Massacres

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Massacres
Massacres
Audiência Pública Nacional, 19-21 Novembro 2003
PUBLICAÇÕES DA CAVR
Cadernos Temáticos sobre as Audiências Públicas:
PRISÃO POR MOTIVOS POLÍTICOS
AS MULHERES E O CONFLITO
DESLOCAÇÃO FORÇADA E FOME
MASSACRES
CONFLITO POLÍTICO INTERNO 1974/1976
AUTODETERMINAÇÃO E A COMUNIDADE INTERNACIONAL
AS CRIANÇAS E O CONFLITO
Outras publicações:
RONA AMI NIA LIAN (“OUÇAM AS NOSSAS VOZES”)
COMARCA
RELATÓRIO FINAL DA CAVR
RELATÓRIO FINAL DA CAVR, Resumo Executivo
AGRADECIMENTOS
A presente publicação foi preparada pela Equipa de Produção Editorial e a Unidade de Tradução com o apoio dos
seguintes funcionários das Secções de Arquivo, Editorial e Jurídica (por ordem alfabética): Afonso Aleixo, Aventino de
Jesus Baptista Ximenes, Bernadete Jong dos Santos, Celina Martins Fernandes, Darmawan Zaini, Dwi Anggorowati
Indrasari, Eleanor Taylor-Nicholson, Emily Chew, Eurico Celestina dos Reis Araújo, Firman Maulana, Fulgêncio Aquino
Vieira, Germano Boavida da Costa, Gunardi Handoko, Ian White, Istutiah Gunawan-Mitchell, Julião da Costa Cristovão
Caetano, Julien Poulson, Kieran Dwyer, Kurnia Joedawinata, Lakota Moira, Leyla Safira Assegaf, Luciana Ferrero Megan
Hirst, Melanie Lotfali, Meta Mendonça, Miki Salman, Nugroho Katjasungkana, Phyllis Ferguson, Riamirta Dwiandini,
Steve Malloch, Suryono, Titi Irawati, Toby Gibson, Valentina Vincentia, Yulita Dyah Utari.
A CAVR deseja expressar o seu agradecimento aos fotógrafos e a todos que contribuíram com as fotografias que
integram a presente publicação: Hélio Freitas, Ian White, arquivo fotográfico da OIM/Nelson Gonçalves (Guido Sam
Martins, Irena Cristalis, Joerg Meier). Fotografias relativas às Audiências: António Gonçalves, Galuh Wandita e Steve
Malloch.
A CAVR agradece ainda a assistência financeira prestada pelos doadores: Governos de Austrália, Canadá, Dinamarca,
Finlândia, Alemanha, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos de América; e,
Comissão Europeia, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Instituto para a Paz dos Estados
Unidos da América (USIP), Fundo Fiduciário para Timor-Leste (TFET, Programa de Desenvolvimento de Capacidades
Comunitárias e Governação Local, administrado pelo Banco Mundial), Serviço Católico de Assistência/CRS (Kupang). A
CAVR recebeu o apoio material e em forma de equipamentos das seguintes organizações: ICTJ (Centro Internacional
para a Justiça em Contexto de Transição), PNUD Timor-Leste, ACNUR, USAID, Unidade de Direitos Humanos da
UNMISET, Australian Youth Ambassadors for Development e Australian Volunteers International.
© CAVR, 2005. Reservados todos os direitos.
www.cavr-timorleste.org
Massacres
Índice
Prefácio Audiências Públicas da CAVR
4
Introdução Massacres
5
Direitos Humanos e Direito Internacional
7
Sessão Inaugural Alocução de Aniceto Guterres Lopes, Presidente da CAVR
8
Depoimentos de Sobreviventes
Ilídio Maria de Jesus
Florentino de Jesus Martins
Mateus Soares
Alexander da Costa Araújo
António Amado J. R. Guterres
Felismina dos Santos Conceição
Ângelo Araújo Fernandes
Berta Caetano
Domingos Maria Alves
Lúcio Meneses Lopes
Felismina Soares
Mariana Marques
José Gomes
Olinda Pinto Martins
Simplísio Celestino de Deus
Helen Todd, Mãe de Kamal Bamardhaj
Hermínia Mendes
13
14
16
18
20
22
28
30
32
34
38
40
44
46
48
50
52
54
Depoimentos de Peritos 57
Max Stahl
Professor Geoffrey Robinson
58
62
Conclusão
e
Reflexão Final P Jovito Rêgo de Jesus Araújo, Vice-presidente da CAVR
67
68
Glossário
71
Prefácio Audiências Públicas da CAVR
A
s Audiências Públicas foram uma das características principais do programa elaborado pela CAVR
com o objectivo de cumprir o nosso mandato, em conformidade com o Regulamento nº 10/2001. Os
objectivos das diferentes audiências incluíam apurar a verdade relativa às violações de direitos humanos
cometidas no passado, apoiar a reinserção das pessoas que lesaram as suas comunidades através da
realização de audiências de reconciliação comunitária e auxiliar a restaurar a dignidade das vítimas
daquelas violações.
Uma vez constituída a CAVR, os sete Comissários Nacionais definiram um princípio claro: tentar atingir a
maior abertura e participação possíveis. Em consequência, a CAVR definiu um programa que incluía a
constituição de equipas para trabalhar ao nível dos sucos, em todo o país, numa tentativa constante de
envolver a comunidade de uma forma culturalmente adequada. Alguns dos elementos determinantes desse
trabalho foram a facilitação de encontros entre as comunidades e a realização do debate sobre o passado
em condições pacíficas e reconciliatórias. Ao nível nacional, a transmissão das audiências nacionais
através da televisão e da rádio promoveu um sentimento generalizado de participação no diálogo nacional
sobre as violações cometidas no passado e na construção de um futuro baseado no respeito pelos direitos
humanos.
Este conjunto de sete cadernos apresenta o retrato das Audiências Públicas Nacionais temáticas
organizadas pela CAVR. Estas audiências decorreram na ex-prisão de Balide, cujas instalações foram
restauradas de modo a serem transformadas na sede da CAVR, e incidiram sobre os seguintes temas:
Prisão por Motivos Políticos (Fevereiro de 2003), As Mulheres e o Conflito (Abril de 2003), Deslocação
Forçada e a Fome (Julho de 2003), Massacres (Novembro de 2003), O Conflito Interno de 1974/1976
(Dezembro de 2003), Autodeterminação e a Comunidade Internacional (Março de 2004) e As Crianças e o
Conflito (Março de 2004).
A anteceder estas audiências, a CAVR realizou, em Novembro de 2002, uma Audiência Nacional das
Vítimas nas instalações do complexo que sediou a UNAMET e o CNRT, em Balide.
As equipas distritais da CAVR também organizaram e facilitaram um conjunto alargado de audiências
públicas. As equipas distritais dividiram o seu trabalho em períodos temporais de três meses por subdistrito.
Após a recolha de testemunhos relativas às violações cometidas, a organização dos processos de
reconciliação comunitária e a realização de seminários comunitários, a equipa orientava a audiência
subdistrital das vítimas enquanto acto de encerramento do período de permanência nesse subdistrito.
Perante a Comissão e a comunidade reunidas, os membros da comunidade que haviam anteriormente
prestado os seus testemunhos à Comissão relatavam as experiências vividas. A CAVR organizou sessenta
e cinco Audiências subdistritais de Vítimas.
As Audiências de reconciliação comunitária foram uma componente fundamental do programa da CAVR.
Em conformidade com o mandato conferido à CAVR, o objectivo destas audiências visava apoiar a
reinserção de ex-infractores nas respectivas comunidades. Regra geral, ainda que com algumas
excepções, as infracções incidiam sobre actos perpetrados pelas milícias no decurso da violência ocorrida
durante 1999. As audiências foram realizadas em sucos de todos os distritos de Timor-Leste. Por via da
acção facilitadora da CAVR e de forma inovadora, este processo aliou os métodos tradicionais de resolução
de conflitos aos métodos judiciais formais. A CAVR organizou audiências a 1404 perpetradores, num total
de 217 audiências que contaram com uma participação estimada em mais de 40 mil membros da
comunidade.
Verificou-se uma resposta impressionante às audiências públicas da CAVR. Temos a esperança de que
através da publicação deste conjunto de cadernos temáticos seja possível partilhar, com um maior número
de pessoas, a experiência vivida com a realização das audiências nacionais temáticas.
4
MASSACRES
Introdução Massacres
A
Audiência Pública Nacional sobre Massacres incidiu sobre um fenómeno terrível e prevalecente
durante o período de 25 anos correspondente ao mandato da CAVR: o massacre de civis indefesos.
Os massacres em Timor-Leste ocorreram no período do conflito armado interno entre os partidos políticos
timorenses, UDT e Fretilin, no decurso da invasão em larga escala pelas forças armadas indonésias e
durante os anos da ocupação subsequente. Houve nova prevalência de massacres durante as derradeiras
semanas da ocupação, em Setembro-Outubro de 1999. O direito internacional não apresenta uma definição
do conceito “massacre”, pelo que a CAVR elaborou uma definição para efeitos do trabalho de pesquisa e
de investigação – a morte de cinco ou mais civis num mesmo local e momento.
A CAVR ouviu dezassete vítimas em audiência. Neste número inclui-se Helen Todd, da Nova Zelândia,
mãe de Kamal Bamardhaj, morto em Santa Cruz, em 1991. A audiência de três dias não poderia incidir
sobre todos os massacres que foram perpetrados. Os critérios de selecção basearam-se nos objectivos de
apresentar uma visão representativa dos vários períodos abrangidos pelo mandato, revelar a gama de
perpetradores e a ocorrência geográfica dos massacres. Os depoentes foram seleccionados com base no
seu desejo de depor publicamente e no sentimento de que essa experiência poderia ser-lhes benéfica.
Os depoentes apresentaram relatos sobre massacres perpetrados pelos partidos políticos UDT e Fretilin,
durante o conflito armado interno e pouco depois da invasão em larga escala pelas forças armadas
indonésias. Essas mortes resultaram no envenenamento das relações interpessoais em Timor-Leste
durante muitos anos. Os depoentes descreveram ainda os homicídios em massa de civis a 7 de Dezembro
de 1975, em Díli, dia da invasão geral. Alguns sobreviventes relataram massacres da Fretilin perpetrados
contra os seus próprios membros em 1977, durante as dissensões dentro do partido. Sobreviventes de
comunidades por todo o país descreveram o massacre de civis perpetrados pelas forças armadas
indonésias durante os 24 anos da ocupação, nos sucos, no decurso de manifestações pacíficas e dentro de
igrejas. O professor Geoffrey Robinson prestou depoimento enquanto perito, analisou os padrões e os
factores conducentes a este fenómeno recorrente de massacres em Timor-Leste e sublinhou a necessidade
de os responsáveis responderem por esses actos.
A audiência não abordou todos os massacres ocorridos em Timor-Leste durante o período do mandato,
incluindo alguns dos mais divulgados. A equipa de pesquisa da CAVR investigou muitos outros massacres
que foram incluídos no nosso Relatório Final. A audiência foi um passo no desenrolar do longo processo de
pesquisa e de investigação que decorreu enquanto as equipas distritais da CAVR recolheram testemunhos
pessoais e orientaram seminários nos sucos, de modo a registar as experiências vivenciadas das pessoas
em todo o Timor-Leste. Na sede nacional foi constituída uma equipa de pesquisa cujo trabalho incidia
especificamente sobre os massacres. Fizeram parte da equipa de pesquisa da CAVR sobre este tema:
Hélio Freitas da Silva, Ana Paula Maia, Douglas Kamman, Maemi Calado, Akihisa Matsumo, Jacqueline
Baker e Julião da Costa C. Caetano. O Relatório Final apresenta as conclusões da sua pesquisa.
Na audiência, alguns sobreviventes relataram as experiências traumatizantes que viveram e salientaram o
efeito profundo que esses acontecimentos tiveram sobre as suas vidas. A CAVR presta homenagem à
coragem e resiliência de todos os depoentes e realça a necessidade de apoiar, de forma contínua, os
indivíduos, as famílias e as comunidades no processo moroso da sua recuperação. Partilhamos a
esperança de que esta audiência constitua um passo nesse processo e que este caderno temático permita
relembrar todo o trabalho que ainda se encontra por realizar.
5 AUDIÊNCIA PÚBLICA NACIONAL DA CAVR / 19-21 NOVEMBRO 2003
(página em branco)
6 MASSACRES
Direitos Humanos e Direito Internacional
D
ireitos humanos são os direitos consagrados a todo o indivíduo, independentemente de raça, idade,
religião ou género, a partir do momento em que nasce até ao momento da sua morte. Estes direitos não
estão sujeitos a doação, venda ou anulação pela força. Todo o indivíduo goza de direitos humanos
idênticos pela razão simples de que é um ser humano.
A noção de que toda a pessoa detém direitos básicos é antiga e existente em diferentes comunidades por
todo o mundo. No entanto, a doutrina de direitos humanos que vigora actualmente só foi formulada após a
II Guerra Mundial. Recordando as atrocidades terríveis cometidas durante a guerra, governos de todo o
mundo decidiram, através das Nações Unidas, que mais nenhum ser humano deveria voltar a sofrer
daquela forma e, a 10 de Dezembro de 1948, aprovaram a Declaração Universal de Direitos Humanos que
define todos os direitos básicos do ser humano. Desde então, estes direitos foram aprofundados e
aperfeiçoados através de milhares de documentos internacionais e hoje existem normas jurídicas rigorosas
sobre a forma como os governos devem interagir com os cidadãos.
A história de Timor-Leste compreendida entre 1974 e 1999 encontra-se, lamentavelmente, repleta de
violações de direitos humanos cometidas por todas as partes envolvidas nos conflitos. Ouvimos relatos
sobre a morte de pessoas, quer isoladamente quer em grupos numerosos, por vezes enquanto alvos
premeditados e, de outras vezes, em resultado de disparos ou bombardeamentos indiscriminados.
O que é um massacre?
“Massacre” não é um conceito jurídico definido na documentação mundial sobre direitos humanos. No
entanto, o entendimento comum atribui-lhe o significado de morte de inúmeras pessoas em resultado de um
só acto. Para efeitos desta audiência, a Comissão decidiu considerar massacre, a morte de cinco ou mais
civis (pessoas que não participam nos combates) num mesmo local e momento. Esta definição geral inclui
mortes ilícitas indiscriminadas - por exemplo através do arremesso de materiais explosivos ou de disparos
sobre uma multidão - e a execução em massa de indivíduos definidos como alvos específicos.
A vida das pessoas encontra-se protegida pelo Direito da Guerra, aplicável durante um conflito. Os civis,
prisioneiros de guerra, soldados doentes ou feridos, não podem ser considerados alvos ou ser mortos no
decurso da guerra.
O Direito À Vida
Tirar a vida a uma pessoa constitui acto de enorme
gravidade. Se um indivíduo tira intencionalmente a vida a
outrem, esse acto é classificado de homicídio. Ao abrigo
do direito humanitário, toda a pessoa tem o direito à vida,
o que significa que a sua vida não pode ser tirada por
outrem à excepção dos limites contemplados claramente
na lei, por exemplo, em autodefesa ou por condenação à
morte por cometimento de crime grave. Os governos
devem adoptar legislação que vise proteger a vida das
pessoas e punir quem matar. A polícia e os militares
devem receber formação sobre o valor da vida humana e
matar apenas quando estritamente necessário.
AUDIÊNCIA PÚBLICA NACIONAL DA CAVR / 19-21 NOVEMBRO 2003 7
Sessão Inaugural
Alocução de Aniceto Guterres Lopes,
Presidente da CAVR
B
om dia. Em nome dos meus colegas, os Comissários Nacionais, os Comissários Regionais e todos os
funcionários da CAVR, desejo dar as boas vindas a todos os que aqui compareceram.
É com satisfação que contamos com a vossa participação, como testemunhas ou como público, na quinta
audiência pública nacional da CAVR e respeitamos facto de terem sacrificado parte do vosso tempo, do
vosso trabalho e das vossas actividades diárias para estarem presentes.
Damos hoje início à audiência pública sobre Massacres que se prolongará por três dias. No decurso dos
próximos três dias iremos ouvir depoimentos de sobreviventes de massacres e de testemunhas oculares
dessas atrocidades. Iremos ouvir ainda o depoimento de peritos.
Os depoentes abordarão acontecimentos da nossa história que ainda permanecem envoltos em
desconhecimento e que definimos como massacres. Definimos massacre como uma ocorrência onde foram
mortas cinco ou mais pessoas num mesmo local e momento. O mandato da CAVR inclui a recolha de
informação e de dados estatísticos sobre ocorrências nos 25 anos do período compreendido entre 1974 e
1999. Parte dessa informação foi recolhida no processo de registo dos relatos apresentados pelos
sobreviventes desses acontecimentos.
Apesar do trabalho de pesquisa ainda não estar concluído, a CAVR já recolheu informação relativa a cerca
de 100 massacres que ocorreram em inúmeros pontos de Timor-Leste. Nesta audiência pública não será
possível ouvir todos os sobreviventes de todos os pontos do país. Por essa razão seleccionámos alguns
acontecimentos ocorridos em cada um dos seguintes períodos:
O primeiro período tem por início o conflito interno de 1975 quando ocorreu o golpe e o contragolpe. No
segundo período ocorreram duas situações distintas: os massacres ocorridos entre aqueles que fugiram
para o mato e que se encontravam em áreas controladas pela Fretilin e aqueles que viviam nos centros
urbanos sob o controlo dos militares indonésios.
Relativamente ao terceiro período incluem-se testemunhos sobre os massacres cometidos pelos militares
indonésios quando a população se rendeu (no final dos anos 70 e início da década de 80). Sobre o quarto
período ouviremos relatos sobre o Massacre de Kraras em 1983. Do quinto período ouviremos relatos
sobre o Massacre de Santa Cruz cujo aniversário assinalámos na semana passado, dia 12 de Novembro. O
sexto período é iniciado com as reformas políticas na Indonésia e termina com a realização da consulta
popular em 1999 e os subsequentes massacres na Igreja de Liquiça, na Igreja de Suai e em Lospalos,
entre outros.
Os acontecimentos seleccionados pela CAVR para serem abordados nesta audiência tiveram enorme
impacto não apenas em Timor mas também na comunidade internacional, no decurso da luta pela
independência. Poderemos perguntar: porquê recordar estes acontecimentos funestos e terríveis? Porque
não deixar intocadas as feridas antigas que esquecemos? Por vezes perguntamos: será melhor esquecer o
sofrimento do passado ou relembrar as feridas? É uma pergunta importante e complexa que surge em
qualquer país que viveu períodos de lágrimas e de derramamento de sangue. Algumas pessoas
consideram mais simples e fácil esquecer o passado e permitir que as suas vidas avancem. Não
necessitamos de fazer nada, basta esquecer as feridas do passado e elas irão sarar por si próprias. Alguns
preferem esta via.
Mas a questão não é assim tão linear. Na realidade, é uma questão difícil e complexa. Como lidar com
acontecimentos ocorridos no passado? Se analisarmos o passado teremos oportunidade de aprender com
os acontecimentos ou apenas perpetuaremos o ódio e a divisão? Como evitar a possibilidade de
recorrência dessas atrocidades no futuro?
São perguntas difíceis. Muitos povos, de diversas nações do mundo, tiveram de procurar a resposta a
perguntas semelhantes quando se libertaram de situações de ditadura militar e iniciaram o processo de
avaliação da violação de direitos humanos ocorrida nos respectivos países.
Muitas nações foram consensuais em decidir que para se libertarem dos males do passado e avançar para
o futuro e para sararem as feridas infligidas no passado, tornava-se necessário abrir essas feridas e
desinfectá-las. Só então será possível iniciar o processo natural de cicatrização das feridas e só então
poderiam evitar o perigo de infecção de feridas ocultas sob uma mortalha de medo. Timor-Leste também
terá de tomar uma decisão.
Será, por ventura mais fácil fingir que não existem dificuldades e protegermo-nos com mentiras. Talvez
acreditemos que é possível esquecer. Mas todos sabemos que há delitos difíceis de esquecer porque, no
decurso das nossas vidas, somos constantemente recordados da sua ocorrência. E, assim, continuamos a
viver como anteriormente, com a dor e o rancor. Precisamos de enfrentar o passado e descobrir o que é
que aconteceu de facto. A verdade é que as feridas não se curam por si próprias. Pelo contrário, a infecção
alastra e pode envenenar o futuro da nossa nação.
Ao escutarmos as vítimas, estamos a conceder a oportunidade de nos relatarem as experiências e
descreverem o sofrimento vividos. Aprendemos com as vítimas. Esse processo deve decorrer num espírito
de respeito mútuo, de aceitação e de reconciliação de forma a assegurar a paz e a estabilidade no nosso
país.
Devemos utilizar estas histórias como ponto de partida para avançarmos. Não podemos permitir que os
mais velhos provoquem divisões na geração mais jovem através da divulgação de rumores, acusações
falsas e mentiras, afirmações de que uma família é amiga e outra é inimiga, de que uma pessoa é boa e
outra é má. Devemos apontar um foco luminoso sobre a escuridão do nosso passado e averiguar o que
realmente se passou.
Devemos ignorar tais actos e aprender com a vida dos mais velhos, envolta em escuridão e sofrimento.
Que ensinem às suas crianças que, apesar de a nossa nação ter atravessado um período de divisão e uma
guerra prolongada contra invasores, mantivemos a nossa dignidade e reconhecemos que também
cometemos erros. Do mesmo modo, devemos dizer aos mais velhos que temos de ter a coragem de olhar
para o que se passou e libertarmo-nos para podermos avançar.
Se desejamos, genuinamente, deixar para trás os erros cometidos, teremos de optar pela via mais
dolorosa. Teremos de ter a coragem de percorrer este caminho com disciplina e paz num espírito de perdão
e de reconciliação de modo a fortalecer a estabilidade recentemente adquirida. É esta a visão dos nossos
dirigentes políticos e líderes religiosos. É esse o caminho de prosperidade para a nossa jovem nação.
Vamos aprender muito nestes próximos três dias. Utilizemos este tempo para reflectir. Iremos ouvir os
nossos combatentes. Ouviremos relatos da sua coragem e dos seus erros. Iremos ouvir falar de como
usaram o seu poder para o bem e como o utilizaram para o mal.
Por vezes sentimos necessidade de gritar bem alto para que seja feita justiça relativamente às vítimas. O
mandato da CAVR não inclui a aplicação da justiça. O trabalho da CAVR limita-se à pesquisa, recolha de
dados estatísticos e de informação, que inclui a informação contida nos depoimentos das vítimas a serem
apresentados durante os três próximos dias. Tendo por base a informação recolhida, a CAVR recomendará
acções futuras a serem executadas pelo Estado de Timor-Leste.
Devemos dar a conhecer, àqueles que nos representam ao nível do Estado, o que sentimos relativamente a
estas questões para que possam agir de acordo com os anseios da comunidade e de acordo com o que a
comunidade considera importante.
Ao terminar, em nome da CAVR, desejo manifestar o nosso apreço a todos os que se deslocaram aqui
hoje, bem como a todos os que acompanham esta audiência em casa através dos méis de comunicação
social. De forma particular, desejo agradecer e encorajar as testemunhas que se disponibilizaram a partilhar
a sua experiência de sofrimento. Desejo ainda expressar o nosso agradecimento ao professor Geoffrey
Robinson que se deslocou dos Estados Unidos de América para partilhar o seu conhecimento connosco. E,
por último, apresento o nosso agradecimento aos parceiros de desenvolvimento.
Agora que vamos começar a ouvir as testemunhas, recordo a todos que no decurso dos próximos dias
iremos ouvir relatos perturbantes. Por essa razão, solicito a todos a manifestação do mais profundo respeito
pelas vítimas. Merecem o nosso inquestionável respeito.
Obrigado.
FOTO – p. 11 - Jovens timorenses vítimas da acção militar indonésia. Esta fotografia foi retirada clandestinamente de
Timor-Leste no início do ano de 1983.
Introdução
A ordem de apresentação dos depoimentos abaixo reproduzidos corresponde à ordem da sua prestação
durante a audiência. No decurso dos três dias de Audiência, estes depoimentos foram intercalados com os
depoimentos prestados por peritos que são reproduzidos em capítulo separado neste caderno temático.
A maioria das testemunhas fez a sua apresentação em Tétum, uma das línguas oficiais de Timor-Leste. As
versões deste caderno em inglês, malaio-indonésio e português visam a reprodução o mais fiel possível
dos depoimentos prestados. Os parágrafos introdutórios em itálico contextualizam sinteticamente o
depoimento, após os que se segue uma versão do depoimento, corrigida nalguns aspectos formais, com
base no testemunho e linguagem originais – não se trata de uma síntese do testemunho mas de uma
selecção das palavras proferidas no depoimento de cada testemunha adaptadas às necessidades de
tradução.
Nota sobre a retenção dos nomes dos perpetradores
No momento da preparação do presente caderno temático, ainda decorria o debate entre os Comissários
Nacionais da CAVR sobre a política a adoptar no Relatório Final da CAVR relativamente à nomeação de
alegados perpetradores. Durante a audiência, as testemunhas foram informadas sobre o seu direito a
nomear alegados perpetradores se assim o desejassem e sobre as consequências legais da nomeação. De
uma forma geral as testemunhas não nomearam os alegados perpetradores durante as audiências
nacionais da CAVR.
Para efeitos de publicação dos cadernos temáticos, optou-se por retirar o nome do alegado perpetrador e
referenciá-lo por uma letra (por exemplo, a letra ‘A’). No caso de nomeação múltipla de perpetradores num
mesmo depoimento, optou-se pela sua listagem recorrendo à sequência alfabética (por exemplo, a ‘B’, ‘C’,
etc.).
Depoimentos
de
Sobreviventes
Ilídio Maria de Jesus
Alas, distrito de Manufahi, Agosto de 1975
Nos primeiros meses subsequentes à partida de Portugal de Timor-Leste, Ilídio Maria de Jesus e a sua
família eram apoiantes da Fretilin. Ilídio de Jesus descreveu como a UDT fugiu com prisioneiros da Fretilin
para Natarbora e Besusu, na costa sul, quando a Fretilin iniciou a tomar o poder no final do mês de Agosto
de 1975. Revelou que onze prisioneiros, incluindo o seu próprio pai, foram levados de camião. Contou
ainda como a sua mãe e irmãos se esconderam nas montanhas na área junto à praia de Meti-Oan e
ouviram o disparo das armas de fogo quando os prisioneiros foram massacrados. Quatro dias mais tarde,
os soldados da Fretilin informaram-no da morte do seu pai.
Ilídio de Jesus revelou que o seu irmão desejou a vingança ao ouvir o acontecido mas que decidiram não
responder com recurso à violência. Afirmou que sabe quem perpetrou as mortes e que desde então a sua
família não tivera problemas ulteriores com os perpetradores.
N
o dia 10 de Agosto de 1975 levei a bandeira da Fretilin para a missa em Alas para que fosse benzida;
após a missa a bandeira foi içada. No entanto, o golpe da UDT ocorreu no dia seguinte e a UDT começou a
deter pessoas. O meu pai, José Maria, encontrava-se entre os detidos. Ficou detido em Alas entre 11 e 16
de Agosto e, posteriormente, foi levado para Same onde permaneceu até ao dia 24 de Agosto.
Quando a Fretilin, proveniente de Aileu, se aproximou de Same, os membros da UDT fugiram para
Natarbora, em Manatuto, e levaram onze prisioneiros. Inicialmente, o plano previa a morte dos prisioneiros
em Natarbora mas a população da zona não o permitiu.
Na manhã do dia 27 de Agosto, passou um camião Unimog junto à nossa casa com onze prisioneiros. Os
prisioneiros estavam rodeados por soldados armados mas aparentemente não estavam amarrados. O meu
pai levantou o braço e cerrou o punho ao passar. Ouvimos dizer que iam ser levados para Besusu.
Alguns membros da UDT haviam dito que iam continuar a guerra em Besusu, pelo que senti muito medo
quando soube que o meu pai ia ser levado para lá.
A UDT advertira-nos que deveríamos fugir para o mato se não queríamos ser mortos pelo que a minha
mãe, os meus irmãos e irmãs e eu próprio fugimos para uma colina próxima. Enquanto aí permanecemos,
ouvimos o som do disparo de armas de fogo proveniente da praia de Meti-Oan, Vedauberek. Quatro dias
mais tarde, a 31 de Agosto, as Falintil de Same encontraram os corpos na praia de Meti-Oan.
No dia em que encontraram os corpos, as Falintil dirigiram-se ao suco de Besusu e reuniram com algumas
das pessoas que aí haviam permanecido. Descreveram o assassinato dos onze membros da Fretilin e
disseram que viram o corpo de José Maria, o meu pai. Logo que ouviram esta informação, os habitantes de
Besusu procuraram-nos no mato.
…dirigimo-nos
ao local do massacre
…e encontramos dez corpos,
incluindo o do meu pai.
Os prisioneiros mortos juntamente com o meu pai eram o enfermeiro Ponciano, secretário regional; Sabino
Soares Pereira, vice-secretário, criador de gado de Picuario; Bernardino Hornai, segundo vice-secretário;
António Guterres, subdelegado; Domingos Lobato, presidente da Unetim, organização estudantil; Quiquito
Kaduak, Francisco, Domingos Ribeiro e Alexandre da Costa, todos membros da Unetim, e Tonito Ribeiro,
também membro da Unetim, com apenas dezassete anos de idade. Tonito e Domingos eram filhos do
enfermeiro Ponciano.
No mesmo dia, dirigimo-nos ao local do massacre, na praia de Meti-Oan e encontramos dez corpos,
incluindo o do meu pai. O meu pai foi baleado na região abdominal. As mãos estavam cobertas pelo seu
próprio intestino que saia do buraco provocado pelas balas. A mão de Domingos Ribeiro fora decepada do
corpo.
Quando descobrimos o que aconteceu ao meu pai sentimos uma enorme tristeza e rancor. O meu irmão
quis espancar as pessoas que mataram o nosso pai. Pedi-lhe que reconsiderasse e disse-lhe que Deus
trataria deles. Disse-lhe: “Se fizermos justiça com as nossas próprias mãos, haverá mais violência e eles
voltam e matam mais dos nossos”.
O grupo que capturou os prisioneiros da Fretilin era numeroso. Conhecia três dos seus membros: A (nome
retido), B (nome retido) e C (nome retido). O C (nome retido) está refugiado na Indonésia. Os indivíduos
que capturaram o meu pai foram D (nome retido), E (nome retido) e F (nome retido). Até à data não
voltamos a ter problemas com eles.
Florentino de Jesus Martins
Suco de Aifu, distrito de Ermera, Agosto–Setembro de 1975
Florentino de Jesus Martins era apoiante da Fretilin quando foi capturado depois de a UDT assumir o
controlo após o 11 de Agosto. Relatou a forma como a UDT transferiu os prisioneiros para Ermera quando
a Fretilin assumiu o controlo de Díli e de Aileu. Contou que a UDT deteve mais de 75 pessoas em Ermera e
executou-as sumariamente em grupos de quatro. Florentino Martins contou que a Fretilin assumiu o
controlo a 5 de Setembro quando permaneciam vivos apenas trinta prisioneiros. Afirmou que a Fretilin
começou a matar membros da UDT em retaliação pelas execuções.
L
ogo que a Fretilin se constitui como partido, o Comité Central da Fretilin preparou os seus membros
para reunirem com as populações nas aldeias. A nossa tarefa era avaliar o que o povo desejava:
independência, integração na Indonésia ou continuidade como parte de Portugal.
Após devida preparação, dirigimo-nos às aldeias para reunir com a população. Alguns defendiam a
integração na Indonésia, outros desejavam a independência. Alguns desejavam aderir à UDT mas a
maioria optou pela Fretilin.
Em Ermera, começou a delinear-se alguma tensão política e alguns dos apoiantes da Fretilin mudaram-se
para a UDT e a Apodeti. Por esta razão, fomos a Díli informar o Comité Central. Mas o Comité Central
respondeu que as pessoas eram livres de optar por qualquer um dos partidos, quer se tratasse da UDT, da
Apodeti ou da Fretilin.
Na manhã do dia 11 de Agosto, Saturnino de Jesus Soares ouviu o som de um disparo de Mauser. Veio
procurar-me à igreja, onde trabalhava. A (nome retido), sob as ordens de B (nome retido), levou-me para o
Hotel Ermera onde a UDT preparara uma divisão para mim. À tarde fui levado para o escritório municipal e
no decurso dos três dias seguintes, vários dos meus amigos também foram para aí levados, incluindo
Sertório Barros e Gastão Pereira.
Fomos capturados pela UDT porque eles acreditavam que a Fretilin era comunista. Diziam: “A Fretilin nem
consegue fabricar uma agulha, nem produzir um fósforo e nada tem, por isso como é que querem a
independência?”
Aderi à Fretilin porque desejava a independência. Tínhamos de nos libertar do obscurantismo.
No dia 20 de Agosto, quando a Fretilin assumiu o controlo de Díli e de Aileu, a UDT transferiu-nos para a
prisão de Ermera. Éramos 75 amontoados na prisão. Era difícil respirar e não havia espaço suficiente para
esticar as pernas. Quando C (nome retido) e D (nome retido) assumiram a direcção da prisão deram-se um
barril que todos tínhamos de utilizar como sanita.
Na tarde do dia 31 de Agosto a UDT levou-nos para Aifu. Avisámos que morreríamos se fossemos levados
à tarde e que seria melhor irmos na manhã seguinte. A UDT acabou por concordar e aguardar mas, nessa
noite, guardaram a prisão com maior rigor. Passaram a noite a cortar cana de bambu em lanças com dois
metros de comprimento. Apenas nos restava rezar e aguardar.
Cerca das seis da manhã levaram-me da prisão, bem como ao Lourenço, o Manuel Duarte e o Armando
Barros, e transferiram-nos para Aifu. Ao chegar à estrada que entra na plantação de Aifu, junto a Dare Hitu
Mate, amarraram-nos aos pares.
…levaram
mais quatro pessoas
para serem mortas
e assim continuou
até só restarmos trinta.
Ao aproximarmo-nos da ponte de Aifu, Claetreman, encontrámos alguns amigos que haviam sido levados
mais cedo. O Lourenço disse em português: “Iremos para o céu. Não tenham medo”. Os membros da UDT
levaram alguns dos prisioneiros para um local perto de Aifu para aí os matarem. O Lourenço e o Manuel
Duarte conseguiram fugir mas o maxilar superior do Manuel ficou seriamente lesionado.
Fomos levados para Aifu. Ao chegar a casa de B (nome retido) foi-nos dito para descansar. Depois
recebemos a ordem para nos agruparmos em quatro e cortar a relva do jardim frente à casa. Pouco depois
levaram-nos em grupos de quatro.
O meu amigo Virgílio Exposto foi levado para um armazém para ser abatido a tiro. Ele disse-lhes: “Atirem
sobre o peito ou à cabeça para não sofrer”. Fizeram como ele pediu e disparam mais alguns tiros sobre
outras zonas do corpo. Levaram mais quatro pessoas para serem mortas e assim continuou até só
restarmos trinta. Foi então que E (nome retido) deu a ordem para parar a matança. Talvez porque o padre
Pedro Lemos lhe tenha dito para o fazer. O padre Pedro Lemos informou E (nome retido) que a Fretilin
cercara Aifu e que as tropas da Fretilin vinham de Hatulia e Leorema.
E (nome retido) disse-nos que éramos livres para partir mas optámos por não o fazer pois não tínhamos
bebido nada durante todo o dia e tínhamos muita sede. Foi-nos dada água da casa de banho, misturada
com sabão. Nessa noite levaram alguns dos nossos amigos para o armazém. Durante a noite, Celestino
Alves, chefe de suco de Fatubessi, e outro homem conseguiram fugir do armazém.
Na manhã do dia 2 de Setembro, E (nome retido) entregou um cartão de membro da UDT a cada um de
nós e disse aos prisioneiros que fossem para casa.
Fui para Ermera e dois dos meus amigos foram para Fatubessi. Encontramos Varela, o administrador
distrital, que era originário da Índia. Fiquei embaraçado ao vê-lo chorar. Disse: “F (nome retido) esfaqueou a
minha mulher no coração. Esfaqueou-a porque o nosso filho é membro da Fretilin”. Uma enfermeira
cuidava das feridas da sua mulher. Fomos juntos cuidar da sua esposa. Quando me viu, ela abraçou-me e
chorou.
O administrador distrital Varela não se identificava com qualquer uma das partes em conflito. O filho aderira
e morrera pela Fretilin. O administrador distrital foi morto em Aifu, no dia 7 de Setembro de 1975, pelos
militares indonésios.
Na tarde do dia 5 de Setembro, a Fretilin chegou a Ermera proveniente de Aileu. Reuni com o comandante
G (nome retido) que me perguntou: “Ficaste impressionado com as pessoas que morreram em Aifu?”.
Respondi positivamente. Ao tomar conhecimento das mortes, a Fretilin retaliou, aprisionando e matando
membros da UDT.
Mateus Soares
Turiscai, distrito de Manufahi, Agosto–Setembro de 1975
Em 1975, Mateus Soares era membro da Fretilin e encontrava-se na região montanhosa de Turiscai.
Afirmou que a UDT efectuou ataques em Laclubar, Soibada e Turiscai durante o conflito político-partidário.
Contou que integrou uma missão de 11 membros da Fretilin enviada por Francisco Xavier do Amaral com o
objectivo de contactar a UDT na sua sede de Polohau e como esta delegação foi capturada e massacrada
por membros da UDT, com o recurso a lanças e pedregulhos; só três sobreviveram.
E
u estava em Turiscai quando despoletou o conflito político-partidário em Agosto de 1975. Nessa fase, a
UDT organizou ataques a diversas regiões, incluindo Laclubar, Soibada e Turiscai. Desconheço o motivo
dos ataques ou quantas pessoas morreram. Terminados os ataques, regressaram a Poholau, em Turiscai
um suco que faz fronteira com o subdistrito de Laclubar e o suco de Fatumakerek, local onde a UDT
instalou o seu quartel-general.
Francisco Xavier do Amaral formou uma delegação de 11 combatentes da Fretilin, dirigida por Geraldo
Barbosa. O objectivo da sua missão era conversar com a UDT sobre a possibilidade de trabalharem em
conjunto. Caminhámos até Poholau para iniciar as conversações mas fomos atacados e capturados à
chegada. Não nos foi dada sequer oportunidade de nos explicarmos. Amarraram-nos as mãos e
começaram a torturar-nos.
Mais tarde, fomos levados para Laoda, Fatumakerek, Laclubar, onde continuaram a tortura. Durante o
período de tortura, não tivemos acesso a comida ou bebida.
Na região de Laoda havia uma casa tradicional. Os militantes da UDT estavam no exterior da casa a afiar
as suas armas numa pedra de amolar. Exibiam orgulhosamente as suas catanas, lanças, espadas e
flechas. Alguém, dentro de casa, iniciou um ritual tradicional. Saiu da casa, começou a correr, a saltar e a
bradar em sintonia com o ritual. Continuávamos amarrados e sentimos medo. Terminado o ritual, puxaramnos para um monte de terra e depois levaram-nos para junto de uma ravina. Pensei que íamos ser mortos.
Golpearam os meus amigos com as lanças e empurraram-nos em direcção à ravina. Amarraram-me a um
dos meus amigos e um dos militantes lançou a catana na nossa direcção, mas falhou e a corda que nos
amarrava um ao outro foi cortada. Atirei-me à ravina apesar de as minhas mãos ainda estarem atadas atrás
das costas. Atiraram pedras e lanças pela ravina. Uma atingiu o nosso dirigente, Geraldo Barbosa que
ainda estava vivo quando foi lançado pela ravina.
Golpearam
os meus amigos
com as lanças
e empurraram-nos
em direcção à ravina ...
Atirei-me à ravina
apesar de as minhas mãos
ainda estarem atadas atrás das costas.
Atiraram pedras e lanças pela ravina,
Só três dos meus amigos sobreviveram ao massacre. José Morena, Gaspar e outro. Mais tarde, o Gaspar
foi morto pela Hansip em Turiscai e o meu outro amigo morreu de doença durante a ocupação indonésia.
Fugimos separadamente. Escondi-me junto ao rio e mais tarde rendi-me a alguns militares portugueses que
estavam em missão perto de Laclubar. Os soldados portugueses deram-me comida. Ainda estava
amarrado quando os encontrei. Na verdade, a corda já tinha dilacerado a minha pele. Depois de comer,
mergulhei as mãos em água para arrancar a corda da pele. Quando os portugueses arrancaram a corda
ficou uma ferida profunda e tive uma hemorragia. Foi muito doloroso.
Depois de me alimentarem e me ajudarem a retirar a corda, os soldados portugueses questionaram-me
sobre o que acontecera. Mais tarde, entregaram-me ao chefe de suco de Laclubar com quem fiquei várias
semanas. Um dia, o chefe de suco enviou-me a Manatuto para ir buscar umas coisas. No caminho, fugi de
Turiscai e encontrei-me com Francisco Xavier do Amaral que me disse que fosse procurar tratamento
médico para as minhas feridas.
Alexandre da Costa Araújo
Suco de Saboria, distrito de Aileu, 1975
Alexandre da Costa Araújo era membro da UDT quando, em Agosto de 1975, a UDT tomou o poder.
Quando a Fretilin respondeu, foi capturado, interrogado e feito prisioneiro em Aisirimou, Aileu, sem
julgamento. Uma noite, depois de ter sido libertado da prisão, foi levado de sua casa pelo responsável pela
prisão, para testemunhar a execução de dez pessoas em Saboria, Aileu. Pouco tempo depois, Alexandre
Araújo, escondido, testemunhou o massacre de 90 a 160 prisioneiros da Fretilin em Aisirimou-Manifunihun,
distrito de Aileu.
E
u e o meu irmão, Afonso Araújo, éramos membros da UDT. Vivia no suco de Saboria à data do golpe e
nada sabia do assunto. Fui capturado aquando do contragolpe da Fretilin, e levado para Aisirimou, Aileu,
onde fui interrogado por A (nome retido), dirigente da Fretilin em Aisirimou.
Permaneci preso em Aisirimou onde, juntamente com centenas de outros prisioneiros de várias regiões, fui
forçado a trabalhar nas hortas comunais da Fretilin.
Passado algum tempo, fui oficialmente libertado da prisão. No entanto, durante várias semanas depois
disso, ainda era obrigado a trazer lenha a Aisirimou, todas as tardes, e não me autorizavam a dormir na
minha própria casa em Saboria. Após várias semanas nestas tarefas, deram-me permissão para dormir em
casa.
Certa vez, às 11 da noite, estava eu a dormir em minha casa quando ouvi o ruído de um carro, seguido de
alguém a bater-me à porta. Senti-me angustiado e com medo. Abri a porta e deparei com o responsável da
prisão. Convidei-o a entrar mas disse-me apenas para o acompanhar. Apercebi-me que ele havia estado a
beber mas tive de fazer o que me ordenava.
Levou-me a um lugar onde estava um camião estacionado, com pessoas lá dentro. Ele ordenou aos seus
homens que fizessem as pessoas descer do camião. Então, mandou os prisioneiros formar em linha, deulhes tempo para rezarem e disparou um tiro. Assim que disparou esse tiro, os seus homens dispararam as
G3 sobre os prisioneiros. Os presos estavam apenas a dez metros de distância e tiveram morte imediata. B
(nome retido) mandou chamar a população local para enterrar os corpos.
Regressei a casa com B (nome retido). Ao chegarmos disse à minha família para prepararem comida para
o visitante. Os meus familiares mataram um animal e foram a Aileu comprar bebidas. O medo obrigou-me a
assegurar a hospitalidade. Depois de comer, B (nome retido) dormiu em minha casa. No dia seguinte, os
homens dele foram-no buscar.
O tiroteio
durou cerca de 15 minutos…
Algumas pessoas dizem
... que morreram cerca de 160 pessoas.
Acabei de descrever o massacre de Saboria. Agora vou relatar o massacre de Aisirimou-Manifunihun, Aileu,
que testemunhei escondido.
Certa noite, a população do suco de Saboria ouviu dizer que mais de 100 prisioneiros iriam ser levados da
prisão em Aileu para Aisirimou-Manifunihun. Entre os prisioneiros encontrava-se o meu genro, Felisberto
dos Santos, que fora capturado pela Fretilin em Soibada. Quando a população de Saboria soube da
transferência dos prisioneiros revelou grande inquietação. Alguns de nós dirigimo-nos, em segredo, a
Aisirimou. Aisirimou fica a montante de Saboria, por isso subimos silenciosamente a ribeira até ao local
onde os prisioneiros estavam detidos.
Parámos num lugar de onde conseguíamos avistar os prisioneiros e vários carros estacionados, mas ainda
nos encontrávamos a alguma distância deles. Pouco depois, ouvimos disparos de armas de fogo e gritos. O
tiroteio durou cerca de 15 minutos. Não conseguimos ver exactamente o que se passou porque, assim que
os gritos pararam, regressámos a Saboria. Até hoje, ninguém sabe ao certo quantas pessoas morreram
naquele massacre. Algumas pessoas dizem 90 mortos, outras que morreram cerca de 160 pessoas.
Durante a ocupação indonésia, B (nome retido) permaneceu em minha casa por vários meses. Os militares
indonésios convocavam-no sistematicamente para interrogatórios mas eu disse-lhes que ele era uma
testemunha importante do massacre perpetrado pela Fretilin em Aileu.
António Amado J. R. Guterres
Distrito de Díli, Agosto–Dezembro de 1975; distrito de Manatuto, 1977
António Amado Guterres prestou depoimento sobre o conflito, em 1975, entre a UDT e a Fretilin. Na altura,
foi enganado por membros da UDT no sentido de manifestar simpatia pela Fretilin tendo,
subsequentemente, sido preso sumariamente. Descreveu o caos então vivido em Díli, quando era habitual
o cidadão comum ser envolvido na violência. Pouco depois de ser obrigado a aceitar o cartão de membro
da UDT, foi capturado e feito prisioneiro pela Fretilin quando este partido assumiu o poder. Em Setembro de
1975, foi a Lacló, Manatuto, onde foi detido pela Fretilin e espancado até perder a consciência.
Permaneceu detido durante meses até os militares indonésios chegarem à região, em finais de Dezembro
de 1975.
António Guterres relatou o seu trabalho como membro da Unidade de Educação da Fretilin, depois de ter
fugido para o mato com a Fretilin. Descreveu a declaração da Fretilin que atribui o estatuto de traidor a
Francisco Xavier do Amaral e a execução pela Fretilin de sete dos seus membros nas montanhas. Foi-lhe
exigido que registasse o depoimento dos prisioneiros durante os interrogatórios. Descreveu ainda os
métodos de tortura e de interrogatório pela Fretilin.
N
o dia 10 de Agosto de 1975 parti de Lacló para Díli para ir estudar. Em Díli fiquei com familiares, em
Balide. No dia seguinte à minha chegada, quando eu me dirigia com Lúcia Sarmento e a Josefa Sarmento
ao local onde os cursos iriam ser administrados mandaram-nos regressar pois era perigoso. Regressamos
a Balide.
Nessa tarde, estávamos a fumar um cigarro com amigos frente ao antigo Mercado quando passou um
veículo cheio de pessoas a gritar. Fizeram-nos o gesto identificador da Fretilin. Respondemos com o
mesmo gesto. Pararam, capturaram-me e fizeram-me entrar para o veículo. Levaram-me para Palapaço e
puseram-me na prisão. O responsável pela prisão era A (nome retido), de Bidau. Fui libertado no dia
seguinte, 12 de Agosto de 1975.
Cinco dias mais tarde, levaram-me de regresso a Palapaço para ir buscar o cartão da UDT. No mesmo dia
vi membros da Apodeti a manifestarem-se frente ao consulado indonésio em Lecidere.
No dia 19 de Agosto de 1975, começou o tiroteio em Taibessi que se alastrou em direcção a Palapaço.
Como a situação piorava, combinámos fugir no dia seguinte para Lahane. Mas, em Balide, eu e a Lúcio
Sarmento vimos a Fretilin capturar GL e L mesmo à nossa frente. Fomos metidos num carro e levados.
Depois disto, apercebemo-nos que para sobreviver teríamos de ser muito cautelosos.
Quando chegámos a Lahane, ficamos em casa do pároco. No dia 23 de Agosto de 1975 saímos de sua
casa. Quatro dias mais tarde fui apanhado por B (nome retido) e levado para Bidau.
No dia 9 de Setembro de 1975, Augusto Metan, de Bidau, foi morto a tiro pela Fretilin frente à escola
primária de Bidau. A 20 de Setembro de 1975 regressei a Lacló. Na altura, o comandante da Fretilin em
Lacló era Xanana Gusmão, actual Presidente de Timor-Leste. Escondi-me em casa de Vítor da Costa
Oliveira. À noite, três soldados da Fretilin vieram-me buscar a casa de Vítor Oliveira. Estavam armados com
uma G3 e duas Mauser. Espancaram-me até perder a consciência.
Terminada
a cerimónia [hastear da bandeira da Fretilin]
os sete foram colocados no
buraco e todos formos convidados a
aproximarmo-nos do local
para assistir à execução.
Fui levado para Manatuto a 21 de Setembro de 1975 onde fiquei detido juntamente com JLC, JBB, JPS,
VDS, AS e FS. Mantiveram-nos separados de outros 400 detidos que se encontravam noutra sala.
No dia 24 de Setembro de 1975, fui interrogado por C (nome retido) sobre o golpe da UDT em Díli. Fomos
depois transferidos para uma casa em Carlilo, Aidila Laran, onde tinha maior liberdade e não era vigiado
com o mesmo rigor. Um dia, D (nome retido), um membro das milícias da Fretilin, perguntou-nos se
sabíamos porque estamos detidos naquele local. Disse-nos que seríamos mortos em breve e encorajounos a fugir. Fugimos nessa noite e refugiámo-nos numa casa perto de Carlilo. Fomos chamados por E
(nome retido), de Lacló, para regressarmos a Lacló. Regressamos e permanecemos na base da Fretilin.
Quando F (nome retido) chegou de Remexio, G (nome retido) retirou-nos da base da Fretilin porque tinha
medo dele. Quando F (nome retido) partiu fomos viver novamente para a base da Fretilin.
As ABRI chegaram a Manatuto, a 31 de Dezembro de 1975, mas só chegaram a Lacló a 20 de Fevereiro de
1975. Fugimos para o mato em direcção a Blani Kadauk. Pouco tempo depois tivemos de mudar
novamente de local. Foi por volta dessa altura que me tornei membro da Unidade de Educação o que me
permitia assistir a todas as reuniões importantes. Estive presente nas reuniões de Soibada, em Maio de
1976, de Laline, em Maio de 1977 e de Herluli, Remexio, Aileu, em Julho de 1977.
Lembro-me claramente de uma questão levantada numa das reuniões: era exactamente meia-noite do dia
19 de Agosto de 1977, numa reunião de dirigentes da Fretilin. Nicolau Lobato anunciou publicamente que
Francisco Xavier do Amaral era um traidor. Na altura, Francisco Xavier do Amaral ainda não havia sido
capturado pela Fretilin. Na noite de 19 de Agosto de 1977, Nicolau Lobato suspendeu Francisco Xavier do
Amaral. Exactamente ao meio-dia de 20 de Agosto de 1977, data do aniversário das Falintil, em Herluli, a
Fretilin matou sete pessoas que mantinha presas. Durante a cerimónia do hastear da bandeira, foi dada a
ordem de preparar um buraco. Terminada a cerimónia, os sete foram colocados no buraco e fomos todos
convidados a aproximarmo-nos do local para assistir à execução. Logo que os sete foram metidos no
buraco, H (nome retido) disse: “Já não têm mais tempo. Preparem-se para morrer”.
...as vítimas foram forçadas
a admitir coisas que desconheciam
e a nomear pessoas
que não tinham qualquer relação com o caso.
Dos sete executados nesse dia, apenas conhecia Paulina Soares. Tínhamos sido professores ao mesmo
tempo durante o período português. Antes de ser morta, Paulina Soares disse: “Camaradas, eu vou morrer
e não tenho nada. Tudo o que tenho é uma peça de roupa que dou à minha mãe, que ficará convosco para
lutar pela independência.” Depois de Paulina ter falado, despiu as roupas. Depois eles dispararam uma
rajada de tiros. Eu vi-os todos morrer, à excepção de um homem. O homem disse: “Eu vou morrer, mas
vocês não vão vencer.” Depois disto, I (nome retido) pegou na sua baioneta e dilacerou o corpo da vítima,
de onde jorrou muito sangue. Ao ver tanto sangue a sair do corpo daquele homem, desmaiei. Devo ter
estado inconsciente muito tempo porque não sei se aquelas sete pessoas foram sepultadas.
Quando recuperei os sentidos, parti com ALA para Hatokona para participar numa reunião. Na reunião
debatemos a estratégia da guerra, formas de sobrevivência e métodos para atacar o inimigo. Não se
chegou a acordo e partimos para os nossos locais de origem. Voltámos a reunir em Outubro de 1977, em
Aliaram, a cerca de 10 km de Metinaro. Em Aliaram, a 23 de Outubro de 1977, J (nome retido) espancou
Alexandre Lemos até à morte. Alexandre Lemos e J (nome retido) eram os operadores da Rádio Maubere.
É possível que J (nome retido) o tenha morto porque apanhou-o a contactar as ABRI através da rádio. Mas
não tenho a certeza.
Testemunhei estas mortes e porque estive preso também vi pessoas a serem torturadas e a sofrerem
maus-tratos. Enquanto estive preso pediram-me para transcrever os interrogatórios das vítimas. Por isso
fiquei a conhecer como dirigiam os interrogatórios e como as vítimas eram forçadas a admitir coisas que
desconheciam e a nomear pessoas que não tinham qualquer relação com o caso.
FOTO p. 24: António Amado J R Guterres a prestar o seu depoimento.
Fotos p. 25: Comissários Nacionais da CAVR: Rev. Agustinho Vasconcelos, vice-presidente Pe Jovito Araújo, Presidente
Aniceto Guterres Lopes e Olandina Caeiro.
Num momento de grande emoção, funcionários da CAVR prestam assistência a membros do público.
FOTOS p. 26: Em cima: Arnaldo Araújo (ao centro), Presidente da Apodeti e governador do Governo Provisório de Timor
Leste, identifica os corpos numa das valas comuns, de membros da UDT e da Apodeti executados por membros da
Fretilin em Aileu, Dezembro de 1975 (Janeiro de 1976).
À esquerda: Campas de 11 apoiantes da Fretilin executados em Agosto de 1975 por membros da UDT na praia de MetiOan, Manufahi.
Foto p. 27: “Jacarta II”: as falésias de Hatu-Builico, distrito de Ainaro, local onde os militares indonésios lançaram
inúmeras pessoas para a morte durante os anos do conflito.
Felismina dos Santos Conceição
Vila Verde, distrito de Díli, Dezembro de 1975
Felismina dos Santos Conceição descreveu a destruição da sua casa pelo fogo durante o conflito entre os
partidos políticos timorenses, em 1975. Ainda criança à data da invasão em larga escala de Díli pelas
forces indonésias, Felismina relatou o horror vivido pela população de Díli no momento da descida dos
pára-quedistas indonésios sobre Díli. Contou como os civis que procuraram abrigo no edifício da delegação
do Ministério dos Assuntos Sociais português (Assistência) em Caicoli foram ordenados a reunir pelos
soldados indonésios num campo, juntamente com muitos outros. Afirmou que os homens, as mulheres e as
crianças foram separados, tendo os homens sido levados para um edifício próximo. Falou dos disparos e
da sua fuga para tentar saber o que se passava. Deparou com as vítimas do massacre de civis masculinos,
inclusivamente o seu pai e o seu irmão, que morreu nos seus braços.
Felismina descreveu os meses seguintes em que lutou para sobreviver aos primeiros dias da ocupação,
das mudanças em busca de um local seguro e do terror vivido pelas mulheres enquanto as forças das ABRI
as procuravam para as violarem.
N
o dia 15 de No dia 15 de Agosto de 1975, foram incendiadas muitas casas em Vila Verde, incluindo a
nossa, no contexto do conflito interpartidário. Durante os quatro meses seguintes vivemos refugiados no
edifício da Assistência, em Caicoli, Díli. Actualmente, o edifício pertence à Universidade de Timor-Leste.
Na manhã de Domingo, 7 de Dezembro de 1975, cerca das seis horas da manhã, ouvimos o som dos
aviões. Saímos e vimos aviões a sobrevoarem a cidade e os arredores de Díli e os pára-quedistas a
saltarem. Pouco depois, ouvimos o tiroteio entre as ABRI e a Fretilin. Ao ouvir o tiroteio, escondemo-nos
com medo. Do nosso refúgio ouvimos soldados da Fretilin a matar dois membros das ABRI que tinham
arreado a bandeira da Fretilin. Mataram-nos junto ao edifício que é hoje a loja de fotocópias ‘Silvia’ que, na
altura, era a garagem de ambulâncias.
Pouco depois, as ABRI assumiram o controlo da área em torno do edifício da Assistência onde nos
havíamos refugiado. Estavam cerca de três famílias numa das salas do edifício. As ABRI ordenaram que
saíssemos de imediato e nos dirigíssemos a um terreno próximo. Levava o meu irmão de dois anos ao colo
e conforme andávamos em direcção ao terreno eles batiam e pontapeavam-nos. Batiam nos homens e nas
mulheres.
Já estavam muitas pessoas reunidas no terreno. Quando chegámos, separaram as mulheres dos homens.
Levaram os homens para o lado do edifício onde a erva era mais alta. Era difícil ver porque nos tinham
ordenado que permanecêssemos deitadas no terreno.
Pouco depois ouvimos o som de disparos e de uma granada. O tiroteio durou algum tempo. Quando
terminou, uma mulher fingiu levar água aos ABRI que descansavam, na tentativa de ver o que se passava.
Quando chegou já os ABRI se afastavam do local e não lhes deu a água. Mas viu o que aconteceu.
Isabel disse-nos que foram mortos todos os homens que haviam sido levados para a zona lateral do
edifício. Encontrámos o meu pai coberto de sangue. O meu pai explicou-nos que o sangue era do meu
irmão que precisava de água. Dirigi-me de imediato ao meu irmão. Ergui a cabeça do meu irmão,
pousando-a sobre o meu regaço. Dei-lhe um pouco de água. Pouco depois, senti-me molhada. Percebi
então que a água que dei ao meu irmão verteu da ferida do seu pescoço para o meu colo.
Dirigi-me de imediato
ao meu irmão. Ergui a cabeça do meu irmão,
pousando-a
sobre o meu regaço.
Dei-lhe um pouco de água.
Pouco depois, senti-me molhada.
Percebi então que a água
que dei ao meu irmão
verteu da ferida do seu pescoço
para o meu colo.
Enquanto dava água ao meu irmão, vi os corpos de muitas outras vítimas. Vi uma cabeça e pedaços de
corpos presos no arame farpado e nas árvores próximas do local do massacre. Não conseguimos salvar o
meu irmão. Quando os membros das outras famílias foram procurar os seus entes queridos, as ABRI viramnos e começaram a disparar sobre nós. Fugimos. Pouco depois vimos uma pessoa que jazia morta no
canal do esgoto. A baioneta que o matou ainda estava espetada no seu corpo. Vi mais vítimas que jaziam
mortas. Sentimo-nos estranhos e cada um tentava apenas salvar-se a si próprio.
Encontrei a minha família e mudámo-nos para Guarda Colmera. Mas as ABRI estavam no nosso encalço.
Levaram uma mulher com eles e mais tarde levaram outros cinco homens. Depois deixaram de nos
aterrorizar. Quando os homens regressaram contaram que tinham sido obrigados a enterrar os corpos das
pessoas que tinham sido mortas na ribeira de Maloa. Não sabiam ao certo quantos mas que eram muitos
corpos.
Dois dias mais tarde, as ABRI devolveram a mulher que haviam levado. Estava em mau estado e, mais
tarde, deu à luz uma criança, em consequência do que as ABRI lhe fizeram.
As ABRI aconselharam-nos a render. Fugimos para o Sota, em Bidau Lecidere onde permanecemos pouco
tempo. Enquanto aí estivemos vi as ABRI a levarem seis homens para a praia de Lecidere. Pouco depois, o
Bispo José veio ter connosco e aconselhou-nos a deixar o local pelo que nos dirigimos para o Museu onde
permanecemos cerca de três meses.
Enquanto estivemos no Museu fomos aterrorizados todas as noites pelos ABRI que vinham procurar as
mulheres. As minhas amigas e eu tivemos de nos esconder na casa de banho.
Regressámos a Vila Verde quando a situação normalizou.
Ângelo Araújo Fernandes
Suco de Souro, distrito de Lautém, 1976
Ângelo Araújo Fernandes descreveu como sobreviveu a uma marcha forçada e à execução de prisioneiros
da Fretilin, em 1976, em Pasikenu, distrito de Lautém. O seu pai, irmãos e cinco amigos foram executados.
Ele escapou, mas contou como soldados da Fretilin regressaram ao suco de Kooleu, Loré I e massacraram
37 pessoas, incluindo todos os membros da sua família alargada. Para se salvar, rendeu-se aos militares
indonésios.
N
um dia de 1976, vários membros da Fretilin dirigiram-se a Iramiri, Souro, e capturaram o meu pai,
Motorula, e dois dos meus irmãos. Levaram-nos para Acalaulau a cerca de 5 km de distância. No caminho,
um dos meus irmãos consegui fugir. No dia seguinte, vieram mais dois membros da Fretilin e capturaramno novamente. Eu fugi e escondi-me. Na tarde do mesmo dia, dois membros armados da Fretilin, A (nome
retido) e B (nome retido) vieram a nossa casa com uma carta dos comandantes C (nome retido) e D (nome
retido), da Fretilin. A carta, em português, tinha a assinatura do meu pai. Dizia: “Ângelo e Filipe, é melhor
dirigirem-se para Laihira. Se permanecerem onde estão, ninguém vos pode proteger”. Depois de ler a carta,
fui para Acalaulau com os dois membros da Fretilin. Nessa noite, reuni-me com o meu pai e o meu irmão.
Ouvimos dizer que as ABRI se aproximavam de Laihira pelo que nos deslocamos para Kooleu, Loré I, com
os dois soldados, onde permanecemos por dois dias. No segundo dia, por volta das cinco horas da manhã,
A (nome retido) dirigiu o grupo de soldados da Fretilin armados com lanças, o meu pai, os meus dois
irmãos, os nossos cinco amigos e eu próprio, para Pasikenu, Souro. No caminho, amarraram-nos as mãos
atrás das costas com corda, tanu, na língua atalhou.
Quando chegamos a Pasikenu, A (nome retido) ordenou uma paragem. Foi verificar se os dirigentes da
Fretilin estavam nos seus postos ou não. Ao regressar disse-nos que os dirigentes da Fretilin não se
encontravam no local. A (nome retido) ordenou um dos seus homens para nos levar para debaixo de uma
árvore, kawaha-waha em fataluku, e atar-nos aos pares. Fiquei amarrado ao meu irmão. Cerca das dez da
manhã, começaram a disparar sobre nós. Uma bala atingiu o meu irmão e fomos projectados pelo impacto.
Caímos na ravina o que acabou por partir a corda que nos amarrava um ao outro. Apesar de ainda ter as
mãos atadas atrás das costas, comecei a correr. O meu pai, os meus irmãos e os nossos amigos morreram
ali mas eu consegui fugir.
Passados 24 anos,
ainda não consegui recuperar
[os restos mortais dos membros de] a minha família.
Quero saber quem deu a ordem
para matar a minha família.
Porque é que o fizeram?
O meu filho pergunta-me:
“Pai, quem matou os meus avós?”.
Eu não sei responder.
Despi a lipa que trazia vestida e continuei a correu apenas com a roupa interior. Escondi-me na ribeira. Não
me conseguiram encontrar mas dirigiram-se a Kooleu, Loré I e mataram 37 pessoas. A minha família
alargada foi toda morta nesse massacre, incluindo as crianças e as mulheres grávidas. Não assisti à sua
morte. Apenas ouvi os disparos que vinham da direcção de Kooleu.
Cerca das dez horas da noite, deixei a ribeira mas como a lua estava cheia, eles viram-me e dispararam
sobre mim. Consegui escapar e no dia seguinte rendi-me aos militares indonésios em Lospalos. Cortaram a
corda que amarrava as minhas mãos e deram-me uma lipa.
Passados 24 anos, ainda não consegui recuperar [os restos mortais dos membros de] a minha família.
Quero saber quem deu a ordem para matar a minha família. Porque é que o fizeram?
O meu filho pergunta-me "Pai, quem matou os meus avós?" Eu não sei responder.
Berta Caetano
Suco de Rasa, distrito de Lautém, 1976
Berta Caetano depôs sobre o desaparecimento do seu pai e do seu irmão depois de serem levados do seu
suco, Rasa Velha, pelos militares indonésios, em 1976. O seu pai e irmão haviam procurado a protecção
das ABRI depois de lhes comunicarem terem ouvido o som de disparos. Berta Caetano descreveu as
ameaças das ABRI quando tentou obter informação sobre o paradeiro dos seus familiares e só dois anos
mais tarde conseguiu confirmação da sua morte e de que os seus corpos foram incendiados numa casa.
Confirmou o destino dos seus parentes, ao recuperar a fivela de um cinto e uma cruz, pertença do seu pai e
do seu irmão, de entre as cinzas da casa queimada.
N
o sábado, dia 13 de Março de 1976, o meu pai, Joaquim Caetano, foi a Rasa Velha, trabalhar nos
arrozais. Trabalhava com o meu irmão, Vítor Caetano e três amigos, Baltazar, Filomeno e Armando Pereira,
quando ouviram o som de tiros. O som dos disparos vinha do Monte Rasa, próximo dos arrozais. Os tiros
estavam a ser disparados contra o Batalhão 502 na estrada principal de Lospalos mas ninguém sabia quem
eram os autores dos disparos. O meu pai, o meu irmão e os amigos tiveram medo e esconderam-se no
lamaçal.
Quando terminou o tiroteio, o meu pai e os outros, deixaram o esconderijo e dirigiram-se para a cidade.
Queriam informar o sucedido e solicitar a protecção das ABRI. Depois de prestarem a informação ao
Batalhão 502 no posto militar de Trisula, o comandante do batalhão registou os seus nomes e moradas
após o que regressaram a Rasa.
Chegaram a casa cerca das cinco da tarde. Ainda não tinham mudado de roupa e já estava um camião à
porta para os vir buscar. Eram membros do Batalhão 502 e do posto militar de Trisula. Os militares tinham
uma lista de nomes das pessoas que tinham relatado o tiroteio. Na lista constava o nome do meu irmão
mas não o do meu pai. O meu pai não quis que o seu filho fosse levado sozinho e decidiu acompanhá-lo.
Os membros das ABRI disseram que queriam mais informação sobre o tiroteio porque um dos membros do
batalhão fora ferido.
Não voltei a ver o meu pai e o meu irmão depois de partirem de Rasa para Trisula naquele camião.
Ninguém nos forneceu qualquer informação sobre o seu paradeiro. No dia seguinte, pedi um cavalo
emprestado e fui falar com os militares a Trisula.
Quando perguntei sobre o meu pai e o meu irmão, o guarda de serviço respondeu que o seu batalhão, o
Batalhão 312, acabara de ser transferido para Trisula e que desconhecia a localização dos meus familiares.
…ao pedir mais informação
sobre os meus parentes desaparecidos,
os membros das ABRI ameaçaram-me,
também morreria se insistisse em fazê-lo.
Regressei a Trisula mais tarde, no mesmo dia, mas ao pedir mais informação sobre os meus parentes
desaparecidos, os membros das ABRI ameaçaram-me, também morreria se insistisse em fazê-lo. Sem
alternativa, tive de regressar a casa. Senti-me muito triste. Sabia que não voltaria a ver o meu pai e o meu
irmão. Foram mortos ainda com a roupa enlameada dos arrozais.
O comandante Sarak levou-me de regresso a Rasa. Pedi-lhe que me mostrasse o local onde o meu pai e o
meu irmão foram mortos para que os pudesse enterrar. Sarak apenas disse que eles tinham ido “prestar
apoio” às ABRI”. Sempre que ia a nossa casa e nos encontrava a chorar dizia que não devíamos estar
tristes porque o meu pai e o meu irmão estavam a “prestar apoio às ABRI”.
Um dos nossos parentes, Francisco, vivia no mato e de entre as suas responsabilidades, incluía-se espiar o
posto das ABRI e passar a informação. Um dia, ele veio ter connosco e disse-nos que os cinco que foram
levados de Rasa haviam sido mortos. Disse que os corpos foram incinerados numa casa.
Só dois anos mais tarde, em 1978, é que as famílias dos cinco puderam recuperar os seus restos mortais.
Os seus corpos haviam sido incinerados e não era possível identificar os corpos individualmente, mas
algumas peças sobreviveram ao fogo. Encontrei a fivela de um cinto e uma cruz que pertenciam ao meu pai
e ao meu irmão. Enterrámos os restos mortais.
Domingos Maria Alves
Distrito de Aileu, 1977
Quando os militares indonésios invadiram Díli, a 7 de Dezembro de 1975, Domingos Maria Alves fugiu para
as montanhas de Aileu. Descreveu o período em que esteve em Lequidoe com o dirigente da Fretilin,
Francisco Xavier do Amaral, e dos esforços para o esconder.
O depoimento de Domingos Alves incidiu sobre as violações perpetradas pela Fretilin após Francisco
Xavier do Amaral ter sido acusado de traição. Descreveu a detenção, os espancamentos constantes e os
interrogatórios. Testemunhou a execução de muitos membros da Fretilin nesse período e ele foi
repetidamente ameaçado.
À
s quarto horas da manhã do dia 7 de Dezembro de 1975, as ABRI iniciaram o ataque a Díli. Algumas
horas mais tarde, fui para Aileu e, depois, para Lequidoe. Os líderes Maubere também iniciaram a
transferência para Balibar e Aileu.
Às sete da manhã do dia seguinte parti de Lequidoe para Aileu. Francisco Xavier do Amaral fugiu comigo e
tentámos passar por civis. Conseguimos esconder Francisco Xavier do Amaral em Lequidoe durante mais
de um mês. Um dia, saiu para observar os bombardeamentos dos militares indonésios e foi visto pela
população local. Todos ficaram a saber que ele se encontrava em Lequidoe.
Mais tarde, Nicolau Lobato instruiu A (nome retido) que nos convocasse aos nove para irmos ao seu
gabinete. A (nome retido) convocou Domingos, Domingos Sai, Barlequi, Matias, Lequibere, Jubelu, João
Bosco, uma outra pessoa e eu próprio. Quando cheguei ao gabinete, B (nome retido) veio ter connosco e
apresentou-nos C (nome retido). Depois amarraram-me mas os outros permaneceram livres. Mais tarde, fui
espancado por pessoas de Laclubar enquanto todos assistiam. Fui espancado porque acabara de ser
anunciado que Francisco Xavier do Amaral era um traidor.
Mais tarde, nessa mesma tarde, chegou D (nome retido) e outras cinco pessoas. Todos estavam armados.
C (nome retido) ordenou que fosse levado junto dele. Começou a interrogar-me, perguntando: “És o braço
direito de Francisco Xavier do Amaral que emitiu a ordem de rendição?” Respondi positivamente.
Estava muito frio e os dirigentes estavam todos sentados à volta de uma grande lareira enquanto C (nome
retido) me interrogava. Mais tarde, C (nome retido) e D (nome retido) espancaram-me à vez. D (nome
retido) espancou-me com um pedaço de madeira até este se partir. Partiu outros três pedaços de madeira
durante o espancamento e depois queimou-me.
Quando tudo terminou, C (nome retido) ordenou a B (nome retido) que removesse a corda que me atava. C
(nome retido) ordenou então que me dirigisse para a caserna e fosse comer batata-doce. No dia seguinte,
mandaram seis milícias cavar um buraco. O buraco destinava-se a enterrar os prisioneiros que iam ser
mortos. Ao meio-dia alinharam 20 prisioneiros e escolheram os dez que seriam mortos. Esses dez
prisioneiros foram levados para a margem da ribeira perto da caserna. Entre eles encontravam-se Albarina,
de Bidau, e Marcelino, de Remexio. Todos foram instruídos a dirigirem-se para o exterior e testemunhar as
execuções.
C (nome retido) ordenou às pessoas que rezassem. Depois deram a ordem ao primeiro da fila para fechar
os olhos. D (nome retido) matou-o a tiro. Depois foram buscar a segunda pessoa e B (nome retido) disselhe que fechasse os olhos. D (nome retido) matou-o a tiro. Assim continuou, um após o outro até matarem
dez. Entre os que foram mortos encontrava-se uma mulher de nome Albertina. Teve de ser arrastada até ao
local da execução e enquanto a arrastavam ela bradava contra os dirigentes presentes. Dizia: “O que estão
a fazer não é certo. Deixamos as nossas famílias e os nossos bens para apoiar o partido político que vocês
fundaram. Vivemos, comemos e bebemos juntos. Agora matam-nos como animais. Acusam inocentes de
traição. Em que é que traímos o partido? Negociámos com o inimigo tal como nos ordenaram e agora
acusam-nos de traição?”
C (nome retido) e os seus colegas disseram a Albertina que lhe haviam reservado o melhor local para ela e
mandaram-na colocar-se de pé sobre os corpos dos restantes mortos. Ela recusou. Atiraram-na sobre os
corpos mas ela saiu de cima deles e continuou a insultar os dirigentes presentes. Eles mandaram-na fechar
os olhos. Ela recusou. Disseram-lhe que rezasse. Ela recusou. D (nome retido) disparou três vezes, mas
Albertina não morreu. Manteve-se de pé e insultou-os até a enterrarem viva.
Quando tudo terminou, C (nome retido) chamou-me e disse: “Ambulan, vê com os teus olhos o que
acontece aos traidores. Estas execuções são como a água que lava os olhos dos dirigentes e dos
traidores.”
No dia seguinte, colocaram mais prisioneiros no buraco. Foram mais de cem. Entre eles, o Zeca de Díli,
guarda-costas de Francisco Xavier do Amaral, Rafael de Turiscai e Ananias, comandante na zona de
Remexio, quase espancado até à morte. João Bosco e eu permanecemos na zona exterior e
continuávamos atados. E (nome retido), de Alas, Same, fazia guarda ao buraco.
Ordenaram-me que fizesse a guarda ao buraco. Todas as semanas o meu nome constava da lista de
nomes das pessoas que iriam ser mortas, mas quando chegávamos ao local da execução, o meu nome era
subitamente esquecido e chamavam alguém cujo nome surgia depois do meu. Talvez por graça de Deus.
Algumas pessoas foram levadas para Sare, Ermera, mas eu permaneci ali.
Todas as semanas
o meu nome constava da lista de nomes
das pessoas que iriam ser mortas,
mas quando chegávamos ao local da execução,
o meu nome era subitamente esquecido
e chamavam alguém
cujo nome surgia depois do meu.
Talvez por graça de Deus.
Um dia chamaram-me e mandaram-me ir ter com Francisco Xavier do Amaral que, em resultado de uma
ordem emitida por Nicolau Lobato, fora capturado em Tutuluru juntamente com o seu guarda-costas e a
família. Nessa noite, Lobato e C (nome retido) interrogaram Francisco Xavier do Amaral. Depois, C (nome
retido) mandou chamar-me para o buraco onde se encontravam os prisioneiros. Estavam vários dirigentes
junto ao buraco e C (nome retido) estava a espancar Francisco Xavier do Amaral.
C (nome retido) perguntou-lhe: “Conheces o Ambulan?” E, depois, C (nome retido) perguntou-me:
“Conheces Francisco Xavier do Amaral?” ao que respondi que era meu tio.
C (nome retido) interrogou-nos a ambos. C (nome retido) ordenou-me que espancasse Francisco Xavier do
Amaral e ordenou a Francisco Xavier do Amaral que me espancasse. Mas Francisco Xavier do Amaral
disse: “Sou um político e um dirigente partidário. Cometi um erro. As pessoas bateram-me e obrigaram-me
a deixar os cargos que ocupava. Mas recuso-me a bater em alguém. As pessoas podem-me bater.” C
(nome retido) continuou a espancá-lo.
Mantiveram-me preso com Francisco Xavier do Amaral e a mulher. Não dissemos nada entre nós. Mesmo
quando íamos buscar água, nada dizíamos uns aos outros. Caminhávamos sozinhos. Eu à frente, o
Francisco Xavier do Amaral no meio e a mulher um pouco atrás. Uma semana mais tarde, transferiram o
Francisco Xavier do Amaral para Barique.
Dez de nós, incluindo Luís, Bonifácio, Hermenegildo, José Sabere, Diogo, Tomás, Domingos, Umkoli, Nuno
e eu próprio, fomos transferidos para Sare e mais tarde para Fatubessi, Ermera. Inicialmente, fomos
levados para Abat e depois para Kakehe Mota Laran. Cinco foram mortos em Kakehe Mota Laran. Depois,
fomos cercados pelas ABRI. Após a nossa libertação, alguns juntaram-se aos militares mas eu tornei-me
civil.
Ainda hoje não compreendo o que queriam significar por “traidor” ou porque fomos acusados de trair a
Fretilin. O meu coração e a minha mente eram Fretilin e continuo a respeitar a bandeira da Fretilin, mas as
histórias do que foi feito em nome da Fretilin têm de ser contadas e passadas às gerações futuras.
Ainda hoje
não compreendo
o que queriam significar
por “traidor” ou porque
fomos acusados de trair a Fretilin.
O meu coração e
a minha mente são Fretilin
e continuo a respeitar
a bandeira da Fretilin mas as
histórias do que foi feito em nome da
Fretilin têm de ser contadas e
passadas às
gerações futuras.
FOTO p. 36: Jacinto Alves, Comissário Nacional da CAVR, dirige-se aos participantes.
Fotos p. 37: EM CIMA: Participantes escutam os depoimentos.
À ESQUERDA: A testemunha Simplício Celestino de Deus, entre o público, escuta os depoimentos.
AUDIÊNCIA PÚBLICA NACIONAL DA CAVR / 19-21 NOVEMBRO 2003 37
Lúcio Meneses Lopes
Monte Matebian, Uatu-Lari, distrito de Viqueque, 1976/1979
Lúcio Meneses Lopes era militar do exército português destacado em Baucau aquando da invasão em
Dezembro 1975 pelos militares indonésios. Lutou com a Resistência durante três anos. Relatou a fuga da
população de Baucau para as montanhas e descreveu o terror sentido aquando dos bombardeamentos
aéreos pelos militares indonésios que, afirma, matavam entre 10 a 20 pessoas por dia. Em 1978 rendeu-se
às ABRI em Uatu-Lari. Descreveu como os militares indonésios trabalhavam com timorenses na condução
dos interrogatórios e como os timorenses espancavam os prisioneiros.
Após vários meses de detenção, foi levado para Ulusu para “procurar membros da Fretilin no mato”. Foi
levado com outras seis pessoas para o sopé de uma colina onde as ABRI dispararam sobre o grupo. Lúcio
Lopes conseguiu escapar ao esconder-se numa gruta.
D
esde Janeiro de 1975 que era instrutor na escola militar portuguesa em Makadikin Edemunu, Uatu-
Lari. Fui capturado em Uatu-Lari pela UDT depois do golpe de Agosto de 1975. Na altura do contragolpe
ainda lá me encontrava.
Depois do contragolpe juntei-me aos militares portugueses [sic] e servi no comando do Quartel Geral (QG).
A partir de então e até à data da invasão indonésia, a 7 de Dezembro de 1975, permaneci destacado em
Baucau. Quando os aviões militares indonésios começaram a bombardear o aeroporto de Baucau fazia
parte do único pelotão a defendê-lo.
Nessa noite chegaram os navios de guerra indonésios aos portos de Baucau, Seiçal e Laga. Os indonésios
estavam armados com armamento sofisticado, por exemplo, artilharia de morteiros. Só tínhamos Mauser e
G3 para nos defendermos. Na manhã de 7 de Dezembro recuámos para o quartel geral em Baucau. Um
avião militar indonésio sobrevoava Baucau e lançava folhetos de propaganda.
O sobrevoo do avião aumentou a nossa ansiedade e, por isso, nessa tarde, decidimos fugir para o mato.
Fugimos com o primeiro comandante José Cirilo Nunes, Maubrani, o secretário regional da Fretilin, Eduardo
Ximenes e outras pessoas. A população de Baucau também fugiu para as florestas circundantes.
A 8-9 de Dezembro de 1975, atacámos os militares indonésios que estavam a montar um posto militar no
aeroporto de Baucau. Colocámos uma mina antipessoal na estrada principal de Ostico e destruímos um
veículo militar matando vários militares indonésios.
Em Janeiro de 1976 foi realizada uma reunião na Ponta Leste e aproveitei essa oportunidade para visitar a
minha família em Uatu-Lari. Não consegui regressar de Uatu-Lari para a região Centro Sul porque a
situação agravou-se e retirámos para Matebian. Aí permanecemos por mais de dois meses. Todos os dias
morriam 10 a 20 pessoas por causa das bombas lançadas pelos aviões militares indonésios.
A 22 de Novembro de 1978, os líderes da Resistência deram a ordem de rendição aos civis porque os
ataques do inimigo intensificavam-se. Pouco depois, eu e o meu amigo Francisco separámo-nos do grupo e
perdemos a comunicação com os restantes. O Francisco convenceu-me a render-me. Rendemo-nos aos
militares indonésios em Uatu-Lari, no dia 24 de Novembro de 1978.
Aí permanecemos
por mais de dois meses.
Todos os dias morriam 10 a 20 pessoas
em Matebian
por causa das bombas
lançadas
pelos aviões militares indonésios.
Rendemo-nos a Gaspar Mascarenhas, líder da Apodeti em Uatu-Lari. Ele chamou os Hansip e fomos
levados perante o comando especial de guerra, Nanggala. A meio da noite, os Nanggala levaram-nos para
a casa de um chinês que fora transformada em prisão. A casa estava cheia de prisioneiros. Foi nessa casa
que fomos interrogados pelo Nanggala.
Enquanto aí estive preso nunca fui espancado mas vi outros a serem violentamente espancados. Não eram
os militares indonésios que espaçavam os prisioneiros. Eram timorenses que espancavam os seus próprios
conterrâneos até ficarem com os corpos numa nódoa negra uniforme.
Entre 24 de Novembro de 1978 e 30 de Março de 1979, fomos obrigados, diariamente ao meio-dia, a
comparecer à formatura enquanto dois membros da Hansip liam os nomes dos prisioneiros a partir de uma
lista preparada pelos militares indonésios. Inicialmente, o meu nome não constava da lista mas,
posteriormente, os dois Hansip acrescentaram o meu nome ao final da lista. Quando chamavam pelo nosso
nome diziam-nos que íamos procurar a Fretilin no mato.
Éramos catorze no meu grupo que era dirigido por Armindo Meneses, que vive actualmente em Kupang, e
Mateus Sarmento, que morreu entretanto. Caminhámos durante duas horas até chegarmos a Ulusu.
Durante o percurso, os Hansip não nos agrediram. Por vezes, caminhavam à nossa frente, outras,
seguiam-nos. Quando chegámos a Ulusu entregaram-nos ao Batalhão 721. As ABRI dividiram-nos em dois
grupos. Um dos grupos foi levado para a zona 17 de Agosto e os restantes sete presos foram levados para
a colina.
As ABRI levaram-nos encosta abaixo e disseram-nos para permanecer sentados. Suspeitei pelo que optei
por permanecer agachado, pronto a movimentar-me em caso de necessidade. Subitamente, as ABRI
começaram a disparar sobre nós. Uma bala raspou-me a cabeça. Saltei, corri encosta abaixo e escondi-me
numa gruta.
As ABRI vieram procurar-me mas não me encontraram. Saí da gruta quando partiram. Não sabia para onde
me dirigir pelo que escondi-me na floresta. Enquanto estive escondido conheci um senhor idoso e através
dele enviei uma mensagem à minha mulher. Mais tarde fui visto por um outro homem que comunicou a
minha presença às ABRI pelo que tive de fugir novamente. A minha mulher ajudou-me a conseguir
documentos de viagem falsos e, com eles, consegui chegar a Baucau onde fiquei com o meu primo. Pouco
tempo depois as pessoas em Baucau começaram a suspeitar de mim e fugi para Díli.
Em 1982 fui para Maubisse, Ainaro, e consegui um emprego como funcionário público na administração
subdistrital.
Felismina Soares
Sabailolo, Turiscai, distrito de Manufahi, 1980
Felismina Soares foi testemunha ocular do massacre de civis, por volta de 1980, perpetrado por membros
da Hansip e por militares indonésios. Encontrava-se refugiada no mato de Turiscai, durante a estação das
chuvas de 1980, quando ela e onze homens foram capturados pela Hansip. Descreveu como nove dos
homens foram alinhados junto à ribeira em Sabailolo e mortos a tiro. Mais tarde, os outros dois homens
também foram executados sumariamente a tiro. Felismina Soares afirmou desconhecer a razão da
execução destes prisioneiros. Disse que pensava estar relacionada com divergências políticas do passado,
uma vez que o chefe dos Hansip era membro da UDT enquanto os prisioneiros mortos eram membros da
Fretilin.
Felismina Soares afirmou que os perpetradores deste massacre estão vivos e que está disposta a depor
pela acusação caso venham a ser julgados em tribunal.
P
or volta de 1980, durante a época das chuvas, estava com o povo de Sabailolo, suco de Poholau, em
Turiscai, no mato, quando fomos capturados pela Hansip de Turiscai. A unidade Hansip que nos capturou
era comandada por A (nome retido). Depois de nos capturarem, revistaram todos, em particular os homens,
e todos os nossos pertences. Éramos doze pessoas, onze homens e eu própria.
Terminada a inspecção, ordenaram a nove dos homens que alinhassem junto à ribeira em Sabailolo.
Disseram-lhe que formassem uma linha, de costas voltadas para nós. Nesse momento, A (nome retido) deu
a ordem para disparar. Os homens morreram de imediato.
Estava muito próxima dos nove homens que foram mortos a tiro. Depois de os matarem também eu me
senti morta. Não conseguia falar. Não senti tristeza nem chorei. Apenas senti medo. Pensei que estava
prestes a ser morta pela Hansip tal como eles foram. Estava surda e muda com o choque e pelo medo. Não
ouvi o que A (nome retido) disse aos seus homens ou que ordem lhes deu relativamente aos três que não
tinham sido executados.
Depois do massacre, os Hansip, os outros dois prisioneiros e eu dormimos num local próximo do sítio da
execução. A Hansip montou uma rigorosa guarda. No dia seguinte, partimos para Turiscai. Pelo caminho,
na estrada, A (nome retido) deu ordem aos seus homens para matarem os dois homens que estavam
comigo. Um era o Sebastião, antigo chefe de suco de Liurai, Turiscai. Depois dos dois homens serem
executados, A (nome retido) e os seus homens ficaram com os seus pertences.
Não sei ao certo porque é que estas pessoas foram mortas tão impiedosamente. Creio que está tudo ligado
ao passado, às questões políticas e aos partidos políticos. A (nome retido) é membro da UDT e todas as
vítimas eram membros da Fretilin.
Estou disposta a comparecer perante qualquer instituição judicial, na presença dos perpetradores deste
massacre, para depor sobre o que vi com os meus próprios olhos. Sou a única testemunha ainda viva.
Alguns dos perpetradores destas mortes ainda vivem em Turiscai. Outros ainda não regressaram de Timor
Ocidental.
Estava
muito próxima dos nove homens
que foram mortos a tiro.
Depois de os matarem
também eu me senti morta.
FOTOS p. 41: EM CIMA: Ilídio Maria de Jesus durante o seu depoimento.
EM BAIXO: Simplício Celestino de Deus mostra onde foi ferido pelos soldados indonésios durante o Massacre de Santa
Cruz.
FOTOS p. 42: Cemitério de Santa Cruz, 12 de Novembro de 1991. A CAVR recebeu informação de que os soldados
indonésios abriram fogo sobre jovens rapazes e raparigas reunidos em manifestação pacífica no exterior do Cemitério de
Santa Cruz e que muitos dos feridos foram esfaqueados até à morte ou levados em camiões com os cadáveres. Estas
imagens filmadas por Max Stahl, operador de imagem internacional, mudaram a forma como o mundo passou a ver a
ocupação indonésia de Timor-Leste. (Imagens © Yorkshire Television.)
FOTO p. 43: Igreja de Suai, 1999. Milhares de deslocados refugiaram-se na igreja de Suai no período que antecedeu a
Consulta Popular de 30 de Agosto de 1999. A CAVR recolheu muitos testemunhos sobre o massacre perpetrado em
Suai contra civis depois do acto de votação pela independência.
Mariana Marques
Suco de Muapitine, distrito de Lautém, 1983
O marido de Mariana Marques foi detido pelos militares indonésios em Novembro de 1983. Embora lhe
tenha sido negado julgamento, foi condenado à morte por execução pública. Apesar de lhe terem cortado a
garganta e ter sido esfaqueado nove vezes, Ângelo da Costa sobreviveu à execução e, horas mais tarde,
foi enterrado na presença da esposa. Na altura do seu assassinato, foram brutalmente assassinadas outras
quatro pessoas, todas na presença, ou com a participação forçada, da população do suco de Muapitine.
N
o dia 25 de Novembro de 1983, apareceram três membros das ABRI que detiveram o meu marido,
Ângelo da Costa, porque ele era o principal representante da Resistência no suco de Muapitine. Na mesma
altura, foram levados dois dos seus amigos: Lino Xavier, vice representante do suco de Muapitine, e Álvaro
Pereira, membro da Ratih, que fornecia munições à Fretilin. Pouco tempo depois, as ABRI também
detiveram Gilberto, Leonel Oliveira, Alarico e José Vicente.
A 6 de Dezembro de 1983, as ABRI libertaram Gilberto, Leonel Oliveira, Alarico e José Vicente. No dia
seguinte, o chefe de suco de Muapitine anunciou que todos os habitantes de Muapitine deveriam reunir-se
junto à sede da administração do suco para saudar o coronel das ABRI.
Por volta das seis da manhã, o povo de Muapitine reuniu-se junto à administração do suco para dar as
boas-vindas ao coronel, com danças tebe-tebe. Às 7 horas da manhã, ele chegou com o Batalhão 1629, o
administrador distrital de Lautém, A (nome retido), o meu marido e os quatro amigos do meu marido, Lino
Xavier, Álvaro Pereira, Alberto e Leonel Oliveira.
Ao chegarem, o coronel das ABRI e o administrador distrital de Lautém colocaram três garrafas de vinho de
palma sobre a mesa e verteram-no para cinco copos. Então eles chamaram o meu marido e os outros
quatro homens para bebê-lo. Quando acabaram de beber o vinho, o administrador distrital levantou-se e
disse que o meu marido e os seus quatro amigos tinham cometido crimes e iam ser mortos.
Então, chamaram o meu marido e ordenaram a B (nome retido), chefe de suco de Muapitine, que o
matasse. B (nome retido) deu um passo em frente e disse ao meu marido: “Ângelo, levanta a cabeça
porque eu vou cortar-te a garganta.” O meu marido ergueu a cabeça e B (nome retido) golpeou-lhe o
pescoço com uma baioneta. O meu marido caiu no chão, ainda a respirar. Em seguida, chamaram Lino
Xavier e ordenaram a C (nome retido) que o matasse. C (nome retido) cravou a sua catana no peito de
Lino, mas Lino não morreu. C (nome retido) ordenou às pessoas presentes que cortassem Lino em
pedaços. Com medo, as pessoas cumpriram o que ele ordenara.
Fiz tudo
o que pude para evitar que
o meu marido fosse enterrado mas
por fim…
o meu marido foi enterrado
apesar de ainda estar vivo.
Depois, trouxeram Leonel Oliveira. D (nome retido) cravou a baioneta no peito de Leonel até matá-lo. Então
E (nome retido) esfaqueou Alberto até à morte, por ordem das ABRI. A última pessoa a ser chamada foi
Álvaro. Álvaro começou a chorar, dizendo: “Mas que crime cometi para merecer ser executado em
público?” Eles ignoraram-no e B (nome retido) matou Álvaro.
O administrador distrital de Lautém mandou-nos levar os corpos para os respectivos sucos de origem.
Como o meu marido ainda estava vivo, ordenaram a um membro da Hansip do Kodim, E (nome retido), que
esfaqueasse o meu marido. E (nome retido) trespassou o corpo do meu marido nove vezes com a baioneta
mas mesmo assim não morreu. Levámos o meu marido para a aldeia de Puakelu. Os corpos dos outros
homens foram levados e enterrados nas suas aldeias de origem.
Quando chegámos a Puakelu, o meu marido ainda respirava. Disse: Porque me vão enterrar se ainda estou
vivo?”.
Fiz tudo o que pude para evitar que o meu marido fosse enterrado mas por fim, o coronel enviou uma
ordem através do administrador distrital de Lautém para enterrar o meu marido apesar de ainda estar vivo.
Posteriormente, nessa mesma tarde, dois membros do Batalhão 614 supervisionaram o enterro. Depois de
o deitarem num buraco com cerca de meio metro de profundidade, ele ergueu a mão e disse-me: “Beija-me
a mão. Vai e toma conta dos nossos dois filhos. Quero que os meus descendentes vivam.” Aproximei-me e
beijei-lhe a mão.
Depois disso, um membro do Batalhão 614 levou-me a casa.
José Gomes
Suco de Bibileo, distrito de Viqueque, 1982/1984
Os assassinatos no suco de Kraras, Viqueque, em 1983, foram um dos crimes mais conhecidos do período
militar indonésio. José Gomes depôs sobre cinco massacres distintos ocorridos em Kraras, ou nas suas
imediações, entre 1982 e 1984, que resultaram na morte de pelo menos 180 pessoas. José Gomes
explicou o contexto e os factores que antecederam os assassinatos. Descreveu como a profunda
militarização do distrito de Viqueque revertia no controlo da população civil de Lalerek Mutin através da
força e intimidação. Para além do massacre de civis, José Gomes descreveu as campanhas militares com
vista à destruição dos recursos alimentares próximos da floresta e da morte de um elevado número de
pessoas devido à fome extrema e doenças derivadas. Conforme afirmou, Lalerek Mutin esteve isolada do
resto de Timor até 1986 e a população viveu em situação de terror.
E
m 1983 descemos da montanha e fomos colocados pelos militares indonésios num campo de
concentração em Viqueque. Como as condições eram muito más, decidimos regressar ao nosso suco,
Bibileo. Não nos foi permitido ir para a nossa zona de Bibileo e ficámos a viver em Kraras, numa zona
diferente. Éramos guardados por um batalhão territorial, o Zipur 4.
Em 1982, quando as ABRI e as Falintil estabeleceram o acordo de paz, os militares indonésios permitiram
que membros das Falintil se encontrassem com os seus familiares no suco. Este gesto permitiu à ABRI
descobrir quem mantinha contactos e colaborava com as Falintil.
Por volta de Setembro ou Outubro de 1982, alguns ex-Falintil que haviam descido da montanha e
colaboravam com as ABRI, foram à floresta instigar os membros das Falintil a renderem-se e ir viver com
as suas famílias nas vilas. Por uma qualquer razão, as ABRI mataram dois desses ex-Falintil: Jaime
Verdeal e Loi Rubik. Na mesma altura, as ABRI também mataram cinco civis que regressavam a casa
vindos do campo. Os civis eram: Fono Siku, Agustinho Bau Fahik, Abel Gomes, Dau Nahak, e Sesu Fahik.
Estes civis não foram mortos pelo Zipur 4 mas por membros de um outro pelotão que aí cumpria serviço.
O Batalhão Zipur 4 também teve um comportamento errado. Assediavam sexualmente as mulheres cujos
maridos eram da Hansip ou haviam sido mortos, sempre que elas se dirigiam aos campos. Este
comportamento transtornou e irritou os membros da Hansip.
O assassinato dos ex-membros das Falintil e o assédio sexual às mulheres do suco foram factores que
contribuíram para o levantamento de 8 de Agosto de 1983. As Falintil, os Hansip, os jovens e outros
membros da comunidade, atacaram o Batalhão Zipur 4 e mataram 14 homens. Nessa mesma altura,
retirámos equipamento do quartel militar e levámo-lo para o mato. Os civis também fugiram para o mato ou
para as vilas próximas.
Sobreviveram dois membros do batalhão. Um era capitão e escondeu-se numa árvore e o segundo era um
membro das ABRI que foi levado pelas Falintil mas conseguiu fugir. Mais tarde, o que escapou informou o
Kodim de Viqueque sobre o levantamento.
No dia seguinte, os militares indonésios regressaram a Kraras. As ABRI depararam com as aldeias vazias e
dirigiram-se à floresta onde ordenaram o regresso dos civis às aldeias. Quem tentasse escapar era abatido
a tiro no local. Todos os que regressaram, incluindo as crianças e as mulheres grávidas, foram mortos
enquanto percorriam a estrada em direcção a Kasese. Ninguém sobreviveu. Morreram mais de cinquenta
pessoas. Não sei qual foi o batalhão responsável por este massacre.
…todos os que regressaram,
incluindo as crianças
e as mulheres grávidas
foram mortos
enquanto percorriam
a estrada em direcção
a Kasese.
Ninguém sobreviveu.
Morreram mais de
50 pessoas.
Em Setembro de 1983, foram levados mais de 100 homens da aldeia de Buikarin. Foi-lhes dito que iam
transportar alimentos de Kraras para os outros sucos. Na realidade, estavam a ser conduzidos ao
massacre. Foram todos assassinados pelo Batalhão 501.
Em Outubro do mesmo ano, as ABRI massacraram outros 17 homens algures perto de Tahubein, próximo
de Wetukukidun.
Após o levantamento fugi para o mato onde permaneci sete meses e aderi às Falintil mas rendi-me às ABRI
a 23 de Fevereiro de 1984. Fui colocado no Grupo 7 sob o comando de Chanadrasah, em Buikarin. Depois
fui enviado para Lalerek Mutin até Maio. Mais tarde fui detido novamente no Kodim de Viqueque. Na altura,
os comandantes do Nanggala eram o capitão Henry Pisang e o tenente-coronel Supriyadi, que estavam
colocados no suco de Buikarin.
Em Maio ou Junho de 1984, o comandante do Kodim de Viqueque convocou um grupo de homens, onde eu
fui incluído, a comparecer no Kodim. Mariano foi o primeiro a ser morto. Os outros sete que foram mortos
são: António Viegas, Eduardo, Afonso Gregório, Kaitotik, André, Hiabosik e Rubi Fono. Eram oriundos de
diferentes sucos e foram massacrados por um dos inúmeros batalhões que então estavam estacionados
em Viqueque. Os que não foram mortos foram mantidos na prisão do Kasi I, no Kodim. Em Outubro de
1984, foi-nos emitida uma autorização temporária de libertação e levaram-nos de regresso ao suco de
Lalerek Mutin.
A população de Lalerek Mutin sofreu muito psicológica e fisicamente. Foram sistematicamente intimidados
e os militares confiscaram todos os seus instrumentos agrícolas e armas, da catana ao mais pequeno
pedaço de metal. Muitos não tinham casa onde habitar e ninguém dispunha de alimento suficiente. As
pessoas faziam o que podiam para sobreviver.
As ABRI desenvolveram um sistema a que chamaram Curlog, que significa “destruir a logística no mato”,
que implementaram até 1985. O sistema envolvia os membros das comunidades que, acompanhados por
soldados, se dirigiam à floresta para destruir os frutos e vegetais existentes para que as Falintil ficassem
desprovidas de alimento. Neste processo, as pessoas tinham acesso aos alimentos que encontravam e,
devido ao Curlog, muitos escaparam à morte pela fome. Foram mortas muitas pessoas durante o
levantamento, mas nesse período talvez tenham morrido mais ainda à fome.
Durante todo este período, a comunicação com o mundo exterior esteve totalmente cortada e só no final de
1985 é que a situação começou a melhorar. No final de 1985, o grupo que implementou o Curlog,
regressou a Java. Após a sua partida a população teve maior liberdade de trabalhar os campos e de colher
os frutos do seu trabalho.
Olinda Pinto Martins
Aldeia de Kraras, distrito de Viqueque, 1983
Em 1983, na altura do levantamento contra os militares indonésios, Olinda Pinto Martins encontrava-se em
Kraras. Contou como fugiu para o mato com os seus dois filhos por receio da reacção dos militares
indonésios. Após uma permanência de cinco meses no mato, foi levada para o Koramil de Dilor enquanto o
seu marido manteve-se escondido. Descreveu a forma como foi transferida de um local para outro e como
as mulheres, as crianças e os idosos tinham de trabalhar arduamente nos campos em Lalerek Mutin para
sobreviverem. Os homens foram todos levados pelos militares indonésios num camião e nunca mais
regressaram. Acabou por ir novamente para Dilor com o seu marido e os filhos onde permaneceu até 1999.
O
tiroteio começou às oito da noite do dia 8 de Agosto de 1983. O tiroteio prolongou-se e parecia
infindável. Fugi com o meu bebé de cinco meses e com outras pessoas para uma ribeira próxima de Kraras
e escondemo-nos. Amigos contaram-nos que as Falintil juntamente com a Ratih tinham morto os membros
do Batalhão Zipur 4, colocado em Kraras. Nessa noite sentimos muito medo.
No dia seguinte, chegou um helicóptero para transportar os corpos dos soldados indonésios.
Permanecemos escondidos. Dois dias mais tarde, A (nome retido) chegou a Kraras para apelar ao regresso
da população ao suco. Quando o ouvimos sentimos medo e não sabíamos o que fazer. O meu marido,
António Xavier, e alguns outros homens foram falar com A (nome retido) mas não sei o que disseram.
Depois disso, muitos membros das ABRI e da Hansip dirigiram-se para Kraras. Continuámos escondidos e
avançamos ainda mais para o interior da floresta. Em Bibileo, Viqueque, encontrámos Ramero que estava
ferido no pescoço e a tratar-se com medicamentos tradicionais. Ele disse: “Ontem à noite, a Hansip de
Viqueque descobriu-me no meu esconderijo e tentaram matar-me mas consegui fugir”.
Nessa noite também nos encontrámos com Toni Rubik cujo corpo e roupa estavam manchadas com o
sangue das vítimas do massacre de Tahubein. Toni contou-nos como escapou ao massacre. Contou que
um grupo foi levado pelas ABRI e pela Hansip para Tahubein: “Quando chegámos, as ABRI começaram a
contar: um, dois, três e, depois, dispararam sobre nós. Antes de ser atingido, atirei-me para o chão e
escapei à morte”. Continuou: “Mais tarde, quando já era seguro, rastejei por debaixo do monte de corpos e
corri para a floresta”.
O relato de Toni aumentou ainda mais o medo em nós. Não conseguíamos decidir se deveríamos regressar
à vila ou se deveríamos permanecer escondidos no mato. Era-me muito difícil decidir porque estava com os
meus dois filhos que tinham apenas ano e meio e cinco meses de idade. O meu marido e eu decidimos
ficar no mato.
Durante o dia mantínhamo-nos escondidos e à noite procurávamos abrigo e comida. Vimo-nos obrigados a
roubar alimentos das hortas das pessoas que viviam perto do local onde nos escondíamos. Enquanto
permanecemos no mato, só vimos as Falintil uma vez. Advertiram-nos para sermos cautelosos e
desapareceram.
As mulheres, as crianças
e os idosos tinham de fazer todo o trabalho
porque não havia homens.
Foram todos levados
num enorme camião.
Não sabíamos
para onde os iriam levar
e nenhum regressou.
Escondemo-nos no mato durante cerca de cinco meses. Um dia, encontrámos um familiar do meu marido,
de Dilor. Ele contactou o Koramil de Dilor, que enviou B (nome retido), membro da Hansip, e um civil para
nos virem buscar e levar para Dilor. À chegada fomos levados para o Koramil. O comandante subdistrital de
Dilor mandou-nos tomar um chuveiro. Enquanto o fazíamos, as pessoas que se encontravam perto
praguejavam contra nós e insultavam-nos dizendo que andávamos à procura de Xanana no mato.
Ali permanecemos dois dias. Enquanto estivemos no Koramil fui interrogada relativamente aos
acontecimentos de Kraras. Disse-lhes que as Falintil haviam morto um membro das ABRI. É óbvio que não
contei que as Falintil e a Ratih tinham morto militares indonésios. Contei-lhes aquilo porque, em resultado
da acção da Fretilin nós tínhamos ganho medo das ABRI e fugido para o mato. Interrogaram-me sobre o
meu marido. Menti afirmando que o meu marido regressara a Kraras em busca de comida e que, após a
sua partida, ouvi o som de tiros. Afirmei que não voltara a vê-lo desde esse momento. Na verdade, o meu
marido continuava no mato.
O Koramil de Dilor perguntou-me se tinha família em Dilor. Respondi positivamente e recebi autorização
para permanecer com a família do meu marido desde que me apresentasse diariamente aos militares. No
momento em que quis partir para a casa dos familiares do meu marido, o Koramil de Dilor disse-me: “É
melhor ficares comigo”. Decidi ir-me embora. Ao chegar à casa da família do meu marido, contei o que me
dissera o Koramil. A minha família protegeu-me e eu permaneci sempre dentro de casa.
Ficámos algum tempo em Dilor e depois, juntamente com alguns amigos, fomos para Buikarin. Dois dias
mais tarde fomos transferidos para Kaiju Laran, Aí plantámos milho mas antes de conseguir a colheita
tivemos de nos mudar novamente, desta feita para Lalerek Mutin.
Tivemos de trabalhar arduamente em Lalerek Mutin. As mulheres, as crianças e os idosos tinham de fazer
todo o trabalho porque não havia homens. Foram todos levados num enorme camião. Não sabíamos para
onde os iram levar e nenhum regressou.
Seis meses mais tarde, o meu marido veio a Lalerek Mutin. Levámos as crianças de regresso a Dilor onde
o meu marido se rendeu. Permanecemos em Dilor com a família do meu marido até 1999.
Simplísio Celestino de Deus
Distrito de Díli, 1991
Simplísio Celestino de Deus esteve envolvido desde jovem no movimento clandestino urbano da
Resistência, logo que este começou a ser estruturado no final da década de 80. Falou do seu envolvimento
na conhecida manifestação realizada por ocasião da visita a Díli do embaixador dos Estados Unidos de
América, John Monjo, em 1990. Depôs detalhadamente sobre os acontecimentos que antecederam o
Massacre de Santa Cruz, a 12 de Novembro de 1991. Descreveu o cenário aterrador no hospital de Díli
após o massacre, os meses de encarceramento e os interrogatórios e espancamentos subsequentes.
A
primeira coisa que desejo afirmar é que não me revejo como vítima. Vejo-me como um combatente
que lutou e que, inspirado pelo sentimento patriótico, partilhei o êxito da libertação da nossa Pátria.
O meu envolvimento inicial com a Resistência foi através do movimento clandestino. Mais tarde, também
estive envolvido na preparação da manifestação junto ao Hotel Turismo, em Lecidere, durante a visita de
John Monjo, embaixador dos Estados Unidos de América.
Quando recebemos a informação de que o parlamento português planeava visitar Timor-Leste em Outubro
ou Novembro de 1991, os membros da frente clandestina organizaram uma manifestação pacífica para
saudar a delegação. Contudo, os serviços de informação indonésios eram poderosos e tudo fizeram para
intimidar e cercear a acção da Resistência. Exemplo disso é o assassinato de Sebastião da Costa Gomes
na igreja de Motael, no dia 28 de Outubro de 1991.
No entanto, a intimidação e mesmo o assassinato de Sebastião Gomes não nos intimidaram. A nossa
determinação em continuar a luta era inabalável. Duas semanas após o assassinato de Sebastião Gomes
decidimos realizar uma manifestação pacífica. No dia 12 de Novembro de 1991 assistimos à missa na
igreja de Motael e partimos em procissão em direcção ao cemitério de Santa Cruz. A minha tarefa era
fotografar a manifestação.
Tínhamos acordado que a manifestação deveria ser pacífica pelo que antes da partida da igreja de Motael
para Santa Cruz, todos os participantes foram alinhados e eu revistei-os para evitar que alguém levasse
armas ou objectos cortantes. Caminhámos em direcção a Santa Cruz enquanto rezávamos o terço.
Quando a multidão passou frente ao Banco Summa, mais tarde as instalações do supermercado Hello
Mister, elementos estranhos à manifestação juntaram-se à procissão e tentaram provocar distúrbios.
Esfaquearam um militar, o major Girham, e apedrejaram o banco partindo janelas. Junto ao antigo
mercado, repetiu-se a situação e aumentou a tensão entre a polícia e a multidão. Contudo, a procissão
manteve-se pacífica e não houve violência que provocasse sangue. A multidão continuou a dirigir-se a
Santa Cruz onde muitas pessoas já se encontravam reunidas junto cemitério e ao longo das ruas
circundantes.
Como estava concentrado em fotografar a manifestação, não me apercebi que tropas das ABRI se
posicionavam no cemitério dos Mártires Indonésios frente ao cemitério de Santa Cruz. Quando a multidão
se concentrou no cemitério, grupos de jovens treparam os muros, desfraldaram panos e começaram a
discursar. Ouviram-se os primeiros tiros. O Chico Binaraga tombou.
Muitos foram mortos
no cemitério mas muitos mais
foram mortos nas zonas próximas
do cemitério quando fugiam
ou ao serem encontrados
nos seus esconderijos,
em casas e noutros locais,
e assassinados.
As pessoas que se encontravam no cemitério entraram em pânico. O terreno ficou rapidamente coberto de
corpos. Para entrar no cemitério tive de passar por cima de inúmeros pessoas que haviam tombado junto
da entrada.
Quando entrei no cemitério as armas ainda disparavam e assim continuaram por cerca de dez minutos. Já
dentro do cemitério, procurei um local para me esconder. Foi nessa altura que entraram os militares de
rompante, espancaram as vítimas com espingardas e pontapearam-nas.
Muitos foram mortos no cemitério mas muitos mais foram mortos nas zonas próximas do cemitério quando
fugiam ou ao serem encontrados nos seus esconderijos, em casas e noutros locais, e assassinados.
Os militares encontraram-me, espancaram-me e feriram-me numa orelha. Pouco depois, um polícia cortoua completamente. Enquanto me espancaram ouvi um militar gritar; “Não o matem, o comandante ainda
precisa dele”.
Arrastaram-me do cemitério até um carro. Ao entrar no carro vi um camião que transportava muitas vítimas.
Nessa altura, a minha visão já não estava muito nítida, mas creio que deviam estar cerca de 50 a 60
pessoas naquele camião. Conforme me afastava do cemitério, o sangue escorria com maior intensidade
sobre o meu olho e pelo meu corpo abaixo.
Como o meu corpo estava coberto de sangue, atiraram-me para dentro de um camião cheio de cadáveres.
Quando o camião iniciou a sua marcha apercebi-me que uma pessoa ainda estava viva. Tentou levantar-se
e pediu água aos guardas. Em vez de lhe dar água, o soldado que comandava o grupo golpeou-lhe a
garganta com uma baioneta. Isto aconteceu mesmo à minha frente. Sempre que o guarda reparava num
dos corpos a mover-se, batia-lhe com a arma até ficar inerte.
Quando chegámos ao hospital, já se encontravam inúmeras vítimas a serem tratadas e outros já mortos. Vi,
pelo menos, 300 vítimas, espalhadas pelo chão do hospital. Nalguns locais, o chão estava coberto sangue
com cerca de três centímetros de profundidade. Mantiveram-me no hospital durante nove dias. Depois
fiquei detido na Polwil, em Comoro, durante um mês.
Em Fevereiro de 1992 fui transferido para Lospalos. Inicialmente era prisioneiro do batalhão 511 da Kostrad
e mais tarde, do batalhão Linud. De Lospalos fui para Bali, convocado a comparecer em tribunal para um
julgamento. Terminado o julgamento, permaneci detido em Lospalos até à minha libertação em 1993.
Helen Todd, Mãe de Kamal Bamardhaj
Santa Cruz, Díli, 1991
Helen Todd depôs na sua capacidade de mãe de Kamal Bamardhaj, jovem estudante da Malásia morto no
dia do Massacre de Santa Cruz. Apresentou detalhes sobre as razões que motivaram a ida de Kamal a
Timor em Novembro de 1991, o que aconteceu a Kamal no dia 12 de Novembro e sobre as mentiras e a
forma como foi encoberta a sua morte. Afirmou ter em sua posse um documento das ABRI onde são
nomeados todos os que mataram o seu filho.
Helen Todd, cidadã da Nova Zelândia, trabalha desde 2001 em Timor como directora de uma instituição
financeira de microcrédito, a Morris Rasik, que presta assistência financeira prioritariamente a mulheres
pobres de comunidades rurais. Helen Todd declarou que chegara o momento de partilhar os seus
sentimentos com os sobreviventes timorenses e as famílias das restantes vítimas.
P
ermitam-me que as minhas palavras iniciais visem clarificar a concepção errónea que subsiste em
torno do motivo da presença do meu filho em Timor, em 1991. Muitos acreditam, erradamente, que Kamal
era um jornalista da Nova Zelândia. Kamal era um estudante, nascido e criado na Malásia. Ele era
muçulmano. À data do massacre, frequentava o segundo ano da universidade na Austrália. Quando foi
estudar para a Austrália, ficou chocado ao aperceber-se do que se passava em Timor. Na vizinha Malásia,
nunca ouvira falar de Timor Leste.
A primeira visita de Kamal a Timor foi em 1990, altura em que criou amizade com membros do movimento
estudantil e com uma família de Baucau. Sentiu-se horrorizado com o que viu e ouviu em Timor em 1990.
Ao regressar à Austrália, aderiu a um grupo de activistas designado por AKSI. Este grupo trabalhava a
favor de Timor e do movimento democrático na Indonésia. Também esteve envolvido na campanha por
uma solução negociada, iniciada pelo Presidente Xanana. Encontrou-se com José Ramos-Horta.
Em 1991, existiam elevadas expectativas em torno da visita da delegação parlamentar portuguesa. Um
objectivo central era conseguir reunir clandestinamente com Xanana Gusmão. Kamal já estava a preparar o
seu regresso a Timor e concordou em antecipar a visita quando José Ramos-Horta lhe pediu que fosse
portador de documentos para essa reunião.
Na altura do massacre, Kamal estava em Timor a trabalhar como intérprete de Bob Muntz da Oxfam
Austrália.
Kamal não foi baleado em Santa Cruz. Depois do tiroteio no cemitério, ele caminhou ao longo da estrada do
antigo mercado. Como sabem, um agente da Intel fora apunhalado pouco antes. A unidade das ABRI que o
levara ao hospital estava a regressar, viu Kamal a andar sozinho e disparou sobre ele.
Um membro da Cruz Vermelha Internacional tentou levar Kamal, que sangrava abundantemente, ao
hospital civil, mas recusaram-lhe entrada e obrigaram-no a dirigir-se ao hospital militar, fazendo-o perder
um tempo precioso. Kamal morreu da hemorragia pouco depois de ter sido admitido no hospital,.
Tenho cópia de um relatório confidencial das ABRI sobre a morte de Kamal. Tenho o nome de todos os
membros dessa unidade e do seu comandante. Não desejo divulgar os nomes hoje, mas entregarei este
relatório à CAVR.
O governo da Nova Zelândia foi
muito cooperante inicialmente,
quando se tratou de resgatar o corpo,
mas uma vez concluída essa tarefa,
retomou a postura habitual
de não desagradar a Indonésia.
A morte de Kamal foi uma pequena parte na luta de milhares e milhares de pessoas. Algo pequeno, mas
como facilmente compreenderão, algo de enorme importância para mim.
Foram muitas as mentiras contadas depois da morte de Kamal. Max Stahl expôs detalhadamente as
mentiras contadas após o Massacre de Santa Cruz. Posso testemunhar que aquilo que ele disse é verídico.
Durante três dias, os indonésios negaram que tivesse sido morto qualquer estrangeiro. Mais tarde, um
relatório oficial indonésio indicou que Kamal fora morto durante um fogo cruzado. Depois foi sugerido que
devia ser um turista estúpido, e que fora morto porque não deveria estar naquele local.
Os Comissários Nacionais questionaram Helen Todd relativamente à posição tomada pelos governos da
Nova Zelândia e da Malásia relativamente à morte do seu filho Kamal:
O governo da Nova Zelândia foi muito cooperante inicialmente, quando se tratou de resgatar o corpo, mas
uma vez concluída essa tarefa, retomou a postura habitual de não desagradar a Indonésia. A Malásia não
fez praticamente qualquer referência ao homicídio. O principal jornal de língua inglesa referiu-se ao
acontecimento, publicando um editorial onde se escrevia, em termos genéricos, que os jovens não
deveriam imiscuir-se na política, e que, ao fazerem-no, arranjavam problemas.
A Cruz Vermelha em Díli foi uma grande ajuda. Kamal foi inicialmente enterrado numa sepultura não
identificada em Hera. Foi apenas graças aos esforços do representante da Cruz Vermelha, Anton Manti,
que conseguimos exumar o seu corpo e sepultá-lo na Malásia.
Desejo terminar recordando um pequeno gesto que me foi recentemente dirigido.
Este ano, por ocasião do aniversário, fui ao local onde Kamal foi abatido. Apareceram pessoas que me
disseram que o local ficava um pouco mais adiante, na estrada. Mais tarde nesse dia, voltei ao local.
Alguém viera entretanto e colocara flores e velas no local. Estou-lhe muito agradecida.
Hermínia Mendes
Vila de Liquiça, distrito de Liquiça, Abril de 1999
Hermínia Mendes testemunhou sobre o Massacre da Igreja de Liquiça no dia 6 de Abril de 1999. Contou
sobre a sua fuga para a igreja na tentativa de se refugiar dos ataques da milícia Besi Merah que viera do
subdistrito de Maubara para Liquiça. Descreveu o sentimento de terror da comunidade que permaneceu na
igreja durante dois dias a rezar enquanto os membros da milícia lançavam insultos a partir do exterior.
Afirmou que o massacre ocorreu no dia 6 de Abril depois do disparo de tiros pela polícia como sinal para o
início do ataque pela força conjugada dos militares e polícia indonésios e a milícia Besi Merah. Hermínia
Mendes foi testemunha ocular da morte do seu irmão e dos seus primos assassinados à catanada dentro
da igreja. Contou que, mais tarde, foi levada para a residência do administrador distrital onde as mortes
continuaram.
N
a manhã do dia 6 de Abril de 1999, regressava do gabinete da Sospol para minha casa quando
encontrei o meu amigo Lukas, da Ilha das Flores, Indonésia. Apelou para que fosse rapidamente para casa,
dizendo: “Ouvi dizer que a milícia Besi Merah está na fronteira de Liquiça e Maubara”.
Decidi não ir para casa. Optei por ir à reunião sobre a festa da juventude em Manatuto, no âmbito das
comemorações da Páscoa. Encontrei-me com as minhas amigas irmã Jacinta, Suzi e Ermelita. Não
e
tínhamos a certeza se deveríamos participar naquela festa pelo que decidimos ir pedir a opinião do P
e
Rafael. Enquanto estávamos reunidas com o P Rafael, apareceu o chefe de suco, Jacinto da Costa, que
nos contou que um jovem fora morto e outros jovens ficaram feridos num ataque perpetrado pelas milícias e
os militares.
e
Despedimo-nos do P Rafael ao início da tarde. Ao chegar a casa decide ir ver a Aquilina para obter mais
informação. A Aquilina vive junto ao sinal “Benvindo” que se encontra à entrada de Liquiça. Mal cheguei a
sua casa ouvi mais disparos provenientes de Pukalaran. Fui directa para casa e descobri que a minha
família já fugira para a igreja de Liquiça. Fui ter com eles. Estavam muitas pessoas refugiadas na igreja,
incluindo população de Dotasi, de Guilu, de Leopa, de Caimeo de Cima e de Caimeo de Baixo.
À tarde, a milícia e os militares pilharam e incendiaram as residências do administrador subdistrital e do
Agostinho.
Permanecemos dois dias na igreja sempre a rezar. Não conseguíamos dormir de noite e no exterior da
igreja as milícias assediavam-nos com ameaças e linguagem obscena.
Às nove horas da manhã do dia 6 de Abril, Eurico Guterres e os seus homens dirigiram-se à sacristia da
e
e
igreja de Liquiça para falar com o P Rafael e o P José. Ouvimos dizer que, nessa reunião, Eurico Guterres
informou que iria apresentar um pedido ao administrador distrital, Leoneto Martins. Eurico afirmou que se as
exigências das milícias fossem satisfeitas permitiria que os cidadãos regressassem a casa em segurança.
No entanto, a reunião com Leoneto não resultou nas garantias pretendidas.
A Brimob apareceu
como que para salvar a população.
Na verdade, foi a Brimob que
deu início ao tiroteio. Dispararam
para o ar. Era o sinal
para as milícias entrarem
na igreja e começarem a disparar
sobre as pessoas.
Por volta da uma da tarde, foi iniciado o ataque pela milícia Besi Merah, em conjunto com a polícia e os
militares. A Brimob apareceu como que para salvar a população. Na verdade, foi a Brimob que deu início ao
tiroteio. Dispararam para o ar. Era o sinal para as milícias entrarem na igreja e começarem a disparar sobre
as pessoas. Com o rosto coberto por máscaras, os membros da milícia iniciaram o ataque com machados,
espadas, facas, petardos e pistolas. A polícia disparou sobre o meu irmão Félix e os membros da milícia
golpearam os meus primos Domingos, Emílio e um bebé de 8 meses de idade.
Como a Brimob e os militares estavam a massacrar as pessoas que se haviam escondido no escritório do
padre, todos começaram a fugir da igreja em busca de esconderijo e protecção. Fugi com a esposa do
Emílio e dirigimo-nos ao convento. Ao fugir, vi que o Miguel ainda estava vivo mas o Loidahar e outra
pessoa de Maubara jaziam mortos perto do sino da igreja.
A milícia, a polícia e os militares haviam preparado um camião para transportar as pessoas para casa do
administrador distrital. Quando chegámos, a milícia continuava a sua acção de espancamento e
esfaqueamento de civis. Morreram várias pessoas na residência do administrador distrital. Felizmente,
estava lá uma enfermeira que prestou assistência aos feridos. Cerca de três horas mais tarde, A (nome
retido), responsável por uma divisão da milícia em Maubara, fez um anúncio à população: “Vão para casa e
icem a bandeira da Indonésia. Atem uma bandeira no vosso pulso direito como sinal de que estamos todos
dispostos a morrer por esta bandeira”.
Uma semana após o massacre, Pedro, um representante militar do Sector Leste, falou-nos sobre a
violência dos militares e das milícias nesse dia. Disse que os militares do Kodim também estiveram
envolvidos. Ouvi dizer que os cadáveres foram levados de camião mas desconheço para onde os levaram.
FOTOS p. 56: EM CIMA: Clínica de Motael, Díli. Vítimas procuram assistência após um ataque perpetrado pelas milícias,
1999.
À ESQUERDA: Aniversário do Massacre na Igreja de Liquiça perpetrado a 6 de Abril de 1999.
Depoimentos
de
Peritos
Max Stahl
Max Stahl é um conhecido operador de imagem e cineasta que já trabalhou em zonas de conflito e em
regiões que vivem situações de violação de direitos humanos. Max Stahl foi o operador de imagem que
captou, em 1991, as imagens do Massacre de Santa Cruz transmitidas em todo o mundo e consideradas
responsáveis pela mudança ocorrida na opinião pública internacional relativamente a Timor-Leste.
Regressou a Timor-Leste em 1993 para entrevistar sobreviventes do massacre.
No segundo dia da Audiência, Max Stahl prestou um depoimento detalhado que foi complementado por
segmentos dos seus filmes, reveladores do que viu a 12 de Novembro e dos resultados da pesquisa e
investigação profundas que realizou nos anos subsequentes ao massacre. A partir destas duas fontes de
informação, Max Stahl também partilhou com a Comissão a sua opinião relativamente a algumas causas do
massacre e ao padrão das reacções indonésia e internacional.
M
ax Stahl iniciou o seu depoimento afirmando: “12 de Novembro é o dia da juventude timorense. A
juventude timorense fez um enorme sacrifício. Podemos afirmar que a independência timorense foi a flor
que desabrochou desse sacrifício”.
Falou da indiferença internacional perante a situação em Timor-Leste anterior ao Massacre de Santa Cruz e
reconheceu a presença de outros internacionais em Santa Cruz, em 1991, bem como os esforços
envidados por outros no sentido de mudar a posição que os respectivos governos mantinham há longos
anos relativamente a Timor-Leste.
“Quando viemos a Timor-Leste em 1991, filmar para a televisão britânica, Timor-Leste não era notícia. Em
Inglaterra ninguém se interessava por Timor-Leste. Falo enquanto testemunha estrangeira. Estiveram
presentes em Santa Cruz outras testemunhas estrangeiras. Russel Anderson encontra-se hoje aqui
connosco, Helen Todd, cujo filho foi morto nesse dia e várias outras pessoas que também estiverem
presentes. Muitos estrangeiros tentaram advertir os respectivos governos sobre a situação em Timor-Leste.
Algumas das pessoas envolvidas durante anos nessas campanhas encontram-se hoje aqui presentes”.
Max Stahl exibiu dois segmentos do filme em vídeo. No primeiro, incluíam-se as imagens relativas ao dia 12
de Novembro de 1991. Estas imagens incluíam as que se tornaram conhecidas em todo o mundo na
década de 90: jovens a marchar animadamente pelas ruas e a gritar “Viva!”; um rapaz de cerca de dez
anos de idade a fazer o sinal “V” com os dedos ao passar junto da câmara; jovens a correrem em pânico
para dentro do cemitério, saltando sobre os corpos dos que tombaram enquanto se ouve um tiroteio
ininterrupto; um jovem a morrer nos braços de um amigo, encostados a uma campa; soldados indonésios
junto ao cemitério a dar e a receber calmamente as ordens para cercar os muros circundantes, um deles a
sinalizar ao operador de imagem para que se deslocasse para junto dele.
Em resposta a uma pergunta formulada pelo presidente da CAVR, Aniceto Guterres Lopes, Max Stahl
descreveu a marcha da multidão de jovens que partia da igreja de Motael:
“Algumas pessoas juntaram-se à multidão e acompanharam todo o percurso desde Motael, creio que cerca
de mil a mil e quinhentas pessoas...algumas juntavam-se, outras deixavam o grupo. A maioria das
estimativas afirma que estariam cerca de três mil pessoas no cemitério - dentro do cemitério, na rua em
frente e outras que iam chegando.
“Nem todos foram mortos no cemitério. A matança continuou por algumas horas, talvez dias. A minha
estimativa do número de mortes não se baseia apenas no que vi. Recorri aos números apresentados pela
Paz É Possível em Timor Leste, que verificaram os dados por duas vezes. Durante sete anos, a Indonésia
foi confrontada na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas com uma lista de desaparecidos...
tanto quanto sei, nenhum foi encontrado.
“Quando falo de 500 mortos...trata-se de uma estimativa do número total de mortes...a matança prosseguiu
durante dias...as pessoas eram procuradas como se tratasse de uma caçada. Falamos de um massacre
como se tivessem disparado sobre uma multidão. Também o foi. Mas a maioria morreu depois. Foram
mortos por soldados que se movimentaram entre a multidão, esfaquearam e mataram. Crianças de 15 e 16
anos de idade. Um jovem que estava junto a mim foi esfaqueado cinco ou seis vezes – antes nem sequer
fora ferido”.
Max Stahl afirmou que o ataque à manifestação perpetrado pelos militares indonésios foi uma operação
bem organizada e coordenada. Referiu a existência de uma estratégia de violência, coordenada pelos
oficiais, serenamente executada após o tiroteio inicial. Refutou o argumento - apresentado em 1991 para
justificar o massacre dos estudantes pelos soldados indonésios - no sentido de que estavam enfurecidos e
reagiram violentamente devido à morte de um operacional dos serviços de informação que acompanhava a
marcha e fora esfaqueado.
“Era claro que os soldados não estavam descontrolados. Marchavam sincronizadamente. Não agiam por
sua própria iniciativa.
“Se houve resposta à morte do major, esta não foi dada pelos soldados mas sim pelos oficiais. Era visível
que os soldados receberam ordens para cercar o cemitério. O cerco do cemitério foi executado de forma
muito organizada...gestão do trânsito, movimentação dos soldados em torno do cemitério...era claro que
rondavam para apanhar todos os que se encontravam no cemitério e as pessoas que tentavam abater a tiro
eram os que corriam em fuga.
“Foram necessários cerca de 40 minutos para os soldados entrarem no cemitério. Foi por isso que dispus
de quase 40 minutos para filmar. Visionaram as imagens das duas cassetes que enterrei junto a uma
campa. Numa terceira cassete filmei oficiais indonésios, com a patente de coronel ou superior, a entrarem
no cemitério e a inspeccionar. Revelavam calma, como se estivessem a inspeccionar a guarda do Palácio
de Buckingham. Não demonstravam pânico. Se houve resposta, esta foi dada pelos oficiais e não pelos
escalões inferiores”.
Filmei oficiais indonésios
com a patente de coronel ou superior,
a entrarem no cemitério
e a inspeccionar.
Revelavam calma, como
se estivessem a inspeccionar
a guarda do Palácio de Buckingham.
Max Stahl deu ênfase à tese de que muitas das mortes ocorreram após o tiroteio inicial e que foram
executadas de forma calculada:
“Enquanto estive em Santa Cruz vi jovens com os polegares atados atrás das costas, sem camisa...um
soldado timorense, membro do TNI, contou ao bispo Belo que estivera envolvido na execução a tiro de
jovens que foram amarrados dentro de sacas e atirados a um fosso. Estes jovens imploravam por
misericórdia...é muito provável que alguns desses jovens desaparecidos, que tinham os polegares atados
atrás das costas tenham sido mortos a tiro e atirados ao fosso...um sobrevivente, pelo menos, revelou que
o atar de polegares é um sinal militar para indicar que essa pessoa será executada...”
Mais tarde, Max Stahl sublinhou que viu entre 50 a 60 jovens com os polegares atados.
Max Stahl exibiu imagens de um documentário que realizou após uma viagem clandestina a Timor em 1993
com o objectivo de investigar os alegados assassinatos no seguimento do massacre, em particular no
hospital militar de Díli. As imagens revelam entrevistas com sobreviventes timorenses do massacre, a falar
em salas escuras e com o rosto escondido, e uma entrevista com um sobrevivente que fugiu para Portugal
pelo que pode falar mais abertamente.
“Em 1993, eu...entrevistei várias pessoas que apareciam no meu filme (de 1991). Contaram-me que não só
foram esfaqueados e queimados como foram envenenados no hospital. De acordo com a informação
recolhida, o veneno foi administrado por João Dias, funcionário do hospital que estava de serviço nesse dia,
e que eu mandei analisar num laboratório em Inglaterra. Trata-se de formaldeído, utilizado para matar
insectos e para desinfecção, um medicamento que não pode ter sido administrado acidentalmente por um
funcionário hospitalar. Segundo a informação recolhida, foi necessária a assinatura de um médico para
requisitar uma tão grande quantidade de formaldeído de outro departamento... (e, mais tarde)...estou em
crer que o médico de serviço teve de colocar a sua assinatura para obter os comprimidos”.
No segundo filme, um jovem descreve o cenário no hospital após o massacre:
“No hospital, viu-os a desembaraçarem-se os corpos, pessoas ainda vivas, como se fossem animais.
Depois conduziram os camiões sobre os corpos”.
Outro sobrevivente contou:
“Na morgue, alguns ainda estavam vivos, a mexer. Entraram dois soldados e um carregava uma pedra
enorme nas mãos. Aquele que agarrava a pedra aferia os corpos. Se ainda estavam vivos, batia-lhes com a
pedra até morrerem. Um jovem ergueu-se e disse ‘Ainda estou vivo, não me batam...’”
Max Stahl referiu-se à reacção indonésia e internacional relativamente ao massacre. Criticou o governo
australiano e o então ministro dos negócios estrangeiros, Gareth Evans, afirmando que as suas mentiras
alicerçaram a resposta internacional generalizada dada em relação ao massacre e permitiram que os
militares indonésios conduzissem a sua própria investigação interna.
Contaram-me que
não só foram
esfaqueados e queimados
como foram envenenados
no hospital.
Afirmou que o general indonésio nomeado para dirigir a investigação era um dos militares mais implacáveis,
responsável por vários massacres ocorridos dez anos antes na região de Lospalos, na região oriental de
Timor-Leste.
“Os políticos mentiram aos jornalistas. Gareth Evans, o então ministro dos negócios estrangeiros da
Austrália, disse-nos que se tratara de uma acção conduzida por um pequeno número de soldados
indonésios. Esta mensagem foi transmitida por outros governos e foi divulgado que os indonésios iriam
proceder a uma investigação e processar judicialmente os responsáveis. Era mentira, não havia nada de
verdadeiro nestas declarações, nada mesmo. Se Gareth Evans não o sabia então deveria ter despedido
toda a sua rede de serviços de informação.
“O que aconteceu é que os indonésios envolveram o general Theo Syafei e outros que haviam estado em
Timor dez anos antes. A população de Lospalos sabe que Theo Syafei foi responsável não apenas por um
mas por vários massacres. Foi-nos dito por pessoas...de Lospalos que os soldados do general Theo Syafei
mataram na sua presença...e que, em Matebian, viu os seus próprios soldados matarem um homem e uma
mulher e a comer os corpos. Foi este o homem nomeado para levar à justiça os perpetradores do massacre
de Santa Cruz”.
A Comissário Nacional Isabel Guterres pediu a Max Stahl para emitir a sua opinião sobre se o massacre
fora, de alguma forma, uma “anomalia”, expressão utilizada pelo então ministro dos negócios estrangeiros
australiano. Na sua resposta, Max Stahl reiterou o seu argumento principal:
“É óbvio que não foi a acção de um grupo de soldados, mas sim dos comandantes, da polícia, dos
funcionários do hospital – de todo o Estado indonésio...(mais tarde)...quando as mortes ocorrem do modo
descrito por Simplísio, nos hospitais, são necessárias várias pessoas – é necessário o apoio de todo o
sistema do Estado para o fazer”.
É óbvio que não foi
a acção de um grupo de soldados,
mas sim dos comandantes,
da polícia, dos funcionários do hospital – de todo
o Estado indonésio...
são necessárias várias pessoas
– é necessário o apoio
de todo o sistema do Estado para o fazer.
Professor Geoffrey Robinson
Actualmente o Professor Geoffrey Robinson lecciona na Universidade de Califórnia, Los Angeles (UCLA),
EUA. De 1989 a 1995, foi investigador principal sobre o sudeste asiático na Amnistia Internacional, em
Londres, centrando o seu interesse científico na situação dos direitos humanos na Indonésia e em TimorLeste. Em 1999, o professor Robinson integrou a equipa da Unidade de Assuntos Políticos da UNAMET,
em Timor-Leste. Tem diversos livros e artigos publicados sobre a violência política e os direitos humanos
na Indonésia e em Timor-Leste.
O depoimento do professor Robinson incidiu sobre os padrões, as causas e os factores contribuintes para
os homicídios e os massacres em Timor-Leste no período entre 1975 e 1999. Atribuiu ênfase a quatro
pontos principais.
1. Homicídios em massa enquanto componente de uma política generalizada de
terror e de vingança sistemáticos
O
primeiro ponto sublinhado pelo professor Robinson incide na afirmação de que as dezenas de
massacres e os múltiplos homicídios ocorridos em Timor-Leste entre 1975 e 1999 não constituíram
acontecimentos aleatórios ou acções perpetradas por “elementos maliciosos”. Afirmou que os depoimentos,
as provas documentais e os padrões recorrentes verificados durante 24 anos apontam claramente para
uma política mais alargada de terror e de vingança sistemáticos, executada com o conhecimento e
aquiescência dos escalões militares e civis mais elevados da Indonésia e, por vezes, sob a sua ordem
directa.
A exemplificar esta afirmação, referiu-se à tipologia e métodos de morte, às vítimas e aos perpetradores e
às variações temporais e no espaço.
1.1 Tipologia e métodos de morte
O professor Robinson listou quarto tipos principais de morte: homicídio sob custódia, em particular no final
dos anos 70 e durante a década de 80 e, novamente, em 1999; bombardeamentos aéreos e navais nas
décadas de 70 e 80; fome e doença devido a deslocações forçadas nos anos 70; e, os homicídios por
esquadrões de morte, tipo Ninja, nos anos 90 e, em particular, em 1999.
Afirmou que os homicídios em massa foram perpetrados com o recurso a armas automáticas,
espancamentos e tortura sob custódia, agressão até à morte com catana e desmembramento do corpo
enquanto tácticas de terror e lançamento de pessoas ao mar a partir de helicópteros. Sublinhou que o papel
desempenhado pelas milícias em 1999 incluía o recurso a catanas e a morte de pessoas por agressão com
catana como prática habitual.
1.2 Vítimas e Perpetradores
O professor Robinson afirmou que a marcação de vítimas como alvo é ainda indício do carácter não
aleatório da perpetração dos homicídios. Mencionou que os principais alvos eram os membros da Fretilin e
seus familiares; aldeões alegadamente em contacto com a Fretilin; alegados “traidores” (isto é, UDT,
Apodeti, Hansip); e, em 1999, todo os pró-independentistas e seus familiares.
Segundo afirmou, os principais perpetradores destes homicídios foram as forças de segurança indonésias.
Sublinhou que, apesar da dificuldade em reconhecer, houve participação de timorenses nessas forças e
houve envolvimento de timorenses nos homicídios. De entre as forças militares indonésias, centrou a sua
atenção sobre os Kopassandha/Kopassus/Nanggala; as unidades regulares do exército, em particular dos
batalhões 744 e 745; e, de entre as forças paramilitares indonésias, referiu-se à Hansip, aos Partidários e
às Milícias. Mencionou ainda a Fretilin e a UDT enquanto perpetradores de homicídios em massa.
Relativamente aos homicídios em massa, afirmou que os perpetradores directos incluíram o Kopassus, o
exército regular e a polícia, bem como 20 grupos de milícias e, em particular, os batalhões 744 e 745.
Acrescentou que a responsabilidade última, individual e de comando, pelos massacres recai claramente
sobre os oficiais militares e alguns dos civis do topo da hierarquia. Sublinhou a responsabilidade detida por,
pelo menos, 40 oficiais de patente superior a tenente-coronel e de 30 civis com funções de, ou superior a,
administrador distrital.
1.3 A questão temporal: momentos de ocorrência de massacres
O professor Robinson afirmou que os homicídios em massa não ocorreram uniformemente ao longo da
ocupação de 24 anos, mas sim “por vagas”. Declarou que, de forma geral, se situaram em torno do período
1975/1984 e em 1999. No primeiro período, as principais vagas ocorreram em 1975, 1978/79, meados de
1980, 1981 e 1983-84. Apesar de o número de massacres ter diminuído no período 1985/1998, sublinhou
que continuaram a ocorrer, referindo o Massacre de Santa Cruz, em 1991, em Díli.
O professor Robinson defendeu que “1999 foi, por ventura, o ano com o pior número de massacres e de
homicídios em massa desde 1975”. Argumentou que esta violência decorreu em três vagas e que “a sua
ocorrência temporal indica que não foi aleatória ou espontânea”. Os períodos foram a fase anterior à
UNAMET, durante a UNAMET e após o acto de votação organizado pela UNAMET. Acrescentou que a
ocorrência temporal dos homicídios em massa em 1999 “foi variável obedecendo aos interesses dos
militares e dos políticos indonésios” e relacionáveis com “a presença ou ausência de acção e de escrutínio
internacionais”.
1.4 Variabilidade geográfica
O professor Robinson afirmou que, tal como a temporalidade, a distribuição geográfica dos massacres não
foi aleatória. Considerou que os massacres concentraram-se em geral em regiões que manifestavam maior
resistência ao domínio indonésio. Afirmou que “inicialmente, foi Díli, Baucau e as regiões de fronteira. De
1977 a 1984 recaiu essencialmente sobre as regiões a Leste onde se concentraram as forças da Fretilin”.
Sublinhou que nos anos 90 “houve maior ocorrência nas regiões ocidentais uma vez que se verificaram
alterações no padrão de resistência”. Considerou que em 1999, houve uma modificação no padrão uma vez
que, antes do referendo, houve maior concentração nas regiões ocidentais que se alastraram,
posteriormente, às regiões a Leste e, mais tarde, novamente às regiões a Ocidente e a Oecússi “enquanto
parte integrante da vingança contra a Resistência”.
1999 foi, por ventura, o ano
com o pior número de massacres
e de homicídios em massa desde 1975.
2. O Regime da Ordem Nova e a lógica dos massacres
O professor Robinson argumentou que os massacres foram facilitados por diversos aspectos do regime e
da sociedade indonésios da Ordem Nova. Entre os principais factores destacou:
• o domínio politico dos militares;
• a obsessão do regime pela estabilidade, a ordem e o anticomunismo;
• a extrema intolerância do regime relativamente à dissensão;
• a mobilização de milícias e de forças paramilitares para lutar contra inimigos internos;
• o recurso deliberado ao terror enquanto estratégia de contra-insurreição, tal como em 1975;
• a ideia de punição colectiva;
• a questão da impunidade;
• a fragilidade da sociedade civil, da comunicação social e das organizações não governamentais devido à
opressão do Estado;
• as posições e acções de comandantes militares específicos.
O professor Robinson sublinhou que existem lições importantes a retirar destes factores para Timor-Leste
independente.
O professor Robinson referiu que 1999 revelou algumas características específicas nos homicídios em
massa que se encontram relacionadas com as mudanças ocorridas no regime e na política indonésios. Em
1999, os militares ainda eram muito poderosos, eram intolerantes relativamente à dissensão e ainda se
encontravam em vigor as Normas de Procedimentos Operacionais. Nunca estivera tanto em jogo desde
1975 e as milícias foram mobilizadas, apoiadas, equipadas e coordenadas pelo TNI.
3. Características especiais da situação em Timor-Leste
O terceiro ponto sublinhado refere algumas características da sociedade e da política timorenses que
facilitaram os massacres. Destacou os seguintes factores:
• alguns timorenses trabalharam e lutaram com o lado indonésio;
• a Fretilin e a UDT cometeram violações, incluindo massacres, que convidaram à vingança;
• a sociedade civil, o sistema político e a comunicação social de Timor-Leste eram extremamente frágeis
devido aos períodos de domínio português e indonésio;
• aparentemente, alguns partidos políticos timorenses aceitaram o conceito de punição colectiva e de morte
sob custódia.
4. Contexto internacional
Por último, o professor Robinson considerou que, de uma forma geral, os massacres e a violência em
massa não poderiam ter ocorrido sem o apoio directo e indirecto de governos estrangeiros fundamentais,
em particular, dos Estados Unidos de América e da Austrália. Ao dispensarem assistência militar e
económica essenciais e ao mentirem e encobrirem sistematicamente a extensão dos homicídios, estes
estados, e muitos outros, foram cúmplices e, por ventura, partilham da responsabilidade pelos mesmos.
...de uma forma geral,
os massacres e a violência em massa
não poderiam ter ocorrido sem
o apoio directo e indirecto
de governos estrangeiros fundamentais,
em particular,
dos Estados Unidos de América e da Austrália.
Sublinhou ainda um factor contribuinte para o fracasso do sistema das Nações Unidas, no contexto da
Guerra Fria, à data e após a invasão. Afirmou que a comunicação social internacional, a Igreja e as ONG
eram fracas no período inicial ainda que, posteriormente, tenham intensificado o seu trabalho sobre os
direitos humanos e Timor-Leste. Referiu que a meados dos anos 80, o governo da Indonésia começou a
reagir às críticas internacionais sobre os homicídios em massa e alterou a sua táctica adoptando um
processo de desaparecimentos, detenção e julgamentos.
O professor Robinson afirmou que em 1999 “o padrão dos homicídios também foi influenciado pelo
contexto internacional”. Considerou que “apesar da presença sem precedentes das Nações Unidas, da
comunicação social e de ONG, a posição ambivalente de alguns estados permitiu a assinatura de um
acordo de segurança deficiente” para a realização do acto de votação organizado pela UNAMET. Sublinhou
que, em última instância, a pressão exercida pelas ONG e pela comunicação social internacionais, após a
violência terrível ocorrida após a votação, contribuiu para que estados fundamentais alterassem a sua
posição e concordassem em contribuir com tropas e para pôr fim aos massacres.
O depoimento do professor Robinson foi ouvido por um público numeroso e, uma vez terminado, os
Comissários Nacionais apresentaram alguns pedidos de clarificação após o que foi aberto o debate.
Recomendações
O professor Robinson formulou recomendações, enquadrando-as em três categorias.
Ao governo e ao povo de Timor-Leste, sublinhou que, ao compreenderem as lições dos anos de domínio
indonésio, terão a oportunidade de evitar criar um estado que permita o sofrimento no futuro.
Recomendou especificamente:
• Prevenir que os militares adquiram poder político;
• No interesse da segurança, evitar a formação de guardas-civis;
• Rejeitar o conceito de justiça colectiva;
• Defender os direitos humanos, ainda que possa dificultar a governação;
• Assegurar que todos, mesmo os poderosos, compareçam perante a justiça;
• Não procurar atingir a reconciliação à custa da justiça.
O professor Robinson recomendou às Nações Unidas, à comunidade internacional e ao Governo de TimorLeste:
• Fazer tudo o que estiver ao seu alcance para apoiar o trabalho da CAVR e da Unidade de Crimes Graves
da Procuradoria-Geral, com o objectivo de “determinar a verdade e assegurar a justiça há tanto negadas ao
povo de Timor-Leste”, e
• Prestar todo o seu apoio à constituição de um tribunal penal internacional para investigar e julgar os
responsáveis pelos crimes contra a humanidade cometidos em Timor-Leste desde 1975.
Apesar da presença sem precedentes das Nações Unidas,
da comunicação social e de ONG,
a posição ambivalente de alguns estados
permitiu a assinatura
de um acordo de segurança deficiente.
Ao terminar, o professor Robinson sublinhou a importância de objectar a questão da impunidade – para
Timor-Leste, para a Indonésia e para o todo da comunidade internacional. Sugeriu à CAVR que não se
centrasse exclusivamente na decisão sobre a existência de genocídio em Timor-Leste ou na determinação
do número exacto de pessoas que morreram durante o período de 24 anos. Afirmou:
“A violência em Timor-Leste foi assombrosa e foram cometidos crimes contra a humanidade sujeitos a
acção penal por um tribunal internacional”.
“The violence in Timor-Leste was monstrous and there were crimes against humanity, and these can be
prosecuted in an international tribunal.”
Relativamente à questão de objectar a impunidade, sublinhou a importância de investigar todos os
responsáveis pelos crimes mais graves cometidos de 1975 a 1999, e não centrar a atenção exclusivamente
sobre 1999. Referiu-se à enorme quantidade de provas, dos documentos internos militares e das milícias
aos depoimentos e relatos prestados neste trabalho.
“[O tribunal internacional] é um sonho, tal como a independência era um sonho? Muitos dir-vos-ão que não
é possível. Tal como a independência, é possível acontecer. Nos anos 80, os diplomatas afirmavam que a
independência nunca seria atingida e que os defensores dos direitos humanos apenas prolongavam o
sofrimento do povo timorense. Hoje em dia, em Washington, aquilo que se afirma sobre o tribunal
internacional é exactamente o mesmo que era dito sobre a independência”.
[O tribunal internacional] é
um sonho,
tal como a independência era um sonho?
Muitos dir-vos-ão
que não é possível. Tal como a independência,
é possível acontecer.
Conclusão
Reflexão Final
Pe Jovito Rêgo de Jesus Araújo,
Vice-presidente da CAVR
E
stimados Amigos, esta Audiência tem e deve terminar. Mas a história dos massacres permanecerá viva
e firme na vida futura dos timorenses.
Abrimos esta enorme ferida com boas intenções. Não foi para gracejar, para destruir, para dividir, para
separar ou para causar danos. Foi para sarar, para aprender a viver e para aceitar com dignidade e
respeito, com generosidade e coragem, para ensinar e educar todo o povo de Timor-Leste os meios e
métodos para prevenir a ocorrência de tais atrocidades no futuro.
Nestes três dias, 15 amigos prestaram, com humildade e coragem, depoimentos sobre a sua história de
sofrimento, o seu testemunho e encontro com a morte.
São pesadelos que persistiram nas suas mentes e corações, nas suas almas e nos seus corpos por muitos
anos. Para avançarmos, estas histórias de sofrimento e de morte, de indivíduos e de famílias devem ser
reconhecidas como sendo a história de todos, a história do povo de Timor-Leste.
Ao escutar estes relatos podemos aprender uma lição importante. A expressão “Vida ou Morte,
Independência” contém palavras sagradas. Estas palavras foram escritas com o corpo e o sangue de cada
um de nós e na vida do nosso povo como um todo, em particular, na vida dos nossos amigos que no
decurso dos últimos três dias partilharam generosamente a sua vivência com todos nós.
Não devemos esquecer as últimas palavras pronunciadas pelos três amigos que foram assassinados pelas
baionetas das tropas indonésias: “Matem-me mas nunca matarão a minha independência!” Estas palavras
devem guiar todos quantos usufruímos da independência que foi escrita com o sangue e conseguida à
custa das suas vidas.
Esta guerra desigual exigiu a participação e a colaboração de todo o povo de Timor, das crianças, dos
jovens, dos adultos e dos idosos. Todo o povo de Timor sofreu as consequências das estratégias militares
indonésias de isolamento e fome.
Também ouvimos relatos de timorenses a matarem-se devido a diferenças de opinião política, a
considerarem os seus irmãos e irmãs inimigos e traidores. Da mesma forma, os que lutavam na Resistência
clandestina sofreram ameaças, perseguição, tortura e morte. Os massacres ocorreram no passado mas a
imagem dessas atrocidades está impressa nos nossos corações e permanece um pesadelo que ainda hoje
invade as nossas almas de medo.
Estimados Amigos, durante estes três dias testemunhámos a coragem, o espírito de perdão e o empenho
na reconciliação dos depoentes. Todos ouvimos o Senhor Amado, professor, sintetizar a sua esperança
para o povo de Timor, ao afirmar: “Ao avançar, não se esqueçam de olhar para trás. Não sigam os nossos
passos”.
A grande questão a que devemos responder é: ”Como é que podemos assegurar que não haja repetição
dessas atrocidades?” Algumas testemunhas, incluindo o Senhor Simplísio e o professor Robinson,
apresentaram recomendação idêntica ao governo: devemos aprender com a violência do passado para não
seguirmos o exemplo dos militares indonésios.
Como é que podemos pôr fim à violência? Em primeiro lugar, não podemos afirmar que tais acontecimentos
não se venham a repetir. Devemos prestar atenção redobrada para que o passado não se repita, porque
em muitas nações viveu-se a recorrência repetida de acontecimentos.
Por isso, não devemos permitir que as nossas instituições, o governo, o Parlamento, as forças armadas, a
polícia e os tribunais, sigam o caminho do passado. Se seguirem por essa via, a situação tornar-se-á ainda
pior do que no passado e não seremos capaz de nos libertarmos dela. Perderemos a nossa protecção e
segurança e as nossas vidas em unidade e em paz.
Nos últimos três dias, as testemunhas deram-nos bons conselhos. Dos pensamentos que expuseram,
podemos reunir cinco pontos a apresentar ao governo:
• As forças armadas devem ser inteiramente distintas dos poderes políticos e não devem voltar a ser
utilizadas em oposição a acções civis pacíficas.
• Não devemos voltar a aceitar ou tolerar a formação de grupos de segurança civil pelo governo porque tais
grupos podem ser facilmente manipulados para servir interesses políticos.
• Direitos humanos devem ser uma palavra de ordem do governo. O governo, as forças armadas e a polícia
devem respeitar os direitos humanos. Devem respeitar os direitos cívicos dos cidadãos mesmo quando
estes criam dificuldades aos dirigentes.
• A justiça e a lei devem ser aplicadas equitativamente a todas as pessoas. Não deve existir diferença de
tratamento para os que detêm o poder e os que não o detêm. As sanções só devem ser aplicáveis a quem
não cumpriu a legislação adoptada pelo Parlamento. Nunca deve ser administrada punição simplesmente
porque as suas opiniões diferem da dos dirigentes. Esta é uma importante lição que retiramos do nosso
passado.
• Para que seja verdadeiramente eficaz, a reconciliação deve ser acompanhada de justiça.
É com estas lições na mente que desejamos reiterar o nosso agradecimento a todos os depoentes e a
quem partilhou o sofrimento e o conhecimento connosco. Lembremo-nos sempre que o sangue foi
derramado para encontrarmos a coragem necessária para enfrentar os desafios do futuro.
Obrigado.
(página em branco)
70 MASSACRES
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MAPA:
Alor Island
Ataúro Island
Wetar Strait
Kisar Island
Ombar Strait
40 km to Oecusse Enclave
Jaco Island
Timor-Oest
Los Palos
Cova Lima
Timor Sea
Oecusse Enclave
-
Ilha de Alor
Ilha de Ataúro
Estreito de Wetar
Ilha de Kisar
Estreito de Ombai
Enclave de Oecusse a 40 km
Ilhéu do Jaco
Timor Ocidental
Lospalos
Covalima
Mar de Timor
Enclave de Oecusse
NORTH
-
Norte
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