a recepção do cinema intertextual e a formação do leitor

Transcrição

a recepção do cinema intertextual e a formação do leitor
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE
A RECEPÇÃO DO CINEMA INTERTEXTUAL E A FORMAÇÃO DO
LEITOR
ADRIANO CARLOS MOURA
Dissertação apresentada ao Mestrado de
Cognição e Linguagem da Universidade
Estadual do Norte Fluminense – UENF,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre.
ORIENTADOR: Profª Drª ANALICE DE OLIVEIRA MARTINS
CAMPOS DOS GOYTACAZES
2010
A RECEPÇÃO DO CINEMA INTERTEXTUAL E A FORMAÇÃO DO
LEITOR
ADRIANO CARLOS MOURA
Dissertação apresentada ao Centro de
Ciências do Homem, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em
Cognição e Linguagem, na linha de
pesquisa: Pesquisas Interdisciplinares em
Ciências Humanas, Artes e Filosofia.
______________________________ em 1 de dezembro de 2010.
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________
Profª Drª Maria Cristina dos Santos Peixoto
UENF
_____________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Arruda de Moura
UENF
_____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause
UERJ
_____________________________________________
Profª Drª Analice de Oliveira Martins
ORIENTADORA
Agradecimentos
A Profª Drª Analice de Oliveira Martins, minha orientadora, pela dedicação, paciência,
indicação de leituras e pela disponibilidade sempre incondicional.
Ao Prof. Dr. Sérgio Arruda e a Profª Drª Maria Cristina dos Santos Peixoto pela
pertinência dos comentários e sugestões na defesa do meu projeto.
Ao Prf. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause pela gentileza em participar da banca de
defesa.
Ao corpo docente do Mestrado em Cognição e Linguagem.
Aos alunos do Colégio Alpha Vestibulares, Cefa/objetivo, do Instituto Federal
Fluminense e da E.M. Carlos Chagas pela contribuição assistindo aos filmes e
participando das discussões sobre os mesmos.
Resumo
Esta dissertação é o resultado de uma pesquisa que se voltou para o estudo das relações
entre literatura e cinema e para as formas de recepção da narrativa fílmica intertextual.
A realização dessa tarefa fez-se a partir de uma análise do intertexto presente nos filmes
Matrix (1999), Shrek (2001) e Dom (2003), escolhidos como corpus básico, e do estudo
bibliográfico de autores que teorizaram sobre o intertexto, o cinema e a estética da
recepção. O objetivo do trabalho é colaborar com as discussões sobre a formação de um
novo tipo de leitor: o que transita num mundo onde a intertextualidade se faz presente
na maioria das produções artísticas. Inicialmente, foi apresentado um estudo do
intertexto amparado no conceito de dialogismo preconizado pelo filósofo Mikhail
Bakhtin e no de intertextualidade introduzido pela crítica francesa Julia Kristeva. Em
seguida, apresentou-se uma análise dos signos que compõem as obras em questão e das
significações que o espectador pode atribuir às referências literárias presentes nos
roteiros, quando não dispõe de informações acerca da origem de tais referências,
destacando o papel das instituições de ensino na formação do leitor.
Palavras-chave: Cinema, literatura, dialogismo, intertextualidade, estética da recepção.
Abstract
This dissertation is the result of a search that turned to the study of relations between
literature and cinema and receipt of forms of intertextual cinematic narrative.
Accomplishing this task was made from an analysis of this intertext in the Matrix films
(1999), Shrek (2001) and Dom (2003), chosen as basic corpus, and the bibliographical
study of the authors that theorized about the intertext, cinema and aesthetics of
reception. The objective is to collaborate with the discussions on the formation of a new
type of reader: what goes in a world where intertextuality is present in most artistic
productions. Initially, we presented a study of intertextual dialogism supported by the
concept advocated by the philosopher Mikhail Bakhtin and intertextuality introduced by
Julia Kristeva French criticism. Then it presented an analysis of signs that make up the
works in question and the meanings that the viewer may attribute to the literary
references found in the scripts when it has no information about the origin of such
references, highlighting the role of institutions of teaching in the reader.
Key words: Cinema, literature, dialogism, intertextuality, reader-response criticism.
SUMÁRIO
1-INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
2- INTERTEXTUALIDADE, LITERATURA E CINEMA ..........................................14
2.1- Matrix: um clássico contemporâneo.......................................................................18
2.2- Shrek e a carnavalização bakhtiniana ....................................................................25
2.3- Dom: Machado adaptado ou parafraseado...............................................................33
3-CINEMA INTERTEXTUAL E LEITURA HIPERTEXTUAL...............................38
3.1-O termo......................................................................................................................39
3.2-Hipertexto e rizoma.................................................................................................40
3.3-O leitor......................................................................................................................44
3.4-O título: intertexto e hipertexto.................................................................................46
4-O LEITOR-ESPECTADOR: CO-AUTOR.................................................................52
5-SENTIDO, SIGNIFICADO, SIGNIFICAÇÃO..........................................................72
6-CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................86
7-BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................90
8-FILMOGRAFIA...........................................................................................................92
9-APÊNDICES................................................................................................................93
10-ANEXOS..................................................................................................................103
As artes não se repelem, mas se completam; literatura e
cinema podem aproximar-se na fruição, no estudo e na
pesquisa, principalmente, quando se trata de despertar ou
aprimorar a sensibilidade estética e as dimensões da
leitura.
Glória Maria Palma, Literatura e cinema
9
I-INTRODUÇÃO
Desde sua criação, no final do século XIX1, o cinema tem sido um dos principais
meios de se contar histórias, e sempre estabeleceu uma relação bastante estreita com a
literatura. Clássicos como o romance de terror Drácula, do escritor inglês Bram
Stocker, já receberam várias versões para a tela. Lançado em 1922, sob o título de
Nosferatu, o filme do diretor alemão F.W.Murnau é uma das primeiras adaptações de
obras literárias de reconhecimento universal para o cinema. Apesar disso a película não
adotou o título da obra original, pois os direitos autorais não foram liberados pela
família do autor. Por isso, Murnau foi obrigado a realizar também várias alterações na
história, transformando seu Nosferatu numa paródia de Drácula. A relação entre cinema
e literatura, porém, não se limitou ao território das adaptações. Alguns filmes passaram
a utilizar personagens, situações e fragmentos de obras literárias que se articulam na
tessitura de um roteiro - que dialoga com elementos extrínsecos à unidade do texto -,
colaborando para sua composição. É o que ocorre em filmes como Matrix (1999) dos
irmãos Andy e Larry Wachowski. Trata-se do recurso da intertextualidade, palavra
cunhada e definida pela pesquisadora francesa Julia Kristeva.
Ela cria esse termo a partir dos conceitos de dialogismo e polifonia do filósofo
russo Mikhail Bakhtin, surgidos dos estudos feitos das obras do escritor Fiódor
Dostoiévski. Para Bakhtin, Dostoiévski cria, utilizando materiais diferentes, uma obra
de arte una e integral, na qual o romance, a cena de rua, o grotesco, a anedota, a paródia,
o sagrado e o profano se articulam. Por meio da fusão de todos esses fragmentos que
vão das narrativas vulgares a livros de inspiração divina, Dostoiévski compõe a unidade
de seus romances imprimindo seu estilo pessoal.
Antes, porém, de dar prosseguimento à tarefa de definir intertextualidade, faz-se
necessária a definição do que será considerado texto ao longo deste trabalho. De um
lado, há o texto meramente verbal, o que se vale da palavra (escrita ou falada) como
signo; de outro, o cinematográfico, que se nutre de vários signos para sua composição.
O filósofo Pierre Lévy elabora uma definição com a amplitude que satisfaz as
1
Em dezembro de 1895, num café parisiense, foram projetados os primeiros filmes.
10
necessidades conceituais aqui presentes. Em sua obra O que é o virtual? (1996), ele
define texto também como tipos de mensagens que vão além da forma alfabética:
“ideogramas, diagramas, mapas, esquemas, simulações, mensagens iconográficas ou
fílmicas. Deve-se entender texto no sentido mais geral: discurso elaborado ou propósito
deliberado”(LÉVY, 1996, p.37).
Bakhtin instituiu o conceito de romance polifônico, aplicando-o a obras como
Os irmãos Karamazov e Crime e Castigo, do escritor russo. Os personagens
dostoievskianos não se submetem de forma passiva à autoridade de um narrador e
entram em contato com outras vozes se apropriando de seus discursos. É a partir desse
dialogismo que Kristeva introduziu o conceito de intertextualidade ao afirmar que “todo
texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção e transformação de
um outro(...)”(KRISTEVA, 2005, p.68).
Inicialmente será feito um breve estudo sobre a linguagem cinematográfica e sua
evolução até chegar ao que se chamará cinema intertextual. Em seguida, serão
analisados os procedimentos intertextuais presentes nos filmes Dom (2003), de Moacyr
Góes; Matrix, de Andy e Larry Wachowski; e Shrek (2001), de Andrew Adamson e Joel
Stillman. Finalmente, a reflexão será conduzida para as maneiras como o espectador
contemporâneo pode ler e interpretar as referências literárias presentes nos filmes, e
como estes podem contribuir para sua formação de leitor.
As três obras escolhidas possuem roteiros inteiramente construídos em matrizes
intertextuais. Dom faz uso de um tipo de intertextualidade explícita, que existe quando
“no próprio texto, é feita menção à fonte do intertexto”(KOCH, 2007, p.28).
Considerado por parte do público como uma adaptação do romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis, o filme faz paráfrases, citações e alusões ao romance. Nele, o
personagem Dom, apelidado de Bento, recebe esse nome como uma homenagem
prestada pelo pai ao casmurro personagem do “Bruxo do Cosme Velho”. Depois de
anos, reencontra, numa produtora de videoclipes, uma namorada de infância chamada
Ana e reata com ela o antigo namoro. O reencontro é promovido por Miguel – amigo de
Bento – por quem Ana nutre grande amizade. Com o tempo, Bento passa a se comportar
como “Bentinho”, alimentando um amor obsessivo beirando a loucura, o que destrói sua
relação com Ana. Ao se comportar como o personagem do romance, Bento não herda
apenas sua psique, mas também seu discurso. Quando se lembra da infância, o que vem
11
à sua memória é o texto de Dom Casmurro, livro lido por ele inúmeras vezes. Os “olhos
de ressaca” de Capitu passam também a definir os de Ana num diálogo parafrásico.
Matrix, produção americana de grande repercussão junto ao público e que
revolucionou o gênero de ficção científica, possui um roteiro inteiramente construído a
partir de matrizes intertextuais. Literatura infantil, novela de cavalaria, filosofia,
epopeias clássicas e narrativas bíblicas compõem um universo de citações, alusões,
paráfrases e paródias para contar a história de Neo, um hacker que descobre que a vida
inteira viveu num mundo que não passava de uma simulação de computador e que ele é
a única esperança de salvação da humanidade do domínio das máquinas. Por trás de
todo um aparato futurista e tecnológico, Matrix se constrói a partir de arquétipos dos
heróis de novelas medievais, como as narrativas conhecidas como A demanda do Santo
Graal2, de questões filosóficas como os conceitos de real, simulacro e simulação,
propostos pelo filósofo Jean Baudrillard, de episódios bíblicos e de outros extraídos de
histórias infantis, além de construir imagens-signo que fazem parte da maioria dos
filmes de ficção científica pós-Matrix, como as lutas aéreas, por exemplo, parodiadas
em Shrek.
Este último é um desenho animado da produtora DreamWorks. Constrói-se a
partir do que Bakhtin classificou como carnavalização. Nessa obra, os heróis dos
antigos contos infantis são parodiados, às vezes ridicularizados e travestidos. Os
personagens das histórias infantis são expulsos do mundo do faz de conta e se refugiam
no pântano do ogro Shrek, que, acompanhado do Burro Falante, precisa resgatar a
princesa Fiona para que os visitantes indesejáveis deixem suas terras. 3
As construções intertextuais dos três filmes e as problemáticas por elas
levantadas serão abordadas mais adiante. É necessário ressaltar que as referidas obras
servirão de base para o estudo, mas que outras serão utilizadas como complemento para
as reflexões. É o que ocorrerá com o filme Babel (2006), por meio do qual será feito um
estudo sobre a leitura hipertextual4.
2
Há muitas versões de A Demanda do Santo Graal. Para esta pesquisa foi escolhida a de Heitor Megale,
publicada pela Companhia das Letras.
3
Shrek teve outras três continuações, mas apenas a segunda servirá de complemento para a pesquisa.
4
O capítulo III trata especificamente do hipertexto. A escolha de Babel se deve ao fato de o hipertexto se
apresentar, nesse filme, sob várias tipologias, facilitando a definição do conceito.
12
A proposta deste trabalho, todavia, não é se limitar a uma análise estruturalista,
pois surgiu da necessidade de se pensar como uma sociedade que a cada dia se distancia
da leitura de obras consideradas universais se relaciona com filmes que constantemente
dialogam com essas obras. Este texto tem como objetivo principal estudar não apenas o
diálogo intertextual entre literatura e cinema na composição do filme, mas também
como esse diálogo é recebido, principalmente pelo público jovem, escolhido para a
pesquisa de campo, realizada no IFF (Instituo Federal Fluminense), Colégio Alpha
Vestibulares, E.M. Carlos Chagas e Colégio Cefa Objetivo. A presente dissertação
busca fazer uma reflexão sobre a recepção do cinema intertextual e sua contribuição
para formação do leitor-espectador. Muito já se discutiu acerca de autores e suas
produções, ficando o leitor relegado ao papel de mero receptor, apesar de ser ele o
responsável pela perpetuação das obras por meio da leitura.
Toda produção artística possui significados que são construídos numa dupla
relação: 1) o sugerido pelo autor; 2) o atribuído pelo leitor. Por isso, é no momento da
leitura que a significação se realiza. Falar das relações que o leitor-espectador é capaz
de estabelecer com uma obra convoca um aporte teórico dos pesquisadores da Escola de
Konstanz: a estética da recepção, corrente crítica surgida na Alemanha nos anos 70, que
destaca o papel do leitor no momento da construção de sentido de um texto.
Hans Robert Jauss, um dos principais teóricos dessa corrente, entende a arte
como uma “atividade produtora, receptiva e comunicativa” (JAUSS, 1979, p. 67). O
pesquisador alemão ressalta, em seu ensaio A estética da recepção: colocações gerais, a
importância da experiência estética e sua manifestação ao longo da história da arte. De
acordo com seu pensamento, devem ser levadas em consideração as diferentes
interpretações atribuídas a um texto por leitores de tempos históricos diferentes. Pensar
a recepção de uma obra é pensá-la não levando em conta, como determinantes, apenas
as condições sócio-históricas em que foi produzida, mas também as condições em que é
lida.
Como metodologia de trabalho, foi feito inicialmente um estudo dos
procedimentos intertextuais presentes nos filmes. Esse estudo teve como aporte teórico
básico os estudos de Mikhail Bakhtin sobre a linguagem; os de Hans Robert Jauss e
Wolfgang Iser, sobre a estética da recepção; e os de Christian Metz, sobre a linguagem
do cinema. Fez-se também uma pesquisa de campo com grupos de jovens aos quais
13
foram aplicados questionários abertos. Os grupos foram formados por alunos do ensino
fundamental e médio que assistiram aos filmes e, depois, responderam às questões.
As respostas dos questionários são utilizadas como exemplificação e sustentação
para algumas conclusões resultantes ora da pesquisa de campo, ora da revisão
bibliográfica.
Glória Maria Palma, doutora em Literatura Portuguesa e coordenadora do grupo
de pesquisa “Literatura e Cinema” na USC (Universidade de Santa Catarina), no livro
Literatura e cinema, ressalta a importância de se pensar numa nova concepção e
formação de leitor: aquele que se move num universo de diferentes mídias e linguagens,
que se depara com um cinema cada vez mais dialógico. Abordar o tema da
intertextualidade partiu da percepção de que se trata de uma questão importante para o
processo de leitura e compreensão da produção cinematográfica contemporânea. É
também pertinente destacar o fato de que a leitura de obras clássicas tem sido ignorada
na maioria das escolas. O desprovimento de informações importantes sobre essas obras
e suas influências na cultura pode limitar a compreensão de produções que exijam mais
do que a vivência pessoal do leitor. O aluno das escolas públicas, principalmente, é o
que mais sofre os danos dessa deficiência. Não pensar essas questões significa
contribuir para uma sociedade excludente, inclusive intelectualmente; fazendo com que
a compreensão e a fruição ampla de algumas obras sejam privilégio apenas de uma
minoria letrada, relegando a maioria apenas ao entretenimento superficial.
14
2- INTERTEXTUALIDADE: LITERATURA E CINEMA
O primeiro filme exibido publicamente foi Um trem chegando à estação (1895),
na cidade de Paris, em 28 de novembro. Tratava-se apenas da reprodução fiel de um
acontecimento real. Não se podia falar ainda do cinema enquanto linguagem artística,
mas como tecnologia. Para o pesquisador Jean Claude Bernadet, o cinema só passa a
evoluir como linguagem quando abandona a função de apenas documentar a realidade e
se assume como herdeiro dos folhetins do século XIX, passando a ser um instrumento
para se contar histórias, o que ocorrerá em 1915. Um dos marcos dessa transição é o
filme Nascimento de uma nação (1915), do diretor americano D.W.Griffith.
Até 1927 os filmes eram mudos, quando então foi produzido o primeiro filme
sonoro: O cantor de Jazz, de Alan Crosland. Outras experiências já haviam sido
realizadas antes, como a utilização de músicos executando canções ao vivo e atores
fazendo dublagens atrás de cortinas. No entanto o filme de Crosland é o precursor da
sincronização entre o som mecânico e a imagem. A partir daí, foram muitas as
inovações que fizeram do cinema uma arte como todas as demais: em constante
mudança.
Nos anos 20 e 30, na Alemanha, surgem as primeiras experiências com o
expressionismo, linguagem na qual a realidade exterior ganha relevância, porém
exagerada até a deformação, como ocorre em Nosferatu. É o cinema – influenciado
pelos movimentos de vanguarda – tentando fugir das estruturas narrativas
convencionais. Um exemplo clássico é Um cão andaluz (1928), parceria entre o diretor
Luis Buñuel e o artista plástico Salvador Dali, ambos ícones do movimento surrealista,
que preconizava a livre associação de imagens do inconsciente sem preocupação com
uma sequência lógica de fatos e ideias. Depois de 1945, inúmeras revoluções
continuaram a ocorrer. Questões existenciais – rompendo com a linearidade e o modelo
burguês de comportamento – viram um marco da nouvelle vague, na França. O
neorrealismo italiano aponta para um cinema mais politizado e que, na maioria das
vezes, dispensava o uso de cenários e atores profissionais. Tanto o movimento francês
quanto o italiano exerceram grande influência no que, no Brasil, ficou conhecido como
cinema novo, com filmes como Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos.
15
Com esses movimentos o cinema deixa de apenas contar histórias e se
transforma
também
num
instrumento
de
reflexão
sobre
política,
religião,
comportamento e sobre a própria linguagem.
Não se pode falar em intertextualidade – eixo temático do trabalho – como um
movimento estético tal quais os citados acima, mas como uma tendência da cultura
contemporânea5, apesar de os primeiros estudos sobre o assunto terem sido originados
das pesquisas de Bakhtin sobre um autor do século XIX. Ele classifica o “princípio
composicional de Dostoiévski” como a “unificação das matérias mais heterogêneas e
mais incompatíveis” (BAKHTIN, 2008, p. 17). Isto unido “a multiplicidade de centrosconsciência não-reduzidos a um denominador ideológico” conduz à chave dos romances
do escritor russo: a polifonia. O discurso do herói não se submete à voz de um narrador
centralizador, mas dialoga constantemente com outras vozes, muitas, inclusive,
extrínsecas à própria trama.
Para Bakhtin, Dostoiévski cria:
De materiais heterovalentes e profundamente estranhos uma obra de arte una
e integral. Eis porque o livro de Jó, as Revelações de São João, os Textos
Evangélicos, a Palavra de São Simeão, Novo Teólogo, tudo que alimenta as
páginas dos seus romances e dá o tom de diversos capítulos combina-se de
maneira original com o jornal, a anedota, a paródia, a cena de rua, o grotesco
e inclusive o panfleto (BAKHTIN, 2008, p. 14).
Música, teatro, literatura, cinema; em todas as manifestações da linguagem é
possível perceber o intertexto não apenas como resultado inconsciente da influência de
obras da cultura universal, mas como um consciente procedimento de composição
artística, no qual, como em Dostoiévski, o diálogo entre vozes diferentes, mas
plenivalentes, confere às obras o status de polifônicas.
Mas, se todo texto é um mosaico de citações, pode-se dizer que toda obra é
intertextual? Kristeva chama de intertextualidade o que Bakhtin classificou como
dialogismo. Na concepção da pesquisadora, a relação entre os diferentes discursos se dá
apenas no plano linguístico, meramente verbal. O que Bakhtin propõe como diálogo,
não se dá apenas no plano linguístico, mas também em relação ao contexto histórico e
5
O intertexto como método de composição na cultura do pós-modernismo será estudado com mais
aprofundamento no capítulo 4.
16
ideológico vivido por seus personagens. Quem contesta a teoria de Kristeva é Paulo
Bezerra, no prefácio do livro Problemas da poética de Dostoiévski. Ele afirma que
Kristeva “substitui palavra por texto e o dialogismo por intertextualidade”; enquanto
que a base do dialogismo bakhtiniano é o discurso em interação com outros discursos,
acrescentando ainda que, segundo o filósofo russo, toda linguagem humana está
impregnada de relações dialógicas que não pertencem a um campo meramente
linguístico.
Divergências entre Bezerra e Kristeva não são o foco da discussão, por isso a
reflexão não se aprofundará nos aspectos em que ambos discordam; mas vale ressaltar
que – sob a perspectiva de Kristeva – toda obra intertextual é também dialógica, mas
nem sempre o contrário se dará. Por isso, deve-se fazer uma ressalva à generalização do
seu conceito. Partindo da noção de Bakhtin, todo texto é dialógico, pois o discurso
literário está sempre em contato com outros discursos literários ou não; porém nem todo
texto literário é a absorção e transformação de um outro texto no plano meramente
linguístico e nem sempre a escrita se compõe como “mosaico de citações”. O
dialogismo bakhtiniano não se limita ao plano linguístico, estende-se ao social e ao
histórico, daí a definição de Kristeva parecer generalizante demais ou incompleta.
Ao analisar o comportamento dos personagens de Dostoiévski, Bakhtin percebeu
que os discursos que proferiam tinham origem no discurso de um outro. Mas nenhum
deles coloca o intertexto como um processo de criação consciente; e tanto o pensamento
de Bakhtin como o de Kristeva não contemplam o texto veiculado por meio da imagem
ou do som, o que obriga qualquer pesquisador a fazer as devidas adaptações.
Os textos que serão analisados aqui como “mosaico de citações” são o cinema
intertextual, filmes cujos principais procedimentos de construção narrativa são a
paródia, a paráfrase, a alusão e a citação. Por motivos de delimitação do tema, os
diálogos estudados com maior aprofundamento serão os estabelecidos com obras
literárias.
Conforme já foi afirmado na introdução, desde sua origem o cinema vem
adaptando obras literárias para as telas. Ilíada, de Homero, foi transformada num épico
cinematográfico com o título de Tróia (2004). Mas o que se tem neste caso é uma
transposição de linguagens. O que era literatura virou cinema, mas se contou a mesma
história, com as devidas alterações para atender a necessidades específicas da linguagem
cinematográfica e aos interesses da produção. Porém, caso Matrix seja tomado como
17
exemplo, será notado que não se trata apenas de mera adaptação de uma obra literária6,
mas de um filme que faz alusões, citações, paródias e paráfrases a diversas obras da
literatura, da filosofia e do próprio cinema.
A professora e pesquisadora Ingedore Koch afirma que a intertextualidade
ocorre “quando, em um texto, está inserido outro texto anteriormente produzido, que faz
parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva dos
interlocutores”(KOCH, 2007, p.17). O intertexto geralmente parte de obras
consideradas do conhecimento da maioria das pessoas, o que é possível perceber nos
filmes que se valem desse recurso.
Ao dialogar com textos literários, o filme pode também converter palavra em
imagem. Como ocorre numa cena de Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore,
quando a mãe do personagem Totó o espera tecendo um cachecol. O filho se encontra
há vinte anos longe de sua terra natal – o mesmo tempo que Ulisses, na Odisséia, de
Homero, leva para retornar à sua casa em Ítaca depois de ter partido para a guerra de
Tróia. Numa cena metalinguística, alguns personagens assistem a uma adaptação da
epopeia grega num cinema ao ar livre. Portanto, a intenção dialógica é clara. Quando
Totó chega à casa materna, sua mãe abandona o tricô numa cadeira, o fio fica preso à
roupa dela, e a peça se desfaz enquanto se afasta. Em primeiro plano, a câmera
prolonga-se nesse foco. Obviamente, só perceberia a intenção dialógica do diretor os
que fizessem associação com a narrativa de Homero. Os que não percebessem,
certamente, atribuiriam algum outro sentido à cena ou simplesmente enxergariam um
cachecol se desfazendo, mais nada.
No entanto – levando em conta a conceituação de Koch – para que o intertexto
se realize de fato no plano da produção, faz-se necessária também sua realização no
plano da leitura. Para que o diálogo proposto por Bakhtin se consume, o leitor necessita
participar com seu repertório. Segundo o filósofo, o diálogo só é possível com a
participação ativa do leitor, caso contrário, instaura-se o monologismo. Portanto,
mesmo o cinema intertextual pode ser inteiramente monológico, caso o leitor não seja
capaz de juntar as peças do mosaico e colaborar na construção de sentido da obra, o que
exigirá dele a memória discursiva de que fala Koch.
6
Alguns leitores consideram o filme uma adaptação da novela cyberpunk Neoromancer de William
Gibson. De fato há no filme muitas semelhanças com a narrativa, mas não suficientes para configurá-lo
como uma adaptação.
18
Quem reforça essa assertiva é Wilton Garcia em seu livro Introdução ao cinema
intertextual de Peter Greenaway quando afirma que “a intertextualidade é uma infinita
troca de sentidos entre a obra e os espectadores”(GARC IA, 2000, p.31).
Essas ideias fazem com que se tenha de pensar o cinema intertextual não apenas
na sua matriz criativa, mas também receptiva. É o que será feito a seguir por meio dos
filmes Matrix, Shrek e Dom.
2.1 - Matrix: um clássico contemporâneo
Matrix, produção americana dirigida pelos irmãos Andy e Larry Wachovski,
conta a história de Neo, funcionário de uma empresa de telecomunicações e hacker
procurado pela polícia. Sua vida muda quando recebe uma mensagem pela internet,
avisando que ele corre perigo, e quando descobre que o mundo onde vive não passa de
uma simulação de computador. A terra havia sido destruída pelo homem e dominada
pelas máquinas que escravizaram a humanidade. Os seres humanos não nasciam mais,
eram cultivados em grandes cápsulas onde ficavam adormecidos enquanto as máquinas
se nutriam de suas energias, pois o céu estava coberto por uma nuvem espessa que
impedia a luz solar – principal fonte de energia das máquinas – de chegar a terra.
Enquanto dormiam, os humanos viviam uma realidade criada pela inteligência artificial.
O ano é de 2099, mas no mundo simulado é de1999 num planeta ainda habitável. Porém
um grupo de humanos liderado por Morpheus7 consegue se libertar e inicia uma jornada
em busca do “escolhido” capaz de derrotar as máquinas e acordar as pessoas ainda
adormecidas e escravizadas.
Para contar essa história, o roteiro de Matrix é totalmente construído sobre
matrizes intertextuais. Serão analisadas a seguir várias dessas matrizes, a começar pelo
diálogo com as narrativas épicas e bíblicas.
Para Palma:
A possibilidade de que Matrix comporte uma leitura interdiscursiva , como já
se afirmou, torna-se indubitável ao se tomar como paradigma de comparação
o legado da prosa do período trovadoresco. Algumas matrizes da épica
medieval, principalmente da novela de cavalaria do ciclo arturiano,
7
Personagem que comanda o grupo de “rebeldes” humanos. Pode ser associado à figura de João Batista,
cuja vida encontra-se no Evangelho de Lucas; ou a Lancelote, da Demanda do Santo Graal. Ambos tidos
como profetas ou precursores de um “escolhido” ou messias.
19
destacando-se aí A demanda do santo Graal, aparecem com insistência no
filme. Elementos narrativos e temáticos da demanda repetem-se em Matrix,
ambos inscrevem-se dentro de uma visão épica da existência, motivada pela
presença de um herói libertador que dá impulso ao percurso de purificação e
redenção da humanidade (PALMA, 2004, p. 21).
Neo se assemelha ao personagem Gallaaz – herói da Demanda – que chega à
Bretanha no momento em que a Besta Ladradora espalha o medo e o terror. Os
cavaleiros da távola redonda aguardam aquele que os conduziria ao Santo Graal, cálice
sagrado usado na última ceia e onde José de Arimateia recolheu o sangue de Jesus na
cruz. Encontrar o Graal e matar a Besta é a função do herói. Quando Gallaaz se
apresenta aos cavaleiros liderados por Lancelot, é submetido a uma série de testes para
provar sua origem divina, o que ocorre quando ele consegue retirar a espada do Rei
Artur de uma pedra, tarefa que só seria cumprida pelo predestinado. No filme, Neo
também é considerado um escolhido, mas precisa se submeter a testes aplicados por
Morpheus, a quem derrota durante a simulação de uma luta. Salvar a Bretanha em solos
medievais; a terra no mundo virtual. Gallaaz e Neo são personagens construídos a partir
do arquétipo do herói clássico como Aquiles e Eneias, modelos de força e coragem,
capazes de feitos comuns apenas aos deuses. Também é pertinente associar Neo a
Cristo, considerado o enviado de Deus para salvar a humanidade.
Outro aspecto intertextual do filme está nos nomes de alguns personagens e
lugares. O grupo considerado pela matrix como rebelde é liderado por Mopheus.
Segundo a mitologia grega, esse era o nome do deus do sonho. Ele podia assumir a
forma que quisesse e invadir a mente das pessoas enquanto dormiam. É paradoxal que
no filme o nome esteja associado a um personagem que acorda as pessoas do sonho. O
sonho é a matrix, nome dado à realidade simulada.
A busca de Morpheus pelo escolhido se dá depois que ele visita o Oráculo,
personagem aliado que pertence ao mundo virtual. Na mitologia grega, oráculo era o
nome da resposta que um deus dava à dúvida de algum mortal, essa resposta era dada
por intermédio de uma pessoa conhecida pelo mesmo nome. Também são classificados
como oráculos os seres humanos capazes de predizerem o futuro. É o caso do
personagem do filme, que diz a Morpheus que ele encontraria o escolhido. Na narrativa
bíblica, essa era uma das missões de João Batista: encontrar o predestinado a salvar a
humanidade, ou seja, Jesus Cristo.
20
Há, no mundo real, uma fortaleza que abriga os humanos que acordam da matrix
e outros que nasceram de forma natural. Essa fortaleza chama-se Zion ou Sião. Segundo
o texto bíblico, é o nome da cidade do rei Davi; no cristianismo, também serve para
simbolizar Jerusalém e a terra prometida. É em Sião que a humanidade ainda tem
condições de resistir ao domínio das máquinas.
Como é possível notar, todos esses signos fazem alusões a personagens e nomes
da mitologia ou da Bíblia. Seus significados têm papel importante na construção de
sentido da narrativa, não foram escolhas arbitrárias. Fazem parte de uma rede semiótica
que apresenta ao espectador um universo com amplas possibilidades de leitura.
A literatura infantil também serve de mote para as falas de alguns personagens e
para a construção de várias cenas. Os clássicos Alice no país das maravilhas e Alice no
país dos espelhos, do escritor inglês Lewis Carrol são constantemente parafraseados,
parodiados ou aludidos nos diálogos. Quando Neo recebe uma mensagem pela internet
avisando que ele corre perigo, o mensageiro escreve “siga o coelho branco”. É fazendo
isso que o protagonista chega ao grupo de Morpheus. O coelho branco é uma tatuagem
no braço de uma estranha que bate a sua porta. É ela que o herói deve seguir para
“entrar na toca do coelho.” Nas histórias criadas por Carrol, a menina Alice – depois de
seguir o coelho e entrar em sua toca, ou depois de atravessar um espelho – vai parar
num mundo onde a ordem natural é subvertida. Ao ingerir líquidos ou comer algo, a
personagem cresce ou diminui; depois conversa com animais, plantas e enfrenta perigos
inimagináveis no mundo real. No final dos dois livros, o fantástico e o maravilhoso são
desfeitos quando o autor deixa claro que tudo não passou de um sonho. Como ela, Neo
também estava imerso no país das maravilhas: a matrix.
Esse universo foi criado para manter o ser humano no sonho de Alice, pois assim
seria mais fácil escravizá-lo. A matrix é um sonho, visto que o planeta Terra estava
completamente destruído pela ação do homem e apenas Zion tinha sobrevivido.
Os que se deram conta dessa dualidade viviam o seguinte conflito: fazer uma
escolha entre o mundo real e o simulado. É o que ocorre com Cypher que, seduzido
pelas maravilhas da matrix, prefere a simulação. Ele trai seus companheiros entregando
os planos deles ao agente Smith, o principal antagonista de Neo. Em troca das
informações, Cypher deseja voltar a dormir, mesmo sabendo que viveria num mundo
21
onde tudo não passa de uma ilusão dos sentidos. Ao provar um pedaço de carne diz:
“Sei que não é real. Mas prefiro isso a comer a mesma gororoba8 todos os dias.”
Mas a atitude de Neo é inversa a de Alice. Ela – assim como Cypher – lamenta
ter de acordar, pois sabe que “bastaria abrir de novo os olhos e tudo voltaria à prosaica
realidade”(CARROL, 2007, p. 67). O herói opta por abrir os olhos e enxerga o mundo
tal como a humanidade o transformara.
Quando Neo encontra Morpheus pela primeira vez, este lhe diz : “ sei como deve
estar se sentindo. Como Alice entrando na toca do coelho”. Como se sentia Alice depois
de entrar na toca do coelho? Cheia de dúvidas, inclusive em relação a quem ela era de
verdade. “Quem afinal eu sou?”, indaga a personagem. Quem Neo era de verdade antes
de encontrar o seu mentor? A mesma dúvida de Alice perturba o personagem no filme,
por não saber discernir a realidade da fantasia.
Num outro explícito diálogo com as aventuras da personagem de Carrol, o corpo
real de Neo precisa ser resgatado da cápsula incubadora, o que é feito fazendo com que
seu corpo virtual atravesse um espelho, o mesmo que ocorre com a menina em Alice no
país do espelhos.
Todos esses elementos intertextuais estão sendo comentados separadamente,
mas no desenrolar da narrativa, são postos em diálogo constante, criando de fato um
mosaico de citações.
Como se comporta o leitor-espectador diante desse mosaico? Matrix foi sucesso
de público e até hoje angaria fãs de todas as idades e possui vários endereços virtuais
onde internautas discutem seus significados. Também inspirou uma série de trabalhos
acadêmicos e acaloradas discussões filosóficas. A complexidade da trama, entretanto,
não distanciou o público menos informado da obra; pois se trata também de um filme
repleto de efeitos especiais e ação provocada por inúmeras cenas de luta e perseguição.
Decerto, nem todos os espectadores do filme estabelecem as conexões intertextuais
propostas por seus autores, também não se defende aqui a ideia de que as intenções dos
autores devam ser resgatadas. Contudo, quando não se faz uma leitura intertextual de
uma obra como Matrix, como ela é fruída e compreendida? Desconhecendo as fontes do
intertexto, como se dá a construção do sentido de uma obra cujo principal procedimento
de composição é a intertextualidade? Por meio de exibição e entrevistas realizadas com
8
O termo é uma alusão à comida servida na “Nabucodonosor”, nave tripulada pelos rebeldes. É uma
espécie de sopa à base de aveia.
22
grupos de jovens alunos do ensino fundamental e médio, e análise dos comentários dos
internautas na comunidade9 destinada ao filme, tentou-se buscar algumas respostas para
tais questionamentos.
Para Bakhtin, a composição dialógica convoca a participação do leitor no
processo de construção de sentido da obra, posição reforçada pelos teóricos da estética
da recepção. Segundo um dos principais representantes dessa corrente, Hans Robert
Jauss:
Para a análise da experiência do leitor ou da sociedade de leitores de um
tempo histórico determinado, necessita-se diferençar, colocar e estabelecer a
comunicação entre os dois lados da relação texto leitor. Ou seja, entre o
efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepção, como o
momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido
como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o
mundivencial, trazido pelo leitor de uma determinada sociedade (JAUSS,
1979, p. 73).
Jauss afirma que é necessário saber como o duplo horizonte – do autor e do
leitor – se encadeiam para perceber se nesse momento pode surgir uma nova
significação. Acrescenta ainda que o que diz respeito ao horizonte interno à obra é
menos problemático, pois deriva do próprio texto, mas em relação ao leitor há o fato de
que o horizonte de expectativa social não é tematizado como:
...contexto de um mundo histórico. Por isso, enquanto a psicologia do
processo de recepção for tão pouco esclarecida quanto ao papel e à produção
da experiência estética no sistema das estruturas de ação de um mundo
histórico, é pouco apropriado esperar-se um esclarecimento total sobre os
comportamentos dos leitores pelas análises fundadas em classes e camadas
(JAUSS, 1979, p. 73).
De fato, é impossível um esclarecimento total sobre o comportamento dos
leitores, principalmente numa sociedade marcada pela diversidade cultural e econômica.
Mas, quando Jauss coloca a produção de sentido no encadeamento entre as
características internas da obra e a experiência trazida pelo leitor, cabe uma reflexão
sobre o que lê a grande maioria dos jovens leitores.
9
No site Orkut, há grupos chamados de comunidades. Um deles é voltado para fãs do filme Matrix.Em
vários fóruns os membros discutem questões relativas ao filme. No material anexo há cópias das páginas
onde os integrantes falam de aspectos abordados neste estudo.
23
Mesmo sem dados estatísticos precisos, basta observar as listas publicadas
semanalmente em jornais e revistas para perceber que os livros de autoajuda, romances
de aventura, suspense e esotéricos estão no topo das vendas.
Não há nenhuma objeção à leitura de tais gêneros. No entanto, os textos que têm
servido para a antropofagia do cinema intertextual são os considerados clássicos. Ítalo
Calvino – escritor italiano, no livro Por que ler os clássicos – apresenta várias
definições para o substantivo ou adjetivo. Dentre elas, a que melhor se encaixa às
discussões aqui levantadas diz que clássicos são “livros que exercem uma influência
particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas
dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”(
CALVINO, 1993, p. 11).
As influências dos clássicos são evidentes não só no cinema, mas também em
outros setores da cultura, como na música e na telenovela. Em relação a este gênero
dramatúrgico, cabe ressaltar que há muitas tramas nas quais personagens femininas se
livraram de pretendentes tecendo uma colcha durante o dia e desfazendo à noite, tais
qual Penélope. Um exemplo foi a novela Chocolate com pimenta de Walcir Carrasco,
exibida no horário das 18h entre setembro de 2003 e maio de 2004, em que a
personagem Celina usava o mesmo estratagema da mãe de Ulisses, escapando, assim,
das investidas do Conde Klaus, homem com quem se casou contra a vontade.
Como já foi afirmado anteriormente, Matrix é um filme que se nutre desses
textos escondidos “nas dobras da memória.”Para muitos espectadores, o primeiro
contato com Alice pode ter sido por meio desse filme, que não é uma adaptação das
histórias de Lewis Carrol, mas que traz as influências deixadas por elas nos irmãos
Wachowski.
Ainda citando Calvino:
...os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que
deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ( ou mais simplesmente
na linguagem ou nos costumes.) ( CALVINO, 1993, p. 11).
A leitura que os criadores de Matrix fizeram da personagem de Carrol é a de
alguém que precisa fazer escolhas que mudarão completamente a sua vida, num mundo
24
onde o que se entendia como natural encontra-se às avessas. E Neo é uma Alice às
avessas. Essa é uma das leituras impressas no personagem. Mas também é o messias
consciente de sua missão redentora, e o cavaleiro que – no estilo medieval – enfrenta
perigos para salvar a amada. Todas essas marcas, impressas no que Calvino e Ingedore
Koch chamam de inconsciente coletivo e memória discursiva, constroem uma obra
polifônica apresentando elementos extraídos dos clássicos ao espectador como peças de
um quebra-cabeça.
Outra definição útil à ampliação das ideias defendidas é a de que “Clássico é
aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais
incompatível”(CALAVINO, 1993, p.15). A realidade histórica e social de Matrix difere
da realidade tratada em Alice, em A Demanda do Santo Graal, numa aventura épica
como a de Aquiles, ou bíblica como a vida de Cristo. No filme, a sociedade é controlada
pela inteligência artificial, algo impensável em tempos medievais ou na antiguidade;
apesar de as formas de controle se apresentarem nessas realidades sob outros prismas.
Esses mundos tão incompatíveis se reúnem na composição de Matrix, numa época em
que ler os clássicos se torna também praticamente incompatível com o ritmo de vida
“que não conhece os tempos longos”. Portanto, pode-se dizer que o leitor-espectador
contemporâneo pode ler, por meio de filmes como Matrix, apenas rumores de clássicos
que se apresentam num sistema semiótico muitas vezes de difícil compreensão.
A intertextualidade que compõe esse filme se nutre de uma série de signos como
os signos-palavra e signos-imagem. Pensando na relação autor / leitor, tais signos foram
utilizados pelos Wachowski como método de composição por estarem presentes em
suas memórias de leitores. É importante lembrar que uma das propostas desta
dissertação é pensar também como esses signos podem ser lidos por uma comunidade
de leitores-espectadores a cada dia mais habituados a lidar apenas com os “rumores”
dos clássicos. É claro que não ter lido Alice no país da maravilhas, algum romance ou
novela inspirada na Demanda do Santo Graal, ou narrativa mítica que se refira à figura
do Oráculo pode não impedir o espectador de tecer sua própria rede de significações
acerca do filme, mas o limita quanto à ampliação dessa mesma rede ou à formulação de
novos significados. Oráculo não é apenas um nome como Joana, por exemplo. Assim
como morrer de braços abertos e flutuar no ar não é como simplesmente morrer atingido
por uma bala. As palavras Oráculo e Morpheus, e a imagem do corpo morto em forma
25
de cruz atualizam, no universo ficcional de Matrix, um passado cultural da humanidade.
O filme, para alguns espectadores, como será visto no capítulo específico sobre a
recepção do cinema intertextual, resume-se nas fantásticas cenas de lutas inspiradas nas
artes marciais e nos efeitos especiais.
Em termos de cinema, pode-se afirmar que Matrix já se tornou um clássico – se
forem levadas em conta as conceituações de Calvino – já que seus personagens e cenas
fazem parte de uma memória cinematográfica. O filme criou imagens que passaram a
servir de inspiração para uma série de outros do gênero ficção científica ou aventura. É
possível, praticamente dez anos depois do seu lançamento, falar de espectadores que
não viram Matrix, mas que assistiram a “rumores” por meio de citações, paródias e
outras formas de intertexto; como ocorre em Shrek, numa cena em que a princesa Fiona,
ao lutar com o bando de Robin Hood, dá um salto e congela no ar, parodiando as lutas
travadas no filme.
2.2- Shrek e a carnavalização bahktiniana
O desenho animado Shrek, do diretor Andrew Adamson Vick, apresenta
características do que Bakhtin define como carnavalização. Primeiramente, será feito
um esclarecimento do que exatamente o filósofo define como carnaval, para depois se
fazer um estudo sobre as maneiras como se deu a transposição do termo para a literatura
e como ele será empregado para uma análise sobre a intertextualidade no filme.
O carnaval não é um fenômeno literário, mas “uma forma sincrética de
espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral,
apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e
festejos particulares” (BAKHTIN, 2008, p. 139). Bakhtin afirma que o carnaval é
constituído por uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, complexas
ações de massa e gestual carnavalesco difíceis de serem plenamente traduzidos para a
linguagem verbal, por isso fala em transposição do carnaval para a linguagem literária,
o que chamou de carnavalização da literatura. Na concepção do filósofo, o carnaval é
também um espetáculo sem ribalta, no qual não se distingue ator de espectador, todos
são participantes ativos num universo onde tudo se apresenta sob o código da inversão,
26
trata-se de um “mundo às avessas” onde a vida é desviada de sua ordem natural. As
hierarquias e regras sociais que separam os indivíduos na vida cotidiana são quebradas
no carnaval, que tem a excentricidade como uma característica específica, permitindo
que “se revelem e se expressem – em forma concreto-sensorial – os aspectos ocultos da
natureza humana” (BAKHTIN, 2008, p. 141). Na carnavalização, as distâncias entre os
homens dão lugar ao livre contato familiar, ocorrem as méssaliances10 aproximando o
sagrado e o profano, o sábio e o tolo, o grande e o insignificante.
Segundo Bakhtin, esses aspectos do carnaval – principalmente a familiarização
do homem com o mundo – foram transpostos:
... para a literatura, especialmente para a linha dialógica de evolução da prosa
artística romanesca. A familiarização contribuiu para a destruição das
distâncias épica e trágica e para a transposição de todo o representável para a
zona do contato familiar” (BAKHTIN, 2008, p. 141).
Um evento marcante de toda ação carnavalesca é a coroação e o
destronamento do rei do carnaval, ritual verificado em todas as festividades de estilo
carnavalesco. A coroação e o destronamento representam a relatividade de toda
ordem social; “Coroa-se o antípoda do verdadeiro rei – o escravo ou o bobo, como
que se inaugurando e consagrando o mundo carnavalesco às avessas”(BAKHTIN,
2008, p. 143).
Uma outra característica marcante dos gêneros carnavalizados é a paródia.
Esse procedimento intertextual é a base da construção do roteiro da trilogia
cinematográfica do personagem Shrek. Este é um ogro que mora num pântano que é
invadido pelos personagens dos contos de fadas. Segundo a tradição desse tipo de
conto, ogro ou ogre é um monstro que se alimenta de carne humana. A palavra deriva
do latim orcus que significa divindade infernal. A figura aparece no conto popular
europeu O pequeno polegar como um homem que devora crianças.
Shrek também começa como os tradicionais contos de fadas. Um livro se abre
e a voz de um narrador inicia a história: “Era uma vez uma linda princesa, mas ela
recebeu um feitiço do pior tipo, que só poderia ser quebrado com um beijo de amor.
10
Pelo uso que Bakhtin faz do termo, pode ser traduzido como uma espécie de casamento entre opostos.
27
Ela foi trancada num castelo e vigiada por um dragão. Muitos cavaleiros corajosos
tentaram libertá-la, mas nenhum conseguiu.”
A mão do ogro, no entanto, interrompe a narrativa e rasga a página do livro.
A partir daí, inicia-se a saga do personagem anti-herói. No primeiro filme da trilogia,
Shrek tem seu pântano invadido pelos personagens que foram expulsos do reino dos
contos de fadas pelo vilão Lord Farquaad. Para que sua vida volte ao normal, ele
deve salvar Fiona – princesa presa numa torre e refém de um dragão – para que ela se
case com Farquaad, transformando-o em um rei. Porém Fiona e Shrek se apaixonam.
A princesa está sob um feitiço que a transforma em ogro quando anoitece.
Para quebrar o encanto precisa beijar “o verdadeiro amor” – um príncipe, segundo a
tradição – antes do pôr do sol. A caminho do castelo, o amor entre o ogro e a
princesa aumenta ainda mais. Mas Shrek ouve uma conversa entre Fiona e o Burro
Falante sobre o feitiço que recai sobre ela e pensa que a princesa o rejeita por ser
feio. São muitos os desentendimentos que passam a ocorrer entre ambos, levando
Fiona a optar por se casar com o lord. Porém o Burro esclarece tudo ao amigo, e,
quando Fiona está prestes a se casar, Shrek aparece, impede a cerimônia e a beija.
Em vez de ser princesa para sempre, Fiona torna-se para sempre ogro.
O roteiro do desenho é inteiramente composto a partir de paródias de
clássicos da literatura infantil e de filmes como Flashdance e Matrix. Na primeira
sequência, um velho aparece carregando um boneco de madeira para ser entregue aos
soldados de Farquaad. Quando responde que não era um boneco, mas um menino de
verdade, seu nariz cresce. Numa outra, Shrek, Fiona e o Burro Falante são atacados
pelo bando de Robin Hood, que é derrotado pela princesa que lhe aplica golpes
aéreos numa alusão direta a Matrix.
Segundo Bakhtin:
... as lendas carnavalescas diferem profundamente das lendas heróicas épicas:
fazem o herói descer e aterrissar, familiarizam-no, aproximam-no e
humanizam-no. O riso carnavalesco ambivalente destrói tudo o que é
empolgado e estagnado, mas em hipótese alguma destrói o núcleo
autenticamente heróico da imagem (BAKHTIN, 2008, p. 151).
28
Shrek é o inverso do herói clássico dos contos infantis. É feio, gordo, arrota,
tira cera do ouvido e é acompanhado por um burro, não por um cavalo. Mas é dotado
de força e coragem, o que não o afasta totalmente do perfil heroico. Um exemplo é o
momento em que ele salva a princesa do dragão. Fiona estava deitada numa cama no
alto de uma torre, dormindo tal qual a Bela Adormecida à espera do príncipe que a
beijaria e salvaria. Porém é surpreendida pela figura do ogro, que contraria todas a
suas expectativas de princesa, pois ele não a beija de imediato. É o beijo que desperta
a princesa do sono eterno e é também ele que a salva da morte11. Shrek contraria não
só as expectativas de Fiona, mas também as do espectador, principalmente as do
espectador infantil, possível leitor dos contos tradicionais. Mas ele enfrenta o
monstro, coloca a princesa no ombro e foge.
A memória do leitor das histórias infantis é ingrediente fundamental para a
percepção do humor em Shrek, já que parte desse humor é consequência da
desconstrução dos arquétipos criados pelas narrativas de autores como os Irmãos
Grimm, La Fontaine e Charles Perrault, ou seja, o modelo de beleza e bom
comportamento dos príncipes e princesas.
Vive-se numa sociedade na qual a busca da beleza física tornou-se uma
obsessão para muitos indivíduos. Em novelas e filmes românticos, os casais de
protagonistas são geralmente interpretados por atores com perfil físico e psicológico
típicos dos heróis e heroínas das narrativas românticas do século XIX.
Esses
modelos já haviam sido rompidos em narrativas destinadas ao público adulto, mas
para as crianças, produtoras que dominavam o mercado de filmes de animação como
a Disney ainda se mantinham presas ao tradicional. A DreamWorks contribuiu para a
quebra dessa hegemonia com uma produção que foi sucesso de público, atraindo
adultos, crianças e adolescentes.
Um dos fatores responsáveis pela ruptura com os desenhos tradicionais é o
uso de mésalliances carnavalescas, que é a união dos opostos. O sublime comunga
com o grotesco, o belo com o feio, seres de espécies diferentes se relacionam
afetivamente, como é o caso do dragão fêmea que se casa e tem filhos com o burro:
11
Referência às histórias das princesas Bela Adormecida e Branca de Neve.
29
A livre relação familiar estende-se a tudo: a todos os valores, idéias,
fenômenos e coisas. Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos
os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela
cosmovisão hierárquica extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne,
celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o
baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. (BAKHTIN,
2008, p. 141).
Aproximar o ogro da princesa é apresentar ao público infantil um universo no
qual a união do diferente é possível, apesar de, na realidade, as hierarquias sociais
ainda separarem pobres de ricos, feios de bonitos. Fiona demora a aceitar o seu par.
Quando se depara com Shrek na torre, pergunta pelo cavalo branco, pela armadura,
pelo beijo que não recebe, pelas palavras bonitas, ou seja, tudo o que eternizou as
histórias de príncipes e princesas.
Shrek é considerado um ser ruim apenas por sua aparência. Todos o temem e
o discriminam tal qual ocorre com o célebre personagem monstruoso de Mary
Shelley: Frankenstein. Fiona não se assusta, apenas não o acha parecido com as
descrições de príncipes que conhecia, mas se apaixona pelo seu inusitado salvador,
abre mão das riquezas que Lord Farquaad poderia lhe oferecer, escolhe abdicar da
beleza e se transforma numa ogra.
A maioria dos contos de fada foi adaptada para o cinema12. E as paródias em
Shrek ora remetem à versão literária, ora à cinematográfica, como uma das cenas
mais famosas do clássico desenho infantil Branca de Neve e os sete anões (1937).
Trata-se do momento em que Branca, rodeada de pássaros, canta uma canção. Fiona
segue o exemplo da princesa enfeitiçada por uma maçã, mas acaba fazendo um
passarinho explodir devido ao exagero de seus agudos.
No segundo filme da trilogia, os protagonistas precisam ir ao reino de Tão
Tão Distante para conhecerem os pais de Fiona. Essa continuação ainda é mais
intertextual e carnavalizada que o primeiro longa-metragem. Além do Burro Falante,
quem passa a seguir o ogro em suas aventuras é o Gato de Botas que surge como um
caçador de recompensas e matador de ogros. Shrek o encontra numa taverna
chamada Maçã envenenada – alusão à fruta comida por Branca de Neve –
comandada por um travesti, tipo de personagem inédito em desenhos infantis. O
12
Shrek é inspirado em personagem homônimo criado pelo escritor William Steig, que também escreveu
o roteiro do filme.
30
gato, numa festa no final do filme, dança imitando a coreografia de Jennifer Beals
em Flashdance (1983), clássico musical dos anos oitenta, referência que,
provavelmente, pode não ser percebida por quem tem menos de vinte anos de idade.
A Fada Madrinha é outro personagem típico das histórias infantis, mas que,
em Shrek 2 (2004), se apresenta bem distante da figura bondosa e comprometida em
realizar os sonhos de seus protegidos. É uma mulher ambiciosa, comete uma série de
crimes, faz chantagens e trapaças para que Fiona abandone o marido, volte a ser uma
linda princesa e se case com Encantado, o príncipe, filho dela.
Shrek 2 é o que mais se aproxima da sátira menipeia, principal gênero
carnavalizado. A menipeia recebe o nome do filósofo do século III a.C.; Menipeu de
Gadare. Para Julia Kristeva:
A menipeia tende para o escândalo e para o excêntrico na linguagem. A
palavra despropositada, por sua franqueza cínica, por sua profanação do
sagrado, por seu ataque à etiqueta é muito característica da menipeia. (...) Ela
utiliza as passagens e as mudanças abruptas, o alto e o baixo, a ascensão e a
queda, os maus casamentos de toda espécie. (...) Gênero englobante, a
menipeia constrói-se como um mosaico de citações (KRISTEVA, 2005,
p.88).
O início do filme é uma paródia da história A Bela Adormecida, com o
príncipe montando num cavalo branco atravessando desertos, florestas e montanhas
para salvar a princesa na torre de um castelo. Quando chega aos aposentos dela e
afasta a cortina para beijá-la, ele se depara com o Lobo Mau, que lhe diz “chegou
tarde”, pois a princesa já havia sido salva e estava agora em lua de mel.
Em Shrek 2, o rei se transforma em sapo, o belo se torna o feio e vice-versa,
num ritual de coroação e destronamento típicos dos textos carnavalizados. Figuras da
família real se comportam à mesa quebrando todas as regras de etiqueta como
convém à sátira menipeia. As cenas de escândalo também são bastante comuns em
todo desenho reforçando a aproximação com o gênero. Numa cena em que Shrek e o
Gato tentam invadir o castelo para impedir que – por engano13 – Fiona se case com
Encantado, são recebidos por soldados que encostam o Gato na parede e, ao revistálo, encontram um saquinho com erva (maconha). Há também outras cenas que
13
Enganada pelo pai e pela Fada, Fiona acredita que Encantado é Shrek transformado em príncipe.
31
expõem os personagens ao ridículo como a do capitão gancho bêbado tocando piano
na taverna da Irmã Feia14.
O “felizes para sempre” é comercializado pela fada madrinha, proprietária de
uma empresa que atende inclusive por telefone. Entretanto, ela nega ao ogro esse
direito, quando diz que, em histórias como Branca de Neve, Cinderela, João e
Maria, Uma linda mulher15, o “felizes para sempre” não admitia a presença de tal
criatura. Nega ao feio, ao incomum, ao diferente, o direito que deveria pertencer a
todos. Quando se depara com Shrek em sua sala, faz alusão a La Fontaine: “Por La
Fontaine, o que você está fazendo aqui?” As fábulas do escritor francês do século
XVII são exemplos de histórias com desfecho moralizante, em que a fraqueza vence
a força, a preguiça é derrotada pelo trabalho. Nesses escritos, o comportamento
humano é retratado em animais. Distante das propostas de La Fontaine, o discurso da
fada é o mesmo de algumas campanhas publicitárias que incutem na mente do
consumidor a ideia de que o mundo foi feito apenas para os que se encaixam nos
modelos de beleza e comportamentos determinados pelos programas de televisão.
A Fada não é o único empecilho ao amor de Shrek e Fiona. O Gato de Botas
é contratado pelo Rei para matar o genro indesejável, para que o caminho fique livre
para Encantado. Mas o ogro inverte o jogo, derrota o Gato – que engasga devido a
uma bola de pelos em seu estômago – e lhe poupa a vida fazendo com que o felino
tenha para com ele uma dívida de gratidão, ajudando-o a derrotar seus inimigos,
assim como o Gato fazia em sua história original com o personagem alcunhado de
Marquês de Carabás. O Gato de Botas é uma figura com sotaque latino, usa capa,
espada e à la Zorro, risca a inicial de seu nome no tronco de uma árvore numa
explícita paródia ao personagem criado em 1919 pelo escritor americano Johnston
McCulley.
Mais ainda do que no primeiro filme, neste segundo, o humor é resultado das
intervenções intertextuais, intervenções exigidas também no momento de recepção
da obra. Shrek obteve um sucesso estrondoso, tendo uma terceira e quarta
continuações. Isso se deve ao fato de ser uma obra acessível à criança que se encanta
14
Irmã Feia é a proprietária da taverna Maçã Envenenada, local onde se encontram vários vilões dos
contos de fada.
15
O filme Uma linda mulher (1990) é mencionado dentre os demais contos de fadas. Isso se dá pelo fato
de terminar com um tradicional final feliz. A moça pobre e rejeitada se apaixona pelo homem rico e
bonito. Ambos superam uma série de adversidades para viver seu amor.
32
pela animação em 3D, pela música e coloridos típicos dos desenhos animados, e ao
adulto que se diverte com as piadas pertencentes ao seu universo, como quando a
fada põe em dúvida a orientação sexual do Lobo Mau16, ou quando o príncipe
Encantado é beijado pela Irmã Feia, o travesti dono da taverna; além do fato de o
filme trazer inúmeras referências à cultura pop dos anos 70 e 80. É um típico filme
feito “Dos 8 aos 80”.17
Como o espectador infantil se relaciona com esse mosaico com referências
tão distantes do seu repertório? É importante lembrar que as crianças da era Shrek
não são as que ouvem histórias contadas antes de dormir, nem as que crescem
ouvindo ou lendo clássicos de La Fontaine, Grimm, Perrault ou contos folclóricos.
Mas pertencem à geração do Playstation, shopping e cinema. O primeiro contato de
parte desse público com os contos de fadas se dá por meio da grande tela ou do
DVD, não pela leitura. Pinóquio, por exemplo, é conhecido por algumas crianças
como personagem de Shrek. Muitas escolas do primeiro seguimento do ensino
fundamental têm substituído os momentos de contação de histórias por sessões de
vídeo, geralmente com o objetivo de manter as crianças ocupadas.
Jauss considera a importância de se levar em conta o momento histórico da
recepção do objeto estético. Ora, numa época em que artistas como Madona e Lady
Gaga se tornaram ícones da cultura infanto-juvenil, dificilmente se veem
adolescentes tão obedientes quanto a Chapeuzinho Vermelho, ou sonhadoras como a
Cinderela. A ideia da princesa que passa a maior parte do tempo numa torre
esperando um príncipe está longe da realidade vivenciada pelas crianças e jovens do
século XXI. Portanto, são muitas as versões que atualizam a leitura dessas histórias18.
O que está em jogo aqui não são as adaptações, pois todo texto que conte uma
história universal pode ser lido e adaptado em qualquer época. O cinema intertextual
não se define como adaptação de uma obra, mas como uma narrativa nova que se
constrói com signos oriundos de diversos objetos estéticos. É inegável que esses
signos trazem consigo significados que lhes foram atribuídos não pelos autores
16
Quando Encantado chega ao castelo encontra o Lobo deitado no lugar da princesa. A Fada se refere a
ele como “Um lobo de gênero duvidoso.”
17
“essa expressão de um produtor americano marca o filme como mercadoria na fase áurea do cinema
como veículo de massa, isto é, até 1950”(BERNARDET, 2006, p.62).
18
Um exemplo é o desenho Deu a louca na Chapeuzinho (2005), em que a menina de capuz vermelho é
uma esperta adolescente que investiga o desaparecimento de livros de receita na floresta.
33
somente, mas também pelas próprias obras e, não raro, por leituras que foram feitas
delas. Em Shrek, o humor é resultante da inserção desses significados num contexto
cujo objetivo é negar os valores expressos originariamente por eles. O ogro não quer
o “felizes pra sempre” dos príncipes e princesas, mas construir um que esteja de
acordo com seu estilo de vida nada bem-comportado ou obediente. Ele propõe uma
nova forma de “ser feliz”, distante das fórmulas mágicas da Fada-Madrinha, sugere
uma inversão total de valores e de papéis típica dos gêneros carnavalizados.
2.1.3 – Dom: Machado parafraseado ou adaptado?
Dom – produção brasileira de 2003, dirigida por Moacyr Góes – traz na capa
do DVD a informação de que o filme é “inspirado no romance Dom Casmurro de
Machado de Assis.”No alto e à direita da capa está a seguinte frase: “Ainda hoje
existe um amor assim?”A referência é ao amor entre Bentinho e Capitu,
protagonistas de um dos mais conhecidos e discutidos romances da literatura
brasileira. Nele, Bentinho é o personagem que narra sua história: a de um homem
apaixonado e atormentado pelo ciúme. Desde criança amava Capitu, com quem se
casou depois de retornar do seminário para onde partira atendendo à vontade da mãe,
Dona Glória, e onde conheceu Escobar, seminarista que se tornou o seu melhor
amigo. A amizade de ambos se estende mesmo após a saída do seminário. Bentinho
se casa com Capitu, e Escobar com Sancha. No entanto Escobar morre num
afogamento, e é no velório dele que Bentinho começa a suspeitar de que a esposa
teria sido amante de seu amigo:
Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente
fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas (...)
Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da
viúva, sem o pranto nem as palavras desta, mas grandes e abertos, como a
vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã
(ASSIS, 2000, p.167).
A situação se agrava quando Ezequiel – filho do casal – cresce, e o narrador
começa a perceber semelhanças físicas entre o menino e o amigo morto. Essas ideias
34
são narradas de maneira que paira a dúvida se são semelhanças reais ou fruto da
obsessão dele.
No filme, o protagonista chama-se Dom, pois seu pai quis prestar uma
homenagem ao famoso personagem de Dom Casmurro, e passa a adotar o apelido de
Bento. Quando visita Miguel, dono de uma produtora e amigo de faculdade, Dom
encontra Ana, antiga namorada de infância; fato que reacende a antiga paixão. Os
dois se casam, e Ana passa a trabalhar na produtora de Miguel com quem estabelece
grande cumplicidade devido aos interesses profissionais, despertando no marido um
ciúme obsessivo. Quando o filho do casal nasce, Dom resolve fazer um exame de
DNA para ver se o menino era realmente seu ou fruto da traição da esposa.
Revoltada com a desconfiança, Ana parte com o filho, sofrem um acidente e ela
morre. Bento não abre o exame, com medo de o resultado significar também a perda
do filho, como pode ser percebido no monólogo interior do personagem no final do
filme:
Eu preferi não ler o exame, e ficar sem Joaquim significa perder Ana mais
uma vez. Joaquim é o filho que Ana me deu. Ele junta uma ponta à outra de
minha vida. Assim como no livro, eu não pude sustentar o imenso amor que
ainda sinto por ela e que agora é todo de meu filho.
No entanto, a dúvida que, no romance de Machado, perturba o personagem e
o leitor; no filme incomoda apenas ao personagem. Em nenhum momento a narrativa
deixa para o espectador qualquer dúvida quanto à fidelidade de Ana.
O texto final do filme apresenta-se como uma paráfrase de um trecho do
capítulo II do livro: “O meu fim era atar as duas pontas da vida” (ASSIS, 2005, p.2).
Bentinho pretende atar as duas pontas de sua vida por meio da reconstrução pela
narrativa. Esse papel no filme é conferido a Joaquim.
Há entre o livro e o filme uma intertextualidade temática por meio de citação,
alusão e paráfrase. A intertextualidade temática, segundo Ingedore Kock, pode ser
encontrada entre textos “literários de uma mesma escola ou de um mesmo gênero,
como acontece, por exemplo, nas epopeias, ou mesmo entre textos literários de
gêneros e estilos diferentes” (KOCK, 2007, p. 18). A suspeita de adultério
ocasionando o término do relacionamento amoroso é o tema de ambas as obras. Dom
35
poderia perfeitamente não estabelecer nenhum tipo de diálogo explícito com Dom
Casmurro. Eça de Queirós e Gustave Flaubert publicaram, contemporaneamente a
Machado, romances semelhantes quanto ao tema, além de existir, do primeiro para o
segundo, um ato intertextual deliberado, sem que isso seja explicitado no romance
português. É o caso de O primo Basílio e Madame Bovary. A instância intertextual
no filme se dá a partir do momento em que o autor escolhe signos com significados
oriundos de Dom Casmurro, não dos dicionários, e esclarece a origem desses signos.
Pode-se afirmar também que o diálogo intertextual se dá no filme sob a forma
explícita e implícita. Bento afirma ter lido várias vezes Dom Casmurro e utiliza
trechos do romance para falar de sua experiência com Ana. Tem-se, neste caso, a
citação e a alusão. O diálogo implícito se dá pela paráfrase. Segundo Koch, a
paráfrase ocorre quando o texto segue a “orientação argumentativa” do texto com o
qual dialoga. Isso é visível na composição do filme.
Ainda com base nas palavras de Ingedore Koch :
Nos casos de intertextualidade implícita, o produtor do texto espera que o
leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação
do texto-fonte em sua memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer,
estará prejudicada a construção do sentido, mais particularmente, é claro, no
caso da subversão. Também nos casos de captação, a reativação do texto
primeiro se afigura de relevância; contudo, por se tratar de uma paráfrase,
mais ou menos fiel, do sentido original, quanto mais próximo o segundo texto
for do texto-fonte, menos é exigida a recuperação deste para que se possa
compreender o texto atual (KOCH, 2007, p. 30).
De fato, o roteiro de Dom é perfeitamente compreensível. Não se faz
necessária a leitura prévia do romance para que se compreenda o filme. Contudo
convém chamar a atenção para uma afirmação de Koch. A autora de
Intertextualidade: diálogos possíveis afirma que a recuperação do texto-fonte
“incrementa a possibilidade de construção de sentidos mais adequados ao projeto de
dizer do produtor do texto” (KOCH, 2007, p. 31). A expressão “olhos de ressaca”,
empregada por Machado com sentido metafórico para se referir aos olhos de Capitu,
também é utilizada no contexto atualizado do filme num monólogo interior de Bento,
quando se lembra da sua infância com Ana. O termo “ressaca” também pode estar
associado semanticamente a um dos efeitos do consumo de bebida alcoólica. No
entanto essa leitura está em total desacordo não apenas com o “dizer do produtor do
36
texto”, mas também com o próprio contexto. É importante lembrar que a
problemática levantada aqui não é a necessidade de se resgatar as intenções do autor,
mas o significado de um signo está ligado ao contexto em que ele está inserido. O
sintagma “olhos de ressaca”, no sentido com que é empregado em Dom, carrega o
significado do contexto criado por Machado.
Ferdinand de Saussure, ao falar da arbitrariedade do signo linguístico, afirma
que a “idéia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons
m-a-r que lhe serve de significante, poderia ser representada igualmente bem por
outra sequência”(SAUSSURE, 2006, p. 81). Portanto, o signo “mar” é arbitrário em
relação ao “objeto” que ele representa. Essa arbitrariedade não se encontra nos signos
que compõem um texto. Nele, os signos não são imotivados; as escolhas partem de
critérios específicos que sempre estão ligados não apenas aos significados, mas
também à sonoridade ou a outras necessidades estéticas.
“Olhos de ressaca” é um sintagma composto por signos que, como qualquer
outro, pode ser lido denotativa ou conotativamente. Christian Metz, teórico do
cinema francês, em seu livro A significação no cinema, postula que “a literatura e o
cinema estão por natureza condenados à conotação, já que a denotação existe sempre
antes do seu empreendimento artístico”(METZ, 1972, p.94). Os substantivos “olhos”
e “ressaca”, em termos de denotação, existem anteriormente à utilização feita por
Machado. Seus sentidos podem ser verificados em qualquer dicionário. Já o sentido
da expressão que define os olhos de Capitu só é verificável na leitura de Dom
Casmurro ou de Dom.
O filme, como a linguagem verbal, é suscetível de ser usado apenas como
veículo, sem qualquer preocupação artística, reinando sozinha a designação.
Por isso, a arte do cinema, bem como a arte do verbo, será elevada de um
grau: é, em última análise, pela riqueza de suas conotações que o romance de
Proust se diferencia – do ponto de vista semiológico – de um livro de
cozinha, o filme de Visconti de um documentário cirúrgico (METZ, 1972, p.
94).
Não raro, os “olhos de ressaca” que caracterizam a personagem Ana são
associados ao consumo do álcool, numa interpretação completamente denotativa do
que é empregado com valor conotativo. O filme não retoma todo o contexto de Dom
Casmurro, pois, conforme já foi dito, não se trata de uma adaptação, mas de
37
intertextualidade. Contudo as intenções de Bento são iguais às de Bentinho. A
“ressaca” dos olhos de Ana também quer tragar tudo à sua volta, assim como os de
Capitu.
Como ocorre com a maioria das obras clássicas, Dom Casmurro já inspirou
adaptações para cinema e televisão, como a recente série Capitu (2008), exibida pela
rede globo. Muitos fizeram uma primeira leitura do romance por esses mecanismos.
Certamente, assistir a Dom não é fazer uma primeira leitura da famosa história de
Machado em um suporte diferente do livro, mas estar em contato com signos
extraídos desse romance e transportados para uma outra linguagem.
38
3-CINEMA INTERTEXTUAL E LEITURA HIPERTEXTUAL
O capítulo anterior – que trata especificamente dos procedimentos intertextuais
presentes nos filmes escolhidos como corpus – encerra-se com uma referência à
transposição de signos de uma obra literária para o suporte audiovisual. Utilizando a
conceituação de Charles Sanders Peirce, semioticista americano, para quem signo é
aquilo que representa alguma coisa para alguém, convém analisar a seguinte questão: o
sentido vernacular dos signos encontra-se nos dicionários, mas a cultura literária, por
meio da produção e da leitura, atribui constantemente novos sentidos a eles,
principalmente por meio da intertextualidade. Textos impressos ou digitalizados que se
valem da intertextualidade podem se valer dos hipertextos para auxiliar o leitor na
recepção e na construção coerente do sentido. Neste capítulo será feito um estudo do
papel do hipertexto numa obra fílmica, partindo, inicialmente do filme Babel, para
depois estendê-lo às obras básicas do presente trabalho.
O escritor Machado de Assis inovou a literatura do século XIX com a publicação
do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, no qual um personagem narrador conta
a própria história depois da morte. Não há, no entanto, nenhum clima sobrenatural nem
o romance é uma história de suspense. Trata-se apenas de um recurso narrativo. A
cronologia dos fatos também não é obedecida. Passado, presente e futuro se misturam
numa trama cheia de intertextos com o contexto histórico da época e outras obras da
cultura universal. Várias edições do romance trazem notas de rodapé explicando ou
comentando alusões e citações feitas pelo autor, como no capítulo XV intitulado
“Marcela” em que o narrador diz: “há dois meios de granjear a vontade das mulheres: o
violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de
ouro de Dânae, três inventos do padre Zeus”(ASSIS, 2002, p.41). A expressão três
inventos do padre Zeus ganha uma nota da edição que explica o fato de esse deus da
mitologia clássica ter se apresentado sob a forma de touro, cisne e chuva para seduzir,
respectivamente: Europa, Leda e Dânae. Essa informação auxilia a compreensão do
trecho e pode ou não ser utilizada pelo leitor. Entende-se, portanto, que a nota de rodapé
é um exemplo de hipertexto.
39
3.1- O termo
A palavra hipertexto passou a ter um uso mais frequente por causa dos textos
informatizados, apesar de a sua prática anteceder a informática. A nomenclatura é que
podemos afirmar ser contemporânea a ela. O filósofo Pierre Lévy, em seu livro O que é
o virtual ? (1996), explica que o hipertexto informático hierarquiza e seleciona “áreas
de sentido”, tecendo ligações e conectando o texto a outros documentos. No
ciberespaço, a leitura não segue mais o plano linear comum à maioria das narrativas
clássicas. O texto informatizado possibilita ao leitor escolher o seu próprio roteiro de
leitura, que nem sempre será o indicado pelo autor ou autores do texto. Cabe avaliar se o
hipertexto seria uma prática comum apenas ao ciberespaço e aos textos impressos.
Neste capítulo, será feita uma análise da prática do hipertexto e de novas formas
de leitura e de produção textual. Antes de abordar tais questões nos filmes escolhidos
como base para o estudo, abrir-se-á um parêntese para a análise da composição
hipertextual numa outra obra na qual essa prática é bastante explorada até mesmo no
processo de montagem. Trata-se do filme Babel, do diretor mexicano Alejandro
Gonzáles Iñárritu. O filme se foca em quatro histórias de personagens não relacionados
diretamente. No deserto do sul do Marrocos, um criador de cabras, Abdullah, compra
um rifle do vizinho, Hassam Ibrahim, para atirar nos chacais que estavam comendo o
seu rebanho. Abdullah dá o rifle a seus filhos adolescentes, Yussef e Ahmed, para que
vigiassem os animais. Os dois discutem a respeito do real alcance de 3km do rifle e
resolvem testá-lo atirando num ônibus. O tiro atinge acidentalmente uma turista
americana, Susan, que viajava de férias com o marido a fim de reconstruir o seu
casamento que estava abalado com a morte de seu terceiro filho.
Simultaneamente, é contada a história de Chieko, uma adolescente japonesa
surda-muda, traumatizada com o suicídio da mãe, e que tem atitudes sexuais
provocativas como forma de se inserir socialmente, já que se sente rejeitada devido à
deficiência.
Richard e Susan são um casal de americanos em férias no Marrocos. Susan não
entende por que o marido a levou àquele lugar. Ele diz que precisavam ficar a sós para
tentar reconstruir a relação abalada com a morte do filho mais novo do casal, fato que
desenvolveu em Susan um estado de depressão.
40
Nos EUA, Amélia é uma babá mexicana que cuida dos dois filhos de Richard e
Susan. Ela precisa ficar com as crianças mais tempo do que o previsto por causa do
incidente no Marrocos, porém é dia do casamento de seu filho no México. Na
companhia do sobrinho, resolve levar as crianças à festa, que acaba durando mais do
que o esperado. Amélia precisa retornar à Califórnia, e seu sobrinho Santiago a leva de
volta, mas ele havia bebido demais, o que levanta suspeitas da polícia quando são
parados na fronteira com os Estados Unidos.
As quatro histórias parecem recortes de filmes diferentes. O roteiro não obedece
a uma sequência, e a mudança de uma cena para outra é realizada sem qualquer
transição. Assistir a um filme como Babel exige do leitor procedimentos de leitura
dialógicos. Todo momento faz-se necessária uma rede de conexões entre situações,
objetos e personagens para que seja conferida unidade à trama. Esses elementos são
apresentados ao espectador como recursos hipertextuais que auxiliam a leitura, a
recepção e a construção de sentido da obra.
3.2- Hipertexto e rizoma
Pierre Lévy, ao diferenciar o atual do virtual, coloca a virtualidade como uma
potencialidade e o atual como a realização dessa potencialidade. Para ele, a leitura é
“uma atualização das significações de um texto”(LEVY, 1996, p.41). O sentido do texto
é uma possibilidade e não antecede o ato da leitura, durante a qual se realizará a
concretização do sentido. A narrativa de Babel trilha caminhos que obrigam o leitor a
enveredar por uma ficção sem protagonistas ou coadjuvantes, nem noções de espaçotempo definidas. A compreensão ou a possível atribuição de unidade ao filme, para uma
melhor realização do sentido, é auxiliada pelos recursos hipertextuais postos à
disposição do espectador. Diferentemente do que ocorre com o formato digital, na tela,
ele não possui o acesso ao clique que poderia conduzi-lo aos links de auxílio. A
atualização do sentido dependerá dos hipertextos contidos em sua memória discursiva e
associativa.
Um rifle, uma bala, uma foto, um programa de tv, o diálogo entre Richard e o
filho ao telefone – que no final do filme é resgatado em forma de flashback – são os
41
links colocados à frente do espectador quando este começa a se sentir perdido, sem
ponta para se segurar na trama rizomática construída por Iñárritu. O termo “rizomático”,
utilizado aqui, está amparado no conceito de Deleuze e Guattari19. A narrativa
cinematográfica já há algum tempo tem abandonado o princípio aristotélico de contar
histórias. Assim como narrativas tais qual a de Memórias póstumas Brás Cubas ou de
experiências mais radicais como a de António Lobo Antunes em Exortação aos
Crocodilos20, Babel atende ao conceito de rizoma dos dois filósofos. Para eles:
É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão
superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no
nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o
uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da
multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser
chamado de rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15).
No filme abordado, a unidade de sentido só pode ser alcançada quando,
paradoxalmente, for extraída da multiplicidade de possibilidades que compõe a estrutura
do filme. Atar as várias pontas deste rizoma fílmico, buscando apenas reconstruí-lo
dentro de uma estrutura-raiz (ainda Deleuze e Guattari), é tentar lê-lo como um livro
clássico com começo, meio e fim (Aristóteles): “Um rizoma não cessaria de conectar
cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências,
às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito
diversos”(DELEUZE e GUATTARI, 1995, P.15).
No deserto do Marrocos, o garoto Youssef corre depois de atirar no ônibus, pois
percebe que fez algo errado. No estado da Califórnia, Mike (filho de Richard e Susan)
corre e se esconde da babá que o procura. O ato de correr pode ser entendido como um
significante comum que liga o núcleo marroquino ao americano, criando uma ideia
equivocada de continuidade. Mas o rizoma não se segmenta, bifurca-se; e o que seria a
continuação de uma cena é a ruptura temporária dela.
19
O termo “rizoma”parte do conceito do filósofo Gilles Deleuze e do psiquiatra Félix Guattari na obra
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
20
Exortação aos crocodilos é uma história narrada por quatro mulheres pertencentes a uma organização
terrorista de extrema direita que planeja atentados em Portugal pós-revolução dos Cravos. A narrativa é
fragmentada, com as memórias das personagens se misturando aos planos da realidade, fantasia e delírio.
As vozes se confundem e se interrompem abruptamente, fazendo com que o leitor seja obrigado a atar
pontas e desatar nós para atribuir, ao longo da leitura, significado ao texto.
42
Iñarritu cria essa falsa ideia em vários outros momentos. Depois que é informado
sobre o incidente do ônibus, Abdullah resolve fugir com os filhos, mas são
surpreendidos pela polícia, com a qual trocam tiros. Ahmed é ferido mortalmente.
Depois de se entregar e assumir total responsabilidade sobre o acontecido, Youssef
relembra um momento em que ele e o irmão brincavam de braços abertos resistindo ao
vento na montanha onde cuidavam das cabras da família. Sem corte, ouve-se um
barulho de helicóptero que logo aparece. Tal veículo, porém, não tem nenhuma ligação
com as memórias do menino, trata-se do socorro para Susan que aguarda ajuda numa
pequena cidade.
Numa outra sequência, Amélia fica sozinha com as crianças no deserto, fronteira
entre o México e os Estados Unidos, depois que, desesperado e com medo de ser preso,
Santiago foge, com o intuito de despistar a polícia. Ele não retorna, e Amélia precisa
procurar ajuda; então, pede às crianças que a esperem embaixo de uma árvore. Depois
se depara com a polícia na estrada e, quando volta ao lugar onde havia deixado Mike e
Debbie, não os encontra. Enquanto Amélia está sendo presa, ouve-se alguém gritando
“Richard, Richard”. Não era a babá chamando pelo patrão, mas a voz de Susan em
Marrocos procurando o marido enquanto delirava de febre.
Os meninos marroquinos tentam dormir, mas, assustados, olham a janela do
quarto que bate por causa do vento. Eles temem a chegada de alguém. Ouve-se um
barulho de rádio. É uma música que toca no carro de Santiago quando chega ao México.
Conforme postulam Deleuze e Guattari, “um rizoma conecta um ponto qualquer com
outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de
uma mesma natureza”(DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.32). Esses elementos usados
por Iñárritu ligam as cenas criando apenas a ilusão de contiguidade. Na realidade, são
signos hipertextuais que em vez de apontarem para uma sequência, conduzem a um
outro núcleo que nunca se sabe qual é exatamente.
Babel foge a qualquer tentativa de unidade num sentido tradicional, pois um
rizoma “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças”
(idem).
Os autores, no entanto, não deixam o leitor-espectador órfão do sentido que ele
tanto busca e, discretamente por meio dos hipertextos, ligam as várias histórias e até
antecipam alguns acontecimentos. Um exemplo disso é o fato de, muito antes de o filme
43
mostrar a prisão de Youssef e de seu pai, Chieko assistir a um noticiário em que é dito
que os suspeitos do atentado terrorista que vitimou uma mulher americana em Marrocos
haviam sido presos. Há também uma foto que o pai dela tirou com o marroquino a quem
presenteou com o rifle. Essa foto é outro elemento que serve de link para remeter o
espectador à idéia de que uma história não é tão dissociada da outra. Ibhraim tem uma
cópia dessa foto que também se encontra exposta na sala da casa de Wataya, pai de
Chieko.
Pode-se afirmar, de fato, que alguns hipertextos são pistas que o leitor vai
juntando e utilizando para construir sua rede de significações. Mas são elementos
discretos. A foto de Abdullah e Youssef no noticiário passa quase despercebida, já que a
tendência, naquele momento, é a de o espectador se concentrar na história de Chieko.
Porém, se acionado, esse hipertexto conduz a outra história, quebrando a linearidade da
leitura, conduzindo o leitor a outro espaço-tempo. Conforme já foi afirmado, não há o
clique do mouse, mas, na comodidade dos lares, o botão do controle remoto que permite
pausar, recuar ou avançar a cena.
A maioria dos filmes disponíveis em DVD possui um menu interativo por meio
do qual são acessadas informações relativas à produção, à direção, aos atores; e há uma
seleção de cenas que podem ser vistas numa ordem diferente daquela em que aparecem
no filme. Uma cena mal compreendida (ou mesmo que tenha marcado de tal maneira
que se tem a vontade de vê-la novamente) pode ser facilmente acessada com um apertar
de botão. As cenas de Babel, por exemplo, podem ser vistas numa sequência sem a
fragmentação narrativa do filme. Pode-se concluir com isso que o menu desfaz o rizoma
de Babel.
Em vários filmes, há menus com depoimentos dos atores falando de suas
experiências ao viver os personagens, comentários dos diretores e roteiristas a respeito
de como surgiu a ideia do filme e quais foram suas intenções. Mas, assim como no
hipertexto informático, o leitor escolhe acessar ou não essas informações.
O menu da cópia em DVD de Matrix traz uma opção chamada Siga o coelho
branco. Nela, o espectador tem a oportunidade de assistir a uma versão do filme na qual
aparece a imagem de um coelho branco em algumas cenas. Se neste momento for
pressionado o enter do controle remoto, o espectador é conduzido ao making of da cena,
tendo acesso à tecnologia utilizada nela, bem como aos comentários dos envolvidos no
44
filme. Logo após, automaticamente volta-se à narrativa. É o que ocorre, por exemplo, na
cena em que Neo “acorda” e seu corpo real sai da cápsula onde dormia e entra num
cano até chegar à nave de Morpheus. É o caminho que conduz à toca do coelho.
Para Jean-Claude Carrière, o aparelho de controle remoto é “o mais recente
instrumento individual de realização de filmes”(CARRIÈRE, 2006, p. 27). De fato, o
controle possibilita uma edição particular daquilo a que se vai assistir, é o recurso que
faltava para hipertextualizar a leitura de um filme.
3.3- O leitor
Para analisar como o espectador se relaciona com essa nova forma de ver um
filme, tomemos como exemplo um romance clássico como Iracema, de José de Alencar.
Num primeiro momento, os personagens são apresentados: a índia Iracema, o português
Martin. Ela abandona sua tribo para viver ao lado do estrangeiro, tem um filho e morre
logo após o parto. Esse resumo é bastante superficial, porque o que interessa é saber
que esses fatos são apresentados ao leitor na ordem em que acontecem. O mesmo não se
poderia falar a respeito do romance Exortação aos crocodilos, do escritor português
António Lobo Antunes. No livro, quatro mulheres falam de acontecimentos da história
de Portugal recém-saído da ditadura salazarista, onde um grupo de extrema direita
planeja atentados terroristas com o fim de restaurar o regime ditatorial. Os discursos de
cada uma das narradoras se fundem numa tessitura palimpséstica, com escritas
sobrepostas umas às outras, em que passado e presente participam de um jogo de vai e
vem vertiginoso em que o leitor precisa todo momento estar atento, correndo o risco de
muitas vezes não saber exatamente quem está falando ou em que ordem os fatos estão
ocorrendo. Essa prática é também bastante comum no cinema. Além de Babel, é
possível mencionar outros filmes como Amores Brutos (2000) e 21 gramas (2003),
também de Iñárritu; e Vanilla Ski (2001), de Cameron Crowe.
Novos procedimentos narrativos exigem também formas diferentes de leitura. O
leitor contemporâneo, tão habituado à leitura hipertextual no ciberespaço, às vezes tem
certa dificuldade em se relacionar com essa proposta no cinema.
45
É bastante comum ouvir-se de alguns espectadores o comentário: “não entendi
esse filme”. É possível gostar do que não se entende? Regina Zilberman, escritora e
professora da PUC/RS, citando o teórico da estética da recepção Hans Robert Jauss,
afirma:
O crítico alemão tem em mente recuperar a validade do prazer desencadeado
pela recepção de obra de arte, pois é aquele efeito a condição de
entendimento e compreensão dessa. Ambos os processos ocorrem
simultaneamente e indicam como só se pode gostar do que se entende e
compreender o que se aprecia (ZILBERMAM, 2001, P.91).
Jauss valoriza a experiência estética do leitor de um determinado tempo
histórico, o que faz com que o sentido de uma obra não esteja ligado apenas a seu autor
ou ao momento em que foi produzida, mas ao momento em que é lida. Um leitorespectador dos anos 20 não deve ter tido dificuldades em entender Nosferatu, de
Murnau. Ou o dos anos 70, Saló, de Pasolini, apesar do estranhamento que o tema
desenvolvido por esses diretores possa ter causado. Estranhamentos à parte, o que está
sendo contado fica entendido, já que os dois filmes seguem uma estrutura tradicional,
uma ordem direta.
O sentido da obra, conforme está sendo abordado, difere do objeto de crítica de
Jauss nos anos 70, quando, juntamente com Wolfgang Iser, postula a teoria da estética
da recepção. O problema da significação aqui não tem a ver com as intenções do autor
ao utilizar este ou aquele significante para tratar desse ou daquele tema, mas está ligado
a um procedimento narrativo, que, apesar de já existir contemporaneamente aos dois
teóricos, ainda não era largamente empregado no cinema como é hoje.
Em Babel, o grande desafio do leitor não está na interpretação da obra ou na
atualização dos significados, mas em desatar os nós produzidos por uma narrativa com
frases fílmicas cheias de anacolutos. O termo gramatical foi empregado, pois, conforme
as teorias de Metz, é possível falar de uma gramática do cinema. O pesquisador parte de
alguns pressupostos sausseurianos para falar inclusive de uma sintagmática do cinema.
Metz afirma que:
46
...a seqüência cinematográfica é uma unidade real, quer dizer uma espécie de
sintagma solidário no interior do qual os planos interagem (semanticamente)
uns sobre os outros. Este fenômeno evoca até certo ponto o modo pelo qual
as palavras interagem umas sobre as outras no interior de uma frase ( METZ,
1972, p.137).
Argumenta também que segundo alguns teóricos do cinema, o plano é uma
palavra, a sequência uma frase. No entanto, Metz estabelece algumas diferenças entre o
plano e a palavra, já que o plano é criado pelo diretor, e a palavra pré-existe no léxico de
uma língua; além do fato de que o plano fornece ao receptor uma quantidade infinita de
informações, o que o aproximaria muito mais de um enunciado. Em Babel, numa
mesma sequência há uma quebra no enunciado, uma ruptura na frase fílmica, um desvio
sintático que surpreende o leitor-espectador.
3.4- O título: hipertexto e intertexto
Que ligação tem o título do filme com o nome da torre que, segundo as
narrativas bíblicas, foi construída para unir a terra ao céu? A história é contada em
Gênesis 11:1-9. Na terra existia apenas uma língua. Emigrando do Oriente, os homens
encontraram uma planície na terra de Sinar e nela se fixaram. Ali tiveram a ideia de
construir uma cidade e uma torre cujo cimo atingisse o céu:
E o SENHOR dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e
suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi dado o nome de Babel,
visto ter sido lá que o SENHOR confundiu a linguagem de todos os
habitantes da Terra, e foi também dali que o SENHOR os dispersou por toda
a Terra.21
Sob o ponto de vista histórico, Babel, capital do império babilônico, era uma
cidade-estado extremamente rica e poderosa. Era um centro político, militar, cultural e
econômico do mundo antigo. Tal quais cidades como Nova York e Paris nos dias atuais,
ela recebia grande número de imigrantes de diversas nacionalidades, cada qual falando
um idioma diferente.
21
(Bíblia Sagrada, Ed. Ave-Maria, 2005, p. 57.)
47
Babel é um filme falado em quatro línguas: inglês, mandarim, espanhol e árabe.
Essas diferenças linguísticas dificultam a comunicação entre vários personagens. Depois
que Susan é baleada, Richard convence o motorista do ônibus em que viajavam com um
grupo de turistas a parar numa pequena cidade para achar um hospital. A dificuldade em
se fazer entender atrasou bastante o socorro. Santiago também teve problemas com o
idioma quando foi abordado pela polícia. Porém a língua não é a única “linguagem” que
compromete a comunicação entre os personagens. As barreiras são também políticas e
ideológicas.
O incidente provocado pela brincadeira dos dois meninos é lido e transmitido ao
mundo como um atentado terrorista. Quando o policial desconfia de Santiago e Amélia,
fica evidente que é pelo fato de serem mexicanos em território americano. Se a versão
bíblica para as diferenças linguísticas está correta, ou seja, se Deus deliberadamente
misturou as línguas para confundir os homens, obteve sucesso. No contexto do filme, o
mundo globalizado é uma imensa Babel, onde as pessoas não se entendem, só que por
razões não apenas linguísticas.
O título do filme é um intertexto, uma alusão metafórica à Babel bíblica. No
início dos créditos, o título passa aos olhos do espectador traduzido em várias línguas,
assim como o nome dos atores. A maioria dos filmes do circuito comercial é falada em
um único idioma (geralmente o inglês), independente da nacionalidade ou etnia dos
personagens. Não há uma língua dominante em Babel. Trata-se de um filme sem
nacionalidade específica, de personagens nômades e desterritorializados.
Entender o título também como um hipertexto significa, a partir dele, formular
hipóteses de sentido para o enredo antes mesmo do início da trama, já que o significado
da palavra “Babel” pertence a uma memória coletiva devido às referências bíblicas. No
filme, ninguém se entende assim como na torre.
As grandes navegações são apontadas como o início do processo de globalização
vivido hoje. Durante séculos, os mares serviram de ponte para o contato entre povos de
diversas culturas, do Oriente ao Ocidente. “Navegar é preciso; viver não é preciso” é
uma frase “gloriosa”, proferida por “navegadores antigos”22, parafraseada pelo poeta
português Fernando Pessoa, e que reflete o espírito de várias nações europeias nos
22
Trecho do poema “Navegar é preciso”, do poeta português Fernando Pessoa.
48
séculos XV e XVI. O comércio entre esses povos de diferentes nações possibilitou
também o intercâmbio cultural.
Se até o século XIX esses deslocamentos só poderiam ser feitos por via
marítima, a partir do XX já se podia falar em avião. A viagem de um país a outro deixou
de durar semanas ou meses e passou a ser feita em horas.
No final do século XX e no início do XXI, não se precisa de caravelas nem de
aviões. Em casa, na empresa ou numa lan house, pode-se fazer comércio com quem está
no Japão; ou visitar o Louvre, na França; ler um poema recém publicado na Inglaterra
ou assistir a um filme que nem mesmo chegou ao cinema.
Pierre Lévy observa que:
Cada forma de vida inventa o seu mundo (...) e, com esse mundo, um espaço
e um tempo específicos. O universo cultural, próprio aos humanos, estende
ainda mais essa variabilidade dos espaços e das temporalidades. Por exemplo,
cada novo sistema de comunicação e de transporte modifica o sistema das
proximidades práticas, isto é, o espaço pertinente para as comunidades
humanas (LÉVY, 1996, p. 22).
As novas formas de contar histórias sofrem uma influência direta das novas
formas de deslocamentos espaciais e temporais. O que se vê em Babel são personagens
que estão fora de seus países a trabalho ou fazendo turismo, mas mesmo assim
conectados às terras de origem pela memória, telefone ou televisão. Lévy argumenta
que:
...a multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um
novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de
uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de
proximidades ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a
nossos pés, forçando-nos à heterogênese (LÉVY, 1996, p.23).
Essa bifurcação e metamorfose de que fala o filósofo estão presentes na
construção da história contada por Alejandro Iñárritu. Os planos, as sequências e o
próprio texto são áreas cheias de bifurcações conduzindo o leitor aos quatro países em
que se desenvolvem as tramas. Babel é como se fosse uma das caravelas de Cabral ou
49
Vasco da Gama, o avião de Santos do Dumont ou um computador com internet banda
larga. O filme é um meio de viagem por quatro culturas, línguas, territórios e conflitos.
Ao leitor-espectador, sem capitão ou salva-vidas, cabe salvar-se do naufrágio
agarrando-se às possibilidades oferecidas pelos hipertextos contidos no filme e no
menu.
Para Lévy, “Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns
deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário”(LÉVY, 1996, p. 40).
Essa definição se aplica à leitura no ciberespaço, onde vários links podem ser acessados
de acordo com a vontade ou a necessidade de quem está diante da tela. Por isso, Lévy
argumenta que o “virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito,
quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do
texto a significar”(LÉVY, 1996, p.40). Para ele as significações de um texto se
encontram virtualizadas, podendo ser atualizadas no momento da leitura. No mundo
digital, o hipertexto aparece, de fato, como potência, podendo ou não ser acionado.
Em Matrix, os nomes dos personagens são compostos por ou são signos que se –
de acordo com a definição de Peirce – de fato significarem alguma coisa para o
espectador, podem atuar como hipertextos. Os significados desses signos encontram-se,
como diria Lévy, na instância do virtual. Por exemplo: a palavra “Oráculo”, quando é
mencionada no filme, existe enquanto signo pronunciado sem que suas possibilidades
de sentido estejam evidentes. Uma vez acionadas pelo leitor, essas possibilidades
propiciam inclusive uma antecipação acerca das funções desempenhadas pelo
personagem na trama. Lê-se (ou ouve-se) “Oráculo”, pensa-se num personagem que
adivinha o futuro.
Um dos hipertextos mais importantes para compreensão do argumento do filme
– pessoas que vivem num mundo simulado por computador – é o fato de Neo guardar
seus disquetes dentro de um exemplar de Simulacro e simulações de Jean Baudrillard.
Neste livro, o filósofo afirma que nas sociedades contemporâneas há “uma substituição
no real pelos signos do real”. Uma das principais discussões trazidas pelo filme é o
conceito de realidade e até que ponto o ser humano tem domínio sobre ela, o que é a
verdade concreta e o que seria apenas produto da mente humana.
50
No mundo simulado pela matrix, há apenas signos que substituem o homem e
tudo à sua volta. Quando Neo se vê dentro dele acompanhado por Morpheus – que lhe
diz: “bem vindo ao deserto do seu próprio real”23 –, ele estranha não estar careca, nem
com as marcas dos cabos que prendem os corpos dos humanos às máquinas. Seu mentor
então lhe explica que tudo aquilo não é real, mas a mente faz parecer. O filme pode ser
entendido como uma metáfora para o homem contemporâneo, envolvido cada vez mais
pelos simulacros que substituem os objetos reais, principalmente na internet.
Chamar a atenção para isso em nenhum momento significa defender a ideia de
que os espectadores de cinema sejam também leitores de filosofia. Mas é pertinente
considerar como o pop deglute todos os elementos da cultura e os reorganiza num
objeto estético desconstruindo as hierarquias que o social confere24. Lúcia Santaella, no
livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, pondera
que:
Não obstante o poder de que se revestem, contra todos os prognósticos, os
meios de massa não levaram as formas mais tradicionais de cultura, a cultura
superior, erudita, e as culturas populares ao desaparecimento. Provocaram,
isto sim, recomposições nos papéis, cenários sociais e até mesmo no modo de
produção dessas formas de cultura, assim como borraram suas fronteiras, mas
não apagaram sua existência (SANTAELLA, 2003, p. 56).
A intertextualidade, no filme aqui comentado, é a responsável por essas
“fronteiras borradas”. O clássico da filosofia contemporânea é lançado aos olhos do
espectador, e sua capa é um hipertexto que traduz a origem dos conflitos vividos pelos
personagens.
Em Matrix, inter e hipertexto são os principais procedimentos de criação. O
primeiro depende do acionamento do segundo para que haja a intersecção entre os
horizontes de expectativa do autor e do leitor, para que se estabeleça uma compreensão
coerente do filme. O espectador necessita, portanto, fazer uso dos links de que dispõe: o
hipertexto mnemônico.
O que faz, no entanto, o leitor que não dispõe desse link? Que recursos ele
utilizará para desenvolver uma interpretação coerente? É possível falar em interpretação
23
“É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já são os do Império, mas
o nosso. O deserto do próprio real” (BAUDRILLARD, 1981, p.8).
24
Assim como os romances de Dostoievski, segundo os estudos de Bakhtin.
51
incoerente quando se fala de cinema? Christian Metz argumenta que “um filme é
sempre mais ou menos entendido global ou superficialmente” (METZ, 1972, p.90), mas
que há muitos filmes ininteligíveis por sua “diegese recorrer a realidades ou noções por
demais sutis ou exóticas, ou que erroneamente se supõem conhecidas” (METZ, 1972,
p.91). Quando se vale do intertexto, o autor supõe que o receptor terá condições de
resgatar o sentido original do elemento citado ou aludido para que, inserindo-o no novo
contexto, faça as associações necessárias a uma interpretação coerente, já que, como
afirma Koch, o diálogo intertextual parte de textos que fazem parte da memória
discursiva dos interlocutores. Durante a leitura de um livro ou filme, a interlocução se
dá entre autores e leitores, só que muitas vezes este último pode não entender a
linguagem do primeiro.
52
4- O LEITOR-ESPECTADOR: CO-AUTOR
Neste capítulo, será abordada a relação do leitor-espectador como co-autor da
obra que lê. Para tal, buscar-se-á um aporte teórico na Estética da Recepção,
principalmente nas teorias de Hans Robert Jauss e Wolfgan Iser, além das considerações
de outros autores, como Roland Barthes, sobre o papel do leitor e sua contribuição na
atribuição de novos sentidos às obras durante a leitura. Essa abordagem será amparada
pela experiência vivenciada, durante a exibição de Matrix, Dom e Shrek, a jovens de
escolas da rede pública e privada da cidade de Campos dos Goytacazes, que
responderam a questionários abertos, metodologia entendida como a ideal para essa
pesquisa. As respostas dadas serão utilizadas como exemplificação para os pontos de
vista aqui defendidos sobre a recepção do cinema intertextual.
Inicialmente, é preciso pensar o sentido da palavra leitor e tentar esboçar uma
resposta para a pergunta do escritor argentino Ricardo Piglia, no livro O último leitor:
“O que é um leitor?”. Piglia responde de diversas maneiras tal interrogação, e uma das
respostas é a de que “Um leitor é também aquele que lê mal, distorce, percebe
confusamente”(PIGLIA, 2006, p. 19). O estudante Victor Nunes25, que ao assistir a
Dom, interpretou a expressão “olhos de ressaca” como os olhos de alguém que ingeriu
bebida alcoólica, se encaixa nesse perfil apresentado por Piglia, o que não o exclui da
categoria de leitores.
Quando se refere à leitura de Finnegans Wake, de James Joyce, o autor afirma
que essa é uma leitura submetida a uma prova extrema, devido à quantidade de palavras
transmutadas, amontoadas em linhas nebulosas, das quais só se é possível ler pedaços
soltos, restos e fragmentos; e que, neste caso, a unidade de sentido é ilusória. Ainda
parafraseando o conterrâneo de Borges, o leitor moderno, assim como o Dom Quixote
de Cervantes, vive num mundo rodeado de signos, no qual muitas vezes se vê perdido.
Ler mal, fazer associações incoerentes, escolher o que ler de acordo com suas
necessidade é de fato um direito de todo leitor, já que “a ficção não depende apenas de
25
Aluno do Colégio Alpha Vestibulares, assistiu ao filme e respondeu ao questionário no dia 16/09/2009
antes de ler o romance.
53
quem constrói, mas também de quem lê”(PIGLIA, 2006, p. 28). Todas essas
considerações são tecidas a respeito da leitura do texto literário, e o objeto deste
trabalho é o texto fílmico. Também os postulados dos teóricos da recepção são bastante
voltados para aquele tipo de texto. Por isso é preciso deslocar o foco dessas teorias e
reforçar a ideia do espectador como leitor; e do cinema, como texto. Neste caso, a
pergunta deveria ser: o que é um leitor-espectador?
Alguns filmes de construção metalinguística apresentam personagens cujas vidas
foram fortemente marcadas pelo cinema. O Totó – de Cinema Paradiso, produção
franco-italiana de 1989 – e Cecília, de A rosa púrpura do Cairo, dirigido por Woody
Allen, são dois bons exemplos. Totó passa toda a sua infância assistindo a filmes no
Paradiso, que além de cinema é a única atração de uma cidade do interior da Itália.
Diante da tela, o personagem reorganiza seu mundo em desordem depois da perda do
pai na Segunda Guerra Mundial. Para ele, o cinema extrapola o limite do entretenimento
e vira uma opção de vida, a ponto de ele escolher a profissão de cineasta, passando de
espectador a autor. Assim como há o “leitor viciado, o que não consegue deixar de ler, e
o leitor insone, o que está sempre desperto”(PIGLIA, 2006, p.21), pode-se falar também
no espectador que não consegue deixar de “ver”. E Totó é um deles. Para ele, ver um
filme não é apenas uma prática, “mas uma forma de vida”(idem).
Totó ou Salvatore, depois de uma desilusão amorosa, vai embora para Roma
onde se torna diretor famoso. Só retorna a sua cidade vinte anos depois para o velório de
Alfredo, o projecionista do Paradiso, que despertou nele a paixão pela sétima arte.
Todos na cidade aprenderam a amar o cinema, de Truffaut a Fellini; dos
musicais aos filmes de guerra. Mas os personagens de Tornatore são meros espectadores
diante de uma arte que, na primeira metade do século XX, ainda dava seus primeiros
passos enquanto linguagem. A leitura do filme para os frequentadores do Paradiso se
limitava aos níveis do que Maria Helena Martins, em O que é leitura, chama de
sensorial e emocional, excluindo o racional. Cinema para eles é apenas diversão e
emoção.
A personagem do filme de Woody Allen é a espectadora ingênua. Em sua mente,
ficção e realidade se misturam. Ela vê no cinema um local de fuga para as agruras de
seu cotidiano em companhia de um marido alcoólatra e viciado em jogo. Sua leitura
também não vai além da emocional.
54
É importante pensar a pertinência dos termos leitor, espectador e leitorespectador; pois estabelecer uma diferença entre esses três substantivos pode ferir o
próprio conceito de leitura. Ler não é apenas a decifração de códigos verbais. Leem-se
também quadros, esculturas, música, filmes, tudo que for constituído por signos é
passível de leitura. Será, portanto, abandonado, a partir desse momento, o termo “leitorespectador”, para ser utilizada apenas a palavra “leitor” ao fazer referência àquele que lê
o filme conciliando o sensorial, o emocional e o racional.
Essas três categorias se associam à divisão que Charles Sanders Peirce faz do
signo: primeiridade, secundidade e terceiridade, sendo esta última a que se encontra no
âmbito da razão, apesar de os processos de leitura geralmente passarem pelos três
níveis.
O indivíduo que se comporta meramente como espectador é aquele cuja leitura
se limita a uma tradução icônica dos signos a que se expõe durante uma projeção. Tratase apenas de decodificação.
O filósofo Roland Barthes, em seu conhecido ensaio “A morte do autor”,
escreve:
...um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que
entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há
um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como
se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma
escritura (BARTHES, 2004, p. 64).
Uma ressalva às palavras do ensaísta francês: os lugares em que as “as escrituras
múltiplas” se fundem são autor e – para fazer jus à terminologia escolhida – o leitor. O
autor não pode ser pensado como o único senhor dos sentidos de um texto, porém
também não deve ser esquecido como o agenciador de signos por meio dos quais o texto
é veiculado. Afirmar que o leitor é o lugar onde o texto de fato se inscreve não deve
significar o esquecimento da figura do autor, sem o qual não existe obra de arte.
Jauss diz que toda arte é uma atividade produtora, receptiva e comunicativa, e
que perguntas sobre a experiência estética precisam ser colocadas, pois esta não está
ainda esclarecida. As perguntas norteadoras desta dissertação abordam as maneiras
como se dá a construção do sentido pelo leitor contemporâneo durante fruição de uma
narrativa fílmica intertextual. Não há, no entanto, a pretensão de esclarecer o que,
55
segundo Jauss, ainda carece de aprofundamentos; mas há o intuito de propor alguns
caminhos que reduzam o fosso que tem separado grande parte do público de uma leitura
mais ampla e crítica do que se vê na grande tela ou na tv.
Um texto percorre a história humana adquirindo significados variados,
adaptando-se a épocas e culturas diversas. É o que torna possível que clássicos da
cultura ocidental como Macbeth, de Shakespeare, possam ecoar em terrenos orientais. A
peça do dramaturgo inglês foi transposta para o cinema pelo cineasta japonês Akira
Kurosawa sob o título de Trono manchado de sangue (1957). Assim como Romeu e
Julieta saiu da Verona do século XV para a América de novaiorquinos e mexicanos em
West side history (1961). Nos dois casos, o espectador assiste a uma narrativa em que o
dialogismo não possui o caráter de cinema intertextual. Trata-se apenas de adaptações
nas quais os elementos necessários à interpretação dos signos são intrínsecos à
narrativa.
Ao analisar as argumentações dos teóricos da Escola de Konstanz, é possível
perceber que, quando Jauss afirma que uma das funções da hermenêutica literária é
“reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado
diferentemente, por leitores de tempos diversos”(JAUSS, 1979 p. 70), e que as
interpretações de fato serão variadas de acordo com o momento em que são recebidas, o
teórico refere-se a textos como os mencionados acima. Sem dúvida alguma, um
espectador japonês do século XX não lerá Trono manchado de sangue como o inglês do
século XV leu Macbeth.
O que vemos hoje é uma realidade criadora que desafia os estudos acerca da
recepção do texto fílmico: a intertextualidade tornou-se um dos principais
procedimentos de composição, e há pouca pesquisa sobre as formas de recepção desse
tipo de texto, apesar de o mesmo processo ser facilmente observado em outros setores
da produção cultural como na música e na propaganda.
O leitor é entendido como co-autor, pois é nele que se realiza o sentido. No
entanto há alguns pré-requisitos para que esse processo se consuma. Ninguém consegue
realizar a leitura de um texto verbal antes da alfabetização primária, sem a qual não
seria possível qualquer decifração do código linguístico. Essa alfabetização se dá de
forma extremamente monológica. Na maioria das escolas, ensina-se apenas a leitura do
texto verbal estruturado linearmente. A imagem é trabalhada apenas como ilustração
56
para as aulas de literatura e história, sem ser abordada como linguagem. Seria
necessário pensar numa alfabetização dialógica e intertextual. Dialógica, pensando nas
relações entre os diferentes tipos de textos verbais e não-verbais; intertextual, a partir do
momento em que um texto, feito de signos oriundos de outras obras, requer uma leitura
também intertextual.
É pertinente falar neste momento sobre o pacto de leitura. Mais especificamente
um pacto intertextual. O termo pacto está sendo utilizado partindo de uma conceituação
de Philippe Lejeune, quando fala do pacto autobiográfico. Para ele, um texto só será
considerado autobiografia se houver a assinatura de um contrato de leitura que
pressupõe na obra a coincidência de identidade entre nome do autor, narrador e
personagem; já que poucas são as diferenças internas entre a escrita autobiográfica e o
romance.
No que tange ao cinema intertextual, faz-se também necessária a assinatura de
um tipo de pacto para que a produção não seja lida de forma monológica, o que por
vezes acarreta algum tipo de entropia que prejudica a produção de sentido e, em alguns
casos, até mesmo a fruição estética.
Muitos dos jovens entrevistados para este trabalho comportaram-se diante dos
filmes como bons espectadores atrás de entretenimento. Ora, essa é também uma das
funções da arte, principalmente a cinematográfica. E um filme pode, de fato, exercer
apenas tal função. No entanto, mesmo as possibilidades de entretenimento podem ser
bastante ampliadas quando as condições para a sua compreensão são mais amplas.
O cinema, como todas as formas de expressão artística, também pode ser um
instrumento de conhecimento e transformação. Conformar-se com o fato de que a
maioria do público deve contentar-se com uma leitura meramente superficial do que
assiste significa ratificar um pensamento elitista que reserva apenas a uma minoria
letrada o olhar crítico sobre as produções artísticas. O leitor ao qual é conferida a
autoridade de co-autor está alfabetizado para as leituras monológicas propostas nos
bancos escolares, mas ainda carece de uma educação para que possa assinar
conscientemente o pacto intertextual proposto por muitos autores.
57
Não raro, alguns espectadores apresentam uma reação negativa a Matrix por se
tratar de um filme cuja compreensão depende de uma rede de associações semióticas
que nem todos estão habituados a fazer.
Numa das sessões realizadas no IFF/CAMPOS, com uma turma de primeiro ano
do ensino médio, a aluna Karina Gonçalves deu o seguinte depoimento quando
interrogada se havia gostado do filme: “Não muito, muitas coisas juntas, que acabam
dificultando a compreensão”. Em contrapartida, a estudante Luiza S. Oliveira, da
mesma turma; afirmou que “Sim, os efeitos e as mensagens subliminares tornaram o
filme muito interessante.”
O cinema é das artes a que mais está associada à ideia de entretenimento, não é
uma linguagem que – como a música, a dança, o teatro e a pintura – já foi vinculada a
cultos religiosos ou utilizada com fins didáticos. O espaço onde hoje está inserida a
maioria das salas de cinema, ou seja, os shoppings e centros de compra, é visto como
local de consumo e diversão. Na própria casa, dificilmente se desassocia um filme da
ideia de lazer. Ora, lazer implica prazer.
Seguindo os passos de Jauss, é procedente, antes de qualquer coisa, estudar
como se dá experiência estética que, como já foi visto anteriormente, foi durante muito
tempo negligenciada pela crítica literária e de outras linguagens artísticas. O que é
necessário para que uma obra de arte proporcione prazer ao leitor? Isso não depende
necessariamente da obra, mas do próprio leitor. A arte, porém, tornou-se objeto de
consumo como os demais produtos postos no mercado, consumo rápido e descartável. O
cinema atual tem investido numa linguagem que satisfaça apenas o prazer dos sentidos.
Efeitos visuais e sonoros impressionam o público, conduzindo-o a uma fruição
totalmente desprovida de julgamento racional, incapaz de avaliar o conteúdo
ideológico, político ou estético.
O cinema americano é hegemônico enquanto linguagem, ele dita os modelos a
serem seguidos: explosões, correrias, comédias centradas em estereótipos do
adolescente dos EUA, terror ou sexo, não importando a história a ser contada, ela é
apenas um apêndice do deleite visual proporcionado pelas imagens. O filme que exija
maior atenção ao roteiro – e aí podemos citar os do diretor sueco Ingmar Bergman, por
exemplo – são considerados “chatos”. Também os que necessitam de um maior esforço
58
mental para compreender até mesmo o jogo de imagens, como os filmes do cineasta
multimeios26 Peter Greenway, recebem a mesma classificação.
Para Jauss, a experiência estética deve envolver três categorias básicas: poiesis,
aisthesis e katharsis. A primeira refere-se à criação; a segunda à recepção, e a terceira, à
comunicação, que envolve os efeitos da recepção.
Poiesis “corresponde à caracterização de Hegel sobre a arte, segundo o qual o
indivíduo, pela criação artística, pode satisfazer a sua necessidade geral de sentir-se em
casa, no mundo” ao retirar dele sua “dura estranheza e convertê-la em sua própria
obra”(JAUSS, 1979, p.100). A obra intertextual só pode ser criada por um artista leitor.
A criação é resultado de uma série de textos lidos ao longo da vida e que exerceu
influência decisiva no processo de criação. Nos três filmes que integram o corpus básico
deste trabalho, percebe-se que seus criadores se valeram da palavra do outro, a fim de
transpor para a tela suas reflexões sobre o amor, a realidade e o preconceito. Para esses
artistas, o intertexto não é apenas um recurso estilístico, mas o principal procedimento
de composição. O prazer advém do fato de adotarem, como seu, o discurso proferido
por poetas, dramaturgos, romancistas e filósofos.
Aisthesis compreende a “recepção prazerosa do objeto estético como uma visão
intensificada” sem conceituações, como uma visão desinteressada do objeto,
legitimando-se “o conhecimento sensível, em face da primazia do conhecimento
conceitual”(JAUSS, 1979, p. 101). Aisthesis é o que define a experiência de grande
parte do público contemporâneo de cinema. O prazer pelo prazer, a fruição unicamente
pelos sentidos. Peter Greenaway, numa entrevista concedida ao jornal Folha de São
Paulo, em 22/10/198827, disse que:
...as pessoas têm a impressão de que não devem fazer nenhum esforço
quando vão ao cinema. É sentar-se, olhar e é tudo. É preciso esquecer a
realidade, mudar as idéias (...) eu amaria um cinema onde fosse normal ver
filmes mais de uma vez. Eu amo o cinema que, ao invés de fingir que dá
respostas, faz perguntas.
A experiência estética do receptor inicia-se pela aisthesis, mas não precisa
necessariamente se limitar a ela. A afirmação do cineasta inglês, autor de O cozinheiro,
26
“Entende-se por multimeio a reunião de diversas áreas de um mesmo contexto, que estrutura um corpus
sob a forma de mosaico”(GARCIA, 2000, p.19).
27
Esta fala do cineasta está reproduzida no livro Introdução ao cinema intertextual de Peter Greenaway,
do pesquisador Wilton Garcia.
59
o ladrão, sua mulher e o amante, reflete o prazer que o artista poderia ter quando
percebesse seu horizonte de criação fundindo-se ao da recepção.
Matrix é um filme que precisa ser visto mais de uma vez para ser fruído em sua
plenitude. Trata-se de uma obra capaz de agradar tanto aos paladares mais exigentes
quanto à composição do roteiro, quanto aos que se deslumbram apenas com seus
efeitos. Estes, no entanto, podem não tentar uma segunda exposição à trama dos irmãos
Wachowski, por não estarem dispostos ou mesmo por não disporem de condições para
decifrar os códigos que estão além das imagens.
Experiência que vale a pena citar é a do crítico e jornalista canadense David
Gilmour, registrada no livro Clube do Filme (2009). Ele narra sua história com o filho
adolescente, o qual retira da escola devido a uma sucessão de fracassos, e a quem
propõe que assistam semanalmente a uma série de filmes escolhidos por ele, desde
clássicos como A doce vida (1960), de Fellini, a Instinto Selvagem (1992), de Paul
Verhoeven. O projeto é iniciado com Os incompreendidos (1959), de François Truffaut.
Relata Gilmour: “Pensei que seria uma boa maneira apresentar os filmes de arte
europeus, embora soubesse que ele provavelmente os acharia tediosos até que
aprendesse como assistir a eles. É como aprender as variações da gramática”
(GILMOUR, 2009 p. 17).
Aprender a ler filmes se assemelha ao aprendizado da leitura de livros. Um leitor
exposto apenas ao modelo de José de Alencar, por exemplo – história narrada com
começo, meio e fim devidamente delineados, personagens planos e narradores com
discursos monológicos – terão certo estranhamento diante das inúmeras possibilidades
de leitura e de significações trazidas por Machado de Assis, assim como a leitura deste
também pode ser uma tarefa nada fácil para um recém-alfabetizado, que ainda não
domina as estruturas sintáticas, gramaticais e semânticas da língua.
Katharsis é a experiência que, segundo Jauss, funciona como“mediadora,
inauguradora e legitimadora das normas de ação” conduzindo o “ouvinte e o
espectador” à transformação de suas convicções e à libertação de sua psique. “Liberta o
espectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano” levando-o por
meio do “prazer de si no prazer no outro para a liberdade estética de sua capacidade de
julgar”(JAUSS, 1979, p. 102). A partir da katharsis pensa-se nos efeitos da aisthesis, ou
melhor dizendo, nos efeitos da recepção da obra de arte. Pensando sob o mesmo prisma
de Aristóteles, ao falar dos efeitos da tragédia no espectador, katharsis, ou
60
simplesmente catarse, é a purgação das emoções por meio da arte. Para o filósofo grego,
o medo e o terror advindos da exposição ao evento trágico transformariam de alguma
forma o comportamento do indivíduo. É, pois, mediante a katharsis que a arte passa a
cumprir sua função social.
Ver o leitor como co-autor de uma obra significa, portanto, enxergá-lo como o
ser no qual se conjugam as três etapas da experiência estética. O leitor co-autor não é
aquele que se entrega apenas aos prazeres da fruição meramente sensorial. Citando um
aforismo de Goethe, Jauss sentencia: “Há três classes de leitores: o primeiro, o que goza
sem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, o intermédio, que julga gozando e
goza julgando é o que propriamente recria a obra de arte”(JAUSS, 1979, p. 103).
Quando se fala em intertextualidade, fala-se na leitura de diversas obras
fragmentadas e costuradas no mosaico de citações mencionado Julia Kristeva. Não se
trata de como uma obra escrita há séculos será lida, mas de como ecos de muitas obras
estão sendo relidas por novos autores e co-autores numa única estrutura narrativa.
Conceber o leitor como co-autor se dá pelo fato de ser no ato da leitura que se
consuma o sentido do texto. E não há sentido que preceda o momento da recepção.
Stanley Fish entende o sentido como “aquilo que o leitor elabora quando está lendo”, e
que o “texto confunde-se à experiência que proporciona e à que o leitor carrega
consigo”(ZILBERMAN, 2001, p. 96).
4.1- O leitor e o signo: intertexto na cultura contemporânea
Assim como as formas de produzir arte variam de acordo com períodos
históricos, consequentemente as formas de recepção e leitura também. O intertexto
como método de criação foi mencionado em muitos momentos desta dissertação. Desta
vez será feita uma abordagem específica sobre tal procedimento em vários segmentos da
cultura contemporânea, já que, além do cinema, ele tem aparecido com frequência em
outros setores.
Um exemplo é a música “Porto Alegre” (nos braços de Calipso), do disco Maré
(2008), da cantora Adriana Calcanhoto. Na faixa, o eu-poético fala como um Ulisses
deslocado das páginas da Odisséia – poema épico atribuído ao grego Homero, escrito
aproximadamente no século VIII a.C – e aportado no século XXI, época em que o signo
“Calipso” já não é mais tão associado à ninfa que aprisionou e tentou seduzir o herói na
61
ilha de Ogígia, quando retornava a Ítaca, sua terra natal, depois do fim da Guerra de
Tróia:
Amarrado num mastro/Tapando as orelhas/Eu resisti/ Ao encanto das
sereias/Eu não ouvi o canto das sereias/Eu resisti/Mas chegando à praia /Não
fiz nada disso/Então caí/Nos braços de Calipso/Não resisti /Depois disso eu
não tive/Nenhum outro vício/Senão dançar ao ritmo de Calipso.
Retomando a conceituação de Saussure, um signo é constituído de duas partes:
significante e significado, sendo este último o conceito que se tem daquele. Ou seja: a
sequência de grafemas e fonemas /C/A/L/I/P/S/O é um significante, cuja imagem está
associada – na letra da música – à ninfa grega. No entanto, um significante pode
adquirir vários significados com o uso que for feito dele. O mesmo signo linguístico
representa uma das luas de Saturno, o nome de um grupo musical brasileiro, um gênero
de orquídeas, um personagem do filme Piratas do Caribe (2003), o nome do primeiro
navio do pesquisador francês Jacques Cousteau.
É na letra da música, porém, que o intertexto se instaura como método de
composição. Nela, “Calipso” não é apenas um signo que nomeia um navio ou uma
pessoa, mas um elemento cuja significação é responsável também pela leitura coerente
do texto.
Ainda na trilha dos exemplos, citemos o signo não verbal, principalmente no
cinema, linguagem que prima pelo discurso imagético. Desde Um trem chegando à
estação (1895), primeiro filme a ser exibido publicamente, a sétima arte vem
construindo uma gramática e uma cultura próprias, mas que apresentam muitas
semelhanças com a linguagem verbal.
Assim como frases, palavras e personagens oriundos de clássicos da literatura
são intertextualizados, o mesmo tem ocorrido no cinema. Em Shrek 2, o Gato de Botas
encerra uma coreografia tal qual a da personagem Alexandra Owens no filme
Flashdance (1983): numa cadeira, puxando uma corda fazendo com que caia água em
seu corpo. A mesma cena aparece em Elvira, a rainha das trevas (1988), comédia de
terror que fez sucesso nas tvs americana e brasileira. Nos três filmes, alguns signos se
62
repetem: a cadeira, a corda e a água. Eles compõem um plano28 assim como uma
sequência de palavras organizadas sintática e semanticamente podem compor um
enunciado. Pode-se dizer que os significantes utilizados no referido plano são os
mesmos; e as alterações, no significado, resultantes das intenções parodísticas de seus
autores como recurso humorístico.
Esse jogo de citações de textos alheios aparece também na propaganda. A
empresa Hortifruti espalhou em várias cidades outdoors nos quais títulos de filmes
foram parodiados para vender frutas, legumes e verduras. E o vento levou (1939)
transformou-se em E coentro levou. No cartaz, o estilo da letra, as cores e o cenário são
reproduções fiéis ao cartaz do clássico americano estrelado por Vivian Leigh e Clark
Gable.
Para explicar tamanha incidência de intertextos, é possível pensar em uma crise
criativa, ou se pode pensar numa forma de composição bastante recorrente na era
moderna ou pós-moderna. Tais questionamentos foram os motivadores das reflexões a
seguir. Esgotá-los com exatidão é uma pretensão que esta argumentação está longe de
ter. Além disso, são perguntas cujas respostas estarão sempre carentes de exatidão, já
que a cultura não pertence às ciências exatas. Ainda assim, é necessário pensar essas
questões num momento em que o conhecimento do passado cultural e artístico tem sido
visto como algo irrelevante, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, tem nutrido a
produção contemporânea.
Iuri Lotman, em seu livro La semiosfera, fala de algumas coincidências de
“nombres, motivos, sujets e imágenes em las obras de literaturas, mitologias y
tradiciones de poesia popular distantes cultural e historicamente”( LOTMAN,1996,
p.61). Não é novidade a frequência dessas coincidências em outros momentos da
história. É pertinente que se retomem os exemplos dos romances realistas Madame
Bovary (1857), de Gustave Flaubert; Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis e O
primo Basílio (1878), de Eça de Queirós. Publicados em países distintos – França,
Brasil e Portugal respectivamente – esses romances guardam entre si uma
intertextualidade temática: o adultério feminino e seus efeitos na vida dos protagonistas.
Os três são repletos das “coincidências” referidas por Lotman. Além do adultério (não
28
Na linguagem cinematográfica, o plano é um trecho de filme rodado sem interrupção. Segundo
Christian Metz , um plano corresponde a uma frase.
63
comprovado no livro de Machado), a morte das personagens femininas no final é outro
ponto comum.
Já que das três, a história de Bentinho e Capitu foi publicada por último, teria
Machado de Assis sido influenciado pelas narrativas de seus contemporâneos europeus?
Provavelmente, apesar de, no século XIX, os livros não circularem de um país para
outro com a rapidez de hoje29. Mas também seria ingênuo pensar o adultério como uma
temática exclusiva dos realistas. Shakespeare – com a peça Otelo –, mais ou menos três
séculos antes da tríade de autores, já havia concedido à humanidade uma história em
que o ciúme e o adultério (neste caso Desdêmona era inocente, pois tudo não passara de
intriga do vilão Iago) arrastaram os protagonistas a um final trágico.
As “coincidências” de que fala Lotman dizem respeito a elementos que fazem
parte da memória cultural da humanidade com seus textos, signos, personagens, etc;
compondo um espaço semiótico que o autor chama de semiosfera, onde textos de
culturas e épocas diferentes se encontram gerando novos textos. Também não há as
hierarquias tão comuns à vida social. Na semiosfera “se viola la jerarquía de los
lenguajes y de los textos: éstos chocam como lenguajes y textos que se hallam en un
mismo nivel”(LOTMAN, 1996, p.30).
É possível associar essa teoria ao dialogismo bakhtiniano. Em sua perspectiva
teórica, Bakhtin pensa a produção artística em constante diálogo não apenas entre
textos, mas também entre mente e mundo. Assim como o proposto pelo filósofo russo
acerca da obra de Fiódor Dostoievski, na semiosfera, haveria também a comunhão de
diferentes discursos, mas todos plenivalentes. Nesse espaço, as fronteiras entre o erudito
e o popular, o sagrado e o profano, e outras estéticas vistas durante muito tempo como
incompatíveis, são borradas30, reduzidas, em alguns casos até mesmo eliminadas.
O capítulo CXXXV, de Dom Casmurro traz o título da peça do dramaturgo
inglês da Renascença. A alusão ao personagem shakespeareano se deu pelo fato de
Bentinho ir ao teatro e se deparar “justamente” com a encenação da referida peça.
29
De fato, como atestam as ressalvas aos pormenores excessivos do naturalismo de Eça de Queirós, bem
como ao achatamento da complexidade psicológica da composição de suas personagens, na famosa
análise crítica publicada em 1878, Machado de Assis foi arguto “pensador e interlocutor” de seu tempo.
30
Lúcia Santaella utiliza o termo “borraram” quando fala de como os meios de comunicação de massas e
as mídias digitais contribuíram para a redução das hierarquias entre “as formas tradicionais de cultura, a
cultura superior, erudita, e as culturas populares”(SANTAELLA, 2003, p.56).
64
Assim como Otelo, ele também desejava a morte da esposa: “O último ato mostrou-me
que não eu, mas Capitu devia morrer”(ASSIS, 1971, p. 178). E a esposa morre na Suíça.
Machado de Assis transpõe para o universo ficcional sua experiência de leitor.
Para Lotman “La no homogeneidad estructural del espacio semiótico forma reservas de
processos dinâmicos y es uno de los mecanismos de produção de nueva información
dentro da esfera” (LOTMAN, 1996, p.30). Dom Casmurro, como a maioria dos
romances de Machado, é repleto de intertextos que vão de alusões a clássicos da
literatura – como a peça já mencionada – a citações e paródias de textos bíblicos.
A dinâmica da criação intertextual requer também a produção de nova
informação, caso contrário haveria apenas a repetição do discurso do outro. O
dialogismo deve resultar em uma criação nova para que a cultura siga seu curso de
renovação constante. Dom pode ser entendido como uma criação nova a partir de um
acervo de signos criados pelo Bruxo do Cosme Velho31. Nesse caso, não se trata apenas
de uma intertextualidade temática, mas de um tecido elaborado com linhas
descosturadas de um outro.
A semiosfera nutre de signos a obra intertextual que, como toda forma de arte,
tende a algum tipo de comunicação. Analisando os elementos presentes na cadeia
comunicativa, toma-se o autor como a fonte; a obra, a mensagem e, logicamente, o
espectador como o receptor, que, de acordo com os postulados da estética da recepção,
atuaria não apenas como um sujeito passivo diante da obra, mas também como parte do
processo de criação. Sob este aspecto não seria forçoso unir as teorias de Bakhtin e
Lotman às de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, pois convocam o leitor a tomar parte
no processo de elaboração da obra de arte.
Mas, assim como os autores, também o leitor precisa nutrir-se dos signos que
compõem a semiosfera para que o diálogo também se estabeleça em sua mente.
Segundo Lotman, para que a geração de uma nova mensagem seja possível, é necessário
que
os
diferentes
códigos
sejam,
de
certa
forma
“uma
única
persona
semiótica”(LOTMAN, 1996, p.69). Criar um diálogo entre esse pensamento e o
proposto pelos teóricos da escola de Konstanz pode significar a procura de um caminho
que reduza a distância entre emissores e receptores de mensagens intertextuais.
31
Epíteto conferido ao escritor Machado de Assis e consagrado depois da publicação do poema Ao bruxo
com amor de Carlos Drummond de Andrade.
65
Falar do receptor implica levantar o problema do repertório – acervo de
informações necessário à leitura e compreensão coerente dos textos. Em filmes como
Matrix e Shrek, o repertório deve ser também de signos com significações préexistentes. Não se trata apenas de palavras e suas polissemias, mas de significantes com
significações prévias que, mesmo no caso de recriação – seja no momento da produção
seja no da leitura – necessitarão do repertório, para que a entropia não seja tamanha a
ponto de comprometer a comunicação.
O repertório origina-se da formação individual e depende da família, da
sociedade e principalmente da escola, que não tem cumprido de forma satisfatória seu
papel. Biblioteca ainda é uma realidade distante de muitas instituições de ensino,
principalmente da rede pública. As que possuem uma geralmente não desenvolvem
projetos que estimulem a leitura; além do fato de até mesmo os professores lerem
pouco. Na realidade, a televisão e a internet assumiram o papel de formadoras de
repertórios. No entanto a maioria das emissoras de tv se ocupa de programas que
garantam a audiência apenas, ficando as redes estatais encarregadas dos programas
educativos que têm poucas chances de superar a programação das emissoras privadas,
predominantemente constituída de filmes de comédia e ação americanos, reality shows e
novelas.
A internet é um instrumento muito presente na formação do indivíduo,
principalmente do jovem, porém é um espaço de busca. Como as informações se
encontram virtualizadas, é necessário que o internauta também já possua algum
repertório que possa ser enriquecido no ciberespaço.
Para Lotman, a mensagem nova origina-se de uma inicial, e a consciência
criadora surge do intercâmbio entre elas. O autor ainda ressalta que “La conciencia
creadora es imposible en lãs condiciones de un sistema completamente aislado,
uniestrutural (...) y estático”(LOTMAN, 1996, p.71). De acordo com as perspectivas
aqui presentes, pode-se tomar autor e leitor como consciências criadoras entre as quais
deve haver intercâmbio semiótico necessário à significação.
Segundo Wolfgang Iser, o texto é um campo onde os jogadores são os autores e
os leitores. De acordo com suas teorias “o texto é composto por um mundo que ainda há
de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a
66
interpretá-lo; tarefa que leva o leitor a repetir o mundo encenado no texto ou transgredilo.”Metaforicamente é possível imaginar autor e leitor num campo onde a bola são os
signos, “ a confrontação provoca um movimento de ida e vinda que é básico para o jogo
e a diferença resultante precisa ser erradicada para que alcance um resultado” (ISER,
1979, p. 108). O resultado pretendido pelo jogo do texto é o sentido atribuído pelo
leitor, não o pensado pelo autor, mas o construído por este e transformado por aquele.
Ainda explorando a metáfora da bola, o que pode ocorrer quando um jogador
experiente e treinado é posto em campo com outro que não passou pelo treinamento ou
participou de poucos jogos? O passe da bola pode ser perdido, as chances de gols
reduzidas e o resultado insatisfatório. Para Iser, “há um elemento no papel do jogo que
escapa do domínio do jogador”(ISER, 1979, p. 114). Em relação ao texto, isso pode
ocorrer muitas vezes sem necessariamente comprometer a recepção e a significação. No
entanto, as teorias de Iser, como as de Bakhtin e Lotman, são construídas com ênfase no
texto verbal tendo o livro como suporte. O que se está pensando neste trabalho está na
categoria de um jogo do intertexto em suportes também polifônicos como cinema. Este
jogo requer mais que qualquer outro a participação do leitor, pois são muitas as lacunas
a serem preenchidas com os hipertextos contidos na memória.
É evidente que cada filme propõe um jogo diferente para espectadores com
formações e interesses diversos. Matrix, por exemplo, possibilita vários ângulos de
leitura. Um filósofo pode extrair dele discussões sobre o conceito de realidade; um
crítico de cinema, ater-se aos aspectos inerentes à linguagem cinematográfica. Ao
espectador é relegado apenas o papel de mero receptor, ou aquele de quem a indústria
cinematográfica necessita como consumidor. Há, em determinados filmes intertextuais,
um emaranhado de signos que está longe do repertório da maioria, apesar de os autores
talvez acreditarem o contrário.
Zygmunt Bauman, em o Mal-estar da pós-modernidade, afirma que “É a
aceitação social de conexões necessárias entre os signos e certos significados que faz
uma linguagem”(BAUMAN, 1999, p. 132). Dizer que o leitor preenche as lacunas do
texto atribuindo novos significados a ele pode parecer romântico numa sociedade que
capacita cada vez menos seus leitores para os tipos de textos que têm sido criados,
principalmente os intertextuais, o que pode dificultar as “conexões”.
67
Convém aproveitar a menção ao filósofo e pensarmos se seria o método
intertextual uma característica da pós-modernidade. Mas tanto Machado de Assis, no
século XIX, quanto Joyce, em Ulisses, no início do século XX, respectivamente, valemse de tal procedimento. Sendo assim, seria mais prudente considerar que a pósmodernidade, enquanto conjuntura e condição histórico-culturais, acirraria um processo
já prefigurado em outros momentos. O pós-moderno lançaria mão de uma prática já
repertoriada, potencializando-a nestes tempos repletos de novidades tecnológicas que
facilitam a reprodução, acarretando assim a perda da aura do objeto artístico32. Bauman
argumenta também que o significado da arte pós-moderna é:
...estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo contra o
perigo de, algum dia, se desgastar até uma parada; alertar para a inerente
polifonia do significado e para a complexidade de toda a interpretação (...) a
arte pós-moderna traz para o espaço aberto o perene inacabamento dos
significados (BAUMAN, 1999, p. 132).
Para Bauman, na arte pós-moderna há uma “inexauribilidade do reino do
possível”, significados podem ser ressignificados ou até mesmo desconstruídos. Afinal
é exatamente isso que pode ser percebido nos objetos da presente análise. A constante
possibilidade de atribuição de novos significados permite que uma obra - ou fragmentos
dela - possam surgir em contextos diferentes do original.
As possibilidades dialógicas se intensificaram com a internet. Diante do
computador é fácil acessar textos, imagens e vídeos produzidos no mundo inteiro em
épocas distintas. A internet é uma espécie de semiosfera, é um espaço semiótico
composto por inúmeros signos num processo constante de transformação e diálogo. Ela
é o espaço onde a leitura intertextual pode realizar-se de forma mais ampla devido aos
recursos hipertextuais. O ciberespaço pode ser considerado a grande novidade da cultura
do século XX, até mais que o cinema e a televisão, na medida em que absorveu esses
dois.
32
Em 1936, o filósofo alemão Walter Benjamin publicou o ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, no qual argumenta que as possibilidades da cópia retiram do produto artístico
a aura de objeto único, mas democratizam o acesso que era privilégio de poucos. Apesar de não tratar
especificamente da pós-modernidade, o ensaio de Benjamin aponta um fato que se intensificou ainda mais
com o advento do computador e da internet: a reprodução.
68
Mas quando se trata de cinema, parece redundante falar em moderno, novo ou
pós-moderno, pois o cinema nasceu na modernidade, é uma arte que surge no seio da
maior consumidora de novidades: a burguesia.
Para Teixeira Coelho:
Apenas a partir do século XVIII e, mais especificamente, do século XIX,
com seu processo de industrialização e mercantilização exacerbadas,
inclusive da cultura e da arte, é que a originalidade ascende à posição de
valor supremo: assim o exige um mercado ávido por coisas diferentes que,
exatamente por serem diferentes, devem valer mais (dinheiro) do que as
coisas conhecidas. Um mercado esfomeado de novidades (COELHO, 2005,
p.18).
O período a que se refere o autor coincide com o momento de ascensão da classe
burguesa pós-revolução francesa. Ele estende sua reflexão a uma diferença entre novo e
novidade relacionados ao conceito de moderno e modernidade. De acordo com a sua
argumentação, vive-se uma obsessão pela novidade, que nem sempre representa o novo.
O cinema não foi apenas mais uma novidade estética, mas algo novo sob os
aspectos culturais, comerciais e tecnológicos. Enquanto linguagem artística, nada mais
inédito, porém, no que se refere à estrutura narrativa, inovou muito pouco até absorver
as influências dos movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX.
Ao analisar a intertextualidade no cinema contemporâneo, percebe-se uma
novidade alicerçada sobre algo que deveria ser bastante conhecido. O que se vê em
Matrix é um desfile de signos extraídos da cultura ocidental e oriental sem fronteiras
demarcadas. O que o filme apresenta de novo é o manuseio dos aparatos tecnológicos
para a elaboração dos efeitos especiais, já a costura feita com fragmentos de outros
filmes e obras literárias já havia marcado outras produções de grande repercussão junto
ao público, como a comédia Top Secret (1984).
O mesmo retorno ao passado verifica-se em outros setores da cultura como na
moda, na qual o retrô virou tendência. A música também não tem escapado a essa
característica. São muitas as releituras e citações facilitadas pelos recursos eletrônicos.
69
O som dos Djs é extremamente intertextual com seus samplers33 e paródias. Na
televisão, são cada vez mais frequentes os remakes de novelas; e a indústria
cinematográfica aparenta seguir o mesmo caminho com refilmagens de clássicos como
A fantástica fábrica de chocolate (1971) e Fúria de Titãs (1981).
No livro No castelo doBarba Azul, o crítico George Steiner faz uma constatação
bastante pertinente dessa discussão sobre o passado que se faz tão presente. Ele afirma
que “Os ecos pelos quais uma sociedade procura determinar o alcance, a lógica e a
autoridade de sua própria voz vêm da retaguarda”(STEINER, 1991, p. 14). Mesmo o
cinema que se propõe uma estética futurista não deixa de se nutrir dessas imagens. Os
figurinos do clássico de ficção científica Blade Runner (1982) em nada se assemelham
às roupas de astronautas que os filmes do gênero preconizaram antes dos anos oitenta. É
possível perceber nas roupas dos personagens referências aos anos 50, por exemplo.
Segundo Steiner, é como se essas imagens estivessem impressas “à maneira da
informação genética, em nossa sensibilidade”(idem). Seria possível pensar, portanto,
que a intertextualidade se dá de forma inconsciente, ou seja, não haveria por parte do
autor um ato deliberado de diálogo com o texto criado pelo outro.
Essa atitude dialógica e inconsciente é percebida nos discursos de alguns
personagens dos romances de Dostoiévski estudados por Bakhtin. É certo que o
conceito de intertextualidade empregado por Kristeva parte da teoria do pesquisador
russo, mas a perspectiva desta pesquisa está pensando o intertexto como método, o
artista conscientemente “tomando emprestado” criações de seus antecessores em vários
campos da cultura. Steiner argumenta que toda sociedade requer antecedentes, uma
espécie de herança necessária ao que ele chama de “gramática do ser”. O autor ainda
coloca que se vive um constante temor de uma nova idade das trevas, que o ser humano
atualmente possui uma sensação de desordem. Talvez seja essa a razão do retorno ao
passado.
Se analisarmos a história da arte entre os séculos XVI e XIX, perceberemos os
movimentos artísticos num constante vai e vem. Ora um retorno ao greco-romano, ora à
cultura medieval. Foi o modernismo que projetou uma estética que rompeu com as
33
O sampler é um equipamento que armazena sons em arquivo digital e os reproduz conjuntamente,
criando uma espécie de banda virtual. Também é utilizado em músicas que fazem citações a gravações
originais de outras.
70
tradições do passado pensando o presente e o futuro da arte. Mas mesmo os modernistas
– e aqui a referência é específica ao movimento brasileiro – não conseguiram deixar de
lado o passado, mesmo que para negá-lo ou ironizá-lo. São muitos os poetas que
escreveram paródias e paráfrases de poemas românticos e parnasianos. De certa forma,
manteve-se o retorno.
A semiótica pode ser um caminho para auxiliar a formação do leitor que transita
nesse espaço dialógico. Quando se fala em leitura pensa-se imediatamente na língua ou
na linguística. As escolas ainda persistem em ensinar apenas língua, quando deveriam
voltar-se para o ensino da linguagem também sob os aspectos sonoros e visuais.
O tipo de leitura que se ensina na maioria dessas instituições é restrita a uma
análise do signo em primeiridade, ou seja, uma leitura limitada ao que é exposto pelo
ícone. Grande parte dos leitores não está habituada a sair do campo da denotação e
formular hipóteses conotativas, ou realizar a leitura em terceiridade, trazendo o signo
para uma realidade social, histórica e cultural até atingir o nível de leitura simbólica.
Quando o ouvinte de uma rádio pensa que a cantora Adriana Calcanhoto virou fã
da banda de música Calipso é porque de fato extraiu o signo da obra e o inseriu num
momento social: o contemporâneo a ele. Sem sombra de dúvida, poucos, no século
XXI, pensariam na Ninfa de Homero. Todavia, mesmo incoerente com as intenções do
texto, esse leitor encontrou em seu universo cultural uma referência para compreender o
que seria “caí nos braços de Calipso.”
As propagandas de verduras apresentadas às donas de casa com os títulos de
Berinjela Indiscreta, kiwi Bill, Nove cebolas e meia de amor podem ser vistas – para os
reconhecedores dos filmes inspiradores da campanha – como obras de arte. No entanto,
para muitas pessoas a significação seria apenas a de um cartaz que pretende vender
frutas e legumes.
Essas afirmações não significam uma tentativa de tornar as leituras homogêneas.
Também não se está falando de um leitor que busca numa biblioteca ou livraria um
exemplar de Ulisses, de James Joyce, ou O livro de cabeceira34, de Peter Greenaway,
numa locadora. Trata-se do que está cada vez mais envolto numa profusão de signos
34
O cinema de Peter Greenaway é classificado como intertextual. Em suas obras, cinema, literatura e
artes plásticas estão em diálogo constante. Seus filmes são pouco populares, talvez, devido à quantidade
de informação que o espectador deve mobilizar para compreendê-los.
71
que lhe dizem cada vez menos respeito. A ele tem sido atribuída a independência total
para construir os seus próprios significados do que lê, como se a competência para
leitura não fosse resultado de um processo de aprendizado.
No tocante às questões relativas ao cinema a situação se agrava. A sétima arte
tem uma história de pouco mais de cem anos, porém películas que fizeram do cinema
uma linguagem estão longe do acesso do grande público. A maioria dos títulos se
encontra confinada em videotecas que vez ou outra organizam mostras voltadas para
pequenos grupos de estudantes universitários, artistas ou intelectuais.
Segundo Teixeira Coelho, um aspecto que difere modernidade de modernismo é
o fato de aquela ser uma reflexão sobre o processo de criação. Ele cita Duchamp e Joyce
afirmando que ambos utilizam em suas obras um recurso da modernidade: “falar do
Outro ao falar de si, falar da obra Outra ao fazer sua própria obra, permitir que uma obra
seja lida através de outra”(COELHO, 2005, p.45). Pelas obras intertextuais, leem-se
fragmentos de inúmeras outras. Por meios de tais produtos, as instituições de ensino e
entidades culturais poderiam desenvolver trabalhos que estimulassem a busca pela
junção dos fragmentos. Afinal não se pode permitir que a falta de sentido e a leitura
incoerente se transformem em algo natural. É importante que não apenas os autores
continuem “recheando sua poesia com alusões à Renascença italiana, à Grécia antiga, ao
antigo Oriente.”35, mas que também o leitor requisitado como co-autor tenha em seu
acervo um mínimo de referências sígnicas para que o diálogo se estabeleça de fato, para
que importantes produtos da cultura não continuem apenas circulando ou sendo lidos
em sua plenitude apenas nos restritos círculos acadêmicos.
35
Referência de Teixeira Coelho à frase “Make it new!”de Ezra Pound. O pesquisador ainda afirma que
também o cineasta russo Sergei Eisenstein assumiu uma postura parecida ao criar seu “revolucionário”
cinema moderno revisitando a antiga cultura chinesa.
72
5-SENTIDO, SIGNIFICADO, SIGNIFICAÇÃO
Os substantivos sentido, significado e significação vêm sendo usados ao longo
do trabalho como se fossem palavras sinônimas. Contudo cabe estabelecer algumas
diferenças teóricas entre ambos, o que será feito a partir dos estudos de Teixeira Coelho.
O pesquisador dedica um capítulo do livro Semiótica, informação e comunicação
(2003) a um estudo detalhado de alguns conceitos de Peirce sobre o signo. Nele, o
autor afirma que o sentido “é o efeito total que o signo foi calculado para produzir e que
ele produz imediatamente na mente, sem qualquer reflexão prévia, é a interpretabilidade
peculiar ao signo antes de qualquer intérprete”(COELHO, 2003, p.71); em outras
palavras, o sentido das palavras apresentado nos dicionários.
Significado é “o efeito direto realmente produzido no intérprete pelo signo; o
que é concretamente experimentado em cada ato de interpretação”(COELHO, 1974, p.
72). O significado é o signo como evento real e único. Por exemplo, o objeto “lua” aqui
e agora.
O terceiro conceito é a significação, que pode ser entendida como o efeito
produzido no “intérprete em condições que permitissem ao signo exercitar seu efeito
total, é o resultado interpretativo a que todo e qualquer intérprete está destinado a
chegar, se o signo receber a suficiente consideração”(idem). Ou seja, diante da lua, a
significação tende a representar para o intérprete “esta ou aquela imagem de natureza
psicológica ou sociológica, em função da qual sua reação será esta ou aquela”(idem).
Em Shrek 2, a significação do crescimento do nariz de um personagem é a
mentira. Significação esta somente elaborada para os conhecedores da história do
menino de madeira que pensava ser um garoto de verdade. Pode parecer óbvio que
Pinóquio seja um personagem conhecido por todas as crianças em idade escolar, o que
esta pesquisa desmente, já que numa turma de sexto ano do ensino fundamental da
Escola Municipal Carlos Chagas, em Campos dos Goytacazes, havia alunos que
desconheciam totalmente a narrativa do escritor italiano Carlo Collodi. Numa cena em
que Shrek e o Burro são presos num castelo pela Fada Madrinha, Pinóquio e dois
73
ratinhos são descidos até o calabouço por uma corda numa explícita referência ao filme
Missão Impossível (1996), porém ficam longe demais para que os ratos possam roer a
corda. A solução é colocar os pequenos animais no nariz de Pinóquio e forçá-lo a
mentir. Pedem para o boneco dizer que estava usando calcinhas. Ele diz e nada
acontece. O nariz só cresce quando o boneco afirma que não estava usando a tal peça
íntima.
Vários personagens do universo dos contos de fadas aparecem para a festa em
homenagem a Fiona e Shrek. Tudo no evento é uma paródia à chegada das estrelas de
Hollywood na noite de entrega do Oscar. Estão lá o tapete vermelho, os fotógrafos, as
estrelas chegando em seus luxuosos carros etc. Cada personagem apresenta um signo
representativo de sua história de origem. A Bela Adormecida, por exemplo, ao ser
aberta a porta da carruagem, cai no chão de sono. João e Maria passam pelo tapete
vermelho jogando migalhas de pão, e a comentarista da festa pergunta: “Mas para que
as migalhas?” A pergunta da comentarista expressa uma dúvida que também pode
incomodar um leitor mais atento aos detalhes. No entanto a resposta para a interrogação
pode ser localizada no conto de tradição oral João e Maria, recontado pelos irmãos
Grimm.
Até
aqui,
estudaram-se
os
procedimentos
intertextuais
analisando
prioritariamente os signos inspirados em obras literárias ou retirados delas. Mais adiante
a rede de significações dialógicas que pode ser traçada pelo leitor será analisada levando
em consideração a linguagem do cinema.
Pensar a significação no cinema exige uma reflexão acerca do que é
especificamente a linguagem cinematográfica além do domínio no campo da gramática
verbal, mas de uma gramática própria para essa linguagem utilizada para contar
histórias por meio de imagens em movimento.
Se há narração – pelo menos no sentido mais tradicional da palavra – deve-se
pensar em personagens e narradores, sequência espacial e temporal. De tais elementos a
figura do narrador é a que nem sempre se mostra, característica mais comum aos textos
dramáticos.
74
No caso do cinema seria mais correto falar em narradores. Antes de chegar à
exibição, o filme passa por muitas mãos: roteirista, montador, editor, continuísta,
diretor, ou até mesmo os próprios atores que podem dar ao personagem significações
não previstas pelos roteiristas e diretores.
O ator é, na realidade, o principal autor do personagem. É ele quem imprime a
este último suas emoções e corpo. Cada Drácula é um tipo diferente no cinema. Seja o
de Bela Lugosi, Boris Karlof ou o de Gary Oldman; é como se tivessem sido criados por
autores diferentes e são. O mesmo pode ser observado no Hamlet de Laurence Olivier,
Kenneth Branagh ou o de Mel Gibson. Na literatura, o autor é o criador, e o leitor é
aquele que cria sua imagem particular sobre o personagem. Para cada leitor, o Hamlet
será um príncipe específico. Isso se dá também no cinema, mas, nesse caso, o
personagem é algo com forma e voz definidos, diferente do livro em que tais aspectos
devem ser imaginados pelo leitor a partir das leituras feitas dos conjuntos de signos.
O signo da narração verbal é a palavra. Porém uma única palavra dificilmente
será suficiente para constituir um capítulo de um romance. O mesmo já não se pode
falar da imagem, signo-mor do cinema. Segundo Metz “cada imagem, longe de
equivaler a um monema ou mesmo uma palavra, corresponde mais exatamente a um
enunciado completo”(METZ, 1972, p. 39). Se Dom fosse um romance, quantos
enunciados talvez seriam necessários para expressar o que o protagonista sentiu ao ver
Ana no mar com Miguel? Apenas alguns segundos foram necessários para dizer ao
espectador que a atitude da esposa e do amigo desagradaram ao personagem: um
primeiro plano mostrando o rosto de Bento foi suficiente para representar tal
sentimento.
Metz diz ainda que as imagens são unidades atualizadas, enquanto as palavras
são virtualizadas. A narrativa fílmica, portanto, é construída a partir das duas categorias.
A imagem não é apenas uma ilustração da palavra. Esta é um elemento colaborador
daquela, assim como os demais elementos necessários à composição de um filme. Uma
imagem intertextual – assim como a palavra – também é uma unidade virtualizada, já
que sua significação necessita de atualização.
Retomando a origem do problema, é importante pensar no signo solitário, fora
da estrutura sintagmática ou paradigmática. Termos como sintagma, paradigma, frase,
75
enunciado e signo são comumente associados à linguística ou à semiótica. A seguir será
feito um estudo das aplicações desses termos – largamente empregados na semiologia
do texto – na semiologia do cinema, para então serem propostos possíveis caminhos
para a significação e a formação do leitor.
Essa tarefa inicia-se com a seguinte afirmação de Teixeira Coelho:
A significação de um signo não deve ser confundida com o significado desse
mesmo signo. O significado é o conceito ou imagem mental que vem na
esteira de um significante, e significação é a efetiva união entre um certo
significado e um certo significante (...) a significação de um signo é uma
questão individual, localizada no tempo e no espaço, enquanto o significado
depende apenas do sistema e, sob este aspecto, está antes e acima do ato
individual (COELHO, 2003, p. 22-23).
É perceptível que o pesquisador se vale dos conceitos de significado e
significante de Saussure, conceitos esses que extrapolaram os limites da linguística e da
semiologia do texto e vêm sendo empregados também no estudo dos signos não verbais.
Quando relaciona a significação a um aspecto individual, Teixeira Coelho expõe uma
questão já levantada e cuja retomada é pertinente neste momento: a participação do
leitor na construção da significação do texto. O significante e o significado não
dependem dele. Ambos são construídos pelo autor ou autores, ao leitor cabe a
significação como resultado da união entre os outros dois. Analisando por essa ótica, a
significação seria um processo sem limites.
Porém seria possível falar em ausência de significado ou significação? Em
relação ao primeiro termo não. Mas o mesmo não se pode afirmar a respeito do
segundo.
Em Matrix, a palavra Zion ou Sião é um significante com significado encontrado
dentro e fora do filme. Conforme já foi dito, trata-se de uma fortaleza que abriga os
humanos libertados da matrix ou de um monte encontrado em Jerusalém. O fato de
determinado leitor não identificar tal referência não quer dizer que o signo não possua
um significado. Este se instaura a partir do momento em que a própria narrativa o
apresenta ao leitor. A palavra é retirada da sua virtualidade e se atualiza sob a forma de
um espaço subterrâneo habitado por centenas de pessoas. A significação sob o ponto de
76
vista textual é possível devido à conversão do significante verbal em um visual. A
significação, sob o aspecto intertextual, para muitos, deixa de existir, pois neste caso
requer a atualização de um significado que não pertence à diegese do filme. Ele existe,
mas não é identificado, o que impossibilita a significação intertextual como atitude
individual, já que ela é o resultado da união entre significado e significante.
Mas, como se trata de cinema, é conveniente que seja analisado algum signo
visual de origem intertextual para que se verifique a ocorrência do mesmo processo.
Para isso será retomado um exemplo de Shrek 2: as migalhas jogadas por João e Maria
ao chegarem à festa no castelo de Tão Tão Distante.
Nesse caso, há a imagem dos dois irmãos e as migalhas como significante, mas
onde o significado para que se elabore a significação? É importante lembrar a pergunta
da apresentadora: “Mas pra que as migalhas?” Esse exemplo não apresenta
possibilidade de significado nem mesmo dentro do enredo do filme, apenas fora dele,
impossibilitando, portanto, qualquer possibilidade de significação fora da leitura
intertextual.
Num texto, a significação será também resultado da relação do signo com os
demais à sua volta, ou seja, com todo o contexto que o envolve. Por isso, no conto
popular sobre os dois irmãos que são abandonados pelos pais na floresta, fica claro que
jogar migalhas de pão pela estrada é a criação de uma estratégia para acharem o
caminho de volta para casa.
Se o signo verbal “pedra” aparece num texto, a análise do contexto pode remeter
o leitor a uma série de significações. Teixeira Coelho argumenta que “A questão da
significação conduz de imediato a uma abordagem dos fenômenos de denotação e
conotação do signo”(COELHO, 2003, p. 24). Será tomado como exemplo a palavra
“pedra” no seguinte trecho de A demanda do santo Graal : “Nesta parte diz o conto que,
depois que partiu Galvão do castelo, onde viu os letreiros da pedra, não se afastou muito
que achou outro caminho que ia para uma montanha”(MEGALE, 2008, p.132). É nítido
que a palavra “pedra” aparece no trecho empregada como signo denotativo, pois “ele
veicula o primeiro significado derivado do relacionamento entre um signo e seu objeto”
(COELHO, 2003, p.24). O objeto nesse caso é a coisa pedra, concreta, matéria bruta em
que algo foi escrito.
77
O mesmo signo aparece no conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade,
o qual já não se pode afirmar que o emprega de forma denotativa. Ao escrever “no meio
do caminho tinha uma pedra”, o poeta deixou aberta ao leitor uma série de
possibilidades de significados para “pedra”. Uma dessas possibilidades pode pertencer
ao território da denotação. De fato, nada impede que se leia “pedra” como pedra
mesmo. No entanto, muitos podem atribuir a esse significante o significado de
problema, obstáculo, ou seja, atribuir significação. O significado está para a denotação
assim como a significação para a conotação, já que esta dependerá muito mais de uma
atitude individual, subjetiva.
Foram utilizados dois exemplos literários, apesar de o foco do trabalho ser o
cinema. Isso se deu pelo fato de existirem entre a literatura e a sétima arte vários pontos
comuns. Além de ambos também serem instrumentos para se contar histórias, a “arte do
filme encontra-se no mesmo plano semiológico que a arte literária...” (COELHO, 2003,
p. 116), por isso as análises aqui presentes são inspiradas em estudos ligados à
linguística, como os de Saussure, por exemplo. Inspirados, mas com a devida cautela.
Há algumas diferenças básicas que devem ser levadas em consideração. Uma delas diz
respeito ao fato de a imagem não ser uma unidade discreta, ela tende a mostrar o que a
palavra pode apenas sugerir. A imagem de uma pedra num filme dificilmente será lida
como outra coisa que não seja o significado denotado do signo. A menos que sobre ela
sejam aplicados outros recursos da linguagem cinematográfica.
Metz cita o exemplo dos “filmes negros americanos em que dos paralelepípedos
brilhantes de um cais emana uma impressão de angústia ou de dureza (= significado de
conotação)” (METZ, 1972, p.117); e que ao mesmo tempo é apenas o espetáculo
representado pelas imagens: os cais desertos e escuros, entulhados de caixotes, o que
caracterizaria o significado da denotação. Este associado a “uma técnica de filmagem
que realça totalmente as qualidades da iluminação para chegar a uma determinada
imagem destes cais” (idem) contribui para a construção do significante da conotação.
Ela é resultado da intervenção humana por meio de uma série de recursos semiológicos,
diferentemente da literatura, na qual o entorno será definido por signos de uma mesma
ordem. Como foi visto no exemplo, a luz e a técnica empregadas na filmagem poderão
colocar a imagem na instância conotada. Portanto, as imagens de um filme pertencem
78
inicialmente à instância denotada. As demais significações aparecem depois em
decorrência das intervenções de outras linguagens como a verbal.
Falou-se em imagem e palavra. Contudo nem um filme ou narrativa são
constituídos apenas de uma unidade de cada uma delas. São constituídos de enunciados
completos. Uma diferença essencial entre uma e outra é que uma imagem isolada pode
constituir um sintagma, uma palavra não. Por isso Metz afirma que a semelhança
existente entre a imagem e o enunciado é o fato de ambos serem “unidades atualizadas”.
Para o teórico, uma outra diferença entre a criação literária e a cinematográfica é
que esta última é criação sempre, uma imagem nunca é igual a outra imagem. Já o
escritor tem à sua disposição todo um acervo lexical, o que lhe possibilita elaborar uma
seleção paradigmática para a composição do texto. Em relação ao cinema, o que o autor
faz não é escolher esta imagem em oposição a uma outra, mas criá-la. Isso não significa
afirmar que inexista uma paradigmática fílmica. Mas, no cinema, “o paradigma de
imagens é frágil, aproximativo, frequentemente natimorto, fácil de modificar, sempre
evitável”(METZ, 1972, p. 86). A criação literária faz uso de número limitado de
palavras, salvo os casos de neologismos, mas não há como todas as palavras de um
poema, conto ou romance serem inventadas por seus autores. Já toda imagem fílmica é
autoral, inédita.
Metz comenta os estudos de J.L. Rieupeyrout sobre o western. Neles, o
pesquisador ensina que, no referido gênero de cinema americano, era comum o cowboy
bom usar roupa branca e o mau vestir-se de preto. Porém esses paradigmas não duraram
muito tempo. Nada impediu que, com o tempo, alguns cineastas vestissem os cavaleiros
de cinza ou misturassem a calça preta à camisa branca.
Se o conceito de paradigma for adaptado à análise intertextual aqui pretendida,
poder-se-ia afirmar que cenas de filmes que se tornaram clássicos acabaram
constituindo uma espécie de dicionário paradigmático viabilizando o diálogo entre
imagens de filmes de diferentes épocas e estilos.
O que não existe é um suporte único que reúna todas as imagens-signo que
fizeram a história do cinema, daí a importância da memória36. Pode-se afirmar o
36
Como suporte para o léxico, existem os dicionários.
79
mesmo acerca do texto literário de caráter intertextual. Neste ponto, cinema e literatura
apresentam características, ou melhor, problemáticas semelhantes: ambos nutrem-se de
signos deixados como herança.
Christian Metz afirma ainda que, por meio de suas pesquisas de conotação e
criação estética, o cineasta “chega às vezes a deixar atrás dele alguma forma que poderá
posteriormente
se
tornar
norma
e
eventualmente
constituir
‘um
fato
de
linguagem’”(METZ, 1972, p. 203). Como exemplo do que Metz chama de fatos da
linguagem cinematográfica, é possível citar os “flashbacks (sucessão como significante
da precessão) ou flashforward (sucessão próxima como significante da sucessão
longínqua); os sintagmas alternados ou sintagmas paralelos, estes muito comuns nos
filmes de Peter Greenaway.
Em Dom, o recurso do flashback é largamente empregado nos momentos em que
o protagonista lembra de sua infância com a amada. Em um desses momentos, o
sintagma imagético que apresenta os olhos de Ana é associado ao sintagma verbal
“olhos de ressaca” pronunciado por Bento. Dessa forma, palavra e imagem interagem
compondo uma mensagem conotada pela palavra, mas cujo significado é mostrado pela
imagem que, nesse caso, não dá conta da conotação do sintagma “olhos de ressaca” cujo
significado é complementado pela seguinte fala de Bento: “olhos... que me arrebatavam,
para não ser arrastado tinha de me segurar nas partes vizinhas”. Percebe-se neste
momento que a imagem nem sempre tem o poder de atualizar o significado conotado de
uma palavra ou expressão.
No mesmo filme, é usado o flashforward que antecipa ao leitor um acidente que,
no presente da narrativa, só ocorrerá no final. Esse “fato de linguagem” é um recurso
bastante utilizado por muitos diretores com o intuito de criar suspense nos espectadores.
Porém, como já foi usado à exaustão, é comum que, para o público mais habituado ao
cinema, sirva como pistas para antecipação de algum acontecimento envolvendo os
protagonistas. Assim, o contato direto com recursos muito utilizados em determinada
linguagem pode educar o receptor a ler e a interferir na mesma, elaborando hipóteses
necessárias à significação.
Metz diz que “se pode distinguir pelo menos duas grandes espécies de
organizações significantes: os códigos naturais e os códigos especializados”(METZ,
80
1972, p. 133). O teórico argumenta que os primeiros dizem respeito à cultura de cada
grupo social, e são assimilados a ponto de fazerem parte da natureza do grupo sem
haver a necessidade de um aprendizado especial para manipulá-los37. De fato, a maioria
dos espectadores percebe que quando a narrativa é interrompida por uma cena ou
sequência, apresentando fatos anteriores ao narrado no momento, trata-se da lembrança
do personagem. Já os segundos, os especializados, exigiriam uma aprendizagem
especial. Metz conceitua as unidades significantes próprias do cinema38 como códigos
especializados. Porém, como seus estudos datam do início dos anos 70, o contato
constante da maioria das pessoas com filmes, nas salas de cinema ou por meio da
televisão, transformou alguns códigos especializados em naturais.
Tanto o que Metz chama de códigos naturais ou especializados pertencem à
instância denotada do filme. No que tange à conotação, o cinema também se vale de
“objetos (visuais ou sonoros)” que “simbolizariam dentro do filme o que simbolizariam
fora dele, isto é, na cultura”(METZ, 1972, p.135). O pesquisador francês acrescenta que
esses “objetos” não ingressam virgens no filme, que carregam consigo mais do que sua
identidade literal, “ o que não impede o espectador que pertence a determinada cultura
de decifrar este ‘mais’ no mesmo momento em que identifica o objeto”(idem).
Aos objetos mencionados por Metz, é pertinente acrescentar os intertextos
verbais, estes - mais do que quaisquer outros - são objetos que não ingressam “virgens”
no filme. Eles possuem conotações culturais próprias, que precisam ser transpostas –
pelo leitor – às propostas conotativas da obra, para que a denotação não se imponha
como único modo de leitura e significação. Um filme não intertextual pode apresentar
ao leitor problemas quanto à significação, relacionados à estrutura interna da narrativa.
Seria o caso, por exemplo, de 2001 uma odisséia no espaço (1968), no qual signos
como o monolito negro – que aparece em várias cenas, e até hoje suscita discussões e
controvérsias quanto ao seu significado – pode gerar uma série de significações
diferentes desde que se analise o seu entorno.
Diante das colocações feitas acerca da significação como um ato individual,
poder-se-ia entendê-la como um processo ilimitado, totalmente entregue à subjetividade
37
O autor se refere aos códigos iconológicos, perceptivos etc.
Exemplos destas unidades seriam a montagem, os movimentos de câmeras, a interação do visual e do
sonoro.
38
81
do leitor. Contudo é pertinente pensar num outro aspecto do processo de recepção de
textos ficcionais: a interpretação, também um ato individual. Segundo o Dicionário da
Academia Brasileira de Letras, interpretar significa “Aclarar ou explicar o sentido” de
um texto. É bastante comum a concepção de que a interpretação é uma atitude
meramente subjetiva. Para que se realize basta apenas que o sujeito atue atribuindo ao
texto as significações que melhor lhe aprouver. Sendo assim, qualquer texto pode
significar qualquer coisa, dependendo da vontade de quem o lê, como se o texto fosse
uma página em branco à espera de quem a preencha. É correto pensar o texto como
páginas com lacunas que precisam ser preenchidas, como um produto não acabado até o
momento da leitura. Na verdade, mesmo durante e depois de muitas leituras, o texto
ainda pode continuar como um produto inacabado, o que permite que novos
significados e significação sejam atribuídos a eles ao longo do tempo. Inacabado, mas
não completamente aberto a qualquer tipo de significação ou interpretação.
Umberto Eco em duas obras voltadas para a relação texto/leitor – Obra aberta
(1962) e Os limites da interpretação (1990) – reflete sobre os dois pólos da questão. Na
primeira, o autor admite conferir excessiva liberdade ao leitor; na segunda, reconhece
correr o risco de “parecer excessivamente respeitoso em relação ao texto”. Entender a
obra de arte como um produto com “posibilidad de ser interpretada de mil modos
diversos sin que su irreproducible singularidad resulte por ello alterada” (ECO, 1979, p.
33) significa dar ao leitor toda independência interpretativa a qual o próprio Eco fará
ressalvas mais tarde.
O escritor italiano argumenta, em Os limites da interpretação, que “Todo
discurso sobre a liberdade da interpretação deve começar por uma defesa do sentido
literal”(ECO, 2010, p.9). O próprio Eco reconhece a obviedade de tal constatação, mas é
importante refletir sobre ela, mesmo que pareça um tanto óbvio. Ele traz como exemplo
uma frase proferida pelo ex-presidente americano Ronald Reagan e explica como ela
poderia ser interpretada de diversas maneiras, mas que, antes de mais nada, seria
importante que o leitor soubesse o que essa frase significaria gramaticalmente.
Tantas possibilidades interpretativas, na verdade, correspondem, segundo Eco, à
escolha dentre os vários sentidos contidos na obra. Para ele:
82
... a transmissão de uma sequência de sinais de escassa redundância e alta
dose de improbabilidade exige que se inclua na análise a consideração dos
comportamentos e estruturas mentais com que o receptor seleciona a
mensagem e nela introduz uma probabilidade que, na realidade, ali se acha
contida ao lado de muitas outras a título de liberdade de escolha (ECO, 1962,
p.113).39
O leitor escolhe a probabilidade que está mais de acordo com suas expectativas e
vivências e a coloca em teste para decidir se ela se encaixa coerentemente no texto.
Porém nem sempre essa coerência é atingida, resultando muitas vezes numa
interpretação equivocada, o que não implica necessariamente o impedimento da
significação. Portanto vale ratificar que, caso o sentido gramatical – o que é também
chamado de literal – não tenha sido apreendido, não há significação possível.
Nos objetos de estudo desta dissertação, não se pode falar em ausência de
significação da obra, mas de obras que constituem partes dela. Como no cinema são
muitas linguagens em jogo, às vezes, a verbal fica esquecida devido à profusão de
informações oferecidas pela imagem. Inúmeros trechos verbais de um filme caem em
“apagamentos”, ou seja, é como se não tivessem nem mesmo sido pronunciados, pois só
é possível reconhecer e nomear o que é familiar. No filme Quem somos nós (2004) de
William Arnzt, Betsy Chasse e Mark Vicente é feito um comentário sobre o que os
índios teriam visto quando a esquadra de Cabral se aproximou do litoral brasileiro.
Decerto não viram caravelas, já que não sabiam exatamente o que isso significava. Os
limites da interpretação ou da significação de uma obra de arte, portanto, não são
impostos pela obra, nem mesmo pela crítica, mas pelo próprio repertório do leitor.
A atribuição de significação pode ocorrer também por meio da criação de uma
outra obra. A imagem dos olhos de Ana em Dom é uma nova significação que o diretor
Moacyr Góes deu para os olhos de ressaca de Capitu. Para o teórico de Konstanz,
Karlheinz Stierle, a recepção abrange todas as reações desencadeadas no leitor pelo
texto, desde a compreensão até a recusa em prosseguir na leitura do mesmo. Pode-se
dizer que o cinema intertextual é um dos efeitos da recepção de textos ficcionais e nãoficcionais, ou seja, um texto que resulta da leitura de outros.
39
Citação retirada de Obra aberta, mencionada em Os limites da interpretação, p. 5.
83
Um exemplo de efeito da recepção de Matrix pode ser observado na letra da
música “Eu não entendi Matrix” da banda de rock Gangrena Gasosa. Nela, o
compositor, conhecido pelo apelido de Chorão, apresenta um enunciador que diz não ter
entendido o filme e faz uma interpretação literal expressando-a numa linguagem repleta
de gírias bastante comuns à maioria dos jovens, como se pode observar na transcrição
abaixo:
Uma gostosa que andava na parede/E despiroca pelo telhado/De repente ela
sumiu no telefone/E me deixou bolado/Depois um pleibói vai preso/E a dura
na federal é uma pica/Nego arranca a boca do cara/E bota um bisôro na
barriga/Aí ele toma uma pírula/Vira espelho e aparece careca
Cheio de fio nas costas/Dentro de uma bacia de meleca/Ele luta caratê pra
caralho/E fica desenrolando/Com a tia do mongolóide/Que empena um garfo
só olhando/Ele sente a escama no ar/Quando o gatinho repete o miau/Rala e
deixa o negão na pista/Levando um sarapiau/O x-9 que gosta de bife/Dá mole
e fica torrado/E o negão coitado/Toma pico todo amarrado/
Pra não rachar a cara com a mina/Ele invade de sinistro/Largando o prego
geral/E dando o maior prejuízo/Ele cai pra trás no final/ eu não entendi, eu
não entendi, eu não entendi matrix.
No site de relacionamento Orkut, há comunidades dedicadas ao filme. Na
intitulada “Eu amo Matrix,” por exemplo, há acaloradas discussões sobre os aspectos
filosóficos e literários presentes na história . Os internautas apresentam suas leituras a
respeito de trechos e falas dos personagens, outros confessam buscar leituras que
auxiliam uma compreensão melhor do filme. No fórum “Livros parecidos com Matrix”,
o internauta Fernando declara que leu Matrix: bem-vindo ao deserto do real (2003), que
“mostra todas as ligações com passagens filosóficas/religiosas/culturais que tem no
filme, o que faz você ficar de queixo caído, pois algo que já era uma obra de arte fica
ainda mais interessante.”40
O fato de filmes estimularem a leitura dos livros nos quais são inspirados não é
novidade, ou de livros de sucesso levarem milhões de espectadores ao cinema também
não. Em relação a este último efeito, não raro ouve-se a queixa de que o filme não
estava à altura do livro. Na realidade muitas pessoas ignoram que, apesar das
semelhanças, cinema e literatura são linguagens distintas e que não se pode esperar
fidelidade alguma quando um diretor resolve levar às telas uma obra literária. Esse
40
Nos documentos anexos segue a pagina da web com o depoimento do internauta.
84
efeito não ocorre apenas com os best-sellers como O código da Vinci (2004), mas
também com obras sem o mesmo apelo popular como Ensaio sobre a cegueira (1995),
de José Saramago. O livro de Dan Brow levou uma multidão a assistir ao filme
protagonizado por Tom Hanks. Também o filme de Fernando Meireles colocou o livro
de Saramago na lista dos mais vendidos durante o período de exibição.
Umberto Eco enumera, no ensaio Intentio Lectoris41, diversos tipos de leitores,
além do já tão discutido par leitor-autor. Seguem alguns deles: leitores virtuais, leitores
ideais, leitores modelos, superleitores, leitores informados. É pertinente acrescentar a
essa lista o leitor-investigador, o que assiste ao filme procurando os elementos do livro,
caçando falhas e incongruências entre eles. Comumente a decepção é o resultado de tal
investigação.
No grupo pesquisado que respondeu às perguntas sobre Dom, há os que
deixaram claro que procurariam o livro de Machado de Assis para aclarar dúvidas
deixadas pelo filme, como foi o caso da aluna Bárbara Pires42, ao afirmar que o filme
aumentou seu interesse pelo livro, pois “o filme não deixou tudo claro. Talvez com o
livro minhas dúvidas podem ser tiradas.”43A leitura de Dom Casmurro pode não
esclarecer as dúvidas deixadas pelo filme, pois são obras distintas, mas colabora para a
atribuição de significações coerentes às referências intertextuais.
Neste caso, o leitor-investigador não encontraria suas pistas no romance. É
possível ler um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas e depois buscar, no
filme homônimo de André Klotzel (2001), aproximações ou distanciamentos, pois se
trata de uma adaptação.
O leitor-investigador que tentar perscrutar as pistas das fontes referenciais de um
filme intertextual como Matrix ou Shrek deverá preparar-se para a leitura de um número
grande de clássicos da literatura e do cinema. Essa investigação resulta do pressuposto
de que para gostar é preciso entender. A rejeição de alguns entrevistados ao primeiro
filme estava comumente relacionada ao não-entendimento. Afinal, o cinema não é como
a arte visual estática (pintura, fotografia, escultura). Diante de uma dessas linguagens, o
41
Os limites da interpretação, (ECO, 2010 p.1.).
Bárbara é aluna do segundo ano do ensino médio do Colégio Alpha Vestibulares e respondeu ao
questionário no dia 16/09/2009.
43
A resposta foi transcrita, sem correção gramatical.
42
85
leitor pode contentar-se simplesmente com o jogo de cores e formas, sem ter que
necessariamente apreender algum tipo de mensagem ou atribuir alguma significação.
Mesmo assim, ainda é bem maior o número de admiradores da arte tradicional do que
adeptos das experiências de vanguardas pelo fato de estas apresentarem, muitas vezes,
signos de difícil decifração.
Ao longo do presente texto o termo leitor-espectador aos poucos foi substituído
apenas por leitor, já que o texto fílmico também exige um ato de leitura tal qual o
literário, guardando cada um as suas particularidades. Uma das razões da pesquisa que
resultou nesta dissertação foi uma preocupação com este leitor cada vez mais envolto
numa rede de signos que exigem significados para que a significação seja coerente.
Escolheu-se o espaço escolar para a pesquisa de campo porque é nas instituições
de ensino que o indivíduo inicia a sua formação intelectual ou, pelo menos, deveria ser.
O problema abordado aqui – a falta de leitura de obras referenciais para a compreensão
de produtos do cinema intertextual – tem uma de suas origens no universo escolar.
O fato de a maioria das pessoas se interessar por livros que inspiram filmes e
vice-versa poderia ser um mote para uma metodologia de estímulo à leitura e,
consequentemente, de formação do leitor. O cinema é uma das linguagens artísticas
mais presente na vida do jovem. Na escola, não deveria ser visto como mero trampolim
para a leitura do texto verbal impresso, mas como desencadeador de novos
procedimentos de leitura exigidos pela produção intertextual. Para o professor e
historiador da Universidade de São Paulo, Marco Napolitano:
Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a
cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no
qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são
sintetizados numa mesma obra de arte (NAPOLITANO, 2009, p.11).
O cinema intertextual aumentaria as possibilidades apontadas por Napolitano, já
que a leitura de outras obras poderia ser proposta por esse tipo de filme, aumentando o
repertório, pré-requisito básico para a compreensão de produtos intertextuais, e
ampliando também as competências de leitura.
86
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio desta pesquisa, analisou-se a intertextualidade presente nos filmes
Matrix, Dom e Shrek, com o intuito de verificar até que ponto o não reconhecimento das
referências intertextuais poderia comprometer a recepção e a significação de obras
cinematográficas que se valem de tal recurso. Outro fato também abordado foi a
necessidade de refletir sobre a formação de um leitor mais preparado para ler e
compreender os filmes cujos roteiros se nutrem de várias obras oriundas da cultura
universal. Jovens do ensino fundamental e médio foram entrevistados para que se
pudessem colher exemplos de significações atribuídas a signos extraídos de contextos
literários às vezes não identificados por eles. Verificou-se, durante a exibição dos filmes
nas escolas (pois eram comuns comentários e perguntas) e a partir da leitura das
respostas dos alunos, que a fruição estética nem sempre fica totalmente comprometida
pela não identificação dos elementos intertextuais, mas a leitura coerente às vezes sim,
já que o significado de um signo usado intertextualmente encontra-se em uma espécie
de dicionário imaterial que pode não estar disponível na consciência do receptor.
O pacto intertextual proposto pelo cinema dialógico requer a assinatura de um
indivíduo que não seja apenas espectador, pois este, como o próprio sentido
dicionarizado da palavra esclarece, apenas assiste. Esse contrato de leitura só pode ser
assinado pelo leitor em condições de atuar como co-autor, ou seja, aquele que recorre às
várias ramificações dos rizomas construídos pelos autores tecendo assim uma nova rede
de significações.
O beijo que Trinity dá em Neo, quando ele é morto pelo agente Smith, tem o
mesmo poder do beijo que o Príncipe Encantado dá em Branca de Neve ou na Bela
Adormecida. O beijo da amada ressuscita o herói para que ele possa continuar a sua
saga. Não foram poucos os alunos que, durante essa cena, comentavam: “hum! Olha a
branca de neve”. Nesse caso, o inverossímil torna-se perfeitamente plausível diante da
conexão intertextual. Na matrix, Neo possui poderes sobre-humanos, mas no mundo
real é tão vulnerável quanto qualquer pessoa, por isso sucumbiria aos tiros que levou.
Sua sobrevivência seria incoerente mesmo em um filme cujo argumento está longe de
87
qualquer abordagem realista. O beijo de Trinity é o hipertexto que leva o leitor a admitir
o improvável.
O cinema foi abordado, nesta pesquisa, além do entretenimento proporcionado
pelas salas de exibição e do mero objeto de consumo. O espectador como leitor e coautor foi estudado como um indivíduo que deve ser capaz de enxergar além das imagens
ou dos efeitos especiais que encobrem, muitas vezes, uma série de significações que
podem ser elaboradas pelos que tiveram acesso a uma formação cultural ampla. Não
importa se, em Matrix, Neo é identificado com Jesus, Alice ou Galaaz, ou se estar como
“Alice na toca do coelho” significa “confuso”, “perdido” ou “curioso” conforme as
repostas dadas às perguntas do primeiro item do questionário sobre o filme. O
importante é que o leitor de fato tenha condições de formular hipóteses e testá-las no
contexto da obra.
Nesse sentido, estudou-se o cinema intertextual como um aliado da educação,
por ser uma arte naturalmente polifônica e dialógica, num mundo cada dia mais
intertextual em sua produção cultural e que requer do leitor o preenchimento de lacunas,
a construção de novos significados, ou seja, a atuação de fato como co-autor. Viu-se na
análise de filmes como Dom, que uma leitura monológica pode implicar a imposição de
uma significação inteiramente denotativa para uma obra repleta de significações
conotativas.
A internet tem contribuído para a redução das fronteiras entre o popular o
erudito, além de dispor de um acervo enorme tanto de obras da literatura quanto do
cinema, mas mesmo no ciberespaço é necessário que o indivíduo tenha em seu
repertório um mínimo de informação para que saiba até mesmo por onde iniciar uma
busca.
A escola foi apontada como a instituição que deveria assumir o papel de
formadora desse novo tipo de leitor. Esta dissertação argumentou que o cinema
intertextual pode ser um instrumento útil nesse processo, devido às múltiplas leituras
que o receptor dever fazer para fruí-lo em sua plenitude, utilizando hipertextos contidos
em sua memória ou fazendo uso dos recursos disponíveis nos menus interativos. O que
a pesquisa aponta como falha da maioria das instituições de ensino é o fato de a leitura
de obras consideradas clássicas, que nutrem de signos grande parte da produção
88
contemporânea, estar sendo ignorada. Essas leituras, mesmo que no âmbito das
adaptações infanto-juvenis ou por meio de versões cinematográficas, podem contribuir
para a construção de um acervo semiótico do qual pode se nutrir o leitor durante a
recepção do cinema intertextual.
Certamente, a recepção, fruição e significação de uma peça fílmica intertextual
podem ficar comprometidas também por uma série de fatores que não os referidos aqui,
como a dificuldade em ler legendas, a subversão da ordem cronológica da narrativa,
dentre outros elementos constituintes da linguagem cinematográfica. O intertexto seria,
pois, mais um desses elementos constituintes que necessitam de atenção por parte dos
que não desejam enxergar o cinema apenas como um objeto de lazer. No livro
Literatura e Cinema, Glória Maria Palma argumenta que:
A nova concepção de leitor e leitura exige uma postura metodológica
interdisciplinar, uma interação efetiva das várias modalidades discursivas e a
incorporação das novas tecnologias. Este é um desafio a ser vencido, uma vez
que as preocupações ainda se limitam ao campo teórico e na prática a
distância entre a cultura erudita e a cultura de massa aumenta. Entre as várias
propostas para aumentar e dinamizar as competências do leitor, oferecendolhe condições mais reflexivas de seleção, aprofundamento e integração de
linguagens, destaca-se o dialogismo entre literatura e cinema (PALMA, 2004,
p. 9).
O trecho acima endossa o principal motivo das discussões aqui trazidas e
colabora para reforçar a ideia de que, por mais que um filme seja lido por pessoas de
idades, classes sociais e formações diferentes, mesmo que nem toda a rede de signos
seja plenamente interpretada, e dificilmente o é; quanto maior o número de pessoas
capazes de leituras interdiscursivas, maiores as condições de perpetuação das obras que
inspiraram essas leituras, maior a possibilidade de se pensar numa sociedade na qual a
literatura esteja de fato acessível a todos. Acesso esse que deve transcender os limites
do consumo rápido favorecendo uma relação mais crítica e reflexiva com o objeto
cinematográfico.
O brado de Abel Gance, em 1927, citado por Walter Benjamin, parece uma
profecia, pois afinal, Shakespeare, Rembrandt, Beethoven fazem cinema.44 Ao contrário
44
Walter Benjamin: “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, (Abril: São Paulo, p. 14).
89
do que temia o filósofo alemão, a sétima arte não representa a “liquidação do elemento
tradicional dentro da herança cultural”, mas pode contribuir para mantê-lo vivo.
90
7- BIBLIOGRAFIA
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ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001
92
8- FILMOGRAFIA BÁSICA
A rosa púrpura do Cairo. Woody Allen. EUA, 1985.
Babel. Direção de Alejandro González Iñárritu. EUA e México, 2006.
Cinema Paradiso. Dir. Giusseppe Tornatore. Itália, 1988.
Dom. Dir. Moacyr Góes. Brasil, 2003.
Matrix.
Dir.
Andy
e
Larry
Wachowski.
EUA,
1999.
Matrix revolution. Dir. Andy e Larry Wachowski. EUA, 2003.
Shrek. Roteiro de Harry Gregson-Williams e John Powel. Dir. Andrew Adamson Vick.
EUA, 2001.
Shrek 2. Roteiro de Harry Gregson-Williams e John Powel. Dir. Andrew Adamson
Vick. EUA, 2004.
93
APÊNDICE A – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE MATRIX
APLICADO AOS ALUNOS DO INSTITUTO FEDERAL FLUMINENSE EM
18/06/2009.45
Nome:_________________________________________________________________
Instituição:_____________________________________________________________
Data:__________________________________________________________________
e-mail:_________________________________________________________________
1- O que Morpheus quer dizer quando afirma que Neo está como Alice na toca do
coelho?
2- Os nomes dos personagens Oráculo e Morpheus significam alguma coisa para você?
Explique.
3- Os nomes a que se refere a questão 2 tem alguma importância na construção da trama
do filme? Explique?
4- Você associa a trajetória de Neo a de algum outro personagem do cinema, da
literatura ou da história? Se a resposta for sim, diga qual ou quais são esses personagens
e as semelhanças com o herói do filme.
5- Há elementos em Matrix que você já tenha visto em outros filmes ou livros? Se a
resposta for sim, diga se essas informações contribuíram para que você compreendesse
melhor o filme ou partes dele; e como contribuíra.
6- Há várias citações a livros e filmes em Matrix. Você reconhece a origem dessas
citações? Esse reconhecimento aumentou seu interesse pelo filme?
7- Você gostou de “Matrix”? Justifique.
45
Da página 96 a 102, encontram-se cópias de alguns originais dos questionários aplicados nas escolas.
94
APÊNDICE B – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE DOM
APLICADO AOS ALUNOS DO COLÉGIO ALPHA VESTIBULARES EM
16/09/2009.
Nome:___________________________Turma:_________
Instituição:_______________________Data:___________
e-mail:__________________________________________
1-Você leu o romance Dom Casmurro? (Se a resposta for sim, explique o que o
levou a ler o referido livro.)
2- O que os apelidos dos personagens de Marcos Palmeira e Maria Fernanda
Cândido (Bento e Capitu) representam para você?
3- Por que Bento afirma que Ana tem “olhos de ressaca”?
4- Por que a dúvida e o ciúme perturbam tanto o personagem “Bento”? Que relação
isso tem com o nome do personagem?
5- O pai de Dom o batiza com esse nome em homenagem ao personagem de
Machado de Assis. Dom tem uma atitude semelhante na escolha do nome de seu
filho. A quem o personagem homenageia?
6- O fato de ter assistido ao filme Dom aumentou ou despertou seu interesse pela
leitura de Dom Casmurro? Por que?
7- Você gostou do filme “Dom”? Justifique.
95
APÊNDICE C – MODELO DO QUESTIONÁRIO ABERTO SOBRE SHREK
APLICADO AOS ALUNOS DA ESCOLA MUNICIPAL CARLOS CHAGAS EM
29/03/2010.
1-Para você, o que significa o nariz do boneco Pinóquio crescendo quando ele tenta
salvar Shrek e o Burro?
2- Você relaciona a história de Shrek com outras que você conhece? Quais?
3- Você sabe por que o nome da taverna da Irmã feia chama-se Maçã Envenenada?
Explique.
4- Por que as crianças João e Maria entram na festa do castelo jogando migalhas de pão
no chão? Isso tem alguma coisa a ver com a história de Shrek e Fiona? Explique.
6- Você gostou do desenho Shrek? Por quê?
7- Você conheceu a história de Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e da Bela
Adormecida por meio de leitura ou de filmes?
8- Em que outras histórias aparecem os personagens Príncipe Encantado, Fada
Madrinha e Gato de Botas?
96
97
98
99
100
101
102
103
ANEXOS – CÓPIAS DAS PÁGINAS DO SITE DE RELACIONAMENTO
ORKUT, ONDE INTERNAUTAS COMENTAM QUESTÕES RELATIVAS A
LIVROS RELACIONADOS A MATRIX.46
46
As páginas foram impressas diretamente do site, depois foram escaneadas, a isso se deve a má
qualidade da imagem.
104
105
106

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