a tempestade - Shakespeare Brasil

Transcrição

a tempestade - Shakespeare Brasil
Liana Leão
Liana de camargo Leão
a tempestade
Sou professora
de literatura inglesa na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
Ilustrado
por
já ministrei
vários cursos
sobre Shakespeare, dentro e fora da universidade. Tenho
Márcia
Széliga
artigos publicados sobre as peças e sobre Shakespeare no cinema. Organizei
também, junto com a professora doutora Marlene Soares dos Santos, o livro
Shakespeare, sua época e sua obra (2008), onde vários especialistas brasileiros
falam sobre a obra de Shakespeare. Há quatro anos organizo, em Curitiba, para
alunos da UFPR e também para o público leigo, um evento em homenagem ao
nascimento do dramaturgo: o “Abril de Shakespeare”.
Meu desejo, nesta adaptação, é oferecer às crianças, jovens e professores a
oportunidade de encenar as peças, mantendo a linguagem teatral e o espírito da
obra do dramaturgo.
Márcia Széliga
Aquarela poderia ter sido o material utilizado nas ilustrações deste livro. Afinal,
combina com água, mares, garoa, chuva, tempestade. Mas a escolha mesmo
acabou sendo o lápis de cor, cores suaves podendo se tornar fortes, vivas... Como
uma chuva pode se transformar numa tempestade.
Para dar mais alimento à minha inspiração, usei como ponto de partida o filme
Prospero’s book, de Peter Greenaway, onde as cenas percorrem páginas de um livro
vivo.
Sim, os livros são vivos! Ilustrar também é mexer com algo muito vivo.
A tempestade, de Shakespeare, coloca qualquer um nessa dimensão de tocar o
sentido mágico das coisas e os sentimentos da vida.
Trazer essa vida para as ilustrações é um jeito de fazer com que as imagens e as
palavras entrem pelas janelas da alma, que possam tocar fundo, através dos olhos
leitores, a porção mais viva de cada um.
Liana de Camargo Leão
A tempestade
Ilustrado por Márcia Széliga
Adaptação da peça teatral de William Shakespeare A tempestade, em 7 cenas
1
A temp
estade
Liana de camargo leão
Ilustrado por Márcia Széliga
Adaptação da peça teatral de William Shakespeare A tempestade, em 7 cenas
2009 © Liana de Camargo Leão
Direção geral: Ailton A. dos Santos
Direção administrativa: Edson Donizetti Castilho
Coordenação editorial: Alex Criado
Equipe editorial: Agueda Cristina Guijarro
Deborah Quintal
Luiz Eduardo Baronto
Ana Cláudia Ramacciotti Vieira
Equipe de arte: Gledson Zifssak
Luciene Cardoso
Equipe de comunicação: Ana Cosenza
Elisa Rodrigues
Revisão: Cristina Kapor
Danielle Mendes Sales
Projeto gráfico e capa: Gledson Zifssak
Secretaria editorial: Suzete Oliveira
Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Leão, Liana de Camargo
A tempestade / [traduzido e adaptado por] Liana de
Camargo Leão; ilustrado por Márcia Széliga. – São Paulo :
Editora Salesiana, 2009.
“Adaptação da peça teatral de William Shakespeare A
tempestade, em 7 cenas”.
1. Teatro – Literatura infanto-juvenil 2. Shakespeare,
William, 1564-1616 I. Széliga, Márcia. II. Título.
08-11807
Índices para catálogo sistemático:
1. Teatro : Literatura infantil
2. Teatro : Literatura infanto-juvenil
Todos os direitos reservados
EDITORA SALESIANA
Rua Dom Bosco, 441 - Mooca
03105-020 São Paulo - SP
Fones: (11) 3274-4906 / 3274-4953
Fax: (11) 3209-4084
[email protected]
www.editorasalesiana.com.br
CDD-028.5
028.5
028.5
Shakespeare se despede
do teatro:
A tempestade, sua última peça
A tempestade é uma comédia que trata de magia e de encantamento,
e também de amor, de vingança e de perdão.
Alguns personagens são espíritos, como Ariel. De certa maneira,
quando Shakespeare fala dos espíritos, ele está falando de nós, dos
sentimentos humanos e do nosso mundo.
A peça trata de ambição e de vingança. Antônio e o rei Alonso
roubam o ducado de Próspero, que sobrevive ao naufrágio por
milagre e pela ajuda do conselheiro Gonzalo. Próspero permanece
anos exilado em uma ilha e planeja uma vingança contra seu irmão,
o rei Alonso. Os nobres Antônio e Sebastião quando chegam à ilha
veem a oportunidade de matar o rei Alonso e ficar com a coroa. Da
mesma forma, o mordomo e o bufão planejam com Caliban matar
Próspero e reinar sobre a ilha.
Em geral, os personagens de classe alta falam em verso: Miranda,
Fernando, Próspero e todos os nobres. Os personagens de classe
baixa utilizam a prosa: os marinheiros, o mordomo e o bufão. Mas,
às vezes, Shakespeare faz um personagem que deveria falar em prosa
usar o verso: esse é o caso de Caliban, escravizado por Próspero.
É ele quem descreve a ilha de maneira mais bonita e poética, é ele
quem nos faz perceber a beleza do lugar, seus cheiros e sons.
PERSONAGENS
De Milão:
PRÓSPERO, legítimo duque de Milão
ANTÔNIO, irmão de Próspero, duque usurpador de Milão
MIRANDA, filha de Próspero
De Nápoles:
GONZALO, um velho e honesto conselheiro
ALONSO, rei de Nápoles
SEBASTIÃO, nobre e irmão de Alonso
FERNANDO, príncipe e filho de Alonso
TRÍNCULO, um bufão
ESTÉFANO, um mordomo
CAPITÃO
PILOTO
Da ilha:
MARINHEIROS
CALIBAN, habitante da ilha, filho da bruxa Sicorax,
que é escravizado por Próspero
ARIEL, um espírito do ar
ESPÍRITOS DA ILHA, que servem a Próspero
6
1a cena – no navio
Trovões e relâmpagos. O navio enfrenta uma tempestade. Marinheiros correm de
um lado para o outro. Muitos gritos e confusão. O capitão dá ordens para o piloto
manobrar a embarcação e tentar salvá-la do naufrágio. A situação é de perigo
7
CAPITÃO – Piloto!
PILOTO – Sim, capitão?
CAPITÃO – Manobrar, rápido! Baixar velas! Cuidado, vamos
afundar!
Sobem ao convés o rei Alonso, o duque de Milão, Antônio, os nobres
Gonzalo e Sebastião para saber o que está acontecendo, mas acabam
atrapalhando as manobras dos marinheiros
REI ALONSO – Onde está o capitão?
PILOTO – Por favor, fiquem lá embaixo!
ANTÔNIO – Onde está o seu chefe, piloto?
Com raiva
Nervoso
PILOTO – Fiquem nas cabines. Estão atrapalhando o nosso trabalho
e ajudando a tempestade.
GONZALO – Mais calma, amigo.
Tentando acalmar os ânimos
Mais nervoso ainda
PILOTO – Calma? O senhor não é o conselheiro? Aconselhe a
tempestade a ter calma. Se não conseguir, desça para a cabine!
GONZALO – Mais respeito! Lembre-se de que o rei está a bordo!
PILOTO – E por acaso as ondas respeitam algum rei? E rei se afoga
menos que a gente?
SEBASTIÃO – Que a peste devore a sua garganta, seu imbecil!
Com raiva
8
ANTÔNIO – Covarde! Tenho menos medo de morrer do que você!
Com muita raiva
PILOTO – Falar é fácil. Venha trabalhar.
Muito nervoso
Saem o piloto, Antônio, Sebastião e Alonso
Aparte
GONZALO – Confio no piloto, ele não tem cara de quem vai morrer
afogado. Tem mais cara de quem vai morrer enforcado. Tomara que
a forca, e não o fundo do mar, seja o seu destino. Senão estamos
todos perdidos!
Voltam o piloto e os marinheiros, com as roupas encharcadas
MARINHEIROS – Estamos perdidos. Vamos rezar!
Desesperados
PILOTO – Vamos ao fundo!
MARINHEIRO – Adeus, mulher, filhos e mundo!
Resignado
GONZALO – Seja feita a vontade de Deus. Mas eu preferia ter
morte mais seca...
9
10
2a Cena – na ilha
Da praia, a jovem Miranda e seu pai, Próspero, veem o navio afundar. Ela pede ao pai
que ajude os náufragos. Próspero conta a Miranda sobre o passado
11
MIRANDA – Pai querido, o que fez?
Vi o navio afundar,
Sofri com os que vi sofrer.
PRÓSPERO – Calma, calma, minha filha.
Ninguém sofreu um só arranhão:
Foi tudo mágica que eu preparei
Para vingar a traição.
Anos atrás, eu era duque de Milão,
E confiei todo o governo
Às mãos de Antônio, meu irmão,
Que, traiçoeiro e vil,
Se juntou ao rei Alonso
Para me tirar do poder.
E, em noite escura,
Eu e você –
Que tinha apenas 3 anos –
Fomos abandonados em um barco,
Sem água e sem comida,
Para morrer.
MIRANDA – Eu não me lembro de nada.
Como nos salvamos?
PRÓSPERO – Gonzalo, amigo fiel,
Escondido de todos,
Nos levou água, livros e alimentos.
Por sorte, querida filha,
Sãos e salvos chegamos à ilha.
Mas chega de perguntas.
Vejo que está com sono.
12
Próspero faz um gesto de magia sobre a cabeça de Miranda. Ouve-se
uma música suave, e ela adormece. Entra Ariel, um espírito bom, que
serve a Próspero
ARIEL – Salve, meu grande mestre.
Salve, meu grande senhor.
Sei voar, sei nadar,
E no fogo penetrar.
As vossas ordens todas
Vou rápido executar.
PRÓSPERO – Você fez a tempestade,
Como eu ordenei?
ARIEL – Sim, mestre.
Criei fogo,
Fiz o mar levantar.
E, com medo enorme,
Marinheiros e nobres
Se jogaram ao mar.
Mas estão todos vivos,
Como o senhor ordenou:
Suas roupas estão secas,
E até mais novas que antes.
Escondi o navio na enseada,
E os marinheiros fiz dormir.
O príncipe Fernando,
Deixei sozinho, pensando
Que o rei, seu pai, se afogou.
E o rei Alonso, em outro canto,
Imagina que o filho morreu.
13
PRÓSPERO – Muito bem, fiel servidor!
Agora, mais tarefas para você.
ARIEL – Mais tarefas?
Quero a minha liberdade!
PRÓSPERO – Ainda não chegou a hora!
Já se esqueceu de que eu o salvei
Dos feitiços de Sicorax,
A bruxa má de olho azul?
E que ela o prendeu numa árvore,
E que, quando morreu,
Você ficou preso para sempre?
ARIEL – Perdão, meu mestre,
Perdão, meu nobre senhor.
Pode ordenar,
Não vou mais reclamar.
PRÓSPERO – Obedeça e logo, logo,
A liberdade vai ter.
Agora, vista este manto,
Fique invisível a todo e qualquer olhar.
Vá depressa se trocar.
Sai Ariel. Próspero acorda Miranda e os dois vão à caverna de Caliban
PRÓSPERO – Querida filha, acorde.
Vamos ver meu escravo, Caliban.
14
MIRANDA – Pai, não quero ir.
Ele é um vilão
Que eu não consigo
Nem olhar.
PRÓSPERO – É um monstrengo de terra,
Tartaruga muito esquisita,
Sapo feio e venenoso.
Mas nos traz lenha
E acende o nosso fogo.
Próspero e Miranda se postam diante da caverna onde vive Caliban
PRÓSPERO – Caliban, escravo! Responda!
Responde com raiva, de dentro
da caverna
CALIBAN – Já tem muita lenha cortada!
Fora daqui!
PRÓSPERO – Vem cá, tartaruga! Rápido!
Praguejando, enquanto sai da
caverna
CALIBAN – Que caia sobre vocês
Orvalho tão venenoso
Que fiquem cobertos de feridas!
PRÓSPERO – Só por isso, esta noite,
Ouriços vão andar pelo seu corpo,
Você vai ter cãibras e sofrer muitas dores,
Vai ter pesadelos e sonhar horrores.
15
CALIBAN – Está na hora do meu jantar.
Não quero trabalhar.
Esta ilha é minha,
Herdada de minha mãe, Sicorax.
Quando você aqui chegou,
Gostava de mim,
E me ensinou o nome
Da luz grande que queima no céu de dia,
E da luz pequena que queima no céu à noite.
E eu mostrei para você toda a ilha:
Onde encontrar água fresca e terra boa.
Que todos os feitiços de Sicorax –
Besouros, sapos, morcegos –
Caiam sobre você!
Eu sou seu único súdito,
Eu, que antes era meu próprio rei.
MIRANDA – Monstro mentiroso!
Tive pena de você,
E o ensinei a falar,
Quando você só sabia grunhir.
PRÓSPERO – Você atacou minha filha!
Merecia mais que a prisão nesta caverna.
CALIBAN – Você me ensinou a falar,
E, agora, eu sei praguejar!
Que a peste caia sobre você
Por me ensinar a sua língua!
PRÓSPERO – Fora daqui, filho de bruxa!
Vá buscar lenha! Rápido!
Ou quer sentir dores pelo corpo todo?
16
Com medo
CALIBAN – Não, por favor.
Vou obedecer.
PRÓSPERO – Vá, escravo!
Sai Caliban. Ariel volta, ele está invisível para todos, menos para
Próspero. Ele toca e canta, e o príncipe Fernando, apenas ouvindo a
música, o segue
Canta
ARIEL – O rei, seu pai, dorme agora
No fundo, bem no fundo do mar.
Só um grande amor
Há de curar essa dor.
Venha se apaixonar
Aqui perto do mar.
FERNANDO – De onde vem essa música?
Da terra? Do céu? Do ar?
A música me lembra meu pai.
Vou segui-la.
Miranda vê Fernando
MIRANDA – Será um deus?
É tão bonito!
Fernando vê Miranda
FERNANDO – Ó maravilha!
Será humana ou divina?
MIRANDA – Não sou maravilha, senhor.
Sou apenas uma moça.
17
FERNANDO – Ela fala a minha língua!
Para si mesmo
Eu sou o rei de Nápoles.
Para Miranda, se apresentando
Acusando Fernando
PRÓSPERO – O que diria o rei de Nápoles,
Se o ouvisse falar?
Você rouba o nome do rei
E vem aqui para me roubar?
FERNANDO – Deixe-me explicar, senhor.
O rei era meu pai
E morreu na tempestade.
PRÓSPERO – Mentira!
Você veio aqui me roubar!
Agora será meu escravo!
Para mim vai trabalhar!
FERNANDO – Antes, vai precisar me vencer.
Sacando a espada
PRÓSPERO – Guarde a espada, traidor!
Com um só gesto do meu bastão,
Eu faço fraca a sua mão.
Fernando está encantado e não consegue levantar a espada
MIRANDA – Pai, compaixão!
18
PRÓSPERO – Silêncio, filha!
Siga-me, traidor,
Agora é meu prisioneiro.
FERNANDO – ...e mais prisioneiro desse doce olhar...
Fala para si mesmo, olhando para
Miranda
Vou, estou sem forças para lutar.
Saem todos de cena
19
20
3a Cena – Em outra parte da ilha
Entram Alonso, Sebastião, Antônio e Gonzalo. Conversam sobre o naufrágio e sobre como sobreviveram
21
GONZALO – Senhor, alegre-se.
Nós nos salvamos.
É um milagre!
REI ALONSO – Deixe-me em paz, por favor.
Perdi meu filho.
É imensa a minha dor.
GONZALO – Senhor, ele pode estar vivo.
Eu o vi nadando,
Na direção da praia.
Tenho certeza de que se salvou.
REI ALONSO – Não. Ele se afogou.
GONZALO – Quando nosso rei está triste,
Também nós choramos.
REI ALONSO – Por favor, não tente me consolar.
Entra Ariel, vestindo a capa da invisibilidade, tocando música que
enfeitiça e faz adormecer
GONZALO – Sinto um cansaço esquisito,
Meus olhos estão pesados...
Gonzalo adormece
REI ALONSO – Já dormiu?
Ah, como eu queria dormir
Para esquecer minha dor.
22
ANTÔNIO – Durma, senhor.
Eu e Sebastião
Vamos proteger o seu sono.
REI ALONSO – Que cansaço estranho!
Bocejando
Alonso adormece. Ariel sai
SEBASTIÃO – Caíram no sono
Como por magia...
ANTÔNIO – Deve ser o clima.
SEBASTIÃO – Mas por que nós não dormimos?
Não estou com sono.
ANTÔNIO – Nem eu. Estou bem acordado.
E mais acordada ainda
Está minha ambição.
Sebastião, essa é uma rara chance,
Quando o rei e todos dormem...
Pense bem, você, do rei, é irmão,
E o príncipe está morto...
SEBASTIÃO – O que quer dizer?
ANTÔNIO – Veja se me entende:
Com o príncipe morto,
Quem herda o trono?
Você me compreende?
23
SEBASTIÃO – Começo a entender...
Lembro que você roubou
O poder de Próspero, seu irmão,
Aliando-se a Alonso, com traição.
ANTÔNIO – E hoje eu sou duque de Milão.
SEBASTIÃO – E a sua consciência?
ANTÔNIO – Consciência? O que é isso?
Uma frieira no pé?
Vinte consciências não me impediriam
De conseguir o poder...
SEBASTIÃO – Amigo, vou seguir seu exemplo.
Você virou duque de Milão,
Vou virar rei de Nápoles.
Vou me livrar do meu irmão!
ANTÔNIO – Muito bem. Vamos sacar as espadas...
SEBASTIÃO – Mas, antes, uma palavra.
Venha aqui.
Sebastião e Antônio conversam em um canto. Ariel entra, vestido com a
capa da invisibilidade, e canta no ouvido de Gonzalo
ARIEL – Enquanto dorme tranquilo,
A traição está acordada.
Se quer viver,
Acorda, acorda.
24
Antônio e Sebastião levantam as espadas sob a cabeça de Gonzalo
e Alonso
ANTÔNIO – Vamos ser rápidos!
Fala para Sebastião
Gonzalo grita, ainda de olhos
fechados, como se estivesse
tendo um pesadelo
Acordando
GONZALO – Anjos do céu,
Protejam o rei!
REI ALONSO – O que houve?
Por que as espadas puxadas?
GONZALO – Sonhei que estavam nos matando.
Acordando
Disfarçando
SEBASTIÃO – Ouvimos um ruído horrível.
Parecia um leão,
Ou vários leões,
Ou um touro louco...
O senhor não ouviu nada?
REI ALONSO – Não ouvi nada.
ANTÔNIO – Foi um barulhão de dar medo.
Parecia um terremoto.
REI ALONSO – Gonzalo, ouviu algo?
25
GONZALO – Apenas um sussurro esquisito,
Uma música no meu ouvido.
Então, acordei assustado,
E vi Antônio e Sebastião
Com as espadas puxadas.
É melhor irmos embora,
Vamos, rápido, agora!
REI ALONSO – Vamos! Vamos procurar meu filho.
Se ele está vivo, corre perigo.
E nós precisamos de abrigo.
Saem todos
26
4a Cena – Em outra parte da ilha
Entra Caliban, carregando lenha. Ouve-se um ruído de trovão
27
CALIBAN – Que todas as pestes caiam sobre Próspero!
Que ele fique coberto de feridas!
Os espíritos que ele comanda
Podem me escutar,
Mas eu sinto tanta raiva
Que preciso praguejar!
Próspero manda seus espíritos
Me assustarem à noite,
E, por todo lado,
Me seguirem como assombrações.
Às vezes, feito porco-espinho,
Os espíritos me espetam,
E, como cobras, se enroscam no meu pé.
Entra Trínculo, bêbado, e não vê Caliban. Caliban vê Trínculo e pensa
que ele é um espírito malvado enviado por Próspero
CALIBAN – Aí vem um dos espíritos maus,
Só porque eu demorei a levar lenha.
Vou me deitar aqui na terra,
E quem sabe ele não me enxerga.
Olha para o céu
Trínculo vê Caliban deitado
28
TRÍNCULO – Acho que vem outra tempestade, o vento está
soprando forte. Preciso encontrar um abrigo.
TRÍNCULO – Mas o que é isso? É um homem? Ou é um peixe?
Cheirando Caliban
Tocando Caliban
Está vivo ou morto? É peixe!
Pelo cheiro é peixe. É um bacalhau muito velho, meio podre.
Cheirando Caliban de novo
Examinando melhor
Ouve trovões
Mas é um peixe muito esquisito! Se eu estivesse agora na Inglaterra,
eu levava este monstro para a feira de domingo. Ia ficar rico: todo
mundo ia querer ver esse bicho fedorento. Lá ninguém dá nem uma
moedinha pra ajudar um mendigo, mas dão um monte de moedas
pra ver um índio empalhado. Vou examinar bem este peixe: as pernas
parecem de gente; as barbatanas parecem braços... E esta coisa está
quente! Acho que não é peixe. Deve ser um habitante da ilha que um
raio acabou de atingir!
Ai, que medo! Outra tempestade! É melhor eu me esconder debaixo
do casaco desse monstro. A miséria nos traz companheiros muito
esquisitos.
Entra Estéfano, bêbado, cantando e trançando as pernas, com uma
garrafa de bebida
Canta
Falando para si mesmo
Olha para a garrafa
ESTÉFANO – Não volto mais pro mar,
Quero morrer na terra
Quero morrer sequinho
Só na bebida me afogar.
Que música horrível! Não serve nem pra cantar num enterro.
Ah, aqui está meu consolo.
Bebe
29
CALIBAN – Não me torture, espírito!
Pensando que Estéfano é um
espírito enviado por Próspero
Estéfano olha para a capa onde estão escondidos Caliban e Trínculo.
Ele só vê pés e pernas saindo de cada lado da capa; as cabeças estão
escondidas. Caliban e Trínculo estão tremendo de medo
ESTÉFANO – O que é isso? Será um demônio da ilha? Ou algum
índio fantasiado querendo me assustar? Mas eu não escapei de morrer
afogado pra ficar com medo dessas uma, duas, três, QUATRO
PERNAS! Não, isso deve ser um monstro da ilha, um monstro de
quatro pernas, que pegou uma febre e está delirando!
CALIBAN – Ó espírito, tenha pena!
Já vou levar lenha.
ESTÉFANO – Onde será que ele aprendeu a falar a minha língua?
Vou lhe dar um fortificante.
Toma, abra a boca, esse vinho faz a febre passar!
Abre a boca de Caliban e lhe dá
vinho
Abre, de novo, a boca de Caliban
Mais um pouco, abre mais essa mandíbula!
Caliban bebe
Com a cabeça ainda coberta
TRÍNCULO – Acho que conheço essa voz. Não, não pode ser. Ele
morreu afogado. Deve ser um espírito! Socorro! Socorro!
ESTÉFANO – Nossa! Quatro pernas e duas vozes! Que monstro
maravilhoso! Acho que vou dar um pouco de vinho pra outra boca
também. Ela merece.
TRÍNCULO – Estéfano? É você, Estéfano?
30
ESTÉFANO – O quê? A outra boca me chamou pelo nome? Socorro,
socorro, deve ser um demônio!
TRÍNCULO – Estéfano! Se você for você, fale, porque eu sou Trínculo,
seu amigo. Não tenha medo. Sou seu velho amigo Trínculo.
ESTÉFANO – Trínculo, se é você mesmo, saia daí. Vou puxar
você pelas pernas. Essas aqui são pernas finas, parecem as pernas de
Trínculo.
Puxa Trínculo pelas pernas
É Trínculo mesmo! Mas como é que você virou pum de monstro?
Será que esse monstro peida Trínculos?
TRÍNCULO – Oh, Estéfano, você está vivo!
Sem ter certeza se Estéfano é
apenas um espírito
Ele abraça forte Estéfano,
sacudindo-o
Não morreu afogado, ou morreu? Eu estava com tanto medo da
tempestade que me escondi debaixo da capa desse monstro. Oh,
Estéfano, que bom que você está vivo!
ESTÉFANO – Por favor, pare de me sacudir. Meu estômago está
meio fraco, com tanto vinho.
Fala, sem que os outros o ouçam
Para Trínculo
CALIBAN – Acho que são espíritos.
Este que me deu de beber
Deve ser um deus
Pois a bebida é celestial!
Vou me ajoelhar aos seus pés.
ESTÉFANO – Como você se salvou? Eu consegui me agarrar a um
barril de vinho e cheguei até a praia, boiando e bebendo.
31
Para Estéfano
CALIBAN – Juro por esta garrafa
Que serei seu súdito fiel.
Esta bebida deve ser do céu!
ESTÉFANO – Ajoelhe aqui, jure e beba.
Para Caliban
Para Trínculo
E você me conta como se salvou da morte.
TRÍNCULO – Eu nadei até a praia. Sei nadar como um cachorrinho.
Tem mais bebida?
ESTÉFANO – Um barril inteiro! Escondi todo o vinho perto da praia.
CALIBAN – O senhor veio do céu?
Pergunta a Estéfano
ESTÉFANO – É, eu caí da lua. Eu era o homem da lua.
Ainda ajoelhado
CALIBAN – Eu já vi o senhor na lua.
Minha mãe sempre me mostrava
O deus da lua e seu dragão.
ESTÉFANO – Vamos. Jure logo por essa garrafa.
Diz para Caliban
Caliban bebe
Para Estéfano
TRÍNCULO – Que monstro idiota! Acreditar no homem da lua!
Esse monstro gosta de beber!
Para Estéfano
CALIBAN – E vou beijar os seus pés.
Seja o meu rei!
ESTÉFANO – Então, pode beijar. Ajoelhe, beije e beba.
Para Caliban
32
Caliban bebe da garrafa e beija os pés de Estéfano
TRÍNCULO – O monstro está bêbado! Beijar estes pés sujos?
Aparte
CALIBAN – Eu vou mostrar pro senhor
Todas as terras férteis
E as fontes de água mais limpa
E vou pescar os melhores peixes
E colher as frutas mais doces
E lhe trazer lenha
E acender o fogo.
Mas, antes, o senhor precisa
Matar o tirano que me escraviza.
ESTÉFANO – Monstro, chega de falar. Beba mais um pouco.
Para Caliban
Vira-se para Trínculo
Trínculo, o rei, os nobres e todos os marinheiros estão mortos. Nós
vamos tomar posse desta ilha! Nós agora somos donos de tudo isso!
Vamos reinar!
CALIBAN – Bã, bã, bã, Caliban tem outro rei! Liberdade! Liberdade!
Canta, bêbado
Falando para Caliban
Para Estéfano
Apontando para Trínculo
ESTÉFANO – Monstro-criado, beba à saúde de seu novo rei. Nunca
mais vamos beber água até o vinho acabar.
CALIBAN – Como passa a vossa honra?
Deixe-me lamber
A sola dos vossos pés.
Mas não vou servir a ele.
Ele não é corajoso,
Debaixo da minha capa ele se escondeu,
E como vara verde tremeu.
33
TRÍNCULO – Monstro mentiroso, monstro idiota! Já viu algum
covarde beber tanto quanto eu?
CALIBAN – Vê como ele me xinga, vossa grandeza?
Como pode permitir esse desrespeito, vossa alteza?
Indignado
TRÍNCULO – Vossa grandeza? O monstro está chamando Estéfano
de vossa alteza? Que monstro pateta!
Implora a Estéfano
CALIBAN – Por favor, majestade,
Corte-o pela metade.
ESTÉFANO – Trínculo, guarde essa língua suja. O pobre monstro é
meu súdito e vou protegê-lo.
CALIBAN – Obrigado, meu soberano.
Gostaria de ouvir o meu plano?
ESTÉFANO – Sim, ajoelhe-se e conte... Eu e Trínculo ficamos em pé.
Entra Ariel vestido com o manto da invisibilidade
CALIBAN – Sou escravo de um tirano,
Que por meio de magia,
Roubou a ilha de mim.
ARIEL – Que mentira!
Fala perto de Trínculo, para que
pensem que é Trínculo quem está
falando
Com raiva, vira-se para Trínculo
34
CALIBAN – Você é que mente!
Se eu fosse meu amo,
Acertava seu dente!
ESTÉFANO – Trínculo, não interrompa mais o monstro.
TRÍNCULO – Mas eu não falei nada.
ESTÉFANO – Quieto.
Para Trínculo
Para Caliban
Continue.
CALIBAN – Como eu já disse,
O mago Próspero
Roubou a ilha de mim.
Se o senhor o matar,
Fica com a ilha
E eu viro seu escravo.
ESTÉFANO – Uma boa ideia! Mas como vou fazer isso? Onde está
o inimigo?
CALIBAN – Próspero tem o costume
De dormir à tarde.
Vou levar o senhor à caverna
E, com uma pancada...
Fingindo que é Trínculo
Diz para Trínculo
ARIEL – Que plano idiota!
CALIBAN – Idiota é você!
Vossa alteza, por favor,
Dê umas pancadas neste estupor!
ESTÉFANO – Trínculo, se você interromper mais uma vez o monstro
com uma única palavra, eu juro que faço você virar bacalhau.
35
TRÍNCULO – Mas o que eu fiz? Não fiz nada. Não abri a boca,
nem para beber. Vou mudar de lugar.
ESTÉFANO – Continue, monstro.
CALIBAN – Como eu dizia,
O mago dorme à tarde.
O senhor vai lá,
Rouba os livros
E acaba com ele.
Mas, primeiro,
Precisa pegar os livros.
Sem eles,
O mago não tem poder algum...
ARIEL – É mentira!
Fingindo que é Trínculo
Para Trínculo
Bate em Trínculo
ESTÉFANO – O quê? Atrapalhando o monstro de novo? Tome
isso!
E mais isso! E mais isso!
TRÍNCULO – Eu não disse nada. Você bebeu tanto que está ouvindo
coisas que não existem. Vão pro inferno, você e esse seu monstro.
CALIBAN – Ah! Ah! Ah!
ESTÉFANO – Monstro, continue com o plano. E você, Trínculo,
fique bem longe pra não atrapalhar. Mais longe!
Para Caliban
Pode continuar, monstro.
CALIBAN – O senhor o mata,
Fica com a casa
E casa com a filha.
36
ESTÉFANO – Monstro, vou matar esse homem. Sua filha e eu
seremos rei e rainha. Trínculo e você serão vice-reis. Gostou do
plano, Trínculo?
TRÍNCULO – Excelente.
Para Trínculo
Aparte para a plateia
ESTÉFANO – Vamos, aperte aqui a minha mão. Vamos fazer as
pazes. Desculpe ter batido em você.
ARIEL – Com música suave,
Atraio os três para o pântano,
E os deixo lá,
Com os pés presos no lodo,
E para Próspero voo
Para ligeiro contar o plano.
Ariel toca uma melodia numa flauta
ESTÉFANO – Que música é essa?
TRÍNCULO – Deve ser um fantasma tocando.
ESTÉFANO – Se for homem, apareça.
Enchendo-se de coragem
E se for fantasma também.
TRÍNCULO – Oh! Eu me arrependo de todos os meus pecados!
Com medo, ajoelhando-se
CALIBAN – Está com medo?
ESTÉFANO – Eu não, monstro! Eu não!
37
CALIBAN – Não tenha medo.
A ilha é cheia de sons,
Música e mil ruídos,
Que não fazem mal
E encantam os ouvidos.
Às vezes, mil instrumentos e vozes suaves
Cantam para eu dormir.
E em meus sonhos, os céus se abrem
E despejam tesouros sobre mim.
E, quando acordo,
Choro para dormir de novo
E sonhar outra vez.
ESTÉFANO – Que lugar ótimo! Vamos ter música sem ter que pagar.
CALIBAN – Mas, antes, é preciso Próspero assassinar.
ESTÉFANO – Monstro, vá na frente. Vamos seguir a música. Avante,
minha gente.
Saem todos
38
5a Cena – diante da caverna de Próspero
Entra Fernando, carregando lenha
39
FERNANDO – O trabalho é pesado,
Mas, quando vejo o seu rosto,
Tudo fica leve.
Entra Miranda. Próspero a segue a certa distância
MIRANDA – Oh! Não trabalhe tanto!
Eu ajudo a levar lenha.
Meu pai agora está lendo.
Descanse por um momento.
FERNANDO – Não, anjo precioso.
Não me canso se posso vê-la.
Qual o seu nome?
MIRANDA – Miranda.
FERNANDO – Admirável Miranda!
Já conheci muitas moças,
Mas nenhuma tão amável,
Perfeita e incomparável.
MIRANDA – Eu não me lembro de ter visto
Outro rosto humano,
A não ser o de meu pai,
E agora o seu, meu bom amigo.
E não posso imaginar
Outro homem mais perfeito.
40
FERNANDO – Miranda, eu sou um príncipe,
Ou talvez já seja até rei.
Mas aguento este serviço escravo
Só para vê-la.
MIRANDA – Então me ama?
Ajoelhando-se diante de Miranda
FERNANDO – Mais que tudo no mundo!
Quer casar comigo?
Estica a mão
MIRANDA – Aqui está minha mão
E nela ponho meu coração.
Um pouco afastado, Próspero fala para si mesmo
PRÓSPERO – Estão perdidamente apaixonados.
Fico feliz pelos dois.
Próspero se aproxima do casal e fala para Fernando
PRÓSPERO – Se eu o tratei com dureza,
Foi para conhecer com certeza
O que há em seu coração.
Está livre. Agora tem sua recompensa:
Minha filha e minha bênção.
FERNANDO – Obrigado, senhor.
Ela vale todos os sofrimentos
Pelos quais, sorrindo, passei.
41
PRÓSPERO – Para o noivado comemorar,
Seres misteriosos vão dançar.
Entram espíritos e realizam uma dança para os noivos, oferecendo aos
dois trigo, uvas, flores e outros presentes. Fernando e Miranda assistem, encantados. De repente, Próspero, interrompe o espetáculo
Para si mesmo
Para os espíritos
Admirado com o comportamento
de Próspero, fala para Miranda
PRÓSPERO – Quase esqueci
Do plano de Caliban para me matar.
Agora, chega! Saiam, espíritos!
FERNANDO – Por que seu pai terminou a peça
Com tanta raiva e tanta pressa?
MIRANDA – Nunca o vi agir dessa maneira.
Percebendo o espanto de Miranda
e Fernando, tenta se justificar
42
PRÓSPERO – Parecem espantados, queridos filhos.
Alegrem-se.
Nossa peça acabou,
E os espíritos que por aqui passaram
Eram apenas ar, não mais que ar.
E assim como essa peça
Teve um fim,
Um dia, o globo inteiro,
Sim, tudo o que está à nossa volta,
Também vai sumir,
Sem deixar rastro.
Nós somos feitos
Da matéria dos sonhos
E a nossa vida
Está envolta em um sono.
Para Fernando
Perdoem meu estranho comportamento.
Vou caminhar um pouco, estou nervoso.
Entrem na caverna e descansem por um momento.
Miranda e Fernando entram na caverna. Próspero fica sozinho no palco
PRÓSPERO – Preciso aos meus livros retornar
E com meus inimigos acabar.
Próspero sai
43
44
6a Cena – em outra parte da ilha
Entram Alonso, Sebastião, Antônio e Gonzalo
45
Com voz cansada
GONZALO – Como estou cansado!
Não consigo dar nem mais um passo.
REI ALONSO – Também estou exausto.
Vamos sentar.
Não adianta mais procurar.
Quem buscamos
Não está entre os vivos.
Aparte, para Sebastião
ANTÔNIO – Fico feliz por vê-lo tão triste.
Hoje à noite,
Quando todos estiverem dormindo...
SEBASTIÃO – Combinado. Hoje à noite, então.
Ouve-­se uma música e entram figuras estranhas, trazendo uma mesa com um banquete. Dançam ao redor da mesa e, com gestos, convidam
o rei e os outros para comer
GONZALO – Que música suave!
REI ALONSO – Mas que figuras são essas?
SEBASTIÃO – São fantoches vivos!
GONZALO – Se eu contasse isso em Nápoles,
Será que acreditariam?
Devem ser habitantes da ilha.
São monstruosos, mas delicados.
As figuras estranhas desaparecem
46
Sumiram, desapareceram no ar!
SEBASTIÃO – Mas deixaram a comida.
Estou com uma fome...
REI ALONSO – Vou comer, mesmo que pela última vez.
Trovões e relâmpagos. Entra Ariel sob a forma de um homem-pássaro
Com voz poderosa
ARIEL – Três pecadores expulsaram Próspero de Milão,
Abandonando-o com sua filha ao mar.
Agora, o mar os puniu:
Roubou do rei Alonso, o filho.
Vocês vão enlouquecer,
A comida vai desaparecer.
No arrependimento está a salvação
Próspero precisa lhes dar o perdão.
As figuras estranhas entram novamente, dançando e se contorcendo e depois carregam a comida e a mesa
Alonso sai, enlouquecido
REI ALONSO – Ouvi as ondas, os ventos e os trovões
Falarem do meu crime,
Repetindo o nome de Próspero.
Falaram do meu filho morto.
Com ele, no fundo do mar,
Quero me deitar.
SEBASTIÃO – Vou derrotar esses seres horríveis.
Com a espada em punho
47
ANTÔNIO – Eu vou junto.
Também com a espada em punho
Saem Sebastião e Antônio, enlouquecidos
GONZALO – A culpa pelo crime os enlouqueceu.
Os três se desesperaram.
Vou atrás, impedir uma desgraça.
Sai atrás dos outros
48
7a Cena – Diante da caverna de Próspero
Próspero, com a ajuda de Ariel, planeja uma armadilha contra Caliban, Estéfano e Trínculo
49
PRÓSPERO – Ariel, apareça!
Entra Ariel
ARIEL – Que deseja, poderoso mestre?
PRÓSPERO – Onde estão Caliban e os seus comparsas?
ARIEL – Senhor, beberam tanto
Que ficaram corajosos.
Querem matar o senhor
E agora estão vindo para cá.
PRÓSPERO – Ariel, vamos preparar uma armadilha
Para apanhar os moleques.
Traga roupas brilhantes
E as pendure nesta corda.
ARIEL – Vou já!
Ariel sai e volta com as roupas brilhantes. Pendura na corda
PRÓSPERO – Agora, invisíveis, vamos observar.
Próspero e Ariel vestem os mantos da invisibilidade. Entram Caliban,
Estéfano e Trínculo
Fala baixinho
CALIBAN – Por favor, pisem de leve,
Próspero não pode acordar.
TRÍNCULO – Monstro, aquela música suave nos enganou.
Perdemos as garrafas de bebida na lama.
50
ESTÉFANO – Monstro, foi uma perda terrível! Preciso voltar ao
pântano e procurar minha garrafa.
TRÍNCULO – Monstro, estou fedendo a xixi de cavalo. Meu nariz
está muito indignado.
ESTÉFANO – E o meu também.
CALIBAN – Fique calmo, majestade.
Ali está a caverna.
É só entrar,
E Próspero matar.
ESTÉFANO – Me dê sua mão, monstro. Começo a ter pensamentos
sanguinários!
Vendo a corda com os trajes
brilhantes
TRÍNCULO – Ó, rei Estéfano! Olhe que roupas brilhantes para
vossa majestade!
CALIBAN – Deixem as roupas pra lá.
TRÍNCULO – Monstro, nós conhecemos muito bem roupas boas!
Trínculo veste um manto
ESTÉFANO – Tire esse casaco, Trínculo. Quero esse casaco pra mim.
TRÍNCULO – Pois não, majestade.
CALIBAN – Por que perdem tempo
Com roupas que são só lixo?
Próspero vai acordar
E, com certeza, nos castigar.
ESTÉFANO – Calado, monstro! Veja que casaco bonito! É debruado
de prateado!
51
TRÍNCULO – Vamos pegar essas roupas. Venha, monstro, carregue
isso aqui.
CALIBAN – Não quero nada.
Perdemos tempo com esses cacos.
Se Próspero acordar
Nos transforma em macacos.
ESTÉFANO – Monstro, carregue isso ou expulso você do meu reino.
TRÍNCULO – Carregue isso também. E mais isso.
ESTÉFANO – E mais isso. E isso aqui também.
Enquanto falam, Estéfano e Trínculo tiram as roupas da corda e jogam
em cima de Caliban
Aparte
PRÓSPERO – Que espíritos sob a forma de cães
Persigam Caliban e seus comparsas.
Que meus duendes lhes deem fisgadas
Mordidas, arranhões e alfinetadas.
Ouvem-se latidos e barulho. Entram duendes e espíritos sob a forma de
cães enviados por Próspero. Perseguem Estéfano, Trínculo e Caliban,
que fogem
PRÓSPERO – Todos os meus inimigos
Estão sob o meu poder.
Que horas são?
ARIEL – Seis horas, mestre,
A hora em que o senhor disse
Que acabariam os feitiços.
52
PRÓSPERO – Onde estão o rei e seus companheiros?
ARIEL – No bosque, enfeitiçados.
Tanto o rei quanto Sebastião e Antônio estão loucos.
O nobre Gonzalo chora.
Se eu fosse humano,
Teria pena deles.
PRÓSPERO – Se você, que é apenas ar,
Tem tanta pena da dor humana,
Então eu, que sou da mesma espécie,
Terei também piedade deles,
Que cometeram crimes, é verdade,
Mas sofrem agora, arrependidos.
Vou perdoá-los.
Pois o perdão é mais nobre que a vingança.
Quebre o encantamento, Ariel,
Vá libertá-los,
Faça com que recuperem a razão.
Todos terão minha compaixão.
ARIEL – Vou buscá-los, senhor.
Ariel sai. Próspero faz um círculo no chão. Ouve-se uma música. Ariel
volta com Alonso e os outros, que ainda estão enfeitiçados. Todos
entram no círculo feito por Próspero
PRÓSPERO – Estão imobilizados por minha magia.
Essa música vai curá-los.
Toca uma música suave
Gonzalo, meu salvador, acorde.
Rei Alonso, que, influenciado por seu irmão,
Expulsou a mim e à minha filha, de Milão,
53
Desperte.
Sebastião, que quis roubar a coroa do próprio irmão,
Acorde.
E Antônio, meu sangue e minha carne,
Que cedeu à ambição,
E roubou o meu ducado,
Olhe nos meus olhos.
Todos têm o meu perdão.
Aos poucos, todos vão acordando e recuperam a razão
PRÓSPERO – Boas-vindas a todos.
Sou Próspero,
O antigo duque de Milão.
Não me reconhecem?
Próspero veste seu antigo manto
de duque de Milão e sua coroa
Nobre amigo Gonzalo,
Que me salvou a vida,
Deixe-me aqui abraçá-lo.
GONZALO – Será que sonho?
PRÓSPERO – Bem-vindos, amigos.
REI ALONSO – Próspero, eu lhe peço perdão
Pelo mal que causei a você e à sua filha.
E lhe concedo de volta o seu ducado.
Nós naufragamos e viemos dar nesta ilha.
Meu filho Fernando, o príncipe, morreu afogado.
54
PRÓSPERO – Sinto muito, senhor.
REI ALONSO – Nada pode me consolar.
PRÓSPERO – Senhor, eu tive uma perda igual.
REI ALONSO – Perdeu sua filha?
Quem dera estivessem agora em Nápoles,
Vivos e reinando como rei e rainha...
Quando perdeu a sua filha?
PRÓSPERO – Na última tempestade, senhor.
Mas, por favor, entrem em minha caverna,
Que é meu único palácio.
São bem-vindos.
E, agora, rei Alonso,
Por ter me devolvido o poder,
Vai receber um presente precioso.
Próspero abre a cortina da caverna e todos veem Fernando e Miranda
jogando xadrez
SEBASTIÃO – Um milagre!
Fernando vê seu pai. Os dois se abraçam
REI ALONSO – Meu filho! Como se salvou?
55
Vendo os nobres
MIRANDA – Oh! Maravilha!
Quantos humanos vejo aqui!
Como é bela a natureza humana!
Ó, admirável mundo novo
Que tem tão nobres habitantes!
PRÓSPERO – É um mundo novo para você.
Em tom irônico
REI ALONSO – Quem é essa jovem, meu filho?
FERNANDO – Meu bom pai,
Quando pensei que estivesse morto,
Pedi a mão dessa moça em casamento.
Ela é filha do duque de Milão.
REI ALONSO – Serei para ela um segundo pai.
Sei que é estranho um pai
Pedir perdão à própria filha.
Para Miranda
Perdão, minha filha.
PRÓSPERO – Senhor, vamos esquecer
As lembranças tristes do passado.
GONZALO – Peço agora que os céus
Derramem bênçãos sobre estes jovens.
REI ALONSO – Amém, bom Gonzalo!
GONZALO – Assim, o duque de Milão foi de Milão expulso,
E agora sua filha reinará em Nápoles.
Alegria, senhores.
56
Pai e filho se reencontram.
O duque Próspero tem de volta o seu ducado.
Nesta ilha perdida, nós perdemos a razão
E encontramos o arrependimento e o perdão.
Entra Ariel com o capitão e o piloto
GONZALO – Vejam, meu pedido se realizou.
O piloto não morreu afogado!
Ele foi feito para a forca, como eu previa!
E, então, piloto, o que tem a dizer?
PILOTO – Que estamos felizes por ter encontrado
O rei e os nobres sãos e salvos.
E que o navio,
Que eu pensava destruído,
Está novinho em folha
E pronto para partir.
REI ALONSO – Mas como conseguiram se salvar?
PILOTO – Não sei, senhor.
Apenas me lembro
Que fomos acordados
Por estranhos barulhos, rugidos horríveis.
Vimos, então, o navio em perfeito estado.
E, como num sonho,
Fomos trazidos para cá.
ARIEL – Fiz tudo como o senhor ordenou, mestre.
Para Próspero
Para Ariel
PRÓSPERO – Meu bravo espírito!
Em breve, estará livre.
Agora, vá, liberte Caliban.
57
REI ALONSO – Esta ilha é mágica,
E toda essa história
Desafia a nossa razão.
PRÓSPERO – Meu soberano, não procure explicação.
Na hora certa, com calma, eu conto
Como tudo aconteceu.
Senhor, não faltam, ainda,
Dois homens da comitiva?
Volta Ariel empurrando Caliban, Estéfano e Trínculo, que estão vestidos
com as roupas roubadas
Vendo os nobres, pensa que são
espíritos
CALIBAN – Que belos espíritos!
E como está bem-vestido o meu amo!
Tenho medo que me castigue.
ESTÉFANO – Coragem, monstro! Coragem!
SEBASTIÃO – Que coisas são essas, Antônio?
Olhando Caliban, Estéfano e
Trínculo
Rindo da aparência de Caliban e
do estado de Estéfano e Trínculo
ANTÔNIO – Um deles parece um peixe.
Podemos vendê-lo no mercado
E ainda ganhar algum trocado.
REI ALONSO – É a coisa mais estranha que eu já vi.
Apontando para Caliban
58
PRÓSPERO – Os três tentaram me roubar.
Esse monstro das trevas,
Planejou com os outros me matar.
CALIBAN – Ai, ai, vou ser beliscado até a morte.
REI ALONSO – Aquele não é Estéfano, o mordomo?
E aquele não é Trínculo, o bufão?
Mas como ficaram tão bêbados?
SEBASTIÃO – Como está, Estéfano?
Rindo
ESTÉFANO – Senhor, não me toque. Não sou mais Estéfano, eu
sou só uma ferida. Fui todo mordido por cachorros assombrados.
PRÓSPERO – Queria ser rei da ilha, moleque?
ESTÉFANO – Eu seria um rei bem mordido.
PRÓSPERO – Já para a minha caverna, Caliban!
Ponha as roupas no lugar,
Deixe tudo bem-arrumado,
Se quiser ser perdoado.
CALIBAN – Já vou, senhor.
E de hoje em diante
Serei bom e obediente.
Fui um idiota em achar
Que esse bêbado era um rei.
PRÓSPERO – Convido os nobres e vossa alteza
A descansar em minha caverna.
Lá, eu contarei minha história
E todos os perigos por que passei.
Amanhã, partimos para Nápoles,
Onde será o casamento
De Fernando e Miranda.
59
Prometo, para nossa viagem,
Mares calmos e velas velozes.
Entrem, senhores.
Vira-se e fala apenas para Ariel
Ariel, deixo tudo ao seu cuidado,
Está livre, espírito! Obrigado.
Saem todos
Epílogo
PRÓSPERO – Eu, que fiz tantos encantos,
Agora renuncio à magia,
Quebro a minha varinha,
E volto a ser só homem.
Esqueci a vingança
Aprendi o perdão.
Pedindo aplausos
E assim como vocês
Também precisam de compaixão,
Libertem a nós, atores,
Com a força das vossas mãos.
Fim
60
61
William Shakespeare
No céu havia uma estrela, e sob ela eu nasci.
(William Shakespeare)
Nasceu em 23 de abril de 1564, na pequena cidade de Stratford-uponAvon, no coração da Inglaterra.
Shakespeare participou das atividades teatrais de várias maneiras: foi ator,
autor, diretor, membro da companhia teatral e sócio da casa de espetáculos.
O teatro era uma opção de diversão para as pessoas que chegavam e partiam
de Londres.
O teatro elisabetano, chamado assim por causa da rainha Elizabeth, era
muito diferente dos teatros de hoje. Ele era circular e ao ar livre, onde
cabiam cerca de duas mil pessoas. A encenação das peças acontecia à luz do
dia. Não havia cortinas, cenários ou iluminação artificial.
O palco do teatro era projetado, a área de representação era em direção
à plateia, que podia ficar em pé, nos três lados do palco, ou sentada nas
fileiras de bancos.
Havia muita música nas peças daquele tempo, e os músicos ficavam à vista
de todos, em um balcão sobre o palco.
Apenas atores do sexo masculino podiam representar. Assim, os papéis
femininos tinham que ser feitos por jovens rapazes que ainda não tivessem
mudado de voz e nem tivessem barba.
Para compreender as peças, a plateia precisava escutar com atenção o que
diziam os atores. Como havia pouco cenário, bastava um personagem dizer
que estava em um navio para a plateia imaginar esse navio; era suficiente
falar em cavalos, para o público “ouvir” o trote de cavalos; bastava dizer que
era noite para que todos aceitassem que era noite, mesmo que o sol estivesse
brilhando no céu de Londres (lembre-se, o teatro era ao ar livre!). E ainda, se
um personagem dissesse que estava invisível, a plateia aceitava que aquilo era
verdade! Nesse caso, para auxiliar a imaginação, havia uma roupa, o manto da
invisibilidade, que é usado, por exemplo, por Próspero em A tempestade.
Enfim, o teatro de Shakespeare valorizava a palavra, a interpretação do ator e
a imaginação da plateia.
Shakespeare escreveu quarenta peças: tragédias, comédias e históricas (sobre
a história dos reis e nobres da Inglaterra). Suas peças mais conhecidas são as
tragédias Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth, Rei Lear, Otelo e as comédias
Sonho de uma noite de verão, Noite de reis e A tempestade.
Aos 52 anos de idade, Shakespeare decidiu se aposentar e voltar para Stratford,
sua terra natal.
Infelizmente, morreu pouco depois, e curiosamente no mesmo dia em que
nasceu. Não se sabe ao certo a causa da morte; alguns acham que foi devido
a uma febre, outros acreditam que ele já se encontrava doente e isso teria sido
um dos motivos pelos quais ele havia voltado a Stratford.
Shakespeare está enterrado na igreja de Holy Trinity. Na lápide de seu túmulo
pode-se ler:
Bom amigo, pelo amor de Jesus,
Não cave a poeira aqui encerrada:
Abençoado seja aquele que respeitar estas pedras,
E maldito seja aquele que mexer em meus ossos.
Liana de camargo Leão
Sou professora de literatura inglesa na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
já ministrei vários cursos sobre Shakespeare, dentro e fora da universidade. Tenho
artigos publicados sobre as peças e sobre Shakespeare no cinema. Organizei
também, junto com a professora doutora Marlene Soares dos Santos, o livro
Shakespeare, sua época e sua obra (2008), onde vários especialistas brasileiros
falam sobre a obra de Shakespeare. Há quatro anos organizo, em Curitiba, para
alunos da UFPR e também para o público leigo, um evento em homenagem ao
nascimento do dramaturgo: o “Abril de Shakespeare”.
Meu desejo, nesta adaptação, é oferecer às crianças, jovens e professores a
oportunidade de encenar as peças, mantendo a linguagem teatral e o espírito da
obra do dramaturgo.
Márcia Széliga
Aquarela poderia ter sido o material utilizado nas ilustrações deste livro. Afinal,
combina com água, mares, garoa, chuva, tempestade. Mas a escolha mesmo
acabou sendo o lápis de cor, cores suaves podendo se tornar fortes, vivas... Como
uma chuva pode se transformar numa tempestade.
Para dar mais alimento à minha inspiração, usei como ponto de partida o filme
Prospero’s book, de Peter Greenaway, onde as cenas percorrem páginas de um livro
vivo.
Sim, os livros são vivos! Ilustrar também é mexer com algo muito vivo.
A tempestade, de Shakespeare, coloca qualquer um nessa dimensão de tocar o
sentido mágico das coisas e os sentimentos da vida.
Trazer essa vida para as ilustrações é um jeito de fazer com que as imagens e as
palavras entrem pelas janelas da alma, que possam tocar fundo, através dos olhos
leitores, a porção mais viva de cada um.