Douglas de Paula - Universidade de Brasília

Transcrição

Douglas de Paula - Universidade de Brasília
 UM EXAME ESTÉTICO DE INSTÂNCIAS DA ARTE
CONTEMPORÂNEA E ARTEMÍDIA
Douglas de Paula - UnB/UFU 1
Resumo: Este trabalho busca refletir acerca da eficácia estética de instâncias da arte contemporânea e
artemídia, por meio de um exame das mesmas e de um confronto entre considerações estéticas, visão
de público e discurso do artista, numa busca por respostas a questões como: de que natureza é a relação
entre artista e receptor? De que espécie deve ser a comunicação entre eles? Não estariam algumas obras
veiculando mensagens distintas entre seu corpo e o discurso de seu autor? Em que medida pode haver
comprometimento estético nesse sentido? Deve a arte obedecer ou ditar a estética?
Palavras-chave: Estética. Arte Contemporânea. Artemídia. Público.
Abstract: This work wants to think about the aesthetic effectiveness of contemporary art and media
art, by means of examining them and confronting aesthetic considerations, vision of public and the
artist speech, trying to answer questions like: what’s the nature of the relation between artist and
receptor? How should be the communication between them? Isn’t it true that some artistic works would
be conveying distinct messages between their body and their author’s speech? How can it compromise
their aesthetic quality? Should art follow or dictate the aesthetic?
Key-words: Aesthetic. Contemporary Art. Media art. Public.
O ambiente era claríssimo, insípido. À sua direita, via uma quina de prateleiras
forrando as duas paredes. Do outro lado, límpida e alva bancada se colocava. Os olhos
logo convergiram para os frascos coloridos em cima dela, como se um bruxo ou um
cientista houvesse assumido a decoração. As cores impressionavam. À frente,
banquinhos negros davam o contraste com a alvura do restante. Sobre eles, pratos
com uma espécie de resina. Acima, mais brancura e lâmpadas amparadas por uma
estrutura metálica, “balanço ou puleiro?”, pensava. As gôndolas amparavam caixas
que lembravam caixas de remédio. Estaria numa farmácia? Mas e os frascos na
bancada à esquerda? “E qual seria a dos pratinhos?”, cogitava.
Depois de várias remissões, não conseguiu torná-las uma coisa só, não se
unificavam. De um lado, parecia estar numa farmácia, do outro, num laboratório, e
aquele balanço-puleiro-lâmpada, não ajudava nenhum deles. Percebeu então que
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília - UnB -, linha de
pesquisa "Arte e Tecnologia", orientação da Profa. Dra. Daniela Fávaro Garrossini. Professor
Assistente do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia - UFU.
261 alguém dava explicações: “com isso, o artista quis dizer que vamos à farmácia para
fugir da morte, mas, a morte também está na farmácia”, dizia um monitor. “Como
assim?”, retrucou. O jovem continuou: “é que esses pratos contêm mel; esse mel é
para atrair moscas; as moscas vêm, mas logo seguem para a luz acima e morrem,
torradas pelas lâmpadas”. Aquilo era ouvido como se alguém falasse de uma daquelas
armadilhas ou dispositivos mirabolantes de desenho animado. “Ah!, então essa chapa
em baixo das lâmpadas é tipo um cemitério de moscas?”, perguntou o visitante. “É”,
respondeu o outro. “Mas, e cadê elas?”, devolveu. “Ah! O ar condicionado...”,
retrucou o monitor, evadindo.
Nesse ínterim, ficou se perguntando como poderia ver na morte das moscas a
própria morte, uma morte humana, não conseguia solidarizar com as pobres
coitadas... “Gostou das gôndolas?”, interrompeu o anfitrião, continuando: “os frascos
dentro das caixas estão vazios. Sabe o quer dizer?” O visitante soltou um “não”
tímido e constrangido e o outro seguiu: “com isso, o artista quis questionar como
acreditamos em medicamentos, mas não acreditamos na arte... põe em xeque nosso
sistema de crenças, não é?”, continuava o anfitrião.
Logo, estavam noutra sala, escura desta vez. Deparou-se com uma vitrine e,
nela, uma planta, arranjada num vaso. Numa parede, reinava uma grande projeção de
vídeo: quadrados coloridos animados. Eles alternavam cores, bem saturadas. Fixou a
planta, esperando talvez que ela se mexesse ou reagisse a sua presença, mas nada.
Ficou então entre a projeção e a planta, buscando, sem êxito, uma relação, uma
unidade. Uma vez mais, viu-se sobrepujado por elementos completamente estanques.
Sem recurso, dirigiu-se ao cicerone que lhe explicara sobre a sala anterior: “o que o
artista quis dizer?”, perguntou. “Só um minuto”, retrucou o outro, atendendo a uma
senhora.
Enquanto isso, viu então um texto enorme, mas, ainda assim, pela curiosidade,
dispôs-se a ele. Parecia que aquela planta tinha resultado de uma manipulação
genética: primeiro, o artista pegou a frase “cogito ergo sum”, de um tal René
262 Descartes, separou cada letra da frase e traduziu para código ASCII2. “Legal, de
computador eu entendo”, pensou. Depois, cada número encontrado foi re-traduzido
para outro sistema de números, o binário. Seguindo a explicação, não tardou para verse perdido entre assertivas sobre DNA e moléculas, decidindo abeirar-se novamente
daquele rapaz, que já terminava de atender aquela senhora. O rapaz mal havia iniciado
seu rosário de explicações e já se pegava novamente distraído com os elementos
visuais daquela cena toda. “Está me ouvindo, senhor?”, chamou o rapaz. “Sim, sim,
desculpe”, respondeu ele. “Então”, continuava, “depois da tradução para binário, a
sequência resultante foi traduzida para letras que representavam moléculas de DNA e
a cadeia final foi o que o artista mandou para um laboratório especializado mesclar
com DNA de tomate e, assim, temos essa planta”, terminava ele diante da cara
assustada do seu interlocutor. “E a projeção?”, perguntou. “Ah, é porque teve um
enxadrista russo que perdeu para uma máquina, uma inteligência artificial”,
respondeu o anfitrião. Vendo que a cara do primeiro se torcia ainda mais, tentou
esclarecer: “é que nossa ciência, nossa tecnologia, vem se derivando toda do
pensamento de Descartes. Então, fabricando uma vida a partir do pensamento
cartesiano, o artista quis recolocar a questão do que é ser: uma planta não pensa, mas
é viva, se o homem pensa e o computador ganhou dele, então, o computador pensa,
mas, como ele existe?”. “Então aqueles quadrados piscantes eram um tabuleiro de
xadrez?”, retrucou, num tom meio revolto.
A situação descrita é ficcional, mas os trabalhos “Pharmacy”, do britânico
Damien Hirst, e “Move 36”, do brasileiro Eduardo Kac, são bem reais. Contudo,
jamais foram expostos de modo geminado como na historieta. Na verdade, Pharmacy
integrou retrospectiva solo do artista na Tate Gallery, Londres, 2012 (DAMIEN,
2012) e, "Move 36", tomou parte na 26º Bienal de São Paulo, em 2004
(BEIGUELMAN). O pequeno trecho ficcional inspirou-se em leituras próprias sobre
esses trabalhos e entrevista com o historiador de arte e integrante do Programa de
2
Associação numérica com a qual o computador identifica cada tecla do teclado.
263 Pós-Graduação em Arte da Universidade Federal de Uberlândia - UFU -, Prof. Dr.
Marco Antônio Pasqualini de Andrade (2014), que presenciou essas obras justamente
nessas exposições. Partindo disso, posso afirmar: não seria difícil que algum
espectador protagonizasse algo semelhante ao que se figura na pequena ficção.
Trata-se de questão que não passou despercebida pela crítica mexicana
Avelina Lésper, na conferência “Arte contemporâneo, el dogma incuestionable”,
proferida em 2012 e amplamente propagada na forma de vídeo (AVELINA, 2012) e
em diversos documentos (LÉSPER, 2011, 2012), todos na web, nos quais não faltam
ataques ao culto do ready-made e a artistas celebrados, como o próprio Hirst. A
teórica toca um ponto importante ao falar de obras que, segundo ela, têm seu mérito
defendido a custa de lançar o espectador comum numa larga roda de ineptos
perceptuais, “ogros da cultura”, da qual só escapariam aqueles que fizessem como os
bajuladores do rei da história de Christian Hans Andersen (1995), que afirmaram ver
a nova roupa do rei, quando, na verdade, ele estava nu, ludibriado por estilistas
embusteiros e inventores do mito de que apenas pessoas inteligentes podiam ver o
tecido com que trabalhavam.
Bernard Stiegler (2007, p. 54) também se mostra preocupado em relação a
uma arte que é feita para especialistas. Deixa entender que a arte deve dirigir-se a
todos, que deve, sobretudo, possibilitar a experiência do sensível para aqueles que o
marketing condiciona esteticamente. “Se a obra não abre, ela não é nada. Se a obra
abre apenas o artista ele mesmo, ela não abre nada. A obra só pode abrir o outro, e
outro é aquele está fechado” (STIEGLER, 2007, p. 55).
Dessa forma, o famigerado bordão “arte é o que o que o artista faz” é não só
inócuo do ponto de vista de uma definição, como poderia ser respondido com outro de
igual teor como: “arte é o que o espectador gosta”. Representam extremos que
simplificam de forma inapropriada a questão, sobretudo pensando nos aportes trazidos
pela teoria cognitiva e a fenomenologia.
Concordando com Stiegler, não posso, contudo, estar completamente com
Lésper quando o tópico é atear fogo aos ready-made, Marcel Duchamp ou à arte
conceitual. Tomemos o famoso mictório, por exemplo. Ao ser exposto numa galeria e
264 receber o título “la fontaine”, “a fonte”, poderia promover um choque de signos capaz
de retumbar indefinidamente, promover um jogo que, lançando um signo contra
outro, a fonte contra o mictório, pode reverter seus significados em cadeia, numa
espécie de dominó em que se toma o próximo significado como signo e o questiona3.
O mictório é o lugar do descarte, depósito do indesejável, do repulsivo. A
fonte é o lugar da nutrição, do deleite. O jogo do artista parece tentar trocar os
significados dos signos primários, o mictório e a fonte, e, assim, abalar igualmente as
duplas de signos seguintes, que lhes teciam os significados, destruindo-os, mesclandoos: o repulsivo e o desejado, o ordinário e o extraordinário, até chegar à dupla antiarte e arte. Nesse trajeto, já não se sabe mais o que é um e o que é outro. Assim, a
virtualidade, o questionamento, acerca do que é arte, por exemplo, parece emergir
com naturalidade do próprio corpo-contexto da obra. Não é difícil imaginar que “la
fontaine”, num âmbito estético, tenha alcançado grande estranhamento ou, talvez sem
alcançar uma dimensão estética junto a um espectador qualquer, tenha causado, no
mínimo, muita comoção.
Dessa forma, parece difícil acusar Duchamp da mesma negligência que Lésper
atribui a vários artistas contemporâneas se pensarmos que ele parece ter estendido a
dimensão estética para além do corpo da obra, dando-lhe um caráter relacional com o
contexto, apontando sua flexibilidade em relação ao espaço-tempo em que pode
emergir: no banheiro, no ônibus, no intervalo comercial que permite o olhar navegar
pela sala, num lance em que se é tirado da conversa da mesa de bar para uma situação
distante ou distanciada, tornada paisagem4.
Apesar do valor de revelação da fórmula duchampiana, há que se reconhecer
que ela parece ter trazido, em sua esteira, a semente de outra questão: as condições da
emergência estética transformam-se no tempo. O ready-made pode ter funcionado
por um período, mas parece ter perdido seu potencial estético no âmbito dos espaços
expositivos institucionalizados, isto é, os ready-made passaram a ser esperados nesses
3
Tomemos signo, significado e significante de modo simplificado, como Umberto Eco (1994, p. 24)
propõe inicialmente.
4
Como entendida por Karina Dias (2010).
265 lugares, queimando o circuito do choque simbólico que os tornavam estéticos noutros
tempos. Em outras palavras, o ready-made pode ter se tornado o grande clichê das
galerias, até mesmo para o grande público, que parece ter passado a compreender
como arte aquilo que simplesmente não entende ou não lhe faz sentido algum e que,
da mesma forma, pouco ou nada quer saber a respeito. É como se o espectador
considerasse cumprida a missão da obra no momento mesmo em que ela não o
alcançasse.
O trabalho com ideias, instilado pelo ready-made na arte conceitual dos anos
1960, como nos conta Bettina Thiers (2012), é freqüente, atual e, não necessariamente
um problema, sobretudo se pensarmos, com John Dewey (2008, p. 133), que as ideias
também podem alcançar a sensibilidade e serem diretamente experimentadas. Aliás
Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992, p. 171-172, 253-255, 277-278) acreditam que o
artista pode criar sensações ou sensibilia de conceito, mas que é a sensação e não o
conceito a matéria do artista, uma sensação capaz de restituir o infinito do virtual,
segundo os autores.
De fato, Maria Beatriz de Medeiros e Lúcia Santatella parecem convergir
quando evocam Kant, seja para falar de ausência de conceito na arte, com Medeiros
(2005, p. 29, 43, 65), seja para falar de conceito indeterminado no estético, com
Santaella (1994, p. 52-53, 56). Deleuze e Guattari (1992, p. 267) falam de conceito
como recorte consistente, conjunto de variações, do infinito, do caos, da velocidade,
do virtual. Ora, mesmo quando a arte trabalha sensação de conceito, do ponto de vista
estético, o virtual que a arte levanta não pode se limitar ao conceito porque, como
recorte, o conceito é definido e, o virtual relativo ao estético, indefinido. Esse virtual,
aliás, só subsiste no mundo que a obra, o estímulo sensório, faz nascer, como Dewey
(2008, p. 116, 302) deixa entender. Assim, a questão que parece se colocar em relação
a uma arte que reivindica para si o termo "conceitual" é se ela está abrindo um campo
indefinido de virtual, fazendo uma sensibilia desse indefinido, dentro do qual certos
conceitos poderiam ser encontrados, experimentados, como parte do trabalho de
exploração, de revelação, desse campo, como creio ser o caso de Duchamp, ou está
266 propondo apenas sensação de conceito, ou apenas conceito - que segundo Deleuze e
Guattari (1992, p. 277-278) seria trabalho da filosofia e não da arte -, ou nem isso.
Buscando aspectos da presencialidade da obra de Hirst, em "Pharmacy", por
exemplo, a partir da entrevista com Andrade (2014), fica evidente que essa presença
se faz por meio de uma sobre-marcada disposição formal e, principalmente, pela cor,
a qual o professor destaca em diversos momentos, dizendo: “a questão cromática é
uma coisa que fica muito evidente no trabalho dele”, “vejo mais essa coisa das cores,
para mim, é muito mais forte”, “a primeira impressão que eu tive foi cromática”.
Assim, a hipótese de ineficácia estética em relação a "Pharmacy" parece suspensa na
fruição confessada pelo historiador quando afirma a forte impressão que o corpo da
obra lhe trouxe no seu aspecto formal e cromático. Ou seja, parece haver uma
sensibilia em sua fruição.
No entanto, num aprofundamento dessa checagem estética, um problema
fundamental é confirmado. Ao ser perguntado sobre a relação entre as remissões da
obra e seu corpo em si mesmo, Andrade (2014) confirma que essas remissões: a
farmácia, o laboratório, parecem, de fato, desconectadas da parte corpórea do
trabalho, que elas podem facilmente ser sentidas e mesmo entendidas à parte do corpo
da obra. Esse depoimento permite registrar um enorme gargalo estético do ponto de
vista fenomenológico. A farmácia e o laboratório figuram como virtuais indicados e
não sentidos na obra. Tudo sugere que, na fruição do professor, a verdadeira
virtualidade de "Pharmacy" está ligada à questão cromática. O problema se agrava se
lembrarmos que todo o discurso do artista está ancorado justamente nesse virtual
indicado e não vivido. Para Andrade (2014), aliás, a insipidez e a limpeza que
marcam o ambiente da obra não remetem à questão da morte: “me parece muito mais
o laboratório da experiência”, diz ele. As moscas não são nem mesmo lembradas.
Quando confrontado com a menção feita a elas em "Pharmacy", o professor confessa
sua dificuldade em solidarizar-se, diferentemente do que ocorre em relação às
borboletas de outro trabalho de Hirst, do qual se lembra. Ou seja, ao menos nessa
fruição confessada de "Pharmacy", a questão da morte, pedra fundamental do
discurso do artista, sequer é evocada pelo corpo da obra, não compõe nem mesmo seu
267 virtual indicado. Ou seja, não houve sequer uma experimentação sensível do conceito
de morte no corpo da obra, mas uma tentativa de veiculação desse conceito no
discurso feito pelo artista.
Com relação a "Move 36", de Kac, questões semelhantes podem ser pinçadas
na fruição declarada por Andrade (2014). O professor confessa sua perplexidade e
curiosidade ao facear um ambiente escuro no qual só se viam dois focos: um vídeo
projetado na parede e uma planta. Segundo ele, o trabalho “criava um clima”. Mas o
que lhe foi mais estranho foi a própria planta, a sua colocação bem ali, num ambiente
expositivo, lembrando que os ambientes expositivos são normalmente dominados por
objetos e não seres viventes. A partir dessa fala, posso imaginar uma possibilidade
estética pelo estranhamento em sua fruição. Contudo, o historiador afirma não ter sido
tocado pelo trabalho ao final de contas, deixando entender que esse estranhamento
não medrou, mas sim caiu numa impossibilidade de fazer sentido. Sugere ainda ser
isso o que ocorreu com a maior parte dos espectadores que o acompanharam nessa
experiência, que olhavam e, muito mais rapidamente que ele mesmo, partiam sem
mais demonstrações de interesse.
Ao ser confrontado com a cadeia de raciocínio do artista para esse trabalho,
Andrade (2014) confirma, em sua fruição, minha intuição sobre a impossibilidade de
se estabelecer essa cadeia a partir do corpo da obra, de que esse trabalho estaria
melhor representado com uma peça de texto. Nesse sentido, o professor acrescenta
que a instalação lhe pareceu apenas ilustrativa da obra, e não obra em si.
A entrevista com Andrade (2014) possibilitou, por um lado, um fortalecimento
da hipótese de que parece haver, de fato, uma enorme distância entre o que alguns
artistas dizem e o que expõem, e, por outro, deu campo para uma melhor definição de
outra hipótese: o que expõem não é necessariamente infrutífero esteticamente porque
incompatível com o que é dito. Mostrou ainda que as fruições imaginadas, a distância,
de certos trabalhos, podem ser bem acertadas e próximas de uma vivência delas.
Dessa forma, sinto-me confortável para fazer observações semelhantes acerca
de trabalhos como os que Frank Popper (1993, p. 122-139) situa na estética da
comunicação ou sublime tecnológico de Mário Costa (1995). Imaginemos, por
268 exemplo, um espectador desavisado de Roda Celeste (1970), do artista Jean-marc
Philippe, mencionado por Popper (1993, p.130-132). Esse trabalho usou satélites para
tornar visíveis luzes que se assemelhavam a estrelas dispostas em círculo quando
vistas da Terra. Apostar em que o espectador será levado a pensar distâncias, como
sugere a estética da comunicação, é supor um pré-conhecimento que, muito
provavelmente, ele não possui, e desconsiderar as condições diversas em que ele pode
encontrar-se com a obra. Como garantir que esse espectador não estará com Gaston
Bachelard, por exemplo? Para quem, “no reino da imaginação, tudo o que brilha é um
olhar” (2001, p. 187).
Mas essa observação do trabalho de outros artistas partiu de uma observação
do próprio trabalho. Em 2009, participava da exposição conexa ao 8º Encontro
Internacional de Arte e Tecnologia, a “Instinto Computacional”, na galeria “Espaço
Piloto” da Universidade de Brasília - UnB, com trabalho intitulado “Overtime”.
Tratava-se de um protetor de tela que super protegia a tela, jamais a liberava, a menos
que se acertasse a letra correta no teclado. Ocorria que essa letra era constantemente
trocada enquanto o espectador interagia com o mouse para melhor visualizar a forma
proposta pela interface gráfica. Assim, um convite duplo e contraditório era feito ao
espectador, na medida em que essa forma proporcionava grande interesse e era
interagida. A obra pedia ao público que descobrisse um código enquanto o instigava a
destruí-lo, fazendo lembrar a uróboros, a serpente que engole a própria cauda. Um
momento: eu disse que um convite duplo era feito ao espectador? Preciso ser honesto,
o que lá estava era uma interface gráfica e um texto que explicava o que se dava por
trás dela. Certamente, houve quem se deleitasse com a forma sem fazer conta do
texto.
Em 2010, iniciava o projeto "Interfaces Predatórias", um conjunto de
interfaces gráficas interativas expostas paulatinamente em diversas coletivas
artísticas. A última delas, o Festival Internacional de Linguagem Eletrônica de 2011,
em São Paulo. Em termos de intenção artística, esse trabalho se assemelha muito ao
anteriormente descrito. As interfaces foram pensadas para ser visualmente atrativas e
convidativas à interação. À medida que eram interagidas, módulos sonoro-visuais
269 eram criados sem qualquer preocupação com sua saturação, preocupação que sempre
guardei em trabalhos anteriores não só por entender, mas também perceber, que essa
saturação sempre atingia o limite do computador. Assim, em outros trabalhos, sempre
conseguira o efeito de infinito gerenciando recursos, repetindo criteriosamente
elementos5. Dessas exposições, naquelas em que estive, pude notar a mesma cisão
entre discurso e imagem. Não raro, notava o espectador admirado e apreciativo com
as interfaces, e, a menos que lhe falasse sobre o que estava a acontecer por trás delas –
ele normalmente não lia o texto que compunha com elas -, ele mantinha-se alheio a
essa informação, satisfazendo-se com o que experimentava. Num artigo, cheguei a
referir-me a essas interfaces como ready-made computacionais (PAULA, 2011).
Mas, se a obra deve ser aberta, como defende Umberto Eco (1991), que
problema há quando o artista diz uma coisa e o espectador entende outra? Na verdade,
cabe, antes, refazer a pergunta, pois o autor deixa claro que não se trata de dizer uma
coisa e entender outra, mas sim de dizer algo cuja vastidão e o alcance são mistério
para o próprio artista, lugar em que o receptor pode localizar-se e, muitas vezes, em
confins que não eram claros para o próprio artista, mas sempre estiveram lá, na obra.
Nesse sentido, não é apenas questão de o artista ou a obra abrir o espectador, como
diria Stiegler (2007, p. 55), mas de o espectador também abrir a obra e o artista.
Então o artista diz, com a obra, algo cuja dimensão escapa a ele mesmo, ele
abre um campo indefinido a ser tateado, mas esse algo deve necessariamente ser
entrado de forma múltipla pelo espectador se assumimos um ponto de vista estético,
qual for. Quer dizer, o espectador encontra e até revela lugares desse campo. Nesse
sentido, Medeiros reivindica a popularização do dizer, do designar, arte e quer
garantir o lugar do público nessa reivindicação: “será arte aquilo que nós (eu, tu, ele,
nós, vós, eles) designarmos como tal. Diremos então: é arte aquilo que o artista
5
Entre 2002 e 2004, por ocasião do trabalho de mestrado também desenvolvido no Programa de PósGraduação em Arte da Universidade de Brasília, exibira, em diversas coletivas nacionais, uma interface
gráfica interativa e semi-imersiva intitulada Hipermórficos. Nela, o espectador navegava por um campo
de formas que eram quase sempre interpretadas como mariposas de luz. Essas formas não eram criadas
indefinidamente. Eram, ao contrário, limitadas e estrategicamente reposicionadas à frente à medida que
se interagia com a interface.
270 designar, mas também e somente aquilo que o público abraçar” (MEDEIROS, 2005,
p. 35) . No mais, basta lembrar que nenhuma estética filosófica parece ter descuidado
da relação entre o subjetivo e o universal, como indicam Adolfo Sánchez Vázquez
(1978), Lúcia Santaella (1997), Luigi Pareyson (1994) ou Semir Zeki (1998), por
exemplo. Não há, portanto, como negar que pensar esteticamente é uma questão de
comunicação6: “o objeto artístico só é tal em relação com o sujeito, com o homem,
isto é, em seu gôzo [sic] ou apropriação pelos outros, como meio ou instrumento de
comunicação” (VÁZQUEZ, 1978, p. 254). “A obra de arte só é completa se opera na
experiência de outros distintos de seu autor”; “a obra de arte é o laço que conecta o
artista com seu público”; “O material expressado não pode ser privado; se assim
fosse, seria coisa de loucos. Não obstante, a maneira de dizê-lo é individual”
(DEWEY, 2008, p. 119, 121).
Negar a questão da comunicação na arte é, portanto, negar a questão estética, a
menos que falemos de uma arte para além da estética, o que é diferente de uma arte
que desafie a estética. Mas, admitir uma arte para além da estética não seria favorecer
o bordão “arte é o que o artista faz”? Por que deveria a arte ser o único campo de
conhecimento a escapar de uma avaliação de sua eficácia? Tampouco parece frutífero
forjar estéticas para justificar artes específicas, o que é bem diferente de se ter uma
arte que provoca o desenvolvimento estético teórico, como quando vemos Georges
Didi-Huberman (1998) inspirar-se no minimalismo para escrever “O que vemos, o
que nos olha”. Nesse livro, o autor não busca forjar uma estética para o minimalismo,
mas, antes, mostra como tudo pode ser relido a partir dos aportes teóricos inspirados
por essa arte.
6
Mas uma questão mais ampla, é verdade. É importante frisar que, quando digo comunicação, não
estou falando de transmissão precisa de informação de um emissor para um receptor. Na estética da
informação, Abraham Moles (1969) deixa claro que mensagem não é algo fechado, quando atribui a
ela um grau de originalidade, de abertura. No entanto, Moles não parece abranger a dimensão do afeto,
lembrada por Deleuze e Guattari (1992), ou sentimento e emoção, em Dewey (2008) ou Antônio
Damásio (1996). Dessa forma, quando uso os termos mensagem ou comunicação na arte, quero fazê-lo
num sentido ampliado e também abrangente dessa dimensão do afeto, do sentimento.
271 Assim, voltando aos trabalhos artísticos até então mencionados, os próprios,
inclusive, não faz sentido, do ponto de vista estético, admitir que se esquivem de uma
comunicação com o público. Parece haver um problema nesse sentido quando se tenta
limitar o virtual da sensação ao conceito - ou tentativa de conceito - por meio de um
texto, que, nas galerias, parece forçar sua entrada para o corpo da obra sem ter
condições de compor, de fato, uma sensibilia. Nesse sentido, Medeiros (2005, p. 5153) alerta que, para falar sobre arte, é preciso fazer poesia7. A autora menciona, aliás,
que a “enormidade de leituras e informações que temos sobre [certas] obras não as
deixam mais falar" (MEDEIROS, 2005, p. 50).
Esse discurso ou tentativa de conceito parece então reivindicar a poiesis8 do
artista que opta por ele, mas não instaura por si uma aisthesis, podendo, no máximo,
chegar a um êxito de conceito. A situação parece agravar-se quando essa tentativa de
conceito não compõe o virtual levantado pela experimentação sensória, quando não é
tocado pela sensibilia proposta, quando não compõe a aisthesis possível pelo corpo da
obra, quando não se encontra no campo projetado por esse corpo, pois creio que o fato
de a obra abrir um campo, sem limites claros, não implica que ele pode abarcar tudo
ou qualquer coisa. Acredito que ele pode não ter limites, mas tem uma direção. Como
vimos, na fruição de Andrade (2014), por exemplo, a morte não compõe o virtual
levantado pelo corpo de "Pharmacy", malgrado seja o foco do discurso de Hirst,
assim como o questionamento acerca do cogito ergo sum cartesiano na atualidade não
pode ser encontrado no virtual levantado pelo corpo de "Move 36", de Kac.
São exemplos em que o discurso, a tentativa de conceito, de justificativa
poietica, mais trunca que revela o campo projetado pelo corpo da obra, oferecendo
7
Lembro-me que fiquei num dilema quando fui escrever sobre um de meus trabalhos para o catálogo
de uma exposição da qual ele participaria - a ocupação "Linha Tênue", ocorrida na galeria "Espaço
Piloto", em julho de 2013. Por fim, resolvi desdobrar o próprio trabalho em versos e senti-me satisfeito
com isso, pois não explicavam o trabalho, mas pareciam revelar mais do campo aberto que o trabalho
parece propor, sem esgotá-lo.
8
Hans Robert Jauss (1979, p. 101) nos fala de poiesis, aisthesis e katharsis. A poiesis seria o trabalho
pelo qual o artista familiariza-se com o mundo, o seu prazer de fazer. A aisthesis estaria no próprio ato
perceptivo que faz os reconhecimentos, operando tanto do lado do artista, o que ele observa ao fazer a
obra, quanto do lado do receptor ao faceá-la. A katharsis seria a transformação provocada pela obra,
também pode operar tanto do lado do artista quanto do receptor.
272 uma fórmula de reconstrução para o receptor que, além de privá-lo do trabalho de
criação que, segundo Dewey (2008, p. 54, 60-62, 210), essa reconstrução deve ser,
foge às possibilidades aistheticas de fato oferecidas pelo corpo da obra, as que, de
direito, deveriam compor a fala poietica do artista, não no sentido de explicar ou
justificar a obra, mas de avançar na revelação de seu campo indefinido. Dito de outro
modo, muitas vezes, o artista parece entregar ao espectador as peças de um jogo junto
com a cartilha de instruções de outro jogo.
O que pretendo, portanto, é, a partir do próprio trabalho, de minha própria
poiesis, numa abordagem prática e qualitativa, investigar a relação entre minha
aisthesis, no momento da construção da obra, e a do espectador, no momento de sua
reconstituição da mesma e o que ela abre para mim, artista. Nesse sentido, falo mais
de uma prática artística do que de uma obra, já que a visão que defendo é a de relação,
ou seja, não pretendo projetar obras, mas sim obras-contextos-espectadores, são esses
meus objetos de pesquisa. E não se trata de forjar obras para investigar a percepção do
receptor, mas de ser fiel à própria poiesis, uma poiesis que é aisthesis: produzo
porque vejo o que vejo, ouço o que ouço, penso o que penso e sinto o que sinto por
onde me deixo demorar, por onde me permito habitar, pelo extraordinário que vejo
emergir do comum, por esse fantasma que se acopla às coisas, tornando-as outras,
duplas, ambíguas, múltiplas e, ao mesmo tempo, uma só. É por que as coisas falam
comigo que quero falar aos outros. Quero saber como o espectador, do seu próprio
jeito, habita comigo, se habitar, e se ele pode me revelar outras formas de habitar: se,
também eu, habito com ele. Falo, portanto, de uma poética do encontro, sem, contudo,
negar a possibilidade de ele possa simplesmente não ocorrer.
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