A Visita do Divino - Thesaurus Editora

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A Visita do Divino - Thesaurus Editora
Graça Veloso
A Visita
do
Divino
voto folia festa espetáculo
© by Graça Veloso – 2009
Ficha Técnica
Revisão e Composição
O Autor
Programação Visual
Flávio Lopes da Silva
Revisão
Janette Reis
Supervisão
Victor Tagore
Impressão
Thesaurus Editora
ISBN: 978-85-7062-846-6
V443v
Veloso, Jorge das Graças
A visita do divino / Jorge das Graças Veloso. – Brasília : Thesaurus,
2009.
368 p. ; il.
1. Cultura, Brasil 2. Folia do Divino, Brasil 3. Artes Cênicas, Brasil
4. Etnocenologia 5. Cultura popular, Brasil 6. Ritos espetaculares e
teatralidade 7. Espetacularidade I. Título
CDU 398(81)
CDD 398
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ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou informação
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Composto e impresso no Brasil
Printed in Brazil
A todos os meus:
os que já se foram
e os que aqui ainda estão.
Com amor, a meus pais
Jove (in memoriam) e Zalfa.
Com amor, a meus filhos
Clarice, Alexandre, Frederico e sua filha Anna Júlia.
Ag rade c i m e n tos
À Cia. dos Homens, Timóteo, Gê, Paulo, Norberto e Ramona,
por me propiciar o exercício cênico;
ao saudoso Dácio Lima (in memoriam), pela mudança de rumos;
ao amigo/irmão Chico Expedito, pelos começos;
ao amigo B. de Paiva, pela presença;
aos queridos irmãos Cleomar, Tiana, José, Selma, Maria e Miguel,
companheiros de vida, de dores e alegrias;
ao Professor Doutor Armindo Bião,
pela carinhosa orientação da tese;
aos Professores Doutores Carlos Rodrigues Brandão e Leonardo
Boccia, e Professoras Doutoras Sônia Lúcia Rangel e Christine
Douxami, membros da banca examinadora de minha tese de
doutorado, origem deste livro, pela distinta generosidade;
especialmente à Folia de Roça do Novo Gama e seus incontáveis e
amorosos foliões, Amarildos, Marias, Joaquins, Pedros, Manuéis, Anas,
Rosas, Euricos, pessoas comuns
de uma nova era;
e,
pela generosidade inestimável e eterna paciência,
a Marialmena.
E peço a Deus que Ele próprio, que é onipotente, trino e uno, abençoe
a todos: mestres, discípulos, possuidores, festejadores e trabalhadores.
(Et exoro Deum, ut ipse, qui est omnipotens, trinus et unus, benedicat
omnes docentes, discentes, habentes, recordantes et operantes.)
São Francisco de Assis
(Regula non bullata)
Sum ár io
Agradecimentos.................................................................................... 7
Sumário.............................................................................................. 11
Prefácio............................................................................................... 13
Introdução.......................................................................................... 17
Capítulo I
Profano em comunhão: A Folia e o Divino, histórias de um
saber religioso .................................................................................... 39
Adoração ao Divino Espírito Santo.................................................... 57
A Festa do Divino e as Folias Portuguesas......................................... 62
Folias do Divino: de Portugal, Brasil, Interior de Goiás..................... 69
A Folia do Divino do Sr. Ofir Mulato................................................ 79
Capítulo II
A identidade móvel ou o tempo das identificações peregrinas............ 91
O homo religiosus e seu corpo imaginante: um direito à celebração.............106
Capítulo III
Etnografia de um giro: a Folia de Roça do Novo Gama................... 131
Voto, Festa, Espetáculo. Uma visão etnocenológica.......................... 212
Conclusão......................................................................................... 237
Referências Bibliográficas................................................................. 251
Bibliografia Consultada.................................................................... 259
Anexo A........................................................................................... 261
Depoimento do Sr. Geraldo da Silva Rosa....................................... 263
Anexo B............................................................................................ 281
Imagens e cânticos da Folia de Roça do Novo Gama....................... 283
Anexo C........................................................................................... 345
Texto do espetáculo Inderna de Intão................................................ 347
Glossário.......................................................................................... 361
P r e fác io
Meu caro leitor, você tem em mãos o produto de uma paixão
razoável, por mais paradoxal que possa parecer essa expressão “paixão
razoável”. E é meu desejo que você a aproveite bem e logo. Por isso,
tentarei lhe expor, brevemente, não o tema da tese de doutorado que tive
a honra de acompanhar como professor orientador, desde sua gestação
durante o processo do mestrado de Jorge das Graças Veloso, e que é dedicada às folias do divino do entorno da cidade de Brasília, no planalto
central brasileiro. Mas sim, buscarei tecer algumas considerações sobre o
teatro e a teoria, essa encruzilhada acadêmica e artística, onde foi gerado
este livro que você agora manuseia.
Dois fenômenos marcantes da história da cultura ocidental, a
teoria e o teatro se desenvolveram em paralelo às primeiras dissecações
de cadáveres de que se tem notícia na vida da humanidade, ao aperfeiçoamento de um alfabeto fonético simplificado e à valorização do sentido da
visão, que percebe as maiores distâncias possíveis a partir do ponto de vista
de um mesmo observador. Na verdade, costuma-se considerar que foi aí,
nessa encruzilhada do tempo da antiguidade, antes de uma das mais famosas encarnações do divino de todos os tempos (a de Jesus Cristo), entre
a Europa, a Ásia e a África, que também teria surgido a história, como o
hábito de se registrar e comentar, por escrito, os fatos e feitos.
Tarefa ambiciosa a da humanidade, que, assim, se projetava para
o futuro e criava uma cultura da pedagogia. Pois é exatamente nessa tradição que se insere o paradoxo ao qual me referi no primeiro parágrafo deste
prefácio. As pessoas de teatro já labutam muito para fazer o que fazem e,
quando possível, viver, financeiramente, disso que fazem. Quando elas se
comprometem com a pedagogia e a academia, elas se desdobram e se multiplicam, em termos de criação teatral e de reflexão crítica. Pois foi bem esse
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graça veloso
o desafio que Jorge, cheio de graças em seu sobrenome materno, de modo
zeloso e veloz, enfrentou em seu doutoramento, concluído em 2004, e, também vitoriosamente, na publicação deste livro.
Por caminhos inusitados do destino que nos reuniu na Bahia, no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas das Escolas de Dança e
Teatro da Universidade Federal da Bahia, este seu livro, antes de se tornar
realidade, também passaria, em Brasília, pelas mãos de outro doutor dos
desafios na área da cultura, Tetê Catalão, de uma mesma rede que nos
reúne em torno de Verinha Lessa, ou Vera Lessa Catalão, entre o planalto
central baiano da Chapada Diamantina e o planalto central das refazendas, e que é presença essencial em meu bloco mágico e lua1. Apesar do
caráter fugidio das lousas mágicas, das ardósias e dos librillos de memoria,
inclusive o que manuseou e no qual escreveu Don Quijote2, que se poderia
estender, com parcimônia às teses de doutorado, disponíveis hoje no Brasil em meios eletrônicos e raras bibliotecas especializadas, um livro, objeto
concreto, real e com vocação para o futuro, também, evocará para sempre
essa possibilidade humana de escrever e reescrever.
Esse é o paradoxo da gente de teatro e, simultaneamente, de teoria,
viver entre o efêmero da cena e da vida das pessoas comuns e dos foliões,
o texto anotado em rascunho e reescrito para um relatório acadêmico de
pesquisa e o texto final de um livro, como este. Só com muita paixão, uma
1. Acabo de publicar um velho poema meu (escrito em Londres, em 1970) com esse título, em Bloco mágico e
lua e outros poemas (Salvador: P & A, 2008, 284 p.) e, também, acabo de ler uma versão, em língua portuguesa
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX [1923-1925]: O Ego
e o Id e outros trabalhos, Trad. Jayme Salomão, Rio de Janeiro: Imago Ed. Ltda., 1976, s. d., p. 283-290), da
versão inglesa (s.d.) ligeiramente corrigida de outra publicada em 1950, com notas adicionais e acompanhada de Nota do Editor Inglês, do artigo de Sigmund Freud, “provavelmente escrito no outono de 1924” e publicado originalmente em 1925 (Int. Z. Psychoanal., 11 (1), 1-5), intitulado “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’”, que trata do “curioso pequeno aparelho”, conhecido comercialmente na Grã-Bretanha como “printator”,
como referência real e concreta para considerações sobre a memória, o “neurótico” hábito de se tomar “nota
por escrito” e o “funcionamento do aparelho percentual da mente”. Pois foi justamente a lembrança de uma
“lousa mágica”, provavelmente uma versão brasileira simplificada do “bloco”, que recebi de presente quando
criança, que me levou a intitular meu poema “Bloco mágico e lua”, sendo a lua, além de referência genérica
à poesia e à loucura, um verdadeiro bloco mágico astronômico, na história da humanidade. Na apresentação
que escrevi para esse meu livrinho, no qual só as páginas ímpares estão impressas, para que as demais pudessem ser usadas ao bel prazer do leitor, sendo, assim, mais um bloco (ou meio bloco) de notas (encadernado
pela margem superior, com uma espiral plástica), refiro-me ao bloco mágico da psicanálise, pois ao escrever
essa apresentação, então, eu já ouvira falar do famoso artigo de Freud, que, no entanto, até esse momento, eu
desconhecia, ou dele me esquecera, sem ter tomado qualquer nota que tivesse permanecido...
2. Ver as referências a esse bloco de anotações no clássico de Miguel de Cervantes Don Quijote de la mancha (Madrid: Real Academia Española, 2004, p. 213 e 807) e em Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, séculos XIXVIII, de Roger Chartier (tradução Luzmara Curcino Ferreira, São Paulo, EDUNESP, 2007, p. 40 e seguintes).
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grande dose de bom senso e de razoabilidade e, por que não dizer, um tantinho assim (no mínimo, pelo menos) de sorte, para se chegar a bom termo,
após tantas opções vislumbradas nessas múltiplas encruzilhadas, tantas tentações mediadas por Exu, que brinca conosco se não o tratamos direitinho,
por Hermes Trimegisto, que nos ajuda a compreender as palavras, mas que
também é grande demais para que o entendamos plenamente, e por Mercúrio, sempre tão veloz no trato das mercadorias e das artes.
Quando percebemos que temos em mãos um texto sobre o divino encarnado em folias, em mais uma encruzilhada, agora do sagrado
com o profano, da folia brincadeira com a folia afrancesada da loucura,
da razão absoluta do urbanismo de Brasília com a emoção total que vai
do bairro do Cruzeiro à Roça do Novo Gama, nossa admiração atinge o
paroxismo. E o milagre se faz, de modo imediato, teoria e etnocenologia
e anuncia, de modo radioso, mais teatro. Você poderá testemunhar e usufruir. É só se entregar à folia e ao divino, visitando este livro, os locais dos
quais ele dá conta e muitos, mas muitos mesmo, teatros. Boa visitação.
Salvador, 24.11.2008.
Armindo Bião
Pesquisador do CNPq
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Introdução
Mas levará para sua nova vida as paixões da juventude: a poesia e o
gosto da alegria – poesia e alegria que de profanas se farão místicas
Jacques Le Goff
Plantar, cultivar, colher, curar, benzer, interceder, consolar, livrar,
libertar, salvar, viver. Para isso e muito mais, ou melhor, para tudo, seja na
vida ou na morte, aprendeu o homem, ao longo de sua história, a recorrer
ao sagrado. E muitas vezes essa invocação a outros mundos se dá pelos
mais inesperados caminhos das manifestações as mais profanas que ele já
pôde inventar. Em outros momentos o que se percebe é uma mistura entre
as coisas da terra, acreditadas impuras, com as dos céus, vistas com toda
sacralidade que se lhe consiga imputar. E é de uma dessas sinergias, entre
as coisas de Deus e as dos homens, feitas em forma de festas, ao mesmo
tempo sagradas e profanas, que aqui me proponho a falar.
O local é o entorno goiano do Distrito Federal, nos municípios
de Novo Gama, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia, tendo como
ponto de partida e de chegada o primeiro, em terras do que foi um dia
o julgado de Santa Luzia, por muito tempo conhecida como “das marmeladas”. O fato é que, por volta do vigésimo dia do mês de maio, há
aproximadamente trinta anos, centenas dos moradores das mais diferentes moradias da região, das mais pobres às mais ricas, têm a sua rotina
alterada por um acontecimento longamente esperado. Rompendo com
o ordinário de seu cotidiano, várias fazendas e sítios recebem, durante
mais de dez dias, duas bandeiras vermelhas, cada uma com uma pomba
branca pintada no centro. Elas são conduzidas por homens e mulheres
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graça veloso
que rezam, cantam e pedem esmolas em nome de uma santidade sempre
presente nas invocações de um grupo muito especial de fiéis, os devotos
do Divino Espírito Santo. Assim, com o nome de Folia do Divino, esta é
uma procissão precatória, votiva e rogatória, que vai de casa em casa nas
cidades do interior, em bairros de algumas metrópoles, e, como no caso
aqui visto, no meio rural de várias regiões do Brasil.
Caracterizo essas folias como manifestações sagrado/profanas
das religiosidades não oficiais, praticadas por fiéis ligados ao catolicismo
romano, e por este, às vezes, toleradas, outras incentivadas. O que pode
ser visto, na atualidade, quase sempre como uma busca de diálogos com
um rebanho a cada momento mais assediado por outras formas de culto,
principalmente os pentecostais e sua força de catequese para a conversão.
Elas, as folias, acontecem depois de preparativos que duram
praticamente o ano inteiro. A partir de uma reunião chamada de “junta”, realizada em um dia e numa casa preestabelecidos, quando se dá
a arvorada das bandeiras, o grupo sai em peregrinação, fazendo dois
tipos distintos de reuniões. A primeira, denominada pouso, no meio
rural, se dá durante a noite e se inicia mais ou menos às dezoito horas.
Ainda à distância, a visita é anunciada por uma trovoada de fogos de
artifício, seguida de um intermitente ressoar de dois pequenos tambores,
chamados de caixas. Com os alferes conduzindo as bandeiras à frente,
seguidos pelos caixeiros e os demais foliões, todos montados a cavalo,
se aproximam da casa principal da fazenda ou sítio. Fazendo evoluções,
com o grupo dividido em duas filas indianas, desenham círculos, oitos e
corações e, depois de um sinal do regente, espécie de capataz da companhia, param em uma formação de frente para a moradia e entregam as
bandeiras ao dono da casa e sua esposa, ou quem a represente, chamados
de barraqueiros.
A chegada, na sua totalidade, representa simbolicamente o pedido e a aceitação da visita. A partir daí são cumpridas, com um rigor
bastante considerável, várias etapas de um ritual que vai de práticas sagradas, como as cantorias de saudação e de louvação a um cruzeiro colocado na frente da casa, e a um altar armado na sala principal, até as mais
profanas, como os jogos – o truco, por exemplo – e o pagode. Não sem
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antes passar pelas orações do terço católico, muitas vezes encerrado com
a ladainha, rezada em uma aproximação de canto gregoriano, e pelo catira, dança de palmas e sapateados, que cumpre uma espécie de transição
para os festejos considerados mais mundanos.
Durante o pouso, os barraqueiros oferecem três refeições aos
foliões: o jantar, logo após a chegada, o café da manhã e o almoço, pouco
antes de se iniciar o trajeto do dia seguinte.
Já a segunda reunião, chamada de visita ou giro, ocorre durante
o dia, entre um pouso e outro, ou, eventualmente, pela manhã, enquanto
todos esperam pelo almoço. Geralmente são paradas rápidas, onde são
feitas orações e cantorias de saudação a imagens de santos, em altares
improvisados, e aos donos da casa e seus familiares. São consumidas, também, grandes quantidades de quitandas, doces, bebidas diversas, inclusive
alcoólicas, quase sempre cachaça de alambique, e, quando solicitado, dançado o catira. Com exceção de uma ou outra visita efetuada pela manhã, o
trajeto entre os pousos, no meio rural, se dá a cavalo. Os guias e os foliões
mais idosos são, excepcionalmente, conduzidos de carro. Já as folias de
rua, como ainda ocorrem nos dias de hoje em Luziânia e outras cidades
de Goiás, são feitas totalmente a pé. Os pousos e visitas, na cidade, são
simbólicos. E o trajeto, tal e qual acontece na Folia de Rua de Luziânia,
descrita em parte do Capítulo I deste livro, se dá somente em um dia.
Em cada uma das visitas, seja o giro ou o pouso, são arrecadados fundos, representados por dinheiro ou bens, leiloados posteriormente, que são entregues a uma determinada paróquia da cidade. Originalmente, como poderemos ver também no Capítulo I, esses recursos
eram utilizados nos gastos com a realização da festa em homenagem ao
Divino Espírito Santo. Hoje, porém, nem sempre este é o destino dos
valores arrecadados, ficando a cargo da paróquia a escolha de sua aplicação. Em um sentido de troca simbólica, em paga da esmola recebida, os
foliões levam a quem os recebe as bênçãos representadas pela bandeira
com a pomba branca, materialização da divindade adorada, e toda a
possibilidade de festa e comunhão que tal fato oferece.
A Folia do Divino, principalmente pelo caráter da finalidade que
era dada ao dinheiro arrecadado, foi sempre associada à festa do Espírito
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graça veloso
Santo, localizada, no caso aqui apresentado, no ciclo dos festejos de maio,
que se inicia no final da quaresma, com a Páscoa. A partir daí, são contados
cinquenta dias até o Pentecostes, data em que os judeus, em eras pré-cristãs,
comemoravam o início da colheita do trigo e o acontecimento em que Deus
teria dizimado os primogênitos dos egípcios. Esta teria sido a última das
dez pragas que precederam à libertação do povo escolhido, dando início à
grande jornada que levaria os seguidores de Moisés até a terra prometida.
Na transição desta comemoração para uma festa cristã, esses
motivos judaicos foram substituídos pelo evento bíblico da manifestação das línguas. Prenunciando o início de um novo tempo, em que o
cristianismo se espalharia pela Terra, o Espírito Santo de Deus teria se
posto sobre os seguidores de Jesus, no dia do primeiro Pentecostes após
a crucificação do Filho do Homem, dando-lhes a incumbência de propagar o evangelho pelos quatro cantos do mundo.
Esta, porém, não é uma data fixa no calendário das manifestações católicas, visto que em muitos outros locais, no Brasil, a Festa do
Divino ocorre no mês de agosto. Além disso, por questões funcionais
internas dos próprios grupos de foliões, mesmo na região do entorno do
Distrito Federal, registrei a ocorrência de folias, somente as dedicadas ao
Divino, no período alongado de março a setembro.
Dentre todas essas, me dedico neste livro a descrever os estudos
sobre a Folia de Roça do Novo Gama, antiga Folia do Sr. Ofir Mulato,
seu fundador, falecido em 2002, e liderada, atualmente, pelo Sr. Amarildo Meireles. E que tem como justificativa para sua escolha o fato de que,
nas proximidades do Distrito Federal, é uma das que, aparentemente,
mais cresceram nos últimos anos, passando de um grupo de aproximadamente quarenta foliões para algo que oscila em torno do número de
duzentos. Chegando, em determinados pousos, a mais de trezentos participantes. E este crescimento se dá sem o destaque que têm na mídia
manifestações congêneres de localidades mais conhecidas no espectro
turístico de Goiás como, por exemplo, as cavalhadas de Pirenópolis ou a
procissão do fogaréu, na Cidade de Goiás.
A pesquisa teve como objetivo principal a realização de um
estudo minucioso sobre os elementos sagrados e profanos das Folias do
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Divino no entorno goiano do Distrito Federal, partindo de suas significações histórico/religiosas, éticas e estéticas. E analisando também seu
caráter de matriz cênica para a montagem do espetáculo teatral Inderna
de Intão, criado a partir da utilização das noções etnocenológicas de
teatralidade e espetacularidade, encontráveis naquela manifestação.
E foram exatamente as possibilidades vislumbradas nos suportes teóricos da etnocenologia, em seu estado pré-paradigmático,
com seus pressupostos de combate a qualquer forma de etnocentrismo e apartação, as principais trilhas metodológicas seguidas durante
a realização da presente investigação. A etnocenologia se singulariza
pelo “aspecto que consideramos mais genuíno em sua natureza: a interdisciplinaridade” (SANTOS, 1998, p. 8). Não fosse por inúmeras outras
razões, somente a afirmação acima, acredito, já justificaria a escolha
das Folias do Divino como objeto de estudo. Se a arte se enquadra
entre as invenções que, ao lado da ciência e da religião, devem, parodiando Bertolt Brecht, aliviar a canseira da existência humana3,
também por si só já seria pertinente uma pesquisa sobre os aspectos
espetaculares das folias. Ainda muito mais quando esta expressão
está entre os grandes diálogos com os rituais religiosos, principalmente por suas características espetaculares, como é o caso específico
do trabalho de Seu Ofir (atualmente Seu Amarildo) e seus foliões.
Por essas interfaces, propostas pela etnocenologia, busco compreender as razões do florescimento, do auge e do posterior quase desaparecimento desta manifestação social, como também, e principalmente, demando entender seu novo fortalecimento, inserindo-a ainda no
campo das matrizes culturais da cena contemporânea. Mais ainda, como
busco explicar ao longo de minhas argumentações, vendo as folias como
parte desta cena contemporânea, não somente como uma matriz cultural, o que, acredito, torna esta justificativa ainda mais concreta.
Levo ainda em consideração significações do que veio a se tornar, nos últimos anos, a definição de retradicionalização. Compreendo
este termo como sendo todo o conjunto de ações, públicas e privadas,
3. Bertolt Brecht afirma em seu discurso final de A Vida de Galileu, que “a única finalidade da ciência está em
aliviar a canseira da existência humana” (BRECHT, 1977, p. 224).
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graça veloso
artísticas e acadêmicas, individuais e coletivas, que vem trazendo para
as visibilidades cotidianas de vários centros urbanos, os movimentos
das manifestações tradicionais das culturas brasileiras. Em movimentos
musicais, publicações, tanto científicas quanto em periódicos jornalísticos, espetáculos cênicos de várias ordens, por hibridizações diversas ou
por defesas intransigentes de sua “pureza”, pudemos constatar, a partir
da passagem da década dos 80 para os anos 90 do Século XX, uma
nova postura em relação às práticas inseridas nesse universo. Então,
aquilo que era feito em guetos de defesa da preservação das chamadas
raízes culturais brasileiras, isoladamente, ou mesmo as manifestações
de centros turísticos tradicionais, como, por exemplo, Pirenópolis, em
Goiás, adquire um novo status de importância no dia-a-dia de milhões
de pessoas. Baião, xaxado, congadas, folias, festas de santos, católicos
ou não, manguebeat, rockatira, lundus, punk-rock, eletromanguebeat, axé,
dentre dezenas de outros nomes, passaram a fazer parte do vocabulário
de muita gente, para quem, por desconhecimento ou por desinteresse,
eram estranhos. E, em muitos casos, tornaram-se programas de televisão, mesmo no campo mais comercial, ou meio de vida para muitas
pessoas e até para comunidades inteiras.
É nesse universo que se insere todo o discurso sobre a defesa
e a preservação dos bens intangíveis, ou imateriais, assumido pelas instâncias de poder oficialmente instaladas no Estado Brasileiro, em seus
vários níveis, federal, estaduais e de alguns municípios. Verdade é que
esta não é uma invenção nacional, visto que já se configurava, há algum
tempo, como uma demanda dos povos de vários outros países e mesmo
da Organização das Nações Unidas (ONU). Disso também falo no Capítulo I deste livro.
Se, como diz Bião, a arte, campo no qual se insere esta produção, pode ser compreendida pelas trocas com todos os “paradigmas
simbólicos e imaginários”, é exatamente por essas possibilidades de
interfaces que esta narrativa, sobre as Folias do Divino no entorno
goiano do Distrito Federal, tem fundamentação teórica nos diálogos
com várias outras áreas dos saberes humanos. E, para compreender
o universo em que se localizam aqueles que fazem a Folia de Roça
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a v i s i ta d o d i v i n o
do Novo Gama, estou lançando mão, inicialmente, das metodologias
associadas a algumas correntes da historiografia, da filosofia, da sociologia, dos estudos sobre as religiões, e, claro, sobre as artes cênicas e as
próprias formulações da etnocenologia.
Na historiografia, parto fundamentalmente do que propõe a
corrente da história vista de baixo, viés metodológico voltado para as
pessoas comuns, derivação daquilo que se convencionou chamar de
Nova História. Este movimento, iniciado em 1929 com a revista Annales d’histoire économique et sociale, desloca a compreensão da história de
um mundo voltado essencialmente para a política, com uma narrativa
concentrada nos grandes feitos de estadistas, generais, religiosos, todos
grandes nomes, reconhecidos pela objetividade dos documentos oficiais.
Pela nova compreensão, outros tópicos ascendem ao mesmo status de
importância legitimadora que têm esses documentos: passam a fazer
parte, também, do universo da historiografia, por exemplo, a infância,
a morte, os gestos, o corpo e as práticas religiosas das pessoas comuns.
Assim também como o imaginário e vários saberes não reconhecidos
pelas antigas instituições oficiais, e uma infinidade de outros objetos de
estudo que trazem para o centro das discussões o relativismo cultural
como base filosófica.
Por esta perspectiva foram traçadas, e estão registradas no Capítulo I, as trajetórias históricas e religiosas da manifestação aqui investigada. Desde a origem da festa de louvor ao Divino Espírito Santo, surgida,
segundo consta, de um voto da Rainha Santa Isabel de Aragão, esposa
de D. Diniz, sexto Rei de Portugal, no Séc. XIV, e sua junção com a folia
portuguesa, até a peregrinação sagrado/profana dos dias atuais. A folia,
que era uma dança rápida, ao som de pandeiros ou adufes, ao se agregar
aos festejos religiosos do Divino Espírito Santo, toma as características
devocionais que conhecemos em várias regiões do Brasil contemporâneo.
Nessa parte, me interessam as construções materiais do ritual, suas significações religiosas, as interações delas advindas e, principalmente, seus
aspectos estéticos, de espetacularidade, tanto no sentido substantivo, da
própria manifestação, quanto no adjetivo dos estados alterados, de corpos
e comportamentos, e a teatralidade dos participantes.
23
graça veloso
O diálogo estabelecido por esta compreensão historiográfica
aproxima desta pesquisa as práticas e comportamentos dos homens e
mulheres comuns, definidos como l’homme ordinaire no universo teórico
fundante da sociologia compreensiva. Esta, que é uma proposta de Michel Maffesoli (1988), é colocada aqui também ao lado das formulações de
estetização da vida cotidiana, de Erving Goffman (1999). Para o primeiro,
sociologia compreensiva é aquela “que descreve o vivido naquilo que é,
contentando-se, assim, em discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos” (MAFFESOLI, 1988, p. 25). E para o segundo, a vida é estabelecida
nas interações dramáticas cotidianas construídas a partir de frames ou
molduras baseadas nas formas das representações teatrais.
Assim, das junções da história vista de baixo com os estudos de
l’homme ordinaire e com a representação estetizada do eu, compreendo
como pessoas comuns, e assim as trato no âmbito deste livro, os homens
e mulheres que se juntam em agrupamentos que visam uma rotina, ou
um determinado evento, em que não prevalecem as qualidades cotidianas de cada um. Vislumbro, assim, aquelas práticas e comportamentos
em que as pessoas se destituem do que as fazem conhecidas ou reconhecidas no dia a dia, para se juntarem em inter-relações estabelecidas em
subversões ou ausências das hierarquias convencionadas nas tradições
sociais em que estão inseridas.
No extraordinário das folias, essa hierarquia é subvertida por
outras formas de relacionamento. Usemos, como exemplo, o cego que
vive de sua arte de cantador de rua, muitas vezes considerando as moedas jogadas pelos transeuntes mais como caridade do que propriamente
como uma paga por um serviço prestado. Por seu trabalho, em muitas
situações, corriqueiras ou não, esse homem é tratado como que em estado de mendicância, ou seja, nas divisões com que as pessoas veem
as convivências sociais, ele está num dos mais baixos degraus em que
se poderia colocar. Pois bem, em determinados momentos, esse cego
é colocado, pelo ritual da folia, em uma posição hierárquica superior a
todos os outros, independentemente da escala social “lá de fora”. Assim,
Dé ou seu irmão Tôte, cegos de nascença, cantadores de rua, se fazem
a cantoria de saudação do cruzeiro ou do altar, na casa do governador,
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a v i s i ta d o d i v i n o
este assume o seu papel de barraqueiro, visto e tratado como mais um
simples folião, misturado ao grupo. E, salvo certo aparato de segurança,
postado discretamente à distância, normal nos deslocamentos de qualquer político brasileiro, ele poderia ser confundido com qualquer outro
fazendeiro que acompanha o giro.
Não coloco aqui, é claro, nenhuma discussão sobre as motivações de cada um, político ou não, para se misturar aos mais comuns
dos mortais. Se todos realizam suas trocas simbólicas, não cabe a este
estudo, por seu caráter, fazer a distinção do que é cada um desses bens
trocados. E se são interesses eleitoreiros ou a salvação de alguma praga
na lavoura ou no gado; ou ainda a espera da redenção eterna, ou a cura
de uma doença terrena, cada um está dando algo em troca de algo. E isto
inclui abrir mão, no giro, de suas excelências cotidianas para se tornar
mais um. Às vezes, em uma determinada situação, até sendo “guiado”
pelas cantorias de um adolescente, como veremos em outra parte desses
escritos, quando o jovem John, 16 anos, assume o papel de guia em uma
visita matutina, ou quando uma criança se torna alferes da bandeira.
É isto que os torna, a todos, pessoas comuns, como as trato
aqui. Não aquelas pessoas comuns que se juntam em torno de instituições permanentes, como, por exemplo, as corporações, mas sim aquelas
que elegem certo modo de interação, visando à comunhão de uma determinada experiência, seja ela ordinária ou extraordinária.
As Folias do Divino se inscrevem, inequivocamente, no universo
dos feitos das pessoas comuns, com um discurso próprio, inserida na contemporaneidade e com uma formulação imaginária baseada nas crenças
religiosas de um grupo específico. E esses grupos criam, ao longo de sua
existência, possibilidades, através de seu imaginário, de concretizar novas
formas de viver ou manter suas tradições em seus espaços de convivência.
No caso das Folias, tanto as do Divino, de Reis, de São Benedito, como as de Nossa Senhora d’Abadia, existe outro aspecto a ser
levado em consideração: elas se caracterizam, essencialmente, como manifestações que são preservadas através do recurso da reprodução oral e
gestual. Seus códigos e significações não estão registrados em nenhum
manual a ser seguido por seus praticantes.
25
graça veloso
Assim, através dos mais velhos, o passado se redimensiona para
as gerações presentes e futuras, não como grandes narrativas épicas, mas
como compartilhamento de uma gestualidade espetacular viva, construída no cotidiano de cada membro do grupo.
No artigo “Estado Novo, Festa e Memória”, escrito para História, publicação da Universidade Estadual Paulista, em 1995, Hercídia
Mara Facuri Coelho, Maria Aparecida Junqueira da Veiga Gaeta e Dulce Maria Pamplona Guimarães, afirmam:
As festas narradas reconstroem um tempo e um espaço mítico, em que
a fartura, a paz, a devoção e a piedade recobrem, com um longo manto
protetor, a cidade do desejo. Os conflitos, a fome, a dominação social
ficam obliterados diante de um maravilhoso situado no passado. Este
mapa, traçado pela memória dos velhos moradores, permite-nos uma
reflexão sobre a eficácia dos símbolos, dos rituais e das festas para a formação, não só das mentes, como também das almas (COELHO, GAETA
e GUIMARÃES, 1995, p. 106).
Essa memória, entretanto, não serve para paralisar o grupo no
passado, mas muito mais que isto, como poderemos verificar mais adiante,
esse lembrar é uma máquina de interação que localiza cada participante
do grupo no seu presente. De um épico de aventuras idas, ou imaginadas, cada um dos participantes está tirando o combustível que alimenta a
fogueira de sua festa presente. Lembrar-se de um passado, muitas vezes
não vivido, mas somente imaginado, pode servir para inseri-lo no jogo do
aqui/agora, que é seu tempo/espaço e sua maneira de estar juntos.
É esta fundamentação teórica a responsável por todo um conjunto de argumentos que, conforme propõe a etnocenologia, em seu
permanente combate a qualquer forma de apartação, coloca no mesmo
nível de importância para os estudos das práticas e comportamentos
humanos espetaculares organizados, tanto as chamadas artes eruditas
quanto as manifestações incluídas no campo daquilo que se convencionou chamar de cultura popular, base para as formulações estéticas vistas
no evento das folias.
26
a v i s i ta d o d i v i n o
O que nos conduz — e eu o descrevo no Capítulo II — a algumas reflexões éticas sobre as práticas e comportamentos detectáveis
em um grupo de pessoas pode ser visto como uma parcela significativa
daquilo que podemos traduzir como sendo o homem contemporâneo,
localizado no que estamos chamando de pós-modernidade.
Em diálogos com alguns estudos da Filosofia e da Sociologia,
busco explicar a construção de caminhos que o homem contemporâneo segue para se tornar possível e fazer possível a sociedade. Aqui,
meu foco está voltado para o pensamento como construção do eu, as
possibilidades do imaginário como direito intransferível do homem, e
a identidade como celebração móvel, construída por práticas de si que
se orientam por uma ordem direcionada para a performatização e para
o jogo das interações. É a formulação de um pensamento que não se
desconecta da (i)materialidade do corpo, e das narrativas do eu plural da pós-modernidade. Pluralidade esta determinada pela interação,
pelo reconhecimento da alteridade e da diferença, e pelas molduras
teatrais nas quais nos posicionamos para a representação na vida cotidiana. São estas as explicações perseguidas para a compreensão da
construção ética do sujeito de nossa manifestação/objeto de estudo, ou
seja, o folião e seus visitados.
Aqui, novamente aparecem, como bases teóricas, aspectos da
sociologia compreensiva, pelas formulações de Maffesoli, em que a
identidade estruturada na modernidade se transmuda em identificações
peregrinas. Surgem também reflexões sobre o tema advindas de estudos
de Stuart Hall sobre o sujeito na cultura pós-moderna, com suas identidades múltiplas, esquizofrênicas, do cotidiano agenciado a partir das
imposições do presente, no jogo das tribos, nas trocas estéticas de imagens religantes. Ou, pelas visões de Jacques Lacan, as formulações sobre
o duplo do eu, como no espelho, por simbolizações que se constituem
em função de linguagem significante da alteridade também espetacularizada. E ainda nos conceitos de Èmile Benveniste para a linguística,
em que este “eu” se torna um sujeito que se estabelece num intercâmbio
permanente com um tu, sendo um ou outro, dependendo da posição
exercida no momento, se na alocução ou na resposta.
27
graça veloso
A se consubstanciar como fundamentação para as noções de
homo religiosus e seu corpo imaginante, surge, também no Capítulo II, o
diálogo entre os sonhos e devaneios, verdadeiro elogio feito por Gaston
Bachelard ao direito à imaginação, com as formulações sobre o imaginário, de Gilbert Durand. Se, por este caminho, o sagrado e o profano
formam um mesmo estado religioso, podemos enxergar, em emaranhados rizomáticos, um sujeito pós-moderno guiado por uma cultura que
privilegia, como mediação em suas interfaces com a alteridade, a imagem, o simbólico, a imaginação, o imaginário.
Imaginário, aqui tratado como sendo o conjunto de imagens,
visivas e não visivas, criado ou a criar, pelo homem, através de seus sistemas mentais e icônicos, nas lembranças, nas ilusões, nos sonhos e devaneios, nos estados alterados de corpo e comportamento, no figurativo da
pintura, do desenho, da escultura, da fotografia e dos vários mecanismos
virtuais contemporâneos, utilizados na televisão, no cinema, nas redes
das webs e na arte tecnológica. Como o vê Gilbert Durand:
[...] – que denominamos o imaginário – de todas as imagens passadas,
possíveis, produzidas e a serem produzidas. [...] suas manifestações mais
típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação) [...]
Este se define como uma re-presentação incontornável, a faculdade da
simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos
culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de
anos que o homo erectus ficou em pé na face da terra (DURAND, 2001,
pp. 6, 87 e 117).
Onde entram também as significações estéticas das Folias do
Divino, pelas propostas da etnocenologia. Como resultado das trajetórias histórico-religiosas e da construção ética do homem interacionista
vistos nos Capítulos I e II, esta manifestação, que surge na realeza portuguesa, é apropriada pelas pessoas comuns em seu processo de desterritorialização e reterritorialização colonizadora dos povos brasileiros. Quase
desaparecendo, pela ação da própria igreja, sua maior beneficiária material, que proíbe o seu lado profano, ressurge com a força que demonstra
28
a v i s i ta d o d i v i n o
nos dias de hoje, e nos remete a questões relacionadas às motivações de
sua permanência como um rito espetacular das tradições mais primevas.
Inserida quase que como uma cunha arcaica nos alicerces da sociedade
contemporânea, salta aos nossos olhos como uma trilha que nos obriga
a ver o mundo pela ótica de que a vida é uma manifestação estética em
que a ordem prevalente é a da interação. E como esta interação leva,
obrigatoriamente, ao reconhecimento da alteridade, são as várias formas
de sinergias, arcaico/contemporâneo, erudito/não erudito, ciência/senso
comum, ética/estética, que determinam o mundo. O sentimento que nos
toma, diante do objeto, é o de pertença, principalmente a um tempo/
lugar estabelecido no agora, verdadeiro palco da existência.
Então, de uma narrativa que se estabelece na descrição etnográfica do giro da Folia de Roça do Novo Gama, realizado entre os dias
20 e 31 de maio de 2003, aparece, e é registrada na primeira parte do
Capítulo III deste trabalho, a força estética da manifestação, analisada
pelo viés de uma classificação que a coloca como, além de matriz cênica,
também como uma cena contemporânea. Vendo as práticas e comportamentos humanos como ritos, divididos em de rotina e espetaculares, e
como espetáculos, numa redefinição do que propõe Bião (1996), as Folias
do Divino demonstram também o quão distante está seu praticante das
simplificações com que, geralmente, são tratados pelos espectros mais eruditos de nossas sociedades urbanas. Falando da complexidade e da riqueza
simbólica dos ritos, e considerando-os como a chave para a busca de uma
compreensão profunda das sociedades humanas, Victor Turner diz que “a
vida ‘imaginativa’ e ‘emocional’ do homem é sempre, e em qualquer parte
do mundo, rica e complexa” (TURNER, 1974, p. 15).
No Capítulo III, quando descrevo a utilização matricial da folia
para o processo de criação do espetáculo Inderna de Intão (2003), volto a
essa reflexão. Assim, compreendo essas ações como sendo práticas e comportamentos inseridos no universo dos ritos, os de rotina e os espetaculares, e espetáculos. E podem ser classificáveis conforme se segue: a – ritos
de rotina, aproximação do que Armindo Bião (1999b) define como “formas
cotidianas que são repetidas rotineiramente num mesmo espaço”, e que
são os comportamentos cotidianos, solitários e de interação, incluindo as
29
graça veloso
profissionais, os jogos societários e as regras de etiquetas; b – ritos espetaculares, também assim definidos por Bião, englobando os rituais, desfiles,
paradas militares, jogos e competições esportivas e as festas; e, c – espetáculos, artes do espetáculo para Bião, “compreendendo o teatro, a dança, a
ópera, o circo e outras artes mistas e correlatas”.
As folias, como práticas das pessoas comuns, situam-se nos
limiares dos ritos espetaculares e dos espetáculos, com elementos das
relações interpessoais dos jogos societários, das regras de etiquetas, dos
espetáculos cênicos e das festas. Nas aparências do evento sobressaltam as interações pela perspectiva dos diálogos, como referenciado na
linguística, pela presença do outro, e dos monólogos, na relação com
os duplos, conforme previsto na psicologia, principalmente em Jacques
Lacan, como já visto anteriormente. Destacam-se também os jogos societários, em que as hierarquias se subvertem ou desaparecem, na relação sagrado/profano que conduz a manifestação, e as regras de etiqueta,
representações simbólicas dos decoros que não permitem determinados
comportamentos e impõem outros, em algumas situações específicas.
Como, por exemplo, e citarei mais adiante, a prevalência dos mais idosos
nas horas das refeições ou nos deslocamentos de carro, mesmo ficando explícitas as trocas intergeracionais, ou o despojar-se de apetrechos
como os chapéus e as esporas em determinados ambientes.
Já dos ritos espetaculares destaco a celebração festiva em torno
da santidade, desde as cantorias de chegada, no cruzeiro e no altar, até
os cânticos das ladainhas e dos benditos.
Por último, vejo o caráter de espetáculo, principalmente no
sentido substantivo, pela noção demonstrada no conjunto do pouso, nos
detalhes da chegada e da saída, na dança do catira e nas adjetivações da
espetacularidade, em que o indivíduo age intencional e conscientemente
para a presença do outro.
Para a concretização da presente escrita, foram superadas algumas etapas do processo de investigação que passaram, basicamente, por
três pontos distintos:
a – Abordagem preliminar do objeto, em que, através de pesquisa bibliográfica, visitas e conversas iniciais, busquei compreender e
30
a v i s i ta d o d i v i n o
reconhecer o terreno em que eu deveria pisar. Digo reconhecer pelo
fato de que as bandeiras, tanto as de Reis quanto as do Divino, não me
eram totalmente estranhas, visto que as presenciei durante uma grande
parte de minha infância. Assim, a partir de 2002, acompanhei alguns
pousos de folias, tanto na cidade quanto no meio rural. Este primeiro
pontapé me auxiliou na formulação de questões que passaram a permear toda minha busca, tanto no âmbito do próprio objeto, quanto no
de conhecimentos já produzidos anteriormente sobre o tema. Foi nesse
momento que comecei a me perguntar quem eram os foliões e porque
eles continuavam fazendo as folias, nos dias de hoje. Comecei a questionar quais eram as significações éticas e estéticas dos giros e como teria
se dado a migração, de Portugal para o Brasil, da adoração ao Divino
Espírito Santo e suas práticas correlatas, tais como as próprias folias,
as cavalhadas e, conforme eu ouvira falar, as representações cênicas. Foi
por esse tempo que comecei a observar um dado que veio a se tornar,
posteriormente, de fundo na pesquisa. Eu notava que, durante os rituais
do giro, tornava-se difícil identificar as diferenças sociais certamente
existentes entre os participantes. Quando despojados de algumas diferenciações normais nas andanças a cavalo, como, por exemplo, a raça
dos animais montados, o que pode denotar o poder aquisitivo do folião,
não era visível, principalmente aos olhos dos estranhos ao grupo, quem
era quem nas escalas sociais cotidianas. Fato este que tomou proporções mais profundas diante da informação de que muitas das montarias
utilizadas pelos peregrinos eram emprestadas de fazendeiros da região,
muitos deles participantes do evento. Algum tempo depois fui informado, pelo próprio Amarildo Meireles, que o grupo estava se equipando
para uma maior autonomia quanto a essas questões: já adquirira, com
recursos próprios, uma Kombi e vários cavalos.
Outro dado que contribuía para o não esclarecimento desta
questão era a utilização generalizada de imagens relacionadas ao mundo
sertanejo, tanto nas vestimentas, geralmente muito parecidas umas com
as outras, quanto em símbolos religiosos, tornados em adereços comuns
nos chapéus, nas botas e nas roupas, como podem ser vistos no conjunto
de figuras reproduzidas no Anexo B.
31
graça veloso
Como resultado dessa inquietação, encaminhou-se a investigação para o âmbito das noções teóricas sobre as pessoas comuns. Como
minha dissertação de mestrado, defendida em 2001, já havia me levado
a passar por algumas reflexões sobre o conhecimento comum, feitas por
Michel Maffesoli, tive este autor, então, como ponto de partida para
aprofundar as buscas sobre este ponto.
De onde cheguei, por uma consequência natural, à necessidade de dialogar com a vertente da historiografia relacionada também ao
estudo das pessoas comuns, pelo viés da história vista de baixo, advinda
da Nova História. Principalmente em escritos de Peter Burke e Jacques
Le Goff, conforme já foi dito anteriormente. Se o nome de base para a
compreensão sociológica das significações éticas das Folias do Divino
era Michel Maffesoli, passava a ser sustentado também por, além de
Burke e Le Goff, Erving Goffman, com sua microssociologia do interacionismo metodológico. O que viria a se somar, posteriormente, ao
campo dos estudos sobre o imaginário, em Gilbert Durand, Gaston Bachelard e, novamente, no próprio Maffesoli.
b – Numa segunda aproximação, busquei explicações para as folias, agora especificamente as do Divino, pela historiografia relacionada
ao surgimento da adoração ao Espírito Santo, no dia do Shavuot judaico,
a criação da festa em Portugal, no Séc. XIV, sua migração para o Brasil
e sua interiorização, ainda em meados do Séc. XVIII, até as cercanias do
que viria a ser, em 1960, o Distrito Federal. Neste ponto, para melhor
me situar no que foi essa trajetória, lancei mão de todo o material a que
pude ter acesso, desde pequenas monografias, produzidas em ambientes
distantes da academia, passando pela Bíblia, por manuscritos de Gelmires
Reis, um professor/historiador da cidade de Luziânia (GO) e depoimentos pessoais de alguns envolvidos na Folia de Roça do Novo Gama, até
várias produções científicas, como teses, dissertações, artigos em revistas
especializadas e publicações de vários estudiosos sobre o assunto. Privilegiei escritos que falam a respeito das chamadas culturas não eruditas
brasileiras, sobre o que se denominou de folclore e, especialmente, sobre
festas e rituais católicos, universo no qual se inserem as Folias do Divino.
O que busquei, por este caminho, foi justamente o diálogo entre pontos
32
a v i s i ta d o d i v i n o
de vista muitas vezes divergentes, para chegar àquilo que considero de
mais profícuo nas interpretações do que é um dos aspectos de fundo desta
investigação: a compreensão do que significa conviver com as diferenças,
o respeito e o reconhecimento da alteridade.
Está aqui localizada, também, por suas significações para o
ambiente cultural em que se inseriu, uma reflexão sobre a fundação de
Brasília no Planalto Central, as motivações modernistas detectadas no
planejamento de sua construção e a herança que temos, nos dias de hoje,
desse que foi um gesto de tomada colonialista, pelas próprias palavras de
Lúcio Costa. Era da compreensão dos criadores de Brasília, a partir da
constituição dos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne – CIAM,
em 1928, uma premissa de que pela arquitetura e urbanismo modernos,
haveria uma profunda transformação social. E a nova capital brasileira
surgiu como a cidade exemplar dos ideiais propostos pelo grupo de pensadores que tinha como maior referência o nome de Le Corbusier.
Convivem então, nestas fundamentações teóricas, folcloristas
como Câmara Cascudo, Paixão Côrtes, Oswald Barroso, Zaide Castro,
Aracy Couto, ao lado de teóricos do imaginário e das culturas brasileiras como Gilbert Durand, Gaston Bachelard, Martha Abreu, Carlos
Rodrigues Brandão, Mário de Andrade, Marlyse Meyer e Leda Maria
Martins, acompanhados de filósofos e sociólogos como Gilles Deleuze,
Félix Guattari, Roberto Machado, Isaac Joseph, James Holston, Erving
Goffman e Michel de Montaigne. Além, é claro, daqueles que se dedicaram a escrever sobre o estado de Goiás, suas cidades antigas e os
registros de alguns de seus costumes. Neste elenco podemos encontrar
nomes como os de Auguste de Saint-Hilaire, Joseph de Mello Álvares,
Luiz Palacim, Antonio Pimentel e Gelmires Reis.
c – Finalmente, a terceira abordagem feita à Folia de Roça do
Novo Gama é aquela em que, pela descrição etnográfica do giro de 2003,
entre 20 e 31 de Maio, as observações do giro de 2004 e anos seguintes,
e por entrevistas realizadas antes, durante e depois das participações no
evento, pude levantar dados do que eu poderia chamar de visão interna
do grupo. Neste momento pude constatar as aproximações desse ritual
com questões levantadas por Émile Durkheim, Mircea Eliade e Cli33
graça veloso
fford Geertz. Ressaltam-se aquelas sobre algumas noções de sagrado e
profano, as teorias sobre as formas religiosas, as trocas simbólicas e as
significações das culturas. E, por suas ações e suas palavras, destaca-se
aquilo que os foliões acreditam estar fazendo. São eles os tradutores de
suas próprias emoções, sentidos e aspirações, ao se disporem a participar
de uma jornada com essas características. Falam de si, para si mesmos e
para os outros. Demonstram o que esperam da vida e do outro. Isso em
um espaço de convivência que se singulariza pelos aspectos que tem, de
recolocar no presente, com toda sua força sinérgica com a contemporaneidade, elementos míticos e místicos, fundantes de alguns daqueles que
eles elegeram como os princípios norteadores de suas vidas. Ao falarem
das suas motivações para estar no giro, escolhem a fé na divindade e o
estar ao lado da companherada como seus principais guias. Estão traduzindo assim o que Michel Maffesoli chama de estado religioso, no sentido lato de religação. Religação esta que, ao mesmo tempo, ao ser original
e ao próximo, é também a verdadeira mediação simbólica da existência.
Nesse ponto, ao registrar o que falam esses atores, de si e do
que estão fazendo, busquei transcrever o mais fielmente possível os seus
discursos. Mesmo sabendo o quão difícil é a relação com esses falares, e,
principalmente, compreendendo que o mostrado através desses escritos
é a versão do que o pesquisador recortou de suas observações. Assim,
apesar de, ou exatamente por isso, fiz a opção de reproduzir, nas citações
ao que foi ouvido de cada um, suas formas próprias de dizer as coisas.
A transcrição das entrevistas, tanto no capítulo dedicado à descrição
etnográfica, quanto em outros momentos, é feita tal e qual foi ouvido daqueles que, generosamente, deram sua contribuição, em valorosos
depoimentos. Como, por exemplo, para o Sr. Geraldo da Silva Rosa, é
uma “serepente” que está sob os pés da “Virge” no “artá” (vide Anexo
A). Também como existe uma indefinição quanto ao termo “arvorada”.
Mesmo assim sendo dito, o que significa a subida da bandeira ao topo
do mastro, ou da árvore, muitas vezes é compreendido como tradução
de amanhecer, de principiar.
E assim o faço na tentativa de compreender o sentido de conforto oferecido ao grupo pelo senso comum e pelo sentimento de per34
a v i s i ta d o d i v i n o
tença a um mesmo universo, experimentado nas convivências do dia a
dia, tanto na folia quanto fora dela.
Este capítulo terceiro está dividido em duas partes distintas.
A primeira é o registro etnográfico do giro que se inicia na arvorada da
bandeira, no dia 20 de maio, em uma fazenda nos arredores do Lago
Azul, bairro afastado da cidade do Novo Gama, percorre onze fazendas
e sítios dos municípios vizinhos de Santo Antonio do Descoberto e Luziânia, e termina no dia 31 do mesmo mês, com a desarvorada, em uma
capela do mesmo bairro do qual partira. Já na segunda parte, e pela visão
da etnocenologia, por meio de minha tradução teórica e pelo espetáculo
Inderna de Intão, criado a partir do giro, estreado em outubro daquele
ano, posso, por fim, dizer o que compreendo, neste momento, sobre as
manifestações sagrado/profanas das Folias do Divino.
Armindo Bião (1999b), ao descrever os aspectos epistemológicos
e metodológicos da etnocenologia, defendendo os princípios da proposta de sua substituição pela cenologia geral, nos indica caminhos para
melhor esclarecer o significado das Folias do Divino, no âmbito dos
aspectos que estou levando em consideração para melhor descrevê-las.
Pela identificação do que ele chama de “cinco pilares epistemológicos”
da etnocenologia, a segunda parte do Capítulo III, acima citado, colabora decisivamente para a compreensão de que esta manifestação compõe
perfeitamente um quadro exemplar desta disciplina, em seu estado préparadigmático. Desses cinco pilares, Bião diz:
O primeiro se refere aos estados de consciência (alterados, modificados
ou não) e aos estados de corpo (técnicas cotidianas e extracotidianas). O
segundo remete às categorias da teatralidade (quando o sujeito age e se
comporta para a alteridade, com uma consciência mais ou menos clara
mais ou menos confusa de organizar-se para o olhar do outro) e da espetacularidade (quando o sujeito toma consciência clara, reflexiva, do olhar
do outro e de seu próprio olhar alerta para apreciar a alteridade). O terceiro remete ao debate antropológico sobre os contatos culturais, sob a forma
do conceito de transculturação, como o que melhor exprime a criação de
novos fenômenos culturais informados por tradições diferentes, com as
35
graça veloso
quais guardam formas de semelhanças. O quarto pilar corresponde à ideia
de matrizes culturais, compreendida em termos linguísticos (matrizes
da oralidade, da escrita fonética e de outras formas de escrita), religiosos
(monoteísmo, politeísmo, cristianismo, judaísmo, islamismo, catolicismo,
protestantismo etc.), estéticos (formas de sensibilidade e de cultivo das
artes), técnicos e temáticos (BIÃO, 1999b, p. 366 ).
Já a definição do quinto e último pilar epistemológico da etnocenologia é a das práticas e comportamentos humanos espetaculares
organizados – PCHEO, e que compreende os subconjuntos já descritos
anteriormente das artes do espetáculo, dos ritos espetaculares e das formas cotidianas. Armindo Bião ainda salienta como campo epistemológico auxiliar os “pares de conceitos de alteridade/identidade, multiculturalismo/dinâmica cultural, tradição/contemporaneidade e performance/
fenômenos espetaculares” (BIÃO, 1999b, p. 367), o que nos remete também
às noções de sinergia, de Michel Maffesoli (1998).
Além da análise de todos os pontos aqui levantados, traduzidos
em cada uma das partes dos três capítulos que formam o corpo deste livro,
destaco ainda, como suportes auxiliares das noções por mim propostas e
tradução do universo pesquisado, os três anexos que o acompanham. No
primeiro, pelo que tem de síntese das coisas que os foliões acreditam estar
fazendo e como explicação do âmbito de suas crenças, está reproduzida a
entrevista com o Sr. Geraldo da Silva Rosa, 73 anos de idade, benzedor,
guia de folias em Águas Lindas de Goiás. Seu Geraldo é um dos grandes
colaboradores com os aspectos mais sagrados do evento. O Anexo B é a
junção de um conjunto de imagens, reproduzidas em uma série de fotografias, com as letras dos cânticos, os sagrados e alguns profanos. Assim
como algumas modas de catira e da raposa, através do que procuro traduzir a dramaticidade da etnografia do giro. Todas as fotografias, tanto
as desse anexo B, quanto as do corpo do texto, à exceção das de n.ºs 75 e
76 – do artista plástico André Santângelo –, são de minha autoria, produzidas entre agosto de 2002 e maio de 2004. E, finalmente, o Anexo C,
que apresenta a reprodução do texto do espetáculo Inderna de Intão, sinalizando para o sentido matricial cênico da Folia do Divino e seu resultado
dramatúrgico, no campo da produção teatral.
36
Capítulo I
Profano em Comunhão: a Folia e o
Divino, Histórias de um Saber Religioso.
Jesus afinou uma viola e entregou prum apósto e falou:
caça nas minhas palavra que ocê encontra.
Geraldo da Silva Rosa – Guia de folia
Gostaria de iniciar este primeiro capítulo com uma palavra de
final: uma das últimas frases do filme As Gangues de Nova Iorque (2002).
Depois do desfecho de uma vingança que se delineara por toda a trama,
o protagonista da história, representado pelo ator Leonardo DiCaprio,
em off, deixa seu veredicto pessimista sobre as transformações sofridas
pela cidade em mais de um século. Com sua voz sobressaindo de imagens de uma série de efeitos especiais, ele decreta: “é como se não tivéssemos passado por aqui”.
Martin Scorcese, o diretor, inverte a lógica da história tradicional que, costumeiramente, privilegia as excelências, e mostra o outro
lado da vida cotidiana: o que é visto no filme são as pessoas comuns,
homens e mulheres das ruas da Nova Iorque de meados do Século XIX,
pequenos bandidos, prostitutas, marginais de uma sociedade em que os
detentores do poder institucionalizado só aparecem de forma caricatural
e em papéis secundários.
O que a personagem central da película está constatando é
que, apesar de tudo o que aqueles construtores de cidade passaram,
de todas as marcas que ficaram em suas carnes, da dor de seus corpos, o que permanecerá nas histórias oficiais será exatamente a ação
daqueles coadjuvantes de luxo que ocupam as cadeiras reservadas
às excelências do poder estabelecido. O registro nos livros oficiais
será dedicado, pela perspectiva enunciada, aos vencedores de uma
39
graça veloso
luta em que só tomaram parte, de verdade, os homens e mulheres
sem nome, os ordinários do dia-a-dia de uma cidade construída sob
a égide da violência. A esses, as pessoas comuns da cidade de Nova
Iorque de meados do Séc. XIX, só serão dedicadas as informações
de que, naqueles dias, morreram tantos homens e tantas mulheres
em confronto com as forças da ordem.
Não é meu propósito, com estas palavras iniciais, deixar a impressão de que acredito numa mudança de paradigmas na compreensão histórica por parte da indústria cinematográfica norte-americana.
Mesmo porque o que me parece mais lógico pensar é que a condução
dos humores de qualquer indústria é feita pela resposta do mercado ao
qual ela se dirige. E não poderia ser diferente com a indústria do cinema
hollywoodiano.
Minha intenção ao citar o filme dirigido por Martin Scorcese,
então, mesmo levando em conta a distância existente entre os fatos nar-
Figura 1 – Localização dos municípios percorridos pelo giro da Folia de Roça do Novo
Gama, em relação ao Estado de Goiás e ao Distrito Federal.
40
a v i s i ta d o d i v i n o
rados na película em questão e meu objeto de estudo, é somente a de informar que, ao fazer o inventário das pesquisas sobre as Folias do Divino
no interior de Goiás, estou falando pela perspectiva de uma investigação
baseada na busca da compreensão de fatos sociais vividos e vivenciados
pelas pessoas comuns4.
E estou falando, especialmente, de pessoas comuns da região
do que se convencionou chamar de entorno goiano do Distrito Federal
(Figura 1). E, ainda mais especificamente, das pessoas comuns com as
quais tenho convivido, nos giros da antiga Folia do Sr. Ofir Mulato, pelos municípios de Novo Gama, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia (Figura 2). Esta é uma região em que este “é como se não tivéssemos
passado por aqui” tem se mostrado a cada dia com uma força muito
significativa. Primeiro, pelo ofuscamento que a história recente da criação da nova capital do Brasil proporcionou ao período pré-brasiliense.
Poucas são as referências àquele tempo, relativamente falando, nas publicações disponíveis em várias áreas do conhecimento, principalmente
nas situadas no universo das ciências sociais.
O segundo aspecto a ser considerado é que, quando estudada,
a região é tratada quase que simplesmente como uma grande arena para
os embates políticos ou para o denominado “desenvolvimento econômico”. As práticas e comportamentos mais relacionados às convivências e
interações societais ficam quase sempre relegados ao segundo plano.
Esta é uma constatação facilmente verificável na leitura de publicações de estudos sobre o estado de Goiás ou sobre as várias cidades
que aqui existiam antes da fundação de Brasília. Pouco se fala das festas,
da culinária, das gestualidades, das maneiras de vestir ou de morar, e que
poderiam ser caracterizados como formas de identificação perceptíveis
entre os antigos habitantes goianos das localidades tomadas pelo quadrilátero do Distrito Federal ou suas vizinhanças.
4. Necessário se faz informar que a opção pela denominação “pessoas comuns” vem do fato de que a palavra
“ordinário”, mais corrente nos escritos de minhas referências teóricas, carrega, no interior de Goiás, uma conotação desqualificante muito forte. Homem ordinário, para os habitantes daquelas regiões, é simplesmente
homem que “não presta”. O “ordinário”, ele ou ela, é do grupo dos que não têm “moral”, “honestidade” ou
princípios de “bom comportamento”, pela perspectiva do decoro vigente. Isto em qualquer escala social.
Existe no meio um certo desprezo pelo ordinário, o que sugere o prestígio do extraordinário e o preconceito
para com o que é comum.
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graça veloso
A pouca centralidade dedicada aos fenômenos culturais da
região não é, para nós outros, das áreas chamadas de humanidades,
que incluem os estudos sociais, a filosofia, as artes e os estudos sobre
as religiões, dentre outros, algo que possamos considerar como novo.
Mesmo reconhecendo que os sistemas interpretativos sobre o homem e seus universos relacionais incluíram, historicamente, estudos
sobre a cultura, é inegável que esta não é uma ideia que teve, ao longo
do tempo, e em especial na região a que aqui me refiro, o peso que a
ela deveria ser dado.
O advento do modernismo da nova capital só reforça a forma
menor com que as práticas culturais não-brasilienses da região sempre
foram tratadas. Se a cultura das pessoas comuns da localidade já não
era considerada, a partir de então, mesmo estas questões relacionadas às
convivências sociais cotidianas, como também as extracotidianas, pas-
Figura 2 – A Folia de Roça do Novo Gama, em 2003, após a arvorada, oferecida pelo Sr.
Lucimar Camelo Botelho, percorrendo aproximadamente 460 quilômetros, em 12 dias
e 11 pousos, fechou seu círculo simbólico em estradas e trilhas dos municípios de Novo
Gama, Santo Antônio do Descoberto e Luziânia. Este círculo, ideializado antes do início da peregrinação, além de passar pelas 11 fazendas e sítios que hospedaram os foliões
durante os pousos, passou também por aproximadamente 60 outras localidades em suas
atividades diurnas. Durante o dia a folia se dividia em dois ternos, chamados de direita e
esquerda, cada um levando uma bandeira e sendo acompanhado por guias, contraguias,
caixeiros e procuradores próprios.
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sam a ser distinguidas, quase sempre, no âmbito do universo da nova
cidade, e/ou a ela subordinadas.
Talvez até pelo etnocentrismo que pode ser detectado no julgamento dos que por aqui passaram, mesmo em tempos mais remotos,
como, por exemplo, a herança da visita de Auguste de Saint-Hilaire a
Santa Luzia (hoje Luziânia), em maio de 1819. Mesmo reconhecendo
que os paradigmas reinantes na época eram outros e que, apesar disso,
Saint-Hilaire tenta incluir em suas anotações as manifestações cotidianas e extracotidianas dos habitantes da região, alertando que “não se
deve julgar o interior da América segundo os padrões europeus”, é constatado que não deixa o teórico francês de falar do povo da região com
sua visão colonizadora de mundo:
Muitos anos ainda irão passar antes que se veja, do alto dos Pireneus,
algum traço de cultura [...] uma multidão de aventureiros precipitando-se sobre as riquezas exageradamente anunciadas, uma sociedade
que se forma no meio de todos os crimes, que adquire hábitos de ordem sob o rigor do despotismo militar, cujos costumes são adoçados
pela influência do clima e de uma mole ociosidade, alguns instantes
de esplendor e de prodigalidade, ruínas, e uma triste decadência, tal é,
em poucas palavras, a história da província de Goiás. [...] A indolência
contribuiu bastante para levar os fazendeiros da região a este estado de
penúria. Mas a miséria, que os embrutece e desanima, deve necessariamente, por sua vez, aumentar a sua apatia. E esta chegou a tal ponto
em muitos deles, que, dispondo praticamente de toda a terra que lhes
convém, eles não chegam a cultivar o suficiente nem mesmo para o
seu próprio sustento. [...] a festa de pentecostes é celebrada em todo o
Brasil com muita devoção e em meio a bizarras cerimônias (SAINTHILAIRE, 1975, pp. 14, 27, 96-97).
Ora, mesmo no mundo desses “indolentes, brutos, bizarros e miseráveis decadentes”, é inegável que neste período já eram perceptíveis,
em maior ou menor escala, várias práticas que poderiam ser consideradas
como patrimônio identificatório da goianidade ainda presente nos dias de
hoje. Maiores que tantas características desqualificantes, como as registra43
graça veloso
das acima, existiam, indiscutivelmente, outras, relacionadas à culinária (o
arroz com pequi, a marmelada e vários outros tipos de doces e quitandas
ainda saboreados nos dias de hoje nas casas goianas), à tecelagem com as
rodas de fiandeiras e seus cantares, jogos e brincadeiras e às comitivas de
boiadeiros e tropeiros, condutores de gado e outros produtos. Sem citar
todas as vivências, cotidianas e extracotidianas, das conversas de fim de
tarde em frente aos casarões, das festas religiosas, das visitas dos ciganos e
dos mascates, ou até dos bailes na roça ou as “treições” 5.
Etnocentrismo este constatável, também, e ainda mais precisamente, pela forma com que foi encarada a fundação de Brasília. Segundo
seus criadores e os teóricos que a eles deram sustentação, esta é uma cidade modernista que veio para “mudar a história” do Brasil. Como podemos
verificar em vários escritos sobre a transferência da capital federal.
Brasília foi fundada durante a prevalência mais acentuada
da ideologia modernista no Brasil, num momento em que existia um
grande foco na busca de uma “identidade nacional” através de projetos
educacionais que se propunham privilegiar a cultura brasileira. Segundo
Maria de Souza Duarte (1983), existia uma intenção generalizada de se
criar, por parte das elites, uma consciência de pertencimento a grupo,
proporcionando ao indivíduo uma maior possibilidade de formulação
de conceitos abstratos, com estímulo à criatividade e participação social
consciente. O que vinha complementar a ideia de que era necessário
mudar o mundo, pois as relações sociais estavam deterioradas. Essa proposta colocava, a partir do interior de seus próprios ambientes de atuação, algumas atividades como pretensas redentoras da espécie humana.
Somente para citar algumas dessas atividades, aquele era um
tempo em que o teatro salvaria a humanidade através de revoluções so5. No interior de Goiás sempre existiram duas formas distintas de mutirão. O primeiro, muitas vezes chamado
de muxirão ou dijutório, é aquele em que um dos vizinhos sai pedindo ajuda aos outros participantes da comunidade em que vive para fazer um trabalho que está se atrasando para o plantio, colheita, roçado das pastagens
ou limpeza das canalizações da água que servem à sede da fazenda ou pequena propriedade. A segunda forma
de mutirão, normalmente chamada de treição (traição), é aquela em que a vizinhança, percebendo que um
daqueles serviços está se atrasando, se organiza para realizá-lo, sem o conhecimento prévio do beneficiado.
Geralmente o dia, quase sempre um sábado, termina com uma festa, até os dias de hoje chamada de pagode.
Estas práticas, quase desaparecidas nas proximidades das grandes cidades, ainda podem ser encontradas no
meio rural. A última treição que presenciei na região aconteceu em 1997, na Fazenda Cachoeira, distante 48
quilômetros de Luziânia.
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cialistas, a psicologia redimiria o indivíduo de todos os pecados e a educação seria a pedra fundamental de um novo tempo.
É inegável que, no período de fundação de Brasília, existia, no
Brasil, um dos ambientes mais férteis para as disputas que se travavam
no campo ideológico, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Afinal, era o tempo da Guerra Fria com suas nefastas consequências para o mundo.
Diante disso, se levarmos em conta que o campo artístico, conforme proposições de Pierre Bourdieu (1996), pode ser compreendido
como o espaço de tensão em que as várias correntes de atuação internas se
opõem, criando, ao longo do tempo, características de autonomia determinada pelo grau de conflito entre o valor artístico e o valor econômico,
esta configuração deve também levar em consideração as noções estéticas
das pessoas comuns. E isso, historicamente, não é levado em conta pelos
detentores do poder simbólico reconhecido pela prática da distinção estabelecida nesse universo. Aqui, o que determina essa distinção geralmente é
o grau de erudição do artista ou os paradigmas internos, dos mais letrados,
legitimadores daquilo que venha a ser tratado como arte. O que prevalece,
assim o compreendo, é a distinção pelas práticas de exclusão.
Não era diferente o que ocorria na arquitetura e urbanismo, a
atividade mais consagrada pela construção da cidade planejada por Lúcio
Costa e Carlos Niemeyer. Chegando Le Corbusier, o grande mentor da
arquitetura modernista, a afirmar que no “dia em que a sociedade contemporânea, atualmente tão enferma, tornar-se verdadeiramente consciente
de que apenas a arquitetura e o urbanismo podem receitar o remédio exato para seus males, terá então chegado o tempo de por a grande máquina
em funcionamento” (LE CORBUSIER apud HOLSTON, 1993, p. 63). Fica clara,
por essa afirmação, a intenção modernista de rompimento total com qualquer resquício do passado que porventura viesse a se insinuar nas ideologias dos projetos daqueles grupos. Não pretendo, com estas palavras, me
imiscuir em nenhum aspecto de valoração das formulações arquitetônicas
propostas pelo modernismo. Não me reconheço competente para tal. Minha intenção é discutir como foi tratada a cultura pré-brasiliense a partir
das motivações ideológicas desse movimento.
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