A privacidade do musaranho

Transcrição

A privacidade do musaranho
A privacidade do musaranho 1
Dominic Wilkinson2
Tradução: Alexandra Oliveira 3
Será que é errado para diretores de documentários filmarem momentos íntimos da vida de
animais não-humanos? David Attenborough usou câmeras de fibra ótica para observar dentro de
um ninho de ornitorrinco, obtendo imagens nunca antes vistas do nascimento e da alimentação
de ornitorrincos recém-nascidos. Mas imagine se ele tivesse usado uma tecnologia similar para
obter imagens de um nascimento na casa de um humano, ou para tirar fotos de casais copulando
em seus lares? Brett Mills, um conferencista de estudos da televisão na Universidade de East
Anglia, sugeriu de forma controversa, que animais talvez tenham direitos à privacidade, a qual é
rompida quando filmados sem seus consentimentos.
Por que seria errado filmar humanos sem seu consentimento, mas não seria errado fazer o mesmo
com animais? Imagine que os sujeitos das filmagens nunca descobrissem que foram filmados.
Seria então “sem prejuízos, sem irregularidades”?
A sugestão de Brett Mills foi ridicularizada por um grande número de comentadores (alguns
sugeriram que isso é um ótimo exemplo de desperdício de esforço acadêmico), mas outros a
levaram a sério. Jean Kazez, em seu blog “Living color”, promoveu diversas idéias adicionais ao
experimento:
- O show de Truman. As pessoas dentro da bolha não estão cientes que estão sendo filmadas, e
não são prejudicadas por isso. Mas certamente a audiência do lado de fora está fazendo alguma
coisa errada?
- Bebês. Suponha um psicólogo que queira uma filmagem de 24 horas de uma criança. Devo
autorizar que uma câmera persiga meu filho, presumindo que a filmagem será anônima e a
criança nunca vai descobrir?
- Indivíduos com deficiência de inteligência severa. Por que não ligar uma webcam para que
pessoas estranhas os acompanhem a tomar banho? Eles nunca saberão, então “sem prejuízos,
sem irregularidades”?
1
http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2010/05/the-privacy-of-the-shrew/ acesso em 20.02.2011.
2
DPhil Student, Oxford Uehiro Centre for Practical Ethics, University of Oxford
3
Estudante do curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bolsista do
projeto Ética e realidade atual: o que podemos saber, o que devemos fazer (www.era.org.br).
Kazez argumenta que adentrar em um lar de ornitorrinco demonstra uma falta de respeito com o
animal e com seu desejo de privacidade. “O ornitorrinco cava uma toca para privacidade e
proteção. Não é antropomórfico ou improvável pensar que é o que ele prefere.”.
Mas talvez seja de grande valia distinguir os diferentes tipos de interesse da privacidade. Um tipo
de interesse é um desejo explícito de que algumas de nossas ações sejam feitas fora dos olhares
de outros – ou pelo menos fora dos olhares de alguns indivíduos da nossa espécie. (Um ponto
interessante é que quando procuramos privacidade não nos preocupamos em excluir animais nãohumanos. Nós não nos preocupamos com o lagarto, ou com o inseto na parede, com o pássaro no
galho da árvore próxima à janela, ou com o gato sentando no sofá.) Nós deliberadamente
procuramos lugares nos quais não seremos observados ou escutados, fechamos as cortinas etc.
Ficamos ofendidos se descobrirmos alguém nos olhando ou nos escutando.
Entretanto, há um segundo desejo, mais avançado e mais abstrato, da certeza de que nossas
atividades são privadas e assim permaneçam, mesmo que estejamos e permaneçamos não cientes
de um observador. Há algum sentido em estender o primeiro interesse a animais não-humanos. O
ornitorrinco não quer ser incomodado na sua toca. Se nós cavarmos de forma intrusa, nós
provavelmente vamos causar desconforto e medo nele, frustrando seu desejo de estar em
segurança, de estar em um local seguro. Similarmente, subir em uma árvore e ficar encarando um
ninho provavelmente vai perturbar e angustiar o passarinho.
Mas também não faz sentido em estender uma privacidade de ordem extrema a um ornitorrinco,
a passarinhos, ou à maioria dos animais não-humanos. Observar um raro passarinho por meio de
um telescópio ou tirar fotos suas com lentes telephoto não é problemático, por causa da sua falta
(até onde nós sabemos) de desejo de uma privacidade extrema. Não somente eles não sentem a
observação de longa distância, como também não sentem a necessidade de permanecer sem
serem observados, mesmo não estando cientes da observação.
Há outra maneira de justificar. Quando refletimos sobre uma ação que pode afetar a outros, nós
contemplamos a valiosa regra de que devemos não nos perguntar “o que eu quero”, mas sim “o
que eu gostaria se fosse ele”. Nós não devemos filmar outros humanos dando à luz, ou fazendo
sexo, sem seus consentimentos, porque se fôssemos eles nós não gostaríamos de sermos filmados
nessas situações. Por outro lado, nos imaginando como ornitorrincos, nós não gostaríamos de
sermos perturbados, mas provavelmente não ligaríamos para a vigilância do nosso esconderijo.
No post interessante e pensativo de Kazez, e nos diversos comentários que se seguiram, outras
questões provocativas foram levantadas. Seria errado para os aliens nos observar do espaço, de
uma maneira próxima a um documentário? “Imagine uma inteligência imortal e onisciente, para
sempre nos observando e até mesmo sabendo nossos pensamentos antes mesmo de sequer
pensarmos”. Será que Deus rompeu nosso direito à privacidade?