O barro cultural nas construções da arquitetura barroca, nas casas

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O barro cultural nas construções da arquitetura barroca, nas casas
O barro cultural nas construções
da arquitetura barroca, nas casas de
taipa e como pigmento pictórico nas
obras de arte contemporâneas
Dra. Anita Fiszon
Universidade Federal Fluminense
A comunicação que pretendo apresentar é uma tentativa de construir um percurso a partir do barro como elemento aglutinador da estrutura aparente da obra, através
do conjunto arquitetônico cenográfico do barroco em São Cristóvão (SE) e Laranjeiras
(SE), às casas de Taipa em Lumiar (RJ) e às obras de arte contemporâneas.
Paralela à minha fala, os convido para sermos parceiros na apreciação das imagens que serão projetadas referentes à São Cristóvão e Laranjeiras (ambas no estado
de Sergipe), às casas de taipa em Boa Esperança (Lumiar) e às minhas pinturas.
Algumas destas imagens são de arquiteturas em restauração, e outras de casas
ou somente fachadas abandonadas nas cidades, principalmente em Laranjeiras.
Elas foram registradas por duas razões.
A primeira por constatar que grande parte do patrimônio histórico de Laranjeiras encontra-se sem conservação. Um patrimônio desperdiçado, às vezes em ruínas, uma ameaça ao cenário barroco desta cidade sem indício de especulação
que ameace sua existência.
A segunda foi o fato destas arquiteturas sem preservação me permitirem um
olhar no íntimo de suas construções, o que me fez constatar que um dos elementos
das construções barrocas, principalmente em Laranjeiras, onde o mosaico restaurador estranhos à natureza da construção original, é a taipa. Algumas igrejas e construções públicas encontravam-se em restauro.
No Barroco, a “arquitetura se impõe à paisagem para ordená-la segundo regras
do barroco e subordiná-la ao monumento” (Machado,1973), o volume da arquitetura religiosa, cujo emadeiramento estrutural interno é o alicerce para o preenchimento com massa (barro); a arquitetura residencial serve de passepartout do
conjunto. O princípio da arquitetura não é a massa, mas o emadeiramento.
São Cristóvão, primeira capital de Sergipe, fundada em 1590, preserva um conjunto arquitetônico de grande beleza datado dos séculos XVII e XVIII. Tombada pelo
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Patrimônio Histórico Nacional desde 1939, a cidade desenvolveu-se segundo o
modelo urbano português em dois planos: cidade alta com sede do poder civil e
religioso, e cidade baixa com fábricas e população de baixa renda.
Laranjeiras, o “Berço da Cultura Negra de Sergipe”, é um museu a céu aberto
do período da escravidão. A cidade formou sua economia na cana-de-açúcar e no
comércio de escravos, cuja presença deixou traços marcantes na cultura.
Casa na Bocaina em São Pedro da Serra
Vamos nos ater às construções de taipa. Os dois tipos de taipa usados nas construções foram a taipa-de-pilão e taipa-de-mão. “A taipa, sistema construtivo usado na
execução de paredes e muros que emprega como material de construção básico a
terra argilosa, umedecida ou molhada sem nenhum beneficiamento anterior. Outros
materiais, como areia, cal, cascalho, fibras vegetais e estrume animal, podem ser adicionados a terra dando maior plasticidade e resistência à taipa.” (Modesto, 1998).
Na taipa de pilão utiliza-se a terra apropriada, geralmente vermelha ou
ocre sem vestígios de matéria orgânica, apiloada entre formas de madeira e
com umidade natural.
Já a taipa-de-mão é formada por uma estrutura de madeira que forma um gradeado eqüidistante. O barro, depois de misturado ao estrume de boi, vegetais, óleo de
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baleia etc, é amassado (geralmente com os pés) e aplicado na grade/estrutura de
madeira; duas pessoas ficam frente a frente, cada uma de um lado da grade; uma joga
a massa preparada e a outra a apara com as mãos ou com um pedaço de madeira.
A origem da construção de taipa no Brasil, segundo vários autores, deve-se aos
jesuítas. Pisan ao constatar as influências culturais nas construções em taipa, que já
era utilizada em tribos brasileiras, comenta: “Os negros trazidos ao Brasil também
conheciam processos construtivos que utilizavam a terra, algumas tribos empregavam estruturas preenchidas com barro, que apresenta similaridades com as técnicas
de algumas tribos brasileiras”. O adobe também era conhecido dos africanos, portanto, durante o início da colonização brasileira, todas as culturas componentes dominavam técnicas construtivas que utilizavam a terra como matéria-prima”. ( Pisan )
Em Boa Esperança, Lumiar (Friburgo, RJ), lugar de colonização européia
onde hoje restam poucas casas de taipa, usava-se o arcabouço de madeira preenchido pela taipa. Estas residências isoladas de pau a pique são paisagem, surgem
da terra: são obras de arte inseridas na natureza. Carlos Lemos, pesquisador de
casas brasileiras, afirma: “vernacular é uma expressão cultural”, são tipos de arquiteturas construídas pelo povo com materiais e técnicas naturais oferecidas pelo
meio ambiente local, onde a obra será realizada.
Meu objeto de pesquisa se localiza em Boa Esperança, Lumiar, 5º Distrito de
Nova Friburgo no Rio de janeiro. Meus dois pontos referenciais distam 166 km
entre si: Flamengo/ Boa Esperança.
Há 21 anos, cheguei à Boa Esperança como artista visual trabalhando com
poéticas pictóricas (pigmentos naturais, palha de milho) e fotografias; agora atuo
também como pesquisadora.
Em Boa Esperança não havia energia elétrica; de madrugada, quando abríamos a janela, os raios da lua cheia projetados nas folhas de bananeiras cheias de
orvalho produziam um reflexo prateado. Parecia que a revolução industrial ainda
não havia acontecido. Não existia telefone, televisão ou geladeira. Os ônibus e as
bicicletas que por lá passavam eram indícios da modernidade.
Para muitos, a marcação do tempo tinha como referenciais a gestação dos animais, a colheita e o ônibus que passava apenas duas vezes ao dia. Era um lugar, e
assim posso chamá-lo, baseando-me em Tuan, pois tem significância para as pessoas
ou grupo de pessoas. Para Tuan, espaço, tempo e lugar são indissolúveis no cotidiano. Lugar é uma pausa no movimento. A cidade é tempo tornado visível.
Os habitantes de Boa Esperança vivenciavam o seu dia a dia numa rotina inexorável que remete a uma lembrança repleta de significados; o homem precisa ouvir
sua linguagem para não dispersar e tomar um caminho que não é o da sua natureza.
Todos os sentidos precisam estar em comunhão. Segundo Kevin Lynch, a paisagem
é um somatório, um acúmulo, um produto de muitos construtores que produzem
interferências contínuas nas estruturas do cotidiano que estão em permanente mutação; não havendo resultado final, mas uma contínua sucessão de fases.
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Nesse lugar, antes do amanhecer, por volta das 4 da manhã, as famílias de
habitantes semeavam e tratavam da terra; às 9 horas já almoçavam, costume estranho para quem chega de uma cidade grande; passavam quase todos os dias do ano
a observar a cor e as nuvens que passeiam no céu com o propósito de sentir a qualidade do ar (tal leitura era uma tentativa de prever como seria o tempo do dia ou
a do dia seguinte). A plantação depende fundamentalmente das condições climáticas; os roceiros vivem em função do tempo astronômico, ou seja, do ciclo diário
do sol e da passagem repetitiva das estações do ano. No pensamento pré-moderno,
nos lembra Tuan, a tendência é uma aproximação do lugar, que é concreto, e um
distanciamento do tempo. O tempo humano é direcional, tem um ciclo que começa com o nascimento e termina com a morte; um percurso individual, uma jornada
de mão única de um corpo assimétrico no qual a parte de trás da cabeça está voltada para o passado, e a parte da frente para o futuro.
No espaço da terra organizada, o agricultor imprime a semente, formando
áreas de grandes retângulos com visualidades definidas pelo tipo de semente: feijão, inhame, aipim, tomate, pimentão etc. Estas plantações são um prolongamento
das casas, espaços também ordenados. Para o deslocamento da casa para o campo
de trabalho, subiam à montanha casa acima; a casa sempre como marco referencial de partida e chegada, uma referência espacial.
Como pesquisadora de Casas de Taipa, caminho procurando por elas. Nesta
caminhada, percebia durante esses anos que havia apenas uma casa de taipa presente
nesta trajetória. Com olhar mais atento à paisagem, que para Werther Holzer é uma
Madeira, pigmento natural, tecido, barbante. Dimensões : 20x20x10 cm.
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“expressão física da ação do homem sobre a natureza, e por extensão, um receptáculo
de memória, que qualquer caminhante atento observa”, pude perceber outras casas
que fazem parte da paisagem do lugar. Tal caminho remete a momentos remotos, um
desenho que se refaz com o passar do tempo; ela, a casa de taipa, está lá para ser revelada, apreciada. Heidegger lembra que “o caminho recolhe aquilo que tem seu ser em
torno dele e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu”.
As casas de taipa, a meu ver, são textos de significação. Podemos, através dela,
fazer uma análise como um objeto histórico, aspectos de constituição do sentido.
Como nos lembra Tuan: “a casa é o ponto de partida primal é centro e origem do
mundo”; segundo Auge, a casa é vista como proteção, abrigo - a casa com seu
lado sombra e seu lado luz , sua parte feminina , que protege quem dorme de suas
próprias pulsações, protege das agressões externas, das mudanças climáticas, lugares que foram “investidos de sentido” (Tuan,1970)
Impressiona-me o paradoxo da complexidade/simplicidade da construção
dessas casas, na qual todo processo parece revelado: quando não emboçadas, parecem nuas. A meu ver, há uma poética nessa passagem do mundo natural para o
mundo cultural; do minério para a paisagem arquitetônica sensível, ou para a obra
pictórica. Estas casas organizadoras do olhar nos remetem a uma liberdade existencial, expressam-se no espaço abertas ao mundo, estão em extinção, refletem a
cultura que as gerou, se restringem a simplicidade dos meios e se nutrem com a
seiva bebida da terra.
Madeira, pigmento natural, tecido, barbante. Dimensões: 20x20x10 cm.
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As casas de barro interagem com a natureza: durante o dia é aquecida, pois armazena o calor dos raios de sol que vagarosamente é perdido à tarde, quando o sol se retira.
Segundo Carlos Lemos, “o ato de morar é uma manifestação de caráter cultural.”
“Pequenos lugares podem ser conhecidos através da experiência direta incluindo o sentido íntimo de cheirar e tocar” (Tuan, 1980).
O barro, além de perpassar esses caminhos no tempo, surge como pigmento
na produção das minhas obras de arte. Esta produção de arte contemporânea se dá
a partir da pesquisa de pigmentos naturais e agora do arcabouço barroco; a estrutura
da obra, tal como nas casas de taipa, tem a madeira (chassis) e uma trama arquitetônica interna, banhados por pigmentos retirados da natureza. O processo das minhas
obras inicia-se pela discussão da planaridade da tela, plano que recebe a pintura que
cobre o espaço da parede, pousada da obra. A seguir, desaparece a preocupação em
esticar a tela. Chassi e tela tornam-se monocromáticos, banhados por pigmentos naturais. O chassi, a tela e a pintura se interrelacionam como espaço pictórico. A espessura do chassi é também determinante na obra, objeto escultórico no espaço. Escultura que não abdica das questões da pintura.
O meu veículo aglutinante pode ser a gema de ovo (têmpera ovo), cola a base
de vinil (têmpera vinílica) ou resina acrílica (têmpera acrílica); atualmente, trabalho
somente com resina acrílica pelo fato da têmpera ovo, apesar de dar bons resultados, ser suscetível a fungos. Esta mistura nos remete aos procedimentos da construção da casa de taipa.
Madeira, pigmento natural, tecido, barbante. Dimensões: 10x10x4 cm
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Nas formas de produção das minhas obras, o suporte convencional - chassi,
tela e parede - são obras. Não existe esboço da obra, planar idade da tela cobrindo
o chassi, ou direito e avesso: todas as faces do chassi, inclusive as laterais, são obra.
As camadas de tinta banham e contemplam as formas que a tela toma, deixando
transparecer o pigmento e fornecendo texturas e cores congeladas. Não existe luz,
isto é, claro/escuro; a iluminação externa artificial é essencial na obra, assim como
o sol na natureza. A sombra da obra que é projetada na própria obra insinua perspectivas, promovendo maior profundidade. A parede é outro elemento da pintura
quando o conteúdo interior do chassi se apresenta vazado. Deste modo, a parede
contida na obra torna-se obra.
Não existe coisa real. O olhar não passeia sobre uma superfície narrativa colorida, esta superfície surpreende: pode dar voltas em barbantes, em linhas, no
chassi estável; um tecido acrobata que pode ir e vir até a superfície tornando-se
positivo e negativo; um passeio no interior do espaço pictórico, sempre banhado
de massa monocromática em sucessivas camadas de tinta fabricada a partir de
pigmentos naturais, desencadeando um discurso de significados para o enunciador
e para o fruidor revelados no “enunciado-discurso... relação com o outro e relação
com o mundo”. (TEIXEIRA, 1998).
Não existe jogo de técnica. Ela é repetitiva, sempre a mesma, e, ao mesmo
tempo, reinventada durante o processo de criação. O que difere é o uso da tela, do
chassi e da cor do pigmento produzindo significados. “Há uma camada pictórica
discursiva, em que o mesmo jogo sintático de relações entre técnicas e efeitos deverá
ser desvendado por um espectador aqui transfigurado no leitor que rejeita a percepção imediata de uma primeira leitura porque pretende revelar as operações mentais
geradoras desse outro e novo processo de criação.” (TEIXEIRA, 1996)
Os tons e cores de terra produzem significados para quem os recolhe e os transforma em matéria pictórica. Para pesquisar os pigmentos pictóricos, é preciso caminhar
por caminhos longínquos: recolher o pigmento exige um desvendar enigmático na
paisagem. A camada superficial do mineral na natureza pode não ser da mesma cor
que a camada seguinte, existe uma busca constante pelo desconhecido, um mergulho
em si. O recolher do pigmento natural produz uma performance entre o corpo e a
paisagem; uma relação de descoberta de infinitas cores, formas, espaço e lugares,
elementos esses que irão também constituir a forma da expressão. (Greimas, 1986).
Os dois pontos do meu objeto de pesquisa, as obras e as casas, me parecem discursos que podem ser concebidos a partir de um objeto de significação: análise interna
do texto, ou objeto histórico. Cada pintura / objeto, qualquer que sejam as dimensões,
tem um discurso próprio, uma tessitura singular que se esgota em si. Através da inserção do barroco na minha pesquisa, já tenho projetos de ampliação da escala das obras,
influenciada pela grandiosidade dessas paredes da arquitetura.
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