a teorização sobre o desenvolvimento em uma época de

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a teorização sobre o desenvolvimento em uma época de
A TEORIZAÇÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO
EM UMA ÉPOCA DE FADIGA TEÓRICA, OU:
SOBRE A NECESSIDADE DE UMA "TEORIA ABERTA"
DO DESENVOLVIMENTO
MARCELO
LOPES
SÓCIO-ESPACIAL
DE SOUZA
*
A palavra desenvolvimento, por si só, já é prenhe de juízos de valor,
antes mesmo de alguém qualificar o que entende pelo termo. Afinal, as sociedades tribais, ditas também "frias" ou (muito imprppriamems) "sem história",
não se colocam a questão de um "desenvolvimento", como ta.eta consciente
ou desafio. Desenvolvimento pressupõe mudança, transformação - e uma
transformação positiva, desejada ou desejável. Clamar por desenvolvimento
(seja a partir de que ângulo for) só é concebível, portanto, no seio de uma
cultura que busque a mudança ou que esteja conscientemente aberta a essa
possibilidade como um valor social. Culturalmente enraizada, a idéia de desenvolvimento contém inarredável carga axiológica antes mesmo de sofrer
apropriação ou qualificação por parte de alguma escola de pensamento ou
ideologia específica. Passível de abordagem científica (formulação de teorias
e estratégias, estudos empíricos), o "desenvolvimento", todavia, é um objeto
inscrito, desde o começo, em uma moldura filosófica. Tratá-lo cientificamente
não isenta - antes exige - pensá-lo também em termos éticos e políticofilosóficos, pois só assim a prática científica pode adquirir mais profundamente consciência sobre seu próprio objeto.
O solo cultural onde a idéia de desenvolvimento se enraiza é, por excelência, a modernidade, que por sua vez é uma cria dessa entidade históricogeográfica chamada Ocidente. A modernidade foi um importante divisor de
águas na história da humanidade, e é hoje ponto de disputa ultimativo entre
filósofos, os quais, atualmente, já não se confrontariam tanto por suas opções
políticas explícitas (como era o caso, até época recente, do confronto entre
marxistas e "filósofos burgueses"), mas, acima de tudo, por sua defesa (menos ou mais relativizadora) ou por sua rejeição (menos ou mais furiosa) do
projeto da modernidade e seus valores (especialmente a razão) .
• Professor do Departamento
de Geografia da UFRJ.
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Revista TERRITÓRIO, 1 (1), 1996
Os arautos da "pós-modernidade", como LYOTARD (1986), defensor
de um "niilismo ativo", são apologistas da superação da crença no caráter
emancipador da razão e da ciência, e da própria superconfiança na verdade a
elas subjacente, vendo-as antes na conta de instrumentos da opressão do
indivíduo do que da sua libertação. Para os "pós-modernos", a emancipação
não estaria embutida nos ou prometida pelos "grandes relatos" (como
O marxismo e sua filosofia da história), para usar a expressão de Lyotard,
mas seria, isso sim, alcançável mediante a valorização da emoção e do
sentimento
(em contraposição
à razão dos modernos) e da estética (em contraposição à fria ciência). A essas contraposições poderiam ser
acrescentadas, esquematicamente, várias outras, vinculadas às anteriores,
tradutoras das opções preferenciais do dionisíaco "olhar pós-moderno": por
exemplo, a ênfase sobre a subjetividade, a contrastar com a ênfase moderna
sobre a objetividade. No limite, a própria idéia de verdade se desintegraria
em uma miríade de estilhaços, na esteira da substituição dos "grandes relatos" por uma infinidade de "pequenos relatos" ensimesmados.
Aos "pós-modernos" opõem-se, destacadamente, aqueles que reafirmam, de modo não-tradicional, a legitimidade do projeto da modernidade,
inclusive seu potencial humanista, emancipatório. É o caso de Habermas mesmo após desvencilhar-se das amarras marxistas, com a sua "teoria do
agir comunicativo"
-, que argumenta que o referido projeto está ainda
inacabado (unvollendet),
e que a emancipação
não poderá vir do seu
exterior, na esteira de um irracionalismo, mas somente do seu interior, no
contexto de uma valorização da razão crítica e comunicativa (HABERMAS,
1988a: 1988b). É o caso, também, para mencionar mais dois expoentes da
reação crítica anti-pós-moderna, de Anthony Giddens, que à noção de pósmodernidade como fim da ética e do engajamento político coordenado e como
impotência do indivíduo em face das tendências globalizantes e massificadoras
(estilo interpretativo extremadamente capitulador que é perfeitamente simbolizado por BAU DR ILLAR O [1985]), opõe sua concepção do momento presente enquanto uma "modernidade radicalizada", sublinhando a possibilidade do
engajamento
político coordenado
(GIDDENS,
1991); e de Cornelius
Castoriadis, que caracteriza estes tempos pretensamente pós-modernos como
"a época do conformismo generalizado" (CASTORIADIS, 1990a).
Tanto a idéia de desenvolvimento em si, quanto a possibilidade de sua
apreensão teórica, vêm sendo crescentemente vitimadas pela onda de objeções ao projeto da modernidade, ainda que nem todos os ataques partam de
analistas qualificáveis como "pós-modernos" - o que só demonstra a extensão do mal-estar. O objetivo deste ensaio é, após ter explicitado a concepção
do autor sobre o "desenvolvimento", realçando o aspecto político-filosófico e
ético necessariamente subjacente ao debate, apontar as principais limitações
propriamente epistemológicas e metodológicas presentes na literatura especializada sobre o tema. As questões-motrizes deste texto são as seguintes:
será razoável pensar em aposentar a idéia de desenvolvimento em si (e, com
A teorização sobre o desenvolvimento
em uma época de fadiga
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ela, a própria palavra), ou será, diversamente, necessário criticar radicalmente, porém construtivamente, a idéia de desenvolvimento embutida no projeto
da modernidade (o qual, aliás, não seria repulsivo in totum, sob um ângulo
humanista)? Será conveniente abandonar o esforço de construção teórica (e
formulação estratégica) em torno do "desenvolvimento" ou, pelo contrário,
será sensato dar continuidade a esse esforço, ainda que de maneira distinta
da ciência convencional (absorvendo, com senso crítico, alguns alertas emitidos pelo "olhar pós-moderno"')?
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Faz-se mister, agora, esclarecer alguns pontos a respeito da idéia de
desenvolvimento (é preferível evitar o termo conceito, para não dar a impressão de haver ou ser possível um conceito unívoco de desenvolvimento).
É possível pensar a modernidade sem o imperativo de dominação da
natureza? É possível desvincular a modernidade da emergência do capitalismo? Geneticamente, historicamente, a resposta é: não. Com isto em mente,
vários autores têm encerrado a discussão sobre o desenvolvimento com a
seguinte sentença: o desenvolvimento só tem servido à ocidentalização do
mundo, à exploração
capitalista
em escala mundial, à destruição
da
etnodiversidade em nome de uma pasteurização cultural; falar em desenvolvimento significa defender os interesses capitalistas ou, mais amplamente,
os valores do Ocidente e do modelo civilizatório capitalista.
Seria assim tão simples - contra ou a favor do Ocidente, contra ou a
favor do "desenvolvimento"?
Autores como Serge LATOUCHE (1986, 1994) oferecem críticas válidas e incisivas da ocidentalização do mundo e da modernização capitalista
em escala planetária; esquecem, porém, de perguntar qual poderia ser a alternativa para essa parcela da humanidade que, com intensidades e de maneiras variáveis, se encontra já enredada nas malhas culturais do Ocidente
1 O interesse de uma atenção para com a contribuição do "olhar pós-moderno" malgré lui même - para uma (auto)critica construtiva do projeto da modernidade é
uma convicção subjacente ao presente artigo. É desconcertante. aliás, notar que os
"pós-modernos", tachados amiúde de neoconservadores,
foram, de certa maneira,
precedidos pelo pessimismo dos marxistas da Escola de Frankfurt, especialmente
Adorno e Horkheimer (ver, por exemplo, ADORNO & HORKHEIMER, 1985), o que já
é um indicio de que enquadramentos e rótulos valorativos simplificadores (p.ex. "reacionários" versus "progressistas"), impeditivos do diálogo, devem ser, no que tange
à oposição entre "modernos" e "pós-modernos", evitados. Na realidade. como corretamente ponderou KAPLAN (1993:15), em alguns círculos "o discurso do pós-modernismo (... ) implica a busca de uma nova posição libertária", em contraposição ao
pós-modernismo tipicamente niilista-capitulado r de um BAUDRILLARD (1985). Ou
seja. espelhando a própria realidade contemporânea, a etiqueta "pós-modernismo"
vincula-se a coisas contraditórias.
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(religião, ethos etc.). Sem dúvida, pode-se, de maneira coerente (e realista? ..), desejar que aqueles povos ainda não ocidentalizadosl"modernizados",
dos ianomâmi aos pigmeus africanos, sejam deixados em paz." Mas não se
pode ignorar que, para uma grande parte da humanidade, "o mal já está feito",
e fechar os olhos não irá fazê-lo desaparecer. Da Suécia à Argentina, e passando até mesmo pelos hiperocidentalizados Japão, Coréia do Sul etc., quem
escapa, hoje, ao Ocidente, mesmo com toda a sua crise de valores? Mesmo
povos que, nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania, preservam muitas
de suas antigas tradições anteriores ao contato com o Ocidente, foram, no
correr de décadas ou de séculos, menos ou mais influenciados por aquele. O
desafio intelectual e prático é, destarte, ainda maior do que se imagina, pois,
a uma crítica da ocidentalização,
visando à defesa de um mínimo de
etnodiversidade contra a pasteurização cultural, cabe amiúde acrescentar uma
autocrítica, uma vez que, quer gostemos disso ou não, muitos de nós, habitantes do 'Terceiro Mundo", já estamos comprometidos com o universo cultural do Ocidente, e disso não nos livraremos com um passe de mágica ou com
a ajuda de alguma reengenharia sócio-cultural.
A denúncia da heteronomia, da desumanização e da agressão à natureza virtualmente contidas, desde o começo, no projeto da modernidade, ameaça, entretanto, deixar na sombra a sequínte interrogação: seria o Ocidente
apenas um "mal", ou mesmo o Mal? Tal pressuposição não parece razoável, e o autor do presente texto crê que, a esse respeito, a posição mais
equilibrada é a de CASTORIADIS (1978, 1986c), que reconhece tanto as
virtualidades negativas (degradação ambiental, etnocídio, exploração do homem pelo homem) quanto as positivas (onde se incluem as potencialidades
emancipatórias da discussão racional) da cultura greco-ocidental. É bem verdade que Castoriadis, o qual jamais poderia ser classificado como um pensador "pós-moderno" (estando, na realidade, em última análise comprometido
com uma autocrítica radical do projeto da modernidade), foi, também, um dos
pioneiros da demolição do "mito do desenvolvimento", sendo que a própria
palavra parece lembrar, para ele, inarredavelmente, a modernização capitalista e, particularmente, a "ideologia do desenvolvimento" en!ronizada pelas
potências capitalistas, notadamente pelos EUA, após a Segunda Guerra Mundial, no âmbito da busca de construção de um projeto de hegemonia ideológica que se opusesse eficazmente ao marxismo-Ieninismo
(CASTORIADIS,
1986a: outros autores que têm seguido uma trilha argumentativa similar são,
além do já citado Serge Latouche, por exemplo, Gustavo ESTEVA [1992, 1993)
2 Contundente é, a propósito, a ironia da seguinte observação feita por uma camponesa da etnia basoto, no micro-Estado de Lesoto (encravado na África do Sul), citada em um artigo do semanário alemão Oie Zeit (ng 12, 15/3/1996, artigo "Weniger
wãre mehr") sobre o fracasso das chamadas "ajudas para o desenvolvimento":
"o
nosso maior problema até agora foi que sempre nos foi dito quais são os nossos
problemas" .
A teorização sobre o desenvolvimento em
uma
época de fadiga
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e Wolfgang SACHS [1993]}. No entanto, o que importa é que, por mais coerente que seja a análise de Castoriadis, nada impede que, ao invés de se
entendê-Ia como uma rejeição da "idéia de desenvolvimento" en sai, seja
ela vista como uma lapidar crítica do desenvolvimento
capitalista,
o
que se afigura bem mais preciso e frutífero (lembrando que o imaginário capitalista, conforme provocativa e pioneiramente argumentou Castoriadis, na
realidade modelou a pseudo-alternativa "socialista real" e, na base, contaminou o próprio pensamento de Marx [CASTORIADIS, 1975; 1978; 1986bJ).
O que seria, então, o "desenvolvimento" fora do âmbito do desenvolvimento capitalista? Para romper com a heteronomia embutida, como uma de
suas dimensões, no projeto da modernidade, não se pode definir o conteúdo
da idéia de desenvolvimento de modo "fechado", ainda que de forma aparentemente alternativa às visões mais convencionais. Toda a história de "superações" de velhos conceitos (e, simultaneamente, de "teorias" e estratégias) de
desenvolvimento por outros mais novos foi, essencialmente, uma história de
substituição de certas visões fechadas por outras igualmente fechadas, e todas com um inequívoco comprometimento etnocêntrico em relação ao Ocidente: das teorias da modernização e do crescimento, passando pelos enfoques redistribution with growth e da satisfação de necessidades básicas, ao
sustainable development(em sua usual acepção de um "capitalismo ecológico e domesticado") e ao neocepalismo ("transformação produtiva com eqüidade"), exemplos mais recentes da renovação do discurso capitalista. A estas abordagens pode ser acrescentada, em um plano mais amplo de consideração, a perspectiva do materialismo histórico, por excelência o "grande relato" adversário da ideologia burguesa, igualmente fechado e não menos
europeicêntrico que - apenas para citar um exemplo emblemático - W. W.
Rostow com seu "manifesto não-comunista", o livro-panfleto Estágios do desenvolvimento econômico (ROSTOW, 1974).
Uma ruptura com o etnocentrismo e com a idéia heterônoma de uma
verdade absoluta a respeito do "desenvolvimento", conhecível e dissecável a
nível de detalhe pelos especialistas,
só pode vir a reboque de uma
"descentralização teórica", que é, ao mesmo tempo, o esforço de formulação
de uma teoria "aberta": ao invés de definir de uma vez por todas (explícita ou, como acontece com mais freqüência, implicitamente) o que seja desenvolvimento, cabe tão-somente (o que, porém, não é tão pouco) extrair um
princípio norteador. Entendendo, de modo muito abrangente - a ponto de
evidenciar o óbvio -, desenvolvimento simplesmente como um processo de
aprimoramento (gradativo ou, também, através de bruscas rupturas) das condições gerais do viver em sociedade, em nome de uma maior felicidade individuai e coletiva, o princípio mais fundamental sobre o qual pode se assentar
esse processo parece ser a autonomia individual e coletiva, conforme discutida por CASTORIADIS (1983, 1986c, 1986d, 1990b). A autonomia é um princípio ético e político, o qual, conforme já enfatizado alhures pelo autor deste
texto (SOUZA, 1994; 1995), não "define" um conceito de desenvolvimento,
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mas justamente propicia uma base de respeito ao direito de cada coletividade
de estabelecer, segundo as particularidades de sua cultura, o conteúdo concreto (sempre mutável) do desenvolvimento: as prioridades, os meios, as
estratégias. O recurso ao princípio de autonomia mostra ser possível uma
concepção efetivamente antiteleológica do desenvolvimento, possibilidade
essa negligenciada pelo próprio Castoriadis.
O princípio de autonomia não deve, de toda forma, desembocar em
uma análise ingênua e quixotesca. Em primeiro lugar, é claro que também
ele, o princípio de autonomia, está enraizado em um solo cultural específico,
que é igualmente o Ocidente (ou, como prefere Castoriadis, o imaginário grecoocidental); no entanto, isso não significa automaticamente etnocentrismo,
exatamente porque esse descentramento, possibilitado pelo imaginário grecoocidental, permite ao Outro a sua liberdade, a sua alteridade. Em segundo
lugar, porque, na medida em que parcelas crescentes da humanidade vêm
sendo já há bastante tempo "contaminadas" pelo Ocidente (processo que é
acelerado pela globalização atualmente em curso), é necessário verificar que
a margem de manobra para soluções autocentradas e de ruptura é infinitamente menor do que talvez se desejaria - o que não quer dizer, de toda
sorte, que inexiste qualquer margem de manobra para a defesa da qualidade
vida e da identidade cu Itural por parte de coletividades
territorialmente
referenciadas.' Em terceiro lugar, enfim, o princípio de autonomia não é uma
fórmula de aplicação trivial, o que fica particularmente claro quando se ressalta a sua dimensão espacial: como decidir, por exemplo, diante de eventuais conflitos de interesse entre duas coletividades referenciadas por recortes
espaciais atinentes a escalas distintas (ou seja, onde uma coletividade seja
um "subconjunto" da outra)? Ou, em outras palavras, como gerir democraticamente os atritos entre territorializações menos ou mais imediatas, menos
ou mais "difusas"? É possível estabelecer idealmente o princípio de que a
autonomia de uma coletividade cessa de ser legítima a partir do momento em
que se constrói às custas da autonomia de outra coletividade; no entanto, na
prática, não será fácil encontrar situações onde a disputa e a desarmonia
estejam inteiramente ausentes. A autonomia, portanto, não é uma utopia ide3 Não se deve esquecer a pletora de conflitos étnicos atualmente existentes pelo
mundo afora, mostrando, de uma forma dramática, que a etnodiversidade não é
simplesmente eliminada pela "aldeia global". Não se deve esquecer, igualmente,
que a era da "Terceira Revolução Industrial", da passagem do modo de regulação
fordista para o pós-fordista e da globalização é, também, uma era de renovado desemprego tecnológico, de parcial demolição do welfare state (lá onde havia um), de
aumento da pobreza (no "Primeiro" e no "Terceiro Mundo") e de marginalização de
países e continentes (notadamente a África) pelo capital globalizado. Na medida,
assim, em que a era da globalização é, ao mesmo tempo, uma era de novas exclusões (em cujo contexto, aliás, muito dos atuais conflitos étnicos pode ser explicado),
não desaparece, apenas complexifica-se o ambiente para pensamentos e ações de
resistência contra os efeitos perversos da ocidentalização e da globalização.
A teorização sobre o desenvolvimento em uma época de fadiga
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alista, a exigir como premissa uma sociedade uniforme e sem conflitos, mas,
simplesmente, um horizonte de pensamento e ação, a estimular um caminhar
marcado por dissensões que, sobre a base do agir comunicativo e com o
concurso de uma razão crítica (fazendo uma ponte, aqui, com o pensamento
habermasiano), não precisarão ter como corolário a violência.
A idéia castoriadiana de autonomia, ao ser capturada pelo autor deste
texto enquanto um princípio ético e político norteador do desenvolvimento,
reclama, como já se pôde notar, uma "espacialização", tarefa à qual se furta o
próprio Castoriadis. O espaço social (resultado, em sua dimensão tangível,
da transformação da natureza, ou do espaço natural, pelo trabalho, dimensão
essa à qual devem ser acrescentadas as leituras subjetivas e intersubjetivas)
não é um epifenômeno. O espaço, produto social, é um suporte para a vida
em sociedade e, ao mesmo tempo, um condicionador dos projetos humanos;
um referencial simbólico, afetivo e, também, para a organização política; uma
arena de luta; uma fonte de recursos (sendo a própria localização geográfica,
que é algo essencialmente relacional, um recurso a ser aproveitado). A autonomia de uma coletividade traz subentendida uma territorialidade autônoma,
ou seja, a gestão autônoma, por parte da coletividade em questão, dos recursos contidos em seu território, que é o espaço por ela controlado e influenciado (SOUZA, 1995). Por isso o desenvolvimento é, necessariamente, sócioespacial, ou seja, da sociedade e do espaço: tão tola quanto a crença de se
transformar substantivamente as relações sociais apenas por meio de intervenções no espaço ("fetichismo espacial" tipificado por certos urbanistas) é a
negligência
para com o fato de que a mudança
social demanda,
concomitantemente
(mesmo que isso nem sempre ocorra), a mudança da
organização espacial que amparava as velhas relações sociais.
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Abdicar conscientemente de uma definição fechada do conteúdo do
desenvolvimento, sobre os fundamentos éticos e político-filosóficos do princípio de autonomia, não significa declarar encerrada a discussão teórica, mas
sim reabri-Ia sobre novas bases. A teorização torna-se, na verdade, muito
mais complexa, uma vez que não mais se recorre a um elenco de indicadores
pretensamente universais.
Há alguns anos atrás o cientista político alemão Ulrich Menzel publicou
um livro intitulado O fim do Terceiro Mundo e o fracasso da grande teoria
(MENZEL, 1992a). O diagnóstico do "fracasso da grande teoria" feito por
Menzel apóia-se, basicamente, nos seguintes fatos: o primeiro é a constatação
dos sucessivos reveses das teorias do desenvolvimento - e das estratégias
nelas apoiadas ou inspiradas - propostas nas últimas quatro décadas, cada
uma delas com pretensões de largo alcance, mas cujo poder explicativo e
preditivo revelou-se sempre parcial e deficiente. Deficiência essa, aliás, em
que pese a relativa monotonia teórica que tem dominado a paisagem intelec-
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tual; conquanto simplificando em demasia, Menzel não deixa de estar essencialmente correto quando, em outro trabalho, extrai o seguinte balanço: "40
anos de estratégia do desenvolvimento - vale dizer, a despeito das mudanças de paradigma e da diversidade conceitual, no fundo 40 anos de estratégia
de crescimento. As diferenças se reduzem, em última instância, à questão de
se esse crescimento deve ser estimulado segundo os cânones neoclássicos,
keynesianos, neomercantilisticamente
ou pela via do socialismo." (MENZEL,
1992b:131) Se ajustarmos um pouco melhor as lentes, a tese da monotonia
teórica continua válida, apenas sendo conveniente considerar não apenas o
"crescimento" mas, mais que isso, a modernização como objetivo-mor. Assim
fazendo, será possível perceber que, desde a fraternidade existente entre
teorias do crescimento e da modernização dos anos 50/60, até fenômenos
intelectuais recentes como um renascimento do pensamento neoclássico esteio teórico do receituário neoliberal em voga a partir dos anos 80 -,
ou
mesmo um retorno ao puro estímulo ao crescimento, ao que se teria seguido,
nas palavras de Menzel, uma "desorientação" (Rat/osigkeit) no começo da
década de 90 (MENZEL, 1992:154), para não falar em uma certa "teoria da
modernização crítica" (kritische Modernisierungstheorie) saudada por NOHLEN
& NUSCHELER (1992:62) como nova saída e na superênfase que determinados analistas vêm pondo nos "fatores internos do subdesenvolvimento",
de
forma a-histórica e simplista,' o essencial tem girado ao redor da crença na
dissociabilidade da modernidade de seus marcos histórico-geográficos origi4 A ênfase exagerada sobre os chamados fatores internos (ou endógenos) do
(sub)desenvolvimento é característica das teorias da modernização, e não é de hoje
que elas vêm gerando, como subprodutos, certos livros de sabor popularesco, escritos para um grande público - do famoso livro de ROSTOW (1974) ao
Underdevelopment is a State of Mind de Lawrence HARRISON (1985). O debilitamento
dos "dependentistas", já bem visível na década passada e acentuado com a "nova
ordem mundial" anunciada pelo término da Guerra Fria, tem dado, porém, margem a
uma maior desinibição dos autores conservadores. Um dos exemplos mais didáticos
da nova safra de análises "internalistas" para consumo de massa é o livro Der Fali
Lateinamerika ("O caso América Latina"), de Manfred WOHLCKE (1989), que, sem
deixar de mencionar (muito epidermicamente) os ditos fatores exógenos do subdesenvolvimento, coloca em primeiríssimo plano "fatores internos" como a corrupção,
a burocracia pesada e ineficiente, a cultura política marcada por paternalismo,
personalismo, clientelismo e militarismo, o crescimento demográfico e a falta de patriotismo das elites, para ele sintomas de um "morbus latinus", a "doença latino-americana", o que seria a demonstração cabal de um "subdesenvolvimento feito em casa"
(hausgemachte Unterentwicklung). Culturalista e mesmo moralista (combinação que
usualmente é a ante-sala do racismo), o diagnóstico de W6hlcke deixa na sombra o
entrelaçamento histórico entre "interno" e "externo", em cujo contexto muitos dos
problemas por ele mencionados (e que são, em si, obviamente reais, como qualquer
latino-americano não-alienado sabe melhor que ninguém) foram e são gerados, e à
luz do qual a própria distinção rígida entre endógeno e exógeno, de corte cartesiano,
demanda superação.
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nais - e tornada, assim, reprodutível
e exportável
a nível planetário.
Se
levarmos em conta que também a hoje esquecida "Teoria da Dependência"
e
o próprio marxismo
(teorias do imperialismo
e a análise wallersteiniana
da
formação do Sistema Mundial Capitalista)
não deixavam de ter como horizonte a modernização
- o progresso
técnico, o avanço da racionalidade
-,
conquanto obviamente
rejeitassem
o evolucionismo
a-histórico capitalistófilo,
e que o "ecodesenvolvimento"
de um Ignacy Sachs (e, mais ainda, certas
versões atuais do sustainable development), e mesmo o "desenvolvimento
de baixo para cima", não possuem como horizonte uma genuína alternativa
ao capitalismo
nem à sua premissa funcional - o crescimento
-, impõe-se
então a conclusão:
houve, ao longo de todo este século, uma enorme carência de alternativas
analíticas
verdadeiramente
radicais ao desenvolvimento
visto como "modernização"
(laicização,
racionalização
etc., além de, derivativamente,
industrialização
e urbanização
em uma palavra, ocidentalízaçãO).5 A grande ironia, justamente,
reside em que a modernização
entrou em
franco colapso, como vigorosamente
argumentou
Robert KURZ (1991), tornando um anacronismo
insuportável,
para não dizer patético, ver em uma
reabilitação
da idéia de modernização
uma solução." A modernização
(e o
5 A referida carência, é claro, nunca foi absoluta. Especialmente o enfoque do "desenvolvimento de baixo para cima", que teve em Walter St6hr seu principal teórico, apresenta diferenças notáveis em comparação com o mainstream modemizador, por sua rejeição do
economicismo
e, por via de conseqüência, por sua forte abertura para com a
interdisciplinaridade -, por sua valorização do papel da sociedade civil organizada e por sua
ruptura com a visão usual do desenvolvimento como podendo basear-se em uma receita que
seria idêntica para todas as sociedades, independentemente de sua cultura, de seu ambiente
natural etc. (STÕHR, 1981). No entanto, se se considerar, por exemplo, a crítica demolidora
de Castoriadis em suas "Reflexões sobre o 'desenvolvimento'
e a 'racionalidade"
(CASTORIADIS, 1986a [apresentadas originalmente em 1974]), será possível verificar que
nenhum dos avanços de Stóhr representou uma verdadeira novidade. De outra parte, falta a
St6hr - diferentemente de Castoriadis um horizonte crítico suficientemente amplo e
consistente, que permita pôr em xeque a capacidade de ultrapassagem, no interior do modelo
civilizatório capitalista, dos problemas por ele detectados.
6 Outra ironia reside no fato de que, em uma época de anli-estatismo militante - o que
golpeou não apenas a "esquerda", mas o próprio keynesianismo -, os mais citados
casos de "desenvolvimento tardio" a desafiar o poder prognóstico das teorias inspiradas
no pensamento marxista (do "desenvolvimento do subdesenvolvimento"
de Andrew
Gunder Frank - já há muitos anos atrás duramente criticado por "dependentistas" mais
sofisticados - a Immanuel Wallerstein), os "Tigres Asiáticos", não seguiram o receituário neoliberal, praticandc, pelo contrário, um capitalismo com forte presença do Estado
na economia como planejador e gestor, além de amparado em um regime autoritário.
Uma boa parcela da "desorientação" diagnosticada por Ulrich Menzel tem a ver, sem
dúvida, com o falo de que, após assumir novamente ares de "paradigma" dominante
depois de décadas de marginalização por parte da orientação teórica keynesiana, o
pensamento neoliberal/neodássico volta a ser, por conta de suas evidentes fraquezas, posto
na berlinda - por exemplo, em nome da consideração da sustentabilidade ecológica
sem que as alternativas propostas sejam, todavia, suficientemente persuasivas.
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crescimento), como "paradigma", se assemelha a um paciente em coma,
mantido vivo com a ajuda de aparelhos, diante das contradições do capitalismo e da contínua e crescente exclusão de contingentes populacionais e partes do globo dos benefícios da globalização econômica.
Ao que parece, menos que de um minimalismo teórico em estilo pósmoderno, uma boa parcela da teorização sobre o desenvolvimento - especialmente aquela produzida pela guilda dos economistas, por demais controlada pela razão instrumental e, por conseguinte, assaz refratária ao espírito
iconoclasta e niilista do pós-modernismo padece, isso sim, de um compromisso com idéias e fórmulas obsoletas, como se, na esteira de fatos da
conjuntura política internacional (queda do Muro de Berlim, fim da Guerra
Fria) e da implosão do pensamento marxista, fosse natural pura e simplesmente ignorar as conhecidas criticas de "dependentistas" e teóricos do imperialismo às antigas teorias da modernização.
No plano estritamente teórico-conceitual, uma alternativa ao anacronismo conservador, menos (modernização, fetichismo do crescimento) ou mais
disfarçado ("capitalismo ecológico") foi já esboçada na seção precedente. É
necessário, agora, discorrer sobre as conseqüências epistemológicas
e
metodológicas da perspectiva teórica do desenvolvimento sócio-espacial, com
o fito de se robustecer uma alternativa igualmente à abordagem "pós-moderna". Atente-se, porém, antes, para o segundo fato que, segundo Menzel, interditaria o prosseguimento da crença na tactibllidade de uma teoria geral do
(sub)desenvolvimento: a saber, o processo de heterogeneização do "Terceiro
Mundo". O universo dos países "subdesenvolvidos", desde sempre muito heterogêneo sob o ângulo cultural, ter-se-ia tornado, nas últimas décadas, também cada vez menos homogêneo do ponto de vista econômico, chegando-se
a uma situação como a hodierna, onde NICs (Newly Industrializing Countries)
como Brasil, México e Coréia do Sul seriam abusivamente colocados junto a
países como Moçambique, Honduras e Nepal sob a rubrica geral de "Terceiro
Mundo". Por conta dessa crescente desuniformidade no que concerne aos
níveis de industrialização e à capacidade econômica em geral (sem contar a
força militar e a influência geopolítica derivadas desses e de outros fatores), a
uniformidade de interesses entre os países do "Sul" seria, igualmente, cada
vez mais também uma quimera, uma ilusão de ótica ideologicamente condicionada; pelo contrário, os conflitos de interesse latentes e manifestos tenderiam cada vez mais a predominar, de maneira que esse processo, juntamente
com a débâcle do "Segundo Mundo" (países "socialistas"), faria caducar a
própria expressão 'Terceiro Mundo" e, assim, a sugestiva metáfora proposta
na década de 50 por Alfred Sauvy.
Os dois argumentos aduzidos por Menzel para justificar sua crítica das
teorias existentes de uma parte, o fracasso das teorias (e estratégias,
agências etc.) de desenvolvimento em erradicar ou pelo menos amenizar a
pobreza e a desigualdade no mundo e, de outra parte, a heterogeneização do
"Terceiro Mundo" - são, em si mesmos, incontestáveis. Seria justificado, no
A teorização sobre o desenvolvimento em uma época de fadiga
entanto, desacreditar na tarefa de elaboração teórica, partindo-se para um
minimalismo que proíbe em larga medida as generalizações, as articulações
de questões e, por tabela, a ação política coordenada, a práxis? Em que medida e de que modo generalizações continuam sendo válidas - e imprescindíveis?
Legitimamente, o fim da "grande teoria" (ou, mais abrangentemente
ainda, do "grande relato") pode significar o fim das explicações universais e
universalizantes, pouco diferenciadoras, a serviço da homogeneização, da
supressão da alteridade, da pasteurização cultural em nome da "modernização" (ou do "socialismo"). Pode, destarte, representar uma tentativa de expurgo da presença insidiosa da face mais repulsiva do projeto da modernidade:
o desrespeito pelo direito de cada cultura de buscar seu próprio caminho ao
longo da história. Negativamente, entretanto, o anúncio do fim da "grande
teoria" pode expressar, ainda que não tanto na pena do próprio Menzel, um
apego desmedido à fragmentação e ao minimalismo.
LYOTARD (1986:99-110) apresenta a Física contemporânea, a Geometria dos fractais e a Teoria das Catástrofes como espécimes representativos de uma "ciência pós-moderna", vista como "pesquisa de instabilidade" e
não-positivista. Essa interpretação, no entender do autor das presentes linhas, é ligeiramente equivocada, especialmente se se considerar a Teoria do
Caos, a mais conhecida representante do chamado "paradigma da complexidade".' Isto porque a Teoria do Caos evidentemente não consiste em uma
antítese da generalização teórica, e tampouco traz consigo uma refutação da
idéia de determinação: a complexidade do caos (aliás, caos determinístico)
apresenta-se como um amálgama de contingência e determinação, acaso
necessidade. Uma perspectiva analítica complexa da sociedade - o que é
ainda mais imperativo que no domínio da natureza -, não reside em opor o
minimalismo ao universalismo, o particular (ou o singular) ao geral, e sim em
uma rejeição simultânea da. superênfase sobre o que é geral (ou seja, recusa
de "leis gerais da sociedade", de teorias e estratégias simplistas e pouco
diferenciadoras, da subestimação dos conflitos e das discontinuidades) e sobre o que é particular (recusa da singularização excessiva, do desprezo para
com a abstração e a generalização). A crítica "pós-moderna" (ou, pelo menos, alguns de seus autores) merece ser levada a sério; não é possível ignorar que muito daquilo a que os "pós-modernos" reagem merece, de falo, rejeição. O problema consiste na natureza dessa reação, tendente a substiluir
meta narrativas (pseudo)emancipatórias
por cetismo, ironia e conforrnismo, a
substituir teorias excessivamente gerais por teoria nenhuma. Deixa-se, assim, escapar que o que cabe é perceber os vários limites das várias espécies
de generalização, sempre em busca das "pistas de uma razão que aproxima
e
7 Ver, a respeito do "paradigma da complexidade", a ambiciosa apreciação de conjunto oferecida por Edgar MORIN (s/d) e o instigante livro de PRIGOGINE
&
STENGERS (1991), dentre inúmeros outros trabalhos.
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sem suprimir distâncias, que une sem tornar idêntico o dessemelhante, que
faz conhecido o que é comum a estranhos, mas que deixa ao Outro a sua
alteridade", para citar um inspirado passo extraído de um depoimento de
HABERMAS (1990:158).
Discernir os referidos limites da generalização e da abstração é algo
que depende de diversos fatores. Sinteticamente, o autor do presente texto
gostaria de lembrar dois deles, aliás interrelacionados:
1) A escala de análise. Sublinhar a dimensão espacial na reflexão sobre o
desenvolvimento não é um assunto meramente teórico-conceitual mas, igualmente, metodológico. À luz do pressuposto que é uma busca da apreensão
da dialética entre o geral e o particular, recusando uma superênfase apriorística
sobre um desses pólos constituintes da realidade concreta, pode-se assumir
alcances variados para diferentes tipos de generalização e para distintos conceitos. É necessário raciocinar considerando diferentes níveis ou escalas de
análise dos fenômenos. A escala ou o nível de análise remete a um dado
recorte espacial - o intra-urbano (os bairros, a estrutura interna da cidade),
o "local" (o vilarejo, a cidade, a metrópole como um todo), o "regional", o
"nacional", o internacional - e, simultaneamente, a um nível de generalização especifico, o qual, conforme ponderou Yves Lacoste em seu trabalho
pioneiro (LACOSTE, 1988), não se refere apenas a um problema quantitativo
(maior ou menor grau detalhe, variável conforme a escala de um mapa, para
tomar um exemplo direto que é o da linguagem cartográfica), mas, também, a
um problema qualitativo (mediante o uso de escalas diferentes estarão, eventualmente, sendo representados fenômenos de naturezas distintas). É evidente que o interesse epistemológico e metodológico das escalas transcende
de muito a questão da representação cartográfica de fenômenos, relacionando-se, muito amplamente, com uma possibilidade de perceber certas semelhanças e articulações em detrimento da percepção de determinadas particularidades, de acordo com o nível analítico selecionado; o geral e o particular
mudam conforme a escala. Não há, por outro lado, um elenco fixo de níveis
anal ítrcos. Cada objeto, cada questão a nortear uma investigação deverá orientar a definição dos níveis analíticos e recortes espaciais adequados à análise em tela - o que, por sua vez, remete ao fato de que a escolha dos níveis
analíticos deve estar vinculada ao raio de alcance real dos fenômenos (o
âmbito de surgimento ou operação dos fatores ou processos). Desse ponto
de vista, o esforço de teorização deverá ser, ele mesmo, "estratificado", isto
é, diversas formulações teóricas poderão variar imensamente em concretude
e poder explicativo, sem que necessariamente sejam incompatíveis entre si,
uma vez que cada uma estará privilegiando um ou alguns níveis de análise,
ainda que sejam considerados de algum modo fenômenos atinentes também
a outras escalas. O raciocínio multiescalar pode, inclusive, ajudar a perceber
melhor a verdadeira magnitude do "desafio do desenvolvimento": se, por um
lado, os "dependentistas" já mostraram, há muito tempo, que o "subdesenvol-
A teorização sobre o desenvolvimento
em uma época de fadiga
17
vimento" historicamente surge pari passu com o "desenvolvimento", no bojo
da expansão do capitalismo e do processo de conquista e colonização capitaneado pela Europa, cumpre notar, porém, que os "países desenvolvidos"
estão longe de constituir uma ilha de perfeição social cercada de imperfeição
por todos os lados; sem falar no desafio permanente de uma maior autonomia
individual e coletiva e no caráter eminentemente antiecológico do modelo
civilizatório capitalista, há que se considerar o agravamento de problemas
como o desemprego e a pobreza na esteira da "Terceira Revolução Industrial"
e da passagem para as relações de produção típicas do modo de regulação
pós-tordista. O desenvolvimento sócio-espacial aparece, dessa forma. como
um desafio inespecífico dos países ditos "subdesenvolvidos"
- o que fere o
senso comum -, ainda que não se pretenda, é lógico, negar as brutais
disparidades internacionais no que tange a diversos aspectos da qualidade
de vida. (Sobre essas disparidades, finalmente. o raciocínio multiescalar igualmente auxilia na contestação da tese menzeliana da inexistência de um denominador comum para os países ditos subdesenvolvidos. Em que pese a
inequívoca heterogeneização do "Terceiro Mundo", sobressaindo a industrialização de alguns países do "Sul", não é difícil constatar a persistência de
graves problemas sociais, originariamente ligados tanto os problemas
quanto a sua magnitude e sua persistência - à produção e reprodução do
"subdesenvolvimento"
como um fenômeno histórico na esteira da colonização e da modernização, e que o autor do presente ensaio propôs interpretar
em termos da geração de uma caricatura do Ocidente colonizador
e
modernizador [SOUZA, 1994:29-31] - a qual, é evidente, não se manifesta
com a mesma intensidade ou do mesmo modo em todos os lugares, nem
exclui a possibilidade de uma absorção crítica e criativa de elementos da
cultura ocidental e modernizante.)
2) Os limites da experiência pessoal do teórico. Muito freqüentemente
se
esquece que, por maior que seja a erudição do analista, a sua experiência
pessoal enquanto pesquisador (lugares onde fez trabalhos de campo, realidades sobre as quais se debruçou mais detidamente) é limitada. Mais
ai nda, o seu horizonte cultural/experiencial
é sempre parcial, por mais cosmopolita que ele seja; uma mentalidade, um conjunto de valores específico, que condiciona o indivíduo desde o seu nascimento pela força da língua e do legado histórico, particulariza o seu prisma de julgamento, mesmo em uma era de globalização. Essa particularização
do ângulo de leitura não é, aliás, singular, mas plural, estando relacionada com os diferentes recortes espaciais, atinentes a diferentes escalas, os quais atuam como
referenciais para a construção de identidades coletivas e individuais: de
"cidadão do mundo" até o sentimento de pertencimento a um bairro, passando pela identificação afetiva com uma cidade, uma região, um país, um
continente (p.ex. a "América Latina") ... Uma maior consciência desses
condicionamentos,
sempre presentes, ajudaria o analista a estimar me-
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1 (1), 1996
Ihor o alcance de suas explicações e, sobretudo, de suas sugestões de
intervenção.
Um aspecto crucial, de toda maneira, é que a perspectiva do desenvolvimento sócio-espacial não autoriza a extração de receitas de desenvolvimento a partir da análise de problemas envolvendo culturas distintas daquela
do próprio analista; a elaboração de "soluções", a definição de prioridades
etc. é algo que compete, em última instância, à própria coletividade envolvida, cabendo ao pesquisador, no máximo, o papel de um interlocutor, nunca o
de um "chefe planejador" ou "consultor-dono-da-verdade".
Por isso uma teoria do desenvolvimento sócio-espacial é uma "teoria aberta", por abrir-se a
generalizações
de alcances variáveis; e, ao mesmo tempo, uma teoria
"descentralizadora", pois busca, no processo explicativo, uma constante vigilância no que toca ao etnocentrismo, do mesmo modo como, no plano estratégico, abdica de uma postura autoritária
(fundada em uma verdade
pretensamente absoluta) em nome de um princípio de não-intervenção, por
sua vez assentado sobre a convicção da incomensurabilidade das culturas
humanas, que são os marcos referenciais à luz dos quais idéias-força e
valores como "desenvolvimento",
"justiça" e outros, por tanto tempo tidos
como pass íVEiÍsde definição universalmente verdadei 'a, deverão ser apreciados.
Não obstante a maior humildade teórica decorrente de uma maior consciência dos limites da generalização, assim como da "descentralização" teórlco-estratéqíca derivada da recusa de uma postura etnocêntrica e cientificista,
uma teoria do desenvolvimento sócio-espacial precisa ser, em um sentido
essencial, ambiciosa. Se se quiser ultrapassar os parcialismos analíticos ancorados na Epistemologia positivista, produtores de visões monodimensionais
do desenvolvimento - p.ex. o conceito de "desenvolvimento econômico" -, é
necessário ccmpreender a sociedade como um todo indivisível, constituído
não de "instâncias", "estruturas" ou "sistemas" autônomos (economia, política ...), mas de dimensões interdependentes, onde cada dimensão. embora
distinta das demais. não pode ter sua própria dinâmica apreendida se a
desconectarmos, "por pragmatismo", das demais. A noção de dimensão pode
ser aplicada a objetos diversos dentro do mesmo contexto. como as dimensões das relações sociais (econômica, política, cultural), a dimensão espacial da sociedade (aspecto mais complexo da sua materialidade) e, por fim, a
sua dimensão histórica (a sua historicidade: do movimento da sociedade em
geral aos ritmos diferenciados de transformação das dimensões das relações
sociais) sem perder de vista que essa modalidade de classificação das
dimensões (por exemplo, distinguindo a economia da política. e esta da cultura) encerra algo de arbitrário e, como todo conhecimento social, está embebida no imaginário de uma época e de uma sociedade. Qualquer reflexão sobre
o "desenvolvinento",
por referir-se a um objeto que abarca ou envolve os
mais variados aspectos da vida em sociedade, será profundamente limitada
e artificial se não considerar essa exigência de pluridimensionalidade analítica.
A teorização sobre o desenvolvimento
em uma época de fadiga
19
IV
Para um espírito estreitamente controlado pelo positivismo, é mais que
desconfortável substituir um velho ideal de "teoria", onde um grande número
de fenômenos diversos deveria poder ser reduzido a um pequeno número de
leis e mesmo deduzido a partir dessas leis, por uma "teoria" como a do desenvolvimento sócio-espacial aqui esboçada, a qual, aparentemente, é quase uma "antiteoria". Na verdade, não se trata de uma antiteoria, mas de uma
"macroteoria" não-fechada
o prefixo "macro", portanto, não indicando
nenhuma pretensão descabida de explicação universal, e sim apenas que se
está diante de uma "perspectiva teórica" (um Theorieansatz no sentido dos
alemães) simultaneamente muito abrangente e aberto. Encarnando um alerta
sobre os riscos da generalização excessiva, tanto quanto sobre os riscos da
excessiva fragmentação do objeto, essa "macroteoria aberta" ajuda a pavimentar o caminho para a formulação de teorias substantivas mais modestas
que suas equivalentes convencionais, porque mais conscientes de seus limites. Ao mesmo tempo, contudo, essas teorias deverão mostrar-se mais ricas,
já que mais integradoras (integração entre dimensões constituintes dos processos sociais; integração entre espaço social, história e relações sociais).
Portanto, a um só tempo, mais modestas e mais ambiciosas.
Ao conceber o processo explicativo de forma mais aberta, prepara-se,
outrossim, o terreno para se descentralizar radicalmente a formulação de "soluções". A velha forma de acatar o imperativo ético de engajamento propositivo,
baseado em "grandes relatos emancipatórios" absolutizantes, tendentes a
abafar a alteridade e ignorar a incomensurabilidade entre universos culturais
distintos, é definitivamente recusada, sem que se postule, contudo, a supressão de todo e qualquer debate intercultural no plano político-filosófico. O que
ocorre, por conseguinte, é uma subversão geral da própria forma convencionai de se fazer ciência ("pura" ou "aplicada"), de se refletir sobre o desenvolvimento - sem, contudo, ceder à tentação fácil de banimento da razão e do
engajamento. Uma contribuição, portanto, a uma necessária autocrítica do
projeto da modernidade, autocrítica essa que busca ultrapassar dialeticamente
tanto a razão instrumental quanto a sua negação simplista, o niilismo "pósmoderno".
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