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NEPOTISMO PSÍQUICO CULTURAL Anderson Luis Pereira Soares (1) Gilberto Gnoato (2) RESUMO A dicotomia entre natureza e cultura há muito tempo é objeto de discussão de diferentes ciências e autores no âmbito científico, no que diz respeito às fronteiras de onde termina uma e começa outra. O presente trabalho visa a debater a questão do nepotismo, atualmente restrito às explicações no campo da natureza, biologia/genética, e dos graus de parentesco, o que, em algumas relações e contextos, não contemplam a realidade. O autor propõe ampliar o conceito ao campo da psicologia, sugerindo a existência de um “nepotismo psíquico cultural”, resultante do enlace entre natureza e cultura. Os dados, obtidos por meio de pesquisa qualitativa, revelam expressões em que os vínculos afetivos podem ser tão ou mais fortes quanto os laços consangüíneos. Palavras - chaves: “QI”, nepotismo, psicologia, natureza, cultura. 1 INTRODUÇÃO Este artigo visa a ampliar o conceito de nepotismo no âmbito científico, na área da psicologia, uma vez que algumas pesquisas científicas organicistas descrevem o nepotismo como explicável apenas pela genética ou química. Pesquisas realizadas microorganismos como em as chimpanzés, amebas, em formigas, abelhas experimento e até realizado por pesquisadores da Universidade Rice nos EUA (MEHDIABADI, 2006), mostram esse comportamento como algo inerente ao estreitamento genético e, conseqüentemente, biológico. Nepotismo vem do latim nepos, neto ou descendente. É o termo utilizado para designar o favorecimento de parentes, não levando em conta a capacitação de pessoas mais qualificadas, especialmente, na nomeação de cargos. Existe uma discussão em torno do nepotismo atualmente, principalmente em tempos de política. Na última campanha eleitoral ao governo do Estado do (1) Estudante de Graduação do curso de Psicologia da Faculdade Dom Bosco e Técnico em Gestão de Qualidade e Produtividade. (2) Psicólogo Social, Especialista em Psicologia Social, Clínica e Antropologia, Mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela UFPR e Professor da Faculdade Dom Bosco. Paraná, por exemplo, as relações de parentesco (nepotismo) na Assembléia Legislativa foram alvo de ataques da oposição. Ao ser criticado em relação a denúncias envolvendo alguns membros de sua equipe de governo, o presidente Lula admitiu ter cometido um “erro ao ter contratado amigos”. Essa expressão nos permite refletir sobre até que ponto houve ou não uma intenção pessoal do presidente ou de sua equipe em admitir pessoas menos competentes para o cargo. Situações semelhantes abrem espaço para ampliação do nepotismo não apenas consangüíneo, mas também psíquico. A prática de contratação, promoção e proteção de parentes não se restringe apenas à política, mas também às instituições privadas, uma vez que no senso comum existe o chamado “QI” (“Quem Indique”), que aqui se denominará “nepotismo psíquico”. Essa situação gera preocupação tanto em candidatos às vagas, que vêem suas oportunidades reduzidas, quanto nas empresas, que nem sempre contratam os melhores talentos. É importante ressaltar que se reconhecem vantagens na indicação de parentes em casos de qualificação, e que as discussões a seguir baseiam-se em questões nas quais a qualificação e o desempenho ficam em segundo plano. De acordo com Curado (2007), aproximadamente oitenta e cinco por cento das empresas nacionais são familiares. Nesse contexto, os interessados na busca de talentos para continuar seus negócios procuram técnicas que permitam maior transparência nos processos seletivos, como terceirização, dinâmicas de grupo, entrevistas, entre outros. Ao se basear apenas em estudos organicistas, os parâmetros e regras podem não ser suficientemente eficazes para evitar o detrimento de pessoas mais qualificadas em função do nepotismo, que se utiliza somente de dados de consangüinidade ou laços familiares. A experiência das pessoas ligadas ao mercado de trabalho sinaliza que as indicações ou proteções nas organizações não se concretizam apenas por esse tipo de laço descrito pela genética. Numa pesquisa da DBM mundial, com 20 mil empresas, das quais 580 são brasileiras, encontra-se que: "Nos últimos quatro anos, entre 60% e 75% das vagas foram preenchidas por meio de contatos" – afirma Gérson Correia, sócio-diretor da DBM do Brasil (ABRAHÃO, 2000). Assim sendo, dentre essas indicações, nos casos em que a indicação de um não-parente prevaleceu sobre a competência de outro, teríamos como negar a presença do “nepotismo psíquico”? Justifica-se essa hipótese porque aspectos psicológicos e emocionais estão envolvidos na capacidade de as pessoas estabelecerem relações. A denominada “rede de contatos” pelos profissionais da administração pode ser fonte de avaliação de questionamento sobre o modo como essas relações são construídas, se por consangüinidade, afetividade ou competência. 2 NEPOTISMO: CONCEPÇÕES E PESQUISA QUALITATIVA Iniciou-se o presente estudo partindo da crítica sobre como a teoria genética explica o nepotismo e em que pontos ela não contemplaria a realidade. Segundo essa teoria, quanto mais próximo o grau de parentesco maior a carga genética herdada. Um experimento publicado (BBC, 2005) com inúmeras famílias consistia em prender a respiração dentro de um recipiente com água e avaliar por quanto tempo determinado parente conseguiria se manter imerso em relação a outro familiar. Após cronometrar a imersão, obteve-se como o resultado final que, quanto maior a carga genética ou o grau de parentesco, mais tempo suportava ficar com a respiração bloqueada. Mais adiante se analisará como essa regra de ouro, como é chamada, não se verifica apenas em relação ao consangüíneo ou biológico, como ocorre no conhecido nepotismo. Por outro lado, outras ciências mostram o ser humano não totalmente alienado dos aspectos biológicos. Exemplificando, Lacan (1938) diz: “...Os aspectos simbólicos prevalecem sobre os aspectos biológicos, sendo intermediados pela linguagem e pela cultura”. Enquanto alguns sujeitos matam em legítima defesa, o que seria para a biologia o instinto de preservar a própria vida, outros se suicidam por algum ideal. Neste último caso pode-se pensar na influência da cultura e do psiquismo humano. Quem não conhece algum exemplo de alguém que defendeu exageradamente a contratação, promoção ou permanência de uma pessoa considerada menos qualificada em relação à outra? Pergunta-se, então: essa afirmação significaria que sempre os candidatos a vagas ou promoções seriam prejudicados por interferências, sejam elas por grau de parentesco ou não? Em resposta a essa pergunta e complementando a idéia de Lacan em relação a aspectos da cultura na sobreposição do social sobre o biológico, Vigotsky (1998) postula que “os processos psicológicos superiores aparecem primeiramente nas relações sociais sob a forma de processos intermentais, passando para processos intramentais ou individuais”, que são características psíquicas próprias do ser humano. Eles servem como base para o processo de internalização, que consiste na armazenagem não apenas da representação de objetos da cultura, mas também do valor que representam nesse contexto. Uma possibilidade de intervenção do psicólogo seria questionar aspectos envolvendo situações de protecionismo, numa cultura de favorecimento. Antropólogos descrevem o modo como diversos povos, em diferentes contextos, vivenciam realidades semelhantes de formas diferentes. Lévi-Strauss (1950) assume o ponto de vista dos mitos, analisando-os. Afirma que é preciso determinar "uma quarta dimensão do espírito”, a fim de poder dissolver a aparência de irracionalidade do mito. Isso significaria que mesmo o nepotismo psíquico cultural, fortemente enraizado na cultura, seria passível de mudanças, uma vez que as organizações se direcionam aos resultados. Lévi-Strauss recusa diversos dualismos característicos da tradição como sensível/inteligível, indivíduo/sociedade, emoção/razão, mito/história, eu/outro ou mesmo, em certo sentido, natureza/cultura. Atribui ao último um valor metodológico. Esse fato mostra que Lévi-Strauss confere ao par natureza e cultura um tratamento semelhante ao que atribui a oposições como côncavo e convexo ou horizontal e vertical (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 209). Em outras palavras, não nega a ligação entre ambos. A cultura do favorecimento, QI ou “nepotismo psíquico”, é uma característica acentuada dos brasileiros. E justamente por esse atributo é possível esclarecer a diferença entre os povos brasileiro, norte-americano, francês e inglês, nos quais as diferenças se evidenciam e o “QI” não prevalece, na maioria dos casos. Também no Brasil algumas multinacionais, como a norte-americana IBM, não permitem que pessoas casadas, por exemplo, trabalhem na mesma empresa, devido aos possíveis favorecimentos decorrentes dos laços afetivos. Roberto Da Matta (1984) cita o “jeitinho” e a “malandragem”, típicos da cultura nacional, referindo-se a muitos brasileiros que usam a posição social ou as relações sociais para driblar o que a lei estabelece, diferindo-se de países como Inglaterra, EUA e França. Essa prevalência no Brasil, de apadrinhamentos em função das relações sociais demonstrou interferir em alguns resultados de organizações participantes da pesquisa. Avaliações ou recrutamentos internos são processos freqüentemente utilizados como recursos de promoção e valorização de recursos humanos já existentes dentro das organizações. As indicações também influenciam muitas vezes, nesses processos. Dois fatores que afetam a avaliação e, conseqüentemente, a indicação de um supervisor em relação a um subordinado são as questões de gostar ou não dele, confirmadas pelas pesquisas de Ferris e colaboradores apud Spector (2006, p. 105), e o humor no momento da avaliação, segundo pesquisas de Sinclair apud Spector (2006, p. 105). Realizaram-se entrevistas com funcionários de diferentes organizações privadas para verificar a existência não apenas de um suposto “nepotismo psíquico”, mas ampliando a visão para um “nepotismo psíquico-cultural”, presente na cultura brasileira. Essa atitude difere em outras culturas, que valorizam, na maioria dos casos, o conhecimento, a capacitação e o profissionalismo, ignorando vínculo parentesco ou afetivo. Após seis entrevistas qualitativas aplicadas e realizadas com pessoas de três organizações, surgiram alguns relatos que se assemelharam em conteúdo, embora em ambientes diversos. Gradativamente, evidências de “QI” ou protecionismo se manifestaram com algumas expressões como “esse cara é como um pai pra mim” (sujeito da empresa 1); “vários deles aqui me chamam de mãe” (sujeito da empresa 02), “...como é minha esposa vou tentar treinar, mas se fosse um sócio teria acabado a sociedade...” (empresa 03). Este último, referindo-se aos prejuízos causados pelo desempenho insatisfatório dela. No discurso dos entrevistados, os dados mostram que nem sempre as relações de proteção estão vinculadas a laços consangüíneos ou familiares. Outra informação é a de que todos, no início da entrevista, disseram que não existia nenhum tipo de protecionismo na empresa. Reforçaram essas afirmações iniciais no final, embora tivessem relatado experiências em que ficaram evidentes a negligência ou proteção. Seu posicionamento demonstra não terem percebido o protecionismo no ambiente de trabalho. Além de detectar o “nepotismo psíquico-cultural” por meio das entrevistas, suas influências também se manifestaram, conforme se exemplifica a seguir. 3 INFLUÊNCIAS DO NEPOTISMO PSÍQUICO CULTURAL 3.1 NEPOTISMO PSÍQUICO-CULTURAL E MOTIVAÇÃO DOS GRUPOS Um mesmo erro cometido por duas trabalhadoras, uma delas a suposta protegida, foram cobradas de forma diferenciada: “você não está sendo competente – onde já se viu isso?!”. Em relação à “protegida”, a atitude foi mais adequada: “não se preocupe, isso acontece...”. A entrevistada relatou que, a partir desse tratamento diferenciado, a produtividade do grupo que presenciou a cena caiu no restante do dia, mesmo sem combinarem entre si, caracterizando-se como uma forma de protesto. 3.2 NEPOTISMO PSÍQUICO-CULTURAL E RESULTADOS DA EMPRESA Outro relato: “não apareceu um culpado. Alguém sabe, mas não conta”. Trata-se de manifestação relativa a uma matéria-prima desperdiçada e escondida num local da fábrica. Segundo esse gerente, algumas informações importantes não chegavam a ele. 3.3 NEPOTISMO PSÍQUICO-CULTURAL E LIDERANÇA Funções com autonomia para contratar, demitir e promover pessoas merecem uma análise mais cautelosa. Um líder já aposentado e que continua atuando ausentou-se do trabalho por longo período. Nesse tempo, um subordinado o substituiu. Apresentou resultados satisfatórios e considerados bem superiores, tanto em produtividade quanto em qualidade de relação no ambiente de trabalho. Por seu desempenho, propôs-se uma preparação para o desligamento do líder anterior, porém outra pessoa com poder hierárquico superior impediu essa ação, com o argumento “ele está aqui desde o início da empresa, é muito querido e gosta de trabalhar aqui”. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que nem sempre as relações de proteção estão vinculadas apenas a laços consangüíneos ou familiares, mas também a aspectos psíquicos e emocionais. Cabe aos psicólogos orientar empresários e gestores nas organizações a respeito dessas influências. Precisam manter-se atentos para intervir quando esse tipo de relação se reflete negativamente na saúde de terceiros ou no resultado da empresa, sendo esta última uma linguagem que o administrador entende. É importante repensar o desenvolvimento de habilidades desenvolvidas na escola, não se restringindo apenas às acadêmicas, uma vez que as sociais no Brasil apresentam, se não maior, tanta relevância quanto a primeira. REFERÊNCIAS ABRAHÃO, Thaís. Indicações preenchem até 75% das vagas. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/empregos/ce0907200001.htm> Acesso em: 26 out. 2006 CURADO, Fernando. Ruptura: sucessão e sustento na empresa familiar. Disponível em: <http://www.revistabsp.com.br/0608/ensaio3.htm> Acesso em: 15 abr. 2007. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LIMA, Tânia Stolze. O pássaro de fogo. Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1-2, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003477011999000100008&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 6 jun. 2007. MEHDIABADI, Natacha. Amebas também praticam nepotismo, diz pesquisa. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2006/ago/23/334.htm> Acesso em: 17 ago. 2006. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BBC, Tlc. Instintos: o lado selvagem do comportamento humano. Disco 2. São Paulo: Abril, 2005.