Comunicação Política

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Comunicação Política
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
Coordenação: Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt ([email protected])
Eleições 2.0 e o Ódio nas redes: uma análise sobre a disputa pela
Presidência em 20141
Angelo Carnieletto Müller2
Orientador: Jacques A. Wainberg
[email protected]
Resumo
A eleição de 2014 repetiu pela sexta vez consecutiva o confronto direto entre PT e
PSDB pela presidência da República no Brasil. A campanha foi marcada pela militância
nas redes sociais, que ofereceu o processo eleitoral como pauta do dia e possibilitou, de
um lado a democratização da discussão política, e de outro, a exacerbação das
diferenças ideológicas na forma de discurso do ódio. Neste trabalho, apresentamos uma
metodologia que verifica o potencial ofensivo dos discursos através da análise
qualitativa e quantitativa e, a partir desta análise, verificamos o sentimento de
propagação do ódio e do clima de ruptura social a partir das curtidas e
compartilhamentos dos programas eleitorais realizados para a televisão e publicados na
rede Facebook de cada candidato.
Palavras-chave: Comunicação Social; Discurso do Ódio; Política; Clivagem; Mídias
Sociais.
Justificativa:
O discurso do ódio, como estratégia de comunicação, tem a natureza de um
argumento retórico. Ele até pode estar banalizado na cultura de uma sociedade e não se
fazer percebido em todas as suas formas, mas ainda assim, tem um poder, pois é
discurso, e quando direcionado sobre questões políticas, atua no sentido de reforçar ou
até mesmo criar novas crenças a respeito de determinados grupos sociais, étnicos,
políticos e religiosos. Enquanto estratégia de um discurso retórico, ele pôde ser
percebido nos pronunciamentos em tempos de guerra, da mesma forma que em jogos de
futebol, entre torcedores rivais e, naturalmente, em campanhas eleitorais. Confrontos,
rivalidade, antagonismos, inimigos, oponentes. Estes são alguns dos conceitos, que
fazem parte do léxico que envolve o Discurso do Ódio e a natureza dos sentimentos que
são reforçados através do seu uso.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Comunicação Política do XIII Seminário Internacional de
Comunicação da PUC RS.
2
Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela PUCRS (2003); Mestre em Comunicação pela
PUCRS (2014) e Doutorando do PPPGCOM da PUCRS. Bolsista do Capes.
1
De fato, ele vem sendo utilizado ao longo dos anos para fortalecer lideranças,
ideologias, governos, e regimes ocidentais e antiocidentais em quase toda a sociedade
europeia e latino-americana. Ao longo do tempo, estes discursos, foram perdendo o
caráter de novidade e constituindo um lugar-comum, foram estabelecendo uma tradição
de simbologia e interpretação que se transformou numa epistemologia do entendimento
sociopolítico universal, baseada no ódio. Um ódio que, da mesma forma como acontece
com as tecnologias como nos lembrou Mark Weiser (1991), apresenta todo o seu poder,
especialmente quando sua presença deixa de ser percebida.
Mesmo como um mero argumento, este tipo de discurso tem acompanhado as
narrativas sociopolíticas ao longo da história. E tem transformado gradativamente o
arcabouço conceitual que envolve personagens e personificações políticas em todo o
mundo, recaindo tanto sobre conservadores como liberais, ou até mesmo sobre os
símbolos do ocidente e do oriente. Podemos dizer, portanto, que a recorrência destes
discursos também contribuiu para definir o imaginário sociopolítico mundial. E
passamos a reconhecer, tanto as grandes correntes ideológicas, como as minorias e
maiorias culturais e religiosas, justamente a partir daqueles valores com os quais menos
nos identificamos pessoalmente.
Isso resultou em sociedades altamente divididas. Mas a ruptura de que tratamos
neste trabalho, apesar de não ser de ordem religiosa, como percebemos na convivência
entre muçulmanos e católicos na Europa; nem cultural, como percebemos entre orientais
e ocidentais; é a ruptura possível de ser percebida entre os simpatizantes das diferentes
correntes políticas que protagonizaram, ao longo dos últimos 20 anos, a disputa pela
presidência da República no Brasil. Uma ruptura que, apesar de se dar em camadas
diferentes daquelas culturais e religiosas, está enraizada em valores profundos para boa
parte dos envolvidos nesta disputa. Desta forma, sobretudo quando tratamos de
sociedades onde as divisões já são bastante pronunciadas por fatores econômicos,
culturais ou religiosos, tais rupturas começam a se mostrar propícias a gerar
desencadeamentos radicais e de ordem violenta, a partir da mesma lógica que justifica o
fato de que uma política governamental de apoio ao ocidente contra o Estado Islâmico
aliada ao problema social dos argelinos na França, teve parte nos atentados que
acompanhamos tomados de horror em novembro de 2015 na capital francesa.
2
Sobre o ódio
Para definirmos o discurso do ódio, devemos partir do princípio que ele é uma
manifestação externalizada na forma de discurso de uma discriminação, onde o agente
emissor deste discurso se considera superior ao individuo ou grupo ao qual o discurso
pretende atingir (Silva, 2011).
Desde os primeiros agrupamentos sociais, os seres humanos têm aprendido a
conviver com o elemento da diferença. Seja ela física, sexual ou racial, o fenômeno é
apontado pela psicologia como o desencadeador de atitudes originadas da estranheza, ou
seja, da postura de não reconhecer o que é externo ao ser como comum ou aceitável; e
do egocentrismo, resultando em pensamentos ou comportamentos que podem ser
eventualmente enquadrados em uma definição, ao menos superficial, daquilo que
conhecemos pelos sentimentos associados ao ódio.
Com o passar dos anos, o processo civilizatório foi responsável por tornar os
homens e as sociedades mais tolerantes. Esse processo demorado sempre esteve
agregado ao pensamento progressista, e envolveu não apenas a reunião de indivíduos
em comunidades, mas o desenvolvimento da ciência, da educação, até chegarmos no
período vitoriano, quando a revolução industrial e a corrida pela mecanização se
encarregou de acelerar ainda mais o potencial tecnológico e a própria historia humana.
De acordo com Samuel Huntington (2010), o conceito de civilização teria surgido no
século XVIII, justamente para que fosse feita a oposição entre aquelas sociedades que
viviam em um estado considerado avançado e os povos bárbaros. “A sociedade
civilizada diferia da sociedade primitiva porque era estabelecida, urbana e alfabetizada”.
(2010:54).
Da mesma forma como acontece hoje, naquela época, pressupunha-se que as
sociedades primitivas compartilhavam valores diferentes. O que em parte é verdade. O
compartilhamento destes valores significava, para a sociedade ocidental, a primeira a
experimentar a força da industrialização e a vida em grandes centros organizados pela
rotina do trabalho industrial, uma desvalia. Era uma desvalia em escala, pois estava no
habitante de cidades como Paris em relação ao habitante de Vichi, e deste em relação a
Giverny, mas que assim por diante, aumentava em grau na medida em que a sociedade
em questão ia se afastando dos centros e perdendo traços de sua identidade urbana. Mas
a este sentimento de desvalia, no entanto, não parece que podemos associar o de ódio,
quando consideramos o pensamento do homem urbano em relação ao homem habitante
3
dos pequenos centros, mesmo que ambos os sentimentos estejam fundamentados na
diferença.
Esta questão se mostra especialmente importante, a da diferença, quando se
buscam as razões psicológicas ou psicanalíticas para o desenvolvimento do sentimento
de ódio. Sabemos que, para que ocorresse a vida em comunidade, primeiramente, se
exigiu do homem um gradativo controle de seus impulsos, um abandono do estado
natural de que fala John Locke ([1690] 2006), e a assunção de princípios pacíficos em
nome da vida, da propriedade e do bem comum. A sociedade decorrente desse contrato,
só foi possível porque limitou, ainda que razoavelmente, a execução das vontades
humanas, em um trabalho que passou a ser completado através da educação (Postman,
2005). Desta forma, nas sociedades civilizadas e desenvolvidas, o ódio gradativamente
foi perdendo o lugar legítimo entre os atos humanos, passando a ser um inquilino
habitante dos discursos.
Fato é que os seres humanos têm aprendido a conviver com o elemento da
diferença. Seja ela física, sexual ou racial, o fenômeno tem sido apontado pela
psicologia como o desencadeador de atitudes originadas da estranheza, ou seja, da
postura de não reconhecer o que é externo ao ser como comum ou aceitável; e do
egocentrismo, resultando em pensamentos ou comportamentos que podem ser
eventualmente enquadrados em uma definição, ao menos superficial, daquilo que
conhecemos pelos sentimentos associados ao ódio.
Para que seja aceito esse argumento, porém, é necessário admitir que exista no
ser humano, além da natural propensão para o amor, uma natural propensão para o ódio.
Afirmação controversa, ao extremo debatida, de Aristóteles e Platão a Locke e
Rousseau, e que gerou, no campo da psicanálise, uma teoria sobre a dualidade proposta
por Sigmund Freud (1930), traduzida, basicamente na forma de duas pulsões, a da vida
e a da morte, que seriam responsáveis por guiar nossas atitudes diante das situações
proporcionadas especialmente pelo convívio social. À primeira, o psicanalista
relacionou a construção dos laços, segurança, associações, as trocas que aproximam os
seres. Enquanto que a pulsão da morte seria o resultado das frustrações dos desejos, das
insatisfações, da insegurança, do medo daquilo que foge ao controle, ou seja, o que é
externo ao homem. É por essa razão que a psicanálise freudiana admite a presença da
pulsão de morte até mesmo nas relações mais vitais, como a do amor. Ou seja, não há
um julgamento desse princípio, que não seja o da naturalidade.
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O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar,
é que o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que
no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele
deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte
quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o
próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto
sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à
agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele
se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para tortura-lo e
matá-lo. (FREUD, 1935, p.49)
Partindo da proposta de Freud, podemos imaginar que a medida em que a
sociedade foi tronando-se mais complexa, a partir da admissão em sua constituição de
cada vez mais indivíduos, esta conformação foi responsável por inserir nos
agrupamentos sociais maiores níveis de diferenças. Por essa razão, o que chamamos de
mundo civilizado também poderia ser definido como o agrupamento das sociedades
onde os indivíduos aprenderam a controlar, a suprimir sentimentos violentos, entre eles
o do ódio. Isso feito em nome de uma pretensa maior segurança que conferia ao
indivíduo a sensação da vida em grupo.
De acordo com Freud, o problema da supressão da Pulsão de morte, e não por
outro motivo o nome dado ao instinto agressivo é “Pulsão”, é que ao mesmo tempo em
que possibilita a vida em sociedade, ela represa em determinados indivíduos uma
agressividade latente. Deste modo, a pulsão nunca se afasta, se consome, desaparece
verdadeira e totalmente do indivíduo.
Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à
gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao
fazê-lo. Não é de menosprezar a vantagem que tem um
grupamento cultural menor, de permitir ao instinto um escape,
através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é
possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que
restem outras para que se exteriorize a agressividade. [...]
(FREUD, 1935, p.51)
Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” as animosidades entre
comunidades vizinhas, como portugueses e espanhóis, ingleses e escoceses. O psicólogo
explica que através dessa característica, há uma “cômoda e relativamente inócua
satisfação da agressividade” (1935:52) de maneira que a união entre os membros de
uma comunidade é facilitada.
O autor acredita que o homem aos poucos vai moldando e estado da civilização
de maneira a satisfazer melhor as suas necessidades. Também acredita, por outro lado,
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que o homem possa familiarizar-se com os empecilhos inerentes à cultura, e a partir daí
se sentir mais confortável com alguns deles. Mas alerta para um outro perigo, que ele
chama de “miséria psicológica da massa” (1930:53).
Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade, mas
também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor
por que para ele é difícil ser feliz nela. De fato, o homem
primitivo estava em situação melhor, pois não conhecia restrições
ao instinto. Em compensação, era mínima a segurança de
desfrutar essa felicidade por muito tempo. O homem civilizado
trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança. Mas não
esqueçamos que na família primitiva somente o chefe gozava
dessa liberdade instintual; os outros viviam em submissão
escrava. (FREUD, 1930, p. 52)
Carl Jung (2006), em seus escritos sobre o imaginário coletivo, discutiu também
a questão da dualidade analisando o caráter da “anima”, ou alma, espírito. A alma em
Jung seria, portanto, a experiência dos lados bom e mau do homem, ambos em
constante busca de realização, satisfação e vida. E aqui há uma chave em nossa
pesquisa, que trata da compreensão da vida humana a partir da alma, do espírito
humano, que para Jung significa os lados bom e mau em busca de realização. E do que
se trata a busca da realização para bem, para a construção, é aquilo que normalmente
debatemos. Mas o entendimento de que há um lado oposto a esse, que também vive e
busca realização, e que deve ser suprimido em nome da vida em sociedade, esta é uma
discussão difícil de se realizar.
Assim como Freud, Jung, que desenvolveu sua própria abordagem psicanalítica a partir de Freud, mas de maneira independente e original – atribui sobretudo aos fatores
externos, estranhamento e frustração, as causalidades das reações que entendemos como
carregadas do elemento do ódio. Para Jung (2006), “A agressividade advém desta
percepção de que o Outro é falho...” [...] (2006:22). Esta é também, de certa forma, a
mesma problemática encontrada por Merleau-Ponty quando o autor aborda a
singularidade da interpretação dos fenômenos:
[...] Como a coisa, como o outro, o verdadeiro cintila através de
uma experiência emocional e quase carnal, onde as “ideias” – as
de outrem como as nossas – são antes traços de sua fisionomia e
da nossa, e são menos compreendidas do que acolhidas ou
repelidas no amor ou no ódio. [...] (MERELAU-PONTY, 2014, p.
24).
O que esse trecho de Merleau-Ponty aponta é que parece não haver a
necessidade de uma compreensão exata dos fenômenos, das ideias que compõe o
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imaginário do outro. Seus traços, suas nuances, são suficientemente capazes de
determinar que tipo de emoções teremos, de que forma reagiremos ao que nos é
proposto, se com amor, através do acolhimento, se com ódio, através da repulsão.
O Ódio na política e no imaginário ideológico do brasileiro
No Brasil, tratar do ódio entre as pessoas é matéria geradora de grande
controvérsia. Ela se estabelece quando o assunto envolve o mito de que o brasileiro é
um ser pacífico, acostumado às diferenças, receptivo e alegre. De acordo com o
historiador Leandro Karnal (2012)3 esse mito tem origem no início do século XX,
através das ideias de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior,
que estimularam por meio de suas publicações, um pensamento sobre um Brasil cortês,
onde convive um povo pacífico. Ao menos em parte, toda essa construção simbólica
sobre o brasileiro também é herdada da Igreja Católica, que teve na ira – ou no ódio –
um dos seus sete pecados capitais. Para o catolicismo, o pacífico e aquele que perdoa,
este sim, é digno herdeiro do Reino de Deus. Essas características, segundo o
historiador, teriam sido profundamente assimiladas pela cultura nacional e explicariam
o porquê de a população brasileira, quando em face à violência e ao ódio, viva em um
constante estado de espanto e, mais, que tenda a endereçar essas manifestações aos
outros, seja um outro país, uma outra cidade, outra torcida ou outro partido.
Este é o argumento que levanta Karnal (2012), que cita a série de guerras civis
pelas quais passou nosso país, algumas extremamente violentas como os eventos em
Canudos e no Contestado, que não interferiram na construção desse imaginário social
do brasileiro. Nem mesmo de Guerras Civis estes eventos foram chamados. O ódio no
Brasil trata-se, segundo o historiador, de uma realidade histórica que envolve desde os
maus-tratos aos escravos e as repressões aos eventos emancipatórios, nos primeiros
séculos de nossa história, e que se faz presente, sobretudo hoje, na relação entre
moradores das grandes cidade e favelas ou periferias, entre habitantes das regiões do
sudeste, sul e norte e nordeste, mas que também mostra sua face obscura na disputa
política pelo poder entre diferentes facções ideológicas.
3
Programa Café com Filosofia, Rede Cultura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iGOGc1bufs.
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Foi isso que esteve tão claro durante a eleição de 2014 no Brasil, e que deixou
marcado o problema da convivência com a diferença no nível político-ideológico.
Alimentada pelas diferenças de opiniões e pela tradição de disputa entre dois partidos o PT e o PSDB - mas principalmente, pela exacerbação do uso do discurso do ódio, a
ruptura que foi disseminada e propagada nas redes sempre fez parte do jogo político. Os
conflitos ideológicos estão presentes antes mesmo do esclarecimento do conceito de
ideologia, e sempre foram determinados, de acordo com Giovanni Sartori (1961), pela
relação que existe entre os diferentes sistemas de crenças. O autor italiano sugere que
estes sistemas apresentam elementos que podem ser comuns ou distintos em relação aos
sistemas de outros indivíduos, e a intensidade com que se acredita em cada um seria
aquilo que dá a medida do afastamento ideológico. Para Sartori (1961), quando os
elementos distintos são acreditados de maneira flexível e aberta, é possível esperar de
um choque entre dois sistemas de crenças alguns ajustamentos comportamentais,
enquanto no caso de os elementos distintos são fixos, fechados e imutáveis, o que
resulta é a completa incompatibilidade. Foi o que vimos ns discursos da militância de
PT e PSDB nas eleições de 2014, que apontaram justamente para esta relação de
incompatibilidade e exclusão.
[...] De um lado, se os elementos distintivos não são apenas
fechados, mas apaixonadamente mantidos, nós podemos ter a
“guerra ideológica”, a relação de incompatibilidade e o conflito
fora de controle. [...] (SARTORI, 1969, p.409)
O uso, portanto, dos sistemas de crenças – ou das ideologias – para motivar
eleitores a, além do voto, promover e defender determinado partido político, tornou-se o
problema central de nossa análise. Isto porque o resultado dessa estratégia extrapolou o
âmbito da cidadania e resultou em uma guerra ideológica que ficou registrada através de
seus discursos nas redes sociais. Essa relação está desenvolvida no pensamento de
Mullins (1972) que afirma que o conflito entre dois sistemas de crenças incompatíveis
se dá na medida que a ideologia passa a agir através do seu “poder de comunicar
cognições, avaliações, ideais e propostas entre membros de grupos” (1972:509).
Portanto, é natural que os discursos de dois partidos em conflito ideológico tendam a ser
carregados de elementos que, para além de justificarem suas próprias escolhas
ideológicas, intencionem atingir de alguma maneira os seus oponentes. E é presumível
que essas mensagens atendam a uma lógica semelhante à da publicidade.
Os procedimentos para fabricar os problemas que apaixonam a
opinião e a vontade popular sobre estes problemas são similares
exatamente aos que se empregam na propaganda comercial. Neles
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encontramos os mesmos esforços para chegar a um contato com o
subconsciente. Encontramos a mesma técnica de criar associações
favoráveis e desfavoráveis, que são mais eficazes quanto menos
racionais sejam. [...] (SCHUMPETER, 1961, p.336).
Shcumpeter (1961), assim como Mullins (1972), também está atento a esse
caráter publicitário da mensagem política, uma maneira de atuar que pouparia ao
receptor o trabalho do escrutínio da verdade, na medida que apresenta raciocínios
prontos, e que visa a produção de vontades, enquanto atua como instrumento ideológico
(SCHUMPETER, 1961).
Daí que a divulgação de mensagens políticas começa a
exercer sobre a sociedade um poder que a atinge como uma reação em cadeia, que
começa em alguns membros do corpo social e se propaga através da comunicação, e até
mesmo através do comportamento de grupos situados dentro da estrutura social,
carregando mensagens que podem conter elementos profundamente preconceituosos,
promotores da segregação e do ódio, mascarados sob o manto da ideologia, de dogmas
ou de pressupostos de sistemas de crença, que deixam de ser analisados pelo público
uma vez que são apresentados já na forma de uma cognição, ou seja, ao invés da
operação do raciocínio, o resultado pronto. E estes grupos acabam propagando os
efeitos da mensagem política, como nos alerta dessa vez Philip Converse (1964),
provocando as mesmas reações, independentes de verificação, ou nas palavras do autor,
que ligam o comportamento “a certos canais bastante independentes de cognições
específicas e percepções dos próprios atores” (CONVERSE, 1964, 231). A importância
da análise destes elementos está no poder que os discursos dos líderes políticos têm de
gerar polarização e estimular o conflito dentro do eleitorado (JOST, FEDERICO E
NAPIER, 2009), e no papel “decisivo” da ideologia para a mobilização e manipulação
das massas (SARTORI, 1969, 409).
[…]Os leitores de periódicos, os rádio escutas, os membros de
um partido, ainda quando não estejam reunidos fisicamente, têm
uma enorme facilidade para transformarem-se em uma multidão
psicológica e para chegar a esta situação de frenesi em que uma
intencionalidade de argumentação não faz mais do que despertar
os espíritos animais. (SCHUMPETER, 1961, p.330-331).
Eleições 2.0
Hanna Arendt, naquele que talvez tenha sido seu trabalho mais filosófico4,
elabora sobre a natureza da ação e do discurso a qualidade de existirem em uma espécie
de simbiose, onde um existe na dependência do outro de modo seja possível algum tipo
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A Condição Humana, 1958.
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de significação social. É o que ela deixa claro ao sentenciar que através da ação e da
fala “[...] os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais
únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano [...]” (Arendt, 2014, p.222).
Seguindo seu raciocínio, Arendt posiciona ação e discurso significantes, mesmo
em suas manifestações mais objetivas, em um domínio comum, um espaço-entre
(p.226) habitado por sujeitos e significações prévias, que por sua vez faz parte um
espaço ainda mais amplo, de mesma natureza, constituído pelos atos e palavras
originados do agir e falar dos homens uns com os outros. É nesse espaço maior, ou
meta-espaço5, que a autora chamara de “teia” de relações humanas e que nós temos nos
acostumado a chamar redes, que estão em convivência simbiótica os atos e discursos
que constituem o ambiente onde se percebe a opinião pública. Um lugar onde
“[...] os homens se desvelam como sujeitos, como pessoas
distintas e singulares, mesmo quando inteiramente concentrados
na obtenção de um objeto completamente material e mundano.
[...] (ARENDT, 2014, p. 226)
Essa característica da teia de relacionamentos elaborada por Arendt, da
desvelação do homem como sujeito, aponta para um campo que é legítimo, apropriado,
autorizado a receber este desvelamento. A autora parte do princípio que o discurso e a
ação estão inseridos numa rede já existente, e que o princípio de um ou outro nesta rede
significa necessariamente uma afetação de todos os discursos e ações em andamento.
Não há referência a qualquer habilidade, talento ou sentimentos necessários para que se
manifestem o discurso e a ação, mas o seu contrário, ou seja, o não-discurso e a nãoação seriam, de acordo com Arendt, um constrangimento relacionado com o choque a
um sistema relativamente estável6. “[...] É em virtude dessa teia preexistente de relações
humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca
atinge seu objetivo [...]” (Arendt, 2014, p.228).
Podemos a partir daí, estabelecer uma relação entre o ambiente físico das redes
de relacionamento, dotado das características levantadas por Arendt, ao ambiente virtual
das redes sociais. Ao contrário da rede física, onde as vontades e intenções conflitantes
têm um peso determinante para o discurso e a ação, as redes sociais, com suas
características de velocidade, alcance, fluidez, aceleração ou efemeridade, ou talvez
liquidez, como prefere Zygmunt Bauman (2001), mas acima de tudo, com a segurança
que oferecem ao indivíduo em relação ao ambiente físico, são propícias para a
5
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Superestrutura, de acordo com a terminologia marxiana.
Espiral do silêncio
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ocorrência e intensidade dos conflitos verificados no espaço virtual, pois eles decorrem
justamente do encontro registrado de um grande número de vontades e intenções
conflitantes, o que desorganiza e tira o foco do indivíduo único, aliados à sensação de
segurança que o ambiente virtual oferece, ambos experimentados num ambiente onde os
laços são tantos que, se estabelece um paradoxo onde ao mesmo tempo, este grande
número de relações fornece mais garantia para o sucesso do discurso e da ação, pois
“[...] Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. [...]” (Arendt, 2014, p.233), e
ao mesmo tempo essas relações se tornam menos importantes porque são mais
rapidamente substituíveis.
É principalmente a partir dos anos 2000 que a presença de um novo fenômeno
na comunicação, a internet, começa a modificar os paradigmas da vida em sociedade e,
particularmente, da participação política. A internet e a Web 2.0 colocaram em prática a
interação nas formas de produção, participação e compartilhamento de informação,
estendendo o poder do usuário sobre os canais informativos. Se para além dos exemplos
encontrados ao redor do mundo, que nos mostravam uma sociedade organizada em
redes, que havia se levantado contra regimes opressores, ditatoriais e tirânicos, Manuel
Castells (2013) referiu-se às redes como o local onde as sociedades se engajariam nos
conflitos que devem ajudar a determinar os rumos destas mesmas sociedades no futuro,
a constatação de um ambiente de profunda ruptura social como o verificado em 2014
nas redes durante a campanha eleitoral no Brasil, traz à tona a pertinência dessa questão.
A ideia de que a internet passaria a exercer um papel cada vez mais fundamental
no comportamento individual e dos grupos, inclusive na participação política, ganhou
força e concretizou-se durante os últimos anos do século XX. Partindo de uma relativa
liberdade dos discursos na internet, mais precisamente nas redes sociais, é possível
reconhecer a vantagem de que o pensamento livre é possível e até certo ponto
livremente manifestado. É possível transmitir uma mensagem para um grande número
de indivíduos independentemente dos gatekeepers ou de quaisquer guardiões do acesso
aos tradicionais e caros canais que monopolizavam o trânsito informacional até bem
pouco tempo.
Esse fenômeno tornou possível o livro de Manuel Castells (2013) Redes de
Indignação e Esperança, onde o autor trata das redes estabelecidas entre os usuários da
internet como uma espécie de organização e empoderamento da sociedade desvinculado
dos grandes grupos de poder e que ocorreria a partir da sociabilização das demandas,
dos anseios políticos, e do compartilhamento de informação por intermédio, sobretudo,
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das redes sociais. Dos Estados Unidos ao mundo Árabe, passando pela Europa, o autor
se utiliza de exemplos de grandes movimentos que desafiaram o status quo
governamental e exigiram mudanças de acordo com a vontade daquelas massas sociais
organizadas.
Ainda antes de Castells, ao observar o desenvolvimento e popularização do
ambiente midiático a partir das novas formas de interação entre produtores e
consumidores, Henry Jenkins (2006) já apontava para o surgimento de uma nova
cultura, caracterizada pelo domínio e uso de mídias - como o telefone celular, e
especialmente, o computador e seus programas de produção, edição, distribuição e
acesso à informação. Essa cultura, popularizada pelo uso constante de ferramentas que
se encontravam cada vez mais acessíveis à boa parte da população mundial, se
manifesta hoje em sua grandeza avassaladora, através do uso social, organizado, político
ou cultural, da competência no domínio das novas tecnologias de comunicação.
A extensão do poder da sociedade a partir do domínio de novas mídias, todavia,
pressupõe a sua utilização democratizada e em grande escala. Em termos de
participação política, é possível verificar este pressuposto em alguns marcos históricos,
notadamente quando há um deslocamento do eixo de poder, antes exclusivo dos meios
de comunicação tradicionais, em direção à sociedade usuária das novas mídias. Um
destes primeiros marcos históricos foi o episódio ocorrido na Espanha em 2004, quando
às vésperas da eleição presidencial, o atentado terrorista ao metrô de Madrid mobilizou
a população espanhola através de uma corrente de mensagens via SMS contra a
liderança do então presidente, José Maria Aznár e o Partido Popular (PP). Em três dias,
a vitória certa do candidato do PP transformou-se em uma surpreendente virada e na
eleição de José Luiz Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista Operário Espanhol
(ABELAN, 2005).
Outro marco histórico na participação política através do uso de novas
tecnologias aconteceu no mesmo ano, durante a corrida presidencial norte-americana.
Através do domínio de programas como Photoshop, editores de vídeos e a publicação e
distribuição deste material na rede, transformados em conhecimento comum para uma
substancial parcela da população dos Estados Unidos, a internet serve pela primeira vez
como canal de participação massiva no jogo político (JENKINS, 2006). O exemplo
clássico desta produção alternativa de conteúdo político foi o vídeo que satirizava a
candidatura do candidato republicano George W. Bush, onde imagens de noticiários
foram editadas junto às do reality show “The Aprendice”, mostrando um momento
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fictício onde o candidato era demitido pelo apresentador do programa por
incompetência, Donald Trump, aos gritos do jargão característico, you’re fired!7
O uso e o domínio sobre estas novas ferramentas têm como característica
principal o seu público ser sobretudo jovem, um público que até pouco tempo
geralmente demonstrava pouco ou nenhum interesse pelo jogo político. Com a
possibilidade do uso destas ferramentas, tanto surge uma nova forma de abordagem
política, mais lúdica e interessante ao contingente juvenil eleitoral, como há uma
consequente adesão substancial de parte deste público ao debate político e o
consequente crescimento do interesse do jovem sobre os partidos, as propostas, o
histórico e as consequências da política.
No brasil, durante a campanha pela presidência da república em 2010, aconteceu
o primeiro debate presidencial com transmissão exclusiva pela internet. E enquanto
portais de notícias, páginas institucionais e blogs já vinham sendo utilizados como
canais de manifestação política, o fenômeno das redes sociais, muito populares no país,
ensaiava formas de engajamento e disseminação de informação que seriam utilizadas a
plena potência nas manifestações de 2013 e nas eleições de 2014. Com a popularização
das redes sociais, novos espaços de entendimento e participação política surgiram e, não
apenas influenciaram para sempre o modo como as campanhas passariam a endereçar
mensagens a seus eleitores, mas moldaram a forma como o público passaria a reagir aos
discursos políticos (JENKINS, 2006).
A eficácia destas redes sociais no campo político foi amplamente verificada e
estudada na campanha vencedora de Barack Obama para a presidência dos Estados
Unidos em 2008 (KREISS, 2012). As declarações do candidato democrata através de
sua conta na rede social Twitter, foram compartilhadas entre milhares de usuários,
repercutindo significativamente na captação de novos simpatizantes até mesmo entre
republicanos. Estes eleitores que vivenciaram e promoveram a campanha de Obama
através da rede social se tornaram fundamentais para a construção de um momento
eleitoral positivo e da consequente vitória dos democratas sobre o republicano John
McCain (SAMS & RICE, 2009).
Porém, a internet não traz apenas contribuições positivas para o ambiente
político. É certo que ela oferece uma liberdade sem precedentes para qualquer tipo de
publicação e pouquíssimas barreiras para que se acessasse ideias inovadoras ou
7
“Você está demitido”, é o jargão do apresentador do programa que tem versão brasileira na Rede
Record desde 2004.
13
revolucionárias. Porém, a necessidade de se fazer ouvir, especialmente entre aqueles
que estiveram alijados do processo comunicativo dominado pela mídia tradicional, fez
com que surgisse uma nova classe de emissores, que reúne tanto aqueles interessados no
debate democrático e na construção de conhecimento, como pessoas que exacerbam
preconceitos, xenofobia, traumas e desequilíbrios em seus discursos.
[...] Os que são silenciados pelas mídias corporativas têm sido os
primeiros a transformar o computador em uma gráfica. Essa
oportunidade tem beneficiado outros, sejam revolucionários,
reacionários ou racistas. [...] (JENKINS, 2008, p.290).
Assim, a internet coloca em contato diferentes grupos de interesses e seus
discursos, inicialmente, através dos Blogs, mais tarde, das redes sociais. Ao contrário da
relativa organização – evidentemente perpassada pela ideologia e pelo interesse
corporativo – da mídia tradicional, o conteúdo encontrado na internet e caótico e quando
muito anárquico. Isso faz com que o indivíduo que acessa este conteúdo necessite atuar
como seu próprio gatekepper. Além disso, a narrativa das redes sociais mimetiza a
narrativa jornalística, fornecendo notícias – na forma de estímulos textuais ou visuais –
que tendem a atingir o público indiscriminadamente, não importando o seu conteúdo
nem tampouco sua origem. Isso age, por um lado, dando um certo caráter de
credibilidade – herdado das publicações impressas ou veiculadas via TV ou rádio – e
por outro, permitindo com que determinadas ideias sejam estimuladas e retransmitidas a
partir de um conjunto de fatos verdadeiros e/ou falsos, manipulados por interessados
que podem ser diretos ou indiretos, mas que têm por objetivo, ao final do processo,
gerar uma mudança de comportamento, e que consiste num processo parecido com o de
uma campanha de marketing digital e do que convencionou-se chamar de groundswell
(LI; BERNHOFF, 2008), ou seja, uma informação ou tendência que se espalharia via
rede através dos próprios usuários, sem a necessidade de publicidade direta, e portanto,
sem parecer ser propaganda.
Ao proporcionar estas novas formas de campanha propagandística, a internet e
as redes sociais se tornam ainda mais interessantes para o jogo político. Por outro lado,
o contraste entre o virtual contato com um universo de milhares de usuários, e o exílio
físico proporcionado pela atuação via computador, possibilitou que os discursos
eventualmente se desprendessem de algumas características da comunicação tradicional,
entre elas o constrangimento e o medo da reação imediata. A falta destes elementos
seria apenas um dos fatores que nos ajudaria a justificar o alto grau de animosidades
presente entre os eleitores de PT e PSDB nas eleições presidenciais de 2014.
14
Uma tradição de disputa
A tradição de disputa entre os dois partidos (Müller, 2015), que remonta há mais
de 20 anos, além da contextualização dos seus surgimentos na esteira da abertura
política e da redemocratização após o período de ditadura militar, são todos fatores que
ajudaram a fortalecer as crenças de seus membros e simpatizantes e criar entre eles e
seus adversários suas representações.
Embora adversários, PT e PSDB são partidos que surgiram na esquerda do
espectro ideológico, ambos fundados sob princípios socialistas, mesmo que o primeiro
estivesse em sua origem bem mais afastado do centro que o segundo. Inicialmente, estes
partidos nem ao menos foram adversários. Fernando Henrique Cardoso teve o apoio de
Luís Inácio Lula da Silva quando foi candidato a Senador pelo Estado de São Paulo, no
início dos anos 80 e os dois estiveram juntos durante boa parte desse período de
transição democrática.
Portanto, o que parece ter sido mais significativo realmente nessa construção
simbólica foi o viés dos discursos adotados por direita e esquerda, que buscaram
imprimir no imaginário do eleitorado brasileiro visões ideologizadas sobre cada partido
e seus candidatos. Convém lembrar que, quando falamos em esquerda e direita, há de se
garantir ao leitor que entenda bem o que estas palavras pretendem dizer: a direita que
conduziu a construção simbólica do Partido dos Trabalhadores não teve por pelo menos
dez anos, ligação alguma com o PSDB, até porque este partido nem ao menos havia
sido fundado quando o PT surgiu no cenário nacional e, mais uma vez, tratava de um
partido fundado na ideologia da socialdemocracia.
Inicialmente, a direita conservadora brasileira, desejosa da abertura democrática,
relacionava o projeto petista a uma certa identidade com o bloco comunista, composto
por China, Cuba, Alemanha Oriental e, especialmente, União Soviética (URSS), em um
mundo ainda dividido e sob o terror da Guerra Fria e a ameaça nuclear.
De fato, o Partido dos Trabalhadores era o que mais radicalmente defendia
mudanças na estrutura política e econômica do Brasil, e a agenda apresentada pelas
propostas do PT realmente poderiam ser comparadas aquela dos países socialistas
aliados à URSS. Lech Walessa e o Solidariedade chegavam ao poder na Polônia e
inspiravam o projeto petista de um governo dos trabalhadores, dando gás para contraataques veementes e discussões acaloradas. Rapidamente, os discursos de revolta contra
um sistema de governo baseado na economia capitalista e uma sociedade nem um pouco
igualitária, se tornaram a marca da política petista.
15
Em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, a bancada petista na
Câmara Federal se recusou a assinar o documento, sob a liderança do Deputado Federal
mais votado na história, Luís Inácio da Silva. No mesmo ano, era fundado o Partido da
Social Democracia Brasileira, liderado entre outros por Mário Covas, Fernando
Henrique Cardoso e José Serra. O partido lançaria o ex-governador do Estado de São
Paulo, Mário Covas, na campanha presidencial de 1989. Covas chegaria em quarto
lugar, atrás de Brizola (PDT) e Lula, que foi ao segundo turno contra Fernando Collor
de Mello (PRN).
O distanciamento entre Fernando Henrique Cardoso e Lula tem um ponto
importante nesta campanha, uma vez que o apoio do PSDB a Lula só foi aberto após
longas discussões, em parte porque Fernando Henrique Cardoso não apoiava a proposta
do PT. Ao fim e ao cabo, Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique subiram no
palanque ao lado de Lula no segundo turno da campanha de 1989.
Em 1994 tinha início uma sequência ininterrupta de disputas entre PT e PSDB
pela presidência da República no Brasil que já dura mais de 20 anos e completou seis
eleições. Naquele ano de 1994, Fernando Henrique Cardoso (FHC), o idealizador do
Plano Real, era o candidato do PSDB aliado ao Partido da Frente Liberal (PFL),
representado pelo candidato a vice, Marco Maciel. Enquanto o PT reforçava seu
posicionamento à esquerda, coligando-se com PPS, PSB, PCdoB e PV8, e mais uma vez
apresentando Lula como candidato, sob o ponto de vista ideológico, conforme vimos
em Guerring (1997) e Knight (2006), a socialdemocracia defendida pelo PSDB se
fragilizava ao aliar-se ao conservadorismo do PFL. E enquanto o PT se afirmava
mantendo-se coerente à sua ideologia, o PSDB dava os primeiros passos em direção a
uma identificação com a direita.
Os discursos do horário eleitoral gratuito apresentaram os dois partidos como
representantes
dos
interesses
de
uma
parcela
da
população
desfavorecida
economicamente. PT e PSDB focam nas questões sociais, como a fome, o combate à
pobreza e a educação. Ambos se preocupam com o rumo da agricultura. Enquanto o PT
tem uma visão pessimista do Brasil e critica diretamente Fernando Henrique em todos
os programas analisados, o PSDB apresenta uma visão nacionalista, sem fazer nenhuma
referência direta ao candidato do PT. Nas referências à FHC, o discurso do PT utiliza
expressões como a falta de “respeito aos cabelos brancos” dos aposentados; o “país das
8
Partido Popular Socialista, Partido Socialista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil e Partido Verde.
16
injustiças governado pelos aliados de Fernando Henrique Cardoso”; ou “O governo do
qual Fernando Henrique era ministro da fazenda mandou comida estragada para os
pobres”. Em um programa, o narrador chega a comparar Fernando Henrique ao
personagem Ali Babá: “Dizem que Ali Babá não era um mau sujeito, estudioso... o
problema é que andava com os quarenta ladrões”. Já o PSDB ataca Lula de maneira
indireta, normalmente comparando os dois candidatos através de características que
supostamente existiriam em FHC e inexistiriam em Lula. Referências à diferença de
educação dos dois candidatos está, por exemplo na expressão “foi professor”; ou ainda,
à inexperiência de Lula como gestor, quando o discurso de que FHC é “experiente” por
ter sido Ministro das Relações Exteriores e Ministro da Fazenda de Itamar Franco; e em
relação à retórica de Lula, revolucionária e ainda conflitante, o discurso dos programas
do PSDB diz que FHC é “equilibrado”. Fernando Henrique Cardoso atingiu 54% dos
votos válidos para vencer os 27% do candidato do PT no primeiro turno9.
O primeiro governo de FHC teve como uma de suas principais marcas as
políticas de direita associadas à “diminuição” do Estado. As quebras do monopólio
estatal nas áreas dos combustíveis e telecomunicações e a privatização de empresas
como a Vale do Rio Doce fizeram parte da estratégia do PSDB e foram fortemente
criticadas pela candidatura do PT durante a campanha de 199810. Com isso, apesar do
lançamento de programas sociais, das reformas no ensino fundamental e na previdência,
e da ampliação do seguro desemprego (Draibe, 2003), o primeiro mandato de FHC foi
vinculado à imagem de um governo de direita. Ao mesmo tempo, a aliança que
enfrentou a reeleição congregava os principais partidos de esquerda no Brasil, PT, PDT,
PCdoB, PCB e PSB. A união destas siglas em torno de uma nova candidatura de Lula
“fechava o grupo” e legitimava o campo ideológico da esquerda, atraindo para si a
propriedade sobre os discursos que envolvessem temas como a responsabilidade do
Estado, a divisão dos lucros e a injustiça social.
No horário político, o discurso do PT contra Fernando Henrique Cardoso passa a
apostar no humor e na ironia. Na área social, o partido critica duramente os planos do
governo tucano dizendo que seria possível fazer mais. Já o PSDB se refere aos
programas pelo viés do avanço que representam e pela possibilidade de ampliação em
caso de uma reeleição de Fernando Henrique. Na questão agrícola, o PT direciona o
9
Fonte: TSE: <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=1994>
1998, uma alteração na norma eleitoral passou a permitir a reeleição dos ocupantes de cargos do executivo em
todo o país.
10Em
17
discurso para a distribuição de terras e critica os planos do governo para o
financiamento agrícola. O PSDB, aponta a safra recorde daquele ano e fala em ser
possível produzir ainda mais. Na questão econômica, entra em cena a crise financeira e
o PT critica as estratégias do governo tucano de buscar apoio no Fundo Monetário
Internacional e elevar a taxa de juros para conter a inflação. Os ataques diretos à FHC,
trazem expressões como a “monstruosidade” de um pacote financeiro que o governo
estaria elaborando para conter a inflação. Já o PSDB sustenta nos seus discursos que é
graças ao Plano Real que o Brasil estava sendo capaz de enfrentar o período econômico
turbulento que o mundo atravessava naquele momento. Mesmo assim, a confiança nas
propostas de governo tucanas foi novamente vencedora no primeiro turno, atingindo
53% dos votos válidos contra 31% de Lula11.
Em 2002, o PT apresenta a “Carta ao Povo brasileiro” onde, sem deixar de
criticar os oito anos de governo do PSDB, esclarecia um novo posicionamento petista,
que levava em consideração a estabilidade econômica em consonância com as
realizações na área social. A mudança com estabilidade representa a proposta do PT. A
figura de Lula representa essa transformação: o candidato aparece sorridente, tranquilo e
extremamente confiante. Pelo PSDB, o candidato é José Serra, ex-Ministro do
Planejamento e da Saúde do governo FHC, que apostava na continuidade dos programas
de governo tucanos e trazia algumas propostas de mudanças, especialmente na educação
e na segurança.
No horário eleitoral gratuito, o PT apresenta seu o candidato e sua equipe de
governo. As críticas ao candidato do PSDB aparecem agora apenas de maneira indireta,
e se resumem a raros momentos, como quando se fala no “ultrapassado modelo
econômico”, ou no país passar a ser “o país da produção e não o país da exploração”. Os
nomes de FHC e José Serra nem mesmo são citados nos programas analisados. A ideia
de confrontação ainda perdura, mesmo com a diminuição das críticas. O referencial
extremista está na fala de Lula, quando diz que o Brasil “não será o país dos
exploradores, dos agiotas e dos sonegadores que sugam a economia do nosso país”. Já
o programa do PSDB segue a estratégia de não fazer referência direta ao candidato do
PT. A maior parte do tempo é gasto apresentando a biografia de José Serra, vinculandoo à classe trabalhadora. Apenas em alguns momentos, há um apontamento para a
candidatura de Lula em expressões como “enquanto os outros candidatos falam em
11
Fonte: TSE <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=1998>.
18
mudança” e “tem candidato que fala economês”. A ironia destas expressões aponta para
a mudança do perfil da candidatura de Lula, que agora estava relacionada com antigos
inimigos como bancos e empresários, mas também faz referência à uma suposta falta de
propriedade, conhecimento e profundidade no discurso sobre economia do candidato do
PT. Um ponto do discurso que relaciona o PSDB mais à direita do que nas outras
campanhas é a proposta para a segurança pública de endurecimento do papel do Estado
e a responsabilidade dividida entre governos estadual e federal. O resultado da eleição
deixou claro que o país queria mudanças mais profundas do que as conquistadas com o
governo FHC. No primeiro turno, o PSDB obteve a pior votação desde 1989 e Serra
atingiu apenas 23% dos votos válidos contra 46% de Lula. Embalado pela certeza na
vitória, Lula superou em quase 20 milhões a votação de Serra no segundo turno,
perdendo para o candidato tucano apenas no Estado de Alagoas12.
Na campanha de 2006, o Brasil vivia a sombra escândalo do Mensalão. As
investigações revigoraram a oposição e o PSDB lançou como candidato o exGovernador do Estado de São Paulo, Geraldo Alkmin para concorrer à presidência. O
país vivia um período de crescimento econômico e, durante o primeiro mandato, Lula
havia ampliado e criado novas políticas sociais.
No horário eleitoral do PSDB começavam a aparecer as referências diretas ao
adversário, na forma de críticas ao governo PT vinculadas especialmente ao Mensalão.
As críticas também recaem sobre programas de governo como à lentidão nas obras de
infraestrutura. Em um dos programas, o narrador diz que Lula “abandonou os
mineiros”, ao não repassar verbas federais. O minuto final é totalmente dedicado à
investigação do escândalo do Mensalão, apresentando manchetes de jornais que ligam
os envolvidos diretamente ao então presidente da República. Pelo PT, novamente, não
há referências diretas ao candidato do PSDB. Porém iniciam-se as comparações entre o
Brasil governado pelos tucanos e o governado por Lula a todo o momento. Frases como
“um presidente pode ficar conhecido por grandes obras”, “pelo trabalho social” e “pelo
desempenho do seu governo na área econômica” atuam como resposta ao vínculo com o
Mensalão. O primeiro turno encerrou com Lula obtendo 46,6 milhões de votos contra
39,9 milhões de Alkmin e o segundo turno apresentou um surpreendente recuo na
votação do candidato do PSDB. A vitória de Lula veio com a maior vantagem da
história desde 1989, mais de 20 milhões de votos. Mesmo com esses números, a divisão
12
Fonte: TSE <www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=2002>.
19
no eleitorado entre PT e PSDB começaria a ser percebida territorialmente. Se em 2002,
Serra havia vencido apenas em Alagoas, em 2006 o PSDB de Alckmin foi superior em
sete Estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (Região Sul); São Paulo,
Mato Grosso do Sul e Mato Grosso (Região Sudeste); e Roraima (Região Norte)13.
Na eleição de 2010 o PT lança a ex-ministra chefe da Casa Civil, Dilma
Rousseff, para substituir Lula na presidência da República. Os atributos como gestora
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a larga experiência no setor
energético apontavam para o talento administrativo da candidata petista. Apostando na
força retórica da mulher, mãe e gestora, Dilma enfrentava a José Serra, o líder das
pesquisas no início do ano, impulsionado ainda pelo processo contra os envolvidos no
escândalo do Mensalão.
Os discursos da candidatura do PSDB no horário eleitoral traziam ainda mais
referências diretas aos adversários petistas. Os ataques estavam nas críticas ao Programa
de Aceleração do Crescimento, na alegada ausência de biografia de Dilma Rousseff em
comparação à de Serra, além de fazer constantes referências ao envolvimento dos
petistas nos escândalos e em “armações”, como uma violação de arquivos da receita
federal para a criação de um dossiê contra os tucanos. O narrador do programa atribui a
culpa indiretamente ao PT: “a quem interessaria mais essa armação contra José Serra”?
Já a programação de TV da candidatura de Dilma mais uma vez não apresenta
referências diretas ao adversário José Serra nos programas analisados. A aposta da
candidatura de Dilma é na continuidade das ações do governo Lula. A imagem da
candidata é ligada à do presidente e os oito anos de governo do PT continuam sendo
constantemente comparados aos oito anos de governo tucano”. A eleição foi mais uma
vez para o segundo turno. Dilma venceu por 55,7 milhões (56%) contra 43,7 milhões
(43,9%) de Serra. A diferença de votos entre as duas legendas caiu para 12 milhões, e o
número de Estados da Federação com vitória do PSDB aumentou para 11 somando, aos
sete de 2006, Acre, Rondônia, Goiás e Espírito Santo14.
Em 2014, Dilma Rousseff disputou a reeleição enfrentando, além do PSDB, que
desta vez trazia Aécio Neves como candidato, uma chapa encabeçada pelo exgovernador do Estado de Pernambuco, Eduardo Campos, do Partido Socialista
Brasileiro (PSB). Campos tinha como vice a terceira colocada na corrida presidencial de
13
14
Fonte: TSE <http://www.tse.gov.br/sieeseireweb/seire.jsp?modulo=RE&anoConexao=2006>.
Fonte: TSE <www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2010/estatisticas>.
20
2010, Marina Silva15. A menos de dois meses da eleição, um acidente aéreo vitimou
fatalmente o candidato do PSB e Marina assumiu a candidatura. A partir do acidente, as
pesquisas passaram a apontar Marina Silva no segundo turno contra Dilma Rousseff e
esse cenário somente se modificaria nos últimos cinco dias que antecederam a votação.
O resultado das urnas levou Dilma com 43,2 milhões de votos (41,5%) e Aécio Neves
com 34,8 milhões (33,5%) para o segundo turno, contra 22,1 milhões de votos (21,3%)
para Marina Silva.
Metodologia e Análise: A medição do Potencial Ofensivo dos discursos
O artigo teve por objetivo comparar os programas eleitorais de PT e PSDB,
veiculados durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2014, procurando por
aqueles que apresentassem discursos compatíveis com a ideia de discurso do ódio para,
a partir daí, verificar sua relação com o número de compartilhamentos e de curtidas
registrados nas páginas oficiais da rede social Facebook dos candidatos.
A hipótese que norteou a pesquisa trazia em conta a ideia de que o ódio seria um
elemento gerador de coesão no eleitorado digital, e que aqueles programas que
estivessem mais carregados de ódio, seriam os mais curtidos e compartilhados nas
páginas dos candidatos. E para realizar a pesquisa, escolhemos como objeto de análise
três programas de cada candidato, veiculados nos mesmos dias e horários da
programação eleitoral gratuita de televisão. Foram assim selecionados os programas das
quintas-feiras à noite, dos dias 09, 16 e 23 de outubro.
O maior desafio metodológico deste trabalho surgiu diante da necessidade de
verificarmos e quantificarmos a presença de discurso do ódio nos programas dos
candidatos. A partir desse dilema, desenvolvemos uma metodologia que, após os
primeiros testes e adaptações, se mostrou capaz de dar conta deste problema, a qual
explicamos a seguir.
O método inicia com a divisão dos vídeos da programação eleitoral em cortes de
dez segundos, que serão analisados individualmente. Num primeiro momento, é
realizada a medição do Potencial Ofensivo Específico dos discursos, onde são avaliados
os termos, a ênfase, a sonoridade, a imagem e os todos os demais elementos que
compõem o quadro retórico do corte em análise. O segundo momento é a contagem do
tempo dentro deste intervalo de dez segundos de discurso.
15
A candidata concorreu em 2010 pelo Partido Verde (PV) e atingiu quase 20% dos votos válidos.
21
Como normalmente estes programas são divididos em quadros - como
entrevistas, discursos dos candidatos, discursos de apoiadores, imagens de campanha e
outros - consideramos estes quadros como as referências principais na contagem do
tempo, ou seja, os cortes de dez segundos são realizados dentro de cada quadro
específico e, assim, os quadros apresentam a somatória dos resultados que lhes confere
seu próprio Potencial Ofensivo Relativo. E uma vez que todos os quadros de um
programa estiverem avaliados, teremos condições de somar seus resultados e atribuir ao
programa um Potencial Ofensivo Geral.
A medição do Potencial Ofensivo Específico é feita com base em uma tabela que
atribui três conceitos para os discursos dos candidatos em relação à proposta
concorrente, ou o que chamamos de o “Outro Antagonista”. Discursos com Potencial
Ofensivo Leve seriam aqueles que, apesar de fazerem referência ao outro antagonista,
não chegam a projetar sentimentos de ruptura. Já os discursos com Potencial Ofensivo
Moderado, são aqueles que projetam o sentimento de ruptura, e podem conter acusações
explícitas ou implícitas ao “outro antagonista”. Os discursos com Potencial Ofensivo
Alto, são aqueles que projetam sentimentos de ruptura, contêm acusações explícitas ou
implícitas, utilizam símbolos de caráter pejorativo e figuras de linguagem para atribuir
sentido negativo ao outro antagonista. Uma vez enquadrado em um destes conceitos,
Leve, Moderado ou Alto, a avaliação do Potencial Ofensivo do Discurso recebe uma
pontuação com base na tabela 1:
Potencial Ofensivo Específico
(Tipos de discurso)
Potencial Ofensivo Leve
Elementos
Grau
Não projeta sentimento de ruptura.
0-3
Potencial Ofensivo Moderado
Acusações implícitas ou explícitas. Projeta
sentimento de ruptura.
3,1 - 6
Potencial Ofensivo Alto
Acusações implícitas ou explícitas. Projeta
sentimento de ruptura. Uso de símbolos
pejorativos ou figuras de linguagem.
6,1 a 10
Tabela 1: Medição do potencial ofensivo dos discursos
Após a identificação do Potencial Ofensivo Específico, observa-se o Tempo
Relativo do discurso ofensivo dentro de cada corte de dez segundos. Atribui-se
inicialmente um conceito entre Leve, Moderado e Alto para o uso do tempo e, por fim,
um grau que seguirá a mesma lógica da escala do Potencial Ofensivo, e receberá uma
avaliação entre zero e dez.
22
Tendo medidos o Potencial Ofensivo Específico e o Tempo Relativo de cada
corte de dez segundos, somamos os resultados obtidos e chegamos no Potencial
Ofensivo Relativo. O cálculo do Potencial Ofensivo Relativo pode ser aplicado
separadamente, sobre cada fala, discurso, entrevista, ou ainda, como foi feito neste
trabalho, sobre cada quadro do programa, para depois se chegar, com a soma de todos
os elementos de um objeto, neste caso, o programa veiculado no horário eleitoral
gratuito de televisão e publicado no Facebook, ao resultado final do Potencial Ofensivo
Relativo.
A partir deste ponto, passamos a cruzar os dados obtidos sobre cada programa de
cada candidato com os dados sobre visualizações, curtidas e compartilhamentos
registrados nas páginas oficiais mantidas durante a campanha no Facebook, ao que
chegamos nos seguintes resultados:
Gráfico 1: Potencial Ofensivo de Aécio Neves
Os programas analisados do candidato do PSDB, Aécio Neves, apresentaram
uma variação significativa em termos de uso de Potencial Ofensivo. Os discursos
enquadrados na categoria de Potencial Ofensivo Leve aqueles que apontavam para a
recuperação da esperança, o novo jeito de governar, e a ideia de que o Brasil precisava
mudar. Em relação aos de Potencial Ofensivo Moderado, os elementos davam conta de
ideias como a população sentir-se enganada, o adversário não assumir os erros
cometidos e não ter limites quando estaria “em jogo o seu projeto de poder”. Já os
discursos com Potencial Ofensivo Alto foram aqueles que trouxeram ideias sobre o
governo do adversário não ter decência, não ter valores, recessão financeira, escândalos
políticos, corrupção na Petrobrás, Brasil “no fundo do poço”, estatais serem “a galinha
dos ovos de ouro” e sobre o Brasil não merecer este governo.
23
Gráfico 1: Potencial Ofensivo Relativo de Aécio Neves
Gráfico 2: Potencial Ofensivo de Dilma Rousseff
Os programas analisados da candidata do PT à reeleição, Dilma Rousseff,
apresentaram menor variação no Potencial Ofensivo Geral. Entre os discursos
considerados de Potencial Ofensivo Leve, encontramos elementos como referência à
vitória nas urnas no Estado natal do candidato Aécio Neves, sobre a candidata saber o
que o povo pensa e garantir os resultados. Entre os discursos considerados de Potencial
Ofensivo Moderado, os elementos davam conta de ideias como o seu governo não olhar
para os números, mas para as pessoas, sobre estar em jogo um modelo de país, sobre o
país não poder voltar atrás nas conquistas. E os discursos de Potencial Ofensivo Alto,
traziam elementos como o candidato adversário representar o modelo que “quebrou o
país três vezes”, abafou escândalos, privatizou empresas “a preço de banana”, causou
desemprego e recessão, “se curvou ao FMI”, “varreu a corrupção para baixo do tapete”,
e focava na figura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ter chamado
aposentados de “vagabundos”, ter dito que os “pobres votam em Dilma porque são mal
informados” e que então, ele teria dito na verdade que os eleitores de Dilma são
“ignorantes”, que os trabalhadores em seu governo eram jogados no desalento, e que o
remédio que o PSDB dizia que tinha para o país, na verdade teria o “gosto amargo do
desemprego”.
24
Gráfico 2: Potencial Ofensivo Relativo de Dilma Rousseff.
Além destes gráficos, foram gerados gráficos comparativos e relacionados com o
desempenho dos programas em relação ao Potencial Ofensivo.
Gráfico 3: Comparativo do Potencial Ofensivo Relativo entre os programas dos
candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves
25
Gráfico 4: Comparativo de compartilhamento obtido por seguidores nos perfis
dos candidatos na rede Facebook.
Gráfico 5: Percentual de compartilhamentos por número de visualizações
Considerações Finais
Este trabalho procurou encontrar uma relação entre o discurso do ódio presente
nos dois principais partidos políticos do Brasil, o Partido dos Trabalhadores e o Partido
da Social Democracia Brasileira, e o clima de opinião pública que se revelou na rede
social Facebook, durante a eleição de 2014 para Presidente da República, disputada no
segundo turno entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves.
A hipótese que norteou este trabalho supunha que o ódio seria um elemento
gerador de engajamento e que, os programas que apresentassem um maior potencial
26
ofensivo seriam aqueles que se revelariam os mais populares na rede, popularidade
medida em número de curtidas e, principalmente, de compartilhamentos. Esta
expectativa não foi plenamente atingida na análise dos três programas selecionados por
parte de cada candidato.
O programa que revelou o menor Potencial Ofensivo Relativo por parte do
candidato Aécio Neves, do PSDB, do dia 09 de outubro de 2015, atingindo apenas 75
pontos na escala de Potencial Ofensivo Relativo, foi o mais visualizado, atingindo quase
350 mil visualizações. Também foi o programa que obteve o maior número de
compartilhamentos, de percentual de compartilhamento por seguidores (0,79%) e por
visualizações (5,60%).
Da parte da candidata Dilma Rousseff, da mesma forma, se observou que o
programa com menor Potencial Ofensivo Relativo, o que foi ao ar no dia 16 de outubro
de 2015, foi o que obteve o maior número de compartilhamentos. No entanto esse
também foi o programa com o maior número de visualizações, mais de 500 mil, o que
refletiu neste resultado e garantiu um número também maior no percentual de
compartilhamentos por seguidores (0,98%).
No entanto, nossa hipótese se confirma para os seguidores do Facebook de
Dilma Rousseff através do percentual de compartilhamento por número de
visualizações, que se revelou maior para o programa que obteve o maior Potencial
Ofensivo Relativo, 236 pontos, e que foi ao ar no dia 09 de outubro. Este programa teve
20.105 compartilhamentos para 381.207 visualizações, o que representa que 5,27% dos
que assistiram ao programa compartilharam o arquivo em suas redes pessoais ou
privadas.
Estes resultados não representam o quadro geral do segundo turno. Eles levam
em consideração apenas os programas veiculados à noite e, nas quintas-feiras de
programação eleitoral gratuita na televisão. Portanto, para dizer que o público que
seguia a candidata Dilma Rousseff estava mais propenso a compartilhar conteúdo
contendo discurso do ódio, deve-se levar em consideração que a amostragem dos
programas analisados representa pouco mais de 17% do total.
Da mesma forma, ao analisar os três programas de cada candidato utilizando a
medição do Potencial Ofensivo Relativo, chegamos a números totais que demonstram
uma marcada diferença entre os Potenciais Ofensivos de Aécio Neves e Dilma
Rousseff. A programação da candidata do PT atinge 602 pontos, enquanto a
programação do candidato do PSDB atinge 317 pontos.
27
Gráfico 6: Potencial Ofensivo Relativo Total Dilma x Aécio
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29
As eleições presidenciais de 2014 e o escândalo midiático da Petrobras
Lívia Borges Pádua
Resumo:
Este paper foi dedicado a esclarecer quais foram as estratégias adotadas por Dilma
Rousseff (PT), então presidente e candidata à reeleição, em função do escândalo da
Petrobras, que se desenrolou concomitantemente à disputa eleitoral de 2014. Para isso,
analisou-se um dos episódios mais marcantes do referido escândalo: a denúncia
publicada pela revista Veja, segundo a qual Dilma e o ex-presidente Lula (PT) estavam
cientes do esquema de corrupção na estatal. Essa denúncia se destacou dentre as demais
por envolver, pela primeira vez, Dilma diretamente ao esquema de corrupção e por ter
sido divulgada no dia 24 de outubro de 2014, data em que findava o prazo de veiculação
das propagandas eleitorais e do último debate entre os candidatos. Assim, elegeu-se
como objeto de estudo os programas do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral
(HGPE) de Dima, exibidos na televisão, no dia 24 de outubro, e as partes do debate
promovido pela Rede Globo, neste mesmo dia, que se referiam ao escândalo em
questão. Além disso, a analisou-se a comunicação oficial da candidata e de seu partido
na internet e as manifestações mais ecoantes das militâncias nas redes sociais, que
permitiram inferir sobre a estratégia de defesa da petista.
Palavras-chave: Escândalo Político, Estratégias de Campanha, Petrobras.
Introdução
Este trabalho debruça-se sobre as estratégias de comunicação adotadas por
Dilma Rousseff (PT) – na acosião, presidente da República do Brasil e candidata a
reeleição no pleito de 2014 – em virtude do escândalo político midiático da Petrobras,
deflagrado em março de 2014, devido à divulgação das investigações empreendidas pela
Política Federal, em uma operação denominada Lava a Jato, que investiga o esquema de
lavagem e desvio de dinheiro articulado por funcionários da Petrobras, políticos e
empreiteiros.
Esse escândalo recebeu ampla cobertura midiática desde sua eclosão, em março
de 2014 e perdura até os dias atuais (novembro de 2015). Naturalmente, ele feriu a
candidatura de Dilma. Mas, como nenhuma denúncia havia a ligado diretamente ao
esquema, ela seguiu se esquivando. Contudo, no dia 24 de outubro de 2014, a revista
Veja publicou uma matéria que a incriminava. Segundo Veja, Dilma e o ex-presidente
30
Lula (PT) estavam cientes do esquema de corrupção na estatal e, portanto, haviam sido
coniventes com ele.
Essa matéria destaca-se, dentre as demais notícias divulgadas pela imprensa
sobre o escândalo, por ter sido divulgada na data em que findava o prazo de veiculação
das propagandas eleitorais gratuitas e do último debate entre os candidatos, o que tornou
ainda mais urgente à tomada de posição dos concorrentes ao Palácio do Planalto. Nesse
contexto, buscou-se analisar as estratégias adotadas por Dilma, em razão do escândalo,
a fim de esclarecer como sua campanha se apropriou da acusação feita pela Veja e
(re)construiu um discurso a seu favor.
Para viabilizar esta pesquisa elegeu-se como objeto de estudo os programas do
Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) de Dilma, exibidos na televisão, as
partes do debate promovido pela Rede Globo que se referiam ao escândalo em questão.
Além disso, foram analisados os posicionamentos de Dilma e do PT na internet e as
manifestações mais ecoantes das militâncias nas redes sociais. Já a sustentação teórica
da discussão proposta baseou-se, principalmente, no trabalho de Thompson (2002,
2008) a respeito da dinâmica dos escândalos.
Escândalo político midiático: ameaças e oportunidades no âmbito das eleições
Um escândalo eclode quando um ato de transgressão se torna conhecido de
pessoas que se sentem impelidas a manifestar publicamente sua reprovação, de modo
que tais práticas sejam interrompidas e gerem um discurso “infamante” sobre os sujeitos
transgressores. Entende-se que o discurso moralizador seja aquele “que censura e
reprova, repreende e condena, que expressa a desaprovação das ações e dos indivíduos”
(THOMPSON, 2002, p. 48). Assim, pode-se inferir que as transgressões precisam
tornar-se visíveis para transformarem-se em um escândalo.
Já os escândalos qualificados como midiáticos distinguem-se por terem sua
estrutura temporal e sequencial definida pela cobertura dos fatos relacionados a eles.
Desse modo, os escândalos desse tipo são constituídos à medida que a imprensa realiza
a cobertura do processo instigado pelas revelações de contravenção – desdobramentos
legais, depoimentos dado por pessoas ligadas ao caso, descoberta de novas evidências
etc. – e abre espaço para discuti-las publicamente, construindo um “discurso infamante”
sobre os sujeitos e entidades enredadas no caso. (THOMPSON, 2002).
31
Como os escândalos midiáticos usufruem de uma publicidade midiática,
evidentemente, parte das narrativas sobre eles é revelada por meio de formas midiáticas
de comunicação, tal qual a desaprovação causada por eles. Por conseguinte, “as ações
ou acontecimentos que estão no centro dos escândalos midiáticos se tornam visíveis aos
outros que não estão presentes no tempo e no local de sua ocorrência, podendo estar
localizados em lugares espacialmente distantes”, amplificando a visibilidade e
maculando a imagem pública dos infratores. (THOMPSON, 2002, p. 92).
Diante desse tipo de escândalo os acusados costumam assumir, negar a culpa ou
se recusar a prestar declarações sobre os casos, sendo que na maioria das vezes o
objetivo é fazer com que o escândalo desprovido de novas revelações morra aos poucos
e deixe de atrair a atenção do público. Contudo, quando a versão do acusado é
invalidada por novas revelações, que rescindem suas versões dos acontecimentos, o
escândalo de primeira ordem pode tornar-se de segunda ordem, pois a ofensa inicial dá
lugar à discussão sobre os novos fatos acrescidos a trama. (THOMPSON, 2002).
Ainda sobre os escândalos midiáticos, Luhmann (2005, p. 63) acrescenta que a
maneira como as transgressões são enquadradas pela imprensa podem gerar novos
escândalos, que podem produzir um sentimento geral de que todos foram atingidos e se
sentem indignados. Ademais, a mídia pode edificar um discurso que contribui para a
manutenção e reprodução da moral, ao apresentar os “patifes, vítimas e heróis que
realizam aquilo que estava além do exigível”. No entanto, Thompson (2002) pondera
que a desaprovação da mídia, não necessariamente, corresponde à opinião pública.
Os escândalos políticos midiáticos, por sua vez, caracterizam-se pelo fato de os
sujeitos transgressores serem líderes ou figuras políticas – um líder, ou aspirante à líder,
um funcionário eleito ou designado etc. Contudo, tais transgressões não precisam ser
apenas de ordem política para desencadearem um escândalo dessa natureza. Casos
relacionados a questões sexuais ou financeiras também podem provocar escândalos
políticos, porque o determinante para isso não é o tipo da transgressão, mas, o status dos
personagens que protagonizaram tais acontecimentos públicos. (THOMPSON, 2002).
Os escândalos político de ordem financeira, segundo Guareschi (2002), são mais
comuns por aqui. Eles caracterizam-se pela revelação ou suspeita de ligações secretas
entre sujeitos ligados ao poder político – figuras ou funcionários públicos – e sujeitos
ligados ao poder econômico, que implicam na violação das normas que regulamentam a
aquisição e o uso do dinheiro e recursos financeiros. Por configurar-se pela transgressão
32
de normas legais, é comum que as descobertas de contravenções financeiras resultem na
abertura de investigações e processos contra os infratores e na emersão de escândalos.
Os escândalos político-financeiro costumam estar ligados a outro tipo de
escândalo: o escândalo de Poder. Pois, as transações ilícitas, podem ser realizadas por
sujeitos que possuem acesso ao poder político e o utilizam de modo ilegal, contrariando
as normas que regem a conduta dos ocupantes dos cargos públicos. Segundo Thompson
(2002, p. 240), esse tipo de escândalo é edificado quando ocorre a “revelação das
formas ocultas do poder e os abusos de poder reais ou supostos que tinham, até então,
sido ocultados por detrás dos ambientes públicos em que o poder é exercido”.
Diante disso, pode-se inferir que o caso da Petrobras configura-se como um
escândalo político midiático financeiro e de poder. Porque, pelo que se sabe, o esquema
de corrupção na estatal envolveu funcionários públicos e líderes políticos, que fizeram
uso de seus cargos para obter recursos monetários de modo ilícito, nas negociações
estabelecidas com empreiteiras (setor da economia privada), infringindo as regras que
regem tanto os processos de licitação para prestação de serviços a órgãos públicos,
quanto as que norteiam a gestão de tais órgãos, subtraindo bilhões dos cofres da nação.
Análise das estratégias adotadas as véspera da eleição por Dilma Rousseff
O último dia de uma campanha eleitoral costuma ser intenso. Afinal, nessa data,
em que se encerram as chances dos candidatos se apresentarem a maior parte do
público, com o intuito de conquistar sua preferência, finaliza, também, o prazo para os
competidores tentarem enfraquecer seus adversários, sendo este momento oportuno para
tal fim, já que a pressão do tempo pode impedir a reversão, até o dia da eleição, de uma
opinião pública desfavorável sobre determinado concorrente. Por isso, caso surjam
boatos ou acusações nessa ocasião, torna-se necessário à tomada de medidas urgentes.
O término do segundo turno, da campanha eleitoral de 2014, no Brasil,
aconteceu à meia-noite, do dia 24 de outubro de 2014 (sexta-feira), 32 horas antes da
votação. Segundo determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesse dia findava
o prazo para os candidatos à presidência divulgarem suas propagandas e programas
eleitorais. Essa era a data limite, também, para os veículos de comunicação promoverem
debates entre os candidatos. Nessa sexta-feira, praticamente às vésperas das eleições a
revista Veja publicou a referida denúncia que agitou a corrida ao Palácio do Planalto.
33
Para tentar conter os prejuízos causados por Veja à candidatura de Dilma, seus
consultores providenciaram alterações em seu programa eleitoral16. Além disso, eles
realizaram uma campanha na internet. Nesse momento, Dilma e seu partido
posicionaram-se de forma contundente, desqualificando a revista, a acusação e negando
a culpa imputada a Dilma pela Revista. Ao agir dessa forma, reconhece-se que as
denúncias poderiam prejudicar sua eleição e, também, a inegável capacidade da Veja
provocar um processo de accountability e atuar como um ator político de fato.
Em linhas gerais, a estratégia do PT consistiu em dar visibilidade à denúncia,
tida como absurda, para invalidá-la. Como se o fato da própria candidata ter tomado a
iniciativa de expô-la, abonasse sua culpa. Afinal, como diz um provérbio: “quem não
deve não teme”. Ao se posicionar, rapidamente, diante da crise, Dilma busca emplacar
sua versão do episódio: como sempre, Veja tentou deflagrar um escândalo, para impedir
a vitória petista. Assim, ao manifestar que a Revista teria intensões políticas escusas,
colocava-se em suspeição a veracidade dos acontecimentos narrados.
Na TV, os programas diurnos e noturnos17 foram iniciados com a fala do
apresentador, que atacou a credibilidade da revista Veja, sublinhando que o
comportamento dela era previsível, já que todas as vezes que as pesquisas indicam o
êxito do PT, a Revista divulga denúncias “supostamente bombásticas” para tentar
interferir no resultado eleitoral. Depois disso, o apresentador cita outras ocasiões em que
Veja utilizou esse mesmo artificio. Enquanto as imagens das publicações mencionadas
por ele se sucedem e se avolumam, uma em cima da outra na tela.
Após questionar o papel da Revista Veja, Dilma entra em cena, enquadrada em
close, e passa a protestar contra a acusação, negando, veementemente, que tenha
compactuado com a corrupção na Petrobras. A candidata diz que não pode se calar
diante do que chama de “ato de terrorismo eleitoral”, empreendido pela Revista e seus
“parceiros ocultos” e argumenta que Veja a acusa sem apresentar provas, baseando-se
no suposto depoimento de pessoas do “submundo do crime”. Dilma considera que
apesar da Veja promover uma campanha contra ela e Lula há anos, dessa vez ela
cometeu um crime para reverter o resultado das eleições.
16
No último programa Dilma utilizou metade de seu tempo para tratar da denúncia da revista Veja.
É importante ressaltar que no dia 23 de outubro de 2014, na noite anterior a chegada da Veja às Bancas,
foi publicado um teaser, no site da Revista, que adiantava as denúncias feitas contra Dilma. Acredita-se
que nesse momento a equipe do PT já iniciou a elaboração de um plano de gestão de crise, que contou
com a formulação, produção e edição de um novo programa eleitoral, que foi ao ar no HGPE exibido às
13 horas, do dia 24 de outubro de 2014. O PSDB foi menos eficaz nesse sentido, porque o programa de
Aécio com um parecer sobre o caso em questão, só foi exibido na noite da sexta-feira.
17
34
A estratégia do PT na internet alinhou-se a adotada no HGPE. Na página do
Facebook de Dilma18 foram feitas publicações para tentar anular a crise. A primeira
delas foi composta pelo trecho do programa em que a candidata responde às acusações
da Revista19. Foi postado um link para um artigo publicado no site do PT, sobre os
memes20 criados por internautas e uma imagem (Figura 2) que dizia que a Justiça
rotulou a Revista como panfletária. Dilma ainda postou 16 mensagens no Twitter, sobre
o assunto, em algumas usou a hashtag “desesperodaveja”.
Figura 2
Justiça diz que Veja é panfletária
Fonte: Dilma Rousseff, 2014
Já na página do PT21, foram feitos três posts sobre as decisões jurídicas tomadas
pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – proibição do uso da capa em propagandas e da
divulgação da matéria pela Editora Abril; multa de 500 mil reais por hora que a revista
descumprir o direito de resposta concedido à Dilma. Dentre as postagens, chamou a
atenção uma imagem compartilhada do Facebook de Dilma, que mostrava o resultado
das pesquisas eleitorais com o título: “A verdade vai vencer a mentira”, evidenciando o
uso político da crise e a inversão do ônus da denúncia.
18
Endereço da página do Facebook de Dilma Rousseff:
https://www.facebook.com/SiteDilmaRousseff?fref=ts
19
Essa publicação recebeu 10.117 curtidas, 15.641 compartilhamentos, 2.272 comentários e o vídeo foi
visualizado 214.461 vezes.
20
O conceito de meme está relacionado a um conceito genético desenvolvido por Dawkins, em 1976, no
livro “O gene egoísta”. Para Dawkins as ideias funcionariam como os genes que se perpetuam, por meio
da replicação de si mesmos. Assim, segundo Recuero (2011), “memes seriam pedacinhos de informações,
ideias, que são passadas a diante”.
21
Endereço da página do Facebook do PT: https://www.facebook.com/pt.brasil
35
Além disso, foram postados no Facebook do PT links que direcionavam para o
site do partido, onde foram publicados três artigos sobre o tema em questão. O primeiro,
relata que Lula não quis dar declarações sobre as acusações, por não dar importância a
elas. No segundo22, dissertou-se sobre as decisões do TSE. O terceiro, intitulado
“Fracassa nova tentativa de golpe da revista Veja23”, conclui que a iniciativa da Revista
de ‘disparar uma bala de prata’ contra o PT, foi uma forma da Revista tentar evitar a
reeleição de Dilma.
O contra ataque a Veja também se deu por meio da adoção de uma estratégia não
oficial24. O fato é que, no dia 24 de outubro, foram divulgadas, no Tumblr, Twitter e
Facebook, montagens da capa da Revista (Figura 3), com potencial de se tornar um
meme25. A paródia consistiu na criação de manchetes fictícias, sobre situações absurdas,
cuja culpa era imputada sempre à Dilma, a Lula e ao PT. As montagens eram
acompanhadas da hashtag “desesperodaveja”, que dialoga com a estratégia oficial de
anular o sentido da denúncia.
FIGURA 3
Paródia de capas da Revista Veja
Fonte: Tumblr (http://desesperodaveja.tumblr.com/)
UMPIERRE, Flávia. PT vai à Justiça contra “Veja” por reportagem caluniosa e difamatória. PT. 24
out. 2014. Disponível em: <http://www.pt.org.br/pt-vai-a-justica-contra-veja-por-reportagem-caluniosa-edifamatoria/> Acesso em: 02 jul. 2015.
23
ZOCOLLI, Mariana. Fracassa nova tentativa de golpe midiático da revista “Veja”. PT. 24 out. 2014.
Disponível
em:
<http://www.pt.org.br/fracassa-nova-tentativa-de-golpe-midiatico-da-revista-veja/>
Acesso em: 02 jul. 2015.
24
Não se pode afirmar com certeza que esta ação nasceu dentro da campanha do PT, porque não se tem
notícia de quem seja o seu idealizador.
25
O conceito de meme está relacionado a um conceito genético desenvolvido por Dawkins, em 1976, no
livro “O gene egoísta”. Para Dawkins as ideias funcionariam como os genes que se perpetuam, por meio
da replicação de si mesmos.
22
36
Não foi possível descobrir o número de vezes que a hashtag foi utilizada, nem
quantas montagens foram criadas, tão pouco quantas pessoas as compartilharam.
Todavia, é patente que a paródia tornou-se um meme e viralizou. Sabe-se que a hashtag
“desesperodaveja” figurou, naquele dia, o Trending Topic26 global, no Twitter. Além
disso, pode-se afirmar que a campanha de desmoralização da Revista se fez presente
durante todo o dia no Facebook. Com isso, os petistas conseguiram, em alguma medida,
desacreditar a denúncia feita contra eles.
Considerações Finais
Como era de se esperar as eleições de 2014 ocorreram sob o pano de fundo de
um escândalo político midiático. Afinal, por aqui a ocorrência desse tipo de fato é
frequente. Mas, apesar do escândalo da Petrobras ter sido pautado pela imprensa durante
toda eleição, provocando até uma onda de notícias sobre ele (PÁDUA, 2015),
consolidando-se como um fato verídico, os petistas parecem ter conseguido gerir a crise
que emergiu as vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, colocando em
xeque a veracidade das acusações publicadas pela Veja.
Pode-se dizer que a implementação rápida e organizada de ações tanto no campo
jurídico, quanto no da comunicação garantiu, ao menos, colocar em dúvida as denúncias
publicadas por Veja, que ganharam notoriedade, parte das vezes, pelas próprias
iniciativas do PT, que agendou sua versão dos fatos na imprensa, que noticiou, ao longo
do dia 24 de outubro, os desdobramentos legais da denúncia, favoráveis ao PT. Além
disso, nas redes sociais uma “avalanche” de posts, acompanhados da hashtag
“desesperodaveja”, contribuiu para a consolidação da versão de Dilma.
Há de se considerar que a negativa de Dilma sobre as acusações poderia ser um
blefe. Mas, mesmo assim, sua estratégia pode ser considerada astuta – apesar de não
ética. Pois, provavelmente, não seria possível que as investigações desenrolassem de
forma a fazer cair por terra às suas explicações até a data das eleições, desencadeando
um escândalo de segunda ordem.
26
O termo Trending Topics (TTs), que pode ser traduzido como assunto do momento, refere-se a uma
lista formada em tempo real pelas palavras ou frases mais publicadas no Twitter de todo o mundo,
acompanhadas de uma hashtag (#). Existem listas nacionais e uma global.
37
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38
Mesa C: COMUNICAÇÃO POLÍTICA INSTITUCIONAL
RELAÇÕES DE PODER E COMUNICAÇÃO EM UMA
SECRETARIA DE ESTADO DO
RIO GRANDE DO SUL
Liege Heck da Silva
Graduada em Comunicação Social – Relações Públicas
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
[email protected]
Ana Karin Nunes
Doutora em Educação pela UFRGS, Mestre em Comunicação pela PUCRS
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
[email protected]
RESUMO
O estudo teve como objetivo identificar como operam as relações de poder, no contexto
da função organizacional política de Relações Públicas, em uma Secretaria de Estado do
Rio Grande do Sul. Analisa como as relações de poder moldam as rotinas de
comunicação entre os funcionários da organização. Os resultados apontam que o
sistema de política partidária determina o sistema político e a Assessoria de
Comunicação da Secretaria, por questões estruturais do Estado, não prioriza a
comunicação interna.
Palavras-chave: Comunicação. Relações de poder. Organizações públicas.
1. Introdução
O artigo apresenta os resultados de um estudo realizado em uma organização
pública, uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa acadêmica teve por
objetivo analisar como as relações de poder influenciam nas rotinas de comunicação e
nos resultados de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul. O desenvolvimento
do estudo foi realizado entre agosto e outubro do ano de 2014, período que coincidiu
39
com as eleições para deputados estaduais, deputados federais, senador, governador do
estado e presidente da república, no Brasil. Em razão das incertezas no cenário político,
da espera pelos resultados das eleições para governador e de suas consequências, existe
a probabilidade de alguma interferência desse aspecto nas entrevistas.
Devido ao caráter fortemente burocrático e à política partidária que se faz
presente em muitas das organizações públicas, ficam mais evidentes as mudanças
estruturais e a diversidade organizacional a serem geridas em suas relações. A
coexistência de diferentes posições partidárias entre os próprios servidores e a
convivência profissional junto aos Cargos em Comissão (CCs) da gestão governamental
evidenciam as relações de poder.
As sucessões governamentais geram um cenário no qual não há como manter
permanente a equipe de trabalho e o foco nas mesmas políticas de governo. Isso
significa que os servidores do quadro precisam, de tempos em tempos, se adaptar à
gestão da mudança organizacional, desde compreender a ideologia partidária até aceitar
alterações na estrutura da organização. Essa dinâmica é permeada por relações de poder,
que se manifestam inclusive na linha de atuação da Assessoria de Comunicação,
vinculada ao Gabinete do Secretário, em todas as Secretarias de Estado.
Nesse ambiente, é normal que surjam conflitos de interesses, fazendo-se
necessário um intermédio diplomático a fim de propiciar o alcance da missão
organizacional. Considerando que a comunicação em si é um ato político, a gestão das
relações de poder nas organizações faz parte da função política da atividade de Relações
Públicas e do papel da Assessoria de Comunicação como um todo.
Frente a isso, identifica-se como operam as relações de poder, no contexto da
função organizacional política de Relações Públicas, em uma Secretaria de Estado do
Rio Grande do Sul, e analisa-se como as relações de poder moldam as rotinas de
comunicação entre os funcionários da organização.
2. O poder e a função organizacional política
Ao se estudar política, a palavra pode ser pensada no sentido de política
governamental, ou no sentido de espaço de interação e convivência. A política é, para
Arendt (2007), fundamentada na pluralidade dos homens; a política é algo que surge
entre os homens e encarrega-se da convivência entre eles. Por sua vez, Mintzberg
(1992) trata a política como um subconjunto do poder, tida como um poder informal, de
40
natureza não legítima (quando se trata de autoridades é que o poder torna-se legítimo,
formal, oriundo de um cargo).
A política está relacionada ao fenômeno do poder, assim como o Estado.
Bobbio (1987) estabelece uma vinculação das formas de governo com referência ao
poder: democracia, oligarquia, monarquia, aristocracia, etc. Qualquer teoria política
acaba por partir de alguma forma e definição de poder. A própria Teoria do Estado é
ramificada na teoria dos três poderes e suas relações: o legislativo, o executivo e o
judiciário, e “se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria
política, a teoria política pode ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do
poder” (BOBBIO, 1987, p. 77).
A ciência política, para Simões (2001, p. 70), é passível de ser dividida em dois
ramos, que são a macropolítica e a micropolítica. Ambas estudam a prática do exercício
do poder, a política como característica das relações entre semelhantes e que resultam
no poder. A macropolítica ocupa-se das relações de poder na sociedade, inclusive no
âmbito dos governos, com seus grandes agregados e estatísticas. Procura ajustar a
cooperação entre as partes para que atinjam sua missão, embora os interesses e valores
sejam conflitantes. Já a micropolítica se dá em espaços restritos, como nas
organizações, sejam elas públicas, privadas ou de terceiro setor. Na micropolítica
encontram-se os princípios do relacionamento público, o estudo das relações de poder
em espaços circunscritos. Segundo Simões (2001, p. 70), a micropolítica “trata da
relação de poder em espaços mais restritos como nas organizações, nas famílias e nos
grupos”.
No estudo da política em seu contexto micro, Mintzberg (1992) define poder
como a capacidade de influenciar, de afetar o comportamento nas organizações. Trata a
influência como sinônimo de poder. O autor lembra que a própria terminologia “poder”
carrega a denotação “ser capaz de” tanto no substantivo quanto no verbo. “Tener poder
es tener la capacidad de conseguir que determinadas cosas se hagan, de causar efecto
sobre las acciones y decisiones que se toman” (MINTZBERG, 1992, p. 5).
Nas organizações há três fontes primordiais de poder, de acordo com Mintzberg
(1992): o controle de um recurso; o controle de uma habilidade técnica; e o controle de
um corpo de conhecimento de considerável importância para a organização. Para que
representem uma fonte de poder, esses tipos de controle devem ser de áreas essenciais
para o funcionamento da organização. Devem estar concentrados, constituindo recurso
escasso, pertencentes à condição de insubstituíveis, nas mãos de indivíduos que
41
cooperem até certo ponto. Esses controles geram dependência, visto que a organização
necessita de algo que só pode ser alcançado mediante as poucas pessoas que possuem o
poder.
O acesso ao poder também se dá pelas trocas de favores: “amigos y compañeros
se garantizan uns a otros influência sobre sus respectivas actividdades. En este caso el
poder no procede de la dependência, sino de La reciprocidad, ganar poder en una esfera
a cambio de concederlo en outra” (MINTZBERG, 1992, p. 27). O jogo de poder nas
organizações não se restringe a relações de dependência, mas também de reciprocidade.
Nas organizações públicas, isso é visualizado em épocas de campanha eleitoral, quando
um grupo apoia outro a partir de interesses partidários ou pessoais; ou na transição
governamental, quando a nova gestão começa a se estabelecer na organização e os
servidores tentam se aproximar e melhorar de posição ou assumir cargo de chefia.
Frente a esse cenário, a área de Relações Públicas na organização deve fazer o
intermédio na conciliação de interesses e gerir o ambiente político. A atividade busca,
por meio da comunicação, gerir informações que contribuam para um clima de
cooperação. Ou seja, Relações Públicas trata da função organizacional política, como
propõe Simões (2001), tendo como ciência a micropolítica, as relações de poder em
espaços restritos. No fazer da atividade encontram-se os projetos, as ações de
informação, persuasão ou diálogo, com o objetivo de privilegiar a negociação, o espaço
democrático, uma proposição intrínseca e primordial à profissão.
O sentido do termo “função” da atividade social de Relações Públicas é descrito
por Simões (1992, p. 102) como um processo organização-público em que: “as políticas
e ações componentes das Relações Públicas repercutem necessariamente nos resultados
da organização que, por sua vez, desestabiliza ou reequilibra o sistema organizaçãopúblico e vice-versa”. A função da organização é destinada à manutenção do sistema
social no qual se insere. A relação organização-públicos envolve a bipolaridade
cooperação/conflito, que é um processo de interação dividido nas seguintes etapas:
satisfação, insatisfação, boato, coligações, pressão, conflito, crise, arbitragem e
convulsão social.
3. Organizações públicas e comunicação
O funcionamento das organizações públicas implica limitação orçamentária e
dependência da decisão política e da situação econômica do Estado. Segundo Dussault
42
(apud Pires e Macêdo, 2006), as organizações públicas são mais dependentes do
ambiente sociopolítico em relação às organizações privadas. Embora possam ter
autonomia em sua direção, são geridas pelo poder público, são vulneráveis à
intervenção do poder político, seu mandato vem do governo e seu funcionamento é
regulado externamente. Pires e Macêdo (2006, p. 96) atribuem especificidades às
organizações públicas como: “apego às regras e rotinas, supervalorização da hierarquia,
paternalismo nas relações, apego ao poder, entre outras”. Além disso, característica
fundamental, como já mencionado, é a diversidade organizacional:
[...] a presença de dois corpos funcionais com características nitidamente
distintas: um permanente e outro não permanente. O corpo permanente é
formado pelos trabalhadores de carreira, cujos objetivos e cultura foram
formados no seio da organização, e o não permanente é composto por
administradores políticos que seguem objetivos externos e mais amplos aos
da organização. O conflito entre eles é acentuado pela substituição dos
trabalhadores não permanentes, que mudam a cada novo mandato (PIRES;
MACÊDO, 2006, p. 97).
As organizações públicas são burocráticas, porém descentralizadas no quesito
trabalho. Mintzberg (2008) descreve essa configuração estrutural como burocracia
profissional, configuração em que há padronização das habilidades e em que os próprios
funcionários controlam seu trabalho. No ambiente da burocracia profissional não há
muito espaço para estratégia, pois é difícil trabalhar metas. O que pode acontecer é que
cada profissional individualmente tenha suas estratégias, mesmo que limitados pelos
padrões profissionais e habilidades adquiridas.
As peculiaridades da burocracia profissional e a realização do trabalho como
uma responsabilidade individual formam um sistema de poder complexo. As rotinas e
decisões organizacionais são entremeadas por grupos de pessoas (jogadores) que
exercem influência na organização, constituindo assim, de acordo com Mintzberg
(1992), um campo de forças e influências. O autor define dois grupos de influência: a
coalizão externa e a coalizão interna. Na coalizão externa os agentes com influência
pertencem ao entorno da organização, estabelecendo relação com ela. A coalizão
externa corresponde ao que Simões (2001) denomina macropolítica. Já a coalizão
interna, corresponde à micropolítica e às consequentes relações de poder entre os
diversos grupos. O campo de força localiza-se nos públicos internos, nos funcionários e
em toda a cadeia hierárquica. Nos dois tipos de coalizão, há de se considerar o poder de
influência e os respectivos jogos de interesses. No sistema de poder político emergem as
etapas de cooperação/conflito descritas por Simões (2001).
43
O sistema de política caracteriza-se como uma massa de grupos de poder,
normalmente de diferentes níveis hierárquicos, competindo entre si. Esse sistema
viabiliza trocas relevantes para a organização, estimulando mudanças. No sistema de
política, há de se considerar que os agentes possuem suas necessidades particulares. Os
agentes internos, por exemplo, possuem suas necessidades de crescimento, necessidades
pessoais, lutam para obter poder, podem ter rivalidades pessoais ou até rancor contra a
organização.
A comunicação, assim como a ciência política, também está relacionada a poder
e isso se expressa em suas variadas formas de influenciar, de afetar o comportamento.
Ou seja, a comunicação abriga em si relações de poder ao confirmar o que alegam
Bobbio (1987) e Mintzberg (1992) sobre o poder como capacidade de influência.
Comunicação, na perspectiva de Pimenta (2002), está vinculada à sinergia. Um dos
desafios da comunicação estratégica é despertar sinergia no público interno através de
campanhas, ações e peças de publicidade.
A estrutura tradicional das organizações, descrita por Pimenta (2002) como
racional e normativa, é acentuada nas organizações públicas, as quais operam
alicerçadas em uma estrutura burocrática que visa estabelecer controle, ordem e
centralização de poder. A burocracia costuma ser alvo de críticas por, de certa forma,
impedir que os trâmites ocorram de forma facilitada ou ágil. Em seu sentido tradicional,
a burocracia profissional e a coalizão interna definem como a comunicação é constituída
em uma organização pública, quais são suas dificuldades em tentar atingir as metas
organizacionais, em gerir as relações de poder e conciliar interesses. Diante das
condições das relações de poder, da força da burocracia – condições intrínsecas ao
ambiente, do poder informal do sistema político, e das características da burocracia
profissional, somadas às diferenças de posição partidária, a comunicação fica
impossibilitada de trabalhar as informações e ações de maneira que atenda todos os
grupos. Assim, de forma democrática, a atividade de Relações Públicas em ambiente
público deve cumprir sua função política, prestando atenção ao processo
cooperação/conflito.
4. O caso de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul
As Secretarias de Estado, no Rio Grande do Sul, devido à estrutura
governamental, possuem uma Assessoria de Comunicação vinculada ao Gabinete do
44
Secretário. Nessa perspectiva, as atividades são desenvolvidas em função das demandas
do Secretário, visto que a coordenação da Assessoria se dá por alguém indicado por ele.
Em razão dessa prioridade de atendimento ao Gabinete, não é habitual o
desenvolvimento de comunicação interna pela Assessoria de Comunicação, ou seja, de
um conjunto de ações e estratégias específicas para a coalizão interna. Isso ocorre tanto
em função do foco na agenda do Secretário, como em função do quadro reduzido de
funcionários, pois as equipes de comunicação do governo costumam ser pequenas.
Com o objetivo de analisar como as relações de poder influenciam nas rotinas de
comunicação e nos resultados de uma Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul, tendo
como base a teoria da função organizacional política de Relações Públicas (SIMÕES,
1992), procedeu-se à análise das diferentes percepções e realidades da organização. O
estudo foi feito durante o segundo semestre do ano de 2014, precisamente entre os
meses de agosto e outubro, período de eleições no Brasil. Em razão das incertezas no
cenário político, da espera pelos resultados das eleições para governador, estando todos
os funcionários CCs à mercê da decisão, existe a probabilidade de alguma interferência
desse fator nas entrevistas.
Do ponto de vista metodológico, foram utilizados como métodos a revisão
bibliográfica e o estudo de caso. Ainda como técnicas para viabilização do estudo de
caso foram realizadas a observação individual, a pesquisa documental e entrevistas
semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas com 12 pessoas (6 servidores do
quadro permanente e 6 CCs), todas de diferentes níveis hierárquicos dentro da
Secretaria de Estado. Optou-se por resguardar o nome da Secretaria, bem como a
identidade dos sujeitos, a fim de preservar os servidores que contribuíram como
entrevistados.
De acordo com os relatos obtidos, os principais problemas da relação entre os
funcionários e a Assessoria de Comunicação estão relacionados à estrutura
governamental. A ausência de interação, relatada pelos servidores, tende a ser um fator
arraigado nos diversos setores do governo, visto que todas as assessorias são vinculadas
aos gabinetes. O que interfere com mais intensidade nas rotinas de comunicação e nos
resultados concentra-se na política partidária, pois é o que define a linha de atuação da
assessoria de comunicação, o nível de engajamento (a depender do projeto político e das
posições partidárias), e a circulação de informações sobre a Secretaria.
45
As relações de poder na Secretaria, de acordo com as etapas de
cooperação/conflito postas por Simões (2001), encontram-se na fase da insatisfação.
Estão no nível do descontentamento relacionado a fatores mais estruturais do que
localizados na organização. Tais fatores de insatisfação são, principalmente, problemas
relacionados à autonomia da burocracia profissional, atraso regulamentar, resistência a
mudanças, equipe reduzida, falta de interação interdepartamental, falta de planejamento,
gestão baseada em processos e não em pessoas, entre outros.
As relações de poder estão vinculadas, também, à ocupação de cargos de chefia
por CCs, na distorção da realidade oriunda do sistema de política e sua comunicação
informal, e à falta de visão estratégica na Secretaria, em termos de posicionamento.
Esses elementos reforçam o quanto a política partidária, mesmo que não tenha sido
citada diretamente pelos entrevistados, define as relações e seus desdobramentos.
Diante desse contexto e das particularidades inerentes à estrutura da organização
estudada, conclui-se que o direcionamento das atividades ao cunho institucional
independe da voluntariedade da Assessoria de Comunicação, por ser composta
predominantemente por CCs, trabalhando para um projeto de governo. Imersa em
períodos de intensa demanda política, a equipe não dispõe de condições adequadas para
atender às necessidades institucionais. No entanto, para o caso de se atingir uma
mobilização ou equipe adequada, que possam proporcionar o desejável nível
informacional dentro da organização, algumas estratégias comunicacionais podem
amenizar a relação de insatisfação dos servidores com a Secretaria. Os primeiros passos
consistem em uma apresentação das competências da Assessoria de Comunicação, uma
apresentação dos servidores, CCs e suas respectivas atividades, além de um instrumento
(boletim informativo, por exemplo) que institucionalize a circulação de informações
concernentes à organização. A necessidade principal da Secretaria de Estado, portanto,
está relacionada ao gerenciamento da informação. Os servidores não se sentem
informados no seu cotidiano, seja no nível macro dos acontecimentos da organização ou
no nível micro do desempenho das rotinas departamentais. Mesmo considerada um
problema comum no serviço público, de estrutura governamental, a falta de informação
interfere no trabalho dos servidores e foi mencionada com recorrência nas entrevistas.
Trata-se, portanto, de um problema na gestão da função organizacional política da
Secretaria, cuja essência está na informação.
46
Considerações finais
As organizações públicas, de acordo com a abordagem teórica e as entrevistas
realizadas, de fato constituem um universo peculiar nas relações de poder no trabalho,
decorrente das características da burocracia profissional, da coalização dominante
interna e da política partidária. A comunicação formal nas organizações públicas
apresenta um perfil mais complexo e de difícil gestão, estando submetida às relações de
força do ambiente em que opera, e que não permitem que a comunicação interna seja
trabalhada formalmente, tendo a política do Governo do Estado como foco central. Suas
modificações dependem da iniciativa individual de profissionais do setor de
comunicação, de acordo com o habitual na burocracia profissional, onde não há
estímulo vindo da estrutura, apenas motivações individuais e pessoais.
O público interno sente-se insatisfeito em decorrência dos desdobramentos,
principalmente, do serviço público em si. Casos relacionados à lotação não vinculada à
formação, até o escasso estímulo por parte da organização nos quesitos mudança e
inovação, acabam partindo de iniciativas individuais. Foi possível constatar, também,
que o problema da Assessoria de Comunicação, ao não atender adequadamente os
interesses da Secretaria, por ser vinculada ao Gabinete do Secretario, reside
principalmente na estrutura governamental do Estado.
A atividade profissional de Relações Públicas deve representar a gestão e o
suporte para que se torne possível a harmonia de interesses, por meio da gestão das
informações organizacionais. Esse papel é ainda mais relevante em ambientes
complexos nos quais se encontram componentes como a política partidária e as
peculiaridades estruturais.
Referências
ARENDT, Hannah. O que é política? 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MINTZBERG, Henri. El poder em La organización. Barcelona: Ariel, 1992.
_____. Criando organizações eficazes: estruturas em cinco configurações. São Paulo:
Atlas, 2008.
PIMENTA, Maria Alzira. Comunicação Empresarial: conceitos e técnicas para
administradores. Campinas: Alínea, 2002.
47
PIRES, José Calixto de Souza; MACÊDO, Kátia Barbosa. Cultura organizacional em
organizações públicas no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro,
ano 40, v. 1, p. 81-105, jan./fev. 2006.
SIMÕES, Roberto Porto. Relações Públicas: Função Política. 3. ed. São Paulo:
Summus, 1992.
______. Roberto Porto. Relações Públicas e micropolítica. São Paulo: Summus, 2001.
48
Práticas infocomunicacionais “sincronizadas” entre jornalistas e
políticos
Paula de Souza Paes
O trabalho dos chamados “comunicadores” (diretores de comunicação de
Ministérios, especialistas de sondagens, consultores de comunicação, etc.) tem afetado a
maneira pela qual os jornalistas trabalham e a sua legitimidade na produção de
informações (DE SOUZA PAES, 2014). As estratégias de comunicação do Estado e das
municipalidades francesas são cada vez mais eficientes (MIEGE, 1997). A partir do
final dos anos 60, como afirma Caroline OLLIVIER-YANIV (2000), ações de
comunicação emergem e se desenvolvem no seio das organizações públicas na França.
Apresentada “como uma resposta a um imperativo de publicidade e de proximidade, ou
mesmo de transparência, da parte das instituições públicas27” (OLLIVIER-YANIV,
2006, p.97), a comunicação do Estado se desenvolve com o objetivo de contribuir para
o debate democrático sobre questões de interesse público. Como os responsáveis
políticos, os jornalistas afirmam ter a preocupação de proximidade em relação aos
indivíduos e de difundir informações sobre temas reconhecidos socialmente como de
interesse público, uma vez que os fundamentos do jornalismo se repousam sobre ideais
democráticos (RUELLAN, 1997).
Entretanto, pesquisas na área das ciências da comunicação sobre comunicação
pública salientam que ela se apresenta como uma ferramenta de gestão social e de
regulação da esfera pública (OLLIVIER-YANIV, 2009). Ao mesmo tempo, trabalhos
sobre o exercício do jornalismo dão conta da influência da lógica econômica no setor
midiático e as limitações que pesam no trabalho dos jornalistas (NEVEU, 2009;
LEMIEUX, 2000). Esse artigo tem por objetivo articular essas diferentes práticas
infocomunicacionais desconstruindo a visão normativa que as atravessam.
A chegada desses novos atores, os chamados “comunicadores”, contribui para a
emergência de uma concorrência entre eles e jornalistas franceses principalmente entre
os anos 80 e 90. A partir de então, os jornalistas se dão conta de que eles não são os
únicos a produzirem mensagens e tentam diferenciar o seu papel. É nesse contexto que
lógicas profissionais se reforçam e o diploma se torna um pré-requisito fundamental
27
« Comme une réponse à un impératif de publicité et de proximité, voire de transparence, de la part des institutions
publiques ».
49
para entrar no setor midiático, como salienta o jornalista David Dieudonné, da AFP
(Agence France-Presse):
Os jornalistas são cada vez mais confrontados com pessoas que
são muito qualificadas, portanto, eles precisam estar armados
para responder intelectualmente aos argumentos um tanto
complicados, e o fato de que eles tenham uma forte arquitetura
intelectual é muito útil28.
Se
os
jornalistas
se
consideram
melhor
“armados”
para
conduzir
questionamentos sobre as ações das autoridades públicas, muitas pesquisas mostram, no
entanto, que elas são cada vez mais eficientes na implementação de ações de
comunicação. Como, por exemplo, a pesquisa de Erik NEVEU (2003) sobre a “nova”
rede de interdependência que configura as autoridades políticas e os jornalistas. Essa
configuração, entendida aqui no sentido proposto por Norbert ELIAS 29, se alimenta da
crença no “poder” da comunicação e seu impacto no comportamento dos indivíduos
(NEVEU, 1995), o que se reforça diante de mudanças, tais como o desinteresse dos
cidadãos pela política, a falta de confiança da sociedade no Estado, a baixa audiência de
programas televisivos políticos (NEVEU,1995) etc. Essas transformações são
compreendidas pelos responsáveis políticos como o resultado de uma falta de
comunicação, suscitando dessa forma estratégias de interdependências com o campo
jornalístico. Essa tendência suscita comportamentos de antecipação da parte de
autoridades públicas (como, por exemplo, aparecer nos jornais na televisão ou fazer
anúncios em conferências de imprensa) e remodelam o métier político. É o que
demonstra o sociólogo Eliséo VERON (1995) que salienta que, nos anos 80, se acelera
a midiatização da política na França e durante esse período a crise da legitimidade
política emerge e se agrava no começo dos anos 90.
Os responsáveis políticos tendem a acreditar nos efeitos produzidos pelas
mensagens nos destinatários, postulando a potência das mídias. Essas crenças são
compartilhadas por alguns jornalistas. Sob esse aspecto, a pesquisa realizada por
Jérémie NOLLET (2014) é significativa. Examinando a crise da “vaca louca”, ele
« Les journalistes sont de plus en plus face à des gens qui sont très très qualifiés donc il faut qu’ils soient armés
intellectuellement pour réponde à des arguments un peu compliqués, et le fait qu’ils aient une architecture intellectuel
forte, c’est très utile ».
29 A estreita relação com os jornalistas e seus interlocutores diz respeito a um jogo de relações dinâmico, uma
“interdependência dos jogadores”, segundo uma expressão de Norbert Elias (1991, p. 157). De acordo com o
sociólogo alemão, todas as relações humanas são caracterizadas por um equilíbrio de forças e um conjunto de tensões
que ligam os indivíduos em configuração (s). Quando ele fala da interdependência de jogadores, ele quer dizer uma
interdependência “enquanto aliados, mas também enquanto adversários” (ELIAS, 1991, p.157). Nós retomamos aqui
essa reflexão. As relações entre jornalistas e seus interlocutores revelam essa dinâmica que pode, em um determinado
momento, colocá-los em sintonia e, em outro, colocá-los em uma situação de conflito.
28
50
demonstra a submissão das decisões político-administrativas aos enquadramentos
midiáticos em razão da constituição de uma configuração que relaciona jornalistas,
agentes políticos e burocráticos, institutos de pesquisa e comunicadores. O estudo de
Jean-Baptiste COMBY (2009)30 também demonstra a submissão da informação pública
às lógicas dominantes do campo jornalístico sobre questões apresentadas como de
interesse público pelos responsáveis políticos. Tudo indica a “cumplicidade” que se
instala entre atores políticos e os jornalistas: de um lado, na elaboração de artigos
jornalísticos de acordo com a construção do Estado de um problema público. De outro
lado, “cumplicidade” na orientação das decisões públicas de acordo com as limitações
do campo jornalístico, como a pressão pela rapidez ao relatar um fato. Tendo em vista
essas observações, abordaremos em seguida o tratamento midiático dos incidentes da
Villeneuve e suas implicações para a reflexão sobre a emergência de uma configuração
entre jornalistas e responsáveis políticos.
Produção de informação sobre os incidentes na periferia de Grenoble:
predominância das reações dos responsáveis políticos
Durante o verão do ano de 2010, particularmente no mês de julho, a área
residencial chamada Villeneuve, situada na cidade de Grenoble (França), chama a
atenção da mídia e dos responsáveis políticos, em razão dos atos de violência ali
cometidos. No dia 16 de julho, Karim Boudouda, morador da Villeneuve, foi
assassinado pela polícia depois de cometer um assalto de um cassino localizado na
cidade de Uriage-les-bains (cidade situada próxima à cidade de Grenoble). Houve uma
perseguição e de trocas de tiros com a polícia. Alguns moradores da Villeneuve,
insatisfeitos com a morte do jovem adulto descendente de imigrantes31, incendiam
carros e lixeiras e jogam pedras contra os policiais. Houve também trocas de tiros com a
polícia. Esses incidentes repercutiram nacionalmente e internacionalmente e geraram
debates públicos sobre o fluxo migratório no país. Principalmente porque, em uma
conferência de imprensa realizada após os incidentes, o Presidente as República,
30
As pesquisas de Jean-Baptiste COMBY dizem respeito à emergência do problema climático nos anos 2000
enquanto problema público e a constituição de um grupo de jornalistas especialistas do meio-ambiente nas mídias.
Segundo o pesquisador, essa dinâmica, favorece um tratamento desconflitualizado das questões climáticas.
31
O termo « descendente de imigrante » não é definido oficialmente. Nós fazemos referência à definição utilizada
pelo Insee: “ é descendante de imigrante toda pessoa nascida na França tendo ao menos o pai ou a mãe imigrante”.
BREEM, Yves. Les descendants d’immigrés. Info migrations, n°15, juillet 2010. O jovem adulto, Karim Boudouda,
que tinha 27 anos, era filho de pais argelinos. Dessa forma, seu caso corresponde à definição.
51
Nicolas Sarkozy, associa diretamente os problemas relacionados à periferia francesa
(tais como a insegurança e a violência) com a história da imigração na França. O
fenômeno migratório aparece no seu discurso como a principal causa desses problemas
(Le discours de Grenoble de Nicolas Sarkozy. Le Figaro, 30 de julho de 2010, artigo
atualizado no dia 31 março de 2014). Nesse sentido, a reação do Estado contribui para a
estigmatização do imigrante e dos descendentes de imigrantes e para a regulação da
esfera pública. Além disso, exclui toda a marginalidade que existe na França e a
desigualdades observadas na Villeneuve e na cidade de Grenoble.
Nossa análise32 da imprensa francesa revela principalmente dois aspectos que
nos ajudam a entender a relação entre jornalistas e políticos através do tratamento
público da imigração: a informação política focaliza-se no discurso político (nos
anúncios e declarações de responsáveis políticos em outros meios de comunicação ou
nos comunicados de imprensa) e, portanto, ela corresponde menos a uma informação
sobre a política do que sobre as diferentes reações dos “adversários” políticos de
“direita” e de “esquerda”. Os jornalistas acabam ecoando cada declaração ou anúncio de
responsáveis políticos. Os modos de coleta de informações demonstram essa
observação: as informações políticas se focalizam nas mensagens destinadas para a
mídia (conferências de imprensa, notas difundidas pelos assessores). Algumas vezes, o
assunto relatado resume-se ao anúncio de um porta-voz. Qualquer declaração da classe
política sobre os incidentes causa um forte eco na imprensa, através da solicitação de
diversos agentes para comentar e criticá-la. No entanto, a ênfase dada pela imprensa é
menos sobre o fundamento dos propósitos dos políticos que sobre as próprias
declarações e reações “calorosas” dos partidos políticos. As desigualdades sociais nas
periferias e na cidade de Grenoble, por exemplo, não são tratadas. Dessa maneira, a
informação política “despolitiza” os reais problemas encontrados pelos moradores de
periferia e também pelos descendentes de imigrantes33. Esse termo é entendido aqui no
sentido de uma “desconflitualização” ou “neutralização34”. A maneira como os
incidentes aparecem na imprensa revela a procura por responsáveis do que por
32
A análise de jornais foi realizada durante 1 ano (julho de 2010 - julho 2011). Os jornais analisados foram: Le
Monde, Le Figaro, Libération, Le Nouvel Observateur e Le Dauphiné Libéré. No total, foram analisados 208 artigos.
Além disso, entrevistamos 18 jornalistas nacionais e locais. A análise e as entrevistas são fruto de uma investigação
realizada durante doutoramento em ciências da comunicação pela autora, defendida em 2014.
33 Sobre a despolitização da informação política, fazemos referência ao trabalho de Saitta Eugénie, « Les journalistes
politiques et leurs sources. D’une rhétorique de l’expertise critique à une rhétorique du « cynisme », Mots, n°87,
2008, p. 113-128.
34 Como referência do trabalho de jornalistas na neutralização de temas, citamos Devillard Valérie et Marchetti
Dominique, « La « sécurité routière », programme sans risque. La neutralisation d'un problème politique et social à la
télévision », Réseaux, n° 147, 2008, p. 149-176.
52
explicações mais estruturais do problema. A desconflitualização se manifesta também
pela ausência de perspectiva histórica sobre o fenômeno migratório na França e a
evolução da política de imigração. Essa postura acaba não contribuindo para o
questionamento do posicionamento do Presidente da República, que culpa os imigrantes
e descendentes de imigrantes pelos atos de violência.
A presença de sondagens é o segundo aspecto revelado pela análise. Diferentes
tipos de enquetes de opinião foram realizados pela imprensa durante e depois dos
incidentes na Villeneuve, como por exemplo a sondagem abaixo (Figura 1) intitulada
“Os franceses de acordo com diferentes medidas de segurança”. As perguntas são
relativas às decisões tomadas pelas autoridades logo após os atos de violência na
Villeneuve. Algumas delas não foram aprovadas pelas autoridades competentes, mas
mesmo assim fizeram objeto de uma enquete, como por exemplo a emenda sobre a
retirada da nacionalidade dos indivíduos de origem estrangeira que cometerem crimes
contra a polícia proposta pelo Presidente da República da época, Nicolas Sarkozy
(2007-2012). Em 2011, essa emenda foi reprovada pelo Senado francês.
Essa enquete (figura 1), realizada pelo jornal Le Figaro, mas publicado em
outros jornais como o Libération, demonstra que as questões de segurança são
apresentadas no mesmo nível, mesmo se elas dizem respeito a temáticas diferentes:
como o controle de delinquentes com o uso de bracelete eletrônico; ou a emenda ao
projeto de lei sobre a imigração que prevê a retirada da nacionalidade dos franceses de
origem estrangeira que cometerem crimes contra a polícia; ou ainda sobre o aumento do
número de câmeras de segurança nas ruas. Esses temas se apresentam juntos porque
abrangem diferentes formas de insegurança, eventuais ameaças ou eventos
espetaculares, como crimes, acidentes ou riscos. Observamos então que a questão da
imigração aparece relacionada à questão de insegurança ou de ameaça. Além disso, o
fato de perguntar as mesmas questões a um número significativo de indivíduos significa
que elas são, a priori, de interesse público, ou seja, há um consenso sobre essas
questões e que é, portanto, legítimo perguntá-las (BOURDIEU, 1984)35.
FONTE: Le Figaro, 7 de agosto de 2010.
Por uma crítica das enquetes de opinião, citamos: BOURDIEU, Pierre. L’opinion publique n’existe pas, p. 222235. IN : Questions de sociologie (1984). Paris : Les éditions de Minuit, 2002.
35
53
Os jornalistas associam às enquetes de opinião a ideia de objetividade e a um
sentimento democrático relacionado a sua profissão: dar voz a sociedade a partir de
questões “neutras” que conduziriam a respostas também “neutras”. Entretanto, o foco
das informações políticas em relação ao tema imigração se direcionam ao imediatismo,
à uma atualidade fundada em anúncios políticos. As questões perguntadas reformulam
as declarações dos responsáveis políticos. Razão pela qual os resultados são
interpretados como o efeito das declarações.
A produção jornalística tende a se colocar em ação a partir de “faits divers”
(como os incidentes na Villeneuve) e de escândalos envolvendo políticos
(MARCHETTI, 2005). É uma maneira despolitizada que se tornou habitual de tratar os
temas políticos, no sentido de que o foco está direcionado ao comportamento dos
indivíduos e não às questões políticas de um problema que se torna público. A política
(ARENDT, 1995) desempenha um papel menos importante nas ações de comunicação
que a “relação de força” entre os responsáveis políticos.
Pesquisas relatam a perda de prestígio da informação política e o seu tratamento
“fait divers”, visando buscar o sensacional em razão do peso das lógicas comerciais fundadas na perda do interesse dos indivíduos pela política e pelos programas de
televisão políticos - e também das lógicas profissionais (concorrência acirrada entre os
veículos de comunicação, principalmente em uma situação de “crise”, como no caso da
54
Villeneuve36). Isso vale tanto para política interna quanto externa (MARCHETTI,
2005).
Conclusão
Observamos que as práticas desses profissionais se remodelam e se convergem:
quanto mais os políticos se utilizam de ações visando a adesão dos cidadãos através dos
meios de comunicação, mais os profissionais de mídia reafirmam o seu lugar na
democracia, superestimando o seu “poder”. Entretanto, nossa análise demonstra que as
práticas dos jornalistas não são tão independentes quanto eles afirmam. Eles fazem
frequentemente um papel de “ponte” das estratégias de comunicação, acompanhando
cada passo das autoridades políticas. Uma progressiva autonomia do campo jornalístico
em relação ao campo político ocorreu na história da imprensa francesa, mas a existência
de laços muito estreitos entre eles é menos evidente, porque é dissimulada (LEMIEUX,
2000).
Bibliografia
ARENDT, Hannah. Qu’est-ce que la politique. Paris : Editions du Seuil, 1995.
BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie (1984), Paris : Les éditions de Minuit,
2002, p. 222-235.
COMBY, Jean-Baptiste. Quand l’environnement devient «médiatique ». Réseaux, n°
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COMBY, Jean-Baptiste. La contribution de l'Etat à la définition dominante du problème
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journalistiques au prisme des mutations sociales : la question de l’immigration en
France (1980-2010). Thèse en SIC, sob a direção de Isabelle Pailliart, Gresec, 2014.
36
Os jornalistas entrevistados salientam que havia uma forte pressão para dar conta de tudo o que se passava na
Villeneuve no momento dos incidentes. A produção de artigos sobre esses incidentes é submetida à “regra do nãoultrapassagem pela concorrência” (« règle du non-dépassement par la concurrence »), como salienta Cyril
Lemieux (2000, p.427): “Embora um jornalista considere um certo fato desprovido em si mesmo de atração ou de
obrigação, ele se obriga, entretanto, a relatá-lo, para honrar a regra” (« Bien qu’un journaliste considère un certain fait
comme dépourvu en lui-même d’attraction ou d’obligation, s’auto-contraint néanmoins à en parler, pour honorer la
règle»). Dessa forma, essa regra funciona como uma limitação que pesa no exercício do jornalismo, o que leva os
jornalistas, entre outros fatores, a priorizar as mensagens produzidas pelas instituições e pelas autoridades públicas
sobre o atos de violência ocorridos. Além disso, a imprensa opta frequentemente por privilegiar enquadramentos
generalizados ou enquadramentos « menos sensíveis às diferentes formas de vida » (« moins sensibles aux différentes
formes de vie »), com o objetivo de manter seus leitores.
55
DEVILLARD, Valérie ; MARCHETTI, Dominique. La « sécurité routière »,
programme sans risque. La neutralisation d'un problème politique et social à la
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56
TÍTULO: FALAS DO JORNAL DO BRASIL NA CONSTRUÇÃO
DO MITO DO COMUNISTA JOÃO GOULART
Ranielle Leal Moura
Jornalista com MBA em Marketing pela FGV-RJ e mestrado em Comunicação pela UMESP, atualmente
Doutoranda em Comunicação pela PUC-RS. Matrícula nº 14190674-3. E-mail: [email protected].
RESUMO
O trabalho procura esclarecer a construção mitológica negativa do comunismo e do
Presidente João Goulart como comunista perante a sociedade brasileira, a partir da
adoção da Hermenêutica de Thompson, que ao lado da Semiologia analítica dos mitos
de Barthes nos permitiu analisar os editoriais do Jornal do Brasil nos meses que
antecederam ao golpe de 1964, objetivando identificar vestígios dessa construção
mitológica.
Palavras-chave: Jornal do Brasil; João Goulart; Comunismo; Hermenêutica em
Profundidade; Mito.
INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade e em face dos processos de globalização e
universalização da cultura, tem surgido cada vez mais, nas mais diversas sociedades,
uma preocupação em se falar e em se procurar meios de preservação da história e da
memória, objetivando a consolidação das identidades. Nesse contexto, verificamos que
a história por seu caráter inexato e equívoco (RICOUER, 2007) e sua natureza lacunar
(VEYNE, 1995) permite que releituras e reconstruções sejam feitas objetivando uma
organização do passado em função do presente, consolidando o que Fevbre (1989)
define como função social da História. Por outro lado, a memória, Mnemosyne, a deusa
mãe de Clio, se coloca como o lugar do eterno, ao qual sempre se pode recorrer, e para
onde confluem memórias individuais localizadas em memórias coletivas.
Esse panorama em que História e Memória se encontram socialmente, vem,
desde o inicio do século XX, sendo permeado pela ação direta dos meios de
comunicação e pelo jornalismo, que juntos desempenham uma função relevante na
formação da memória das sociedades se colocando tanto como fonte, como objeto de
pesquisa.
Nesse sentido e tendo como pano de fundo o jornalismo e seu lugar na história e
memória coletiva de nosso país é que chegamos ao nosso interesse principal no presente
trabalho, qual seja: interpretar através das marcas discursivas dos textos do editorial do
Jornal do Brasil o posicionamento do jornal no contexto de ascensão dos militares ao
poder em março de 1964. E, analisar a voz favorável à subida dos militares ao poder
57
em 1964, através do editorial do Jornal do Brasil. Para, assim procurar esclarecer a
construção mitológica negativa do comunismo e do Presidente João Goulart perante a
sociedade brasileira.
O Jornal do Brasil foi fundado no Rio de Janeiro em 9 de abril de 1891, por
Rodolfo de Sousa Dantas e Joaquim Nabuco. Tendo passado por diversas fases em mais
de cem anos de existência, o matutino carioca teve papel crucial na definição dos rumos
da imprensa brasileira.
O JB foi um dos veículos de comunicação que teceu críticas discretas a Jânio
Quadros. Com a renúncia do presidente, o jornal a principio defendeu a legalidade na
sucessão governamental, e no início do mandato de João Goulart mostrou-se favorável
ao novo governo, apoiando as reformas de base (mesmo sendo fundamentalmente
contrário a mudanças radicais e a expropriações) e a política externa independente
proposta pelo ministro das Relações Exteriores, Francisco de San Tiago Dantas. Por
fim, uma intervenção militar passou a ser defendida nas páginas do jornal, sob a
desculpa da continuidade democrática.
Assim, como “O Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e o
“Correio da Manhã”, o JB concordou com a intervenção dos militares. Fez o mesmo
que parcela importante da população, declarou apoio expresso aos militares.
Naquele momento, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um
outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de
sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república sindical” — e de
alguns segmentos das Forças Armadas.
O contexto sócio-político da época, era de divisão ideológica do mundo na
Guerra Fria, entre Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, e se reproduzia, em maior ou
menor medida, em cada país. No Brasil, era ampliada e aprofundada pela radicalização
de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por meio de
plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que ele, como vice,
pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros.
João Goulart obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Modificar
parcela substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição exigida
pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do trabalhismo varguista.
Naquela época, votava-se no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma
combinação ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da
UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu uma crise institucional no país.
58
A situação política piorou, principalmente quando João Goulart e os militares
mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de
“base” “na lei ou na marra”. Os quartéis ficaram divididos com a luta política, à
esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros,
a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo Jornal
do Brasil durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para
manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira,
cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o
perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido,
foram mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966.
O desfeche da suposta “revolução” é conhecido. Não houve as eleições. Os
militares ficaram no poder 21 anos.
Contudo, faz-se mister interpretar e compreender como ocorreu a construção
mitológica negativa do comunismo e do Presidente João Goulart perante a sociedade
brasileira. E, saber, de que maneira o editorial do JB contribuiu no ano de 1964 para
favorecer ou não a criação de uma opinião pública favorável aos militares que
chegavam ao poder.
No que concerne aos procedimentos metodológicos trabalhamos com o modelo
metodológico proposto por Thompson (1995), a Hermenêutica de Profundidade (HP).
Considerando como as formas simbólicas estão estruturadas e as condições sócio
históricas em que estão inseridas, outros tipos de análise, além da Interpretação da doxa,
são
propostas
por
Thompson
(1995),
denominadas
dimensões
analíticas distintas de um processo interpretativo complexo, descritas em três fases, a
saber: _a primeira fase é a da análise sócio- histórica; a segunda fase é a da análise
formal ou discursiva. Para este trabalho, nesta fase de análise, abordamos a Semiologia,
de Barthes (1979,1993), através da Teoria dos Mitos. Na terceira fase do HP as formas
simbólicas podem ser interpretadas e compreendidas nos diversos contextos da vida
social através da interpretação/re-interpretação.
59
ANÁLISE SÓCIO- HISTÓRICA
Em abril de 1960, o presidente do Brasil, Juscelino Kubitscheck (JK), inaugurou
a nova Capital do País. Após as festividades de criação de Brasília, se iniciou o processo
de eleição à sucessão presidencial. As eleições aconteceram ainda em 1960. O Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrata (PSD) repetiram a aliança
vitoriosa de 1955 e formaram chapa para concorrer à presidência e vice-presidência,
respectivamente, com o conhecido general Lott e, mais uma vez, João Goulart. O
Partido Social Progressista (PSP), fundado por Ademar de Barros, em 1946, e
dissolvido em 1965 por força do AI-2, relançou a candidatura de Ademar Pereira de
Barros, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) apoia a candidatura de Jânio da
Silva Quadros, na ocasião, governador de SP, e amparado pelo Partido Democrático
Cristão (PDC).
Jânio elegeu-se Presidente do Brasil, em 1960. Recorreu à uma intensa
campanha eleitoral, que explorou sua visão de “homem do tostão contra o milhão” e,
ainda mais, capaz de melhorar a nação.
Pela primeira vez na história, desde o suicídio de Vargas, a UDN conseguiu
vitória ao ficar do lado de um candidato de discurso populista e notoriamente moralista.
Porém, não conseguiu eleger o vice, e mais uma vez, João Goulart (PTB / PSD) venceu
as eleições. Jânio assumiu um país pleno de problemas, isto é, uma situação bem
diferente da apregoada ao povo brasileiro, com exacerbado otimismo. Segundo
Caldeiras et al. (1997), a solução que lhe restava era quitar dívidas do passado em vez
de investir.
Como alternativa viável, Jânio Quadros colocou em prática medidas urgentes e
impopulares, que geraram recessão e descontentamento generalizado.
Há poucos meses no comando da presidência, Jânio Quadros rompeu com a
UDN. Com isto, a oposição conquistou a maioria no Parlamento e, por conseguinte, o
Presidente se deparou com um quadro de política interna, mais complexo. Para levar
seus projetos adiante, precisava vencer a resistência dos membros do Congresso e
contar com sua adesão, fato praticamente inviável, porquanto o apoio a Jânio era cada
vez menor. Diante do fracasso da política interna e incapaz de dar conta dos problemas
acumulados, Jânio Quadros repentinamente renunciou.
Assumiu o poder o Vice-Presidente João Goulart, que governou por um curto
período de tão somente sete meses. Desde o princípio, Jango afrontava sérios entraves
para assumir o cargo de Presidente.
60
Partidos de oposição (como a UDN) e os ministros militares a serviço do expresidente Jânio delinearam uma campanha e lançaram um manifesto contra a posse de
João Goulart, visto como simpatizante do comunismo e, coincidentemente, devido à
visita oficial à China comunista. A presidência da República foi ocupada interinamente
pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli.
Nesse momento, surgiu uma crise política acentuada pela presença de dois
grupos. O primeiro agrupamento, formado pelos oposicionistas – Forças Armadas,
ministros militares de Jânio e UDN, representados pela figura impactante do governador
do RJ, Carlos Lacerda – reivindicavam que o Congresso aprovasse a manutenção do
Presidente interino Ranieri Mazzilli no cargo até haver novas eleições presidenciais,
para evitar a posse de Jango. O Congresso se opôs ao pedido dos oposicionistas e sua
reação piorou a crise.
O segundo grupo, que era favorável à posse de João Goulart, foi representado
pelo próprio Congresso Nacional, aliado aos sindicatos, às organizações estudantis, à
aliança PTB / PSD, à significativa parte da imprensa e a um considerável segmento da
cúpula militar (III Exército do RS). A figura mais ferrenha entre os defensores era o
cunhado de Jango e, então, governador do RS, Leonel de Moura Brizola.
Diante da crise crescente e da perspectiva de muitos outros conflitos, Brasil
afora, o Congresso Nacional desempenhou papel fundamental. Adotou uma solução de
compromisso e modificou o sistema governamental, que passou de presidencialista a
parlamentarista. A decisão do Congresso conseguiu boa receptividade por parte dos dois
blocos. Os militares viam com relutância a posse de João Belchior Marques Goulart.
Mesmo com poder diminuído, este aceitou o parlamentarismo e assumiu a presidência,
em 7 de setembro de 1961. É quando a nação vivenciou um frágil Regime Parlamentar,
que vai de setembro de 1961 a janeiro de 1963. Nesse período, ocorreram rápidas
sucessões, como por exemplo, a de três primeiros-ministros – Tancredo de Almeida
Neves (PSD), Francisco de Paula Brochado da Rocha (também do PSD) e Hermes
Lima, do Partido Social Brasileiro (PSB).
Jango iniciou sua administração sob a orientação de uma política econômica
conservadora. Reduziu a participação de empresas estrangeiras em setores estratégicos
da economia. Estabeleceu limite para remessa de lucros das corporações internacionais
além de ter seguido, criteriosamente, as orientações do FMI. Nada disto, porém, evitou
que os tempos ficassem mais e mais conturbados, quase impossibilitando a continuidade
administrativa e agravando os problemas econômicos.
61
De acordo com o ato constitucional que impõe o parlamentarismo, o sistema
entrou em vigor em caráter experimental. Havia a chance de plebiscito, em 1965,
justamente ao final da gestão de Goulart, para confirmar o parlamentarismo ou
recomendar a adoção de um novo sistema. Contudo, foi notório o fracasso do regime
em vigor. Por isto, o plebiscito foi antecipado em dois anos e o presidencialismo
recebeu a maioria de votos como melhor regime para o País. Findo o parlamentarismo,
restava ao Presidente ainda três anos no poder. João Goulart investiu em medidas
inovadoras visando ao progresso do Brasil. Junto com os Ministros Francisco
Clementino de San Tiago Dantas (Fazenda) e Celso Monteiro Furtado (Reforma
Administrativa) elaborou, em 1963, o Plano Trienal, com vistas a combater a inflação e
lançar as bases para a retomada do crescimento econômico. Para Furtado (2007), o
Plano devia ser escoltado por reformas estruturais mais profundas, as chamadas
Reformas de Base, que incluem as categorias: agrária, tributária, financeira e
administrativa. Jango acreditava que somente com tais reformas, a economia poderia
retomar seu crescimento e abrandar as desigualdades sociais.
No entanto, o referido Plano Trienal, teoricamente, viável para solucionar
questões brasileiras, na prática, apresentou obstáculos insuperáveis.
Independentemente de mais este malogro, em 1963, João Goulart insistiu em
implantar novas medidas de caráter nacionalista: limitou a remessa de capital para o
exterior; nacionalizou empresas de comunicação e decidiu rever as concessões para
exploração de minérios. As retaliações estrangeiras foram rápidas: Governo e empresas
privadas norte-americanas cortaram o crédito para o Brasil e interromperam a
negociação da dívida externa. A essa altura, paralelamente, a situação política se
agravou.
No início de 1964, João Goulart, contando com os grupos a ele vinculados,
pretendeu realizar por decreto as Reformas de Base. Para conseguir contornar a
oposição, pensou em mostrar o poder do Governo recorrendo à reunião de grandes
massas numa série de atos com o propósito de anunciar as reformas. O primeiro
comício, no dia 13 de março, no RJ, agregou cerca de 150 mil pessoas. Sob a proteção
de tropas do I Exército, a multidão ouviu as palavras de Jango e de Brizola (FAUSTO,
2010). O anúncio das reformas incrementou a oposição e pôs em evidência a
polarização da sociedade brasileira. O Presidente perdeu, rapidamente, suas bases na
burguesia.
62
A classe média assustada passou a apoiar os militares, o que acelerou a
conspiração que idealizava derrubar Goulart do poder. Alguns dias depois do comício,
saiu a Marcha da família com Deus pela liberdade, com a pretensão de dar força aos
golpistas.
Por fim, em 31 de março de 1964, os militares se reuniram. Com intensa
participação civil e com o apoio dos EUA, iniciaram um verdadeiro movimento visando
o Golpe Militar. Diante da situação, Jango não conseguiu organizar qualquer reação.
O Governo de Goulart permaneceu na história do Brasil como momento
marcado pelo agravamento da crise econômica e por intensa vida política, bem como
por conflitos sociais e políticos. E era sob o argumento de combater a subversão e
assegurar a ordem democrática, que os militares tomaram o poder em 1964,
transformando, de forma radical, as estruturas do País durante os anos seguintes.
A Ditadura Militar, instaurada em 1964, estendeu-se por longos 21 anos, nos
quais a Presidência da República foi ocupada por militares. A época caracterizou-se por
total falta de democracia, censura aos veículos de imprensa, suspensão dos direitos
constitucionais, perseguição política e repressão a todos que se opõem ao Regime
Militar.
ANÁLISE DISCURSIVA
Diante desse contexto exposto na Análise Histórica, à mídia nacional de
referência, representante de uma classe econômica dominante passou a trabalhar a
construção mitológica de um governo comunista prejudicial ao Brasil e aos brasileiros.
Assim é que diante do referencial teórico já explanado e com o objetivo de
apresentarmos um pouco desse processo construtivo é realizamos a seguir uma análise
dos editoriais do Jornal do Brasil nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1964.
Escolhemos como dito anteriormente, como referencial teórico metodológico os
procedimentos retóricos utilizados na construção dos mitos de direita conforme Barthes
(1993), que para efeito de processo analítico serão aqui, equiparados a categorias
analíticas. Assim analisaremos os editoriais do JB escolhidos para a amostra tendo
como base as noções de: Vacina37, Omissão da História38, Identificação39, Tautologia40,
Ninismo41, Quantificação da Qualidade42 e Constatação43.
37
38
Consiste em confessar um mal acidental para melhor camuflar o mal indispensável.
Consiste no esvaziamento histórico do objeto mitológico.
63
Para constituição da amostra44 escolhemos os editoriais dos dias 03 de janeiro,
01 de fevereiro e 02 de março, todos do ano de 1964, disponíveis no arquivo digital do
JB45.
Durante o processo analítico pudemos então constatar a presença das figuras
retóricas Vacina, Omissão Histórica, Ninismo, Identificação e Constatação todas como
constituintes influentes da figura mitológica do Presidente João Goulart como um
comunista impregnado de todo o mal que a ideologia de esquerda poderia trazer ao
país, como podemos verificar nos enunciados detalhados abaixo. Vale destacar que a
Vacina e a Constatação são as mais recorrentes no discurso dos editoriais do JB.
O enunciado 01 retrata o aparecimento da figura Vacina na construção do
discurso mitológico de João Goulart como um comunista e situado no lugar do mal, a
partir de uma concepção maniqueísta do mundo.
Enunciado 01
“A qualquer preço e contra qualquer obstáculo, a Nação será
atendida nos seus inadiáveis reclamos de desenvolvimento e de
Justiça Social”, esta é a resposta do Presidente ao apelo de
Governo feito pelo País e pelas classes produtoras, em termos
leais: um programa de reformas democráticas em troca de um
mínimo de Governo, de um programa de Governo democrático.
Diante da resposta, temos a declarar neste inicio de ano: assim
não vai. Às caneladas e na base de ameaças, com apelo a militares
e sindicatos, só se pode querer instalar no País, uma ditadura
estilo estadonovista, onde soçobraram liberdades e dignidades. O
programa de reformas será o resultado de um diálogo
democrático. A ditadura estadonovista esteve no poder por oito
longos anos e não nos deu nenhuma reforma progressista.
Com esse tom o Presidente não intimida ninguém habituado a
viver de viseira erguida no dialogo democrático.
Dito isto e tendo as palavras do General Décio Escobar- a
Constituição só pode ser reformada conforme os processos nela
previstos- é possível comentar analítica a Mensagem de final de
39
Incapacidade de ver o Outro. Construção de um alteridade que se reduz ao mesmo. Condenação e
censura do Outro.
40
Consiste em definir o mesmo pelo mesmo.
41
Consiste na rejeição simultânea de dois opostos. O ninismo baseia-se na tese e na antítese. Por esta
figura o real dos objetos escolhidos para a balança é reduzido a analogias, para, em segundo momento,
serem igualados e esvaziados, e, portanto, negados.
42
Reduz toda qualidade a uma quantidade.
43
Consiste numa metalinguagem burguesa que equivale a uma contra explicação, fundamentada numa
verdade parcial, onde quem a profere é quem decide o relado a ser apresentado.
44
Para constituição da amostra optamos pelo método da amostra aleatória simples e por sorteio, em que
os membros de uma população possuem igual chance de ser escolhidos para composição da amostra
analítica.
45
Disponíveis em: http://www.jb.com.br/paginas/news-archive/. Acesso em: 02 e 03 de julho de 2014.
64
ano, para destacar nela pontos positivos e negativos (Jornal do
Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).
Nesse editorial do Jornal do Brasil se analisa a mensagem de final de ano do
Presidente João Goulart tendo como premissa o limite da verdade aceitável, a de que o
país não iria aceitar que o chefe do executivo descumprisse a constituição com a
intenção de se perpetuar no poder ou realizar algumas das reformar anunciadas, dentre
elas, a de dar aos analfabetos o direito de votar. A Vacina surge como uma preocupação
com o surgimento de uma nova ditadura nos moldes do getulismo, através do seu antigo
correligionário, João Goulart. O mal acidental vem pelas palavras do General Décio
Escobar ao afirmar que a Constituição era intocável e que não seria reformada sem um
diálogo democrático. A defesa da democracia frente à ameaça comunista que se
esboçava constitui a vacina contra o que estava por vir.
No que concerne a figura retórica da Omissão Histórica esta pode ser
visualizada com nitidez no enunciado de número 02.
Enunciado 02
Comunismo e corrupção atuam juntos, por motivos que
dispensam maiores explicações ( Jornal do Brasil, ano LXXIII,
nº27, 01 fev.1964, p.6).
A Omissão da História é visível. Iguala-se o Comunismo como ideologia
socioeconômica que pretende estabelecer uma sociedade sem classes a partir do
pensamento Marxista à prática da corrupção que lesiona o tecido social e acarreta em
grandes problemas. Nega-se a história do Comunismo e o nivela a história da prática
corruptiva no mundo.
Já o Ninismo pode ser visto no enunciado número 03 em que, ainda no processo
analítico da mensagem de João Goulart se procura negar as causas dos problemas
econômicos do país.
Enunciado 03
Em quarto lugar a taxa, a queda da taxa de crescimento que em
1964 significará a estagnação de nossa renda per capita, não
pode ser atribuída por uma teoria esdruxula a falta de reformas
de base. Há dois anos_ há apenas dois anos! _, em 1961,
tínhamos uma das taxas mais elevadas de crescimento do
mundo. As estruturas não poderiam ter envelhecido tão
rapidamente, e esse envelhecimento não poderia determinar tão
violenta redução da expansão da economia nacional, em apenas
dois anos. As causas concorrentes para a queda podem ser
65
encontradas na lei de remessa de lucros, na inquietação política
gerada pela pregação revolucionária do reformismo, no
tratamento dúbio e vacilante das concessionárias de serviços
público, e na política salarial de inspiração demagógica e
transformada em instrumento progressivo de nacionalização de
importantes setores da economia nacional
(Jornal do
Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).
Nesse enunciado o Ninismo se estabelece ao se negar que o problema econômico
foi causado pela ausência de reformas de base ou por problemas estruturais como atesta
o governo de João Goulart que imputa os problemas econômicos às grandes
disparidades sociais do Brasil. Sabe-se que por esta figura barthesiana, o real dos
objetos escolhidos para a balança é reduzido a analogias, para, em um segundo
momento, serem igualados e esvaziados, e, portanto, negados. Como se pode ver, os
problemas econômicos são atribuídos à política de Goulart que segundo o editorial,
demagogicamente tentava manipular a Nação. Nega-se quaisquer outras causas
anteriores ou estruturais, tais como o grande nível de endividamento do país adquirido
pelos governos que o antecederam.
No enunciado 04 localizado no editorial do dia 03 de janeiro de 1964
encontramos ainda a Identificação proposta por Barthes (1993).
Enunciado 04
Em quinto lugar o Presidente confessa que existem no Brasil 30
milhões de adultos sem direito ao voto por serem analfabetos, e
sua confissão de fins político-constitucionais (reforma da
Constituição) não é acompanhada de alguma notícia de uma
campanha federal séria e responsável de alfabetização em massa.
O caminho mais fácil pode ser o de dar voto aos analfabetos. Mas
o correto é o da alfabetização. Só a alfabetização eleva
socialmente o cidadão: dá-lhe cidadania política e ao mesmo
tempo transforma-o em agente do desenvolvimento econômico
(Jornal do Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).
Nesse enunciado percebemos a dificuldade do enunciador em ver o Outro que é
condenado sem nenhuma pena a uma condição de inferior em que os direitos e deveres
de cidadania não são devidos. Vale ressaltar, no entanto, que a Identificação de Barthes
se concretiza não só por situar os analfabetos como não cidadãos e à margem da
sociedade, como também, por colocar a intenção de Goulart como sendo uma intenção
comunista de dar direitos iguais a quem de fato não era considerado um igual.
66
Ainda no processo de análise dos três editorais do JB escolhidos para o presente
trabalho localizamos com certa frequência a figura da Constatação, como veremos a
seguir no enunciados 05.
Enunciado 05
A resposta que o Presidente deu ao País, merece outra resposta do
País. Já que o Presidente se revela incompetente para nos
proporcionar um bom Governo democrático, provem os partidos,
os líderes de opinião, os candidatos, que são capazes de formular
e realizar a votação de um bom programa de reformas ( Jornal do
Brasil, LXXIII, nº2, 03 jan.1964, p.06).
Ao final do editorial do dia 03 de janeiro de 1964 verificamos a Constatação
através de uma verdade proferida pelo JB como uma contra explicação aos atos e
pretensões do Presidente João Goulart, pois na visão do jornal em análise, somente o
diálogo democrático poderia levar o país a uma saída viável, visto que o Presidente não
era competente para tanto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
(INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO)
Ao final do processo analítico aqui empreendido concluímos que a construção
mitológica de João Goulart e do Partido Trabalhista Brasileiro como comunistas e,
sobretudo, como portadores de ideologias e práticas políticas que pretendiam prejudicar
a sociedade brasileira atingindo diretamente os direitos já adquiridos, assim como, a
propriedade e a família; passou por um processo de adesão dos meios de comunicação
de massa a partir da orquestração de institutos como o IPES-Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais e do IBAD-Instituto Brasileiro da Ação Democrática.
Os editoriais analisados pela perspectiva barthesiana proporcionaram uma visão
parcial de como se deu o processo constitutivo de um discurso mitológico que nasce na
direita e que transforma um personagem da esquerda em um anti-herói em um grande
vilão brasileiro, que deveria ser combatido pelas famílias de bem.
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