conceição - autor bom é autor morto

Transcrição

conceição - autor bom é autor morto
CONCEIÇÃO
ou
Autor bom é autor morto
Roteiro de
Guilherme Sarmiento
e
Daniel Pecego Caetano
com a ajuda de
Carlos Sanches
Cynthia Syms
André Sampaio
Rafael Rodrigues
Leonardo Abreu
Alexandre Dias
Auíra Ariak
Renata Reis
CONCEIÇÃO
(Centenas de coisas podem ser ditas sobre um filme. O que quer dizer
"Conceição"? Nenhuma palavra pode explicar uma vida. Nem mil imagens. E,
no entanto, incontáveis coisas podem ser ditas. O que nos obriga a voltar de
forma diferente à questão : o que é "Conceição" ?
"Conceição" é uma pergunta, essa é a verdade. A convivência entre si de
um grupo de pessoas gera enriquecimento através de muitos debates.
Entretanto, há nestes dúvidas que não se respondem. Estamos cansados dessas
questões, e a consequência é "Conceição".
A idéia é botar tudo que for possível. Ação, comédia e romance. A estória
tem muitos diálogos, imagens fortes e personagens inusitados. E tem também os
autores desses personagens. Tem perseguições, tiros, violência, sangue. Tem
explosão. Bares, papos, vida real, vida onírica, mundos distantes, deve ter até
ficção científica. Tem música. Samba, bolero, etc... Tem cerveja e ovo frito. Tem
também mulher pelada, é claro. Florestas, umas paisagens. Tem até uma hora
para quem não quer ver nada. Tem até um crítico.
Só não tem o público. O público está do lado de fora. Como poderia ser
de outra forma? O público assiste, se possível.
Será que o público sabe o que quer?
Talvez "Conceição" seja aquela mulher que estava nua no bar. Ninguém
sabe o nome dela.)
Roteiro
Bloco 1
SEQUÊNCIA 01 - FLORESTA & LETREIROS - EXT. DIA
Uma mulher pende enforcada numa árvore em meio à floresta. Do meio da mata surge
um homem em desabalada carreira. Foge pulando riachos, atravessa a mata densa, passa
pelo Pico da Tijuca, sempre a fugir. Vemos então seu perseguidor esgueirar-se pela mata com
um facão. Paralelamente, passam os letreiros do filme.
SEQUÊNCIA 02 - ESTÚDIO - INT.DIA
Há nove pessoas num bar claramente feito em estúdio. São seis homens e três
mulheres, Fulano paquera Beltrana.
Marcinho
Aí o personagem que eu tinha inventado é esse,
sacou... ele tá sempre fugindo... é a caça... e o
caçador raramente aparece... aí, o filme é todo
do ponto de vista do perseguido,... que morre no
final...
Fulano
Podia fazer um documentário sobre a violência
da polícia no Rio... imagina só... mostra os caras
invadindo umas favelas... aí também bota aquela
cena da rede globo, em que um policial executou
um cara na porta do rio-sul...
André
Isso dá público...
Fulano
Podes crer... é mole de despertar a maior
polêmica... pode mostrar aquele tiroteio no baixo
gávea... mostrar a zona sul, mesmo...
Guilherme
(irônico) Rio, zona sul... sei lá, acho que
enquanto a gente não sair desse mundinho não
vai acontecer porra nenhuma...
Samanta
(sem agressividade) Quê que cê quer dizer? ... Que
tem que mostrar uma favela qualquer, cheia de
crioulo morto?...
Guilherme
Tem que morrer junto com o filme, bicho, tem
que falar a língua do morro...
Renata
Quê isso... acho que fazer um filme violento
num tá com nada... por quê que tem que ser a
língua do morro ? Que estereótipo mais demodé
essa relação favela/violência...
Fulano
Meu clima é mais língua do mato...
Renata
Matar, morrer... é muita violência, gente...
Beltrana
(olhando pra Fulano) É, tinha que filmar as
cachoeiras do Sana...
Fernando
Podiscrê... tinha mesmo que fazer uma parada
assim, sexo e violência na floresta, como se isso
fosse parte da natureza... Primeiro rola uma cena
de amor na cachoeira, e depois uma perseguição
pela mata... (começa a rir)
Fulano
Isso... prá filmar essa perseguição, podia fazer
uma parada que eu pensei, que é de botar a
câmera, tipo amarrada, numa mountain bike e
descer umas ladeiras, varadão...
Marcinho
A língua do morro - a primeira pessoa do
singular do verbo morrer...
André
Tinha era que fazer uma pornochanchada... né
não?... porra, dava dinheiro pra cacete...
Abreu
É, mas agora o lance é fazer thriller erótico...
André
... acaba dando no mesmo... o lance é botar
sacanagem...
Guilherme
Mas , pô, de repente tem antes que descobrir
qual é a parada que a gente quer filmar... sem já
estar se preocupando em botar sacanagem... quer
dizer, claro que tem que ter sacanagem...
Abreu
Ah, tranquilo... primeiro a gente escolhe uma
história legal... é mole, tem um monte... pode
olhar no jornal...
Renata
Que nada, eu já ouvi um lance que só existiam
dezoito estórias, que se repetiam de várias
maneiras...
Samanta
Eu pensei uma vez num troço pro festival do
minuto que era assim - mostrava um cara e uma
menina que se paqueravam num bar, e no canto
da tela um cronômetro marcando o tempo do
filme. Eles dançavam juntos, se beijavam e iam
pra casa. Quer dizer, mostrava uma cena de
sedução bem clichê em menos de um minuto.
Quando falta uns dez, quinze segundos pra
acabar o filme, eles tão transando e ele diz pra
ela: “rápido que tá acabando”. Aí ela gozava e
acabava o filme...
André
Peraí, que eu vou lá embaixo pegar umas
cervejas...
Abreu
Eu já quis filmar uma história numa escola,
sacou... uma parada com crianças...
SEQUÊNCIA 03 - BAR - INT. DIA
Em uma frigideira escaldante e suja, um ovo é colocado para fritar. O português que
o frita olha para uma tevê onde está sendo apresentado um telejornal de clima absurdo. Ao
fundo chega André, que pede quatro cervejas “pro pessoal lá de cima”
SEQUÊNCIA 04 - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
Temos aqui a oportunidade de ver uma parte do estranho programa. Quem fala é a
apresentadora, uma mulher com rosto de modelo, vestida sobriamente.
Apresentadora
Ainda hoje : Família estuprada e morta no
cinema.
Há dois âncoras, um homem e uma mulher, numa mesa em semicírculo. Eles nos
transmitem as notícias com gravidade e indiferença.
Apresentador
Bandeirinha de futebol pede asilo político.
Apresentadora
Palhaço mutila crianças e diverte pais em festa
de aniversário.
Apresentador
O império paulista se expande: Consumada a
invasão, anexou-se, na madrugada de ontem, os
estados de Santa Catarina e do Espírito Santo.
Apresentadora
Ministro da Justiça afirma que crime foi
inevitável.
Apresentador
(suas roupas estão momentaneamente trocadas) Greve de
continuístas atrapalha indústria cinematográfica
Apresentadora
Em instantes: nosso repórter entrevista o arredio
escritor Dalton Trevisan.
Apresentador
Pesquisa indica que sessenta por cento das
mulheres consideram o apresentador deste jornal
o mais charmoso e sedutor da televisão nacional.
(ela olha pra ele, incrédula)
SEQUÊNCIA 05 - PRAÇA - EXT. DIA
Depoimento de um fotógrafo de praça. Ele nos conta como seria o filme que ele faria,
enquanto ajusta sua máquina e ajeita a pessoa de maneira a centralizá-la na foto. A pessoa
que ele fotografa é um homem baixinho que come um cachorro-quente.
SEQUÊNCIA 06 - ESTRADA - EXT. DIA
Estrada urbana, arborizada e deserta. Um cachorro vira-lata passa batido. Ouve-se a
alguma distância um funk que aos poucos vai saindo em fade, introduzindo o seguinte diálogo
em off :
Homem 1
(off)
... E aí não teve conversa - fudi com ela!
Homem 2
(off)
Trepou com ela? No duro?
(Os dois surgem em quadro.)
Homem 1
Não, cara! Eu estrepei com a vida dela. Estrepei,
fudi com ela, magrinho! (socando a mão direita
na esquerda) Tá sabendo?
Vemos um homem irritado olhando para a câmera. Em contraplano, o outro homem
aparece. É um gordinho que devora um cachorro-quente suspeito. Usa uma camisa listrada
de time amarelo e preto, a barriga escorregando por baixo.
Homem 2
Ããããhn...?
Homem 1
Você tá ligado na minha história?
Homem 2
Pô, mermão... num tô não.
Homem 1
Ih, o cara, aí... Que mané, me largar falando
sozinho...
(Homem 2 deixa escorregar a salsicha,
nervoso.)
Homem 2
Qualé, Marcão? Meu filho acabou de nascer...
Marcão
Porra, vai pra casa então, frufru do neném! E o
bonde da farinha?
Homem 2
Ué, tamo indo formá, né não? Neném tá
mamando nos peitinho da minha mulher, eu
também vou me animar! (ri, meio sacana)
(Marcão faz um “sshh” pedindo silêncio.)
Marcão
Cê tá ouvindo?
(Homem 2 olha em volta, atento.)
Homem 2
O quê?
Marcão
Tá subindo um carrão aí... Pelo som do motor,
vê que é coisa fina. (esfregando as mãos) Ih,
demorô! Vamo arrastar, sair numa boa daqui!
Ainda paro num posto e compro uma camisa do
Flamengo pro garoto. Ah, moleque!...
(Marcão, animadíssimo, dá um tapinha nas
costas do amigo indeciso.)
Homem 2
Sei não, Marcão... Só quero acabar a noite no
branco...
Marcão
(comandando) - Então, magrinho! Vamo buscar
na fita do mané endinheirado que tá vindo aí!
(mostrando a pistola 38) pode deixar, Joel, deita
logo nessa merda... pode deixar que eu vou parar
esse carrão rapidinho!
(Começamos a ouvir o ronco do motor. Joel
olha em volta, deita no meio da estrada, ainda
meio hesitante. O outro assente. Joel levanta a
cabeça.)
Joel
Por que sou eu que tenho que ficar aqui deitado?
Marcão
Cala a boca, porra! A gente já não falou disso?
Quando o carro parar eu vou gritar (apontando a
arma para Joel) - “Sai do carro senão eu mando
bala!”
Joel
E se o carro não parar? Que eu saiba não tem
nenhuma placa dizendo que eu tô aqui...
Marcão
(debochado) - Cumpádi, olha o tamanho da tua
barriga! E essa camisa! Parece até um quebramola...
(Marcão ri. O ruído do carro se aproxima. Ele
faz sinal de silêncio pro outro. O som do motor
aumenta. Joel está estendido no chão, numa
espera angustiante. De repente, Joel aponta pra
cima, aliviado.)
Joel
É, Marcão, esse é carrão de ricaço mermo. Pena
que passou muito alto.
(Marcão olha pra cima. O som do motor vem de
um avião. Joel senta-se no asfalto, numa atitude
descontraída.)
Joel
Esse passou por cima do nosso cadáver!
(Marcão aponta a arma pro avião, aborrecido.)
Marcão
Eu tô bem vivo, magrinho... Tô aqui bem ligado!
Bloco 2
SEQUÊNCIA 07 - CEMITÉRIO DO MARUÍ - EXT. DIA
Voltamos nossa atenção para o Fugitivo. Ele não pode parar de correr, e agora passa
pelas vielas de um cemitério. Ao fundo, debaixo de um sol cruel, algumas figuras carregam
um enterro. Enquanto isso, o Caçador reza diante de uma lápide, observado por uma mulher
nua.
SEQUÊNCIA 08 - ESTÚDIO - INT. DIA
Beltrana
Podia fazer um road-movie brasileiro... de um
cara que vai pro nordeste pegando várias
caronas, e vai conhecendo mil coisas pelo
caminho, namorando, se envolvendo nuns
acidentes... né não?...
Abreu
Eu já pensei em filmar uma história que acabava
com um cara sendo morto na Feira de São
Cristóvão, num sábado... tu já foi lá?... rola um
equipamento de som de cinco em cinco metros,
cada um mais alto que o outro, tocando músicas
diferentes. Então você anda e a música muda a
cada dois, três metros... imagina agora um cara
agonizando, se arrastando todo ensanguentado, e
a música mudando a cada passo que ele dá...
Samanta
É, o filme tem que ter uma música maneira...
Abreu
(levanta-se) Peraí... deixa eu mostrar um som
que eu tinha pensado em por no filme (pega um
aparelho de som e põe uma música. Enquanto
ele faz caretas de empolgação, os outros ficam
indiferentes, quase constrangidos)
Renata
Bacana...
Guilherme
É, de repente num filme pode ficar legal...
Samanta
Pode ser...
André
Pô, deixa eu mostrar outra parada aí...
Abreu
Peraí... ó só...
André
... Pô, agora beleza, deixa eu mostrar um outro
lance aí, rapidinho...
Abreu
Quê isso, peraí...
Fernando
É, muda aí esse som...
(os outros concordam)
André
Pô, jogo rápido...deixa eu botar uma música que
eu pensei pra tema daquele roud-múvei da
viagem pro nordeste... é um bolero... pras cenas
de sexo, de repente ... da Angela Maria,... manja
Angela Maria?... ela que lançou “ Fechou o
paletó”... (enquanto isso vai tocando o bolero)...
ó só... isso vai ficar demais com uma sacanagem
rolando... se for pornochanchada vai se chamar
“Só por amor”... podia ser a estória duma
vampira... uma mulher que transa com os
homens, aí depois mata eles e rouba tudo... quê
que cês acham?... uma personagem meio
inesperada,... meio misteriosa...
SEQUÊNCIA 09 - BAR - INT. DIA
Ironizando a pontuação de tempo, uma nova etapa da fritura do ovo. O infeliz
português ainda assiste o telejornal.
SEQUÊNCIA 10 - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
Outra vez surge o noticiário piadístico.
Apresentadora
Veremos agora nossa repórter entrevistando o
escritor Dalton Trevisan.
SEQUÊNCIA 10A - BANCO DE PRAÇA - EXT. DIA
O entrevistado, um senhor de setenta anos, um pouco magro, meio careca, de óculos,
tosse um pouco. A repórter já passou dos trinta, e consegue manter-se bastante bonita na sua
falsa elegância.
Repórter
Está enxuto, hein? Corpinho de dancing dos
velhos tempos.
Trevisan
Quer conhecer um tipo azarado? Sou eu. Em
janeiro bati o carro, não tinha seguro. Quando
consertou, roubaram o rádio. Emprestei o último
dinheiro a um amigo, ele não me paga. Fui a um
baile, não dancei e acabei apanhando. Comprei
um carro velho, atrasei as prestações e o dono
tomou de volta. Domingo no parque, dois
pivetões me assaltam. Fico sem tênis, relógio, o
boné do time, eterno perdedor. É pouco? Estou
com os dentes ruins, a vista fraca, acho que é
diabete. Estou mais velho que minha jaqueta,
acho que vão me dar pros pobres.
Repórter
Se você não fosse escritor, fosse homem de
cinema, como seria o filme que você faria?
Trevisan
Chacina do casal e da filha. Só a imagem,
nenhum som. Os velhos mutilados ali no chão. A
moça de cabeça caída na mesa. Terror e
angústia, sem fechar os olhos. Eis que a cena se
desenrola de trás pra frente. E você, sem ser a
moça, sente todo o horror antes da violação. Em
desespero, os velhos pais escondem ela no sótão.
Ao longe, uma igrejinha solitária, porta aberta,
luz piscante de velas.
Repórter
Você é um contista em busca da palavra certa? É
um membro da Academia Paranaense de Letras
seguindo o caminho da pulga no pêlo preto do
cachorro? Você escolhe as palavras sentindo a
espinha quando morde um peixe doce?
Trevisan
E se o peixe gritasse, quem iria pescar? Eu não
planejo as cenas. Tudo vai acontecendo. Tiro a
roupa de cada um. Está molhada, entende?
Arrasto um por um para baixo do chuveiro.
Limpo o sangue do João. Lavo os corpos. Daí
enrolo em quatro lençóis. As crianças eu boto
debaixo da cama. O João e a mulher dentro do
guarda-roupa. E fecho com a chave. O conto não
tem mais fim que outro começo, imitando o
estilo do bilhete do suicida, com a mão torta, o
olho vesgo, o coração danado. Eu escrevo
primeiro e depois me arrependo. E eu sempre me
arrependo.
Repórter
Você não acredita no amor?
Trevisan
Dane-se o amor. Todo amor. Esse maldito amor.
Ingênuo menino que faz carinho numa cadela
raivosa. E é mordido! E condenado a viver
babando, rangendo os dentes, ganindo para uma
lua de sangue. Noivei com a Maria, que ontem
me contou que virou a outra de um fulano
casado. E ela me disse: nunca me senti tão só
quanto na tua companhia. Cada dia, amor, é mais
difícil gostar de você. Ai, Maria... Quer ser
apertada, menina? Passa pedra-ume. Mais que a
deixasse nua, sempre restava uma nesga pro dia
seguinte. Matei sim. Não pude mais. Foi só
paixão. Agora sou o Raskolnikov que te saúda,
com a mão na machadinha sob o paletó.(ele
começa a se insinuar agressivamente) De quem
a culpa? Me deito e apago, nem sonhar eu sonho.
Como dormir, se para os mil olhos da insônia eu
só tenho duas pálpebras?
SEQUÊNCIA 11 - BARBEARIA - INT. DIA
Documentário com o barbeiro. Ele nos conta como seria o seu filme enquanto corta o
cabelo de um menino. No fim, o pai sai de mãos dadas com o menino.
SEQUÊNCIA 12 - TERRENO BALDIO - INT. DIA
Há uma baita explosão.
SEQUÊNCIA 13 - SALA DE AULA - INT. DIA
Em uma sala de aula empestada por ratos e baratas, tia Sueli, professora limpa e
asseada, joga a seguinte para a turma:
Sueli
Quem sabe dizer para a tia por que amanhã não
vai ter aula?
(Todas as crianças respondem juntas)
Crianças
Dia do Trabalho!
Sueli
(didática) Muito bem! Amanhã é o dia do
trabalho. Toda pessoa quando cresce precisa
trabalhar para o seu sustento e o da família. Eu
tenho dois filhos para criar. Meu marido trabalha
na Cerj. Eu sou professora. Esta é minha carteira
de trabalho.
(Uma criança levanta o dedo.)
Criança 1
Meu pai é vereador mas não é ladrão.
Sueli
Eu sei disso, meu querido. Eu votei no seu pai e,
como toda mulher trabalhadora e cidadã,
pesquisei muito a vida do candidato antes de
votar. (Sueli vai até a criança 1. De sua
lancheira, retira um microfone) Instalei um
microfone escondido e pelo que pude escutar em
sua casa, seu pai é um homem decente. Nunca o
ouvi falar um palavrão, nunca o ouvi levantar a
voz. Eu adorava quando ele contava aquelas
lendas tupinambás... Que homem culto! A titia
aqui sabe o que faz, meu filho.
Criança 1
Quando eu crescer eu vou votar no meu pai.
Criança 2
Meu pai é lixeiro mas sempre lava as mãos antes
de comer.
Sueli
Uma coisa não tem nada a ver com a outra, meu
anjo. Quem limpa a cidade merece toda a nossa
consideração. E se ele limpa as mãos antes de
comer, prova que é um homem digno.
Criança 3
Meu pai é polícia mas nunca chacinou ninguém.
Sueli
Muito bem, muito bem. Ele... já ganhou alguma
medalha?
Criança 3
Ele tem um dente de ouro. (arreganhando os
dentes) Bem aqui, ó.
Criança 4
Meu pai é dentista, mas só faz obturação. Meu
tio é quem faz prótese.
Criança 5
Meu pai tem prótese.
Criança 4
Em que dente?
Criança 5
Na perna direita. Ele é Aleijado. (estufando o
peito) Mas trabalha com venda de azeitonas e
tremoços.
Sueli
Que lindo! Estão vendo? Todas as profissões são
importantes. Azeitonas para enfeitar e dar um
tempero especial na carne moída! Hummm... E
você, Cláudio? Diz pra tia o que seu pai faz.
(Cláudio até então ficara calado no fundo da
sala. Ele teve o cabelo cortado na sequência
anterior. Cláudio encolhe-se na cadeira.)
Sueli
Fala, Cláudio, anda. Ninguém aqui vai fazer
pouco caso, não. Todas as profissões são dignas.
(Alguns coleguinhas de Cláudio olham para ele
com benevolência, estimulando a revelação.
Cláudio sente-se pouco confortável.)
Cláudio
Meu pai é camelô.
Sueli
Que legal, Claudinho. Ele vende o quê?
(Claúdio procura resistir mais uma vez.
Finalmente entramos em seu pensamento.)
SEQUÊNCIA 13A - CALÇADA DE RUA - EXT. DIA
Um homem de meia idade vende mercadorias, aos gritos, na calçada. “Leve três,
pague dois! Leve três, pague dois!” Em cima de um tecido, vários cocôs empalhados estão
dispostos. Ele pega três daqueles cocôs e coloca num saquinho, entregando-o a um cliente.
SEQUÊNCIA 13B - SALA DE AULA - INT. DIA
Sueli
Fala, Claudinho!
(Cláudio não aguenta a pressão e grita.)
Cláudio
Ele vende merda! Vende merda!
Bloco 3
SEQUÊNCIA 14 - PRAIA DE CAMBOINHAS - EXT. DIA
O sol parece o Diabo. Mas ainda assim o Fugitivo escapa, sem coragem de parar,
nem mesmo por um sorvete. Ao fundo, a vista do Rio de Janeiro, com seu Cristo cercado por
antenas pontudas. Um senhor idoso observa a corrida do pobre infeliz enquanto cuida de seu
neto travesso. Há um sujeito deitado numa esteira, com máscara de gorila, tomando cerveja e
sol.
SEQUÊNCIA 15 - ESTÚDIO - INT. DIA
André
Podia fazer uma ficção sobre piratas espaciais...
chefiados por uma princesa lésbica...
Guilherme
Pô, sei lá...sabe quê que é... é que de repente eu
acho que a galera tinha que fechar mais o
filme...tipo, tem que pensar mais nas imagens
que a gente quer ... porque pô, cinema é imagem
(os outros se manifestam)... não, mas é, é
imagem mesmo... (os outros se manifestam com
mais veemência)
Renata
Teve um diretor inglês que fez um filme com a
tela azul o tempo todo. O lance era ouvir o que
era dito em off. Ficavam seis pessoas contando
histórias, discutindo filosofia...
Samanta
Ó só... vê só... deixa eu tentar te dar um exemplo
de cinema que não é só imagem (levanta-se)
Peraí... peraí, gente, que eu vou apagar a luz um
minutinho...
Os outros se manifestam, querem que ele acenda a luz. Fulano, que estava flertando
com Beltrana desde o início, já tinha pegado na mão dela, e deu o bote quando viu as luzes se
apagarem. Quando as luzes voltarem, os dois estarão juntos, aos beijos.
Abreu
Quê isso...
Fernando
Escuta, acende a luz aí...
Samanta
Peraí, peraí... vamos imaginar que num filme
qualquer estamos os oito sentados num bar, e
falta luz... aí a gente vai ficar conversando uns
instantes no escuro , e é isso que vai tá sendo
importante na hora...
Marcinho
E não acontece mais nada...
Renata
E não é cinema.
Samanta
Aí antes mostra um gorila fugindo do zoológico
e rondando a casa...
Guilherme
Eu já vi isso num desenho do Pica-pau.
Fernando
Podiscrê, Podiscrê...(dá uma risada)
Samanta
Pois é... então mostrava o gorila entrando aqui...
aí ninguém entendia nada, porque as luzes iam tá
apagadas...
Guilherme
E aí?... cê ia encarar o gorila?...
Samanta
Sei lá...
Renata
E quê que acontece então?...
Fernando
(interrompendo) Pô, acende a luz aí...
Abreu
Peraí... vamo fazer um ritual...
Fernando
Beleza, beleza...
SEQUÊNCIA 16 - BAR - INT. DIA
O ovo ainda está sendo frito, e vemos mais um pouco de telejornal.
SEQUÊNCIA 17 - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
Mais uma chance de saber o que se passa.
Apresentadora 2
Inventado o futebol virtual.
SEQUÊNCIA 17A - CAMPO DE FUTEBOL - EXT. DIA
Vê-se um homem de meia idade, um pouco gordo, com um capacete, correndo num
campo de futebol. O capacete o faz ver todo o jogo se desenrolando à sua volta, mas nós só
vemos ele, conduzindo uma bola imaginária, driblando os adversários virtuais, sofrendo falta
e sendo expulso por reclamação.
Apresentadora 2
(em off) Cientistas ingleses apresentaram ontem
ao mundo sua nova criação. Segundo os
voluntários, o jogo imaginário é idêntico ao real.
No entanto, nem todo mundo gostou. Um dos
voluntários se irritou ao ser substituído, e outro
foi expulso por reclamar com o juiz. Ao sair de
campo, ele disse que o jogo estimulava a
violência e punia a técnica refinada.
SEQUÊNCIA 17b - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
Locutor
Prossegue o seqüestro do cineasta Caio Barroso.
Os seqüestradores entraram em contato com a
família, onde apontaram suas principais exigências,
entre as quais a leitura em rede nacional do seu
manifesto, uma apologia à ação criminosa
cometida. Em nome do respeito à vida e à obra de
um homem que tanto contribuiu ao país, inclusive
com sua indicação ao prêmio máximo mundial da
indústria cinematográfica, a emissora concordou
em se submeter às degradantes exigências dos
criminosos, para evitar um mal maior. Senhoras e
senhores, peço a sua atenção para o fato de que o
texto que lerei não é de responsabilidade da
emissora, nem tampouco conta com a sua
concordância... (ele começa a ler uma folha de
papel em suas mãos)
À sociedade brasileira: Estamos inaugurando o
programa de “Resgate do Cinema Brasileiro”.
Trata-se de uma ação guerrilheira em busca do
nosso espaço de expressão. Iremos sequestrar
importantes nomes do audiovisual rico e burguês, e
com o dinheiro que nos render esta operação de
risco investiremos em projetos de real interesse do
povo , investiremos em nossas idéias, buscas e
dúvidas, em nome da revolução. Nunca
aceitaremos a morosidade das idéias burguesas, e
não nos interessa uma sociedade que se crê
perfeita, senão para subvertê-la. Nossa revolução
não busca um fim em si, o fundamento é o respeito
à transformação constante. A moral burguesa se
dobrará ante a evidência de que o medo e a inércia
serão seus carrascos finais. Nós queremos uma
nova sociedade, nós queremos a aclimatação, a
transformação constante. Senhoras e senhores,
saiam dos seus lares! Nós queremos a vida, a
pulsação. Abaixo os falsos e enganosos prêmios.
Não queremos estátuas marmóreas, nós queremos a
malemolência, nós queremos gritos vivos, nós
temos que saber nos guiar pelo fluxo do Rio em
que vivemos.
Nós estamos iniciando o projeto de Resgate do
cinema brasileiro, onde queremos recuperar a
liberdade de expressão solidário-coletiva, uma
experiência em busca de saídas para os labirintos
fechados que querem nos cercar. Nosso veículo de
comunicação é o audiovisual, e para tal precisamos
de recursos, mínimos. Tê-los é o motivo imediato
da ação radical. Mas nós somos apenas um grão,
apenas o princípio de neve que começa a descer o
morro.
Companheiros, nosso programa começou
com o rapto de um famoso e medíocre diretor de
cinema. A partir do que arrecadarmos com a
operação, vamos iniciar as filmagens de nossos
projetos...
SEQUÊNCIA 18 – CENTRO DA CIDADE - INT. DIA
Um afiador de facas nos conta como seria seu filme enquanto atende uma enfermeira.
SEQUÊNCIA 19 - QUARTO DE "MATADOURO" - INT. DIA
A enfermeira, uma loura de provocar maremotos, está transando furiosamente com
um sujeito. De repente, ela pega uma faca e capa o cara. A louca pega o membro
ensanguentado pelas bordas do preservativo e caminha para fora do quarto.
SEQUÊNCIA 20 - COZINHA - INT. DIA
A loura se dirige a um moedor de carne manual e posiciona o membro na moenda. O
infeliz ainda tenta impedir.
Infeliz
(em inglês, ele é gringo) No! Don't do it! Not the
head! Damn, give it to me! Fuckin' bitch!
A loura, impiedosa, joga o membro do cara no moedor e trata de rodar
ensandecidamente a manivela do aparelho. O Infeliz, desesperado, coloca as mãos em concha
e tenta pegar os restos de sua carne moída.
SEQUÊNCIA 21 - HOSPITAL - INT. DIA
O sujeito vai falar ao médico de plantão, ainda com as mãos em concha cheias da sua
carne.
Infeliz
Please, Doc, say we can reimplate...
O médico olha impassível.
Infeliz
Please, Doc, what shall I do? What can you do
for me?
Médico
Kibe.
Bloco 4
SEQUÊNCIA 22 - METRÓPOLE - EXT. DIA
O Fugitivo sempre a correr, agora ele está na cidade. Ele corre por ruas desertas e
outras cheias de gente (numa delas há uma mulher nua que passeia sem ser incomodada),
apressado atravessa os sinais por entre os carros, passando por temíveis avenidas e enfiandose por uma multidão, são os fiéis que se aglomeram para assistir à missa papal.
SEQUÊNCIA 23 - ESTÚDIO - INT. DIA
Volta tela preta. O grupo ainda está sob blecaute.
Fernando
Escuta, cara, acende logo essa luz...
Abreu
Calma aí... agora que a parada tá pronta...
Guilherme
É, agora é religioso...
Fernando
Então vai logo, vai logo...
Abreu
Beleza... dá aí o isqueiro...
(Acende-se um baseado.)
Guilherme
Agora é minha vez de escolher o som...(entra
uma música)
Samanta
Imagina só... tá rolando essa situação, aí chega o
gorila... tem que ser comédia...
Fernando
Aí, esquece esse gorila... (começa a rir)
Samanta
Quê isso... gorila é um bicho que já fez o
cinema faturar horrores... esse gorila vai carregar
o filme nas costas!...
André
É muita responsabilidade prum gorila...
Samanta
E quem disse que vai ser um gorila de verdade?
Vai ser uma mulher vestida de gorila...
Fernando
Uma mulher gorila ?
Samanta
Não!...
Marcinho
Pô, gente, peraí... ó só, ninguém aqui quer
encarar um gorila, quer?... pô, então mata esse
bicho, gente...
Samanta
Beleza, o gorila morreu fugindo do zoológico... a
roteirista até quis que ele aparecesse, mas a
produção vetou...
SEQUÊNCIA 24 - BAR - INT. DIA
O ovo ainda frita, está ficando com uma cara bacana.
SEQUÊNCIA 25 - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
Não é sensacionalismo, apenas a realidade do nosso tempo.
Apresentadora
Descoberta a farsa. Impostor engana imprensa e
se apresenta como escritor consagrado. (Vê-se
em câmera lenta imagens do impostor durante a
entrevista) Depois de dar uma entrevista
fingindo ser Dalton Trevisan, o criminoso
agrediu a nossa equipe de reportagem, fugindo
logo em seguida. O celerado continua foragido,
mas já foi localizado pela polícia. Vamos agora
às ruas, onde nossa equipe está acompanhando
toda a operação.
SEQUÊNCIA 25A - INTERIOR DE AUTÓMÓVEL, AVENIDA - EXT.DIA
Dentro do carro de polícia, a câmera nos aponta outro carro, ambos numa avenida de
alta velocidade.
Repórter
A perseguição parece prestes a acabar. Dentro
deste carro azul que vocês estão vendo está o
impostor, que fugiu ao cerco armado na saída da
rodoviária. Mas agora não há para onde ir. (o tal
carro é interceptado. Ao parar, vemos nele um
senhor em tudo diferente do outro, mas que na
verdade é o próprio, disfarçado) Vejamos então,
vamos tentar saber quem ele é de fato... não...
(desapontada) não é ele... ele escapou, este é o
carro errado... breve voltaremos com novas
informações...
SEQUÊNCIA 26 - LOJA DE VENDA DE SANTOS - INT. DIA
Documentário com uma funcionária de uma loja especializada em imagens de santos.
Ela responde sobre o que gostaria de assistir no cinema enquanto vende uma imagem de
Nossa Senhora para Sueli, a professora da sequência 13.
SEQUÊNCIA 27 - APARTAMENTO - INT. DIA
Uma vela é acesa para Nossa Senhora. Sueli reza forte, com as mãos bem juntas. Ao
fundo, Uma menina sombria folheia uma enciclopédia especializada em armas de fogo.
Quando, terminada a oração, Sueli pretende fazer o sinal da cruz, ouve-se som de tiros, o que
a sobressalta. Ela vira-se para a filha, cheia de receios. A menina continua folheando o livro.
Julinha
É tiro de escopeta.
Sueli
É fogo de artifício, Julinha.
Julinha
Fogo de artifício faz "Pá". Tiro de escopeta faz
(fazendo um gesto amplo com os braços) "Pá"!
Sueli
É tempo de festa, filha. Amanhã mamãe vai te
levar pra dançar quadrilha lá na casa da tia
Angélica...
(Julinha parece não gostar da idéia. Sueli
acende uma vela na outra.)
Sueli
Vamos comer aquele salsichão, tomar aquele
refrigerante...
Novamente escutamos uma sequência de tiros. O último é um estampido seco e mais
distante. Sueli quase tem um troço. Olha novamente para a filha, que aponta para a
enciclopédia.
Julinha
Treis oitão. Esse é treis oitão!
(Sueli finalmente percebe o que a filha está
lendo.)
Sueli
Eu já não disse prá você não mexer nas coisas
de seu pai? Me dá isso aqui!
(Sueli pega o livro, coloca-o numa estante,
trancando-a em seguida.)
Sueli
Mamãe vai ter que sair rapidinho e já volta, viu?
(Pega da mesma estante um livro de conto de
fadas.)
Sueli
Toma prá você se distrair enquanto isso, tá bom?
(A menina olha desinteressada para o livro.
Alguns tiros pipocam ao fundo. Sueli pega uma
bolsa em cima do sofá e sai de casa apreensiva.)
Sueli
Mamãe já volta, viu?
Tranca a porta com duas voltas na chave. Depois que sua mãe sai, Julinha arrasta
uma cadeirinha até a porta. Levanta-se até a altura do observador. Sueli atravessa a rua a
largas passadas. Quando dobra a esquina, a menina salta da cadeira correndo e vai até a
estante. Em cima dela, ao lado de uma foto de um homem fardado, tem um jarro. Julinha
pega o jarro de maneira perigosa, colocando-o em cima do sofá. Enfia o seu braço direito
dentro dele. Tira dali uma arma lustrosa. Com a dita nas mãos, Julinha começa a apontar
para tudo que vê. Termina apontando para a Santa cercada de velas. Nesse momento, a
campainha toca. Julinha toma um susto, deixando a arma cair no chão. Um tiro escapole.
Ela fica com os ouvidos comprimidos nas mãos e com os olhos fechados. Parece sorrir. A
campainha toca novamente. A menina vai até o observador. Do outro lado vemos uma velha
mendiga.
Velha
Com licença, meu anjo... Será que cê não tem
uma comida prá me arranjar não, meu anjo?
Julinha
Não sei...
Velha
Ah, meu Deus! Nenhuma sobra, meu anjo? Não
faz isso com essa pobre velha que veio de tão
longe... mata minha fome, meu anjo.
Julinha vai até a cozinha. Enche um prato com feijão. Despeja um pote de chumbinho
e o mistura com a semente refogada. Em seguida, coloca arroz e a sobrecoxa da galinha
ensopada, mas percebe o tamanho do pedaço. Retira a sobrecoxa, coloca uma asa de galinha
e pronto. Dirige-se à porta. Estranhamente, ela está aberta. Julinha empurra para fora, com
a ponta dos dedos, o prato com a comida. Depois sobe em cima do banquinho olhando pelo
observador .
Velha
A casa tá mudada. Tem um quarto a mais...
(A menina se assusta. A velha está dentro da
casa.)
Velha
(mostrando um molho de chaves) Eu tenho a
chave da casa, ó.... Entrei sem pedir licença,
você se importa?
(A menina balança negativamente a cabeça. A
velha vem se aproximando da menina.)
Velha
Há muito tempo... Há muito tempo essa casa foi
minha, sabia? Eu era bonita que nem você
assim...
(A velha chuta algo que rola pela sala - é a
arma. A menina e a velha olham-se. A velha
pega a arma.)
Velha
Sempre passei por aqui, sabe? Falava comigo:
Que é que tem entrar e dar uma olhada prá
lembrar, só prá lembrar? Deixar tudo no lugar
direitinho, não roubar nada... Que é que tem?
Hoje peguei coragem e entrei. Você se importa,
meu anjo? Eu tinha a chave e entrei. (A velha
olha em volta) A sala não mudou muito. Olha,
aqui ficava uma cristaleira de jacarandá, do
tempos dos bandeirantes. Foi a primeira coisa
que mamãe vendeu. Depois vendeu tudo,
tudinho. Ah, o piano. Onde está essa estante
tinha um piano.
A velha pega um banquinho, deposita a arma em cima da estante, apruma-se
majestosa, estira os dedos em cima da madeira e começa a tocar um piano imaginário.
Julinha escuta aquela música. Quando termina de tocá-la, a velha suspira. Olha para a
menina.
Velha
Vem cá, vem.
(A menina vai e senta no colo da velha. Fica
olhando para a arma em cima da estante.)
Velha
Se você quiser, meu anjo, eu te levo para um
lugar maravilhoso, de onde sai todas as coisas
desse mundo e de outros mundos esquecidos.
Um lugar cheio de surpresas... Você quer?
Julinha
Lá tem fogos de artifício?
Velha
Lá tem tudo que você imagina, meu anjo.
(A velha tira uma venda suja e tapa os olhos de
Julinha.)
Velha
Mas você não pode ver o caminho.
(A velha sai da casa, levando a menina com os
olhos vendados.)
Bloco 5
SEQUÊNCIA 28 - ARREDORES DO BAR - EXT. DIA
O pobre diabo continua a correr pelas ruas, mas agora parece que toma um rumo.
Após algumas esquinas, eis que o Fugitivo está chegando ao Bar.
SEQUÊNCIA 29 - ESTÚDIO - INT. DIA
Marcinho
É isso... o grande lance era o fugitivo chegar
aqui... aí,no escuro, a gente não ia entender nada
do que tá acontecendo... e ele desesperado,
precisando de ajuda...
Abreu
E aí, quê que rolava?...
Marcinho
Bem, a gente só ia sacar que ele tava aqui
quando a luz acendesse... só então que a gente se
dava conta da presença dele... aí ...
André
E depois?...
Marcinho
É,... aí tem que rolar um conflito...
Renata
Duvido que você tivesse valentia pra encarar
esse teu personagem...
Marcinho
É, né... sei lá... ah, claro que encarava...quer
dizer, num sei... (dá uma risada)
(rápido silêncio)
Fernando
Aí, na boa, eu vou acender a luz...
(acende, e lá está o Fugitivo)
Marcinho
Quê isso...
Fugitivo
Saudações... a quem nunca viu informo- sou
personagem... um aqui me imaginou...dele
estava atrás e agora achei...
Guilherme
(Para Marcinho) Espera aí, cara... Esse é o tal
fugitivo?
Fugitivo
Sem tempo de assentar vida...
Fernando
Putaquepariu...
Guilherme
Escuta, quê que cê tá fazendo aqui, bicho?...
Fugitivo
Cara, olha só a situação... a memória que eu
tenho é de fugir. Sabe duma coisa? nunca vi o
tal sujeito... nem sei como é. Capaz de apostar
que ele também nem idéia que eu sou... ele me
caça, cara - de mim só o cheiro... Merda, né?
Marcinho
Cê num respondeu à pergunta. Quê que cê tá
fazendo aqui, cara ?
Fugitivo
Você que criou, chapa. A pergunta é minha. Mas
te garanto - não dá mais essa vida fugidia...
(divaga, sonhador) Ser feliz pra sempre...
Samanta
Pô, tenta ser mais claro...
Abreu
Qual é o problema, bicho?...
Fugitivo
Será que vocês se orgulham? Eu quero paz ...
parem de me perseguir...
André
Tô achando burrice esse negócio de ficar dando
ouvido a personagem... vai ficar esquisito pra
cacete...
Fernando
É, pô, vamo pará com isso, vam’bora daqui...
Abreu
Peraí...
(O fugitivo caminha na direção de Marcinho.
Pára e fala a ele.)
Fugitivo
Chega!... um fim...
SEQUÊNCIA 30 - BAR - INT. DIA
Espera-se que o português decida tirar esse ovo logo daí. Ele já está passando do
ponto, isso faz mal para a taxa de colesterol.
SEQUÊNCIA 31 - ESTÚDIO DE TELEJORNAL - INT. DIA
A esta altura do campeonato o mundo já está em polvorosa.
Apresentadora
Pesquisa confirma : mulheres transmitem maior
credibilidade. Opinião pública acredita que não
se pode confiar nos homens.
Apresentador
(ameaçador) Ah, minha nega, não fala um
negócio destes...
Num movimento brusco, ele salta da cadeira e imobiliza a colega, ameaçando-a com
uma navalha no pescoço, enquanto a outra foge assustada.
SEQUÊNCIA 32 - ATELIER DE TATUAGEM - INT. DIA
Documentário de um tatuador. Ele conta como seria o filme que ele faria enquanto faz
uma tatuagem no seio de uma garçonete.
SEQUÊNCIA 33 - FUSQUINHA - INT. DIA
A garçonete tatuada olha com olhar suplicante para o homem a tatuou na sequência
documental. Ele dirige um fusquinha, espremido entre a poltrona e o volante.
Garçonete
Ah, Rudinho, sem carro não dava para sair; com
quem eu vou largar o moleque?
Rude
Com o vendedor de merda! Ele não é o pai desse
mongolóide? Eu é que não podia ter ficado sem
a Harley por causa de um (segurando o queixo
dela) filhinho da putinha...!
O garoto, Claudinho, afundado no banco de trás do fusquinha, brinca de abrir e
fechar o cinzeiro abarrotado de guimbas. Rude passa uma trouxinha para Deise
Rude
Faz alguma coisa de útil, ô Deise. Aperta um
beise...
(Ele tenta passar a marcha. Está irritadíssimo.)
Rude
Olha aí, essa merda não entra a terceira!
Rude se abaixa para lutar contra o câmbio. O garotinho para de mexer no cinzeiro e
fica imóvel, quase dormindo, indiferente. Um solavanco faz escorrer a meleca pendurada em
seu nariz.
SEQUÊNCIA 33A - ESTRADA - EXT. DIA
Marcão, escondido na moita, distraído com o canudo na mão, olha tarde demais em
direção ao meio da estrada, por onde o fusquinha passa correndo.
Marcão
(exclamando baixinho) - Puta que o pariu!
SEQUÊNCIA 33B - FUSQUINHA - INT. DIA
Dentro do carro, Deise cata pedacinhos de erva espalhados pelo chão.
Deise
Puta que pariu, que quebra-mola enorme!
Derrubou tudo!
Rude
Tu é muito burra mermo, hein mulher!? Tinha
que deixar cair?
Claudinho levanta e olha através do vidro traseiro.
SEQUÊNCIA 33C - ESTRADA - EXT. DIA
Do ponto de vista do “quebra-mola”, o fusquinha se afasta com Claudinho olhando,
na verdade, o corpo atropelado de Joel. Marcão está correndo atrás do fusca, à distância.
Bloco 6
SEQUÊNCIA 34 - BAR - INT. DIA
Sambistas afinam seus instrumentos em meio à movimentação de pessoas bem
arrumadas. Há uma quantidade razoável de mesas dispostas pelo local. Pessoas bebem
cerveja. Uma mulher nua bebe sem ser notada. O fusca chega na rua e larga o moleque,
partindo em seguida. O moleque entra no bar. Em seguida chega o caçador, que pede um
conhaque.
SEQUÊNCIA 35 - ESTÚDIO - INT. DIA
Marcinho
Era isso que tava faltando, o caçador... ‘the
hunter’...
Guilherme
E agora, quê que acontece?...
Samanta
Tinha que rolar um duelo final...
Fugitivo
Pouca vergonha... olha pra mim, cara, eu não
gosto de você...
Fernando
Porra, que personagem chato...
Fugitivo
De você também tenho raiva, mas ele detesto. Só
faço é fugir... nem sei se tenho família... Tenho,
cara?... chega, cara, resolve essa estória!...
Guilherme
Quê isso, bicho... Pra quê essa agressividade?...
André
Aí, na boa, vamo esquecer esse personagem...
acho mais jogo a gente viajar na estória da
vampira...
Samanta
Putzgrila, não me inventa uma figura dessas
agora, pelo amor de Deus...
Fugitivo
Acha que tô sozinho? Errou, cara...
(Chega na borda do quadro e puxa pelo braço
Marcão, o Bandido, que é arrastado sob
protesto.)
Bandido
Peraí, mermão, me larga!...peraí!...
Fernando
Quê isso, que absurdo...
Fugitivo
Olha, cara. São inadequados autores.
Irresponsáveis e incapazes... Olha a minha sina:
personagem de maus criadores. Surpreende
como são burros...
Bandido
Pára com isso mermão, quê isso, me larga cara,
eu vô te dá um tiro, eu vô te matá, porra.
Fugitivo
Ouve só, cara. Esse besta é marginal. Ladrão e
chinchero. E viu um camarada ser atropelado. E
agora, cara?
Bandido
Quê isso mermão, que porra é essa de saí
contando as parada por aí, porra, isso não é
problema teu. Caralho, já tô fudido mesmo,
porra. Vô tê que enterrá o cara, depois vô lá falá
com a mulher do cara, sacou, é melhor que
polícia. Cara, eu tô fudido, mermão, o cara
morreu e agora eu tô sem um puto sem nem sabê
quê que eu faço, tô na merda, cara.
Fugitivo
(para os integrantes da mesa) É tudo não. Tem
mais.
(Ele vai novamente à borda do quadro e puxa o
Infeliz Capado para a cena.)
Infeliz
(com sotaque carregado e a mão em concha
cheia de carne) Vocês precisar me ajudar, por
favor. (vemos o Fugitivo comendo um quibe com
um sorriso nos lábios) Eu não poder viver
assim... Better not to live...
Fugitivo
(pro André) Pra quê criar isso, cara?...
André
Mas num era isso que eu queria fazer... eu queria
filmar a história da vampira... esse negócio de
cortar pinto é maluquice de produtor...
Fernando
(Pro Fugitivo) Aí, bicho, na boa, pára com isso...
Bandido
Escuta, cumpádi, me livra dessa, eu tô fudido,
quê que eu faço com o corpo, cara, me ajuda...
Infeliz
Please, mister, I beg you, please help me...
Marcinho
Olha, cara, eu acho que era melhor tirar esse
gringo daqui. Ninguém assumiu a autoria dele, o
cara só vai deixar tudo mais confuso...
Fugitivo
Tem o último. Desse não esqueço.
(Ele se volta e puxa pelo braço o Moleque, que
estava fora de quadro. É Claudinho, o filho do
vendedor de merda.)
Abreu
Num acredito...
Fernando
Quem é esse?...
Fugitivo
Diz , moleque, a ocupação social do pai...(não
há resposta) Fala. O que o velho faz da vida...
Moleque
(murmura) Meu pai vende merda...
Fugitivo
(pro Abreu ) Escutou, cara?... Não sabia disso?
Você inventou. Olha pro pirralho, cara. Pensa
que acha bacana? (pro moleque) Sabe tua mãe?
te largou saiu com um cara que nem conhece.
Pra dar e cheirar pra caralho. Quer saber, rapaz?
Tua mãe é depravada, gosta de coisas que pensar
enoja. Saber mais?... nem ela sabe se é mesmo
filho do camelô de merda.... E aí, papudo? Teu
pai, nem tua mãe sabe quem... (aponta pro
Abreu ) Esse cara inventou essa estória toda,
sabia? Ele que inventou... Gosta, moleque?... Diz
que gosta dele... fala gosto, fala... (o moleque
fica calado, encarando o Abreu ) fala, porra!...
(o moleque continua calado)
Marcinho
Chega, pára com isso...
Fugitivo
Pensa que manda, cara?
Marcinho
Pô, eu que te criei...
Fugitivo
Agora é cinza. Mas é justo, cena mais
deprimente e medíocre nem conheço. Partir,
logo.
André
Se é por falta de adeus...
Fugitivo
Vocês vêm junto. Ao bar lá fora.
Guilherme
É ?... beleza... Aí, galera, vamos chegar ali na
entrada do bar... que os personagens tão saindo
fora...
(Todos vão saindo.)
SEQUÊNCIA 36 - BAR - INT. DIA
O ovo acaba de ser frito.
Apresentador 2
(em off) Em instantes: as imagens de violência
sexual e morte no telejornal.
A televisão é desligada, e o alimento é levado para um dos músicos.
SEQUÊNCIA 37 - BAR - INT. DIA
Os músicos contam como seria o filme que fariam. Ao fundo o caçador sai para ir ao
toalete.
SEQUÊNCIA 38 - BAR - INT. DIA
Marcinho vai ao balcão do bar para pagar as cervejas. A velha mendiga chega com
Julinha, tira-lhe a venda e a deixa sentada numa cadeira, onde a menina ficará até o fim,
deslumbrada. Feito isso, a velha vai pedir esmolas, em silêncio, cutucando e incomodando a
todos. O Fugitivo puxa Marcinho pelo braço, e travam então o seguinte diálogo:
Fugitivo
(para Marcinho, que está entregando os cascos
de cerveja) Chega. Nem eu suporto essa velha
aqui, cara. Já cansou...
Fernando
Bicho, você é muito nervoso...
Marcinho
(para Fernando) Esquece isso...
Fugitivo
( para Marcinho) Tem medo, cara? Quem dera eu
não existisse? Não gosta de mim, cara? Quer saber?
Acho bom. Te detesto, cara, quero existir. Vida
normal, ser direito. E você pra isso? Nadinha de
nada, desgraçado...
SEQUÊNCIA 39 - BANHEIRO - INT. DIA
O caçador está no banheiro. Toca um bolero enquanto ele urina.
SEQUÊNCIA 40 - BAR - INT. DIA
Fugitivo
(para Marcinho) Língua do mato, cara, língua
do morro... Ainda não acabou?
(O caçador sai do banheiro de facão em punho.
Marcinho vê.)
Marcinho
Finda-se a vida e acaba a estória.
O caçador mata Samanta e vai pra cima de André. O Gringo Infeliz, o Bandido, o
Moleque e a Mendiga sentam-se para assistir ao desfecho, ao lado de Julinha, enquanto
comem pipoca doce. Ela devora um chicabom. Sentam-se também Fulano e Beltrana, ainda
aos beijos. O Fugitivo se mantém de pé, nervos à flor da pele, tentando manter-se solene.
Os músicos e demais frequentadores do bar, distantes da cena, parecem se tornar alheios
ao que se passa.
Caçador
Reage!
André
(ele sinaliza negativamente com a cabeça) É
melhor eu sair de cena...
(O caçador mata André raivosamente. Ele parte
na direção de Renata, atirando cadeiras para o
alto.)
Renata
Gente, eu falei que era contra tanta violência...
Caçador
( Após matar Renata) Reajam! (Ele dá pontapés
nas mesas) Façam alguma coisa!...
Fernando
(Para Guilherme) Vamos acabar com essa porra.
Tem que mostrar quem é que manda aqui.(o
caçador mata Abreu) Vamo detonar esses
filodaputa. Vai ser o granfinal...
Guilherme
A reação faz dos autores grandes. A luta
enobrece e engrandece o espírito. Agora é partir
pra cima, que é mais bonito morrer. Chega de
chupar essa xepa xexelenta e azeda...
Fernando
É isso aí, porra!
(Os dois partem com vontade mas sem armas
para cima do caçador, que os mata sem maiores
problemas.)
Marcinho
É isso mesmo que tem que ser. É hora de lavar a
alma... Um banho de sangue purifica os
melhores enredos e os maiores autores. E o
caçador cumpre o seu destino no fim...
(O caçador mata Marcinho e parte para cima
do Fugitivo. Ele aponta para o casal.)
Fugitivo
Eles estavam lá...
O caçador mata o casal sem remorsos, e volta a caminhar na direção do fugitivo. Os
demais personagens então se levantam de suas cadeiras para ver a cena. O Caçador pára
diante do Fugitivo e levanta seu facão. O Fugitivo se ajoelha, num tempo ritualístico. Os
Personagens fazem um semi-círculo em torno da cena. O Caçador enfia o facão no peito do
Fugitivo, e faz um corte em forma de cruz. O Fugitivo se ergue, tira do peito o facão e cai,
morto. O Caçador então vai até o balcão.
Caçador
Mais um conhaque, por favor... (põe o dinheiro
na mesa)
Ao receber a dose, vira-se, olha para os mortos e recebe o cumprimento do
Português, que é quem o serve:
Português
Autor bom é autor morto!...
O Caçador bebe o conhaque e sai do bar. Após um instante de silêncio, os músicos
começam a tocar. Aos poucos, os personagens começam a dançar por entre os corpos dos
autores. Vê-se, então, uma ambulância chegar e seus tripulantes recolherem os corpos.
SEQUÊNCIA 41 - BAR - EXT. DIA
Começam os letreiros. Alternadamente, há o último depoimento, do motorista da
ambulância, depoimento este que será o único não-documental, já previamente planejado.
Vê-se ainda as pessoas a dançar. O motorista dá um depoimento usando um discurso típico
de um crítico, notando que o filme tem muitos personagens, um monte de estórias e piadas,
explosões, perseguições, cinema-verdade, mulheres nuas, música. Entretanto, ele detestou a
idéia do filme e acha que ele é mal-costurado, e seu comentário é agressivo, incômodo,
desagradável. Ele parte com a ambulância, mas sua voz se mantém durante um longo tempo
sem perder o volume, até terminarem os letreiros.
Epílogo
SEQUÊNCIA 42 - CEMITÉRIO DO MARUÍ - EXT. DIA
O enterro está se realizando. Não há muitas pessoas, mas as que lá foram vestem luto
de véu e terno. Repentinamente, o presumido morto destrói a tampa do caixão que lhe
aprisiona. Surge então de dentro o Fugitivo, que começa a andar sobre as lápides, feliz e
contente, sob o olhar amedrontado daqueles que acompanhavam o funeral. Ele segue até um
ponto em que breca em pânico, assustado por ver o Caçador a esperá-lo. Vemos então o
desesperado mais uma vez voltar a correr, enquanto o Caçador segue seu rastro. Termina o
filme.