Campanella, a cidade historiada1 - Morus
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Campanella, a cidade historiada1 - Morus
Campanella, a cidade historiada1 Maria Moneti Codignola Università di Firenze Tradução de Ana C. R. Ribeiro Resumo Este artigo considera o Campanella que pertence ao gênero utópico e que se insere, com a Cidade do Sol, em um filão já consolidado, contribuindo por sua vez a tornar mais estáveis certos topoi e certas concepções características. Levase em conta seu ardor reformador e revolucionário, a herança de More (e, por intermédio dele, de Platão, que cita freqüentemente), a tradição herético-utópica calabresa, que incluía entre seus grandes personagens o célebre Gioacchino da Fiore, e a paisagem de tintas fortes da Itália, sobretudo da Itália meridional entre o final do século XVI e a primeira metade do sucessivo: uma paisagem caracterizada pela dominação espanhola que logo assume as características coloniais que a tornaram tristemente célebre, a regressão econômica e cultural devida à perda de liberdade política, a forte presença da Igreja e da sua luta contra os heréticos e os reformadores, a Santa Inquisição. Palavras-chave Campanella, Cidade do Sol, utopia, Contra-Reforma. Maria Moneti Codignola ensina Filosofia Moral na Università di Firenze (Itália). Dedicouse ao estudo da filosofia clássica alemã (Hegel e il mondo alla rovescia, 1986; Soggetto e moralità in Hegel, 1996; La nozione di lavoro in Hegel, in Verifiche, Trento, n.1-2, n. 3-4, 2000; M. Moneti-A. Pinzani, Diritto, politica e moralità in Kant, 2004). Pesquisou temas e figuras do pensamento iluminista e em particular de Voltaire (preparou uma edição dos contos Candide, Zadig, Micromega, L’ingenuo, 1974 e do Dizionario filosofico, 1981; preparou, entre outras, uma antologia de escritos intitulada Opere filosofiche, 1988). Dedicou muitos estudos ao pensamento utópico, tanto sob o ângulo da história das idéias quanto sob o da lógica desta forma de pensamento (La meccanica delle passioni. Saggio su Ch. Fourier, 1979; Il paese che non c’è e i suoi abitanti, 1992; Utopia, 1997; Les interprètes de la pensée utopique au XXe siècle: Bloch, Mannheim, Marcuse, Adorno. In: V. Fortunati, R. Aron. Histoire transnationale de l’utopie, que será publicado em breve). Dedica-se também aos problemas da ética contemporânea e particularmente da bioética, em relação às temáticas sobre o início e o fim da vida, sexualidade e reprodução (Pluralismo e ricerca di principi in bioetica. In: Testimonianze, 5, 1990; La nozione di persona in etica. In: Identità e persona tra filosofia e scienza, L’Arco di Giano, 38, 2003; Dolore, morte e temporalità. In: M. Papini e D. Tringali. Pupazzo di garza, 2004). Com o pseudônimo de Caterina Contini publicou um livro sobre as patologias das relações familiares (Non di solo amore, 1990) e um romance histórico sobre uma filósofa pagã da tarda Antigüidade (Ipazia e la notte, 1999). Este artigo foi extraído do livro MONETI CODIGNOLA, Maria. Il paese che non c’è e il suoi abitanti. Firenze: La Nuova Italia, 1992, p. 149-174. 1 MARIA MONETI CODIGNOLA A 2 Damos aqui apenas algumas indicações bibliográficas gerais, remetendo sobretudo a FIRPO (1950, e 1985), a seus estudos recolhidos em 1947, ao seu verbete sobre Campanella (1974, p. 372-401), ao artigo publicado em 1948 [traduzido para o português neste número da revista Morus – Utopia e Renascimento], AMERIO (1947), CORSANO (1961), BADALONI (1965), BOCK (1974), ERNST (1991). Assinalamos também as seguintes miscelâneas: AMMINISTRAZIONE PROVINCIALE DI COSENZA (1968), DEPUTAZIONE DI STORIA PATRIA PER LA CALABRIA (1969), ATTI DEL CONVEGNO INTERNAZIONALE SUL TEMA: CAMPANELLA E VICO (1969); os números monográficos de Sapienza, XXII, 1969 e de Archivio di filosofia, XLIX, 1969. 86 presentar a complexa e em muitos aspectos enigmática figura de Campanella não é nossa tarefa;2 aqui nos propomos a considerar apenas o Campanella que pertence ao gênero utópico, que se insere, com a Cidade do Sol, em um filão já consolidado, contribuindo por sua vez para tornar mais estáveis certos topoi e certas concepções características. Recordemos que, à diferença da maior parte dos utopistas que conceberam sua obra como livre exercício intelectual, Campanella foi várias vezes impelido pelo seu ardor reformador e revolucionário a tentar aventuras políticas, de resto falimentares, que deveriam ter realizado ao menos em parte, ou posto à prova, algumas das suas doutrinas. Herdeiro de More e, por intermédio dele, de Platão, que cita freqüentemente, Campanella no entanto é também filho de uma tradição herético-utópica calabresa que incluía entre seus grandes personagens o célebre Gioacchino da Fiore, do qual retoma o ardor da prédica, o milenarismo, a necessidade da palingenesia e de uma reforma radical, a concepção epocal e teológica da história. Mas a obra e a personalidade de Campanella (cf. CROCE, 1925; CINGARI, 1957 e também PEPE, 1952) não são compreensíveis sem que se as coloque em relação com a paisagem de tintas fortes da Itália e sobretudo da Itália meridional entre o final do século XVI e a primeira metade do sucessivo: uma paisagem caracterizada pela dominação espanhola que logo assume as características coloniais que a tornaram tristemente célebre, a regressão econômica e cultural devida à perda de liberdade política, a forte presença da Igreja e da sua luta contra os heréticos e os reformadores, a Santa Inquisição. A vida de Campanella se passa em boa parte no cárcere, onde não lhe são poupadas as penas mais duras, as torturas, o espetáculo “educativo” do suplício dos seus melhores amigos, pressões e violências de todo tipo. Ler Campanella quer dizer desenredar-se com dificuldade dentro de uma linguagem de quem vive constantemente e por necessidade de sobrevivência na dissimulação, na simulação, na expressão criptografada e cifrada. Confrontada a um poder tão onipresente, totalitário e persecutório como o da Inquisição, que recorre à tortura para submeter o espírito e para extorquir confissões de faltas nunca cometidas, abjuras, profissões de fé ou condenações de doutrinas heréticas, um poder que age em profundidade desestruturando a pessoa e submetendo sua vontade, a salvação pode às vezes consistir em submeter-se, em fingir, em urdir conjuras, em rebelar-se abertamente para reafirmar, quase com desespero, a dignidade e a autonomia da própria pessoa, em afrontar com grande coragem todo tipo de violência e de imposição, em fingir-se louco. Campanella percorreu todos esses caminhos animado por uma vitalidade excepcional. No cárcere e fora do cárcere escreveu uma quantidade imponente de obras de teologia, filosofia, magia, naturalismo, política, das quais apenas uma parte chegou até nós. A Cidade do Sol é apenas uma pequena parte dessa vasta produção, mas desde sua publicação, uma parte notável e de grande CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA sucesso. Publicada pela primeira vez em 1602, em italiano, e republicada em latim vinte anos mais tarde em Frankfurt, é um diálogo entre um Hospitaleiro (Cavaleiro da Ordem dos Hospitaleiros de São João de Jerusalém) e um Genovês que participou da expedição de Colombo. O Genovês descreve, sem muitos preâmbulos, a maravilhosa cidade que conheceu durante uma viagem aventurosa. A primeira parte da narração concerne ao aspecto da cidade que surge sobre uma elevação, tem planta circular e é circundada por sete muros, tantos quanto são os planetas, cada um com quatro portas como os pontos cardeais. Ir de um muro a outro é ao mesmo tempo adentrar no coração da cidade e ascender ao seu pico mais elevado. Sobre a colina há um tempo redondo que Campanella descreve minuciosamente: “Em cima do altar há dois globos: no maior está pintado todo o céu, e no menor a terra. Na área da abóbada principal estão pintadas as estrelas celestes, da primeira à sexta grandeza, todas assinaladas com seus nomes, seguidos de três versículos que revelam a influência que cada estrela exerce sobre as vicissitudes terrenas. Os pólos e os círculos maiores e menores, segundo o seu horizonte aproximado, achamse indicados, mas não acabados, no templo, de vez que embaixo não há muralha; parecem, contudo existir em sua inteireza, dada a relação com os globos colocados em cima do altar. O pavimento é ornado de pedras preciosas, e sete lâmpadas de outro, cada qual com o nome de um dos sete planetas, ardem continuamente. [...] Uma bandeira móvel, indicando a direção dos ventos (dos quais eles distinguem até o número de trinta e seis), eleva-se acima do ponto extremo da abóbada menor, e assim conhecem a estação que trarão os ventos, as mudanças que se verificarão na terra e no mar, mas unicamente sobre o clima próprio. Sob a mesma bandeira, observa-se um quadrante escrito com letras de ouro” (1973, p. 242-243).3 Já temos alguns elementos importantes da obra de Campanella: primeiramente, a idéia, tipicamente renascentista, das correspondências entre céu e Terra, entre universo e mundo humano, entre macrocosmo e microcosmo; a cidade recorda na geometria e no número dos seus elementos outros fenômenos celestes ou naturais (os planetas, os pontos cardeais, os ventos, etc.). O fulcro da cidade e seu lugar mais central é o templo, sinal de que a religião ocupa neste estado uma posição suprema; entretanto a religião é um tipo de ciência esotérica constituída de filosofia natural, astrologia, geometria e ciências propriamente ditas. O saber, como logo veremos, é um dos interesses principais desta utopia: a produção, a organização e também a transmissão do saber, ou o ensino e a educação das crianças. O governo da cidade se divide em quatro poderes, dos quais um é o supremo: o Metafísico ou Sol,4 chefe de todo o estado; ao seu lado estão três princípios paralelos: o Pon (Potência), o Sin (Sapiência), o Mor (Amor). Potência tem jurisdição sobre a guerra, sobre a arte militar e sobre o exército; Sapiência cuida das ciências que são em número de dez: astrologia, cosmografia, geometria, lógica, retórica, gramática, Na edição brasileira da Cidade do Sol não se diz qual a matriz da tradução, mas é certo que ela difere da edição usada pela autora deste artigo, porém não substancialmente (N. da T.). 3 Hoh na edição brasileira (N. da T.). 4 87 MARIA MONETI CODIGNOLA medicina, física, política e moral, das quais cuidam outros oficiais. Amor é o príncipe que governa todos os fenômenos naturais ligados à reprodução e a criação, incluídas a geração e a criação de homens. A cidade do Sol é, à semelhança da República de Platão, uma sofocracia, mas o saber não é monopólio de uma classe ou de um restrito círculo de pessoas (os oficiais), é tornado público o quanto for possível. O príncipe Sapiência redige um livro – apenas um, sendo inútil uma multiplicidade de livros diversos – que contém todo o saber; este livro, “é por eles lido ao povo segundo o método dos pitagóricos” (ibid., p. 243). Não apenas, mas com o objetivo de instruir e educar a população toda e especialmente as crianças, a Sapiência faz historiar todas as paredes da cidade com ilustrações científicas, de modo que a cidade inteira se torne um tipo de instituição pedagógica global: caminhando, olhando, vivendo, se aprende. “Nas muralhas externas do templo e nas cortinas, que se abaixam quando o sacerdote faz o sermão, para que a voz não se disperse, vêem-se pintadas as estrelas com suas virtudes, grandezas e movimentos, tudo explicado em três versículos especiais. Na parede interna do primeiro círculo foram pintadas todas as figuras matemáticas, muito mais numerosas do que as descobertas por Arquimedes e Euclides e tão grandes quanto o permitem as proporções das paredes. Um breve conceito, contido num verso, faz conhecer o significado de cada uma, com definições, proposições, etc. Na parede do mesmo círculo descobrem-se, primeiro, uma completa e extensa descrição de toda a terra, e, em seguida, as cartas particulares das províncias, cujas cerimônias, costumes, leis, origens e forças dos habitantes vêm brevemente esclarecidos. Os alfabetos das diversas nações aparecem, igualmente, ao lado do alfabeto da Cidade do Sol. No interior do segundo círculo, ou seja, das segundas casas, estão todos os gêneros de pedras preciosas e comuns, de minerais e metais, não só representados por gravuras mas também apresentados em pedaços verdadeiros, cada qual com explicações especiais em dois versos. Na parte externa desse círculo aparecem indicados todos os mares, rios, lagos e fontes da terra, assim como os vinhos, óleos e licores, com sua procedência, qualidade e propriedades. Em cima das arcadas há vários frascos presos à muralha, cheios de diferentes líquidos, existentes de cem a trezentos anos, que servem como remédios para diversas enfermidades. Além disso, figuras especiais e versículos dão instruções sobre o granizo, a neve, os trovões e tudo quanto se forma na atmosfera. Os cidadãos solares conhecem também a arte pela qual se pode reproduzir, dentro de uma habitação, todos os fenômenos meteorológicos, os ventos, as chuvas, o trovão, o arco-íris, etc. No interior do terceiro círculo encontram-se as gravuras de todos os gêneros de plantas e ervas, algumas das quais vivem dentro de vasos colocados sobre as arcadas da parede externa. As instruções que lhes vão anexas ensinam o lugar da primeira descoberta, as suas fporças, propriedades e relações comas coisas celestes, com as diferentes partes do organismo humano, com as produções metálicas e marinhas, e também o uso particular de xada uma em medicina, etc. Na parte externa, vêem-se os peixes de cada espécie de rios, lagos e mares, os seus hábitos, qualidades, modos de geração, de vida e de 88 CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA criação, o uso a que o mundo e nós os fazemos servir, enfim, as suas relações com as coisas celestes e terrestres, produzidas pela natureza e pela arte. [...] No interior do quarto círculo estão representadas todas as espécies de pássaros, suas qualidades, grandezas, índoles, costumes, cores e vida, e o que causa maior admiração é descobrir, entre eles, a verdadeira Fênix. A parte externa apresenta todos os gêneros de animais, répteis, serpentes, dragões, vermes, insetos, moscas, mosquitos, tavões, escaravelhos, etc., com suas particulares propriedades, distinções e usos, e numa abundância apenas acreditável. No interior do quinto círculo aparecem todos os gêneros de animais terrestres mais perfeitos, num número portentoso. Não conhecemos senão a milésima parte deles [...] No interior do sexto círculo encontram-se pintadas todas as artes mecânicas e os seus instrumentos, e como as usam as diversas nações, cada uma ordenada e explicada segundo o próprio valor, e trazendo também o nome do inventor respectivo. Na parte externa estão representados todos os homens mais eminentes das ciências, nas armas e na legislação. Vi Moisés, Osíris, Júpiter, Mercúrio, Licurgo, Pompílio, Pitágoras, Zumotim, Sólon, Caronda, Foroneu, e muitíssimos outros. Quem mais? O próprio Maomé foi representado, embora o reputem um legislador falaz e desonesto. Vi a imagem de Jesus Cristo colocada num lugar eminentíssimo, juntamente com as dos doze apóstolos, por eles altamente venerados e julgados superiores aos homens. Debaixo dos pórticos externos vi representados César, Alexandre, Pirro, Aníbal, e outras celebridades, quase todos cidadãos romanos, ilustres na paz e na guerra. [...] Há professores que explicam essas gravuras, habituando as crianças com menos de dez anos a aprender sem fadiga, como uma espécie de divertimento, todas as ciências, mas tudo pelo método histórico” (ibid., p. 243-245).5 Temos aqui um quadro geral das ciências e de sua organização por matérias, segundo Campanella: uma organização na qual têm um lugar importante a analogia e as correspondências que podem ser instauradas entre ordens diversas de realidade e objetos de ciências diversos, com base em semelhanças ou em contigüidade mágico-astrológicas. No âmbito das ciências estão compreendidas também a técnica, a história da técnica (ou pelo menos menções biográficas relativas aos inventores), o direito, a moral e a religião. Notemos que Jesus está em meio a outros grandes políticos, legisladores ou fundadores de religiões, sem ocupar uma posição especial. A finalidade dessa grande exposição permanente de todo o saber, de todos os objetos físicos e dos objetos jurídicopolíticos é o aprendizado veloz, fácil, passivo: brincando, diz Campanella, fazendo eco à expressão de More “quase brincando” (1978, p. 103)6 e fazendo evidentemente referência a uma doutrina pedagógica difusa que recomenda tornar aprazível o aprendizado, misturando a fadiga ao divertimento e apresentando as coisas em um tal modo que o segundo faça esquecer a primeira. Aqui comparece também o topos da velocidade no aprendizado: com dez anos as crianças solares já aprenderam tudo o que há para aprender; o método de ensino adotado pelos solares – a cidade historiada, ou seja, transformada em instituição pedagógico- Aqui e em seguida os grifos são meus. 5 Na tradução para o português (MORE, 1999, p. 84) essa expressão foi omitida (N. da T.). 6 89 MARIA MONETI CODIGNOLA didática global – é tão natural e racional a ponto de tornar o percurso do saber ágil e diligente. Na hierarquia do saber e do poder os oficiais dependem dos Príncipes e os Príncipes dependem do chefe supremo que é o Sol ou Metafísico. Chega-se ao grau de oficial mediante uma seleção meritocrática, demonstrando um particular conhecimento de uma arte ou de uma virtude (Liberalidade, Magnanimidade, Castidade, Força, Justiça criminal e civil, Solércia, Verdade, Beneficência, Gratidão, Misericórdia, etc): conhecimento, mas também prática e inclinação a tais virtudes. Os oficiais elegem por sua vez os quatro príncipes: Potência, Sapiência, Amor e Metafísico, o chefe absoluto, que deve demonstrar capacidades intelectivas e sabedoria superiores às de qualquer outro. Ele, em particular, deve ser um grande conhecedor de história, de legislações e constituições, de “ritos e sacrifícios” e de invenções, artes mecânicas, ciências físicas, matemáticas e astrológicas: É preciso ter presente, por outro lado, que as categorias historiográficas que se usa comumente muitas vezes não abarcam a complexidade dos fenômenos. Em relação à dita ”revolução científica”, os novos métodos, a nova epistemologia, os conceitos e a visão do mundo que a caracterizam e acompanham estão freqüentemente relacionados, nos primeiros tempos, a resíduos do pensamento mágico, astrológico, analógico, pré-científico, constantemente sem que os filósofos que permanecem nessa ambigüidade estejam em condições de dar-se conta disso. Sobre esses temas ver ROSSI, 1977, cap. IV, parte Ia. 7 8 Diferente de More, que a coloca entre as ciências falsas e enganadoras, Campanella considera a astrologia uma verdadeira ciência e em vários pontos da obra, sobretudo quando fala do nascimento, da concepção e das regras de eugenética, expõe seus princípios e os aplica a problemas de natureza variada. 90 “Mas de absoluta necessidade é conhecer integralmente as ciências metafísicas e teológicas. Devem conhecer-se, em seguida, as raízes, os fundamentos e as provas de todas as artes e ciências, as relações de conveniência e inconveniência das coisas, a necessidade, o destino, a harmonia do mundo, a potência, a sabedoria e o amor das coisas de Deus, as gradações dos seres, as suas analogias com as coisas celestes, terrestres e marítimas, e com os ideais em Deus, na medida em que isso é concedido à mente humana. Finalmente, é necessário ter aprofundado, com longos estudos, as profecias e a astrologia” (CAMPANELLA, op. cit., p. 248). O saber do Metafísico representa a summa de todos os conhecimentos e também a ordem hierárquica em que se dispõem os vários campos e as várias formas do saber: um saber que está distante daquele das escolas, mas que ao mesmo tempo está completamente fora do caminho principal das ciências modernas. Apesar da sua admiração e interesse por Galilei, Campanella parece não ter notado muito da novidade, da revolução científica iniciada por ele e a peculiaridade do método e do ponto de vista que dele deriva.7 Analogia, metafísica e teologia são apresentadas como os fundamentos do saber, que inclui naturalmente a astrologia entre seus ramos científicos.8 Mas seria inútil deter-se sobre tudo isso, que é conhecido. É mais significativo o que se segue. Campanella move a si mesmo a objeção que Platão já havia tomado em consideração: se os doutos são aptos para governar ou ao contrário se são, como quer a opinião corrente, os mais incapazes, tomados como são pelas abstrações do seu saber e pouco versados nos mecanismos das coisas humanas, especialmente políticas. A resposta se desdobra em dois planos: o da defesa das atitudes políticas do homem de letras e o da condenação do saber filosófico que as escolas corroboram e que, esse sim, é constituído apenas de inúteis abstrações: CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA “Estamos tão certos de que um sábio pode ter aptidões para o bom governo de uma república quanto vós, que preferis homens ignorantes, julgados hábeis somente porque descendem de príncipes ou são eleitos pela prepotência de um partido. Mas, o nosso Hoh, mesmo admitindo que seja inexpertíssimo em qualquer forma de governo, nunca se tornará cruel, celerado ou tirano, pois possui uma imensa sabedoria. Essa objeção pode ter força entre vós, que chamais de sábio o homem que leu o maior número de gramáticas ou de lógicas de Aristóteles ou de outros autores, de forma que, ao se querer consultar um sábio dos vossos países, o único resultado que se obtém é uma obstinada fadiga e um servil trabalho de memória que habituam o homem à inércia, pois não encontra estímulo em penetrar no conhecimento das coisas e se contenta em possuir um acervo de palavras, aviltando a alma e fatigando-a sobre letras mortas. Tais sábios ignoram como todos os seres são governados pela causa primeira e quais as regras e hábitos da natureza e das nações. Isso não acontece com o nosso Hoh, uma vez que, para aprender tantas artes e ciências é necessário ser dotado de vastíssimo engenho para tudo, o que o torna habilíssimo também para o governo político. Além disso, é sabido que não conhece nenhuma ciência quem só foi instruído numa, tendo engenho tardo e desprezível todo aquele que, apto numa única ciência, a possui, ainda assim, tomada de empréstimo aos livros. Semelhante juízo não se pode fazer do nosso Hoh. [...] naquela cidade, as ciências são aprendidas com tanta facilidade que as crianças ficam sabendo num ano o que entre nós só se adquire depois de dez ou quinze anos de estudo” (ibid., p. 248). Nessa defesa do filósofo-regente aparecem alguns elementos novos que se inserirão duravelmente no patrimônio dos topoi utópicos e se radicalizarão: a recusa do saber tradicional, neste caso aristotélico, e a desvalorização do livro como instrumento de conhecimento e de transmissão do saber. Nessa passagem a condenação do saber baseado nos livros já é bastante forte: ela se inspira em um comportamento renascimental bastante difuso, de recusa da tradição filosófica de escola, particularmente de Aristóteles e da sua autoridade; mas nesse meio tempo também toma corpo, nessa condenação da “memória servil”, o ódio pelo livro estampado e pela autoridade que lhe é atribuída pelo vulgo e também pelos agrupamentos de filósofos consolidados e institucionalizados, que terá na utopia ampla ressonância e difusão. Logo se chegará, como veremos, à idéia da queima de todos os livros como ritual liberatório que acompanha a fundação da cidade utópica e sua substituição por um só livro (o livro verdadeiro, o compêndio, ágil e essencial, das únicas verdades incontestáveis, em meio a um oceano de erros e de mentiras) ou então nenhum livro, sendo a natureza e a vida mestras do saber bem mais verídicas e úteis do que qualquer compêndio ou crônica escrita.9 O segundo fenômeno que constitui o pano de fundo do ódio moderno – e típico da literatura utópica – pelo livro tem caráter não estritamente cultural mas sociológico: a gravura torna o livro um objeto facilmente disponível e de uso corrente, relativamente difuso. O tema da ausência de livros – substituídos de tempos em tempos pela leitura direta do “livro da natureza” ou pela experiência, ou pela tradição oral, ou por um saber que, porque racional, é redutível a pouquíssimas noções de fácil ensino e aprendizado – não deve ser confundido com o tema platônico da condenação das artes, e portanto também da poesia e da narrativa como instrumentos de corrupção. Aqui se condena, ou pelo menos se exclui da instrução e da circulação pública, uma massa de conhecimentos depositados e transmitidos mediante o livro, por serem considerados um obstáculo ao verdadeiro conhecimento. Esse tema tem apenas alguma semelhança e parentesco com o tema platônico, mas se insere e se explica mediante a referência a dois fenômenos culturais propriamente modernos. O primeiro é o tema do antiautoritarismo em parte confluente com o antiaristotelismo – ao menos no início da era moderna, como é o caso de Campanella. Segundo esse ponto de vista, a massa de saber depositada nos séculos mediante o trabalho das scholae, feito de textos aristotélicos e de comentários ou de estudos que partem dos princípios aristotélicos transmitidos, constitui o maior obstáculo ao verdadeiro saber que, ao contrário, deve primeiramente entabular a operação negativa do fazer tabula rasa, na mente, de qualquer noção pré-constituída e de qualquer preconceito. Na vertente positiva, esse tema comporta a convicção de que o verdadeiro saber, um saber dirigido imediatamente às coisas e não mediado pelo livro – ou seja, pela opinião já existente sobre as coisas – é constituído de pouquíssimas noções fáceis de se aprender e memorizar, ou seja, adquirir de modo autônomo e direto. 9 91 MARIA MONETI CODIGNOLA Esse tema conduzirá, pouco a pouco, também na literatura utópica, àquele da emancipação da infância, que se torna sujeito de auto-educação mediante experiência e raciocínio autônomo, e não mais objeto de um ensino longo, árduo e pedante, feito de aquisição de imensas quantidades de noções inúteis e de penosas restrições. A vertente mais polêmica dessa tese se exprime com a proposta da destruição inclusive física do livro como lugar de acúmulo de um saber e de uma autoridade que são violentamente recusados. Retomaremos em seguida esse aspecto específico. 92 O acúmulo de saber sob forma de acúmulo de livros se torna, mesmo fisicamente, um fato de experiência comum e provoca no intelectual de profissão um certo mal-estar: o mal-estar da iteração e multiplicação da obra intelectual, do seu tornar-se banal e disponível, do seu inflacionarse e tornar-se anônima, papel entre papéis, livro entre livros. Pode-se também interpretar a proposta recorrente de queima do livro, presente particularmente na literatura utópica dos séculos XVIII e XIX, e também nas utopias do século XX, como uma resposta ao mal-estar e à intolerância, à crise de identidade do intelectual, provocada por esse fenômeno. Queimar os livros – dos outros – significa também tentar restituir ao próprio aquela cota de dignidade, de respeito e de atenção da parte do público, que a inflação da produção intelectual parece pôr a perigo. O governo da cidade do Sol é portanto um governo de sábios: os quatro Príncipes, dos quais um é o chefe supremo ou Sol, são escolhidos entre os mais sábios e seu cargo é vitalício; sob eles estão os oficiais e os dependentes dos oficiais, repartidos segundo competências específicas, ainda que escolhidos com base em sua sabedoria geral; os oficiais são eleitos “de acordo com a vontade do povo” (ibid., p. 262), enquanto os quatro Príncipes são eleitos por cooptação e decidem abdicar de seu cargo apenas quando percebem que outros os superam em conhecimentos. A ciência cultivada nesta cidade – cultivada por todos, como veremos, pois não há divisão do trabalho manual e intelectual, todos dedicando ao primeiro poucas horas do dia e as demais ao segundo, como em Utopia, é sobretudo de dois tipos: investigação da natureza e de todos os seus segredos com base em analogias, semelhanças, influências, etc, e a investigação do homem, não tanto como indivíduo – os seus processos vitais são em tudo semelhantes aos dos animais, mas também o seu temperamento e, em conseqüência, a moral, têm raízes naturais – mas como sociedade, estado e leis. Os solares “costumam enviar mensageiros a outras nações e nunca se recusam a abraçar os costumes que lhes parecem melhores” (ibid., p. 254). Portanto, eles não apenas não desprezam o resto do mundo, como se poderia esperar de quem se sente perfeito, mas têm curiosidade em conhecer costumes e leis dos outros para melhorar a si mesmos. Quanto às autoritactes, aos filósofos do passado, desprezam Aristóteles, que consideram um pedante, e sobretudo os seus servis seguidores; por outro lado, apreciam muito, ainda que não com espírito servil, Platão, Sócrates, Catão e outros clássicos, e entre os cosmólogos, tanto Ptolomeu quanto Copérnico, considerados autores de dois modelos cosmológicos não alternativos mas ambos utilizáveis, equivalentes pela eficácia econômica, que é o único ponto de vista possível nessas coisas, não por verdade ou fidelidade ao real. No entanto, o que mais conta nesta utopia é que o próprio saber, o saber filosófico, é considerado não apenas um dos aspectos ou das atividades dos habitantes, mas a substância da sua existência, do seu modo de viver. Deles se diz que “determinaram, então, começar uma vida filosófica, pondo todas as coisas em comum” (ibid., p. 245). Segundo me CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA parece, pela primeira vez é dito que o comunismo seja não um modo de organizar a vida associada mas o modo filosófico. O sentido dessa definição é identificar comunismo com modo racional de vida, modo de vida eleito pelos sábios e oposto ao modo corrente de viver, próprio das pessoas ignorantes, que se contentam com o que encontram. Esta expressão – “vida filosófica” – alude naturalmente à origem filosófica do modelo comunitário de vida, a Platão que dele deu uma versão teórica rigorosa; não alude, no entanto, creio, ao fato de que aquele comunismo seja uma sofocracia, ou melhor, uma filosofocracia, ainda que Campanella conserve do modelo platônico esse elemento. O comunismo campanelliano também retoma o modelo platônico nos elementos mais radicais e mais opostos ao senso comum e à moral comum: ele compreende o comunismo das mulheres e dos filhos, e também, em conseqüência, a não diferenciação das tarefas entre homens e mulheres, com base apenas no maior ou menor peso de certas funções. À radicalidade dessa escolha Campanella move todas as objeções que se apresentaram ou que poderiam apresentar-se: antes de tudo a objeção aristotélica (e não se deve excluir que em seu ódio pelo estagirita haja também um pouco de ressentimento pela aversão teórica deste ao comunismo platônico) segundo a qual abolindo a propriedade privada se abole qualquer incentivo ao trabalho: “Então, ninguém terá vontade de trabalhar, esperando que os outros trabalhem para o seu sustento, de acordo com a objeção de Aristóteles a Platão” (ibid., p. 246). A essa objeção não há propriamente uma resposta, a não ser uma descrição completa do modo de vida dos solares. Antes de mais nada, a apologia do comunismo é confiada à exposição dos males gerados pela propriedade privada e pela família que é seu correlato afetivo e social: “Dizem eles que toda espécie de propriedade tem sua origem e força na posse separada e individual das casas, dos filhos, das mulheres. Isso produz o amor-próprio, e cada um trata de enriquecer e aumentar os herdeiros, de maneira que, se é poderoso e temido, defrauda o interesse público, e, se é fraco, torna-se avarento, intrigante e hipócrita” (ibid., p. 246). Portanto, família e propriedade induzem, por sua lógica intrínseca, a comportamentos egoístas, tanto agressivos como defensivos, a ponto de contrapor o indivíduo à sociedade inteira; a eliminação da propriedade e da família deixa, ao contrário, subsistir apenas o amor “comunitário” e comportamentos que beneficiem a coletividade. Ainda não estamos na construção dos complexos teoremas antropológicos e psicológicos das utopias iluministas que fazem a inteira essência do indivíduo – os seus comportamentos e também sua afetividade, sua persona – depender da influência que as instituições e os hábitos contraídos desde o nascimento têm sobre ele; sustenta-se mais simplesmente que, uma vez retiradas a propriedade e a família, elimina-se o que move a agir de modo egoísta e anti-social. Para Campanella também, como para Platão e More, a finalidade do comunismo – que aqui é também propriamente comunitarismo, 93 MARIA MONETI CODIGNOLA vida em comum de modo integral, partilha com todos os outros de todos os aspectos da cotidianidade e da afetividade – é a integração total do indivíduo na coletividade à qual ele pertence e o primado constante do Todo sobre as suas partes. “Sua doutrina é que se deve, primeiro, prover à vida do todo e, depois, àquela das respectivas partes” (ibid., p. 260), e não há um momento ou um aspecto da vida do indivíduo no qual ele se sinta sozinho ou se aparte da comunidade; sua sensação de pertencer à comunidade é fortíssima porque é alimentada por uma partilha total. O modelo dessa vida comunitária deriva apenas em parte de Platão; por outro lado deriva da vida monástica à qual alude muitas vezes, ainda que para menosprezar sua não-correspondência aos princípios.10 O que mais se opõe à completude do espírito comunitário é cultivar sentimentos privados, ligados à relação entre os dois sexos e à procriação. Por isso Campanella volta decididamente a propor novamente a doutrina platônica da comunhão das mulheres e dos filhos apesar das dificuldades que impõe a justificação, numa época moderna e cristã, de uma tal proposta. Enquanto a supressão da propriedade privada se confirma no estilo de vida das primeiras comunidades cristãs, segundo testemunham os Atos dos Apóstolos: “Considero útil e santa a comunidade dos bens, mas não posso aprovar a das mulheres. São Clemente Romano diz que as mulheres devem ser comuns, segundo o instituto apostólico, e elogia Sócrates e Platão por ensinarem igual doutrina; mas a glosa entende que essa comunidade se relaciona com o obséquio e não com o leito. E Tertuliano, apoiando a glosa, escreveu que os primeiros cristãos tiveram tudo em comum, excetuadas as mulheres, as quais foram, contudo, no que diz respeito ao obséquio” (ibid., p. 254). A essa objeção o genovês responde: 10 “Acredito, pois, que, se os nossos monges e clérigos não estivessem viciados por excessiva benevolência para com os parentes e amigos, e se mostrassem menos roídos pela ambição de honras cada vez mais elevadas, teriam, co menor afeição pela propriedade adquirida, louvores de mais bela santidade, e, semelhantes aos apóstolos e a muitos dos tempos presentes, apareceriam ao mundo como exemplos da caridade mais sublime” (CAMPANELLA, 1973, p. 246). 94 “Mal conheço essas coisas, mas posso afirmar-lhe que, na Cidade do Sol, as mulheres são comuns tanto para o obséquio como para o leito, mas nem sempre, como o fazem as feras ao encontrarem a fêmea, mas somente, como se diz, por motivo e ordem de geração. Não obstante, é possível que nisso se enganem. Escudam-se no juízo de Sócrates, de Catão, de Platão, de São Clemente (mal compreendido, como você observou). Dizem que Santo Agostinho aprova toda comunidade, mas não a das mulheres para o leito, que é a heresia dos nicolaítas e que a nossa Igreja permitiu a propriedade dos bens, não a título de introduzir vantagens maiores, mas unicamente para evitar piores males. Com o tempo talvez seja possível que abandonem esse costume, uma vez que, nas cidades sujeitas, são comuns os bens, não as mulheres, salvo em relação ao obséquio e às artes. Mas isso é atribuído pelos habitantes solares à imperfeição das referidas cidades, menos da própria, instruída em filosofia” (ibid., p. 254). Como se pode ver, a doutrina da comunhão de mulheres é introduzida com cautela, buscando autoridades que a sustentem frente à certa condenação que encontra no mundo cristão. Defende-se essa CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA concepção como filosófica, semelhante ao comunismo de bens, mas não se pretende impô-la, dada a delicadeza do tema. De resto, se está longe de propor um tipo de libertinismo generalizado. A interpretação libertária da supressão da família como supressão de um vínculo e satisfação do desejo é característica de uma leitura bastante superficial da utopia. A comunhão da qual se fala está ligada exclusivamente à geração e à idéia de um controle público do acasalamento a fins reprodutivos. Há a convicção de que a reprodução seria um fato de estado, que não pode ser deixado à casualidade nem aos perigos de escolhas particulares não programadas. De que natureza, de que qualidades físicas e morais, em que quantidade são os futuros cidadãos não é um negócio privado, que possa ser gerido com base apenas nas atrações físicas e sentimentais. O estado, como bom criador de animais, não deixa que as coisas aconteçam espontaneamente, mas as pré-determina e ordena segundo regras racionais. O cuidado com esses problemas, do acasalamento, dos nascimentos e da criação da prole – como da semente e do cultivo das plantas, da criação dos animais e de sua reprodução – é confiada ao principado do Amor, ou seja, ao Príncipe Mor e aos seus oficiais. “De acordo com o costume dos antigos espartanos, tanto os homens como as mulheres aparecem nus nos exercícios ginásticos, de forma que os preceptores têm a possibilidade de descobrir os que são capazes ou incapazes para a geração, podendo determinar ainda qual o homem mais conveniente a determinada mulher, segundo as respectivas proporções corporais. A união marital se realiza cada terceira noite e depois que os geradores estão bem lavados. Uma mulher grande e bela se une a um homem robusto e apaixonado, uma gorda a um magro, uma magra a um gordo, e assim, com sábio e vantajoso cruzamento, moderamse todos os excessos. Ao cair do sol os meninos sobem às habitações e preparam os tálamos. Depois entram os geradores e, seguindo a determinação dos mestres e mestras, ficam em repouso, sem poderem nunca consagrar-se ao importante mister antes de terem digerido bem os alimentos e terminado a prece. Nos quartos há estátuas de homens, respeitabilíssimos, aí colocadas para serem contempladas pelas mulheres, que, depois, pondo-se a uma janela com os olhos voltados para o céu,, suplicam a Deus que lhes conceda tornarem-se mães de perfeita prole. Deitam-se, então, em celas separadas e dormem até a hora estabelecida para a união. É quando a mestra se levanta e, por fora, abre a porta tanto aos homens como às mulheres. Essa hora é determinada pelo médico e pelo astrólogo, que procuram escolher a ocasião em que todas as constelações são favoráveis aos geradores e aos gerados. Consideram culpável todo aquele que, ao se aproximar a geração, não tenha ao menos por três dias conservado o sêmen em sua integridade e pureza, bem como o que, tendo cometido atos impudicos, não se tenha confessado e reconciliado com Deus. Os que, por deleite ou necessidade têm relações com mulheres estéreis, grávidas ou defeituosas, não participam de nenhuma cerimônia. Os magistrados, por serem todos sacerdotes, assim como os mestres das ciências, só podem assumir o encargo de geradores depois de muitos dias de abstinência. É que, como freqüentemente se observa, o emprego das faculdades da inteligência, enfraquecendo-lhes 95 MARIA MONETI CODIGNOLA os espíritos materiais e impedindo que possam transmitir a energia do cérebro, faz com que seja fraca de corpo e tarda de engenho a prole dessa gente. Sábia, por conseguinte, é a prescrição que lhes ordena a união com mulheres vivazes, fortes e belas” (ibid., p. 250-251). A geração é portanto não apenas um fato público, regulado por funcionários competentes com base em uma quantidade de conhecimentos eugenéticos, mas é também um fato religioso. Não tem nada que ver com a atração e o desejo sexual, e menos ainda com qualquer sentimento: a abertura noturna das portas segundo as ordens recebidas pelo oficial é uma imagem marcante e que dá o sentido desse rito no qual os cidadãos colocam individualmente seus corpos com suas potencialidades intrínsecas, inteiramente a serviço do estado: “A geração é considerada obra religiosa, tendo por fim o bem da república e não dos particulares. Por isso, todos obedecem plenamente aos magistrados” (ibid., p. 252). Também há lugar para o sexo com fim em si mesmo, porém limitado: para os jovens demasiadamente impelidos pelo desejo, que confessam privadamente esse estado de perturbação em que se encontram ao mestre ou à mestra, é dada a permissão de coito com mulheres estéreis ou já grávidas; para as mulheres, ao contrário, não há nenhuma possibilidade de satisfazer seu desejo, a menos que não sejam naturalmente estéreis. Mas nesse caso, a mulher “lhe é negada a honra de sentar-se entre as matronas na assembléia da geração, no tempo e à mesa. Assim procedem para que, por motivos de luxúria, não procurem elas a esterilidade” (ibid., p. 251). Na antropologia campanelliana a geração tem um peso enorme: são determinantes, como foi visto, a compleição física e o temperamento dos dois genitores, que devem ser combinados de forma a temperar e a integrar suas características; são importantes as dietas e as regras higiênicas que devem ser seguidas nos dias precedentes ao evento, a fim de assegurar o máximo de vitalidade e de energia aos espíritos animais; enfim, é importantíssima a conjunção astral, que no naturalismo de Campanella é responsável por infinitos acontecimentos, naturais e históricos, pela geração e pelo andamento de todas as vicissitudes humanas. A qualidade moral do homem, a sua virtude ou vício, deve-se não apenas, mas quase que inteiramente à natureza física e ao temperamento. Seguidor de Galeano, Campanella está convencido da naturalidade e da fisicidade das qualidades morais, ligadas às relações entre os humores, por isso a construção de homens bons está quase inteiramente confiada, para ele, ao controle dos elementos físicos que determinam a estrutura total, sendo o modo e o tempo da geração os primeiros entre todos. Essa concepção comporta uma parcial desvalorização da educação e de todos os elementos ambientais como causas possíveis ou fatores determinando o caráter e o comportamento dos homens. “Dizem eles que, descurada a geração, não se pode depois, com a arte, adquirir a harmonia dos diversos elementos do organismo, causa de 96 CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA todas as virtudes, e que os homens nascidos com má organização só praticam o bem pelo receio da lei e de Deus; sem esse receio, ou secreta ou publicamente, tornam-se perniciosos à república. Eis por que se deve empregar toda a diligência no mister da geração, refletindo-se sobre os verdadeiros méritos naturais, e não sobre os dotes ou a nobreza fictícia de mentirosa espécie” (ibid.). Em relação a Platão, que dedicava quase a mesma atenção à geração e à adoção de regras para uma correta concepção,11 Campanella é mais radical e unívoco: para Platão esse era apenas um elemento para o sucesso da empresa da construção de homens bons, para Campanella é o único, ou pelo menos de longe o mais importante. A virtude moral para Campanella não é algo que se constrói, com esforço, dentro de si, se necessário submetendo e dominando a própria natureza, mas ao contrário, é apenas a expressão de uma boa disposição natural congênita, pela qual no fundo o indivíduo não é responsável, como em relação a qualquer outra qualidade física que se possui ou não se possui, sem mérito nem culpa; uma virtude sobre a qual tem jurisdição sobretudo o médico, e que não é o produto de uma intencional construção de si. Ora, se é verdade que também Platão reconhecia uma base natural, estreitamente ligada à saúde física, da virtude moral, e fazia das qualidades morais um tipo de analogon das qualidades físicas, todavia tornava de algum modo o indivíduo responsável por essas, ou seja, pelas virtudes morais e pela saúde física: a falta de um adequado cuidado consigo mesmo era a raiz de toda culpa. Para Campanella não parece ser o mesmo, ainda que por fim faça uma surpreendente e apaixonada declaração a favor da doutrina da liberdade moral: “Por ora basta saber que eles não destroem, mas, ao contrário, edificam o sistema do livre arbítrio. E dizem que do mesmo que um eminente filósofo, por quarenta horas cruelmente atormentado por seus inimigos,12 que não conseguem nunca arramcar-lhe da boca uma palavra sobre o que perguntam, porque intimamente resolveu calar-se; assim também as estrelas que se movem à distância e com lentidão não podem constrangernos a nenhum ato contra a nossa vontade, como não podem governarnos, nem por obrigatório decreto de Deus, pois somos tão livres que podemos blasfemar contra o próprio Deus. Deus não força a si nem aos outros contra si. Pode Deus, acaso, ser dividido? Mas como as estrelas operam nos sentidos algumas insensíveis e ligeiríssimas modificações, sucede que sofrem sua influência sobretudo os que obedecem mais aos sentidos do que ao raio divino da razão” (ibid., p. 271). Mas essa doutrina da liberdade não anula a da “naturalidade” das qualidades morais: a razão pode determinar o querer subtraindo-o ao determinismo natural, à sensibilidade que não está sujeita ao influxo dos astros ou aos muitos outros influxos naturais; mas como a maior parte dos homens age seguindo o sentido mais do que a razão, convém que sejam construídos, justamente em sua natureza sensivel, de modo a serem bons. 11 “- Diga-me por favor: conhecem eles o ciúme, ou melhor, a dor, quando alguém não obtém uma esperada magistratura ou qualquer outra coisa que tenha ambicionado? – Não, porque todos, além de possuírem o necessário, gozam de tudo quanto possa deleitar a vida. A geração é considerada obra religiosa, tendo por fim o bem da república e não dos particulares. Por isso, todos obedecem plenamente aos magistrados. Além disso, contra a nossa opinião, negam ser natural ao homem, para educar vantajosamente a prole, a posse de uma mulher, de uma casa, de filhos, e dizem, com Santo Tomás, que o objetivo da geração é a conservação da espécie e não a do indivíduo. Trata-se, portanto, de um direito úblico e não privado, do qual os particulares só participam como membros da república. Acrescentam que a principal causa dos males públicos reside na maneira errônea de considerar a geração e a educação, que devem ser religiosamente atribuídas à sabedoria do magistrado, como primeiros elementos da felicidade de um povo. Os indivíduos que, por sua excelente organização, têm o direito de se tornarem geradores, ou geratrizes, se unem segundo os ensinamentos da filosofia. Platão acha que isso deve realizar-se tirando a sorte, a fim de que os que são afastados das mulheres mais belas não fiquem odiando os magistrados; e diz que devem ser enganados, no ato de tirar a sorte, os que não são merecedores de supremas belezas, de maneira que obtenham, não as mais desejadas, mas as mais convenientes. Esse engano, porém, é inteiramente inútil para os habitantes solares, pois entre eles não existe deformidade” (ibid., p. 252). 97 MARIA MONETI CODIGNOLA 12 As estrelas portanto influenciam o homem sensível e inclinam fortemente o querer da maioria dos homens, que se deixam guiar pelos sentidos. Mas o querer pode subtrair-se a essa inclinação: e essa possibilidade torna-se evidente na situação extrema da tortura, quando todos os sentidos violentados pedem desesperadamente a rendição e todavia o homem forte sabe resistir. Não é preciso recordar que Campanella teve um conhecimento direto desse tipo de experiência. A educação vem depois da constituição natural e tem um peso menor; ainda menos podem as leis e as instituições: elas submetem temporariamente a vontade do indivíduo sob o estímulo do medo e da sanção, mas mal cessa essa causa, o homem originário volta à superfície e age conforme à própria natureza. Politicamente o domínio da lei é perigoso justamente por ser externo; basta um afrouxamento na sua eficácia coercitiva para que se criem possibilidades de sedição. O homem que não possui virtudes morais per natura (entendendo a locução no sentido físico e fisiológico) é um perigo para a ordem pública de qualquer estado. Portanto o bom estado terá pouquíssimas leis e concentrará os seus cuidados na criação de homens ótimos, eugeneticamente selecionados. A qualidade dos homens é determinande, para Campanella, para o sucesso e manutenção do ótimo estado, assim como era para Platão; de fato, o fator primário de corrupção dos estados efetivamente existentes é o fato de que os homens “tenham descurado a geração ou a tenham exercido fora de tempo e lugar, ou então quando não se tenham tido em vista a escolha e a educação dos genitores, os quais, se produziram mal os filhos, ainda pior os instruirão” (ibid., p. 267). Aqui Campanella esboça também uma sumária teodicéia para desculpar Deus por todos os sofrimentos humanos e fazer do homem o único responsável por eles. Há uma rápida alusão à doutrina platônica desenvolvida na Política, segundo a qual alternam-se fases da história e dos acontecimentos cosmológicos vigiados e guiados por Deus, e fases abandonadas às forças espontâneas da natureza e dos homens; mas a hipótese é rechaçada como insensata. Do mesmo modo é rechaçada a doutrina cristã do pecado original e dos sofrimentos humanos como expiação de uma culpa que pertence a um só: “Afirmam, finalmente, que feliz é o cristão que se contenta em acreditar que toda essa revolução se tenha originado do pecado de Adão. Opinam também que os pais tranmitem aos filhos mais o mal da pena do que o da culpa. Esta pode ser atribuída pelos filhos aos pais, quando estes tenham descurado a geração [...]. Toda a atenção é, pois, eles dedicada à geração e à educação, e dizem que tanto a culpa dos pais como a pena dos filhos redundam em dano para a república, como o provam, na atualidade, todas as cidades que, cheia de misérias, se degradaram ao ponto de chamarem felicidade aos próprios males, sem nunca terem conhecido o verdadeiro bem, o que levaria a crer que o universo é governado pelo acaso” (ibid., p. 267). O tema são portanto o culpa e o da pena, da relação entre uma e outra e da responsabilidade última de ambas. Campanella, invertendo a relação pais/filhos proposta pelo dogma cristão do pecado original, se rebela contra a idéia que a culpa de Adão deva se transmitir às gerações sucessivas, porém registra o fato que a pena, essa sim, parece descender de Adão a todos os homens em linha contínua. Essa pena, 98 CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA se tem algum fundamento de justiça, deve estar ligada a alguma culpa que não seja a culpa de Adão, pela qual o resto da humanidade não poderia ser chamado a responder. Trata-se de um outro tipo de culpa, e precisamente do erro político na criação dos homens: erro de tempo e modo na geração, seguido de erro na educação. Esses dois fatores, o primeiro de modo preponderante, são inteiramente responsáveis pela qualidade moral dos homens e, logo, também pela situação política dos estados e por sua felicidade ou infelicidade. Isso não tira, como já foi dito, a responsabilidade individual pelas próprias ações, mas a limita um pouco: um homem gerado e educado em condições ruins dificilmente poderá tornar-se bom. A culpa do seu ser mal formado recairá então sobre os pais, sobre as gerações que o precederam e não souberam programar racionalmente o seu nascimento e a sua criação. Em um sentido mais amplo a culpa é política: é a cidade que se tornou culpada de incúria ou de erro nisso que parece ser seu máximo dever. Começa assim com Campanella um percurso ideológico que terá no século XVIII o seu ápice, tendendo a desresponsabilização do indivíduo pelas más ações das quais se torna culpado, e à imputação a outros: educadores e, em sentido lato, as instituições políticas e sociais nas quais cada indivíduo nasce e vive e que em modos diversos determinariam seu caráter, sua índole e suas inclinações. A concepção e o nascimento, dos quais não se é responsável, têm grande parte na determinação da qualidade dos homens. A educação, que certamente não tem para Campanella o mesmo peso, é todavia muito importante para que os homens cresçam e se mantenham bons, sábios, racionais. Os filhos são criados em locais comuns e são amamentados – não se sabe se pelas mães naturais ou por qualquer mulher em condições de fazer isso – por um período que pode chegar a dois anos e que é decidido pelo Físico (oficial que depende do Saber). “Depois do parto, elas próprias amamentam e assintem ao recémnascido em quartos comuns, que para esse fim devem ser expressamente preparados. Por dois e mais anos, segundo as prescrições do Físico, são amamentadas as crianças. Depois disso, se é menina, é entregue às mestras, e, se é menino, aos mestres. Começam, então, quase como um divertimento, a aprender o alfabeto, a explicar as pinturas, a exercitar-se na corrida, na luta, e depois a estudar as histórias expostas pelas pinturas e as diferentes línguas” (ibid., p. 251). A educação não difere segundo o sexo nem, no início, segundo as capacidades; logo, porém, em torno dos sete anos, quando as crianças são iniciadas nas ciências naturais, começa a seleção com base nas capacidades, estimula-se a concorrência e escrutam-se as diversas inclinações às várias artes e aos ofícios: “Transcorrido o primeiro ano e antes do terceiro, os meninos aprendem a língua e o alfabeto passeando nas salas, todos divididos em quatro manípulos presididos por velhos veneráveis, que são guias e mestres de probidade superior a toda prova. Depois de algum tempo começam os 99 MARIA MONETI CODIGNOLA exercícios de luta, corrida, disco e outros jogos ginásticos, feitos todos com o fim de fortalecer adequadamente o corpo, e sempre com os pés descalços e a cabeça descoberta, até os sete anos de idade. Distribuídos por manípulos, são eles conduzidos às diferentes oficinas das artes: a dos sapateiros, a dos cozinheiros, a dos artífices, a dos pintores, etc” (ibid., p. 247). Em alguns pontos há versões contrastantes: às vezes parece que Campanella insiste na igualdade do currículo formativo para todas as crianças da cidade, salvo quanto ao exercício a que cada um se dedica com variada intensidade nos ramos das ciências ou das artes para o qual demonstra maior inclinação; outras vezes parece inclinar-se em direção a uma concepção que possa prever percursos diversos segundo as capacidades, como quando diz: “Quanto aos meninos tardos de engenho, vão para o campo, e, se alguns já provaram terem feito progressos bastantes, voltam para a cidade. Mas, como quase todos nasceram sob a mesma constelação, assemelham-se sempre aos contemporâneos pela virtude, pelos costumes e pelas feições, o que dá causa a uma durável concórdia, a um mútuo amor e a uma recíproca solicitude em se auxiliarem uns aos outros” (ibid., p. 252). A divisão social do trabalho é, no entanto, de tipo igualitário: todos trabalham, todos exercitam contemporaneamente artes – ou seja, trabalho manual – e ciência, todos dispõem da mesma quantidade de tempo livre, não há servidores nem escravos, mas são as crianças a servir13 tanto à mesa, quanto nos trabalhos domésticos de todo tipo; entre homens e mulheres não existe nenhuma divisão de trabalho senão a que se refere ao peso: às mulheres os trabalhos menos gravosos – que no entanto não são de forma alguma trabalhos domésticos – e aos homens os mais pesados; os feridos em alguma função também têm seus deveres e estão inseridos no tecido social: “Um costume apreciadíssimo e digno de imitação, entre eles, é o que consiste em considerar que nenhum defeito é bastante para manter os homens na ociosidade, salvo em idade decrépita, na qual ainda são úteis dando conselhos. Assim, o coxo serve de vigia, empregando os olhos sãos; o cego, com as mãos, desfia a lã e prepara plumas para encher leitos e travesseiros; quem é pricado de olhos e de mãos serve à república empregando os ouvidos e a voz; finalmente, o que só possui um membro emprega-o do melhor modo possível” (ibid., p. 254). Todos os cidadãos são militares, todos são agricultores e pastores, ou pelo menos todos devem ter aprendido essas artes durante sua formação: Como na Utopia de More; conforme ARIÈS 1960. 13 100 “Todos têm obrigação de conhecer essas artes julgadas nobilíssimas, de forma que quem exercer maior número é considerado possuidor de maior nobreza, e quem chegou à maior nobreza e à maior perfeição em algumas delas é eleito mestre. As artes mais fatigantes obtêm maior estima, como a do pedreiro, etc. Ninguém se recusa a exercitá-las, porque a elas se aplicam pela particular tendência revelada na infância [...]” (ibid., p. 258). CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA Único incentivo a abraçar os trabalhos mais fadigosos é a honra que deles advém, a aprovação social; não são previstos incentivos materiais tais como dinheiro e recompensas porque o comunismo campanelliano prevê que seja dado a cada um segundo suas necessidades, sob o controle do oficial apósito. Obviamente não há mercado nem circulação de mercadorias ou dinheiro. E neste ponto encontramos de novo uma imagem da infância que funciona como desmascaramento de um absurdo cotidiano no qual estamos imersos a ponto de não percebermos. A cena é obviamente tirada de um encontro com os embaixadores de um país estrangeiro, como acontecia em More, e não por acaso: o embaixador é em realidade a figura que põe em cena os costumes do mundo existente e que se manifesta, com os seus preconceitos, no mundo utópico. Os solares sabem que assim caminha o mundo e não pretendem mudá-lo ou fazer proselitismo;14 mas as crianças podem permitir-se notar o absurdo daquele mundo e denunciá-lo com sua risada: “Já o comércio é descurado, embora conheçam o valor das moedas e fabriquem dinheiro, com o qual os embaixadores e os exploradores possam prover à subsistência nos países estrangeiros. À Cidade do Sol costumam chegar comerciantes das diferentes partes do mundo, que compram dos solares o supérfluo. Os habitantes não recebem dinheiro, mas trocam mercadorias de que precisam, sendo que, muitas vezes, também as compram com moedas. Mas, de todo coração, riem-se os meninos solares ao verem tanta abundância de coisas deixadas por tão poucas bagatelas; não se riem, porém, os velhos” (ibid., p. 258). Como em More, o comércio – limitadíssimo – é apenas externo e gerido pela comunidade como sujeito coletivo. A moeda e o mercado são portanto fatos completamente marginais dentro de uma economia natural e de consumo. Também aqui a criança tem um dever de desvendamento mediante o meio mais simples: a risada. Os estrangeiros introduzem por um momento as regras do mundo de fora, regulado pelo mercado: uma troca que, vista de um ponto de vista naturalista, é completamente absurda (quantidade ingente de coisas úteis contra quantidade risível de material inútil como ouro e moedas). A cena apenas esboçada tem evidente derivação moreana. Aqui há uma pequena menção a mais: os velhos não riem; talvez porque agora conhecem há tempos esse hábito ou porque, frente à diversidade de costumes e de regras de vida trazida pelos estrangeiros, adotaram o comportamento do respeito ou pelo menos o da indiferença; afinal, ainda que marginal, os solares praticam algumas atividades de mercancia; e por fim porque a condenação do absurdo já foi expressa com a risada infantil; os velhos podem adotar um comportamento mais tolerante e disponível. O tempo livre, além das ciências especulativas, é dedicado aos esportes e à vida ao ar livre; apenas as mulheres e as crianças se dedicam à música,15 os homens a desdenham – talvez uma reminiscência da condenação platônica. Todos no entanto, homens e mulheres, freqüentam nus as práticas esportivas (novamente, é óbvio, Platão) 14 “Dizem que o mundo alcançará tanta sabedoria que todos os homens viverão como eles.” (ibid., 260). [A edição usada pela autora traz ainda: “procuram sempre saber se os outros vivem melhor do que eles” (CAMPANELLA, 1989, p. 60). Tradução minha (N. da T.).] Quanto ao episódio citado da Utopia, ver MORE, 1999, p. 107. 15 “A música, ao contrário, é permitida somente às mulheres e, às vezes, também às crianças, por serem suscetíveis de proporcionar maior deleite [...]” (CAMPANELLA, op. cit., p. 249). Também nessa branda desaprovação, ou pelo menos limitação, da música como prazer reservado aos dois sujeitos “menores” da sociedade, há uma reminiscência platônica. Sobre a difusão popular da música e sobre o costume de ensinar às crianças, mesmo nas camadas mais humildes, algum instrumento, ver ARIÈS, op. cit., parte I, cap. 4. 101 MARIA MONETI CODIGNOLA e nadam: “reservatórios especiais de água foram preparados não longe da cidade” (ibid., p. 258). A única coisa que não é nunca permitida é o ócio, considerado o pior inimigo da boa ordem da cidade. Para essa aversão concorrem, a meu ver, muitos fatores: o temor de que o ócio se transforme em comportamento anti-social, segundo acontece em certos fenômenos sociais difusos, como a vagabundagem e a pequena criminalidade da qual tanto fala More; por outro lado trata-se de fechar a boca à principal objeção dirigida contra o comunismo por Aristóteles, ou seja, que “ninguém terá vontade de trabalhar, esperando que os outros trabalhem” (ibid., p. 246), objeção que permaneceu sendo, através dos séculos, o cavalo de batalha contra toda nova reformulação da idéia comunista: se o indivíduo não for movido pelo interesse nada pode induzi-lo a trabalhar. A resposta de Campanella é articulada: por um lado se mostra como a organização da cidade do Sol esconjura o perigo do ócio: com a educação que não deixa um momento de inatividade às crianças, sempre empenhadas em alguma coisa, estudo, jogo ou trabalho; com uma divisão racional e igualitária do trabalho que impõe a todos obrigações iguais e que mantém cada indivíduo sob o controle e a vigilância de todos os outros; por outro lado recompensando todos por seu trabalho – apenas quatro horas diárias – com uma boa dose de tempo livre que é investido em atividades recreativas e de estudo. Inversamente, Campanella mostra que o ócio está estruturalmente presente nas sociedades não racionais: “Nápoles tem uma população de setenta mil pessoas, mas só quinze mil trabalham e são logo aniquiladas pelo excesso de fadiga. As restantes estão arruinadas pelo ócio, pela preguiça, pela avareza, pela enfermidade, pela lascívia, pela usura, etc., e, para maior desventura, contaminam e corrompem um infinito número de homens, sujeitando-os a servir, a adular, a participar dos próprios vícios, com grave dano para as funções públicas. Os campos, a milícia, as artes, ou são desprezados ou, com ingentes sacrifícios, pessimamente cultivados por alguns. Na Cidade do Sol, ao contrário, havendo igual distribuição dos misteres, das artes, dos empregos, das fadigas, cada indivíduo não trabalha mais de quatro horas por dia, consagrando o restante ao estudo, à leitura, às discussões científicas, ao escrever, à conversação, aos passeios, em suma, a toda sorte de exercícios agradáveis e úteis ao corpo e à mente. Não se permitem jogos que obriguem a ficar sentado, como dados, xadrez, e outros, divertindo-se com o péla, o balão, o pião, a corrida, a luta, o arco, o arcabuz, etc.” (ibid., p. 253). A proteção da moral pública se deve a muitos fatores: à geração e à educação, como vimos, à vigilância recíproca entre os cidadãos, especialmente dos velhos em relação aos jovens, aos sentimentos comunitários e fraternos que ligam homens não divididos por interesses antagonistas, por desigualdades sociais, por afetos privados: “Afirmam, além disso, que a pobreza é a razão principal de se tornarem os homens vis, velhacos, fraudulentos, ladrões, intrigantes, vagabundos, mentirosos, falsas testemunhas, etc., produzindo a riqueza os insolentes, 102 CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA os soberbos, os ignorantes, os traidores, os presunçosos, os falsários, os vaidosos, os egoístas, etc. A comunidade, ao contrário, coloca os homens numa condição ao mesmo tempo rica e pobre: são ricos porque gozam de todo o necessário, e são pobres porque não possuem nada. Servem as coisas, mas as coisas lhes obedecem, imitando assim os religiosos da cristandade, especialmente os apóstolos” (ibid.). Pode acontecer todavia que algum cidadão degenere, não é explicado como, e se torne criminoso. Há as pequenas transgressões, sobretudo juvenis, ações não criminosas mas moralmente incorretas, como a tentativa de subtrair-se a algum dever. Mas para isso há um remédio fácil: “Cada oficina é presidida por um velho e uma velha que, de comum acordo, dão ordens aos ministrantes, podendo castigar ou ordenar que se castiguem os negligentes, os refratários, os desobedientes. Observam e tomam nota do gênero de ofício em que mais se distinguiu um menino ou uma menina. A juventude serve aos que ultrapassam os quarenta anos, e o dever dos mestres e das mestras é vigiar à noite, quando vão descansar, e, de manhã, pôr em função os que devem substituí-los, sendo escolhidos um ou dois para cada quarto. Os jovens servem-se reciprocamente, e ai dos renitentes!” (ibid., p. 249). Em suma, um regulamento de colégio severo, onde os jovens permanecem sob estreita vigilância e são obrigados pelos adultos a cumprir com seus deveres ainda que relutantes, em um clima que no entanto, apesar dos “ai dos renitentes” e das bastonadas, ainda está bem longe das formas de controle total e sistemático próprio das utopias mais tardias e, mais tarde, das distopias do nosso século. Mas para os verdadeiros crimes há o Justiceiro, oficial do Poder. Caso trate-se de crimes leves, a coisa se resolverá dentro da corporação: o chefe da arte também é vigilante e juiz de todos os seus membros e será ele quem administrará castigos como “o exílio, a pancada, a desonra, a privação da mesa comum, a interdição ao templo, a proibição das mulheres” (ibid., p. 262). Já para os crimes graves, a coisa é mais complexa. Primeiramente, há uma confusão, em Campanella, entre crime e pecado, como entre funcionários do estado e sacerdotes; ou melhor, mais que confusão, há identificação. As leis são escritas nas colunas do templo, junto às principais proposições metafísicas e teológicas, que definem toda realidade natural e sobrenatural, e às propostas morais que definem as virtudes e os pecados. “Há ainda as definições de todas as virtudes, cada uma das quais tem um juiz próprio com assento numa cadeira dita tribunal e colocada debaixo da coluna que traz a definição da Virtude que deve julgar. Voltando-se para o culpado, diz o juiz: ‘Filho, pecaste contra esta santa definição; contra a beneficência, a magnanimidade, etc. Lê...” E, após a discussão, recebe a pena merecida pelo seu mau procedimento. As condenações são verdadeiras e seguras medicinas, sentindo eles mais amor do que o castigo” (ibid., p. 263). 103 MARIA MONETI CODIGNOLA Até aqui, portanto, uma multa moral por culpas que têm natureza exclusivamente moral. Mas esse dever é também religioso e os oficiais são ao mesmo tempo sacerdotes que têm por ofício “purificar as consciências” (ibid.); ou seja, recolher confissões da parte de todos os cidadãos que admitem suas fraquezas, pecados e vícios; os oficiais relatam tudo o que conseguem saber aos superiores até o Metafísico, que assim é capaz de perceber o que constitui o ponto fraco da moral pública. “Depois absolve o povo, admoesta-o a precaver-se contra as culpas citadas, oferece um segundo sacrifício a Deus e termina suplicando-lhe que perdoe, ilumine e proteja a cidade” (ibid., p. 263). O dever do Metafísico é ao mesmo tempo político, pedagógico, moral e religioso: conhecendo os pecados mais freqüentes na cidade e capaz de corrigi-los e de adotar medidas legislativas idôneas para preveni-los; além disso, como chefe moral da cidade, adverte os cidadãos contra as suas fraquezas; por fim, como sumo sacerdote, administra os sacrifícios que podem purgar a cidade do seu mal e reconciliá-la com Deus. Esse rito prevê que um cidadão oferecerá espontaneamente sua vida para então ser sacrificada: “feitas as preces e as cerimônias, é colocado sobre uma tábua quadrada, à qual, por meio de fivelas, se ligam quatro cordas, que descem por quatro roldanas presas na muralha da pequena abóbada. Depois de suplicar a Deus misericordioso que se digne aceitar aquele sacrifício humano e espontâneo, não brutal e involuntário como entre os gentios, Hoh manda que as cordas sejam puxadas, e a vítima, alcançando o centro da pequena abóbada, aí se abandona às mais fervorosas preces. Os sacerdotes que habitam ao redor subministram-lhe a alimentação por uma janela, mas em pouca quantidade, a fim de que seja completa a purificação dea cidade. Depois de trinta ou quarenta dias, aplacada a cólera de Deus com preces e jejuns, ele ou se faz sacerdote, ou então, o que raríssimas vezes acontece, volta ao primeiro estado, mas descendo pelo caminho externo dos sacerdotes. Passa esse homem a gozar da estima e do amor universais, pois não hesita em morrer pelo bem da pátria. Deus não quer a morte de quem quer que seja” (ibid.). Esse ritual de expiação, no qual o sacrifício de um anula as culpas da cidade, tem como seu correlato o rito penal mediante o qual a cidade, de modo simbólico, pune-se inteira e participa com dor à pena pela culpa de somente um dos seus. A justiça penal da cidade do Sol não prevê penas detentivas, não há cárceres a não ser para casos raríssimos. O processo por homicídio acontece na presença de juízes de corporação e do Poder. São apresentados os pró e os contra e em seguida se passa ao veredicto; se alguém apela, o Potência reexamina os argumentos produzidos. Por fim a causa é levada à presença do Metafísico e se ele também procede à condenação se espera, depois de “muitos dias”, que haja o consenso do povo. A justiça, com efeito, não é um negócio que se delegue apenas a magistrados competentes, mas é também um fato público e coletivo. Na cidade do Sol não há carrasco, a execução da pena capital se dá segundo um rito que envolve todos os cidadãos: 104 CAMPANELLA, A CIDADE HISTORIADA “Não querendo contaminar a república, agem sem litores ou carrascos, morrendo cada condenado pela mão do povo, que o mata ou lapida, mas sempre precedido do acusador e das testemunhas. A alguns se concede a escolha do gênero de morte, sendo que quase sempre preferem circundar-se de saquinhos de pólvora, e então, aceso o fogo, morrem assistidos por pessoas que os exortam a terminar bem: toda a cidade, amargurada, suplica a Deus que aplaque sua cólera, contristando-se todos por terem sido constrangidos a amputar um membro arruinado do corpo da república. Esforçam-se, igualmente, com discursos por persuadir o culpado a desejar e aceitar a morte” (ibid., p. 262). Essa execução coletiva é mais semelhante a um rito tribal do que a um ato de justiça penal. Ela revela um elemento profundo desta utopia (porém ligado à lógica utópica em geral): a prevalência da identidade coletiva sobre a individual, o primado do todo sobre a parte que leva a formas de identificação mística do indivíduo com a coletividade e da coletividade com cada indivíduo, sentido como membro de um organismo vivo. As culpas e as penas pertencem à coletividade e exigem expiações de algum modo coletivas. A identidade coletiva supera e aniquila a individual, e reconhece como próprio também o membro doente que ela é forçada a cortar para salvar-se. Mas esse reconhecimento quanto ao pertencimento comporta também um outro inquietante elemento, recorrente na literatura utópica: a busca da auto-acusação pública por parte do condenado. Essa busca tem um significado complexo: deve servir de auto-absolvição para o corpo social que executa a condenação – é o condenado que autoriza com a confissão da sua culpa. Além disso, ela serve para reconciliar e reintegrar o condenado no organismo coletivo, ainda que seja no momento em que ele está para ser eliminado, e portanto está para ressarcir a ferida infligida ao corpo social com o seu delito. Enfim, a auto-acusação serve para justificar a própria construção utópica: se ela é um país perfeito que constrói homens perfeitos, devese explicar a anomalia constituída pelo nascimento de um criminoso. Certamente, é possível argumentar, como faz Platão quando explica a degenerescência dos tipos humanos e dos estados, com a teoria do erro genético: concepção errada, na qual o erro pode vir dos pais, do momento, do lugar ou das condições da união. Mas há em Campanella uma consideração muito mais profunda e que diz respeito à compatibilidade entre uma cidade perfeita, fundada sobre a verdade, e um ponto de vista que, de algum modo, teórico ou prático, se opõe a ela. Esse ponto de vista é um homem que o exprime, um sujeito, cuja concepção do mundo e cuja moral poderiam, in hypothesi, valer tanto quanto as da cidade. Mas essa possibilidade deve ser negada, e não pela própria cidade com as suas instituições judiciárias, mas pelo único portador da dúvida, o único capaz de dissolvê-la. A autocrítica – e podemos dizer que Campanella dessa lógica soubesse algo – é a única negação do crime compatível com a idéia de uma cidade racional, cujas instituições sejam a expressão da verdade; a pena é a execução de quanto o culpado reconheceu e aceitou, é a atuação da reconciliação e da reencontrada identidade coletiva. 105 MARIA MONETI CODIGNOLA Bibliografia AMERIO, R. Campanella. Brescia: La Scuola, 1947. AMMINISTRAZIONE PROVINCIALE DI COSENZA. Tommaso Campanella nel IV centenario della nascita. Cosenza, 1968. Archivio di filosofia, XLIX, 1969. ARIÈS, P. L’enfant et la vie familiale sous l’ancien régime. Paris: Plon, 1960. ATTI DEL CONVEGNO INTERNAZIONALE SUL TEMA: CAMPANELLA E VICO. Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 1969. BADALONI, N. Tommaso Campanella. Milano: Feltrinelli, 1965. BOCK, G. Thomas Campanella. Politisches Interesse und philosophische Spekulation. Tübingen, 1974. CAMPANELLA, T. La città del Sole. Milano: Feltrinelli, 1989. [Edição brasileira: CAMPANELLA, T. 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