UM MUNDO EM MENOR: a criação em provérbios, cantos e contos
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UM MUNDO EM MENOR: a criação em provérbios, cantos e contos
UM MUNDO EM MENOR: a criação em provérbios, cantos e contos Ana Paula Amainde Sousa Guimaraes Universidad de Lisboa Qual é a diferença entre a pulga e o elefante? O elefante tem pulgas e a pulga não tem elefantes Rita Costa, 10 anos 16 de Janeiro de 2000 O trabalho ‘in progress’1 sobre a representação dos animais de capoeira (a significativamente chamada criação) em textos da complexa tradição popular portuguesa é antecedido por dois painéis que, a seu modo, encenam a relação menor-maior: • a capacidade de resistência do menor face ao maior • a forma como a miniatura representa o mundo de que faz parte Observar-se-á o contraste entre o modo de vivenciar essa relação menor/maior (capoeira/mundo dos humanos) no vasto campo da tradição popular e naquilo que dessa tradição contemporaneamente se retém (um número muito reduzido de imagens estereotipadas). Curiosamente, a formação da criança parece ainda hoje apoiar-se em modelos do mundo do galinheiro como exemplares, se não da criação, pelo menos, da educação. Chamámos a este ensaio “Um mundo em menor: a criação em provérbios, cantos e contos”. Numa versão mais provocadora: “Galinhas à portuguesa: nome, sexo, identidade? jogo? prato? destino?” PRIMEIRO PAINEL: ENCONTRO COM UMA COBRA, UMA SAPA E UMA ERVA DANINHA Entram em cena. Vêm pela mão da escritora brasileira Ana Maria Machado e hão-de servir para ‘inaugurar’ este ensaio. A Jararaca, a Perereca e a Tiririca2: a primeira, uma cobra, “venenosa”, “traiçoeira e perigosa”; a segunda, uma “sapa sapeca”, “moleca”; a terceira, uma “graminha rasteira, miúda e muito fuleira”, dessas “que todo o mundo xingava e arrancava do jardim, num trabalho sem fim. E que nascia sempre de novo. Feito coisa que nunca morre na boca do povo.” Eram três habitantes de um mesmo lugar: “um terreno cheio de mato”, que “não era bem na cidade nem era ainda na roça, era quase na metade, entre uma casa e uma palhoça”. E lá viviam as três, há mais de um ano e um mês. Cada uma sem se meter com a outra. Como quem chega, acha bom e fica. A Jararaca, a Perereca e a Tiririca. Mas aí chegaram os outros. E os outros eram os homens. Queriam a terra e o espaço. 1 Este trabalho constitui um vasto (mas ainda não definitivo) desenvolvimento de dois textos: “A criação no mundo—galos, galinhas, frangos e pintos celebrando os Bonecos de Santo Aleixo” publicado em Adagio, Revista do Centro Dramático de Évora, Janeiro-Setembro de 1999; “Da criação para a cidadania—provérbios, cantos e contos na capoeira”, Ler Educação-Revista da Escola Superior de Educação de Beja (a sair em Junho de 2000). 2 Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 1 --Vamos limpar este terreno! Sem deixar nem um quintal pequeno. A Jararaca, mais forte, logo declarou luta de morte. Não esperou nada. Deu logo um bote num rápido pinote. --Uma cobra! Pega! Acaba! Mata! Bate-que-bate. Vupt-vupt! Pegaram. Acabaram. Mataram. Quando viu isso, a Perereca resolveu sair. E explicou para a Tiririca: --Não pense que eu estou fugindo e deixando você sozinha. Mas é que alguém precisa estudar bem o inimigo. Saber seus pontos fracos. Escolher o momento de atacar. Aprender a brigar. Para ter chance de ganhar. E lá se foi pulando. Do terreno para a estrada. Da estrada para o mato. Andou por aqui e por ali. Pelo Paraná e pelo Piauí. Pelo Oiapoque e pelo Chuí. Até que encontrou um sapo que lhe disse: --Para bem combater é preciso conhecer o terreno. E escolher onde somos fortes. Para nós, a beira d’água. E ela saiu pelas águas. Andou, pulou e nadou. Por riachos e regatos. Brejos e pântanos. Ribeirões e fontes. Cachoeiras e cascatas. Igapós e igarapés—isso quando foi chegando no paraíso dos rios e das águas, a Amazônia. E foi lá que aconteceu uma coisa que mudou sua vida. A Perereca viu a Pororoca. E nunca mais conseguiu parar de ver. Fascinada, deslumbrada, embasbacada, com aquela água toda tão movimentada e barulhenta, tão cheia de vida e espumenta. Acho que está lá até hoje, de boca aberta, babando. Do terreno e do inimigo nunca se lembrando. A Tiririca ficou. Não era de briga e não brigou. Não era de medo e não se mudou. Não era de entrega e não se entregou. Só ficou. Mas ficou para valer. Viu o trator chegar e partir. A escavadeira trabalhar e sumir. A construção começar e subir. Dali não saiu. E quanto mais pensavam que arrancavam a Tiririca, mais ela deixava uma muda, uma semente, um pedaço de raiz na terra. Era seu jeito de ganhar aquela guerra. E ganhou. O terreno virou prédio. Muito cimento e pouco jardim, que remédio? A pequena estrada que era de barro agora é rua asfaltada, toda entupida de carro. Mas em cada canteiro, cada jardim, cada praça, cada vaso, cada pouquinho de terra, a Tiririca ainda vence a guerra. Sempre brota novamente. Feito coisa que nunca some da lembrança da gente. Serve esta história de prólogo ao que nos propomos desenvolver e, justamente, porque enuncia um princípio a que gosto de chamar “O princípio da Tiririca”, aquele que estabelece a vitória do mais pequeno, do mais rasteiro sobre o mais portentoso. É que quando falamos de literatura tradicional/popular/oral sempre ocorre pensá-la como essa erva (daninha?) que sobrevive porque não se opõe nem agride mas porque discretamente se insinua vencendo a guerra por meios que não os mais conflituosos (os que a Jarareca utilizou e que de nada lhe serviram), que não os mais arredios (os que levaram a Perereca a afastar-se, a demarcar-se, a apaixonar-se e a esquecer uma causa que era de todos). O princípio da Tiririca, da sobrevivência do mais frágil, foi o que presidiu à sobrevivência da cor no vitral ao passo que desapareceu a cor na pedra das catedrais? Por ser menor é que esta poesia popular resiste? Por se manifestar em formas tão simples, óbvias e quase banais é que esconde segredos, ocultações dos tempos e dos amores? Lembro o caso do “Róró” transmontano em que uma mulher—pela melodia-- embala o filho e... pela letra da canção avisa o amante da presença do marido em casa. Quem repara no que está sendo transmitido pela canção não é o marido, seguro do que possui: uma mulher, um filho (será?), uma casa (bem) governada. Quem repara no que está sendo dito é quem está numa postura de verticalidade, à porta, tentando captar a mensagem que urge: o amante. É ele quem atende à mensagem como o estudioso deve atender à tradição: pondo desde o começo a hipótese de que pode haver sob a capa da banalidade, qualquer coisa de muito especial, um caso interessante que se ganharia em conhecer. Sabe que toda a significação advém do contexto e não apenas do binómio significante/significado. Não lhe basta ouvir a canção, interessa-lhe entrar por ela dentro, escutar, investigar, ler por inteiro-- num acto de amor por um texto como por um corpo. Seguindo a canção, poderíamos avançar: estar-fora não impede o amante de estar-pordentro. Em última instância, no texto, é ele e não o marido quem com ela faz corpo. 2 Mais ou menos escondido pela porta, mais ou menos coberto pela capa, ele pode descobrir, tirar a capa e revelar (mostrar). Mais ou menos inteligente, não vendo (porque a porta há-de ser opaca, porque a capa separa do resto do mundo), o amante é quem vê-- porque ama e precisa de uma resposta. Assim o analista da tradição: o folclorista, o etnólogo, o homem da literatura. Cabe-lhe ficar de pé e assim ler: vigilante. O óbvio pode esconder segredos. E o primeiro deles é ser capaz de dar pela transparência. Porque o mais dificil de ver é a lente através da qual se vê, ocorre serem os textos tradicionais/populares considerados menores, marginais, infra-, para- ou subliteratura. Mas não foi através desses mesmos textos que a primeira poesia nos chegou? Como olhar aquela palavra através da qual se olha o mundo e as outras palavras? Porque o mais difícil de ver é o que salta à vista, estes textos com que fomos criados exigem que neles se repare para reparar a falta de nunca terem sido vistos e para poder devolverlhes um justo lugar na História. A amantes (com visão ética) mais do que a maridos (com visão émica) se deve o registo desta e de outras canções... Foi, de resto, assim, que estrangeiros como Michel Giacometti e Anne Caufriez, deram pelo conteúdo deste Róró que a muitos (portugueses) terá passado despercebido3. Recordo ainda as (sábias) palavras de Michel Riffaterre quando, a propósito de banalidades, lhe pedi que me falasse sobre o ‘cliché’. Respondeu-me: O ‘cliché’ é uma garrafa de dinamite. Quando se lhe toca, explode logo! E termino esta reflexão em jeito de prólogo com um pequeno extracto de Os Símbolos da Ciência Sagrada de René Guénon quando reflecte sobre as chamadas “tradições populares”, afinal, não de origem popular mas de transmissão ou sobrevivência popular: Quando uma forma tradicional está a ponto de extinguir-se, seus últimos representantes podem muito bem confiar voluntariamente à memória colectiva tudo aquilo que de outro modo se perderia para sempre. Trata-se, em suma, do único meio de salvar o que for possível em certa medida. 4 Convocando Ray Bradbury e o seu Fahrenheit 451, atente-se no seguinte passo de René Guénon: Ao mesmo tempo, a incompreensão natural da massa é uma garantia suficiente para aquele que possuir um carácter esotérico não ser por isso despojado e permanecer apenas como uma espécie de testemunho do passado àqueles que, em outros tempos, forem capazes de compreendê-lo. Ousado será dizer que Ana Maria Machado soube ler na presença da erva daninha em cada vaso, cada xaxim, cada leirinha de terra dos mais altos prédios da cidade um sinal da sua secreta tenacidade, da sua intenção de persistência? E não é que os textos e os objectos mais simples da nossa tradição assim se infiltram pelo nosso quotidiano sem que nos apercebamos da sua invisível presença? Quando olhamos o que a janela nos expõe, referimos inevitavelmente o campo, o prédio, a árvore, a gente para lá do enquadramento da referida janela. Raramente referimos o vidro (mais ou menos baço, sujo, fosco) através do qual vemos o mundo e que, de tão óbvio, deixa ver mas nunca é visto. Tal como os olhos nos conduzem ao mundo sem que os vejamos. Tal como o órgão que é apenas sentido quando dói: 3 Extracto de “A mulher, o amante, o marido e o infante”, Nós de Vozes—Acerca da Tradição Popular Portuguesa. Lisboa, Colibri, (no prelo, a sair em 2000). 4 São Paulo, Editora Pensamento, p.23-24 3 Ninguém sabe o bem que perde Senão depois de perdido, diz a quadra popular. SEGUNDO PAINEL: A BRINCAR? ‘PECKING CHICKENS’ Se levantasse aqui o pano para dar entrada a outro acto, o cenário seria agora o de todo o mundo onde se brinca. De facto, entrarão em breve em cena uns brinquedos constituídos por seres do mundo da capoeira-- afinal, não tinhamos prometido falar de criação?-- fotografados por Gene Prince do R.H. Lowie Museum of Anthropology e pensados por Alan Dundes, folclorista, autor de uma trintena de obras onde analisa os mais diversos aspectos das tradições orais de diversas culturas, professor de antropologia e folclore na Universidade de Califórnia. No genre of folklore is so trivial or so insignificant that it cannot provide important data for the study of worldview. Worldview, the way a people perceives the world and its place in it, permeates all aspects of a given culture, and this is why the pattern of the whole is to be found in that whole’s smallest part5. Não deixaria, há uns anos, de surpreender que um académico como Alan Dundes se dedicasse ao estudo de “Pecking Chickens” (ele que me avisou em tempos enquanto eu escrevia a minha dissertação de doutoramento: “If you quote Rudolf Steiner in your thesis you’re comitting academical suicide!”). Talvez só o subtítulo salve de indignidade o objecto de estudo, galináceos: A Folktoy as a Source for the Study of Worldview. Este artigo figura numa obra com um sugestivo título: Folklore Matters, temas de folclore ou o folclore importa, quer dizer, é importante. Alan Dundes, risonho e turbulento, provoca, desde logo, uma alteração do ponto de vista até porque faz-- metodologicamente-- mais sentido examinar microcosmos e, a partir dessas análises, aceder ao correspondente macrocosmos. If one accepts the hypothesis that microcosms may be isomorphically parallel to macrocosms, then this might encourage folklorists to reconsider one of the oldest recorded genres of folklore: the folk toy. O brinquedo parece ser, por excelência, a “microesfera”6 do mundo adulto, a miniatura, o modelo, a metáfora do mundo em que está inserido. Diz-me com que brincas, dir-te-ei quem és? Quem serás? Alan Dundes propõe, para responder, a análise de galinhas que debicam numa plataforma (de madeira) e que, movidas por um peso, produzem som, um brinquedo que, sendo decerto mais antigo, é referido em 1791 numa lista de brinquedos efectuada por Carl Martin Plümicke durante uma viagem pela Alemanha. Conhecidos um pouco por toda a Europa, América e Ásia, estes que aqui se reproduzem foram recolhidos entre 1970 e 1985, em lojas de brinquedos, de presentes ou 5 “Pecking Chickens: A Folk Toy as a Source for the Study of Worldview”, Folklore Matters (1989). Knoxville, University of Tennessee Press, 1992, p.83. 6 Erik Erikson, “Toys and Reasons, Childhood and Society, 2nd ed. New York, W.W. Norton, 1963, p.221, cit. Alan Dundes, Idem, p. 83. 4 de artesanato7. Dundes considera-os provenientes dos países onde parecem ou assinalam ter sido fabricados: Taiwan, Checoslováquia, Alemanha de leste, Inglaterra, Índia, Itália, Polónia, Espanha, Suécia, União Soviética, USA. Teoricamente todas as galinhas podiam ter sido construídas com a mesma quantidade de comida à disposição. Que trabalho dá pintar pintas (pontos) numa superficíe de madeira? Da mesma forma, a todas as galinhas poderia ter sido atribuída a mesma área de espaço pessoal dentro do qual decorre a procura de alimento. Contudo, conforme veremos, há, de um objecto para outro (e de uma sociedade para outra), diferenças dramáticas no que diz respeito ao acesso de cada um à alimentação e à própria comida em si. I am not suggesting that the toymaker was consciously commenting upon food and space as commodities in his culture. Quite the contrary, it is far more likely that toymakers in a given society construct toys in accordance with unstated worldview premises consonant with the similar worldview principles of their prospective consumers. In effect, these unstated premises are articulated through the medium of the folk toy8. Detenhamo-nos em alguns exemplares que Dundes recolheu usando o método comparativo para a determinação de “oicotypes”9 de grande potencial para a identificação de traços característicos de uma possível identidade nacional. The comparative method is absolutely critical for the delineation of possible oicotypes10. FOTOS assinaladas com 1 Eis o que Dundes observa: • Polónia Uma taça comum—vazia. • Taiwan É impossível que todas as galinhas debiquem ao mesmo tempo na pouca comida à disposição. • Rússia Um vislumbre de comida e pouco espaço pessoal entre as cabeças. • Alemanha de leste Área (turfa) sem comida. 7 Por esta razão, Margarida Morgado prefere chamar-lhes artefactos culturais, eventualmentente utilizados como brinquedos. 8 Idem, p. 87. 9 Alan Dundes fornece dados que historiam e analisam o conceito cunhado por C.W. von Sydow em 1927. 10 Idem, p.85. 5 • Espanha Alguma comida limitada por um círculo. Galinhas individualmente decoradas. • Inglaterra Um enorme e colorido galo. • Itália O único exemplar que apresenta um ovo (a configuração mãe-filho tão importante na cultura italiana?11) • Suécia Abundância de comida numa ampla área. • India Oito aves debicando uma paisagem: uma bela pintura em vez de comida. Como se a arte ou a cosmologia substituissem validamente a alimentação, uma extrema carência desta sociedade. • USA Estes exemplares americanos são os únicos que utilizam comida real. De facto, só uma sociedade de abundância pode dar-se ao luxo de desperdiçar comida para construir ou decorar um brinquedo. Por coincidência, utiliza-se a expressão “chicken feed” em calão americano para referir algo de insignificante. Curiosamente, conforme me aponta a minha sobrinha Carolina, nós dizemos “é canja!” para referir uma tarefa muito fácil. Recordo, a propósito, que no conto popular português, um pouco contraditoriamente, a galinha é a comida do rico e a sardinha a comida do pobre. Além do mais, neste último brinquedo, existe um notável contraste de escala entre a dimensão real dos grãos de milho e a miniaturização das galinhas, o que provoca ainda mais uma sensação de excesso de comida. Neste caso, o brinquedo é volumoso e as galinhas surgem bem nutridas. Um dos brinquedos (da zona de Columbia, California com um intensa actividade mineira) é accionado por uma rocha pintada de dourado... Acrescentamos—será que Dundes os conhece?—dois objectos (um adquirido em Portugal e outro proveniente da Bulgária12): • FOTO do brinquedo português assinalada com nº 2 • FOTO do brinquedo búlgaro assinalada com nº3 11 Alan Dundes e Alessandro Falassi, La Tierra in Piazza: An interpretation of the Palio of Siena. Berkeley and Los Angeles, California University Press, 1975, pp.199-218. 12 Oferecido por Maria José Lampreia (Escola de Santo António, Parede, Cascais). 6 Nestes objectos, em vez de milho, há (como nos exemplares indianos) flores— em gravação na madeira no caso do artefacto português. Convoque-se, a propósito, um provérbio significativo da escassez ou da riqueza amealhada com persistência e tenacidade: Grão a grão, enche a galinha o papo13. De bago em bago, enche a galinha o papo14. E encontro um outro provérbio que assinala esta necessidade de ‘debicar’ de um ser que a isso é limitado: Galinha que em casa fica—sempre depenica.15 Contrastando com a exibição de fartura ou mesmo riqueza dos exemplares nórdicos ou americanos, as seguintes versões indianas—por nós próprios adquiridas em Abril de 1999, no Rajastão, na rua, a crianças que vendem em vez de brincar—confirmam aquilo que Dundes acentuou sobre os exemplares indianos. • FOTOS dos exemplares do Rajastão nº 4 O mesmo artefacto surge configurado por diferentes animais: pavão, papagaio, elefante e camelo. A ‘alimentação’ (entre comas, naturalmente) continua a consistir (como no exemplar indiano fotografado para Alan Dundes) em manchas abstractas inidentificáveis enquanto comida. Além disso, os quatro animais ‘alimentam-se’ de manchas semelhantes, situação naturalisticamente incongruente por se tratar de regimes alimentares diferentes senão opostos. Para confirmar a feição idealizante e abstracta desta ‘alimentação’ de espécies tão distantes quanto um camelo ou um elefante de um pavão ou papagaio, repare-se no próprio movimento do brinquedo: tanto toca o solo a boca, o bico, a tromba quanto as caudas, corroborando assim a impressão de que, mais do que um alimento, aquilo que ali aparece pintado é ‘pintura’, ‘arte’, ‘abstracção’. Aquilo com que se enfeita o brinquedo tanto pode estar à entrada como à saída do corpo animal. Que se propõe com esta leitura (comparatista) de brinquedos? Que os princípios que assinalam visões do mundo não decorrem apenas de elementos maiores da cultura, tais como cosmogonias e mitologias (nacionais), mas que também relevam de artefactos culturais muito mais humildes, menores. Na parte se detecta o todo... in the particle we may find the same patterning as in the whole16 ... e o folclore importa (folklore matters) porque revela tanto quanto a cultura consagrada. O elemento mínimo repete a extensão máxima, a pulga contém o elefante e a criação dos patos e galinhas assinala, afinal, um pouco do muito que a Criação poderá ter sido... 13 Coord. José Ruivinho Brazão, Os Provérbios estão Vivos no Algarve. Lisboa, Ed. Notícias, 1998, p.91, nº1205. Idem, p.70, nº771. 15 Idem, p.90, nº 1180. 16 Alan Dundes, Idem, p. 90. 14 7 Poder-se-ia ainda caminhar da noção de criação para a noção de cidadania pensando provérbios, cantos e contos na capoeira, partindo deste princípio de que nenhum género de folclore é tão trivial e insignificante que não ofereça dados importantes para o estudo da visão do mundo, para a caracterização de uma identidade nacional. A forma como um povo vê o mundo e o seu lugar nele, permeia todos os aspectos de uma determinada cultura e é por isso que o padrão do todo pode ser encontrado mesmo na mais pequena parte desse todo. Sejam então, desta vez, as aves de criação—num percurso por um ‘corpus’ de provérbios, contos e cantigas—os modelos de funcionamento da sociedade, os cidadãos de um mundo (uma capoeira!?) para o qual somos educados. Domesticados? TERCEIRO PAINEL: A CRIAÇÃO NA TRADIÇÃO POPULAR Listemos galos, galinhas, pintos, frangos em alguns provérbios, contos, crenças e superstições da tradição popular portuguesa para falar da forma como parecem repercutir/rebater em ponto pequeno o que pode ser entendido, em ponto grande, como o comportamento humano. Mera descrição das qualidades de um ser? Constata-se que há diferentes tipos de galináceos sobre os quais impendem certas características, sugerindo determinadas precauções— para que os humanos conheçam, respeitem ou cumpram. Atentemos na forma como são representados—mostrando que no mundo vivemos como numa capoeira ou que, na capoeira, eles se comportam como nós cá fora. Para começar, o sentido mais imediato da criação: o alimento. O sabor da ave (depois de termos analisado em ‘pecking chickens’ o que a ave saboreia...). Nos contos, a galinha (que é comida mas que também come) é o prato de ricos ao passo que a sardinha é alimento dos pobres. “Galinhas e capões” são considerados alimentos de ocasiões especiais17. Viva [...] quem anda de monte em monte/ Comendo galos e capões/ À saúde dos cabrões! ... é a invocação com que o amigo denuncia o adultério da mulher ao marido traído no conto “Fastio”18. De notar que se joga neste conto com a vontade de comer (o apetite de chilbilrinhos que o marido vai buscar ao mar para matar o fastio da mulher) e a vontade de “revirar”, trair com um amante. Em “Mulher fastienta”19, um dos alimentos comidos às escondidas é o frango (guisado). No conto “Nem uma nem duas”20 as galinhas funcionam novamente como alimento. Fugindo à possibilidade de denúncia de adultério, o padre desaparece levando consigo duas galinhas debaixo do braço. Um jogo de palavras faz confundir galinhas e orelhas, ambas preciosas. A preciosidade do alimento “galinha assada” (comparável a chouriça de carne e a lombo frito) é atestada pelo conto “O velho e a velha”21. Também no conto “A mulher que andava amigada com o padre”22 se joga com o duplo sentido da galinha: comer galinha e comer mulher. O padre é o papão da galinha de outrem, o estragador dos seus lençóis. De notar que o padre surge com a “barriga cheia” de “galos e capões” (rimando com “bons colchões” e com adultérios); as 17 “O serrobio da praia”, Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Contos Populares Portugueses, vol.II. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1986, p.55, nº 370. 18 Idem, vol.II, p.62, nº 372. 19 Idem, vol.II, p.63, nº 373. 20 Idem, vol.II, p.66, nº 375. 21 Idem, vol.II, p.146, nº 436. 22 Idem, vol.II, p.10, nº 338. 8 refeições que lhe são oferecidas constam de galinha e bolos23. As galinhas são petisco a oferecer ao prior no conto em que, através da preparação dos alimentos, se vão apanhando os homens que tentam envolver-se com uma mulher bonita “mas honesta”24. No conto “O carneiro”25 um galo receoso da chegada da consoada (“e o meu patrõu dá sempre um galo a presentear”) junta-se a um porco, um carneiro, um gato e fogem. Conseguem tomar conta de uma casa e vencer os ladrões que lá se abrigavam. O galo é o que sobe para uma trave e o que grita morte ao ladrão mais afoito: “Matai-o! Matai-o!”. Em “A raposa e o lobo”26, o galo e a galinha (juntamente com o lobo), compadres da raposa são convidados para padrinhos do seu filho na perspectiva—gorada!—de serem comidos pela comadre (entretanto adoecida) quando se chegarem à beira da cama para ver o afilhado raposinho. Esta relação entre a doença e a galinha (comida crua ou cozinhada em canja, por exemplo) é recorrente. No conto “O jantar do senhor prior”27 uma mulher pede a Nossa Senhora que ponha o marido cego para que o prior possa lá ir a casa e ele não veja. O marido “deu em desconfiári” e pôs-se atrás do altar aconselhando-a como se fosse voz divina: --Dá-lhe galinhas pretas guisadas, assadas, sem uma peninha branca, que o teu marido cega. A mulher arrebanhou todas as galinhas pretas que conseguiu e todos os dias lhe dava esse jantar até que um dia... --Ai, senhores, já não tenho galinhas nenhumas pretas, não sei onde é que hei-de iri. E o homem, fingindo, diz que está ficando cego. Ela exclama: --Pois olha, que eu trato-te bem, eu dou-te galinha guisada, dou-te galinha assada, dou-te de todos os feitios e não sei o que é que eu te faça, marido. O conto prossegue até que, no final, o marido, fingindo de cego, dá um tiro no prior ensinando aos filhos como se matam perdizes e lebres. O vasto leque de situações alimentares em que ocorrem estes seres da capoeira aponta desde já para um âmbito dificilmente redutível denunciando a injustiça da associação do mundo da capoeira a um extracto ‘social’ inferior. De facto é sobretudo em provérbios e expressões quotidianas que a galinha parece assinalar o desprestígio da fêmea. Mesmo as subtis referências ao poder de criar em vez de parir (“parir é dor, criar é amor”), ao facto de ser um modelo de atenção e vigilância (“mãe-galinha”), à capacidade de chocar ovos de outras fêmeas e adoptar depois os filhos desses ovos (um conto de Luísa Ducla Soares retoma essa prática levantando a questão da adopção e da multiracialidade28) surgem—na linguagem comum quotidiana, marcada por provérbios sobreviventes—abafadas por visões mais conservadoras do animal na sua versão fêmea. Em casa como galinha, na rua como rainha. Onde canta galo, não canta galinha. Não cries galinha onde raposa mora, nem creias em mulher que chora. Entrar cantando de galo e sair cantando de galinha. Mulher e galinha são bichos interesseiros: a galinha por milho, a mulher por dinheiro. Mulher que assobia e galinha que canta, faca na garganta. 23 “A vingança do marido”, Idem, vol.II, p.34, nº 355. “A mulher bonita e honesta”, Idem, vol.II, p.119, nº 414). 25 Alda Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Contos Populares Portugueses, vol.I. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1986, p.52, nº 3. 26 Idem, vol.I, p.105, nº 78. 27 Idem, vol.II, p.39, nº 359. 28 Os Ovos Misteriosos. Lisboa, Afrontamento,1994. 26 9 Galo à janela, galinha à porta. Nem sempre galinha nem sempre rainha. Surgindo assim tão desvalorizada (e a galinha dos ovos de ouro? e a “galinha com pintainhos em ouro” que o príncipe encantado oferece à menina juntamente com “uma roca e um fuso em ouro” para que ela vá à procura do imperador?29), porque se confere à galinha poder de antevisão meteorológica? Por ser intuitiva, por possuir o sentido que às mulheres costuma ser atribuído como o sexto? Então, porque também o galo antecipa e prevê, conforme mais adiante se verá? Quando a galinha recolhe a meio da tarde (deitar-se com as galinhas?) é sinal que vai chover. Quando as galinhas se espiolham ou se coçam e catam com o bico é sinal que vai chover. A galinha fica alvoraçada pressentindo tremores de terra. Os ovos ficam golos quando há trovoada. Se um galo canta sete vezes às três horas é porque vai haver nevoeiro. De facto, encontram-se inúmeros presságios e augúrios associados à criação: Sonhar com galinhas é sinal de penas ou morte. Quando a galinha canta de galo é sinal de morte do dono. Galinha preta oferecida aos noivos é sinal de vida negra, galinha branca, sinal de vida santa. A galinha preta livra o dono de ser atacado pelo demónio. Galinha que se deita duas vezes no ano ou morre a galinha ou morre o dono.30 O bico que há-de picar nasce logo de bico pró ar.31 É azar ter uma galinha que canta de galo.32 Assinalem-se ainda terapias e consequente importância dos ovos (nunca contar com eles “no cu da galinha”!), tão importantes para diversas cosmogonias (como a finlandesa em que o universo nasce de um ovo chocado no joelho de Luonnotar) e nobre tema, por exemplo, de exposições de arte contemporânea na temporada 1999-2000: Os ovos que as galinhas põem entre o meio-dia e a uma hora da segunda-feira de Ascensão devem guardar-se porque nunca apodrecem e são bons para fins terapêuticos. Para além da referida noção de “mãe-galinha”, da conhecida ligação dos noivos ao par galo-galinha, há ainda uma outra associação da galinha ao bem-fazer: A galinha é abençoada por Nossa Senhora porque desfez as pegadas da burrinha para não deixar rasto aquando da fuga de Jesus Cristo. 29 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.144, nº 106. Nos contos “O Príncipe Encantado”, “O Duque Doce de Laranja”, “O Príncipe Bezerro” há galinhas respectivamente “com pintainhos em ouro” (Idem, vol.I, p.144, nº 106-7), “em ouro, com uma lenhada de pintos, tudo em ouro, que era a cousa mais elegante da vida” e “de ouro” com pintainhos (Idem, vol.I, p.163, nº 108), galinha oferecida pelo Sol à menina a quem manda o seguinte recado pela mãe: um dia que chegue ao seu destino, fora desse palácio, comece a brincar com esta galinha de ouro de roda do palácio. Há-de haver alguém que se há-de dirigir a ela. Retomemos o conto “A terceira vez”(Idem, vol.I, p.97, nº 396.) no qual a mulher possui um galo de estimação que, por não se calar de manhãzinha, é morto pelo marido. Antes de matar o galo, o marido, violento, partira um candeeiro de estimação e depois da morte do galo, mata uma burra, todos seres preciosos. E perguntamonos de novo: um candeeiro, uma burra, um galo—em estado de equivalência? 30 Coord. José Ruivinho Brazão, Idem, p.90, nº 1183. 31 Idem, p.128, nº1937. 32 José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, vol. IX. Lisboa, Imprensa Nacional, 1985, p.25. 10 E os galos, aqui observados e descritos, parecem sempre representar a masculinidade? Ou são, muitas vezes—nos contos—aldrabados pela manha da galinha e da mulher, sua parceira e cúmplice33? No conto “A casa do Gonçalo”34 (que se desenvolve com base no provérbio “Na casa do Gonçalo, mais manda a galinha que manda o galo”) mais mandam as mulheres do que os homens. Provando que a galinha é não só capaz de dirigir os machos mas também boa observadora e muito atenta ao mundo que a rodeia, um conto assenta na sua capacidade de leitura do solo. De facto, em “A raposa e as galinhas”35, uma galinha observa como as galinhas e os galos visitam a casa da comadre raposa e de lá não saem. --Vejo muitos rastos pra dentros e nenhuns pra fora, mal em volta... Nã vou. Cumpriria ver nesta afirmação da galinha uma rigorosa leitura do espaço: pegadas e suspeito círculo-circuito de mal em redor. A territorialidade como factor fundamental da sobrevivência num mundo de predadores. De notar que, no domínio do conto, a criação, comummente considerada menor senão mesmo estúpida, vence animais supostamente bastante espertos como a lebre ou a raposa36. Esta 33 Por vezes, a cumplicidade acontece entre a mulher e o galo. No conto “Três enganos” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.II, p.77, nº 382), o galo é ‘utilizado’ pela manha da mulher para caçar um coelho, facto de que o marido desconfia. No conto “A confissão” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.II, p.7, nº 336), uma mulher confessa o roubo de “umas galinhinhas”, o qual ela queria pagar sem a dona saber. O padre ‘compra-lhe’ o segredo envolvendo-a num outro segredo, o do adultério. 34 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.II, p.50, nº 368. 35 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.94, nº 66. 36 No conto “A raposa e o galo”(Consiglieri Pedroso, Contos Populares Portugueses. Lisboa, Vega, 1978, p.173), a raposa vai pelo campo e encontra “um rebanho de galinhas e galos” que mal a avistam saltam para cima de um carvalho. A raposa tratou logo de deitar terra ao ar, para as galinhas pensarem que era milho. O galo começou a afagar as galinhas, para elas não saltarem abaixo. Supostamente estúpidos, os bichos da capoeira (aqui à solta no campo) não se deixam ludibriar pela conversa da raposa que diz para o galo: --Oh! Compadre, deita-me cá tu um filho dos teus abaixo, ou senão anda cá tu, que nós agora temos feito uma composição de não fazer mal uns animais aos outros. Diz o galo de cima do carvalho: --Abre a boca, que eu atiro-te um filho. Nisto o galo fragueou (sujou) e a raposa de baixo aparou com a boca, julgando que era um frango. Como não gostou, deitou fora e diz: --Ah! Compadre que me enganastes! O galo de cima respondeu-lhe: --Ah! Julgavas que era bago, e saiu-te frago (excremento). Diz a raposa: --Ah! Compadre, anda cá abaixo que nós agora estamos todos bem, nem nós fazemos mal às aves, nem os cães fazem mal a nós. Diz o galo de riba: --Ah! ah! ah! Põe-te aí muito tempo, que vem aí um caçador com uma quadrilha de cães, que te estraga (mata). A raposa perguntou: --Ah! Compadre, de que lado é que eles vêm? O galo, se lhe havia de dizer a verdade, enganou a raposa e disse-lhe: --Olha, é dali. A raposa julgando que era verdade, fugiu para o outro lado e foi-se meter na boca dos cães. Eis como a reputada manha da raposa se deixa aldrabar pela conversa do galo, protector das galinhas e... mais manhoso do que os animais supostamente espertos. Gozando a visão da raposa a ser perseguida pelos cães, o galo ainda acrescenta: --Eh! Comadre, mostra-lhe a ordem, mostra-lhe a ordem (e ainda hoje o galo canta assim). 11 (que normalmente ludibria o lobo37) é ludibriada por um galo e apenas consegue dominar o gavião, um “velho pássaro” que por vaidade se deixa vencer38. Uma galinha, cúmplice das mulheres, há-de num conto que veremos brevemente, enganar uma lebre e levá-la à morte. Cabe reflectir: é a ausência de vaidade, a humildade que proporciona à criação a vitória sobre seres mais poderosos? Vale o princípio da Tiririca? Vale o dom da palavra a assegurar o domínio no debate? Atentemos na questão da linguagem. Antes de conhecermos um conto que explica ou justifica a aparente superficialidade da fala da galinha, um cacarejo, vejamos como e porquê é habitualmente desprestigiado: por pressupor o mexerico, a divulgação do segredo, a indesejada comunicação social? Uma (tendenciosa) fotografia do lugar onde as mulheres se reúnem para conversar numa aldeia da Galiza capta uma galinha em frente da inscrição no muro: “Aqui se hace el periodico” FOTO A relação entre a fala feminina, a coscuvilhice, o fazer de enredos e o contar das histórias... Outros contos encenam esta situação de ser o galo do alto da árvore, por esperteza, a ludibriar a raposa que se salva correndo (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p. 95-98, nº67-70). A criação salva-se por ser dotada de manha; a raposa quando se salva—e não cai, por exemplo ao poço (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.96)—é apenas porque tem boas pernas. O próprio rabo a prejudica: “Matchadas que te corte, qu’ina me binhas aí a pear atrás!”. Num outro conto, “A raposa e o mocho” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.123), a raposa consegue ficar com dois galos porque negoceia com os rapazes que os levavam para uma boda a sua troca por peles do lobo que ela tinha encerrado no fundo do poço. Neste caso a disputa pela criação é com o bicho-home e não com a própria criação, a qual nem tem palavra a dizer. O galo fala para avisar a raposa da chegada dos caçadores e para assim se livrar da ameaça que ela constitui. É a “Esperteza do galo”( Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.98, nº 71). Como vimos, nem mesmo as raposas conseguem sempre comer galinhas. O conto “A raposa, o lobo e o txugo” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.108, nº 81) passa por uma situação em que a raposa pede à velha que anda a apanhar lenha que arranje um “feixe bom” prometendo-lhe uma visita à noite. A raposa levaria uma galinha ou duas para logo para fazerem “uma função”, um jantar, o qual não se chega a concretizar porque a comadre raposa bate à porta de velha sem galinhas: --Então, e as galinhas? --Ai! Os cães tavom munte sintidos, nã pude chigar à capoêra. --Entã, nã t’aibr’a porta. Nã trôxestes galinhas, nã t’aibr’a porta . ...o que prova que a raposa não é assim tão eficiente capturando galinhas. Em “A raposa e o lobo” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.111, nº 82), as galinhas são também suposta presa da raposa—mas apenas na alcovitice do lobo. E o lobo dixe [ao rei dos bitchos] [que a raposa ainda o não tinha ido visitar agora que ele estava doente por [...] qu’ela andava de galinhero em galinhero a comer galinhas e de tchiquero em tchiquero a comer tchibos. Para se desculpar a raposa inventa e diz ao rei dos bichos que não tem tido vagar porque tem “andado de médico em médico, de cirugiõu em cirugiõu, a ver se [...] encontrava mezinha com que [o] curar.” Receita então pele de lobo esfolado e assim se vinga da alcovite deste, denunciando-a nas suas incursões pelas capoeiras. No conto “O feiticeiro” (Consiglieri Pedroso, Idem, p.223), sucedem-se uma série de transformações que envolvem galinhas, raposas e milho e que acabam favorecendo o rapaz. A menina ia dar o anel ao feiticeiro, e ele caiu-lhe no chão e fez-se em milho; o feiticeiro formou-se numa galinha para comer o milho; o milho depois formou-se numa raposa e comeu a galinha, que era o feiticeiro. E assim o rapaz venceu e ficou com toda a riqueza do feiticeiro e veio para casa do pai. 37 Um exemplo notável em “A raposa e o mocho” (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.123): “Oh! O lobo tão estúpido lá vai ele!” 38 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.98, nº72. 12 Gossip and narrative are sisters, both ways of keeping the mind alive when ordinary tasks call; the fictions of gossip—as well as the facts—act as compass roses, pointing to many possibilities.39 ... manifesta-se na própria evolução da palavra ‘gossip’: no século XI uma apoiante do baptismo, uma madrinha ou padrinho; no século XIV, ‘gossip’ já significa uma amiga convidada para o baptismo e nos séculos XVI e XVII, quando as festividades se tornaram lugar de frivolidade (“lavish sources of social bonding”40), um termo já somente aplicado a uma pessoa, geralmente mulher, uma bisbilhoteira, dedicada à “conversa fiada” (uma expressão que relaciona o fiar e o contar, tarefas representadas em ilustrações das primeiras colecções de contos como a de Perrault em 1697: uma mulher fia à lareira e as crianças escutam-na...). As palavras ‘compadre’ e ‘comadre’ sofrem da mesma evolução em queda livre: de com-padre ou commadre, os parceiros da educação da criança, a parteira e, posteriormente, a coscuvilheira. Veja-se a prática do chamado “Testamento das comadres”, um ritual carnavalesco de por vezes escabrosa exibição da vida privada, um ajuste de contas com a suposta marginalidade vivida durante o ano e expressa publicamente em três dias. De facto, segundo Marina Warner, o mercado negro da informação esteve a cargo das mulheres. E rendeu-lhes alguma liberdade, se não do corpo, pelo menos da palavra: Women dominated the domestic webs of information and power; the neighbourhood, the village, the well, the washing place, the shops, the stalls, the street were their arena of influence, not only the household. [...] Typical meeting places for women alone, like public laundries and spinning rooms, were feared to give rise to slander and intrigue and secret liaisons.41 A saber se esta permeabilidade da mulher para o ‘gossip’ enquanto poderoso instrumento social (“unofficial networks of the social body”42), esta capacidade de viajar entre mundos e os comentar ou mesmo controlar (informações ilícitas sobre sexo, contracepção e aborto, à revelia da igreja, da lei e da ciência) não surge como um dos móbeis da acção masculina e dos órgãos do poder contra as heresias causadas pelo feminino (a bruxa, a alcoviteira, a mulher tão desprezada quanto temida). Escreve Marina Warner convocando a relação entre a mulher parideira e a mãe-galinha (o útero e o papo, o parto e o chôco?): The association between a woman’s body and her speech, between her face and figure and her tongue, lies at the heart of the public male quest for a desirable match. [...] The womb redeems the tongue; vulgarly speaking, a wombful redeems a mouthful. The First Epistle to Timothy makes the link explicit: motherhood redeems woman not merely from sexuality, but from her sinfulness as a speaking woman: ‘A woman ought not to speak... Nevertheless she will be saved by childbearing’ (1 Tim.2:15).”43 Mais. Os livros (manuais) que no século XVI se publicavam sobre os chamados “segredos femininos” eram denominados ‘caquet’ em francês e ‘cackle’ em inglês (‘chiacchiera’ é o termo italiano para os mexericos das mulheres), termos que convocam até onomatopaicamente o cacarejar, sinónimo de tagarelar, fazer alarde de coisa de pouca importância, segundo o dicionário Aurélio. Ora, no conto, o cacarejo—aquando traduzido em fala humana—revela-se sério e denunciador de uma situação social grave. Assim, “a voz das galinhas”44, convertida em linguagem articulada («Sempre-a-trabalháar, sempre-descáalça, sempre-a-trabalháar, sempre39 Marina Warner, From the Beast to the Blond-On Fairy Tales and their Tellers. New York, The Noonday Press, 1994, p.49. 40 Marina Warner, Idem, p.34. 41 Marina Warner, Idem, p.34-5. 42 Marina Warner, Idem, p.34. 43 Marina Warner, Idem, p.44. 44 “A voz das galinhas”, Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.32, nº 23. 13 descáalça, sempre-a-trabalháar, sempre-descáalça!»), denuncia a exploração do trabalho de alguns, os menos privilegiados na comunidade. Segundo imitação em Andorinha45, é este o cacarejar das galinhas quando põem o ovo. Segundo outra informação46, a conversa destes animais é justificada e traduzida do seguinte modo (uma interpretação minhota da fala da criação): Um frangalhão muito corpulento entrou numa capoeira e as galinhas alvoraçaram-se todas, perseguindoo. O galo da capoeira, que as governava, voltou-se para elas e disse-lhes: «Deixai-o em paz, que ele é capão!» Responderam as galinhas: «Pois, pois, pois, por isso...» Em “A galinha e o galo”47 também se converte a fala da criação em linguagem acessível aos humanos—como que num esforço de entendimento da conversa entre os bichos... : uma situação que cruza a da tradução no sentido em que é buscado um ponto de convergência entre duas línguas. Difere da situação do tradutor (e aproxima-se da do traidor) porque no processo de fixação em língua de chegada não se passa pelo recurso ao dicionário, um léxico estabelecido mas se passa sim pelo recurso à criatividade e poder de associação. São as imagens fornecidas pelo mundo da criação (galinhas descalças, trabalhando pelo bem estar da família), bem como os sons produzidos, que desencadeiam e proporcionam o vocabulário para dar forma articulada ao linguajar antes ôco dos seres de capoeira48. O galo: --Cararacá! Chega-te pra cá! E a galinha diz: --Quer, quer, quer, quer, quer, Quer, quer, quer, quer, quer. E o galo: --Hei-de te comprar uns sapatos. E a galinha: --Pôr, pôr, e andar descalça. Pôr, pôr, e andar descalça. Pôr, pôr, e andar descalça. E diz-le o galo: --Hei-de te comprar uns sapatos. Bem. A galinha, coitadinha, vê que ele num le compra os sapatos, começa ela logo de manheim: --Cás, cás, cás, caralho! Cás, cás, cás, caralho! Cás, cás, cás, caralho! E o galo: --Hei-de te comprar uns sapatos. A galinha: --Cás, cás, cás, caralho! Pôr, pôr, e andar descalça. Cás, cás, cás, caralho! Pôr, pôr, e andar descalça. E é assim a história da rapariga, que é igual como a da galinha. Conforme o conto, a galinha equivale à rapariga (as pitas são, ainda hoje, as raparigas novas) mas não pelas razões conservadoras que os provérbios parecem apontar. O uso banalizado da relação mulher-galinha num sentido pejorativo—desencadeado pela recorrente utilização de um número restrito de provérbios na linguagem quotidiana?—terá restringido a muito mais ampla concepção da galinha como fêmea trabalhadora (explorada?), parideira e 45 Freguesia de Travanca de Lagos, concelho de Oliveira do Hospital (recolhida por Alda Soromenho). Recolhida em 1934 por Leite de Vasconcellos. 47 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.33, nº 24. 48 Compendiadas encontram-se nove formas de expressão onomatopaica para a galinha e quarenta e duas para o galo, “meras tentativas” de escritores para verbalizar as vozes de animais (Júlio de Lemos, Pequeno Dicionário Luso-Brasileiro de Vozes de Animais (Onomatompeias e Definições). Edição da Revista de Portugal, 1945). 46 14 criadora (a grande mãe simbólica?) bem como a vasta visão do mundo que este universo ‘preso’ proporciona. A reputada sabedoria do provérbio (The Wisdom of Many, título de uma obra de Dundes e Mieder dedicada ao estudo do provérbio49) revela-se, afinal, mais tendenciosa do que aberta e interessante, passando para o conto o mérito do saber aprofundante e, por isso, estimulante. Parece ser no conto que este universo da criação vive amplificado, aberto a várias leituras e sugerindo diversos (e opostos) pontos de vista. Sem o carácter redutor e fechado do provérbio, o conto funcionaria, ele sim, como fórmula de sabedoria. Há que cuidar em não repetir lugares comuns num território escorregadio como este da tradição popular: acerca do modo como nela vivem certos seres (cão e gato, criação, lobo, por exemplo) e também em relação a certos géneros como incontestáveis máximas de sabedoria. De facto, é nos provérbios (em certos provérbios curiosa e significativamente preservados e mais divulgados) que se enunciam as galinhas como estúpidas, como superprotectoras (o termo “mãegalinha”passa a ser utilizado em sentido negativo). Para continuar a comprovar o engano em que se pode cair ao generalizar esta visão da galinha no campo da tradição popular, veja-se como pode funcionar manhosa e não estupidamente a cumplicidade mulher-galinha no conto “A morte da lebre”50. Neste caso, a fala da galinha não tende a ser imitação do cacarejar e entra-se por um discurso que independe da verosimilhança. Uma lebre e uma galinha “fazem amizade. A lebre vai divertir-se à casa da sua amiga. A galinha diz-lhe: --Amanhã, quando vieres, encontrarás que não estou em casa; encontrarás que fui à pesca. A lebre torna a ir à casa da galinha e as mulheres confirmam que a sua amiga galinha foi à pesca ao que a lebre se surpreende e pergunta: --E esta galinha, que não tem cabeça, não é ela? As outras mulheres dizem: É ela!... A cabeça dela foi à pesca; ficou o corpo. Olha ela respira. A lebre fica “para ver quando a cabeça voltará da pesca”. Quando o receptor do conto imagina que as mulheres mataram a galinha para a cozinhar... Ora [a galinha] tinha escondido a cabeça nas penas. O Sol vai pousar e dizem: --Vai procurá-la na água. A lebre levanta-se e vai procurar a cabeça da galinha. A lebre tradicionalmente ‘ludibriada’ pela tartaruga numa famosa corrida vai, neste conto, na conversa das mulheres e da galinha cúmplice. As mulheres vão à margem do rio, compram peixes, mergulham os fios e estes molham-se. Voltam, estendem-nos e a galinha ajuda-as. A lebre volta, não a tendo encontrado no rio. E diz: --Querida, esperei-te há muito. --Não é nada! Toma um peixe. --Está bem. A galinha diz: --Também eu irei amanhã. A lebre diz: --A mim também me encontrarás com a cabeça cortada, tendo ido à pesca. 49 50 Wisconsin, University of Wisconsin Press, 1981. Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.64, nº 39. 15 A galinha acorda de manhã, vai a casa da lebre. Encontra os da casa chorando: ela tinha preparado os fios, cortara a sua própria cabeça e morrera. Este texto convoca, aliás, a questão da existência da alma no animal bem como a sua capacidade de sentir e sofrer (‘sentience’). É justamente jogando com essa possibilidade de deslocar o princípio da vida para todo o corpo e de independentizar a cabeça... que se ludibria a lebre, a qual parece crer na capacidade de autoregeneração, característica de seres como as minhocas (“os intestinos da terra” segundo Aristóteles, porque conseguem remover toneladas de solo51) e as lagartixas. Que mais dizer deste mundo em que a cabeça da galinha inventa poder ir à pesca... para convencer a lebre a fazer o mesmo? * Por sua vez aos galos (madrugadores: “Já os galos cantam e os anjos se alevantam”, “Canta o galo, é manhã/ Relógio dos namorados”52) sobram outros poderes, o da anunciação, previsão e denúncia da chegada do bem e do afastamento do mal, por exemplo: O galo cantou: «Nasceu Jesus!» E o boi disse: «Onde?» E a ovelha respondeu: «Em Belém...»53 Quando Cristo nasceu o galo disse: «Jesus é Cristo!»54 No Minho chama-se Galo das Trevas à vela mais alta no meio de um candeeiro triangular que se põe no ofício das trevas da Semana Santa.55 A missa do Galo reza-se na noite de Natal.56 O cantar do galo, símbolo dos pregadores e da vigilância cristã57, confirmou a divindade de Cristo e denunciou a inocência do homem prestes a ser enforcado na popularizada lenda do galo de Barcelos, tornado símbolo de Portugal58, objecto que conjuga o poder do galo com o topos do coração, lugar comum da nossa poesia popular. Por que razão? A investigar tanto mais que... Se no dia do casamento o galo cantar é porque algo de mal se irá passar. 51 Charles Darwin constatou, após 40 anos de estudos, que a minhoca, num ano, conseguia remover por hectare cerca de 40 toneladas de solo. 52 Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, Vol. X. Lisboa, Imprensa Nacional, 1988, p.39. 53 Depois do nascimento, Nosso Senhor terá posto um laço azul nas ovelhinhas (Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.34, nº 25). 54 Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, Vol. VII. Lisboa, Imprensa Nacional, 1980, pp.329-350. 55 Teófilo Braga, O Povo Português, vol.II. Lisboa, Dom Quixote, 1986, p.194. 56 Teófilo Braga, Idem, p.228. 57 Noutras culturas: o galo estava associado a Apolo e a Perséfone, simbolizando o regresso da Primavera. No judaísmo o galo e galinha eram símbolos da fertilidade e representavam os noivos. Na China, o galo branco protege os inocentes dos espíritos malignos, simbolizando a pureza da nova vida que se sobrepõe à morte. O vermelho afasta o fogo. No xintoísmo japonês, o seu cantar convoca para a oração e é representado em cima de um tambor, denunciando um paralelismo mítico entre esse chamamento para a oração e o galo a invocar Amaterasu, a deusa do Sol, no exterior da gruta onde esta esconde a sua luz. Os galos são, pois, sagrados no Japão e andam em liberdade pelos templos. (Nicholas Saunders, Os Espíritos Animais. Lisboa, Temas e Debates, 1997, p.121). 58 Durante o Estado Novo premiou-se Monsanto oferecendo-lhe como condecoração um galo de prata, fixado depois na torre da igreja mais alta da “mais portuguesa das aldeias portuguesas”. Cf ainda a publicidade ao “azeite português” “das melhores azeitonas”..., “a cantar desde 1919”, o Azeite Gallo. 16 Conta a lenda que os habitantes de uma aldeia andavam alarmados com um crime que lá acontecera e de que ainda se não descobrira o autor. Um dia, um galego passou por lá, em cumprimento de uma promessa a Sant’Iago. Por qualquer razão, tornou-se estranho e foi preso e condenado à forca. Em vão proclamou a sua inocência, pois nem sequer o juiz lhe deu ouvidos. Até que, desesperado, apontou para um galo assado que ali estava e disse: «É tão certo eu estar inocente como este galo cantar quando me enforcarem». Embora todos se rissem, ninguém tocou no galo. No dia seguinte, no momento em que o iam enforcar, o galo ergueu-se e cantou. O juiz, aflito, correu à forca e conseguiu ainda evitar a morte do inocente galego. Mandado em paz, voltaria alguns anos mais tarde para erigir o monumento em honra à Virgem, a Sant’Iago e ao galo seu salvador: o cruzeiro do Senhor do Galo datado do século XIV, uma curiosa peça arqueológica proveniente do lugar da Forca Velha em Barcelinhos, rica de sugestões figurativas. Além do condenado à forca, vê-se a figuração simbólica do Sol e da Lua; a Virgem do Pilar, S. Paulo e S.Tiago e, aos pés do Crucificado, um dragão. Eis a versão acrescentada pelo coordenador aos Contos Populares de Leite de Vasconcellos59: Ao sair de Barcelinhos para Alvelos, vê-se numa rampa alta da estrada o nicho do Senhor do Galo, que dizem ter a seguinte origem: Um dia passou por ali uma família de romeiros, que ia a Santiago da Galiza. Hospedaram-se numa taberna, que ainda ali se vê nas vizinhanças; como levavam um farnel bem sortido de salpicões e frangos cozinhados, pouco gasto fizeram ao taberneiro, que era homem de más entranhas e lhes ficou com grande raiva, por não poder cardálos a seu modo, e por isso lhes armou uma rente, para se vingar e entregá-los à justiça. Sem ser visto, meteu no saco de um romeiro um talher de prata e foi dar parte às autoridades. Feitas as buscas, foi logo condenado à forca o que levava no saco o talher. O homem, vendo-se no maior apuro da sua vida, puxou de um frango, que levava no saco, pô-lo em cima da mesa e disse para os da justiça, que ali estavam: É tão certo eu estar inocente como este galo cantar. Logo o galo se levantou e começou a cantar, com espantou e terror de todos os circunstantes. Reconheceu-se a inocência do romeiro e foi condenado em seu lugar o taberneiro, que lhe levantara o falso testemunho. Uma variante diz que já o romeiro estava a pernear a forca, quando por ali passou alguém que notou que ele se encontrava perfeitamente vivo e o veio dizer ao taberneiro. Este estava no meio do jantar e exclamou: Isso háde ser verdade, quando cantar este galo, que aqui tenho no prato. E, logo o galo se levantou a cantar. Todos ficaram aterrados e acudiram ao lugar da forca. Reconheceu-se a inocência do homem e foi condenado em seu lugar o taberneiro. O objecto (tornado detestável ‘souvenir’ turístico60) é um ser de corpo negro, crista de vermelho sanguíneo, plumagem escondida atrás de corações vermelhos e de missangas de múltiplas cores. Um galo (à portuguesa?) feito símbolo graças à fala/ ao canto que emite depois de morto/ assado, um duplo (menor) de um Cristo (maior) ressuscitado da morte para salvar os homens? 59 Leite de Vasconcellos, Contos Populares, vol.I. Coimbra, Universidade, 1964, p.386. Existem também galos em filigrana. Estas jóias arcaicas, românicas, de culto religioso, tiveram o seu efectivo desenvolvimento a partir dos séculos XVII e XVIII com o fabrico de jóias inspiradas nos relicários, cruzes e arrecadas das épocas anteriores. A partir do século XIX alcançaram uma personalidade especial com os corações, arrecadas e brincos, indissociáveis do traje feminino de Entre Douro e Minho. Existem também os barros de Barcelos, louça do tipo escultórico em regra com um apito na base, inspirada na fauna local, com relevo para o galo, os bois, pombais, sardão, ouriço, etc. As colchas de Castelo Branco (fio de seda natural sobre fundo de linho caseiro) apresentam temas vegetalistas em torno de um motivo central, geralmente pássaros de fantasia como papagaios. Quando não têm barra nem centro, o campo é decorado com motivos variáveis mas a temática gira à volta da árvore assimétrica que forma ramos onde abundam os motivos curvos em que assentam pássaros, folhagens, flores, frutos ou aves de capoeira: o galo parece ter substituído o papagaio. Também no Alto Alentejo, a escultura em barro de Estremoz apresenta mulheres com cestos de ovos, galinhas e fruta, o assobio fazendo parte da estrutura em que a figura assenta. Chama-se ‘rouxinóis’ os bonecos, aves ou animais que, depois de cheios de água, emitem—quando apitados—um som semelhante ao da ave. 60 17 Entendamos esta figura do galo enquanto modelo masculino (‘cock’, termo para orgão sexual masculino), protector (galo negro) e fertilizador da capoeira, em si própria um modelo do quintal, da quinta em seu redor e, porque não?, da aldeia global em que somos supostos viver. Haveria que ver aqui a capoeira, em ‘downsizing’ (‘buzzword’ da economia), como um modelo a imprimir na criança a educar... O galo—vestígio do galo sacrificial a Esculápio, deus da medicina; ou pregador respeitado em cerimónias institucionais como doutoramentos61—figurará a masculinidade (o reputado machismo dos países do sul?) ou o cristianismo: na tradição popular o galo canta quando nasce Jesus62; surge na Bíblia pautando a hora da traição de Pedro; celebra-se de 24 para 25 de Dezembro a missa do Galo, a missa do Parto, diz-se na Madeira. O galo desperta as mentes e os corpos, figura o sol (do sul) versus as trevas do norte e da noite, o campanário versus a cova, a gruta, o fundo. Certo é que o canto do galo parece esconjurar o mal... Canta o galo, foge o diabo. ... se ‘emitido’ a hora certa, não a “deshoras”: É mau agoiro cantar um galo entre a meia noite e as três da madrugada.63 O galo anuncia a morte se cantar quatro vezes antes da meia-noite. 61 Sabe-se que “nos Estatutos de D. Manuel I, se ordena que se dê de presente aos Lentes [uma galinha] em certas e determinadas circunstâncias. Por exemplo, quando o professor dava a sua primeira aula, era obrigado a presentear cada um dos seus colegas da Universidade com uma galinha.” Na Farsa dos Físicos de Gil Vicente há uma referência a essa prática institucional. “Vemos também a galinha tomando parte em Actos da Licenciatura, não no sentido figurado ou simbólico, mas na emenda das consoadas ou ceias que os candidatos eram obrigados a dar aos que intervinham na Licenciatura. Dantes tais Actos eram realizados ao cair da tarde, à luz dos archotes, prolongando-se muitas vezes pela noite fora. Mandava então el-rei que o Licenciado desse uma ceia a cada um dos componentes do júri, na qual era certa a presença da gostosa galinha. Mais tarde, por causa dos abusos, foram suprimidas as ceias e em vez delas cada membro do júri recebia dois tostões e uma refeição mais modesta, cuja ementa era formada por uma só iguaria—galinha ou perdiz assada, com uma fruta no princípio, uma no fim, sendo a galinha ou a perdiz substituída por um prato de peixe em dias de magro.” E aos doutoramentos quinhentistas também se associam galos e galinhas. Reza, às tantas, a acta do doutoramento de Lourenço Vieira: “E logo o Doutor Tomás Rodrigues poz a primeira oração, que se chama galo e o Doutor Diogo de Contreiras poz a segunda que se chama galinha...”, denominando-se estas orações de cantos do galo e da galinha. Pergunta-se o articulista: “A que propósito, numa cerimónia tão austera como o doutoramento, figura o garboso e elegante rei das nossas capoeiras de parceria com a sua consorte menos imponente mas mais saborosa, cujos caldos não fazem mal a doentes, diz o ditado, o que não é bem verdade, segundo a moderna dietética?” Não terá o facto explicação nas ofertas das ditas aves a lentes e doutores mas sim em antecedentes arcaicos. O galo esteve ao serviço de Apolo, deus da eloquência e ao serviço de Esculápio, deus da medicina. O próprio Socrates terá dito ao expirar: “Ó Criton, nós devemos um galo a Esculápio. Satisfaze essa dívida.” O discípulo levou um galo ao templo do deus, em Epidauro—e é hoje o símbolo da raça francesa. Em Espanha, o galo era o epíteto do doutor que tinha a incumbência de fazer o discurso panegírico do doutorando, fazendo perguntas à galinha, outro doutor, mais novo em grau. “Pelo pomposo cantar recebia o galo a importância de doze reais” (ela, a galinha, nada recebia)... ; e assinalava, de facto, “o despontar duma nova estrela no firmamento das ciências médicas”. Já em 1545, D. João III terá mandado vir de Espanha o Doutor Francisco Franco para “cantar a cantilena do galo” (A.da Rocha Brito, Velhas Páginas Universárias-Galos e Galinhas em Doutoramentos Universatários de outras eras. Coimbra, 1962). 62 “José sentou-se na esteira [...], e nesse momento o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que se encontrava em falta de uma bênção, aquela que se deve à parte de méritos que ao galo coube quando da distribuição que deles fez o Criador pelas suas criaturas, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao galo inteligência para distinguir o dia da noite, isto disse José, e o galo cantou terceira vez. Era costume, ao primeiro sinal destas alvoradas, responderem-se uns aos outros os galos da vizinhança, mas hoje ficaram calados, como se para eles a noite ainda não tivesse terminado ou mal tivesse começado”. (José Saramago, Evangelho segundo Jesus Cristo. Lisboa, Caminho, 1991, p.23). 63 Informação de João Barbosa relativamente a aldeia de Cruz, Viseu. 18 Galo que canta fora de horas, faca na garganta. Em diversas versões de “As Vozes dos Animais”64, um texto importante para um nosso projecto ‘in progress’ (“Nos textos em que os vivos falavam”), o galo surge como o elemento portador da palavra. É ele quem assusta (os lobos) pela voz, por aquilo que diz: --Cacarista, cacarista, Se lá vou faço tudo em cisco. Ou então, juntamente com o peru: Inguli-os, inguli-os. Ou o pato: Haja pazes! Haja pazes! O galo faz fugir definitivamente os ladrões quando salta em cima do ladrão já entretanto assustado pelo gato, pelo chibo, pelo cão e grita: --Que é isto, que é isto, se lá vou, faço-te todo em cisco?!65 “Um galo empoleirado em cima de uma árvore” pergunta a um grupo constituído por um porco, um carneiro e um gato para onde é a viagem deles. E prosseguem todos juntos. Diz o texto: E lá caminharam todos. Ora, foram andando, andando, andando. Lá iam conversando na sua linguagem e lá iam andando...66 Nesse conto refere-se que o galo “era mais leve da perna” e por isso é ele que voa e vê ao longe. Uma bicada desse galo é confundida com um bico do fuso trancado em cima da cabeça. No conto “A aranha”67, a aranha com quem o homem casou pede à criada que vá à capoeira buscar uma galinha e que cozinhe um belo jantar para o marido. Mais tarde, a aranha monta um galo (só na capoeira) e vai andando atrás dos cavaleiros (o marido com a criada fazendo as vezes de mulher para comprovar o casamento com fêmea). Quando chegam à lage onde o homem se tinha encontrado com a aranha pela primeira vez e onde tinha prometido casar com ela... ... o galo principiou a dizer: Qui, quiri, qui, Qui, quiri, quinha; Ele é rei, Eu sou rainha! 64 Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português. Lisboa, Dom Quixote, 1987. Deste mesmo texto poderão ser trabalhadas as versões de Ilse Losa, incluída na secção “Glosas Cultas de Contos Populares” in Contos Tradicionais Portugueses de Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira (vol.IV) intitulada “As vozes dos animais”; António Sérgio, Os Dez Anõezinhos da Tia Verde Água intitulada “A cabana dos lobos”; Irmãos Grimm intitulada “Os músicos de Bremen”. 65 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.44, nº 30. 66 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.46, nº 31. 67 Consiglieri Pedroso, Idem, p.146. 19 Nisto abriu-se a lage e tornou-se num rico palácio. A aranha tornou-se numa formosa princesa e casou com o rapaz que ficou sendo rei e ela rainha. Se a galinha funciona aqui como alimentação (proporcionando uma das provas de feminilidade pela parte da aranha, capaz de tecer e cozinhar), o galo funciona como denunciador do real estatuto das personagens. Ele, sozinho na capoeira, no alto de um campanário ou armado em meio de transporte, revela e anuncia o desfecho propício da acção. No conto “A terceira vez”68, a mulher possui um galo de estimação que, por não se calar de manhãzinha, é morto pelo marido. Antes de matar o galo, o marido, violento, partira um candeeiro de estimação e depois da morte do galo, mata uma burra, todos seres preciosos. Um candeeiro, uma burra, um galo—em estado de equivalência? Sendo símbolo da fecundidade e da fertilidade (‘cock’, termo para orgão sexual masculino; a galinha numa obra de Rauschenberg, o símbolo do ‘gay’), cabe ao galo ‘galar’ e ser o único detentor desse privilégio na capoeira, sua oficial residência. De resto, mora em campanários, cimos de telhados funcionando aqui e ali como pára-raios. É, no carnaval, alvo de cerimónia fúnebre69. Dá então pelo nome de Senhor Dom Cantante e é acusado de todas as humilhações: tudo o que na aldeia se sofreu a nível de leves desavenças ou pesadas corrupções é atribuído ao galo num libelo que, curiosamente, abre espaço à defesa. Toma o galo a palavra: Eu sei que mereço a pena E muito mais eu merecia: Mas quero morte serena Como teve minha tia... Depois da confissão, o sentenciado é condenado à morte mas ainda tem tempo para proferir as últimas vontades, o testamento-- antes que o cutelo o acabe por decepar: A minha crista dobrada De galo preto romão, Meirinho, quero-a legada A quantos aqui estão; A penugem encarnada, Meu orgulho e meu brasão, Essa é por mim doada À humana geração: Desejo ver contemplada A descendência de Adão. Do bico não digo nada, Era clarim de clarão; De manhã, a alvorada, Pela noite, a solidão, Trazia prenda doirada, Luz plena, escuridão... As asas, rufo guerreiro, Doá-las também eu quero (Cante o povo no terreiro, Ouvi-lo cantar espero) E doo o meu corpo inteiro Por entre versos de Homero: Que venha o algoz coveiro, 68 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.II, p.97, nº 396. Manuel Leal Freire, “Julgamento e morte do galo”, Colóquio sobre Folclore. Lisboa, Inatel, 1981, pp.183-190; José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, vol. IX, pp.608-14. 69 20 Que traga o seu punhal fero, Que me dê golpe certeiro Da vida já desespero... Pagando pelo crimes que não cometeu mas incorporou (novamente: um Cristo em menor sacrificando-se pelos pecados dos homens?), o galo sai morto deste funeral para onde entrou de boa saúde. A esta decapitação ritual (carnavalesca) associa-se outra forma de decapitação mais comum num quotidiano de uma comunidade que sobrevive à custa, por exemplo, dos bichos da capoeira e da carne que ela fornece. Ora acontece que nem essa morte se isenta de algum carácter ritual e é (ou deve ser) precedida de uma fórmula como a seguinte, conferidora de algum mérito ao animal sacrificado: Deus seja louvado, frango, em te criar, Para meu sustento te vou matar...70 Confronte-se esta situação com a expressa no poema de Sophia de Mello Breyner sobre “as pessoas sensíveis” que “não são capazes/ De matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas”71... e com a actual situação do aviário onde à ave não é dado espaço de movimento para acelerar a engorda e crescimento e onde a matança é isentada de todo e qualquer carácter ritual. * Ora, é através da literatura de tradição oral, nomeadamente através do conto, que os animais em geral e os galináceos em particular (sobretudo, os pintos, os menores do mundo menor) se erguem da sua posição de subordinados para se defender dos humanos. A conhecida história do Pito-Suro72 é exemplar dessa revolta dos oprimidos pintos (paradigma talvez da revolta dos oprimidos galináceos ou animais em geral): O pito-suro encarregou-se de ir falar ao rei para lhe expor o resultado da conspiração dos galos e dos frangos, que se queixavam de serem mortos pelo homem. O suro, no caminho, encontrou um rio que lhe disse que o não deixava passar; o suro engoliu-o; encontrou um penedo enorme e depois um enxame de vespões que lhe disseram o mesmo que o rio: o suro engoliu tudo.73 Continuando, numa outra versão: No tempo em que os seres se entendiam [porque educados para a cidadania? Ou porque prontos a defender o seu ideal, com direito à palavra libertadora?] havia um pintainho a quem aconteceu estar a comer uns milhos, quando o rei passou numa esplêndida carruagem. Faltava ao pintainho comer apenas um milho, quando o rei passou ao pé dele, mas aquele teve medo e fugiu. Quando voltou já não encontrou o milho. Resolveu dirigir-se a casa do rei. Passados alguns momentos passou ao pé dum regato e este lhe disse: --Ó pintainho, aonde vais? --Vou a casa do rei, que por causa dele perdi um milho—lhe respondeu o pintainho. --Levas-me no teu papo? --Levo—lhe respondeu o pintainho, e bebeu a água do regato. Chegou mais adiante e encontrou uma pedra, falando-lhe esta da mesma maneira que o regato. O pintainho anuiu a este pedido, como ao primeiro. 70 Manuel Leal Freire, “Religião e vida na oral raiana da Beira Alta”, Idem, p.195. Antologia. Lisboa, Moraes, 1975, p.195. 72 Variante de suru (Brasil)?: animal sem cauda ou que só tem o coto da cauda. 73 Leite de Vasconcellos, Contos Populares, vol.I. Coimbra, Universidade, p.81. 71 21 Mais adiante, encontrou uma machada, que lhe falou da mesma maneira que a pedra e o regato. Chegou a casa do rei, e este, mal o viu, mandou logo agarrá-lo e metê-lo na capoeira. O pintainho, passados alguns instantes, fugiu. O rei mandou metê-lo no forno, e o pintainho, assim que lá se viu, disse: --Ó pedra, sai do meu papo e quebra a talha. Assim fez a pedra, e quebrou a talha. O rei mandou então metê-lo numa capoeira muito forte; mas o pintainho, assim que lá se achou, disse: --Ó machada, sai do meu papo e quebra esta capoeira. A machada quebrou a capoeira e o pintainho tornou a sair. Então o rei perguntou-lhe o que queria: e o pintainho respondeu-lhe que vinha pedir indemnização de um milho que tinha perdido por causa dele. O rei mandou então dar-lhe um carro de milho. E assim o pintainho mangou do rei.74 Um pintainho capaz de vencer um rio, um penedo, um enxame de vespões, um rei? Um pintainho que ‘engole’ literalmente as ofensas que lhe fazem e que as devolve desarmando quem o provoca? Um pintainho armado em Tiririca? Atentemos no facto de ser o engolir (levar no papo) o capital utilizável para a sobrevivência—por estar assim o pinto unido com o universo que o rodeia e que com ele se relaciona? Por serem pinto e ecosistema já só um? Acrescentemos um pormenor de uma versão na qual o pinto procura não um milho mas um brinco d’oiro75: Qui-qui-ri-qui-qui O meu brinco d’oiro Quero-o já aqui. No final, o rei come o pinto e é de dentro da barriga do rei que o pinto volta a cantar. É essa voz ‘tragada’ mas viva que permite a salvação: vendo que não o pode vencer (apagar o canto), o rei devolve o pinto ao mundo e o brinco de oiro ao pinto. Uma outra versão76, “Um galo extraordinário”77 cria com estas versões do conto do “Pito Suro” uma curiosíssima parceria. Neste caso, é um galo que se escapa de ser “jantári” do “dia de Natáli” e que decide “àbalári” e “correr mundo”. Abalou, foi a correr mundo. As velhas, no outro dia de manhã, levantaram-se, foram à busca do galo, aqui está o galo, além está o galo, nunca mais o viram. O galo foi então a correr mundo, «tira, tira, tira, tira, dem, dem, dem, dem», foi, encontrou um carreiro, um carreiro com parelha e tudo. Disse: --Ai, mas que galo tão bonito! Mesmo agora o vou ápanhar! Foi o carreiro, com a parelha e tudo, foi àpanhar além o galo. --Abre, cu, entra o carreiro. Bom, foi, «tira, tira, tira, tira», e encontrou uma vespereira. As vêsperas deram logo em picar, picar, picar, picar e deixaram-no todo bem picado. --Abre, cu, entra a vespereira! Entrou a vespereira pra dentro. Depois, foi «tira, tira» pra diante, «dem, dem», encontrou uma raposa. A raposa: --Ah, compadre galo, mesmo agora te como! --Abre, cu, entra a raposa! 74 Idem, p.82-3 (subl. nosso). Cf. a versão de António Torrado, O pinto pançudo. Lisboa, Plátano, 1982. Contada por uma docente da Escola Superior de Educação de Beja, Alice Espada (cerca de 40 anos). 76 Outras versões deste conto a serem utilizadas como material comparativo: “O pinto borrachudo”, versão recolhida por Adolfo Coelho, Contos Nacionais para Crianças Cultura Popular e Educação (org. João Leal) . Lisboa, Dom Quixote, 1993, p.43; António Torrado, O pinto pançudo Lisboa, Plátano, 1982; Luísa Ducla Soares, O meio galo. Lisboa, Edições Asa, 1977.. 77 Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.I, p.36, nº 27. 75 22 Entra a raposa pró rabo do galo também. Foi pra diante, pra diante, encontrou um lobo. O lobo também foi além a querê-lo comer. --Abre, cu, cu, entra o lobo! Entrou o lobo. Foi pra diante, pra diante, encontrou uma ribeira. Ali andou, ribeira abaixo, ribeira acima... --Abre, cu, entra a ribeira! Entrou a ribeira pelo rabo do galo. Foi pra diente, pra diente, encontrou um boi. Disse-lhe o boi: --Ai, compadre galo, tão bonito! Começou-lhe logo a marrar-lhe. --Abre, cu, entra o boi! Bom, foi pra diante, encontrou um palácio. Estavam as criadas à janela, começaram logo: --Ai, minha senhora, venha cá vêri um galo tão bonito que além vem! Levaram logo o galo. --Ai, levem-no além prò celeiro, não o juntem com as outras galinhas, porque é tão bonito, não o piquem. Foi, levaram-no prò celeiro. O celeiro estava cheiozinho de semente. Ele lá por essa noite afora... --Abre o cu, sai o carreiro. Saiu o carreiro, levou o trigo todito. De manhã, quando foram lá ver o galo, estava ele espenicando nas fristas valdoso! --Ai minha senhora, já o galo comeu o trigo todito! Quando foi lá a ver... --Ai! Olha, levem-no já além junto com as outras galinhas, tanto se me dá que o piquem bem como que não. Lá por essa noite afora... --Abre, cu, sai a raposa. Saiu a raposa, papou as galinhas toditas. Quando eles se levantaram, foram a ver o galo, estavam as galinhas todas mortas. --Ai, minha senhora, já o galo matou as galinhas toditas! --Ai, senhores! Olhem, metem-no já além pr’àquela cavalariça (onde estavam as bestas)! Lá por essa noite afora... --Abre o cu, sai o lobo. Sai o lobo, matou as bestas toditas. Elas: --Ai, minha senhora, já o galo matou as bestas toditas! --Ai! Olhem, puxem lá fogo ao forno e vamos lá, mas é a queimá-lo! Foram, puxaram fogo ao forno. Elas puseram-se do lado de fora e empurrando o galo lá pra dentro do forno, pra quando lá estar lá dentro, puxarem fogo ao forno. O galo, assim que lhe chegou lá o calor da labareda: --Abre, cu, sai a ribeira. Saiu a ribeira, levou as mulheres todas por dentro, na ribeira, na cheia: --Ai, mas que galo é este, senhores! Vamos lá nós agora... Apregoaram plo povo, quem quiser ir a matar um galo. Ora, juntaram-se uns com espingardas, outros com cavalos e tudo. Quando estava já tudo preparado ali, ao pé do portão... --Abre, cu, sai o boi! Saiu o boi, oh, havia ali gente a fugir por todos os lados e ele agora lá estará a fazer vida santa. Comparando com o conto do Pito-Suro, cumpre agora apenas atentar na forma como o sistema digestivo funciona nestas versões: em dois sentidos, com lugares de entrada funcionando como de saída e com lugares de saída funcionando como de entrada. Associemos estes casos ao brinquedo indiano que recolhemos e que exemplifica a relação de paridade entre os polos opostos do corpo: boca/bico e cauda. Sendo um lugar assaltável, a capoeira surge, num outro conto, como o lugar onde, por sua vez, o pecado (da voracidade) deixa de compensar porque é aí que a verdade vem ao de cima e a justiça é reposta. Sete galinhas devolvidas do papo da raposa passam a catorze. Isto no conto “A raposa”78, em que esta assalta uma capoeira de galinhas... ...mas a capoeira tinha uma ratoeira na porta. A raposa entrou para dentro e ficou presa dentro da capoeira e comeu as galinhas todas, que eram sete. O homem quando chegou a casa viu a raposa dentro da capoeira e as galinhas todas comidas. Pegou no cipó e foi à capoeira, e começou a bater na raposa. 78 Consiglieri Pedroso, Contos Populares Portugueses. Lisboa, Vega, 1978, p.167-8. 23 A raposa começou a pedir misericórdia: --Perdoe-me, seu lavrador honrado, que eu sete lhe comi, e catorze lhe darei, nem que eu à fome morra, não quero andar debaixo da sua cachaporra. E terminemos com a voz daquele frango que, num notável texto da nossa tradição popular, goza do direito de, por palavras, se insurgir contra a morte (para- o-tacho) que lhe é infligida pela faca e assim se defender por palavras do antropocentrismo vigente. Eis a fala desse ‘desgraçado’ que, em poucos outros lugares como aqui nestes textos, terá direito ao desabafo perante a morte eminente. Canta o galo velho-- «quem virá lá?» Responde o galo novo-- «Um cavalheiro» Diz a galinha-- «Jantará cá?» Pia o frango-- «Triste de mim!» Pia outro mais pequeno-- «Tripas ao sol.»79 Pinto, frango, galinha ou galo, como nós, os humanos, condenado a não permanecer. Nós todos galos? Ninguém cá fica pra galo de Entrudo80. Se um brinquedo mostra o mundo, então, um frango, um pinto, um galo, uma galinha, ou melhor, a criação, poderá assinalar a outra, a que se escreve com maiúscula? Estes textos, estes brinquedos (menores) estarão cá, no campo da cultura, para ‘mangar’ dos grandes, dos maiores? A capoeira como território onde vivemos e onde a justiça é pelo menos sonhada? Um galinheiro, um reino? Saramago a responder—ao desafio—propondo o ponto de vista do “galinheiro” donde se observa o reverso da coroa do camarote presidencial: por baixo ou por trás do que se vê, há sempre mais coisas que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro. Um telhado é uma máscara, e o ponto de vista do «galinheiro» ajuda a perceber melhor a coroa81. Um ponto de vista esclarecedor, este de ficar por alguns momentos no mundo dos menores? Um poleiro, um lugar no universo? 79 Acrescento o ponto-de-vista-do-porco no conto “A casa dos ladrões” (Alda da Silva Soromenho, Idem, vol. I, p.45: “ouviu essa conversa [sobre ser gordo e estar a modos de ser morto] e disse; «Olá! Ah! Vocês têm-me na engorda é para me matar! Não, vocês não me matam, então. Ah! Vocês tinham-me aqui para me matarem! Ah! Ah! Vou-me embora, vou-me pôr é a fugir.»” E num texto repescado por Alice Vieira na tradição popular portuguesa: “Eu fui chamado à cidade/ no mês do Natal um dia,/ para ir organizar/ grande casa morgadia./ Levei para meu negócio/ uma cabra e sua cria,/ um porco e um carneiro/ comigo por companhia.// Vai o porco vagaroso,/ arrastado parecia;/ todos os outros calados,/ só o porco é que gemia;/ os gemidos que ele dava/ a cabra não entendia:/ --Calate lá, por que choras?/ (a cabra ao porco dizia)/ vês o carneiro calado,/ eu calada também ia,/ e o filho que vai comigo/ nem de mamar me pedia;/ pára tu já de grunhir,/ que ninguém aguentaria/ em tão longa caminhada/ ouvir tanta gritaria!// O porco, sem se calar,/ estas razões respondia:/ --Cada qual conta da festa/ como na festa lhe iria:/ vocês vão viver no pasto,/ com farta comedoria,/ o carneiro para dar lã,/ e tu, leite cada dia;/ mas eu cá só dou toucinho,/ só minhas carnes daria,/ tenho os meus dias contados,/ só me espera a agonia.// E tinha o porco razão:/ quem também não gritaria?/ Pela festa do Natal/ o triste porco morria.” (Eu bem vi nascer o sol. Lisboa, Caminho, 1994, pp.144-5). 80 José Ruivinho Brazão, Idem, p.123, nº1831. 81 José Saramago, Bagagem do Viajante, 3ª ed. Lisboa, Caminho, 1988, p. 108. 24 O direito ao milho que ainda falta? CONCLUINDO... CAPOEIRA MAIS HIPÓTESES EM REDOR DA Nesta reflexão sobre a criação no mundo da tradição popular passámos dos brinquedos às palavras e continuámos a ler não só galinhas, mas também galos, pintos, nada de patos e, no final, um frango. Registe-se aqui que se trata de um ‘work in progress’ de que este texto apenas ensaia uma incipiente versão que virá a ser desenvolvida. Ainda há desordem na capoeira e a criação não surge aqui ordenada e rentabilizada em aviário concebido e estruturado para dar rendimento (académico, já se vê). Ainda antes do “dia de S. Nunca à tarde” ou da “semana dos 9 dias” ou do tempo em que... “as galinhas tiverem dentes”, aperfeiçoaremos este projecto para dar lugar a um verdadeiramente enobrecido. Condizente com a nobreza do tema. Haverá então que descrever o sentido desta criação no mundo, primeiro enquanto corpo depois enquanto cosmos. 1- Criação no corpo: voz (canto ou fala), sexo, boca ou fome? No conto “O galego e a portuguesa”82, joga-se com o sentido de encomenda (arroba de lã, dois presuntos e um galo) e relação sexual para, finalmente, se falar do orgão sexual feminino como de “quedelichos” de lã, “orelichas” de presuntos e “um galo” com uma “cristicha” pequena. Sexo. Galinha e corpo. A galinha no corpo. Redesenhar o mapa da criação no humano? 2- Criação no cosmos: relações humanas e sociais, interacção, discursos de cooperação e conflito. Desatemos a colocar hipóteses, especulemos pois: • • • • • 82 83 Os humanos enquanto criação. A analogia torna-se evidente quando somos confrontados com relatos como aquele em que uma mulher comete ‘o crime’ de ter relações sexuais com o marido enquanto está menstruada. No dia seguinte, “ao entrar na capoeira, parte um ovo que tem lá dentro um ser monstruoso, anunciando-lhe o monstro que ela própria irá conceber, para ser castigada pelo seu crime.”83 A criação colocar-nos-á ao nível da asa rasa, do sem-voo, do prato, da alimentação. A predação como modelo de funcionamento da sociedade: somos como aquilo que comemos, somos aquilo que comemos, comemos aquilo que somos. Nós galinhas. Nós galos. Nós pintos. Nós frangos, franganotes. A criação e a caça. Os animais pelos quais vivemos. As metáforas animais na linguagem quotidiana: as da criação, do mundo próximo e caseiro (as mulheres galinhas) e as da caça, o distante, o adverso (ser atirado às feras). A criação é a novidade. É desencanto vê-la na grade? A capoeira como território gradeado versus campo solto, à solta (a valorização da galinha de campo sobre a de aviário, a capoeira ‘in extremis’). As aves de capoeira estariam ao nível do voo raso, da vivência ao rés do solo, da metaforização mais lexicalizada e mais conservadora, num plano mais rasteiro, mais Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho, Idem, vol.II, p.47, nº365. Clara Pinto Correia, O Mistério dos Mistérios. Lisboa, Relógio de Água, 1999, p.11. 25 doméstico e com menos alcance poético. As aves, as outras, as realmente voadoras estariam mais próximas do plano da poesia, metaforizando o voo vasto, a amplitude do sonho. • Seremos educados/ domesticados para a cidadania da grade, da capoeira, do galinheiro, da vedação—ao nível da asa rasa, do voo rasteiro, do irmos indo para o papo uns dos outros (“já o papei”, “já o papaste”, “já o papou”, “já o papámos”...)—seguindo o modelo do talvez primeiro ‘bicho’ a ser domesticado84, a doravante ave de capoeira. E daí que se lhe chame (de) criação? • Ou, pelo contrário, seremos educados segundo um modelo de ternura, maternidade, protecção (tendentes inclusivamente a aceitação de outras raças e à adopção, conforme o conto de Luísa Ducla Soares), um universo amplo e vasto progressivamente ‘afunilado’ e desvirtuado à medida do crescimento humano e à medida da filtragem de certos textos ‘abertos’ para uma progressiva fixação em certos provérbios ‘fechados’ e hirtos? • Por que razão passa o galo a ser, apenas, o macho, o galador, o rei e a galinha, a fêmea, a estúpida, tendo como consequência a desvalorização do próprio conceito de ‘mãe-galinha’? Mesmo em termos de significação simbólica, o galo parece ter sempre mais prestígio do que a galinha, valorizada sacrificialmente em sociedades africanas... • Nós reflectimos sobre motivos: os animais de capoeira. Maria Tatar reflecte sobre o sucesso de certas histórias e de certas heroínas como Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida, Bela (e o Monstro), Menina do Capuchinho Vermelho. Estamos todos falando sobre o mesmo assunto: o da inevitável mutabilidade da tradição (que vive de deixar de ser “o que era”, conforme o tão glosado ‘slogan’ publicitário), a passagem das narrativas e deste saber oral dos celeiros e das lareiras para os infantários e literatura para a infância, o cenário da normalização e perda da ‘biodiversidade’ narrativa paralelamente à recente emergência da recriação assinada de certos contos tradicionais esquecidos: Why some folk stories survive and thrive in an official print culture while others fail to make the transition from oral tellings for adults to books for children85. No caso Disney, parecem ser valores transmitidos e incentivados: a passividade, o espírito de sacrifício, a domesticidade e a simplicidade. Há casos de heroicização da diferença, da capacidade de resistência e de subversão que foram, segundo Maria Tatar, objecto de repressão cultural colectiva (nos Estados Unidos) e de que hoje apenas sobrevivem versões “higienizadas”, que poderíamos pôr a par das que, relativamente ao universo da capoeira, predominam, hoje em dia, no extremo ocidental da Europa. Curiosamente, parece ser, entre nós, a mais recente literatura infantil a repor no seu lugar ancestral estes seres da criação e a No dicionário, a criação designa—e não só popularmente—o conjunto dos animais domésticos que se criam, principalmente para fins lucrativos (de criação = de adopção). O galo terá sido, segundo algumas perspectivas, o primeiro animal a ser domesticado (Índia, 3200 A. C.). Daí que seja à sua família aplicado o termo criação? Será que a criação constitui o núcleo original da domesticação e da criação caseira, familiar, comunal? Em A Perfect Harmony: The Intertwining Lives of Animals and Humans Throughout History (Simon and Schuster Books, 1996), Roger Caras define a domesticação como “the shaping of a species by man using selective breeding to replace natural selection”. Recenseando as origens e prováveis métodos de domesticação, assim como a linhagem ascendente de inúmeros animais desde a cabra ao cavalo na Idade da Pedra até ao camelo e ao elefante em 4000 A.C. e ao gato nos anos mais recentes, Caras explica a importância da representação dos animais no decurso da “evolução humana”. Por exemplo, a acessibilidade a um rebanho de cabras terá pela primeira vez permitido viajar no deserto e nas áreas montanhosas; terá também proporcionado à raça outrora-nómada sustentar crescentes concentrações de gente, possibilitando assim o desenvolvimento de vilas e cidades. Segundo Caras, a revolução industrial terá tido lugar, em parte, porque rebanhos de carneiros que pastavam na Europa do século XVIII forneciam riqueza e lã “to fuel the change”. Mas, ainda segundo este autor, há muitas facetas na domesticação. A própria cabra, que terá conduzido o homem para fora da escuridão da gruta, tem devastado a vegetação e mudado a face dos continentes. 85 Grimm’s Grimmest (introdução de Maria Tatar). San Francisco, Chronicle Books, 1997, p.14. 84 26 querer reabilitá-los para o senso comum, dignificando-lhes a sua missão na terra junto dos humanos, sustentando-lhes o dia a dia através do alimento. * Repensemos—à custa desta leitura da criação—a questão dos géneros para verificar que mais uma vez se está diante da não linearidade do aparentemente simples: o pequeno esconde o forte. O princípio da Tiririca. E também o da Jararaca. E o da Pororoca. Brinquemos às analogias (a construção cultural da criança determinando a do adulto86). Olhemos o provérbio. Terá resistido ao crescimento (invasão?) dos media comportando-se como a Jararaca: mordendo e atacando. Terá sido morto? Mumificado? Veja-se como vive agora do lado do ‘inimigo’, cúmplice das suas forças consumistas e empenhadas sobretudo no rendimento material, sem preconceitos éticos. Veja-se como vive do lado da publicidade—sem remorsos, sem a má consciência de ter passado de um lado ao outro e assim ter morrido, congelado. Curiosamente era a Jararaca quem tinha “logo” declarado “luta de morte” aos invasores: Não esperou nada. Deu logo um bote num rápido pinote. --Uma cobra! Pega! Acaba! Mata! Bate-que-bate. Vupt-vupt! Pegaram. Acabaram. Mataram. Uma visão catastrofista sobre o projecto de vida de um provérbio? Não é dele que, afinal, se fala quando comummente se refere a tradição popular em geral, literatura tradicional em particular? Não foi ele o responsável pelo chamado ‘afunilamento’ da visão do mundo? Talvez o conto não condicione tanto quanto o provérbio a cosmovisão... E as cantigas? Terão agido como a Perereca, retirando-se para fora da área da cena (para estudar estratégias, para “escolher o momento de atacar”, para “aprender a brigar” e “ter chance de ganhar”?) Onde vivem agora? Enamoradas por alguma Pororoca ou pregando numa (outra) freguesia onde possam exprimir-se e existir como música e alegria de saltar e soltar rimas? Vivem longe. Desapareceram do nosso campo de visão. Terão morrido ou esperam ainda o melhor momento de atacar? O conto resistiu. Ficou e resistiu. Vive ali bem perto nos canteiros, nos pouquinhos de terra de cada sonho, de cada livro de infância, de cada adormecer. Será? Ou será que é a importância conferida pela instituição consagradora (o programa curricular da escola) a conferirlhe dignidade e longevidade? Certo é que, quer em meios ‘domésticos’, quer em meios escolares, o conto-feito-tiririca ainda parece resistir: ainda há poetas que o contam, contadores que o ensaiam (encontros de contadores nas bibliotecas municipais!) e assim ele escapa e se infiltra— subtilmente—no imaginário de alguns contemporâneos que teimam em não aligeirar o vasto campo da tradição, que resistem a espartilhar a ampla concepção do mundo oferecida desde sempre pela chamada literatura tradicional. Será que começando por olhar o conto e a impressionante vastidão do seu universo simbólico, se suplanta a limitação do provérbio (ou melhor: de certos provérbios mais divulgados) e do seu olhar redutor? Será que a criação nos surge desde logo enobrecida? 86 Brincamos... citando Jorge de Sena e a “mania analógica dos poetas”: “Eu creio petulância,/ infantilidade, gosto de confundir,/ além de irreparável pretensão à delicadeza,/ esta mania analógica; um triste/ hábito milenário de ser por conta de outrem/ o medo de não ser por conta própria./ E não é tudo ainda, porque o hábito implica/ perigos de grande gravidade. Com efeito/ a gente começa por comparar aceitando,/ por forma oculta ou inconsciente, o mimetismo/ que o comparar assimilando arrasta;/ depois a gente não distingue já/ a cor de coisa alguma” (Poesia; vol.III. Lisboa, Moraes, 1978, p.60) 27 Porque se dá, popularmente, o nome de criação a estes vivos (termo que se utiliza ainda para designar os animais da quinta: “ir dar de comer aos vivos”) supostamente ‘menores’, que convivem com as populações e as sustentam? Cumpriria finalmente ver se é a capacidade de linguagem que ergue o vivo menor que os referidos provérbios manifestam em um vivo maior e mais digno, presente, por exemplo, no conto. Será porque fala que se enobrece? É, afinal, a fala—e não necessariamente, a poesia— que manifesta “a potencialidade mais alta do humano, o poder exprimir-se”87? Será pela palavra que o ser mais rasteiro se impõe? Quererá isso dizer que, nos provérbios, os seres da criação nunca são ouvidos falar? Ou que a sua fala não passa de cacarejo? Será que só no plano do conto a fala da criação se transcende e se aproxima da fala humana, aquela que aqui nos importa? Por que razão estão tão presentes nas lengalengas e rimas infantis os textos com estes seres da criação? Porque educamos os nossos filhos segundo modelos de pitinhas que põem o ovo, galinhas que aquecem os filhos debaixo dos braços88 recorrendo a jogos, rimas e gestos educativos em torno de seres da capoeira? Para mais tarde, desprezarmos... • esses mesmos seres de capoeira • os filhos!? • ou os valores que inculcamos? Se centramos a actividade pedagógica (uma verdadeira educação para a cidadania) num modelo de vida da criação na capoeira, por que razão a desconsideramos, passado uns anos, e o manifestamos nas expressões da linguagem quotidiana em “metáforas pelas quais vivemos”? Visto ao revés, porque insistimos em modelos de capoeira? Porque se trata de ensinar a subir ao poleiro (do sucesso, da bem aventurança)? Porque se trata de aprender a cantar de galo (mesmo que se seja galinha) e a erguer a voz? Porque se trata de evitar o choco (e apenas as doenças se chocam)? Porque o que importa é colocar o que se aprecia ou aborrece no papo? Porque é que é um galo! errar? Se meramente para consumo porque recorrem tão insistentemente na tradição popular portuguesa estes seres da criação? A galinha (e o galo) existirão enquanto mulher (e homem) para mero consumo? Para criação? Para reprodução e perpetuação da espécie? E nos sinais da sua fraca perspicácia (principalmente na fêmea, tal como é vista no senso comum, não na tradição) poder-se-á ler a incapacidade de lidar com a ironia desta nossa humana existência ser mantida e tecida apenas para ser continuada? Os humanos como galináceos numa rede-capoeira para dar de comer aos seguintes? Os humanos olhando-se enquanto criação e aguardando que a providência do senhor (o dono do galinheiro) o alimente à hora certa, todos os dias? O conforto (poupadinho e conservador) do mundo da capoeira transmitido e perpetuado naquilo que o senso comum retém da galinha-galo-pinto: dois ou três provérbios e ditos, onde há galos não cantam galinhas, grão a grão enche a galinha o papo, deitar-se com as galinhas?89 Quem graceja sobre este assunto quando se propõe que seja tema de trabalho académico? Quem, brincando, manifesta concordar com as linhas declaradas pelo provérbio? O que se 87 Joaquim Manuel Magalhães, Dylan Thomas, consequência da literatura e do real na sua poesia. Lisboa, Assírio e Alvim, 1982, p.22. 88 Adolfo Coelho, Jogos e Rimas Infantis. Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1919, p.18-19. 89 Bem cruéis os exemplos transmitidos pelos colegas de Espanha: “ser más puta que las gallinas”, “eres más puta que las gallinas que aprendiron a nadar para j... com los patos” (sic). 28 subentende em provérbios que tratam as galinhas como as mulheres, as mulheres como as galinhas e ambas como seres menores? Caberia este projecto no âmbito dos chamados Women Studies? Ou a reflexão sobre, por exemplo, a escrita feminina não aguenta ser sequer olhada pelo prisma da criação? Será mais digno associar a mulher à serpente e à cobra90 até mesmo à cadela e à cabra, do que à galinha? Qual a razão por que a galinha surge no patamar mais baixo da escala de valorização animal? É biologicamente inferior? E por que razão são os seus ovos tão pregnantes simbolicamente? Quantas cosmogonias num ovo? De onde vem esse ovo cósmico? Decerto nunca de um papo de galinha? De um galo? Galinha não põe do galo, mas sim do papo.91 Se a criação nos surge contemporaneamente tão desvalorizada (até as rugas femininas são pés de galinha, patas de gallo em Espanha) por que razão ao ovo (recorrente em adivinhas, talvez por ser em si um objecto fechado e misterioso) é quase sempre associada uma carga positiva? Quem terá primeiro nascido: o ovo (Ex Ovo Omnia, o “arrojado postulado” de Harvey em 92 1651 ) ou a galinha? Sabendo já que o ovo goza de um prestígio de que a galinha não aufere, atente-se no significado deste dito e nas implicações que pressupõe: de um ente positivo (o ovo) pode eclodir algo de negativo (galinha)? De um ente negativo (a galinha) pode sair algo de positivo (ovo)? Bem responde o Daniel Canês de 4 anos, introduzindo nesta problemática das origens, um lugar intermédio, desconstrutor do binómio menor-maior, síntese produtiva assente numa polémica ancestral93: Quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo? --O pintainho. Repensemos a relação com a criança (agora um bebé de poucos meses) e um dos primeiros gestos que se lhe ensina: Onde é que a pitinha põe o ovo? A pitinha põe o ovo ensinando a centrar-se sobre si e sobre os seus? Amando? Coordenando exterior e interior, mundo e eu, dedos e palma, o único lugar da mão passível de ser ocultado? No dizer de João dos Santos, um simples gesto criador de um “espaço para falar”94, um “jogo de expressão popular” que contém a linguagem e “mostra que a linguagem falada tem que ver com o gesto e tem que ver com o outro”, sendo “uma espécie de gesto à distância...”. Para este pedagogo, este gesto simples e aparentemente “tolo” surge com “uma beleza e uma dimensão espantosas, porque contém tudo”. E o tudo a que, por ora, nos dedicámos parece estar aqui neste mundo criado tão perto da porta da casa (um galinheiro pintado de vermelho em forma de coração na instalação da artista 90 José Gabriel Pereira Bastos, A Mulher, o Leite e a Cobra. Lisboa, Rolim, 1988. José Pedro Machado, O Grande Livro dos Provérbios. Lisboa, Editorial Notícias, 1996, p.242. 92 Clara Pinto Correia, Idem, p.107. 93 Escreve Clara Pinto Correia em O Ovário de Eva (Lisboa, Relógio de Água, 1998) que para os ovistas, “toda a Humanidade tinha sido encapsulada inicialmente no interior do ovário de Eva” (p.74). Para os espermistas “Deus tinha colocado todos os seres humanos dentro dos testículos de Adão, em vez do ovário de Eva” (p.116); “todos os animais se encontravam encapsulados dentro dos espermatozóides antes do nascimento” (p.194). E a propósito das profundas implicações destas duas visões dos mundos dentro do mundo Criado: “Os espermistas podem ter proposto o impensável ao sustentarem que a humanidade era transportada dentro de vermes; mas […] é difícil dizer qual das versões seria mais desagradável para a público em geral durante a época da Preformação: eclodir de dentro de um verme que, pelo menos, vinha de um corpo feito à imagem de Deus, ou aceitar que Deus tinha pregado uma partida maldosa à humanidade, submetendo-nos à humilhação de sermos encapsulados numa forma perfeita” [um ovo]--mas que estava escondida no interior das mulheres.” (p.151). Ainda sobre teorias da reprodução: Clara Pinto Correia, O Mistério dos Mistérios. Lisboa, Relógio de Água, 1999. 94 Se não sabe porque é que pergunta?. Lisboa, Assírio e Alvim, 1988, p.128. 91 29 contemporânea, Fátima Mendonça95), uma comunidade a que se assiste e pela qual se é assistido—porque dela nos alimentamos para comer em refeição consistente ou para vermos bem nutrida a aquisição de valores, a elevação do ser acima do bicho, o desenvolvimento da asa, da verticalidade sonhada. Será que, afinal, a mãe galinha ensina hoje um modo de se ser pai? 95 Na Herdade da Tojeira perto de Castelo Branco nos finais de 1999. 30