decadentes. Já não sabemos bem onde estamos e não devemos recusar a aliança com os humanos, sem motivo. Além disso, não se tem muito que criticar nesse jovem. Ele me parece que tem bom físico. É verdade que só tem uma cabeça, mas minha filha, que é minha filha, também só tem uma. Os duendes de três cabeças já sumiram quase todos. Até os de duas vão escasseando, isso sem falar na qualidade das cabeças. (Dirigindo-se a Peer Gynt.) Então você me pede a mão de minha filha? PEER – E teu reino como dote. O VELHO – Eu te concedo a metade enquanto eu estiver vivo e o resto depois de minha morte. PEER – Pra mim chega. O VELHO – Calma, meu rapaz! Primeiro temos algumas condições a te impor. Se você falhar em qualquer delas, nosso pacto se desfaz e ficaremos com a tua pele. A primeira é que você nunca mais ponha os pés fora dos limites de Ronden. Temerás a luz do sol e todos os atos que ela ilumina. PEER – Que me importa, se eu sou rei! O VELHO – Agora vou pôr à prova tua inteligência. (Levanta-se do trono.). O DUENDE-MOR DA CORTE (A Peer Gynt) – Vamos experimentar teus dentes do siso. Queremos ver se eles conseguem quebrar a avelã que o Velho de Dovre vai te dar. O VELHO – Qual é a diferença que há entre um duende e um homem? PEER – Que eu saiba, nenhuma. Os duendes querem assar e os duendinhos querem arranhar. É o que os homens também fariam com seus semelhantes, se tivessem coragem. O VELHO – Está certo. E há outras semelhanças. Mas o dia é o dia, e a noite é a noite. Um homem, apesar das aparências, não é idêntico a um duende. Vou te dizer em que mais eles diferem. Lá, no mundo dos humanos, quando brilha a luz do dia, costumam dizer: ‘homem, sê tu mesmo’. Aqui, sob estas abóbadas, dizemos: ‘duende, basta a ti mesmo!’ O DUENDE-MOR (Para Peer) – Você capta toda a profundidade dessa comparação? PEER – Me parece um tanto obscura. O VELHO – ‘Bastar-se’ meu filho é uma palavra clara e forte, que deve tornar-se teu lema. PEER (Coçando a cabeça) – Hmmm!... O VELHO – Sem isso, nunca poderás comandar. PEER – Estou pouco ligando, pra mim tanto faz! O VELHO – E tem mais: você precisa dar o devido valor à nossa maneira de viver, singela e ordeira. (Faz um sinal e dois duendes com cabeça de porco e gorro de dormir trazem comida e bebida.) A vaca produz os doces e o boi o mel. O gosto não tem importância. O importante – compreenda bem – é que seja tudo produto caseiro. PEER (Afastando o alimento e a bebida) – Maldita seja essa horrenda bebida caseira de vocês! Nunca vou me acostumar a ela! O VELHO – Se você beber ganhará a taça, que é de ouro. E ser dono dela é conquistar o coração de minha filha. PEER (Refletindo) – Está escrito! Vencerás a natureza! Bah! Com o tempo, a bebida vai me parecer menos acre. Então, coragem. (Bebe.). O VELHO – Muito bem. Mas o que é isso: você está cuspindo? PEER – É. Eu espero me acostumar um dia. O VELHO – Agora você precisa tirar essas roupas de cristão, porque, como te repito, para honra de Dovre, tudo aqui é de fabricação caseira. Não recebemos nada do vale lá em baixo. A não ser o laço de seda que enfeita nossa cauda. PEER (Furioso) – Pois fique sabendo que eu não tenho cauda nenhuma! O VELHO – Não seja por isso. Nós te damos uma com o maior prazer. Ó duende: vamos, prega-lhe um rabo de gala! PEER – Ah, isso é que não! Onde é que nós estamos? Estão zombando de mim, é? O VELHO – Não se pode fazer a corte à minha filha assim, com a bunda de fora, não é? PEER – Transformar um homem numa besta? O VELHO – Não é nada disso, meu filho. O que eu quero é fazer de você um noivo apresentável. Vamos te ornar com a insígnia laranja, que para nós é a mais alta condecoração que existe. PEER (Refletindo) – Ora, quer saber de uma coisa? O homem, no fundo, é poeira vã... E depois, é preciso acatar os costumes do país. Está bem: podem-me pôr o rabo! O VELHO – Você é dócil, meu caro! O DUENDE-MOR – Agora, experimenta! Vamos ver se você sabe usar o rabo com graça! PEER (Grosseiro) – Que mais que vocês vão inventar, agora? Será que terei que abjurar até minha fé de cristão? O VELHO – Absolutamente. Pode conservá-la, se te faz gosto. Para nós, a fé é uma mercadoria que admitimos sem cobrar imposto de alfândega. É pelo aspecto e pelos trajes que se reconhece um duende. Contanto que você se pareça conosco nos trajes e nos modos, você é livre de acreditar no que bem quiser. PEER – Estou vendo que, apesar de todas as suas condições, você é mais razoável do que eu esperava. O VELHO – Meu filho: nós, duendes, valemos mais do que a nossa fama. E é nesse ponto também que nos distinguimos dos homens. Mas já acabamos com a parte séria da nossa sessão. Agora, temos que alegrar nossos olhos e nossos ouvidos. Adiante, Virgem da Harpa! Faz-nos ouvir teus acordes! Adiante, Virgem da Dança! Surjam sob nossas abóbadas de Dovre! (Música e dança.). O PRIMEIRO DUENDE – Então: está gostando? PEER – Gostando? Hmmm!... O VELHO – Pode falar sem medo. O que é que você está vendo à sua frente? PEER – Estou vendo uma coisa horrorosa! Uma vaca beliscando cordas de tripa e uma porca esperneando ao lado dela. OS DUENDES – Pega ele! Vamos comer ele vivo! O VELHO – Alto! Lembrem-se que ele vê tudo com os sentidos de um homem! AS FILHAS DOS DUENDES – Uh, uh! Vamos arrancar os olhos e as orelhas dele! A MULHER DE VERDE (Chorando) – Ah, ah! Olha o que se diz da nossa dança e da nossa música, irmã! PEER – Ué? Então era você? Ora, ora: em companhia tão alegre, acho que se pode brincar um pouco, não? A MULHER DE VERDE – Jura para mim que era brincadeira! PEER – Quero que o Diabo me carregue se a dança e a música de vocês não eram maravilhosas! O VELHO – Ah, natureza humana: como resistes! Não adianta feri-la a ferro e fogo. Só conseguimos feridas passageiras. Foi por isso que meu genro parecia macio como uma luva. Não recusou despojar-se de sua roupagem cristã, nem beber nosso hidromel, nem pregar-lhe um rabo. Executava tão docilmente tudo que nós mandávamos que por instantes pensamos que tínhamos banido de seu corpo o velho Adão para sempre. Pois sim! Ei-lo que surge de novo! É, meu filho, eu acho que você vai precisar de uma operação séria para te livrar dessa maldita natureza humana. PEER – Operação? Que operação? O VELHO – Vou te arranhar um pouco o olho esquerdo. Você vai ficar um pouco vesgo - é verdade -, mas em compensação tudo que você enxergar será lindo e alegre. Depois então te arranco o olho direito. Pronto! PEER – Ei, você está bêbado, é? Que graça, a dele! O VELHO (Colocando sobre a mesa alguns instrumentos cortantes) – Está vendo isso aqui? São os meus instrumentos. E como sou bom vidraceiro, vou te fazer um lindo olho de boi, dos grandes, ou melhor: de touro. Aí sim que você vai achar a noiva formosíssima. E nunca mais verá leitoas dançando ou vacas tocando harpas e coisas desse tipo. PEER – Mas isso é conversa de louco varrido! O DUENDE-MOR – Cala o bico e deixa o Velho de Dovre falar! Você é que é louco. Ele é o certo. O VELHO – Pára um pouco para pensar! Imagina quantos sofrimentos e desgostos você podia se poupar! Lembre-se que os olhos são a fonte impura de onde brota a torrente amarga das lágrimas. PEER – Ah, isso é verdade. A Bíblia Sagrada chega até a dizer: ‘se teu olho te escandaliza, arranca-o fora!’ Mas me diz uma coisa: quanto tempo demora para um olho operado voltar a ser um olho humano igual aos outros? O VELHO – Nunca mais, meu filho. PEER – Ah, é? Então, meu caro, sabe o que te digo: ‘muito boa noite e obrigado por tudo, hein!’ O VELHO – E aonde você pensa que vai? PEER – Vou continuar meu caminho, igual como antes. O VELHO – Alto lá! É fácil entrar nos domínios do Velho de Dovre, mas sair é impossível! PEER – Por quê? Vai apelar para a violência? O VELHO – Escute Príncipe Peer, e seja razoável! Você tem um talento natural para bruxo, não é? Todos já te tomavam por um duende, fácil, fácil, ou quase. E você agora quer desistir? PEER – Quero sim. Quero! Para me casar com uma princesa e ganhar um reino de verdade estou disposto a fazer alguns sacrifícios pequenos. Mas tudo tem limites. Primeiro deixei que me pusessem um rabo, mas sou livre para tirá-lo quando eu bem entender. Depois abri mão das minhas roupas, que, aliás, já estavam bem velhas e esfarrapadas. Mas posso trajá-las quando me der na veneta. E digo mais: se eu sentir vontade, sou bem capaz de mandar para os quintos dos infernos todos esses costumes esquisitos de Dovre, compreendeu? Se vocês fizerem questão, eu posso até jurar que uma vaca é uma donzela linda, porque um juramento, pensando bem, se digere com a maior facilidade. Mas daí a ceder minha liberdade, renunciar a morrer como um cristão temente a Nosso Senhor e condenar-me a ser duende para o resto da vida, nem voltar atrás nunca, tudo isso parece uma coisinha de nada, é? Pois fique sabendo que não consentirei, nem há força no mundo capaz de me mudar de idéia! O VELHO – Hmmm, hmmm!... Você vai acabar é me irritando de verdade! Estou falando sério. Você, seu fedelho, começa seduzindo minha filha... PEER – Isso é uma grandessíssima calúnia! O VELHO – Agora tem que casar com ela. PEER – Ah, então você quer insinuar que... O VELHO – O quê? Você tem a audácia de negar que ela foi objeto da tua cobiça e do teu desejo? PEER (Assobiando) – E daí? Nunca ninguém foi enforcado por uma coisa tão à toa... O VELHO – Qual: esses homens! São sempre os mesmos! Vocês só têm alma da boca para fora! Mas, na verdade, mesmo, só existe para vocês o que é tangível, concreto. Quer dizer que o desejo então é uma coisa à toa? Pois bem: daqui a pouco você vai ver o que é o desejo. PEER – Ah, ah! Qual o que! Esse anzol eu não engulo, tá? A MULHER DE VERDE – Ah, meu amor adorado! Você vai ser pai antes do fim do ano! PEER – Abre a porta! Quero ir-me embora daqui! O VELHO – Nós vamos te mandar o filho enrolado numa pele de cabrito. PEER (Enxugando a testa) – Isso tudo é um pesadelo! Ah, se eu pudesse acordar logo! O VELHO – A criança, nós mandamos aos cuidados do Castelo Real? PEER – Manda aos cuidados do hospício: é melhor! O VELHO – Muito bem, Príncipe Peer. Você é quem resolve. O que está feito, está feito, e o teu pimpolho vai crescer como um verdadeiro bastardo. E você sabe que os bastardos crescem mais depressa! PEER – Ô velhinho: vê se deixa de ser besta feito um asno! E a senhorita, faça o favor de ser mais razoável, ouviu? Vamos chegar a um acordo amigável. Primeiro: vocês fiquem sabendo que eu não sou nem rico nem príncipe. Podem me pegar por qualquer lado, que não valho muito mesmo. (A Mulher de Verde desmaia e é carregada por filhas de duendes.). O VELHO (Olhando-o com profundo desprezo) – Mãos à obra, meus filhos! Podem jogá-lo contra os rochedos para acabar com ele! DUENDES PEQUENOS – Papai: deixa antes a gente brincar com ele de lobo e cordeirinho, de gato e rato, de cegonha e sapinho, deixa? O VELHO – Está bem, mas andem logo! Já estou de mau humor e com sono. Boa noite para todos! (Vai-se embora.). PEER (Perseguido pelos duendinhos) – Me deixem em paz, ninhada do Diabo! (Tenta fugir pela chaminé.). OS DUENDINHOS – Gnomos! Ninfas! Mordam a bunda dele! PEER – Ai! (Quer fugir pelo alçapão.). OS DUENDINHOS – Fechem todas as saídas! DUENDE-MOR – Como a criançada se diverte! PEER (Lutando com um duendinho que lhe morde a orelha) – Quer fazer o favor de me soltar, seu titiquinha de merda? DUENDE-MOR (Batendo-lhe nos dedos) – Mais respeito, canalha, com um príncipe de sangue azul! PEER – Um buraco de rato! (Corre em sua direção.). OS DUENDINHOS – Ninfa! Ninfa! Fecha a entrada do buraco! PEER – Que verminhos infames! Puxa: prefiro o velho, mil vezes! OS DUENDINHOS – Vamos picá-lo em pedacinhos! Em pedacinhos bem pequenos! PEER – Que inferno: aqui só cabe um ratinho dos pequenos!... (Afasta-se correndo e corre depois em ziguezague.). OS DUENDINHOS (Agrupando-se como formigas em torno a ele) – Fecha a cerca! Fecha a cerca, pessoal! PEER (Chorando) – Ah, meu Deus do céu! Quem me dera ser um pobre mosquitinho! (Cai.). OS DUENDINHOS – Boa! Boa! Vamos dançar em cima da cabeça dele! PEER (Soterrado debaixo de um montão de duendinhos) – Socorro, mamãe! Estou morrendo, socorro! (Ao longe soam sinos de igreja.). OS DUENDINHOS – Barulho de sinos? Vamos fugir minha gente! Lá vem o rebanho do homem de saia preta! (Gritos e tumulto. Os duendes fogem. Tudo desaparece.). Escuridão completa. Ouve-se Peer Gynt fustigar-se com um ramo de árvore. PEER – Responde quem é você? UMA VOZ – Eu sou eu. PEER – Vade retro! A VOZ – Dá a volta. A montanha é grande. PEER (Tenta passar para o outro lado, mas encontra resistência) – Quem é você? A VOZ – Eu sou eu. Você pode dizer o mesmo a seu respeito? PEER – Posso dizer o que eu bem quiser e sei manejar a espada! Em guarda! Toma, apanha essa! Saul matou cem e Peer Gynt, mil! (Golpeia com toda a força.) Quem é você? Quem é você? A VOZ – Eu sou eu. PEER – Que resposta imbecil! Isso não quer dizer nada! Quem é você? A VOZ – A Grande Curva! (Personagem lendário, que Ibsen utiliza para simbolizar a hipocrisia social e suas conseqüências.). PEER – Até que enfim! Passamos do preto para o branco. Para trás, Curva! A VOZ – Você vai dar a volta, Peer? PEER – Vou te atravessar com a espada de ponta a ponta! (Investe com fúria.) Ah, caiu, finalmente! (Quer passar, mas encontra resistência.) Ei, ei! Tem mais alguém aí? A VOZ – A Curva, Peer Gynt. Sempre a mesma coisa. A Curva ferida. A Curva morta. A Curva sempre viva. PEER (Jogando longe o ramo de árvore) – Essa arma está enfeitiçada! Não faz mal, meus braços são fortes! (Golpeia com os braços, mas não consegue passar.). A VOZ – Isso: confia nos teus braços! Confia na força bruta! Ah, Peer Gynt: você vai longe! Ha, ha, ha... PEER (Retrocedendo de novo) – Não consigo dar um passo adiante! Para qualquer lado que eu vire, é a mesma coisa! Ele me cerca daqui, dali, me cerca todo! Quando eu penso que estou saindo do círculo, estou sempre no centro! Revela teu nome! Deixa eu te ver! Quem é você, afinal? A VOZ – A Curva. PEER (Sentando-se) – Nem vivo nem morto. Névoa. Lodo. Sem forma. Parece que estou no meio de ursos que dormem e grunhem baixinho. (Rindo.) Quero ver você mesmo se ferir, vamos! A VOZ – A Curva é muito esperta! PEER – Vamos, fere! A VOZ – A Curva não fere nunca! PEER – Luta! Eu quero que você lute! A VOZ – A Grande Curva vence sem lutar. PEER – Ah, se eu tivesse ao menos uma ninfa para me beliscar, um duendinho para lutar comigo, qualquer coisa! Que nada! Bem, agora ele está roncando! Ei, Curva, escuta só! A VOZ – O que você quer? PEER – Vamos, um pouco de violência! A VOZ – A Grande Curva vence pela doçura. PEER (Mordendo-se os braços e as mãos) – Garras! Dentes mordendo a carne! Uma gota de meu próprio sangue! (Ouve-se o ruflar de asas de pássaros de grande porte.). GRITO DE AVE – Ele vem vindo, Curva! A VOZ – Sim, vem vindo devagar. GRITO DE AVE – Onde estão minhas irmãs? Venham ter comigo! Voem! Voem! PEER – Donzela que queres me salvar, levanta-te, alça a vista e ajuda-me logo! O livro dos Salmos, depressa, joga no olho dele! GRITO DE AVE – Ele está se enfraquecendo. A VOZ – Já está em nosso poder! GRITO DE AVE – Venham perto de mim, irmãs, para perto de mim! PEER – É comprar a vida bastante caro, pagá-la com uma hora como esta que estou passando! (Desiste de lutar e cai.). AS AVES – Curva: olha ele caindo ao chão! Pega! Pega! (Som de badaladas e cantos litúrgicos, ao longe.). A CURVA (Evaporando-se no ar) – Foi forte demais! Havia mulheres dentro dele, apoiando-o... Raiar do dia. Em primeiro plano, uma cabana na pradaria montanhosa de Aase. A porta está fechada diante de um local deserto e silencioso. Em frente à cabana, Peer, deitado, dorme. PEER (Acorda. Olha em torno com o olhar pesado de cansaço e lentidão. Cospe) – Eu daria qualquer coisa por um arenque defumado! (Cuspindo de novo. Depois vê Helga que se aproxima, trazendo um cesto de víveres.) Ué? Você por aqui, menininha? O que é que você está fazendo por estas bandas? HELGA – Foi a Solveig que... PEER (Levantando-se de um salto) – Onde ela está? HELGA – Atrás da cabana. SOLVEIG (Escondida pela cabana) – Se você se aproximar de mim, juro que eu fujo. PEER (Parando) – Você está com medo que eu te rapte? SOLVEIG – Você não tem vergonha de falar desse jeito? PEER – Sabe onde eu passei a noite? A filha do Velho de Dovre estava juntinha de mim e não queria me largar. SOLVEIG – Ainda bem que os sinos badalaram a noite toda! PEER – Mas Peer Gynt não é presa fácil! O que é que você acha? HELGA (Chorando) – Olha ela correndo! (Correndo atrás dela.) Ei, me espera um pouquinho, me espera! PEER (Pegando-a pelo braço) – Olha o que eu tenho guardado no bolso, olha só! Um botão de prata! Verdadeiro! Eu dou ele para você se você falar com ela por mim! HELGA – Me larga! Me solta, eu quero ir atrás dela! PEER – Toma: fica com ele para você! HELGA – Me larga! Eu quero pegar meu cesto! PEER – Que Deus te pague se você... HELGA – Eu tenho medo de você! PEER (Com brandura, soltando o braço de Helga) – Não, não. Diz para ela me esquecer. Diz! FIM DO SEGUNDO ATO TERCEIRO ATO Um denso bosque de pinheiros. Dia cinzento de outono. Neva. Peer Gynt, em mangas de camisa, derruba uma árvore de galhos retorcidos. PEER – Eu sei, eu sei! Você resiste quando pode meu velho! Não adianta: tuas horas estão contadas. (Dando novas machadadas.) Já vi que você tem uma cota de malha rija! Mas vou dar cabo dela, nem que ela fosse dez vezes mais dura! Isso: agita quanto você quiser esses braços nodosos! Eu compreendo que você está com raiva, mas não vai te salvar de jeito nenhum! (Mudando repentinamente de tom.) Que nada! Não adianta mentir: não estou lidando com um cavalheiro coberto de ferro. É uma árvore velha, um tronco velho de pinheiro todo cheio de ranhuras. Puxa: como é duro pôr abaixo madeira para construção! Ufa! Pior é quando a gente se deixa levar pela imaginação! Tenho que perder esse vício! Com essa mania de estar sempre nas nuvens, sonhando acordado, você leva é a breca, meu caro! Te largam aí para sempre no meio da floresta! (Trabalha com afinco durante algum tempo.) É o que eu digo: você fica largado! Nada de contar com a mãezinha para te trazer de comer e te botar a comidinha na boca, não! Se você está com fome, coitado, o jeito é caçar você mesmo o teu de comer, pedir ajuda para o rio, e para a floresta, juntar lenha, fazer uma fogueira e preparar uma comida. Se você está com frio, caça uma rena, se não tem teto, parte um monte de pedras. Quem quer casa tem que derrubar árvores, carregar nas costas e levar até o lugar escolhido. (Larga o machado e olha em torno.) Que mansão imponente! Na parte mais alta vou erguer uma torre e uma ventoinha. Depois vou esculpir na empena uma sereia de cauda bem comprida. Mando fazer portas e fechaduras banhadas em cobre. Preciso mandar colocar também vidraças bem bonitas, dessas que de longe a gente já vê brilhando. (Rindo com zombaria.) Outra peta inventada pelo Diabo! É o que eu te digo, meu caro: você está largado do mundo! (Batendo a árvore com fúria.) Ah, estou pouco ligando! Uma choupana coberta de palha já serve para proteger da chuva e da neve, sabe? (Erguendo os olhos e contemplando a árvore.) Ah, começou a cambalear, hein? Agora outra machadada... e, pronto! Já caiu por terra, viu só? Ih, como estão tremendo os brotinhos em volta dela! (Começa a podar a árvore e, de repente, pára, com o machado levantado.) Epa: tô sentindo alguém atrás de mim! Ah, olha: o homem de Haegstad! Quer me pegar na traição, é? (Esconde-se atrás da árvore e espia.) Ué, não é ele, não! É um menino! Tá com baita dum medo, olhando para os lados, disfarçado. Que é que ele está escondendo na malha? Uma foice! Agora parou. Tá olhando de novo... botou a mão num toro. Por quê? O que é que ele vai fazer? Ah!... Não é que se cortou no dedo? Cortou o dedo todinho, rapaz! Tá vertendo sangue que nem boi! E agora deu no pé, com a mão enrolada num pano velho! (Erguendo-se novamente.) Que exagerado! Um dedo da mão, um dedo inteirinho, ‘seu’! De propósito: TAC! Ah, já sei pra que é: é o único jeito de escapar do serviço do rei! Ele tinha que servir de soldado e não queria nem ouvir falar! Compreendo. Bem, mas daí a... cortar assim para sempre... A gente pode pensar numa coisa dessas, querer mesmo, mas fazer? Ah, isso não, não compreendo de forma alguma! (Sacode várias vezes a cabeça e volta a trabalhar.). Um quarto na casa de Aase, em completa desordem: baús abertos, roupas espalhadas por todos os cantos. Um gato escarrapachou-se em cima da cama. Aase e Kari, mulher de um agregado, estão ocupadíssimas, fazendo malas, encaixotando coisas e pondo tudo em ordem. AASE (Correndo de um lado para o outro) – Ei, Kari: escuta! KARI – O que é? AASE (Correndo de um lado para o outro) – Kari: escuta!... Onde é que está?... Onde foi mesmo que eu guardei?... Vamos, responde logo, mulher!... Cadê?... O que é mesmo que eu estou procurando? Nem sei onde estou com a cabeça! Onde está a chave do baú? KARI – Na fechadura. AASE – Que barulho é esse? Parece que eu tô ouvindo passar um carro! KARI – São coisas que estão levando para Haegstad. As últimas coisas. AASE (Chorando) – Ah, quem me dera que fosse a mim que estivessem levando para o cemitério! Eu ficaria tão satisfeita! Quanto a gente tem que penar neste mundo! Nosso Senhor que tenha pena de mim! Olha a casa como já está vazia! O que o fazendeiro de Haegstad me deixou, o juiz carregou! Me levaram tudo, até deixar a gente pelada! Vergonha: é isso mesmo. Que vergonha para quem lavrou essa sentença! (Sentando-se na beira da cama.) Casa, terreno, me tiraram tudo! Pronto: nossa família não tem mais nem um vintém! Se o velho foi de ferro, o Tribunal foi de pedra! Não teve clemência nem perdão! O Peer estava longe, eu não tinha ninguém para me ajudar... KARI – Mas te deixaram ficar aqui até morrer. AASE – Ah, isso deixaram! Como quem joga uma migalha de esmola para mim e para o gato! KARI – Por Deus do céu: como teu filho te saiu caro, hein, Aase? AASE – Quem, o Peer? E essa agora! Eu acho que você tá ficando louca! Por acaso a Ingrid não voltou pra casa sã e salva, não? Tinham que culpar é o Demo! Era o justo no caso! Foi ele, só ele, o Demônio, que tentou o coitado do meu filho! KARI – Você não acha melhor eu chamar o pastor? Talvez as coisas estejam mais mal paradas do que a gente pensa! AASE – O pastor? É: quem sabe? (Levantando-se.) Não, nada disso! Não posso! Pois se eu sou a mãe dele, ué! Quando todos o abandonam, aí é que ele precisa mais ainda de mim! Não sou eu que vou faltar com a minha obrigação de mãe! Deixaram para ele esta jaqueta. Vou remendá-la. Quem dera, eu tivesse ficado com o casaco dele também! E as calças, onde estão? KARI – Ali naquela pilha. AASE (Remexendo e procurando) – O que é que é isso que eu estou pegando aqui, Kari? Uma forma velha que ele usava pra brincar de fundidor! Derretia estanho, prensava, moldava. Um dia, era festa em casa, o gurizinho pediu estanho para o pai. ‘Que estanho?’ Disse o Jan: ‘te dou é prata! Toma: uma moeda com a efígie do Rei Christian! É para todo o mundo saber logo que você é o filho de Jan Gynt!’ Que Deus perdoe o meu pobre falecido! Estava numa bebedeira que para ele, naquela hora, tanto fazia estanho como ouro! Era tudo a mesma coisa! Ah, olha aqui a calça! Tá que é um buraco só! Temos que remendar isso, Kari! KARI – Tá precisando mesmo. AASE – Depois vou me deitar. Tô me sentindo toda dolorida, toda doente! (Alegre.) Olha aqui, Kari: duas camisas de flanela que eles esqueceram! KARI – Ih, é mesmo! AASE – Acho ótimo. Você esconde uma. Pensando bem, é melhor a gente ficar com as duas, sabe? A que ele está usando já está toda puída! KARI – Credo, mãe Aase, e não é pecado? AASE – É. É. Mas quantas vezes você já ouviu o padre dizer que há muitos pecados que Deus perdoa? No bosque, diante de uma cabana recém-construída. Cornos de renas na soleira da porta. Cai uma neve espessa. Crepúsculo. Diante da porta, Peer Gynt está pregando uma enorme fechadura de madeira. PEER (Rindo enquanto trabalha) – Quero uma fechadura secreta e bem forte / Para não deixar entrar os diabinhos que só trazem má sorte! / Minha linda fechadura, de fecho secreto! / Com ela eu desafio o duende mais indiscreto! / Parece que estou vendo, quando chega a noite / Eles gritando aflitos: ‘abre, Peer, se não quiser que eu te açoite!’ / Abre para o diabinho, fino e sorrateiro como o pensamento, / Abre logo para a turma que veio montada no vento! / Num abrir e fechar de olhos a multidão pela casa se derrama / E começa a tormenta, que inferno! Arranham até debaixo da cama! / ‘Ha, ha, ha, Peer, não te livras de nós nem por momentos, / Ninguém pode resistir à força dos seus maus pensamentos!’ (Solveig, com um lenço amarrado na cabeça, um embrulho na mão, de esquis nos pés, surge, deslizando sobre a neve.). SOLVEIG – Que Deus abençoe o teu trabalho! Não me manda embora! Eu vim porque você me chamou. PEER – Solveig! É você? Você mesma? Não, não é possível! E você não tem medo de chegar perto de mim? SOLVEIG – Minha irmãzinha Helga me transmitiu seu recado. O vento e o silêncio me trouxeram outros. E tua mãe também, quando me falava de você, e os meus sonhos, e minhas noites tão longas, meus dias solitários – tudo me dizia para vir aqui. Lá onde eu estava minha vida se extinguia pouco a pouco. Eu não podia mais nem rir nem chorar quando tinha vontade. Eu vim porque era a única coisa que eu podia fazer. PEER – Mas o que é que o teu pai vai dizer? SOLVEIG – Por toda essa terra imensa, debaixo desse céu de Deus, não existem mais pra mim nem pai nem mãe. Não existe mais ninguém. PEER – Solveig, meu amor! Você deixou tudo pra ficar comigo? SOLVEIG – Deixei. Você será tudo para mim. Meu amigo e meu consolo. (Chorando.) E como eu sofri ao deixar minha irmãzinha, e meu pai, e mamãe que me criou! Isso é que foi o mais difícil, Peer! Não, meu Deus, o mais difícil mesmo foi todos de uma vez! PEER – Você está a par da sentença pronunciada contra mim na primavera? Sabe que me despojaram de tudo o que era meu? Agora não tenho nem casa nem mais nada. SOLVEIG – E foi por causa dos teus bens que eu deixei quem eu mais adoro no mundo? PEER – E você por acaso sabe em que condições eu vivo aqui? Se eu sair deste bosque, o primeiro que aparecer pode me denunciar! SOLVEIG – Vindo para cá me encontrar com você, cada vez que perguntavam no caminho para onde eu estava indo, eu respondia: ‘vou para a minha casa’. PEER – Ah, não preciso mais de portas nem de fechaduras! Não tenho mais medo dos diabos nem dos maus pensamentos! A bênção de Deus toca esta choupana onde você vai morar com seu pobre caçador! Solveig: deixa eu olhar para você! Sem me aproximar de você, só te olhar, olhar! Como você é loura e pura! Deixa eu te erguer nos meus braços! Como você é fina e leve! Posso te carregar sem cansar, sempre, sempre, Solveig! Para não te manchar, vou esticar meus braços para meu corpo não tocar o teu, tão morno, tão macio! Ah, parece mentira! Quem ia acreditar que eu pudesse falar assim um dia? Ah, quanto eu passei, lânguido, sem sono, pensando só em você, dia e noite, Solveig! Quero te mostrar o que eu construí! Vou derrubar tudo, sabe? É pequeno demais, é feio demais! SOLVEIG – Seja como for, eu gosto. Agora, sim, posso respirar livremente, com o rosto bem de frente para o vento! Onde eu estava era tudo tão estreito, tão sufocante! Foi uma razão a mais para eu fugir. Aqui, no meio dos pinheiros que sussurram, ouço música e silêncio, e me sinto em casa, finalmente. PEER – Tem razão! Você está em casa mesmo! Para sempre, não é? SOLVEIG – Não se volta atrás nunca, pelo caminho que vim. PEER – Até que enfim te possuo! Vamos entrar! Quero te ver na minha casa! Entra: vou buscar lenha e vamos acender uma fogueira grande, para nos dar luz e calor e para você poder descansar bem gostoso, sem sentir nem um arrepio de frio. (Pega o machado e se dirige rumo ao bosque. Nesse momento sai da mata uma velha maltrapilha, usando um vestido verde em farrapos. Um menino de mau aspecto, com uma bilha na mão, segue-a, coxeando, agarrado à sua saia.). A MULHER – Boa tarde, Peer do pé ligeiro! PEER – Quem é você? O que é que você quer de mim? A MULHER – Ora, se somos velhos amigos, Peer. Minha cabana é perto daqui. Somos vizinhos. PEER – Ah é? Pois para ser franco, eu nem desconfiava nessa vizinhança. A MULHER – Enquanto você construía sua cabana, surgia outra, perto daqui: a minha. PEER (Preparando-se para ir embora) – Estou com pressa. A MULHER – Você sempre está com pressa, meu caro. Mas manquejando daqui, me arrastando dali, consegui te alcançar. PEER – Minha excelente criatura: você está enganada. A MULHER – Qual o quê! Só me enganei daquela vez em que acreditei nas tuas promessas... PEER – Minhas promessas? Essa é boa! Que diabo de invenção é essa? A MULHER – Ah, então você já se esqueceu da noite em que fez um brinde em casa de meu pai? Esqueceu? PEER – O que? Nunca houve nada disso, dona! Que conversa fiada é essa, afinal? Quando eu te vi mais gorda? A MULHER – Só nos encontramos uma vez. A primeira e última. (Para o menino.) Dá de beber ao teu pai, menino. Acho que ele está com sede. PEER – Eu, pai dele? Acho que você está é bêbada, sabe? A MULHER – No entanto, pelo fruto você devia reconhecer a árvore. Você não está vendo que ele é manco das pernas, como você é manco da cabeça? PEER – Então você quer me fazer acreditar que... A MULHER – Ah, você já quer escapar de novo, hein? PEER – Mas como? Esse menino todo desengonçado?... A MULHER – Ah, ele cresceu depressa, isso é verdade! PEER – Ah, então, ‘sua’ carcaça carcomida: você quer se passar por... A MULHER – Escuta aqui, Peer Gynt! Você está estúpido como um cavalo! (Chorando.) Eu tenho culpa se hoje não sou mais tão bonita quanto naquele dia em que você me atraiu até a floresta? Quando dei à luz, no outono, o Diabo foi minha parteira. Não acho nada espantoso eu ficar assim feia, depois. Mas está ao teu alcance voltar a me ver mais linda do que nunca. Expulsa essa moça da tua casa, bota ela pela porta afora. Se você banir ela da tua presença e dos teus pensamentos, você verá - meu querido - como eu deixo na hora, de ser uma carcaça carcomida! PEER – Vai embora você: sua bruxa amaldiçoada! A MULHER – Espera sentado! PEER – Vou te quebrar a fuça já, já! A MULHER – Experimenta só pra ver! Peer Gynt: não sou fácil de vencer! Vou voltar aqui todos os dias. Vou me plantar nesta porta para espiar vocês dois. Quando vocês estiverem sentados juntinhos e você começar a ficar todo terno, querendo acariciar tua amada, eu me enfio entre vocês e quero meu quinhão de festa. Ela e eu, nós duas vamos ter o mesmo amante. Você vai ter que repartir teu amor com nós duas. Adeus, meu adorado, por mim você pode se casar até amanhã mesmo, se quiser. PEER – Ah, boca de Satanás! A MULHER – Ah, eu ia me esquecendo: você vai ter que manter seu filhinho, seu menininho tão engraçadinho! Ei diabinho: vai com papai, vai, filhinho! O MENINO (Cuspindo em Peer) – Fora, canalha! Onde está o machado para eu te partir ao meio? Espera só, você vai ver! A MULHER (Beijando o menino) – Menino endiabrado! Quando você crescer vai ser o retrato escarrado de teu pai! PEER (Batendo os pés com impaciência) – Eu queria que vocês fossem... A MULHER – Para bem longe, não é mesmo? PEER (Fechando os punhos, com raiva) – E tudo isso por... A MULHER – Por causa de um pensamento! Por um simples desejo! É horrível! Coitado do Peerzinho!... PEER – Mas não sou só eu que estou envolvido! Solveig, meu tesouro, doce, puro! A MULHER – É isso, é isso... O inocente é o que paga sempre pela louça quebrada, dizia o Diabo, enquanto a mãe dele dava uma surra nele para castigar as farras do papai. (Ela entra de novo no mato, arrastando o menino que joga o cântaro no chão.). PEER (Depois de uma longa pausa) – Dá meia-volta, me dizia a Curva. É assim que se faz. Agora, meu belo palácio desmoronou, só ficaram as ruínas. Agora, um muro me separa de minha amada. De repente não me agrada mais este lugar, e minha alegria evaporou. Então, meu caro, dá meia-volta, vamos! De você até ela, acabou-se o caminho em linha reta. Caminho? Quem sabe? Deve existir um caminho, deve, deve... Será o do arrependimento? Falam disso, não me lembro onde. Mas onde foi que eu li isso? Não tenho livros aqui. Não, não tenho nada que possa me guiar neste bosque selvagem em que moro. Depois, o caminho do arrependimento... Sei lá! Vai ver que precisa percorrê-lo muitos anos... Uma vida não bastaria. Quebrar tudo que existe de gracioso, de puro e de belo para depois colar de novo os cacos? Não, há coisas que não se consertam mais. Pode-se colar um violino, mas quem vai colar um sino partido? Quem cultiva a relva não pisa nela com ódio. Mas ela mentiu: aquela bruxa imunda! Não quero mais saber de todas essas nojeiras! Não quero! Mas será que elas se apagaram completamente da minha alma? Não! Nunca vou conseguir me libertar dos maus pensamentos. Elas sempre acharão um jeito de entrar na minha mente: Ingrid... e as três moças que corriam pelas montanhas... Pode ser que todas venham se intrometer também entre nós... pedindo, com risinhos e zombarias para eu apertá-las contra o peito e carregálas com carinho, com os braços estendidos, longe do corpo... Dá meia-volta meu caro! Nem que eu tivesse os braços compridos como os pinheiros das montanhas, nunca conseguiria mantê-la tão longe de mim que ela pudesse continuar branca e imaculada! Mas eu tenho que me safar desta, de cabeça erguida, sem ganhar nem perder... Deve haver uma maneira de sacudir tudo isso para longe e esquecer tudo para sempre! (Caminha alguns passos em direção à cabana e pára.) Ficar junto dela depois do que aconteceu? Coberto de lama e de vergonha? Entrar perseguido por um enxame de diabos? Falar sem dizer tudo? Contar uma parte, sem confessar a história toda? (Jogando o machado.) Hoje é véspera de festa. Eu ia cometer um pecado indo encontrá-la manchado como estou agora. SOLVEIG (Aparecendo no umbral) – Você não vai entrar? PEER (À meia-voz) – É dar a meia-volta! SOLVEIG – O que? PEER – Espera por mim. Já está escuro e tenho que carregar um fardo pesado. SOLVEIG – Eu vou te ajudar: vem, vamos trazê-lo juntos. PEER – Não, é impossível. Fica aí mesmo. SOLVEIG – Você vai demorar muito? PEER – Não sei. Paciência, minha filha. De qualquer modo, você me espera. SOLVEIG (Confirmando com a cabeça) – Eu espero, sim. (Peer Gynt segue pelo caminho que atravessa o bosque. Solveig fica de pé, no umbral da porta.). Em casa de Aase. É noite. Ardem toros de lenha na lareira, iluminando o quarto. O gato está enrodilhado em cima de uma cadeira, ao pé da cama. Aase, deitada, passa as mãos crispadas de ansiedade pela colcha. AASE – Ai, meu Deus, e ele que não vem? Como é ruim esperar, esperar! Tenho tantas coisas para dizer para ele e não tenho ninguém para mandar chamá-lo! O tempo está passando! Ah, como estou aflita! Quem podia prever uma coisa dessas? Aase, se você soubesse, garanto que você ia ser menos severa com seu filho! PEER (Entrando) – Boa noite! AASE – Deus seja louvado! Finalmente você chegou: meu filho adorado! Mas, como foi que você teve coragem de vir? Tua vida corre perigo aqui, Peer! PEER – Bah! E o que importa a minha vida? Eu precisava voltar e voltei: pronto. AASE – Ah, a Kari já fez a parte dela e eu poderei partir em paz agora. PEER – Partir? De que é que você está falando? Partir para onde? AASE – Ah, Peer, se você soubesse! Meu fim está próximo. Não vou mais viver por muito tempo, não. PEER (Inquieto, anda de cima para baixo, no quarto) – Muito bem! Eu tinha me livrado de um fardo e queria descansar um pouco... E agora, essa! Você está sentindo frio nos pés e nas mãos? AASE – Estou Peer. Logo tudo vai acabar para mim. Quando você perceber que os meus olhos já estão sem brilho, aí você fecha eles bem devagarzinho. Depois, vai providenciar o caixão... de boa qualidade, hein? Ah, meu Deus, não é que eu ia me esquecendo? É impossível! PEER – Mãe: você quer calar essa boca? Ainda temos muito tempo para pensar nisso, ora! AASE – Tem razão, meu filho, tem razão. (Olhando com angústia pelo quarto.) Você está vendo o que aqueles malvados deixaram para nós. PEER (Fazendo uma careta amarga) – É. E tudo por minha culpa. Eu sei: não precisa me jogar isso na cara. AASE – Tua culpa? E quem falou nisso? Não senhor! A culpa foi da maldita bebida, isso sim! Coitado de você, meu filhinho, você estava de ‘fogo’! Nem sabia o que estava fazendo! E antes disso, aquela tua luta com o cabrito selvagem já tinha te deixado de cabeça virada! PEER – Tá bem, mãe. Não fala mais nessa história nem nas outras. Deixa para falar mais tarde dessas coisas tristes. (Sentando-se à beira da cama.) Agora, mamãe, vamos falar de qualquer coisa, qualquer coisa. Mas sem agitação, sem brigar. Olha: o nosso velho gatão! Sempre no mesmo lugar! AASE – Ih, ele saracoteia tanto de noite! Você sabe o que isso quer dizer, não é? PEER (Mudando de assunto) – O que há de novo aqui na vila, mãe? AASE (Sorrindo) – Falam tanto de uma moça que vive suspirando na montanha. PEER (Interrompendo) – E Mades Moem? Ficou mais calmo? AASE (Continuando) – Os pais dela podem chorar à vontade: ela nem liga. Escuta aqui, Peer: acho que você deve saber de um remédio para curar essa infeliz. PEER – E o ferreiro? Que é que ele tem feito? AASE – Deixa para lá esse ferreiro sem-vergonha! Eu preferia que você me perguntasse o nome da moça... PEER – Não, não... Vamos conversar fiado assim, sem agitação, sem brigar. Você está com sede? Puxa: como é pequena essa tua cama, hein, mãe? Deixa eu ver bem. Ué: não é a minha cama de criança? Você se lembra quantas vezes você vinha de noite sentar na minha cabeceira? Você me enrolava bem nos cobertores; e depois cantava baixinho uma porção de cantigas bem antigas. AASE – Ah, você ainda se lembra, é? E quando o teu pai viajava, ficava tanto tempo fora. De noite, nós brincávamos de trenó, a colcha era a capota, o chão era o fiorde coberto de neve. PEER – E a atrelagem, mãe? Era o mais bonito de tudo! AASE – E você pensa que eu me esqueci? Kari emprestava o gato dela para a gente, e nós botávamos ele em cima de um tamborete. PEER – E depois partíamos para o castelo dos sonhos, entre as nuvens, a oeste da lua e à leste do sol. Nosso caminho passava por montes e vales. E nosso chicote era a bengala que você guardava no armário. AASE – Eu ia na boléia, ali, na ponta da cama. PEER – É. É sim! De vez em quando você afrouxava as rédeas e virava a cabeça para perguntar se eu estava com frio. Que Deus te conserve sempre, velha ranzinza! Apesar de tudo, você me adorava. Por que você está gemendo assim? O que é? AASE – Estou com dor nas costas de tanto dormir no chão puro. PEER – Espera um pouco! Pronto: agora! Se estica bem, mãe! Assim: tá bom agora? AASE (Inquieta) – Não, Peer: quero ir-me embora! PEER – Ir embora? AASE – É: ir embora! Partir, partir. PEER – Deixa disso! Te agasalha bem! Eu que vou sentar na boléia, na beira da cama. E vamos voltar aos contos de fadas, que fazem passar o tempo! AASE – Não Peer: é melhor você ir pegar no armário o Livro dos Salmos. Estou tão nervosa! PEER – No castelo dos sonhos, por cima da terra e do mar, o rei nos convidou para uma festa sem par. Sobe logo no trenó, que já vamos partir! Está pronta, mãezinha? Cuidado para não cair! AASE – Mas Peer, você tem certeza que o rei me convidou também? PEER – Absoluta! Mandou convite para mim e para você. (Passa uma corda no respaldo da cadeira onde o gato está enrodilhado e se senta na beira da cama.) Você não está com frio, mamãe? AASE – Escuta Peer: acho que estão batendo na porta! PEER – São os guizos do trenó! AASE – Que som oco que eles têm! PEER – Já chegamos ao fiorde! AASE – Estou com medo! Parece o vento ameaçando! PEER – São os pinheiros do vale. Não tem medo, não, mamãe! AASE – E lá longe, o que é aquilo que brilha tanto? De onde vem essa luz? PEER – São as vidraças do castelo. Hoje é noite de baile. Está ouvindo a música? AASE – Estou sim. PEER – Estou vendo São Pedro, na porta, convidando as pessoas a entrar. AASE – Ele está convidando? PEER – Está: e tão amável! Para cada um que passa, ele oferece um cálice de vinho mais doce que tem na adega. AASE – Vinho? Com bolo? PEER – Claro! Ele está com a bandeja na mão. Parece uma delícia! E a falecida mulher do pastor é que está preparando o café e a sobremesa. AASE – Meu Deus, meu Deus! Então ela e eu vamos nos encontrar de novo? PEER – Vão, e vão poder tagarelar até cansar! AASE – Ah, Peer, que casamento é esse que você me traz? Eu assim, já tão velha, meu filho! PEER (Dando uma chicotada imaginária) – Vamos logo, meu cavalinho alazão! AASE – Peer, meu querido! Será que você não errou de caminho? PEER (Nova chicotada imaginária) – Estamos no caminho certo. AASE – Ah, como estou cansada, como estou moída! PEER – Olha o castelo, altivo diante de nós. Logo, logo estamos chegando. AASE – Está bem. Vou fechar os olhos e confio em você, meu filho! PEER – Alto lá! Pára aqui, meu valente alazão! / Todos param, boca aberta, cheios de admiração, / Vendo chegar o Peer Gynt de braço com sua velhinha! / São Pedro me responda: vai proibir a entrada / Da minha mãe Aase no céu? Pois nesta celeste morada / Eu duvido que alguém valha mais do que ela sozinha! / Por Deus que não tem não! / É claro que não estou falando de mim: sou um pobre pecador! / Mas ficaria agradecido se me fizesse esse favor! / Senão, já sabe: chicote no animal e vamos para longe! / É verdade, fui moleque muito arteiro, / Atormentava a coitada o dia inteiro, / Chamava ela de ‘Coruja Pavorosa’: mea culpa, reconheço! / Mas meu Santo, agora por ela, não por mim, que não mereço, / Deixa ela entrar sossegadinha, para o meio dessa gente boa! / Olhe, as pessoas lá da Terra são feitas assim mesmo, sabe? / Lhe asseguro que minha mãe aqui dentro não destoa! / Ih, olha só Deus, Nosso Pai, vem chegando apressado! / Você, São Pedro, vai levar um pito de teimoso e malcriado! / (Engrossando a voz.) Não banca o porteiro, São Pedro quadrado! / Deixa entrar a Aase, o assunto está encerrado! / (Ri alto e dirige-se à mãe.) Viu só? O problema acabou na hora! / (Angustiado.) Por que é que você está me olhando assim, como se tuas pupilas fossem arrebentar? Mamãe! Você não está me ouvindo? (Aproxima-se da cabeceira.) Não fica olhando fixo assim pra mim, não. Mãe! Sou eu, teu filho! (Toca cuidadosamente a fronte e as mãos de Aase.) Ah, então é isso. Pronto, alazão: pode descansar agora. Já chegamos meu cavalinho! (Fecha os olhos da morta e se inclina sobre ela.) Obrigado por tudo o que você fez, pelos tapas e pelos carinhos! E agora, me agradece também (coloca sua testa contra os lábios da mãe.) por ter te acompanhado até o fim. KARI (Entrando) – O que? É Peer? Ah, então tudo vai mudar de agora em diante! Meu Deus! Que sono tão pesado! Parece até que... PEER – Psiu!... Ela morreu. (Kari chora, ao lado do cadáver de Aase. Peer Gynt anda de lá para cá no quarto, até que pára perto da cama.) Cuida bem do enterro dela, Kari. Quero que seja uma coisa decente. Eu vou tentar escapulir antes que me vejam. KARI – Você vai para muito longe? PEER – Vou até o mar. KARI – Tão longe assim? PEER – E até mais longe ainda. (Sai.). FIM DO TERCEIRO ATO QUARTO ATO Costa sudoeste do Marrocos. Um bosque de palmeiras, tendas, esteiras, mesa posta. Mas longe, no bosque, redes para dormir. Perto da praia, um iate a vapor com bandeiras da Noruega e dos Estados Unidos. Uma iole (espécie de canoa estreita e rápida, de uso muito difundido nos países escandinavos.) amarrado a terra. Sol poente. Peer Gynt, um homem de belo aspecto, de meia-idade, elegantemente vestido de turista, com um lorgnon (óculos sem haste.) de ouro pendurado no pescoço, preside a mesa e homenageia Mister Cotton, Monsieur Ballon, Herr Von Eberkopf e Herr Trompeterstrahle. Estão terminando de jantar. PEER – Bebam meus senhores! O homem foi feito para o prazer. Gozemos! O que passou, passou! O tempo perdido não volta mais. Que vinho os senhores preferem? TROMPETERSTRAHLE – Caro irmão Gynt: o senhor é um anfitrião sem igual! PEER – Metade do mérito recai sobre meu Mestre-Cuca, meu Maître do hotel e a meu erário. COTTON – Very well! Bebo à saúde dos quarto! BALLON – O senhor, monsieur Gynt, tem um bom gosto, um tom, que só se encontra, raramente, num cavalheiro de vida independente como a sua. O senhor tem um não sei quê... EBERKOPF – Um sopro, uma eloqüência, que se faz de sua alma liberta uma cosmopolita cidadã do mundo; um olhar que, sobrepondo-se à visão estreita e mesquinha, atravessa as nuvens e vai ao NEC PLUS ULTRA: a marca da revelação impressa numa primordialidade natural, enriquecida pela experiência adquirida e elevando-se com ela até os píncaros augustos da trilogia. Não era isto exatamente, monsieur, que o senhor queria dizer? BALLON – É possível. Mas em francês, a idéia não adquire tanto realce. EBERKOPF – Ya, ya! Seu idioma carece de flexibilidade. Seja como for, se quisermos pesquisar as origens do fenômeno... PEER – Já foram encontradas. Tudo está ligado à minha condição de solteiro. Sim, senhores: é muito simples. Qual é o primeiro dever do homem? Ser ele mesmo. Conhecer-se a si mesmo, encontrar-se a si mesmo. Ele e tudo o que se refira a ele: essa é a sua preocupação natural. Então? Eu lhes pergunto, portanto: como poderia cumprir esse primeiro dever se me deixasse sobrecarregar como um camelo das ditas e desditas alheias? EBERKOPF – Eu seria capaz de jurar que essa fuga para dentro de si mesmo, essa concentração de seu ego não foi obtida sem lutas. PEER – É verdade. Tive, há tempos, combates ferrenhos, difíceis. Mas minha vitória é honrosa. Uma vez, porém, escapei por um triz. Eu era um rapaz esperto, de aspecto agradável. Apaixonei-me por uma dama de sangue azul. BALLON – De sangue azul! PEER (Com desdém) – Exato: era essa espécie de... TROMPETERSTRAHLE (Dando um soco na mesa) – De infames aristocratas! PEER (Dando de ombros) – De grandezas decaídas, cujo orgulho é podar sua árvore genealógica de qualquer rebento plebeu... COTTON – Uma relação frustrada? BALLON – A família negou o consentimento? PEER – Ao contrário. BALLON – Ahn? PEER (Discretamente) – Os cavalheiros compreenderão que havia razões para apressar o casamento. Mas, para ser franco, era um assunto que sempre me inspirara certa repugnância. Sou, por temperamento, independente, e, além disso, me enfaro logo. De modo que quando o pai veio, todo empertigado, exigir que eu mudasse de nome e de condição social, e comparasse títulos de nobreza, sem falar de outras ignorâncias desagradáveis, para não dizer inaceitáveis, recuei dignamente, rejeitei o ultimato e renunciei à jovem. (Tamborilando na mesa e com um aspecto de recolhimento interior.) É isso: pode-se confiar no destino. Ah, que pensamento confortador! BALLON – E tudo ficou por isso mesmo? PEER – Ah, não! Tive ainda muito trabalho com esse caso. Levantou-se uma gritaria indignada, na qual sobressaíam os membros mais moços da família. Tive que enfrentar sete deles. Foi um duro, que não esquecerei nunca, embora eu tenha saído são e salvo. Correu sangue, mas esse sangue serviu para amadurecer minha personalidade e reafirmar minha fé no destino. EBERKOPF – Seu conceito de vida o eleva à categoria dos pensadores. Enquanto o medíocre só veria fatos isolados, entre os quais tateia e se perde, o senhor apreende uma visão global. O senhor detém uma norma certa, que aplica a todos os fenômenos. Seus juízos argutos, penetrantes, parecem raios emanando da mesma fonte de luz. E o senhor nunca estudou? PEER – Já lhes disse: sou apenas um autodidata. Nunca aprendi nada sistematicamente. Mas refleti, especulei e li um pouco de tudo. Como comecei tarde, não tive tempo para aprofundar-me. Por isso fui obrigado a estudar a história de modo fragmentário. E como, nos tempos que correm, precisamos de algumas certezas, acrescentei um pouco de religião, sempre em doses pequenas: torna-se mais fácil de assimilar assim. Depois, o importante não é acumular um monte de doutrinas, mas escolher as que nos possam ser úteis. COTTON – Isso é o que se chama de espírito prático. PEER (Acendendo um cigarro) – Aliás, meus amigos, basta que se recordem de minha carreira. O que é que eu era quando vim para o oeste? Um pobre diabo sem eira nem beira, que suava penosamente para ganhar um pedaço de pão. Foi duro, podem crer. Mas, apesar de tudo, ama-se a vida e a morte é sempre amarga. Resisti porque tenho a pele dura, como vêem meus amigos, a fortuna me foi propícia, o destino me sorriu. Dez anos mais tarde me chamavam de Creso dos armadores de Charleston e meu nome corria de porto em porto. Eu tinha a bordo, a sorte. A sorte viajava em meus navios. COTTON – Qual era seu ramo de negócios? PEER – Sobretudo o transporte de negros para a Carolina e a exportação de ídolos para a China. BALLON – Safa! TROMPETERSTRAHLE – Maldito seja nosso amigo Gynt! PEER – Por acaso acham uma empresa de moral duvidosa? Pois foi a mesma reação que eu tive. Era um negócio que eu considerava execrável. Mas, como os senhores sabem, depois de dado o primeiro passo é difícil voltar atrás. Como interromper assim, ZAC-ZAC, um investimento que envolve milhares de outros interesses? Em geral, é uma coisa que repugna deixar as coisas pelo meio. Mas confesso que nunca fui indiferente ao que se chama de conseqüências finais. Cada vez que ultrapassava os limites do que é lícito, sentia um vago mal-estar. Além disso, eu estava começando a envelhecer: estava roçando os cinqüenta, pouco a pouco via meus cabelos branquear. Embora gozasse de perfeita saúde, de vez em quando uma idéia penosa me rondava: ‘sabe-se lá’ – eu me interrogava – ‘quando soar a hora do grande julgamento quem separará os bodes dos carneiros?’ Que fazer? Não podia interromper meu comércio com a China. Querendo contornar essa dificuldade, estabeleci, com aquele país, relações de outro tipo. Na primavera, continuava exportando ídolos, mas no outono mandava para as costas chinesas uma carga completa de padres munidos de todo o seu equipamento: roupas, Bíblias, arroz e garrafas de rum. COTTON – O senhor tinha lucros com esse comércio? PEER – Como não? A combinação deu certo. Os padres cumpriram seu dever maravilhosamente bem. Para cada ídolo vendido era mais um Coolie (Nome pejorativo dado aos trabalhadores asiáticos, taxando-os de incompetentes.) batizado, de modo que as duas nações se anulavam mutuamente. A missão foi incansável: os deuses vendidos eram logo abolidos pelos missionários. COTTON – Sim, senhor!... E a mercadoria africana? PEER – Foi outro setor em que triunfou minha moral. Compreendi que um negócio desse tipo não era aconselhável para pessoas da minha idade. Ninguém sabe a hora da sua morte, sem contar as armadilhas que nos armam nos filantropos e os perigos de naufrágios e avarias. Tudo bem pesado, disse só para mim: ‘Peer: chegou a hora de amainar velas e de corrigir os erros.’ Então, comprei uma propriedade na América do Sul e reservei para mim mesmo o último carregamento de carne humana, que aliás resultou ser de excelente qualidade. Afeiçoaram-se a me servir, ficaram gordos, grandes, de modo que tanto eles quanto eu, ficamos satisfeitos. Afinal, podia me vangloriar de tê-los tratados como irmãos. O que, além do mais, me trouxe lucros morais. Mandei construir escolas para eleválos a um certo nível de virtude e para velar escrupulosamente pelos que estavam sob minha tutela. Depois, acabei me retirando completamente do ramo. Vendi a plantação – bens animados e inanimados. No dia da despedida, mandei distribuir bebidas grátis entre todos os meus negros, do mais velho ao menor. Aos mais velhos, não deixei faltar rapé. No fim estavam todos, tanto os homens quanto as mulheres, completamente bêbados. Portanto, se é verdade que quem não faz o mal faz o bem, posso considerar canceladas todas as faltas que cometi no passado e meus pecados compensados pelas minhas virtudes. EBERKOPF (Brindando com ele) – Que espetáculo reconfortante testemunhar um princípio vital emergindo assim, das trevas das teorias, para concretizar-se, firme e inquebrantável, desafiando todas as contingências exteriores! PEER (Que durante todo o seu monólogo bebeu sem parar) – Nós, gente do norte da Europa, sabemos guiar nosso barco. Em suma: a arte de viver consiste em não dar ouvidos às insinuações de reptilzinho à toa. COTTON – Que reptilzinho é esse, meu caro amigo? PEER – Um animal feio, pequenininho, mas muito perigoso, pois é capaz de nos arrastar para o irreversível. (Bebe mais.) No entanto, a arte de ousar e o segredo da coragem cabem inteirinhos nos seguintes preceitos: nunca dar um passo decisivo; avançar com prudência entre as mil ciladas da vida, lembrando-se de que ela não se limita ao combate travado neste momento, e manter detrás de si um espaço suficiente para bater em retirada, sem susto. Essa teoria que me deu sempre um apoio incalculável e deu à minha carreira sua marca inconfundível, essa teoria é herança de minha raça e de minha família. BALLON – O senhor é norueguês, não é? PEER – De nascimento sou, mas, por temperamento, sou cosmopolita. Devo minha riqueza à América; minha biblioteca às modernas escolas alemãs; à França, meus trajes, minhas maneiras e o requinte de minha cultura; à Inglaterra, mãos aptas para o trabalho e o instinto do lucro pessoal. Os judeus me ensinaram a paciência; da Itália eu trouxe uma leve inclinação para o DOLCE FAR NIENTE; e um dia, o aço sueco acelerou minha vitória. TROMPETERSTRAHLE (Erguendo sua taça) – Viva o aço sueco! EBERKOPF – Glória a quem sabe manejá-lo! (Bebem com Peer Gynt, cuja cabeça começa a esquentar.). COTTON – Tudo isso está muito bem. Mas se quisera saber de sua fortuna, Sir, o que o senhor pensa fazer de todo o seu ouro? PEER – Ah, ah: o que eu penso?... OS QUATRO – É, é! Conte para nós! Conte! PEER – Ora, antes de mais nada, planejo viajar. Em Gibraltar os convidei a bordo para me fazerem companhia. Era meu sonho ter um grupo de amigos dançando em torno de meu bezerro de ouro. EBERKOPF – Com que espírito diz as coisas! COTTON – Bem, mas ninguém oferece nada sem esperar alguma recompensa! Qual é seu objetivo? PEER – Eu quero ser imperador. OS QUATRO – O que foi? Quer ser o quê? (Balançando a cabeça.). PEER – Imperador! OS QUATRO – De quê? PEER – Do mundo. BALLON – Que história é essa, caro amigo? PEER – Graças ao ouro todo-poderoso! Não é de hoje que tenho essa idéia! Foi ela que me apoiou em tudo o que empreendi. Criança, eu era arrebatado pelos sonhos até as nuvens, flutuando por sobre os mares. Incapaz de ficar de pé sozinho, eu já sonhava com cetros e mantos reais. Eu podia tropeçar, mas minha idéia continuava de pé. Não está escrito não sei onde ‘se conquistares o mundo inteiro, mas perderes a ti mesmo, teu triunfo será o de uma coroa adornando um crânio vazio’? É mais ou menos isto: e não são palavras sem sentido. EBERKOPF – Mas, afinal, em que consiste esse si mesmo Gyntiano? PEER – É o mundo que eu levo debaixo do crânio e que não me deixa ser outro, assim como Deus não é o Diabo. TROMPETERSTRAHLE – Ah, já entendo o que o senhor quer dizer! BALLON – Que pensador sublime! EBERKOPF – E que grande poeta! PEER (Entusiasmando-se) – O si-mesmo, o ego Gyntiano é a massa armada de cobiças, desejos, paixões. O si-mesmo Gyntiano é a soma das fantasias, das exigências, dos direitos. É tudo que agita meu coração e me faz viver como eu vivo. E assim como Deus precisou do barro para tornar-se Senhor do mundo, eu preciso de ouro para me tornar imperador. BALLON – Precisa de ouro? Mas se o senhor tem tanto ouro? PEER – Não me basta. O que eu tenho não chegaria nem para ser rei de uma miserável aldeia, como Lippe-Detmold. Não, o que eu quero é ser eu mesmo em toda a acepção do termo, ser Gynt para o universo inteiro, Sir Peer Gynt dos pés à cabeça! BALLON (Entusiasmado) – Possuir todas as belezas do mundo! EBERKOPF – Beber vinhos centenários! TROMPETERSTRAHLE – Ter todo o arsenal do Rei Carlos XII! COTTON – Tudo é questão de achar a ocasião propícia. PEER – Já foi achada. E é rumo a elas que nos dirigimos. Esta noite, singramos para o norte. Os jornais me deram uma grande notícia. (Levanta-se, com a taça na mão.) A fortuna protege os audaciosos! OS QUATRO – Ora, diga logo! O que foi? O que foi que aconteceu? PEER – A Grécia se rebela. OS QUATRO (Levantando-se) – Como, os gregos?... PEER – Estão em franca sublevação. OS QUATRO – Viva! Hurra! PEER – E os turcos estão em maus lençóis. (Esvazia sua taça.). BALLON – À Grécia! A glória nos estende os braços! Trago-lhe o apoio das armas francesas! EBERKOPF – E eu aplaudirei à distância. COTTON – Eu lhes darei suprimentos! TROMPETERSTRAHLE – Em marcha! Irei a Bender buscar as esporas de Carlos XII! BALLON (Abraçando Peer) – Peço perdão, nobre amigo, por julgá-lo precipitadamente! EBERKOPF (Apertando-lhe a mão) – Como sou idiota! Quase o tomei por um canalha! COTTON – Não, um canalha, não! No máximo por um farsante. TROMPETERSTRAHLE (Querendo abraçá-lo também) – E eu, meu caro, por um exemplar do rebotalho ianque! Perdoe-me, por favor! EBERKOPF – Nós todos nos enganamos! PEER – Como assim? Do que estão falando? EBERKOPF – Aqui está, em todo o seu esplendor, a massa Gyntiana de cobiças, desejos, paixões! BALLON (Com admiração) – Eis aqui, Monsieur Gynt, o que o senhor chama de SER! EBERKOPF (Com admiração) – Ser um Gynt e honrar seu nome! PEER – Como? Explique-se melhor! BALLON – Explicar-nos? Então o senhor não compreende? PEER – Quero que me enforquem se entendi o que os senhores disseram! BALLON – Ora, vamos! Então o senhor não acorre, com armas e bagagens, a prestar auxílio aos gregos? PEER (Assobiando incredulamente) – Eu? Ora, já se viu? Que bobagem! Eu estou sempre do lado dos fortes. E aos turcos que emprestarei meu dinheiro! BALLON – Impossível! EBEKOPF – Que brincadeira divertida! PEER (Fica calado um momento, apóia-se a uma cadeira e toma um ar importante) – Prestem atenção, senhores: é melhor que nós nos separemos antes que os últimos restos de nossa amizade se desfaçam como o fumo. Quem nada tem nada teme. A melhor bucha para canhão são aquelas que só têm de seu, o barro que se prende à sola de seus sapatos. Mas quem já chegou com a nave em bom porto, como eu; não arrisca assim sua fortuna. Vão à Grécia, se é isso que querem. Posso armá-los de graça e mandá-los a terra. Quanto mais os senhores atiçarem o fogo, mais eu poderei retesar meu arco. Lutem! Lutem destemidamente pela liberdade e pelos direitos humanos! Façam chover sobre os turcos todas as chamas do inferno e morram de uma morte honrosa na ponta de uma lança janízara! Mas dai-me licença de não acompanhá-los. (Pondo a mão no bolso.) Tenho dinheiro e sou mesmo Sir Peer Gynt. (Abre seu guarda-sol e entra no bosque, no qual se vêem redes dependuradas.). TROMPETERSTRAHLE – Porco imundo! BALLON – É preciso não ter um pingo de honra para... COTTON – A honra é o de menos. Mas pensem só no que nós lucraríamos se o país se tornasse independente! BALLON – Já estava me vendo coroado de louros por lindas gregas! TROMPETERSTRAHLE – Eu já estava me vendo, com minhas mãos suecas, segurando as esporas gloriosas do herói! EBERKOPF – Eu já me via reinando em terras e mares distantes à cultura de minha pátria grandiosa! COTTON – E o lucro concreto? Aí é que está a maior das perdas! Goddam! Me dá até vontade de chorar! Eu já me imaginava dono do Olimpo, cujos flancos, segundo reza a tradição, cobrem vastas minas de cobre. Podíamos recomeçar a exploração. E a famosa Fonte de Castália, berço das Musas! Contando todas as cascatas pode-se calcular, por baixo, um total de mil kilowatts! TROMPETERSTRAHLE – Irei de qualquer forma. Meu aço sueco vale tanto quanto o ouro dos ianques. COTTON – Não duvido. Mas separados, seremos confundidos com a massa, desapareceremos no meio da massa. E que vantagem tiramos disso? BALLON – Caramba! Naufragar quando o porto já está à vista! COTTON (Com o punho cerrado faz um gesto ameaçador em direção ao iate) – E pensar que naquela noz maldita está guardado todo o ouro que esse nababo arrancou do suor de seus negros! EBERKOPF – Grande idéia! Vamos partir! Rumo ao mar! Terminou seu império! Viva! BALLON – O que o senhor planeja fazer? EBERKOPF – Tomar o poder! A tripulação é fácil de subornar! Vamos adiante! Eu me aproprio do iate! COTTON – Como? O senhor?... EBERKOPF – Vou saquear tudo! (Anda em direção ao iate.). COTTON – Meu interesse ordena tirar meu quinhão. (Segue-o.). TROMPETERSTRAHLE – Ah, canalha miserável! BALLON – Canalha, mesmo! Mas, afinal... (Segue os dois.). TROMPETERSTRAHLE – Não posso deixar de segui-lo. Mas antes protesto perante o mundo inteiro! (Segue-os.). Outra parte da costa. Noite enluarada. Nuvens cruzam o céu. Ao longe, o iate singra a todo vapor. Peer Gynt percorre a costa correndo. Faz gestos de desespero e de auto-acusação, enquanto contempla o mar e o horizonte. PEER – Estou sonhando! É um pesadelo! Já vou acordar! Corre como uma flecha para o mar alto! Mas não é possível, eu estou sonhando! Estou dormindo, estou bêbado! (Torcendo as mãos.) Não é possível eu morrer desse jeito! (Arrancando os cabelos.) É um sonho! Eu quero que seja um sonho! Ah, mas é monstruoso! Aaaah! E, no entanto, é verdade. Amigos falsos! Escuta-me, meu Deus! Tu que és a própria sabedoria! A própria justiça! Dirijo-te minha súplica! (Erguendo os braços ao céu.) Sou eu, Peer Gynt! Olha para mim, Senhor! Oh, Pai, toma-me debaixo da tua asa ou eu morro! Faz estourar o motor! Faz afundar o iate! Pára aqueles larápios! Confunde os aparelhos de navegação! Ouve-me! Deixa de lado um momento todo o resto que o Senhor estiver fazendo! O mundo vai adiante um minuto só sem ti, meu Deus! Ué? Ele não me ouve!... Está surdo, como sempre!... Parece incrível, não é? Um Deus desligado! (Fazendo um sinal para o céu.) Psiu! Olha, escuta: eu deixei a fazenda! E o tráfico de negros! Mandei até missionários para a China, sabe? Uma mão lava a outra, não é? Agora é a tua vez de me ajudar, não acha? (Uma labareda imensa sai de repente da chaminé do iate, logo envolto numa espessa fumarada; ouve-se uma surda detonação. Peer Gynt dá um grito e se prostra sobre a areia. Daí a instantes, a fumaça se dissipa. O iate desapareceu. Peer Gynt, pálido, em voz baixa.) É castigo! Afundou tudo! Não ficou nem um parafuso! Bendito seja este golpe de sorte! (Comovido.) Sorte? Não, foi muito mais. Eles morreram e eu fiquei salvo. Dou-te graças por ter me protegido, por ter me ajudado, apesar de todos os meus malfeitos! (Respira, aliviado.) Ah, como isso faz bem e que consolo o da gente, se sentir seguro, distinguido por uma proteção toda especial! Mas, estou no meio do deserto! Onde vou encontrar comida e bebida? Qual: acabo achando alguma coisa, não tem perigo! Ele deve estar pensando nisso! (Em voz alta e com tom insinuante.) Ele não vai querer a morte de um pardalzinho à toa, como eu! Vamos ser humildes e dar-lhe tempo. Entreguemo-nos nas mãos do Senhor sem esmorecer. (Dá um pulo, aterrorizado.) O que foi esse rugido no meio dos caniços? Será... um leão? (Batendo os dedos de medo.) Não, não é um leão, não. (Acalmando-se.) É, sim, é um leão. Essas feras esperam para dar o bote. É que não se atrevem a atacar seu legítimo senhor e mestre! Esses bichos têm instinto e sabem muito bem que é perigoso brincar com o fogo... Não tem importância. Vou procurar uma árvore. Estou vendo palmeiras, acácias, por ali... Se eu subir numa delas, estou salvo. Se ao menos eu soubesse alguns Salmos! (Trepa numa árvore.) “A noite não se parece com a manhã!” Já se pensou muito sobre esta sentença profunda. (Ficando à vontade.) Ah, como a gente se sente bem assim, com a alma elevada! Um pensamento nobre vale mais do que todas as riquezas do mundo. Confiemos n’Ele. Se Ele me dá o cálice amargo, se Ele nos dá o cálice amargo para beber é porque Ele sabe o que eu sou capaz de agüentar e não exigirá demais de mim. Para mim, Ele tem um coração de pai! (Em voz baixa, suspirando e com um olhar para o mar.) Que pena que Ele esbanja tanta coisa! (É noite. Um campo marroquino nos confins do deserto. Guerreiros estendidos em torno de uma fogueira de bivaque.). UM ESCRAVO (Chega, arrancando os próprios cabelos) – Sumiu o cavalo branco do Imperador! OUTRO ESCRAVO (Chega rasgando a própria roupa) – Roubaram o traje sagrado do Imperador! UM GUARDIÃO (Chegando) – Cem pauladas nas plantas dos pés de cada um de vocês se o ladrão fugir! (Os guerreiros montam a cavalo e partem à galope em todas as direções.). Amanhece. Bosques de acácias e de palmeiras. Peer Gynt, trepado numa árvore, serve-se de um ramo dela, que arrancou para defender-se de um grupo de macacos. PEER – Deus do céu! Que noite, puxa! (Golpeando com o ramo.) Você ainda está aí, desgraçado? Maldito de uma figa! Olha eles me atirando casca de coco! Não, pois não é que eles estão jogando é outra coisa? Que bicho mais asqueroso é o macaco, êta! Está escrito: ‘atreve-te e combate!’ Mas eu estou que não posso mais! Estou morto de cansaço! (Sacudindo-se com impaciência.) Mas preciso dar um fim nisto! Vou pegar um destes gaiatos, enforcá-lo e depois tirar a pele dele para eu usar. Aí, os outros vão pensar que eu sou um deles. Afinal, um homem, tudo somado, é pouca coisa e é preciso pegar a onda conforme a maré. Puxa: outro monte de macacada! Como tem, nossa! Oh, ralé: passa fora, vamos! Uh, uh! Parece que enlouqueceram de vez! Ah, se eu tivesse à mão ao menos um rabinho ou sei lá o que pra me dar um aspecto assim, de animal! Ah, agora sim: o que é isso se mexendo aí em cima da minha cabeça? (Olhando.) Ah, é esse velho com as patas sujas de titica! (Ele se embola, com ansiedade, e fica imóvel durante um instante. O macaco faz um movimento. Peer começa a lisonjeá-lo como se fosse um cachorro.) Ah, é você, auauzinho? Que gracinha: ele todo com a barriguinha cheia! Ele só quer é carinho, não é lulu lindo do papai? Não vai me jogar tudo isso em cima, vai? Oi, oi, oi! Sou eu, meu luluzinho, eu! Nós somos ótimos amigos, rá, rá, rá, viu só? Eu sei falar tua língua! Você e eu somos primos. É: primos, viu? E amanhã vou te dar um montão assim de açúcar, não... Ah, filho da!... Me mandou um pacote inteiro! Ih, que nojo! Ou quem sabe era até comida, hein? Tinha um gosto tão indefinido... Aliás, gosto é questão de hábito. Não me lembro qual foi o sábio que disse: ‘o homem come, cospe e se habitua’. Ih, olha lá a gurizada voltando, gente! (Defende-se.) Mas temos que reconhecer que é humilhante para o homem, o Rei da criação! Socorro! Socorro! O velho era horroroso, mas os menores são piores! Hora bem matinal. Uma planície rochosa da qual se vê o deserto. De um lado, uma fenda profunda conduz a uma caverna. Um ladrão e um receptador estão à entrada da fenda, com o cavalo e o traje sagrado do Imperador. O cavalo, ricamente arreado, está preso a uma rocha. Ao longe, distinguem-se cavaleiros. LADRÃO – Lanças, fuzis! / Para onde vamos fugir? RECEPTADOR – Estão atrás de nós / Vão nos enforcar, para nos punir! LADRÃO (Cruzando os braços) – De semente de ladrão / Só sai mesmo é ladrão! RECEPTADOR – Filho de quem não vale nada / Aceita o destino que nem manada! LADRÃO – Seguirá teu caminho, diz o Alcorão, / Serás tu mesmo, ó ladrão! RECEPTADOR – Vamos salvar o pescoço / Lá vem gente, dá no pé, seu moço! LADRÃO – Vamos fugir até melhorar a maré / E viva o nome sagrado do Profeta Maomé! (Desaparecem pela caverna adentro, deixando os despojos. Os cavaleiros perdem-se de vista.). PEER (Chega, cortando um caniço para fazer uma flauta) – Oh, que amanhecer radioso! O escaravelho rola seu ovo e o caracol tira fora os chifres. Chega a manhã trazendo esperanças douradas. Que força maravilhosa a natureza deu aos raios do sol nascente! A gente, logo, logo se sente seguro, cheio de coragem, capaz até de desafiar um touro bravo! Ué, que silêncio que está aqui, que paz! Ah, como é que eu pude passar tanto tempo sem essas alegrias do campo? Ficar fechado numa cidade grande, recebendo empurrões de gentinha! Aqui, não, aqui os lagartos têm tempo de desenhar esses caprichados à luz do sol, gozando de um delicioso FAR NIENTE... É a inocência reinando em tudo, até na vida dos animaizinhos. Todos seguem as leis do Criador e conservam o selo que Ele imprimiu neles. Todos conservam Sua personalidade na luta, no descanso, igualzinho como no primeiro dia da criação. (Pegando o binóculo.) Um sapo. Parece que está enfiado na parede, com só um buraquinho para a cabeça ficar de fora. Por esta janela ele olha para o mundo e se basta a si mesmo. (Refletindo.) Basta-se a si mesmo? Onde foi que eu li isso? Acho que foi quando eu era criança, num livro velho de mágica. Era o ‘Livro da Família’ ou ‘A Clavícula de Salomão’? Que humilhação! À medida que eu envelheço vou perdendo aos poucos a memória. Não me lembro mais direito nem dos lugares nem das datas. (Sentando-se à sombra.) Ah, aqui sim é que está fresco. Posso descansar. Ah, essas plantas são de raízes comestíveis. (Provando uma.) Uh, isso está bom é para os bichos! Mas não está escrito: ‘dominarás tua natureza’? E depois: ‘quem se eleva será rebaixado e quem se rebaixa será elevado’? (Inquieto.) Elevado? É isso que me espera, mesmo. Não pode ser de outro jeito. O destino vai me ajudar a sair daqui e encontrar de novo o meu caminho. Estou passando por uma prova. Depois vem a salvação, se para tanto o Senhor me der forças. (Tenta pensar em outras coisas, acende um cigarro, estende-se no chão e contempla o deserto.) Que solidão imensa, sem fim! O que será que Deus queria quando criou este espaço vazio e sem vida? Só estou vendo uma avestruz, lá longe, mais nada. Esta extensão sem limites, sem nenhuma fonte de vida, com tudo abrasado, árido, inútil, este pedaço de terra sem cultivo, eternamente este cadáver, que desde que o mundo é mundo, nunca rendeu nada para o Criador, nem mesmo um ‘obrigado!’. Não lhe disse? Por que será assim? A natureza é perdulária! E aquela superfície brilhando lá longe será o mar? Qual o quê! Deve ser uma miragem. O mar está aqui, do lado oeste, onde as ondas batem contra um dique de colinas que as separam do deserto. (Surpreendido por uma idéia repentina.) Um dique? Então quer dizer... que eu podia, talvez... É uma cadeia estreita. Um dique! Basta então cortá-lo por meio de um canal para inundar o deserto com uma maré de vida. E logo esta baía incandescente vai ser só um mar vasto de onde emergirão os oásis transformados em ilhas fecundas! Ao norte, a Serra Atlas verdejante se erguerá como penhascos e ao sul, por onde passam hoje as caravanas, embarcações de velas enfunadas traçarão sulcos na água. Uma brisa vivificante expulsará os miasmas tórridos, uma chuva fresca cairá das nuvens e as palmeiras se agitarão ao vento em torno de cidades populosas. Mas longe, ao sul do Saara, se estenderão as cidades à beira-mar, o berço de uma nova cultura. O vapor dará vida às fábricas de Tombuctu. Da noite para o dia Burnu será colonizada, sem risco nenhum. O explorador só tem que subir no vagão do trem e viajar até o Alto Nilo, passando pelo país de Gabés. Num oásis rico, no meio do meu oceano, introduzirei a raça norueguesa. O povo de Hallingdal é quase de sangue azul, com um pouco de cruzamento árabe tudo está feito. Num anfiteatro, sobre a baía, mandarei construir Peerópolis, minha capital. O mundo antigo chegou ao fim: começa uma nova era. A era Gyntiana, da minha terra recém-criada. (Levantando-se com um pulo.) Um pouco de capital, e pronto, estou com tudo! Só preciso de uma chave de outro para abrir as eclusas! Guerra sem quartel à morte! Vamos forçar os infames, unhas de fome, a soltar o ouro escondido! Um sopro de liberdade bafeja todos os povos. Como o asno na Arca de Noé, vou zurrar tão alto que o mundo inteiro me ouvirá. E trarei o batismo de liberdade para estas costas soberbas arrancando-as do nada em que estão presas até hoje! Avante! Quero os capitais do Oriente e do Ocidente! Meu reino, ou melhor, a metade de meu reino por um cavalo! (O cavalo relincha.) Um cavalo! Roupas! Armas! Jóias! (Aproximando-se.) É impossível! E não é que é verdade? Não, não pode ser! Eu li não sei onde que a fé remove montanhas, mas será que transporta cavalos também? Como sou bobo! Está aqui, mesmo, um cavalo! É um fato palpável! AD ESSE AD POSSE, ET CAETERA. (Veste a roupa por cima da sua e contempla-se.) Sir Peer e ainda por cima turco! Realmente, nunca se pode prever o que vai acontecer. Coragem! Meu belo alazão! (Monta-o.) Estribos de ouro para apoiar meus pés! Firme na sela: é o que distingue a gente de boa raça! (Desaparece a galope para o lado do deserto.). Um oásis. Debaixo de uma tenda de Sheik árabe, Peer Gynt, com roupas orientais, estendido num mole divã, toma café fumando chibuque. Diante dele, dançam e cantam Anitra e um coro de moças. CORO – Glória, glória ao Profeta / Senhor do tempo e do futuro, / Que atravessando o mar de areia / Veio até o nosso recanto obscuro / Glória ao Profeta, Senhor infalível! / Trazido pelo céu e pela brisa loura / Por cima de um mar de areias quentes / Chegou à nossa sombra acolhedora. / Flautas, cantai nossa imensa alegria / Em honra do Profeta e da sua sabedoria! ANITRA – Ele surge montado / Em sua égua cor de leite / Baixai vossa fronte sem véu / Seu olhar tem a doçura do mel. / Nenhum mortal jamais suportou / Seus raios inflamados. / Pelos desertos sem vida / Ele vem e tudo reluz / Ao toque de sua roupa de ouro e de luz. / Quando parte / Ele leva consigo o dia / Chega a noite ameaçadora / Com o simum e sua sombra destruidora / Erguida sobre o deserto de luz consumida / Pela chama embriagadora. / A Kaaba fica vazia / Tudo fica sem alegria / Quando ele se vai levando o dia. CORO – Flautas: cantai nossa imensa alegria / Em honra do Profeta e da sua sabedoria! (As moças dançam ao som de uma melodia tocada em surdina.). PEER – Está escrito: ‘ninguém é profeta em sua terra’, e é verdade. Estou muito mais à vontade aqui do que no meio dos armadores de Charleston! Não sei o que era lá, que eu achava falso, qualquer coisa que não ia com a minha natureza, não sei bem o que era. Sempre me senti estrangeiro lá, fora da minha profissão, um peixe fora d’água. O que é que eu fui fazer lá, naquela prisão? Por que eu me meti naquele formigueiro? Quando penso nisso, agora, nem entendo. Foi um acaso, quem sabe? Querer ser alguém pela força do dinheiro é como construir uma casa na areia. O homem comum se arrasta e abana o rabo diante do relógio e dos anéis de ouro, tira o chapéu, respeitoso, se você tem um alfinete de gravata. Mas o alfinete, o relógio e os anéis não fazem ninguém profeta! Isso, pelo menos, é claro. Já é pelo menos uma posição diante da vida! A gente sabe onde pisa. Quando a gente é bem recebida, é por nós mesmos, não pelos cifrões que a gente tem! Cada um é o que é: nada mais. Não se deve nada à sorte nem ao acaso, nem se perde tempo com concessões e patentes industriais! Profeta: por Deus, é uma coisa que eu gosto! E isso me veio assim tão de improviso, bastou eu atravessar o deserto. Tinham roubado o cavalo e as roupas do Imperador de Marrocos. Os ladrões, quando se viram perseguidos, largaram tudo. Eu peguei as roupas, montei no cavalo e aqui estou, com essa fantasia toda, no meio destes filhos inocentes da natureza. ‘É o Profeta!’ Para eles, não há dúvidas. Não tenho intenção de enganá-los. Mentir e profetizar são coisas diferentes. Além do que, posso sempre sumir a tempo. Não tem perigo. Não estou preso a nada. É um assunto, digamos assim, particular. Posso ir do mesmo jeito que vim. Meu cavalo está selado. Em resumo: sou dono da situação. ANITRA (Aproximando-se) – Amo o profeta! PEER – O que quer a minha escrava? ANITRA – Chegaram filhos do deserto. Estão diante da tenda e pedem para contemplar a tua face. PEER – Alto lá! Diz para eles ficarem à distância! Só quero preces rezadas bem de longe! Diz para eles que não tolero homens em minha tenda! Os homens, minha filha, são uma espécie miserável, rebotalho do mundo! Ó, Anitra! Você nem imagina quanto eles roubaram! Hmmm... quero dizer: pecaram, pecaram, minha filha! Agora chega! Dancem mulheres! O Profeta quer afastar as lembranças desagradáveis! CORO (Dançando) – O bom Profeta chora e se desespera / Pelos pecados cometidos pelos filhos da Terra. / O meigo Profeta dará nova vida e calor / Aos corações empedernidos sem amor / Lá no Paraíso eterno onde não existe a dor. PEER (Acompanhando com os olhos, Anitra, que está dançando) – Ela mexe as pernas como varas tocando tambor! Ela é deliciosa, essa mocinha! Tem proporções meio esquisitas, não muito de acordo com as regras da beleza. Mas o que é a beleza afinal? Uma convenção, uma moeda válida só em certas épocas e certos lugares. Quem está farto das regras, precisa de extravagâncias. Os pés não estão lá muito limpos, nem os braços. Mas a rigor, não é um defeito, faz parte do tipo. Ei, Anitra, escuta! ANITRA (Aproximando-se) – Tua escrava te escuta! PEER – Você é sedutora, minha filha. O Profeta está comovido. Quer uma prova? Vou-te fazer uma huri no meu Paraíso! ANITRA – Ah, isso é impossível, ó Mestre! PEER – Ué, e essa agora? Então você acha que eu estou mentindo, é? Juro sobre minha cabeça que estou falando sério. ANITRA – Como, se eu não tenho alma? PEER – Vai ter uma. ANITRA – Como, senhor? PEER – Deixa isso comigo: vou te educar. Não tem alma? Bem, você é o que se chama de um animalzinho. Isso, eu percebi com dor no coração, sabe? Mas, caramba: sempre tem um lugarzinho para se encaixar uma alma. Vem aqui, quero medir teu crânio. Ah, viu só? Tem lugar de sobra! Eu sabia, eu sabia. Você não vai muito longe, não. Não posso te prometer uma alma – digamos - muito profunda. Mas que importa isso? Sempre chega para os teus gastos pessoais. ANITRA – O Profeta é tão bom! PEER – O que é? Está com medo? Fala! ANITRA – É que eu preferia... PEER – Fala, não tenha medo, fala! ANITRA – Não me importo muito com essa história de alma, não. Preferia ter... PEER – O que? ANITRA (Indicando o turbante dele) – Esse opala lindo! PEER (Dando-lhe a jóia com entusiasmo) – Anitra: filha verdadeira de Eva! Sinto o poder magnético do teu encanto. Porque, sobretudo, eu sou homem e, como diz o autor respeitável: ‘sinto-me atraído pelo eterno feminino’. Lua cheia. Palmeira diante da tenda de Anitra. Peer Gynt está sentado debaixo de uma árvore, com um alaúde árabe. Cortou o cabelo e a barba, e parece consideravelmente mais jovem. PEER (Tocando e cantando) – Quando deixei meu templo sossegado / E com alma sedenta de aventura / Parti trancando a porta atrás de mim / Eu buscava um amor novo e cheio de ternura / E mil belezas choravam dias sem fim / Suas noites perdidas com tanta amargura. / Eu fui-me embora com a vela enfunada / Enfrentando os mares e a distância / Cheguei às terras das areias inconstantes, / Da miragem, ilusão triste do nada / Das palmeiras como a sorte inconstantes. / Quando enfim desembarquei no porto, / Queimei meu barco companheiro / E me joguei intrépido aventureiro / Sobre um cavalo fogoso / De rédeas soltas e galope garboso. / Anitra: afinal te encontrei / Com teu corpo doce, teus pés alados, / Prato delicioso, bebida divina, / Melhor que o vinho e água destilados / Da palmeira esguia, de palma tão fina! (Pondo o alaúde a tiracolo e andando alguns passos.) Que silêncio! Será que a minha linda fica quieta, para ouvir minha canção? Quem sabe se sem véu e sem adornos, ela me olha escondida atrás de uma cortina? Psiu! Estou ouvindo um barulho parecido com o de uma garrafa sendo aberta, a rolha que salta! De novo! De novo! Será um suspiro de amor? Ou será uma voz cantando? Não, é um ruído muito típico! É uma música para os meus ouvidos: Anitra está dormindo. Ah, rouxinol, pára com teus trinados! Teu canto pode te custar caro... Mas não, canta, canta como manda o poeta. O rouxinol é cantor por sua própria natureza. Eu também não sou assim? Eu e ele, com o ímã de nossos sons harmoniosos, nos apoderamos dos coraçõezinhos femininos, delicados e sensíveis. A noite serena foi feita para o canto. O canto é que nos une. Para Peer Gynt, como para o rouxinol, cantar é ser. Que ela durma: a criatura adorável. Não é o cúmulo da felicidade para um apaixonado como eu? Não é a suprema ventura ansiarem os lábios sem tocar o cálice? Ah, mas ei-la que surge! Bem, é melhor assim: gosto mais dela acordada! ANITRA (Saindo da tenda) – Tu me chamas na noite, oh, senhor? PEER – Sim, o Profeta te chama. Não sei que barulho do inferno me despertou sobressaltado. Pareciam trompas de caça, a não ser que fosse um concerto noturno de gatos. ANITRA – Não, meu senhor. Não eram as trompas de caça. Era coisa muito diferente. PEER – O que era? ANITRA – Poupa-me essa vergonha, eu te suplico! PEER – Fala! ANITRA – Não me faça corar, Profeta! PEER (Aproximando-se dela) – Era talvez a emoção que me arrebatou na hora em que te dei a opala? ANITRA – Ora senhor: como se pode comparar a ti, ó luz do mundo, a um gato horroroso, a um animal repugnante! PEER – Ah, minha filha, em matéria de amor, um gato pode valer tanto quanto um profeta. ANITRA – O mel de um gracejo suave escorre de teus lábios, senhor. PEER – Amiguinha: você é como todas as mulheres, sempre pronta a julgar os grandes homens pelo aspecto. Sou brincalhão, no fundo, principalmente, na intimidade. Minha posição me impõe uma máscara, sofro a inibição de meus deveres profissionais. Como profeta, às vezes sou brusco, mas só em palavras. Chega de comédia! Num aparte te repito que sou Peer, aquele que é. Azar do profeta: receba este eu que eu te ofereço. (Senta-se debaixo de uma árvore e a faz sentar-se em seu colo.) Vem, Anitra: descansemos debaixo do leque destas palmeiras verdejantes. Você sorrirá com as palavras que sussurrarei em teus ouvidos. Depois mudaremos de papéis e serei eu a sorrir, enquanto teus lábios vermelhos me sussurram juras de amor. ANITRA (Estendendo-se a seus pés) – Cada palavra tua é doce como um canto que não compreendo bem. Dize-me, senhor, é te ouvindo que ganharei uma alma? PEER – A alma, sopro e luz do verbo, você terá mais tarde, minha filha. Quando, em letras de ouro sobre fundo rosado do Oriente, aparecer estas palavras: CHEGOU O DIA, começarão as lições. Não tenha medo: você será instruída. Mas eu tinha que ser muito burro, para, numa noite calma e cálida como esta, me enfeitar com uns farrapos de sabedoria e te tratar como professor de escola. Afinal, pensando bem, o principal não é a alma: é o coração! ANITRA – Fala senhor: quando tu falas, parece que eu vejo resplandecer a opala. PEER – A razão levada ao extremo é burrice. A covardia vira crueldade. Exagerar a verdade é o contrário da sabedoria. É isso, minha filha, o Diabo me carregue se não existem aí, pelo mundo, pessoas abarrotadas de alma e embotadas de compreensão. Conheci um tipo assim, era uma pérola, mas que perdeu o que queria e ficou sem rumo. Você está vendo este deserto que cerca o oásis? Eu, agitando o turbante, consigo inundá-lo inteiro com as ondas do oceano. Mas eu ia bancar o idiota criando novos continentes e novos mares. Você lá sabe o que é viver? ANITRA – Ensina-me, ó Profeta. PEER – É planar acima do tempo que corre; descer a corrente sem olhar os pés e nunca perder nada da sua personalidade. Mas para ser o que se é - minha amiga - é preciso a força dos anos! Uma águia velha perde as plumas; um cavalo velho, a ligeireza; e uma comadre velha fica sem dentes. A pele se enche de rugas e a alma também. Mocidade! Mocidade! Contigo quero reinar não sobre as palmeiras e os vinhedos de um país Gyntiano qualquer, mas no pensamento virgem de uma mulher, cujo sultão ardente e fogoso quero ser. Mocinha: te concedi a graça de seduzir-te, de escolher teu coração para nele fundar um califado novo. Quero ser o dono dos teus suspiros. No meu reino, introduzirei o regime absoluto. Nossa separação será punida com a morte... para você, naturalmente. Não haverá uma fibra, uma partícula de você que não seja minha. Você não conhecerá nem sim nem não, só a minha vontade será a tua. Tua cabeleira negra como a noite e tudo que é teu e doce de enumerar se inclinará diante do meu poder soberano. Teu corpo será o meu Jardim da Babilônia. Por isso não me zango de você não ter nada no lugar do cérebro. Quem tem alma e inteligência logo começa a raciocinar. Aliás, de propósito, se você quiser, consinto em pôr uma corrente em teu tornozelo. Será melhor para nós dois. Eu substituo para você a alma. E tudo fica na mesma, não é? (Anitra ronca.) O quê? Está dormindo? Minhas palavras deslizaram sobre ela sem tocá-la? Não! Minha declaração de amor é tão eloqüente que como um rio impetuoso a levou para longe, para o país dos sonhos. (Levanta-se e cobre de jóias o seio de Anitra adormecida.) Para você: colares. Mais ainda! Dorme Anitra, e pensa em Peer! Dormindo conquistaste uma coroa imperial. Esta noite, Peer Gynt triunfou graças à sua própria personalidade. Rota das caravanas. O oásis se perde no horizonte. Peer Gynt galopa num cavalo branco, com Anitra na garupa. ANITRA – Me deixa ou eu te mordo! PEER – Louquinha! ANITRA – O que você quer, afinal? PEER – O que eu quero? Brincar de águia e pombinha! Te raptar! Fazer loucuras! ANITRA – Não tem vergonha, não? Um velho profeta!... PEER – Qual o quê: o Profeta não é nada velho e você é uma bobinha. Isso é sinal de velhice? ANITRA – Me larga: quero voltar! PEER – Coquete! Quer voltar, é? Quer mesmo? Para a casa do papai? Os pássaros livres como nós, que fugiram da gaiola, não voltam nunca. E depois, não se pode ficar eternamente num lugar só, sabe? A gente acaba perdendo em estima o que ganha em relações, sobretudo, para quem se apresenta como Profeta. Já era tempo de acabar mesmo. Esses filhos do deserto têm almas valentes. Já começavam a escassear o incenso e as rezas. ANITRA – É, mas é verdade mesmo, que você é profeta? PEER – Eu sou o teu Imperador! (Tenta beijá-la.) Olha só como ela fica toda empertigada: essa rolinha braba! ANITRA – Me dá esse anel que está no teu dedo. PEER – Toma essas bagatelas todas, minha querida! ANITRA – Tuas palavras são cantos de alegria. PEER – Ah, que maravilha ser tão amado assim! Quero desmontar! Quero levar, como um escravo, as rédeas do cavalo que você cavalga! (Entrega-lhe o látego e apeia-se do cavalo.) Está vendo só, minha rosa, minha flor encantada: ando na areia, no pó, até um raio de sol me jogar estendido aos teus pés! Sou jovem, Anitra, compreendeu bem? Não dê muita importância aos meus feitos nem aos meus gestos, viu? E se o teu entendimento fosse um pouco menos espesso, ó minha glória rosada, eu te diria que teu amante é moço porque faz loucuras. ANITRA – É verdade: você é moço. Tem mais anéis? PEER – Não sou mesmo? Está vendo? Olha: eu pulo como um cabrito! Se tivesse folhas de videira teceria uma coroa para mim! Caramba: se sou jovem! Upa, upa! Quero dançar! (Dança e canta.) Franguinha vaidosa / Que me faz tão feliz, / Teu galo amoroso / Te pede uma bicada gostosa! ANITRA – Está todo suado, meu Profeta. Tenho medo que você derreta. Me dá que eu levo esse embrulho pesado preso à cintura. PEER – Como ela pensa em mim! Que carinhosa! No futuro, você é que vai carregar minha bagagem, sabe? Os corações apaixonados não precisam de ouro para ser felizes! (Recomeça a dançar e a cantar.) Peer Gynt, cabeça de vento, / Não tem miolo na cachola, / Olha só este pulo, / E olha esta cabriola! ANITRA – Ah, que prazer ver o Profeta dançar! PEER – Ah, chega dessa história de Profeta! Vamos mudar de roupa, anda, tira teu vestido! ANITRA – Teu caftan é muito comprido; a cintura é muito larga e as meias, apertadas. PEER – Está bem! (Ajoelha-se.) Então faz uma coisa aí para me dar uma baita tristeza. Vamos: doce é sofrer quando se ama. Presta atenção: quando estiveres no meu castelo... ANITRA – No teu Paraíso!... Está longe ainda? PEER – Umas mil milhas, mais ou menos... ANITRA – Ih, é muito! PEER – Escuta uma coisa: eu vou dar a alma que te prometi. ANITRA – Obrigada: vivo muito bem sem alma. Mas você não estava me pedindo para te dar tristeza bem grande? PEER (Levantando-se) – Ah, sim, morte da minha alma! Um pesar violento, mas curto. Que dure uns dois ou três dias, no máximo! ANITRA – Então Anitra obedece às ordens do Profeta! Até! (Dá uma chicotada forte nos dedos de Peer, arrebata-lhe as rédeas e parte a galope.). PEER (Imóvel por uns instantes, como que fulminado por um raio) – O quê? Por todos os... O mesmo cenário. Uma hora mais tarde. Peer Gynt, com movimentos calmos e refletidos, despoja-se, peça a peça, de seus trajes orientais. Em seguida, tira do bolso um gorro de viagem, que coloca na cabeça, e usa de novo roupas européias. PEER (Jogando longe o turbante que acabou de tirar da cabeça) – Fica o turco para lá e eu para cá. Essa história de paganismo não me serviu de nada. Felizmente não chegou, como se diz, a fazer parte do meu sangue. O que é que eu ia achar naquela prisão? Como se não fosse melhor viver como cristão, desprezar as plumas de pavão, não perder nunca de vista a lei e a moral, ser quem se é, enfim, o merecer, depois de morto, uma oração fúnebre e coroas sobre a sepultura. (Andando.) A safadinha: por pouco não me deixa de cabeça virada! Macacos me mordam se eu souber o que me atraiu nela! Ainda bem que acabou a farsa. Um pouco mais e eu caía no ridículo. Errei, é verdade, mas o que me consola é que era um erro de situação, que não me atingia pessoalmente. Era o resultado da vida do profeta, uma vida nauseabunda, sem ação, sem sal e sem graça. Eta vida besta essa de profeta! Estou roubando, infelizmente. Mas ainda tenho umas poupanças, um dinheirinho para gasto, depósitos nos Estados Unidos. Pelo menos não estou pedindo esmolas. E sabe lá se esta mediocridade não é o que existe de melhor no momento. Não sou mais escravo de um Avlo ou de um cocheiro. Não estou carregado de bagagens. Resumindo: estou, como se diz vulgarmente, dono da situação. Que caminho tomarei? São tantos na minha frente. E o que diferencia os sábios dos imbecis é a escolha do caminho. Já sei o que vou fazer: vou procurar um guia de viagens para uma viagem cronológica. Reconheço que minha instrução peca pela base, e depois, o mecanismo da história é coisa muito complicada. E daí? Quem parte ao acaso é que chega aos resultados mais originais. Além do que, nada eleva a alma como traçar uma meta e ir rumo a ela, com uma vontade de aço! (Com emoção.) Romper todos os laços, abandonar sua terra natal, deixar os amigos, jogar tesouros pela janela, despedir-se da doçura do amor, tudo isso, para chegar aos arcanos da verdade. (Enxugando uma lágrima.) Por essa prova se reconhece os eleitos! Ah, estou mais feliz do que posso dizer, pois acabei de resolver o enigma do meu destino! Abandono as veredas da vida e mergulho no passado. Que venham a mim os feitos e heróis antigos! O presente não vale um caracol! Os homens, hoje, não têm tutano nem fé. Agem mole-mole, bajulando a torto e a direito. E as mulheres então, (dando de ombros.) são um produto inferior. (Vai-se embora.). Dia de verão no extremo norte. Uma cabana na floresta. A porta, aberta, tem uma fechadura enorme e, sobre ela, chifres de cervo. Cabras pastam à sombra da casinha. Diante desta, uma mulher, já madura, loura e bonita, fia, sentada ao sol. A MULHER (Dá uma olhada para o caminho e canta) – Um outono ainda e um inverno também / Um verão inteiro e mais uma primavera / Eu vou te esperar / Pois virás - um dia – sem avisar ninguém / Eu manterei a minha promessa / De sempre, sempre te esperar / (Recolhe as cabras, volta à roça e canta.) Deus te guarde por todos os caminhos onde fores andar / Dirija teus passos, bendiga tua mão / Se vieres aqui, te esperarei sem me queixar / Se me esperares lá em cima irei a ti mais tarde me juntar. No Egito. Amanhece. A estátua de Memnon sobre a areia. Peer Gynt chega caminhando, tranquilamente, e olha um momento a seu redor. PEER – Posso muito bem começar por aqui. Eis-me, então, transformado em egípcio para mudar um pouco, mas sem deixar minha personalidade Gyntiana. Depois irei a Assíria. Se eu fosse até a origem da criação, ia me perder no labirinto. Aliás, quero ficar por fora da história bíblica, sem perder sua pista positiva. Examinar tudo, tintim por tintim, como se costuma dizer, não está no meu programa. (Senta-se numa pedra.) Vou descansar aqui, esperando, calmamente, o canto matinal do colosso. Depois do desjejum vou subir na pirâmide e se me sobrar tempo, vou estudar o interior dela também. Depois vou andar a pé em torno do Mar Vermelho. Quem sabe encontro à beira-mar o túmulo do Rei Putifar? E pronto, já virei um filho da Ásia. Na Babilônia vou procurar vestígios dos jardins suspensos e das prostitutas, testemunhos gloriosos de sua velha cultura. Depois, de um salto, chego aos muros de Tróia. De Tróia, uma linha marítima vai direta à antiga e esplêndida Atenas. Lá visitarei, atentamente, o desfiladeiro defendido por Leônidas e me iniciarei nas grandes escolas filosóficas. Acharei a prisão onde morreu Sócrates, a nobre vítima... Mas o que estou dizendo? A Grécia está pegando fogo! Está em guerra. Bom, então deixo a filosofia para mais tarde. O helenismo que espere. (Olhando o relógio.) O sol está demorando, o tempo voa. Vou voltar para Tróia. Era onde eu tinha parado... (Ergue-se e escuta.) Que barulho esquisito é esse? (O sol se levanta. A estátua de Memnon canta.). A ESTÁTUA DE MEMNON – Das cinzas dos deuses nasceram com o tempo / Passarinhos cantores / Amon, o autocrata, / Quer que se combata / Para achar o mistério oculto / O espírito que seu canto encerra / O erro é mortal e a vida encerra. PEER – Falando sério: acho que a estátua emitiu uns sons. É a música do passado. Captei as ondulações e vou anotar esse fato para os sábios refletirem a respeito. (Anota no caderno) ‘A estátua cantou. Ouvi muitíssimo bem a música, mas não entendi a letra. Tudo, aliás, não passou de uma alucinação, é claro. Fora isso nada tem de importante para anotar hoje’. (Continua seu caminho.) Nos arredores de Gizeh. Vê-se a grande esfinge talhada na pedra. Longe, no horizonte, as agulhas torres dos minaretes do Cairo. Peer Gynt chega e olha atentamente para a esfinge, através de um Lorgnon ou fazendo um telescópio com uma das mãos. PEER – Com os diabos, onde foi que achei uma coisa parecida com esse cara aí? Ah, lembro-me vagamente. Será que era uma pessoa? Quem? Porque eu devo ter conhecido alguém assim, no norte ou no sul. Memnon eu achei parecido com os velhos de Dovre, como eles se chamam na minha terra. É a mesma atitude rígida e compassada, com o traseiro pregado numa pedra. Mas esta besta aqui, diante de mim, esse bastardo, meio mulher, meio leão, também faz parte da história? Ou será uma reminiscência? Faz parte da história? Ah, sim, te peguei meu caro: você, a Curva, a quem dei umas boas pauladas em sonhos! Entenda-se: eu estava de cama, com febre. (Aproximando-se.) Os olhos são os mesmos, os lábios também só tem um ar assim menos indolente, um pouco mais astuto. Olha só, hein, Curva, quem diria? Visto por detrás, à luz do dia, você parece um leão, hein? Será que você ainda se lembra de algum enigma? Vamos ver. Você vai me responder como da outra vez? (Falando alto.) Ei, você aí, Curva: quem é você? UMA VOZ (Por detrás da Esfinge) – Ach, Sphynx, wer bist Du? PEER – O que? Um eco que fala alemão? Que coisa esquisita, puxa! A VOZ – Wer bist Du? PEER – Alemão puro, não há dúvida. Vou ser o primeiro a anotar uma observação tão inédita. (Escrevendo em seu caderno de notas.) ‘Eco alemão, sotaque de Berlim’. BEGRIFFENFELD (Saindo detrás da Esfinge) – Um homem! PEER – Ah, já entendi de quem era a voz. (Escrevendo.) ‘Modifiquei mais tarde estas primeiras impressões’. BEGRIFFENFELD (Demonstrando inquietação) – Desculpe senhor, é uma pergunta vital: o que o senhor veio fazer aqui? PEER – Uma visita. Vim ver um amigo de infância. BEGRIFFENFELD – Quem: a esfinge? PEER – É minha conhecida há muito tempo. BEGRIFFENFELD – Oh, que felicidade! E isso depois da noite que eu passei! Ah, como arde minha fronte! Acho que minha cabeça vai estourar! Quer dize que o senhor a conhece, é? Responda! Fale! Quem é ela? PEER – Ela é quem ela é. Sei muito bem. É o eu. BEGRIFFENFELD (Dando um pulo de alegria) – O eu, o eu! Que raio de luz! Vislumbro o enigma supremo da vida! Ele é o eu, o senhor diz, não é? Tem certeza? PEER – Tenho. Pelo menos é o que ele afirma. BEGRIFFENFELD – O eu! Está próxima a grande evolução, então! (Tirando o chapéu.) Sua graça, senhor? PEER – Eu me chamo Peer Gynt. BEGRIFFENFELD – Peer Gynt! É simbólico! Eu podia ter minhas próprias dúvidas. Peer Gynt? Isso quer dizer o desconhecido, o porvir, o que me previram. PEER – Ah, é, é? Aposto que o senhor veio me ver! BEGRIFFENFELD – Peer Gynt! Mas é um mistério, um abismo. E é um acontecimento marcante. Cada palavra, um ensinamento profundo! Quem é o senhor? PEER (Modestamente) – Sempre procurei ser eu mesmo. Aliás, olha aqui o meu passaporte. BEGRIFFENFELD – Outra palavra enigmática! (Pegando-lhe o pulso.) Vamos para o Cairo! Encontrei o Imperador dos Exegetas! PEER – O Imperador? BEGRIFFENFELD – Venha, venha! PEER – E ficarei famoso? BEGRIFFENFELD (Arrastando-o) – O Imperador de uma exegese baseada no eu! No Cairo. Um pátio amplo, cercado por edifícios e altas muralhas. Janelas com grades. Jaulas de ferro. No pátio, três guardas. Chega um quarto. O QUARTO GUARDA – Ei, Schaffman, e o diretor? UM DOS TRÊS – Saiu muito cedo, hoje, antes de amanhecer. O QUARTO – Acho que teve algum aborrecimento durante a noite. OUTRO – Psiu! Olha ele aqui! (Begriffenfeld introduz Peer Gynt, fecha a porta à chave e põe a chave no bolso.). PEER (À parte) – De fato, isso é que é um homem culto! Quase tudo que ele diz é incompreensível. (Olhando em torno.) Então é esse o Clube dos Sábios? BEGRIFFENFELD – Estão todos reunidos aqui. O Círculo dos Setenta, recentemente acrescido de cento e três membros novos. (Chama os guardas.) Michel, Schligemberg, Schaffman, Fuchs, nas jaulas: rápidos! OS GUARDAS – Nós? BEGRIFFENFELD – Quem então? Vamos, vamos! Já que o mundo dá voltas, nós vamos dar voltas com ele. (Força-os a entrar na jaula.) Peer, o Grande, fez sua entrada solene – vocês não têm outro remédio senão fazer-lhe companhia. Não lhes digo mais nada. (Tranca a jaula e joga a chave num poço.). PEER – Ora, meu querido Diretor, meu caríssimo senhor Diretor... BEGRIFFENFELD – Nem uma coisa nem a outra. Fui só, até agora. Senhor Peer Gynt: o senhor vai ficar bem quieto? Preciso aliviar minhas mágoas. PEER (Com inquietude crescente) – Como assim? BEGRIFFENFELD – Prometa que não vai tremer. PEER – Vou tentar, não é? BEGRIFFENFELD (Puxando-o para um canto e falando-lhe em voz baixa) – A razão absoluta faleceu ontem, às onze da noite. PEER – Pelo amor de Deus Todo-Poderoso! BEGRIFFENFELD – Pois é: é muito triste mesmo. E a minha situação torna este acontecimento ainda mais desagradável. Pois até agora, este estabelecimento era considerado um hospício para doentes mentais. PEER – Um hospício de loucos? BEGRIFFENFELD – Já acabou, entendeu? PEER (Pálido, com um fio de voz) – Compreendo, sim. Esse homem está louco varrido! E ninguém percebe. (Afasta-se.). BEGRIFFENFELD (Seguindo-o) – O senhor compreende que quando eu digo faleceu, estou exagerando um pouco, não é? Ela saiu sem ninguém mandar ela embora, saiu da própria pele, como a raposa do Barão de Munchausen. PEER – Um momento, por favor. BEGRIFFENFELD (Retendo-o) – Ou melhor: não foi bem como uma raposa, como uma enguia foi. Um alfinete no olho... cravada no muro... Esperneou um pouco... PEER – Como é que eu saio dessa? BEGRIFFENFELD – Um corte no pescoço e pronto! Saiu da própria pele! PEER – É louco varrido! Perdeu a razão! BEGRIFFENFELD – Agora é claro, que essa fuga, terá como conseqüência uma revolução no mar e na terra. As pessoas consideradas loucas até então, acham-se, a partir das onze da noite de ontem, num estado normal, em plena posse da razão, nesta nova fase da razão, quero dizer. E, se formos um pouco mais longe, verificaremos que, imediatamente, todas as pessoas consideradas razoáveis ficaram loucas. PEER – O senhor está falando das horas. Sabe, estou com o tempo todo tomado. BEGRIFFENFELD – Seu tempo? Ah, é mesmo. (Abre uma porta e chama.) Saiam! Chegou o tempo esperado! A razão morreu! Viva Peer Gynt! PEER – Bem, meu amigo, francamente... (Um depois do outro, os loucos aparecem no pátio.). BEGRIFFENFELD – Bom dia, bom dia! Saúdem a aurora de sua liberdade que raia! Eis seu Rei, seu Imperador! PEER – Imperador! BEGRIFFENFELD – Como não? PEER – É uma honra tão grande, que ultrapassa os limites... BEGRIFFENFELD – Não, nada de falsa modéstia num momento desses! PEER – Pelo menos me dê um momento de descanso. Não sirvo para nada, assim. Estou completamente embotado, embrutecido! BEGRIFFENFELD – Um homem que decifrou o enigma da esfinge? Um homem que consegue ser ele mesmo? PEER – Pois é: aí é que está a dificuldade. É verdade, achei a mim mesmo, eu sou eu dos pés à cabeça. Mas, uai, se não me engano, todo mundo está é fora de si... BEGRIFFENFELD – Fora de si? O senhor se engana redondamente. Ao contrário: cada um aqui é si próprio com toda a intensidade. Só isso e nada mais. Cada um é si mesmo até dizer chega. Cada um se fecha em si mesmo, como dentro de um tonel. E é no poço fundo de si mesmo que a madeira endurece, é com a rolha de si mesmo que cada um fermenta dentro de si mesmo. Ninguém chora os males alheios aqui. Nós aqui somos nós mesmos até as unhas. De modo que, se tivermos que ter um Imperador, o senhor é o homem que nos falta. Nem há dúvida. PEER – Eu queria que o Diabo... BEGRIFFENFELD – Ora, tenha coragem, vamos! No princípio todo mundo se sente assim pouco à vontade. Ser o que se é! Olhe, vou dar-lhe um exemplo. Vamos pegar o primeiro que chegar. (Dirigindo-se a um personagem de aspecto sombrio.) Bom dia, Uhu! Mas o que é isso? Ainda está triste, meu caro? UHU – Como é que eu posso ficar alegre, com tantas gerações desaparecendo assim, incompreendidas? (Para Peer Gynt.) Você que não é daqui, quer me dar atenção? PEER (Inclinando-se) – Com muito prazer. UHU – Então escute. Lá para o leste, lá longe, é a costa de Malabar. Os holandeses e os portugueses semeiam sua cultura entre as tribos de verdadeiros malabares. São tribos que misturam seus idiomas. Reinam – soberanas - no país inteiro. Mas, antigamente, era o babuíno, o macaco, me entende, que era o chefe. Era o dono das florestas verdejantes, onde podia lutar; fazer caretas, berrar à vontade, esganiçado o quanto quisesse, já que estava em casa! Até que – ah, que horror! – chegaram as hordas estrangeiras, e era uma vez a língua da selva. Uma noite quatro vezes secular estendeu-se sobre o macaco infeliz e fez parar seu desenvolvimento. Todo mundo sabe o que acontece com os povos que sofrem esse destino. O idioma antigo já não ressoa mais na floresta. Já não se ouve mais aquele grunhido primitivo. Para exprimir pensamentos, temos que recorrer às palavras. Eu lutei para preservar a pureza de nossa língua silvestre, de galvanizar o cadáver. Defendi o direito ao berro. Berrei eu também. Demonstrei a necessidade do berro nas canções populares. Mas me recompensaram muito mal pelos meus esforços. Obrigado pela atenção. E se você conhece algum remédio para essa situação, diga qual é. PEER (À parte) – A gente tem que dançar conforme a música. (Em voz alta.) Meu caro amigo: pelo que eu me lembro, há no Marrocos / Um povo de babuínos sem gramáticos nem poetas. A língua / Que falam parece com o idioma malabar. Você / Faria uma boa ação e daria um ótimo exemplo se, / Como muitos homens de renome, consentisse em deixar / Seu país pelo bemestar de seus compatriotas. UHU – Obrigado pela atenção. Farei o que me aconselham. (Com um gesto nobre.) O oriente recusou seu poeta. O poeta vai ter com os babuínos do ocidente. (Afasta-se.). BEGRIFFENFELD – E então, será que ele foi o que é? Foi - não foi? Ele, só ele, está cheio de si, não pensa noutra coisa. Ele está, porém, fora de si. Venha: vou lhe mostrar outro que a partir da noite passada, como o primeiro, segue as regras da razão normal. (Para um felá que carrega uma múmia às costas.) Rei Ápis: como vai vossa senhoria? O FELÁ (Com raiva, para Peer) – Sou o eu, o Rei Ápis? PEER (Escondendo-se atrás do Doutor) – Eu não tenho competência, confesso... Mas, julgando pelo seu tom de voz... O FELÁ – Você também está mentindo? BEGRIFFENFELD – Que vossa senhoria se digne a explicar-lhe o caso. O FELÁ – Pois bem! Está vendo isso que levo nas costas? Chamava-se o Rei Ápis, agora se chama Múmia e, como se fosse pouco, ainda está morto. Foi ele que construiu todas as pirâmides e esculpiu na pedra a grande Esfinge, e combateu os turcos. Por isso o Egito fez dele um deus, que adoravam num templo, com a forma de um boi. Pois bem! O Rei Ápis sou eu. É uma coisa que vejo clara como a luz do dia. Você duvida? Eu posso te provar. Um dia que o Rei Ápis estava caçando, desceu do cavalo para retirar-se um momento. O terreno, adubado assim pelo grande Rei, pertencia a meu avô. Ora, desse terreno brotou o trigo que me alimentou. Quer outra prova mais? Tenho na cabeça chifres invisíveis. Não é mesmo uma maldição ninguém reconhecer meus títulos? Ápis pelo nascimento. Aos olhos do vulgo sou apenas um felá. Você tem qualquer conselho para me dar? Então, fale com franqueza. Meu sonho é parecerme com o Grande Rei Ápis. PEER – Vossa senhoria só precisa construir as pirâmides, esculpir uma grande Esfinge e lutar contra os turcos. O FELÁ – É fácil de dizer. Eu, um felá morto de fome, já faço muito em defender minha favela dos ratos e ratões. Ora, vamos, acha uma coisa melhor para eu fazer, para eu ficar famoso, sem perigo que me dê o aspecto do Rei Ápis, que carrego nas costas! PEER – E que tal se sua senhoria se enforcasse e depois ficasse debaixo da terra como morto, protegido pelos limites naturais de um bom caixão? O FELÁ – Isso mesmo! Minha vida por uma corda! Viva a forca! Não vai sair tudo igualzinho como foi, para começar, mas o tempo depois iguala tudo. (Afasta-se e prepara-se para se enforcar.). BEGRIFFENFELD – Eis aí um homem cheio de personalidade! Não é mesmo, senhor Peer? Um homem metódico! PEER – Ah, isso é sim, mas... Pelo amor de Deus: não é que ele está se enforcando de verdade? Já estou tonto! Acho que vou ficar doente! BEGRIFFENFELD – É um estado de transição: passa logo! PEER – De transição? Transição para chegar a quê? O senhor me desculpe: eu tenho que ir embora. BEGRIFFENFELD (Tentando detê-lo) – O senhor está louco, é? PEER – Ainda não... Louco, hein? Para mim chega! (Tumulto. O Ministro Hussein, atravessando a multidão, aproxima-se deles.). HUSSEIN – Acabaram de me informar que um Imperador tinha chegado aqui. (A Peer.) É o senhor? PEER (Com um tom desesperado) – Parece que sou sim! HUSSEIN – Muito bem. Aqui temos umas cartas que precisamos responder. PEER (Arrancando os cabelos) – De acordo! Vamos em frente então, vamos! HUSSEIN – Quer fazer o favor de me molhar? (Inclina-se profundamente.) Eu sou uma pena de escrever. PEER (Inclinando-se mais ainda) – E eu sou seu velho pergaminho imperial. HUSSEIN – Minha história, senhor, é muito simples. Me tomaram por uma ampulheta e eu sou é uma pena de pato. PEER – E minha história, ó pena de pato, se resume em duas palavras apenas: sou uma folha de papel fadada eternamente a ficar em branco. HUSSEIN – As pessoas não sabem o partido que podiam tirar de mim. Todos só querem me usar para espalhar areia. PEER – Eu já fui um livro dourado nas mãos de uma mulher. A sabedoria e a loucura são apenas erros tipográficos. HUSSEIN – Imagine o senhor, que triste é para uma pluma, não sentir nunca o ferro de uma faca. PEER (Dando um pulo grande) – E imagine um cabrito saltando de cima para baixo sem parar e sem nunca tocar a terra! HUSSEIN – Uma faca! Estou embotada! Precisam-me talhar, me raspar. O mundo vai morrer se não afinar minha ponta! PEER – Que tristeza para o mundo, que Deus, como autor, o tenha achado tão bem feito! BEGRIFFENFELD – O senhor quer uma faca? Olha aqui uma. HUSSEIN (Pegando-a) – Ah, agora sim vou me embeber de tinta! Que felicidade me cortar a ponta! (Degola-se.). BEGRIFFENFELD (Afastando-se) – A pluma vai arranhar o papel. PEER (Com angústia crescente) – Segurem ele! HUSSEIN – É isso: me segurem! Peguem da minha pluma! Isso! Papel, papel! (Cai.) Estou embotado. Não se esqueçam do meu epitáfio, hein? ‘A vida inteira e até a morte, foi uma pluma casta’. PEER (Desmaiando) – Que vai ser de mim? Que é que eu sou? E você, Grande... Chega aqui... Serei o que você quiser... Turco... Diabo... Pecador... Mas vem aqui. Alguma coisa se rompeu em mim... (Rindo.) Não acho mais teu nome. Chega aqui até mim, ó Tutor dos Animais! (Desmaia.). BEGRIFFENFELD (Com uma coroa de palha na mão, cavalga Peer e diz) – Ah, olhem o sol como faz brilhar! Está fora de si! É o momento para coroá-lo! (Coloca a coroa na cabeça de Peer Gynt e grita.) Viva o Imperador de Si-Mesmo! SCHAFFMAN (Dentro da jaula) – Es lebe hoch der Grosse Peer! FIM DO QUARTO ATO QUINTO ATO A bordo de um navio que percorre o litoral da Noruega. Pôrdo-sol. Mar agitado. Peer Gynt, um ancião cheio de vigor, de cabelos e barba brancos, está na popa do navio. Veste uma roupa semelhante a um uniforme de marinheiro. Está usando jaqueta e botas de cano largo. Suas roupas estão um pouco gastas. Bronzeado pelo sol, suas feições tem uma expressão mais dura, agora. O Capitão está perto do timão. A tripulação está na proa. PEER (Apoiado na murada, contemplando a costa) – Olha aqui o Velho Halling, de roupa de inverno, estufando o peito para os raios do sol poente. Como está todo empertigado, o velhinho! O Pico da Geleira, seu irmão, fica atrás, modestamente. Sua capa de gelo cintila ao sol. As águas do Mar da Neve se estendem graciosas, como virgens com longos vestidos de linho. Bom, nada de loucuras, hein, meus velhos companheiros? Fiquem direitinhos aí mesmo onde estão. Pensando bem, vocês não passam de blocos inertes de gelo. O CAPITÃO (Gritando para a tripulação) – Dois homens para o timão! Içar a lanterna! PEER – Que vento frio, do norte! O CAPITÃO – Esta noite vamos ter tempestade. PEER – De longe será que veremos os Montes Ronden? O CAPITÃO – Não, ficam escondidos pelo Mar de Neve. PEER – E Blohoe? O CAPITÃO – Também não. Mas com bom tempo, da gávea, lá no mastro mais alto, pode-se ver o Pico de Galdho. PEER – E onde fica Hasteigen? CAPITÃO (Indicando) – Lá daquele lado. PEER – Ah, muito bem. CAPITÃO – Pelo visto, o senhor conhece bem esta região. PEER – Quando parti, passei por aqui. E, como dizem, os tempos da mocidade são os que se gravam mais na lembrança. (Cospe e volta a fitar a costa.) Aquilo que está luzindo azul, lá longe, no meio dos penhascos, aquele desfiladeiro preto numa cova, e às margens dos fiordes que desembocam no oceano, é lá então... (Dirigindo-se ao Capitão.) Lá tem poucas casas? CAPITÃO – Poucas, espalhadas por aí. PEER – E chegaremos lá antes de raiar o dia? CAPITÃO – Espero: se a noite não piorar muito. PEER – Do lado do poente há nuvens grossas. CAPITÃO – É verdade. PEER – Ah, antes de desembarcar, não se deixe esquecer-se de dar umas lembranças à tripulação, hein? CAPITÃO – Ah, obrigado! PEER – Não vai ser muita coisa, não. Fui garimpar ouro, mas tudo que eu achei, depois perdi... A sorte e eu estamos de relações cortadas. O senhor sabe quanto depositei a bordo? É tudo o que eu tenho: o resto levou a breca. CAPITÃO – Dá e sobra para viver muito bem por aqui. PEER – Não tenho família. Não tenho ninguém esperando pelo rico vagabundo. Pelo menos não teremos choradeira no cais. CAPITÃO – Lá vem a tempestade. PEER – Então, é como eu disse: se algum marinheiro está com problemas, não ligo para dinheiro, ouviu? CAPITÃO – É muita gentileza da sua parte. A maioria ganha pouco e todos têm mulher e filhos. Passam apertos com salários tão pequenos. Ah, se ganhassem um dinheiro extra no desembarque, para eles seria uma festa para ser lembrada por muito tempo! PEER – O que é que o senhor está dizendo? Que são casados? E que tem mulher e filhos? CAPITÃO – Sim, senhor, todos, do primeiro ao último. O que dá mais pena é o cozinheiro: na casa dele é só miséria, da negra! PEER – Casados, é? Com gente esperando por eles em casa? Com gente alegre pela chegada deles, é? CAPITÃO – É, mas são festas simples que fazem: festas de pobres. PEER – O que é que acontece na noite em que eles chegam? CAPITÃO – Caramba: acho que pelo menos dessa vez a patroa os espera com um jantar e tanto. PEER – Com uma vela acesa em cima da mesa? CAPITÃO – Até duas. E um traguinho para completar a comida. PEER – E eles ali, se esquentando no lar, diante de uma boa lareira, no meio de uma criançada alegre fazendo uma algazarra dos diabos? É a felicidade, não? CAPITÃO – Acho que sim. Por isso, repito, é tão amável o senhor dar um presente de despedida para eles. PEER (Dando um murro na amurada) – O senhor acha, é? E essa agora? Então o senhor está pensando que eu sou algum louco? Que eu vou lá me arruinar para alegrar os filhos dos outros? Suei muito para ganhar meu dinheiro e não vai ser agora, que vou jogá-lo fora, não! Lá não tem ninguém esperando o velho Peer Gynt! CAPITÃO – Bom, é claro, o senhor faz o que quiser do seu dinheiro, afinal é todo seu! PEER – Se é! É meu e de mais ninguém! Assim que jogar a âncora, o senhor me apresenta a sua conta. Pago só minha passagem do Panamá até aqui, e dou um pouco de aguardente para a tripulação. E é só. Se eu der um centavo a mais, Capitão, o senhor pode me cuspir na cara. CAPITÃO – Vou lhe dar um recibo e não insultos. Com licença: a tempestade está chegando. (Dirige-se rumo à proa. O céu tornou-se inteiramente escuro. Acendem-se luzes. O navio joga cada vez mais forte. Névoa e nuvens espessas.). PEER – Crianças travessas em casa, lembranças alegres que te acompanham onde você for! Mas de mim, quem se lembra de mim? Ninguém! Vão acender velas e pôr castiçais à mesa, é? Dou um jeito de apagar tudo. Pronto! Vou deixar todos bêbados de cair. Quero que nenhum desses animais desça à minha terra sem estar altíssimo! Vão abraçar a mulher e os filhos empapados de álcool! Gritando palavrões! Dando socos na mesa! Vão fazer uma confusão infernal e em casa todos vão tremer de medo deles! As mulheres vão fugir gritando e carregando os filhos para longe! Era uma vez tanta alegria! (O barco joga muito. Peer tropeça e luta para se manter em pé.) Epa! Epa! Bela sacudidela! O mar trabalha como se fosse pago para isso! Nada mudou nestas regiões do norte. Sempre expostas aos mesmos horrores! (Ouvindo.) Que é que estão gritando? VIGIA (Na proa) – Uma balsa a estibordo! CAPITÃO (Na ponte do meio) – Timão para estibordo! Baixar velas! PILOTO – Tem alguém na balsa? VIGIA – Estou vendo três homens! PEER – Desçam o bote salva-vidas! CAPIATÃO – Não: pode naufragar. (Dirige-se à proa.). PEER – Quem está pensando numa coisa dessas? (Aos membros da tripulação.) Salvem-nos, se forem homens! Que diabo: será que vocês estão com medo de molhar os pés, é? CHEFE DA TRIPULAÇÃO – Mas é impossível, com o mar assim! PEER – Estão ouvindo os gritos? É o vento que está ficando com raiva! Ei, você aí, cozinheiro: desce lá. Te dou uma boa recompensa! COZINHEIRO – Nem por vinte guinéus! PEER – Ah, cachorros sem-vergonhas! Capados miseráveis! Pensem nesses coitados que têm mulheres e filhos esperando por eles em casa! CHEFE DA TRIPULAÇÃO – Eles que tenham paciência! CAPITÃO – Olha que ondas! Deixa o barco flutuar! PILOTO – A balsa virou! PEER – Não se ouve mais nada... PILOTO – Se eles eram casados, como o senhor diz, o mundo agora se enriqueceu de mais três viuvinhas. (A tempestade aumenta. Peer Gynt vai à popa do navio. Já anoiteceu. Um passageiro desconhecido, de pé ao lado de Peer, saúda-o, cortesmente.). DESCONHECIDO – Boa noite. PEER – Boa noite... Hein? Quem é o senhor? DESCONHECIDO – Seu companheiro de viagem, às suas ordens. PEER – Essa agora! Eu pensava que fosse o único passageiro a bordo! DESCONHECIDO – Foi engano seu, que já está corrigido. PEER – Mesmo assim, é esquisito: nunca o vi até hoje, no navio. DESCONHECIDO – É que eu nunca saio da cabine de dia. PEER – Será que o senhor está doente? Estou achando o senhor branco como o cal. DESCONHECIDO – Que nada: estou muitíssimo bem. PEER – Que tempestade, não? DESCONHECIDO – É meu amigo, uma verdadeira bênção! PEER – Uma bênção? DESCONHECIDO – Vagalhões do tamanho de uma casa! A gente fica todo salpicado de espuma! Pense só em todas as jangadas que aparecerão amanhã, os cadáveres cuspidos pelo mar! PEER – Ah, meu bom Deus, haverá muitos mesmo! DESCONHECIDO – O senhor alguma vez já viu alguém morrer estrangulado, enforcado... ou afogado? PEER – Como disse? DESCONHECIDO – Os cadáveres sorriem, ou melhor, fazem uma careta bonachona e na maior parte das vezes mordem a própria língua. PEER – Que horror! Quer me deixar em paz, por favor? DESCONHECIDO – Só uma pergunta, a última: e se nós naufragássemos esta noite? E se afundássemos no mar, nesta noite escura? PEER – O senhor acha que há esse perigo? DESCONHECIDO – Eu não sei de nada. Mas suponhamos que eu escapo e que o senhor é que morre afogado. PEER – Deixa disso, vamos! DESCONHECIDO – É uma simples possibilidade. Ora, quando o sujeito já está com o pé na cova, o coração já fica mole, as pessoas já começam a ficar generosas... PEER ((Pondo a mão no bolso) – Bom, se é questão de dinheiro... DESCONHECIDO – Não, não é isso. Mas será que o senhor me concedia como especial favor seu precioso cadáver? PEER – Que brincadeira é essa? O senhor está passando dos limites, sabe? DESCONHECIDO – Mas é só o que eu lhe peço. Seu cadáver. É para minhas experiências científicas. PEER – O senhor quer fazer o grande favor de me deixar em paz de uma vez? DESCONHECIDO – Mas o que é isso, meu amigo: reflita um pouco. O senhor também terá suas vantagens. Mandarei abrir seu corpo e expô-lo à luz do sol. O objetivo de minhas pesquisas é localizar, sobretudo, o local onde nascem os sonhos humanos. Além do que, prometo-lhe submetê-lo inteiro à minha análise. PEER – Vá-se embora daqui! DESCONHECIDO – Mas, meu caro, um simples corpo afogado... PEER – Seu blasfemo desafiador de tempestades! Ah, mas é loucura demais! A chuva e os ventos estão nos açoitando sem dó, o mar nos sacode como sacos soltos, corremos perigo de vida, e o senhor parece que quer é acelerar a catástrofe! DESCONHECIDO – Bem, eu acho que o senhor não está bem disposto agora. Mas pode mudar depois. (Com uma saudação amável.) Nós voltaremos a nos encontrar no fundo do mar ou talvez até antes. Aí espero que o senhor esteja de humor mais alegre. (Entra num camarote.). PEER – Que personagens repugnantes são esses cientistas! Deve ser um ateu! (Ao Chefe de Tripulação, que passa diante dele.) Um momento, amigo: quem é esse louco que viaja como passageiro conosco? CHEFE DE TRIPULAÇÃO – Um passageiro? Que eu saiba o senhor é o único que nós temos a bordo. PEER – O único? Que coisa esquisita! (Ao Praticante de Piloto.) Quem foi que acabou de descer para os camarotes agora mesmo? O PRATICANTE – Foi o cachorro de bordo, senhor. (Sai.). O VIGIA (Gritando) – Terra à vista! PEER – Minhas malas! Meu cofre! Tudo para o convés! CHEFE DE TRIPULAÇÃO – Temos mais o que fazer. PEER – Eu estava brincando, Capitão, não era a sério, não! Mas é claro que vou dar uma ajuda ao cozinheiro! O CAPITÃO – O mastro grande se rompeu ao meio! O SEGUNDO – Está caindo a bujarrona! CHEFE DE TRIPULAÇÃO (Na proa) – A proa encalhou! O CAPITÃO – Ficou partida! (O navio naufraga. Barulho, tumulto.). Banquisas e recifes perto da costa. O barco está afundando. Percebe-se através da névoa o barco salva-vidas que leva dois homens. Uma onda o faz submergir e virar. Um grito, depois um momento de silêncio. Pouco a pouco se vê emergir o barco salva-vidas, com a quilha no alto, e logo a cabeça de Peer saindo da água. PEER – Socorro! Um bote! Socorro! Vou afundar! Está escrito: ‘salvai-me, oh Senhor!’ (Agarra-se ao costado.). COZINHEIRO (Nadando ao lado oposto) – Nosso Senhor: tende piedade de meus filhinhos! Permiti que eu chegue até a praia! (Agarra-se ao costado.). PEER – Larga daí! COZINHEIRO – Larga você! PEER – Você vai ver só!... COZINHEIRO – Quem vai ver é você! PEER – Vou dar cabo de você de tanto soco e pontapé! Larga, eu repito! Não dá para nós dois! COZINHEIRO – Eu sei disso. Por isso que você tem que largar. PEER – Eu não: você! COZINHEIRO – Espera só! (Lutam. O cozinheiro solta uma das mãos, mas continua agarrado com a outra.). PEER – Solta essa pata, anda! COZINHEIRO – Tenha dó, meu senhor! Tenha pena de mim! Pense só nos meus filhinhos! PEER – Eu preciso viver mais do que você, pois eu ainda não tenho filhos! COZINHEIRO – Deixa o bote! O senhor já viveu muito, eu sou moço ainda! PEER – Qual o quê? Dá o fora! Você está brincando cada vez mais pesado! COZINHEIRO – Pelo amor de Deus! Deixe-me viver, pelo santo amor de Deus! O senhor não deixa ninguém para chorar sua morte! PEER (Agarrando-o) – Pronto, te peguei! Agora reza tuas últimas orações! COZINHEIRO – Não me lembro de mais nada. Não estou enxergando nada! PEER – Depressa: as partes mais importantes! COZINHEIRO – Dá-nos hoje... PEER – Afunda! Você já tem tudo, não precisa pedir mais nada! COZINHEIRO – Dá-nos hoje o pão... PEER – Sempre a mesma toada! Bem se vê que você foi cozinheiro! COZINHEIRO (Desaparecendo) – Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia... (Afoga-se.). PEER – Amém, meu caro! Você foi fiel a si mesmo até o fim! (Ergue-se até o bote.) Enquanto houver vida, há uma esperança! O PASSAGEIRO DESCONHECIDO (Prendendo-se até o barco) – Bom dia! PEER – Ué? DESCONHECIDO – Ouvi um grito. Que prazer vê-lo! Como o senhor está vendo, eu predisse tudo certo. PEER – Dá o fora daqui, rápido! Aqui só cabe uma pessoa, não está vendo? DESCONHECIDO – Não há de ser nada, eu ajudo com o pé esquerdo. Apoiando os dedos nesta beira, consigo nadar. Por falar no assunto, e o nosso cadáver?... PEER – Cala essa boca! DESCONHECIDO – Não se pode mais contar com os outros, não é? PEER – Chega! DESCONHECIDO – Como o senhor quiser. (Pausa.). PEER – Então? DESCONHECIDO – Estou calado. PEER – Pelas barbas do Diabo: o que é que o senhor está fazendo? DESCONHECIDO – Esperando. PEER (Com gestos de irritação e de desespero) – Mas isso é de deixar alguém louco! Quem é o senhor, afinal? DESCONHECIDO (Inclinando-se) – Um seu servidor. PEER – E que mais? Vamos, fale, fale! DESCONHECIDO – Adivinhe! O senhor nunca viu alguém parecido comigo? PEER – O Diabo me... DESCONHECIDO (Baixando a voz) – Ele tem costume de nos amedrontar para nos avisar do perigo? PEER – Vai ver que o senhor é um espírito de luz! DESCONHECIDO – Meu amigo: será que o senhor sabe o que é sentir angústia? O senhor chegou a pensar seriamente nisso, ainda que fosse só duas vezes por ano? PEER – Quando se está em perigo, é natural sentir medo. Nada mais. DESCONHECIDO – O senhor, por acaso sabe que triunfo existe na angústia? O senhor já sentiu isso nem que fosse uma única vez na vida? PEER (Olhando para ele) – Se é a salvação da minha alma que o senhor está querendo, chegou tarde, sabe? O mar vai me engolir! DESCONHECIDO – Ah, quanto a isso, pode ficar tranqüilo: o herói não morre nunca no meio do quinto ato. (Some.). PEER – Ah, por fim ele se desmascarou! Não passava de um insosso moralista! Um cemitério de montanhas. Um cortejo fúnebre. À beira da sepultura, um Pastor Protestante. Termina-se de cantar um Salmo. Peer Gynt surge na estrada, fora do proscênio. PEER (Parando na estrada) – Sem dúvida é mais um conterrâneo que segue o caminho de toda poeira humana. Graças a Deus que não sou eu. (Entra.). REVERENDO (Pregando) – E agora, meus caros irmãos, quando a alma se apresenta diante do Tribunal Supremo e o corpo repousa, como uma casca sem o fruto, diremos poucas palavras sobre o caminho que o defunto trilhou sobre a Terra. Não tinha nem riquezas nem dotes de inteligência. De voz estridente, de porte pouco viril, exprimia-se com hesitação e mal conseguia dirigir seu lar. Na igreja, parecia pedir, humildemente, permissão para se sentar ao lado dos outros. Era - como sabeis - nascido no Vale de Gudbrand. Menino ainda - tinha vindo para esta aldeia. Todos recordais vê-lo passar, até o dia de sua morte, circulando entre nós, com a mão direita enfiada no bolso. É nessa postura que sua imagem ficou gravada em vossas mentes. A ela acrescentemos seu embaraço e a atitude reservada que o caracterizavam quando participava de qualquer reunião. Mas, mesmo preferindo manter-se à parte e tendo sempre sido um estranho entre nós, vós não ignorais – eu sei – o segredo que ele se esforçava em ocultar: a mão que ele tinha sempre guardada no bolso tinha só quatro dedos. Lembro-me ainda: há muito tempo se deu isso. Certa manhã chegaram recrutadores a Lunde. Estávamos em guerra e só se falavam de calamidades públicas. Todos se preocupavam com o futuro do país. Eu estava presente. O Capitão estava sentado atrás da mesa, com o Prefeito e os Sargentos. Um a um, nossos rapazes eram examinados, medidos, recrutados. A sala estava repleta de gente. Lá fora ecoavam os risos dos jovens. Aí, pronunciouse um nome. Um recém-chegado respondeu à chamada. Estava pálido como um morto, branco como a neve das montanhas. Mandaram que ele se aproximasse. Chegou até a mesa. Estava com a mão direita enrolada num pano. Esbaforido, engolindo em seco, ele não estava em condições de pronunciar uma só palavra. Não respondia nada às perguntas do Capitão. Afinal, ficou com o rosto em fogo: balbuciando, alando as palavras, gaguejou qualquer coisa sobre um acidente, uma foice que, por acaso, decepara-lhe um dedo. Logo se fez um silêncio na sala. Trocavam-se olhares, lábios se cerraram, olhares fulminantes caíram sobre os rapazes. Com os olhos baixos, ele sentia a tempestade ao seu redor. De repente, o velho Capitão se levantou, cuspiu no chão, esticou o braço e disse: ‘vá embora daqui!’ – e o rapaz saiu. Abriram passagem e ele passou como se estivesse levando vergastadas. Foi assim até a porta e de lá começou a correr em disparada, subindo em direção aos montes. Pulou correndo pelos bosques, pelas serras, tropeçando nas pedras, nas rochas, até chegar à sua morada, no fiorde. Seis meses mais tarde, ele veio aqui com a mãe, filhos pequenos e uma mulher que desposou assim que pôde. Tinha roçado um terreno da planície, adiante de Lomb, e ali construíra uma casa. O solo era duro, mas ele conseguiu vencêlo, como comprovam os outeiros, eriçando suas arestas pontiagudas. Na igreja ele ficava com uma das mãos no bolso, mas nos trabalhos dos campos seus nove dedos trabalhavam como dez. uma primavera, a torrente levou tudo abaixo. Só se salvaram o homem e a sua família. Sem recursos, sem um teto, ele voltou a trabalhar com afinco e antes de terminar o verão surgia na montanha um novo campo de semeadura num ponto mais protegido que o anterior. Sim, mais protegido contra a inundação, mas não contra a avalanche. Daí a dois anos, tudo ficou soterrado sob a neve. Tudo, menos a coragem daquele homem. Cavou, desentulhou, trabalhou com tanto afinco, que antes do inverno tinha reconstruído uma casinha modesta, pela terceira vez. Tinha já três filhos, três meninos robustos. A escola ficava longe, lá onde acaba a estrada do município. Precisavam seguir por um atalho estreito e abrupto, cavado na neve endurecida. O que é que ele fez então? Deixou o mais velho dos filhos subir pela encosta como podia, limitando-se a ampará-lo de vez em quando, quando o terreno era muito íngreme. Os outros dois, ele carregava nas costas. Assim se passaram vários anos de privações. Os meninos ficaram homens feitos. Era tempo de pedir que o ajudassem agora... Mas, qual o quê? Três cidadãos abastados esqueceram, hoje em dia vivendo no Novo Mundo, seu velho pai norueguês e o atalho para a escola distante. Era um homem de visão curta. Além do pequeno círculo de seus familiares, não percebia mais nada. As palavras poderosas que deviam fazer pulsar mais forte todos os corações soavam, a seus ouvidos, como guizos ocos. O povo, a Pátria, tudo o que existe de mais elevado, de mais sublime, parecia-lhe envolto numa espessa bruma. Mas, era um humilde, esse pobre homem. Desde o dia do recrutamento militar, ele vivia como que sob a ameaça de prisão, a frente curvada pela vergonha e a mão metida no bolso. Diante da lei do país, não era um desertor? Sem dúvida que era. Mas há coisas que brilham mais alto que a lei, como os cumes altos alvejam detrás do Monte Glittertind e arrojam sobre a geleira, nuvens que o tapam. Era um mau cidadão. Para a Igreja e para o Estado, era uma árvore estéril. Mas lá no alto, no topo da montanha, lá onde nossos caminhos se estreitam, naquele trabalho para o qual ele se sentia chamado, ele era grande, porque era ele próprio, fiel a si mesmo. A vida restituiu-lhe seu som peculiar. Ela, que sempre tinha vibrado em surdina. Repousa em paz, modesto guerreiro, que lutaste e morreste no humilde combate do lavrador! Não compete a nós, poeira da poeira, sondar rins e corações, mas sim a Ele, que nos governa. Mas tenho a firme esperança e uso livremente exprimi-la: não é como pecador que esse homem surge hoje, diante de Deus! (O cortejo se dispersa e afasta-se. Peer Gynt fica sozinho.). PEER – É isso que eu chamo de Cristianismo! Nada de crueldade, nada de sofrimento humilhante para a alma humana. O Pastor escolheu uma tese edificante ao pregar a obrigação de cada um de nós de ser sempre fiel a nós mesmos. (Olha para a cova.) Esse homem, não é o que eu vi cortando um dedo na floresta, naquele tempo em que eu andava derrubando árvores? Quem sabe? Se eu não estivesse aqui, agora, com uma bengala na mão, à beira dessa sepultura agradável, eu poderia pensar que era eu que durmo nesse caixão e que aquele panegírico era para mim. Realmente, é um belo costume cristão, esse de rememorar toda a carreira de um defunto. Para mim bastava de sobra ser julgado desse modo por este digno Pastor da roça. Mas qual! Ainda me resta uns tempos até o dia do coveiro vir me oferecer seus serviços. E as Escrituras ensinam que o melhor é inimigo do bom. ‘Cada época da vida tem suas aflições’, está escrito também. E, mais adiante: ‘não aceites ser enterrado a crédito’. Dá no mesmo: a única consolação verdadeira nos vem da Igreja. Até hoje não a apreciei como devia. Mas agora é que eu vejo como faz bem, de uma voz autorizada: ‘colherás o que semeaste’. É isso: é preciso ser o que somos. Nas coisas pequenas como nas grandes, precisamos cuidar do que é nosso e preocuparmo-nos com nós mesmos, porque se a fortuna nos atrair; pelo menos nós temos a honra de termos pautado nossa vida por aquilo em que acreditamos. E agora, vamos para dentro! Não tem nada demais se o caminho é estreito e o atalho é íngreme! Não tem nada demais se o destino continua a me abater. Não será por isso que o velho Peer Gynt deixará de seguir seu próprio caminho ou de ser o que sempre foi: pobre, mas honesto. (Sai.). No litoral. Perto do leito seco de uma torrente, um moinho em ruínas. Por toda a parte, devastação, vestígios de uma avalanche. Mais para cima, um terreno cercado. Diante deste, um leilão. A multidão está reunida, bebe e se agita ruidosamente. Peer Gynt está sentado sobre os escombros, perto das ruínas do moinho. PEER – Por onde se olhe, é sempre a mesma coisa. O tempo rói tudo. A torrente desgasta as margens. ‘Dá a volta’ – aconselhou a Curva. Sempre se acaba voltando ao mesmo ponto. UM HOMEM DE LUTO – Só ficaram bugigangas. (Vendo Peer.) Ué: vieram estranhos também? Que Deus esteja contigo, amigo! PEER – Bom dia! Está todo o mundo alegre. O que foi? Algum casamento? Alguma Missa de purificação de uma mulher que deu a luz? O HOMEM DE LUTO – Ao contrário: é mais uma festa de inauguração da casa. A linda noivinha montou casa com os vermes. PEER – Enquanto outros vermes disputam seus despojos. O HOMEM DE LUTO – E é o fim de uma bela canção. PEER – Sempre a mesma. É uma canção velha, que eu cantava desde criança. UM MENINO (Mostrando uma forma) – Olha só que peça linda que eu comprei: é a forma que Peer Gynt usava para fundir botões de prata! OUTRO MENINO – E eu então? Comprei uma bolsa por um xelim! UM TERCEIRO MENINO – Eu é que fiz um negócio da China: dei só um xelim e meio por um saco de vendedor ambulante! PEER – Quem é esse tal de Peer Gynt que vocês mencionaram? O HOMEM DE LUTO – A única coisa que eu sei é que ele era da família da falecida e de Aslak, o ferreiro. O HOMEM VESTIDO DE CINZA – E eu? Você está me esquecendo? Você deve ter bebido mais da conta. O HOMEM DE LUTO – Você é que está ficando com a memória fraca. Não se lembra de certa porta de celeiro em Haegstad? O HOMEM DE CINZA – Sei muito bem e mais ainda: sei que você não ficou nada aborrecido. O HOMEM DE LUTO – Contanto que não dê azar para a morta, agora. O HOMEM DE CINZA – Vem primo! Vamos beber um trago em homenagem ao nosso parentesco! O HOMEM DE LUTO – Teu primo? Vai para o diabo que te carregue! Você está é bêbado e nem sabe mais o que está dizendo! O HOMEM DE CINZA – Vamos logo! Não adianta: a gente pode se quebrar em quatro. A gente sempre se sente membro da família de Peer Gynt. (Afastam-se juntos.). PEER (Falando em voz baixa) – Sim senhor: velhos amigos de outros tempos! UM MENINO (Gritando para o homem de luto, que se afasta) – Ei Aslak: se você beber, minha mãe morta vai puxar a tua perna! PEER (Levantando-se) – Bem, não cavemos fundo demais. Os gnomos podem dizer o que quiserem: as tripas da Terra não têm um cheiro nada bom. OUTRO MENINO (Mostrando uma pele de urso) – Olha só, moço! É o gato de Dovre, ou pelo menos o pelo dele. Foi ele que numa noite de Natal assustou à beça o Duende. OUTRO MENINO (Mostrando uma cabeça de rena) – E olha aqui o cabrito que levou Peer Gynt pelos ares até o cume do Monte Gendin! UM TERCEIRO MENINO (Mostrando um martelo e gritando para o homem de luto, que se afasta) – Ei, Aslak: é este o martelo que você atirou no Diabo quando ele furou o telhado da tua oficina? UM QUARTO MENINO (De mãos vazias) – Ei, Matz Moen, olha aqui o traje invisível que Peer e Ingrid usaram para fugir! PEER – Ei, vocês aí, meninos! Me paguem uma bebidinha! Estou me sentindo velho e acabado. Tenho uma porção de velharias para vender, sabem? UM MENINO – O que, por exemplo? PEER – Um castelo em Ronden. De paredes sólidas. O MENINO – Ofereço um botão por ele. PEER – Não, vê se chega a oferecer um traguinho. Oferecer menos não é nem decente. OUTRO MENINO – Que engraçado esse velho! (Agrupam-se em torno a Peer.). PEER (Gritando) – Meu cavalo alazão! Quem quer meu cavalo alazão? UMA VOZ – Onde está? PEER – Lá longe, no oeste, no poente, meus filhos. É um bom trotador. Corre tão bem quanto Peer Gynt sabia mentir. VOZES – Que mais que você tem para vender? PEER – Ouro e bugigangas: o que quiserem eu tenho. Comprado com prejuízo, mas vendido com desconto. A lembrança de um livro de Salmos por um colchete à toa. O MENINO – As lembranças que vão para os quintos dos infernos! PEER – Meu império! Vou jogá-lo para vocês. Quem pegar é o dono! O MENINO – Inclusive a coroa? PEER – Inclusive a magnífica coroa de palha. Para quem chegar primeiro! Vamos: tem mais! A casca de um ovo; um fio de cabelo branco de um louco; a barba do profeta; tudo será de quem me mostrar, na montanha poste com escrito em cima estas palavras: ‘é por aqui!’ O PREFEITO (Aparecendo) – Meu caro, você fala de um jeito que vai acabar te dando com os costados na cadeia. PEER (Tirando o chapéu respeitosamente) – É provável. Mas o senhor quer ter a bondade de me dizer o que foi Peer Gynt? O PREFEITO – Que conversa fiada é essa? PEER – Eu lhe peço: a sério! Me diga quem foi! O PREFEITO – O que? Bem, dizem por aí, que foi uma espécie de mau contador de histórias. PEER – Contador? O PREFEITO – É: de lorotas. Sempre ele contava que tinha feito e acontecido como grande herói sem medo por esse mundo afora. Mas, meu caro, queira desculpar: tenho deveres que me esperam. (Sai.). PEER – E onde está agora esse original personagem? UM VELHO – Cruzou os mares para ir ao estrangeiro. Como era de se esperar, nada deu certo e já faz alguns anos que o enforcaram. PEER – Enforcaram? Não me diga! Sim senhor: enforcado? Ah, mas eu sabia. O falecido Peer Gynt permaneceu fiel a si mesmo até o fim. (Saudando.) Adeus para todos, muito obrigado e passem bem! (Dá alguns passos para afastar-se, mas muda de idéia e pára.) Jovens alegres e as senhoras, amáveis damas, permitam testemunhar-lhes minha gratidão, contandolhes uma história. NUMEROSAS VOZES – Você sabe alguma história? Então conta para a gente, conta! PEER – Não quero mais nada. (Aproxima-se. Seu rosto adquire uma expressão enigmática.) Aconteceu em São Francisco da Califórnia, onde foi buscar ouro. A cidade estava cheia de saltimbancos. Um tocava violino com os pés, outro executava, de joelhos, um passo de dança espanhola; um terceiro, dizem, fazia versos enquanto lhe furavam o crânio. Aí se passou que o Diabo, tendo-se reunido a esse grupo de saltimbancos, quis enriquecer, achando que ele também merecia. Imaginou, então, imitar na perfeição um grunhido de porco. Sua fisionomia atraía multidões. De mero desconhecido, da noite para o dia ele enchia os teatros, quando aparecia. Todos ficavam mudos quando ele surgia. Aliás, ele sabia se vestir: usava para a representação um manto longo de pregas flutuantes. E ninguém percebia que, debaixo do manto esvoaçante, o Tinhoso escondia um porco de verdade. Quando soava a hora, ele dava-lhe um beliscão e o instrumento vivo produzia um som. Essa fantasia musical executada por um virtuoso baseava-se num tema conhecido: a passagem de um porco do estado de liberdade para o da escravidão. No final, ouvia-se um grito estridente: era o do animal abatido pelo açougueiro. Finda esta parte, o artista cumprimentava gentilmente o público e saía de cena. Sobre esse número acenderam-se discussões apaixonadas. Críticos eruditos duelavam com colegas, um culpando, outro elogiando o que tinham assistido. Alguns achavam o grunhido muito estridente, outros opinavam que o grito final era muito afetado. Mas num ponto, todos estavam de acordo: o número todo era exagerado demais. Foi a paga do Diabo por ser tão desajeitado e contado com o público. (Cumprimenta e se afasta. A multidão mantém-se num silêncio inquieto.). Véspera de Pentecostes. No interior de uma grande floresta. No fundo, numa clareira, uma cabana. Sobre a porta da entrada, chifres de rena. Peer Gynt arrasta-se pelo chão, colhendo cebolas. PEER – Uma nova etapa! Da vida vou virar uma nova folha. / É preciso tatear o terreno antes de fazer qualquer escolha. / Esse foi o meu destino. E, como lição moral e cívica / Aprendi a perscrutar as lições da Sagrada História Bíblica. / De César radioso acabei de quatro, como Nabucodonosor. / Velho e ainda menino, olha só onde foi parar todo o teu furor! / No seio da mãe, a Terra, és pó, em latim: pulvis est! / Encher o bucho é a arte de viver que te ensinam a pontapés! / Um pouquinho de cebola... não é muito, reconheço, / Mas tenho imaginação e vou em frente, não esmoreço. / Ah, um riacho de água clara para minha sede matar. / Ser rei dentro do bosque, é uma glória que não se pode desprezar. / Na hora de morrer, espero poder ainda / Como árvore abatida depois da batalha finda / Escrever num derradeiro esforço penoso / Um epitáfio a mim mesmo, um epitáfio orgulhoso! / ‘Aqui jaz Peer Gynt, rapagão alegre, alerta e grande fã do amor / Morreu pranteado pelas feras deste bosque como seu grande Imperador’. / Imperador? (Ri sozinho.) / Ah, velho louco, sempre às voltas com a fantasia sem freio! / Hoje você não passa de uma cebola descascada pelo meio. / E eu vou te descascar bem direitinho, meu amigo, / Não deixo nada sem terminar, para isso conte comigo. / (Pega uma cebola e arranca todas as camadas, uma por uma.) Um pele primeiro, arrancada como está feia! / O náufrago triste jaz caído sobre a areia! / Agora outra de aspecto miserável que dá pena / O passageiro fanfarrão, mau ator interpretando uma cena. / E agora esta folha murcha e amarela com cheiro de Peer Gynt / É o cavador de ouro da América, o Gentleman Mister Gynt. / E essa agora, dura, de borda recurvada / É o rude caçador de focas da Baía de Hudson de carreira fracassada. / Uma coroa? Qual! É a mesma farsa idiota que prossegue! / Arranquemos esta folha e o diabo que a carregue! / Esta camada aqui é curta e robusta / É Peer que procura o ignoto e proclama a meio mundo / Que com nada mesmo se assusta! / ah, agora é a vez do Profeta... Sensual e carnudo / Mas de longe se percebe seu truque e o pé de cabra do chifrudo. / Esta folha retorcida de reflexo purpurino, / É o Creso que vive entoando à riqueza de um hino. / E esta outra, doente, de manchas pretas só pode ser / O pobre diabo do Peer Gynt que passa sem perceber / Do negócio rendoso dos escravos para a Missa, o Pastor / Adotando sem embaraço a cerimônia séria de novo se benzer. / (Arranca várias camadas de uma vez.) A cebola fica cada vez menor, ah, imagem da vida do homem neste mundo / Quanto mais te cavo e em ti me aprofundo mais descubro que você não tem fundo! / (Termina de descascar a cebola.) Pronto, agora acabou de uma vez! Foram-se embora as folhinhas / Cada vez mais miúdas, cada vez mais mesquinhas, / A natureza é doida varrida! / (Jogando longe as folhas da cebola.) De que serve meditar sobre a vida? / Quem anda olhando só para o firmamento / Bate com o nariz no solo duro de cimento. / Em vez de buscar nas estrelas mistérios e uma explicação, / Anda de quatro, velho Gynt, com a cara colada no chão. / (Coçando a cabeça.) É bobagem cansar tanto a cabeça, a vida é um instrumento engraçado / Que ou fica mudo ou só responde com som desafinado. / A gente quer tocar, mexe sem jeito no teclado / Mas não há professor capaz de explicar seu significado. / (Aproxima-se da cabana e ao percebê-la estremece.) Ué... Essa parte da floresta... E esta cabana largada... / (Esfregando os olhos.) Já não vi antes esta casa abandonada? / No alto da porta estão os chifres da rena ainda / E no telhado – será possível? – uma sereia linda! / Não, deve ser engano! Mas olha aqui o ferrolho secreto que encerra o pensamento do diabinho indiscreto! SOLVEIG (Cantando dentro de casa) – Amigo querido, / Como tardas a chegar! / Está tudo pronto / Para a Páscoa florida / Estou aqui a te esperar! / Mas se descansas no caminho / Carregas um peso tão grande! - / Eu te espero com paciência / Quero te dar tanto carinho! PEER (Levantando-se de um salto, palidíssimo) – Aqui, ó esquecimento triste / Ali, a fé fielmente mantida / E a alma amorosa e querida / Aqui a alma despedaçada, / A angústia sugando o coração / Como um vampiro de cemitério / Lá, a verdade, a paixão. / Lá, sim, que foi meu verdadeiro império! (Corre para dentro do bosque.). É noite. Uma clareira de pinheiros devastados por um incêndio. Por toda a parte, troncos calcinados visíveis até o horizonte. Aqui e ali, vapores flutuam acima do solo. Peer Gynt atravessa a clareira correndo. PEER – Pó, cinza e podridão, / Ruína, terra queimada e escura / Por toda parte reina a devastação. / Agora já sei: o edifício da fantasia, / Agora já sei: a base do edifício da imaginação / É feita de argila de sonhos e mentiras / Para sobre ela erguermos o real malsão / Do horror da verdade sem nenhuma falsa ilusão. / O temor de qualquer pensamento profundo / Vai me servir de alicerce bem fundo / E leviano, sem pensar, minha obra assinarei: / ‘Petrus Gynt, que foi Imperador e Rei’. / (Ouvindo.) Estou ouvindo uma criança a soluçar... / Mas será mesmo choro? Não, acho que é um coro / (Novelos de lã começam a rolar diante dele. Olhando-os.) Que é isso? Novelos e mais novelos a correr / Será que querem meu passo de vencedor deter? / (Chuta-os com os pés.). OS NOVELOS – Nós, os pensamentos / Que você nunca teve, / Rolamos levados pelos ventos / Tolhendo teus passos, leves. / Espíritos sutis que murmuram a teu coração oco: / ‘Liberta nossos pobres filhos da prisão deste louco!’ / PEER – Impossível! Houve um tempo, é verdade, / Em que eu vivia só de falsidade! / (Tropeça, joga-se de lado e tenta fugir.). FOLHAS SECAS – Palavras desconhecidas / Do velho mistério que em nós se encerra / Árvores nuas e retorcidas / Caídas mortas em cima da terra / Tu nos deixaste caídas / No meio da lama e da imundície / Para sermos pasto dos vermes / E foste embora tranqüilo / Rumo à tua descuidada velhice. / PEER – Começa uma nova estação agora / As sementes velhas, eu já joguei todas fora! / MURMÚRIOS NO AR – Nós, as canções que não foram cantadas, / Te maldizemos sem arrependimento / Almas áridas que não soubemos / Comover teu sentimento, / Nunca ninguém escutou / Nossa doce melodia / Numa noite de lua e poesia / Por isso, maldito seja quem nos matou! / PEER – Viver como trovador? Amar, cantar e beber? / Eu tinha coisa muito mais séria para fazer! / (Tenta fugir novamente.). GOTAS DE ORVALHO (Caindo dos ramos) – Gotas de pranto / Que não brotou nunca / Lágrimas tão sentidas / Que derretiam gelo mais duro, / Mas nunca nascidas / De choro humano e puro / Não podemos tocar teu coração / Empedernido e sem compaixão / Por isso jazemos aqui, / À beira da vida debaixo do chão. / PEER – Chorar eu chorei: quando foi preciso / Mas as lágrimas foram inúteis / Não serviram nem para amadurecer o meu juízo./ PEDACINHOS DE PALHA – Feitos sonhados / E nunca realizados / Inacabados / Diante da dúvida glacial / Homem sem fé / Que trocaste a alma / Pelo breve prazer sensual / Por teu coração seco como um figo / Acabamos neste frio jazigo / A maldição esteja contigo! / PEER – Não tenho medo do que dizem! Quem ouve vozes falar / Pensa que ser cometido, abster-se de excessos / É viver sem regalias, sem nunca prevaricar! (Tenta correr.). VOZ DE AASE (De longe) – Menino mauzinho, / Por cima da neve / Por qual caminho / Levaste tua mãe? / Castelo, pelo sonho, / É satã medonho, / Que te comanda, danado, / Ah, como foste um cocheiro malvado! / PEER – Já que a culpa é do satã medonho / O céu me perdoará estou certo / E para não ouvir falar mais em sonho / Pernas para que te quero? Isso por aqui está muito tristonho! / (Escapole. Noutro ponto da planície, cantando.) Coveiros indiferentes, / Pios bedéis de igreja, / Cheguem para perto, gentalha, / Vamos balir seu canto fúnebre e canalha / Quero coser uma tira negra na aba do meu chapéu / Tenho tantos mortos que enterrar / Não posso deixar São Pedro esperando lá no céu. / (O Fundidor, carregando uma caixa de instrumentos e uma enorme colher de fundidor, chega por um caminho lateral.). FUNDIDOR – Boa noite, meu velho. PEER – Boa noite, companheiro. FUNDIDOR – Você parece que está com pressa. Para onde vai? PEER – Vou a um enterro. FUNDIDOR – É mesmo? É: você não tá com cara boa, não. Me desculpa perguntar, mas, por acaso, seu nome não é Peer? PEER – Me chamam de Peer Gynt. FUNDIDOR – Isso é que é ter sorte! Pois é justamente Peer Gynt que eu vim procurar esta noite. PEER – Não me diga: e o que é que você quer de mim? FUNDIDOR – Vou te dizer: sou fundidor. Você precisa entrar na minha colher. PEER – E para que? FUNDIDOR – Para ser fundido de novo. PEER – Fundido? FUNDIDOR – Tá vendo só: ela tá prontinha. Tua cova já foi cavada, teu caixão tá encomendado também. Logo, logo as minhocas vão celebrar no teu corpo aquele banquete. E a tua alma, o Mestre me encarregou de levá-la lá para ele, sem demora. PEER – Ora essa, assim sem mais nem menos, é? FUNDIDOR – É um velho costume. Seja para enterro, seja para batismo, escolhe-se em segredo o dia, sem avisar o herói da epopéia. PEER – Sei, sei. Mas minha cabeça não tá muito boa: quer dizer que você é, é... quem mesmo? FUNDIDOR – Sou um fundidor, como já lhe disse. PEER – Ah, compreendo. É que sua gentil Alteza tem tantos nomes diferentes... Então, meu caro Peer, chegou o fim da tua viagem. Mas convenhamos, companheiro, que é uma maneira suja de se comportar. Caramba: eu acho que mereço ser tratado melhor. Sou menos mau do que pareço e, afinal, também fiz o bem no mundo. No máximo, no máximo eu podia ser considerado um inútil, mas não um grande pecador daqueles com maiúsculas. FUNDIDOR – Ah, pois aí, justamente, é que está o problema! Você não é um pecador, no sentido elevado da palavra. Por isso é que você escapa dos tormentos e é digno só da colher de fundição. PEER – Que invenção nova é essa que você inaugurou na minha ausência? FUNDIDOR – É um costume velho feito a serpente da Bíblia, e criado para consertar as peças que saem com defeito da fábrica. Você conhece bem o ofício, e sabe que muitas vezes a forma produz uns resultados mal feitos de amargar. Por exemplo: fazem botões sem furos para pregar. O que é que você fazia nesse caso? PEER – Jogava no lixo. FUNDIDOR – Pois é. Teu pai, Jan Gynt, foi um perdulário famoso: gastou, gastou até ficar sem um tostão no bolso. Mas o Mestre não. O Mestre – sabe? – é econômico. Zela pelas suas riquezas. Vê lá se ele é de jogar fora uma peça com defeito, se ainda puder aproveitá-la como matéria-prima. Você, seu destino era brilhar como botão de ouro no paletó universal, mas você nasceu sem os furos para te coserem no pano, entendeu? Então, o remédio é te botarem na caixa de botões com defeitos para você voltar de novo para a massa, compreendeu agora? PEER – Como é que é? Você tá pensando que vai me misturar com qualquer pé rapado aí, para conseguir produtos novos? FUNDIDOR – Exatamente. E não pense que você é o primeiro com quem isso acontece ou não. É assim que se faz na casa da moeda, com o dinheiro gasto, que já está com a efígie muito apagada, sabe? PEER – Mas isso é coisa de avarento sórdido! Ora, meu amigo, vê se me deixa em paz, vê! Uma moeda sem efígie, um botão sem furos... O que é que é isso para um ricaço feito o teu Mestre? FUNDIDOR – Eta raça humana resistente: enquanto tá com alma tá lutando. PEER – Não, não e mil vezes não! Vou lutar de unhas e dentes! Tudo menos isso! FUNDIDOR – O que é que você quer dizer com TUDO? Qual o que? Cria juízo, Peer! Você não vê que você é pesado demais para subir até o céu? PEER – Não, mas eu sou mais honesto, não aspiro a tanto. Mas já que se trata de mim, não cedo nem um milímetro. Por que você não me julga pelos costumes antigos? Manda-me trancar durante uns tempos nos domínios de Sua Majestade Muito Corna, um século inteiro, se o juiz for severo. É uma coisa perfeitamente suportável, afinal, são sofrimentos morais. Sempre a gente dá um jeito, não é? Mas me dissolverem para eu formar depois essa ou aquela parcela de um corpo estranho – ah, isso nunca! Toda essa história de oficina de fundição, de desaparecimento do meu eu gyntiano e irrepetível – ah, isso tudo me enche de pavor até a medula da alma, pode crer! FUNDIDOR – Ora, ora, meu caro Peer, não perca a cabeça por tão pouco! Teu eu gyntiano! Que eu saiba você nunca foi você mesmo. Então, morrer completamente vai lá mudar alguma coisa? PEER – Nunca fui eu mesmo! Ha, ha, ha... Você me faz dar risada. No fim vocês vão ver que Peer Gynt nunca deixou de ser Peer Gynt. Deixa disso, fundidor. Você tá julgando feito cego. Pode me virar pelo avesso, me examinar detrás para diante, que você só acha Peer e mais Peer e nada mais senão Peer. FUNDIDOR – Não é possível. Olha aqui as ordens que eu recebi por escrito: ‘procurar Peer Gynt, que falhou na missão, e deve - como produto fracassado - ser fundido de novo no caldeirão’. PEER – Que bobagem! Deve ser engano, nome parecido ou coisa desse gênero. Está escrito mesmo Peer, aí? Tem certeza que não diz Rasmus ou Jan? FUNDIDOR – Esses? Xi!... Faz um tempão que já fundi esses! Vamos deixar de prosa: seja um menino bem comportado que é para a gente não perder tempo! PEER – Ah, pois sim, vá esperando. Você já pensou que beleza, se amanhã percebem que houve engano, erro de pessoa? Olha lá, hein? Vê bem tua responsabilidade, se você se meter numa enrascada! FUNDIDOR – Tenho um documento para me garantir. PEER – Pelo menos me dá um tempinho a mais de tolerância. FUNDIDOR – Para fazer o quê? PEER – Para provar que a vida inteira eu fui fiel a mim mesmo. Afinal, a questão toda é essa. FUNDIDOR – Bom, e como é que você vai provar isso? PEER – Apresentando certificado, testemunhas. FUNDIDOR – Receio que o Mestre não vai se impressionar com isso nem um pouco. PEER – Isso é impossível. Aliás, quem viver, verá. Ora, vamos, meu amigo, me vende fiado um pouco de mim mesmo, por pouco tempo mais. Eu volto já, já! A gente só nasce uma vez e tem que cuidar muito bem da pele: então, você concorda? FUNDIDOR – Está bem, vá lá. Pode ir. Mas lembre-se, que temos um encontro marcado na próxima encruzilhada, hein? (Peer foge. Outra parte da floresta. Apertando o passo.) Está escrito: ‘tempo é dinheiro’. Se ao menos eu soubesse onde é que as estradas se cruzam. Será perto, será longe daqui? Tô com os pés em brasa! Uma testemunha! Uma testemunha! Onde é que vou achar uma nessa floresta? É impossível. Quem quiser que tente! (Um velhinho, todo encurvado, vem de encontro a ele, capengando, com um cajado na mão e um saco nas costas.). O VELHO (Parando) – Um vintém, meu bom senhor, para um pobre diabo largado no mundo. PEER – Desculpe, não tenho trocado. VELHO – Oh, meu príncipe Peer! Olha só aonde viemos nos encontrar de novo! PEER – Você quem é? VELHO – Ele não se lembra mais do Velho de Ronden... PEER – O que? Quer dizer que você é... VELHO – O Velho de Dovre, paizinho meu! PEER – O Velho de Dovre! É sério? Responde: você é mesmo o Velho de Dovre? VELHO – De alto a baixo! Fico me arrastando por aí pelas estradas, faminto que nem lobo! PEER – Tralalá!... Arranjei uma testemunha, e que testemunha! VELHO – Vossa Senhoria embranqueceu depois que nos vimos, hein? PEER – Meu querido sogro, a gente se gasta com o passar dos anos. Mas, vamos deixar de lado nossas velhas pendências. Naquele dia eu estava doido. VELHO – Ah, é verdade, é verdade. Vossa Senhoria era jovem. A mocidade faz a gente fazer muita coisa! Mas Vossa Senhoria agiu com muita sabedoria ao rejeitar a noiva. Nem sabe quanta vergonha e quanta preocupação se poupou com isso. Porque ela acabou muito, mas muito mal mesmo. PEER – Não diga! VELHO – Digo. Ela virou a cabeça de vez. Sabe o que fez? Foi morar com Trond. PEER – Que Trond? VELHO – O diabinho! PEER – Ah, já sei, aquele de quem raptei uma pastora? VELHO – Meu netinho, hoje em dia, é um rapagão e tanto, que ajuda a povoar o país com a sua descendência. PEER – Chega de conversa fiada, meu caro. Estou preocupado com outras coisas. Estou em um apuro terrível e preciso de um depoimento ou de um certificado. Meu sogro, você bem que podia me dar um. E uma gorjeta é fácil de dar. VELHO – O que? Está falando a sério? Eu poderia ser útil a Sua Senhoria? Espero ter uma recompensa decente. PEER – Como não? Apesar de eu estar um pouco apertado de dinheiro agora, e obrigado a renunciar a quase tudo... Mas escute o que é: você se lembra da noite em que eu apareci em Ronden, como candidato à mão da sua filha? VELHO – Claro que me lembro meu príncipe! PEER – Deixa para lá essa história de príncipe e vamos tratar do que interessa. Por bem ou por mal, você queria falsear minha vista, fazendo uma incisão na minha córnea e me transformar de Peer Gynt em duende. E eu o que fiz? Resisti, jurando que nunca deixaria de ser quem eu era. Renunciei a tudo: amor, poderio, honra – para me conservar como eu era. Pois bem: é isso que você deve confirmar sob juramento solene. VELHO – Ah, isso, infelizmente é impossível, completamente impossível. PEER – O que é que você quer dizer? VELHO – Não vai querer que eu seja perjuro! E o rabo de Diabo que você colocou e o hidromel que tomou. Você não se lembra mais, não é? PEER – Ah é: você me tentou de mil jeitos, mas eu me recusei a dar o passo decisivo. E, em tudo na vida, é o fim que conta. É por ele que se reconhece quem é homem. VELHO – Mas é justamente o fim que te desmente. PEER – O que é que você tá inventando aí? VELHO – Ao deixar Ronden, você partiu com a minha divisa escrita atrás da orelha. PEER – Tua divisa? VELHO – Sim, senhor: aquela palavra forte e clara que eu te ditei. PEER – Que palavra? VELHO – A que diferencia os homens dos demônios: ‘Troll, basta a ti mesmo!’ PEER (Dando um passo atrás) – ‘Basta a ti mesmo!’ VELHO – Pois é. E depois você pôs em prática essa máxima com todo o empenho da tua alma. PEER – Eu? Peer Gynt? VELHO (Chorando) – Ah, que ingrato! Em segredo você sempre viveu como um demônio. A máxima que te dei foi que te abriu os caminhos na vida. Ela é que te deu grandeza e opulência. E agora você vem nos renegar, a mim e à minha máxima tão benfeitora!... PEER – ‘Basta a ti mesmo!’... Vivi como demônio... Como egoísta! Qual: isso tudo é disparate! VELHO (Tirando do bolso um embrulho de jornais antigos) – Você pensa que nós não temos jornais também? Espera só. Você vai ver preto no branco, os elogios que te fazem o ‘Mensageiro de Blocksberg’ e o ‘Eco de Hekfield’. E isso, no dia mesmo de tua partida. Quer ler os artigos, Peer? Eu te empresto. Olha aqui um, assinado: ‘Pata de Cabra’. Olha outro, intitulado: ‘O Espírito Nacional na Terra dos Duendes’. O autor demonstra que não tem importância ter rabo e chifre – o que vale mesmo é o couro da pele humana. Além do que, ele conclui dizendo: “nosso ‘Basta a Ti Mesmo’ essa é a marca inconfundível dos duendes. Cada homem que a adotar como lema é um dos nossos.” E cita você como exemplo. PEER – Um duende, eu? VELHO – Para que esse espanto? É uma coisa tão clara quanto o dia! PEER – Então não mudava nada se eu ficasse onde estava, podia ficar tranquilamente lá em Ronden. Ia me poupar muito trabalho e muita sola de sapato. Peer Gynt... um duende! Deixa de histórias, isso tudo é mentira, é brincadeira! Bem, adeus, então! Toma aqui um vintém para comprar fumo. VELHO – Só mais um minuto, meu bom príncipe Peer! PEER – Me deixa! Você ou está louco ou ficou caduco. Vai procurar um hospital, vai! VELHO – Ah, bem que eu queria! Mas já te disse: meu filho encheu o país com sua numerosa descendência. O poder está nas mãos deles e eles dizem que eu sou um personagem inventado, irreal. São sempre os da família da gente que nos traem. É uma verdade que eu amarguei para aprender na própria pele. Pobre diabo que eu sou! É duro, sabe? Passar por um personagem inventado. PEER – Meu caro, você não é o primeiro a agüentar uma coisa dessas. VELHO – Nós que não temos nem aposentadoria nem Caixa Econômica. Foram coisas que não deram certo lá nos Ronden, imagine só. PEER – Ah, não é para menos! Com esse lema satânico: ‘basta a ti mesmo!’. VELHO – Ah, Vossa Senhoria não tem motivos para se alimentar desse lema. De um jeito ou de outro logo achará modo de... PEER – Meu bom homem, o senhor está enganado de fio a pavio. Estou, como se costuma dizer, sem ter onde cair morto. VELHO – Oh, é impossível! Vossa Senhoria sem um vintém? PEER – Completamente ‘liso’. Empenhei todos os meus principados. E são vocês, malditos demônios, os culpados disso. É assim que acabam os que andam em má companhia. VELHO – O que o senhor está me dizendo? Então, adeus minhas esperanças! Adeus! Vou tentar me arrastar até a aldeia. PEER – O que você vai fazer na aldeia? VELHO – Vou ver se me dão trabalho em algum teatro. Agora estão muito em moda, os tipos patrióticos. PEER – Então, boa viagem! Dê lembranças a todos por mim. Se eu conseguir dar um jeito na minha vida, seguirei o mesmo rumo. Aliás, estou escrevendo uma farsa que é ao mesmo tempo profunda e um bocado louca. Se chama ‘SIC TRANSIT GLORIA MUNDI’. Para os que não sabem latim: ‘ASSIM SE ESBOROA A GLÓRIA DO MUNDO’. (Volta a correr pela estrada afora. O Velho de Dovre ainda grita palavras em sua direção, que se perdem ao longe. Chega a uma encruzilhada.) Pois é, Peer, você tá no buraco mesmo! Com essa história de ‘Basta a ti mesmo’, você levou foi o chute final, sabe? Tua canoa tá vazando de tudo que é lado! O melhor é mesmo se agarrar em qualquer balsa por aí. Tudo, menos ser confundido com o resto dessas ruínas vivas... FUNDIDOR (Detendo-o na encruzilhada) – Então, Peer Gynt: onde está o teu certificado? PEER – Puxa, já cheguei na encruzilhada? Que pressa, hein? FUNDIDOR – Eu leio no teu rosto como se fosse um livro aberto. Sei muito bem o que você está querendo dizer. PEER – Sabe como é, não é? É um caso bastante complicado. Eu decidi renunciar a ser eu mesmo. Como provar isso ia ser um troço meio difícil, deixo de lado esse lado da questão. Mas há pouquinho, andando em meio a essa solidão toda, senti, sei lá, assim, um peso na consciência. ‘Peer’ – eu disse para mim mesmo – ‘você não passa de um grandessíssimo pecador’. FUNDIDOR – Ha, ha! Estamos voltando ao ponto de partida! PEER – Que nada, homem! Eu disse um grande pecador, mas não só por causa do que eu fiz não, mas por causa também dos pensamentos que tive; das palavras que eu disse. No estrangeiro, fique sabendo, levei uma vida infernal, entendeu? FUNDIDOR – Não duvido. Mas o que eu quero é o certificado. PEER – Tá certo! Me dá só mais um prazo, curto! Vou procurar o Pastor, me confesso num abrir e fechar de olhos e te trago, um certificado desse tamanho! FUNDIDOR – Se você me trouxer, é claro que você escapa de virar material de fundição. Mas as ordens que eu recebi... PEER – Ora, um documento já todo comido de traça, pelo que estou vendo! É do tempo em que eu levava uma vida insossa, sem responsabilidade, brincando de Profeta e acreditando no destino. Então, me dá o prazo? FUNDIDOR – Dou, mas... PEER – Vamos, meu caro, seja camarada. Aposto que você não tem muita coisa para fazer. Nossa região tem um ar tão gostoso, leve. É famoso para prolongar a vida dos habitantes. ‘Raramente se morre nesse vale’, como dizia sempre o Cura de Justedal. FUNDIDOR – Tá bom: então só até a próxima encruzilhada. Mas é a última, hein? PEER – Um padre! Nem que eu tenha que passar pelo fogo para achar um! Uma ladeira (encosta de montanha) recoberta de urzes. Um atalho meândrico conduz até o topo da colina. PEER – ‘Sempre pode servir para qualquer coisa’, era o que Esbing costumava dizer do sapato velho. Quem era capaz de prever que a gente um dia ia ser salva pelos próprios pecados? Meu Deus, não é que isso me adiante lá muita coisa, não! Para falar a verdade, eu caio da frigideira no fogo. Mas que bem me importa! ‘Enquanto houver vida sempre há esperança’. Eu me agarro é na consolação que esse pensamento me traz. (Uma figura magra, vestida de padre, abotoada a batina até o queixo, desce correndo a colina com uma rede de pesca às costas.) Quem vem lá? Um padre carregando uma rede de pescar? Epa! Já vi que eu sou mesmo o filhado da sorte! Boa tarde, senhor pastor! Que estrada ruim é esta, não é verdade? A FIGURA MAGRA – Sem dúvida, sem dúvida. Mas o que a gente não faz para colher uma alma? PEER – Ah, apareceu um candidato a ir para o céu, é? A FIGURA – Não. Acho que vou tomar o caminho oposto. PEER – Será que o senhor me permite, senhor Pastor, acompanhar Vossa Reverendíssima um pedaço do caminho? A FIGURA – Com muito prazer. Sua companhia é muito agradável. PEER – Estou com o coração tão pesado! A FIGURA – Oh, então desabafe, desabafe! PEER – Diante de Vossa Reverendíssima está um homem sério. Sempre respeitei a lei. Nunca me puseram no xadrez. Mas o senhor sabe: às vezes a gente tropeça, sem querer... A FIGURA – Ai de nós seres humanos! Está aí uma coisa que acontece até com as melhores pessoas!... PEER – Não é? E essas coisinhas de nada... A FIGURA – Ah, são só coisinhas de nada, então? PEER – Claro. Nunca pratiquei o pecado por atacado, só assim, a varejo. A FIGURA – Nesse caso, meu caro, faça o favor de me deixar em paz. Acho que está me confundindo com outra pessoa. O senhor está olhando para as minhas mãos. O que é que o senhor está vendo nelas? PEER – Que suas unhas estão crescendo fora do normal. A FIGURA – E agora olhe os meus pés. Então? PEER (Fazendo um gesto) – Esse pé é assim mesmo, é? A FIGURA – É um dos meus orgulhos. PEER (Tirando o chapéu) – Eu era capaz de jurar que o senhor era padre. Vai ver, tenho a honra de estar... Bom, é melhor assim! Quem pode entrar pela porta da frente não vai se contentar com a porta da cozinha. É melhor falar com o Rei, diretamente, do que com os ministros. A FIGURA – Permita-me apertar sua mão! O senhor realmente parece uma pessoa sem preconceitos. Então, meu caro, vamos lá: em que posso ajudá-lo? Desde que não me peça nem dinheiro nem poderio!... Quero morrer enforcado se eu for capaz de arranjá-los. O senhor não faz idéia como os negócios vão mal! Um comércio fraquíssimo: quase não se encontram almas à venda, a não ser assim, uma vez na vida outra na morte, um caso isolado, é claro. PEER – Ah, então quer dizer que a raça humana andou melhorando? A FIGURA – Melhorando? Pois se é justamente o contrário! Piorou meu caro, é uma vergonha como piorou! A maioria aqui entre nós só serve para ser jogada na forma, para ser refundida... PEER – Ah é? Já ouvi falar disso... Para ser franco, é disso mesmo que eu queria falar, sabe? A FIGURA – Fala sem medo! PEER – Se não for muita indiscrição, eu queria... A FIGURA – Um quarto isolado... PEER – O senhor adivinhou. A FIGURA – Naturalmente, bem aquecido... PEER – Mas não demais... Se possível, com entrada independente, saídas livres, uma porta de serviço que quem sabe eu mesmo poderia utilizar... A FIGURA – Meu caro: lamento profundamente, mas o senhor não imagina a quantidade de pedidos iguais ao seu que me dirigem. Todo santo dia, venho buscar almas boas, prontas para deixar este mundo. PEER – Bem, mas levando em conta tudo que eu fiz, todas as minhas ações, acho que tenho direito a uma entrada independente. A FIGURA – Mas se o senhor disse que eram coisinhas de nada! PEER – Bem, até certo ponto. Me lembro, por exemplo, de ter traficado mo mercado de escravos negros... A FIGURA – Qual! Outros traficaram com almas e vontades alheias, mas foram bobos e não conseguiram entrar. PEER – Mandei estatuetas de Buda para a China. A FIGURA – Ninharias!... Vamos perder tempo com isso! Outros espalharam ídolos muito piores, por meio da literatura, da cátedra universitária e do púlpito, e nem por isso nos abrimos a porta para eles. PEER – Mas o senhor sabe que brinquei de Profeta? A FIGURA – No estrangeiro? Grande coisa! Olhe: se o senhor não tiver títulos de mais peso do que esses, confesso que, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, não consigo alojamento para o senhor. PEER – Então escute só: num naufrágio, eu estava agarrado a uma balsa. Está escrito, como o senhor sabe: ‘um náufrago se agarra até a haste de uma planta’. E está escrito também: ‘’ninguém está tão perto de ti quanto tu mesmo’. Para encurtar a conversa, fui meio culpado de um cozinheiro ter perdido a vida afogado. A FIGURA – Ou que uma cozinheira tenha perdido... outra coisa. Meio culpado? Meio? Bobagens tudo isso! Então o senhor pensa que nos dias de hoje nós lá temos combustível para desperdiçar com casos insignificantes desses? Meu caro: não fique zangado e se conforme tranquilamente com a forma de fundição. Para que é que adiantava se eu o hospedasse? Pense bem. O senhor, pelo que vejo, é um homem sensato, dotado de boa memória. Isso, eu não discuto. Mas ela só lhe traz ao coração e ao espírito, imagens chatas, paisagens sem graça, desenxabidas... Não faz rir nem chorar tudo o que o senhor me contou. É uma coisa que não é carne nem peixe, no máximo, no máximo dá é despeito. PEER – Está escrito: ‘você não pode saber onde o sapato te aperta, enquanto andar descalço’. A FIGURA – É verdade. Falando de sapatos e graças às circunstâncias, me contento com esse par desaparelhado. Ah, isso me lembra que tenho que apertar o passo. Mandei assar um Dito Cujo que deve ser um espetáculo e tanto. Por isso não tenho mais tempo a perder com ninharias! PEER – Posso saber que pecados cometeu esse indivíduo? A FIGURA – Se não me engano, preencheu a condição principal que exigimos para admissão: noite e dia, dia e noite, ele sempre foi fiel a si mesmo. PEER – Fiel a si mesmo? E isso é tudo o que se exige para entrar lá? A FIGURA – Depende. Lembre-se que há duas maneiras de ser fiel a si mesmo: o direito e o avesso. Conhece a nova descoberta que chegou de Paris: a arte de tirar retratos à luz do sol, resultando duas provas – a positiva e a negativa? O negativo mostra só sombras nos lugares iluminados e viceversa. Para o leigo, não vale nada, saiu errado. Mas vai ver é o contrário: a figura do retrato está ali bem nítida, mas é preciso saber ressaltá-la. A mesma coisa acontece com as almas. Há aquelas que - a vida inteira - só deram negativos. Mas isso não é razão para destruir a chapa. Basta me entregar, que eu continuo a operação. Conheço os reagentes químicos, enxofre e outras substâncias indispensáveis. Dou banho, queimo, vaporizo e logo fica pronta a transfiguração. A imagem aparece direitinha, como deve ser. De negativo tiro um positivo, a não ser nos casos como o seu, em que a chapa está meio apagada. Aí, meu caro, adianta nem enxofre nem potássio. PEER – E de quem é o retrato com o negativo que o senhor vai tratar? A FIGURA – De um tal de Peer Gynt. PEER – Peer Gynt? Ora, já se viu! Então ele foi sempre fiel a si mesmo, esse senhor Gynt? A FIGURA – Ah, por esse eu boto minha mão no fogo! PEER – E é homem digno de fé esse senhor Peer? A FIGURA – Quem sabe? O senhor o conhece? PEER – Bem... um pouco. Sabe, a gente conhece tantas pessoas... A FIGURA – Acabou-se minha hora livre. E onde é que ele estava à última vez que o senhor o viu? PEER – Ih, longe, lá no Cabo... A FIGURA – Da Boa Esperança? PEER – É. Mas, se não me engano, ele parece que ia tomar o primeiro navio a deixar o porto... A FIGURA – Ah, então vou correndo atrás dele. Se eu não chegar tarde! Ah, esse Cabo, esse Cabo! Sempre me deu ódio! Está infestado de missionários noruegueses. (Corre na direção sul.). PEER – Que imbecil! Saiu numa disparada! Vai ter aquela decepção! Mas foi um prazer mandar aquele animal para as garras dele! E bancando o importante! Deve ter suas razões! Não é nesse ofício que ele vai enriquecer. Vai topar é com uma bancarrota completa! Ei, por falar nisso, eu, por acaso, estou a salvo? Aqui estou eu, digamos assim, expulso da nobre manada dos ‘Eu Mesmo’. (Risca o céu uma estrela cadente.) Lembranças para o Peer Gynt, boa irmã estrela! Ah, brilhar um momento, depois apagar-se, desaparecer assim... (Sente mais angústia e penetra mais para dentro da névoa. Uma pausa. Depois grita.) Lamentável pobreza da alma que volta ao nada e se desfaz na névoa! Terra verdejante: me perdoa por ter pisado inutilmente a relva de teus campos! Sol adorável, que derramaste teus raios num quarto vazio, onde não tinha ninguém para receber, tua luz, vida e calor! O chefe da casa estava sempre ausente! Ah, terra verdejante, sol adorável, como vocês foram bobos de alimentar e iluminar minha mãe! A natureza é pródiga e o espírito avarento. Como é duro pagar com a própria vida o pecado de ter nascido. Mas antes eu quero me levantar, encher meus olhos com a visão da terra prometida. Depois, que a neve se amontoe sobre mim e que se rabisquem na minha tumba estas palavras: ‘aqui jaz ninguém’. E depois... depois... aconteça o que tiver que acontecer! CANTO DOS FIÉIS (No caminho que conduz à igreja, no meio do bosque) – Este é o dia radioso / Em que labaredas de amor / Trazendo o espírito de Nosso Senhor / Desceram do céu generoso / Elevemos até Ele nossa devoção, / Nossa alma e nosso coração. PEER (Inclinando-se assustado) – Não, não quero olhar para eles! São ocos desertos ressequidos! Ah, acho que morri muito antes que o meu corpo! (Tentando esgueirar-se pelas urzes, chega de repente à encruzilhada.). FUNDIDOR – Bom dia, Peer Gynt, cadê teu bilhete de confissão? PEER – Você não vai acreditar, mas procurei um confessor até cansar. FUNDIDOR – E não achou nenhum? PEER – Só achei um fotógrafo ambulante. FUNDIDOR – Azar o teu! O prazo terminou. PEER – É o fim! Que cheiro de morte! Está ouvindo o pio da coruja? FUNDIDOR – Que nada: é o sino da manhã. PEER (Apontando com o dedo) – E aquela luz o que é? FUNDIDOR – Uma simples vela acesa numa cabana. PEER – E este som, de onde vem? FUNDIDOR – É apenas uma mulher cantando. PEER – Então é ali que vão me dar um recibo de confissão. FUNDIDOR (Pegando-o pelo braço) – Vamos. Põe teus negócios em ordem! (Os dois saíram da moita de urzes e estão diante de uma cabana. O dia começa a raiar.). PEER – É aqui que vou pôr meus negócios em ordem. Estou em casa, no meu lar! Vai-te embora! Some! Teu mundo podia ser cem vezes maior que não iam caber nele eu e os pecados que você vai ler no meu bilhete. FUNDIDOR – Está bem, Peer, vou te esperar na terceira encruzilhada. Mas aí... (Afasta-se e desaparece de cena.). PEER (Aproximando-se da cabana) – A gente vira para o lado que virar e sempre encontra a mesma coisa. (Pára.) Não, é muito humilhante, me desola demais voltar em casa nestas condições! (Dá alguns passos e pára de novo.) Dá a volta, dizia a Curva. (Ouve o canto que vem do interior da cabana.) Não, dessa vez, vou em frente, seja o caminho que for! (Corre para a casa no momento em que Solveig está saindo dela, de roupa domingueira, levando na mão um missal enrolado num lenço. Apoiada numa bengala está ainda esbelta, aprumada e com uma expressão de meiguice no rosto. Peer ajoelha-se no umbral da casa.) Fala a sentença a este pecador! SOLVEIG – É ele! É ele! Bendito seja Nosso Senhor! (Tateia meio cega, procurando-o.). PEER – Queixe-se! Me acusa dos meus erros e dos meus pecados! SOLVEIG – De você não sei de nenhum, ó meu único amor! (Tateia ainda e acaba encontrando-o.). FUNDIDOR (Detrás da casa) – Vamos, Peer: teu bilhete! PEER – Ah, grita bem alto todos os meus crimes! SOLVEIG (Sentando-se perto dele) – Oh, você, que fez da minha vida um cântico de amor, que Deus te abençoe por ter voltado para perto de mim! E bendita seja a Páscoa florida que te trouxe de volta! PEER – Ah, estou perdido! SOLVEIG – Existe alguém que vem te ajudar. PEER (Mudando de opinião com um risinho) – É: perdido, a não ser que você saiba decifrar enigmas. SOLVEIG – Fala! PEER – Pois bem, vou falar. Escuta só: você pode me dizer por onde andou o Peer Gynt desde a última vez que você o viu? SOLVEIG – Por onde ele andou? PEER – É onde ele esteve: exatinho como Deus o marcou com o selo da predestinação, exatinho como brotou do pensamento divino! Pode me dizer? Senão tenho que voltar de onde saí, desaparecer na região das névoas. SOLVEIG (Sorrindo) – Oh, esse enigma é fácil de decifrar. PEER – Vamos, diz o que você acha! Onde eu estive - eu mesmo - em toda a minha plenitude e toda a minha verdade? Onde andei - desde que nasci -, com o selo divino gravado em mim? SOLVEIG – Na minha fé, na minha esperança, no meu amor. PEER (Recuando com um salto) – O que você disse? Ah, cala a boca! São palavras de carinho, enganadoras! Você está falando de um filho que só existe em você, que só existe por sua causa, que tem uma mãe só. SOLVEIG – Então é, meu filho, sim. E ele não tem pai? Tem: o pai dele é Aquele que perdoa, cedendo aos pedidos da mãe. PEER (Como que iluminado interiormente, exclama) – Minha mãe! Minha esposa! Virgem Imaculada! Me esconde, me esconde no teu seio! (Abraça-se a ela e esconde o rosto no seio de Solveig. Uma longa pausa. O sol nasce.). SOLVEIG (Cantando com doçura) – Dorme em paz meu menininho, / Vou te embalar de mansinho, / A criança no braço da mãe sorri confiante / Para eles a vida foi feliz e passou num instante. / Meu menino em meu seio adormece, / Como a vida é boa, é leve como uma prece, / O menino pendeu a cabeça de ouro / Encostada ao meu coração, meu lindo tesouro! / Assim se passou a vida, um breve sonho de ouro! / A VOZ DO FUNDIDOR (Detrás da cabana) – Pode deixar, vou te esperar na próxima / Encruzilhada, Peer. / Não te digo mais nada. / SOLVEIG (Cantando mais alto, inundada de sol) – Eu te embalarei de mansinho, / Apóia tua cabeça em meu peito / Repousa e sonha - meu doce menininho / Apóia tua cabeça assim no meu peito. / FIM
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