Veja por dentro
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Veja por dentro
Para a minha avó, Edna Clark Creche das Pequenas Joaninhas — Devo dizer que não estou a achar graça nenhuma — diz a educadora Cherry, franzindo o sobrolho para as quatro meninas sentadas à chinesa diante dela. — Como já vos disse, não me agrada que brinquem aos piratas mal-educados. Não te rias, Pearl. Mostrar as cuequinhas não são maneiras de pirata, e de certeza que não são maneiras de Joaninha. Kat, Betty, sentem-se sossegadas, se faz favor. Agora, enquanto eu passo o leite, quero que todas pensem muito bem como é que os piratas simpáticos se portam. Bea, não comas isso: é para o coelho. 1 Dez anos, quatro sutiãs e uma grande discussão depois… Está uma pessoa pequenina e sem roupa a dar-me lambidelas. Não me aflijo — acontece muito. A pessoa pequenina começa a beijar-me na cara. Cheira-me a panquecas e banana e… espera lá… a pessoa não está completamente sem roupa. Tem umas galochas. Galochas? Isto é novidade. E completamente inaceitável. Agarro no telemóvel… 5h34. 5h34 da manhã! 9 — Bea! — grita a Emma. — Parabéns! — Vai-te embora, eu não faço anos. — Tento empurrá-la para fora da cama, mas ela resiste e começamos à bulha. Erro crasso. Para quem tem apenas 3 anos, a minha irmã é uma lutadora feroz. Ainda me ocorre armar-me em adulta mas, antes de dar por isso, já estamos em pleno combate. — Tenho uma prenda pa’ ti! — A voz abafada da Emma chega-me algures dos meus pés. — Prenda depois, ok?! — Se calhar, até consigo dormir com ela ali. Não é nada mau, até aconchega e… — prenda, agora! — berra ela. Está claramente num daqueles dias especialíssimos, portanto digo o que sempre digo quando pretendo vê-la pelas costas. — Ouviste aquilo, Emma? — O quê? — Ouvi a voz do Papá… Já chegou! O Papá chegou! (Não chegou nada. Está no México.) — Papá! — Ela lança-se da minha cama e desce as escadas, deixa-me virar para o outro lado e aninhar a cara em qualquer coisa quente e fofa. Um bocado de banana esquecido, talvez? Cheiro. Não é banana. 10 Duas horas mais tarde, a Emma vem à porta para se despedir de mim, vou para a escola. Dá-me uma cabeçada na barriga e grita: — Adoro-te, nariz de sapo! Saem pássaros a voar do telhado do vizinho. — Adoro-te, bafo de pum — digo eu, empurrando-a com firmeza para dentro de casa. Desço o carreiro. Agora é que a timidez se apodera de mim e deixo a Verdadeira Bea em casa e levo a Bea Tímida para a escola. A caminho da paragem do autocarro, já a Bea Tímida me faz encolher os ombros e olhar fixamente para o chão. Quanto mais me afasto de casa, com o escorrega partido da Emma naquele pedaço de relvado gasto, e a nossa porta da frente encarnada, menos me sinto eu mesma. — Embora pequena, ela é feroz! — digo, num sussurro, ao aproximar-me dos do 11.º ano, que se encostam ao muro da cooperativa. Sento-me no sítio do costume, longe dos outros, e saco do telemóvel. Um dos rapazes atira-me um M&M. Ressalta-me na cabeça e aterra-me no colo. Ele ri-se e fica a ver o que eu vou fazer. Olho para o chocolatito. É azul. 11 Embora pequena, ela é feroz, penso. Come o M&M, Bea! Vá lá, come! Sacudo-o para o chão. Não foi dos meus momentos mais ferozes, realmente. Já praticamente me fiz invisível por alturas da chegada do autocarro e, quando me deixo cair no assento ao lado da Kat, ela nem sequer levanta a cabeça. Está a olhar para um espelhinho que traz sempre consigo. Ao princípio, acho que ela está só a mirar a perfeição do seu cabelo muito, muito louro, mas, nisto, ela pega-me num braço e puxa-me para mais perto, sussurrando: — Olha para trás de nós! Espreito para trás, investigando o autocarro. — O que é? — É ele: Ollie «Abraço» Matthews. Oh, Deus, não olhes! Olha! Não. Não olhes. Está bem. Olha agora. Perdido de bom! Olho para ela de lado. Tal como desconfiava, está com a boca meio aberta e os olhos estão enormes, estilo cachorrinha. Está a fazer a «Cara Sexy». Mais parece a Emma quando está a fazer um «presente» no bacio. — Não olhes para mim — ordena. — Olha para ele. 12 Por conseguinte, olho. Por uma vez que seja, consigo perceber o que ela quer dizer. O Ollie Matthews tem olhos castanhos fofos, cabelo assim pró despenteado e ombros que parecem um bocadinho ombros de homem e as mãos são… — Bean, estás a ouvir? — A Kat fecha o espelho com um estalido. — Acho que tenho de ser mais realista e esquecer-me do 11.º ano e concentrar-me no 10.º ano. Além disso, bem, se calhar ele é o tal? Afinal, houve «O Abraço». — O quê? Ele disse que isso foi sem querer. A Kat tem de resfolegar. — Não me pareceu nada um «acidente»! — Ele achou que eras a irmã dele. Tens o mesmo casaco… aquele com os pássaros. — Ele é tão perdido de bom, não achas? — perguntou a Kat, ignorando a minha pequena fatia de realidade. O Abraço está a ouvir o iPod e a olhar pela janela, tipo, sabes, perdidamente, com os olhos, que estão abertos (sexy), a olhar para as árvores… árvores perdidas de boas cobertas de folhas verdes sexy. — Pois, Kat — digo eu. — O Ollie parece… — Diz! — A Kat está rejubilante. — Vá lá, diz. 13 Diz que o Ollie Matthews é perdido de bom. — Fico de boca bem calada. — Diz, diz, diz! — Pronto. Estou a ver, na tua perspetiva, que ele pode ser considerado… perdido de bom. — Sim! É completamente. — Ela agarra-me no braço. — Agora conta-me tudo o que sabes! Tenho uma memória excelente. — 10.º ano. — Já sei. — Entrou no Bugsy Malone no ano passado. — Fez de quem? — De Bugsy. — Isso é bom, não é? — É. — Mais — exige, avidamente. — Equipa de râguebi. — Nham. — Capitão da equipa de râguebi. — Nham. — Cantou aquela canção no Sarau de Comemoração com a banda dele. — Qual canção? — Do ya think I’m sexy? — começo a cantarolar baixinho. — Bean. Não. 14 — Pronto, desculpa. — Mais? Olho para trás, para O Abraço. — Ele está sempre a arregaçar as mangas, sabes, sempre, e os braços dele são… — Calo-me. Recuso-me a usar essa palavra outra vez. A Kat mira-me com os olhos ligeiramente franzidos. — Preciso do teu livro de Matemática. Esqueci-me de fazer os trabalhos de casa. Torna a recostar-se, um sorriso na cara. A Kat está sempre a «esquecer-se» de fazer os trabalhos de casa, e eu deixo-a sempre copiar os meus. Acho que é uma cena de amigas do peito. Começo a remexer na mochila mas, em vez do livro de Matemática, tiro uma coisa dura, cabeluda e plástica. — Mas o que é isso? — A Kat parece enojada. Eh lá! Estou a pegar numa Barbie nua pela cabeça. Digo nua, mas o «pipi» — como a Emma insiste em chamar a essa parte — foi cuidadosamente pintado com marcador azul e embelezado com purpurina e, vendo bem, serão folhas de chá? — É o Ralph! — digo, a rir-me. — O Ralph? — Ela não se ri. 15 — A boneca da Emma. Ela disse que tinha uma prenda para mim e deve ser isto. O Ralph chama-se assim por causa do Lobo da Alsácia dos nossos vizinhos. — Quero lá saber de onde é que veio o nome da boneca da tua irmã esquisita. Livra-te disso! — Olha. — Mostro-lhe a zona da colagem. A Kat encolhe-se toda. — Tão giro. É para se parecer com a Mamã… não é que a Mamã tenha purpurinas — Mas, neste momento, o autocarro faz uma curva apertada e a subir e o Ralph foge-me da mão e rebola pelo corredor fora. — Bea, sua croma, apanha-a! Começo logo a procurar aos pés e junto das mochilas do pessoal. — Bean! — Ouve-se uma voz vinda do fundo do autocarro. — Perdeste a tua Barbie? Olho para cima. Oh, não. Isto é muito, muito mau. A Pearl Harris tem o Ralph. Ela está recostada na última fila — a mirar o seu império —, as pernas infindáveis e morenas deitadas no colo de um rapaz. O Ralph está pendurado entre duas unhas azuis que estão agora cheias de purpurina e folhas de chá. Começo a andar na direção dela. Só de pensar que cheguei a trocar cuecas com aquela rapariga (da Disney, Ariel… no tempo das Joaninhas). 16 — Jelly Bean, porque é que trouxeste a tua boneca para a escola? A fila de trás desata à gargalhada, em uníssono, perante o espantoso sentido de humor da Pearl. Foi ela quem primeiro me chamou afetuosamente «Bean» e depois, muitos anos mais tarde, o transformou numa alcunha cruel, que guinchava, «Ela abana como um jelly bean!», em Educação Física. Que seca. Os Jelly Beans não abanam. Até são bastante firmes. — Então? É a tua amiguinha? — Ela dá um beijo repenicado no Ralph e depois debruça-se, tentando enfiar-me a boneca na boca. Empurro-a, desequilibrando-me quando o autocarro ganha velocidade. — Oh, Deus, — diz a Pearl, olhando melhor para a «arte» da Emma. — Embonecaste-lhe as cuecas! Resisto à tentação de experimentar tirar-lhe a boneca e, em seguida, a Pearl empurra os pés do Ralph para as minhas narinas. O gangue cacareja e depois fica a olhar em silêncio, à espera que o espetáculo continue. Não digo nem faço nada. Fico ali, a rezar para que ela se farte. — Então, queres ou não? — É da minha irmã — respondo. 17 Passa-se um momentinho em que até vejo a Pearl pensar, Tu tens uma irmã? Desde quando? Mas depois ela recompõe-se e diz: — Claro que é! — AH, AH, AH — faz o gangue. — Tem um cabelo lindo — acrescenta, fazendo festas no cabelo grosso e empastado da boneca. — É tal e qual o teu, Bean. De repente, ela debruça-se toda no assento da frente — o assento do Ollie — e segura a boneca do lado de fora da janela. O Ollie vira-se para ver o que se passa e, lentamente, tira um dos auriculares das orelhas. A Pearl empurra o Ralph ainda mais para fora, com um sorriso enorme naquela cara estúpida. Agora é que eu tenho de dizer alguma coisa: a Emma adora o Ralph mais do que me adora a mim. Tento agarrar na boneca. — Dá cá, Pearl. É a preferida da minha irmã! Mas ela empurra a boneca ainda mais para fora. — Ahh. É a tua Barbie pefeída com que dómes na caminha? Lentamente — ele faz tudo devagar — o Ollie estica a mão, tira a boneca à Pearl e atira-a na minha direção. Claro que não a consigo apanhar e tenho de voltar ao chão para a procurar. 18 Quando me levanto, o Ollie está a dividir os fones com a Pearl. Têm as caras tão juntas que custa a perceber onde acaba a orelha do Ollie e começam os lábios da Pearl. Felizmente, fiquei esquecida. — Foi uma vergonha — diz a Kat, quando torno a afundar-me no assento, com a cara a arder. — Tu és uma vergonha, Bean. — Eu sei. Desculpa. — Enfio o Ralph na mochila e continuamos em silêncio até chegarmos à escola. Quando entramos no auditório, estou noventa e nove por cento perdoada e a Kat até enfia o braço no meu. A stora Pollard, a diretora, lança-se logo no tema dos caixotes do lixo. A mulher é obcecada por caixotes do lixo. — Além de ser anti-higiénico enfiar lá dentro os alunos do 7.º ano — diz ela —, é também uma maldade. Ela vai pairando sobre o computador portátil, a fazer «tss, tss» e a bufar e a ventar e a teclar até aparecer no projetor a fotografia de um contentor do lixo com uma cruz encarnada sobre ele. No meio da cruz está uma cara pequenina a representar um 19 aluno de Ashton Park. A boca da stora descontrai-se num sorriso. — Portanto, alunos do 9.º ano — continua ela —, não se esqueçam de que os caixotes do lixo estão interditos. Mais alguma coisa? — Apenas uma — diz alto a stora Hewitt, profe de dança, que vem a correr até à frente. — Pronto. 9.º ano, tenho grandes notícias… — Pausa dramática. — Vocês podem todos aparecer na televisão! — Ouvem-se murmúrios de interesse. — Enviaram-me informações sobre um novo programa de televisão chamado Guerra de Estrelas. É um concurso de talentos para adolescentes. Vai haver uma série para cantores, outra para atores, para comediantes, estão a ver a ideia. Seja como for, a boa notícia é que o primeiro é… adivinhem… dançarinos! Iupii! Enquanto a stora Hewitt imita o andar do Michael Jackson para comemorar, ouvem-se resmungos, principalmente dos rapazes, mas há montes de algazarra, até um barulhinho meu, e eu não sou nada de algazarras. As raparigas do nosso ano são loucas por dança e, na segurança do meu quarto (porta fechada, cortinados fechados, telemóveis entregues à porta), eu adoro dançar. 20 — O que é que se ganha? — Ouve-se uma voz lá atrás. A stora P respira fundo, mas a stora Hewitt adianta-se. — Durante o verão, os vencedores fazem formação numa escola profissional. Depois atuam num musical no West End. Ah, e passa na televisão, claro. — Os sussurros aumentam pela sala fora. — Para passar na televisão, é preciso fazer uma audição e vai haver uma em Brighton na próxima quinta-feira. Qualquer pessoa pode entrar. Podem dançar sozinhos ou em grupo, qualquer estilo, qualquer tipo de música. Venham ter comigo se precisarem de mais detalhes. Agora toda a gente desata a falar ao mesmo tempo. — Acalmem-se, acalmem-se! — grita a stora P, a voz cada vez mais alta por não lhe ligarem nenhuma. Eu nem pio, obviamente. — Ouve, Bea — sussurra a Kat. — Vamos alinhar! Vou perguntar à Pearl se podemos ficar com ela. Ela é brutal a dançar! Há tanta coisa errada nesta ideia que nem sei por onde começar mas, antes de poder dizer alguma coisa — do tipo, «Está aí alguém? Não somos 21 amigas desde os 7 anos» — a Kat debruça-se para a frente e fala com a Pearl. A Pearl abana a cabeça e depois vira-se para olhar para mim. Eu olho a direito, mas ainda sinto aqueles olhos azuis perturbantes a estudarem-me, a assimilarem tudo. Fico corada e a Pearl sorri antes de se virar para a frente, o cabelo preto perfeitamente ajeitado, o perfume a chegar-me como um sortilégio. A stora P grita um CALUDA! decisivo e toda a sala fica em silêncio. A Kat ainda diz baixinho: — Não te rales, Bean, eu resolvo ao almoço. Vamos fazer o primeiro ensaio no ginásio! — Beatrice Hogg, de pé! — A stora P estica um dedo na minha direção e duzentos pares de olhos seguem o dedo. Eu ponho-me de pé, o Weetabix e as sultanas a trampolinarem-me no estômago. — Vai ter comigo à hora de almoço para recolheres lixo… — Ela faz uma pausa, tentando dominar a raiva. Não consegue. — E podes ficar de pé até ao fim da assembleia-geral. Não. Não. Não. Tenho de ficar de pé, cabeça baixa, enquanto o capitão da equipa de netball faz um relato detalhado, incluindo a repetição em câmara lenta do 22 remate vencedor, seguido do stor Higgs a orientar-nos nos «18 Passos para uma Utilização Segura da Internet». Ele responde a montes de perguntas. A primeira do Carl Fisher: — Stor, se eu estiver no chat com uma miúda jeitosa, como é que sei que não é o stor? Resposta certeira do stor Higgs: — Posso muito bem ser eu, Carl! Passa-me ao lado da cabeça uma bola de futebol. — Manda-a para cá — berra um rapaz. Finjo que não o ouço — e ao insulto que se segue — e arrasto-me para a frente, apanhando metade de um pãozinho com a única luva de plástico que a stora P me deu. Avisto a Kat que atravessa o campo, na minha direção. Encontramo-nos na jaula: Zona de Humilhação em Educação Física/Área de Fumadores Ilícita. — Desculpa lá isto, Bea. — Sim, deixa lá, também estou quase a acabar. — Mostro o saco do lixo preto já bem cheio. — Não é do que aconteceu na assembleia-geral que estou a falar — diz ela, olhando para a jaula 23 e não para mim. — É que as outras miúdas todas acham que quatro é melhor do que cinco, e a Pearl não acha que tu gostes muito de dança e cenas assim. — O que é que queres dizer? — Tu sabes… o concurso de dança. A Pearl acha que deve ser só ela, eu, a Holly e a Lauren. — Não gosto de dança? Nós estamos sempre a dançar! Passamos metade da vida enfiadas no quarto a inventar coreografias. — Sinto que os meus olhos vão desatar a chorar. Encolho os dedos dos pés dentro dos sapatos (um truque para parar de chorar que a Mamã me ensinou — resulta mesmo). — Além disso, Bea, tu não tens a figura certa… mais baixinha e, bom, menos magrinha. — O que é que isso tem que ver? — pergunto, agarrando bem no saco do lixo. — A Pearl acha que o júri deve querer um certo visual — diz a Kat, mordendo o lábio e mexendo no telemóvel. — Tu és toda curvas e cenas e tens esse cabelo todo. Olha, Bea, não podias simplesmente — Ela cala-se e começa a fungar. Vai chorar? Vai fingir que chora para se safar disto? — Custa-me muito, sabias? — Fitamo-nos e ela acha que é bom sinal e sorri… corajosamente. — Se calhar 24 podes entrar com a Betty? Vocês costumavam andar juntas. Isto é o eufemismo da década. Nós andávamos sempre juntas: eu, a Kat, a Betty e a Pearl. Éramos um gangue. Éramos as Joaninhas! Éramos inseparáveis mas, com o passar dos anos, fomo-nos separando e, quando chegámos à escola secundária… as coisas já não eram bem a mesma coisa. A Kat ainda é a minha melhor amiga mas, de vez em quando, faz uma coisa mesmo mazinha, que magoa mesmo. Só me apetece esfregar-lhe o pãozinho de atum na cara… mas também preciso que ela seja a minha melhor amiga. Por conseguinte, faço um sorrisinho e digo: — Não te rales com isso. Eu também não queria. — Fixe, obrigada, Bea — diz ela, com os ombros a descontraírem-se. — Eu sabia que não te ralavas. A Pearl disse que te ias passar. Até parece. Tu és espetacular, sabias? É patético, mas parte de mim anima-se com estas palavras. — Está bem — respondo. — Agora tenho de levar isto à stora P. — Falamos mais logo? — Ela parece um bocadinho encabulada. 25 — Sim… claro. — Lá vou eu pelo campo fora, meio coxa, a encolher os dedos dos pés com todas as minhas forças. Depois das aulas, fico à espera da Kat nos cacifos. Não tarda a ficar tudo tão vazio que até mete medo e os stores a lançarem-me olhares condoídos. São horas de ir embora. Cinco minutos depois, recebo um SMS: Desculpa, n vou d’atcarro :’( ensaio dança!! Kat bjs Estes beijos tresandam a sentimento de culpa. Quando chego a casa, corro para o quarto, bato com a porta, e atiro-me para cima da cama, admitindo finalmente que quero mesmo entrar na Guerra de Estrelas. Nunca diria à Kat mas, no momento em que a stora Hewitt falou nisso, comecei logo a imaginar-nos às duas numa coreografia, nada de espampanante, mas algo um pouco diferente. Iríamos às audições e claro que não passaríamos, mas as outras miúdas do nosso ano gostariam e, de repente, a timidez ia desaparecer e eu ficaria «in» com aquele grupo mágico do 9.º ano onde é tudo tão fácil e divertido. 26 Ora, isto nunca iria acontecer. Adoro dançar, mas não nasci para isso, ao contrário da Kat e da Pearl. Não me pareço com elas nem com as outras. Ela tem razão. Eu tenho a figura errada. Sabes as calças de ganga justinhas? Nunca, jamais, em tempo algum, me hão de servir. Achei que a Guerra de Estrelas pudesse mudar este facto. Viro-me de lado. O meu quarto geralmente deixa-me feliz. A alcatifa é espessa e cor-de-rosa escura e a colcha tem o toque mais fino e macio de sempre. Além disso, estou rodeada de flores. A minha Avó dá-me revistas de jardinagem antigas e eu recorto as flores e colo-as nas paredes. Ao princípio, a Mamã chateava-se, mas desistiu quando as flores começaram a subir pelo teto e a sair pela porta. Os meus olhos vagueiam até à mesa de cabeceira onde larguei o telemóvel. Está atulhada de canetas, figuras da Playmobil (não são minhas), uma pilha de livros e… O que é aquilo? Sento-me na cama e agarro no copo de água que tenho sempre ao lado da cama. Tem qualquer coisa lá dentro. Qualquer coisa cor-de-rosa e branca. Devagar, aquilo roda na água de frente para mim, ou devo dizer que sorri para 27 mim? São dentes. Estou a olhar para uma dentadura enorme! — Olá, fofa! — diz uma voz conhecida à porta. Oh. Parece que a minha avó se mudou para o meu quarto. — Viva, Avó — digo eu, abarcando rapidamente todas as provas espalhadas por ali: uma pilha de revistas de celebridades, as cuecas do tamanho de fronhas a secar no radiador, o cheiro a Chanel n.º 5, o cobertor elétrico na minha cama (logo vi que se estava mesmo muito bem). — O que estás aqui a fazer… de camisa de dormir? Ela devia estar a ver televisão na residência para idosos do outro lado da cidade. — Surpresa! — diz, ciciando — custa-lhe falar sem dentes. Parece que ela se apercebe disso porque os tira de dentro do copo de água e os mete na boca. — Não bebas isso, fofa. Houve uma inundação no meu quarto. A Doreen do andar de cima pôs um bolo na máquina de lavar e aquilo lavou e escoou água o dia todo. Parecia uma festa de espuma na sala comum. A tua mãe teve de lá ir salvar-me. Ela encosta-se à minha cómoda e começa a pôr rolos azuis no cabelo. 28 — Então o que é que se passa contigo, minha rabugenta? — As aulas foram péssimas — respondo, encolhendo os dedos dos pés até me doerem. Depois conto-lhe o dia desastroso que tive. Enquanto ela ouve, põe pó de arroz no decote e começa a limar as unhas. Quando a Mamã me chama para o lanche, ela já pôs duas camadas de «Tangerina Suculenta». — Não te rales, Bea, fofa — diz ela. — Tenho uma ideia perfeita para dar uma lição a essas raparigas horrorosas. Ai, ai… no momento em que vai começar a explicar, a Mamã chama-me para ir pôr a mesa. A Avó senta-se na minha cama, derrubando miniaturas de peluches pelo chão, e começa a tamborilar no seu iPhone. — Vai lá ajudar a tua mãe — diz ela, à medida que eu saio do quarto. — A Avó vai resolver tudo! No corredor, encontro a Emma, que tem esparguete seco colado às bochechas com fita-cola, uma sultana em cada narina e um par de collants da Mamã metido na parte de trás das cuecas. Está praticamente nua, embora tenha pintado grande parte do corpo com caneta de feltro verde. 29 — Sou uma gata verde — informa ela, e depois começa a esfregar-se nas minhas pernas e a rebolar-se no chão. — Festinhas! — ordena. Faço-lhe festas na barriga e, mesmo quando estou a pensar no fixe que é ter uma irmãzinha gata, ela morde-me na mão. Tento sacudi-la mas, quanto mais sacudo, mais ela ferra o dente. Entro na cozinha a arrastá-la atrás de mim. A Mamã está a mexer no frigorífico. — Há um postal do Papá em cima da mesa — diz ela, trazendo um queijo na mão. — Conseguiu o autógrafo! Pego no postal. — Não conseguiu nada. — Conseguiu o autógrafo do Robert Pattinson… Diz, «Para a Bea com beijinhos do Robert Pattinson». — Bem, foi autografado por um Robert Pattingstone, que desconfio seja um dos amigos do Papá a passar-se pelo Robert Pattinson porque o Papá se esqueceu de fazer a única coisa que lhe pedi para fazer em Tijuana. — Ora, bendito seja por tentar — diz ela, interrompendo o que fazia para se agachar e fazer festinhas na sua filha gata. O Papá faz adereços para filmes: cones de gelado gigantescos, 30 extraterrestres, essas cenas. É um daqueles esquisitos das barbas que se vê nos documentários dos filmes em DVD. Um daqueles cotas que não se calam com as oito semanas de trabalheira a fazer uma espada de elfo em pasta de papel e pelo de cabra, quando nós só queremos ver os takes cómicos. Há três meses que está no México a fazer capacetes para gnomos. Neste momento, a Mamã tem um ar ligeiramente tresloucado e eu não a chateio por ter um Papá aldrabão e uma Avó (mãe dele) instalada no meu quarto, nem sequer lhe falo da viagem do Ralph até à escola. A Mamã é enfermeira nas urgências e fica bastante stressada por salvar vidas e nunca ver o marido. Por isso, recosto-me na cadeira e desfruto do ovo estrelado com «cabelo» de feijões em molho de tomate, cara sorridente de ketchup e barba de puré de batata. É para imitar o Papá. A Emma está autorizada a lamber a gema de ovo como os gatos fazem. Que nojo! — Está tudo resolvido, amor — diz a Avó, entrando nessa noite no quarto, brandindo o telemóvel 31 num gesto triunfante. — Estás a ver aquele teu problema de dança? Nesse momento, paro de encher a cama insuflável. — Estás a falar de quê? — Bem, acabei de ter uma conversinha com a Lulu, a minha antiga instrutora de dança, e ela tem partenaire para ti! Vai dar-te um curso intensivo para ficares pronta para as audições de quinta-feira. — Curso intensivo? De quê? — Jive… rock and roll… tu sabes, como no filme Grease. — A Avó mostra-se mesmo felicíssima consigo própria. Jive? Rock and roll? As próprias palavras, por si só, já me parecem trágicas. — Olha, Avó — começo eu. — Não posso fazer esse tipo de dança no concurso. Tem de ser mais do tipo que se vê em vídeos de música. — Mas isso é pornográfico, Beatrice. Eu bem sei. Seja como for, e como tu própria disseste, podem fazer qualquer tipo de dança. — Fico sem fala, em parte porque estou horrorizada, e também porque ainda estou a tentar encher a cama insuflável. — Está decidido, pronto. Vais fazer uma bela dança jive no concurso e não precisas de estar num 32 grupo com essas raparigas feias. Quando te virem na quinta-feira, vão ficar sideradas. Sim, sideradas. Deliciadas também, mas não pelas razões que a Avó possa pensar. Mas ela quer que eu morra de humilhação? — Sabes, Avó — digo, em desespero, — as aulas são caras e não me parece que a Mamã e o Papá possam pagar. — Pago eu, fofa. Seja como for, tenho desconto porque fiz os fatos da Lulu e do Rockin’ Ray para o Campeonato Nacional de Jive do ano passado. — Mas quem é que vai ser o meu parceiro? — Decerto não iria ser o Rockin’ Ray? — Toda a gente que entra no concurso tem de ter menos de 16 anos. — Ela sabe disso. Diz que ele é um jovem amoroso. Não te aflijas. Vais conhecê-lo amanhã. — Amanhã! — Isto é pavoroso… — Marquei a primeira aula para logo depois da escola. Agora, se não te importas, querida, tenho mesmo de voltar ao meu livro. — Com isto, a Avó ajeita-se na minha cama, emborca um golaço de gin tónico e abre o romance. — A Sunset foi atraída para um celeiro cheio de feno por um milionário malvado e estou louca para saber o que irá acontecer a seguir! 33
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