a recepção do cinema intertextual e a formação do leitor
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a recepção do cinema intertextual e a formação do leitor
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE A RECEPÇÃO DO CINEMA INTERTEXTUAL E A FORMAÇÃO DO LEITOR ADRIANO CARLOS MOURA Dissertação apresentada ao Mestrado de Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. ORIENTADOR: Profª Drª ANALICE DE OLIVEIRA MARTINS CAMPOS DOS GOYTACAZES 2010 A RECEPÇÃO DO CINEMA INTERTEXTUAL E A FORMAÇÃO DO LEITOR ADRIANO CARLOS MOURA Dissertação apresentada ao Centro de Ciências do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Cognição e Linguagem, na linha de pesquisa: Pesquisas Interdisciplinares em Ciências Humanas, Artes e Filosofia. ______________________________ em 1 de dezembro de 2010. COMISSÃO EXAMINADORA _____________________________________________ Profª Drª Maria Cristina dos Santos Peixoto UENF _____________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Arruda de Moura UENF _____________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause UERJ _____________________________________________ Profª Drª Analice de Oliveira Martins ORIENTADORA Agradecimentos A Profª Drª Analice de Oliveira Martins, minha orientadora, pela dedicação, paciência, indicação de leituras e pela disponibilidade sempre incondicional. Ao Prof. Dr. Sérgio Arruda e a Profª Drª Maria Cristina dos Santos Peixoto pela pertinência dos comentários e sugestões na defesa do meu projeto. Ao Prf. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause pela gentileza em participar da banca de defesa. Ao corpo docente do Mestrado em Cognição e Linguagem. Aos alunos do Colégio Alpha Vestibulares, Cefa/objetivo, do Instituto Federal Fluminense e da E.M. Carlos Chagas pela contribuição assistindo aos filmes e participando das discussões sobre os mesmos. Resumo Esta dissertação é o resultado de uma pesquisa que se voltou para o estudo das relações entre literatura e cinema e para as formas de recepção da narrativa fílmica intertextual. A realização dessa tarefa fez-se a partir de uma análise do intertexto presente nos filmes Matrix (1999), Shrek (2001) e Dom (2003), escolhidos como corpus básico, e do estudo bibliográfico de autores que teorizaram sobre o intertexto, o cinema e a estética da recepção. O objetivo do trabalho é colaborar com as discussões sobre a formação de um novo tipo de leitor: o que transita num mundo onde a intertextualidade se faz presente na maioria das produções artísticas. Inicialmente, foi apresentado um estudo do intertexto amparado no conceito de dialogismo preconizado pelo filósofo Mikhail Bakhtin e no de intertextualidade introduzido pela crítica francesa Julia Kristeva. Em seguida, apresentou-se uma análise dos signos que compõem as obras em questão e das significações que o espectador pode atribuir às referências literárias presentes nos roteiros, quando não dispõe de informações acerca da origem de tais referências, destacando o papel das instituições de ensino na formação do leitor. Palavras-chave: Cinema, literatura, dialogismo, intertextualidade, estética da recepção. Abstract This dissertation is the result of a search that turned to the study of relations between literature and cinema and receipt of forms of intertextual cinematic narrative. Accomplishing this task was made from an analysis of this intertext in the Matrix films (1999), Shrek (2001) and Dom (2003), chosen as basic corpus, and the bibliographical study of the authors that theorized about the intertext, cinema and aesthetics of reception. The objective is to collaborate with the discussions on the formation of a new type of reader: what goes in a world where intertextuality is present in most artistic productions. Initially, we presented a study of intertextual dialogism supported by the concept advocated by the philosopher Mikhail Bakhtin and intertextuality introduced by Julia Kristeva French criticism. Then it presented an analysis of signs that make up the works in question and the meanings that the viewer may attribute to the literary references found in the scripts when it has no information about the origin of such references, highlighting the role of institutions of teaching in the reader. Key words: Cinema, literature, dialogism, intertextuality, reader-response criticism. SUMÁRIO 1-INTRODUÇÃO.............................................................................................................9 2- INTERTEXTUALIDADE, LITERATURA E CINEMA ..........................................14 2.1- Matrix: um clássico contemporâneo.......................................................................18 2.2- Shrek e a carnavalização bakhtiniana ....................................................................25 2.3- Dom: Machado adaptado ou parafraseado...............................................................33 3-CINEMA INTERTEXTUAL E LEITURA HIPERTEXTUAL...............................38 3.1-O termo......................................................................................................................39 3.2-Hipertexto e rizoma.................................................................................................40 3.3-O leitor......................................................................................................................44 3.4-O título: intertexto e hipertexto.................................................................................46 4-O LEITOR-ESPECTADOR: CO-AUTOR.................................................................52 5-SENTIDO, SIGNIFICADO, SIGNIFICAÇÃO..........................................................72 6-CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................86 7-BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................90 8-FILMOGRAFIA...........................................................................................................92 9-APÊNDICES................................................................................................................93 10-ANEXOS..................................................................................................................103 As artes não se repelem, mas se completam; literatura e cinema podem aproximar-se na fruição, no estudo e na pesquisa, principalmente, quando se trata de despertar ou aprimorar a sensibilidade estética e as dimensões da leitura. Glória Maria Palma, Literatura e cinema 9 I-INTRODUÇÃO Desde sua criação, no final do século XIX1, o cinema tem sido um dos principais meios de se contar histórias, e sempre estabeleceu uma relação bastante estreita com a literatura. Clássicos como o romance de terror Drácula, do escritor inglês Bram Stocker, já receberam várias versões para a tela. Lançado em 1922, sob o título de Nosferatu, o filme do diretor alemão F.W.Murnau é uma das primeiras adaptações de obras literárias de reconhecimento universal para o cinema. Apesar disso a película não adotou o título da obra original, pois os direitos autorais não foram liberados pela família do autor. Por isso, Murnau foi obrigado a realizar também várias alterações na história, transformando seu Nosferatu numa paródia de Drácula. A relação entre cinema e literatura, porém, não se limitou ao território das adaptações. Alguns filmes passaram a utilizar personagens, situações e fragmentos de obras literárias que se articulam na tessitura de um roteiro - que dialoga com elementos extrínsecos à unidade do texto -, colaborando para sua composição. É o que ocorre em filmes como Matrix (1999) dos irmãos Andy e Larry Wachowski. Trata-se do recurso da intertextualidade, palavra cunhada e definida pela pesquisadora francesa Julia Kristeva. Ela cria esse termo a partir dos conceitos de dialogismo e polifonia do filósofo russo Mikhail Bakhtin, surgidos dos estudos feitos das obras do escritor Fiódor Dostoiévski. Para Bakhtin, Dostoiévski cria, utilizando materiais diferentes, uma obra de arte una e integral, na qual o romance, a cena de rua, o grotesco, a anedota, a paródia, o sagrado e o profano se articulam. Por meio da fusão de todos esses fragmentos que vão das narrativas vulgares a livros de inspiração divina, Dostoiévski compõe a unidade de seus romances imprimindo seu estilo pessoal. Antes, porém, de dar prosseguimento à tarefa de definir intertextualidade, faz-se necessária a definição do que será considerado texto ao longo deste trabalho. De um lado, há o texto meramente verbal, o que se vale da palavra (escrita ou falada) como signo; de outro, o cinematográfico, que se nutre de vários signos para sua composição. O filósofo Pierre Lévy elabora uma definição com a amplitude que satisfaz as 1 Em dezembro de 1895, num café parisiense, foram projetados os primeiros filmes. 10 necessidades conceituais aqui presentes. Em sua obra O que é o virtual? (1996), ele define texto também como tipos de mensagens que vão além da forma alfabética: “ideogramas, diagramas, mapas, esquemas, simulações, mensagens iconográficas ou fílmicas. Deve-se entender texto no sentido mais geral: discurso elaborado ou propósito deliberado”(LÉVY, 1996, p.37). Bakhtin instituiu o conceito de romance polifônico, aplicando-o a obras como Os irmãos Karamazov e Crime e Castigo, do escritor russo. Os personagens dostoievskianos não se submetem de forma passiva à autoridade de um narrador e entram em contato com outras vozes se apropriando de seus discursos. É a partir desse dialogismo que Kristeva introduziu o conceito de intertextualidade ao afirmar que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção e transformação de um outro(...)”(KRISTEVA, 2005, p.68). Inicialmente será feito um breve estudo sobre a linguagem cinematográfica e sua evolução até chegar ao que se chamará cinema intertextual. Em seguida, serão analisados os procedimentos intertextuais presentes nos filmes Dom (2003), de Moacyr Góes; Matrix, de Andy e Larry Wachowski; e Shrek (2001), de Andrew Adamson e Joel Stillman. Finalmente, a reflexão será conduzida para as maneiras como o espectador contemporâneo pode ler e interpretar as referências literárias presentes nos filmes, e como estes podem contribuir para sua formação de leitor. As três obras escolhidas possuem roteiros inteiramente construídos em matrizes intertextuais. Dom faz uso de um tipo de intertextualidade explícita, que existe quando “no próprio texto, é feita menção à fonte do intertexto”(KOCH, 2007, p.28). Considerado por parte do público como uma adaptação do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, o filme faz paráfrases, citações e alusões ao romance. Nele, o personagem Dom, apelidado de Bento, recebe esse nome como uma homenagem prestada pelo pai ao casmurro personagem do “Bruxo do Cosme Velho”. Depois de anos, reencontra, numa produtora de videoclipes, uma namorada de infância chamada Ana e reata com ela o antigo namoro. O reencontro é promovido por Miguel – amigo de Bento – por quem Ana nutre grande amizade. Com o tempo, Bento passa a se comportar como “Bentinho”, alimentando um amor obsessivo beirando a loucura, o que destrói sua relação com Ana. Ao se comportar como o personagem do romance, Bento não herda apenas sua psique, mas também seu discurso. Quando se lembra da infância, o que vem 11 à sua memória é o texto de Dom Casmurro, livro lido por ele inúmeras vezes. Os “olhos de ressaca” de Capitu passam também a definir os de Ana num diálogo parafrásico. Matrix, produção americana de grande repercussão junto ao público e que revolucionou o gênero de ficção científica, possui um roteiro inteiramente construído a partir de matrizes intertextuais. Literatura infantil, novela de cavalaria, filosofia, epopeias clássicas e narrativas bíblicas compõem um universo de citações, alusões, paráfrases e paródias para contar a história de Neo, um hacker que descobre que a vida inteira viveu num mundo que não passava de uma simulação de computador e que ele é a única esperança de salvação da humanidade do domínio das máquinas. Por trás de todo um aparato futurista e tecnológico, Matrix se constrói a partir de arquétipos dos heróis de novelas medievais, como as narrativas conhecidas como A demanda do Santo Graal2, de questões filosóficas como os conceitos de real, simulacro e simulação, propostos pelo filósofo Jean Baudrillard, de episódios bíblicos e de outros extraídos de histórias infantis, além de construir imagens-signo que fazem parte da maioria dos filmes de ficção científica pós-Matrix, como as lutas aéreas, por exemplo, parodiadas em Shrek. Este último é um desenho animado da produtora DreamWorks. Constrói-se a partir do que Bakhtin classificou como carnavalização. Nessa obra, os heróis dos antigos contos infantis são parodiados, às vezes ridicularizados e travestidos. Os personagens das histórias infantis são expulsos do mundo do faz de conta e se refugiam no pântano do ogro Shrek, que, acompanhado do Burro Falante, precisa resgatar a princesa Fiona para que os visitantes indesejáveis deixem suas terras. 3 As construções intertextuais dos três filmes e as problemáticas por elas levantadas serão abordadas mais adiante. É necessário ressaltar que as referidas obras servirão de base para o estudo, mas que outras serão utilizadas como complemento para as reflexões. É o que ocorrerá com o filme Babel (2006), por meio do qual será feito um estudo sobre a leitura hipertextual4. 2 Há muitas versões de A Demanda do Santo Graal. Para esta pesquisa foi escolhida a de Heitor Megale, publicada pela Companhia das Letras. 3 Shrek teve outras três continuações, mas apenas a segunda servirá de complemento para a pesquisa. 4 O capítulo III trata especificamente do hipertexto. A escolha de Babel se deve ao fato de o hipertexto se apresentar, nesse filme, sob várias tipologias, facilitando a definição do conceito. 12 A proposta deste trabalho, todavia, não é se limitar a uma análise estruturalista, pois surgiu da necessidade de se pensar como uma sociedade que a cada dia se distancia da leitura de obras consideradas universais se relaciona com filmes que constantemente dialogam com essas obras. Este texto tem como objetivo principal estudar não apenas o diálogo intertextual entre literatura e cinema na composição do filme, mas também como esse diálogo é recebido, principalmente pelo público jovem, escolhido para a pesquisa de campo, realizada no IFF (Instituo Federal Fluminense), Colégio Alpha Vestibulares, E.M. Carlos Chagas e Colégio Cefa Objetivo. A presente dissertação busca fazer uma reflexão sobre a recepção do cinema intertextual e sua contribuição para formação do leitor-espectador. Muito já se discutiu acerca de autores e suas produções, ficando o leitor relegado ao papel de mero receptor, apesar de ser ele o responsável pela perpetuação das obras por meio da leitura. Toda produção artística possui significados que são construídos numa dupla relação: 1) o sugerido pelo autor; 2) o atribuído pelo leitor. Por isso, é no momento da leitura que a significação se realiza. Falar das relações que o leitor-espectador é capaz de estabelecer com uma obra convoca um aporte teórico dos pesquisadores da Escola de Konstanz: a estética da recepção, corrente crítica surgida na Alemanha nos anos 70, que destaca o papel do leitor no momento da construção de sentido de um texto. Hans Robert Jauss, um dos principais teóricos dessa corrente, entende a arte como uma “atividade produtora, receptiva e comunicativa” (JAUSS, 1979, p. 67). O pesquisador alemão ressalta, em seu ensaio A estética da recepção: colocações gerais, a importância da experiência estética e sua manifestação ao longo da história da arte. De acordo com seu pensamento, devem ser levadas em consideração as diferentes interpretações atribuídas a um texto por leitores de tempos históricos diferentes. Pensar a recepção de uma obra é pensá-la não levando em conta, como determinantes, apenas as condições sócio-históricas em que foi produzida, mas também as condições em que é lida. Como metodologia de trabalho, foi feito inicialmente um estudo dos procedimentos intertextuais presentes nos filmes. Esse estudo teve como aporte teórico básico os estudos de Mikhail Bakhtin sobre a linguagem; os de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, sobre a estética da recepção; e os de Christian Metz, sobre a linguagem do cinema. Fez-se também uma pesquisa de campo com grupos de jovens aos quais 13 foram aplicados questionários abertos. Os grupos foram formados por alunos do ensino fundamental e médio que assistiram aos filmes e, depois, responderam às questões. As respostas dos questionários são utilizadas como exemplificação e sustentação para algumas conclusões resultantes ora da pesquisa de campo, ora da revisão bibliográfica. Glória Maria Palma, doutora em Literatura Portuguesa e coordenadora do grupo de pesquisa “Literatura e Cinema” na USC (Universidade de Santa Catarina), no livro Literatura e cinema, ressalta a importância de se pensar numa nova concepção e formação de leitor: aquele que se move num universo de diferentes mídias e linguagens, que se depara com um cinema cada vez mais dialógico. Abordar o tema da intertextualidade partiu da percepção de que se trata de uma questão importante para o processo de leitura e compreensão da produção cinematográfica contemporânea. É também pertinente destacar o fato de que a leitura de obras clássicas tem sido ignorada na maioria das escolas. O desprovimento de informações importantes sobre essas obras e suas influências na cultura pode limitar a compreensão de produções que exijam mais do que a vivência pessoal do leitor. O aluno das escolas públicas, principalmente, é o que mais sofre os danos dessa deficiência. Não pensar essas questões significa contribuir para uma sociedade excludente, inclusive intelectualmente; fazendo com que a compreensão e a fruição ampla de algumas obras sejam privilégio apenas de uma minoria letrada, relegando a maioria apenas ao entretenimento superficial. 14 2- INTERTEXTUALIDADE: LITERATURA E CINEMA O primeiro filme exibido publicamente foi Um trem chegando à estação (1895), na cidade de Paris, em 28 de novembro. Tratava-se apenas da reprodução fiel de um acontecimento real. Não se podia falar ainda do cinema enquanto linguagem artística, mas como tecnologia. Para o pesquisador Jean Claude Bernadet, o cinema só passa a evoluir como linguagem quando abandona a função de apenas documentar a realidade e se assume como herdeiro dos folhetins do século XIX, passando a ser um instrumento para se contar histórias, o que ocorrerá em 1915. Um dos marcos dessa transição é o filme Nascimento de uma nação (1915), do diretor americano D.W.Griffith. Até 1927 os filmes eram mudos, quando então foi produzido o primeiro filme sonoro: O cantor de Jazz, de Alan Crosland. Outras experiências já haviam sido realizadas antes, como a utilização de músicos executando canções ao vivo e atores fazendo dublagens atrás de cortinas. No entanto o filme de Crosland é o precursor da sincronização entre o som mecânico e a imagem. A partir daí, foram muitas as inovações que fizeram do cinema uma arte como todas as demais: em constante mudança. Nos anos 20 e 30, na Alemanha, surgem as primeiras experiências com o expressionismo, linguagem na qual a realidade exterior ganha relevância, porém exagerada até a deformação, como ocorre em Nosferatu. É o cinema – influenciado pelos movimentos de vanguarda – tentando fugir das estruturas narrativas convencionais. Um exemplo clássico é Um cão andaluz (1928), parceria entre o diretor Luis Buñuel e o artista plástico Salvador Dali, ambos ícones do movimento surrealista, que preconizava a livre associação de imagens do inconsciente sem preocupação com uma sequência lógica de fatos e ideias. Depois de 1945, inúmeras revoluções continuaram a ocorrer. Questões existenciais – rompendo com a linearidade e o modelo burguês de comportamento – viram um marco da nouvelle vague, na França. O neorrealismo italiano aponta para um cinema mais politizado e que, na maioria das vezes, dispensava o uso de cenários e atores profissionais. Tanto o movimento francês quanto o italiano exerceram grande influência no que, no Brasil, ficou conhecido como cinema novo, com filmes como Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. 15 Com esses movimentos o cinema deixa de apenas contar histórias e se transforma também num instrumento de reflexão sobre política, religião, comportamento e sobre a própria linguagem. Não se pode falar em intertextualidade – eixo temático do trabalho – como um movimento estético tal quais os citados acima, mas como uma tendência da cultura contemporânea5, apesar de os primeiros estudos sobre o assunto terem sido originados das pesquisas de Bakhtin sobre um autor do século XIX. Ele classifica o “princípio composicional de Dostoiévski” como a “unificação das matérias mais heterogêneas e mais incompatíveis” (BAKHTIN, 2008, p. 17). Isto unido “a multiplicidade de centrosconsciência não-reduzidos a um denominador ideológico” conduz à chave dos romances do escritor russo: a polifonia. O discurso do herói não se submete à voz de um narrador centralizador, mas dialoga constantemente com outras vozes, muitas, inclusive, extrínsecas à própria trama. Para Bakhtin, Dostoiévski cria: De materiais heterovalentes e profundamente estranhos uma obra de arte una e integral. Eis porque o livro de Jó, as Revelações de São João, os Textos Evangélicos, a Palavra de São Simeão, Novo Teólogo, tudo que alimenta as páginas dos seus romances e dá o tom de diversos capítulos combina-se de maneira original com o jornal, a anedota, a paródia, a cena de rua, o grotesco e inclusive o panfleto (BAKHTIN, 2008, p. 14). Música, teatro, literatura, cinema; em todas as manifestações da linguagem é possível perceber o intertexto não apenas como resultado inconsciente da influência de obras da cultura universal, mas como um consciente procedimento de composição artística, no qual, como em Dostoiévski, o diálogo entre vozes diferentes, mas plenivalentes, confere às obras o status de polifônicas. Mas, se todo texto é um mosaico de citações, pode-se dizer que toda obra é intertextual? Kristeva chama de intertextualidade o que Bakhtin classificou como dialogismo. Na concepção da pesquisadora, a relação entre os diferentes discursos se dá apenas no plano linguístico, meramente verbal. O que Bakhtin propõe como diálogo, não se dá apenas no plano linguístico, mas também em relação ao contexto histórico e 5 O intertexto como método de composição na cultura do pós-modernismo será estudado com mais aprofundamento no capítulo 4. 16 ideológico vivido por seus personagens. Quem contesta a teoria de Kristeva é Paulo Bezerra, no prefácio do livro Problemas da poética de Dostoiévski. Ele afirma que Kristeva “substitui palavra por texto e o dialogismo por intertextualidade”; enquanto que a base do dialogismo bakhtiniano é o discurso em interação com outros discursos, acrescentando ainda que, segundo o filósofo russo, toda linguagem humana está impregnada de relações dialógicas que não pertencem a um campo meramente linguístico. Divergências entre Bezerra e Kristeva não são o foco da discussão, por isso a reflexão não se aprofundará nos aspectos em que ambos discordam; mas vale ressaltar que – sob a perspectiva de Kristeva – toda obra intertextual é também dialógica, mas nem sempre o contrário se dará. Por isso, deve-se fazer uma ressalva à generalização do seu conceito. Partindo da noção de Bakhtin, todo texto é dialógico, pois o discurso literário está sempre em contato com outros discursos literários ou não; porém nem todo texto literário é a absorção e transformação de um outro texto no plano meramente linguístico e nem sempre a escrita se compõe como “mosaico de citações”. O dialogismo bakhtiniano não se limita ao plano linguístico, estende-se ao social e ao histórico, daí a definição de Kristeva parecer generalizante demais ou incompleta. Ao analisar o comportamento dos personagens de Dostoiévski, Bakhtin percebeu que os discursos que proferiam tinham origem no discurso de um outro. Mas nenhum deles coloca o intertexto como um processo de criação consciente; e tanto o pensamento de Bakhtin como o de Kristeva não contemplam o texto veiculado por meio da imagem ou do som, o que obriga qualquer pesquisador a fazer as devidas adaptações. Os textos que serão analisados aqui como “mosaico de citações” são o cinema intertextual, filmes cujos principais procedimentos de construção narrativa são a paródia, a paráfrase, a alusão e a citação. Por motivos de delimitação do tema, os diálogos estudados com maior aprofundamento serão os estabelecidos com obras literárias. Conforme já foi afirmado na introdução, desde sua origem o cinema vem adaptando obras literárias para as telas. Ilíada, de Homero, foi transformada num épico cinematográfico com o título de Tróia (2004). Mas o que se tem neste caso é uma transposição de linguagens. O que era literatura virou cinema, mas se contou a mesma história, com as devidas alterações para atender a necessidades específicas da linguagem cinematográfica e aos interesses da produção. Porém, caso Matrix seja tomado como 17 exemplo, será notado que não se trata apenas de mera adaptação de uma obra literária6, mas de um filme que faz alusões, citações, paródias e paráfrases a diversas obras da literatura, da filosofia e do próprio cinema. A professora e pesquisadora Ingedore Koch afirma que a intertextualidade ocorre “quando, em um texto, está inserido outro texto anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva dos interlocutores”(KOCH, 2007, p.17). O intertexto geralmente parte de obras consideradas do conhecimento da maioria das pessoas, o que é possível perceber nos filmes que se valem desse recurso. Ao dialogar com textos literários, o filme pode também converter palavra em imagem. Como ocorre numa cena de Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, quando a mãe do personagem Totó o espera tecendo um cachecol. O filho se encontra há vinte anos longe de sua terra natal – o mesmo tempo que Ulisses, na Odisséia, de Homero, leva para retornar à sua casa em Ítaca depois de ter partido para a guerra de Tróia. Numa cena metalinguística, alguns personagens assistem a uma adaptação da epopeia grega num cinema ao ar livre. Portanto, a intenção dialógica é clara. Quando Totó chega à casa materna, sua mãe abandona o tricô numa cadeira, o fio fica preso à roupa dela, e a peça se desfaz enquanto se afasta. Em primeiro plano, a câmera prolonga-se nesse foco. Obviamente, só perceberia a intenção dialógica do diretor os que fizessem associação com a narrativa de Homero. Os que não percebessem, certamente, atribuiriam algum outro sentido à cena ou simplesmente enxergariam um cachecol se desfazendo, mais nada. No entanto – levando em conta a conceituação de Koch – para que o intertexto se realize de fato no plano da produção, faz-se necessária também sua realização no plano da leitura. Para que o diálogo proposto por Bakhtin se consume, o leitor necessita participar com seu repertório. Segundo o filósofo, o diálogo só é possível com a participação ativa do leitor, caso contrário, instaura-se o monologismo. Portanto, mesmo o cinema intertextual pode ser inteiramente monológico, caso o leitor não seja capaz de juntar as peças do mosaico e colaborar na construção de sentido da obra, o que exigirá dele a memória discursiva de que fala Koch. 6 Alguns leitores consideram o filme uma adaptação da novela cyberpunk Neoromancer de William Gibson. De fato há no filme muitas semelhanças com a narrativa, mas não suficientes para configurá-lo como uma adaptação. 18 Quem reforça essa assertiva é Wilton Garcia em seu livro Introdução ao cinema intertextual de Peter Greenaway quando afirma que “a intertextualidade é uma infinita troca de sentidos entre a obra e os espectadores”(GARC IA, 2000, p.31). Essas ideias fazem com que se tenha de pensar o cinema intertextual não apenas na sua matriz criativa, mas também receptiva. É o que será feito a seguir por meio dos filmes Matrix, Shrek e Dom. 2.1 - Matrix: um clássico contemporâneo Matrix, produção americana dirigida pelos irmãos Andy e Larry Wachovski, conta a história de Neo, funcionário de uma empresa de telecomunicações e hacker procurado pela polícia. Sua vida muda quando recebe uma mensagem pela internet, avisando que ele corre perigo, e quando descobre que o mundo onde vive não passa de uma simulação de computador. A terra havia sido destruída pelo homem e dominada pelas máquinas que escravizaram a humanidade. Os seres humanos não nasciam mais, eram cultivados em grandes cápsulas onde ficavam adormecidos enquanto as máquinas se nutriam de suas energias, pois o céu estava coberto por uma nuvem espessa que impedia a luz solar – principal fonte de energia das máquinas – de chegar a terra. Enquanto dormiam, os humanos viviam uma realidade criada pela inteligência artificial. O ano é de 2099, mas no mundo simulado é de1999 num planeta ainda habitável. Porém um grupo de humanos liderado por Morpheus7 consegue se libertar e inicia uma jornada em busca do “escolhido” capaz de derrotar as máquinas e acordar as pessoas ainda adormecidas e escravizadas. Para contar essa história, o roteiro de Matrix é totalmente construído sobre matrizes intertextuais. Serão analisadas a seguir várias dessas matrizes, a começar pelo diálogo com as narrativas épicas e bíblicas. Para Palma: A possibilidade de que Matrix comporte uma leitura interdiscursiva , como já se afirmou, torna-se indubitável ao se tomar como paradigma de comparação o legado da prosa do período trovadoresco. Algumas matrizes da épica medieval, principalmente da novela de cavalaria do ciclo arturiano, 7 Personagem que comanda o grupo de “rebeldes” humanos. Pode ser associado à figura de João Batista, cuja vida encontra-se no Evangelho de Lucas; ou a Lancelote, da Demanda do Santo Graal. Ambos tidos como profetas ou precursores de um “escolhido” ou messias. 19 destacando-se aí A demanda do santo Graal, aparecem com insistência no filme. Elementos narrativos e temáticos da demanda repetem-se em Matrix, ambos inscrevem-se dentro de uma visão épica da existência, motivada pela presença de um herói libertador que dá impulso ao percurso de purificação e redenção da humanidade (PALMA, 2004, p. 21). Neo se assemelha ao personagem Gallaaz – herói da Demanda – que chega à Bretanha no momento em que a Besta Ladradora espalha o medo e o terror. Os cavaleiros da távola redonda aguardam aquele que os conduziria ao Santo Graal, cálice sagrado usado na última ceia e onde José de Arimateia recolheu o sangue de Jesus na cruz. Encontrar o Graal e matar a Besta é a função do herói. Quando Gallaaz se apresenta aos cavaleiros liderados por Lancelot, é submetido a uma série de testes para provar sua origem divina, o que ocorre quando ele consegue retirar a espada do Rei Artur de uma pedra, tarefa que só seria cumprida pelo predestinado. No filme, Neo também é considerado um escolhido, mas precisa se submeter a testes aplicados por Morpheus, a quem derrota durante a simulação de uma luta. Salvar a Bretanha em solos medievais; a terra no mundo virtual. Gallaaz e Neo são personagens construídos a partir do arquétipo do herói clássico como Aquiles e Eneias, modelos de força e coragem, capazes de feitos comuns apenas aos deuses. Também é pertinente associar Neo a Cristo, considerado o enviado de Deus para salvar a humanidade. Outro aspecto intertextual do filme está nos nomes de alguns personagens e lugares. O grupo considerado pela matrix como rebelde é liderado por Mopheus. Segundo a mitologia grega, esse era o nome do deus do sonho. Ele podia assumir a forma que quisesse e invadir a mente das pessoas enquanto dormiam. É paradoxal que no filme o nome esteja associado a um personagem que acorda as pessoas do sonho. O sonho é a matrix, nome dado à realidade simulada. A busca de Morpheus pelo escolhido se dá depois que ele visita o Oráculo, personagem aliado que pertence ao mundo virtual. Na mitologia grega, oráculo era o nome da resposta que um deus dava à dúvida de algum mortal, essa resposta era dada por intermédio de uma pessoa conhecida pelo mesmo nome. Também são classificados como oráculos os seres humanos capazes de predizerem o futuro. É o caso do personagem do filme, que diz a Morpheus que ele encontraria o escolhido. Na narrativa bíblica, essa era uma das missões de João Batista: encontrar o predestinado a salvar a humanidade, ou seja, Jesus Cristo. 20 Há, no mundo real, uma fortaleza que abriga os humanos que acordam da matrix e outros que nasceram de forma natural. Essa fortaleza chama-se Zion ou Sião. Segundo o texto bíblico, é o nome da cidade do rei Davi; no cristianismo, também serve para simbolizar Jerusalém e a terra prometida. É em Sião que a humanidade ainda tem condições de resistir ao domínio das máquinas. Como é possível notar, todos esses signos fazem alusões a personagens e nomes da mitologia ou da Bíblia. Seus significados têm papel importante na construção de sentido da narrativa, não foram escolhas arbitrárias. Fazem parte de uma rede semiótica que apresenta ao espectador um universo com amplas possibilidades de leitura. A literatura infantil também serve de mote para as falas de alguns personagens e para a construção de várias cenas. Os clássicos Alice no país das maravilhas e Alice no país dos espelhos, do escritor inglês Lewis Carrol são constantemente parafraseados, parodiados ou aludidos nos diálogos. Quando Neo recebe uma mensagem pela internet avisando que ele corre perigo, o mensageiro escreve “siga o coelho branco”. É fazendo isso que o protagonista chega ao grupo de Morpheus. O coelho branco é uma tatuagem no braço de uma estranha que bate a sua porta. É ela que o herói deve seguir para “entrar na toca do coelho.” Nas histórias criadas por Carrol, a menina Alice – depois de seguir o coelho e entrar em sua toca, ou depois de atravessar um espelho – vai parar num mundo onde a ordem natural é subvertida. Ao ingerir líquidos ou comer algo, a personagem cresce ou diminui; depois conversa com animais, plantas e enfrenta perigos inimagináveis no mundo real. No final dos dois livros, o fantástico e o maravilhoso são desfeitos quando o autor deixa claro que tudo não passou de um sonho. Como ela, Neo também estava imerso no país das maravilhas: a matrix. Esse universo foi criado para manter o ser humano no sonho de Alice, pois assim seria mais fácil escravizá-lo. A matrix é um sonho, visto que o planeta Terra estava completamente destruído pela ação do homem e apenas Zion tinha sobrevivido. Os que se deram conta dessa dualidade viviam o seguinte conflito: fazer uma escolha entre o mundo real e o simulado. É o que ocorre com Cypher que, seduzido pelas maravilhas da matrix, prefere a simulação. Ele trai seus companheiros entregando os planos deles ao agente Smith, o principal antagonista de Neo. Em troca das informações, Cypher deseja voltar a dormir, mesmo sabendo que viveria num mundo 21 onde tudo não passa de uma ilusão dos sentidos. Ao provar um pedaço de carne diz: “Sei que não é real. Mas prefiro isso a comer a mesma gororoba8 todos os dias.” Mas a atitude de Neo é inversa a de Alice. Ela – assim como Cypher – lamenta ter de acordar, pois sabe que “bastaria abrir de novo os olhos e tudo voltaria à prosaica realidade”(CARROL, 2007, p. 67). O herói opta por abrir os olhos e enxerga o mundo tal como a humanidade o transformara. Quando Neo encontra Morpheus pela primeira vez, este lhe diz : “ sei como deve estar se sentindo. Como Alice entrando na toca do coelho”. Como se sentia Alice depois de entrar na toca do coelho? Cheia de dúvidas, inclusive em relação a quem ela era de verdade. “Quem afinal eu sou?”, indaga a personagem. Quem Neo era de verdade antes de encontrar o seu mentor? A mesma dúvida de Alice perturba o personagem no filme, por não saber discernir a realidade da fantasia. Num outro explícito diálogo com as aventuras da personagem de Carrol, o corpo real de Neo precisa ser resgatado da cápsula incubadora, o que é feito fazendo com que seu corpo virtual atravesse um espelho, o mesmo que ocorre com a menina em Alice no país do espelhos. Todos esses elementos intertextuais estão sendo comentados separadamente, mas no desenrolar da narrativa, são postos em diálogo constante, criando de fato um mosaico de citações. Como se comporta o leitor-espectador diante desse mosaico? Matrix foi sucesso de público e até hoje angaria fãs de todas as idades e possui vários endereços virtuais onde internautas discutem seus significados. Também inspirou uma série de trabalhos acadêmicos e acaloradas discussões filosóficas. A complexidade da trama, entretanto, não distanciou o público menos informado da obra; pois se trata também de um filme repleto de efeitos especiais e ação provocada por inúmeras cenas de luta e perseguição. Decerto, nem todos os espectadores do filme estabelecem as conexões intertextuais propostas por seus autores, também não se defende aqui a ideia de que as intenções dos autores devam ser resgatadas. Contudo, quando não se faz uma leitura intertextual de uma obra como Matrix, como ela é fruída e compreendida? Desconhecendo as fontes do intertexto, como se dá a construção do sentido de uma obra cujo principal procedimento de composição é a intertextualidade? Por meio de exibição e entrevistas realizadas com 8 O termo é uma alusão à comida servida na “Nabucodonosor”, nave tripulada pelos rebeldes. É uma espécie de sopa à base de aveia. 22 grupos de jovens alunos do ensino fundamental e médio, e análise dos comentários dos internautas na comunidade9 destinada ao filme, tentou-se buscar algumas respostas para tais questionamentos. Para Bakhtin, a composição dialógica convoca a participação do leitor no processo de construção de sentido da obra, posição reforçada pelos teóricos da estética da recepção. Segundo um dos principais representantes dessa corrente, Hans Robert Jauss: Para a análise da experiência do leitor ou da sociedade de leitores de um tempo histórico determinado, necessita-se diferençar, colocar e estabelecer a comunicação entre os dois lados da relação texto leitor. Ou seja, entre o efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepção, como o momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivencial, trazido pelo leitor de uma determinada sociedade (JAUSS, 1979, p. 73). Jauss afirma que é necessário saber como o duplo horizonte – do autor e do leitor – se encadeiam para perceber se nesse momento pode surgir uma nova significação. Acrescenta ainda que o que diz respeito ao horizonte interno à obra é menos problemático, pois deriva do próprio texto, mas em relação ao leitor há o fato de que o horizonte de expectativa social não é tematizado como: ...contexto de um mundo histórico. Por isso, enquanto a psicologia do processo de recepção for tão pouco esclarecida quanto ao papel e à produção da experiência estética no sistema das estruturas de ação de um mundo histórico, é pouco apropriado esperar-se um esclarecimento total sobre os comportamentos dos leitores pelas análises fundadas em classes e camadas (JAUSS, 1979, p. 73). De fato, é impossível um esclarecimento total sobre o comportamento dos leitores, principalmente numa sociedade marcada pela diversidade cultural e econômica. Mas, quando Jauss coloca a produção de sentido no encadeamento entre as características internas da obra e a experiência trazida pelo leitor, cabe uma reflexão sobre o que lê a grande maioria dos jovens leitores. 9 No site Orkut, há grupos chamados de comunidades. Um deles é voltado para fãs do filme Matrix.Em vários fóruns os membros discutem questões relativas ao filme. No material anexo há cópias das páginas onde os integrantes falam de aspectos abordados neste estudo. 23 Mesmo sem dados estatísticos precisos, basta observar as listas publicadas semanalmente em jornais e revistas para perceber que os livros de autoajuda, romances de aventura, suspense e esotéricos estão no topo das vendas. Não há nenhuma objeção à leitura de tais gêneros. No entanto, os textos que têm servido para a antropofagia do cinema intertextual são os considerados clássicos. Ítalo Calvino – escritor italiano, no livro Por que ler os clássicos – apresenta várias definições para o substantivo ou adjetivo. Dentre elas, a que melhor se encaixa às discussões aqui levantadas diz que clássicos são “livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”( CALVINO, 1993, p. 11). As influências dos clássicos são evidentes não só no cinema, mas também em outros setores da cultura, como na música e na telenovela. Em relação a este gênero dramatúrgico, cabe ressaltar que há muitas tramas nas quais personagens femininas se livraram de pretendentes tecendo uma colcha durante o dia e desfazendo à noite, tais qual Penélope. Um exemplo foi a novela Chocolate com pimenta de Walcir Carrasco, exibida no horário das 18h entre setembro de 2003 e maio de 2004, em que a personagem Celina usava o mesmo estratagema da mãe de Ulisses, escapando, assim, das investidas do Conde Klaus, homem com quem se casou contra a vontade. Como já foi afirmado anteriormente, Matrix é um filme que se nutre desses textos escondidos “nas dobras da memória.”Para muitos espectadores, o primeiro contato com Alice pode ter sido por meio desse filme, que não é uma adaptação das histórias de Lewis Carrol, mas que traz as influências deixadas por elas nos irmãos Wachowski. Ainda citando Calvino: ...os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ( ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes.) ( CALVINO, 1993, p. 11). A leitura que os criadores de Matrix fizeram da personagem de Carrol é a de alguém que precisa fazer escolhas que mudarão completamente a sua vida, num mundo 24 onde o que se entendia como natural encontra-se às avessas. E Neo é uma Alice às avessas. Essa é uma das leituras impressas no personagem. Mas também é o messias consciente de sua missão redentora, e o cavaleiro que – no estilo medieval – enfrenta perigos para salvar a amada. Todas essas marcas, impressas no que Calvino e Ingedore Koch chamam de inconsciente coletivo e memória discursiva, constroem uma obra polifônica apresentando elementos extraídos dos clássicos ao espectador como peças de um quebra-cabeça. Outra definição útil à ampliação das ideias defendidas é a de que “Clássico é aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”(CALAVINO, 1993, p.15). A realidade histórica e social de Matrix difere da realidade tratada em Alice, em A Demanda do Santo Graal, numa aventura épica como a de Aquiles, ou bíblica como a vida de Cristo. No filme, a sociedade é controlada pela inteligência artificial, algo impensável em tempos medievais ou na antiguidade; apesar de as formas de controle se apresentarem nessas realidades sob outros prismas. Esses mundos tão incompatíveis se reúnem na composição de Matrix, numa época em que ler os clássicos se torna também praticamente incompatível com o ritmo de vida “que não conhece os tempos longos”. Portanto, pode-se dizer que o leitor-espectador contemporâneo pode ler, por meio de filmes como Matrix, apenas rumores de clássicos que se apresentam num sistema semiótico muitas vezes de difícil compreensão. A intertextualidade que compõe esse filme se nutre de uma série de signos como os signos-palavra e signos-imagem. Pensando na relação autor / leitor, tais signos foram utilizados pelos Wachowski como método de composição por estarem presentes em suas memórias de leitores. É importante lembrar que uma das propostas desta dissertação é pensar também como esses signos podem ser lidos por uma comunidade de leitores-espectadores a cada dia mais habituados a lidar apenas com os “rumores” dos clássicos. É claro que não ter lido Alice no país da maravilhas, algum romance ou novela inspirada na Demanda do Santo Graal, ou narrativa mítica que se refira à figura do Oráculo pode não impedir o espectador de tecer sua própria rede de significações acerca do filme, mas o limita quanto à ampliação dessa mesma rede ou à formulação de novos significados. Oráculo não é apenas um nome como Joana, por exemplo. Assim como morrer de braços abertos e flutuar no ar não é como simplesmente morrer atingido por uma bala. As palavras Oráculo e Morpheus, e a imagem do corpo morto em forma 25 de cruz atualizam, no universo ficcional de Matrix, um passado cultural da humanidade. O filme, para alguns espectadores, como será visto no capítulo específico sobre a recepção do cinema intertextual, resume-se nas fantásticas cenas de lutas inspiradas nas artes marciais e nos efeitos especiais. Em termos de cinema, pode-se afirmar que Matrix já se tornou um clássico – se forem levadas em conta as conceituações de Calvino – já que seus personagens e cenas fazem parte de uma memória cinematográfica. O filme criou imagens que passaram a servir de inspiração para uma série de outros do gênero ficção científica ou aventura. É possível, praticamente dez anos depois do seu lançamento, falar de espectadores que não viram Matrix, mas que assistiram a “rumores” por meio de citações, paródias e outras formas de intertexto; como ocorre em Shrek, numa cena em que a princesa Fiona, ao lutar com o bando de Robin Hood, dá um salto e congela no ar, parodiando as lutas travadas no filme. 2.2- Shrek e a carnavalização bahktiniana O desenho animado Shrek, do diretor Andrew Adamson Vick, apresenta características do que Bakhtin define como carnavalização. Primeiramente, será feito um esclarecimento do que exatamente o filósofo define como carnaval, para depois se fazer um estudo sobre as maneiras como se deu a transposição do termo para a literatura e como ele será empregado para uma análise sobre a intertextualidade no filme. O carnaval não é um fenômeno literário, mas “uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares” (BAKHTIN, 2008, p. 139). Bakhtin afirma que o carnaval é constituído por uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, complexas ações de massa e gestual carnavalesco difíceis de serem plenamente traduzidos para a linguagem verbal, por isso fala em transposição do carnaval para a linguagem literária, o que chamou de carnavalização da literatura. Na concepção do filósofo, o carnaval é também um espetáculo sem ribalta, no qual não se distingue ator de espectador, todos são participantes ativos num universo onde tudo se apresenta sob o código da inversão, 26 trata-se de um “mundo às avessas” onde a vida é desviada de sua ordem natural. As hierarquias e regras sociais que separam os indivíduos na vida cotidiana são quebradas no carnaval, que tem a excentricidade como uma característica específica, permitindo que “se revelem e se expressem – em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da natureza humana” (BAKHTIN, 2008, p. 141). Na carnavalização, as distâncias entre os homens dão lugar ao livre contato familiar, ocorrem as méssaliances10 aproximando o sagrado e o profano, o sábio e o tolo, o grande e o insignificante. Segundo Bakhtin, esses aspectos do carnaval – principalmente a familiarização do homem com o mundo – foram transpostos: ... para a literatura, especialmente para a linha dialógica de evolução da prosa artística romanesca. A familiarização contribuiu para a destruição das distâncias épica e trágica e para a transposição de todo o representável para a zona do contato familiar” (BAKHTIN, 2008, p. 141). Um evento marcante de toda ação carnavalesca é a coroação e o destronamento do rei do carnaval, ritual verificado em todas as festividades de estilo carnavalesco. A coroação e o destronamento representam a relatividade de toda ordem social; “Coroa-se o antípoda do verdadeiro rei – o escravo ou o bobo, como que se inaugurando e consagrando o mundo carnavalesco às avessas”(BAKHTIN, 2008, p. 143). Uma outra característica marcante dos gêneros carnavalizados é a paródia. Esse procedimento intertextual é a base da construção do roteiro da trilogia cinematográfica do personagem Shrek. Este é um ogro que mora num pântano que é invadido pelos personagens dos contos de fadas. Segundo a tradição desse tipo de conto, ogro ou ogre é um monstro que se alimenta de carne humana. A palavra deriva do latim orcus que significa divindade infernal. A figura aparece no conto popular europeu O pequeno polegar como um homem que devora crianças. Shrek também começa como os tradicionais contos de fadas. Um livro se abre e a voz de um narrador inicia a história: “Era uma vez uma linda princesa, mas ela recebeu um feitiço do pior tipo, que só poderia ser quebrado com um beijo de amor. 10 Pelo uso que Bakhtin faz do termo, pode ser traduzido como uma espécie de casamento entre opostos. 27 Ela foi trancada num castelo e vigiada por um dragão. Muitos cavaleiros corajosos tentaram libertá-la, mas nenhum conseguiu.” A mão do ogro, no entanto, interrompe a narrativa e rasga a página do livro. A partir daí, inicia-se a saga do personagem anti-herói. No primeiro filme da trilogia, Shrek tem seu pântano invadido pelos personagens que foram expulsos do reino dos contos de fadas pelo vilão Lord Farquaad. Para que sua vida volte ao normal, ele deve salvar Fiona – princesa presa numa torre e refém de um dragão – para que ela se case com Farquaad, transformando-o em um rei. Porém Fiona e Shrek se apaixonam. A princesa está sob um feitiço que a transforma em ogro quando anoitece. Para quebrar o encanto precisa beijar “o verdadeiro amor” – um príncipe, segundo a tradição – antes do pôr do sol. A caminho do castelo, o amor entre o ogro e a princesa aumenta ainda mais. Mas Shrek ouve uma conversa entre Fiona e o Burro Falante sobre o feitiço que recai sobre ela e pensa que a princesa o rejeita por ser feio. São muitos os desentendimentos que passam a ocorrer entre ambos, levando Fiona a optar por se casar com o lord. Porém o Burro esclarece tudo ao amigo, e, quando Fiona está prestes a se casar, Shrek aparece, impede a cerimônia e a beija. Em vez de ser princesa para sempre, Fiona torna-se para sempre ogro. O roteiro do desenho é inteiramente composto a partir de paródias de clássicos da literatura infantil e de filmes como Flashdance e Matrix. Na primeira sequência, um velho aparece carregando um boneco de madeira para ser entregue aos soldados de Farquaad. Quando responde que não era um boneco, mas um menino de verdade, seu nariz cresce. Numa outra, Shrek, Fiona e o Burro Falante são atacados pelo bando de Robin Hood, que é derrotado pela princesa que lhe aplica golpes aéreos numa alusão direta a Matrix. Segundo Bakhtin: ... as lendas carnavalescas diferem profundamente das lendas heróicas épicas: fazem o herói descer e aterrissar, familiarizam-no, aproximam-no e humanizam-no. O riso carnavalesco ambivalente destrói tudo o que é empolgado e estagnado, mas em hipótese alguma destrói o núcleo autenticamente heróico da imagem (BAKHTIN, 2008, p. 151). 28 Shrek é o inverso do herói clássico dos contos infantis. É feio, gordo, arrota, tira cera do ouvido e é acompanhado por um burro, não por um cavalo. Mas é dotado de força e coragem, o que não o afasta totalmente do perfil heroico. Um exemplo é o momento em que ele salva a princesa do dragão. Fiona estava deitada numa cama no alto de uma torre, dormindo tal qual a Bela Adormecida à espera do príncipe que a beijaria e salvaria. Porém é surpreendida pela figura do ogro, que contraria todas a suas expectativas de princesa, pois ele não a beija de imediato. É o beijo que desperta a princesa do sono eterno e é também ele que a salva da morte11. Shrek contraria não só as expectativas de Fiona, mas também as do espectador, principalmente as do espectador infantil, possível leitor dos contos tradicionais. Mas ele enfrenta o monstro, coloca a princesa no ombro e foge. A memória do leitor das histórias infantis é ingrediente fundamental para a percepção do humor em Shrek, já que parte desse humor é consequência da desconstrução dos arquétipos criados pelas narrativas de autores como os Irmãos Grimm, La Fontaine e Charles Perrault, ou seja, o modelo de beleza e bom comportamento dos príncipes e princesas. Vive-se numa sociedade na qual a busca da beleza física tornou-se uma obsessão para muitos indivíduos. Em novelas e filmes românticos, os casais de protagonistas são geralmente interpretados por atores com perfil físico e psicológico típicos dos heróis e heroínas das narrativas românticas do século XIX. Esses modelos já haviam sido rompidos em narrativas destinadas ao público adulto, mas para as crianças, produtoras que dominavam o mercado de filmes de animação como a Disney ainda se mantinham presas ao tradicional. A DreamWorks contribuiu para a quebra dessa hegemonia com uma produção que foi sucesso de público, atraindo adultos, crianças e adolescentes. Um dos fatores responsáveis pela ruptura com os desenhos tradicionais é o uso de mésalliances carnavalescas, que é a união dos opostos. O sublime comunga com o grotesco, o belo com o feio, seres de espécies diferentes se relacionam afetivamente, como é o caso do dragão fêmea que se casa e tem filhos com o burro: 11 Referência às histórias das princesas Bela Adormecida e Branca de Neve. 29 A livre relação familiar estende-se a tudo: a todos os valores, idéias, fenômenos e coisas. Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. (BAKHTIN, 2008, p. 141). Aproximar o ogro da princesa é apresentar ao público infantil um universo no qual a união do diferente é possível, apesar de, na realidade, as hierarquias sociais ainda separarem pobres de ricos, feios de bonitos. Fiona demora a aceitar o seu par. Quando se depara com Shrek na torre, pergunta pelo cavalo branco, pela armadura, pelo beijo que não recebe, pelas palavras bonitas, ou seja, tudo o que eternizou as histórias de príncipes e princesas. Shrek é considerado um ser ruim apenas por sua aparência. Todos o temem e o discriminam tal qual ocorre com o célebre personagem monstruoso de Mary Shelley: Frankenstein. Fiona não se assusta, apenas não o acha parecido com as descrições de príncipes que conhecia, mas se apaixona pelo seu inusitado salvador, abre mão das riquezas que Lord Farquaad poderia lhe oferecer, escolhe abdicar da beleza e se transforma numa ogra. A maioria dos contos de fada foi adaptada para o cinema12. E as paródias em Shrek ora remetem à versão literária, ora à cinematográfica, como uma das cenas mais famosas do clássico desenho infantil Branca de Neve e os sete anões (1937). Trata-se do momento em que Branca, rodeada de pássaros, canta uma canção. Fiona segue o exemplo da princesa enfeitiçada por uma maçã, mas acaba fazendo um passarinho explodir devido ao exagero de seus agudos. No segundo filme da trilogia, os protagonistas precisam ir ao reino de Tão Tão Distante para conhecerem os pais de Fiona. Essa continuação ainda é mais intertextual e carnavalizada que o primeiro longa-metragem. Além do Burro Falante, quem passa a seguir o ogro em suas aventuras é o Gato de Botas que surge como um caçador de recompensas e matador de ogros. Shrek o encontra numa taverna chamada Maçã envenenada – alusão à fruta comida por Branca de Neve – comandada por um travesti, tipo de personagem inédito em desenhos infantis. O 12 Shrek é inspirado em personagem homônimo criado pelo escritor William Steig, que também escreveu o roteiro do filme. 30 gato, numa festa no final do filme, dança imitando a coreografia de Jennifer Beals em Flashdance (1983), clássico musical dos anos oitenta, referência que, provavelmente, pode não ser percebida por quem tem menos de vinte anos de idade. A Fada Madrinha é outro personagem típico das histórias infantis, mas que, em Shrek 2 (2004), se apresenta bem distante da figura bondosa e comprometida em realizar os sonhos de seus protegidos. É uma mulher ambiciosa, comete uma série de crimes, faz chantagens e trapaças para que Fiona abandone o marido, volte a ser uma linda princesa e se case com Encantado, o príncipe, filho dela. Shrek 2 é o que mais se aproxima da sátira menipeia, principal gênero carnavalizado. A menipeia recebe o nome do filósofo do século III a.C.; Menipeu de Gadare. Para Julia Kristeva: A menipeia tende para o escândalo e para o excêntrico na linguagem. A palavra despropositada, por sua franqueza cínica, por sua profanação do sagrado, por seu ataque à etiqueta é muito característica da menipeia. (...) Ela utiliza as passagens e as mudanças abruptas, o alto e o baixo, a ascensão e a queda, os maus casamentos de toda espécie. (...) Gênero englobante, a menipeia constrói-se como um mosaico de citações (KRISTEVA, 2005, p.88). O início do filme é uma paródia da história A Bela Adormecida, com o príncipe montando num cavalo branco atravessando desertos, florestas e montanhas para salvar a princesa na torre de um castelo. Quando chega aos aposentos dela e afasta a cortina para beijá-la, ele se depara com o Lobo Mau, que lhe diz “chegou tarde”, pois a princesa já havia sido salva e estava agora em lua de mel. Em Shrek 2, o rei se transforma em sapo, o belo se torna o feio e vice-versa, num ritual de coroação e destronamento típicos dos textos carnavalizados. Figuras da família real se comportam à mesa quebrando todas as regras de etiqueta como convém à sátira menipeia. As cenas de escândalo também são bastante comuns em todo desenho reforçando a aproximação com o gênero. Numa cena em que Shrek e o Gato tentam invadir o castelo para impedir que – por engano13 – Fiona se case com Encantado, são recebidos por soldados que encostam o Gato na parede e, ao revistálo, encontram um saquinho com erva (maconha). Há também outras cenas que 13 Enganada pelo pai e pela Fada, Fiona acredita que Encantado é Shrek transformado em príncipe. 31 expõem os personagens ao ridículo como a do capitão gancho bêbado tocando piano na taverna da Irmã Feia14. O “felizes para sempre” é comercializado pela fada madrinha, proprietária de uma empresa que atende inclusive por telefone. Entretanto, ela nega ao ogro esse direito, quando diz que, em histórias como Branca de Neve, Cinderela, João e Maria, Uma linda mulher15, o “felizes para sempre” não admitia a presença de tal criatura. Nega ao feio, ao incomum, ao diferente, o direito que deveria pertencer a todos. Quando se depara com Shrek em sua sala, faz alusão a La Fontaine: “Por La Fontaine, o que você está fazendo aqui?” As fábulas do escritor francês do século XVII são exemplos de histórias com desfecho moralizante, em que a fraqueza vence a força, a preguiça é derrotada pelo trabalho. Nesses escritos, o comportamento humano é retratado em animais. Distante das propostas de La Fontaine, o discurso da fada é o mesmo de algumas campanhas publicitárias que incutem na mente do consumidor a ideia de que o mundo foi feito apenas para os que se encaixam nos modelos de beleza e comportamentos determinados pelos programas de televisão. A Fada não é o único empecilho ao amor de Shrek e Fiona. O Gato de Botas é contratado pelo Rei para matar o genro indesejável, para que o caminho fique livre para Encantado. Mas o ogro inverte o jogo, derrota o Gato – que engasga devido a uma bola de pelos em seu estômago – e lhe poupa a vida fazendo com que o felino tenha para com ele uma dívida de gratidão, ajudando-o a derrotar seus inimigos, assim como o Gato fazia em sua história original com o personagem alcunhado de Marquês de Carabás. O Gato de Botas é uma figura com sotaque latino, usa capa, espada e à la Zorro, risca a inicial de seu nome no tronco de uma árvore numa explícita paródia ao personagem criado em 1919 pelo escritor americano Johnston McCulley. Mais ainda do que no primeiro filme, neste segundo, o humor é resultado das intervenções intertextuais, intervenções exigidas também no momento de recepção da obra. Shrek obteve um sucesso estrondoso, tendo uma terceira e quarta continuações. Isso se deve ao fato de ser uma obra acessível à criança que se encanta 14 Irmã Feia é a proprietária da taverna Maçã Envenenada, local onde se encontram vários vilões dos contos de fada. 15 O filme Uma linda mulher (1990) é mencionado dentre os demais contos de fadas. Isso se dá pelo fato de terminar com um tradicional final feliz. A moça pobre e rejeitada se apaixona pelo homem rico e bonito. Ambos superam uma série de adversidades para viver seu amor. 32 pela animação em 3D, pela música e coloridos típicos dos desenhos animados, e ao adulto que se diverte com as piadas pertencentes ao seu universo, como quando a fada põe em dúvida a orientação sexual do Lobo Mau16, ou quando o príncipe Encantado é beijado pela Irmã Feia, o travesti dono da taverna; além do fato de o filme trazer inúmeras referências à cultura pop dos anos 70 e 80. É um típico filme feito “Dos 8 aos 80”.17 Como o espectador infantil se relaciona com esse mosaico com referências tão distantes do seu repertório? É importante lembrar que as crianças da era Shrek não são as que ouvem histórias contadas antes de dormir, nem as que crescem ouvindo ou lendo clássicos de La Fontaine, Grimm, Perrault ou contos folclóricos. Mas pertencem à geração do Playstation, shopping e cinema. O primeiro contato de parte desse público com os contos de fadas se dá por meio da grande tela ou do DVD, não pela leitura. Pinóquio, por exemplo, é conhecido por algumas crianças como personagem de Shrek. Muitas escolas do primeiro seguimento do ensino fundamental têm substituído os momentos de contação de histórias por sessões de vídeo, geralmente com o objetivo de manter as crianças ocupadas. Jauss considera a importância de se levar em conta o momento histórico da recepção do objeto estético. Ora, numa época em que artistas como Madona e Lady Gaga se tornaram ícones da cultura infanto-juvenil, dificilmente se veem adolescentes tão obedientes quanto a Chapeuzinho Vermelho, ou sonhadoras como a Cinderela. A ideia da princesa que passa a maior parte do tempo numa torre esperando um príncipe está longe da realidade vivenciada pelas crianças e jovens do século XXI. Portanto, são muitas as versões que atualizam a leitura dessas histórias18. O que está em jogo aqui não são as adaptações, pois todo texto que conte uma história universal pode ser lido e adaptado em qualquer época. O cinema intertextual não se define como adaptação de uma obra, mas como uma narrativa nova que se constrói com signos oriundos de diversos objetos estéticos. É inegável que esses signos trazem consigo significados que lhes foram atribuídos não pelos autores 16 Quando Encantado chega ao castelo encontra o Lobo deitado no lugar da princesa. A Fada se refere a ele como “Um lobo de gênero duvidoso.” 17 “essa expressão de um produtor americano marca o filme como mercadoria na fase áurea do cinema como veículo de massa, isto é, até 1950”(BERNARDET, 2006, p.62). 18 Um exemplo é o desenho Deu a louca na Chapeuzinho (2005), em que a menina de capuz vermelho é uma esperta adolescente que investiga o desaparecimento de livros de receita na floresta. 33 somente, mas também pelas próprias obras e, não raro, por leituras que foram feitas delas. Em Shrek, o humor é resultante da inserção desses significados num contexto cujo objetivo é negar os valores expressos originariamente por eles. O ogro não quer o “felizes pra sempre” dos príncipes e princesas, mas construir um que esteja de acordo com seu estilo de vida nada bem-comportado ou obediente. Ele propõe uma nova forma de “ser feliz”, distante das fórmulas mágicas da Fada-Madrinha, sugere uma inversão total de valores e de papéis típica dos gêneros carnavalizados. 2.1.3 – Dom: Machado parafraseado ou adaptado? Dom – produção brasileira de 2003, dirigida por Moacyr Góes – traz na capa do DVD a informação de que o filme é “inspirado no romance Dom Casmurro de Machado de Assis.”No alto e à direita da capa está a seguinte frase: “Ainda hoje existe um amor assim?”A referência é ao amor entre Bentinho e Capitu, protagonistas de um dos mais conhecidos e discutidos romances da literatura brasileira. Nele, Bentinho é o personagem que narra sua história: a de um homem apaixonado e atormentado pelo ciúme. Desde criança amava Capitu, com quem se casou depois de retornar do seminário para onde partira atendendo à vontade da mãe, Dona Glória, e onde conheceu Escobar, seminarista que se tornou o seu melhor amigo. A amizade de ambos se estende mesmo após a saída do seminário. Bentinho se casa com Capitu, e Escobar com Sancha. No entanto Escobar morre num afogamento, e é no velório dele que Bentinho começa a suspeitar de que a esposa teria sido amante de seu amigo: Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas (...) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem as palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã (ASSIS, 2000, p.167). A situação se agrava quando Ezequiel – filho do casal – cresce, e o narrador começa a perceber semelhanças físicas entre o menino e o amigo morto. Essas ideias 34 são narradas de maneira que paira a dúvida se são semelhanças reais ou fruto da obsessão dele. No filme, o protagonista chama-se Dom, pois seu pai quis prestar uma homenagem ao famoso personagem de Dom Casmurro, e passa a adotar o apelido de Bento. Quando visita Miguel, dono de uma produtora e amigo de faculdade, Dom encontra Ana, antiga namorada de infância; fato que reacende a antiga paixão. Os dois se casam, e Ana passa a trabalhar na produtora de Miguel com quem estabelece grande cumplicidade devido aos interesses profissionais, despertando no marido um ciúme obsessivo. Quando o filho do casal nasce, Dom resolve fazer um exame de DNA para ver se o menino era realmente seu ou fruto da traição da esposa. Revoltada com a desconfiança, Ana parte com o filho, sofrem um acidente e ela morre. Bento não abre o exame, com medo de o resultado significar também a perda do filho, como pode ser percebido no monólogo interior do personagem no final do filme: Eu preferi não ler o exame, e ficar sem Joaquim significa perder Ana mais uma vez. Joaquim é o filho que Ana me deu. Ele junta uma ponta à outra de minha vida. Assim como no livro, eu não pude sustentar o imenso amor que ainda sinto por ela e que agora é todo de meu filho. No entanto, a dúvida que, no romance de Machado, perturba o personagem e o leitor; no filme incomoda apenas ao personagem. Em nenhum momento a narrativa deixa para o espectador qualquer dúvida quanto à fidelidade de Ana. O texto final do filme apresenta-se como uma paráfrase de um trecho do capítulo II do livro: “O meu fim era atar as duas pontas da vida” (ASSIS, 2005, p.2). Bentinho pretende atar as duas pontas de sua vida por meio da reconstrução pela narrativa. Esse papel no filme é conferido a Joaquim. Há entre o livro e o filme uma intertextualidade temática por meio de citação, alusão e paráfrase. A intertextualidade temática, segundo Ingedore Kock, pode ser encontrada entre textos “literários de uma mesma escola ou de um mesmo gênero, como acontece, por exemplo, nas epopeias, ou mesmo entre textos literários de gêneros e estilos diferentes” (KOCK, 2007, p. 18). A suspeita de adultério ocasionando o término do relacionamento amoroso é o tema de ambas as obras. Dom 35 poderia perfeitamente não estabelecer nenhum tipo de diálogo explícito com Dom Casmurro. Eça de Queirós e Gustave Flaubert publicaram, contemporaneamente a Machado, romances semelhantes quanto ao tema, além de existir, do primeiro para o segundo, um ato intertextual deliberado, sem que isso seja explicitado no romance português. É o caso de O primo Basílio e Madame Bovary. A instância intertextual no filme se dá a partir do momento em que o autor escolhe signos com significados oriundos de Dom Casmurro, não dos dicionários, e esclarece a origem desses signos. Pode-se afirmar também que o diálogo intertextual se dá no filme sob a forma explícita e implícita. Bento afirma ter lido várias vezes Dom Casmurro e utiliza trechos do romance para falar de sua experiência com Ana. Tem-se, neste caso, a citação e a alusão. O diálogo implícito se dá pela paráfrase. Segundo Koch, a paráfrase ocorre quando o texto segue a “orientação argumentativa” do texto com o qual dialoga. Isso é visível na composição do filme. Ainda com base nas palavras de Ingedore Koch : Nos casos de intertextualidade implícita, o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer, estará prejudicada a construção do sentido, mais particularmente, é claro, no caso da subversão. Também nos casos de captação, a reativação do texto primeiro se afigura de relevância; contudo, por se tratar de uma paráfrase, mais ou menos fiel, do sentido original, quanto mais próximo o segundo texto for do texto-fonte, menos é exigida a recuperação deste para que se possa compreender o texto atual (KOCH, 2007, p. 30). De fato, o roteiro de Dom é perfeitamente compreensível. Não se faz necessária a leitura prévia do romance para que se compreenda o filme. Contudo convém chamar a atenção para uma afirmação de Koch. A autora de Intertextualidade: diálogos possíveis afirma que a recuperação do texto-fonte “incrementa a possibilidade de construção de sentidos mais adequados ao projeto de dizer do produtor do texto” (KOCH, 2007, p. 31). A expressão “olhos de ressaca”, empregada por Machado com sentido metafórico para se referir aos olhos de Capitu, também é utilizada no contexto atualizado do filme num monólogo interior de Bento, quando se lembra da sua infância com Ana. O termo “ressaca” também pode estar associado semanticamente a um dos efeitos do consumo de bebida alcoólica. No entanto essa leitura está em total desacordo não apenas com o “dizer do produtor do 36 texto”, mas também com o próprio contexto. É importante lembrar que a problemática levantada aqui não é a necessidade de se resgatar as intenções do autor, mas o significado de um signo está ligado ao contexto em que ele está inserido. O sintagma “olhos de ressaca”, no sentido com que é empregado em Dom, carrega o significado do contexto criado por Machado. Ferdinand de Saussure, ao falar da arbitrariedade do signo linguístico, afirma que a “idéia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante, poderia ser representada igualmente bem por outra sequência”(SAUSSURE, 2006, p. 81). Portanto, o signo “mar” é arbitrário em relação ao “objeto” que ele representa. Essa arbitrariedade não se encontra nos signos que compõem um texto. Nele, os signos não são imotivados; as escolhas partem de critérios específicos que sempre estão ligados não apenas aos significados, mas também à sonoridade ou a outras necessidades estéticas. “Olhos de ressaca” é um sintagma composto por signos que, como qualquer outro, pode ser lido denotativa ou conotativamente. Christian Metz, teórico do cinema francês, em seu livro A significação no cinema, postula que “a literatura e o cinema estão por natureza condenados à conotação, já que a denotação existe sempre antes do seu empreendimento artístico”(METZ, 1972, p.94). Os substantivos “olhos” e “ressaca”, em termos de denotação, existem anteriormente à utilização feita por Machado. Seus sentidos podem ser verificados em qualquer dicionário. Já o sentido da expressão que define os olhos de Capitu só é verificável na leitura de Dom Casmurro ou de Dom. O filme, como a linguagem verbal, é suscetível de ser usado apenas como veículo, sem qualquer preocupação artística, reinando sozinha a designação. Por isso, a arte do cinema, bem como a arte do verbo, será elevada de um grau: é, em última análise, pela riqueza de suas conotações que o romance de Proust se diferencia – do ponto de vista semiológico – de um livro de cozinha, o filme de Visconti de um documentário cirúrgico (METZ, 1972, p. 94). Não raro, os “olhos de ressaca” que caracterizam a personagem Ana são associados ao consumo do álcool, numa interpretação completamente denotativa do que é empregado com valor conotativo. O filme não retoma todo o contexto de Dom Casmurro, pois, conforme já foi dito, não se trata de uma adaptação, mas de 37 intertextualidade. Contudo as intenções de Bento são iguais às de Bentinho. A “ressaca” dos olhos de Ana também quer tragar tudo à sua volta, assim como os de Capitu. Como ocorre com a maioria das obras clássicas, Dom Casmurro já inspirou adaptações para cinema e televisão, como a recente série Capitu (2008), exibida pela rede globo. Muitos fizeram uma primeira leitura do romance por esses mecanismos. Certamente, assistir a Dom não é fazer uma primeira leitura da famosa história de Machado em um suporte diferente do livro, mas estar em contato com signos extraídos desse romance e transportados para uma outra linguagem. 38 3-CINEMA INTERTEXTUAL E LEITURA HIPERTEXTUAL O capítulo anterior – que trata especificamente dos procedimentos intertextuais presentes nos filmes escolhidos como corpus – encerra-se com uma referência à transposição de signos de uma obra literária para o suporte audiovisual. Utilizando a conceituação de Charles Sanders Peirce, semioticista americano, para quem signo é aquilo que representa alguma coisa para alguém, convém analisar a seguinte questão: o sentido vernacular dos signos encontra-se nos dicionários, mas a cultura literária, por meio da produção e da leitura, atribui constantemente novos sentidos a eles, principalmente por meio da intertextualidade. Textos impressos ou digitalizados que se valem da intertextualidade podem se valer dos hipertextos para auxiliar o leitor na recepção e na construção coerente do sentido. Neste capítulo será feito um estudo do papel do hipertexto numa obra fílmica, partindo, inicialmente do filme Babel, para depois estendê-lo às obras básicas do presente trabalho. O escritor Machado de Assis inovou a literatura do século XIX com a publicação do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, no qual um personagem narrador conta a própria história depois da morte. Não há, no entanto, nenhum clima sobrenatural nem o romance é uma história de suspense. Trata-se apenas de um recurso narrativo. A cronologia dos fatos também não é obedecida. Passado, presente e futuro se misturam numa trama cheia de intertextos com o contexto histórico da época e outras obras da cultura universal. Várias edições do romance trazem notas de rodapé explicando ou comentando alusões e citações feitas pelo autor, como no capítulo XV intitulado “Marcela” em que o narrador diz: “há dois meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dânae, três inventos do padre Zeus”(ASSIS, 2002, p.41). A expressão três inventos do padre Zeus ganha uma nota da edição que explica o fato de esse deus da mitologia clássica ter se apresentado sob a forma de touro, cisne e chuva para seduzir, respectivamente: Europa, Leda e Dânae. Essa informação auxilia a compreensão do trecho e pode ou não ser utilizada pelo leitor. Entende-se, portanto, que a nota de rodapé é um exemplo de hipertexto. 39 3.1- O termo A palavra hipertexto passou a ter um uso mais frequente por causa dos textos informatizados, apesar de a sua prática anteceder a informática. A nomenclatura é que podemos afirmar ser contemporânea a ela. O filósofo Pierre Lévy, em seu livro O que é o virtual ? (1996), explica que o hipertexto informático hierarquiza e seleciona “áreas de sentido”, tecendo ligações e conectando o texto a outros documentos. No ciberespaço, a leitura não segue mais o plano linear comum à maioria das narrativas clássicas. O texto informatizado possibilita ao leitor escolher o seu próprio roteiro de leitura, que nem sempre será o indicado pelo autor ou autores do texto. Cabe avaliar se o hipertexto seria uma prática comum apenas ao ciberespaço e aos textos impressos. Neste capítulo, será feita uma análise da prática do hipertexto e de novas formas de leitura e de produção textual. Antes de abordar tais questões nos filmes escolhidos como base para o estudo, abrir-se-á um parêntese para a análise da composição hipertextual numa outra obra na qual essa prática é bastante explorada até mesmo no processo de montagem. Trata-se do filme Babel, do diretor mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu. O filme se foca em quatro histórias de personagens não relacionados diretamente. No deserto do sul do Marrocos, um criador de cabras, Abdullah, compra um rifle do vizinho, Hassam Ibrahim, para atirar nos chacais que estavam comendo o seu rebanho. Abdullah dá o rifle a seus filhos adolescentes, Yussef e Ahmed, para que vigiassem os animais. Os dois discutem a respeito do real alcance de 3km do rifle e resolvem testá-lo atirando num ônibus. O tiro atinge acidentalmente uma turista americana, Susan, que viajava de férias com o marido a fim de reconstruir o seu casamento que estava abalado com a morte de seu terceiro filho. Simultaneamente, é contada a história de Chieko, uma adolescente japonesa surda-muda, traumatizada com o suicídio da mãe, e que tem atitudes sexuais provocativas como forma de se inserir socialmente, já que se sente rejeitada devido à deficiência. Richard e Susan são um casal de americanos em férias no Marrocos. Susan não entende por que o marido a levou àquele lugar. Ele diz que precisavam ficar a sós para tentar reconstruir a relação abalada com a morte do filho mais novo do casal, fato que desenvolveu em Susan um estado de depressão. 40 Nos EUA, Amélia é uma babá mexicana que cuida dos dois filhos de Richard e Susan. Ela precisa ficar com as crianças mais tempo do que o previsto por causa do incidente no Marrocos, porém é dia do casamento de seu filho no México. Na companhia do sobrinho, resolve levar as crianças à festa, que acaba durando mais do que o esperado. Amélia precisa retornar à Califórnia, e seu sobrinho Santiago a leva de volta, mas ele havia bebido demais, o que levanta suspeitas da polícia quando são parados na fronteira com os Estados Unidos. As quatro histórias parecem recortes de filmes diferentes. O roteiro não obedece a uma sequência, e a mudança de uma cena para outra é realizada sem qualquer transição. Assistir a um filme como Babel exige do leitor procedimentos de leitura dialógicos. Todo momento faz-se necessária uma rede de conexões entre situações, objetos e personagens para que seja conferida unidade à trama. Esses elementos são apresentados ao espectador como recursos hipertextuais que auxiliam a leitura, a recepção e a construção de sentido da obra. 3.2- Hipertexto e rizoma Pierre Lévy, ao diferenciar o atual do virtual, coloca a virtualidade como uma potencialidade e o atual como a realização dessa potencialidade. Para ele, a leitura é “uma atualização das significações de um texto”(LEVY, 1996, p.41). O sentido do texto é uma possibilidade e não antecede o ato da leitura, durante a qual se realizará a concretização do sentido. A narrativa de Babel trilha caminhos que obrigam o leitor a enveredar por uma ficção sem protagonistas ou coadjuvantes, nem noções de espaçotempo definidas. A compreensão ou a possível atribuição de unidade ao filme, para uma melhor realização do sentido, é auxiliada pelos recursos hipertextuais postos à disposição do espectador. Diferentemente do que ocorre com o formato digital, na tela, ele não possui o acesso ao clique que poderia conduzi-lo aos links de auxílio. A atualização do sentido dependerá dos hipertextos contidos em sua memória discursiva e associativa. Um rifle, uma bala, uma foto, um programa de tv, o diálogo entre Richard e o filho ao telefone – que no final do filme é resgatado em forma de flashback – são os 41 links colocados à frente do espectador quando este começa a se sentir perdido, sem ponta para se segurar na trama rizomática construída por Iñárritu. O termo “rizomático”, utilizado aqui, está amparado no conceito de Deleuze e Guattari19. A narrativa cinematográfica já há algum tempo tem abandonado o princípio aristotélico de contar histórias. Assim como narrativas tais qual a de Memórias póstumas Brás Cubas ou de experiências mais radicais como a de António Lobo Antunes em Exortação aos Crocodilos20, Babel atende ao conceito de rizoma dos dois filósofos. Para eles: É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15). No filme abordado, a unidade de sentido só pode ser alcançada quando, paradoxalmente, for extraída da multiplicidade de possibilidades que compõe a estrutura do filme. Atar as várias pontas deste rizoma fílmico, buscando apenas reconstruí-lo dentro de uma estrutura-raiz (ainda Deleuze e Guattari), é tentar lê-lo como um livro clássico com começo, meio e fim (Aristóteles): “Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos”(DELEUZE e GUATTARI, 1995, P.15). No deserto do Marrocos, o garoto Youssef corre depois de atirar no ônibus, pois percebe que fez algo errado. No estado da Califórnia, Mike (filho de Richard e Susan) corre e se esconde da babá que o procura. O ato de correr pode ser entendido como um significante comum que liga o núcleo marroquino ao americano, criando uma ideia equivocada de continuidade. Mas o rizoma não se segmenta, bifurca-se; e o que seria a continuação de uma cena é a ruptura temporária dela. 19 O termo “rizoma”parte do conceito do filósofo Gilles Deleuze e do psiquiatra Félix Guattari na obra Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 20 Exortação aos crocodilos é uma história narrada por quatro mulheres pertencentes a uma organização terrorista de extrema direita que planeja atentados em Portugal pós-revolução dos Cravos. A narrativa é fragmentada, com as memórias das personagens se misturando aos planos da realidade, fantasia e delírio. As vozes se confundem e se interrompem abruptamente, fazendo com que o leitor seja obrigado a atar pontas e desatar nós para atribuir, ao longo da leitura, significado ao texto. 42 Iñarritu cria essa falsa ideia em vários outros momentos. Depois que é informado sobre o incidente do ônibus, Abdullah resolve fugir com os filhos, mas são surpreendidos pela polícia, com a qual trocam tiros. Ahmed é ferido mortalmente. Depois de se entregar e assumir total responsabilidade sobre o acontecido, Youssef relembra um momento em que ele e o irmão brincavam de braços abertos resistindo ao vento na montanha onde cuidavam das cabras da família. Sem corte, ouve-se um barulho de helicóptero que logo aparece. Tal veículo, porém, não tem nenhuma ligação com as memórias do menino, trata-se do socorro para Susan que aguarda ajuda numa pequena cidade. Numa outra sequência, Amélia fica sozinha com as crianças no deserto, fronteira entre o México e os Estados Unidos, depois que, desesperado e com medo de ser preso, Santiago foge, com o intuito de despistar a polícia. Ele não retorna, e Amélia precisa procurar ajuda; então, pede às crianças que a esperem embaixo de uma árvore. Depois se depara com a polícia na estrada e, quando volta ao lugar onde havia deixado Mike e Debbie, não os encontra. Enquanto Amélia está sendo presa, ouve-se alguém gritando “Richard, Richard”. Não era a babá chamando pelo patrão, mas a voz de Susan em Marrocos procurando o marido enquanto delirava de febre. Os meninos marroquinos tentam dormir, mas, assustados, olham a janela do quarto que bate por causa do vento. Eles temem a chegada de alguém. Ouve-se um barulho de rádio. É uma música que toca no carro de Santiago quando chega ao México. Conforme postulam Deleuze e Guattari, “um rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de uma mesma natureza”(DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.32). Esses elementos usados por Iñárritu ligam as cenas criando apenas a ilusão de contiguidade. Na realidade, são signos hipertextuais que em vez de apontarem para uma sequência, conduzem a um outro núcleo que nunca se sabe qual é exatamente. Babel foge a qualquer tentativa de unidade num sentido tradicional, pois um rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças” (idem). Os autores, no entanto, não deixam o leitor-espectador órfão do sentido que ele tanto busca e, discretamente por meio dos hipertextos, ligam as várias histórias e até antecipam alguns acontecimentos. Um exemplo disso é o fato de, muito antes de o filme 43 mostrar a prisão de Youssef e de seu pai, Chieko assistir a um noticiário em que é dito que os suspeitos do atentado terrorista que vitimou uma mulher americana em Marrocos haviam sido presos. Há também uma foto que o pai dela tirou com o marroquino a quem presenteou com o rifle. Essa foto é outro elemento que serve de link para remeter o espectador à idéia de que uma história não é tão dissociada da outra. Ibhraim tem uma cópia dessa foto que também se encontra exposta na sala da casa de Wataya, pai de Chieko. Pode-se afirmar, de fato, que alguns hipertextos são pistas que o leitor vai juntando e utilizando para construir sua rede de significações. Mas são elementos discretos. A foto de Abdullah e Youssef no noticiário passa quase despercebida, já que a tendência, naquele momento, é a de o espectador se concentrar na história de Chieko. Porém, se acionado, esse hipertexto conduz a outra história, quebrando a linearidade da leitura, conduzindo o leitor a outro espaço-tempo. Conforme já foi afirmado, não há o clique do mouse, mas, na comodidade dos lares, o botão do controle remoto que permite pausar, recuar ou avançar a cena. A maioria dos filmes disponíveis em DVD possui um menu interativo por meio do qual são acessadas informações relativas à produção, à direção, aos atores; e há uma seleção de cenas que podem ser vistas numa ordem diferente daquela em que aparecem no filme. Uma cena mal compreendida (ou mesmo que tenha marcado de tal maneira que se tem a vontade de vê-la novamente) pode ser facilmente acessada com um apertar de botão. As cenas de Babel, por exemplo, podem ser vistas numa sequência sem a fragmentação narrativa do filme. Pode-se concluir com isso que o menu desfaz o rizoma de Babel. Em vários filmes, há menus com depoimentos dos atores falando de suas experiências ao viver os personagens, comentários dos diretores e roteiristas a respeito de como surgiu a ideia do filme e quais foram suas intenções. Mas, assim como no hipertexto informático, o leitor escolhe acessar ou não essas informações. O menu da cópia em DVD de Matrix traz uma opção chamada Siga o coelho branco. Nela, o espectador tem a oportunidade de assistir a uma versão do filme na qual aparece a imagem de um coelho branco em algumas cenas. Se neste momento for pressionado o enter do controle remoto, o espectador é conduzido ao making of da cena, tendo acesso à tecnologia utilizada nela, bem como aos comentários dos envolvidos no 44 filme. Logo após, automaticamente volta-se à narrativa. É o que ocorre, por exemplo, na cena em que Neo “acorda” e seu corpo real sai da cápsula onde dormia e entra num cano até chegar à nave de Morpheus. É o caminho que conduz à toca do coelho. Para Jean-Claude Carrière, o aparelho de controle remoto é “o mais recente instrumento individual de realização de filmes”(CARRIÈRE, 2006, p. 27). De fato, o controle possibilita uma edição particular daquilo a que se vai assistir, é o recurso que faltava para hipertextualizar a leitura de um filme. 3.3- O leitor Para analisar como o espectador se relaciona com essa nova forma de ver um filme, tomemos como exemplo um romance clássico como Iracema, de José de Alencar. Num primeiro momento, os personagens são apresentados: a índia Iracema, o português Martin. Ela abandona sua tribo para viver ao lado do estrangeiro, tem um filho e morre logo após o parto. Esse resumo é bastante superficial, porque o que interessa é saber que esses fatos são apresentados ao leitor na ordem em que acontecem. O mesmo não se poderia falar a respeito do romance Exortação aos crocodilos, do escritor português António Lobo Antunes. No livro, quatro mulheres falam de acontecimentos da história de Portugal recém-saído da ditadura salazarista, onde um grupo de extrema direita planeja atentados terroristas com o fim de restaurar o regime ditatorial. Os discursos de cada uma das narradoras se fundem numa tessitura palimpséstica, com escritas sobrepostas umas às outras, em que passado e presente participam de um jogo de vai e vem vertiginoso em que o leitor precisa todo momento estar atento, correndo o risco de muitas vezes não saber exatamente quem está falando ou em que ordem os fatos estão ocorrendo. Essa prática é também bastante comum no cinema. Além de Babel, é possível mencionar outros filmes como Amores Brutos (2000) e 21 gramas (2003), também de Iñárritu; e Vanilla Ski (2001), de Cameron Crowe. Novos procedimentos narrativos exigem também formas diferentes de leitura. O leitor contemporâneo, tão habituado à leitura hipertextual no ciberespaço, às vezes tem certa dificuldade em se relacionar com essa proposta no cinema. 45 É bastante comum ouvir-se de alguns espectadores o comentário: “não entendi esse filme”. É possível gostar do que não se entende? Regina Zilberman, escritora e professora da PUC/RS, citando o teórico da estética da recepção Hans Robert Jauss, afirma: O crítico alemão tem em mente recuperar a validade do prazer desencadeado pela recepção de obra de arte, pois é aquele efeito a condição de entendimento e compreensão dessa. Ambos os processos ocorrem simultaneamente e indicam como só se pode gostar do que se entende e compreender o que se aprecia (ZILBERMAM, 2001, P.91). Jauss valoriza a experiência estética do leitor de um determinado tempo histórico, o que faz com que o sentido de uma obra não esteja ligado apenas a seu autor ou ao momento em que foi produzida, mas ao momento em que é lida. Um leitorespectador dos anos 20 não deve ter tido dificuldades em entender Nosferatu, de Murnau. Ou o dos anos 70, Saló, de Pasolini, apesar do estranhamento que o tema desenvolvido por esses diretores possa ter causado. Estranhamentos à parte, o que está sendo contado fica entendido, já que os dois filmes seguem uma estrutura tradicional, uma ordem direta. O sentido da obra, conforme está sendo abordado, difere do objeto de crítica de Jauss nos anos 70, quando, juntamente com Wolfgang Iser, postula a teoria da estética da recepção. O problema da significação aqui não tem a ver com as intenções do autor ao utilizar este ou aquele significante para tratar desse ou daquele tema, mas está ligado a um procedimento narrativo, que, apesar de já existir contemporaneamente aos dois teóricos, ainda não era largamente empregado no cinema como é hoje. Em Babel, o grande desafio do leitor não está na interpretação da obra ou na atualização dos significados, mas em desatar os nós produzidos por uma narrativa com frases fílmicas cheias de anacolutos. O termo gramatical foi empregado, pois, conforme as teorias de Metz, é possível falar de uma gramática do cinema. O pesquisador parte de alguns pressupostos sausseurianos para falar inclusive de uma sintagmática do cinema. Metz afirma que: 46 ...a seqüência cinematográfica é uma unidade real, quer dizer uma espécie de sintagma solidário no interior do qual os planos interagem (semanticamente) uns sobre os outros. Este fenômeno evoca até certo ponto o modo pelo qual as palavras interagem umas sobre as outras no interior de uma frase ( METZ, 1972, p.137). Argumenta também que segundo alguns teóricos do cinema, o plano é uma palavra, a sequência uma frase. No entanto, Metz estabelece algumas diferenças entre o plano e a palavra, já que o plano é criado pelo diretor, e a palavra pré-existe no léxico de uma língua; além do fato de que o plano fornece ao receptor uma quantidade infinita de informações, o que o aproximaria muito mais de um enunciado. Em Babel, numa mesma sequência há uma quebra no enunciado, uma ruptura na frase fílmica, um desvio sintático que surpreende o leitor-espectador. 3.4- O título: hipertexto e intertexto Que ligação tem o título do filme com o nome da torre que, segundo as narrativas bíblicas, foi construída para unir a terra ao céu? A história é contada em Gênesis 11:1-9. Na terra existia apenas uma língua. Emigrando do Oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Sinar e nela se fixaram. Ali tiveram a ideia de construir uma cidade e uma torre cujo cimo atingisse o céu: E o SENHOR dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o SENHOR confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o SENHOR os dispersou por toda a Terra.21 Sob o ponto de vista histórico, Babel, capital do império babilônico, era uma cidade-estado extremamente rica e poderosa. Era um centro político, militar, cultural e econômico do mundo antigo. Tal quais cidades como Nova York e Paris nos dias atuais, ela recebia grande número de imigrantes de diversas nacionalidades, cada qual falando um idioma diferente. 21 (Bíblia Sagrada, Ed. Ave-Maria, 2005, p. 57.) 47 Babel é um filme falado em quatro línguas: inglês, mandarim, espanhol e árabe. Essas diferenças linguísticas dificultam a comunicação entre vários personagens. Depois que Susan é baleada, Richard convence o motorista do ônibus em que viajavam com um grupo de turistas a parar numa pequena cidade para achar um hospital. A dificuldade em se fazer entender atrasou bastante o socorro. Santiago também teve problemas com o idioma quando foi abordado pela polícia. Porém a língua não é a única “linguagem” que compromete a comunicação entre os personagens. As barreiras são também políticas e ideológicas. O incidente provocado pela brincadeira dos dois meninos é lido e transmitido ao mundo como um atentado terrorista. Quando o policial desconfia de Santiago e Amélia, fica evidente que é pelo fato de serem mexicanos em território americano. Se a versão bíblica para as diferenças linguísticas está correta, ou seja, se Deus deliberadamente misturou as línguas para confundir os homens, obteve sucesso. No contexto do filme, o mundo globalizado é uma imensa Babel, onde as pessoas não se entendem, só que por razões não apenas linguísticas. O título do filme é um intertexto, uma alusão metafórica à Babel bíblica. No início dos créditos, o título passa aos olhos do espectador traduzido em várias línguas, assim como o nome dos atores. A maioria dos filmes do circuito comercial é falada em um único idioma (geralmente o inglês), independente da nacionalidade ou etnia dos personagens. Não há uma língua dominante em Babel. Trata-se de um filme sem nacionalidade específica, de personagens nômades e desterritorializados. Entender o título também como um hipertexto significa, a partir dele, formular hipóteses de sentido para o enredo antes mesmo do início da trama, já que o significado da palavra “Babel” pertence a uma memória coletiva devido às referências bíblicas. No filme, ninguém se entende assim como na torre. As grandes navegações são apontadas como o início do processo de globalização vivido hoje. Durante séculos, os mares serviram de ponte para o contato entre povos de diversas culturas, do Oriente ao Ocidente. “Navegar é preciso; viver não é preciso” é uma frase “gloriosa”, proferida por “navegadores antigos”22, parafraseada pelo poeta português Fernando Pessoa, e que reflete o espírito de várias nações europeias nos 22 Trecho do poema “Navegar é preciso”, do poeta português Fernando Pessoa. 48 séculos XV e XVI. O comércio entre esses povos de diferentes nações possibilitou também o intercâmbio cultural. Se até o século XIX esses deslocamentos só poderiam ser feitos por via marítima, a partir do XX já se podia falar em avião. A viagem de um país a outro deixou de durar semanas ou meses e passou a ser feita em horas. No final do século XX e no início do XXI, não se precisa de caravelas nem de aviões. Em casa, na empresa ou numa lan house, pode-se fazer comércio com quem está no Japão; ou visitar o Louvre, na França; ler um poema recém publicado na Inglaterra ou assistir a um filme que nem mesmo chegou ao cinema. Pierre Lévy observa que: Cada forma de vida inventa o seu mundo (...) e, com esse mundo, um espaço e um tempo específicos. O universo cultural, próprio aos humanos, estende ainda mais essa variabilidade dos espaços e das temporalidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunicação e de transporte modifica o sistema das proximidades práticas, isto é, o espaço pertinente para as comunidades humanas (LÉVY, 1996, p. 22). As novas formas de contar histórias sofrem uma influência direta das novas formas de deslocamentos espaciais e temporais. O que se vê em Babel são personagens que estão fora de seus países a trabalho ou fazendo turismo, mas mesmo assim conectados às terras de origem pela memória, telefone ou televisão. Lévy argumenta que: ...a multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidades ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese (LÉVY, 1996, p.23). Essa bifurcação e metamorfose de que fala o filósofo estão presentes na construção da história contada por Alejandro Iñárritu. Os planos, as sequências e o próprio texto são áreas cheias de bifurcações conduzindo o leitor aos quatro países em que se desenvolvem as tramas. Babel é como se fosse uma das caravelas de Cabral ou 49 Vasco da Gama, o avião de Santos do Dumont ou um computador com internet banda larga. O filme é um meio de viagem por quatro culturas, línguas, territórios e conflitos. Ao leitor-espectador, sem capitão ou salva-vidas, cabe salvar-se do naufrágio agarrando-se às possibilidades oferecidas pelos hipertextos contidos no filme e no menu. Para Lévy, “Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário”(LÉVY, 1996, p. 40). Essa definição se aplica à leitura no ciberespaço, onde vários links podem ser acessados de acordo com a vontade ou a necessidade de quem está diante da tela. Por isso, Lévy argumenta que o “virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a significar”(LÉVY, 1996, p.40). Para ele as significações de um texto se encontram virtualizadas, podendo ser atualizadas no momento da leitura. No mundo digital, o hipertexto aparece, de fato, como potência, podendo ou não ser acionado. Em Matrix, os nomes dos personagens são compostos por ou são signos que se – de acordo com a definição de Peirce – de fato significarem alguma coisa para o espectador, podem atuar como hipertextos. Os significados desses signos encontram-se, como diria Lévy, na instância do virtual. Por exemplo: a palavra “Oráculo”, quando é mencionada no filme, existe enquanto signo pronunciado sem que suas possibilidades de sentido estejam evidentes. Uma vez acionadas pelo leitor, essas possibilidades propiciam inclusive uma antecipação acerca das funções desempenhadas pelo personagem na trama. Lê-se (ou ouve-se) “Oráculo”, pensa-se num personagem que adivinha o futuro. Um dos hipertextos mais importantes para compreensão do argumento do filme – pessoas que vivem num mundo simulado por computador – é o fato de Neo guardar seus disquetes dentro de um exemplar de Simulacro e simulações de Jean Baudrillard. Neste livro, o filósofo afirma que nas sociedades contemporâneas há “uma substituição no real pelos signos do real”. Uma das principais discussões trazidas pelo filme é o conceito de realidade e até que ponto o ser humano tem domínio sobre ela, o que é a verdade concreta e o que seria apenas produto da mente humana. 50 No mundo simulado pela matrix, há apenas signos que substituem o homem e tudo à sua volta. Quando Neo se vê dentro dele acompanhado por Morpheus – que lhe diz: “bem vindo ao deserto do seu próprio real”23 –, ele estranha não estar careca, nem com as marcas dos cabos que prendem os corpos dos humanos às máquinas. Seu mentor então lhe explica que tudo aquilo não é real, mas a mente faz parecer. O filme pode ser entendido como uma metáfora para o homem contemporâneo, envolvido cada vez mais pelos simulacros que substituem os objetos reais, principalmente na internet. Chamar a atenção para isso em nenhum momento significa defender a ideia de que os espectadores de cinema sejam também leitores de filosofia. Mas é pertinente considerar como o pop deglute todos os elementos da cultura e os reorganiza num objeto estético desconstruindo as hierarquias que o social confere24. Lúcia Santaella, no livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, pondera que: Não obstante o poder de que se revestem, contra todos os prognósticos, os meios de massa não levaram as formas mais tradicionais de cultura, a cultura superior, erudita, e as culturas populares ao desaparecimento. Provocaram, isto sim, recomposições nos papéis, cenários sociais e até mesmo no modo de produção dessas formas de cultura, assim como borraram suas fronteiras, mas não apagaram sua existência (SANTAELLA, 2003, p. 56). A intertextualidade, no filme aqui comentado, é a responsável por essas “fronteiras borradas”. O clássico da filosofia contemporânea é lançado aos olhos do espectador, e sua capa é um hipertexto que traduz a origem dos conflitos vividos pelos personagens. Em Matrix, inter e hipertexto são os principais procedimentos de criação. O primeiro depende do acionamento do segundo para que haja a intersecção entre os horizontes de expectativa do autor e do leitor, para que se estabeleça uma compreensão coerente do filme. O espectador necessita, portanto, fazer uso dos links de que dispõe: o hipertexto mnemônico. O que faz, no entanto, o leitor que não dispõe desse link? Que recursos ele utilizará para desenvolver uma interpretação coerente? É possível falar em interpretação 23 “É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real” (BAUDRILLARD, 1981, p.8). 24 Assim como os romances de Dostoievski, segundo os estudos de Bakhtin. 51 incoerente quando se fala de cinema? Christian Metz argumenta que “um filme é sempre mais ou menos entendido global ou superficialmente” (METZ, 1972, p.90), mas que há muitos filmes ininteligíveis por sua “diegese recorrer a realidades ou noções por demais sutis ou exóticas, ou que erroneamente se supõem conhecidas” (METZ, 1972, p.91). Quando se vale do intertexto, o autor supõe que o receptor terá condições de resgatar o sentido original do elemento citado ou aludido para que, inserindo-o no novo contexto, faça as associações necessárias a uma interpretação coerente, já que, como afirma Koch, o diálogo intertextual parte de textos que fazem parte da memória discursiva dos interlocutores. Durante a leitura de um livro ou filme, a interlocução se dá entre autores e leitores, só que muitas vezes este último pode não entender a linguagem do primeiro. 52 4- O LEITOR-ESPECTADOR: CO-AUTOR Neste capítulo, será abordada a relação do leitor-espectador como co-autor da obra que lê. Para tal, buscar-se-á um aporte teórico na Estética da Recepção, principalmente nas teorias de Hans Robert Jauss e Wolfgan Iser, além das considerações de outros autores, como Roland Barthes, sobre o papel do leitor e sua contribuição na atribuição de novos sentidos às obras durante a leitura. Essa abordagem será amparada pela experiência vivenciada, durante a exibição de Matrix, Dom e Shrek, a jovens de escolas da rede pública e privada da cidade de Campos dos Goytacazes, que responderam a questionários abertos, metodologia entendida como a ideal para essa pesquisa. As respostas dadas serão utilizadas como exemplificação para os pontos de vista aqui defendidos sobre a recepção do cinema intertextual. Inicialmente, é preciso pensar o sentido da palavra leitor e tentar esboçar uma resposta para a pergunta do escritor argentino Ricardo Piglia, no livro O último leitor: “O que é um leitor?”. Piglia responde de diversas maneiras tal interrogação, e uma das respostas é a de que “Um leitor é também aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente”(PIGLIA, 2006, p. 19). O estudante Victor Nunes25, que ao assistir a Dom, interpretou a expressão “olhos de ressaca” como os olhos de alguém que ingeriu bebida alcoólica, se encaixa nesse perfil apresentado por Piglia, o que não o exclui da categoria de leitores. Quando se refere à leitura de Finnegans Wake, de James Joyce, o autor afirma que essa é uma leitura submetida a uma prova extrema, devido à quantidade de palavras transmutadas, amontoadas em linhas nebulosas, das quais só se é possível ler pedaços soltos, restos e fragmentos; e que, neste caso, a unidade de sentido é ilusória. Ainda parafraseando o conterrâneo de Borges, o leitor moderno, assim como o Dom Quixote de Cervantes, vive num mundo rodeado de signos, no qual muitas vezes se vê perdido. Ler mal, fazer associações incoerentes, escolher o que ler de acordo com suas necessidade é de fato um direito de todo leitor, já que “a ficção não depende apenas de 25 Aluno do Colégio Alpha Vestibulares, assistiu ao filme e respondeu ao questionário no dia 16/09/2009 antes de ler o romance. 53 quem constrói, mas também de quem lê”(PIGLIA, 2006, p. 28). Todas essas considerações são tecidas a respeito da leitura do texto literário, e o objeto deste trabalho é o texto fílmico. Também os postulados dos teóricos da recepção são bastante voltados para aquele tipo de texto. Por isso é preciso deslocar o foco dessas teorias e reforçar a ideia do espectador como leitor; e do cinema, como texto. Neste caso, a pergunta deveria ser: o que é um leitor-espectador? Alguns filmes de construção metalinguística apresentam personagens cujas vidas foram fortemente marcadas pelo cinema. O Totó – de Cinema Paradiso, produção franco-italiana de 1989 – e Cecília, de A rosa púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen, são dois bons exemplos. Totó passa toda a sua infância assistindo a filmes no Paradiso, que além de cinema é a única atração de uma cidade do interior da Itália. Diante da tela, o personagem reorganiza seu mundo em desordem depois da perda do pai na Segunda Guerra Mundial. Para ele, o cinema extrapola o limite do entretenimento e vira uma opção de vida, a ponto de ele escolher a profissão de cineasta, passando de espectador a autor. Assim como há o “leitor viciado, o que não consegue deixar de ler, e o leitor insone, o que está sempre desperto”(PIGLIA, 2006, p.21), pode-se falar também no espectador que não consegue deixar de “ver”. E Totó é um deles. Para ele, ver um filme não é apenas uma prática, “mas uma forma de vida”(idem). Totó ou Salvatore, depois de uma desilusão amorosa, vai embora para Roma onde se torna diretor famoso. Só retorna a sua cidade vinte anos depois para o velório de Alfredo, o projecionista do Paradiso, que despertou nele a paixão pela sétima arte. Todos na cidade aprenderam a amar o cinema, de Truffaut a Fellini; dos musicais aos filmes de guerra. Mas os personagens de Tornatore são meros espectadores diante de uma arte que, na primeira metade do século XX, ainda dava seus primeiros passos enquanto linguagem. A leitura do filme para os frequentadores do Paradiso se limitava aos níveis do que Maria Helena Martins, em O que é leitura, chama de sensorial e emocional, excluindo o racional. Cinema para eles é apenas diversão e emoção. A personagem do filme de Woody Allen é a espectadora ingênua. Em sua mente, ficção e realidade se misturam. Ela vê no cinema um local de fuga para as agruras de seu cotidiano em companhia de um marido alcoólatra e viciado em jogo. Sua leitura também não vai além da emocional. 54 É importante pensar a pertinência dos termos leitor, espectador e leitorespectador; pois estabelecer uma diferença entre esses três substantivos pode ferir o próprio conceito de leitura. Ler não é apenas a decifração de códigos verbais. Leem-se também quadros, esculturas, música, filmes, tudo que for constituído por signos é passível de leitura. Será, portanto, abandonado, a partir desse momento, o termo “leitorespectador”, para ser utilizada apenas a palavra “leitor” ao fazer referência àquele que lê o filme conciliando o sensorial, o emocional e o racional. Essas três categorias se associam à divisão que Charles Sanders Peirce faz do signo: primeiridade, secundidade e terceiridade, sendo esta última a que se encontra no âmbito da razão, apesar de os processos de leitura geralmente passarem pelos três níveis. O indivíduo que se comporta meramente como espectador é aquele cuja leitura se limita a uma tradução icônica dos signos a que se expõe durante uma projeção. Tratase apenas de decodificação. O filósofo Roland Barthes, em seu conhecido ensaio “A morte do autor”, escreve: ...um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura (BARTHES, 2004, p. 64). Uma ressalva às palavras do ensaísta francês: os lugares em que as “as escrituras múltiplas” se fundem são autor e – para fazer jus à terminologia escolhida – o leitor. O autor não pode ser pensado como o único senhor dos sentidos de um texto, porém também não deve ser esquecido como o agenciador de signos por meio dos quais o texto é veiculado. Afirmar que o leitor é o lugar onde o texto de fato se inscreve não deve significar o esquecimento da figura do autor, sem o qual não existe obra de arte. Jauss diz que toda arte é uma atividade produtora, receptiva e comunicativa, e que perguntas sobre a experiência estética precisam ser colocadas, pois esta não está ainda esclarecida. As perguntas norteadoras desta dissertação abordam as maneiras como se dá a construção do sentido pelo leitor contemporâneo durante fruição de uma narrativa fílmica intertextual. Não há, no entanto, a pretensão de esclarecer o que, 55 segundo Jauss, ainda carece de aprofundamentos; mas há o intuito de propor alguns caminhos que reduzam o fosso que tem separado grande parte do público de uma leitura mais ampla e crítica do que se vê na grande tela ou na tv. Um texto percorre a história humana adquirindo significados variados, adaptando-se a épocas e culturas diversas. É o que torna possível que clássicos da cultura ocidental como Macbeth, de Shakespeare, possam ecoar em terrenos orientais. A peça do dramaturgo inglês foi transposta para o cinema pelo cineasta japonês Akira Kurosawa sob o título de Trono manchado de sangue (1957). Assim como Romeu e Julieta saiu da Verona do século XV para a América de novaiorquinos e mexicanos em West side history (1961). Nos dois casos, o espectador assiste a uma narrativa em que o dialogismo não possui o caráter de cinema intertextual. Trata-se apenas de adaptações nas quais os elementos necessários à interpretação dos signos são intrínsecos à narrativa. Ao analisar as argumentações dos teóricos da Escola de Konstanz, é possível perceber que, quando Jauss afirma que uma das funções da hermenêutica literária é “reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos”(JAUSS, 1979 p. 70), e que as interpretações de fato serão variadas de acordo com o momento em que são recebidas, o teórico refere-se a textos como os mencionados acima. Sem dúvida alguma, um espectador japonês do século XX não lerá Trono manchado de sangue como o inglês do século XV leu Macbeth. O que vemos hoje é uma realidade criadora que desafia os estudos acerca da recepção do texto fílmico: a intertextualidade tornou-se um dos principais procedimentos de composição, e há pouca pesquisa sobre as formas de recepção desse tipo de texto, apesar de o mesmo processo ser facilmente observado em outros setores da produção cultural como na música e na propaganda. O leitor é entendido como co-autor, pois é nele que se realiza o sentido. No entanto há alguns pré-requisitos para que esse processo se consuma. Ninguém consegue realizar a leitura de um texto verbal antes da alfabetização primária, sem a qual não seria possível qualquer decifração do código linguístico. Essa alfabetização se dá de forma extremamente monológica. Na maioria das escolas, ensina-se apenas a leitura do texto verbal estruturado linearmente. A imagem é trabalhada apenas como ilustração 56 para as aulas de literatura e história, sem ser abordada como linguagem. Seria necessário pensar numa alfabetização dialógica e intertextual. Dialógica, pensando nas relações entre os diferentes tipos de textos verbais e não-verbais; intertextual, a partir do momento em que um texto, feito de signos oriundos de outras obras, requer uma leitura também intertextual. É pertinente falar neste momento sobre o pacto de leitura. Mais especificamente um pacto intertextual. O termo pacto está sendo utilizado partindo de uma conceituação de Philippe Lejeune, quando fala do pacto autobiográfico. Para ele, um texto só será considerado autobiografia se houver a assinatura de um contrato de leitura que pressupõe na obra a coincidência de identidade entre nome do autor, narrador e personagem; já que poucas são as diferenças internas entre a escrita autobiográfica e o romance. No que tange ao cinema intertextual, faz-se também necessária a assinatura de um tipo de pacto para que a produção não seja lida de forma monológica, o que por vezes acarreta algum tipo de entropia que prejudica a produção de sentido e, em alguns casos, até mesmo a fruição estética. Muitos dos jovens entrevistados para este trabalho comportaram-se diante dos filmes como bons espectadores atrás de entretenimento. Ora, essa é também uma das funções da arte, principalmente a cinematográfica. E um filme pode, de fato, exercer apenas tal função. No entanto, mesmo as possibilidades de entretenimento podem ser bastante ampliadas quando as condições para a sua compreensão são mais amplas. O cinema, como todas as formas de expressão artística, também pode ser um instrumento de conhecimento e transformação. Conformar-se com o fato de que a maioria do público deve contentar-se com uma leitura meramente superficial do que assiste significa ratificar um pensamento elitista que reserva apenas a uma minoria letrada o olhar crítico sobre as produções artísticas. O leitor ao qual é conferida a autoridade de co-autor está alfabetizado para as leituras monológicas propostas nos bancos escolares, mas ainda carece de uma educação para que possa assinar conscientemente o pacto intertextual proposto por muitos autores. 57 Não raro, alguns espectadores apresentam uma reação negativa a Matrix por se tratar de um filme cuja compreensão depende de uma rede de associações semióticas que nem todos estão habituados a fazer. Numa das sessões realizadas no IFF/CAMPOS, com uma turma de primeiro ano do ensino médio, a aluna Karina Gonçalves deu o seguinte depoimento quando interrogada se havia gostado do filme: “Não muito, muitas coisas juntas, que acabam dificultando a compreensão”. Em contrapartida, a estudante Luiza S. Oliveira, da mesma turma; afirmou que “Sim, os efeitos e as mensagens subliminares tornaram o filme muito interessante.” O cinema é das artes a que mais está associada à ideia de entretenimento, não é uma linguagem que – como a música, a dança, o teatro e a pintura – já foi vinculada a cultos religiosos ou utilizada com fins didáticos. O espaço onde hoje está inserida a maioria das salas de cinema, ou seja, os shoppings e centros de compra, é visto como local de consumo e diversão. Na própria casa, dificilmente se desassocia um filme da ideia de lazer. Ora, lazer implica prazer. Seguindo os passos de Jauss, é procedente, antes de qualquer coisa, estudar como se dá experiência estética que, como já foi visto anteriormente, foi durante muito tempo negligenciada pela crítica literária e de outras linguagens artísticas. O que é necessário para que uma obra de arte proporcione prazer ao leitor? Isso não depende necessariamente da obra, mas do próprio leitor. A arte, porém, tornou-se objeto de consumo como os demais produtos postos no mercado, consumo rápido e descartável. O cinema atual tem investido numa linguagem que satisfaça apenas o prazer dos sentidos. Efeitos visuais e sonoros impressionam o público, conduzindo-o a uma fruição totalmente desprovida de julgamento racional, incapaz de avaliar o conteúdo ideológico, político ou estético. O cinema americano é hegemônico enquanto linguagem, ele dita os modelos a serem seguidos: explosões, correrias, comédias centradas em estereótipos do adolescente dos EUA, terror ou sexo, não importando a história a ser contada, ela é apenas um apêndice do deleite visual proporcionado pelas imagens. O filme que exija maior atenção ao roteiro – e aí podemos citar os do diretor sueco Ingmar Bergman, por exemplo – são considerados “chatos”. Também os que necessitam de um maior esforço 58 mental para compreender até mesmo o jogo de imagens, como os filmes do cineasta multimeios26 Peter Greenway, recebem a mesma classificação. Para Jauss, a experiência estética deve envolver três categorias básicas: poiesis, aisthesis e katharsis. A primeira refere-se à criação; a segunda à recepção, e a terceira, à comunicação, que envolve os efeitos da recepção. Poiesis “corresponde à caracterização de Hegel sobre a arte, segundo o qual o indivíduo, pela criação artística, pode satisfazer a sua necessidade geral de sentir-se em casa, no mundo” ao retirar dele sua “dura estranheza e convertê-la em sua própria obra”(JAUSS, 1979, p.100). A obra intertextual só pode ser criada por um artista leitor. A criação é resultado de uma série de textos lidos ao longo da vida e que exerceu influência decisiva no processo de criação. Nos três filmes que integram o corpus básico deste trabalho, percebe-se que seus criadores se valeram da palavra do outro, a fim de transpor para a tela suas reflexões sobre o amor, a realidade e o preconceito. Para esses artistas, o intertexto não é apenas um recurso estilístico, mas o principal procedimento de composição. O prazer advém do fato de adotarem, como seu, o discurso proferido por poetas, dramaturgos, romancistas e filósofos. Aisthesis compreende a “recepção prazerosa do objeto estético como uma visão intensificada” sem conceituações, como uma visão desinteressada do objeto, legitimando-se “o conhecimento sensível, em face da primazia do conhecimento conceitual”(JAUSS, 1979, p. 101). Aisthesis é o que define a experiência de grande parte do público contemporâneo de cinema. O prazer pelo prazer, a fruição unicamente pelos sentidos. Peter Greenaway, numa entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 22/10/198827, disse que: ...as pessoas têm a impressão de que não devem fazer nenhum esforço quando vão ao cinema. É sentar-se, olhar e é tudo. É preciso esquecer a realidade, mudar as idéias (...) eu amaria um cinema onde fosse normal ver filmes mais de uma vez. Eu amo o cinema que, ao invés de fingir que dá respostas, faz perguntas. A experiência estética do receptor inicia-se pela aisthesis, mas não precisa necessariamente se limitar a ela. A afirmação do cineasta inglês, autor de O cozinheiro, 26 “Entende-se por multimeio a reunião de diversas áreas de um mesmo contexto, que estrutura um corpus sob a forma de mosaico”(GARCIA, 2000, p.19). 27 Esta fala do cineasta está reproduzida no livro Introdução ao cinema intertextual de Peter Greenaway, do pesquisador Wilton Garcia. 59 o ladrão, sua mulher e o amante, reflete o prazer que o artista poderia ter quando percebesse seu horizonte de criação fundindo-se ao da recepção. Matrix é um filme que precisa ser visto mais de uma vez para ser fruído em sua plenitude. Trata-se de uma obra capaz de agradar tanto aos paladares mais exigentes quanto à composição do roteiro, quanto aos que se deslumbram apenas com seus efeitos. Estes, no entanto, podem não tentar uma segunda exposição à trama dos irmãos Wachowski, por não estarem dispostos ou mesmo por não disporem de condições para decifrar os códigos que estão além das imagens. Experiência que vale a pena citar é a do crítico e jornalista canadense David Gilmour, registrada no livro Clube do Filme (2009). Ele narra sua história com o filho adolescente, o qual retira da escola devido a uma sucessão de fracassos, e a quem propõe que assistam semanalmente a uma série de filmes escolhidos por ele, desde clássicos como A doce vida (1960), de Fellini, a Instinto Selvagem (1992), de Paul Verhoeven. O projeto é iniciado com Os incompreendidos (1959), de François Truffaut. Relata Gilmour: “Pensei que seria uma boa maneira apresentar os filmes de arte europeus, embora soubesse que ele provavelmente os acharia tediosos até que aprendesse como assistir a eles. É como aprender as variações da gramática” (GILMOUR, 2009 p. 17). Aprender a ler filmes se assemelha ao aprendizado da leitura de livros. Um leitor exposto apenas ao modelo de José de Alencar, por exemplo – história narrada com começo, meio e fim devidamente delineados, personagens planos e narradores com discursos monológicos – terão certo estranhamento diante das inúmeras possibilidades de leitura e de significações trazidas por Machado de Assis, assim como a leitura deste também pode ser uma tarefa nada fácil para um recém-alfabetizado, que ainda não domina as estruturas sintáticas, gramaticais e semânticas da língua. Katharsis é a experiência que, segundo Jauss, funciona como“mediadora, inauguradora e legitimadora das normas de ação” conduzindo o “ouvinte e o espectador” à transformação de suas convicções e à libertação de sua psique. “Liberta o espectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano” levando-o por meio do “prazer de si no prazer no outro para a liberdade estética de sua capacidade de julgar”(JAUSS, 1979, p. 102). A partir da katharsis pensa-se nos efeitos da aisthesis, ou melhor dizendo, nos efeitos da recepção da obra de arte. Pensando sob o mesmo prisma de Aristóteles, ao falar dos efeitos da tragédia no espectador, katharsis, ou 60 simplesmente catarse, é a purgação das emoções por meio da arte. Para o filósofo grego, o medo e o terror advindos da exposição ao evento trágico transformariam de alguma forma o comportamento do indivíduo. É, pois, mediante a katharsis que a arte passa a cumprir sua função social. Ver o leitor como co-autor de uma obra significa, portanto, enxergá-lo como o ser no qual se conjugam as três etapas da experiência estética. O leitor co-autor não é aquele que se entrega apenas aos prazeres da fruição meramente sensorial. Citando um aforismo de Goethe, Jauss sentencia: “Há três classes de leitores: o primeiro, o que goza sem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, o intermédio, que julga gozando e goza julgando é o que propriamente recria a obra de arte”(JAUSS, 1979, p. 103). Quando se fala em intertextualidade, fala-se na leitura de diversas obras fragmentadas e costuradas no mosaico de citações mencionado Julia Kristeva. Não se trata de como uma obra escrita há séculos será lida, mas de como ecos de muitas obras estão sendo relidas por novos autores e co-autores numa única estrutura narrativa. Conceber o leitor como co-autor se dá pelo fato de ser no ato da leitura que se consuma o sentido do texto. E não há sentido que preceda o momento da recepção. Stanley Fish entende o sentido como “aquilo que o leitor elabora quando está lendo”, e que o “texto confunde-se à experiência que proporciona e à que o leitor carrega consigo”(ZILBERMAN, 2001, p. 96). 4.1- O leitor e o signo: intertexto na cultura contemporânea Assim como as formas de produzir arte variam de acordo com períodos históricos, consequentemente as formas de recepção e leitura também. O intertexto como método de criação foi mencionado em muitos momentos desta dissertação. Desta vez será feita uma abordagem específica sobre tal procedimento em vários segmentos da cultura contemporânea, já que, além do cinema, ele tem aparecido com frequência em outros setores. Um exemplo é a música “Porto Alegre” (nos braços de Calipso), do disco Maré (2008), da cantora Adriana Calcanhoto. Na faixa, o eu-poético fala como um Ulisses deslocado das páginas da Odisséia – poema épico atribuído ao grego Homero, escrito aproximadamente no século VIII a.C – e aportado no século XXI, época em que o signo “Calipso” já não é mais tão associado à ninfa que aprisionou e tentou seduzir o herói na 61 ilha de Ogígia, quando retornava a Ítaca, sua terra natal, depois do fim da Guerra de Tróia: Amarrado num mastro/Tapando as orelhas/Eu resisti/ Ao encanto das sereias/Eu não ouvi o canto das sereias/Eu resisti/Mas chegando à praia /Não fiz nada disso/Então caí/Nos braços de Calipso/Não resisti /Depois disso eu não tive/Nenhum outro vício/Senão dançar ao ritmo de Calipso. Retomando a conceituação de Saussure, um signo é constituído de duas partes: significante e significado, sendo este último o conceito que se tem daquele. Ou seja: a sequência de grafemas e fonemas /C/A/L/I/P/S/O é um significante, cuja imagem está associada – na letra da música – à ninfa grega. No entanto, um significante pode adquirir vários significados com o uso que for feito dele. O mesmo signo linguístico representa uma das luas de Saturno, o nome de um grupo musical brasileiro, um gênero de orquídeas, um personagem do filme Piratas do Caribe (2003), o nome do primeiro navio do pesquisador francês Jacques Cousteau. É na letra da música, porém, que o intertexto se instaura como método de composição. Nela, “Calipso” não é apenas um signo que nomeia um navio ou uma pessoa, mas um elemento cuja significação é responsável também pela leitura coerente do texto. Ainda na trilha dos exemplos, citemos o signo não verbal, principalmente no cinema, linguagem que prima pelo discurso imagético. Desde Um trem chegando à estação (1895), primeiro filme a ser exibido publicamente, a sétima arte vem construindo uma gramática e uma cultura próprias, mas que apresentam muitas semelhanças com a linguagem verbal. Assim como frases, palavras e personagens oriundos de clássicos da literatura são intertextualizados, o mesmo tem ocorrido no cinema. Em Shrek 2, o Gato de Botas encerra uma coreografia tal qual a da personagem Alexandra Owens no filme Flashdance (1983): numa cadeira, puxando uma corda fazendo com que caia água em seu corpo. A mesma cena aparece em Elvira, a rainha das trevas (1988), comédia de terror que fez sucesso nas tvs americana e brasileira. Nos três filmes, alguns signos se 62 repetem: a cadeira, a corda e a água. Eles compõem um plano28 assim como uma sequência de palavras organizadas sintática e semanticamente podem compor um enunciado. Pode-se dizer que os significantes utilizados no referido plano são os mesmos; e as alterações, no significado, resultantes das intenções parodísticas de seus autores como recurso humorístico. Esse jogo de citações de textos alheios aparece também na propaganda. A empresa Hortifruti espalhou em várias cidades outdoors nos quais títulos de filmes foram parodiados para vender frutas, legumes e verduras. E o vento levou (1939) transformou-se em E coentro levou. No cartaz, o estilo da letra, as cores e o cenário são reproduções fiéis ao cartaz do clássico americano estrelado por Vivian Leigh e Clark Gable. Para explicar tamanha incidência de intertextos, é possível pensar em uma crise criativa, ou se pode pensar numa forma de composição bastante recorrente na era moderna ou pós-moderna. Tais questionamentos foram os motivadores das reflexões a seguir. Esgotá-los com exatidão é uma pretensão que esta argumentação está longe de ter. Além disso, são perguntas cujas respostas estarão sempre carentes de exatidão, já que a cultura não pertence às ciências exatas. Ainda assim, é necessário pensar essas questões num momento em que o conhecimento do passado cultural e artístico tem sido visto como algo irrelevante, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, tem nutrido a produção contemporânea. Iuri Lotman, em seu livro La semiosfera, fala de algumas coincidências de “nombres, motivos, sujets e imágenes em las obras de literaturas, mitologias y tradiciones de poesia popular distantes cultural e historicamente”( LOTMAN,1996, p.61). Não é novidade a frequência dessas coincidências em outros momentos da história. É pertinente que se retomem os exemplos dos romances realistas Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert; Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis e O primo Basílio (1878), de Eça de Queirós. Publicados em países distintos – França, Brasil e Portugal respectivamente – esses romances guardam entre si uma intertextualidade temática: o adultério feminino e seus efeitos na vida dos protagonistas. Os três são repletos das “coincidências” referidas por Lotman. Além do adultério (não 28 Na linguagem cinematográfica, o plano é um trecho de filme rodado sem interrupção. Segundo Christian Metz , um plano corresponde a uma frase. 63 comprovado no livro de Machado), a morte das personagens femininas no final é outro ponto comum. Já que das três, a história de Bentinho e Capitu foi publicada por último, teria Machado de Assis sido influenciado pelas narrativas de seus contemporâneos europeus? Provavelmente, apesar de, no século XIX, os livros não circularem de um país para outro com a rapidez de hoje29. Mas também seria ingênuo pensar o adultério como uma temática exclusiva dos realistas. Shakespeare – com a peça Otelo –, mais ou menos três séculos antes da tríade de autores, já havia concedido à humanidade uma história em que o ciúme e o adultério (neste caso Desdêmona era inocente, pois tudo não passara de intriga do vilão Iago) arrastaram os protagonistas a um final trágico. As “coincidências” de que fala Lotman dizem respeito a elementos que fazem parte da memória cultural da humanidade com seus textos, signos, personagens, etc; compondo um espaço semiótico que o autor chama de semiosfera, onde textos de culturas e épocas diferentes se encontram gerando novos textos. Também não há as hierarquias tão comuns à vida social. Na semiosfera “se viola la jerarquía de los lenguajes y de los textos: éstos chocam como lenguajes y textos que se hallam en un mismo nivel”(LOTMAN, 1996, p.30). É possível associar essa teoria ao dialogismo bakhtiniano. Em sua perspectiva teórica, Bakhtin pensa a produção artística em constante diálogo não apenas entre textos, mas também entre mente e mundo. Assim como o proposto pelo filósofo russo acerca da obra de Fiódor Dostoievski, na semiosfera, haveria também a comunhão de diferentes discursos, mas todos plenivalentes. Nesse espaço, as fronteiras entre o erudito e o popular, o sagrado e o profano, e outras estéticas vistas durante muito tempo como incompatíveis, são borradas30, reduzidas, em alguns casos até mesmo eliminadas. O capítulo CXXXV, de Dom Casmurro traz o título da peça do dramaturgo inglês da Renascença. A alusão ao personagem shakespeareano se deu pelo fato de Bentinho ir ao teatro e se deparar “justamente” com a encenação da referida peça. 29 De fato, como atestam as ressalvas aos pormenores excessivos do naturalismo de Eça de Queirós, bem como ao achatamento da complexidade psicológica da composição de suas personagens, na famosa análise crítica publicada em 1878, Machado de Assis foi arguto “pensador e interlocutor” de seu tempo. 30 Lúcia Santaella utiliza o termo “borraram” quando fala de como os meios de comunicação de massas e as mídias digitais contribuíram para a redução das hierarquias entre “as formas tradicionais de cultura, a cultura superior, erudita, e as culturas populares”(SANTAELLA, 2003, p.56). 64 Assim como Otelo, ele também desejava a morte da esposa: “O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer”(ASSIS, 1971, p. 178). E a esposa morre na Suíça. Machado de Assis transpõe para o universo ficcional sua experiência de leitor. Para Lotman “La no homogeneidad estructural del espacio semiótico forma reservas de processos dinâmicos y es uno de los mecanismos de produção de nueva información dentro da esfera” (LOTMAN, 1996, p.30). Dom Casmurro, como a maioria dos romances de Machado, é repleto de intertextos que vão de alusões a clássicos da literatura – como a peça já mencionada – a citações e paródias de textos bíblicos. A dinâmica da criação intertextual requer também a produção de nova informação, caso contrário haveria apenas a repetição do discurso do outro. O dialogismo deve resultar em uma criação nova para que a cultura siga seu curso de renovação constante. Dom pode ser entendido como uma criação nova a partir de um acervo de signos criados pelo Bruxo do Cosme Velho31. Nesse caso, não se trata apenas de uma intertextualidade temática, mas de um tecido elaborado com linhas descosturadas de um outro. A semiosfera nutre de signos a obra intertextual que, como toda forma de arte, tende a algum tipo de comunicação. Analisando os elementos presentes na cadeia comunicativa, toma-se o autor como a fonte; a obra, a mensagem e, logicamente, o espectador como o receptor, que, de acordo com os postulados da estética da recepção, atuaria não apenas como um sujeito passivo diante da obra, mas também como parte do processo de criação. Sob este aspecto não seria forçoso unir as teorias de Bakhtin e Lotman às de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, pois convocam o leitor a tomar parte no processo de elaboração da obra de arte. Mas, assim como os autores, também o leitor precisa nutrir-se dos signos que compõem a semiosfera para que o diálogo também se estabeleça em sua mente. Segundo Lotman, para que a geração de uma nova mensagem seja possível, é necessário que os diferentes códigos sejam, de certa forma “uma única persona semiótica”(LOTMAN, 1996, p.69). Criar um diálogo entre esse pensamento e o proposto pelos teóricos da escola de Konstanz pode significar a procura de um caminho que reduza a distância entre emissores e receptores de mensagens intertextuais. 31 Epíteto conferido ao escritor Machado de Assis e consagrado depois da publicação do poema Ao bruxo com amor de Carlos Drummond de Andrade. 65 Falar do receptor implica levantar o problema do repertório – acervo de informações necessário à leitura e compreensão coerente dos textos. Em filmes como Matrix e Shrek, o repertório deve ser também de signos com significações préexistentes. Não se trata apenas de palavras e suas polissemias, mas de significantes com significações prévias que, mesmo no caso de recriação – seja no momento da produção seja no da leitura – necessitarão do repertório, para que a entropia não seja tamanha a ponto de comprometer a comunicação. O repertório origina-se da formação individual e depende da família, da sociedade e principalmente da escola, que não tem cumprido de forma satisfatória seu papel. Biblioteca ainda é uma realidade distante de muitas instituições de ensino, principalmente da rede pública. As que possuem uma geralmente não desenvolvem projetos que estimulem a leitura; além do fato de até mesmo os professores lerem pouco. Na realidade, a televisão e a internet assumiram o papel de formadoras de repertórios. No entanto a maioria das emissoras de tv se ocupa de programas que garantam a audiência apenas, ficando as redes estatais encarregadas dos programas educativos que têm poucas chances de superar a programação das emissoras privadas, predominantemente constituída de filmes de comédia e ação americanos, reality shows e novelas. A internet é um instrumento muito presente na formação do indivíduo, principalmente do jovem, porém é um espaço de busca. Como as informações se encontram virtualizadas, é necessário que o internauta também já possua algum repertório que possa ser enriquecido no ciberespaço. Para Lotman, a mensagem nova origina-se de uma inicial, e a consciência criadora surge do intercâmbio entre elas. O autor ainda ressalta que “La conciencia creadora es imposible en lãs condiciones de un sistema completamente aislado, uniestrutural (...) y estático”(LOTMAN, 1996, p.71). De acordo com as perspectivas aqui presentes, pode-se tomar autor e leitor como consciências criadoras entre as quais deve haver intercâmbio semiótico necessário à significação. Segundo Wolfgang Iser, o texto é um campo onde os jogadores são os autores e os leitores. De acordo com suas teorias “o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a 66 interpretá-lo; tarefa que leva o leitor a repetir o mundo encenado no texto ou transgredilo.”Metaforicamente é possível imaginar autor e leitor num campo onde a bola são os signos, “ a confrontação provoca um movimento de ida e vinda que é básico para o jogo e a diferença resultante precisa ser erradicada para que alcance um resultado” (ISER, 1979, p. 108). O resultado pretendido pelo jogo do texto é o sentido atribuído pelo leitor, não o pensado pelo autor, mas o construído por este e transformado por aquele. Ainda explorando a metáfora da bola, o que pode ocorrer quando um jogador experiente e treinado é posto em campo com outro que não passou pelo treinamento ou participou de poucos jogos? O passe da bola pode ser perdido, as chances de gols reduzidas e o resultado insatisfatório. Para Iser, “há um elemento no papel do jogo que escapa do domínio do jogador”(ISER, 1979, p. 114). Em relação ao texto, isso pode ocorrer muitas vezes sem necessariamente comprometer a recepção e a significação. No entanto, as teorias de Iser, como as de Bakhtin e Lotman, são construídas com ênfase no texto verbal tendo o livro como suporte. O que se está pensando neste trabalho está na categoria de um jogo do intertexto em suportes também polifônicos como cinema. Este jogo requer mais que qualquer outro a participação do leitor, pois são muitas as lacunas a serem preenchidas com os hipertextos contidos na memória. É evidente que cada filme propõe um jogo diferente para espectadores com formações e interesses diversos. Matrix, por exemplo, possibilita vários ângulos de leitura. Um filósofo pode extrair dele discussões sobre o conceito de realidade; um crítico de cinema, ater-se aos aspectos inerentes à linguagem cinematográfica. Ao espectador é relegado apenas o papel de mero receptor, ou aquele de quem a indústria cinematográfica necessita como consumidor. Há, em determinados filmes intertextuais, um emaranhado de signos que está longe do repertório da maioria, apesar de os autores talvez acreditarem o contrário. Zygmunt Bauman, em o Mal-estar da pós-modernidade, afirma que “É a aceitação social de conexões necessárias entre os signos e certos significados que faz uma linguagem”(BAUMAN, 1999, p. 132). Dizer que o leitor preenche as lacunas do texto atribuindo novos significados a ele pode parecer romântico numa sociedade que capacita cada vez menos seus leitores para os tipos de textos que têm sido criados, principalmente os intertextuais, o que pode dificultar as “conexões”. 67 Convém aproveitar a menção ao filósofo e pensarmos se seria o método intertextual uma característica da pós-modernidade. Mas tanto Machado de Assis, no século XIX, quanto Joyce, em Ulisses, no início do século XX, respectivamente, valemse de tal procedimento. Sendo assim, seria mais prudente considerar que a pósmodernidade, enquanto conjuntura e condição histórico-culturais, acirraria um processo já prefigurado em outros momentos. O pós-moderno lançaria mão de uma prática já repertoriada, potencializando-a nestes tempos repletos de novidades tecnológicas que facilitam a reprodução, acarretando assim a perda da aura do objeto artístico32. Bauman argumenta também que o significado da arte pós-moderna é: ...estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo contra o perigo de, algum dia, se desgastar até uma parada; alertar para a inerente polifonia do significado e para a complexidade de toda a interpretação (...) a arte pós-moderna traz para o espaço aberto o perene inacabamento dos significados (BAUMAN, 1999, p. 132). Para Bauman, na arte pós-moderna há uma “inexauribilidade do reino do possível”, significados podem ser ressignificados ou até mesmo desconstruídos. Afinal é exatamente isso que pode ser percebido nos objetos da presente análise. A constante possibilidade de atribuição de novos significados permite que uma obra - ou fragmentos dela - possam surgir em contextos diferentes do original. As possibilidades dialógicas se intensificaram com a internet. Diante do computador é fácil acessar textos, imagens e vídeos produzidos no mundo inteiro em épocas distintas. A internet é uma espécie de semiosfera, é um espaço semiótico composto por inúmeros signos num processo constante de transformação e diálogo. Ela é o espaço onde a leitura intertextual pode realizar-se de forma mais ampla devido aos recursos hipertextuais. O ciberespaço pode ser considerado a grande novidade da cultura do século XX, até mais que o cinema e a televisão, na medida em que absorveu esses dois. 32 Em 1936, o filósofo alemão Walter Benjamin publicou o ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, no qual argumenta que as possibilidades da cópia retiram do produto artístico a aura de objeto único, mas democratizam o acesso que era privilégio de poucos. Apesar de não tratar especificamente da pós-modernidade, o ensaio de Benjamin aponta um fato que se intensificou ainda mais com o advento do computador e da internet: a reprodução. 68 Mas quando se trata de cinema, parece redundante falar em moderno, novo ou pós-moderno, pois o cinema nasceu na modernidade, é uma arte que surge no seio da maior consumidora de novidades: a burguesia. Para Teixeira Coelho: Apenas a partir do século XVIII e, mais especificamente, do século XIX, com seu processo de industrialização e mercantilização exacerbadas, inclusive da cultura e da arte, é que a originalidade ascende à posição de valor supremo: assim o exige um mercado ávido por coisas diferentes que, exatamente por serem diferentes, devem valer mais (dinheiro) do que as coisas conhecidas. Um mercado esfomeado de novidades (COELHO, 2005, p.18). O período a que se refere o autor coincide com o momento de ascensão da classe burguesa pós-revolução francesa. Ele estende sua reflexão a uma diferença entre novo e novidade relacionados ao conceito de moderno e modernidade. De acordo com a sua argumentação, vive-se uma obsessão pela novidade, que nem sempre representa o novo. O cinema não foi apenas mais uma novidade estética, mas algo novo sob os aspectos culturais, comerciais e tecnológicos. Enquanto linguagem artística, nada mais inédito, porém, no que se refere à estrutura narrativa, inovou muito pouco até absorver as influências dos movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX. Ao analisar a intertextualidade no cinema contemporâneo, percebe-se uma novidade alicerçada sobre algo que deveria ser bastante conhecido. O que se vê em Matrix é um desfile de signos extraídos da cultura ocidental e oriental sem fronteiras demarcadas. O que o filme apresenta de novo é o manuseio dos aparatos tecnológicos para a elaboração dos efeitos especiais, já a costura feita com fragmentos de outros filmes e obras literárias já havia marcado outras produções de grande repercussão junto ao público, como a comédia Top Secret (1984). O mesmo retorno ao passado verifica-se em outros setores da cultura como na moda, na qual o retrô virou tendência. A música também não tem escapado a essa característica. São muitas as releituras e citações facilitadas pelos recursos eletrônicos. 69 O som dos Djs é extremamente intertextual com seus samplers33 e paródias. Na televisão, são cada vez mais frequentes os remakes de novelas; e a indústria cinematográfica aparenta seguir o mesmo caminho com refilmagens de clássicos como A fantástica fábrica de chocolate (1971) e Fúria de Titãs (1981). No livro No castelo doBarba Azul, o crítico George Steiner faz uma constatação bastante pertinente dessa discussão sobre o passado que se faz tão presente. Ele afirma que “Os ecos pelos quais uma sociedade procura determinar o alcance, a lógica e a autoridade de sua própria voz vêm da retaguarda”(STEINER, 1991, p. 14). Mesmo o cinema que se propõe uma estética futurista não deixa de se nutrir dessas imagens. Os figurinos do clássico de ficção científica Blade Runner (1982) em nada se assemelham às roupas de astronautas que os filmes do gênero preconizaram antes dos anos oitenta. É possível perceber nas roupas dos personagens referências aos anos 50, por exemplo. Segundo Steiner, é como se essas imagens estivessem impressas “à maneira da informação genética, em nossa sensibilidade”(idem). Seria possível pensar, portanto, que a intertextualidade se dá de forma inconsciente, ou seja, não haveria por parte do autor um ato deliberado de diálogo com o texto criado pelo outro. Essa atitude dialógica e inconsciente é percebida nos discursos de alguns personagens dos romances de Dostoiévski estudados por Bakhtin. É certo que o conceito de intertextualidade empregado por Kristeva parte da teoria do pesquisador russo, mas a perspectiva desta pesquisa está pensando o intertexto como método, o artista conscientemente “tomando emprestado” criações de seus antecessores em vários campos da cultura. Steiner argumenta que toda sociedade requer antecedentes, uma espécie de herança necessária ao que ele chama de “gramática do ser”. O autor ainda coloca que se vive um constante temor de uma nova idade das trevas, que o ser humano atualmente possui uma sensação de desordem. Talvez seja essa a razão do retorno ao passado. Se analisarmos a história da arte entre os séculos XVI e XIX, perceberemos os movimentos artísticos num constante vai e vem. Ora um retorno ao greco-romano, ora à cultura medieval. Foi o modernismo que projetou uma estética que rompeu com as 33 O sampler é um equipamento que armazena sons em arquivo digital e os reproduz conjuntamente, criando uma espécie de banda virtual. Também é utilizado em músicas que fazem citações a gravações originais de outras. 70 tradições do passado pensando o presente e o futuro da arte. Mas mesmo os modernistas – e aqui a referência é específica ao movimento brasileiro – não conseguiram deixar de lado o passado, mesmo que para negá-lo ou ironizá-lo. São muitos os poetas que escreveram paródias e paráfrases de poemas românticos e parnasianos. De certa forma, manteve-se o retorno. A semiótica pode ser um caminho para auxiliar a formação do leitor que transita nesse espaço dialógico. Quando se fala em leitura pensa-se imediatamente na língua ou na linguística. As escolas ainda persistem em ensinar apenas língua, quando deveriam voltar-se para o ensino da linguagem também sob os aspectos sonoros e visuais. O tipo de leitura que se ensina na maioria dessas instituições é restrita a uma análise do signo em primeiridade, ou seja, uma leitura limitada ao que é exposto pelo ícone. Grande parte dos leitores não está habituada a sair do campo da denotação e formular hipóteses conotativas, ou realizar a leitura em terceiridade, trazendo o signo para uma realidade social, histórica e cultural até atingir o nível de leitura simbólica. Quando o ouvinte de uma rádio pensa que a cantora Adriana Calcanhoto virou fã da banda de música Calipso é porque de fato extraiu o signo da obra e o inseriu num momento social: o contemporâneo a ele. Sem sombra de dúvida, poucos, no século XXI, pensariam na Ninfa de Homero. Todavia, mesmo incoerente com as intenções do texto, esse leitor encontrou em seu universo cultural uma referência para compreender o que seria “caí nos braços de Calipso.” As propagandas de verduras apresentadas às donas de casa com os títulos de Berinjela Indiscreta, kiwi Bill, Nove cebolas e meia de amor podem ser vistas – para os reconhecedores dos filmes inspiradores da campanha – como obras de arte. No entanto, para muitas pessoas a significação seria apenas a de um cartaz que pretende vender frutas e legumes. Essas afirmações não significam uma tentativa de tornar as leituras homogêneas. Também não se está falando de um leitor que busca numa biblioteca ou livraria um exemplar de Ulisses, de James Joyce, ou O livro de cabeceira34, de Peter Greenaway, numa locadora. Trata-se do que está cada vez mais envolto numa profusão de signos 34 O cinema de Peter Greenaway é classificado como intertextual. Em suas obras, cinema, literatura e artes plásticas estão em diálogo constante. Seus filmes são pouco populares, talvez, devido à quantidade de informação que o espectador deve mobilizar para compreendê-los. 71 que lhe dizem cada vez menos respeito. A ele tem sido atribuída a independência total para construir os seus próprios significados do que lê, como se a competência para leitura não fosse resultado de um processo de aprendizado. No tocante às questões relativas ao cinema a situação se agrava. A sétima arte tem uma história de pouco mais de cem anos, porém películas que fizeram do cinema uma linguagem estão longe do acesso do grande público. A maioria dos títulos se encontra confinada em videotecas que vez ou outra organizam mostras voltadas para pequenos grupos de estudantes universitários, artistas ou intelectuais. Segundo Teixeira Coelho, um aspecto que difere modernidade de modernismo é o fato de aquela ser uma reflexão sobre o processo de criação. Ele cita Duchamp e Joyce afirmando que ambos utilizam em suas obras um recurso da modernidade: “falar do Outro ao falar de si, falar da obra Outra ao fazer sua própria obra, permitir que uma obra seja lida através de outra”(COELHO, 2005, p.45). Pelas obras intertextuais, leem-se fragmentos de inúmeras outras. Por meios de tais produtos, as instituições de ensino e entidades culturais poderiam desenvolver trabalhos que estimulassem a busca pela junção dos fragmentos. Afinal não se pode permitir que a falta de sentido e a leitura incoerente se transformem em algo natural. É importante que não apenas os autores continuem “recheando sua poesia com alusões à Renascença italiana, à Grécia antiga, ao antigo Oriente.”35, mas que também o leitor requisitado como co-autor tenha em seu acervo um mínimo de referências sígnicas para que o diálogo se estabeleça de fato, para que importantes produtos da cultura não continuem apenas circulando ou sendo lidos em sua plenitude apenas nos restritos círculos acadêmicos. 35 Referência de Teixeira Coelho à frase “Make it new!”de Ezra Pound. O pesquisador ainda afirma que também o cineasta russo Sergei Eisenstein assumiu uma postura parecida ao criar seu “revolucionário” cinema moderno revisitando a antiga cultura chinesa. 72 5-SENTIDO, SIGNIFICADO, SIGNIFICAÇÃO Os substantivos sentido, significado e significação vêm sendo usados ao longo do trabalho como se fossem palavras sinônimas. Contudo cabe estabelecer algumas diferenças teóricas entre ambos, o que será feito a partir dos estudos de Teixeira Coelho. O pesquisador dedica um capítulo do livro Semiótica, informação e comunicação (2003) a um estudo detalhado de alguns conceitos de Peirce sobre o signo. Nele, o autor afirma que o sentido “é o efeito total que o signo foi calculado para produzir e que ele produz imediatamente na mente, sem qualquer reflexão prévia, é a interpretabilidade peculiar ao signo antes de qualquer intérprete”(COELHO, 2003, p.71); em outras palavras, o sentido das palavras apresentado nos dicionários. Significado é “o efeito direto realmente produzido no intérprete pelo signo; o que é concretamente experimentado em cada ato de interpretação”(COELHO, 1974, p. 72). O significado é o signo como evento real e único. Por exemplo, o objeto “lua” aqui e agora. O terceiro conceito é a significação, que pode ser entendida como o efeito produzido no “intérprete em condições que permitissem ao signo exercitar seu efeito total, é o resultado interpretativo a que todo e qualquer intérprete está destinado a chegar, se o signo receber a suficiente consideração”(idem). Ou seja, diante da lua, a significação tende a representar para o intérprete “esta ou aquela imagem de natureza psicológica ou sociológica, em função da qual sua reação será esta ou aquela”(idem). Em Shrek 2, a significação do crescimento do nariz de um personagem é a mentira. Significação esta somente elaborada para os conhecedores da história do menino de madeira que pensava ser um garoto de verdade. Pode parecer óbvio que Pinóquio seja um personagem conhecido por todas as crianças em idade escolar, o que esta pesquisa desmente, já que numa turma de sexto ano do ensino fundamental da Escola Municipal Carlos Chagas, em Campos dos Goytacazes, havia alunos que desconheciam totalmente a narrativa do escritor italiano Carlo Collodi. Numa cena em que Shrek e o Burro são presos num castelo pela Fada Madrinha, Pinóquio e dois 73 ratinhos são descidos até o calabouço por uma corda numa explícita referência ao filme Missão Impossível (1996), porém ficam longe demais para que os ratos possam roer a corda. A solução é colocar os pequenos animais no nariz de Pinóquio e forçá-lo a mentir. Pedem para o boneco dizer que estava usando calcinhas. Ele diz e nada acontece. O nariz só cresce quando o boneco afirma que não estava usando a tal peça íntima. Vários personagens do universo dos contos de fadas aparecem para a festa em homenagem a Fiona e Shrek. Tudo no evento é uma paródia à chegada das estrelas de Hollywood na noite de entrega do Oscar. Estão lá o tapete vermelho, os fotógrafos, as estrelas chegando em seus luxuosos carros etc. Cada personagem apresenta um signo representativo de sua história de origem. A Bela Adormecida, por exemplo, ao ser aberta a porta da carruagem, cai no chão de sono. João e Maria passam pelo tapete vermelho jogando migalhas de pão, e a comentarista da festa pergunta: “Mas para que as migalhas?” A pergunta da comentarista expressa uma dúvida que também pode incomodar um leitor mais atento aos detalhes. No entanto a resposta para a interrogação pode ser localizada no conto de tradição oral João e Maria, recontado pelos irmãos Grimm. Até aqui, estudaram-se os procedimentos intertextuais analisando prioritariamente os signos inspirados em obras literárias ou retirados delas. Mais adiante a rede de significações dialógicas que pode ser traçada pelo leitor será analisada levando em consideração a linguagem do cinema. Pensar a significação no cinema exige uma reflexão acerca do que é especificamente a linguagem cinematográfica além do domínio no campo da gramática verbal, mas de uma gramática própria para essa linguagem utilizada para contar histórias por meio de imagens em movimento. Se há narração – pelo menos no sentido mais tradicional da palavra – deve-se pensar em personagens e narradores, sequência espacial e temporal. De tais elementos a figura do narrador é a que nem sempre se mostra, característica mais comum aos textos dramáticos. 74 No caso do cinema seria mais correto falar em narradores. Antes de chegar à exibição, o filme passa por muitas mãos: roteirista, montador, editor, continuísta, diretor, ou até mesmo os próprios atores que podem dar ao personagem significações não previstas pelos roteiristas e diretores. O ator é, na realidade, o principal autor do personagem. É ele quem imprime a este último suas emoções e corpo. Cada Drácula é um tipo diferente no cinema. Seja o de Bela Lugosi, Boris Karlof ou o de Gary Oldman; é como se tivessem sido criados por autores diferentes e são. O mesmo pode ser observado no Hamlet de Laurence Olivier, Kenneth Branagh ou o de Mel Gibson. Na literatura, o autor é o criador, e o leitor é aquele que cria sua imagem particular sobre o personagem. Para cada leitor, o Hamlet será um príncipe específico. Isso se dá também no cinema, mas, nesse caso, o personagem é algo com forma e voz definidos, diferente do livro em que tais aspectos devem ser imaginados pelo leitor a partir das leituras feitas dos conjuntos de signos. O signo da narração verbal é a palavra. Porém uma única palavra dificilmente será suficiente para constituir um capítulo de um romance. O mesmo já não se pode falar da imagem, signo-mor do cinema. Segundo Metz “cada imagem, longe de equivaler a um monema ou mesmo uma palavra, corresponde mais exatamente a um enunciado completo”(METZ, 1972, p. 39). Se Dom fosse um romance, quantos enunciados talvez seriam necessários para expressar o que o protagonista sentiu ao ver Ana no mar com Miguel? Apenas alguns segundos foram necessários para dizer ao espectador que a atitude da esposa e do amigo desagradaram ao personagem: um primeiro plano mostrando o rosto de Bento foi suficiente para representar tal sentimento. Metz diz ainda que as imagens são unidades atualizadas, enquanto as palavras são virtualizadas. A narrativa fílmica, portanto, é construída a partir das duas categorias. A imagem não é apenas uma ilustração da palavra. Esta é um elemento colaborador daquela, assim como os demais elementos necessários à composição de um filme. Uma imagem intertextual – assim como a palavra – também é uma unidade virtualizada, já que sua significação necessita de atualização. Retomando a origem do problema, é importante pensar no signo solitário, fora da estrutura sintagmática ou paradigmática. Termos como sintagma, paradigma, frase, 75 enunciado e signo são comumente associados à linguística ou à semiótica. A seguir será feito um estudo das aplicações desses termos – largamente empregados na semiologia do texto – na semiologia do cinema, para então serem propostos possíveis caminhos para a significação e a formação do leitor. Essa tarefa inicia-se com a seguinte afirmação de Teixeira Coelho: A significação de um signo não deve ser confundida com o significado desse mesmo signo. O significado é o conceito ou imagem mental que vem na esteira de um significante, e significação é a efetiva união entre um certo significado e um certo significante (...) a significação de um signo é uma questão individual, localizada no tempo e no espaço, enquanto o significado depende apenas do sistema e, sob este aspecto, está antes e acima do ato individual (COELHO, 2003, p. 22-23). É perceptível que o pesquisador se vale dos conceitos de significado e significante de Saussure, conceitos esses que extrapolaram os limites da linguística e da semiologia do texto e vêm sendo empregados também no estudo dos signos não verbais. Quando relaciona a significação a um aspecto individual, Teixeira Coelho expõe uma questão já levantada e cuja retomada é pertinente neste momento: a participação do leitor na construção da significação do texto. O significante e o significado não dependem dele. Ambos são construídos pelo autor ou autores, ao leitor cabe a significação como resultado da união entre os outros dois. Analisando por essa ótica, a significação seria um processo sem limites. Porém seria possível falar em ausência de significado ou significação? Em relação ao primeiro termo não. Mas o mesmo não se pode afirmar a respeito do segundo. Em Matrix, a palavra Zion ou Sião é um significante com significado encontrado dentro e fora do filme. Conforme já foi dito, trata-se de uma fortaleza que abriga os humanos libertados da matrix ou de um monte encontrado em Jerusalém. O fato de determinado leitor não identificar tal referência não quer dizer que o signo não possua um significado. Este se instaura a partir do momento em que a própria narrativa o apresenta ao leitor. A palavra é retirada da sua virtualidade e se atualiza sob a forma de um espaço subterrâneo habitado por centenas de pessoas. A significação sob o ponto de 76 vista textual é possível devido à conversão do significante verbal em um visual. A significação, sob o aspecto intertextual, para muitos, deixa de existir, pois neste caso requer a atualização de um significado que não pertence à diegese do filme. Ele existe, mas não é identificado, o que impossibilita a significação intertextual como atitude individual, já que ela é o resultado da união entre significado e significante. Mas, como se trata de cinema, é conveniente que seja analisado algum signo visual de origem intertextual para que se verifique a ocorrência do mesmo processo. Para isso será retomado um exemplo de Shrek 2: as migalhas jogadas por João e Maria ao chegarem à festa no castelo de Tão Tão Distante. Nesse caso, há a imagem dos dois irmãos e as migalhas como significante, mas onde o significado para que se elabore a significação? É importante lembrar a pergunta da apresentadora: “Mas pra que as migalhas?” Esse exemplo não apresenta possibilidade de significado nem mesmo dentro do enredo do filme, apenas fora dele, impossibilitando, portanto, qualquer possibilidade de significação fora da leitura intertextual. Num texto, a significação será também resultado da relação do signo com os demais à sua volta, ou seja, com todo o contexto que o envolve. Por isso, no conto popular sobre os dois irmãos que são abandonados pelos pais na floresta, fica claro que jogar migalhas de pão pela estrada é a criação de uma estratégia para acharem o caminho de volta para casa. Se o signo verbal “pedra” aparece num texto, a análise do contexto pode remeter o leitor a uma série de significações. Teixeira Coelho argumenta que “A questão da significação conduz de imediato a uma abordagem dos fenômenos de denotação e conotação do signo”(COELHO, 2003, p. 24). Será tomado como exemplo a palavra “pedra” no seguinte trecho de A demanda do santo Graal : “Nesta parte diz o conto que, depois que partiu Galvão do castelo, onde viu os letreiros da pedra, não se afastou muito que achou outro caminho que ia para uma montanha”(MEGALE, 2008, p.132). É nítido que a palavra “pedra” aparece no trecho empregada como signo denotativo, pois “ele veicula o primeiro significado derivado do relacionamento entre um signo e seu objeto” (COELHO, 2003, p.24). O objeto nesse caso é a coisa pedra, concreta, matéria bruta em que algo foi escrito. 77 O mesmo signo aparece no conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade, o qual já não se pode afirmar que o emprega de forma denotativa. Ao escrever “no meio do caminho tinha uma pedra”, o poeta deixou aberta ao leitor uma série de possibilidades de significados para “pedra”. Uma dessas possibilidades pode pertencer ao território da denotação. De fato, nada impede que se leia “pedra” como pedra mesmo. No entanto, muitos podem atribuir a esse significante o significado de problema, obstáculo, ou seja, atribuir significação. O significado está para a denotação assim como a significação para a conotação, já que esta dependerá muito mais de uma atitude individual, subjetiva. Foram utilizados dois exemplos literários, apesar de o foco do trabalho ser o cinema. Isso se deu pelo fato de existirem entre a literatura e a sétima arte vários pontos comuns. Além de ambos também serem instrumentos para se contar histórias, a “arte do filme encontra-se no mesmo plano semiológico que a arte literária...” (COELHO, 2003, p. 116), por isso as análises aqui presentes são inspiradas em estudos ligados à linguística, como os de Saussure, por exemplo. Inspirados, mas com a devida cautela. Há algumas diferenças básicas que devem ser levadas em consideração. Uma delas diz respeito ao fato de a imagem não ser uma unidade discreta, ela tende a mostrar o que a palavra pode apenas sugerir. A imagem de uma pedra num filme dificilmente será lida como outra coisa que não seja o significado denotado do signo. A menos que sobre ela sejam aplicados outros recursos da linguagem cinematográfica. Metz cita o exemplo dos “filmes negros americanos em que dos paralelepípedos brilhantes de um cais emana uma impressão de angústia ou de dureza (= significado de conotação)” (METZ, 1972, p.117); e que ao mesmo tempo é apenas o espetáculo representado pelas imagens: os cais desertos e escuros, entulhados de caixotes, o que caracterizaria o significado da denotação. Este associado a “uma técnica de filmagem que realça totalmente as qualidades da iluminação para chegar a uma determinada imagem destes cais” (idem) contribui para a construção do significante da conotação. Ela é resultado da intervenção humana por meio de uma série de recursos semiológicos, diferentemente da literatura, na qual o entorno será definido por signos de uma mesma ordem. Como foi visto no exemplo, a luz e a técnica empregadas na filmagem poderão colocar a imagem na instância conotada. Portanto, as imagens de um filme pertencem 78 inicialmente à instância denotada. As demais significações aparecem depois em decorrência das intervenções de outras linguagens como a verbal. Falou-se em imagem e palavra. Contudo nem um filme ou narrativa são constituídos apenas de uma unidade de cada uma delas. São constituídos de enunciados completos. Uma diferença essencial entre uma e outra é que uma imagem isolada pode constituir um sintagma, uma palavra não. Por isso Metz afirma que a semelhança existente entre a imagem e o enunciado é o fato de ambos serem “unidades atualizadas”. Para o teórico, uma outra diferença entre a criação literária e a cinematográfica é que esta última é criação sempre, uma imagem nunca é igual a outra imagem. Já o escritor tem à sua disposição todo um acervo lexical, o que lhe possibilita elaborar uma seleção paradigmática para a composição do texto. Em relação ao cinema, o que o autor faz não é escolher esta imagem em oposição a uma outra, mas criá-la. Isso não significa afirmar que inexista uma paradigmática fílmica. Mas, no cinema, “o paradigma de imagens é frágil, aproximativo, frequentemente natimorto, fácil de modificar, sempre evitável”(METZ, 1972, p. 86). A criação literária faz uso de número limitado de palavras, salvo os casos de neologismos, mas não há como todas as palavras de um poema, conto ou romance serem inventadas por seus autores. Já toda imagem fílmica é autoral, inédita. Metz comenta os estudos de J.L. Rieupeyrout sobre o western. Neles, o pesquisador ensina que, no referido gênero de cinema americano, era comum o cowboy bom usar roupa branca e o mau vestir-se de preto. Porém esses paradigmas não duraram muito tempo. Nada impediu que, com o tempo, alguns cineastas vestissem os cavaleiros de cinza ou misturassem a calça preta à camisa branca. Se o conceito de paradigma for adaptado à análise intertextual aqui pretendida, poder-se-ia afirmar que cenas de filmes que se tornaram clássicos acabaram constituindo uma espécie de dicionário paradigmático viabilizando o diálogo entre imagens de filmes de diferentes épocas e estilos. O que não existe é um suporte único que reúna todas as imagens-signo que fizeram a história do cinema, daí a importância da memória36. Pode-se afirmar o 36 Como suporte para o léxico, existem os dicionários. 79 mesmo acerca do texto literário de caráter intertextual. Neste ponto, cinema e literatura apresentam características, ou melhor, problemáticas semelhantes: ambos nutrem-se de signos deixados como herança. Christian Metz afirma ainda que, por meio de suas pesquisas de conotação e criação estética, o cineasta “chega às vezes a deixar atrás dele alguma forma que poderá posteriormente se tornar norma e eventualmente constituir ‘um fato de linguagem’”(METZ, 1972, p. 203). Como exemplo do que Metz chama de fatos da linguagem cinematográfica, é possível citar os “flashbacks (sucessão como significante da precessão) ou flashforward (sucessão próxima como significante da sucessão longínqua); os sintagmas alternados ou sintagmas paralelos, estes muito comuns nos filmes de Peter Greenaway. Em Dom, o recurso do flashback é largamente empregado nos momentos em que o protagonista lembra de sua infância com a amada. Em um desses momentos, o sintagma imagético que apresenta os olhos de Ana é associado ao sintagma verbal “olhos de ressaca” pronunciado por Bento. Dessa forma, palavra e imagem interagem compondo uma mensagem conotada pela palavra, mas cujo significado é mostrado pela imagem que, nesse caso, não dá conta da conotação do sintagma “olhos de ressaca” cujo significado é complementado pela seguinte fala de Bento: “olhos... que me arrebatavam, para não ser arrastado tinha de me segurar nas partes vizinhas”. Percebe-se neste momento que a imagem nem sempre tem o poder de atualizar o significado conotado de uma palavra ou expressão. No mesmo filme, é usado o flashforward que antecipa ao leitor um acidente que, no presente da narrativa, só ocorrerá no final. Esse “fato de linguagem” é um recurso bastante utilizado por muitos diretores com o intuito de criar suspense nos espectadores. Porém, como já foi usado à exaustão, é comum que, para o público mais habituado ao cinema, sirva como pistas para antecipação de algum acontecimento envolvendo os protagonistas. Assim, o contato direto com recursos muito utilizados em determinada linguagem pode educar o receptor a ler e a interferir na mesma, elaborando hipóteses necessárias à significação. Metz diz que “se pode distinguir pelo menos duas grandes espécies de organizações significantes: os códigos naturais e os códigos especializados”(METZ, 80 1972, p. 133). O teórico argumenta que os primeiros dizem respeito à cultura de cada grupo social, e são assimilados a ponto de fazerem parte da natureza do grupo sem haver a necessidade de um aprendizado especial para manipulá-los37. De fato, a maioria dos espectadores percebe que quando a narrativa é interrompida por uma cena ou sequência, apresentando fatos anteriores ao narrado no momento, trata-se da lembrança do personagem. Já os segundos, os especializados, exigiriam uma aprendizagem especial. Metz conceitua as unidades significantes próprias do cinema38 como códigos especializados. Porém, como seus estudos datam do início dos anos 70, o contato constante da maioria das pessoas com filmes, nas salas de cinema ou por meio da televisão, transformou alguns códigos especializados em naturais. Tanto o que Metz chama de códigos naturais ou especializados pertencem à instância denotada do filme. No que tange à conotação, o cinema também se vale de “objetos (visuais ou sonoros)” que “simbolizariam dentro do filme o que simbolizariam fora dele, isto é, na cultura”(METZ, 1972, p.135). O pesquisador francês acrescenta que esses “objetos” não ingressam virgens no filme, que carregam consigo mais do que sua identidade literal, “ o que não impede o espectador que pertence a determinada cultura de decifrar este ‘mais’ no mesmo momento em que identifica o objeto”(idem). Aos objetos mencionados por Metz, é pertinente acrescentar os intertextos verbais, estes - mais do que quaisquer outros - são objetos que não ingressam “virgens” no filme. Eles possuem conotações culturais próprias, que precisam ser transpostas – pelo leitor – às propostas conotativas da obra, para que a denotação não se imponha como único modo de leitura e significação. Um filme não intertextual pode apresentar ao leitor problemas quanto à significação, relacionados à estrutura interna da narrativa. Seria o caso, por exemplo, de 2001 uma odisséia no espaço (1968), no qual signos como o monolito negro – que aparece em várias cenas, e até hoje suscita discussões e controvérsias quanto ao seu significado – pode gerar uma série de significações diferentes desde que se analise o seu entorno. Diante das colocações feitas acerca da significação como um ato individual, poder-se-ia entendê-la como um processo ilimitado, totalmente entregue à subjetividade 37 O autor se refere aos códigos iconológicos, perceptivos etc. Exemplos destas unidades seriam a montagem, os movimentos de câmeras, a interação do visual e do sonoro. 38 81 do leitor. Contudo é pertinente pensar num outro aspecto do processo de recepção de textos ficcionais: a interpretação, também um ato individual. Segundo o Dicionário da Academia Brasileira de Letras, interpretar significa “Aclarar ou explicar o sentido” de um texto. É bastante comum a concepção de que a interpretação é uma atitude meramente subjetiva. Para que se realize basta apenas que o sujeito atue atribuindo ao texto as significações que melhor lhe aprouver. Sendo assim, qualquer texto pode significar qualquer coisa, dependendo da vontade de quem o lê, como se o texto fosse uma página em branco à espera de quem a preencha. É correto pensar o texto como páginas com lacunas que precisam ser preenchidas, como um produto não acabado até o momento da leitura. Na verdade, mesmo durante e depois de muitas leituras, o texto ainda pode continuar como um produto inacabado, o que permite que novos significados e significação sejam atribuídos a eles ao longo do tempo. Inacabado, mas não completamente aberto a qualquer tipo de significação ou interpretação. Umberto Eco em duas obras voltadas para a relação texto/leitor – Obra aberta (1962) e Os limites da interpretação (1990) – reflete sobre os dois pólos da questão. Na primeira, o autor admite conferir excessiva liberdade ao leitor; na segunda, reconhece correr o risco de “parecer excessivamente respeitoso em relação ao texto”. Entender a obra de arte como um produto com “posibilidad de ser interpretada de mil modos diversos sin que su irreproducible singularidad resulte por ello alterada” (ECO, 1979, p. 33) significa dar ao leitor toda independência interpretativa a qual o próprio Eco fará ressalvas mais tarde. O escritor italiano argumenta, em Os limites da interpretação, que “Todo discurso sobre a liberdade da interpretação deve começar por uma defesa do sentido literal”(ECO, 2010, p.9). O próprio Eco reconhece a obviedade de tal constatação, mas é importante refletir sobre ela, mesmo que pareça um tanto óbvio. Ele traz como exemplo uma frase proferida pelo ex-presidente americano Ronald Reagan e explica como ela poderia ser interpretada de diversas maneiras, mas que, antes de mais nada, seria importante que o leitor soubesse o que essa frase significaria gramaticalmente. Tantas possibilidades interpretativas, na verdade, correspondem, segundo Eco, à escolha dentre os vários sentidos contidos na obra. Para ele: 82 ... a transmissão de uma sequência de sinais de escassa redundância e alta dose de improbabilidade exige que se inclua na análise a consideração dos comportamentos e estruturas mentais com que o receptor seleciona a mensagem e nela introduz uma probabilidade que, na realidade, ali se acha contida ao lado de muitas outras a título de liberdade de escolha (ECO, 1962, p.113).39 O leitor escolhe a probabilidade que está mais de acordo com suas expectativas e vivências e a coloca em teste para decidir se ela se encaixa coerentemente no texto. Porém nem sempre essa coerência é atingida, resultando muitas vezes numa interpretação equivocada, o que não implica necessariamente o impedimento da significação. Portanto vale ratificar que, caso o sentido gramatical – o que é também chamado de literal – não tenha sido apreendido, não há significação possível. Nos objetos de estudo desta dissertação, não se pode falar em ausência de significação da obra, mas de obras que constituem partes dela. Como no cinema são muitas linguagens em jogo, às vezes, a verbal fica esquecida devido à profusão de informações oferecidas pela imagem. Inúmeros trechos verbais de um filme caem em “apagamentos”, ou seja, é como se não tivessem nem mesmo sido pronunciados, pois só é possível reconhecer e nomear o que é familiar. No filme Quem somos nós (2004) de William Arnzt, Betsy Chasse e Mark Vicente é feito um comentário sobre o que os índios teriam visto quando a esquadra de Cabral se aproximou do litoral brasileiro. Decerto não viram caravelas, já que não sabiam exatamente o que isso significava. Os limites da interpretação ou da significação de uma obra de arte, portanto, não são impostos pela obra, nem mesmo pela crítica, mas pelo próprio repertório do leitor. A atribuição de significação pode ocorrer também por meio da criação de uma outra obra. A imagem dos olhos de Ana em Dom é uma nova significação que o diretor Moacyr Góes deu para os olhos de ressaca de Capitu. Para o teórico de Konstanz, Karlheinz Stierle, a recepção abrange todas as reações desencadeadas no leitor pelo texto, desde a compreensão até a recusa em prosseguir na leitura do mesmo. Pode-se dizer que o cinema intertextual é um dos efeitos da recepção de textos ficcionais e nãoficcionais, ou seja, um texto que resulta da leitura de outros. 39 Citação retirada de Obra aberta, mencionada em Os limites da interpretação, p. 5. 83 Um exemplo de efeito da recepção de Matrix pode ser observado na letra da música “Eu não entendi Matrix” da banda de rock Gangrena Gasosa. Nela, o compositor, conhecido pelo apelido de Chorão, apresenta um enunciador que diz não ter entendido o filme e faz uma interpretação literal expressando-a numa linguagem repleta de gírias bastante comuns à maioria dos jovens, como se pode observar na transcrição abaixo: Uma gostosa que andava na parede/E despiroca pelo telhado/De repente ela sumiu no telefone/E me deixou bolado/Depois um pleibói vai preso/E a dura na federal é uma pica/Nego arranca a boca do cara/E bota um bisôro na barriga/Aí ele toma uma pírula/Vira espelho e aparece careca Cheio de fio nas costas/Dentro de uma bacia de meleca/Ele luta caratê pra caralho/E fica desenrolando/Com a tia do mongolóide/Que empena um garfo só olhando/Ele sente a escama no ar/Quando o gatinho repete o miau/Rala e deixa o negão na pista/Levando um sarapiau/O x-9 que gosta de bife/Dá mole e fica torrado/E o negão coitado/Toma pico todo amarrado/ Pra não rachar a cara com a mina/Ele invade de sinistro/Largando o prego geral/E dando o maior prejuízo/Ele cai pra trás no final/ eu não entendi, eu não entendi, eu não entendi matrix. No site de relacionamento Orkut, há comunidades dedicadas ao filme. Na intitulada “Eu amo Matrix,” por exemplo, há acaloradas discussões sobre os aspectos filosóficos e literários presentes na história . Os internautas apresentam suas leituras a respeito de trechos e falas dos personagens, outros confessam buscar leituras que auxiliam uma compreensão melhor do filme. No fórum “Livros parecidos com Matrix”, o internauta Fernando declara que leu Matrix: bem-vindo ao deserto do real (2003), que “mostra todas as ligações com passagens filosóficas/religiosas/culturais que tem no filme, o que faz você ficar de queixo caído, pois algo que já era uma obra de arte fica ainda mais interessante.”40 O fato de filmes estimularem a leitura dos livros nos quais são inspirados não é novidade, ou de livros de sucesso levarem milhões de espectadores ao cinema também não. Em relação a este último efeito, não raro ouve-se a queixa de que o filme não estava à altura do livro. Na realidade muitas pessoas ignoram que, apesar das semelhanças, cinema e literatura são linguagens distintas e que não se pode esperar fidelidade alguma quando um diretor resolve levar às telas uma obra literária. Esse 40 Nos documentos anexos segue a pagina da web com o depoimento do internauta. 84 efeito não ocorre apenas com os best-sellers como O código da Vinci (2004), mas também com obras sem o mesmo apelo popular como Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago. O livro de Dan Brow levou uma multidão a assistir ao filme protagonizado por Tom Hanks. Também o filme de Fernando Meireles colocou o livro de Saramago na lista dos mais vendidos durante o período de exibição. Umberto Eco enumera, no ensaio Intentio Lectoris41, diversos tipos de leitores, além do já tão discutido par leitor-autor. Seguem alguns deles: leitores virtuais, leitores ideais, leitores modelos, superleitores, leitores informados. É pertinente acrescentar a essa lista o leitor-investigador, o que assiste ao filme procurando os elementos do livro, caçando falhas e incongruências entre eles. Comumente a decepção é o resultado de tal investigação. No grupo pesquisado que respondeu às perguntas sobre Dom, há os que deixaram claro que procurariam o livro de Machado de Assis para aclarar dúvidas deixadas pelo filme, como foi o caso da aluna Bárbara Pires42, ao afirmar que o filme aumentou seu interesse pelo livro, pois “o filme não deixou tudo claro. Talvez com o livro minhas dúvidas podem ser tiradas.”43A leitura de Dom Casmurro pode não esclarecer as dúvidas deixadas pelo filme, pois são obras distintas, mas colabora para a atribuição de significações coerentes às referências intertextuais. Neste caso, o leitor-investigador não encontraria suas pistas no romance. É possível ler um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas e depois buscar, no filme homônimo de André Klotzel (2001), aproximações ou distanciamentos, pois se trata de uma adaptação. O leitor-investigador que tentar perscrutar as pistas das fontes referenciais de um filme intertextual como Matrix ou Shrek deverá preparar-se para a leitura de um número grande de clássicos da literatura e do cinema. Essa investigação resulta do pressuposto de que para gostar é preciso entender. A rejeição de alguns entrevistados ao primeiro filme estava comumente relacionada ao não-entendimento. Afinal, o cinema não é como a arte visual estática (pintura, fotografia, escultura). Diante de uma dessas linguagens, o 41 Os limites da interpretação, (ECO, 2010 p.1.). Bárbara é aluna do segundo ano do ensino médio do Colégio Alpha Vestibulares e respondeu ao questionário no dia 16/09/2009. 43 A resposta foi transcrita, sem correção gramatical. 42 85 leitor pode contentar-se simplesmente com o jogo de cores e formas, sem ter que necessariamente apreender algum tipo de mensagem ou atribuir alguma significação. Mesmo assim, ainda é bem maior o número de admiradores da arte tradicional do que adeptos das experiências de vanguardas pelo fato de estas apresentarem, muitas vezes, signos de difícil decifração. Ao longo do presente texto o termo leitor-espectador aos poucos foi substituído apenas por leitor, já que o texto fílmico também exige um ato de leitura tal qual o literário, guardando cada um as suas particularidades. Uma das razões da pesquisa que resultou nesta dissertação foi uma preocupação com este leitor cada vez mais envolto numa rede de signos que exigem significados para que a significação seja coerente. Escolheu-se o espaço escolar para a pesquisa de campo porque é nas instituições de ensino que o indivíduo inicia a sua formação intelectual ou, pelo menos, deveria ser. O problema abordado aqui – a falta de leitura de obras referenciais para a compreensão de produtos do cinema intertextual – tem uma de suas origens no universo escolar. O fato de a maioria das pessoas se interessar por livros que inspiram filmes e vice-versa poderia ser um mote para uma metodologia de estímulo à leitura e, consequentemente, de formação do leitor. O cinema é uma das linguagens artísticas mais presente na vida do jovem. Na escola, não deveria ser visto como mero trampolim para a leitura do texto verbal impresso, mas como desencadeador de novos procedimentos de leitura exigidos pela produção intertextual. Para o professor e historiador da Universidade de São Paulo, Marco Napolitano: Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte (NAPOLITANO, 2009, p.11). O cinema intertextual aumentaria as possibilidades apontadas por Napolitano, já que a leitura de outras obras poderia ser proposta por esse tipo de filme, aumentando o repertório, pré-requisito básico para a compreensão de produtos intertextuais, e ampliando também as competências de leitura. 86 6- CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio desta pesquisa, analisou-se a intertextualidade presente nos filmes Matrix, Dom e Shrek, com o intuito de verificar até que ponto o não reconhecimento das referências intertextuais poderia comprometer a recepção e a significação de obras cinematográficas que se valem de tal recurso. Outro fato também abordado foi a necessidade de refletir sobre a formação de um leitor mais preparado para ler e compreender os filmes cujos roteiros se nutrem de várias obras oriundas da cultura universal. Jovens do ensino fundamental e médio foram entrevistados para que se pudessem colher exemplos de significações atribuídas a signos extraídos de contextos literários às vezes não identificados por eles. Verificou-se, durante a exibição dos filmes nas escolas (pois eram comuns comentários e perguntas) e a partir da leitura das respostas dos alunos, que a fruição estética nem sempre fica totalmente comprometida pela não identificação dos elementos intertextuais, mas a leitura coerente às vezes sim, já que o significado de um signo usado intertextualmente encontra-se em uma espécie de dicionário imaterial que pode não estar disponível na consciência do receptor. O pacto intertextual proposto pelo cinema dialógico requer a assinatura de um indivíduo que não seja apenas espectador, pois este, como o próprio sentido dicionarizado da palavra esclarece, apenas assiste. Esse contrato de leitura só pode ser assinado pelo leitor em condições de atuar como co-autor, ou seja, aquele que recorre às várias ramificações dos rizomas construídos pelos autores tecendo assim uma nova rede de significações. O beijo que Trinity dá em Neo, quando ele é morto pelo agente Smith, tem o mesmo poder do beijo que o Príncipe Encantado dá em Branca de Neve ou na Bela Adormecida. O beijo da amada ressuscita o herói para que ele possa continuar a sua saga. Não foram poucos os alunos que, durante essa cena, comentavam: “hum! Olha a branca de neve”. Nesse caso, o inverossímil torna-se perfeitamente plausível diante da conexão intertextual. Na matrix, Neo possui poderes sobre-humanos, mas no mundo real é tão vulnerável quanto qualquer pessoa, por isso sucumbiria aos tiros que levou. Sua sobrevivência seria incoerente mesmo em um filme cujo argumento está longe de 87 qualquer abordagem realista. O beijo de Trinity é o hipertexto que leva o leitor a admitir o improvável. O cinema foi abordado, nesta pesquisa, além do entretenimento proporcionado pelas salas de exibição e do mero objeto de consumo. O espectador como leitor e coautor foi estudado como um indivíduo que deve ser capaz de enxergar além das imagens ou dos efeitos especiais que encobrem, muitas vezes, uma série de significações que podem ser elaboradas pelos que tiveram acesso a uma formação cultural ampla. Não importa se, em Matrix, Neo é identificado com Jesus, Alice ou Galaaz, ou se estar como “Alice na toca do coelho” significa “confuso”, “perdido” ou “curioso” conforme as repostas dadas às perguntas do primeiro item do questionário sobre o filme. O importante é que o leitor de fato tenha condições de formular hipóteses e testá-las no contexto da obra. Nesse sentido, estudou-se o cinema intertextual como um aliado da educação, por ser uma arte naturalmente polifônica e dialógica, num mundo cada dia mais intertextual em sua produção cultural e que requer do leitor o preenchimento de lacunas, a construção de novos significados, ou seja, a atuação de fato como co-autor. Viu-se na análise de filmes como Dom, que uma leitura monológica pode implicar a imposição de uma significação inteiramente denotativa para uma obra repleta de significações conotativas. A internet tem contribuído para a redução das fronteiras entre o popular o erudito, além de dispor de um acervo enorme tanto de obras da literatura quanto do cinema, mas mesmo no ciberespaço é necessário que o indivíduo tenha em seu repertório um mínimo de informação para que saiba até mesmo por onde iniciar uma busca. A escola foi apontada como a instituição que deveria assumir o papel de formadora desse novo tipo de leitor. Esta dissertação argumentou que o cinema intertextual pode ser um instrumento útil nesse processo, devido às múltiplas leituras que o receptor dever fazer para fruí-lo em sua plenitude, utilizando hipertextos contidos em sua memória ou fazendo uso dos recursos disponíveis nos menus interativos. O que a pesquisa aponta como falha da maioria das instituições de ensino é o fato de a leitura de obras consideradas clássicas, que nutrem de signos grande parte da produção 88 contemporânea, estar sendo ignorada. Essas leituras, mesmo que no âmbito das adaptações infanto-juvenis ou por meio de versões cinematográficas, podem contribuir para a construção de um acervo semiótico do qual pode se nutrir o leitor durante a recepção do cinema intertextual. Certamente, a recepção, fruição e significação de uma peça fílmica intertextual podem ficar comprometidas também por uma série de fatores que não os referidos aqui, como a dificuldade em ler legendas, a subversão da ordem cronológica da narrativa, dentre outros elementos constituintes da linguagem cinematográfica. O intertexto seria, pois, mais um desses elementos constituintes que necessitam de atenção por parte dos que não desejam enxergar o cinema apenas como um objeto de lazer. No livro Literatura e Cinema, Glória Maria Palma argumenta que: A nova concepção de leitor e leitura exige uma postura metodológica interdisciplinar, uma interação efetiva das várias modalidades discursivas e a incorporação das novas tecnologias. Este é um desafio a ser vencido, uma vez que as preocupações ainda se limitam ao campo teórico e na prática a distância entre a cultura erudita e a cultura de massa aumenta. Entre as várias propostas para aumentar e dinamizar as competências do leitor, oferecendolhe condições mais reflexivas de seleção, aprofundamento e integração de linguagens, destaca-se o dialogismo entre literatura e cinema (PALMA, 2004, p. 9). O trecho acima endossa o principal motivo das discussões aqui trazidas e colabora para reforçar a ideia de que, por mais que um filme seja lido por pessoas de idades, classes sociais e formações diferentes, mesmo que nem toda a rede de signos seja plenamente interpretada, e dificilmente o é; quanto maior o número de pessoas capazes de leituras interdiscursivas, maiores as condições de perpetuação das obras que inspiraram essas leituras, maior a possibilidade de se pensar numa sociedade na qual a literatura esteja de fato acessível a todos. Acesso esse que deve transcender os limites do consumo rápido favorecendo uma relação mais crítica e reflexiva com o objeto cinematográfico. O brado de Abel Gance, em 1927, citado por Walter Benjamin, parece uma profecia, pois afinal, Shakespeare, Rembrandt, Beethoven fazem cinema.44 Ao contrário 44 Walter Benjamin: “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, (Abril: São Paulo, p. 14). 89 do que temia o filósofo alemão, a sétima arte não representa a “liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural”, mas pode contribuir para mantê-lo vivo. 90 7- BIBLIOGRAFIA BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Vieira São Paulo: Hucitec, 1981.______. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1973. BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1999. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trd. Sérgio P. Rouanet. 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EUA, 2001. Shrek 2. Roteiro de Harry Gregson-Williams e John Powel. Dir. Andrew Adamson Vick. EUA, 2004. 93 APÊNDICE A – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE MATRIX APLICADO AOS ALUNOS DO INSTITUTO FEDERAL FLUMINENSE EM 18/06/2009.45 Nome:_________________________________________________________________ Instituição:_____________________________________________________________ Data:__________________________________________________________________ e-mail:_________________________________________________________________ 1- O que Morpheus quer dizer quando afirma que Neo está como Alice na toca do coelho? 2- Os nomes dos personagens Oráculo e Morpheus significam alguma coisa para você? Explique. 3- Os nomes a que se refere a questão 2 tem alguma importância na construção da trama do filme? Explique? 4- Você associa a trajetória de Neo a de algum outro personagem do cinema, da literatura ou da história? Se a resposta for sim, diga qual ou quais são esses personagens e as semelhanças com o herói do filme. 5- Há elementos em Matrix que você já tenha visto em outros filmes ou livros? Se a resposta for sim, diga se essas informações contribuíram para que você compreendesse melhor o filme ou partes dele; e como contribuíra. 6- Há várias citações a livros e filmes em Matrix. Você reconhece a origem dessas citações? Esse reconhecimento aumentou seu interesse pelo filme? 7- Você gostou de “Matrix”? Justifique. 45 Da página 96 a 102, encontram-se cópias de alguns originais dos questionários aplicados nas escolas. 94 APÊNDICE B – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE DOM APLICADO AOS ALUNOS DO COLÉGIO ALPHA VESTIBULARES EM 16/09/2009. Nome:___________________________Turma:_________ Instituição:_______________________Data:___________ e-mail:__________________________________________ 1-Você leu o romance Dom Casmurro? (Se a resposta for sim, explique o que o levou a ler o referido livro.) 2- O que os apelidos dos personagens de Marcos Palmeira e Maria Fernanda Cândido (Bento e Capitu) representam para você? 3- Por que Bento afirma que Ana tem “olhos de ressaca”? 4- Por que a dúvida e o ciúme perturbam tanto o personagem “Bento”? Que relação isso tem com o nome do personagem? 5- O pai de Dom o batiza com esse nome em homenagem ao personagem de Machado de Assis. Dom tem uma atitude semelhante na escolha do nome de seu filho. A quem o personagem homenageia? 6- O fato de ter assistido ao filme Dom aumentou ou despertou seu interesse pela leitura de Dom Casmurro? Por que? 7- Você gostou do filme “Dom”? Justifique. 95 APÊNDICE C – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE SHREK APLICADO AOS ALUNOS DA ESCOLA MUNICIPAL CARLOS CHAGAS EM 29/03/2010. 1-Para você, o que significa o nariz do boneco Pinóquio crescendo quando ele tenta salvar Shrek e o Burro? 2- Você relaciona a história de Shrek com outras que você conhece? Quais? 3- Você sabe por que o nome da taverna da Irmã feia chama-se Maçã Envenenada? Explique. 4- Por que as crianças João e Maria entram na festa do castelo jogando migalhas de pão no chão? Isso tem alguma coisa a ver com a história de Shrek e Fiona? Explique. 6- Você gostou do desenho Shrek? Por quê? 7- Você conheceu a história de Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e da Bela Adormecida por meio de leitura ou de filmes? 8- Em que outras histórias aparecem os personagens Príncipe Encantado, Fada Madrinha e Gato de Botas? 96 97 98 99 100 101 102 103 ANEXOS – CÓPIAS DAS PÁGINAS DO SITE DE RELACIONAMENTO ORKUT, ONDE INTERNAUTAS COMENTAM QUESTÕES RELATIVAS A LIVROS RELACIONADOS A MATRIX.46 46 As páginas foram impressas diretamente do site, depois foram escaneadas, a isso se deve a má qualidade da imagem. 104 105 106