Revista Brasileira de Direito Civil - Instituto Brasileiro de Direito Civil

Transcrição

Revista Brasileira de Direito Civil - Instituto Brasileiro de Direito Civil
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
ISSN 2358-6974
Volume 7
Jan / Mar 2016
Doutrina Nacional / Arthur Pinheiro Basan / Felipe Pires Pereira / Leonardo Estevam de
Assis Zanini / Lígia Ziggiotti de Oliveira / Louise Vago Matieli
Doutrina Estrangeira / Antonino Procida Mirabelli di Lauro
Pareceres / Daniel Sarmento
Resenha / Carlos Nelson Konder
Vídeos e Áudios / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o
diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das
novidades doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no âmbito do direito civil
e de áreas afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e à experiência
comparada, que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos
jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:
(i)
doutrina nacional;
(ii)
doutrina estrangeira;
(iii)
jurisprudência comentada; e
(iv)
pareceres;

Resenhas;

Vídeos e áudios.
Endereço para contato:
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20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela
Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado
Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil.
Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná,
Brasil.
Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor
Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Pietro Perlingieri – Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da
Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Eduardo Nunes de Souza
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Tatiana Quintela Bastos
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SUMÁRIO
Editorial
Direito Civil e proteção das vulnerabilidades – Gustavo Tepedino
6
Doutrina nacional
O contrato existencial: análise de decisão judicial que assegura a sua
9
aplicação – Arthur Pinheiro Basan
A pretensão reivindicatória na perspectiva da função social da
29
propriedade – Felipe Pires Pereira
O direito de superfície na Alemanha e o seu caráter social – Leonardo
61
Estevam de Assis Zanini
O papel da doutrina de proteção à criança e à(o) adolescente frente às
82
perspectivas de gênero. Propostas de olhares multidimensionais acerca
dos desempoderamentos em família – Lígia Ziggiotti de Oliveira
Análise funcional do direito ao nome à luz do artigo 55, parágrafo
97
único, da Lei de Registros Públicos – Louise Vago Matieli
Doutrina estrangeira
L’obbligazione come rapporto complesso – Antonino Procida Mirabelli
123
di Lauro
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Pareceres
Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem
176
constitucional brasileira – Daniel Sarmento
Resenhas
Resenha de “Nulidades prescrevem? Uma perspectiva funcional da
221
invalidade”, de Marcelo Dickstein – Carlos Nelson Konder
Vídeos e áudios
--
Rumos cruzados do Direito Civil pós-1988 e do constitucionalismo de hoje –
Palestra proferida pelo Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de
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Direito Civil – RBDCivil
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EDITORIAL
DIREITO CIVIL E PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
Ainda reverbera na comunidade jurídica o profícuo debate estabelecido
na VII Jornada de Direito Civil do CJF, realizada em 28 e 29 de setembro de 2015. Ao lado
dos enunciados aprovados, mostra-se oportuno refletir sobre alguns dos temas tratados,
especialmente no que tange ao adimplemento obrigacional e ao sistema de garantias.
Ao propósito, discutiu-se a regra contida no art. 27, § 5o, da Lei n.
9.514/1997, que regula a alienação fiduciária de imóvel. O dispositivo, diferentemente da
sistemática do Código Civil, prevê, após o não pagamento pelo devedor e a realização do
segundo leilão público promovido para a venda do bem dado em garantia, a extinção da
dívida, mesmo se o maior lance oferecido for menor que o valor do débito. Proposta de
enunciado interpretativo pretendia restringir tal dispositivo a relações de consumo,
admitindo-se seu afastamento, pelas partes, por disposição contratual expressa, sempre que
não se tratasse de relação entre consumidor e fornecedor. Com a não incidência da lei
especial, aplicar-se-ia a norma constante nos arts. 1.366 e 1.430 do Código Civil, de modo
que o devedor, nesse caso, continuaria responsável pelo saldo remanescente se o valor do
imóvel dado em garantia fiduciária não fosse suficiente para o integral pagamento do
credor.
Segundo a justificativa apresentada para a proposta, o § 5o do art. 27 da
Lei n. 9.514/1997 consubstancia regra particular, haja vista que as demais espécies de
garantia real, inclusive as modalidades de alienação fiduciária atinentes aos direitos e bens
móveis, se submetem à norma geral do Código Civil, para a qual, uma vez executada a
garantia, o devedor continua a responder pessoalmente pelo saldo remanescente. Dada a
especificidade dessa regra, que tem por finalidade proteger o contratante vulnerável,
notadamente no financiamento imobiliário, sua aplicação poderia ser validamente recusada
por contratantes em relações paritárias. Nessa esteira, em razão do caráter de ordem
pública do sistema de proteção do consumidor, não seria possível o afastamento de tal
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preceito uma vez configurada relação de consumo. Em contrapartida, na hipótese de
relações paritárias, a extinção da dívida com a execução de garantia em valor inferior ao
débito estimularia o mau pagador, consagrando-se seu enriquecimento injusto.
Tal proposta foi rejeitada por pequena margem de votos, prevalecendo,
ao final de animada discussão, certa desconfiança em face dos credores, normalmente
associados a grupos econômicos poderosos em face dos quais a extinção da dívida parece
sempre ser a melhor solução. Por outro lado, mostra-se legítimo pensar no sistema de
crédito como um todo, estremando as situações de discrepâncias informativas e
econômicas daquelas em que, havendo paridade na contratação, o adimplemento há de ser
a regra, sob pena do encarecimento injustificado do crédito e da perda de confiança na
autonomia privada.
O dilema revela a necessidade de compatibilização sistemática de ambas
as preocupações, com fundamento não em escolhas ideológicas ou maniqueístas, mas nos
valores do ordenamento jurídico. Vê-se, nessa perspectiva, que a justificativa axiológica
para a lei especial se encontra na vulnerabilidade identificada pelo legislador nos contratos
de financiamento imobiliário, normalmente firmados para a realização do sonho da casa
própria, em face do agente do sistema financeiro. Os princípios da boa-fé objetiva e da
função social dos contratos, nessa vertente, incidem de forma intensa, diante da
disparidade econômica e informativa entre os contratantes. Se, diferentemente, o cenário se
altera para situações estranhas à vulnerabilidade, em que inexiste relação de consumo ou
de acentuada assimetria entre os contratantes, a disciplina do Código Civil há de
prevalecer, de tal modo que, vendida a coisa dada em garantia, se o produto não bastar para
o pagamento da dívida e das despesas de cobrança, continua o devedor obrigado pelo
restante.
Nessa direção, para a preservação da proteção finalística do consumidor e
do contratante vulnerável, especialmente em se tratando do acesso à moradia, mister não
banalizar a tutela diferenciada do devedor, a qual se justifica, na legalidade constitucional,
somente se associada a valores existenciais e sociais subjacentes aos princípios da
solidariedade e da isonomia substancial (art. 3º, I e II, C.R.). Fora dessas hipóteses, a
autonomia privada há de ser estimulada de tal maneira que, em nome da boa-fé objetiva e
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dos princípios constitucionais que informam a livre iniciativa, o adimplemento
obrigacional funcione como parâmetro ético e jurídico a ser valorizado. Mostra-se
oportuno construir cultura jurídica na qual o inadimplemento – fora das situações de
vulnerabilidade – passe a ser considerado um desvalor, o início da corrupção de costumes;
e em que a obrigatoriedade dos pactos não seja demonizada por simplicista bandeira de
proteção do contratante mais fraco. A legalidade constitucional requer a compreensão
unitária do sistema jurídico, na qual liberdade e solidariedade possam andar de mãos juntas
e a tutela das vulnerabilidades sirva efetivamente de instrumento para o alcance da
igualdade.
GT
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Nacional
O CONTRATO EXISTENCIAL: ANÁLISE DE DECISÃO JUDICIAL QUE
ASSEGURA A SUA APLICAÇÃO
The existential contract: judicial decision analysis that secured their application
Arthur Pinheiro Basan
Mestre em Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
Pós-graduado em Direito da Faculdade Damásio de Jesus.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia.
Professor.
Resumo
O presente trabalho visa verificar e demonstrar a possibilidade de uma distinção contratual
que consiga garantir melhor tutela à vida humana, afastando esse instituto jurídico da mera
análise patrimonialista clássica e aproximando-o da luz das normas fundamentais que
ilumina todo o sistema jurídico contemporâneo, por meio da consideração do contrato
como “existencial”, analisando um caso concreto julgado pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo que utilizou a proposta classificação contratual.
Palavras-chave
Contrato; existencial; dignidade; direitos fundamentais.
Abstract
This text aims to verify and demonstrate the possibility of a contractual distinction that can
ensure better protection to human life, moving away this legal institute of mere
patrimonialist analysis and approaching the light of fundamental rules that enlightens every
contemporary legal system, through consideration of the contract as "existential",
considering a case tried by the Court of Justice of São Paulo that used the classification of
contract proposed.
Keywords
Contract; existential; dignity; fundamental rights.
Sumário
1. Introdução – 2. Decisão judicial que trata do “contrato existencial” – 3. A nova realidade
contratual e a classificação do contrato em “existencial” – 3.1. Aspecto objetivo – a
essencialidade – 3.2. Aspecto subjetivo – a vulnerabilidade agravada – 4. A necessária
factualidade do contrato - o “contrato existencial” como equidade – 5. Considerações finais
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1. Introdução
O presente trabalho tem como propósito analisar a aplicação da distinção
contratual que evidencia a existência do “contrato existencial”, denominação de autoria do
professor Antônio Junqueira de Azevedo, o qual destacou que esse tipo de instituto jurídico
se diverge das demais espécies contratuais clássicas em razão tanto da essencialidade do
objeto contratado quanto da situação subjetiva existencial de uma das partes contratantes,
demonstrando uma verdadeira preocupação da dogmática do direito privado com a
intangibilidade da pessoa humana.
Para tal distinção, e com espoco de destacar a efetividade social dessa
classificação proposta, será analisado um determinado caso concreto julgado pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo, o qual assegurou a aplicação do “contrato existencial” e
proporcionou os efeitos jurídicos dessa classificação.
Em seguida, visando melhor compreensão do tema, por meio do método
dedutivo, será feita uma breve abordagem geral da conceituação do contrato como
“existencial”, passando, após, ao estudo mais específico acerca dos aspectos objetivos e
subjetivos necessários para o enquadramento nessa classificação, que preza especialmente
pelo humanismo no trato negocial contratual.
Ao fim, na conclusão, pretende-se apresentar a síntese do tema,
demonstrando como a aplicação desse tipo de classificação contratual se apoia na ideia de
equidade e, além disso, questionando se a decisão judicial em enfoque promoveu
efetivamente a devida tutela capaz de garantir uma vida humana mais digna à parte
contratante vulnerável em questão.
2. Decisão judicial que trata do “contrato existencial”
No ano de 2012 o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da 1ª
Câmara de Direito Privado, tendo como relator o Desembargador Claudio Godoy, julgou
um Agravo de Instrumento nº 0263248-73.201.8.26.00, oriundo da Comarca de São José
do Rio Preto, em que foi agravante o HB Saúde S/A e agravado o Sr. Afonso Ribeiro
Borges Filho, conforme ementa:
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Plano de saúde. Resolução contratual por inadimplemento. Ausência de
prova, por ora, de regular notificação do consumidor, em atendimento ao
art. 13, par. único, I, da Lei 9.656/98. Alegação de não-recebimento da
notificação. Parcelas em atraso aparentemente recebidas pela agravante.
Manutenção do contrato, liminarmente deferida, que se preserva. Agravo
de instrumento desprovido.1
O citado recurso condenava a liminar deferida em 1º grau, pelo juiz
Paulo Sergio Romero Vicente Rodrigues, a qual julgou pela manutenção do contrato de
plano de saúde firmado entre as partes, mesmo estando o beneficiário do plano
inadimplente com as prestações.
Desse modo, a empresa operadora do plano questionava no Agravo de
Instrumento a presença dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora que
justificassem a liminar, alegando que a resolução contratual havia decorrido da
inadimplência do consumidor por período superior a 60 (sessenta) dias, nos termos do
pactuado e da Lei 9.656/98 e, ainda assim, afirmando que mesmo notificado antes do 50º
dia sem pagamento, o beneficiário do plano permaneceu inerte, razão pela qual havia de
ser resolvida a relação contratual, isto é, diante da ausência de pagamento pontual das
mensalidades.
Entretanto, é importante frisar que a relação contratual da operadora do
plano de saúde com o consumidor já perdurava por mais de 11 (onze) anos e, além disso, o
paciente se encontrava no decorrer de um tratamento médico. Em outras palavras, o
consumidor mantinha com a empresa um contrato cativo de longa duração, de modo que,
conforme ensina a professora Claudia Lima Marques, nestes tipos de relações, a resolução
que em outras situações não seria abusiva, deve nestes contratos duradouros ser analisada e
reavaliada à luz dessa dependência e catividade do consumidor em relação ao fornecedor.2
Com isso, durante o voto, o relator afirma estar afastada a hipótese de
resolução automática do contrato conforme letra expressa do art. 13, parágrafo único,
inciso II, da Lei 9.656/98, impondo ao caso concreto em questão o exame com maior
1
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 0263248 73.2011.8.26.0000. Relator Cláudio Godoy. Julgamento: 06/03/2012. Primeira Câmara de Direito Privado.
Data da Publicação: 13/03/2012.
2
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações
contratuais. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
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cautela e rigor, em especial, a respeito da ocorrência ou não do prévio aviso que o mesmo
preceito legal prevê.
Com efeito, é exatamente neste ponto que a decisão revela a utilização da
distinção contratual proposta pelo presente texto, isto é, a diferenciação na interpretação e
aplicação do contrato quando de natureza existencial. Dessa forma, afirma o voto do
relator que:
[...] E sem dúvida que, considerada a característica do contrato em
questão, de evidente natureza existencial, ou não empresarial,
classificação que hoje assume papel relevante, inclusive para adequado
manejo da disciplina normativa contratual, tomado o bem da vida
subjacente ao ajuste, qual seja, o atendimento à saúde do consumidor, a
notificação prévia deve se reputar comprovadamente efetivada e
recebida.3
Em seguida, o relator afirma que no caso em julgamento a notificação
prévia sustentada pela empresa operadora do plano de saúde e que justificaria a resolução
do contrato é controversa. Neste sentido, o desembargador evidencia análise provisória e
superficial característica de uma decisão de Agravo de Instrumento, a qual não autoriza a
decisão em favor da empresa, ainda mais em razão da relevância da manutenção do plano
de saúde para o consumidor, pessoa humana vulnerável pela doença que lhe acometia.
Por tudo isso, o relator vota pelo indeferimento do efeito suspensivo, bem
como nega provimento ao mérito do recurso, sendo acompanhado pelos demais membros
da Câmara responsável pela elaboração do Acórdão.
3. A nova realidade contratual e a classificação do contrato em “existencial”
O estudo contratual clássico, sob a égide do Estado Liberal, se
preocupava principalmente com questões formais, exigindo que o negócio jurídico tivesse
3
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 026324873.2011.8.26.0000. Relator Cláudio Godoy. Julgamento: 06/03/2012. Primeira Câmara de Direito Privado.
Data da Publicação: 13/03/2012.
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existência, validade e eficácia. Em outras palavras, por uma análise estruturalista4 do
contrato, de cunho liberal e individualista, a atenção era voltada especialmente à
preservação e ao cumprimento da autonomia da vontade, sendo que a essencialidade para
as partes do objeto contratado pouca relevância possuía.
Vale lembrar que, durante esse período, os fundamentos que regiam as
relações contratuais eram baseados em torno da autonomia da vontade, sendo que se
especificavam em princípio da liberdade contratual ampla, da obrigatoriedade dos efeitos
contratuais e da relatividade de seus efeitos perante terceiros.5
Entretanto, esse entendimento, com fundamento basicamente liberal, não
podia prevalecer no contexto posterior aos movimentos sociais do final do século XIX e
início do século XX, sob pena de transformar o negócio jurídico em mero jogo econômico
entre as partes. É dizer que, em verdade, esse modelo de estrutura jurídica liberal
individualista revelou as desigualdades reais que ficavam ocultas6 no relacionamento
negocial, ou seja, as vontades declaradas nas relações contratuais nem sempre eram reais,
posto que, muitas das vezes, eram reflexo de imposições da parte que tinha posse de
maiores informações e poder econômico.
Com o advento do Estado Social,7 o direito contratual apresenta novos
princípios,8 como verdadeiras cláusulas gerais, que se aliam ao lado dos princípios
4
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
5
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do
mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e
responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. In. Estudos e pareceres
de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004.
6
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do contrato: novos princípios contratuais. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
7
É importante lembrar, quanto a essas alterações paradigmáticas na concepção de Estado, conforme o
professor Barroso, que “A constatação inevitável, desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade
sem ter conseguido ser liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e
excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo e injusto – mansa com os ricos
e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênios atrasados e com pressa.” In BARROSO, Luís Roberto.
Fundamentos Teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Direito
Administrativo, v. 225, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 8.
8
Apesar de grande parte dos autores civilistas afirmarem o surgimento desses princípios como novos no
contexto da promulgação do CDC e do Código Civil de 2002, é preciso atentar-se que, em verdade, o Direito
Romano já previa como mandamentos do Direito os seguintes ideais: i) dar a cada um o que é seu; ii) não
lesar ninguém; e iii) viver honestamente. Diante disso, têm-se pistas de que esses princípios tidos como
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clássicos, sobretudo sob a incidência dos valores de promoção da pessoa humana e do
solidarismo nas relações intersubjetivas, em busca da “ética da situação”. 9 Assim, ganham
maior relevância na dogmática civilista os princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio
contratual e da função social do contrato, como elementos que demonstram uma nova
realidade no trato das relações contratuais.10
Importante frisar que, mesmo diante do destaque dado a esses novos
princípios, as bases clássicas do período liberal individualista não podem ser descartadas
das interpretações contratuais, isto é, os novos princípios, ao invés de eliminarem, se
somam aos antigos, conforme ensina a professora Teresa de Negreiros:
Não parece acertado afirmar que os novos princípios são meramente
subsidiários, e por isso não justificariam uma reformulação nas bases da
teoria contratual como um todo; tampouco seria acertado afirmar-se que a
boa-fé, o equilíbrio econômico e a função social fizeram desaparecer os
princípios clássicos. Nem uma nem a outra dessas hipóteses, postas
assim, em termos absolutos, poderia ser confirmada.11
Neste sentido, considerando o Direito como um sistema “complexo”,12
tem-se pistas de que a ciência jurídica encontra-se inserida em um pluralismo, em que
novos e velhos princípios convivem simultaneamente. Em razão disso, é com base no caso
concreto que se define a aplicação preponderante dos princípios clássicos ou dos
contemporâneos da boa-fé, equilíbrio econômico e função social. A “centralidade do caso”
é o eixo em torno do qual gira o paradigma jurídico pós-moderno.13
Essa nova realidade contratual, no Brasil, surge como verdadeira
“mudança de mentalidade”14 no trato contratual, em especial com a promulgação da Lei nº
"novos” são tão somente uma releitura das bases contratuais, evidenciando valores que se tornaram
necessários para melhor medida de justiça na relação jurídica.
9
MARTINS-COSTA, Judith. O Novo Código Civil Brasileiro: em busca da ética da situação. Revista da
Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, 2001, p. 228.
10
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar. 2002.
11
Idem. p. 30.
12
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito como sistema complexo e de 2º ordem; sua autonomia. Ato
nulo e ato ilícito. Diferença de espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para
haver direito de indenização na responsabilidade civil. In. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo:
Saraiva, 2004.
13
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. In. Estudos e pareceres de
direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004.
14
AZEVEDO, Antônio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista da Faculdade de Direito da
USP, v. 87, 1992, p. 79-90.
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8.078/90, isto é, o Código de Defesa do Consumidor, o qual deu verdadeiro caráter ético às
relações privadas, incidindo num “novo regime das relações contratuais”.15
Com efeito, destaca Bruno Miragem que “A influência da regulação
jurídica do CDC acerca dos contratos de consumo é decisiva para toda a teoria dos
contratos no direito privado brasileiro e comparado. O direito do consumidor sedimenta,
pois, uma nova concepção social do contrato”.16
Ainda assim, o Código Civil de 2002, fundado nos princípios de
operabilidade, eticidade e socialidade, deu curso à ideia de funcionalização dos direitos,
relativizando o Código Civil brasileiro de 1916 que se baseava em ideais especialmente
patrimonialistas. No novel Código, destaque para a função social de seus institutos, a qual
alterou substancialmente a análise das relações contratuais.17
Diante do exposto, é preciso perceber que o contrato além de servir como
ferramenta básica para a típica atividade econômica, de transferência de riquezas, sob a
ótica de uma nova realidade contratual, passou também a ser um instrumento jurídico
essencial para a efetivação de diversos direitos fundamentais, isto é, o contrato privado,
ainda mais quando trata da cobertura de necessidades básicas à vida de um dos
contratantes, “humaniza-se”.18 Nos dizeres do professor Antônio Junqueira de Azevedo, é
o direito civil que, atualmente, por ter como objeto a vida e, em especial a vida e a
dignidade da pessoa humana, dá sentido e conteúdo a todo o sistema jurídico.19
Neste ponto, o direito privado se torna cada vez mais interligado às
diretrizes estabelecidas na Constituição Federal, ou seja, preocupado com a preservação
dos direitos fundamentais das pessoas.20 É diante dessa situação que o autor Antônio
15
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações
contratuais. Op. cit.
16
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do consumidor. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2014, p. 234.
17
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do contrato: novos princípios contratuais. Op. cit.
18
FERREIRA, Keila Pacheco; MARTINS, Fernando Rodrigues. Contratos existenciais e intangibilidade da
pessoa humana na órbita privada: homenagem ao pensamento vivo e imortal de Antônio Junqueira de
Azevedo. Revista de Direito do Consumidor, v. 79, 2011, p. 265-294.
19
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. Op. cit.
20
Claudia Lima Marques, citando o professor Erik Jayme, afirma que “os direitos fundamentais seriam as
novas ‘normas fundamentais’, e estes princípios constitucionais influenciariam o novo direito privado, a
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15
Junqueira de Azevedo propôs uma nova dicotomia contratual, própria do século XXI e
condizente com o contexto de pós-modernidade, a saber, “contrato existencial versus
contrato de lucro”.
Para este professor, é preciso uma análise funcional do contrato e dos
direitos subjetivos, de modo que haja uma distinção entre relações patrimoniais e
existenciais, uma vez que, sendo relações dicotômicas, exigem interpretações
diferenciadas. Assim, ensina o jurista:
[...] estou propugnando por uma nova dicotomia contratual – contratos
existenciais e contratos de lucro, a dicotomia do séc. XXI – porque essas
duas categorias contratuais não deve ser tratadas de maneira idêntica na
vida prática. Os contratos existenciais têm como uma das partes, ou
ambas, as pessoas naturais; essas pessoas estão visando a sua
subsistência. [...] [...] Ora, as pessoas naturais não são “descartáveis” e os
juízes têm que atender às suas necessidades fundamentais; é preciso
respeitar o direito à vida, à integridade física, à saúde, à habitação, etc. de
forma que cláusulas contratuais que prejudiquem esses bens podem ser
desconsideradas.21
Dessa maneira, entende o professor Junqueira como “contrato
existencial” aquele firmado entre pelo menos uma pessoa natural (ou sendo jurídica, sem
finalidade lucrativa), e que tenha o objeto contratual caracterizado pela subsistência desta
parte. Em outras palavras, deve ser observada a presença de pelo menos uma pessoa
humana (ou jurídica sem fim lucrativo) e a ausência de lucro no trato negocial.22
Quando se utiliza do parâmetro de “ausência de lucro” deve-se perceber
que o objeto a ser perseguido pelo contrato leva em conta a subsistência da parte, ou seja,
assim como ocorre nos contratos de atendimento à saúde, saneamento básico, energia
elétrica, acesso à moradia, à educação, ao trabalho e aos meios de comunicação, dentre
outros. São situações em que o objeto contratual é considerado essencial para a
ponto de o direito civil assumir um novo papel social, como limite, como protetor do indivíduo e como
inibidor de abusos” In MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo
regime das relações contratuais. Op. cit., 2011, p. 265.
21
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Diálogos com a doutrina: entrevista com Antonio Junqueira de
Azevedo. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 9, n. 34, abr./jun. 2008, p.304.
22
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista Trimestral de
Direito Civil , v. 45, jan./mar.2011, p. 103.
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preservação dos valores inerentes à dignidade da parte, ou seja, justificado pelo direito
fundamental a uma vida digna.
É importante destacar que o presente estudo optou pela utilização da
denominação “contrato existencial” dada pelo supracitado autor em razão da adequação da
terminologia à finalidade pretendida pela classificação, qual seja, destacar a necessidade e
importância de certos contratos à existência digna de determinada pessoa humana, bem
como, considerando Direito como ciência, a necessidade de uma terminologia capaz de
possibilitar o entendimento e a consequente aplicação.
Entretanto, é imperioso reconhecer que a professora Teresa Negreiros,23
partindo das observações de Pietro Perlingieri,24 já havia criticado as classificações
contratuais adotadas pela doutrina, propondo o que a autora denominou de “paradigma da
essencialidade”. Para esta autora, os juristas se preocupam demasiadamente com os
aspectos formais do contrato, como o tempo de duração, a quantidade de partes ou modos
de manifestação da vontade, sem dar a devida atenção ao essencial da relação negocial,
qual seja, o bem contratado, especificadamente, à sua maior ou menor utilidade
existencial.25
Neste sentido, destaca Teresa Negreiros que um contrato de compra e
venda de uma joia, por exemplo, pode ser considerado igual, sob a ótica da teoria
contratual clássica, a um contrato de compra e venda de um remédio. Entretanto, ao inserir
o direito privado no contexto de tutela da pessoa humana, esses dois tipos de contratos não
podem ser examinados sob o mesmo patamar.
Diante do exposto, é relevante evidenciar que o presente texto, por meio
da análise sistêmica do Direito e por meio do diálogo de complementariedade permitido
pelos ensinamentos da dogmática civilista supracitados, pretende propor reflexões focadas
23
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Op. cit.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de
Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
25
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Op. cit., p. 93.
24
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17
na ideia do contrato como um instrumento verdadeiramente humanista26 de tutela das
pessoas reconhecidamente vulneráveis.27
Isso significa que, para o presente trabalho, entender-se-á como “contrato
existencial” àquele firmado entre pelo menos uma (e necessariamente) pessoa humana, em
situação subjetiva de vulnerabilidade (aspecto subjetivo), e que tenha como objeto
contratual (aspecto objetivo) algo inerente à subsistência digna dessa pessoa humana, isto
é, à sua utilidade essencialmente existencial.
Destaca-se que a proposta de distinção de uma espécie contratual com
vistas à melhor medida de justiça já foi bastante discutida pela doutrina civilista ao tratar
do “contrato de adesão”. Em verdade, o contrato de adesão representou sob vários olhares
uma ruptura com a ordem contratual dita clássica e, conforme ensina a professora Teresa
de Negreiros, uma mudança do ponto de vista da análise contratual:
Assim, mesmo que se divirja acerca dos fatores a serem levados em conta
como determinantes da debilidade do aderente, o fato é que a categoria
em si do contrato de adesão é já uma inequívoca expressão de como a
desigualdade entre os contratantes, outrora irrelevante, se transformou em
um ponto de referência para a imputação de efeitos jurídicos da maior
importância. De fato, em torno da figura em exame gravitam uma série de
reflexões que têm como principal objeto a definição de práticas abusivas
ligadas a esta forma de contratação.28
Aliás, no tocante aos contratos de adesão, destaca o professor Antônio
Junqueira de Azevedo que:
Por força da renovação dos princípios contratuais e da frequência de sua
concretização, não se pode mais empregar a palavra “contrato” sem
consciência dessa nova dicotomia [contrato existencial/contrato
empresarial]; ela é operacional e está para o século XXI, como a de
“contrato paritário/contrato de adesão” esteve para o século XX.29
26
BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
MARQUES, Cláudia Lima e MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
28
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Op. cit. p. 370.
29
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Natureza jurídica do contrato de consórcio. Classificação dos atos
jurídicos quanto ao número de partes e quanto aos efeitos. Os contratos relacionais. A boa-fé nos contratos
relacionais. Contratos de duração. Alteração das circunstâncias e onerosidade excessiva. Sinalagma e
27
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Sendo assim, a proposta de distinguir o “contrato existencial” dos demais
tipos de contratos se revela como ferramenta para que esse negócio jurídico seja
instrumento de satisfação de necessidades básicas da pessoa contratante. Isto é, o “contrato
existencial” pretende tornar como critério relevante na hermenêutica a função exercida
pelo contrato em relação à esfera existencial do contratante.
Tudo isso revela o esforço em promover reflexões capazes de dar forma
jurídica às necessidades sociais, de modo a neutralizar a recorrente ameaça de
incongruência entre a teoria e a prática.
Aliás, para manter a coerência metodológica, imprescindível se faz a
análise dessa categoria contratual sob seus dois aspectos mais relevantes, quais sejam, o
aspecto objetivo e o subjetivo.
3.1. Aspecto objetivo – a essencialidade
Visando melhor compreensão da distinção proposta, primeiramente,
pretende-se descrever a necessidade de determinar os aspectos objetivos que compõe o
contrato existencial, ou seja, determinar em quais situações o objeto contratado enquadrase na classificação sugerida.
A princípio, é imperioso perceber que, ao tratar de “objeto”, o presente
estudo abordará tanto as situações em que há, na relação jurídica, uma negociação de um
produto ou de um serviço, de modo que “objeto” a que se refere é a ideia ampla de
elemento do contrato.
Feitas essas primeiras considerações, já é possível afirmar que, ao
analisar uma determinada negociação contratual, com base numa noção axio-teleológica30
resolução contratual. Resolução parcial do contrato. Função social do contrato. Revista dos Tribunais, v. 832,
2005, p. 115.
30
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 2. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
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do sistema normativo brasileiro, pode-se perceber que o objeto em discussão não deve ser
sempre levado em consideração pura e simplesmente pela sua significação patrimonial.
Isso quer dizer que um contrato de financiamento de uma casa essencial à
sobrevivência de uma determinada família, por exemplo, não pode ser analisado sob a
mesma ótica que interpretaria um contrato de financiamento de um carro de luxo. Destacase que esse tratamento diferenciado ao bem imóvel residencial imprescindível à entidade
familiar já possui previsão expressa no ordenamento brasileiro, a saber, pela Lei 8.009/90,
a qual discorre sobre a “impenhorabilidade do bem de família”.
Neste sentido, é essencial a observação de Pietro Perlingeri, ao
evidenciar a necessidade do direito privado levar em consideração, em especial por meio
da tutela, as situações existenciais. Assim, afirma o doutrinador que:
A concepção exclusivamente patrimonialista das relações privadas,
fundada sobre a distinção entre interesses de natureza patrimonial e de
natureza existencial, não responde aos valores inspiradores do
ordenamento jurídico vigente. Também os interesses que não tem caráter
patrimonial são juridicamente relevantes e tutelados pelo ordenamento.
Por outro lado, não faltam situações patrimoniais que, por sua ligação
estrita com o livre desenvolvimento da pessoa, assumem uma relevância
existencial.31
Diante do mencionado, é relevante destacar que não se pretende de
maneira exaustiva determinar quais são os objetos que, uma vez contratados, formam por
si só uma relação contratual existencial. Decretar, de forma absoluta, esse tipo de dogma
tornaria a distinção proposta no presente texto totalmente ineficaz no contexto de uma
sociedade pós-moderna, de alta comunicação e complexidade, em momento de verdadeira
“crise”.32
Com efeito, Perlingeri infere que “nenhuma previsão especial poderia ser
exaustiva porque deixaria de fora algumas manifestações e exigências das pessoas que, em
razão do progresso da sociedade, exigem uma consideração positiva”.33 Em seguida, o
31
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Op. cit., p. 760.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações
contratuais. Op. cit., p. 163.
33
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Op. cit., p. 765.
32
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mesmo autor afirma que, mesmo assim, não há impedimento para que o ordenamento
preveja autonomamente algumas expressões mais qualificantes, como o próprio direito à
saúde, ao estudo e ao trabalho.
Como se nota, é possível perceber no próprio sistema jurídico brasileiro
pistas de alguns temas que, evidentemente, são essenciais à vida humana digna. A
Constituição Federal de 1988, por exemplo, ao prever o direito dos trabalhadores ao salário
mínimo, em seu art. 7º, inciso IV, expressa algumas necessidades básicas que devem ser
supridas por essa base salarial, a saber:
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de
atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer
fim;
Com efeito, é possível extrair desse dispositivo que os contratos privados
que tenham como objeto de negociação algum produto ou serviço relacionado com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene e transporte possuem boas
chances de comporem a distinção que se pretende, isto é, qualificarem o contrato como
“existencial”.
Ademais, é interessante a observação do Claudio Godoy, segundo o qual:
Ora, ninguém há de duvidar que, mesmo regido pelo direito privado, o
contrato que os tem por objeto, o fornecimento de luz, água, gás e coleta
de esgotos seja pressuposto indispensável à preservação de uma vida
minimamente digna do indivíduo e de sua família. Aliás, pese embora a
obviedade da asserção, a jurisprudência já cuidou de assentá-lo inclusive
do ponto de vista do direito à saúde, um daqueles chamados direitos da
personalidade, cuja fonte axiológica é a dignidade humana, garantida com
os serviços em tela.34
Aliás, com base em observação semelhante, o professor Eduardo
Tomasevicius, ao analisar a aplicação da função social do contrato na doutrina e na
jurisprudência, afirma que:
34
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do contrato: novos princípios contratuais. Op. cit., p.
180.
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Quanto às questões de mérito referentes à aplicação desse princípio
[função social do contrato], os casos mais frequentes são aqueles
relacionados aos direitos sociais, como a saúde, educação e moradia,
assim como nos casos relacionados aos direitos fundamentais das
pessoas. Assim, pode-se remeter à distinção proposta por Antônio
Junqueira de Azevedo sobre contratos existenciais e contratos
empresariais.35
Ainda assim, é interessante a distinção feita pelo professor Iturraspe,
segundo a qual existem os bens vitais, sem os quais os humanos não podem viver, tais
como o alimento e a moradia; e os bens necessários à dignidade humana, como a educação
e a cultura; bens necessários à qualidade de vida (lazer), à tranquilidade ou a segurança,
etc.36
No mesmo viés dessas observações, a professora Teresa de Negreiros
oferece as reflexões sobre o “paradigma da essencialidade”, defendendo que:
[...] parece possível determinar que certos bens são essenciais por
natureza na medida em que demonstre o caráter universal de sua
imprescindibilidade para a vida humana: alimentação, vestuário,
habitação, tratamento médico e higiênico estão entre os bens [...]
indispensáveis ao atendimento das necessidades humanas básicas.37
Essa mesma autora, prosseguindo na sua abordagem quanto à
essencialidade de alguns bens, utilizou a diferenciação feita pelo Código Civil entre as
benfeitorias, a saber, necessárias, úteis e voluptuárias. Para a autora, assim como as
benfeitorias podem ser qualificadas quanto à sua relação de utilidade com o bem principal,
os objetos contratuais podem ser classificados quanto à sua utilidade existencial à pessoa
humana contratante, isto é, em relação às necessidades da pessoa. Neste sentido, destaca a
doutrinadora o instituto supramencionado do “bem de família”, afirmando que “em
nenhuma outra classificação o elemento funcional ganha maior importância do que em se
tratando do bem de família”.38
35
TOMASEVICIUS, Eduardo Filho. Uma década de aplicação da função social do contrato. Análise da
doutrina e da jurisprudência brasileiras. Revista dos Tribunais, v. 940, 2014. p. 49.
36
MOSSET ITURRASPE, Jorge. Apud. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Contratos relacionais,
existenciais e de lucro. Op. cit., p. 9.
37
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Op. cit., p. 405.
38
Ibidem. p. 428.
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Logo, Teresa de Negreiros conclui que, a depender da relevância do
objeto contratado à satisfação das necessidades existenciais da pessoa humana contratante,
a hermenêutica dessa relação jurídica deve ser diferenciada, sob a luz do “paradigma da
essencialidade”, de modo que o direito dos contratos se curva perante as necessidades
humanas fundamentais, a pessoa e a sua dignidade. Nesses termos, infere a autora que:
O paradigma da essencialidade constitui-se em um método de
compreensão do mundo contratual sob a luz de um novo critério de
classificação, de acordo com o qual os contratos finalizados à satisfação
de necessidades existenciais devem ser diferenciados daqueles outros
contratos cujo objeto seja a utilização ou a aquisição de bens não
essenciais à pessoa humana enquanto tal.39
Ora, ainda assim, é relevante perceber que, para uma classificação que
vise maior tutela humana da pessoa, é preciso deixar claro que não só a observação do
objeto contratado deve ser feita, afinal, o foco deve ser dado à pessoa contratante, em suas
necessidades existenciais.
A própria professora Teresa Negreiros faz essa observação, ao afirmar
que “a essencialidade do bem deve ser considerada como fator determinante na
vulnerabilidade da parte que contrata a sua utilização ou aquisição”.40
Sendo assim, é importante esclarecer que, para a classificação do
contrato em existencial, conforme pretende o texto, é preciso estar presente também o
elemento subjetivo, isto é, a vulnerabilidade agravada da pessoa que se propõe tutelar.
Neste sentindo, oportunas são as considerações de Perlingeri:
Na categoria do ser não existe dualidade entre sujeito e objeto, pois
ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica.
Quando o objeto de tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar: torna-se
uma necessidade lógica reconhecer, em razão da natureza especial do
39
40
Ibidem. p. 473.
Ibidem. p. 474.
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23
interesse protegido, que é exatamente a pessoa a constituir ao mesmo
tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da
relação. A tutela da pessoa não pode ser fracionada em isoladas fatispecie
concretas, em hipóteses autônomas não comunicáveis entre si, mas deve
ser apresentada como problema unitário, dado seu fundamento
representado pela unidade do valor da pessoa. Este não pode ser dividido
em tantos interesses, tantos bens, em situações isoladas [...].41
3.2. Aspecto subjetivo – a vulnerabilidade agravada
Superada a discrição dos aspectos objetivos que compõe o “contrato
existencial”, consistente na essencialidade do objeto contratado, resta relevante fazer
breves considerações a respeito do aspecto subjetivo da distinção proposta, de modo a
evidenciar a vulnerabilidade agravada da pessoa humana que se faz parte no contrato.
De maneira bem geral, a identificação da vulnerabilidade é uma técnica
legislativa que permite regras especiais de proteção, uma vez constatada fraqueza ou
debilidade específica em determinada pessoa, que lhe retira o patamar de igualdade nas
relações jurídicas.
Em outras palavras, a vulnerabilidade indica um sinal de desequilíbrio na
pessoa em sua situação jurídica, de modo a fundamentar um tratamento diferenciado de
tutela. Neste ponto, é possível perceber que:
A vulnerabilidade não é, pois, o fundamento das regras de proteção do
sujeito mais fraco, é apenas a “explicação” destas regras ou da atuação do
legislador, é a técnica para as aplicar bem, é a noção instrumental que
guia e ilumina a aplicação destas normas protetivas e reequilibradoras, à
procura do fundamento da Igualdade e da Justiça equitativa.42
Neste sentido, a professora Claudia Lima Marques afirma que o
surgimento de microssistemas específicos de proteção, tais como o Estatuto da Criança e
do Adolescente, o Estatuto do Idoso e até mesmo o CDC, estão ligados ao “paradigma da
diferença, da igualdade/igualização dos desiguais” isto é, da necessidade de tutelar de
forma desigual os desiguais.
41
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Op. cit., p. 764.
MARQUES, Cláudia Lima e MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis.
Op. cit., p.117.
42
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24
Tal fato é tendência mundial, comprovada pelos inúmeros tratados de
direitos humanos que tutelam os vulneráveis em determinada situação: crianças, idosos,
consumidores, trabalhadores, portadores de necessidades especiais, etc. Vale lembrar que:
Realmente, muito haveria a dizer sobre a proteção dos pobres e
analfabetos, dos locatários (que aqui, como na Alemanha da época, não
recebem a mesma proteção dos outros consumidores), das mulheres e dos
trabalhadores, por sua fraqueza estrutural e histórica, assim como, no
Brasil de hoje sobre a proteção especial dos negros, dos índios, dos
homossexuais e transexuais, dos estrangeiros, dos migrantes e dos
asilados, vulneráveis e/ou discriminados por uma série de fatos. Todos
estes, em algum momento, são “mais fracos” e merecem proteção ou
prestações positivas e ações afirmativas do Estado.43
Ainda assim, é possível perceber que, em determinadas situações
pessoais, há uma soma de fatores de vulnerabilidade, configurando a hipervulnerabilidade
(ou vulnerabilidade agravada).44 O próprio CDC já menciona essas situações em seus
artigos 37, §2º (publicidade abusiva aproveitando da imaturidade das crianças) e 39, IV
(situações de fraqueza e ignorância agravadas).45
Em outras palavras, a hipervulnerabilidade é um agravamento fático e
objetivo da fragilidade da pessoa humana em sua situação jurídica, por circunstâncias
pessoais, permanente ou temporária, como a doença, o analfabetismo ou a idade. Ou seja, é
uma somatória de situações de vulnerabilidade que despertam a necessidade ainda maior
de tratar os contratantes de modo diferenciado para proteger o mais débil. É o caso, por
exemplo, da jurisprudência analisada nesse trabalho, em que a pessoa humana além de
consumidor (vulnerabilidade prevista no próprio CDC), encontra-se em situação de
enfermidade. Assim, conforme se percebe, a análise do caso concreto desperta ainda mais a
sua relevância.
43
Ibidem. p. 09-10.
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do consumidor. Op. cit., p. 125.
45
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações
contratuais. Op. cit., p. 361.
44
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Diante disso, o sistema jurídico se organiza para maior tutela a essas
pessoas, a fim da concretização do princípio da igualdade e, consequentemente, a
fundamentação de um sistema jurídico que permita a promoção 46 do desenvolvimento da
personalidade humana. Em outras palavras, o sistema parte de uma noção de tratamento
diferenciado aos hipervulneráveis exatamente para, com fundamento na proteção da pessoa
humana, permitir a inclusão. É lembrar que, nos tempos atuais, “sobreviver, portanto, é
sempre menos um fator natural e sempre mais um fato social”.47
Em verdade, a hipervulnerabilidade indica o uso sistemático e
aprofundado de cláusulas principiológicas de equilíbrio e equidade Assim, afirma Claudia
Lima Marques que:
A identificação da diferença constitui um elemento decisivo para
distinguir o novo direito privado. O direito privado moderno, sobre
influência da filosofia e de Kant, foi construído sob o signo da igualdade,
uma vez que a noção de sujeito de direitos é concebida abstratamente,
com base no modelo de pessoa livre, autônoma e plenamente capaz.48
Tal fato justifica a preocupação da dogmática civilista, em especial diante
do Código Civil de 2002, com um valor essencial a um sistema jurídico aberto e
incompleto: a igualdade substancial.49
Logo, em um sistema jurídico em que a Constituição Federal é a base do
todo e, ainda assim, em que um dos seus objetivos fundamentais expressos é a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, o direito privado, mais especificadamente, o
direito contratual, torna-se também responsável pela proteção do ser humano por meio da
46
BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função: Novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela
Beccaria Versiani. Barueri: Manole, 2007.
47
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 75.
48
MARQUES, Cláudia Lima e MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis.
Op. cit., p.87.
49
MARTINS, Fernando Rodrigues. Direito Civil, Ideologia e pobreza. Temas Relevantes do Direito Civil
contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012.
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afirmação de pessoas livres e, acima disso, iguais, formal e materialmente, por meio de
uma relação jurídica pautada na cooperação solidária.
Em
outras
palavras,
o contrato
existencial, ao
reconhecer
a
hipervulnerabilidade da pessoa contratante, possibilita um tratamento diferenciado de
proteção, inclusive permitindo um regime de interferência judicial mais acentuado, a fim
de proporcionar à pessoa em situação de debilidade condições de justiça contratual,50
garantindo a tutela da pessoa humana e de seu mínimo existencial. Neste sentido:
É a proteção da pessoa humana que orienta o novo direito privado. Nesse
sentido, também (mas não apenas) sua dimensão econômica. Porém a
ênfase do novo direito privado é o destaque a dimensão existencial da
pessoa, de seus interesses extrapatrimoniais, da sua integridade física e
psíquica (veja-se, nesse sentido, a revalorização dos direitos da
personalidade), da sua afetividade (e suas repercussões jurídicas,
especialmente no direito de família – ou das famílias).51
4. A necessária factualidade do contrato - o “contrato existencial” como equidade
Superadas essas abordagens dogmáticas do “contrato existencial”, é
preciso evidenciar que, mesmo assim, não há como tomar como absoluta sua aplicação tão
somente pelo enquadramento teórico estrutural, isto é, pela aparência dos elementos
objetivos e subjetivos supracitados.
Ora, conforme já mencionado, o direito, enquanto ordem de segunda
grandeza, encontra-se inserido numa sociedade hipercomplexa, de modo que as inúmeras
situações variáveis da realidade social são capazes de alterar, na prática, toda a previsão
teórica.
50
MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 2009.
MARQUES, Cláudia Lima e MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. Op.
cit., p.80.
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Neste sentido, é dizer que o caso concreto revela sua grande importância,
a ser considerado como verdadeira fonte do Direito, sob a qual incidirão as normas e,
consequentemente, sob a qual irá ocorrer a concretização e individualização da norma
geral e abstrata.52 Assim, é diante da problematização da situação (tópica) que se torna
possível a análise jurídica do fato social.
Com efeito, as teorias da argumentação ganham maior repercussão no
estudo jurídico, como modelos de interpretação mais abertos a uma análise de validade
material das normas.53 Em verdade, a passagem para o “Estado constitucional”, com seu
enfoque nas normas fundamentais, gerou um incremento quantitativo e qualitativo da
exigência de justificação das decisões judiciais.54
Em razão disso, têm-se pistas da necessidade de considerar o Direito e os
problemas sociais em relação ao contexto, uma vez que há verdadeira vinculação das
normas jurídicas a certas necessidades práticas das pessoas humanas. Com isso, afirma
Atienza que:
O que o enfoque do Direito como argumentação procura fazer é conectar
todos esses elementos [formais, ideológicos, políticos, morais] de análise
a partir de uma concepção dinâmica, instrumental e “comprometida” do
Direito que parte da noção de conflito. O conflito é, efetivamente, a
origem do Direito, o que leva a vê-lo como um instrumento, uma técnica
(não necessariamente neutra) de tratamento (o que sempre implica
solução) de problemas de certo tipo.55
Em contrapartida, é imperioso reconhecer que para o pensamento
sistemático, o qual parte de uma totalidade, o caso concreto fica limitado a uma análise sob
a ótica do agrupamento normativo racional-apriorístico. Desse modo, ensina Lorenzetti que
“esse enfoque nos leva a indicar que ambas as perspectivas [casuística e sistemática] são
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito – Introdução à teoria e metódica estruturantes do
direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
53
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial. Fundamentos de direito. 2 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2010.
54
ATIENZA, Manuel.
O direito como argumentação. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro [org.].
Argumentação e Estado Constitucional. 1. ed. São Paulo: Ícone, 2012, p. 59.
55
Ibidem. p. 99.
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complementares, razão pela qual deve ser adotado um juízo prático, mas com vinculações
sistemáticas”.56
Diante disso, pode-se afirmar que, perante um caso concreto que
evidencie uma relação contratual “existencial”, é preciso, além da configuração sistemática
do aspecto objetivo, consistente na essencialidade do objeto negociado, e além da presença
da vulnerabilidade da pessoa humana contratante, como aspecto subjetivo, é necessária
uma análise factual da situação em debate. Em outras palavras, é a análise da problemática
do fato que permitirá a decisão como equidade.57
Ora, para melhor esclarecimento dessa abordagem proposta, é pertinente
demonstrar a acertada jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo que, diante de
uma discussão contratual que envolvia plano de saúde (aspecto objetivo) e uma contratante
idosa de 93 (noventa e três) anos de idade, vítima de um acidente vascular cerebral
(aspecto subjetivo), mesmo reconhecendo ser o contrato do tipo “existencial”, perante as
especificidades do caso concreto, optou, como medida de equidade, pela improcedência
parcial dos pedidos da consumidora idosa.58
No caso mencionado, a consumidora, ao efetuar o tratamento de sua
doença, decidiu pela contratação de médicos particulares de sua escolha, junto ao
renomado Hospital Sírio Libanês, fora da rede credenciada da empresa de plano de saúde.
Dessa forma, o juízo condenou a empresa operadora do plano a reembolsar os honorários
médicos tão somente dentro dos limites da contratação entabulada, uma vez que os valores
cobrados no Hospital Sírio Libanês excediam àqueles previstos nas cláusulas contratuais.
Neste ponto, o juízo, em decisão, expressa que:
56
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial. Fundamentos de direito. Op. cit., p. 76.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
58
“Plano de Saúde. Negativa de cobertura. Internação decorrente de acidente vascular cerebral (“AVC”) –
Segurada que optou por contratar médicos fora da rede credenciada. Reembolso de honorários de acordo com
os limites estabelecidos no contrato - Sessões de fisioterapia motora e serviço de enfermagem domiciliar 24
horas. Direito à cobertura reconhecido. Incidência da Súmula 90 do TJSP: “havendo expressa indicação
médica para a utilização dos serviços ‘home care”, revela-se abusiva a cláusula de exclusão inserida na
avença, que não pode prevalecer – Dano moral não configurado. Ação julgada parcialmente procedente.
Sentença reformada. Redistribuição dos ônus da sucumbência – Recurso provido em parte”. In. BRASIL.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 0259399-26.2007.8.26.0100. Relator Elliot
Akel. Julgamento: 09/10/2012. Primeira Câmara de Direito Privado. Data de publicação: 23/10/2012.
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Assim afirmo, posto que não obstante a idade avançada da autora e não
obstante estivesse esta última efetivamente vinculada a um contrato
existencial (cativo) cumpre assinalar que no caso em foco, a requerente
optou livremente por utilizar os serviços de profissionais médicos não
credenciados à requerida, mostrando-se então, infundado seu
inconformismo com a legítima limitação de cobertura, a qual nada
continha de abusiva ou ilegal.59
Com isso, é possível perceber que, mesmo diante de um “contrato
existencial”, a situação fática pode demonstrar que não há razões para uma interpretação
mais favorável à pessoa humana contratante, uma vez que, no caso em tela, a idosa optou
livremente por médicos não credenciados pelo plano, com honorários superiores aos
cobertos, fazendo com que o caso concreto demonstrasse que a medida de melhor equidade
era exatamente manter a obrigação pactuada.
Dessa maneira, conclui a decisão que “[...] ciente a autora a respeito da
limitação de reembolso de honorários médicos em situação de livre escolha, absolutamente
descabido falar-se em reembolso superior àquele já assumido pela ré, devendo a requerente
assumir os honorários médicos pendentes”.
5. Considerações finais
Por todo o mencionado, é possível perceber que é necessária, dentro do
sistema jurídico brasileiro, a aplicação da distinção contratual que evidencia a existência
do “contrato existencial” como forma de garantir a intangibilidade da pessoa humana.
Além disso, ficou evidente que a jurisprudência analisada do Tribunal de
Justiça de São Paulo, ao destacar a situação em debate como “existencial”, qualificou-se
dentro das propostas do presente trabalho.
Tal fato ficou evidente, uma vez que o conflito residia numa discussão
sobre um contrato de plano de saúde, em que a essencialidade do serviço (aspecto objetivo)
59
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 0259399-26.2007.8.26.0100.
Relator Elliot Akel. Julgamento: 09/10/2012. Primeira Câmara de Direito Privado. Data de publicação:
23/10/2012.
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é indiscutível, e, além disso, tratando-se de um consumidor em situação de doença, em
verdadeira posição de hipervulnerabildiade (aspecto subjetivo).
Dessa forma, pode-se concluir que, partindo da análise do problema,
diante dos fatos narrados pelo Acórdão, foi correta a aplicação da distinção do contrato em
“existencial”, como verdadeira medida de equidade, e em decorrência disso, cabível a
possibilidade de intervenção judicial mais apurada, tornando efetiva, no caso concreto a
proteção da pessoa humana.
Recebido em 24/07/2015
1º parecer em 02/08/2015
2º parecer em 03/08/2015
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A PRETENSÃO REIVINDICATÓRIA NA PERSPECTIVA DA FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE
The vindicatory claim from the perspective of the social role of the property
Felipe Pires Pereira
Doutorando em Direito Civil pela PUC-SP.
Mestre em Direito pela PUC-SP.
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Professor de Direito Processual Civil na Universidade
Católica de Santos (UniSantos).
Resumo
O presente estudo tem por objetivo analisar o tratamento civil-constitucional da função da
propriedade pública e privada no sistema jurídico brasileiro, propondo uma delimitação
mínima em relação ao conceito e as hipóteses em que a propriedade atende ao primado da
função social, partindo da premissa de sua destinação social ou econômica e seu
enquadramento como direito fundamental em consonância com os objetivos do Estado
brasileiro estipulados pelo legislador constituinte. Considerando a extensão da matéria em
nosso ordenamento jurídico e, também, as finalidades específicas desse pequeno ensaio, a
abordagem restringir-se-á, especificamente, a necessidade de apreciação da pretensão
reivindicatória, caso a caso, de acordo com o cumprimento da função social da propriedade
pelo reivindicante.
Palavras-chave
Propriedade; direito fundamental; função social; reivindicatória.
Abstract
The present study aims to analyze the legal treatment of the public and private property by
the civil and constitutional brasilian law, offering a minimal limitation in its conception
and the hypothesis in which the property obeys the rule of the social role, on the premise of
its social or economic destination and its framework as a fundamental right according to
the objectives of the brasilian state as fixed by the Constitution. Considering the extension
of the subject in our legal system and also the specific purposes of this succinct essay, the
approach is limited to the need of appraisal of the vindicatory claim, case by case,
according with the fulfillment of the social role by the claimant.
Keywords
Property; fundamental right; social role; vindicatory action.
Sumário
1. A função social da propriedade nas Constituições brasileiras – 2. Distinção entre
propriedade como direito fundamental e propriedade como direito patrimonial – 3. Função
social da propriedade pública – 3.1. Bens públicos de uso comum do povo – 3.2. Bens
públicos de uso especial – 3.3. Bens públicos dominicais – 4. A função social da
propriedade e o Plano Diretor – 5. A função social da propriedade como requisito da
pretensão reivindicatória – 6. Conclusão
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1. A função social da propriedade nas Constituições brasileiras
No Brasil, a função social da propriedade visitou pela primeira vez o
texto constitucional na Constituição Federal de 1934, promulgada sob a influência do
welfare state. Na época, o dispositivo sujeitava a propriedade ao interesse comum e social,
sem qualquer aplicabilidade no direito infraconstitucional.
Em 1937, a Constituição Federal manteve a função social da propriedade
nos mesmos termos que sua antecessora. Em 1946, após a reivindicação dos movimentos
populares pela redemocratização nacional, o texto constitucional condicionou, pela
primeira vez, o direito de propriedade ao bem-estar social, objetivando a justa distribuição
da propriedade, mas a norma constitucional ainda padecia de aplicabilidade concreta.
Na Constituição Federal de 1967, e respectiva Emenda nº 1, de 1969, a
função social da propriedade foi incluída entre os princípios da ordem econômica e social.
Finalmente, a Constituição Federal de 1988 inseriu a função social da propriedade entre os
direitos e garantias fundamentais do cidadão (artigo 5º, XXIII, CF), mantendo-a como
princípio informador da ordem econômica social (artigo 170, III, CF) e lhe atribuindo
aplicabilidade imediata e eficácia plena.1
O primeiro efeito da constitucionalização da função social da propriedade
logo em seguida ao direito de propriedade (artigo 5º, XXII, XXIII, artigo 170, II, III, CF) é
a publicização do regramento do direito à propriedade no ordenamento jurídico brasileiro,
com verdadeira mudança de paradigma na disciplina da propriedade até então vigente no
Código Civil de 1916.
Da análise da profunda pesquisa intitulada de “Panoramas da Posse da
Terra na América Latina”, de autoria de Letícia Marques Osório, elaborado pela Agência
“A norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade
imediata, como o são todos os princípios constitucionais. A própria jurisprudência já o reconhece. Realmente,
afirma-se a tese de que aquela norma “tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito da
propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa
instituição de Direito Público, especialmente, ainda que nem a doutrina nem a jurisprudência tenham
percebido seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada, como se nada tivesse mudado.” (SILVA, José
Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed. Malheiros: 2009, p. 282/283)
1
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33
UN HABITAT – Agência Habitat das Nações Unidas abrangendo aspectos da lei e
sistemas de posse da terra no Brasil, Colômbia, México e Nicarágua, verifica-se que dos
países da América Latina, apenas a Colômbia, o Brasil, o Peru e a Venezuela conferem
tratamento público a propriedade e reconhecem que ela está vinculada a uma função social.
Os outros países ainda conferem tratamento privado à propriedade e a definem como um
direito absoluto, regido integralmente pelo Código Civil.2
Esse tratamento publicístico da propriedade confirma o seu caráter de
direito complexo, com direitos e deveres perante a coletividade. De outro lado, o direito à
propriedade privada foi inserido no rol de direitos e garantias fundamentais do cidadão e se
mantém como princípio informador da ordem econômica, levantando dúvidas acerca da
compatibilização entre o direito fundamental de propriedade e a obrigação do proprietário
de observar uma função social à propriedade.
O antigo direito de propriedade, absoluto e subjetivo, sofreu derrogações
com a solidarização do direito. Nesse compasso, o direito de propriedade deixa de ser
apenas poder e ganha também contornos de dever, impondo ao proprietário que exerça o
direito de propriedade em conformidade com os anseios da coletividade, em consonância
com o fim social determinado pela Constituição.
A maior dificuldade no assunto descansa justamente em definir qual o
papel da função social na estrutura do direito de propriedade e quais as consequências que
podem advir ao proprietário em razão do descumprimento desse elemento constitutivo do
direito de propriedade. A seguir, tentaremos abordar o tema, principalmente sob a ótica de
um eventual conflito entre o direito de propriedade privada e o dever de satisfação do
interesse coletivo atinente a esse direito no âmbito das ações reivindicatórias.
2. Distinção entre propriedade como direito fundamental e propriedade como direito
patrimonial
2
OSÓRIO, Letícia Marques. Panoramas da posse da terra na América Latina. Posse da Terra, Direito à
Moradia e Gênero – Marco Nacional e Urbano: Brasil. Série Revisões sobre a Legislação, Posse da Terra e
Gênero: América Latina. Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, 2205, p. 6.
http://www.unhabitat.org/downloads/docs/Portuguese.pdf - acesso em 16/03/2011.
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É importante tentar estabelecer um critério minimamente capaz de
solucionar os conflitos envolvendo o direito de propriedade, constitucionalmente
assegurado pela nossa Carta Magna (artigos 5º, XXII, 170, II, CF), apesar da subjetividade
e do caráter fluido de tal definição, que deve ser reanalisada caso a caso pelo aplicador da
norma.
Na esteira do entendimento de Luigi Ferrajoli, existem quatro diferenças
principais entre as figuras da liberdade e da propriedade, que ao final irão contribuir, em
nossa visão, para solução dos aventados conflitos. Segundo o autor, “os direitos de adquirir
e dispor dos bens de propriedade” sintetizam direitos fundamentais e, portanto, universais,
enquanto o “direito de propriedade” é um direito patrimonial, logo, é um direito
singularizado.3
Adiante, o autor elenca outras três diferenças, assinalando que os direitos
fundamentais são indisponíveis, constituem normas constitucionais (em sua maioria) e são
verticais, pelo que caracterizam relações de caráter eminentemente publicístico. Por outro
lado, os direitos patrimoniais são disponíveis, criados por normas privadas e são
horizontais, denotando relações intersubjetivas de cunho civilístico.4
São exatamente essas características que impulsionam os direitos
fundamentais como vínculos substanciais normativamente impostos pela “garantia de
interesses e necessidades de todos estipulados como vitais, ou exatamente fundamentais (a
vida, a liberdade, a sobrevivência) tanto às decisões da maioria quanto ao livre mercado”, o
que o autor denomina de democracia substancial, em que a cidadania figura como base de
todos os direitos fundamentais.5
Desse breve introito sobre a diferenciação pretendida pelo autor, tiramos
duas grandes conclusões, que levaremos adiante no estudo da função social da
3
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Tradução de Alexandre Salim,
Alfredo Copetti Neto, Daniela Cadermatori, Hermes Zaneti Júnior, Sérgio Cadermatori. – Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 20.
4
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais, cit., p. 21/24.
5
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais, cit., p. 25/34.
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propriedade: a primeira confirma a noção de que o direito de liberdade e o de propriedade
não estão vinculados em uma mesma categoria, sendo que este último é representado na
categoria dos direitos civis e políticos apenas pelo direito de adquirir e dispor dos bens de
propriedade; e a segunda confirma que esse direito – de adquirir e dispor – caracteriza um
direito fundamental e o direito de propriedade, ao revés, um direito patrimonial.
Fábio
Konder
Comparato
identifica,
de
forma
semelhante,
a
possibilidade de uma propriedade constituir ou não um direito fundamental. Segundo o
autor, o objetivo do direito de propriedade é a garantia das condições mínimas de uma vida
digna e, por tal razão, o seu reconhecimento constitucional está essencialmente ligado a
função de proteção pessoal do indivíduo. Em sentido contrário, o autor constata “que nem
toda propriedade privada há de ser considerada direito fundamental e como tal protegida”.6
Ainda conforme Comparato, algumas vezes o direito designa
expressamente a propriedade como direito fundamental conferindo-lhe proteção especial,
como no caso da pequena e média propriedade rural (artigo 185, CF) ou quando garante o
acesso à propriedade pela posse funcionalizada na usucapião (artigos 183 e 191, CF). Com
exceção dessas hipóteses, o autor afirma que há necessidade de se verificar, caso a caso, se
a propriedade constitui um direito fundamental, denominando de evidente contrassenso a
extensão dessa qualificação “ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de uma gleba
urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de moradia
popular”, e nos casos de propriedade do bloco acionário.7 Nas palavras do próprio autor:
Escusa insistir no fato de que os direitos fundamentais protegem a
dignidade da pessoa humana e representam a contraposição da justiça ao
poder, em qualquer das suas espécies. Quando a propriedade não se
apresenta, concretamente, como uma garantia da liberdade humana, mas,
bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre
outrem, seria rematado absurdo que se lhe reconhecesse o estatuto de
direito humano, com todas as garantias inerentes a essa condição,
notadamente a de uma indenização na hipótese de desapropriação. É
preciso, enfim, reconhecer que a propriedade-poder, sobre não ter a
6
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In: A questão
agrária e a justiça. STROZAKE, Juvelino José (Org.). - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.
138/139.
7
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. cit., p. 40.
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natureza de direito humano, pode ser uma fonte de deveres fundamentais,
ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios.8
Nessa visão, a propriedade corresponde a um direito fundamental quando
o direito expressamente lhe atribui essa condição, seja para proteção ou promoção do
acesso à propriedade, ou quando essa qualificação puder ser atribuída em face das
circunstâncias do caso concreto.9
Outra distinção – não menos importante – foi elaborada por Eros Roberto
Grau, que define e classifica diversamente a propriedade privada com função social como
direito individual dos cidadãos (artigo 5º, XXII, XXII, CF), da propriedade privada com
função social da ordem econômica (artigo 170, II, III, CF). Para o autor, importa distinguir
a propriedade dotada de função individual da propriedade dotada de função social.10
Segundo afirma, a propriedade privada individual (artigo 5º, XXII, CF)
constitui um direito individual e, como tal, reflete um instrumento de promoção da
dignidade da pessoa humana pela garantia da subsistência individual e familiar, razão pela
qual não se justifica atribuir-lhe função social, senão as meras limitações decorrentes do
poder de polícia. Todavia, Grau excepciona a não incidência da função social sobre a
propriedade privada quando exceder ao caracterizável como função individual. Segundo o
autor, “Entenda-se como excedente desse padrão especialmente a propriedade detida para
fins de especulação ou acumulada sem destinação ao uso a que se destina”11
8
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. cit., p. 140.
Em sentido contrário, Francisco Eduardo LOUREIRO: “A posição acima adotada, embora respaldada em
fundamento histórico e inegável raciocínio lógico, esbarra na redação ampla e incondicionada do inciso XXII
do artigo 5º e no artigo 170 da Carta Política, que elevam o direito a propriedade como fundamental, sem
qualquer restrição ou limitação. Talvez a melhor posição seja a que limita a propriedade referida no artigo 5º
da Constituição Federal, ou seja, como direito de personalidade, àquelas situações em que cumpre a função
de garantia de direitos fundamentais da pessoa humana, que se denomina propriedade pessoal. Quanto às
demais categorias proprietárias, não-essenciais ao preenchimento de necessidades que atendam direitos
fundamentais, estão sob a disciplina geral da ordem econômica e financeira do artigo 170 e seguintes da
Carta Política. Ambas as categorias, ressalte-se, protegidas por normas de dignidade constitucional, apenas
em esferas distintas. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. –
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 101/102).
10
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 14ª edição,
revista e atualizada. Ed. Malheiros, 2010, p. 240.
11
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica, cit., p.
240/243.
9
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37
Em contrapartida, a propriedade privada da ordem econômica (artigo
170, II, CF) divide-se em bens de consumo e bens de produção. Os primeiros se esgotam
na própria fruição e, por isso, não possuem qualquer função social; os demais, bens de
produção, estão sujeitos a fase dinâmica do direito de propriedade e, consequentemente, a
função social da propriedade.12 A diferenciação ganha em clareza na exposição do próprio
Eros Grau, conforme trecho transcrito abaixo:
À propriedade dotada de função individual respeita o art. 5º, XXII, do
texto constitucional; de outra parte, a “propriedade que atenderá a sua
função social”, a que faz alusão o inciso seguinte – XXIII – só pode ser
aquela que exceda o padrão qualificador da propriedade dotada de função
individual. À propriedade-função social, que diretamente importa à
ordem econômica – propriedade dos bens de produção – respeita o
princípio inscrito no art. 170, III. No mais, quanto à inclusão do princípio
da garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os
princípios da ordem econômica, tem o condão de não apenas afetá-los
pela função social – conúbio entre os incisos II e III do art. 170 – mas,
além disso, de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da
justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para
a realização do fim de assegurar a todos existência digna.13
Sob outra ótica, José Afonso da Silva adverte que em razão do tratamento
publicístico conferido a propriedade pela Constituição Federal, ela não poderia ser
considerada como direito individual ou como instituição do direito privado, a exemplo do
que acontece na Constituição da Itália e de Portugal. Entretanto, com a inclusão da
propriedade e sua função social também entre os princípios da ordem econômica, “ela não
poderá mais ser considerada como puro direito individual, relativizando-se seu conteúdo e
significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à
vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social”.14
12
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica, cit., p. 242.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica, cit., p. 252.
14
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 270/271.
13
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Em análise diversa, ao menos no que toca a classificação da função social
da propriedade como direito difuso e coletivo para vinculação do direito de propriedade
privada como garantia dos cidadãos, colacionamos a obra de Lúcia Valle Figueiredo:
O direito de propriedade continua assegurado. Entretanto, também o está,
o direito coletivo e/ou difuso, que é atendido pela função social da
propriedade (artigo 5º, incisos XXII e XXIII). Não contém mais, a
democrática Constituição de 1988, breve referência à função social como
se fora um “cala-boca” às tensões político-sociais. Há de se concluir, a
lume dos novéis dispositivos, que o Ordenamento Básico brasileiro
acolhe a propriedade privada, porém a que não entra em rota de
colidência com o direito coletivo.15
Conjugando-se os entendimentos esposados acima, podemos encetar
algumas premissas básicas para o desenvolvimento deste tópico, em que buscaremos
parâmetros para a solução dos conflitos envolvendo a propriedade e sua função social.
A primeira delas gira em torno da delimitação do conteúdo do direito
fundamental da propriedade privada descrita no rol de direitos e deveres individuais e
coletivos esculpidos no artigo 5º, da Constituição Federal. Das obras analisadas, constatase que os dois primeiros autores visam, aparentemente, estabelecer uma diferenciação entre
direito à propriedade, consubstanciado no acesso à propriedade em decorrência dos direitos
de liberdade e como garantia das condições mínimas de uma vida digna (direito a um
patrimônio mínimo)16 ou por força de disposição normativa expressa que lhe atribua
proteção especial dentro do ordenamento jurídico.
15
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2ª edição. Ed. Malheiros, 2005, p. 25.
As consequências advindas da proteção inexpurgável ao patrimônio mínimo não conduzem, por via
oblíqua, a um estatuto da desigualdade por vantagem exagerada em favor de uma das partes da relação
jurídica. Antes, parte da igualdade (em sentido substancial) para enfrentar, no reconhecimento material das
desigualdades, o respeito à diferença sem deixar de alavancar mecanismos protetivos dos que são “menos
iguais”. O pólo nuclear do ordenamento jurídico passa a migrar da propriedade para a pessoa, em seu sentido
ontológico. Contudo, a tutela de um patrimônio mínimo nucleado na dignidade da pessoa humana, parecenos bem representar o novo sentido a ser dado ao patrimônio na perspectiva de um direito civil
repersonalizado – o qual tão-só se legitima a partir do momento em que observam os valores existenciais e
primordiais da pessoa, que hoje estão encartados em sede constitucional. (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto
jurídico do patrimônio mínimo. 2ª Edição. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 251).
16
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Identificamos o mesmo raciocínio no tratamento à propriedade como
técnica de acesso, exposta por Luciano de Camargo Penteado:
O direito à propriedade, no âmbito semântico capitulado na estrutura dos
direitos fundamentais, módulo estrutural indispensável das constituições
contemporâneas, está garantido como inviolável, ao lado de outros
direitos, que são a vida, liberdade, igualdade e segurança. Note-se que
todos os incisos aludem a termos de garantia daqueles direitos invioláveis
e todos imateriais e legados à natureza humana como tal. (...) Embora o
ter não defina o ser, embora o consumismo reinante leve muitos a assim
crer, o ter certos bens permite identificar-se como pessoa e exprimir a
personalidade, a qual, como estamos na terra dos homens, necessita de
pão e da terra. O direito à propriedade como direito-acesso, direitochave-de-abertura, é direito da personalidade e garante-se como se
garante a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, garantindo-se o ser
humano também na sua dimensão corporal e patrimonial, não meramente
bio-psiquica-social, descolada das necessidades materiais imediatas.17
Em contraposição, o direito de propriedade privada pode ter status de
direito fundamental ou apenas de direito patrimonial, este último não merecedor de tutela
avançada pelo ordenamento jurídico. Tal verificação, contudo, de fundamentalidade ou de
patrimonialidade do direito de propriedade versa sobre a garantia das necessidades básicas
aptas a promover a dignidade da pessoa humana em vez do exercício de poder sobre outros
indivíduos,18 e deve ocorrer na análise do caso concreto, assim como a apuração do
excesso da função individual, veiculada na terceira teoria, que traz na essência a proteção
do direito fundamental de propriedade (como função individual) já exercida pelo individuo
de forma isolada ou pela entidade familiar.
17
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.
162/164.
18
As finalidades da ação comunitária elevam à categoria de interesses protegidos situações por muito tempo
consideradas estranhas à relação proprietária (meio ambiente, desenvolvimento sustentável, qualidade de
vida, coesão econômico-social, proteção social). Esta sofre a influência dos princípios de proporcionalidade e
de razoabilidade: o primeiro a põe em uma relação de equidade com o mercado, impedindo que sua
patrimonialidade possa resultar de uma injusta desproporção entre valores proprietários, e entre estes a
empresa; o segundo requer que a relação proprietária seja permeada pela justiça, isto é, garanta a proteção
dos não proprietários mediante não somente a regulamentação dos podres proprietários, mas também por
meio de uma disciplina distributiva que favoreça a participação dos não proprietários na gestão dos bens, ou
seja, o acesso a eles. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria
Cristina de Cicco. – Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 945)
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Por fim, as últimas duas teorias reconhecem a submissão da propriedade
individual como direito fundamental vinculado diretamente à função social, a uma pela
inclusão deste princípio expressamente no capítulo da ordem econômica, refletindo na
natureza do instituto da propriedade constitucionalizada, e a duas pela funcionalização
constituir, em regra, um direito difuso e coletivo dos não proprietários.
Em complemento a esse último pensamento, Jacques Távora Alfonsin
afirma que a “À função social da propriedade corresponde, então, um interesse difuso dos
não proprietários, aí compreendidos, evidentemente, os necessitados de terra para se
alimentar e para morar”.19
Ao nosso sentir, apesar da disparidade entre as concepções oferecidas,
podemos extrair alguns parâmetros mínimos tendentes a orientar a resolução de conflitos
envolvendo proprietários e a coletividade em torno da fundamentalidade do direito de
propriedade pelo cumprimento da função social, sem perder de vista que “O estado social
de necessidade é o princípio balizador para a soluções de conflitos e interesses coletivos
referente a propriedade”.20
Partindo da premissa de que o direito de acesso à propriedade constitui
direito fundamental (universal, indisponível, publicístico e vertical), verifica-se que apenas
a propriedade funcionalizada atende aos primados do direito fundamental de propriedade
privada, já que a função social, em si mesma, também constitui um direito fundamental e
difuso de acesso à propriedade (artigo 5º, XXIII, CF) ao “exército de não proprietários
19
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à
alimentação e à moradia. Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 2003, p. 170.
20
SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento
constitucional da política urbana. Aplicações e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 2001, p.54.
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brasileiros que ainda precisam conquistar os seus direitos de cidadania, de modo que todos
os cidadãos sejam de fato iguais perante a lei”.21
Assim, concluímos, objetivamente, que existem duas “espécies”
diferentes de direito de propriedade, divididas entre as categorias de “direitos
fundamentais” e “direitos patrimoniais”.
Na primeira espécie, encontramos: (a) o direito fundamental à
propriedade (direito de acesso à propriedade); e (b) o direito fundamental de propriedade
como “direito de proteção ao patrimônio constituído”,22 que deve ser funcionalizado pelos
seguintes critérios: (b1) função individual de suprimento das necessidades básicas aptas a
promover a dignidade da pessoa humana; (b2) acumulação de bens com destinação de uso
adequado; (b3) utilização dos bens de produção de acordo com os ditames da justiça social
e da finalidade de assegurar a todos uma existência digna.
Na segunda espécie, encontramos apenas o direito de propriedade
desfuncionalizado, de caráter exclusivamente patrimonial, cuja desfuncionalização por ser
atribuída a duas hipóteses genéricas: (a) excesso da função individual em virtude de
especulação ou acumulação sem destinação ao uso adequado; (b) utilização dos bens de
produção em desacordo com os ditames da justiça social e da finalidade de assegurar a
todos uma existência digna.
Por esse contorno constitucional, a propriedade desfuncionalizada é
reconduzida ao patamar de direito patrimonial protegido pelo ordenamento jurídico, a bem
da verdade, mas que não merece o status de direito fundamental, restando superada em
casos concretos onde houver conflito de normas.
21
SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento
constitucional da política urbana. Aplicações e eficácia do plano diretor, cit., p. 57.
22
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas, cit., p. 166.
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42
Veja-se que aqui não se trata de ponderação de interesses visando à
resolução de conflitos em que, de um lado, está o direito fundamental de propriedade
(desfuncionalizado) e, de outro, o direito fundamental social à moradia e outros tantos
direitos de índole igualmente fundamental, mas sim de conflito entre normas que não estão
na mesma posição hierárquica vez que o direito de propriedade desfuncionalizado não goza
da fundamentalidade atinente aos direitos que visam garantir a dignidade da pessoa
humana. Sobre o tema, segue a opinião de Saule Junior:
O respeito a função social e o exercício da propriedade, somente terá
garantia constitucional se for condizente com os demais princípios e
objetivos fundamentais do Estado Brasileiro. Essa vinculação passa pela
sintonia da função social da propriedade com o exercício da cidadania,
com a realização da justiça social e com o objetivo da construção de uma
sociedade justa e solidária.23
Portanto, adiante, temos que a propriedade constitui um direito
fundamental merecedor de tutela privilegiada pelo ordenamento jurídico e garantida
constitucionalmente quando atende a sua função social.
Essa classificação não tem objetivo de esgotar o tema criando um novo
regime em relação à garantia do direito constitucional de propriedade, até porque as
violações ao cumprimento da função social da propriedade e, por via direta, do direito à
propriedade e de propriedade precisam ser identificadas de acordo com o caso em concreto
posto em juízo.
3. Função social da propriedade pública
23
SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento
constitucional da política urbana. Aplicações e eficácia do plano diretor, cit., p. 58.
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43
O artigo 98, e seguintes, do Código Civil, disciplinam o regramento dos
bens públicos no ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo, como tais, todos os bens
que pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno ou que não pertençam, desde
que afetados à prestação de um serviço público.24
A seguir, o artigo 99 do mesmo diploma legal descreve as espécies de
bens públicos, classificando-os em bens públicos de uso comum do povo, bens públicos de
uso especial e bens públicos dominicais, conceituado-os pela exemplificação.
Em resumo, extraímos da obra de Celso Antonio Bandeira de Mello que
os bens de uso comum do povo são aqueles “destinados ao uso comum de todos”, como
rios, mares, estradas, ruas e praças; os bens de uso especial são aqueles “onde se realiza a
atividade pública ou onde está à disposição dos administrados um serviço público”; e os
bens dominicais são “os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem
ao uso comum, nem ao uso especial, tais como os terrenos em geral, sobre os quais tem
senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta
de direito pessoal.”25
Os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial são
inalienáveis enquanto não desafetados da destinação pública a que estão vinculados, o que
poderá ser realizado por lei ou ato Poder Executivo, momento em que passam a integrar a
categoria bens dominicais.26
24
Essa ressalva ao dispositivo para incluir na categoria de bens públicos os bens particulares afetados à
prestação de um serviço público é fruto de sólida construção doutrinária, encampada na IV Jornada de
Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que editou o Enunciado CJF nº 287, assim redigido: “O critério
da classificação de bens indicado no CC 98 não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser
classificado como tal o bem pertencente a pessoa jurídica de direito privado afetado à prestação de serviços
públicos.”
25
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª Edição. Malheiros Editores.
2009, p. 904.
26
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 905.
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44
Essa visão geral da disciplina dos bens públicos é necessária para, enfim,
chegarmos ao ponto principal a ser enfrentado na questão, que é descobrir se os bens
públicos estão submetidos ao princípio da função social da propriedade e, em caso
positivo, qual seria essa função social.
A questão não é consenso na doutrina. A imputação de uma função social
aos bens públicos está intrinsecamente ligada à natureza e a finalidade desses bens, já que
constituem instrumento de atendimento às necessidades coletivas dos administrados, ou
seja, os bens públicos possuem finalidade essencialmente social, o que de plano esgotaria
qualquer possibilidade de agregar-lhes outra função social senão aquela contida na razão
de ser do bem público.
Sobre o tema, Eros Roberto Grau afirma que a função social da
propriedade tem como pressuposto necessário a propriedade privada. Para o autor, a ideia
da função social como forma de atribuir um conceito dinâmico a propriedade não traz
nenhum reflexo novo aos bens públicos, que já são dinamizados pelo exercício da função
pública.27 Em direção oposta, Silvio Luis Ferreira da Rocha expõe opinião divergente
sustentado que, de fato, o adequado atendimento dos fins públicos é o critério que deve
balizar o exercício do direito de propriedade pública, o que não exclui, porém, a
necessidade de valorar preventivamente esses fins já que o titular do domínio público está
obrigado a eles e não pode atuar no exclusivo interesse do titular do direito de
propriedade.28
Segundo o autor, o cerne da discussão está em saber se a finalidade
obrigatória da propriedade pública a imuniza dos efeitos da função social na relação
jurídica de propriedade; se limita a incidência da função social a certos bens, como os
dominicais; ou se não é incompatível com a função social da propriedade e pode receber
27
28
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica, cit., p. 237.
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública. Malheiros Editores. 2005, p. 121/126.
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dela alguma influência.29 Transcrevemos, pois, a resposta, dada a completude da
explicação:
Para nós, a finalidade cogente informadora do domínio público não
resulta na imunização dos efeitos emanados do princípio da função social
da propriedade, previsto no texto constitucional. Acreditamos que a
função social da propriedade é princípio constitucional que incide sobre
total e qualquer relação jurídica de domínio, pública ou privada, não
obstante reconheçamos ter havido um desenvolvimento maior dos efeitos
do princípio da função social no âmbito do instituto da propriedade
privada, justamente em razão do fato de o domínio público, desde a sua
existência e, agora, com maior intensidade, estar, de um modo ou de
outro, voltado sempre ao cumprimento de fins sociais, pois, como visto,
marcado pelo fim de permitir à coletividade o gozo de certas utilidades.
Afirmamos que o princípio da função social da propriedade ganhou
contornos nítidos no ordenamento jurídico e que os seus efeitos incidem,
também, sobre o domínio público, embora, às vezes, haja a necessidade
de harmonizar o princípio da função social a todas as categorias de bens
públicos. Acreditamos ser útil a classificação dos bens em uso comum,
uso especial e uso dominical por estabelecer diversidade de regimes
jurídicos que resultam em modos distintos de incidência do princípio da
função social a todas as categorias. Desta forma, negamos à finalidade
obrigatória que preside os bens públicos o efeito de imunizar a
propriedade pública das conseqüências decorrentes da concepção acerca
da função social da propriedade a certas categorias de bens públicos,
como os bens dominicais. Pelo contrário, admitimos que a finalidade que
informa a propriedade pública não se mostra incompatível com a função
social da propriedade, dela recebendo, portanto, influência.30
Portanto, seguindo a linha de reflexão e argumentação jurídica do
referido autor, o princípio da função social da propriedade irradia seus efeitos não só sobre
a propriedade privada, mas também sobre todas as categorias de propriedade pública. A
finalidade pública obrigatória contida na ideia de propriedade púbica pode preencher
totalmente o espaço de atendimento as necessidades coletivas a que está destinada ou,
eventualmente, na aferição do caso concreto (como aliás é um traço comum à função
social), pode receber influência da função social da propriedade para satisfação das
exigências humanas inadiáveis, que da mesma forma constituem finalidade pública.
29
30
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., 126/127.
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 127.
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46
Seguiremos, também, a proposta do autor de analisar a possibilidade e as
hipóteses de incidência da função social da propriedade sobre as categorias bens públicos
de forma individualizada, de modo a emprestar efetividade à função social nas
propriedades públicas de acordo com o caso em concreto.
3.1. Bens públicos de uso comum do povo
Como dissemos, os bens de uso comum são aqueles destinados ao uso de
todos, como o mar, as praças, os rios, as estradas e as ruas (artigo 99, I, CC). Esses bens
são marcados pelas características da generalidade (uso por todos sem consentimentos dos
demais, salvo determinadas restrições), da igualdade (uso de forma igualitária aos que
possam utilizar da coisa), da gratuidade (que pode ser mitigada), da transitoriedade e da
precariedade, todas extraídas da relação com os demais usuários em potencial.
Para Rocha, a utilização de modo igualitário dos bens de uso comum
pelos membros da coletividade sem qualquer ato prévio da administração pública
representa a finalidade pública desses bens e, ao mesmo tempo, a sua função social,
inclusive quando destinados a uso privativo que atenda ao interesse público.31
A princípio, portanto, a finalidade pública de utilização igualitária dos
bens de uso comum constitui a sua própria função social, imunizando, em tese, a exigência
de outra destinação ao bem para satisfação dos interesses da coletividade, que já estão
satisfeitos na finalidade original de uso comum. Todavia, em algumas situações peculiares,
a função social da propriedade pública pode moldar o comportamento do administrador,
fazendo-o optar pelo atendimento de outras demandas sem que isso deixe de resultar em
benefício à coletividade.
31
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 128/130.
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47
Em relação aos bens de uso comum, Rocha exemplifica utilizando os
casos de ocupação por família de baixa renda em áreas destinadas como espaços livres de
uso público nos loteamentos regularmente registrados, ato que transfere a propriedade
dessas áreas ao domínio público municipal.32 Antenado a essa realidade e às consequências
prejudiciais ao direito à moradia das famílias de baixa renda que dela normalmente advém,
o autor indaga qual solução atende ao princípio da função social da propriedade: o
desalojamento dos moradores e a manutenção da área como espaço livre ou a regularização
da permanência dos moradores no referido espaço?33
Nesse caso, há solução passível no ordenamento jurídico, sendo que o
princípio da função social da propriedade pública veio conformar a atividade discricionária
do Poder Público.
Conforme alerta o autor, a referida solução encontra-se na Medida
Provisória nº 2.220/2001,34 aplicável também às áreas de propriedade União para fins de
Artigo 22, da Lei nº 6.766/79 – Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do
Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos
urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.
33
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 130/131.
34
Artigo 1º, da MP nº 2.220/2001 - Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em
área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para
fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a
qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.A alegada inconstitucionalidade da aplicação da concessão
de uso especial para fins de moradia aos imóveis dos Estados, DF e Municípios foi afastada pela Câmara
Especial do TJSP no seguinte julgado: QUESTÃO DE FUNDO PRELIMINAR - Necessidade de
relativização de precedente acerca da matéria da arguição neste c. Órgão Especial. Inteligência do art. 481 do
Código de Processo Civil c.c. art. 191, parágrafo único, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo - Existência de "motivo relevante", consistente tanto na presença da Defensoria Pública
neste feito, enquanto instituição essencial à Justiça, quanto na necessidade de evitar a mantença de decisão
que representava vulneração a direito social fundamental - Ocorrência, ademais, de divergência
jurisprudencial acerca da cultura do procedente no Brasil - Questão de fundo preliminar afastada.
ARGUIÇAO DE INCONSTITUCIONALIDADE - Medida provisória n° 2.220/2001 - Concessão de uso
especial para fins de moradia (CUEM) - Alegada vulneração ao art. 24, I, da Constituição Federal
inocorrência - Contornos de verdadeira política pública de abrangência nacional - Dever do estado-juiz de
interpreta-lo conforme a constituição, a prestigiar a correta narrativa da norma fundante, decorrente, in casu,
de histórica reivindicação dos movimentos pela reforma urbana - Situação fundiária do país e, em especial,
do estado de São Paulo que desautoriza desregulamentação da matéria - Perigo de repetição do que se
observa no caso do direito de greve, na medida em que inexistiria, de forma inequívoca, interesse em
32
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regularização fundiária de interesse social nos termos do artigo 22-A da Lei nº
11.481/2007, que obriga, em atividade vinculada, o Poder Público titular de imóvel a
conceder o uso da área aos possuidores para fins de moradia, preenchidos os requisitos,
facultando-lhe a concessão do uso em local diverso em caso de ocupação de bem de uso
comum (artigo 5º, I, MP nº 2.220/2001). Segundo afirma, a faculdade da administração
gira em torno apenas da manutenção ou não do uso privativo no bem de uso comum, ao
passo que a função social da propriedade conformou a atuação do Poder Público, retirando
a discricionariedade da outorga do uso privativo de bem público para torná-lo vinculado,
ainda que com exercício em outro local, reconhecendo o direito de morar em imóvel
público.
O autor faz a mesma indagação em busca de uma solução funcionalizada
aos possuidores que não preencham os requisitos exigidos pela MP nº 2.220/2001,
justificando a resposta na perda das tutelas de urgência possessórias e reivindicatórias do
Poder Público pela incidência do princípio da função social da propriedade, de que já
fizemos menção.35
Ao fundamentar a incidência da função social da propriedade também
sobre bens de uso comum, através da supressão da proteção possessória do bem público, o
autor colaciona o seguinte Julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de lavra
do Desembargador Rui Stoco, que condicionou a reintegração ao abrigamento de crianças
deficientes,36 conforme arresto a seguir transcrito:
disciplinar assunto que toca aspectos patrimoniais de enorme relevo de estados e municípios - Risco,
ademais, de ver vulnerado direito social fundamental, na medida em que a CUEM representa uma das poucas
hipóteses legais de regularização fundiária de interesse social em imóveis públicos urbanos. Precedentes
doutrinários. Arguição de inconstitucionalidade rejeitada. (Relator(a): José Renato Nalini; Comarca: São
Paulo; Órgão julgador: Órgão Especial; Data do julgamento: 30/01/2013; Data de registro: 22/03/2013).
35
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 131.
36
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 132.
É impossível não comentar (para reflexão) o trecho extraído das razões recursais da Prefeitura Municipal de
São Paulo, mencionado por ROCHA, ao fundamentar a pretensão de reintegração liminar na posse. Segundo
a Municipalidade, trata-se de “espaço livre ilegalmente invadido por pessoas que consideram-se melhores
que outras e, por isso, acham que não precisam respeitar a lei e podem ocupar sem autorização bem púbico,
causando dano à coletividade e poluindo ainda mais o espaço urbano”.
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AGRAVO DE INSTRUMENTO – Reintegração de posse. Insurgência
do Município de São Paulo contra a determinação do Juízo de Origem,
que condicionou sejam adotados, pelo exequente, os meios necessários
para abrigar as crianças deficientes e portadoras de Síndrome de Down,
que estão alojadas em pequena e insignificante área pública, como
condição para efetivação da ordem de sua reintegração de posse. Decisão
mantida. Recurso não provido. O Estado não é – e nem pode ser um fim
em si mesmo. Também não se admite que esse mesmo Estado coloque a
propriedade de bens públicos com valor que supere a vida humana e o
bem-estar das pessoas que lhe outorgaram a prerrogativa de as proteger.
Ademais, a invasão de terras improdutivas e ou não aproveitadas
convenientes ou a ocupação de sobras mal utilizadas pelo Poder Público,
por parte de pessoas doentes e desamparadas, está a revelar um desacerto
social, um desvio de rumo e um indício de que alguma coisa não vai
muito bem na distribuição de renda e no cumprimento dos objetivos do
Estado, estabelecidos expressamente na Constituição Federal.37
Trata-se, realmente, de arresto de rara qualidade técnica e humanidade ao
reconhecer implicitamente que o Estado e a propriedade estatal não são um fim em si
mesmos, senão um instrumento de persecução das finalidades públicas almejadas pelo
legislador constituinte. Não vemos qual outra finalidade pública atenderia mais aos anseios
da coletividade do que a dignidade, a moradia e a saúde de crianças mentalmente enfermas,
mas ainda assim houve a necessidade condicionar o exercício da atividade pública pela
função social da propriedade em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Em verdade, na linha até aqui defendida, o não exercício da posse
funcionalizada decorrente da titularidade da área pelo Estado cederia em confronto ao
exercício de posse autônoma e voltada ao atendimento das necessidades básicas dos
ocupantes da área, implicando não só no condicionamento da reintegração ao abrigamento
dos possuidores, mas sim a perda da proteção possessória de urgência pelo Estado,
principalmente se não demonstrada a finalidade pública a ser alcançada com a reintegração
do imóvel.
TJSP – AI nº 335.347-5/00 - 3ª Câmara de Direito Privado – rel. Des. Rui Stoco, v.u., J. 21/10/2003 –
Boletim AASP nº 2.359, p. 3.001.
37
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50
Entretanto, em se tratando de propriedade pública destinada ao uso
comum, nos parece acertada a decisão de condicionar a reintegração de posse à
disponibilização de prévia alternativa de moradia aos possuidores, desde que adequada às
peculiaridades do caso, sob a perspectiva da dimensão negativa dos direitos fundamentais,
em especial do direito fundamental social à moradia.
Quanto à rejeição da pretensão reivindicatória, o autor sugere a arguição
pelos possuidores do instituto da desapropriação judicial (artigo 1.228, §4º e §5º, CC), que
por se tratar de modalidade de desapropriação não encontra vedação no ordenamento
jurídico para aplicação em face do Poder Público, como expressão da função social da
propriedade pública.38
Em que pese a opinião do autor nesse ponto, não acreditamos que tal
possibilidade seja exequível (apesar de juridicamente viável), não por discordar do autor,
mas em vista das dificuldades de aplicação do instituto a casos concretos, que serão
abordados quando estudarmos a possibilidade da perda da propriedade pelo abandono,
como fundamento de improcedência da pretensão reivindicatória.
3.2. Bens públicos de uso especial
No tocante aos bens de uso especial (artigo 99, II, CC), onde se realiza a
atividade pública ou está alocado o exercício de um serviço público, Rocha afirma que há
possibilidade de haver conflitos entre a destinação do serviço prestado em determinado
imóvel de uso especial em confronto com a função social da propriedade estabelecida no
38
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 134.
Confira-se, em sentido contrário, o enunciado nº CJF 83, da Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça
Federal, assim ementado: “Nas ações reivindicatórias propostas pelo Poder Público, não são aplicáveis nas
disposições constantes dos §§4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil.”
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plano diretor municipal, exemplificando com a utilização de uma extensa área pública
localizada em área densamente habitada como pátio de veículos emprestáveis à
administração.
A função social da propriedade exige a utilização do bem de acordo com
as funções sociais da cidade e em respeito as diretrizes de ordenação do solo traçadas pelo
Poder Público. Por essa razão, resta afastada a teoria que veda a aplicação do plano diretor
municipal aos demais entes federativos, submetendo-os a observância das diretrizes de uso
e ocupação do solo urbano, ainda que as sanções previstas no Estatuto da Cidade. Nesse
sentido, as palavras de Rocha:
Em conclusão, além da função social inerente à própria utilização do
bem, é possível submeter os bens de uso especial, guardados certos
cuidados, às regras derivadas da aplicação do princípio da função social,
entre elas, aquelas previstas na Constituição relativas à função social da
propriedade, à função social das cidades e à função social da propriedade
rural.39
Isto porque, as sanções de parcelamento ou edificação compulsória
(inciso I), IPTU progressivo no tempo (inciso II) e desapropriação pelo descumprimento da
função social da propriedade urbana (inciso III), aplicáveis ao proprietário que não
promoveu o adequado aproveitamento de imóvel em área incluída no plano diretor não são
totalmente compatíveis com as pessoas jurídicas de direito público.
O parcelamento e a edificação compulsória são perfeitamente aplicáveis
aos entes federativos, porém podem resultar inexequíveis pela falta de previsão
orçamentária específica ao cumprimento do dever de aproveitamento adequado do imóvel.
Da mesma forma, a aplicação do IPTU progressivo encontra óbice na imunidade tributária
entre entes federados descrita na Constituição Federal (artigo 150, VI, a, CF). Por fim, a
desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade poderia ser aplicada,
39
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 139/140.
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uma vez desconsiderada a vedação do artigo 2º, §2º, do Decreto Lei nº 3.3365/1941, se as
medidas anteriores resultarem inócuas.40
Inobstante as hipóteses mencionadas pelo autor, refletimos sobre a
possibilidade de aplicação da função social da propriedade pública em imóveis de uso
especial, também a eventuais bens desocupados e ainda não desafetados da finalidade de
prestação de serviço público, como nos terrenos de ferrovias desativadas, por exemplo, que
ainda estejam na propriedade das pessoas de direito público interno, de modo a satisfazer
as necessidades pessoais dos grupos socialmente vulneráveis no acesso à moradia.
3.3. Bens públicos dominicais
Diferentemente das outras duas espécies de bens públicos, os bens
públicos dominicais não estão afetados a finalidade pública, constituindo patrimônio
“disponível” do Estado.
De tal sorte que, segundo Rocha, os bens públicos dominicais submetemse a predominância da posse de terceiros, ao parcelamento e edificação compulsória e estão
sujeitos a usucapião em modalidades específicas. Nas palavras do autor:
Enquanto princípio, a função social da propriedade é princípio garantia
(art. 5º, XXIII) e princípio político conformador da organização
econômico social do Estado (arts. 170, III, 182, §2º e 186) e como tal
fornece diretrizes de interpretação das outras normas constitucionais.
Assim, as regras constitucionais que proíbem a usucapião de bens
públicos (arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da Constituição Federal)
devem ser interpretadas à luz do princípio da função social da
propriedade, que, como visto, informa, também, a propriedade pública.
40
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 141/144.
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(...) Logo, os arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da Constituição
Federal, devem receber interpretação conforme a Constituição e de
acordo com o princípio da função social da propriedade, o que implica a
releitura dos citados dispositivos da seguinte forma: os imóveis públicos
de uso comum e de uso especial não serão adquiridos por usucapião; os
imóveis públicos dominicais podem ser adquiridos por usucapião urbana,
rural e coletiva, previstas, respectivamente, nos arts. 183 e 191 da
Constituição, arts. 9º e 10 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e
arts. 1.239 e 1.240 do Código Civil.41
Como se vê, o autor invoca os critérios para resolução de conflitos de
normas constitucionais, tendo, de um lado, a função social da propriedade como
instrumento de acesso à propriedade (artigos 5º, XXIII, 170, III, 182 e 186, CF) e, de outro,
as normas constitucionais que vedam a usucapião de bens públicos (artigos 183, §3º, e 190,
CF), sustentando que as primeiras configuram normas-princípios e informam as demais,
que veiculam regras constitucionais.
4. A função social da propriedade e o Plano Diretor
Atualmente, há certo consenso entre os doutrinadores no sentido de que a
função social é elemento constitutivo da nova concepção de propriedade e não apenas
obrigação ou condição ao seu exercício, externa a sua estrutura. Segundo Cristiano Chaves
de Farias e Nelson Rosenvald:
A função social, portanto, é um princípio básico que incide no próprio
conteúdo do direito de propriedade, somando-se às quatro faculdades
conhecidas (usar, gozar, dispor e reivindicar). Em outras palavras,
converte-se em um quinto elemento da propriedade. Enquanto os quatro
elementos estruturais são estáticos, o elemento funcional da propriedade é
dinâmico e assume um decisivo papel de controle sobre os demais.42
41
ROCHA, Silvio Luis da. Função social da propriedade pública, cit., p. 151/159.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4ª Edição. – Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2007, p. 206.
42
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O artigo 1.228, do Código Civil, estabelece que ao proprietário são
atribuídas as faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa de quem injustamente a
possua ou detenha. As faculdades de gozar ou fruir (percepção de frutos), dispor (alienar
de forma gratuita ou onerosa) e o poder de reivindicar (direito de sequela) pressupõem de
certa forma o uso, já que quem retira dos bens os frutos ou o aliena a terceiro está
destinando-o a alguma finalidade, em cumprimento à função social da propriedade.
Nesse momento, cabe apenas ressaltar que a pretensão de reivindicação
do bem estará condicionado à análise sobre a justiça ou injustiça da posse alheia na
hipótese de ação possessória cuja causa de pedir verse sobre o direito de possuir decorrente
da propriedade (jus possidendi), ou da superveniência de causa extintiva do direito de
propriedade, como o abandono, na hipótese de ação petitória fundada no direito de
proprietário.
Todavia, por ora, interessa discorrer sobre a faculdade de usar intrínseca
à propriedade, vez que nela encontramos terreno fértil ao descumprimento da função social
da propriedade pelo uso do bem em desconformidade ao direito ou mesmo pela não
utilização do bem.
O uso é uma posição jurídica que confere liberdade ao proprietário de
valer-se do bem ao mesmo tempo em que afasta os membros da coletividade da discussão
sobre a sua utilização, desde que não caracterize ato ilícito ou abuso de direito. 43 Vale
destacar, desde já, que a função social da propriedade não se confunde com as restrições ao
direito de propriedade impostas pelas normas de direito de vizinhança e pelas normas de
natureza administrativa, que caracterizam obrigações de não-fazer, como limites negativos
e externos ao direito de propriedade.44
43
44
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas, cit., p. 153.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais, cit., p. 205/206.
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Mas que tipo de uso ou restrição está ligado à função social da
propriedade? Para os fins desse estudo, consideraremos que a função social da propriedade
no contexto urbano exige a utilização do solo para fins de moradia ou para fins de
exploração de atividade econômica, sendo que cabe ao Município disciplinar a ocupação
do solo e o exercício de atividade empresarial no respectivo plano diretor.45
Segundo o artigo 182, §2º, da Constituição Federal, “a propriedade
urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas no plano diretor”. O Estatuto da Cidade, por sua vez, tratou do plano
diretor em seu artigo 39, adicionando a finalidade expressa de assegurar o atendimento das
necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao
desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes gerais previstas no
artigo 2º, do próprio Estatuto.
O Estatuto da Cidade estabeleceu ainda que a política urbana tem por
objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
elencando a ordenação e o controle do uso do solo como diretriz geral para fins de
regulação da propriedade (artigo 2º, IV, EI), afim de evitar a utilização inadequada dos
imóveis urbanos; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento
do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura
urbana; a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos
geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; a retenção
especulativa de imóvel urbano que resulte na subutilização ou não utilização; a
deterioração das áreas urbanizadas; e a poluição e a degradação ambiental.
45
O solo urbano verifica-se como objeto de direito da propriedade funcionalmente direcionado ao social nas
situações em que esteja ocupado. O conceito constitucional se simplifica, até mesmo porque a matéria é
importante que seja disciplinada por normas administrativas e também municipais, respeitadas as
desigualdades regionais do País. O solo urbano destina-se a utilização para fins de moradia e para fins de
exercício de atividade empresarial e esta é melhor apurada pelo Poder Público municipal. (PENTEADO,
Luciano de Camargo. Direito das coisas, cit., p. 204).
Consigna-se que o artigo 225, da Constituição Federal, e o artigo 1.228, §1º, do Código Civil, impõem uma
função socioambiental a propriedade de conservação e uso adequado dos recursos naturais, para garantia e
integração dos direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente nas cidades.
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Deste modo, o constituinte originário e o legislador infraconstitucional
conferiram ao Município por meio da edição do plano diretor, que é considerado o
instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, a competência para fixação das
diretrizes gerais da política urbana municipal e das normas de regulação sobre “os limites,
as faculdades, as obrigações e as atividades que devem ser cumpridas pelos particulares
referentes ao direito de propriedade urbana”.46
O Plano Diretor é obrigatório para o desenvolvimento básico da política
urbana dos Municípios com mais de vinte mil habitantes (artigo 182, §1º, CF). Nesses
Municípios, o plano diretor evitará a utilização inadequada dos imóveis urbanos (uso em
desconformidade ao direito) e a retenção especulativa de imóvel urbano que resulte na
subutilização ou não utilização (desuso), além das outras formas supracitadas de controle e
uso do solo.
Como forma de coibir o proprietário a cumprir a função social da
propriedade nas hipóteses de subutilização ou não utilização do solo urbano, a própria
Constituição Federal facultou ao Poder Público Municipal a edição de lei específica para
exigir do proprietário o adequado aproveitamento de imóvel em área incluída no plano
diretor (artigo 182, §4º, CF), sob pena de, sucessivamente, sofrer as sanções de
parcelamento ou edificação compulsória (inciso I), IPTU progressivo no tempo (inciso II)
e desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade urbana (inciso III),
que foram regulamentados pelos artigos 5º/8º, do Estatuto da Cidade.47
SAULE JUNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade e Plano Diretor – Possibilidades de uma nova ordem legal
urbana justa e democrática. In: Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades
brasileiras. OSÓRIO, Letícia Marques (Org). Sérgio Antonio Fabris Editor. – Porto Alegre: 2002, p. 78.
47
Marcos Alcino de Azevedo TORRES esclarece que na propriedade urbana, o sentido de solo não edificado,
subutilizado ou não utilizado “é um terreno livre porque não está edificado ou, se edificado, por estar
subutilizado ou não utilizado, sendo que estas duas hipóteses aplicáveis tanto para o solo não edificado
quanto para o imóvel edificado. Há uma inatividade do titular que sofre uma punição. (TORRES, Marcos
Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse. Um confronto em torno da função social. 2ª Edição. – Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 246).
46
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Vê-se, pois, que o sistema é coerente ao conferir a competência para
promover a política urbana de ordenação e pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade para garantia do bem-estar dos habitantes aos Municípios (artigo 182, caput, CF),
mediante a regulação da função social da propriedade, cujo descumprimento do dever de
uso (subutilização ou não utilização) está sujeito a imposição de sanções pelo Poder
Público.
Entretanto, cabe indagar a respeito da possibilidade de descumprimento
da função social da propriedade independentemente das exigências do plano diretor, em se
tratando o direito de propriedade privada de garantia constitucional? De que maneira
podemos sindicar o cumprimento da função social da propriedade em Municípios com
menos de vinte mil habitantes? Como fazê-lo nos Municípios que possuem plano diretor
padronizado e inadequado ao desenvolvimento da política urbana local? Como aplicar
consequências jurídicas ao proprietário que não ocupa ou utiliza o solo urbano em
detrimento de milhões de pessoas sem teto, com a condescendência do Poder Público
municipal que não edita a lei específica para aplicação das sanções descritas na
Constituição Federal?
Alguns entendimentos vedam a análise sobre o cumprimento da função
social da propriedade pela ausência de disposição expressa no plano diretor. Confira-se:
POSSESSÓRIA – Reintegração de posse – Invasão da propriedade –
Movimento político que não encontra respaldo na ordem jurídica –
Função social da propriedade urbana, cujo cumprimento compete ser
verificado pelo Poder Público Municipal, à luz de seu Plano Diretor –
Desapropriação que cabe ao Município mediante prévia e justa
indenização – Inexistência de direito líquido e certo em tal invasão –
Denegada a segurança.48
48
TJRS – MS 195.050.976 – 4ª Câmara Cível – Rel. Juiz Moacir L. Haeser – j. 29/06.1995.
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Em sentido oposto, cremos já ter dado o primeiro passo para responder as
questões ao diferenciar o direito fundamental de propriedade do direito patrimonial de
propriedade. Como estamos tratando da função social da propriedade urbana a luz da
utilização do solo para fins de moradia e de exploração econômica, o direito fundamental
de propriedade estará protegido de acordo com os critérios erigidos anteriormente para
diferenciá-lo do direito patrimonial de propriedade, em conjunto com essas finalidades.
Assim, a moradia do próprio proprietário (função individual de
suprimento das necessidades básicas), a destinação adequada dos bens excedentes
(locação, comodato, instituição de direitos reais de uso e fruição, etc) e a utilização dos
bens de produção de acordo com os ditames da justiça social e da finalidade de assegurar a
todos uma existência digna no caso de exploração de atividade econômica resguardam a
garantia constitucional da propriedade como direito fundamental.
Restariam sindicados, portanto, independentemente de previsão no plano
diretor municipal apenas os casos de excesso da função individual em virtude de
especulação ou acumulação sem destinação ao uso adequado (desuso) ou pela utilização
dos bens de produção em desacordo com os ditames da justiça social e da finalidade de
assegurar a todos uma existência digna, bens esses que não gozariam de proteção
qualificada pelo ordenamento jurídico em razão do descumprimento da função social da
propriedade.
Para superar o alegado óbice pela falta de lei regulamentadora do
dispositivo constitucional ora comentado (artigo 182, §4º, CF), é preciso recordar que há
um dever fundamental no direito de propriedade (sua função social), ligado às
necessidades sociais. Com essa premissa Fábio Konder Comparato justifica a
obrigatoriedade dos proprietários não atingidos pelo plano diretor de dar cumprimento à
norma constitucional que veicula a função social da propriedade, nos seguintes termos:
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A existência de alguém como sujeito ativo de uma relação jurídica
implica, obviamente, a de um sujeito passivo, e vice-versa. Não se pode,
pois, reconhecer que alguém possui deveres constitucionais, sem ao
mesmo tempo postular a existência de um titular do direito
correspondente. Em consequência, quando a Constituição reconhece que
as normas definidoras de direitos fundamentais têm aplicação imediata,
ela está implicitamente reconhecendo a situação inversa; vale dizer, a
exigibilidade dos deveres fundamentais é também imediata, dispensando
a intervenção legislativa. É claro que o legislador pode, nessa matéria,
incorrer em inconstitucionalidade por omissão, mas esta não será nunca
obstáculo à aplicação direta e imediata das normas constitucionais.49
Esse entendimento é compartilhado por Marcos Alcindo de Azevedo
Torres, que também enxerga na função social da propriedade um princípio de
aplicabilidade imediata:
Não há que se esperar qualquer legislação complementar à Constituição
ou ao Código Civil para dar efetividade ao princípio da função social
porque, como garantia fundamental (art.5º inc. XXIII), tem ele
aplicabilidade imediata, nos termos do §1º do mesmo artigo, o que impõe
ao intérprete e aplicador encontrar métodos de conjugar o privado com o
social no direito de propriedade.50
Ainda que sejam desconsiderados os argumentos lançados até aqui para
justificar a desnecessidade de previsão específica no plano diretor sobre as exigências
municipais em face dos proprietários de imóveis, lembramos, como já fixado alhures, que
o Poder Judiciário possui legitimidade constitucional para suprir as omissões estatais na
concretização dos direitos fundamentais, dando contorno à função social da propriedade
nos conflitos entre proprietários e não proprietários urbanos, em busca da igualdade
material entre os cidadãos e da afirmação da democracia social.
49
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, cit. p.
142/143.
50
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse. Um confronto em torno da função social,
cit., p. 255.
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Destarte, o desuso da propriedade urbana, principalmente em locais de
grande déficit habitacional, caracteriza o descumprimento da função social da propriedade,
cabendo ao Poder Judiciário impor as sanções decorrentes da desfuncionalização do
imóvel urbano. É preciso revisitar a faculdade de usar (poder) contida na estrutura do
direito de propriedade a luz da função social adequando-a às necessidades básicas de
moradia da população social e economicamente vulnerável, tendo por consequência a
alteração semântica e conceitual da noção de faculdade na propriedade complexa,
impondo-lhe o caráter de poder-dever.
A natureza e o direito titulado de propriedade são de índole social, tendo
como fins transcendentes do solo urbano o poder-dever de uso, que não interessa somente
ao proprietário, mas também a todos que possam ser afetados pelo exercício desse direito,
cuja satisfação deve atender a urgências inadiáveis.51 A função social da propriedade retira
do proprietário a faculdade de não usar a coisa em benefício da coletividade, sendo esse o
principal
fundamento
à
imposição
de
sanções
ao
proprietário
desidioso,
independentemente de disposição expressa no plano diretor que determine providências em
face dessa omissão. Sobre o tema, valemo-nos mais uma vez da lição de Torres:
Ora, não reconhecer que o princípio da função social altera a faculdade de
uso, eliminando o não-uso, impondo comportamento positivo ao titular,
no sentido de dar utilidade racional, seja no interesse individual, seja no
interesse coletivo, corresponderia verdadeiramente a ignorar a própria
existência do princípio da função social. Assim, não se pode tolerar que o
titular de bem o tenha para fins especulativos, a título de capital, ao passo
que, lançando mão no momento que bem entender, deixa o imóvel urbano
sem utilização alguma, como terreno baldio ou vazio. Deverá, portanto,
construir ou parcelar, ou ceder gratuita ou onerosamente a alguém que o
faça, trazendo uma utilidade para a comunidade. Se possui bens além
daqueles necessários à sua subsistência e de sua família, extrapolando sua
função individual, deverá então dar uma destinação social adequada. Se a
utilidade do imóvel refere-se à moradia, que o destine a locação,
comodato ou aliene. Da mesma forma se possui imóvel com estrutura
51
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à
alimentação e à moradia, p. 176.
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comercial, que atenda ao fim econômico, possibilitando a exploração por
outrem da atividade que lhe é peculiar.52
Diante do que acima se lançou, concluímos que a função social da
propriedade urbana impõe a ocupação e a utilização do solo urbano para fins de moradia. O
descumprimento desse dever fundamental é resultado do excesso da função individual em
virtude de especulação ou acumulação sem destinação ao uso adequado (desuso), que faz
com que a propriedade perca o status de direito fundamental para assumir feição de direito
unicamente patrimonial, que deve ser protegido como tal.
Decerto, contudo, tal direito patrimonial não deve prevalecer no
julgamento de casos concretos pelo Poder Judiciário em homenagem a superioridade
hierárquica e material do direito fundamental à moradia, bem como em atendimento aos
princípios constitucionais da política urbana estudados. Isto posto, identificamos que, em
alguns casos, há aplicação de sanção ao proprietário desidioso pelo próprio ordenamento
jurídico (usucapião, parcelamento e edificação compulsória, IPTU progressivo e
desapropriação) e em outros casos concretos essas sanções podem ser aplicadas
diretamente pelo Poder Judiciário.
5. A função social da propriedade como requisito da pretensão reivindicatória
O descumprimento da posse decorrente da propriedade (posse real) em
confronto com o exercício de posse com função social pelo não proprietário, acarreta a
52
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse. Um confronto em torno da função social,
cit., p. 255.
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perda da propriedade pela usucapião, quer nas formas extraordinárias ou ordinárias (artigo
1238, 1242, e respectivos parágrafos) ou, principalmente, nas formas especiais da
usucapião urbana (artigo 183, CF, artigo 1.240, CC e artigo 9º, EC), da usucapião rural
(artigo 191, CF e artigo 1.239, CC), e da usucapião coletiva (artigo 10, EC), bem como na
desapropriação judicial (artigo 1.228, §4º e §5º, CC).
A Constituição Federal facultou ao Poder Público Municipal a edição de
lei específica para exigir do proprietário o adequado aproveitamento de imóvel em área
incluída no plano diretor (artigo 182, §4º, CF), sob pena de, sucessivamente, sofrer as
sanções de parcelamento ou edificação compulsória (inciso I), IPTU progressivo no tempo
(inciso II) e desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade urbana
(inciso III), que foram regulamentados pelos artigos 5º/8º, do Estatuto da Cidade.
Na posse fática (autônoma e desvinculada do direito de propriedade),
verificada no período entre o ingresso na posse e sua transformação em usucapião pela
propriedade, o proprietário que não cumpre a função social da propriedade
(consubstanciada na posse) está sujeito a perda da posse decorrente da propriedade (ius
possidendi) e com ela toda e qualquer proteção possessória decorrente do direito de
propriedade, sem prejuízo, ao final, da perda da propriedade pela consumação da
usucapião em favor do novo possuidor.
Quanto a pretensão reivindicatória, há possibilidade de sanções
específicas ao direito de propriedade desfuncionalizado em favor do possuidor que exerce
posse com função social. Isto porque, se o proprietário perdeu a proteção possessória
certamente lançará mão da ação reivindicatória para por em prática o direito de sequela e
reivindicar o bem das mãos do possuidor, com fundamento no direito de propriedade
(artigo 1.228. CC).
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Não obstante a disposição expressa do Código Civil há de se observar,
também aqui, a releitura que a função social da propriedade empresta ao jus reivindicandi
clássico, conforme lição de Francisco Cardozo Oliveira:
Torna-se necessário demonstrar que, na qualidade de proprietário da
coisa, está a exercer os poderes proprietários de acordo com os objetivos
albergados pelo princípio da função social, sem o que não pode dispor de
tutela para reaver a coisa de quem dela se apropriou e passou a possuí-la.
A ação reivindicatória deve comportar também o exame dos interesses
não proprietários envolvidos na situação proprietária concreta, que podem
ser medidos através do direito constitucional de ser proprietário.53
Conclui-se, portanto, que da mesma forma que o descumprimento da
função social da posse impede a concessão da proteção possessória ao proprietário que a
disputa com base no direito de possuir, a função social da propriedade obsta, ao menos, a
concessão da tutela de urgência em favor do proprietário na ação reivindicatória,
priorizando o direito fundamental à propriedade dos não proprietários (acesso à
propriedade) em detrimento do direito patrimonial de propriedade em razão do excesso da
função individual em virtude de especulação ou acumulação sem destinação ao uso
adequado (desuso) ou pela utilização dos bens de produção em desacordo com os ditames
da justiça social e da finalidade de assegurar a todos uma existência digna.
Sem embargo desse posicionamento, temos como certo que é possível
ainda fundamentar a improcedência definitiva (por sentença de mérito) da pretensão
reivindicatória em determinados casos, o que pressupõe a análise crítica do instituto da
desapropriação judicial. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado:
AÇÃO REINVINDICATÓRIA – Lotes de terreno transformados em
favela dotada de equipamentos urbanos – Função Social da Propriedade –
Direito de Indenização dos Proprietários – Lotes de Terrenos Urbanos
tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados.
Fazendo assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos
lotes urbanos caracteriza uso antissocial da propriedade, afastado que se
apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade.
53
OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 302.
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Permanece, todavia, o direito dos proprietários pleitear a indenização
contra quem de direito.54
Nesse acórdão, o TJSP reconheceu o abandono da propriedade pelo
descumprimento de sua função social, ante a ocupação dos lotes por moradores baixa renda
para fins de moradia, que contava com ao menos três serviços públicos instalados, tais
como água, iluminação pública e luz domiciliar, razão pela qual julgou improcedente
pedido reivindicatório formulado pelos antigos proprietários do imóvel. Interessante, nesse
ponto, transcrever trecho do voto condutor, proferido pelo Des. José Osório:
8. No caso dos autos, a retomada física é também inviável. O
desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas
inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já
consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social,
sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do
Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente
impossível é juridicamente impossível. (...) O princípio da função social
atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio,
previstos no artigo 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o
princípio da função social introduz outro interesse (social) que pode não
coincidir com os interesses dos proprietários. (...) Assim, o referido
princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo
consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena
eficácia nos litígios grave que lhe são submetidos. 10 – No caso dos
autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus
antecessores, de forma anti-social. O loteamento – pelo menos no que diz
respeito aos lotes reivindicandos e suas imediações – ficou praticamente
abandonado por mais de vinte anos; não foram implantados equipamentos
urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos
lotes, em 1978/1979, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca
expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se
pode prestigiar tal comportamento de proprietários”.
Apesar de não apreciar o mérito do recurso especial interposto em face
deste acórdão, o Superior Tribunal de Justiça ratificou o entendimento de abandono do
bem em razão do descumprimento da função social da propriedade, em acórdão assim
ementado:
54
TJSP - 8ª Câmara – Ap. Cível 212.726-1-8-São Paulo - Rel. Des. José Osório - J. 16.12.1994.
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AÇÃO REIVINDICATÓRIA – TERRENOS DE LOTEAMENTOS
SITUADOS EM ÁREAS FAVELIZADA – PERECIMENTO DO
DIREITO DE PROPRIEDADE – ABANDONO – CC, ARTS. 524, 589,
77 E 78 – MATÉRIA DE FATO – REEXAME – IMPOSSIBILIDADE –
SÚMULA 7-STJ – I – O direito de propriedade assegurado no art. 524 do
CC anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono
de terrenos de loteamento que não chegou a ser completamente
implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com
a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos,
consolidada, no local, um nova realidade social e urbanística,
consubstanciando a hipóteses prevista nos arts. 589 c/c 77 e 78, da
mesma lei substantiva. II – A pretensão de pretensão de simples reexame
de prova não enseja recurso especial. III – Recurso especial não
conhecido.55
É forçoso reconhecer a semelhança do caso em análise ao instituto da
desapropriação judicial, estampado no artigo 1.228, §4º e 5º, do Código Civil. Entretanto,
note-se que no caso em tela não há perquirição sobre a boa-fé dos possuidores para a
improcedência do pedido de reivindicatório, requisito esse constante do mencionado
dispositivo legal.
Contata-se, assim, que a aplicabilidade fática do referido instituto nos
conflitos envolvendo o direito social à moradia à população de baixa renda depende da
noção de boa-fé vinculada à justiça da ocupação. Caso contrário, se considerada o conceito
tradicional de boa-fé, naturalmente descolado das realidades econômica e sociais que
envolvem a moradia urbana aos grupos vulneráveis, a desapropriação judicial será de toda
inaplicável aos casos concretos.56
Da mesma forma, o instituto da desapropriação judicial não impede a
improcedência da ação reivindicatória em razão do abandono da propriedade, hipótese em
que não deve haver qualquer pagamento de indenização ao proprietário, sendo deferida aos
STJ – Recurso Especial nº 75.659-SP – 4ª Turma – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJ 21/06/2005.
Segundo FARIAS e ROSENVALD, “qualificar a atuação do possuidor como de má-fé pela ausência do
título seria considerar que só existe ética no direito de propriedade e que toda situação fática que dela não
fosse emanada seria contrária ao ordenamento”. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.
Direitos reais, cit., p. 61).
55
56
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possuidores a usucapião individual ou coletiva, a exemplo do julgamento mencionado a
seguir:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA - USUCAPIÃO MATÉRIA DE DEFESA - REQUISITOS ESSENCIAIS PRESCRIÇÃO AQUISITIVA - CONFIGURAÇÃO - PRINCÍPIO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. Para a imissão na posse é
necessário a delimitação clara e precisa dos contornos do imóvel, a fim de
se evitar eventual invasão sobre o direito dominial de terceiros estranhos
à lide. A usucapião coletiva pode ser alegada como matéria de defesa
pelo Réu. Desnecessário o pedido expresso de declaração de aquisição da
propriedade, para que então o juiz declare a prescrição aquisitiva em
favor do demandado, mediante sentença, a qual servirá de título para
registro no cartório de registro de imóveis. A função social da
propriedade constitui uma garantia à pessoa, que não pode ser privada do
seu patrimônio de forma arbitrária. Entretanto, o referido princípio não
permite a supressão da instituição da propriedade privada, mas é certo
que autoriza a imposição de sanções caso não seja respeitada a função
social da propriedade. Recurso não provido.57
Entende-se que em caso de abandono do bem, a ação deve ser julgada
improcedente sem qualquer indenização ao proprietário. De outro lado, se houver a
ocupação nos termos do artigo 1.228, §4º, do Código Civil, sem que o proprietário tenha
abandonado o bem, deve ser aplicado o instituto da desapropriação judicial, com o
pagamento da indenização por parte do Estado.58
Visto isso, encerra-se com a certeza de que a pretensão reivindicatória
“depende de concepção da posse e do direito de propriedade orientada pelo princípio da
função social, que não pode negligenciar os conflitos inerentes à propriedade do espaço
urbano e o alcance dos interesses relacionados à posse e ao controle de apropriação da
terra.”59
TJMG - Apelação Cível N° 1.0433.98.002228-2/005 – 10ª Câmara Cível - Comarca de Montes Claros –
Des. Rel. Alberto Aluízio Pacheco de Andrade – 25/01/2011.
57
58
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil: Direitos das coisas, volume 4. São Paulo:
Método, p. 2008.
59
OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade, cit., p. 143.
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6. Conclusão
O antigo direito de propriedade, absoluto e subjetivo, sofreu derrogações
com a solidarização do direito. Nesse compasso, o direito de propriedade deixa de ser
apenas poder e ganha também contornos de dever, impondo ao proprietário que exerça o
direito de propriedade em conformidade com os anseios da coletividade, em consonância
com o fim social determinado pela Constituição.
Por tal razão, é importante tentar estabelecer um critério minimamente
capaz de solucionar os conflitos envolvendo o direito de propriedade, constitucionalmente
assegurado pela nossa Carta Magna (artigos 5º, XXII, 170, II, CF), apesar da subjetividade
e do caráter fluido de tal definição, que deve ser reanalisada caso a caso pelo aplicador da
norma.
Partindo da premissa de que o direito de acesso à propriedade constitui
direito fundamental (universal, indisponível, publicístico e vertical), verifica-se que apenas
a propriedade funcionalizada atende aos primados do direito fundamental de propriedade
privada, já que a função social, em si mesma, também constitui um direito fundamental e
difuso de acesso à propriedade (artigo 5º, XXIII, CF).
Assim, concluímos, objetivamente, que existem duas “espécies”
diferentes de direito de propriedade, divididas entre as categorias de “direitos
fundamentais” e “direitos patrimoniais”.
Na primeira espécie, encontramos: (a) o direito fundamental à
propriedade (direito de acesso à propriedade); e (b) o direito fundamental de propriedade
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como “direito de proteção ao patrimônio constituído”,60 que deve ser funcionalizado pelos
seguintes critérios: (b1) função individual de suprimento das necessidades básicas aptas a
promover a dignidade da pessoa humana; (b2) acumulação de bens com destinação de uso
adequado; (b3) utilização dos bens de produção de acordo com os ditames da justiça social
e da finalidade de assegurar a todos uma existência digna.
Na segunda espécie, encontramos apenas o direito de propriedade
desfuncionalizado, de caráter exclusivamente patrimonial, cuja desfuncionalização por ser
atribuída a duas hipóteses genéricas: (a) excesso da função individual em virtude de
especulação ou acumulação sem destinação ao uso adequado; (b) utilização dos bens de
produção em desacordo com os ditames da justiça social e da finalidade de assegurar a
todos uma existência digna.
Por esse contorno constitucional, a propriedade desfuncionalizada é
reconduzida ao patamar de direito patrimonial protegido pelo ordenamento jurídico, a bem
da verdade, mas que não merece o status de direito fundamental, restando superada em
casos concretos onde houver conflito de normas.
Essa classificação não tem objetivo esgotar o tema criando um novo
regime em relação à garantia do direito constitucional de propriedade, até porque as
violações ao cumprimento da função social da propriedade e, por via direta, do direito à
propriedade e de propriedade precisam ser identificadas de acordo com o caso em concreto
posto em juízo.
O descumprimento da posse decorrente da propriedade (posse real) em
confronto com o exercício de posse com função social pelo não-proprietário, acarreta a
perda da propriedade pela usucapião, quer nas formas extraordinárias ou ordinárias (artigo
1238, 1242, e respectivos parágrafos) ou, principalmente, nas formas especiais da
60
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas, cit., p. 166.
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usucapião urbana (artigo 183, CF, artigo 1.240, CC e artigo 9º, EC), da usucapião rural
(artigo 191, CF e artigo 1.239, CC), e da usucapião coletiva (artigo 10, EC), bem como na
desapropriação judicial (artigo 1.228, §4º e §5º, CC).
A Constituição Federal facultou ao Poder Público Municipal a edição de
lei específica para exigir do proprietário o adequado aproveitamento de imóvel em área
incluída no plano diretor (artigo 182, §4º, CF), sob pena de, sucessivamente, sofrer as
sanções de parcelamento ou edificação compulsória (inciso I), IPTU progressivo no tempo
(inciso II) e desapropriação pelo descumprimento da função social da propriedade urbana
(inciso III), que foram regulamentados pelos artigos 5º/8º, do Estatuto da Cidade.
Na posse fática (autônoma e desvinculada do direito de propriedade),
verificada no período entre o ingresso na posse e sua transformação em usucapião pela
propriedade, o proprietário que não cumpre a função social da propriedade
(consubstanciada na posse) está sujeito a perda da posse decorrente da propriedade (ius
possidendi) e com ela toda e qualquer proteção possessória decorrente do direito de
propriedade, sem prejuízo, ao final, da perda da propriedade pela consumação da
usucapião em favor do novo possuidor.
Quanto a pretensão reivindicatória, há possibilidade de sanções
específicas ao direito de propriedade desfuncionalizado em favor do possuidor que exerce
posse com função social. Isto porque, se o proprietário perdeu a proteção possessória
certamente lançará mão da ação reivindicatória para pôr em prática o direito de sequela e
reivindicar o bem das mãos do possuidor, com fundamento no direito de propriedade
(artigo 1.228. CC).
Conclui-se, portanto, que da mesma forma que o descumprimento da
função social da posse impede a concessão da proteção possessória ao proprietário que a
disputa com base no direito de possuir, a função social da propriedade obsta, ao menos, a
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concessão da tutela de urgência em favor do proprietário na ação reivindicatória,
priorizando o direito fundamental à propriedade dos não proprietários (acesso à
propriedade) em detrimento do direito patrimonial de propriedade em razão do excesso da
função individual em virtude de especulação ou acumulação sem destinação ao uso
adequado (desuso) ou pela utilização dos bens de produção em desacordo com os ditames
da justiça social e da finalidade de assegurar a todos uma existência digna.
Sem embargo desse posicionamento, temos como certo que é possível
ainda fundamentar a improcedência definitiva (por sentença de mérito) da pretensão
reivindicatória em determinados casos, o que pressupõe a análise crítica do instituto da
desapropriação judicial.
Recebido em 12/01/2016
1º parecer em 02/02/2016
2º parecer em 10/02/2016
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O DIREITO DE SUPERFÍCIE NA ALEMANHA E O SEU CARÁTER SOCIAL1
Above-ground rights in Germany and its social character
Leonardo Estevam de Assis Zanini
Juiz Federal, Professor Universitário, Pós-doutorando em Direito
pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Alemanha),
Doutor em Direito Civil pela USP, Mestre em Direito Civil pela PUC-SP.
Resumo
O artigo aborda os aspectos mais relevantes do direito de superfície na Alemanha, dando
enfoque à sua função social. Inicia as investigações com um breve estudo histórico, no qual
são destacadas as particularidades do seu desenvolvimento. Realiza um exame da matéria
na Alemanha, com destaque para alguns pontos como: natureza jurídica, utilidade prática,
áreas de utilização, caráter social, constituição, transferência e extinção desse direito. Por
fim, o trabalho questiona a não utilização do instituto no Brasil, o que pode ser repensado
se considerarmos o exemplo alemão, em especial no que toca ao seu possível aspecto
social.
Palavras-chave
Direito de superfície; direitos reais; direito alemão; função social.
Abstract
The article discusses the most important aspects of the above-ground rights in Germany by
focusing its social function. It initiates the investigations with a brief historical study, in
which are highlighted the peculiarities of its development. The work conducts an
examination of the matter in Germany, highlighting some points such as: legal nature,
practical use, areas of use, social character, establishment, transfer and extinction of that
right. Finally, the work questions the non-use of the institute in Brazil, which can be
rethought if we consider the German example, especially with regard to its possible social
aspect.
Keywords
Above-ground rights; real rights; German law; social function.
Sumário
1. Introdução – 2. Histórico – 2.1. Das origens romanas ao final do século XIX – 2.2. Da
entrada em vigor do Código Civil alemão à Lei do Direito de Superfície – 3. Caráter social
– 4. Outras áreas de utilização – 5. Significação prática – 6. Natureza jurídica – 7. Conceito
– 8. Definição de construção e de edifício – 9. A superfície e outros institutos similares –
10. Objeto (Belastungsgegenstand) – 11. Conteúdo legal (Gesetzlicher Inhalt) – 12.
Conteúdo contratual (Vertraglicher Inhalt) – 13. Surgimento e transferência (Entstehung
und Übertragung) – 14. Tratamento semelhante ao do direito de propriedade – 15. Renda
do direito de superfície (Erbbauzins) – 16. Término do direito de superfície (Beendigung
des Erbbaurechts) – 16.1. Rescisão (Aufhebung) – 16.2. Extinção por decurso de prazo
(Zeitablauf) – 16.3. Reversão (Heimfallrecht) – 16.4. Destruição da edificação (Untergang
des Bauwerks) – 17. Considerações finais
1
O presente trabalho foi elaborado durante pesquisa de pós-doutorado no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht e revisado pelos Drs. Jan Peter Schmidt e Anton Geier.
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1. Introdução
O presente artigo objetiva apresentar breves considerações sobre o direito
de superfície na Alemanha, examinando seus aspectos mais relevantes. Não se trata,
obviamente, de uma análise exaustiva ou minuciosa do tema, o que é feito pela doutrina
alemã em trabalhos que consomem, muitas vezes, mais de quinhentas páginas. De qualquer
forma, nosso estudo dará ao leitor uma visão geral desse instituto, permitindo também sua
comparação com a legislação brasileira.
A proposta decorre da curiosidade de se saber como o direito de
superfície é regulado e utilizado em um ordenamento jurídico que já o conhece há muito
tempo. Tal curiosidade se deve ao fato de que, em nosso país, dada a sua recente
reintrodução na legislação civil, a utilidade prática do instituto ainda não se revelou.
A falta de relevância prática pode decorrer de diversos fatores, como o
seu desconhecimento pela população, a ausência de tradição na sua utilização, ou mesmo
por desconfiança, pelo fato de criar um direito real sobre um terreno alheio, que certamente
dá muitas garantias ao superficiário.
Diferentemente do Brasil, na Alemanha, como veremos, a superfície não
é um instituto sem utilização, existindo um número considerável de imóveis construídos
sobre terrenos de terceiros. Além disso, é de se notar que ela foi um instrumento
fundamental para a organização de espaços urbanos, para a reconstrução do país após as
duas grandes guerras, bem como para o cumprimento da função social da propriedade.
Desse modo, acreditamos que algumas considerações a respeito do
direito de superfície na Alemanha podem permitir reflexões acerca do papel desse instituto
não somente no âmbito jurídico brasileiro, mas também no que toca à sua possível
utilização socioeconômica.
2. Histórico
2.1. Das origens romanas ao final do século XIX
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O direito de superfície, presente no Código Civil brasileiro de 2002 (arts.
1.369 a 1.377) e no ordenamento jurídico de muitos países ocidentais, não é nenhuma
novidade. Suas origens remontam ao Direito Romano, que previa o instituto da superfícies.
Originariamente, a superfícies não era um direito real, mas sim uma
espécie de contrato de locação por longo prazo, que tinha como partes Roma e um
particular (perpetuarius), objetivando a regulação das relações decorrentes de construções
que esse particular havia erigido em solo público (superficiariae aedes), o que incluía o
pagamento de uma contraprestação, chamada de solarium. Para imóveis rurais também
havia um instituto correspondente, denominado ager vectigalis.2
Entretanto, com o passar do tempo, o instituto, concebido inicialmente
como um contrato integrante dos direitos obrigacionais (pessoais), passou a receber, por
obra pretoriana, proteção dos interditos, tornando-se, paulatinamente, um direito real.
Na Idade Média, a superfície, apesar de conhecida, não foi muito
utilizada, dando espaço ao desenvolvimento de outros institutos muito próximos, como é o
caso da chamada “städtische Bauleihe” (ou Bodenleihe).3 Tal instituto jurídico foi bastante
importante para o desenvolvimento de muitas cidades alemãs, possibilitando a concessão
de um direito real sobre um terreno, uma espécie de propriedade útil (dominium utile)
sobre a construção nele realizada, surgindo como contrapartida o pagamento de uma
prestação, normalmente anual. Esse direito era transmissível por herança, mas não podia
ser alienado.4
A despeito da semelhança com a superfície, assevera-se que a Bauleihe
surgiu pelo fato de que as casas na Alemanha eram consideradas como propriedade distinta
do solo, como bens móveis. E isso se explica porque na maioria das vezes eram
construídas em madeira e tinham poucas fundações, o que permitia que fossem
desmontadas e construídas em outros lugares. Por consequência, dada a facilidade de
retirada da casa, o instituto da superfície perdia a razão de existir.5
Mais tarde, com o processo de recepção do direito romano na Alemanha
(Rezeption des römischen Rechts), o princípio da acessão, que tinha se perdido, passou a
2
BALLIF, Alban. Le droit de superfície. Eléments réels, obligations propter rem et droits personnels
annotés. Zürich: Schulthess, 2004, p. 1.
3
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed.
Düsseldorf: Werner, 2001, p. XXI.
4
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 13.
5
BALLIF, Alban, op. cit., p. 2.
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74
ser aplicado a tudo aquilo que se ligava ao solo de maneira durável (superfícies solo cedit),
particularmente às plantações, e não somente às construções.6
Em função da mudança, foi incorporada a superfícies romana ao direito
vigente, mas houve uma parcial mistura do instituto romano com a “städische Bauleihe”.7
Assim, a partir da fusão entre o instituto romano e o germânico, surgiram direitos
(híbridos) que receberam várias denominações, como Superfiziarrecht, Platzrecht,
Baurecht ou Kellerrecht.8,9
Com a Revolução Francesa, as raízes romanas da propriedade foram
recobradas, passando-se a uma concepção individualista. Em virtude dessa concepção, o
direito de superfície foi visto como um corpo estranho e colocado em segundo plano, uma
vez que as ideias revolucionárias não se adaptavam a qualquer instituto que remetesse ao
período medieval: ao direito feudal e seus privilégios. A dogmática da época era contra
institutos jurídicos que desmembrassem o direito de propriedade,10 como era feito na Idade
Média, o que levou à utilização bastante reduzida da superfície no século XIX.11,12
2.2. Da entrada em vigor do Código Civil alemão à Lei do Direito de Superfície
A despeito da orientação francesa pregando sua abolição, o Código Civil
alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor desde 1.1.1900, não chegou a excluir
a superfície de suas disposições. Entretanto, a matéria foi tida pela codificação como sem
importância, sobretudo como um corpo estranho no âmbito da propriedade, tendo sido
regulamentada de forma incompleta nos §§ 1012 a 1017 do BGB.13
Contudo, após a entrada em vigor do BGB, houve, no início do século
XX, um grande aumento da população, o que conduziu, consequentemente, a uma elevação
na demanda por moradias e a uma valorização do preço dos imóveis. Em função dessas
6
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. XXI.
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht.
Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1394.
8
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 4.
9
Vale notar que, no âmbito dos países de língua alemã, o instituto da superfície não tem denominação
uniforme, diferentemente do que ocorre nos países de língua neolatina. Na Áustria, por exemplo, o instituto é
denominado Baurecht (IRO, Gert. Bürgerliches Recht. Sachenrecht. Wien: Springer, 2000, v. IV, p. 173).
10
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 14.
11
RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht, op. cit., p. 4.
12
O mesmo não ocorreu, por exemplo, na Inglaterra, onde houve a expansão de instituto com raízes
semelhantes, a chamada “building lease” (OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In:
Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C. H. Beck, 2009, v. 6, p. 1505).
13
OEFELE, Helmut Freiherr von, op. Cit., p. 1505.
7
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75
mudanças socioeconômicas, viu-se a necessidade da utilização do instituto da superfície
(Erbbaurecht), que na prática não vinha encontrando uso, para o combate à especulação
dos preços dos imóveis, bem como para dar oportunidade à população mais carente de
adquirir uma propriedade.14
Assim sendo, como a regulamentação pelo BGB era insuficiente,
praticamente não permitindo o uso do instituto, a única solução encontrada para resolver o
problema foi a elaboração de uma nova legislação para cuidar de toda a matéria atinente ao
direito de superfície. Com isso, os §§ 1012 a 1017 do BGB foram substituídos pela
Ordenança sobre o Direito de Superfície (Verordnung über das Erbbaurecht - ErbbauVO),
que entrou em vigor em 22.1.1919 e regulou a matéria de forma detalhada.15
De qualquer forma, conforme o § 38 da referida legislação, os §§ 1012 a
1017 do BGB continuaram em vigor, particularmente no que toca às superfícies
constituídas até a entrada em vigor da ErbbauVO. Posteriormente, com uma Lei de
23.11.2007, houve a alteração da denominação da ErbbauVO, que passou a ser chamada de
Lei do Direito de Superfície (Erbbaurechtsgesetz – ErbbauRG). Contudo, a alteração
promovida foi apenas no nome do instituto, não sendo realizada nenhuma reforma no
conteúdo propriamente dito da legislação.16
3. Caráter social
O direito de superfície foi estabelecido na Alemanha com a finalidade de
promover a construção de moradias, particularmente para as classes sociais menos
favorecidas, e também como instrumento de combate à especulação imobiliária.17
Nessa linha, o direito de superfície tem considerável importância social,
uma vez que permite a construção de casas para moradia, sem que haja necessidade de
dispêndio de dinheiro para a aquisição do terreno. Assim, a pessoa pode deixar de
empregar o capital na aquisição do terreno e, em contrapartida, simplesmente paga uma
espécie de remuneração (Erbbauzins) correspondente apenas ao valor da utilização do
terreno.18 Logicamente referida remuneração também não pode ter caráter especulativo,
devendo estar ao alcance daqueles que pretendem construir seu imóvel.
14
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit, p. 14.
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 599.
16
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian, Sachenrecht, p. 382.
17
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 15.
18
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian, op. cit., p. 382.
15
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76
Com isso, há uma redução no custo total que seria empregado na
aquisição de uma casa, visto que aquele que pretende realizar a construção não precisará se
privar de suas economias com a compra do terreno, necessitando se preocupar apenas com
a construção de sua moradia.19 E mesmo no que toca à construção, é interessante observar
que na Alemanha, como regra, é possível a obtenção de financiamento com taxas de juros
bem reduzidas, muito diferentes das cobradas no Brasil.
Vale ainda notar que a propriedade da edificação não está ligada, pelo
menos do ponto de vista jurídico, à propriedade do terreno. Assim sendo, tanto o
proprietário do terreno onerado como o superficiário participam da valorização imobiliária
proporcionada pela construção.20
Ademais, em razão de eventual contratação por um prazo bastante amplo,
o superficiário chega mesmo a ter a impressão de que é o proprietário não somente da
edificação, mas também do terreno, já que muitas vezes o acordo pode vigorar por duas ou
três gerações.21
Outrossim, na hipótese de concessão estatal do direito de superfície, com
o decurso do prazo da contratação é possível que o terreno venha a ter outra finalidade
pública, isto é, a construção que lá ficou pode ser posteriormente utilizada pelo ente estatal,
por exemplo, para ser sede de um órgão público. Ainda, a superfície pode ser renovada em
condições favoráveis, sem ser considerada a sua valorização.
Por outro lado, é de se notar que na Alemanha os governos locais
também passam por dificuldades orçamentárias, de modo que não é tarefa fácil a aquisição
de grandes áreas, relativamente caras, para o posterior estabelecimento do direito de
superfície em favor daqueles que estão incluídos na política habitacional. Isso sem falar na
necessidade do estabelecimento de remuneração razoável pelo direito de superfície.22
Por conseguinte, ainda que existam dificuldades, não se pode deixar de
apontar a importância da superfície na facilitação do acesso à moradia, bem como na
organização da política urbana, em função do loteamento de imóveis para tal finalidade.
Desse modo, a concessão do direito de superfície continua, na atualidade, tendo
19
PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 379.
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 599.
21
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 379.
22
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 15.
20
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significação social na Alemanha, havendo, nesse sentido, especial atenção dos governos
locais e das instituições religiosas.23
4. Outras áreas de utilização
Como foi visto, após a entrada em vigor da Ordenança sobre o Direito de
Superfície (ErbbauVO), iniciou-se a concessão desse direito, principalmente por parte dos
entes estatais e de instituições religiosas, que em razão de considerações de ordem social,
procuraram auxiliar famílias carentes a ter um imóvel para moradia.24
Vale notar, entretanto, que o instituto não ficou limitado à construção de
moradias, sendo possível sua instituição para construção de áreas, por exemplo, para
prática de esportes, com fins comerciais ou industriais, bem como para instituições
científicas ou de ensino.25
Aliás, nos casos em que normalmente o Poder Público brasileiro realiza
uma contratação por um longo prazo, cedendo um terreno em comodato para determinada
instituição, na Alemanha temos, na mesma situação, a utilização do direito de superfície,
que dá maior proteção para aquele que irá realizar a construção no terreno, isto é, há
maiores garantias por se tratar de um direito real e não meramente obrigacional.26
Ademais, a superfície também é utilizada por particulares que querem
aproveitar economicamente seus terrenos, permitindo, assim, a realização de construções
para fins não somente residenciais, mas também comerciais ou industriais,27 como é o caso
da utilização de um terreno para construção de usinas de energia eólica ou para a
edificação de um centro de compras.
Destarte, a superfície pode ser utilizada não somente para construção de
moradias, mas para todo tipo de edificação a ser realizada em terreno alheio, tendo
relevância tanto pelo seu aspecto social como econômico.
5. Significação prática
23
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard, op. cit., p. 1394.
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 599.
25
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian, op. cit., p. 383.
26
Nesse ponto, podemos citar, por exemplo, o caso do Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht, que recebeu o direito de superfície sobre um terreno da municipalidade de
Hamburgo para a edificação de sua sede.
27
BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015, p. 387.
24
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78
O direito de superfície é um instituto que encontra reflexo no tráfego
jurídico alemão. Em um primeiro momento houve o aumento de sua utilização no início do
século XX, em função da demanda por moradias. Posteriormente, houve forte expansão da
sua utilização no período que se seguiu ao término na Segunda Guerra Mundial, em virtude
dos trabalhos de reconstrução do país.28
De fato, conforme dados oficiais relativos a pesquisas realizadas nos
registros imobiliários dos estados da Baviera e de Hessen, em 1970 existiam 39.278
direitos de superfície na Baviera, enquanto que Hessen contava com 19.556. As pesquisas
ainda apontaram que nos livros de registro de imóveis o volume do direito de superfície
correspondia a 1,7% das propriedades na Baviera e a 1,41% em Hessen. Ademais, em
outra pesquisa, realizada em bancos hipotecários (Hypothekenbanken), foi verificado que
3% do total dos empréstimos foram realizados para fins de superfície.29
Outrossim, a importância do instituto fica ainda mais evidente quando
nos deparamos com um estudo da “Initiative Erbbaurecht”, de 2008, o qual apontou que
cerca de 5% das áreas de moradia na Alemanha foram constituídas com a existência do
direito de superfície. E a expansão tem contado mais recentemente com áreas cada vez
maiores e com a concessão não apenas pela Igreja, por entes estatais ou ligados ao Estado,
mas também por proprietários particulares.30
Por conseguinte, o direito de superfície na Alemanha não é um instituto
sem utilidade, meramente previsto no BGB e na legislação. Trata-se de instituto que
realmente tem aproveitamento prático.
6. Natureza jurídica
A natureza jurídica do direito de superfície no Direito alemão apresenta
discussão doutrinária. Em realidade, o debate decorre da própria forma de estruturação
desse direito, que difere da existente no Código Civil brasileiro, onde, até pela localização
da matéria, está claro se tratar de um direito real sobre coisa alheia.
Inicialmente, deve-se observar que, conforme o disposto no § 12 da
ErbbauRG, não vigora em face do direito de superfície o princípio de que toda edificação
que se liga ao solo passa a ser componente integrante do imóvel (superfícies solo cedit) e,
por conseguinte, propriedade de seu titular.
28
OEFELE, Helmut Freiherr von, op. cit., p. 1506.
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 18.
30
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 19.
29
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79
Nesse contexto, segundo parte da doutrina, como a legislação alemã
considera que o superficiário se torna proprietário da edificação, a superfície não
consistiria em um desdobramento da propriedade e nem em um regime de copropriedade.
Desse modo, asseveram os estudiosos que a superfície concede a
possibilidade de alguém ser proprietário de um edifício, sem ser, ao mesmo tempo,
proprietário do imóvel onde foi erigida a construção, de maneira que não somente no
aspecto econômico, mas também no âmbito jurídico o proprietário do imóvel e o
proprietário da construção estão separados, são titulares de direitos não idênticos.31
Assim, conforme tal linha de raciocínio, a superfície pode ser tratada
como um direito de propriedade, de forma que pode ser transferida, onerada e registrada
em livro próprio no registro de imóveis, denominado Erbbaugrundbuch (§ 14
ErbbauRG).32
Aliás, como se concede não somente a propriedade sobre a construção,
mas também um direito real à utilização de um terreno pertencente a outra pessoa, não
estaríamos, conforme entendimento de parte da doutrina, diante de um direito real
limitado. Tratar-se-ia, então, de um direito sui generis, situado entre as servidões pessoais
e a propriedade fundiária.
Por outro lado, há estudiosos que afirmam ser um direito real sobre um
terreno alheio, que, com determinadas exceções, é tratado como o direito de propriedade,
sobretudo pelo fato de poder ser onerado.33 Argumentam que a concepção da superfície
como um direito real sobre coisa alheia deflui do texto legal, o qual menciona que: “um
terreno pode ser onerado do modo...” (§ 1 ErbbauRG). Ora, tal expressão seria a mesma
utilizada nos direitos reais limitados, ou seja, nos §§ 1018, 1090, 1094, 1105, 1113, 1191
do BGB, o que levaria à conclusão de se tratar de um direito real limitado.34
De qualquer modo, não obstante a existência dos mencionados
entendimentos, não há dúvida que, do ponto de vista do proprietário do terreno, o direito de
superfície é um direito real limitado, que onera sua propriedade. Ademais, é certo que tal
direito real limitado é tratado de forma assemelhada a uma propriedade imobiliária.35 Por
31
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. XXI.
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 600.
33
STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007, v. 15-1, p. 302.
34
OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl, op. cit., p. 23.
35
BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf, op. cit., p. 385.
32
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isso, a maioria da doutrina considera que esse direito tem dupla natureza jurídica
(Doppelnatur).
7. Conceito
O direito de superfície é um direito real de utilização e edificação em um
terreno alheio.36 A concessão desse direito é, do ponto de vista jurídico, uma forma de
onerar a propriedade de um terreno com um direito real limitado.37
Conforme a definição extraída do § 1 da ErbbauRG,38 o direito de
superfície é um direito concedido a uma pessoa, alienável e transmissível por sucessão,39
que grava um terreno, permitindo a realização de construções sobre a sua superfície e no
seu subsolo. Possibilita, assim, a edificação em um terreno de propriedade de outra pessoa,
bem como sua utilização por determinado prazo.40
Destarte, trata-se de um direito que, salvo exceções previstas pelo § 11,
está submetido às disposições concernentes aos imóveis. Assemelha-se ainda à propriedade
pelo fato de possuir registro próprio no registro imobiliário, bem como por poder ser
cedida e gravada independentemente da propriedade do terreno.
8. Definição de construção e de edifício
A legislação faz uso dos conceitos de construção (Bauwerk) e edifício
(Gebäude), no entanto, não apresenta uma definição legal. Com isso, esses preceitos
necessitaram ser extraídos da linguagem geral e dos usos do tráfego jurídico.41
No que toca à expressão construção (Bauwerk), podemos encontrar
várias definições na doutrina, mas ainda é usual a utilização da concepção apresentada pelo
antigo Tribunal do Império (Reichsgericht), que a considerava como a coisa imóvel (ligada
36
RAPP, Manfred, op. cit., p. 3.
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. 231.
38
Como já foi mencionado, a matéria não encontra atualmente regulação no BGB, mas eventuais superfícies
constituídas até 22 de janeiro de 1919 continuam sendo tratadas apenas pelos §§ 1012 a 1017 do BGB.
Também vale notar que a ErbbauVO recebeu importante complementação pela Lei de alteração do direito
das coisas, de 21.9.1994 (SachenRÄndG). Ademais, pelo art. 25 da Lei de 23.11.2007 houve a alteração do
nome da legislação, que passou a ser Erbbaurechtsgesetz (PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 372).
39
O nome do instituto no idioma alemão decorre justamente do fato de se tratar de uma construção (ou
edificação) transmissível por herança, daí a expressão Erbbaurecht, que seria, em uma tradução literal para o
português, um direito de construção herdável (RAPP, Manfred, op. cit., p. 3).
40
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 599.
41
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard, op. cit., p. 1398.
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ao solo) e produzida com a utilização de trabalho e materiais estranhos ao solo. Tal
concepção é ainda hoje adotada pela doutrina majoritária.42
O conceito de edifício (Gebäude) dado pelo Bundesgerichtshof – BGH,43
por seu turno, considera se tratar de uma construção delimitada espacialmente e protegida
contra a influência exterior, cuja entrada de pessoas demanda autorização.44
Por conseguinte, no âmbito do direito de superfície estão incluídas todas
as espécies de edificação, localizadas na superfície ou no subsolo (auf oder unter der
Oberfläche).45 Como exemplos, extraídos da prática, podemos citar: moradias, garagens
subterrâneas, instalações portuárias e ferroviárias, prédios, postos de gasolina, quadras
esportivas, playgrounds, monumentos e instalações relacionadas ao tráfego, como pontes e
viadutos. Nessas hipóteses, a edificação é considerada um componente do direito de
superfície, fazendo parte da propriedade do superficiário e não do dono do terreno.46
9. A superfície e outros institutos similares
No âmbito dos direitos reais, o usufruto (Nieβbrauch) não se adequa às
mesmas finalidades da superfície. De fato, conforme o § 1061, 1 do BGB, o usufruto se
extingue com a morte do usufrutuário, sendo intransferível (§ 1059). Também é
intransferível o direito de habitação (Wohnungsrecht), conforme estabelecem os §§ 1092 e
1093 do BGB.47
O direito alemão igualmente distingue a superfície do contrato de locação
(Mietvertrag) ou do arrendamento (Pachtvertrag). Realmente, enquanto a superfície cria
um direito real, a locação ou o arredamento constituem apenas um direito obrigacional.
Além disso, o superficiário pode alienar ou onerar seu direito, o que não é admitido na
locação ou no arrendamento. Outro ponto de divergência é o prazo de duração, pois a
superfície pode ser concedida por longo prazo, já no contrato de locação os prazos são, em
Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit und Material in
Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING,
Gerhard, op. cit., p. 1398).
43
O BGH é um tribunal alemão que corresponderia, no Brasil, ao STJ.
44
Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit und Material in
Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING,
Gerhard, op. cit., p. 1398).
45
RAPP, Manfred, op. cit., p. 23.
46
WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 35.
47
BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian, op. cit., p. 382.
42
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82
geral, mais reduzidos, podendo ser admitida a contratação por até 30 anos ou pelo tempo
de vida do locatário (§ 544 do BGB).48
10. Objeto (Belastungsgegenstand)
O objeto a ser onerado é o imóvel em sua integralidade, isto é, um
terreno (Grundstück). Não pode se tratar apenas de uma parte do terreno ou de uma parte
de uma copropriedade, visto que é necessário que uma parte real (e não ideal) seja objeto
de registro imobiliário.49 Todavia, o exercício da superfície pode ser limitado a uma parte
do imóvel. Ademais, também se admite a constituição de um direito de superfície sobre
mais de um terreno (Gesamterbbaurecht).50
Não é permitido onerar um condomínio edilício com a superfície, pois no
caso não se trata de um terreno para edificação. Além disso, sobre o terreno do condomínio
igualmente não seria possível, visto que não se permite o estabelecimento de superfície
quando haja uma propriedade especial ou uma utilização especial dessa propriedade
decorrente da regulamentação do condomínio. Todavia, essa última questão é discutível.51
Outrossim, a doutrina alemã se divide quanto à admissão de uma
sobrelevação ou subsuperfície (Untererbbaurecht).52 Nesse caso, não seria onerado
propriamente um terreno, mas sim uma outra superfície. Entretanto, a legislação sobre
registro de imóveis (Grundbuchordnung – GBO) reconhece a possibilidade em seu § 6, 2,
mencionando-a expressamente.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, não cabe na Alemanha o direito
de superfície para fins de plantação.53 Para remediar essa impossibilidade, as partes do
imóvel que não forem necessárias para a construção da edificação podem ser usadas para
tal finalidade, como é o caso de jardins de ornamentação. Em todo caso, a edificação
continua sendo o objeto principal.54
11. Conteúdo legal (Gesetzlicher Inhalt)
48
RAPP, Manfred, op. cit., p. 3-4.
STÜRNER, Rolf, op. cit., p. 302.
50
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 375.
51
RAPP, Manfred, op. cit., p. 24.
52
Vale notar que o BGH reconhece a subsuperfície (BGHZ 62, 179 = NJW 1974, 1137).
53
No Direito brasileiro, a constituição de superfície para fins de plantação está expressamente prevista no art.
1.369 do Código Civil.
54
RAPP, Manfred, op. cit., p. 26.
49
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83
O conteúdo legal da superfície deve existir, pois caso contrário não
haverá o surgimento desse direito. A matéria é definida pelo § 1 da ErbbauRG, que inclui
como conteúdo obrigatório a existência de um direito real sobre a superfície de um terreno
ou ao seu subsolo, permitindo-se a realização de edificações. Consequentemente, o titular
do direito de superfície torna-se proprietário das obras realizadas no imóvel.55
A superfície constitui, no Direito alemão, o maior ônus que pode ser
imposto sobre uma propriedade, visto que o proprietário do terreno perde a sua posse direta
e o superficiário pode erigir uma construção, ocupá-la, utilizá-la, destruí-la e substituí-la.
De qualquer forma, vale observar que na concessão do direito de superfície deve ser
prevista, de forma mais ou menos clara, como a edificação será realizada.56
De fato, o gênero da construção e a sua extensão devem necessariamente
ser definidos, visto que um direito real deve ser suficientemente determinado
(Bestimmtheitsprinzip). Aliás, é esse conteúdo determinado que levará à aquisição, por
parte do superficiário, da propriedade sobre a construção.
Outrossim, a cessibilidade (Veräuβerlichkeit) e a transmissibilidade por
herança (Vererblichkeit) fazem parte dos elementos característicos obrigatórios do direito
de superfície. Por fim, além do direito de edificação como elemento principal, também se
garante eventual direito acessório de uso sobre áreas não edificadas.
12. Conteúdo contratual (Vertraglicher Inhalt)
O conteúdo legal do direito de superfície não é suficiente para regular as
relações entre superficiário e o proprietário do terreno. Ao lado do conteúdo legal, o § 2 da
ErbbauRG dispõe que as partes podem, contratualmente, criar outros direitos e obrigações,
o que na prática é muito comum.57
Como regra, tal contratação deveria ter efeito meramente obrigacional,
não valendo contra qualquer sucessor, particularmente se este não teve conhecimento do
vínculo obrigacional. Contudo, no que toca ao conteúdo do direito de superfície, a
legislação protege a contratação com eficácia real. Assim sendo, ficam vinculados ao
estabelecido tanto os atuais como os futuros proprietários do terreno e superficiários.58
55
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 601.
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 601.
57
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 373.
58
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 373.
56
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84
O possível conteúdo contratual é enumerado, de forma não taxativa, pelo
§ 2 da ErbbauRG, podendo abranger disposições sobre: 1) a construção, a manutenção e a
utilização da edificação; 2) o seguro da edificação e sua reconstrução em caso de
destruição; 3) a responsabilidade por encargos públicos e privados; 4) a obrigação do
superficiário, se preenchidas determinadas condições, de transferir a superfície ao
proprietário do terreno (reversão – Heimfall); 5) responsabilidade do superficiário pelo
pagamento de multas contratuais; 6) concessão de direito de preferência ao superficiário
para a renovação da superfície depois de decorrido seu prazo; e 7) a obrigação do
proprietário do terreno de vendê-lo ao superfíciário.59
Além disso, pode ser também estabelecido, como conteúdo contratual, a
necessidade do consentimento do proprietário do terreno para a alienação da superfície
pelo superficiário, bem como para o estabelecimento de hipoteca (Hypothek), de dívida
imobiliária (Grundschuld), de dívida imobiliária em forma de renda (Rentenschuld) ou de
ônus reais (§ 5 da ErbbauRG). Ficam sem validade eventuais obrigações estabelecidas sem
a observância do necessário consentimento do proprietário do terreno (§ 6 da ErbbauRG).
Portanto, pode-se notar que vários elementos previstos legalmente como
integrantes do direito de superfície no Brasil, como é o caso do direito de preempção, não
são concedidos pela legislação alemã, sendo necessário seu estabelecimento pela via
contratual. Há então uma maior autonomia no Direito alemão no que toca à constituição de
direitos e obrigações das partes.
13. Surgimento e transferência (Entstehung und Übertragung)
A concessão e a transmissão do direito de superfície seguem os
princípios gerais atinentes à propriedade imobiliária (§§ 873 e ss do BGB). O surgimento
da surperfície não segue, entretanto, a forma estabelecida para alienação da propriedade
imobiliária, mas sim as disposições atinentes à sua oneração.60
§ 2 da ErbbauRG: “Zum Inhalt des Erbbaurechts gehören auch Vereinbarungen des
Grundstückseigentümers und des Erbbauberechtigten über: 1. die Errichtung, die Instandhaltung und die
Verwendung des Bauwerks; 2. die Versicherung des Bauwerks und seinen Wiederaufbau im Falle der
Zerstörung; 3. die Tragung der öffentlichen und privatrechtlichen Lasten und Abgaben; 4. eine Verpflichtung
des Erbbauberechtigten, das Erbbaurecht beim Eintreten bestimmter Voraussetzungen auf den
Grundstückseigentümer zu übertragen (Heimfall); 5. eine Verpflichtung des Erbbauberechtigten zur Zahlung
von Vertragsstrafen; 6. die Einräumung eines Vorrechts für den Erbbauberechtigten auf Erneuerung des
Erbbaurechts nach dessen Ablauf; 7. eine Verpflichtung des Grundstückseigentümers, das Grundstück an
den jeweiligen Erbbauberechtigten zu verkaufen”.
60
RAPP, Manfred, op. cit., p. 41.
59
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85
Pressupõe a existência de dois contratos. O primeiro negócio jurídico, um
contrato no qual alguém se obriga a fazer a concessão (ou transmissão) do direito de
superfície, deve seguir a forma estabelecida no § 311b 1 BGB e deve ser realizada perante
o notário. Trata-se de um contrato regido pelo direito obrigacional, que cria obrigações
para as partes, semelhante ao contrato de compra e venda.61
Contudo, é necessário, conforme o § 873 do BGB, um segundo negócio
jurídico, que constitui um acordo real de cumprimento (dingliches Erfüllungsgeschäft). Até
a entrada em vigor da ErbbauVO, tal acordo tinha a forma da Auflassung (§ 925 do
BGB),62 mas essa forma não é mais prescrita (§ 11, 1 ErbbauRG). Por fim, há o registro
imobiliário (Eintragung im Grundbuch), surgindo então o direito de superfície.63
Outrossim, também existem outras formas de surgimento, como: a
desapropriação (Enteignung), que sucede em função da legislação federal ou dos estados64
e; a usucapião tabular (Tabularersitzung), conforme o § 900, 2 do BGB, que ocorre se a
superfície ficou durante 30 anos erroneamente registrada no registro imobiliário e aquele
que a registrou a possuiu durante esse tempo como se fosse sua, não se fazendo necessária
a prova de boa-fé.65
A superfície é duplamente registrada no registro de imóveis, o que é feito
no livro referente à propriedade do terreno e em um livro específico, atinente ao direito de
superfície.66 No registro imobiliário do imóvel gravado é feito o registro acerca da sua
criação, extinção ou alteração de conteúdo, o que tem efeito constitutivo.67 Tais atos devem
ser realizados no local onde foi registrada a propriedade do terreno a ser onerado, sendo
então evidente ser a circunscrição imobiliária do local do terreno a competente para o
registro.68
Além disso, o conteúdo, a transferência e eventuais ônus sobre a
superfície devem ser registrados em um livro específico, chamado Erbbaugrundbuch,
61
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 374.
No Direito brasileiro não há um tipo de negócio jurídico como a Auflassung. Ela constitui um acordo de
transferência da propriedade relativa a um imóvel, que segue a forma prevista no § 925 do BGB (JAYME,
Erik; NEUSS, Jobst-Joachim. Wörterbuch Recht und Wirtschaft. Deutsch-Portugiesisch. 2. ed. München:
C.H. Beck, 2013, t. 2, p. 20).
63
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. 231.
64
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard, op. cit., p. 1401.
65
RAPP, Manfred, op. cit., p. 42.
66
STÜRNER, Rolf, op. cit., p. 345.
67
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 375.
68
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 600.
62
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86
conforme dispõe o § 14 da ErbbauRG. Seja como for, esse último registro não é
constitutivo do direito, mas tão somente uma formalidade do registro imobiliário.69
14. Tratamento semelhante ao do direito de propriedade
O direito de superfície é um direito real (dingliches Recht) ao qual é dado
um tratamento semelhante ao direito de propriedade imóvel,70 com exceção das normas
atinentes à Auflassung (§ 11, 1 da ErbbauRG). Assim sendo, vigoram para a superfície, por
exemplo, as regras sobre o regime patrimonial de bens entre os cônjuges (ehelichen
Güterrecht) e as regras do direito das sucessões.71
O tratamento assemelhado ao direito de propriedade também leva à
constrição da superfície, da mesma maneira que a propriedade, no decorrer de um processo
judicial de execução (Zwangsvollstreckung). E não poderia ser diferente no que toca aos
ônus, sendo admissível sua instituição sobre a superfície, ainda que se trate, conforme
entendem parte da doutrina e o BGH, da constituição de outra superfície (superfície de
segundo grau ou subsuperfície), ou seja, uma superfície onerando uma superfície
(Untererbbaurecht).72
Por fim, em caso de esbulho ou turbação, o superficiário, tal qual o
proprietário, dispõe de pretensões para a proteção de seu direito, previstas nos §§ 985 e
1004 do BGB (direitos de restituição e de abstenção de distúrbios).
15. Renda do direito de superfície (Erbbauzins)
O proprietário do imóvel gravado obtém uma contraprestação em
dinheiro, relativamente moderada, conhecida como Erbbauzins (solarium), que é paga pelo
superficiário. Tal remuneração é devida pelo fato de ter sido concedido o direito de
superfície pelo proprietário do imóvel, que abriu mão de sua posse direta e da possibilidade
de sua utilização (§ 9 ErbbauRG).73
De acordo com a legislação alemã, tanto o montante como o prazo da
Erbbauzins devem ser fixados antecipadamente, para toda a duração da superfície, o que
certamente representa um risco para o proprietário do imóvel. Realmente, a necessidade de
69
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 600.
RAPP, Manfred, op. cit., p. 18.
71
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 375.
72
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 376.
73
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 601.
70
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projeção dos os valores a serem pagos (§ 9 ErbbauRG) pode ser um fator bastante
complicado se houver instabilidade econômica, mesmo porque não existe na Alemanha o
instituto da correção monetária.74
Na prática, no entanto, desenvolveram-se cláusulas obrigacionais de
adequação, as quais possibilitaram o aumento e a redução da Erbbauzins, o que, por outro
lado, passou a ameaçar o caráter social da superfície. Para contornar a situação,
procurando-se assegurar o caráter social do instituto, foi introduzido o § 9a da ErbbauRG,
que previu ser possível que se estabeleça, obrigacionalmente, a modificação da Erbbauzins
para a sua adequação à alteração de circunstâncias. Aliás, no caso de elevação, o § 9a da
ErbbauRG prevê restrições para a proteção do caráter social da superfície.75
Por derradeiro, vale observar que a obrigação de pagamento do
Erbbauzins não é propriamente conteúdo do direito de superfície, mas um ônus em favor
do proprietário do imóvel que a concedeu. Para que seja assegurada eficácia absoluta à
remuneração a ser paga, é necessário seu registro como um ônus real (§§ 1105 e ss do
BGB).76
16. Término do direito de superfície (Beendigung des Erbbaurechts)
16.1. Rescisão (Aufhebung)
O direito de superfície pode ser rescindido, conforme estabelece o § 875
do BGB, mas é necessária a declaração do superficiário no sentido de que está renunciando
a seu direito, bem como o consentimento do proprietário do terreno (§ 26 da ErbbauRG).77
O § 26 da ErbbauRG trata então de uma forma de extinção do direito de
superfície através de um negócio jurídico, que depende da declaração de vontade do
superficiário e do proprietário do terreno. Isso significa que a superfície, nessa hipótese,
somente se extinguirá com a manifestação do proprietário do terreno, não tendo efeito
jurídico uma renúncia apenas por parte do superficiário.78
Deve-se notar ainda que a rescisão não se confunde com uma condição
resolutiva, mesmo porque, conforme o § 1, 4 da ErbbauRG, não é permitida a constituição
74
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 373.
OEFELE, Helmut Freiherr von, op. cit., p. 1506.
76
VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth, op. cit., p. 601.
77
WEBER, Ralph, op. cit., p. 42.
78
RAPP, Manfred, op. cit., p. 171-172.
75
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88
de superfície na qual se estabeleça que o superficiário renunciará ao seu direito caso haja a
ocorrência de determinadas condições.79
Em todo caso, deve-se observar que a declaração do superficiário pode
ser emitida diante do registro imobiliário ou do proprietário do terreno. O consentimento
do proprietário, que é irrevogável, é provado através de documento público ou com fé
pública. Ademais, eventualmente também será necessário o consentimento de terceiros que
tiverem outros direito reais sobre a superfície, como um direito real de garantia (e.g.
hipoteca).80
Por fim, a extinção demanda seu registro no registro imobiliário, o que é
feito tanto no livro onde está registrado o terreno (Grundbuch) como no livro especial de
registro da superfície (Erbbaugrundbuch).
16.2. Extinção por decurso de prazo (Zeitablauf)
A superfície se extingue normalmente com o decurso de determinado
prazo estabelecido no negócio jurídico,81 matéria que é regulada pelos §§ 27 a 30 da
ErbbauRG. Na prática, os prazos de contratação variam entre 30 e 100 anos, sendo muito
comum a fixação do prazo de 99 anos.82 Contudo, como não há um prazo limite
estabelecido pela legislação,83 entende-se que é possível sua contratação por prazo
indeterminado (ewiges Erbbaurecht).84
Decorrido o prazo, encerra-se a superfície automaticamente, sem
necessidade de uma declaração de vontade específica. Com isso, a propriedade sobre a
construção passa também automaticamente ao proprietário do terreno.85
Nesse contexto, em função do decurso do prazo, fica o registro
imobiliário incorreto, sendo necessária a sua retificação (Grundbuchberichtigung). O
proprietário do imóvel pode, conforme o § 894 do BGB, exigir o consentimento do
superficiário para a regularização do registro imobiliário, caso o próprio superficiário não
79
RAPP, Manfred op. cit., p. 171-172.
RAPP, Manfred, op. cit., p. 171-172.
81
WEBER, Ralph, op. cit., p. 42.
82
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 377.
83
No Brasil, o direito de superfície, regulado pelo Código Civil, deve ser concedido por prazo determinado
(art. 1.369 do CC). No Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por outro lado, a concessão do direito de
superfície poderá ser por tempo determinado ou indeterminado (art. 21).
84
DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard, op. cit., p. 1400.
85
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. 309.
80
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89
tenha já tomado tal medida (§ 22, 2 da Ordenança de Registro Imobiliário –
Grundbuchordnung – GBO).86
Extinta a superfície pelo decurso de prazo, cabe ao titular do direito de
superfície, contra o proprietário do imóvel, uma pretensão legal ao pagamento de
indenização (§ 27 I ErbbauRG).87 As partes podem deliberar, como conteúdo da superfície,
acerca do valor da indenização ou sobre sua exclusão, o que terá eficácia real sobre o
imóvel e sobre a superfície (§ 27, I, 2 da ErbbaRG). Na falta de referida disposição em
sentido contrário, a própria obrigação legal de indenizar também terá a mesma eficácia.88
Ademais, para evitar o pagamento de indenização, o proprietário do
terreno pode oferecer ao superficiário, antes do decurso do prazo, a possibilidade de
prorrogação de seu direito pelo tempo de vida previsível da edificação. Em caso de recusa
do superficiário, há então a extinção do dever de pagamento da indenização.89
Por derradeiro, o § 29 da ErbbauRG prevê ainda que o credor titular de
um direito de garantia sobre a superfície, mesmo com o decurso do prazo da superfície,
ainda se beneficia dessa garantia no que toca ao valor da indenização paga.
16.3. Reversão (Heimfallrecht)
A chamada reversão se distingue da extinção da superfície, pois nesse
caso o superficiário está obrigado a transferir seu direito ao proprietário do terreno. Assim,
não há propriamente extinção da superfície, cabendo ao proprietário do terreno decidir se
depois irá extinguir ou transferir a superfície a um terceiro.90 Também não há extinção dos
direitos reais de garantia (Grundpfandrechte) que oneram a superfície, permanecendo sua
existência, desde que eles não caibam ao proprietário do terreno (§ 33 da ErbbauRG).
A reversão é acordada pelo proprietário do terreno e pelo superficiário (§
2, 4 da ErbbauRG), como regra, já no momento em que a superfície é constituída. Trata-se
de uma espécie de direito real de aquisição (dingliches Erwerbsrecht), que onera o direito
de superfície e se liga inseparavelmente à propriedade do terreno (§ 3 da ErbbauRG).91
86
INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker, op. cit., p. 309.
WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007, p. 383.
88
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 377.
89
WIELING, Hans Josef, op. cit., p. 383.
90
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 377.
91
WIELING, Hans Josef, op. cit., p. 384.
87
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 7 – Jan / Mar 2016
90
As razões para a ocorrência da reversão podem ser acordadas livremente
pelas partes, mas devem ter relação objetiva com o direito de superfície.92 Nessa linha, o
principal caso é o atraso no pagamento do solarium (Erbbauzins), mas a pretensão à
reversão somente será cabível se pelo menos dois anos de solarium estiverem em atraso (§
9 IV ErbbauRG).93 Outras hipóteses normalmente acordadas são o atraso na construção, a
alteração não autorizada do uso, a negligência na manutenção, a insolvência do
superficiário, bem como a morte do proprietário do terreno ou do superficiário.94
Com o preenchimento da pretensão de reversão, há a transferência da
superfície e o superficiário perde a propriedade sobre a construção, que em regra ele
mesmo construiu. Não é permitido ao superficiário, com a reversão ou com a extinção da
superfície, a retirada da construção ou a apropriação de parte dela (§ 34 ErbbauRG). Em
contrapartida, o superficiário tem uma pretensão de reembolso, senão o proprietário do
terreno se enriqueceria às suas custas (§ 32 ErbbauRG).95
Os valores são, como regra, fixados antecipadamente na contratação feita
entre as partes (§ 32 I 2 ErbbauRG). É possível a exclusão da pretensão de reembolso em
favor do superficiário, mas é raro isso ocorrer.96
16.4. Destruição da edificação (Untergang des Bauwerks)
A destruição da edificação não causa a extinção do direito de superfície,
matéria expressamente regulamentada pelo § 13 da ErbbauRG.97 De fato, como se
considera que o direito de superfície possibilita a construção de um edifício, não seria
nenhuma condição jurídica a existência da edificação para o surgimento do direito de
superfície.98
Por conseguinte, não existindo vinculação entre a existência da
edificação e o direito de superfície, a destruição da primeira não leva à extinção do
segundo.
17. Considerações finais
92
WEBER, Ralph, op. cit., p. 43.
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 378.
94
WIELING, Hans Josef, op. cit., p. 384.
95
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 378.
96
PRÜTTING, Hanns, op. cit., p. 378.
97
§ 13 ErbbauRG: “Das Erbbaurecht erlischt nicht dadurch, daß das Bauwerk untergeht”.
98
WEBER, Ralph, op. cit., p. 44.
93
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91
A superfície é um importante instrumento de política do solo, que
infelizmente não tem encontrado grande utilização no Direito brasileiro. Os entes públicos
podem, através dela, promover a urbanização e o aproveitamento de bens públicos
dominicais (terras estatais sem uso), mesmo porque muitas vezes o Poder Público, apesar
de possuir patrimônio, não tem recursos para a sua utilização, em especial quando se trata
de edificação.
Nesse contexto, a superfície, ao lado dos tradicionais contratos de
concessão ou de comodato, muito difundidos quando um ente público autoriza outro ente
público a edificar em terreno de sua propriedade, bem como a utilizá-lo por determinado
prazo, poderia ser uma opção à disposição daqueles que pretendem uma contratação com
maior segurança, cujos efeitos jurídicos não são meramente obrigacionais, mas reais.
Ademais, na mesma senda, também é possível seu uso em
empreendimentos particulares, nos quais, aqueles que vão realizar edificações em
propriedade alheia, não pretendem estar garantidos por mera contratação, sendo muito
mais segura a constituição de um direito real de superfície.
Por conseguinte, considerando essa análise do Direito alemão, parece-nos
que no Brasil esse direito real precisa ser melhor utilizado, o que permitirá, retomando
mesmo suas origens romanas, seu emprego para uma mais adequada realização do
princípio da função social da propriedade.
Recebido em 22/02/2016
1º parecer em 10/03/2016
2º parecer em 14/03/2016
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 7 – Jan / Mar 2016
92
O PAPEL DA DOUTRINA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E À(O) ADOLESCENTE
FRENTE ÀS PERSPECTIVAS DE GÊNERO.
PROPOSTAS DE OLHARES MULTIDIMENSIONAIS ACERCA DOS
DESEMPODERAMENTOS EM FAMÍLIA
The role of the child and adolescent protection doctrine in the face of gender
perspectives.
Proposed multidimensional looks on family disempowerment
Lígia Ziggiotti de Oliveira
Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná.
Mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição (2015).
Professora de Direito Civil da graduação em Direito do Centro Universitário
Autônomo do Brasil. Pesquisadora visitante do Instituto Max-Planck
de Direito Comparado e Direito Internacional Privado
em Hamburgo, na Alemanha. Advogada.
Resumo
O presente artigo tem por escopo discutir os desafios da incorporação dos direitos humanos
e fundamentais das crianças e das(os) adolescentes a partir de perspectivas de gênero.
Apresenta-se, para tanto, protótipo de framework acerca da temática para possibilitar
reflexões críticas no âmbito do Direito das Famílias, com o objetivo de impulsionar
argumentos conscientes das fissuras que acompanham a compreensão neutra, do ponto de
vista de gênero, dos direitos dedicados à infância e à juventude. Com isso, sugere-se uma
análise menos celebratória e mais atenta não só às potências dos enunciados jurídicos
pertinentes, mas ainda às impotências da realidade vivida por tais personagens.
Palavras-chaves
Direitos da infância e da juventude; direito das famílias; perspectivas de gênero.
Abstract
This article aims to discuss the challenges of incorporating human and fundamental rights
of children and teenagers from gender perspectives. Therefore, it presents a framework
prototype about the theme to enable critical reflection within Family Law, aiming to
promote arguments aware of the gaps in gender-neutral comprehension, from the point of
view of gender and human rights dedicated to childhood and youth. With that, a less
celebratory and more attentive analysis is suggested, not only to the power of legal
statements but also to the powerlessness of the reality experienced by such characters.
Keywords
Children's and youth rights; family law; gender perspectives.
Sumário
1. Considerações iniciais sobre a proteção das crianças e das(os) adolescentes a partir da
perspectiva de gênero – 2. Pontos de partida para a reflexão doutrinária – por onde
começar o debate? – 3. Propostas metodológicas – como conduzir o debate? – 4. Motivos
de ordem prática e teórica – por que enfrentar o debate? – 5. Considerações finais sobre o
papel da doutrina da proteção à infância e à juventude frente às perspectivas de gênero
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1. Considerações iniciais sobre a proteção das crianças e das(os) adolescentes a partir
da perspectiva de gênero
Considerada a narrativa histórico-jurídica em torno da família, é possível
constatar que as personagens representadas pelas mulheres, pelas crianças e pelas(os)
adolescentes restaram, na tradição legal codificada, reduzidas a meras sombras. As
projeções se efetivaram através de um prisma adulto e androcêntrico que não se debruçava
sobre estas identidades, mas apenas as tangenciava com o fito de funcionalizá-las segundo
o roteiro masculino.1
Aproximadas,
circunstancial
e
espacialmente,
quase
que
em
complementaridade, às margens da sociedade patriarcal, surpreende que as narrativas sobre
as insurgências delas, adultas, e das(os) jovens, a partir das suas condições análogas de
desempoderamento, desencontrem-se em dimensões tão expressivas na produção
bibliográfica. E, por consequência, desérticas as considerações desta ordem na ratio
decisória em jurisprudência que transpassa tantos conflitos protagonizados por crianças e
por adolescentes tangenciando mulheres adultas as quais, não raras vezes, representam
as(os) filhas(os) nos processos judiciais de família.
Enquanto, do ponto de vista de gênero,2 a conclusão crítica se evidencia
pela anterior previsão da cooperação da mãe e esposa sujeitada à voz de comando do pai e
marido, do ponto de vista infanto-juvenil, a alusão merece digressão mais profunda, vez
que recebe diminuta atenção de juristas.
Ao passo que se mitigaram possibilidades às vivências femininas pela
restrição
ao
espaço
doméstico,
sobre
as(os)
jovens
se
abateu
o
silêncio.
Instrumentalizaram-se, eventualmente, seus contornos conforme a utilidade aos preceitos
do patriarcado, em especial, no mesmo âmbito privado, em associação à dependência
afetiva à figura materna.
É sabido que se perpetuou o controle do corpo e do desejo femininos –
traço típico do contexto moderno –, para que não exercessem a liberdade de resistir ao
1
Destaque-se que neste referencial masculino codificado se insere, em especial, o homem branco,
heterossexual, trabalhador, proprietário e contratante.
2
Segundo definição consolidada, gênero corresponde aos atributos construídos cultural e socialmente ao
feminino e ao masculino, ao passo que sexo se resume ao elemento biológico. Anota-se, porém, que a
tratativa da transexualidade tem conduzido à afirmação de que nós tão fortes amarram tais conceitos que já
não se pode abrir mão de mencionar quaisquer deles, sendo ainda incipiente torná-los mais complexos. A
propósito: BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Org.: Guacira Lopes Louro. 2 Ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000, p. 151-168.
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padrão dominante sem o devido ônus – tal qual a natureza, na qual ainda se fundamenta
um sem número de narrativas sobre a condição feminina, que é originalmente selvagem e
deve ser dominada.
Portanto, ao pai e marido já se concedeu, normativamente, o
protagonismo na esfera pública, encarregado da função econômica, e a liderança do lar e
da companheira, em razão de atributos ligados, segundo o pensamento dominante, ao polo
masculino, como melhor uso da razão, da prudência, da lucidez, da força, da inteligência e
da objetividade. A rigor, o movimento de exclusão sempre se justificou como ilha de
proteção da mulher quanto às próprias escolhas. Reaver a posição de sujeito em
substituição à de objeto em prol da figura feminina tem sido questão central no debate de
gênero, que encontra profícuo campo entre os direitos humanos e fundamentais.3
Conforme se pode aventar, analogamente, ambivalente é a rede defensiva
da criança e da(o) adolescente.4 Parece tal aparato resistente tanto ao reconhecimento de
qualquer autonomia destas(es), quanto ainda resistente à construção de abordagens
jurídicas verdadeiramente autênticas à particularidade de seus universos. É importante que
a crítica acompanhe o pensamento jurídico para desmistificar a família, dando, enfim, voz
à sua “versão real”, não à sua “versão plástica”.5
Neste sentido, o presente trabalho discute os desafios da incorporação
dos direitos humanos e fundamentais das crianças e das(os) adolescentes a partir de uma
perspectiva de gênero, apresentando protótipo de framework acerca da temática para
futuros tratamentos doutrinários.
2. Pontos de partida para a reflexão doutrinária – por onde começar o debate?
Com o objetivo de se tornarem nítidas as possibilidades de conjugação
dos direitos humanos e fundamentais das personagens em análise, extraem-se pontos de
partida de investigação doutrinária rumo à reinvenção do tema proposto. Na sequência,
aventam-se reflexos ilustrativos das premissas expostas, neste momento, abstratamente.
Não seria equivocado condensá-los sob uma única insígnia, pois “mesmo não havendo um conceito fechado
determinado dos direitos humanos e fundamentais, ou ainda um fundamento consensual destes, nota-se que
todos convergem distintamente à ideia da dignidade da pessoa humana” (FACHIN, Melina Girardi. Direitos
humanos e fundamentais do discurso à prática efetiva: um olhar por meio da literatura. Porto Alegre: Nuria
Fabris, 2007, p. 76).
4
BOOTH, Penny. “It’s a wise man (sic) who knows his own father...” – Fatherhood’s ‘human right’
recognised: the unmarried father and English law”. In: Family life and human rights. Org.: Peter Lodrup; Eva
Modar. Gyldendal Akademisk: Oslo, 2004, p. 105.
5
FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fins. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 157.
3
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Em primeiro lugar, propõe-se que há uma série de desencontros entre a
questão de gênero e a proteção das(os) jovens em contextos familiares quando considerada
a produção jurídica bibliográfica e jurisprudencial brasileiras. A conjugação dos direitos
fundamentais e humanos referentes às mulheres e referentes àquelas outras personagens
desempoderadas no mesmo ambiente de convivência não se promove a contento. Profícuo,
portanto, o ambiente para a promoção de possibilidades de encontro entre estas
perspectivas.
Conforme observa Michael Freeman, em relação à primazia do melhor
interesse da criança e da(o) adolescente, que se consagra constitucionalmente, não é
incomum a crítica, por parte de estudiosas europeias da questão de gênero, de que seria
absurdo elevar, prima facie, a figura dos filhos, invisibilizando as adultas, também
vulneráveis neste contexto.6
Por outro lado, e em conformidade com o mesmo autor, há quem prefira
o posicionamento atento à interpretação de tal princípio, que muitas vezes é usado como
verdadeira arma do conservadorismo.7 Com isso, a fragilidade política deste grupo8
reverte-se na manipulação de seu arcabouço protetivo como avesso à alteridade e à
pluralidade. Ao nosso ver, este segundo posicionamento é mais adequado e oferece
hipóteses de estudo mais complexas a juristas atentas(os) à melhor hermenêutica acerca do
ordenamento jurídico pátrio.
Um dos primeiros escudos normativos que compõem referida rede
defensiva, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, expressa a
relevância da expressão destes indivíduos, cujas possibilidades de opinião sobre os
próprios rumos devem ser ampliadas e respeitadas. Ademais, a doutrina da proteção
integral é extraída da Constituição e acolhida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
ambos capazes de elevá-las a prestigiar, ineditamente, a condição de sujeitos de direito.
6
FREEMAN, Michael. Feminism and child law. In: Feminist perspectives on child law. Org. Jo Bridgeman;
Daniel Monk. Londres: Cavendish, 2000, p. 31.
7
FREEMAN, Michael. Feminism and child law. In: Feminist perspectives on child law. Org. Jo Bridgeman;
Daniel Monk. Londres: Cavendish, 2000, p. 31. Neste sentido, ainda, sobre o questionável desvio do melhor
interesse da criança e da(o) adolescente em casos de adoção em direção aos modelos tradicionais de família:
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; DE OLIVEIRA, Lígia Ziggiotti. O princípio do melhor interesse da criança
nos processos de adoção e o direito fundamental à família substituta. Revista de Direitos Fundamentais e
Democracia, Curitiba, v. 12, n. 12, julho-dezembro 2012.
8
Evidentemente, tal fragilidade se destaca em torno da infância, ao passo que a juventude, não raramente,
ilustra potência em processos de lutas sociais. É o caso do corpo docente das escolas públicas paulistas, que
se organiza, desde meados de 2015, contra a reestruturação do ensino estadual proposto pelo governo. Com
isso, contrasta-se o argumento de que não teriam qualquer agência para demandar por seus interesses.
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Portanto, o projeto de reinvenção da proteção destas personagens deve
ampliar seu sentido, de modo que ultrapasse a previsão escrita e se apresente na realidade
vivida. Neste sentido:
Torna-se imperativo reconhecer a capacidade de ação dos menores,
embora ainda sujeitos ao poder familiar, para o exercício dos seus direitos
fundamentais, devendo-se, nesses casos, no mínimo, inverter a presunção
de capacidade (e não de incapacidade), mesmo porque, como se sabe, ela
é regra (sendo exceção a incapacidade). Visa-se compartilhar esse saber
já há muito consolidado para o incremento de um consistente pensamento
jurídico no que tange às relações paterno-filiais, em que às crianças e aos
adolescentes deve ser atribuída, como titulares de direitos, a capacidade
do seu exercício, em prol da realização de seus interesses, através de
prerrogativas e direitos específicos.9
Evidente, com isso, a atenção que merece a temática, tendo em vista a
ampla distância entre perspectivas deontológica e ontológica que a cercam.
Por fim, constrói-se outra premissa sobre a qual pode se debruçar a
doutrina e que se interliga, intimamente, com a anterior. Trata-se de observar que
argumentos respaldados, nomeadamente, na defesa dos direitos da(o) jovem vulnerável,
blindam, comumente, estereótipos de gênero e idealização de papeis em família segundo
balizamentos comuns ao heteropatriarcado.
Neste sentido, transparece a ambivalência da rede protetiva da infância e
da juventude, que pode limitar substancialmente a autonomia das(os) destinatárias(os) das
garantias humanas e fundamentais, bem como visar ao enquadramento tradicional e
conservador destas identidades em formação.
Com isso, abre-se a possibilidade de se investigarem os pontos de partida
de reflexão sob a perspectiva de gênero – sem, entretanto, ter a pretensão de neutralidade
ou de totalidade – para que se possa, a partir de uma ampliação na visualização destas
abordagens, contribuir com os estudos sobre a análise dos desempoderamentos em
contextos familiares.
A mera descrição das diretrizes constitucionais e infraconstitucionais
pode conduzir a graves consequências de ocultamento de injustiças, quando “os vários
elementos da realidade que, em que pese serem importantes ou decisivos, se qualificam
9
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A nova família, de novo: estruturas e função das famílias
contemporâneas. In: Revista Pensar: Revista Jurídica da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, vol. 18, n. 2,
Maio/agosto 2013, p. 611.
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como insignificantes, acessórios e secundários a tal ponto que podem ser ignorados, assim
como pode ser a vida de alguns ou de muitos seres humanos”.10
Emerge, pois, a questão sobre a pretensa filtragem científica de tal
consternação, considerado, para tanto, o paradoxo do distanciamento do objeto de estudo,
apresentado pelo positivismo como único viés válido de análise, e que se busca, portanto,
superar para que se impactem as vivências.
3. Propostas metodológicas – como conduzir o debate?
A análise puramente asséptica e abstrata acerca da condição humana à
que se referem as(os) juristas revela-se incapaz de conceber a intersecção desejada no trato
das vulnerabilidades. Portanto, a condução do debate deve partir de uma metodologia
comprometida com a efetiva proteção de um determinado grupo, como as mulheres, as
crianças ou as(os) adolescentes. E, neste diapasão, cortes de diferentes naturezas, como
racial, social e econômico oferecem, progressivamente, maior precisão quanto ao espaço e
à temporalidade na qual se insere o fenômeno jurídico contemporâneo.
Ademais, seguindo o mais atualizado posicionamento, em estudos de
gênero, pressupõe-se haver, também entre jovens, grupos bem mais vulneráveis que
outros11. Por consequência, o futuro da abordagem jurídica das realidades familiares parece
residir na interseccionalidade.12 Ainda que se verifica como germinal a produção científica
neste sentido, valorizam-se cortes como sexo, gênero, raça e condição socioeconômica na
análise da infância e da juventude efetivamente vivenciadas.
Conforme observado por Alda Facio, em direito, trabalha-se não só com
componentes formais-normativos, mas também com componentes estruturais e com
componentes político-sociais.13 Com isso, dificulta-se a tarefa de se afastar o balizamento
discriminatório pela compreensão insuficiente dos componentes formais-normativos, em
especial em temas relativos à parentalidade.
10
RUBIO, David Sánchez. Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações e
dominações. Trad.: Ivone Fernandes Morchillo Lixa; Helena Henkin. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2014, p. 77.
11
MALIK, Maleiha. ‘The branch on which we sit’: multiculturalism, minority women and family law. In:
Feminist perspectives on family law. Org.: Alison Diduck; Katherine O’Donevan. Abingdon: RoutledgeCavendish, 2006.
12
FEW-DEMO, April. Intersectionality as the “new” critical approach in feminist family studies: envolving
racial/ethnic feminisms and critical race theories. In: Journal of Family Theory & Review, Hoboken, n. 6,
Junho 2014, p. 169-183.
13
FACIO, Alda. Cuando el género suena cambios trae: una metodologia para el análisis de género del
fenómeno legal. 2 Ed. San José: Ed. ILANUD, 1996, p. 70-85.
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Referida
discussão
enseja,
portanto,
verificação
sobre
como
determinados enunciados provenientes das vozes do Direito, incluindo das extraídas de
diplomas internacionais e nacionais protetivos de vulnerabilidades, destacada a
Constituição, ajustam-se à experiência cotidiana das crianças, dos adolescentes e das
mulheres.
Nos termos de Ignacio Ellacuria, o método da “verificación práxica”
permite vislumbrar, mesmo que selecionados para tanto eventos singelos e características
específicas de determinado conceito, de que maneira os processos sociais passado e
presente se distanciam de ideais fundados na linha do normatizado.14
Sugere-se, destarte, que a doutrina priorize uma abordagem que vise
explorar a profundidade das raízes de determinada negatividade que abate certos grupos
sociais, cotejando-a à positividade proclamada em normas,15 delineando, deste modo, os
desafios no processo de empoderamento de personagens cujas narrativas de sujeição se
aproximam.
Longe de rejeitar a relevância da referência normatizada, que é
indispensável, a crítica quanto a algumas permanências na linha do praticado visa à
conclusão de que é desejável que o emancipado se depreenda de vivências, não só de
enunciados,16 para que não se recaia na ilusão de que o avanço legislado corresponde a um
suficiente avanço nas experiências de vida.
4. Motivos de ordem prática e teórica – por que enfrentar o debate?
A linha entre teoria e prática não pode sugerir dicotomia. Ao revés, deve
o olhar crítico se concentrar em reconciliações de modo criativo e adequado através da
exposição de uma série de dilemas e de inconsistências nas variadas experiências a que se
destinariam a norma e a doutrina.17
14
ELLACURIA, Ignacio. La construcción de un futuro distinto para la humanidad. In: La lucha por la
justicia: selección de textos de Ignacio Ellacuría (1969-1989). Org.: Juan Antonio Senent. Universidad de
Deusto: Bilbao, 2012, p. 366.
15
ELLACURIA, Ignacio. La construcción de un futuro distinto para la humanidad. In: La lucha por la
justicia: selección de textos de Ignacio Ellacuría (1969-1989). Org.: Juan Antonio Senent. Universidad de
Deusto: Bilbao, 2012, p. 369.
16
FRUTOS, Juan Antonio Senent de. El método de la historización de los conceptos normativos. In: Teoria
crítica del derecho: nuevos horizontes. Org.: David Sánchez Rubio; Juan Antonio Senent de Frutos. Chiapas:
Centro de Estudios Juridicos e Sociales Mispat, 2013, p. 175.
17
JARAMILLO, Isabel Cristina. La crítica feminista al derecho, estudio preliminar. In: Género y teoría del
derecho. Org.: Robin West. Bogotá: Siglo de Hombres Editores, Facultad de Derecho de la Universidad de
Los Andes, Ediciones Uniandes, Instituto Pensar, 2000, p. 126-127.
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Sabe-se que o trajeto de reconhecimento dos direitos da infância e
juventude remonta a tempos recentes. Segundo observa Tânia da Silva Pereira:
A história da humanidade é história dos adultos. Se hoje a criança e o
adolescente são sujeitos de direitos reconhecidos no ordenamento jurídico
nacional e internacional, objeto de amor e de intensa proteção e
afetividade da família, é preciso lembrar que nem sempre gozaram desse
privilegiada situação.18
Não por menos, a análise desta rede protetiva ainda carece de olhar
crítico, sob o risco de que recaia o discurso sobre os direitos da criança e da(o) adolescente
em mero senso comum produzido pela enunciação reticente da proteção integral destas
personagens. Não podem jazer os direitos humanos e fundamentais em uma reprodução
anestesiada do que está posto,19 mas deve ser o movimento de sua interpretação verdadeira
luta jurídica pelo empoderamento das(os) mais flageladas(os) socialmente em contextos
mais amplos.20
Destarte, as tensões de gênero podem propulsionar compreensões
inovadas acerca da infância e da juventude. Introdutoriamente, elencou-se a aproximação
das trajetórias destes indivíduos em formação às das mulheres na reafirmação de suas
posições como sujeitos de direito.
Na sequência, destacou-se a imaturidade dos direitos da criança e da(o)
adolescente, agravada pela diminuta força política destes como grupo organizado,
especialmente quando considerada a realidade infantil. Questiona-se, pois, da ambivalência
da rede protetiva de que são destinatárias(os) sem gozarem, porém, de protagonismo nas
próprias histórias. Assim, “em outro nível, a posição social da criança como a mais
vulnerável serve para consolidar na imaginação adulta uma específica leitura das relações
entre adultos e crianças. Nesta, o adulto é racional, competente e sábio, enquanto a criança
não.21,22
18
PEREIRA, Tânia da Silva. Em busca do melhor interesse da criança. In: Encarte especial baseado nas
palestras e debates do seminário. Além da adoção, realizado em 29 de agosto, no Teatro Eva Hertz, em São
Paulo. Le Monde Diplomatique Brasil, outubro 2011.
19
RUBIO, David Sánchez. Repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilha: MAD,
2007.
20
FRUTOS, Juan Antonio Senent de. El método de la historización de los conceptos normativos. In: Teoria
crítica del derecho: nuevos horizontes. Org.: David Sánchez Rubio; Juan Antonio Senent de Frutos. Chiapas:
Centro de Estudios Juridicos e Sociales Mispat, 2013, p. 16.
21
LIM, Hilary; ROCHE, Jeremy. Feminism and children’s rights. In: Feminist perspectives on child law.
Org. Jo Bridgeman; Daniel Monk. Londres: Cavendish, 2000, p. 247.
22
Tradução livre para: “At another level, the social positioning of the child as the most vulnerable serves to
consolidate in the adult imagination a particular reading of the adult-child relationships. In this, adult is
rational, competente and knowledgeable, while child is not”.
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Com efeito, manejar o melhor interesse desta parcela da população pode
implicar na formatação deste ao gosto de moldes majoritários, que são, em geral,
resistentes ao empoderamento de grupos vulneráveis, aspecto contra o qual deve se
posicionar o combate do patriarcado. Ao lado de tal dificuldade, reside a neutralização, do
ponto de vista de gênero, dos enunciados jurídicos direcionados à infância e à juventude.
Dois exemplos, na seara paterno-filial, ilustram este embasamento.
Indicam-se a situação das crianças e das(os) adolescentes abrigadas(os), em processo de
adoção, e portanto em um contexto precedente ao familiar, e, ainda, a situação daquelas em
contexto posterior ao divórcio dos pais, tanto quando há acirrada disputa pela guarda,
quanto quando se alega abuso sexual da(o) jovem por parte de um dos ascendentes, em
cotejo à alienação parental.
Em primeiro lugar, importa destacar a interpretação do melhor interesse
da(o) abrigada(o) como possível disfarce, em oposição às parentalidades diversas do
modelo tradicional, durante o processo de adoção. Sobre o tema, em outro momento,
colhemos, da concretude, tanto a reprodução de um certo padrão pelas(os) adotantes, que
se pautam por critérios raciais e sexistas claros na disponibilidade de acolhimento das(os)
jovens, quanto via de se garantir, por parte de operadores jurídicos, “aos que estão nas
instituições à espera de um lar, um perfil familiar que não resume a realidade brasileira,
bastante plural, mas apenas uma idealização infundada”.23
Quanto à primeira afirmação, constam os dados:
De acordo com o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em
Serviços de Acolhimento, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz com
dados colhidos entre setembro de 2009 e novembro de 2010, havia nesse
período cerca de 37 mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos em
todo o país. Desse total, 9% encontravam-se aptos para adoção, mas
apenas 2% já estavam em “processo de colocação em adoção” (já em
contato com os adotantes). Dos quase 27 mil adultos que aguardam na
fila para adotar, certa de 37% só aceitam crianças brancas, e a maioria
procura crianças pequenas do sexo feminino, ao passo que 75% das
crianças e adolescentes que vivem em abrigos têm mais de 5 anos de
idade, 52% são meninos e apenas 41% são brancos.24
A própria enunciação normativa, em matéria de adoção, permite
investigar a compreensão circundante do que constitui família e o alcance que tal design
23
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; DE OLIVEIRA, Lígia Ziggiotti. O princípio do melhor interesse da
criança nos processos de adoção e o direito fundamental à família substituta. Revista de Direitos
Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 12, n. 12, julho-dezembro 2012, p. 297.
24
MOTTA, Maria Antonieta Pisano. Mães que abandonam e mães abandonadas. In: Encarte especial
baseado nas palestras e debates do seminário. Além da adoção, realizado em 29 de agosto, no Teatro Eva
Hertz, em São Paulo. Le Monde Diplomatique Brasil, out/2011.
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mantém em uma sociedade onde coexistem posições de dominação e de sujeição, 25 ainda
mais se consideradas as relações paterno e materno-filiais. Assim, é possível considerar
que tais relações constroem verdadeira metáfora acerca do patriarcalismo, evocando
hierarquias de poder que remetem ao masculino e ao feminino.26
Paralelamente, a monoparentalidade materna associada à condição de
miserabilidade familiar enseja reflexão. Com efeito, em 2005, “a mais alta porcentagem de
pobreza compreendia famílias constituídas por mulheres com crianças e sem a presença de
maridos. Mais da metade das pessoas em famílias deste tipo no Brasil são pobres”.27,28
Contudo, tal entidade familiar segue acriticamente associada pela doutrina a um sintoma
inequívoco da independência feminina em nosso país, em incremento à invisibilidade do
sofrimento de tais mulheres.
O acesso a serviços de creche no tempo necessário para que as mães se
mantenham no trabalho externo é garantia de uma específica e privilegiada classe social,
problema que se agrava diante da quantidade delas inseridas no trabalho informal, o que é
impeditivo de várias garantias trabalhistas.29
Ao lado, portanto, do avanço doutrinário, muito em razão do positivo
impulso pelo pensamento civil-constitucional, quanto ao reconhecimento das pluralidades
familiares pretensamente desprendidas do modelo anterior, parece ausente a reflexão de
que “a partir da perspectiva de mulheres trabalhadoras, não preencher os ideais burgueses
de gênero tem sido comumente traduzido no encargo da dupla jornada. Para elas, em
particular, a constituição de matriarcados, sem um homem provedor, tem levado à pobreza
e à miséria acentuada”.30,31
25
ALEGRE, Marcela Huaita. Derecho de custodia, neutralidad de gênero, derechos humanos de la mujer e
interes superior del niño o niña. In: Genero y derecho. Org.: Alda Facio; Lorena Fries. Santiago: La Morada,
1999, p. 371.
26
FREEMAN, Michael. Feminism and child law. In: Feminist perspectives on child law. Org. Jo Bridgeman;
Daniel Monk. Londres: Cavendish, 2000, p. 19.
27
SORJ, Bila; GAMA, Andrea. Family policies in Brazil. In: Handbook of family policies around the globe.
Ed. Mihaela Robila. New York: Springer, 2014, p. 461-462.
28
Tradução livre para: “(…) the highest percentage of poor in the country comprised families constituted of
women with children and without the presence of husbands. More than half of the people in families of this
type in Brazil are poor”.
29
SORJ, Bila; GAMA, Andrea. Family policies in Brazil. In: Handbook of family policies around the globe.
Ed. Mihaela Robila. New York: Springer, 2014, p. 466.
30
SARDENBERG, Cecilia. Women’s empowerment through generations in Brazil. In: Feminisms,
empowerment and development. Coord.: Andrea Cornwall; Jenny Edwards. Londres: Zed Books, 2014, p.
309.
31
Tradução livre para: “From the perspective of women workers, the non-fulfilment of bourgeois gender role
ideals has often been translated into the burden of a double day. For these women, in particular, the
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De outra banda, em estado de vulnerabilidade menos agudo, mas
inspirador de abalizamentos atentos ao pleno desenvolvimento das(os) filhas(os), estão
aquelas(es) que presenciam a rota – não raras vezes, acidentada – do divórcio. Destacamse, neste ínterim, os temas de guarda e de alienação parental, os quais ensejam diálogo com
o debate de gênero.
Com efeito, a partir desta última perspectiva, apresenta-se como
preocupante que se pressuponha participação mútua dos pais na criação da prole durante a
vigência da relação conjugal. Destarte, a aplicação mecânica da modalidade compartilhada
em uma relação fundada na dominação pode não resultar em uma responsabilização
conjunta, e, ainda, pode aprofundar um quadro disfuncional se considerada a condição
feminina, e que não necessariamente reflete melhor atendimento aos interesses das(os)
filhas(os). É o que ocorria, com clareza, em processos de inversão de guarda relacionados
exclusivamente à conduta sexual da mãe.32
A jurisprudência nacional acatou, sem resistência, a iniciativa da guarda
compartilhada, pois que, antes da alteração legal, já o Superior Tribunal de Justiça
consolidava a modalidade como preferencial, independentemente do consenso dos pais e a
despeito da experiência conjugal anterior ao fim do casamento – se atestava
compartilhamento de responsabilidade ou sobrecarga da mulher a ensejar um contexto de
paternidades pouco comprometidas com o que a sua condição exige, e apenas com o que
realiza.
Extrai-se, de referido balizamento decisório, que esta modalidade é a
ideal e que é necessária adequação dos pais a ela, “mesmo que demandem deles
reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir,
durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial”.33 Porém, “apesar de o
Judiciário insistir em que os pais têm de trabalhar juntos, nenhum detalhamento que os
guie é dado para que tal objetivo seja alcançado; um indicador de que isso é encarado
como um problema doméstico para além dos limites do Direito”.34, 35
constitution of matrifocal families, without a stable male provider, has represented a result of poverty, an
overload of misery”.
32
DI GIORGI, Beatriz; PIMENTEL, Silvia; PIOVESAN, Flávia. A figura/personagem mulher em processos
de família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 52.
33
BRASIL. 3ª Turma Cível. Superior Tribunal de Justiça, REsp 1428596, Relatora Ministra Nancy Andrighi,
julgado em 03 de junho de 2014.
34
MASARDO, Alexander. Negotiating shared residence: the experience of separeted fathers in Britain and
France. In: Regulating family responsabilities. Org.: Jo Bridgeman; Heather Keating; Craig Lind. Farnham:
MPG Books, 2011, p. 145.
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De qualquer modo, apesar da ampla desconfiança a partir dos estudos de
gênero quanto ao compartilhamento, pode se aproveitar o aceso debate sobre os contornos
do normatizado não só para desestabilizar o argumento do amor materno como
naturalmente superior, mas para se fortalecer a ideia de que tanto este elo quanto o paterno
se constroem cotidianamente durante todas as fases da relação e do desenvolvimento da
criança. O comprometimento masculino deve ser responsivo não só às necessidades dos
homens, mas às das(os) filhas(os), em proporções similares ao que se espera das mães.
Somente neste sentido é que o trabalho compartido de cuidado não
reinventará a desigualdade entre o casal, pois tal empreitada lamentavelmente enviesaria o
aspecto que onera e o aspecto que realiza do âmbito afetivo segundo uma perspectiva de
gênero curvada à lógica de dominação, ainda que objetivando originar uma relação
emancipada. Esta consequência pode se apresentar como negativa do ponto de vista da
condição feminina, porque permite um controle do tempo da mãe pelo homem.36
Dependerá dela a mediação do acesso à criança para quando o pai puder vê-la.
Por fim, conduz-se a outro tema inicialmente proposto como ilustrativo
das possibilidades de interação dos direitos da criança, das(os) adolescentes e das
mulheres. Trata-se da denúncia de abuso sexual por parte de não-guardião em relação a
estas personagens.
A presunção de falsidade que se abate sobre muitas de tais alegações
compôs escopo da Lei da Alienação Parental (12.318 de 2010). Tal como a Lei da Guarda
Compartilhada (Lei 13.058 de 2014), recebeu amplo apoio do movimento masculinista.
Embora os enunciados consagrem neutralidade de gênero, a realidade social, conforme se
constata, não esconde serem as previsões quanto ao guardião e ao residente voltadas quase
que exclusivamente às mulheres.
A escassez de debates críticos do ponto de vista infanto-juvenil e de
gênero quanto à alienação parental impede o questionamento sobre a importância das
percepções das(os) filhas(os) e das mães no que diz respeito ao abuso sexual. O
silenciamento não contribui, necessariamente, com a melhor proteção dos direitos humanos
e fundamentais daquelas(es), pois que a pedofilia e a violência parental não são aspectos
Tradução livre para: “Although the judiciary insists that parents must learn to work together, no detailed
guidance is provided for how this is to be achieved; an indication that this is regarded as a private matter
beyond law’s concern”.
36
NEWNHAM, Annika. Law’s gendered understandings of parent’s responsabilities in relation to shared
residence. In: Regulating family responsabilities. Org.: Jo Bridgeman; Heather Keating; Craig Lind.
Farnham: MPG Books, 2011, p. 147.
35
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estranhos ao contexto pátrio. O efeito, portanto, pode ser diametralmente contrário. Não se
podem deixar de lado os seguintes dados organizados recentemente pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada: dentre as vítimas de estupro no Brasil, 89% são do sexo
feminino, 70% são crianças e adolescentes, e 70% das agressões sexuais ocorrem no
ambiente doméstico.37
Neste sentido, cabe averiguar os limites da alteração legal, bem como da
construção da imagem feminina como invariavelmente mentirosa e vingativa ao ser
apontada como a responsável por implantar memórias falsas de violação com o único
objetivo de prejudicar o pai. Embora não se ignore tal realidade, parece haver mais
esforços para se debruçar sobre a falsa implementação de memórias do que sobre o efetivo
abuso sexual.
Finalizando os comentários acerca de temas como adoção, guarda de
filhos e alienação parental, exemplifica-se, a partir deles, o descrédito aos pontos de vista
infanto-juvenis, os quais são tidos, não raramente, na prática, como referências muito
longínquas da depuração sobre a configuração do melhor interesse em jogo, o que
novamente remete à polarização entre adulto dominante e menor dominado, cujas vontades
são irracionais, equivocadas e inválidas. Ainda é desafiador o processamento, pelo direito,
das potências e das impotências referentes à percepção destes sujeitos, especialmente da
criança, sobre os complexos familiares em que se encontram.
Ao lado de tais dificuldades, reside a neutralização, do ponto de vista de
gênero, dos enunciados jurídicos direcionados à infância e à juventude. A tendência se
abate, em primeiro lugar, sobre a pressuposição de que experimentam, de tal momentos,
meninos e meninas, analogamente.
Todavia, recentes pesquisas têm apontado que as realidades são bastante
distintas. Dados colhidos em 2013 e referentes às crianças brasileiras entre 6 e 14 anos
atestam, por exemplo, que “enquanto 81,4% das meninas arrumam sua própria cama,
76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus irmãos homens
arrumam a sua própria cama, 12,5% dos seus irmãos homens lavam a louça e 11,4% dos
seus irmãos homens limpam a casa”.38
37
CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupros no Brasil: uma radiografia segundo os
dados da Saúde (versão preliminar). Brasília: IPEA, 2014.
38
PLAN INTERNATIONAL BRASIL. Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e violências. São
Paulo: Plan International Brasil, 2015.
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Ainda, inspirando o diálogo intercultural sobre Direito das Famílias,
uniões compostas por meninas abaixo de 15 anos e por homens adultos, que o senso
comum dominante considera hipótese distante, lamentavelmente, é realidade latente no
Brasil, que representa o quarto país no ranking mundial em conjugalidades infantis. 39 De
acordo com a pesquisa, o motivo preponderante para tanto é a violência doméstica sofrida
no lar de origem. Mais uma vez, a previsão normativa não reflete a experiência de jovens,
especialmente daquelas de baixa renda.
Merece, pois, essa disparidade reflexão própria, atenta à reconstrução de
estereótipos das masculinidades e das feminilidades durante o período de formação
identitária destes indivíduos, que torna as suas vivências, desde muito cedo, marcadas por
profundas distinções de gênero para as quais a tradição jurídica generalizante não tem se
atentado suficientemente.
5. Considerações finais sobre o papel da doutrina da proteção à infância e à
juventude frente às perspectivas de gênero
Em 27 de junho de 2015, uma série de organizações não-governamentais
articulou uma marcha de crianças que partiu da Boca Maldita, região famosa por receber
manifestações populares em Curitiba. Munidas de faixas entregues pelas lideranças, elas
rumaram à Praça Santos Andrade, onde se destaca a Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná, em protesto à chamada ideologia de gênero, que fora pauta dos debates
políticos locais quanto aos planos de educação estadual e municipal nos últimos meses.
Como consequência do fundamentalismo, retirou-se, pelo âmbito legislativo, a questão de
gênero das escolas, sob o argumento de que este enfrentamento representa uma afronta aos
valores familiares.
Resgata-se esta impactante imagem como aceno para que não se
adormeça em uma expectativa de que os evoluídos diplomas normativos bastem à
transformação das realidades. Percebe-se que tem significado este momento franco
retrocesso à defesa dos direitos da criança e da(o) adolescente se tomada uma perspectiva
insurgente que inadmite a conversão de seus interesses em favor do conservadorismo e do
heteropatriarcado. Neste sentido, se o atual contexto político se permeia de tanta
39
MONOLEY, Anastasia. Prática comum no país, casamento infantil é usado por meninas para evitar
violência doméstica, diz estudo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/pratica-comum-no-paiscasamento-infantil-usado-por-meninas-para-evitar-violencia-domestica-diz-estudo-16763674. Acesso em
15.07.2015.
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nebulosidade, entende-se que cabe à doutrina competir por um espaço de crescimento
crítico aos temas que não podem servir como moeda de troca nem tampouco como
instrumento para massas de manobra.
Destarte, válidas as proposições de caminhos de releitura da proteção da
criança e da(o) adolescente à doutrina do Direito das Famílias a partir do impulso de se
transformar a realidade vigente, e, estabelecendo o necessário diálogo entre produção
bibliográfica e jurisprudencial, fazer resistir o sentido da emancipação. Quiçá, assim,
podem-se atingir, aos poucos, microcosmos das realidades que ainda se distanciam do
direito, mas quanto às quais não se refuta o compromisso.
O objetivo, nesta oportunidade, residiu em introduzir a relevância da
análise, sugerir possíveis premissas de estudo e explorar caminhos de reconstrução da
teoria e da prática em tal temática a partir do fio condutor do gênero, em busca de outro
porvir. A constelação de desempoderamentos deve, para tanto, ser interpretada de maneira
crítica, integrada e complementar, de modo a não reproduzir equivocadamente uma
interferência pretensamente protetiva de uma personagem em detrimento da outra, como se
as negatividades não se desenvolvessem a partir de uma mesma raiz cujo corte, a despeito
do que os discursos mais celebratórios insistem em indicar, ainda tem custado a se efetivar.
Recebido em 26/07/2015
1º parecer em 01/08/2015
2º parecer em 02/08/2015
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ANÁLISE FUNCIONAL DO DIREITO AO NOME À LUZ DO ARTIGO 55,
PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI DE REGISTRO PÚBLICOS
Functional Analysis of the right to a name under Article 55, Sole Paragraph, of the
Public Records Act
Louise Vago Matieli
Mestre em Direito Civil pela UERJ.
Pós-graduada em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Advogada.
Resumo
O presente estudo tem por objetivo analisar o dogma da imutabilidade do nome, com
enfoque no prenome e na regra inserida no artigo 55, parágrafo único, da LRP.
Pretende-se analisar em que situações é possível a alteração do prenome com base em
fundamentos de cunho subjetivo e quais são os critérios que devem ser considerados
para avaliar se tais fundamentos são suficientes ou não para autorizar a mudança.
Palavras-Chave
Direito à identidade pessoal; direito ao nome; prenome; mudança de nome.
Abstract
The following article aims to analyse the dogma of the immutability of the name,
focusing on the first name and on the rule inserted in Article 55, Sole Paragraph, of
LRP. It is intended to examine whether it is possible to change the first name based on
subjective arguments and what are the criteria that should be considered to evaluate
whether those subjectives arguments are suficient or not to authorize the change.
Keywords
Right to personal identity; right to a name; first name; change of first name.
Sumário
1. Introdução – 2. Aspectos estrutural e funcional do direito ao nome – 2.1. Direito à
identidade pessoal – 3. O dogma da imutabilidade do nome – 4. A alteração do prenome
que expõe a pessoa a situações vexatórias – 5. Conclusão
1. Introdução
O tema não poderia ser mais atual. Em 26/03/2015, o Jornal O Globo
publicou, em seu site na Internet, reportagem sobre campanha informal que vem sendo
feita pelos oficiais registradores do Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de
conscientizar os pais sobre os nomes (rectius: prenomes) dos filhos.1 O objetivo é
impedir o registro de prenomes que, por serem “inusitados” – afirma a notícia –, são
1
Disponível
em
<http://oglobo.globo.com/rio/oficiais-de-registro-civil-fazem-campanha-paraconscientizar-pais-sobre-nome-de-filhos-no-rio-15703550>. Acesso em 1º/05/2015.
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suscetíveis de causar futuros prejuízos ao desenvolvimento da personalidade daquela
criança.
Situações como esta são enfrentadas rotineiramente pelos oficiais do
registro civil. “Vitória Hexa, Arquiteclínio Petrocoquínio de Andrade, Ava Gina (em
homenagem a Ava Gardner e Gina Lolobrigida), Kaylonny, Chevrolet da Silva Ford e
Renaut Megane” são exemplos de nomes listados pela reportagem, apresentados por
pais que foram convencidos a mudar de ideia quando do registro.
Segundo a Presidente da Associação de Registradores Civis de
Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro (ARPEN/RJ), “o papel do oficial do
registro civil, que registra o nascimento da criança e o nome que seus pais lhe
escolheram, é o de fazer um filtro de nomes que tenham um potencial de gerar situações
constrangedoras para aquela pessoa, futuro cidadão, em situações de sua vida”. Isso
porque, de acordo com o artigo 55, parágrafo único, da Lei 6.015/1973, Lei de Registros
Públicos (“LRP”), existe uma limitação à escolha do prenome do menor pelos seus pais
ou responsáveis: a suscetibilidade de expor a pessoa ao ridículo. Em casos tais, os
oficiais não devem proceder ao registro.
A iniciativa da ARPEN/RJ é louvável, pois, de fato, na grande maioria
dos casos, não há dúvidas acerca dos prejuízos que a escolha duvidosa do prenome pode
causar à pessoa. É de se ter em mente, contudo, que os pais ou responsáveis ainda têm
ampla liberdade para escolher o prenome dos filhos no sistema brasileiro, o que não
pode ser obstaculizado por questões de preferência dos oficiais registradores. O papel
destes últimos é de orientar, quando possível, mas não de se fazer substituto da vontade
dos pais ou responsáveis.2 Em sendo inviável o consenso, a decisão ficará a cargo do
juiz competente.
2
Interessante caso foi enfrentado pelo Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo. Os pais haviam comparecido ao Cartório de Registro Civil para promover o registro de nascimento
de sua filha, que pretendiam chamar de “Titílolá”. O oficial registral se recusou a lavrar o assentamento,
com base no artigo 55, parágrafo único, da LRP, no que foi acompanhado pelo juízo competente. Os pais
da criança recorreram ao Conselho de Magistratura, ao fundamento de que o prenome tinha origem na
língua yorubá, falada pela maior parte dos escravos que vieram ao Brasil entre os séculos XVI e XVIII, e
seu significado era “venerada, dignificada continuamente”. O Órgão Revisor entendeu que o prenome
“Titílolá” até poderia ser incomum e gerar estranheza, mas que não era causador, em princípio, de
zombaria, especialmente no meio social em que a criança se inseriria. A conclusão do acertado voto do
Conselho de Magistratura, que autorizou o registro de nascimento, é a seguinte: “Razoável que a criança
tenha um nome de origem africana, com significado nobre, em respeito à tradição e à crença de seus
genitores, e porque é nome que tem ligação com o meio social e familiar em que vive. O contrário seria
rejeitar a origem genética da maioria do povo brasileiro e não aceitar o aspecto cosmopolita das raças de
nosso país”. (In: SILVEIRA, Mário Antônio. Comentários a Parecer Registrário sobre o nome da Pessoa
Natural. Revista IOB de Direito de Família, v. 45, dez/jan 2008, p. 205-213).
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Muitas vezes, no entanto, não é possível evitar o registro de prenome
que venha a submeter a pessoa a situações vexatórias. Até mesmo porque, em
determinadas hipóteses, a suscetibilidade de expor a pessoa ao ridículo só surge com o
passar dos anos e na medida em que a sua personalidade se desenvolve, considerandose, evidentemente, o contexto social no qual está inserida.
Ainda na reportagem acima mencionada, caso curioso é relatado pelo
magistrado Luiz Henrique de Oliveira Marques, à época juiz da Vara de Registros
Públicos no Rio de Janeiro. Uma mulher chamada Josefa pleiteou a alteração de seu
nome para Gilvaneide. À primeira vista, a mudança poderia parecer sem sentido, mas as
justificativas apresentadas por aquela mulher foram convincentes: todos os seus dez
irmãos tinham nomes parecidos, iniciados com a letra G. Com o prenome Josefa, ela se
sentia deslocada em sua própria família. A alteração tinha por objetivo justamente a
identificação daquela mulher com o seu seio familiar e foi, então, autorizada pelo
aludido magistrado.
O direito ao nome integra o direito à identidade pessoal do indivíduo
e, por tal, não pode ser considerado primordialmente um elemento de identificação
social, tutelado pelo Estado. Antes de servir como “sinal identificador do indivíduo
dentro da sociedade”,3 o nome exerce função mais relevante no desenvolvimento da
personalidade do seu portador.
Com base nesta premissa funcional, o presente estudo examinará o
dogma da imutabilidade do nome, com enfoque no prenome e na regra inserida no
artigo 55, parágrafo único, da LRP. Pretende-se analisar em que situações é possível a
alteração do prenome com base em fundamentos de cunho subjetivo e quais são os
critérios que devem ser considerados para avaliar se tais fundamentos são suficientes ou
não para autorizar a mudança, tendo em vista, inclusive, o posicionamento dos
Tribunais sobre a matéria.
2. Aspectos estrutural e funcional do direito ao nome
O conceito de nome está intrinsicamente relacionado com o seu papel
de identificação da pessoa na sociedade em que está inserida. Assim é que Caio Mário
da Silva Pereira afirma que o nome é “elemento designativo do indivíduo e fator de sua
3
OLIVEIRA, Euclides de. Direito ao Nome. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo.
Novo Código Civil – Questões Controvertidas. V. 2. São Paulo: Método, 2006, p. 67/68.
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identificação na sociedade”4 para, apenas depois, concluir que o nome integra a
personalidade. Euclides de Oliveira vai além e sustenta que o nome não interessa apenas
ao seu titular, mas também “aos componentes do grupo familiar, tendo reflexos,
portanto, em toda a sociedade”.5
Na esteira deste ponto de vista, a pessoa mais estaria a serviço do
nome do que o contrário. O nome, apesar de integrar o conteúdo da personalidade, não
seria contributo ao pleno desenvolvimento da identidade pessoal, por estar atrelado à
exigência de identificação social. Qualquer medida mais liberal em relação ao nome,
especialmente no que tange às possibilidades de sua alteração, seria vetada por esbarrar
na segurança jurídica que o Estado objetiva aportar a esta matéria.
O papel de identificação social do nome, que é tido como verdadeiro
dever por Maria Celina Bodin de Moraes,6 é reforçado pela obrigatoriedade do registro
civil de nascimento no Brasil. Independentemente da relevância de tal exigência para
fins político-sociais, do que não se duvida, fato é que o assento de nascimento deverá
ser feito em até 15 (quinze) dias, podendo ser ampliado para até três meses em lugares
distantes do cartório, e nele constará o nome indicado pelos pais ou responsáveis.7
O nome, por sua vez, será composto pelo prenome e pelo sobrenome.
O aspecto estrutural do direito ao nome está previsto no artigo 16 do Código Civil de
2002 (“CC/2002”), o qual, inserido no capítulo dos “Direitos da Personalidade”,
também declara que toda pessoa tem esse direito.8
No Brasil, adota-se o sistema de nomes compostos, de modo a se
evitar a ocorrência de homonímias, principalmente em grandes metrópoles. Também
por esta razão, o sobrenome da pessoa, via de regra, conta com sobrenomes de ambos os
genitores. A estrutura do nome, portanto, corrobora o papel de identificação social do
direito correlato, como ressalta Walter Ceneviva:
Há uma razão de ordem prática, que a vida moderna vem enfatizando,
para o uso de ambos os apelidos dos pais. Nas grandes cidades, o
drama da homonímia em relações bancárias, obtenção de
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. V. I. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 243.
5
OLIVEIRA, Euclides de. Op. cit., p. 67/68.
6
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A tutela do nome da pessoa humana. In: ________. Na medida da
pessoa humana – Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 152.
7
Cf. Artigo 50 da LRP: Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no
lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que
será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório.
8
Artigo 16 do CC/2002: Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o
sobrenome.
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empréstimos, protestos de títulos, certidões dos distribuidores põe a
claro a aflição constante de muitos. Daí a recomendação do registro
com sobrenome duplo, de modo a diminuir o risco da homonímia.
Inexiste imposição legal expressa, mas pode ser admitida como
implícita, à vista da igualdade do homem e da mulher na
responsabilidade por seus filhos. 9
Se o nome é um “misto de direito e obrigação”, como afirmado por
Serpa Lopes,10 é possível reconhecer, a partir de seu aspecto estrutural, a sua primeira
função: elemento de identificação social. É por conta dessa função que Anderson
Schreiber sustenta que o nome é tratado como “verdadeira questão de Estado” no
Brasil.11
No entanto, como se viu, o direito ao nome é um direito da
personalidade, o que é reconhecido pelo próprio legislador. Essa questão não pode ser
descartada e tampouco minimizada pelo intérprete. O nome também é elemento da
personalidade individual,12 que promove não a identificação, mas a individualização da
pessoa, a partir de sua esfera íntima.13
Neste contexto, o nome desempenha a função de elemento integrante
e promocional da personalidade humana, pois não se pode negar que tal direito diz
respeito diretamente à identidade da pessoa. Vale dizer, o nome se relaciona com a
forma com que a própria pessoa se vê e se compreende – se identifica –, e não apenas
como um fator externo que a diferencia na sociedade.
Exatamente esta é a ratio do artigo 55, parágrafo único, da LRP. Sabese que um prenome suscetível de expor a pessoa ao ridículo é prejudicial ao
desenvolvimento da sua própria personalidade, tolhendo-a do exercício pleno dos seus
direitos mais fundamentais. A origem da limitação desta disposição legal é, portanto,
garantir que o nome exerça um papel positivo na vida da pessoa e não se transmude em
9
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 190.
Apud BODIN DE MORAES, Maria Celina. Op. cit., p. 155.
11
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 181.
12
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Op. cit., p. 152.
13
Vitor Almeida reconhece diferença entre individualizar e identificar. Segundo o autor, “a
individualização é alcançada na medida em que se distinguem suficientemente as pessoas de seus
semelhantes, a fim de que não sejam confundidas, mas expresse, com efeito, a identidade pessoal de
modo a atingir sua finalidade de real e efetiva individualização perante si e no meio social. Ao contrário,
o nome como identificação é o meio através do qual se identifica externa e socialmente as pessoas, ainda
que não exerça de forma segura sua individualização”. (A proteção do nome da pessoa humana entre a
existência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no
direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 52, ano 13, out/dez 2012, p. 210).
10
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um fardo que deva ser carregado a qualquer custo. Desta feita, tem-se a segunda função
do direito ao nome: preservar e promover a personalidade humana.
Vitor Almeida reconhece ainda uma terceira função do nome, mas
especificamente do sobrenome, haja vista o seu caráter de identificação social. De
acordo com o aludido autor, o nome também teria a função de identificar a precedência
familiar, uma vez que a aposição dos sobrenomes indica a filiação daquela pessoa.14
Pietro Perlingieri também aborda essa questão e afirma que o nome tem a função de
“meio de identidade familiar”.15
É inegável que o sobrenome aponta os vínculos familiares, sejam
genéticos,16 sejam socioafetivos, como hodiernamente vem sendo aceito. Aliás, em
algumas situações, até mesmo o prenome pode desempenhar esta função, como visto na
introdução a este estudo, no exemplo da mulher que gostaria de alterar o seu prenome
de Josefa para Gilvaneide, para ficar em consonância com os prenomes de seus irmãos.
Não obstante, não se considera tal função como autônoma, mas sim
englobada no papel que o nome exerce como elemento de identidade pessoal. As
relações familiares, na medida da importância que a própria pessoa lhe atribui, têm
impacto na sua identidade, isto é, na forma e no contexto em que aquela pessoa se
reconhece.
No caso da Josefa, por exemplo, a mulher se reconhecia como parte
do seio familiar, que contava com dez irmãos, mas o seu prenome não traduzia esse
aspecto da sua identidade, ante as peculiaridades dos demais prenomes escolhidos para
os irmãos. Em outro exemplo, relativo à socioafetividade, uma determinada pessoa pode
se identificar mais com o padrasto, que lhe criou a vida inteira, do que com o pai
biológico que apenas lhe registrou. Como forma mais nítida de expressar a sua
personalidade, por meio da identidade e do nome, esta pessoa está autorizada a incluir o
14
ALMEIDA, Vitor. Op. cit., p. 211.
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Tradução de Maria Cristina de
Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 833.
16
Luciano de Camargo Penteado vincula o direito ao nome unicamente à origem genética, in verbis: “O
direito ao nome encontra-se ligado também à origem genética, que, segundo o Tribunal Constitucional
alemão é direito da personalidade (direito ao conhecimento de origem), especialmente por conta de que o
sobrenome designa a origem familiar do sujeito”. (PENTEADO, Luciano de Camargo. O Direito à vida, o
Direito ao corpo e às partes do corpo, o Direito ao nome, à imagem e outros relativos à identidade e à
figura social, inclusive intimidade. Revista de Direito Privado, v. 49, ano 13, jan/mar 2012, p. 89).
15
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113
sobrenome do padrasto em seu nome, se assim achar conveniente, nos termos do artigo
57, § 8º, da LRP.17,18
Diante disso, em que pese a importância do nome no reconhecimento
das relações familiares, conclui-se que o direito ao nome desempenha duas funções: (i)
preservação e promoção da identidade pessoal; e (ii) identificação social do indivíduo.
Maria Celina Bodin de Moraes sustenta que nenhuma dessas funções, decorrentes dos
interesses individual e social, respectivamente, deve prevalecer.19
No entanto, entende-se que é preciso eleger uma função prevalente, o
que talvez tenha se tornado mais fácil na atualidade. É que o papel de identificação
pessoal do nome vem perdendo força, mormente diante de outras formas mais eficazes e
contemporâneas que tenham essa mesma finalidade.
Basta imaginar que, ao fazer compras em determinada loja, o
atendente certamente pedirá ao cliente, no momento do pagamento, o número do seu
CPF, isto é, do Cadastro de Pessoas Físicas, mantido junto à Receita Federal do Brasil.20
Com efeito, perguntar o nome do cliente passou a ser questão de cortesia. A
identificação pelo número do CPF, cuja comprovação da inscrição e da situação
cadastral pode ser consultada online, no site da Receita Federal do Brasil, é um
facilitador porquanto o indivíduo não precisa mais declinar o seu nome completo.
17
Art. 57 da LRP: A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência
do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o
mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei. (...) § 8º O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá
requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu
padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos
de família.
18
A possibilidade de alteração do nome para inclusão de sobrenome do padrasto já havia sido deferida
pelo STJ muito antes da inserção do § 8º no artigo 57 da LRP, o que se deu em 2009. Em julgado
emblemático proferido no ano de 2000, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator do caso, faz excelente
observação em seu voto: “Devo registrar, finalmente, que são dois os valores em colisão: de um lado, o
interesse público da imutabilidade do nome pelo qual a pessoa se relaciona na vida civil; de outro, o
direito da pessoa de portar o nome que não a exponha a constrangimentos e corresponda à sua realidade
familiar. Para atender a este, que me parece prevalente, a doutrina e a jurisprudência têm liberalizado a
interpretação do princípio da imutabilidade, já fragilizado pela própria lei, a fim de permitir, mesmo
depois do prazo de um ano subsequente à maioridade, a alteração posterior do nome, desde que daí não
decorra prejuízo grave ao interesse público, que o princípio da imutabilidade preserva. A situação dos
autos evidencia a necessidade de ser aplicada essa orientação mais compreensiva da realidade e dos
valores humanos em causa”. (STJ, Segunda Seção, RESP 220.059/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.
por maioria, j. 22/11/2000, DJU 12/02/2001, p. 92).
19
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Op. cit., p. 155.
20
Segundo o site da própria Receita Federal do Brasil, o CPF é um banco de dados gerenciado pela
Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB, que armazena informações cadastrais de contribuintes
obrigados à inscrição no CPF, ou de cidadãos que se inscreveram voluntariamente. Disponível em
<http://www.receita.fazenda.gov.br/pessoafisica/cpf/perguntasrespostas/perguntasrespostas.htm>. Acesso
em 1º/05/2015.
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A utilização do número do CPF, único para cada cidadão, também é
útil frente à ocorrência de homonímias nos grandes centros. O número do CPF agregado
ao nome não deixa qualquer dúvida quanto à identificação do sujeito, certeza esta com
que não se pode mais contar apenas com a referência ao nome.
Outra forma de identificação social cada vez mais comum é a
biométrica,21 que leva em conta características únicas de cada indivíduo, como a íris
ocular e a digital. A identificação biométrica pela digital, a mais comum nos dias de
hoje, está sendo implantada nas urnas eleitorais, com vistas a evitar fraudes nas
votações do país.22 Além deste exemplo, já é corriqueiro, em diversos empreendimentos
comerciais, que a identificação dos usuários frequentes – como os que ali trabalham
todos os dias – seja feita por meio da leitura da digital, que libera a catraca e o acesso ao
edifício.
Como se vê, a função do nome como elemento essencial à
identificação social do indivíduo na sociedade pode ser mitigada, especialmente em
decorrência do surgimento de novas tecnologias que se prestam ao mesmo fim. Se antes
o nome exercia papel tão relevante como identificador social, atualmente se pode
afirmar, sem sombra de dúvidas, que outros dados, como o CPF, assumiram este posto
de maneira até mais eficiente.
Em contrapartida, o que não suporta qualquer mitigação é a função do
nome enquanto elemento da identidade pessoal. Tanto é assim que a legislação admite,
em determinadas hipóteses, alterações, como forma de garantir que o nome de uma
pessoa espelhe a maneira como ela intimamente se reconhece. Esta também é a ratio de
diversas decisões judiciais que, indo além dos limites impostos pela lei, tutelam o nome,
em primeiro lugar, enquanto direito da personalidade, relegando para segundo plano o
interesse social que envolve a matéria.
Neste passo, parece evidente que a função primordial do nome é a
preservação e a promoção da identidade da pessoa humana. Esta função não perde força
com os avanços da tecnologia e nem pode ser mitigada, sob pena de desproteger a
De acordo com o Dicionário Aurélio, biometria significa “ramo da ciência que estuda a mensuração dos
seres vivos”. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa.
3. ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 299).
22
Trata-se do Programa de Identificação Biométrica do Eleitor, divulgado pelo Tribunal Superior
Eleitoral, já implementado em algumas Comarcas desde as eleições havidas em 2010. Disponível em
<http://www.tse.jus.br/eleitor/recadastramento-biometrico/programa-de-identificacao-biometrica-doeleitor>. Acesso em 1º/05/2015.
21
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própria pessoa. A função da identificação social pode – e deve – ser considerada, mas
não como forma de impedir ou restringir a tutela do nome enquanto direito da
personalidade.
Uma vez apurada a principal função do nome, o que certamente
influencia em sua tutela, vale tecer algumas considerações acerca do direito à identidade
pessoal, como será exposto a seguir.
2.1. Direito à identidade pessoal
O conceito de direito à identidade pessoal foi desenvolvido pela
doutrina italiana e se traduz no direito de “ser si mesmo”, com todas as nuances que a
pessoa pode ter, construídas não só a partir de suas aspirações internas, mas também do
seu contato social. Para Anderson Schreiber, a identidade pessoal englobaria as
“convicções ideológicas, religiosas, morais e sociais que diferenciam a pessoa e, ao
mesmo tempo, a qualificam”,23 além, evidentemente, do próprio nome.
José de Oliveira Ascensão vislumbra no direito à identidade pessoal o
“verdadeiro” direito da personalidade, do qual o nome seria apenas mais um bem
incorpóreo. Segundo o autor, o direito ao nome seria uma imposição do direito à
identidade pessoal.24
A discussão acerca de verificar se o nome integra – ou não – o
conteúdo do direito à identidade pessoal não se resume a uma mera categorização no
âmbito dos direitos da personalidade. Muito pelo contrário. Entender o nome como
parte da identidade da pessoa é essencial para que se possa qualificar a tutela a ser dada
ao nome no caso concreto. Afinal, de nada adianta reconhecer que a pessoa humana tem
direito ao nome se não se garantir que este nome represente, para o exterior, a sua
identidade, a forma como ela se vê.
A pessoa deve ser capaz de influir na forma em que é vista e
reconhecida pelos outros, assegurando que tal visão corresponda aos seus anseios
individuais. O nome, por fazer essa ponte entre a intimidade e a sociedade, é de extrema
relevância para que se promova o direito à identidade pessoal.
23
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 205.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil – Teoria Geral. V. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
90/91.
24
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Diante disso, Vitor Almeida pondera que a tutela do nome deve ser
balizada pelo direito à identidade pessoal, de modo que o nome reflita o projeto de vida
escolhido por cada pessoa:
O direito à identidade pessoal, em sua integralidade, deve condicionar
e balizar o direito ao nome, eis que mais abrangente que este.
(...)
Desse modo, por mais que atue como elemento externo de
identificação da pessoa, o nome deve refletir as próprias escolhas
direcionadas ao projeto de vida pessoal, não podendo servir como um
fator de discriminação e exclusão sociais, na medida em que aquele
nome registral não mais condiz com a identidade expressa pela
pessoa, estigmatizando-a e prejudicando sua própria afirmação
enquanto ser na sociedade. Portanto, a verdade registral do nome da
pessoa humana só encontra relevância e cumpre sua função se
corresponder à sua verdade pessoal.25
É este raciocínio acerca da tutela ao nome que permeará o presente
estudo, sobretudo quando se abordar o dogma da imutabilidade e as possibilidades de
alteração de prenome. Eleger, como função principal do direito ao nome, a preservação
e a promoção da identidade pessoal significa dizer que a tutela do nome não pode ser
feita de forma isolada, sem levar em conta as demais características da personalidade de
cada indivíduo. O nome serve à pessoa – complexa, multifacetada – e não o contrário.
3. O dogma da imutabilidade do nome
No sistema brasileiro, é vigente o princípio da imutabilidade do nome,
o qual se extrai, no que tange ao prenome, do disposto no artigo 58 da LRP.26,27
Segundo o mencionado dispositivo legal, o prenome é definitivo e sua alteração pode
ocorrer apenas em situações excepcionais e motivadamente, conforme previsto no artigo
57 do mesmo diploma legal.28
25
ALMEIDA, Vitor. Op. cit., p. 215/216.
É o que esclarece Roxana Borges: “O prenome é considerado imutável. Embora a retificação seja
possível, a regra é a de que não há mudança de nome, mas apenas a correção de um erro. Rege nosso
direito o princípio da inalterabilidade ou imutabilidade do nome. O nome da pessoa é o que foi registrado
em cartório quando do seu nascimento, salvo raras exceções que possibilitam a alteração registral do
nome.” (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e
autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 221).
27
Art. 58 da LRP: O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos
públicos notórios. Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada
coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença,
de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
28
Art. 57 da LRP: A alteração posterior do nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência
do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito a registro, arquivando-se o
mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei.
26
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Desta feita, a alteração do prenome, objeto deste estudo, pode se dar
(i) por opção, quando atingida a maioridade – opção esta que deve ser exercida no prazo
máximo de 1 (um) ano29 –; (ii) para substituição por apelidos públicos notórios;30 (iii)
em casos de adoção;31 (iv) pelo estrangeiro, quando do processo de naturalização;32 e
(v) para a proteção a vítimas ou testemunhas de crime.33
Apenas a título ilustrativo, vale remarcar que tal excepcionalidade
também se verifica nos casos de mudança de sobrenome, que pode ocorrer, segundo a
lei, nas hipóteses de casamento,34 união estável,35 parentalidade socioafetiva36 e
adoção.37
Muito embora a específica regulação legal sobre o tema, é cada vez
mais comum a aceitação, pelos Tribunais, de pedidos de alteração de prenome com base
29
Art. 56 da LRP: O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá,
pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de
família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.
30
V. nota de rodapé nº 27.
31
Art. 47 do ECA: O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro
civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. § 5º - A sentença conferirá ao adotado o nome
do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome.
32
Art. 115 da Lei 6.815/80: O estrangeiro que pretender a naturalização deverá requerê-la ao Ministro da
Justiça, declarando: nome por extenso, naturalidade, nacionalidade, filiação, sexo, estado civil, dia, mês e
ano de nascimento, profissão, lugares onde haja residido anteriormente no Brasil e no exterior, se satisfaz
o requisito a que alude o artigo 112, item VII e se deseja ou não traduzir ou adaptar o seu nome à língua
portuguesa.
33
V. nota de rodapé nº 27.
34
Artigo 1.565 do CC/2002: Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de
consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 1º - Qualquer dos nubentes,
querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.
35
Art. 57 da LRP: A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência
do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o
mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei. (...) § 2º A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo,
excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de
nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de
família, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das
partes ou de ambas. § 3º - O juiz competente somente processará o pedido, se tiver expressa concordância
do companheiro, e se da vida em comum houverem decorrido, no mínimo, 5 (cinco) anos ou existirem
filhos da união. Walter Ceneviva registra a necessidade de se atualizar a interpretação dos mencionados
dispositivos legais a partir do texto constitucional, que passou a reconhecer, em seu artigo 226, § 3º, a
união estável como entidade familiar. Segundo o autor, “há de ser reinterpretada a regra do § 2º, em
virtude do acolhimento da união estável na CF e no CC/02, com a permissão, dada aos nubentes, para que
qualquer deles adote o sobrenome do outro, nas condições determinadas pelo parágrafo. Na união estável,
tendo em vista o tratamento que lhe é dado no art. 226 da CF (origina uma entidade familiar) e a
igualdade entre o homem e a mulher, em direitos, deveres e mesmo ao regime de bens, é razoável a
exegese extensiva do § 2º, ora examinado; (...)”. (Op. cit., p. 204). Sobre o § 3º acima transcrito,
prossegue o autor: “A imposição do aguardo do quinquênio foi implicitamente revogada pela Lei n.
9.278/96, pois esta, ao regular a união estável, não a incluiu: a convivência duradoura reconhecida pelo
homem e pela mulher permite que esta, com autorização daquele, adote a mudança de seus apelidos, na
forma comentada”. (Op. cit., p. 206).
36
V. nota de rodapé nº 17.
37
V. nota de rodapé nº 31.
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no artigo 55, parágrafo único, da LRP,38 em que se estipula tão somente uma limitação
ao registro de nascimento, imposta, a priori, pelo oficial responsável.
Na própria reportagem aludida na introdução do presente trabalho,
narra-se a história do menino Anicéto, que sofria com as zombarias de seus colegas por
conta do prenome não usual. “Meu filho estava muito triste” – relata a mãe do menino,
sendo certo que foi tal angústia que motivou a autorização judicial para a mudança do
prenome, que passou a ser David Luís. O objetivo parece ter sido alcançado, pois, ainda
de acordo com a mãe do menino, “ele quer levar para a escola todos os dias uma cópia
da nova certidão”.
Soluções como esta não estão previstas em lei; basta reparar que o
artigo 55, parágrafo único, da LRP não é uma norma que autorize qualquer alteração de
prenome após o seu registro, mas sim que faz um controle prévio, impedindo o assento
de nascimento quando o prenome puder ser considerado vexatório. Não obstante, tem-se
entendido que, se se pode reconhecer que um prenome é suscetível de expor a pessoa ao
ridículo ao ponto de ser negado o seu registro, tal juízo de ponderação também deve ser
feito caso o registro não tenha sido evitado inicialmente.
Afinal, se a lei reconhece que um prenome que expõe a pessoa ao
ridículo é algo a ser rechaçado quando do assento de nascimento, por maior razão
devem ser tuteladas aquelas situações em que o indivíduo acabou sendo registrado e
carrega o ônus de ser portador de um prenome vexatório. Se o legislador anteviu um
problema a ser corrigido, não é dado desconsiderar aquelas hipóteses em que o
problema, independentemente do motivo, se concretizou e ainda precisa ser corrigido.
Como tutelar esses casos? É razoável que se esperasse que o menino
Anicéto, hoje David Luís, completasse 18 (dezoito) anos para solicitar a alteração do
prenome que lhe causa tantos transtornos, inclusive psicológicos, com base no artigo 56
da LRP? Se a própria lei vislumbra esses transtornos, por que não abreviá-los? E se a
razão motivadora da alteração do prenome surgir quando já expirado o prazo de 1 (um)
38
Art. 55 da LRP: Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do
prenome escolhido o nome do pai e, na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição
de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não
registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se
conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independentemente de cobrança
de quaisquer emolumentos, à decisão do juiz competente.
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ano, contado da maioridade, previsto no artigo 56 da LRP?39 O direito da pessoa de não
se expor ao ridículo por conta de seu prenome não encontrará guarida jurídica?
Essas questões vêm sendo resolvidas pelos Tribunais a partir de uma
flexibilização do princípio da imutabilidade do nome.40 Não se trata de verdadeira
novidade, pois a doutrina sempre reconheceu que tal princípio não é absoluto.41
Tal flexibilização é absolutamente necessária, na medida em que,
como se viu, o direito ao nome exerce função principal de proteger e promover a
personalidade da pessoa humana. O papel de identificação social não pode se sobrepor à
tutela do nome enquanto verdadeiro direito da personalidade. Entender o contrário
implicaria em permitir que a pessoa tivesse o desenvolvimento da sua identidade
pessoal tolhido por razões de interesse puramente estatal, as quais, contudo, podem ser
facilmente contornadas em um processo judicial. O prejuízo para a pessoa, porém, nem
sempre é reversível.
Roxana Borges faz importante análise sobre o tema, ao ponderar os
interesses em jogo no que concerne à imutabilidade do nome:
Ora, na maioria das vezes, os interesses de terceiros quanto à
imutabilidade do nome das pessoas é de natureza econômica,
disponível, enquanto o interesse de uma pessoa na alteração de seu
nome é, na maior parte das vezes em que isso chega ao Poder
Judiciário, questão de conservação e exercício de atributos de
personalidade. Assim, a ratio que fundamenta a regra da
imutabilidade do nome não está, historicamente, ligada à proteção dos
direitos da personalidade, mas à proteção de interesses (legítimos) de
39
Esta é, via de regra, a situação dos transexuais. Não há previsão legal específica para alteração de
prenome em caso de transexualidade, mas, na esteira do que é defendido por Anderson Schreiber, “a
hipótese insere-se, a toda evidência, no âmbito de aplicação do art. 55, parágrafo único, da Lei de
Registros Públicos (Lei 6.015/73), que autoriza a alteração do nome que expõe a pessoa ao ridículo.”
(SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 200). A matéria era controvertida nos Tribunais; a tendência atual,
contudo, é de admissão de retificação do prenome da pessoa transexual no registro, como forma de
promover a sua identidade pessoal e protegê-la de situações constrangedoras (Cf. STJ, 4ª Turma, RESP
737.993/MG, rel. Min. João Otávio de Noronha, v.u., j. 10/11/2009, DJU 18/12/2009). A evolução do
tema chega a pugnar pela retificação do registro mesmo em casos em que não se deu a cirurgia de
transgenitalização (Cf. TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível 70022504849, rel. Des. Rui Portanova,
v.u., j. 16/04/2009, DJ 23/04/2009). Vale registrar que existe Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADIn) em trâmite no Supremo Tribunal Federal, autuada sob o nº 4.275, em que se discute o direito dos
transexuais de alterarem prenome e sexo no registro civil, mesmo sem cirurgia de transgenitalização. O
alvo da ADIn é o artigo 58 da LRP. Alega-se que o não reconhecimento de tal direito fere os princípios da
dignidade da pessoa humana, da vedação à discriminação odiosa, da igualdade, da liberdade e da
privacidade.
40
De acordo com Maria Celina Bodin de Moraes, “a jurisprudência vem entendendo que a regra da
imutabilidade deve ser abrandada no sentido de atender ao uso, constante, diuturno, que se faz do nome
que se porta, não apenas como meio de identificação social ou sinal exterior distintivo da pessoa, mas
também, e principalmente, considerando-se direito da personalidade nele ínsito.” (Op. cit., p. 158).
41
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Op. cit., p. 155.
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terceiros, o que, estranhamente, não se coaduna com os fundamentos
nem com as finalidades dos direitos da personalidade.42
É inegável que, ao se examinar os interesses envolvidos, deve
prevalecer a tutela dos direitos da personalidade da pessoa humana, flexibilizando-se o
princípio da imutabilidade do nome. Esta conclusão não implica em afirmar que os
prenomes podem ser alterados ao bel-prazer de seus titulares, às vezes até mesmo por
motivos escusos, como fugir de credores, mas sim que, adotadas as cautelas plausíveis,
não se deve usar o princípio da imutabilidade do nome como argumento para impedir a
mudança de prenome e a sua consequente adequação à identidade pessoal daquele
indivíduo.
A grande mudança está na inversão do paradigma até então adotado,
na forma como deve ser interpretado e aplicado o princípio da imutabilidade do nome.
Para que se atenda ao interesse social, que não pode, nem deve ser
descartado completamente, a alteração do prenome deverá ser feita mediante
autorização judicial, no bojo de processo em que se avalie se a mudança requerida pela
parte trará prejuízos a terceiros. Neste processo, porém, a orientação deve ser no sentido
de preservar e promover a personalidade humana em primeiro lugar, pelo que as
decisões que rejeitem os pedidos de alteração de prenome precisam estar, segundo
Anderson Schreiber, “fundamentadas com a indicação específica da ameaça que a
modificação traz à coletividade, (...)”.43
Reconhecido que o princípio da imutabilidade do nome comporta
mitigação, o que já é aceito pela doutrina e jurisprudência atuais, passa-se à análise de
julgados sobre a matéria, a fim de identificar quais são as premissas que autorizam a
alteração do prenome com base em uma interpretação extensiva do artigo 55, parágrafo
único, da LRP.
4. A alteração do prenome que expõe a pessoa a situações vexatórias
Como visto acima, tem-se admitido uma interpretação extensiva do
artigo 55, parágrafo único, da LRP, de modo a se permitir a alteração de prenome, já
registrado, que sujeite a pessoa a situações vexatórias. Afinal, se o prenome suscetível
de expor a pessoa ao ridículo pode ser negado pelo oficial registrador, com ainda mais
42
43
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Op. cit., p. 222/223.
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 185.
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razão é de se consentir com a alteração de prenome a pedido do próprio portador, que
sente e sofre os prejuízos que o seu nome lhe causa.
Justamente por conta do fundamento desta hipótese de alteração de
prenome – que nada mais é do que o constrangimento –, entende-se que não é preciso
aguardar a maioridade para que o requerimento de mudança seja feito. O menor de
idade pode fazê-lo, assistido ou representado por seus pais ou responsáveis. Aplica-se,
então, ao invés da regra inserta no artigo 56 da LRP, o previsto no artigo 57 da mesma
lei, o qual admite a alteração posterior do nome “somente por exceção e
motivadamente, após audiência do Ministério Público”.
Resta definir, portanto, que motivos são esses. Vale dizer, qual
motivação é suficiente para que o pedido de alteração de prenome seja acolhido
judicialmente? Muito embora os Tribunais já tenham avançado bastante ao reconhecer a
flexibilização do princípio da imutabilidade do nome, fato é que não se chegou a um
consenso sobre o que é necessário demonstrar para ter o pedido deferido. Ao revés,
casos semelhantes, muitas vezes, recebem decisões discrepantes, em nítida ofensa ao
princípio da isonomia e em detrimento da segurança jurídica.
Inicialmente, merece destaque o caso do homem chamado Dráusio
Aparecido. Ele pretendia a supressão de um de seus prenomes, Aparecido, sob a
alegação de que o mesmo lhe causava transtornos psicológicos e constrangimentos no
seio familiar, já que trazia, recorrentemente, lembranças de uma irmã já falecida,
chamada “Aparecida”. O autor do requerimento esclareceu ainda que tal alteração não
traria qualquer prejuízo no contexto social, onde era conhecimento apenas como
Dráusio.
Ao analisar o caso, contudo, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Estado de Minas Gerais entendeu que não estava presente o “justo motivo para que
seja modificado o seu nome, pois fraco é o contexto probatório do constrangimento lhe
causado” [sic], nos termos do voto do relator. A ementa do julgado é a seguinte:
RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. REQUERIMENTO DE
SUPRESSÃO DE PRENOME. ALEGAÇÃO DE TRANSTORNOS
PSICOLÓGICOS E DE NÃO RECONHECIMENTO DE NOME NO
MEIO
SOCIAL.
NÃO
COMPROVAÇÃO
DO
CONSTRANGIMENTO
AFIRMADO,
BEM
COMO
DE
QUALQUER REPERCUSSÃO SOCIAL NEGATIVA ADVINDA
DO NOME. NÃO OCORRÊNCIA DE QUAISQUER DAS
EXCEÇÕES À REGRA DA INALTERABILIDADE DO REGISTRO
CIVIL PREVISTAS NA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS - LEI N°
6.015/73. RECURSO DESPROVIDO. O prenome é definitivo,
conforme dispõe a Lei n° 6.015/73, portanto, tal regra comporta
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exceções, não só quanto a nomes vexatórios, mas àqueles que
incomodam a pessoa, sendo permitida a sua alteração, nos termos dos
arts. 56, 57 e 58. Acontece que, no caso em tela, o pedido não se
enquadra, comprovadamente, em nenhuma das hipóteses legais que
autorizam a alteração de prenome.44
De se notar que, muito embora o Órgão Julgador tenha reconhecido a
possibilidade de alteração de prenome quando este for vexatório ou incomodar o seu
portador, optou-se por uma solução simplista do caso, fundamentada na eventual
ausência de comprovação das razões alegadas. No entanto, é de se ter em mente que os
transtornos suportados por uma pessoa em razão de seu prenome podem ser de difícil
comprovação, mormente quando não extravasam a esfera íntima daquele indivíduo.
Condicionar o deferimento do pedido de alteração de prenome a esta
comprovação equivale a exigir uma prova diabólica para a solução do processo. Em
alguns casos, pode ser fácil demonstrar as situações vexatórias que causam incômodos à
pessoa portadora do nome – como é de se imaginar, por exemplo, que ocorra com
alguém chamado Ava Gina, nome elencado na reportagem citada na introdução deste
estudo.
Em outras hipóteses, contudo, o constrangimento não se mostra tão
evidente ou depende da análise de outros elementos da identidade daquela pessoa.
Aparecido, de fato, não é um nome que, em princípio, exponha o seu portador ao
ridículo, mas, no caso específico de Dráusio Aparecido, aquele prenome lhe trazia uma
lembrança negativa, um peso a ser suportado, que inclusive impactava em suas relações
familiares.
Naquele contexto, isto é, no espectro de elementos que caracterizam a
identidade de Dráusio, portar o prenome Aparecido era um sacrifício.45 Talvez se
Draúsio não tivesse contato com a sua família, ou se não fizesse questão de com ela
manter boas relações, o prenome Aparecido não seria um fardo e tampouco acarretaria
um pedido de alteração de registro.
44
TJMG, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível 1.0702.04.133025-0/001, relator Des. Ernane Fidélis, v.u., j.
22/03/2005, DJ 15/04/2005.
45
Convém destacar trecho de julgado referenciado por Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e
Maria Celina Bodin de Moraes, em seu Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República:
“Assim, a norma que proíbe nomes que exponham a pessoa ao ridículo ‘pode estender-se a razões
íntimas e psicológicas, quando, embora em circunstâncias normais nada haveria de ridículo, o nome
designado venha atormentar uma pessoa’ (TJSP, II Grupo de C.C., Emb. Inf. 90.320, Rel. Des. Moura
Bittencourt, julg. 23.04.1959, publ. RT 291/240).” (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena;
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República.
V. I. Renovar: Rio de Janeiro, 2004, p. 47).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 7 – Jan / Mar 2016
123
A decisão do caso Dráusio Aparecido é criticável porque adota o
caminho mais fácil, por assim dizer, ao exigir uma prova que nem sempre é possível de
ser produzida ou que nem sempre levará a uma conclusão cabal sobre o assunto. Com
isso, os direitos da personalidade do autor da demanda, seja o próprio direito ao nome,
seja o direito à identidade pessoal, integrado pelo primeiro, foram relegados a segundo
plano. Mais correto seria que, partindo-se de um ponto de vista diferente, o Órgão
Julgador analisasse se haveria algum risco à sociedade na alteração daquele prenome,
afastando-se a “presunção de má-fé” que recai sobre todo aquele que intenta modificar o
seu nome.46
Outro caso verídico ilustra perfeitamente a necessidade de se
considerar os demais aspectos da personalidade daquele que solicita a alteração de seu
prenome. Walter Ceneviva narra que uma mulher chamada Jesusmina pleiteou a
mudança de seu prenome para Miriam, após adotar a religião judaica.47 Segundo a
autora do pedido, o prenome Jesusmina lhe expunha ao ridículo no novo meio social
que passara a frequentar, pois, na religião judaica, ainda de acordo com ela, o nome
“Jesus” seria indicativo de falso profeta.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indeferiu o pedido, sob
o fundamento de que o prenome Jesusmina não expunha a requerente ao ridículo e nem
era suscetível de causar constrangimentos. Sustentou-se ainda que eventual zombaria
em razão da semelhança com o nome “Jesus” decorreria de um problema de
inadequação moral do zombador e não de impropriedade do prenome.
Mais uma vez, está-se diante de uma decisão judicial que deixou de
examinar o pedido de alteração de prenome à luz das peculiaridades do caso concreto e,
em especial, do direito à identidade pessoal. Jesusmina adotou outra religião e queria ser
bem aceita no novo ambiente, o que era dificultado pelo seu prenome. Em outras
religiões, o prenome Jesusmina poderia ser visto até como grande homenagem, mas,
naquele novo contexto com o qual passou a se identificar a requerente, o prenome
representava um empecilho ao pleno desenvolvimento de sua personalidade.
O julgado acaba por se utilizar de fundamentos alheios à tutela da
personalidade da autora, como a suposta inadequação moral do zombador, e chancela
46
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 184.
Walter Ceneviva cita o caso em sua obra, mas não indica o número do processo e nem a data do seu
julgamento, ressalvando-se apenas a menção ao fato de o processo ter sido julgado pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo (Op. cit., p. 94).
47
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uma situação em que Jesusmina deveria suportar as zombarias e se sentir menos pior
porque o autor do achincalhe não seria moralmente respeitável. Trata-se de ônus que
não deve ser imposto a ela.
A análise de mais este caso não deixa dúvidas acerca da necessidade
de se atentar para as especificidades do caso concreto em processos atinentes à alteração
de
prenome,
relativizando-se
a
exigência
da
prova
dos
transtornos
e/ou
constrangimentos. Isso porque, conforme defende Pietro Perlingieri, “mesmo que a
tutela do nome tenha relevância igual para todos, ela assume, caso a caso, conteúdo e
extensão diversos, adquirindo só raramente uma estrita autonomia”.48
Nesta linha, passa-se ao exame do caso da mulher chamada Maria
Raimunda, que pretendia alterar o seu prenome para Maria Isabela, como já era
comumente conhecida socialmente. O julgado, relatado pela Ministra Nancy Andrighi,
foi assim ementado:
Civil. Recurso especial. Retificação de registro civil. Alteração do
prenome. Presença de motivos bastantes. Possibilidade. Peculiaridades
do caso concreto.
Admite-se a alteração do nome civil após o decurso do prazo de um
ano, contado da maioridade civil, somente por exceção e
motivadamente, nos termos do art. 57, caput, da Lei 6.015/73. Recurso
especial conhecido e provido.49
Do voto da relatora, é possível extrair as particularidades do caso
concreto:
Na situação em análise, alega a recorrente dois motivos distintos para
pleitear a alteração de seu prenome, a saber: (i) a recorrente é alvo de
constantes deboches e humilhações, passando assim por
constrangimentos de toda ordem, em razão da utilização do prenome
RAIMUNDA; (i) há muito a recorrente é conhecida no seio familiar,
social e profissional com Maria ISABELA, pois decidiu adotar tal
apelido em razão dos constrangimentos sofridos.
Os motivos que apresenta para tanto são bastantes para se proceder à
alteração requerida, pois além do constrangimento pessoal que sofre
em razão do nome Maria RAIMUNDA, é conhecida em seu meio
social com Maria ISABELA.
Ressalte-se, por fim, que certidões expedidas pelo Poder Judiciário do
Rio de Janeiro à época da propositura da ação atestaram nada constar
contra o nome de "Maria Raimunda Ferreira Ribeiro", tanto na esfera
civil como na criminal (fls. 23/24).
48
PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 835.
STJ, 3ª Turma, REsp 538.187/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 02/12/2004, DJU 21/02/2005, p.
170.
49
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125
Vê-se que a mulher sofria constantes humilhações em decorrência de
seu prenome Raimunda, que a deixavam constrangida no meio social. Até mesmo para
escapar desses transtornos – o que revela que os mesmos realmente impactavam em sua
esfera íntima –, a requerente adotava, usualmente, outro prenome e se autodenominava
Maria Isabela. Maria Raimunda era conhecida como Maria Isabela tanto no seio
familiar quanto no social e profissional, consoante ressaltou a relatora.
A adoção de outro prenome, inclusive no próprio ambiente familiar, é
indício mais do que suficiente de que o prenome Raimunda causava um
constrangimento insuportável para a requerente. Ela não se fazia representar por aquele
que era seu prenome registral, mas por outro, com que se identificava em seu íntimo.
Este ponto foi devidamente valorado pelo julgado em comento que registrou haver
“motivos bastantes” para a alteração de prenome.
Aliás, a circunstância de se utilizar o prenome Maria Isabela
ostensivamente poderia levar a sua caracterização como apelido público notório, a atrair
o regime do artigo 58 da LRP. Deste modo, a substituição do prenome estaria
autorizada independentemente da comprovação da exposição ao ridículo do requerente.
Ao que parece, o precedente acima citado considerou os dois fatores
para autorizar a mudança no prenome, tutelando-se corretamente os direitos da
personalidade da autora de demanda ao afastar o constrangimento pessoal que vinha
sendo suportado pela mesma. É interessante remarcar ainda que, para fins de garantir
que tal alteração não traria quaisquer prejuízos a terceiros, a relatora consignou que
foram expedidas certidões em nome da requerente, tanto na esfera cível quanto na
criminal, e nada foi apontado em seu nome.
Entende-se, todavia, que, mesmo que existisse algum apontamento em
nome da requerente, tal fato, por si só, não seria suficiente para impedir a alteração de
seu prenome. A alteração do prenome só deve ser indeferida quando restar comprovado
que a sua motivação é ilícita, como na hipótese de frustração de credores.
Isso porque, na esteira do que já foi defendido acima, existem outros
meios de identificação social da pessoa, especialmente o seu CPF, que evitariam que o
indivíduo que teve seu prenome alterado se furtasse às suas responsabilidades. Basta
considerar que, atualmente, exige-se a indicação do número do CPF do réu para se
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distribuir uma demanda judicial,50 assim como é o número do CPF que permite a
realização da penhora online, isto é, da penhora sobre valores porventura existentes em
contas bancárias titularizadas pelo executado, uma medida constritiva extremamente
comum nos dias atuais.51
O julgado em comento serviu de paradigma para que outra Raimunda
tivesse o direito de alterar o seu prenome referendando. No âmbito do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, autorizou-se que Raimunda trocasse seu prenome
para Marina, como já era reconhecida em seu meio social, como se infere da ementa a
seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
MUDANÇA DO PRENOME "RAIMUNDA". ARTIGOS 57 E 58
DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO
DA IMUTABILIDADE DO PRENOME. Recorrente que sofre
intenso abalo psicológico oriundo do fato de se chamar Raimunda,
sendo pessoa humilde, de pouca instrução, exercente da função de
merendeira na APAE de Volta Redonda e assistida pela Defensoria
Pública. Art. 57 da LRP, que permite excepcionalmente que o nome
seja alterado após esgotado o prazo de um ano contado da maioridade,
desde que presente razão suficiente para tal. Jurisprudência do eg.
STJ, que admite a aludida alteração, desde que preenchidos os
requisitos autorizadores da alteração do nome e ausentes expedientes
escusos visando a esquiva de eventuais credores. Prova dos autos.
Parecer psicológico que sinaliza que a recorrente sente-se
constrangida e expressa grande angústia ante a exposição de seu nome
e, devido a esta dificuldade de aceitação, apresenta complicações nas
relações interpessoais quando seu nome se torna conhecido pelos
outros. Depoimento testemunhal a corroborar que a recorrente não
pugna pela alteração de seu prenome por mero capricho pessoal, mas
sim em razão do constrangimento pessoal que sofre em razão do nome
Raimunda. Crachá funcional e depoimento testemunhal que
confirmam que a recorrente é conhecida em seu meio social como
Marina, apelido público notório, cuja adoção, em substituição ao
prenome, é admitida pelo art. 58 da Lei nº 6015/73. Depoimento
pessoal que comprova que a pessoa é alvo de constantes deboches,
humilhações, chacotas e trocadilhos, a tornar nítido que a medida
pleiteada visa atender anseios garantidores da dignidade da pessoa
humana, assegurada na Carta Magna. Precedente do STJ, de lavra da
Ministra Nancy Andrighi, que confirma expressamente o prenome
"Raimunda" como vexatório e hábil a causar constrangimento pessoal.
Motivo excepcional hábil a autorizar a alteração do nome nos moldes
do art. 57 da LRP, que resta constatado. Perquirição acerca do outro
requisito elencado pela jurisprudência, qual seja, a demonstração de
que o pleito não configura expediente escuso para fugir de credores.
"Nada consta" em certidões de protestos e dos distribuidores cíveis e
50
Se o autor da demanda ignorar este dado, ele deverá declarar que desconhece o número de CPF do réu.
A penhora online é realizada pelo sistema BACENJUD, decorrente de convênio firmado entre o Poder
Judiciário e o Banco Central do Brasil.
51
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criminais. Existência de uma restrição cadastral, registrada em
29/06/2004 por uma pequena loja de calçados. Informação a ser
excluída do cadastro, por ser referente, nesta data, a período superior a
5 anos. Inteligência do art. 43, §1º, do CDC e da súmula nº 323 do
STJ. Fato isolado, de somenos importância quando cotejado com a
relevância dos direitos da personalidade, dos quais o direito ao nome é
espécie, a dignidade da pessoa humana, o bem-estar psicológico e o
ajuste social e afetivo da apelante. Ressalto a importância da
segurança das relações jurídicas em nosso ordenamento jurídico.
Julgador que deve encontrar solução que atenda ao legítimo interesse
da recorrente sem prejudicar o direito de terceiro, titular de um crédito
em face da recorrente desde 29/06/2004, que ainda não foi objeto de
ação judicial. Nítida ponderação de interesses, a indicar que o melhor
deslinde para a causa é o acolhimento da pretensão de alteração do
nome, resguardando-se o direito do credor através de intimação para
que tenha ciência de que a devedora teve o seu prenome modificado,
evitando-se, com isso, qualquer burla ao seu direito creditório.
Determinação de retificação do registro civil da apelante, procedendose às anotações de estilo. PROVIMENTO DO RECURSO.52
O deslinde do caso merece elogios, sendo certo que sobre ele vale
tecer algumas considerações. Em primeiro lugar, tem-se que a prova dos autos foi
produzida em duas modalidades: pericial, por meio de elaboração de parecer
psicológico, e testemunhal. A realização de prova técnica pode ser uma solução para as
hipóteses em que não for possível contar com testemunhas que descrevam os
constrangimentos suportados pelo requerente. É evidente que nenhuma prova é
absoluta, mas um especialista provavelmente será capaz de atestar se o prenome
indesejado causa, de fato, transtornos e abalos à esfera íntima do autor da demanda.
Em segundo lugar, convém destacar que, até de forma mais expressa
do que o precedente antes citado, o julgado considerou a utilização de apelido público
notório pela requerente, que era conhecida como Marina em seu meio social e
profissional. Aventou-se, dessa forma, a aplicação do artigo 58 da LRP à hipótese sub
judice.
Em terceiro lugar, verifica-se que o Órgão julgador também se
preocupou com o papel de identificação social que é exercido pelo nome, indicando,
como mais um requisito para a alteração, “a demonstração de que o pleito não configura
expediente escuso para fugir de credores”. Para tanto, foram exigidas as certidões de
protestos e dos distribuidores cíveis e criminais em nome da requerente. Em uma delas,
constou uma restrição antiga, registrada por uma pequena loja de calçados.
52
TJRJ, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 0006866-11.2006.8.19.0066, rel. Des. Célia Meliga Pessoa,
j. 04/08/2009, DJ 04/08/2009.
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Apesar do apontamento em desfavor da requerente, entendeu-se que
este era um fato isolado, que não deveria se sobrepor à tutela dos direitos da
personalidade e à preservação da “dignidade da pessoa humana, [d]o bem-estar
psicológico e [d]o ajuste social e afetivo da apelante”. Trata-se de posicionamento que
se coaduna com o afirmado acima, no sentido de que apenas a motivação ilícita deve
acarretar o indeferimento do pedido de alteração de prenome. Situações pontuais, como
esta do julgado em análise, podem ser contornadas, como fez o próprio Órgão Julgador,
ao determinar que o credor fosse intimado acerca da mudança de prenome, de modo a
se evitar “qualquer burla ao seu direito creditório”. Resguardou-se o interesse do
terceiro, advindo do aspecto social do nome, mas se privilegiou a tutela dos direitos da
personalidade da autora da demanda.
Por fim, acredita-se que o precedente merece pequeno reparo, apenas
quando afirma que o Superior Tribunal de Justiça já teria confirmado “expressamente o
prenome ‘Raimunda’ como vexatório e hábil a causar constrangimento pessoal”. Com
efeito, não parece ser “Raimunda” um prenome que, por si só, expõe a pessoa ao
ridículo. É bem possível que existam diversas “Raimundas” pelo Brasil que não se
incomodem ou até mesmo sintam orgulho de seus prenomes.53
A verificação deve ser feita, sempre, caso a caso. Até porque,
ultrapassada o momento de verificação do prenome em tese que é feita pelo oficial
registrador, há de se ponderar se, face à identidade pessoal daquele indivíduo, aquele
prenome é ou não vexatório. É possível, inclusive, que o prenome tenha sido
questionado pelo oficial do registro civil quando do assento do nascimento por ser
inusitado, mas, uma vez registrado, integra e identifica aquela pessoa que o porta e que
com ele concorda.
Desta feita, a utilização de um precedente judicial que envolva o
mesmo prenome, tal qual no caso da Raimunda que se tornou Marina, em que se fez
referência ao processo da Maria Raimunda que passou a se chamar Maria Isabela, deve
ser feita com parcimônia. O fato de o prenome causar constrangimentos à pessoa deve
53
No Estado do Acre, bem como nas regiões vizinhas do Peru e Bolívia, é comum a devoção à Santa
Raimunda, ainda não canonizada pela Igreja Católica, mas conhecida como protetora dos desvalidos,
principalmente dos seringueiros. Romarias são feitas ao Município de Assis Brasil, em plena selva
amazônica, por milhares de pessoas, para comemorar o dia da santa, 15 de agosto, conforme noticiado
pelo jornal local, A Gazeta do Acre. Disponível em <http://agazetadoacre.com/noticias/santa-raimunda-apadroeira-dos-desvalidos-em-plena-selva-amazonica/>. Acesso em 02/05/2015.
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ser avaliado de acordo com as circunstâncias do caso concreto, muito embora já exista
decisão declarando que o mesmo prenome seria vexatório.
Diante do exposto, conclui-se que, ao decidir um pedido de alteração
de prenome, o Órgão Julgador precisa tutelar, primordialmente, os direitos da
personalidade do requerente, a partir das circunstâncias específicas da hipótese sub
judice. O direito ao nome deverá ser balizado pelo direito à identidade pessoal do
indivíduo, sendo certo que é a partir dos elementos que compõem essa identidade que
será possível vislumbrar se o prenome gera, de fato, transtornos e constrangimentos
para o seu portador, que impeçam o pleno desenvolvimento de sua personalidade.
Como o objetivo principal do processo de alteração de registro é
proteger e promover os direitos da personalidade em jogo, a exigência de prova cabal
deve ser relativizada, haja vista que, em alguns casos, a comprovação da situação
vexatória por pessoas desinteressadas é praticamente impossível. Nestas situações, uma
saída é a produção de prova técnica, em que um especialista avaliará, de acordo com as
declarações do próprio requerente, qual é o impacto que o prenome indesejado tem em
sua vida cotidiana.
Ainda em razão de se tutelar os direitos da personalidade em primeiro
lugar, a alteração do prenome só deve ser indeferida quando restar comprovado que a
sua motivação é ilícita e tem por intenção prejudicar terceiros. O exame acerca de
eventuais impactos que a alteração do prenome gerará na esfera jurídica de terceiros
deve ser feita, mas não pode se converter em verdadeiro empecilho ao deferimento do
pedido. Se houver reflexos pontuais à esfera jurídica de terceiros, é essencial que se
tente evitar que estes tenham prejuízos com medidas que não impeçam a tutela do
direito à identidade pessoal do requerente – como no julgado acima, em que se
determinou a intimação do credor acerca da alteração de prenome deferida.
Com base nestas premissas, garantir-se-á que o processo judicial que
discuta a alteração de prenome se volte para aquilo que é prioritário: a preservação e a
promoção dos direitos da personalidade do requerente.
5. Conclusão
O nome, mais do que um elemento de designação do indivíduo na
sociedade, integra a sua identidade pessoal, individualizando a pessoa. Neste contexto,
viu-se que o direito ao nome, reconhecido pelo legislador como verdadeiro direito da
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personalidade, pode desempenhar duas funções, a saber, (i) identificação social; e (ii)
preservação e promoção da personalidade humana.
Muito embora seja possível a coexistência dessas funções, uma delas
deve prevalecer, sendo certo que tal verificação é essencial para a correção da tutela
jurídica dada ao nome. Considerando-se não só que o papel do nome como elemento de
identificação vem perdendo força pela utilização de outros dados, até mais eficientes,
com esta mesma finalidade, mas também que a tutela da pessoa humana não comporta
qualquer mitigação e deve ser privilegiada, tem-se que a função principal do direito ao
nome é a de preservação e promoção da personalidade humana.
Desta feita, demonstrou-se que o direito ao nome deve ser tutelado,
principalmente, enquanto direito da personalidade. Essa tutela será balizada pela
identidade pessoal do indivíduo, uma vez que o nome nada mais é do que um dos seus
componentes. Isso importa em dizer que o direito ao nome não deve ser examinado de
maneira solitária, mas sim em conjunto com as demais convicções que identificam a
pessoa, seja no âmbito íntimo, seja em seu contato social.
O reconhecimento de uma função principal do direito ao nome é de
extrema relevância para se justificar a flexibilização do princípio da imutabilidade do
nome. Sabe-se que esta é a regra no sistema brasileiro, em consonância com o disposto
no artigo 58 da LRP, a qual, porém, não é absoluta, o que vem sendo confirmado por
diversas decisões judiciais que autorizam a alteração de prenomes vexatórios com base
no artigo 55, parágrafo único, da LRP.
Trata-se de interpretação extensiva do mencionado dispositivo legal
que merece acolhida, uma vez que, se a lei reconhece que um prenome é suscetível de
expor a pessoa ao ridículo ao ponto de ser rejeitado quando do registro, tal juízo de
ponderação também deve ser feito – e até com mais razão – caso o registro não tenha
sido evitado inicialmente. Em casos tais, aplica-se também o artigo 57 da LRP, que
permite a alteração de prenome de forma excepcional e motivada, independente da
idade do seu requerente.
Apesar de os Tribunais terem avançado no trato da matéria, ainda não
há sistematização dos fundamentos que podem levar à alteração do prenome registral. O
objetivo do presente trabalho foi justamente traçar premissas que devem ser observadas
no processo de alteração de registro, cujo norte será, indubitavelmente, promover o
pleno desenvolvimento da personalidade humana.
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Com isso, o primeiro ponto é a própria inversão do paradigma
atualmente adotado: ao invés de se exigir comprovação cabal dos constrangimentos que
o requerente sofre por conta de seu prenome, o ideal é que se verifique se há algum
empecilho à tutela da sua personalidade, notadamente no que tange a possibilidade de se
causar prejuízos a terceiros. Desta maneira, fica garantida a observância à função de
identificação social, mas de forma subsidiária e não como uma justificativa prévia para
impedir o acolhimento do pedido.
Ainda sobre a questão da prova, a sua exigência deve ser relativizada,
ou seja, a prova não pode significar óbice intransponível à pretensão do requerente. Em
situações em que se revela impossível contar com provas produzidas por terceiros
desinteressados, uma solução é a produção de prova técnica, oportunidade em que um
especialista atestará os transtornos psicológicos suportados pelo requerente em razão de
seu prenome.
Outro ponto a ser observado no processo de alteração de registro é o
que diz respeito ao atingimento dos interesses de terceiros, tais como credores.
Defendeu-se neste trabalho que o pedido de mudança de prenome apenas deve ser
indeferido quando a sua motivação for ilícita e/ou tiver por intenção deliberada
prejudicar terceiros. Eventuais reflexos que a alteração de prenome ocasionará na esfera
jurídica de terceiros devem ser contornados, de modo que não atrapalhem a tutela da
personalidade do requerente, direito fundamental que deve prevalecer sobre interesses
meramente disponíveis de terceiros.
Por fim, é de se ter em mente que todo o procedimento para a
alteração de prenome precisa levar em conta as circunstâncias específicas do caso
concreto. A tutela do direito ao nome adotará como parâmetro o direito à identidade
pessoal do indivíduo e é a partir dos caracteres dessa identidade que será dado avaliar se
o prenome registral expõe a pessoa ao ridículo, a constrangimentos ou humilhações.
Não há fórmula pronta.
Em suma, se todos têm direito ao nome, como é consagrado na
legislação, mister que se garanta que tal nome seja representante fiel da identidade
pessoal do indivíduo – e não um peso que tenha que suportar por razões de interesse
estatal. O nome não pode ser uma barreira que impeça o seu titular de desenvolver
amplamente a sua personalidade.
Recebido em 17/01/2016
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1º parecer em 02/02/2016
2º parecer em 02/02/2016
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Estrangeira
L’OBBLIGAZIONE COME RAPPORTO COMPLESSO
A obrigação como relação complexa
Antonino Procida Mirabelli di Lauro
Professor ordinário dell’Università di Napoli Frederico II
Riassunto
Il ruolo della dottrina tedesca nelle “scoperte giuridiche” di alcuni modeli in tema di
diritto delle obbligazioni (obblighi di protezione, contatto sociale, obbligazione senza
prestazione, effetti di protezione del contratto rispetto a terzi ecc.) esige che questa
circolazione trans-sistematica ricerca privilegiare, rispetto all’approccio dogmatico, la
comprensione storico-comparativa delle ragioni della loro esistenza. Infatti, in un
mondo caratterizzato da una sempre maggiore mobilità di ogni scienza e conoscenza, la
comparazione giuridica si propone innanzitutto di individuare e, possibilmente, anche di
spiegare sia le concordanze che le divergenze formali e sostanziali riscontrabili tra i vari
diritti nazionali, insistendo sulla necessità di focalizzare l’attenzione sui problemi e
sulle funzioni anziché sui concetti e sulle istituzioni. D’altrónde, è proprio
l’incontrovertibile idea dell’obbligazione come rapporto complesso, quale struttura
unitaria funzionalmente orientata a rendere estremamante difficile discernere a priori, in
maniera netta e precisa, ciò che va ascritto al primo ovvero al secondo comma del § 241
BGB. La distinzione assume estremo rilievo anche sotto il profilo pratico poiché la
dottrina tedesca applica agli obblighi accessori legati alla prestazione il regime e le
tutele che riguardano gli obblighi di prestazione. Sia il criterio dello “scopo”
dell’obbligo accessorio, nel senso di considerarlo tra gli obblighi di prestazione là dove
è diretto alla protezione esclusiva della prestazione principale; sia il requisito della
“prossimità” dell’obbligo accessorio alla prestazione; sia il rilievo attribuito al ruolo che
la violazione dell’obbligo accessorio assume nei riguardi della prestazione, nel senso di
ledere l’Äquivalenzinteresse ovvero l’Integritätsinteresse; sia la caratteristica
dell’azionabilità in giudizio dell’obbligo accessorio, cioè la possibilità di esigere il
rimedio dell’adempimento rispetto alla mera tutela risarcitoria, sono tutti parametri che,
sulla base della volontà delle parti e del complessivo assetto degli interessi divisati,
possono essere utili ai fini di distinguere gli obblighi accessori legati alla prestazione (di
cui al comma 1 del § 241 BGB) dagli obblighi di protezione (di cui al comma 2). Ma
proprio la molteplicità ed eterogeneità dei criteri proposti indicano la problematicità
della partizione e l’impossibilità di fondarla su un giudizio a priori, universalmente
valido per ogni obbligazione e per ogni contratto. Per pervenire ad una classificazione
esaustiva e completa bisognerebbe esaminare l’intero diritto delle obbligazioni e dei
contratti, “tipici” ma soprattutto “atipici”. La qualificazione, quindi, non può che essere
effettuata caso per caso, sulla base del complessivo regolamento d’interessi e di un
giudizio comparativo di prevalenza che involga i diversi parametri con riferimento al
caso di specie.
Parole chiavi
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L’obbligazione come rapporto complesso; obblighi di protezione; obbligazione senza
prestazione; profili strumentale e rimediale; scelta del rimedio esigibile.
Resumo
O papel da doutrina alemã em "construções jurídicas" de alguns modelos relativos ao
direito das obrigações (deveres de proteção, contato social, obrigação sem prestação,
efeitos de proteção do contrato em relação a terceiros, etc.) exige que esta circulação
trans-sistemática procure privilegiar, quanto à abordagem dogmática, a compreensão
histórico-comparativa das razões de sua existência. De fato, em um mundo
caracterizado por uma crescente mobilidade de toda a ciência e conhecimento, o Direito
comparado se propõe, em primeiro lugar, a individuar e, se possível, também explicar
tanto as concordâncias quanto as diferenças formais e substanciais encontradas entre os
diferentes ordenamentos nacionais, insistindo na necessidade de concentrar a atenção
sobre os problemas e as funções, em vez de conceitos e instituições. Além disso, é a
incontroversa ideia de obrigação como relação complexa, qual estrutura unitária
funcionalmente orientada a tornar-se extremamente difícil discernir a priori, de forma
clara e precisa, que deve ser atribuído no primeiro ou no segundo parágrafo do § 241
BGB. A distinção assume extrema importância também em termos práticos, uma vez
que a doutrina alemã aplica aos deveres acessórios relacionados à prestação o regime e
as tutelas relativas às obrigações de prestação. Seja o critério do "escopo" do dever
acessório, no sentido de considerá-lo entre as obrigações de prestação, em que é
direcionado para a proteção exclusiva da prestação principal; seja o requisito da
"proximidade" do dever acessório à prestação; seja a ênfase atribuída ao papel que a
violação do dever acessório assume em relação à prestação, no sentido de minar a
l’Äquivalenzinteresse ou l’Integritätsinteresse; seja a característica da juridicialização
do dever acessório, ou seja, a possibilidade de exigir a tutela de adimplemento em
comparação com a mera tutela ressarcitória, são todos parâmetros que, com base na
vontade das partes e no regulamento geral de interesses, podem ser úteis para fins de
distinguir os deveres acessórios ligados à prestação (referidos no n.º 1 do § 241 BGB)
dos deveres de proteção (nos termos do n.º 2). Mas a multiplicidade e heterogeneidade
dos critérios propostos indicam a natureza problemática da divisão e a impossibilidade
de baseá-la sob um juízo a priori, universalmente válido para cada obrigação e para
cada contrato. Para conseguir uma classificação exaustiva e completa seria necessário
examinar todo o direito das obrigações e dos contratos, "típicos", mas sobretudo
"atípicos". A qualificação, então, só pode ser realizada caso a caso, com base no
regulamento geral de interesses e em um juízo comparativo de prevalência que envolva
os diferentes parâmetros com referência ao caso em exame.
Palavras-chave
A obrigação como relação complexa; deveres de proteção; obrigação sem prestação;
perfis instrumental e reparatório; escolha da tutela exigível.
Sommario
1. Il ruolo della dottrina tedesca nelle “scoperte giuridiche” in tema di diritto delle
obbligazioni. La circolazione trans-sistematica di alcuni modelli (obblighi di protezione,
contatto sociale, obbligazione senza prestazione, effetti di protezione del contratto
rispetto a terzi ecc.) e l’esigenza di privilegiare, rispetto all’approccio dogmatico, la
comprensione storico-comparativa delle ragioni della loro esistenza – 2. La
“connessione” funzionale delle obbligazioni di sécurité alla prestazione e la loro
autonomia strutturale rispetto alle altre obbligazioni strictement contractuelles. La
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contrapposizione, in Francia e Germania, tra le concezioni pluralistica o unitaria
dell’obbligazione e la diversa posizione rispetto agli obblighi di protezione “puri” o
“isolati”. Le ragioni della riforma del diritto delle obbligazioni in Germania, con
riferimento anche al sistema di responsabilità delittuale – 3. L’ambigua nozione di
“contatto sociale”, quale fonte di obblighi di prestazione, non di protezione, e la sua
contrapposizione all’idea di “contatto negoziale”. La responsabilità da status
professionale nell’ambito di una disciplina unitaria degli ausiliari del debitore (art. 1228
c.c.) – 4. Dalla teoria dell’“obbligazione senza prestazione” alla pragmatica della
“prestazione senza obbligazione”. La “specificità” della culpa in contrahendo e il suo
possibile inquadramento nell’area della responsabilità contrattuale. L’esplorazione delle
prestazioni “non dovute” come fonte di obblighi di protezione. La ricostruzione dei
rapporti “di cortesia” all’interno di un paradigma relazionale – 5. Il carattere
strumentale e rimediale delle obbligazioni di sécurité. L’analogo ruolo svolto dagli
obblighi di protezione: in particolare, il superamento delle incongruenze in tema di
responsabilità degli ausiliari (§§ 278 e 831 BGB) e le mutazioni dell’obbligazione
sanitaria tra “mezzi” e “risultato” – 6. Segue. La critica dell’obbligazione di sécuritémoyens e il suo collegamento con i rimedi delittuali fondati su regole di responsabilità
oggettiva (art. 1384, comma 1). Le proposte di riforma, in Francia, ispirate al regime del
concorso o alla “decontrattualizzazione” delle obbligazioni di sécurité nel caso di
lesioni dell’integrità psico-fisica della persona – 7. Il ruolo primario degli obblighi di
protezione “connessi” e il problema della loro distinzione dagli obblighi di prestazione
nell’ambito di un’idea dell’obbligazione quale “struttura unitaria funzionalmente
orientata”. Le difficoltà della partizione tra leistungsbezogene Nebenpflichten e nicht
leistungsbezogene Nebenpflichten al fine di individuare il tipo di rimedio esigibile.
L’impraticabilità dell’approccio dogmatico-tassonomico e l’adozione di un metodo
ispirato alla scelta del rimedio (risarcitorio o in forma specifica) in concreto esigibile –
8. La rispondenza delle dottrine in tema di obbligazione e di responsabilità alle esigenze
storiche e alle caratteristiche sistemologiche di ciascun diritto. Il fenomeno
dell’“equivalenza” e della “simmetria” dei regimi di imputazione della responsabilità in
ambito delittuale e contrattuale. Il superamento della partizione e l’unificazione dei
modelli di responsabilità nell’itinerario che conduce dalla colpa alla strict liability.
1. Il ruolo della dottrina tedesca nelle “scoperte giuridiche” in tema di diritto delle
obbligazioni. La circolazione trans-sistematica di alcuni modelli (obblighi di
protezione, contatto sociale, obbligazione senza prestazione, effetti di protezione
del contratto rispetto a terzi ecc.) e l’esigenza di privilegiare, rispetto all’approccio
dogmatico, la comprensione storico-comparativa delle ragioni della loro esistenza
La pubblicazione, in lingua italiana,1 di uno dei più celebri saggi di
Heinrich Stoll arricchisce ulteriormente l’itinerario dedicato alla ricostruzione degli
Questo studio si colloca nell’ambito della ricerca «Corti, dottrina e società inclusiva: l’impatto dei
formanti dottrinali sulle Corti di vertice» (PRIN 2010-2011, cofinanziato MIUR) svolta dall’Unità di
Ricerca dell’Università degli Studi di Napoli Federico II.
1
La traduzione del saggio di He. Stoll, Abschied von der Lehre von der positive Vertragsverletzung, in
«AcP», 136, 1932, comparirà nel volume, in corso di pubblicazione per i tipi della Giappichelli, intitolato
L’obbligazione come rapporto complesso; ivi i saggi di R. Favale, Il rapporto obbligatorio come struttura
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orientamenti dottrinari che hanno pensato il rapporto obbligatorio come struttura
complessa, già intrapreso con la traduzione della “scoperta”, 2 ad opera di Hermann
Staub, delle Grundlagen delle violazioni positive del contratto3 e del più controverso
lavoro di Günter Haupt sui rapporti contrattuali di fatto.4 Non a caso il contributo ha ad
oggetto proprio la critica von der Lehre von der positive Vertragsverletzung ma,
piuttosto che provocarne il commiato (Abschied), contribuirà alla sua imperitura
affermazione.
La storia attribuirà ad Heinrich Stoll il merito di aver ideato la dottrina
degli obblighi di protezione, anche se non può essere sottovalutato l’essenziale
contributo che a tale tema era stato già dato da Hugo Kress 5 – per altro puntualmente
citato da Stoll nel corso dell’opera – e da altri Autori che, interpretando il pensiero di
Rudolf von Jhering,6 avevano già pensato di costruire il rapporto obbligatorio come
Organismus,7 konstante Rahmenbeziehung8 o “rapporto cornice”.
complessa e la dottrina degli obblighi di protezione nel modello tedesco, di M. Feola, L’obbligazione
come rapporto complesso, e di A. Procida Mirabelli di Lauro.
2
Considera, infatti, una “scoperta giuridica” la teoria di Staub sulle violazioni positive del contratto, H.
Dölle, Juristische Entdeckungen, in Verhandlungen des 42. Deutschen Juristentages 1957, II, Tübingen,
1959, B 1 ss.
3
H. Staub, Le violazioni positive del contratto (Die positiven Vertagsverletzungen), trad. it. di G.
Varanese, Presentazione di R. Favale, Napoli, 2001.
4
G. Haupt, Sui rapport contrattuali di fatto, ed. it. di G. Varanese, in Studi di Diritto Comparato, Collana
diretta da A. Berlinguer, R. Favale, M. Oliviero, M. Papa, L. Pegoraro, G.M. Piccinelli, A. Procida
Mirabelli di Lauro e M. Serio, n. 2, Torino, 2012. Tra le traduzioni di opere più recenti in materia di
struttura complessa del rapporto obbligatorio è opportuno segnalare la bella versione italiana, ad opera di
A. di Majo e di M. R. Marella, del saggio di C.-W. Canaris, Norme di protezione, obblighi del traffico,
doveri di protezione (Parte prima), in questa «Rivista», 1983, 567 ss., Id., Norme di protezione, obblighi
del traffico, doveri di protezione (Parte seconda), ivi, 1983, 793 ss., e del volume di K. Zweigert e H.
Kötz, Introduzione al diritto comparato, vol. II, Istituti, III ed. con aggiornamenti a cura di A. di Majo,
trad. it. di E. Cigna e A. Gangemi, Milano, 2011, 207 ss., 269 ss., 362 ss. e passim.
5
H. Kress, Lehrbuch des Allgemeinen Schuldrechts, München, 1929, 1 ss.
6
Che l’idea dell’obbligazione come rapporto complesso si trovi già nel pensiero di R. von Jhering (Della
culpa in contrahendo ossia del risarcimento del danno nei contratti nulli o non giunti a perfezione, trad.
it. di F. Procchi, Napoli, 2005), è opinione espressa da E. Schmidt, Nachwort, in occasione della ristampa
dei contributi di R. von Jhering sulla Culpa in contrahendo e di H. Staub, Die positiven
Vertragsverletzungen, Bad Homburg v.d. H.-Berlin-Zürich, 1969, 132. Sul punto, C. Castronovo, voce
Obblighi di protezione, in «Enc. giur. Treccani», XXI, Roma. 1991, 1 ss.
7
H. Siber, Grundriβ des Deutschen Bürgerlichen Rechts, 2, Schuldrecht, Leipzig, 1931, 1.
8
F. Herholz, Das Schuldverhältnis als konstante Rahmenbeziehung (Ein Rechtsgrund für negative
Interessenansprüche trotz Rücktritt und Wandlung), in «AcP», 130, 1929, 257 ss.
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Proprio da tali suggestioni parte questa breve riflessione che, più che
essere imperniata sul pensiero di Heinrich Stoll, cercherà di porre in evidenza alcuni dei
passaggi più problematici che il tema dell’obbligazione e della sua struttura complessa
pone oggi all’attenzione della scienza giuridica.
Come testimoniano, con ampiezza di dati, gli studi in materia, questo
tema nasce nella dottrina tedesca e, forse ancor prima, in quella francese,9 per poi
evolvere in una circolazione transnazionale di modelli che condizionerà, negli ultimi
anni, il diritto italiano. L’aver riproposto, nell’ambito della nostra esperienza giuridica,
le idee sul rapporto obbligatorio maturate nella scienza giuridica tedesca dello scorso
secolo, sia pure per risolvere problemi del tutto peculiari di quel diritto, ha spinto la
nostra giurisprudenza a recepire quelle idee, al punto da porre in discussione, da un lato,
la tradizionale struttura del rapporto obbligatorio fondato sulla sola prestazione,
dall’altro, gli stessi confini della responsabilità contrattuale. Ma, come si è potuto
verificare con riferimento al concetto di “contatto sociale”,10 la ricezione spesso
travalica l’esatta fisionomia che il modello assume nell’ordinamento di appartenenza.
La novità nella ricezione è dovuta non soltanto a fattori sociali, politici o economici 11 o
all’esigenza di armonizzare il modello trapiantato con un diverso sistema giuridico, ma
anche, talvolta, alla inesatta comprensione, nell’ordinamento recipiente, della
fisionomia che il modello ha assunto nella scienza giuridica d’origine. 12 Ciò può essere
accaduto proprio in ordine al tema qui trattato, almeno per quella dottrina che ha
rimproverato esplicitamente la nostra giurisprudenza di non aver compreso il reale
significato che alcuni istituti di recente apparsi nel nostro diritto (la teoria del contatto
“sociale” o “negoziale”,13 il contratto con effetti di protezione per terzi,14 la
9
M. Sauzet, De la responsabilité des patrons via-à-vis des ouvriers dans les accidents industriels, in
«Rev. crit. lég. jur.», 1883, 596 s.; Ch. Sainctelette, De la responsabilité et de la garantie, BruxellesParis, 1884, 95 ss., 118 ss. e passim.
10
A. Zaccaria, Der aufhaltsame Aufstieg des sozialen Kontakts (La resistibile ascesa del “contatto
sociale”), in «Riv. dir. civ.», 2013, I, 78 ss.
11
L.-J. Constantinesco, Il metodo comparativo, ed it. di A. Procida Mirabelli di Lauro, Torino, 2000, 330
ss.
12
M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, in Studi di Diritto Comparato, Collana diretta da A. Berlinguer,
R. Favale, M. Oliviero, M. Papa, L. Pegoraro, G.M. Piccinelli, A. Procida Mirabelli di Lauro e M. Serio,
n. 1, Torino, 2012, 32.
13
Cfr., ad es., A. Zaccaria, op. ult. cit., 78 ss.
14
Sul punto, i rilievi di A. di Majo, La protezione contrattuale del terzo, in Gli effetti del contratto nei
confronti dei terzi, a cura di L. Vacca, Atti del IV Congresso Internazionale ARISTEC (Roma, 13-16
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responsabilità da affidamento ingenerato dallo status professionale,15 la possibilità di
generalizzare un rapporto obbligatorio senza prestazione,16 ad es.) avevano assunto nei
paesi d’origine.
Ciò che può rilevare ai fini della ricezione giurisprudenziale è anche il
metodo che viene osservato nell’esame e nell’illustrazione del termine straniero. Anche
se l’affermazione ha già suscitato qualche autorevole dissenso,17 mi sembra che
l’approccio dogmatico-deduttivo non sia propriamente adeguato a compiere una ricerca
civil-comparativa. Infatti, «in un mondo caratterizzato da una sempre maggiore
mobilità» di ogni scienza e conoscenza, la comparazione giuridica si propone
innanzitutto “di individuare e, possibilmente, anche di spiegare sia le concordanze che
le divergenze formali e sostanziali riscontrabili tra i vari diritti nazionali”,18 insistendo
“sulla necessità di focalizzare l’attenzione sui problemi e sulle funzioni anziché sui
concetti e sulle istituzioni”.19
Sulla base di questa idea, che rappresenterà una delle costanti di
questo contributo, è possibile affermare fin d’ora, con riferimento all’argomento qui
trattato, che le diverse dottrine elaborate in Germania e in Francia nel corso del XX
secolo in tema di obbligazione trovano la loro spiegazione nell’ambito delle peculiarità
sistemiche dei due ordinamenti, con riferimento non soltanto ai problemi
settembre 1999), Torino, 2001, 113 ss. Per una critica della nostra giurisprudenza in materia, G. Varanese,
Il contratto con effetti protettivi per i terzi, Napoli, 2004, 169 ss.
15
In argomento, M. Barcellona, Trattato della responsabilità civile, Torino, 2011, 72 ss.; Id., La
responsabilità extracontrattuale. Danno ingiusto e danno non patrimoniale, Torino, 2011, 35 ss.; L.
Lambo, Obblighi di protezione, Padova, 2007, 385 ss.
16
Sul punto, la critica di A. Di Majo, Le tutele contrattuali, Torino, 2009, 65 ss. e passim.
17
Da parte di C. Castronovo, in occasione della presentazione, a Palermo, del volume Scritti di
comparazione e storia giuridica, II, a cura di P. Cerami e M. Serio, ricordando G. Criscuoli, Torino,
2013. In particolare, oggetto di discussione fu la mia affermazione secondo la quale «il metodo
dogmatico-deduttivo non è mai appartenuto e mai potrà appartenere allo storico-comparatista» (A.
Procida Mirabelli di Lauro, Comparazione giuridica e storia nello studio del diritto dell’era presente, ivi,
60); ma, sul punto, mi limitavo a ricordare l’insegnamento di R. Orestano, Introduzione allo studio del
diritto romano, Bologna, 1987, 11 e 307.
18
M. J. Bonell, Comparazione giuridica e unificazione del diritto, in G. Alpa, M. J. Bonell, D. Corapi, L.
Moccia, V. Zeno-Zencovich e A. Zoppini, Diritto privato comparato. Istituti e problemi, Roma-Bari,
2008, 3.
19
M. J. Bonell, op. loc. cit.
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dell’inadempimento e del contratto,20 ma anche alla differente fisionomia (riguardo
all’estensione dell’area dei danni risarcibili e ai modelli di imputazione) dei sistemi di
responsabilità extracontrattuale. E ciò, non tanto per la consueta contrapposizione tra
modelli atipici (art. 1382 Code civil) e modelli tipici (§ 823 ss. BGB) di responsabilità
delittuale, quanto, soprattutto, per l’esistenza (in Francia ed in Italia) di regole di
responsabilità oggettiva delittuale (ad es., per i fatti della cosa e d’autrui: art. 1384,
comma 1, Code civil e artt. 2051 e 2049 c.c. it.) che rendono più appetibile per la
vittima tale regime di responsabilità rispetto ad un’estensione dell’obbligazione (se
qualificata “di mezzi”) e della conseguente responsabilità contrattuale.21
2. La “connessione” funzionale delle obbligazioni di sécurité alla prestazione e la
loro
autonomia
strutturale
rispetto
alle
altre
obbligazioni
strictement
contractuelles. La contrapposizione, in Francia e Germania, tra le concezioni
pluralistica o unitaria dell’obbligazione e la diversa posizione rispetto agli obblighi
di protezione “puri” o “isolati”. Le ragioni della riforma del diritto delle
obbligazioni in Germania, con riferimento anche al sistema di responsabilità
delittuale
In merito alle più significative differenze esistenti in materia di
struttura del rapporto obbligatorio in Francia e in Germania, si è rilevato22 che le
obbligazioni di sécurité si caratterizzano per una struttura essenzialmente accessoria,
ovvero per l’essere pensate in quanto funzionalmente “connesse” rispetto ad un obbligo
di prestazione. Da qui una sostanziale analogia di vedute con il pensiero di Heinrich
20
In argomento, R. Favale, Il rapporto obbligatorio come struttura complessa, cit., § 1 ss.
Con specifico riguardo alle regole di imputazione della responsabilità, in ambito contrattuale e
delittuale, M. FEOLA, L’obbligazione come rapporto complesso, cit., § 17 s.
22
Da M. Feola, op. ult. cit., § 8, lett. b). La dottrina francese è solita qualificare le obbligazioni di sécurité
come «obligations accessoires» o come obbligazioni «par accessoire» che, «traduisant des normes
générales de comportement», consentono «di far giocare alla responsabilità contrattuale un ruolo identico
a quello che è tradizionalmente riservato alla responsabilità delittuale» (M. Bacache-Gibeili, Les
obligations. La responsabilité civile extracontractuelle, in Traité de Droit civil sous la direction de C.
Larroumet, II éd., Paris, 2012, 69).
21
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Stoll espresso nell’Abschied,23 là dove giustifica la sussistenza di obblighi di protezione
in presenza di un’obbligazione che è diretta alla “realizzazione dell’interesse alla
prestazione”, allo scopo di “proteggere la controparte da danni che potrebbero scaturire
dalla relazione speciale e per suo tramite”.24 Nel diritto francese, il dato della
accessorietà è confermato dallo stesso lessico utilizzato dalla scienza giuridica: l’essere
“di mezzi” o “di risultato” è una qualifica che pertiene essenzialmente alla prestazione25
e che l’obbligazione di sécurité acquisisce proprio in virtù del fenomeno di connessione
funzionale, pur potendo esprimere una qualificazione diversa rispetto alla prestazione
alla quale è collegata. Ma tale esperienza va ben oltre il dato della accessorietà poiché,
soprattutto in talune ipotesi (ad es., prestazione medica, obbligazione di “vegliare sulla
sicurezza” di un soggetto affidato),26 v’è, sovente, nella prassi, una tendenziale
“immedesimazione” dell’obbligazione di sécurité con la prestazione. In questi casi
l’obbligazione di sécurité sfuma dal versante della protezione per affermarsi in quello,
preminente, della prestazione.
Ciò non ha impedito, però, che la scienza giuridica francese, fedele
alla qualificazione dell’obbligazione del professionista sanitario come obbligazione di
mezzi, sancita nell’arrêt Mercier,27 professata dalla giurisprudenza dominante e ribadita
nell’art. L. 1142-1, comma 1, del Code santé publ. (come modificato dalla legge del 4
marzo 2002), abbia distinto l’obbligo di prestazione da quello di protezione ogni qual
volta il paziente sia stato vittima di un accidente medico subito “à l’occasion d’une
activité d’investigations, de soins ou de traitements», anche al fine di “sapere se
l’obbligazione accessoria di sécurité sia egualmente di mezzi o possa essere, in certi
casi, di risultato”.28 Ebbene, la dottrina è unanime nell’affermare che il principio della
responsabilità per colpa, che pur in certi casi involge l’idea della faute virtuelle, ovvero
di quella faute “che si deduce ipso facto dal danno”, perché «inclusa nel danno o indotta
23
Tuttavia, con riferimento alla relazione intercorrente tra affidamento e rapporto obbligatorio v. He.
Stoll, Vertrag und Unrecht, II, Tübingen, 1934, 125.
24
He. Stoll, Commiato, cit., § 4.2, lett. b).
25
In questi termini, M. Feola, op. loc. ult. cit.
26
G. Durry, La responsabilité de ceux qui se chargent des enfants d’autrui, in «Rev. trim. dr. civ.», 1982,
771, nel commentare Cass., I Ch. civ., 13 janvier 1982, anche in «Rec. Dalloz», 1982, Inf. rap. - Somm.
comm., 363.
27
Cass., 20 mai 1936, in «Rec. Dalloz», 1936, 1, 88, Rapp. L. Josserand, e in «Rec. Sirey», 1937, 1, 321,
con il commento di A. Breton.
28
Così, M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 894.
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dal danno”,29 conosce “due grandi eccezioni”30 in materia di infezioni nosocomiali e di
danni causati da prodotti sanitari. Nel primo caso, che le Corti avevano esteso non
soltanto alle cliniche, ma anche alle infezioni contratte in studi privati, la legge di
riforma (art. L. 1142-1, comma 2) ha confermato il precedente orientamento
giurisprudenziale che aveva individuato, sia per le infezioni esogene, sia per quelle
endogene,31 “un’obbligazione di sécurité di risultato dalla quale non ci si può liberare
senza apportare la prova della cause étrangère”.32 La prova dell’assenza di colpa è
irrilevante, poiché la responsabilità delle strutture sanitarie non è “fondata su una
presunzione di faute”, ma “riposa su una vera e propria responsabilità oggettiva, de
plein droit”.33 Nel caso del ricovero del paziente presso una pluralità di strutture
sanitarie, la Cassazione – estendendo una soluzione già affermata in materia di vittime
del DES34 – ha presunto la causalità tra l’infezione e ciascuno degli stabilimenti nel
quale aveva soggiornato il malato, consentendo di condannare in solido35 quelle
strutture che non erano state in grado di “invertire” la presunzione, provando di non
essere state causa dell’infezione. Ma la giurisprudenza relativa all’obbligazione di
sécurité di risultato in materia di infezioni nosocomiali è stata soltanto parzialmente
confermata dal legislatore. Infatti, affianco alla responsabilità oggettiva delle strutture
sanitarie, la responsabilità del professionista sanitario è ricondotta comunque
all’obbligazione di mezzi anche in materia di infezioni nosocomiali, e ciò ha
rappresentato “un recul”36 nella protezione delle vittime. Ma il maggior rigore assegnato
agli obblighi d’informazione circa i rischi delle infezioni nosocomiali tende a “palliare
le insufficienze dell’obbligazione di sécurité, ormai di mezzi”37 anche in questa materia.
Da qui la scelta della Cassazione “di integrare l’infezione nosocomiale nel contenuto
dell’informazione che il medico deve al suo paziente”38 e il ritorno ad una presunzione
di faute39 che consente alle vittime di ottenere il risarcimento ogni qual volta il medico
29
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 902, ivi la giurisprudenza cit.
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 921.
31
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 927.
32
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 923.
33
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
34
Cass., I Ch. Civ., 24 septembre 2009, n° 08-16.305 e n° 08.10.081, in «Rev. trim. dr. civ.», 2010, 111,
con le osservazioni di P. Jourdain, e in «Sem. jur.», 2009, 381, con nota di S. Hocquet-Berg.
35
Cass., I Ch. Civ., 17 juin 2010, n° 09-67.011, in «Rev. trim. dr. civ.», 2010, 567, con le osservazioni di
P. Jourdain, e in «Rec. Dalloz», 2011, 283, con nota di C. Bonnin.
36
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 928.
37
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 930.
38
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
39
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
30
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non sia in grado di provare di aver correttamente informato il paziente su ogni rischio di
infezione ospedaliera.
Anche in tema di danni causati dai prodotti sanitari la giurisprudenza
“non aveva esitato a consacrare un’obbligazione di sécurité di risultato”.40 Così in tema
di protesi, di trasfusioni, di emoderivati infetti e di qualsiasi altro prodotto o materiale
messo a disposizione dei pazienti dalle strutture sanitarie. A seguito della riforma del
2002, la responsabilità “resta oggettiva e rappresenta un’eccezione, consacrata ormai
dalla legge, al principo della responsabilità soggettiva in materia”. 41 Tuttavia “la
minaccia avverso la giurisprudenza relativa all’obbligazione di sécurité di risultato”42
proviene non tanto dalla riforma del 4 marzo 2002, quanto dalla legge del 19 maggio
1998 relativa alla responsabilità per il fatto dei prodotti difettosi, che fa gravare
sull’attore la prova del danno, del difetto e del nesso di causalità tra il difetto e il danno
(art. 1386-9 Code civ.). Ma se la legge del 1998 limita ormai considerevolmente la
responsabilità di produttori e fornitori, non altrettanto potrebbe dirsi per la
responsabilità del medico che utilizza il materiale difettoso. La possibilità che, per
questi, possa trovare applicazione la più rigorosa disciplina di diritto comune ispirata
alla obbligazione di sécurité di risultato sembra confermata da una decisione del 2009
della Corte di Giustizia europea la quale consente ai diritti nazionali di disciplinare
diversamente la responsabilità per i danni causati “à des biens à usage professionnel”.43
Il problema è stato riproposto alla Corte di Giustizia dell’Unione Europea dal Consiglio
di Stato,44 il quale ha formulato due questioni pregiudiziali in ordine all’interpretazione
dell’art. 13 della direttiva: la prima consiste nel sapere se il regime della responsabilità
ospedaliera rappresenti un regime speciale che può coesistere con quello della direttiva;
con la seconda, “più ambiziosa”,45 si chiede se la direttiva riguardi anche la
responsabilità dei prestataires de services che utilizzano prodotti difettosi.
40
Lo riferisce, M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 933.
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 942.
42
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
43
Cfr., infatti, CJCU, 4 juin 2009, in «Rec. Dalloz», 2009, 1731.
44
Cons. État, 4 octobre 2010, n. 327449, in «Rec. Dalloz», 2011, Jur., 213.
45
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 948.
41
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Il dato della necessaria “accessorietà” dell’obbligazione di sécurité,
quindi, anche nella controversa materia della responsabilità sanitaria appare una
caratteristica notevole del diritto francese, che affonda le sue radici nella tradizione
giuridica di questo Paese. A differenza dell’esperienza tedesca, che proprio a seguito del
contributo di Heinrich Stoll inizierà a individuare nell’ambito dell’obbligazione intesa
come rapporto complesso obblighi (recte, doveri) di protezione nettamente distinti dalla
prestazione; e a differenza della dottrina italiana che, proprio sulla base di queste
acquisizioni e del testuale riferimento alla prestazione quale oggetto dell’obbligazione
(art. 1174 c.c.), tende ad allinearsi all’esperienza germanica; nell’esperienza francese,
malgrado il termine prestation sia talvolta usato per indicare il contenuto e/o l’oggetto
dell’obbligazione strictement contractuelle, la dottrina e la giurisprudenza dominanti
non procederanno mai ad una nitida scomposizione della prestazione dalla sécurité
all’interno di un medesimo rapporto obbligatorio, ma preferiranno discorrere di
obbligazioni di sécurité che sono connesse alle altre obbligazioni “strictement
contractuelles”, le quali sole conferiscono al contraente “toute son utilité économique”,
permettendo di “procurer au créancier un avantage determiné, une prestation specifique
à laquelle il ne pourrait prétendre sans contrat”.46 Ecco che, pur comparendo
saltuariamente nella letteratura giuridica, il termine prestation non assume mai il senso
di una contrapposizione dogmatica con la sécurité all’interno di un unico rapporto
obbligatorio a struttura complessa. Invece di sezionare l’oggetto di un unitario rapporto
obbligatorio al fine di discernere l’obbligo (e l’interesse) di prestazione da quelli di
protezione, l’obbligazione di sécurité, che pur è obbligazione ex lege,47 conserva una
sua completa autonomia strutturale rispetto alle altre obbligazioni “strettamente
contrattuali” alle quali è funzionalmente connessa. Sulla base di questa concezione
pluralistica delle obbligazioni, che in un certo senso si contrappone all’idea unitaria di
obbligazione come rapporto complesso propria dell’esperienza tedesca, la dottrina e la
giurisprudenza d’oltralpe si interessano essenzialmente di individuare criteri idonei (ad
es., assenza di una qualsiasi libertà di iniziativa o di azione in virtù della giovane età del
soggetto su cui vegliare)48 a determinare la disciplina applicabile, in virtù della
46
M. Bacache-Gibeili, Les obligations, cit., 87 s.
In tal senso è la dottrina francese di gran lunga prevalente. Tuttavia, con specifico riferimento al diritto
italiano, sottolinea, da ultimo, l’ambiguità dell’espressione «obbligazione ex lege», F. Gambino, Il
rapporto obbligatorio, in Tratt. di dir. civ. diretto da R. Sacco, Torino, 2015, 118 s.
48
C. Larroumet, Note a Cass., I Ch. civ., 13 janvier 1982, in «Rec. Dalloz», 1982, Inf. rap. - Somm.
comm., 364.
47
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qualificazione dell’obbligazione di sécurité in termini “di mezzi” o “di risultato”.
Allorché si verifichi, nell’esecuzione di un contratto, una lesione
dell’integrità psico-fisica o dello statu quo dei beni della vittima che sia causalmente
collegabile alla prestazione o ad altre obbligazioni (ad es., obblighi di informazione)
nascenti dal contratto o dalla legge, la giurisprudenza, in ossequio al principio del noncumul, accerta la violazione di un’obbligazione di sécurité che consente alla vittima di
chiedere il risarcimento dei danni sul piano della responsabilità contrattuale. Ciò
significa che il diritto francese conosce un ampliamento dei rapporti obbligatori che
ruota comunque attorno alle idee di contratto e di prestazione. A differenza di quanto
accade nell’esperienza tedesca, in Francia non sono ipotizzabili obblighi di protezione
“puri”, “autonomi” od “obbligazioni senza prestazione”.49 La responsabilità precontrattuale, poiché si caratterizza ontologicamente per l’assenza di un contratto, è
sicuramente extra-contrattuale ed è inquadrata, senza alcun dubbio, nell’ambito della
clausola generale di cui all’art. 1382 Code civil. La diversa soluzione ideata dal diritto
tedesco, ed oggi codificata nel § 311 BGB, è stata necessitata dall’impossibilità di
utilizzare il rimedio delittuale. E la giuridicizzazione in termini obbligatori del “contatto
negoziale” ha consentito al legislatore della riforma di conservare il tradizionale sistema
tipizzato di responsabilità delittuale (§§ 823 e 826 BGB), ispirato “al principio della
piena libertà d’azione di ogni persona (fisica e giuridica), con il solo limite del
comportamento antigiuridico espresso nelle forme del dolo e della colpa”.50
L’estensione dell’area dei danni risarcibili nell’ambito della sola
responsabilità contrattuale attraverso la codificazione dell’obbligazione come rapporto
complesso (§§ 241, comma 2 e 311 BGB), da un lato, risulta in linea con la tradizione,
con lo stile e con le esigenze teoriche e pratiche dell’esperienza tedesca, così come si è
andata evolvendo nel corso del XX secolo; dall’altro, ha consentito di conservare intatta
49
Più precisamente, di «gesetzliches Schuldverhältnis ohne primäre Leistungspflicht», discorre K.
Larenz, Schuldrecht, I, Allgemeiner Teil, München, 1982, 101.
50
M. Feola, La responsabilità civile al confine tra contratto e torto. Obbligazioni di sécurité,
Schutzpflichten ed effetti di protezione del contratto rispetto a terzi, in A. Procida Mirabelli di Lauro e M.
Feola, La responsabilità civile. Contratto e torto, in Studi di Diritto Civile e Comparato. Collana diretta
da R. Favale, M. Feola e A. Procida Mirabelli di Lauro, n. 4, Torino, 2014, 50.
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la scelta originaria compiuta dal legislatore tedesco in tema di responsabilità delittuale.
Se si rileggono alcune righe di Claus Wilhelm Canaris vergate già alcuni decenni prima
della riforma se ne ha una conferma inequivoca: “il riconoscimento di una tutela
aquiliana generalizzata” porterebbe con sé «il rischio di uno “straripamento” della
tecnica della responsabilità”,51 perché “la cerchia degli aventi diritto al risarcimento
minaccerebbe di allargarsi a dismisura” e, con essa, la sfera dei danni subiti
indirettamente da terzi.52 Tuttavia, proprio allo scopo di “introdurre un parziale
correttivo alla irrisarcibilità dei danni patrimoniali in sé considerati” è giudicato
“plausibile che il diritto vigente ricorra allo strumento del contratto e a quello,
equivalente, del ‘rapporto particolare’”.53 L’esistenza, accanto alle regole di
comportamento di ordine generale che sono proprie della responsabilità delittuale, di
regole “a carattere particolare”, espressione di una “più qualificata responsabilità”54
troverebbe fondamento nel fatto che “il ‘contatto’ contrattuale determina una maggiore
possibilità di incidenza sui beni e sugli interessi della controparte”.55 Quindi, “contratto
e rapporto negoziale particolare” costituiscono “punti di riferimento adeguati per la
costruzione di una tutela (generale) del patrimonio, in quanto, per loro natura, ne
limitano la portata alla sfera del potenziale creditore (della prestazione risarcitoria),
evitando con ciò il pericolo di un aumento incontrollato, ed in particolare, di
un’esorbitante risarcibilità dei danni ‘indiretti’”.56
Ecco spiegate, con vent’anni di anticipo, le ragioni e la congruenza
sistematica della riforma con riferimento alle peculiarità del diritto tedesco. Proprio
quest’ultimo dato ha indotto a contestare un’indiscriminata generalizzazione di queste
soluzioni in ordinamenti (come quello italiano) che si caratterizzano per una diversa
fisionomia strutturale e sistematica del modello di responsabilità delittuale.57 E ciò non
tanto per l’esistenza di una “clausola generale” che, sulla scia dell’insegnamento di
51
C.-W. Canaris, Norme di protezione (Parte prima), cit., 575.
C.-W. Canaris, op. loc. ult. cit.
53
C.-W. Canaris, op. loc. ult. cit.
54
C.-W. Canaris, op. ult. cit., 572.
55
C.-W. Canaris, op. ult. cit., 576.
56
C.-W. Canaris, op. loc. ult. cit.
57
Tale argomento è sostenuto, oggi, soprattutto da M. Barcellona, Trattato, cit., 65 ss.
52
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Stefano Rodotà,58 le Sezioni Unite civili non si sono stancate di riaffermare,59 quanto
per la previsione di differenti regimi di imputazione della responsabilità delittuale (ad
es., artt. 2051 c.c. e 1384, comma 1, Code civil) che prescindono dalla colpa e che, oltre
ad invertire l’onere della prova, ne mutano l’oggetto.60
3. L’ambigua nozione di “contatto sociale”, quale fonte di obblighi di prestazione,
non di protezione, e la sua contrapposizione all’idea di “contatto negoziale”. La
responsabilità da status professionale nell’ambito di una disciplina unitaria degli
ausiliari del debitore (art. 1228 c.c.)
L’esistenza di un rapporto obbligatorio in assenza di un contratto e di
una prestazione richiede l’individuazione di un ulteriore “atto o fatto” (ex art. 1173 c.c.)
che ne costituisca la fonte.61 Malgrado la concezione dei rapporti obbligatori da
comportamento sociale tipico62 – non a caso pensata dall’ideatore dell’obbligazione
senza obbligo primario di prestazione – sia stata poi respinta dal suo stesso autore “nella
misura in cui fa riferimento ad un comportamento meramente fattuale senza fondamento
negoziale”,63 l’idea di una responsabilità da affidamento connessa a l’inadempimento
(recte, la violazione) di un’obbligazione senza prestazione è stata fondata, dalla nostra
58
Il problema della responsabilità civile, Milano, 1964, 107 ss., 112 ss., 183 ss. e 199 ss. Sul punto,
anche per le ulteriori citazioni bibliografiche, si rinvia ad A. Procida Mirabelli di Lauro, Il danno ingiusto
(Dall’ermeneutica “bipolare” alla teoria generale e “monocentrica” della responsabilità civile), Parte
II, Ingiustizia, patrimonialità, non patrimonialità nella teoria del danno risarcibile, in questa «Rivista»,
2003, 220 ss., e a V. Scalisi, Ingiustizia del danno e analitica della responsabilità civile, in «Riv. dir.
civ.», 2004, I, 38 ss.
59
Il leading case, com’è noto, è rappresentato da Cass., Sez. Un., 22 luglio 1999, n. 500, in «Giust. civ.»,
1999, I, 2270 ss. Affermano che «il risarcimento del danno patrimoniale da fatto illecito è connotato da
atipicità, postulando l’ingiustizia del danno di cui all’art. 2043 c.c., la lesione di qualsiasi interesse
giuridicamente rilevante», anche Cass., Sez. Un., 11 novembre 2008, nn. 26972, 26973, 26974 e 26975,
in «Danno e resp.», 2009, 25, con nota di A. Procida Mirabelli di Lauro, Il danno non patrimoniale
secondo le Sezioni Unite. Un “de profundis” per il danno esistenziale.
60
Così, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 339 ss.
61
Tra gli altri, M. Barcellona, op. ult. cit., 71.
62
Sostenuta proprio da K. Larenz fino alla IX edizione (1968) della sua opera (così, G. Varanese,
Commiato dalla teoria dei rapporti contrattuali di fatto, in G. Haupt, Sui rapporti, cit., 42). Il mutamento
di opinione dell’esimio maestro è posto in evidenza da H. Köhler, Karl Larenz, in «VersR», 1993, 421.
63
K. Larenz e M. Wolf, Allgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, IX ed., München, 2004,
579.
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giurisprudenza, direttamente sulla teoria dei rapporti contrattuali di fatto nascenti da
contatto sociale (kraft sozialen Kontaktes), così come ideata da Günter Haupt.64 La
Cassazione italiana, quando contrattualizza la responsabilità in presenza di “un
obbligato ‘che non c’è’”,65 individua la fonte della responsabilità contrattuale non tanto
nell’inadempimento di un’obbligazione senza prestazione, o in una generale nozione di
responsabilità da affidamento, quanto nella violazione di “obblighi nascenti da
situazioni (non già di contratto, bensì) di semplice contatto sociale”. 66 E così, tra le
altre, sono state qualificate da “contatto sociale”, oltre alla celeberrima responsabilità
del medico dipendente da una struttura sanitaria pubblica o privata,67 quella del
“precettore” dipendente da un istituto scolastico per il non aver vigilato “sulla sicurezza
e l’incolumità dell’allievo nel tempo in cui fruisce della prestazione scolastica”, 68 quella
da “inesatto pagamento” della banca che ha negoziato in favore di un soggetto non
legittimato un assegno non trasferibile,69 quella dello “scalatore”, detentore di una
partecipazione azionaria superiore al 30% del capitale sociale, per avere violato
l’obbligo di offerta pubblica di acquisto nei riguardi degli azionisti di minoranza,70
quella “da attività procedimentale” della P.A. nei confronti del cittadino, la quale si
caratterizzerebbe per un contatto “specifico e differenziato”.71 A questi casi va aggiunto
quell’indirizzo della Cassazione,72 poi revocato in dubbio dalla giurisprudenza
successiva,73 che aveva ravvisato nella responsabilità precontrattuale una fattispecie
64
G. Haupt, op. ult. cit., 50 ss. Per una critica agli indirizzi della nostra giurisprudenza, A. Zaccaria, Der
aufhaltsame Aufstieg, cit., 78 ss., 94 ss.
65
Con grande efficacia, A. di Majo, Le tutele contrattuali, cit., 65.
66
Cass., Sez. Un., 26 giugno 2007, n. 14712, in «Corriere giur.», 2007, 1708, con nota di A. di Majo,
Contratto e torto: la responsabilità per il pagamento di assegni non trasferibili.
67
Basti citare il leading case: Cass., III Sez. civ., 22 gennaio 1999, n. 589, in «Corriere giur.», 1999, 441
ss., con nota di A. di Majo, L’obbligazione senza prestazione approda in Cassazione.
68
Cass., Sez. Un., 27 giugno 2002, n. 9346, in «Foro it.», 2002, I, c. 2649, con nota di F. Di Ciommo, La
responsabilità contrattuale della scuola (pubblica) per il danno che il minore si procura da sé: verso il
ridimensionamento dell’art. 2048 c.c.
69
Cass., Sez. Un., 26 giugno 2007, n. 14712, cit., 1708 s.
70
Da ultima, Cass., I Sez. civ., 13 ottobre 2015, n. 20560. Sul riconoscimento, per gli azionisti di
minoranza, di un diritto al risarcimento del danno in via contrattuale, cfr. G. Romagnoli, Diritti
dell’investitore e diritti dell’azionista nell’opa obbligatoria, Padova, 2005, 98; A. Tucci, La violazione
dell’obbligo di offerta pubblica di acquisto, rimedi e tutele, Milano. 2008, 105; propende per il rimedio
aquiliano, G. Guizzi, Noterelle in tema di opa obbligatoria, violazione dell’obbligo di offerta e interessi
protetti, in «Riv. dir. comm.», 2005, II, 260.
71
Cass., 10 gennaio 2003, n. 157, in «Foro it.», 2003, I, c. 78. Afferma che la responsabilità della P.A.
«si estende alla cosiddetta responsabilità da “contatto sociale”» anche Cons. Stato, 2 settembre 2005, n.
4461, ivi, 2006, I, c. 457.
72
Cass., I Sez. civ., 20 dicembre 2011, n. 27648, in «I contratti», 2012, 237, con nota di F. Della Negra,
Culpa in contrahendo, contatto sociale e modelli di responsabilità.
73
Ad es., Cass., Sez. II, 10 gennaio 2013, n. 477, in «Danno e resp.», 2013, 755, con nota di F. Della
Negra, La natura della responsabilità precontrattuale: la quiete dopo la tempesta? Qualifica, in termini
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normativamente qualificata di contatto sociale, in quanto sarebbe stato «lo stesso
legislatore», nel prevedere l’obbligo di buona fede, a costituire un rapporto giuridico
obbligatorio nel corso delle trattative.
Il riferimento ad una sempre più estesa responsabilità da “contatto
sociale” più o meno qualificato rappresenta una soluzione che la nostra giurisprudenza
ha ispirato essenzialmente ad esigenze di semplificazione. Ma questa semplificazione
introduce, nella specie, una posizione sostanzialmente diversa rispetto alla stessa
esperienza tedesca, nella quale il “contatto negoziale” è inteso proprio “in
contrapposizione ad un mero ‘contatto sociale’”.74 Infatti, non potrebbe “non destare
sorpresa” che la teoria del “contatto sociale”, “specie nella ‘libera’ applicazione che
sembra farne la giurisprudenza italiana”, appaia del tutto svincolata “dalle regole e dai
limiti che ne hanno invece contrassegnato l’applicazione nel diritto tedesco”. 75 La
situazione che si è verificata in Italia è stata considerata paradossale: mentre, “da ormai
più di dieci anni, la nostra giurisprudenza invoca il contatto sociale quale possibile
fonte” di obbligazioni “nelle situazioni più disparate”, in Germania si esclude oggi in
maniera “praticamente unanime” che “un semplice contatto sociale possa essere
considerato fonte di obbligazioni”.76
D’altronde, proprio nel suo leading case la Suprema Corte aveva
riconosciuto la mancanza di un qualsivoglia “contatto negoziale”77 finalizzato alla
conclusione di un contratto, essendo l’attività del sanitario dovuta non nei riguardi del
paziente, ma “nei confronti dell’ente ospedaliero nell’ambito del rapporto di impiego
di illecito aquiliano, la decisione assunta da Cass., Sez. III, 20 marzo 2012, n. 4382, ivi, 2012, 1103, V.
Montani, Responsabilità precontrattuale e abbandono ingiustificato delle trattative: un rapporto da
genus a species, ivi, 2012, 1107.
74
Così, A. di Majo, Le tutele contrattuali, cit., 66, in nt. 34.
75
A. di Majo, L’obbligazione “protettiva”, in «Europa e dir. priv.», 2015, 12 e 13, in nt. 29.
76
A. Zaccaria, Der aufhaltsame Aufstieg, cit., 78. Sul punto, però, C. Castronovo, Eclissi del diritto civile,
Milano, 2015, 150 s., non ha mancato di rilevare che, pur ammettendo che nel trapianto avvenuto in Italia
tale figura abbia «subito un approfondimento e un’estensione che la dottrina tedesca […] non ha ritenuto
di fare», non vi sarebbero ulteriori «ragioni per rinnegare lo sviluppo che noi abbiamo inteso dare alla
figura, in questo seguiti dalla giurisprudenza nostrana».
77
Cass., III Sez. civ., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 444.
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che lo lega all’ente”.78 La Cassazione, al fine non soltanto di riaffermare la
responsabilità solidale del medico con la struttura sanitaria,79 ma anche, probabilmente,
di dichiarare “il carattere privatistico-professionale della responsabilità dell’Ente, pur
gestore di un servizio pubblico”,80 individua la fonte dell’obbligazione in un “semplice
‘contatto sociale’”, ammettendo “che le obbligazioni possano sorgere da rapporti
contrattuali di fatto, nei casi in cui taluni soggetti entrano in contatto”. 81 Allo scopo di
giustificare la “dissociazione tra la fonte […] e l’obbligazione”, essa afferma che
bisogna riguardare il “fenomeno” non tanto in ragione della fonte, quanto “in ragione
del rapporto che ne scaturisce”, divenendo “allora assorbente la considerazione del
rapporto, che si atteggia ed è disciplinato secondo lo schema dell’obbligazione da
contratto”.82 Nella specie, il medico ha fatto non “qualcosa che non si sarebbe dovuto
fare”,83 ma non ha fatto (culpa in non faciendo) ciò che avrebbe dovuto fare, cioè “ciò a
cui era tenuto in forza di un precedente vinculum iuris, secondo lo schema caratteristico
della responsabilità contrattuale”.84
Tuttavia, a parte l’argomento a effetto,85 che ribalta la locuzione ideata
da Staub86 proprio per ricomprendere nelle perturbative dell’adempimento le ipotesi di
violazioni (positive) del contratto diverse dall’omissione e dal ritardo, v’è da rilevare
che il problema risolto dalla Corte non riguarda né gli obblighi di protezione, né, tanto
meno, l’obbligazione senza prestazione. Come già rilevato da un’autorevole dottrina,87 e
come ammesso, nella specie, dalla stessa Cassazione,88 la sentenza ha ad oggetto il solo
inesatto adempimento della prestazione principale da parte di un soggetto, preposto
dall’Ente, che non era obbligato nei confronti del paziente. La questione essenziale,
78
Così, proprio Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 443.
Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 441.
80
In questi termini, A. di Majo, L’obbligazione senza prestazione, cit., 448, in nt. 8.
81
Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 444.
82
Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 444.
83
Sul punto, mi sembra opportuno richiamare l’insegnamento di H. Staub, Le violazioni positive, cit., 40.
84
Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 444.
85
Afferma, infatti, che l’argomento «è di quelli che fanno colpo», A. di Majo, op. ult. cit., 447.
86
H. Staub, op. loc. ult. cit. Anche secondo He. Stoll, Commiato, cit., § I.1, la peculiarità del pensiero di
Staub consiste nell’aver individuato casi nei quali «qualcuno fa ciò che deve omettere» e non, invece, «in
cui qualcuno omette ciò che deve fare».
87
L. Mengoni, Obbligazioni «di risultato» e obbligazioni «di mezzi» (Studio critico), in «Riv. dir.
comm.»,1954, I, 368 e 371.
88
La Cassazione, infatti, afferma che si tratta di un problema di attribuzione di un diritto «al
conseguimento della prestazione principale» (Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 443).
79
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quindi, concerne la teoria delle fonti dell’obbligazione,89 nel senso di ammettere (o
meno) l’eventualità che, nell’ambito del sistema “aperto” codificato dall’art. 1173 c.c.,90
sia possibile che l’esecuzione, spontanea nei rigurdi del paziente, ma dovuta nei
confronti dell’Ente, della prestazione configuri, mediante il “contatto sociale”, un “atto
o fatto” idoneo a produrre un rapporto obbligatorio “in conformità dell’ordinamento
giuridico”. Quindi, come si è constatato con grande efficacia, “in principio” “v’è
dunque la prestazione” (quasi sempre inesattamente eseguita), “cui segue come effetto
necessario l’obbligazione”.91 Il problema degli obblighi di protezione è ulteriore ed
eventuale rispetto all’esistenza dell’obbligazione: una volta ammesso che questo
“contatto sociale” sia idoneo a produrre un’obbligazione, si porrà il problema di
ammettere o meno eventuali obblighi di protezione “connessi” all’esecuzione (esatta o
inesatta) della prestazione. Si pensi, ad esempio, all’insorgere, a seguito del ricovero in
ospedale, di un’ulteriore patologia (polmonite, epatite, HIV, infezione) contratta dal
paziente a causa o in occasione dell’adempimento (anche esatto) della prestazione
principale.
Non va sottaciuto, inoltre, che nella gran parte dei casi tipizzati dalla
giurisprudenza in termini di “contatto sociale” (medico, “precettore”, ecc.) si è in
presenza di ipotesi classiche di responsabilità per il fatto degli ausiliari, 92 e le soluzioni
accolte per costoro, nel senso della responsabilità contrattuale e non di quella
extracontrattuale,93 non possono essere difformi da un’interpretazione unitaria dell’art.
1228 c.c. nei riguardi di tutti gli altri ausiliari del debitore. In proposito non sembra
possibile, da un lato, escludere che l’ausiliare del debitore possa essere “a propria volta
debitore”, e quindi tenuto a responsabilità contrattuale nei riguardi del creditore;94
dall’altro, affermare che il medico dipendente da una struttura sanitaria pubblica o
privata (che è un ausiliare del debitore) sia direttamente responsabile in via contrattuale
89
Così, già A. di Majo, op. ult. cit., 449.
Sul punto, l’insegnamento di M. Giorgianni, Appunti sulle fonti dell’obbligazione, in «Riv. dir. civ.»,
1965, 71 ss.
91
A. di Majo, op. ult. cit., 451.
92
Tant’è che la dottrina, allorché esemplifica il fatto dell’ausiliario, cita proprio il caso del «cliente in
cura presso una clinica» che «subisce lesioni per colpa di un sanitario di tale clinica» (C.M. Bianca,
Diritto civile, 5, La responsabilità, Milano, 1994, 64).
93
In questi termini è, invece, la dottrina di gran lunga prevalente (per tutti, C.M. Bianca, op. loc. ult. cit.).
94
C. Castronovo, Ritorno all’obbligazione senza prestazione, in «Europa e dir. priv.», 2009, 708.
90
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nei riguardi del paziente, in virtù di una responsabilità da affidamento derivante dallo
specifico status professionale.
D’altronde,
che
il
sanitario
sia
un
“ausiliario
necessario
dell’organizzazione aziendale” è ribadito anche da una più recente sentenza95 nella
quale, anzi, si afferma che tale qualifica possa sussistere pur in assenza di un rapporto di
lavoro subordinato o para-subordinato tra clinica e chirurgo. Nella specie, il
professionista è stato considerato responsabile anche dell’operato di terzi (e, quindi,
della stessa clinica) della cui attività si avvale, poiché “di norma, l’individuazione della
Casa di cura dove il medico eseguirà la prestazione promessa costituisce parte
fondamentale del contenuto del contratto stipulato tra il paziente ed il professionista, nel
senso che ciascun medico opera esclusivamente presso determinate cliniche e che, a sua
volta, ciascuna Casa di cura accetta solo i pazienti curati da determinati medici”.96
4. Dalla teoria dell’“obbligazione senza prestazione” alla pragmatica della
“prestazione senza obbligazione”. La “specificità” della culpa in contrahendo e il
suo
possibile
inquadramento
nell’area
della
responsabilità
contrattuale.
L’esplorazione delle prestazioni “non dovute” come fonte di obblighi di protezione.
La ricostruzione dei rapporti “di cortesia” all’interno di un paradigma relazionale
La teoria dell’obbligazione senza prestazione, se amputata dal
richiamo al “contatto sociale”, non è sembrata in grado di spiegare “come” e “quando”
la relazione divenga “categoria essenziale dell’obbligazione”.97 Malgrado si sia
affermato, in generale, che “essere in relazione significa doversi già reciprocamente
alcunché”,98 e ciò proprio al fine di impedire che possa realizzarsi una “non spiegata
inversione tra fatto e diritto”,99 poi, in realtà, si è ipotizzato “ex ante il carattere
“relazionale” del rapporto, per trarne la conseguenza che il dovere di protezione perde la
95
Cass., Sez. III, 26 giugno 2012, n. 10616, in «Danno e resp.», 2013, 840.
Cass., 26 giugno 2012, n. 10616, cit., 840.
97
L’A. richiamato è C. Castronovo, La relazione come categoria essenziale dell’obbligazione e della
responsabilità contrattuale, in «Europa e dir. priv.», 2011, 55 ss.
98
C. Castronovo, op. ult. cit., 73.
99
C. Castronovo, op. ult. cit., 61.
96
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sua natura aquiliana, per assumere quella contrattuale”.100 In tale ricostruzione si
anniderebbe una “petizione di principio”: occorrerebbe domandarsi “come fa un dovere
e/o un obbligo, privo all’origine di ‘relazionalità’, a trasferirla tout court ad una
situazione che si definisce essere di non-rapporto, e cioè non relazionale”.101 Si finisce
per “capovolgere la sequenza tradizionale”, mentre è l’obbligazione, “quale, per
definizione, situazione ‘di rapporto’ tra soggetti determinati”, strutturata attorno
all’obbligo di prestazione, “ad attribuire carattere di “concretezza” al “dovere di
protezione” di natura aquiliana, ove questo venga in esso a innestarsi”.102
La protezione, dunque, deve essere “pur sempre funzionale e
comunque connessa alla prestazione” o in ogni caso «dovuta in previsione di essa”.103
Diversamente, l’“azzeramento” di ogni connessione con la prestazione farebbe venir
meno “ogni parametro che possa consentire di definire la situazione di responsabilità in
base a comportamenti promessi, pattuiti o comunque dovuti”.104 Il ravvisare un obbligo
di protezione anche “in previsione” di una prestazione, oltre ad allineare il nostro diritto
alla riforma del diritto tedesco (§ 311, comma 2, BGB), sembra cogliere il senso di
quella obbligazione che, per espressa volontà del legislatore, sorge nello svolgimento
delle trattative e nella formazione del contratto, impegnando le parti a comportarsi
secondo buona fede (art. 1337 c.c.). E così anche per i contratti invalidi o altrimenti
inefficaci. In assenza di una disciplina analoga, il diritto francese, fedele all’idea di
“connessione” funzionale dell’obbligazione di sécurité rispetto alla prestazione ed al
contratto, colloca la responsabilità precontrattuale nell’alveo della responsabilità
extracontrattuale. Ma, in Italia, è proprio il testo degli artt. 1337 e 1338 c.c. che può
indurre a ravvisare un “rapporto obbligatorio autonomo, da classificarsi tra i rapporti ex
lege”, inter partes e “relativi”105 la cui violazione è fonte di responsabilità contrattuale.
A. Di Majo, L’obbligazione “protettiva”, cit., 9.
A. di Majo, op. loc. ult. cit.
102
A. di Majo, op. loc. ult. cit.
103
A. di Majo, Le tutele contrattuali, cit., 65.
104
A. di Majo, op. loc. ult. cit.
105
L. Mengoni, Obbligazioni «di risultato», cit., 369, anche in nt. 16. In argomento, Id., Sulla natura
della responsabilità precontrattuale, in «Riv. dir. comm.», 1956, II, 360 ss.; F. Benatti, La responsabilità
precontrattuale, Milano, 1963, 67 ss., 126 ss.; R. Scognamiglio, Dei contratti in generale, Milano, 1980,
213 ss.; C. Castronovo, La nuova responsabilità civile, III ed., Milano, 2006, 459 ss.
100
101
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153
La soluzione dei problemi delle responsabilità precontrattuale o
postcontrattuale, quindi, è indipendente dalla generalizzazione della regola di buona
fede oggettiva prevista dall’art. 1337 c.c., poiché essa concerne il solo “contatto
negoziale” avanzato, specificamente individuato “nello svolgimento delle trattative e
nella formazione del contratto”. Con tale norma il legislatore avrebbe inteso disciplinare
non un’ipotesi di contatto sociale qualificato dall’affidamento ingenerato dalla “qualità
di parte che la legge attribuisce ai soggetti in trattativa”,106 ma “la particolare relazione
che si trova a ridosso del contratto” e che è, “intrinsecamente, affine al rapporto che
sorge da un contratto”.107 Si tratta di quel “contatto negoziale” del quale parla il
legislatore tedesco nel § 311, non, invece, di una responsabilità da mero contatto
sociale. Proprio la “specificità” del problema della culpa in contrahendo è tale da
giustificare “il passaggio dalla situazione di non-rapporto a quella di rapporto”: ma “non
sembra sia consentito “navigare” oltre di essa, nel “mare aperto” di rapporti aventi
diversa natura e collocazione”.108
La teoria dell’obbligazione senza prestazione, così come è stata attuata
dalla giurisprudenza, malgrado gli annunziati propositi di generalizzazione, in concreto
è stata applicata a pochi casi di responsabilità da affidamento derivante dallo status
professionale rivestito dal danneggiante. Più recenti dottrine, invece, riflettendo ora sul
tema delle prestazioni non dovute,109 ora sull’espressione
ähnliche geschäftliche
Kontakte (§ 311, comma 2, n. 3 del BGB),110 hanno esaminato ipotesi assai rilevanti,
nelle quali l’obbligazione c’è, ma riguarda un soggetto diverso (è il caso, già citato,
delle prestazioni eseguite dagli ausiliari del debitore), o nelle quali la relazione, semmai
fondata su una promessa, è considerata “non giuridica”111 in virtù dell’incoercibilità (ad
es., rapporti di cortesia) o della spontaneità (ad es., gestione di affari altrui, obbligazioni
naturali, adempimento del terzo) della prestazione.
106
Così, invece, C. Castronovo, Ritorno, cit., 698.
L. Lambo, Obblighi di protezione, cit., 386.
108
Per le due espressioni tra virgolette, A. Di Majo, L’obbligazione “protettiva”, cit., 11.
109
F. Venosta, Prestazioni non dovute, “contatto sociale” e doveri di protezione “autonomi”, in «Europa
e dir. priv.», 2014, 109 ss.
110
A. Zaccaria, Der aufhaltsame Aufstieg, cit., 91 ss.
111
Così, G. Marini, Promessa ed affidamento nel diritto dei contratti, Napoli, 1995, 312.
107
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Ecco
che,
allora,
il
problema
si
sposta
dall’ontologia
dell’“obbligazione senza prestazione” alla pragmatica della “prestazione senza
obbligazione”. L’intuizione di Adolfo di Majo, che in origine poteva sembrare una
benevola provocazione espressa mediante un abile gioco di parole, ma che in realtà
descriveva fedelmente la posizione giuridica del medico dipendente dalla struttura
sanitaria, è stata oggetto di un’attenta riflessione. Premesso che “uno dei temi più
dibattuti”112 ha riguardato proprio la possibilità di individuare doveri di protezione non
collegati ad un obbligo di prestazione, e che non è parsa “sufficientemente dimostrata la
generalizzazione dell’indicazione proveniente dall’art. 1337”,113 poiché “a tal fine forse
non basta il riferimento alla categoria, puramente logica, della relazione”,114 è sembrato
“necessario argomentare su basi normative” in cosa debba consistere il “contatto
sociale” che può creare i doveri di protezione. Ma più che di “contatto sociale”, di per
sé inidoneo a qualificare un’obbligazione sulla base del generico riferimento all’art.
1173 c.c.,115 l’indagine ha riguardato quelle ipotesi, tipicamente previste dalla legge (ad
es., adempimento del terzo, gestione di affari altrui, contratto nullo ma eseguito,
indebito pagamento, pagamento al creditore apparente, delegazione di pagamento, ecc.)
nelle quali, pur in assenza di una previa obbligazione, si consente l’esecuzione di una
prestazione.116 Se si prescinde da alcune di queste ipotesi (ad es., pagamento
dell’indebito o al creditore apparente), che potrebbero soltanto dimostrare “in realtà a
quale “deriva” possa dar luogo la generalizzazione del principio di buona fede”,117 in
altri casi la nascita di obblighi di protezione potrebbe spiegarsi con il fatto che entrambe
le parti accettano “consapevolmente la legge dell’obbligazione” con la quale si trovano
ad interferire, sia pure sul terreno del solo adempimento.118 Qui l’esecuzione di una
prestazione non dovuta instaura quella “speciale relazione giuridica”, 119 quel “rapporto
particolare”120 che espone entrambe le sfere giuridiche al rischio di “incidere su persone
112
F. Venosta, op. ult. cit., 109 s.
F. Venosta, op. ult. cit., 112.
114
F. Venosta, op. ult. cit., 113.
115
In questi termini, A. Zaccaria, op. ult. cit., 92 ss.
116
L’indagine è stata svolta soprattutto da F. Venosta, op. ult. cit., 109 ss.
117
A. di Majo, L’obbligazione “protettiva”, cit., 13, in nt. 30.
118
A. di Majo, op. loc. ult. cit.
119
Della quale parla già He. Stoll, Commiato, cit., § IV.2 lett. a).
120
C.-W. Canaris, Norme di protezione, cit., 572 ss., 808 ss.
113
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e cose dell’altra parte”.121 La relazione che si instaura per effetto dell’esecuzione di una
prestazione non dovuta (ma consentita dalla legge), cioè di una prestazione senza
obbligazione, potrebbe generare obblighi di protezione il cui scopo è quello di
“proteggere la controparte da danni che potrebbero scaturire dalla relazione speciale e
per suo tramite”.122 Ma, in questo caso, diversamente da quel che si afferma, si tratta
non di obblighi di protezione “autonomi”,123 ma di obblighi di protezione comunque
funzionalmente “connessi” all’esecuzione di una prestazione, sia pure non dovuta. In
questo caso gli obblighi di protezione sorgono non per effetto della previa costituzione
di un rapporto obbligatorio, bensì a causa dell’esecuzione, secundum legem, di una
prestazione senza obbligazione.
Si è già accennato alla prestazione eseguita dall’ausiliare del debitore
(art. 1228 c.c.), il quale non è direttamente obbligato nei confronti del creditore del
debitore. Qui la scienza giuridica di gran lunga dominante ha operato una netta
distinzione: mentre il debitore risponde ex contractu ed a titolo di responsabilità
oggettiva124 per il fatto degli ausiliari nei riguardi del creditore, sia per
l’inadempimento, sia per la violazione di eventuali obblighi di protezione, l’ausiliare
risponderebbe personalmente in via extracontrattuale125 e per colpa nei confronti del
creditore per i danni cagionati nell’esecuzione della prestazione. L’ipotesi è
estremamente rilevante, poiché proprio il caso del medico dipendente dalla struttura
sanitaria ha rappresentato l’esempio più eloquente su cui si è fondata, in dottrina, la
teoria dell’obbligazione senza prestazione e, in giurisprudenza, la responsabilità da
contatto sociale qualificato. Ma, come s’è detto, non sembra possibile interpretare in
maniera antinomica la disciplina della responsabilità degli ausiliari, che sarebbe ora
contrattuale, ora delittuale nei confronti del creditore secondo che il “terzo” sia un
medico, un infermiere, un insegnante, ovvero un altro ausiliare del debitore. D’altronde,
la posizione del “terzo” ausiliare sembra richiamare quella descritta dall’art. 1180 c.c.:
in entrambe le ipotesi l’esecuzione di una prestazione non dovuta nei riguardi del
creditore instaura una relazione che potrebbe generare obblighi di protezione nei suoi
121
Già He. Stoll, op. ult. cit., § IV.2 lett. b).
Secondo le parole di He. Stoll, op. loc. ult. cit.
123
Così, invece, F. Venosta, op. ult. cit., 119.
124
Per tutti, C. M. BIANCA, Diritto civile, 5, cit., 60.
125
C.M. Bianca, op. ult. cit., 64.
122
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riguardi, e ciò a prescindere dall’eventuale status professionale dell’ausiliare e dal
presunto affidamento riposto in esso dal creditore.126
In questo contesto, un ruolo altrettanto significativo è assunto anche
dall’esecuzione di prestazioni che costituiscono l’oggetto di obbligazioni non coercibili,
perché qualificate dalla legge come “esecuzione di doveri morali o sociali” (ad es., l’art.
2034 c.c.), ovvero considerate dalla dottrina e dalla giurisprudenza dominanti come
attuazione di obblighi “non giuridici”, perché non connotati dalla realizzazione di un
interesse economico del promittente e/o dall’esercizio dell’attività in forma
professionale.127 Il discorso involge i cc.dd. rapporti di cortesia, che le esperienze
francese, tedesca e italiana hanno confinato, per tradizione, nell’ambito della
responsabilità extracontrattuale per colpa. Da rilevare, tuttavia, che il criterio della
professionalità nell’esercizio dell’attività è un criterio che prova troppo (o troppo poco),
poiché esso non connota tutti i contratti (onerosi o gratuiti) che sono considerati
giuridicamente rilevanti. Il dato dell’interesse del promittente, poi, se si esamina la
giurisprudenza in materia, è stato inteso spesso in modo ambiguo e polisenso, avendo
dato luogo a decisioni incerte e contraddittorie.128 Nell’ambito della circolazione
stradale, la distinzione tra trasporto oneroso, gratuito e di cortesia è stata causa di
un’ingiustificata disparità di trattamento tra le vittime (semmai, di un medesimo
incidente). Mentre i trasportati a titolo oneroso e gratuito hanno potuto giovarsi, in
Francia, del regime di responsabilità oggettiva contrattuale derivante dall’inexécution di
un’obbligazione di sécurité di risultato e, in Italia, dell’inversione dell’onere della prova
previsto dal più sibillino art. 1681, comma 1, c.c., sui trasportati a titolo di cortesia è
continuato a gravare l’onere di provare la colpa del vettore ai sensi degli artt. 1382 Code
civil o 2043 c.c.
126
F. Venosta, op. ult. cit., 150 s.
Su questi due criteri, A. Gianola, Atto gratuito, atto liberale. Ai limiti della donazione, Milano, 2002,
171 ss.
128
Cfr., ad es., la giurisprudenza cit. da V. Buonocore, I contratti di trasporto e di viaggio, in Tratt. di dir.
comm. diretto da V. Buonocore, Torino, 2003, 69-71, anche in nt. 115.
127
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A questa situazione di diseguaglianza ha posto rimedio, in Francia, fin
dal 1968, la Chambre mixte della Cassazione,129 la quale ha consentito sia ai trasportati
“di cortesia”, sia alle vittime par ricochet di potersi avvalere del regime di
responsabilità oggettiva delittuale previsto dall’art. 1384, comma 1, “equivalente”130 a
quello previsto, ma in sede contrattuale (obbligazione di sécurité-résultat), per i
trasportati a titolo oneroso o gratuito. A fronte della proposta (inascoltata, nella nostra
esperienza giuridica) di considerare il trasporto gratuito e quello di cortesia nell’ambito
di un unico paradigma normativo che caratterizza il trasporto “senza corrispettivo”,131 il
problema è stato definitivamente risolto dai legislatori francese e italiano, almeno con
riguardo al trasporto mediante veicoli a motore. Sia la Loi Badinter (art. 1 della l. n. 85677 del 5 luglio 1985), sia il Codice delle assicurazioni private (art. 141 d.lgs. 7
settembre 2005, n. 209) hanno unificato la disciplina dei trasportati a titolo oneroso,
gratuito o di cortesia prevedendo un regime di responsabilità oggettiva che, pur
trovando il suo fondamento nel contratto di assicurazione di responsabilità, rappresenta
il superamento della tradizionale partizione tra le due specie della responsabilità civile
attraverso “une unification des régimes d’indemnisation”.132
Per quanto riguarda gli altri rapporti di cortesia, il carattere della
patrimonialità o no dell’interesse del promittente non sembra possa continuare ad essere
considerato decisivo. Sia perché, com’è noto, la prestazione può corrispondere anche ad
un interesse non patrimoniale del creditore (art. 1174 c.c.);133 sia perché, piuttosto che
vagliare il carattere economico o meno dell’interesse, sarebbe prioritario verificarne la
sua meritevolezza di tutela ai sensi dell’ordinamento giuridico (art. 1322, comma 2,
c.c.). D’altronde anche la prestazione cortese, per quanto incoercibile, non può non
essere ispirata al principio di buona fede, che permea tutte le attività che possono
129
Cass., Ch. Mixte, 20 décembre 1968, in «Rec. Dalloz», 1969, Jur., 37.
Per una ricerca sulle ulteriori regole “equivalenti” che inducono la giurisprudenza a qualificare la
responsabilità in termini ora delittuali ora contrattuali, la monografia di M. Feola, Le obbligazioni di
sécurité, cit., 35 ss., 222 ss. e passim.
131
V. Buonocore, op. ult. cit., 65 e 79 s.
132
G. Viney et P. Jourdain, Les conditions de la responsabilité, in Traité de droit civil, sous ladirection de
J. Ghestin, III éd., Paris, 2006, 1289 s.
133
In proposito, il saggio di M. R. Marella, Le conseguenze «non patrimoniali» dell’inadempimento. Una
tassonomia, in Colloqui in ricordo di Michele Giorgianni, Napoli, 2007, 175 ss., sulla scia
dell’insegnamento di M. Giorgianni, L’obbligazione (La parte generale delle obbligazioni), I, rist.,
Milano, 1968, 29 ss., 33 ss.
130
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definirsi “prestazione”, “quale che ne sia il titolo ed anche se non sono giuridicamente
dovute”.134
In Germania, una soluzione analoga è stata prospettata sulla base
dell’interpretazione dell’espressione ähnliche geschäftliche Kontakte (§ 311, comma 2,
n. 3 BGB). Se non si vuole intendere tale locuzione come un riferimento inutilmente
ripetitivo di quei contatti negoziali “di minore intensità”, comunque simili a quelli già
previsti nei precedenti nn. 1 e 2, l’espressione potrebbe essere riferita “proprio ai
rapporti di cortesia “puri”, in considerazione della loro affinità con i contatti negoziali”
e della loro attitudine a generare obblighi di protezione sulla base di una “estensione
della responsabilità in contrahendo” o comunque di “un principio di tutela
dell’affidamento analogo a quello che anima la teoria della responsabilità in
contrahendo”.135 In tal modo, escluso che il semplice richiamo al mero “contatto
sociale” possa essere di per sé sufficiente a fondare obblighi di protezione,136
l’espressione esaminata concernerebbe non i “contatti negoziali simili” a quelli
contemplati nei nn. 1 e 2 del § 311, comma 2, BGB, ma i rapporti di cortesia quali
“contatti non negoziali […] suscettibili di fondare comunque un obbligo di protezione
in quanto simili ai contatti negoziali”.137
5. Il carattere strumentale e rimediale delle obbligazioni di sécurité. L’analogo
ruolo svolto dagli obblighi di protezione: in particolare, il superamento delle
incongruenze in tema di responsabilità degli ausiliari (§§ 278 e 831 BGB) e le
mutazioni dell’obbligazione sanitaria tra “mezzi” e “risultato”
Un altro aspetto che è stato posto nitidamente in evidenza138 è quello
del carattere rimediale del sistema delle obbligazioni di sécurité, nel senso di attribuire
134
F. Venosta, op. ult. cit., 143.
Così, A. Zaccaria, Der aufhaltsame Aufstieg, cit., 90 e 91.
136
C.-W. Canaris, Die Reform des Rechts der Leistungsstörungen, in «JZ», 2001, 520.
137
A. Zaccaria, op. ult. cit., 91.
138
Da M. Feola, L’obbligazione come rapporto complesso, cit., §§ 8 lett. c), 9 e 10.
135
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un rimedio contrattuale (anche se soltanto) risarcitorio, rispetto al rimedio delittuale, ma
caratterizzato da un certo regime di imputazione della responsabilità, in presenza di
determinate condizioni – scrutinate sulla base del principio del non-cumul –, al fine di
tutelare uno specifico assetto di interessi. In proposito la stessa dottrina francese ha
parlato dell’obbligazione di sécurité come di un’“obbligazione indennitaria”, con
caratteristiche utilitaristiche e funzionali assai marcate.139
Anche in Germania e in Italia la scoperta degli obblighi di protezione
e, più in generale, il fenomeno di “contrattualizzazione” della responsabilità civile
hanno contribuito a realizzare una più intensa tutela della vittima, rispetto a quella che
sarebbe conseguita sulla base dell’applicazione delle regole di diritto comune in tema di
responsabilità delittuale. Già Hermann Staub,140 a due anni dall’entrata in vigore del
BGB, aveva individuato un’ulteriore incongruenza nella diversa disciplina in tema di
responsabilità degli ausiliari “nell’adempimento” e “nell’attività”141 (§§ 278 e 831
BGB). Non v’è dubbio che questa problematica caratterizzerà l’esperienza germanica
per tutto il XX secolo,142 se è vero che un’autorevole dottrina ha individuato la
medesima “funzione della teoria dei “doveri di protezione”” proprio nel “rendere
applicabile il par. 278 BGB” in luogo del § 831,143 al fine di escludere la prova
liberatoria prevista da quest’ultimo testo. Il § 831, norma senz’altro “dubbia”, avrebbe
potuto essere mantenuto in vigore nel BGB proprio grazie a quegli orientamenti delle
Corti che “hanno riconosciuto in via contrattuale il risarcimento del danno, ancorché
l’incidente subito dall’attore fosse da ricondurre ad una violazione generale del
neminem laedere”.144 La teoria delle Schutzpflichten e l’estensione degli effetti di
protezione anche nei riguardi di terzi, poi, hanno consentito di tutelare interessi non
protetti ai sensi della responsabilità delittuale (ad es., danni meramente economici,
danni da culpa in contrahendo e da contratti nulli, danni da inesatte informazioni, ecc.),
sulla base della convinzione che debba essere proprio il contratto – e non la
responsabilità delittuale – “il tipico strumento di salvaguardia degli interessi
D. Mazeaud, Le régime de l’obligation de sécurité, in «Gaz. Pal.», 1997, II, 1201.
Le violazioni positive, cit., 70 s.
141
Così, proprio He. Stoll, Commiato, cit., § V.3, in fine.
142
M. Feola, La responsabilità civile al confine tra contratto e torto, cit., 55.
143
C.-W. Canaris, Norme di protezione (Parte seconda), cit., 802.
144
K. Zweigert e H. Kötz, Introduzione, vol. II, cit., 367.
139
140
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patrimoniali”.145
Anche in Italia l’importazione della dottrina degli obblighi di
protezione e della controversa idea di “contatto sociale qualificato” ha consentito,
quanto meno in specifici settori, di prevedere una tutela rafforzata per la vittima.
Soprattutto in campo sanitario (ma un discorso analogo può valere anche per la
responsabilità dell’istituto scolastico nel caso di condotta autolesiva dell’allievo),146 più
che ad un superamento147 della distinzione, così come dichiarato dalle Sezioni Unite
della Cassazione, si è assistito ad una trasformazione pura e semplice dell’originaria
obbligazioni “di mezzi” in un’obbligazione di “risultato”.148 L’allegazione di un
inadempimento solo “‘astrattamente idoneo a causare il danno lamentato’ inverte, nella
sostanza, l’onere della prova della causalità, dovendo il debitore ‘dimostrare o che tale
inadempimento non vi è stato ovvero che, pur esistendo, esso non è stato
eziologicamente rilevante’”.149 Ai fini della prova dell’interruzione del rapporto causale
«è del tutto irrilevante la prova della diligenza nell’adempimento, dovendo il debitore
dimostrare il caso fortuito o la forza maggiore» e gravando su di lui “il rischio della
causa ignota e non accertabile”.150
L’orientamento ha trovato conferma ed ulteriore specificazione in una
più recente sentenza della Cassazione: la prova del nesso di causa, quale fatto
costitutivo della domanda intesa a far valere la responsabilità per l’inadempimento del
rapporto di cura, si sostanzia nella dimostrazione che l’esecuzione del rapporto curativo
si è inserita nella serie causale che ha condotto all’evento di danno, il quale è
rappresentato “o dalla persistenza della patologia per cui si era richiesta la prestazione o
dal suo aggravamento fino anche ad un esito finale come quello mortale o
145
C.-W. Canaris, Norme di protezione (Parte prima), cit., 576.
F. Di Ciommo, La responsabilità contrattuale, cit., c. 2638, nel commentare Cass., Sez. Un., 27
giugno 2002, n. 9346.
147
Cass. civ., Sez. Un., 11 gennaio 2008, n. 577, in «Danno e resp.», 2008, 790.
148
A. Nicolussi, Sezioni sempre più unite contro la distinzione fra obbligazioni di risultato e obbligazioni
dimezzi, in «Danno e resp.», 2008, 875.
149
In questi termini, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 366, che cita testualmente le espressioni
utilizzate da Cass. civ., Sez. Un., 11 gennaio 2008, n. 577, cit., 792.
150
M. Feola, op. loc. ult. cit.
146
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dall’insorgenza di una nuova patologia che non era quella con cui il rapporto era
iniziato”.151 Il danneggiato, ai fini della prova della causalità, può limitarsi a dimostrare
“uno di tali eventi”, che si connotano “come inadempimento sul piano oggettivo,
essendosi essi verificati a seguito dello svolgimento del rapporto curativo e, quindi,
necessariamente – sul piano della causalità materiale – quale conseguenza del suo
svolgimento”.152 La presunzione iuris tantum153 del rapporto eziologico fa gravare sui
sanitari le cause “incerte” e “ignote”, dovendo essi dimostrare “in alternativa il fatto di
avere esattamente adempiuto, il fatto che non sussiste un nesso eziologicamente
rilevante” tra l’inadempimento, la lesione, l’aggravamento, il decesso o l’insorgenza di
una nuova patologia, ovvero che “gli esiti peggiorativi siano stati determinati da un
evento imprevisto o imprevedibile”.154 Ancora una volta “la prova del caso fortuito, così
come avviene nei casi di responsabilità oggettiva delittuale, si rivela l’unico elemento
realmente idoneo ad interrompere il nesso causale e, quindi, a consentire l’esonero dalla
responsabilità”.155
Nel qualificare come obbligazione “di risultato” un’obbligazione che
fino ad allora era stata considerata “di mezzi”, e per ora prescindendo dal fatto che tale
qualificazione abbia ad oggetto un obbligo di prestazione (così come accade
frequentemente nell’attività sanitaria) e non, invece, un obbligo di protezione,156 la
giurisprudenza italiana emula quella funzione strumentale e rimediale che
l’obbligazione di sécurité ha assunto nell’esperienza francese. Se, infatti, per assurdo,
nel qualificare nuovamente “di mezzi” l’obbligazione del sanitario, la giurisprudenza
italiana identificasse questa sua responsabilità “contrattuale” con la disciplina prevista
per la responsabilità delittuale per colpa (così come accade in Francia), o se, più
probabilmente, il legislatore prevedesse una disciplina “speciale” unitaria per l’attività
di tutti gli operatori sanitari (così come accaduto, in Germania, con la codificazione del
151
Cass., Sez. III, 12 settembre 2013, n. 20904, in «Danno e resp.», 2014, 33.
Cass., 12 settembre 2013, n. 20904, cit., 33.
153
Così, G.M.D. Arnone, La responsabilità medica verso la presunzione del nesso di causa, in «Danno e
resp.», 2014, 40.
154
G. M. D. Arnone, op. ult. cit., 40 e 41.
155
M. Feola, Il danno da «nascita malformata», in questa «Rivista», 2014, 101.
156
Così, L. Mengoni, Obbligazioni «di risultato», cit., 368 e 371.
152
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contratto di trattamento medico157 e, in Francia e in Italia, nei settori della circolazione
stradale e del danno da prodotti), verrebbe meno ogni ragione pratica per considerare la
responsabilità del medico dipendente come contrattuale (sulla base di un c.d. “contratto
di protezione”)158 piuttosto che extracontrattuale. In questo senso procede l’attuale
riforma legislativa che tende a ricollegare nuovamente alla responsabilità delittuale per
colpa (art. 2043 c.c.) l’attività degli operatori dipendenti da una struttura sanitaria
pubblica, quali ausiliari del debitore nell’adempimento dell’obbligazione.
6. Segue. La critica dell’obbligazione di sécurité-moyens e il suo collegamento con i
rimedi delittuali fondati su regole di responsabilità oggettiva (art. 1384, comma 1).
Le proposte di riforma, in Francia, ispirate al regime del concorso o alla
“decontrattualizzazione” delle obbligazioni di sécurité nel caso di lesioni
dell’integrità psico-fisica della persona
La nascita stessa dell’obbligazione di sécurité-résultat testimonia, in
Francia, un’indiscutibile funzione rimediale, consistente nell’esigenza di tutelare il
trasportato – in presenza di una lacuna del Code Napoléon (artt. 1782 ss.) – mediante la
previsione di un regime di responsabilità oggettiva contrattuale che esimesse il creditore
della prestazione di trasportare dalla prova (diabolica) della faute précise richiesta,
invece, dalla disciplina di diritto comune in tema di responsabilità extracontrattuale (art.
1382).159 La successiva evoluzione della disciplina giurisprudenziale in tema di
trasporto terrestre confermerà questa tendenza: ma poiché la qualificazione in termini
“di mezzi”160 dell’obbligazione del vettore di “prendere le misure di sicurezza” avverso
gli accidents de gare e de quai non era altrettanto propizia per la vittima contraente,
157
Per tutti, J. F. Stagl, La «legge sul miglioramento dei diritti del paziente» in Germania, in «Nuova
giur. civ. comm.», 2014, II, 35 ss.; R. Favale, Il contratto di trattamento medico nel BGB. Una prima
lettura, in «Nuove leggi civ. comm.», 2014, 693 ss.
158
Un esplicito riferimento al «contratto di protezione» è in Cass. civ., Sez. Un., 11 novembre 2008, nn.
26972, 26973, 26974, 26975, cit., 30.
159
In tal senso, le conclusioni del Procuratore Generale L. Sarrut, in «Rec. Dalloz», 1913, I, 254 s., in
ordine a Cass., 21 novembre 1911, e Cass., 27 janvier 1913, ivi, I, 253 ss. Sul punto, per tutti, R. Rodière,
Le régime légal de l’obligation de sécurité due par les transporteurs à leurs voyageurs, in «Sem. jur.»,
1952, I, Doctr., 997, e l’attenta ricostruzione storica di J.-L. Halpérin, La naissance de l’obligation de
sécurité, in «Gaz. Pal.», 1997, II, 1178.
160
Intervenuta con il caso “Dame Decharme”: Cass., I Ch. civ., 21 juillet 1970, in «Rec. Dalloz», 1970,
Jur., 767 s., con nota di R. Abadir, alla quale adde R. Rodière, Voyageurs veillez sur vous! Dialogue avec
l’indulgence, in «Rec. Dalloz», 1971, Chron., 45.
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163
ingenerando anzi una disparità di trattamento con il “terzo”161 al quale si applicava la
ben più favorevole disciplina di responsabilità oggettiva delittuale di cui all’art. 1384,
comma 1, con il caso Valverde162 la giurisprudenza procederà a “decontrattualizzare” il
regime di responsabilità163 anche per il trasportato, sulla base dell’idea (già espressa nel
caso “Caramello”)164 che può esservi un’obbligazione di sécurité (di risultato) – e
quindi una tutela contrattuale – soltanto durante l’esecuzione del contratto, ovvero dal
momento in cui il passeggero inizia ad entrare nel mezzo di trasporto e fino all’istante in
cui ha terminato di uscirne.165
Nell’evoluzione successiva, la qualificazione dell’obbligazione di
sécurité in termini “di mezzi” o “di risultato” è stata puntualmente effettuata dalle Corti
al fine di individuare la disciplina applicabile al concreto rapporto, soprattutto allorché
tale obbligazione è stata inserita (come nella gran parte dei casi è accaduto) all’interno
di un contratto atipico. Il numero e la varietà dei contratti ai quali la giurisprudenza ha
collegato questa figura “sono impressionanti”, al punto che ci si è chiesti se “il campo di
questa obbligazione non si estenda a qualsiasi convenzione la cui esecuzione possa
ledere, in un qualsiasi momento e in qualunque maniera, la sicurezza fisica di uno dei
contraenti o anche quella dei beni che sono stati affidati dall’altra parte”.166
Tuttavia, la discutibile idea secondo la quale, nella tradizione francese,
la faute civile rappresenti ancora l’unitaria nozione ordinante le responsabilità sia
delittuale sia contrattuale167 farà sì che, almeno ogni qual volta il danno sia cagionato da
una cosa in custodia, il rimedio contrattuale fondato sull’obbligazione di sécurité “di
mezzi” divenga più sfavorevole per la vittima di quanto non lo sia il rimedio delittuale
161
Considerava «scioccante» questa disparità di trattamento, C. Mascala, Accidents de gare: le
«déraillement» de l’obligation de sécurité, in «Rec. Dalloz», 1991, Chron., 81.
162
Cass., I Ch. civ., 7 mars 1989, in «Gaz. Pal.», 1989, II, Jur., 633, con nota di G. Paire.
163
Discorre di un «assèchement» dell’obbligazione di sécurité “di mezzi”, P. Jourdain, La responsabilité
de la S.N.C.F. pour un accident de gare est de nature délictuelle, in «Rev. trim. dr. civ.», 1989, 550.
164
Il quale (Cass., I Ch. civ., 1 juillet 1969, in «Rec. Dalloz», 1969, Jur., 640 s.), tra l’altro, aveva dato
origine all’articolata evoluzione giurisprudenziale.
165
Secondo Cass., 1 juillet 1969, cit., 640, infatti, l’obbligazione di condurre il viaggiatore “sano e salvo a
destinazione” «esiste a carico del vettore soltanto durante l’esecuzione del contratto di trasporto, cioè a
partire dal momento in cui il viaggiatore inizia a montare sul veicolo e fino al momento in cui egli ha
terminato di scenderne».
166
G. Viney et P. Jourdain, Les conditions, III éd., cit., 458.
167
In argomento, basti citare la più avvertita trattatistica (G. Viney et P. Jourdain, op. ult. cit., 363 ss., 428
ss. e passim).
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164
fondato sull’art. 1384, comma 1. La tutela contrattuale dell’obbligazione di sécurité “di
risultato” risulterà circoscritta ad ipotesi specifiche168 e non sempre pregnanti sotto il
profilo sociale. Se si eccettuano alcune decisioni più recenti, la Cassazione, oltre al
contratto di trasporto terrestre, individua un’obbligazione di risultato, ad esempio, a
carico dei gestori di funivie169 (mentre una diversa disciplina riguarderà seggiovie e
sciovie),170 di villaggi turistici,171 di manège di altalene,172 di auto-scontro173 e di
montagne russe,174 a carico del ristoratore o del gestore di altre strutture (alberghi,
colonie, villaggi turistici) con riguardo alla qualità degli alimenti175 e della nutrice
professionnelle cui sono affidati fanciulli che non sono in grado di vegliare sulla propria
sicurezza.176 Nella quasi totalità degli altri “contratti”, invece, la giurisprudenza, fedele
al principio del non-cumul, assegna una tutela risarcitoria contrattuale, ma sulla base di
un’obbligazione di sécurité “di mezzi”. E sarà proprio la prolifération177 delle
obbligazioni di sécurité-moyens a spingere la dottrina a contestare con veemenza tale
fenomeno: da un lato si ravviserà lo “snaturamento” del modello di obbligazione, la
quale, se ha ad oggetto la sécurité, non può non essere “di risultato”;178 dall’altro, si
constaterà che in molte ipotesi (ad es., nel caso in cui il danno sia cagionato da una cosa
in custodia) la qualificazione in termini contrattuali della tutela nuoce sicuramente alla
168
Per le quali si rinvia a M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 233 ss., 251 ss., 346 ss. e passim.
Per un’esplicita qualificazione in termini di obbligazione “di risultato” cfr., ad es., Cass., I Ch. civ., 17
février 1987, in «Sem. jur.», 1988, II, 21082.
170
Per la giurisprudenza, cfr. M. Feola, op. ult. cit., 235 ss.
171
Pur non richiamando esplicitamente l’obbligazione “di risultato”, esclude che sul club gravasse
un’obbligazione “di mezzi”, Cass. crim., 1 juillet 1997, in «Rec. Dalloz», 1997, Inf. rap., 212.
172
Un esplicito riferimento ad una «obbligazione di risultato, per quanto concerne la sicurezza dei suoi
clienti», è in Cass., I Ch. civ., 18 février 1986, in «Rec. Dalloz», 1986, Inf. rap., 235. Sul punto, J. Huet,
Entreprise d’attraction pour enfant: obligation de résultat, in «Rev. trim. dr. civ.», 1986, 770 s.
173
Discorrono di un’obbligazione “determinata” o “di risultato”, Cass., I Ch. civ., 3 avril 1973, in «Rec.
Dalloz», 1973, Somm., 91; Cass., I Ch. civ., 12 février 1975, ivi, 1975, Jur., 512; Cass., I Ch. civ., 17 juin
1975, ivi, 1975, Inf, rap., 216.
174
Con esplicito riferimento all’obbligazione “di risultato”, Cass., I Ch. civ., 13 novembre 1974, in «Sem.
jur.», 1974, II, Jur., 18344; Cass., I Ch. civ., 28 octobre 1991, in «Rec. Dalloz», 1992, Somm. comm.,
271, sulla scia di Req., 13 mai 1947, in «Sem. jur.», 1948, II, Jur., 4032, annotata da R. Rodière. Cfr. P.
Jourdain, L’exploitant d’un toboggan est tenu d’une obligation de sécurité de résultat, in «Rev. trim. dr.
civ.», 1992, 397.
175
Anche qui, con esplicito riferimento all’obbligazione di sécurité “di risultato”, Cass., I Ch. civ., 2 juin
1981, in «Gaz. Pal.», 1982, I, Pan., 9, anche in «Rev. trim. dr. civ.», 1982, 770.
176
Cass., I Ch. civ., 13 janvier 1982, in «Rev. trim. dr. civ.», 1982, 770. In argomento, C. Larroumet, Note
a Cass., I Ch. civ., 13 janvier 1982, in «Rec. Dalloz», 1982, Inf. rap. - Somm. comm., 364.
177
Il termine è utilizzato da G. Viney et P. Jourdain, Les conditions, III éd., cit., 453 ss.
178
In questi termini, P. Jourdain, Le fondement de l’obligation de sécurité, in «Gaz. Pal.», 1997, II, 1198,
per il quale «c’est la sécurité qui est objet d’obligation»; e poiché «la sécurité ne se divise pas», se «l’on
assure la sécurité, […] l’obligation est de résultat». In maniera del pari incisiva, afferma che «l’obligation
de sécurité est par sa nature une obligation déterminée, l’objet de l’obligation étant la sécurité due en
tout état de cause par l’auteur du dommage», Y. Lambert-Faivre, Fondement et régime de l’obligation de
sécurité, in «Rec. Dalloz», 1994, Chron., 84 (il corsivo è dell’Autrice).
169
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165
vittima, in quanto la sottopone ad un regime fondato sulla prova della faute
contractuelle del debitore, non consentendole di invocare la ben più favorevole
disciplina di responsabilità oggettiva delittuale di cui all’art. 1384, comma 1, Code
civ.179 In tal modo l’elaborazione della giurisprudenza avrebbe perso di vista quel
“carattere puramente utilitaristico e funzionale” che ha caratterizzato “la scoperta, cioè
l’invenzione” dell’obbligazione di sécurité.180
Lo stesso criterio utilizzato più frequentemente dalle Corti per operare
la qualificazione dell’obbligazione come “di mezzi” o “di risultato”, cioè quello fondato
sul ruolo più o meno attivo del creditore nell’esecuzione del contratto, è stato
considerato incongruente e contraddittorio,181 essendosi constatato sia come esso si
ispiri ad un criterio tipologico astratto improntato al “tipo” di contratto, sia come in
talune ipotesi l’obbligazione venga qualificata “di risultato” pur in presenza di una
condotta eminentemente attiva da parte del creditore che è titolare dei poteri di
direzione e di controllo (esempio emblematico, quello del gestore di auto-scontro). Così
gli ulteriori standard (caratteristiche dell’oggetto più o meno “determinato”
dell’obbligazione; natura più o meno aleatoria dell’attività del debitore; accettazione
implicita dei rischi da parte del creditore) citati dalle Corti talvolta autonomamente,
talaltra ad integrazione del criterio del ruolo attivo, sono stati considerati del tutto
inidonei a fondare in maniera coerente la partizione tra obbligazioni “di mezzi” e “di
risultato”. La sempre più frequente individuazione di obbligazioni di mezzi “rafforzate”
o di risultato “attenuate”, per un verso, esprime la preoccupazione della giurisprudenza
francese “di garantire la giustizia della singola decisione”,182 consentendo di “dosare la
severità della responsabilità” sulla base di “qualsiasi sorta di circostanza che
l’applicazione delle regole delittuali, per definizione rigide e uniformi” non
consentirebbe di considerare;183 ma per altro verso testimonia le perduranti incertezze
della partizione e la sostanziale incapacità “di elaborare parametri maggiormente
179
Tra i tanti, D. Mazeaud, Le régime, cit., 1202 ss.; P. Jourdain, op. ult. cit., 1198 s.
G. Viney et P. Jourdain, op. ult. cit., 472.
181
Diffusamente, sul punto, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 330 ss.
182
Così, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité “di mezzi” e “di risultato” nell’uniformazione dei modelli
di imputazione delle responsabilità, in A. Procida Mirabelli di Lauro e M. Feola, La responsabilità civile,
cit., 587.
183
G. Viney, Rapport de synthèse, in «Gaz. Pal.», 1997, II, 1214.
180
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166
coerenti sotto il profilo sistematico”.184
Tramontato l’importante tentativo giurisprudenziale di introdurre un
regime generale di responsabilità oggettiva contrattuale “du fait des choses”,185 analogo
a quello previsto dall’art. 1384, comma 1 in ambito delittuale, che avrebbe consentito di
risolvere nel senso dell’obbligazione di sécurité “di risultato” la maggior parte dei casi
sottoposti al giudizio delle Corti attraverso la “unificazione delle regole di
responsabilità”,186 la scienza giuridica francese si è orientata in maniera divergente.
La giurisprudenza ha iniziato a operare, ma “caso per caso” 187 e
limitatamente a taluni settori, una “ri-qualificazione”188 di obbligazioni di sécurité
(considerate fino ad allora) “di mezzi” in obbligazioni “di risultato”. Ciò è accaduto, ad
esempio, nel campo delle agenzie di viaggi e dei tour operator: la responsabilità
contrattuale di costoro è stata dichiarata nei confronti dei loro clienti, nel caso di un
incidente stradale avvenuto all’estero durante un soggiorno “tutto compreso”, non sulla
base di un mero obbligo di sorveglianza (“di mezzi”) derivante dal contratto di
mandato, ma per l’inadempimento dell’obbligazione di risultato che grava sul vettore.189
Un’applicazione combinata dei principi di responsabilità oggettiva contrattuale per i
fatti della cosa e d’autrui si è avuta, poi, allorché la Cassazione ha deciso per la
responsabilità di un’agenzia di viaggi per il danno subito dal cliente a causa di una
caduta dalla scala di un albergo dove soggiornava, allorché la stessa, “responsabile
oggettivamente dell’adempimento delle obbligazioni [determinate] derivanti dal
contratto, non ha provato né la faute della vittima, né il fatto imprevedibile e irresistibile
di un terzo estraneo alla fornitura delle prestazioni contrattuali, né un caso di forza
184
M. Feola, op. loc. ult. cit.
Il leading case, detto anche «du cerceau brisé» (M. Bacache-Gibeili, Les obligations, cit., 236) fu
deciso da Cass., I Ch. Civ., 17 janvier 1995, in «Rec. Dalloz», 1995, Jur., 351, con il commento di P.
Jourdain; in «Sem. jur.», 1995, I, 3853, con le osservazioni di G. Viney. L’abbandono di questa
giurisprudenza fu immediatamente colto da P. Jourdain, La responsabilité contractuelle du fait des
choses: la Cour de cassation aurait-elle des regrets?, in «Rev. trim. dr. civ.», 1996, 632.
186
G. Viney et P. Jourdain, Les conditions, III éd., cit., 799.
187
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 238.
188
Il termine è utilizzato da M. Feola, op. ult. cit., 594.
189
Trib. Civ. Nouméa, 12 août 1991, in «Rec. Dalloz», 1992, Jur., 437, con nota di P. Diener.
185
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167
maggiore”.190
Anche in tema di responsabilità del medico – settore che, pur in
presenza di importanti pronunzie di segno contrario,191 a differenza di quanto è accaduto
in Italia, è ancora ispirato ai principi dell’obbligazione “di mezzi” – la Suprema Corte
ha deciso che il contratto concluso tra il paziente ed il professionista sanitario pone a
carico di questi “un’obbligazione di sécurité di risultato per quanto concerne i materiali
che egli utilizza per l’esecuzione di un atto medico d’indagine o di cura, sempre che il
paziente dimostri che essi siano all’origine del danno”.192 Con questa decisione la
Cassazione, nel “salutare l’abbandono” della “criticabile” espressione “responsabilité
conctractuelle du fait des choses”,193 individua nell’“intervento di una cosa utilizzata dal
debitore nell’esecuzione del contratto” il “criterio della distinzione tra le obbligazioni di
sécurité di mezzi e di risultato”.194 E in tal modo ricompone quelle “diseguaglianze
veramente scioccanti tra le vittime di uno stesso fatto sopravvenuto nelle medesime
circostanze”,195 secondo che la controversia sia decisa con l’applicazione del rimedio
delittuale fondato sulla regola di responsabilità oggettiva di cui all’art. 1384, comma 1,
o, al contrario, del rimedio contrattuale collegato all’inadempimento di un’obbligazione
di sécurité “di mezzi”. Tuttavia, contrariamente a quanto questa sentenza lasciava
intendere, e cioè che “l’obbligazione del medico fosse di risultato ogni qual volta la
vittima avesse dimostrato che il materiale utilizzato era stato all’origine del danno”,196
la giurisprudenza successiva, sulla base della disciplina di origine europea sul danno da
prodotto, ha iniziato a richiedere che sulla vittima gravi comunque la prova
dell’anomalia o del difetto della cosa che è all’origine del danno. 197 L’obbligazione “di
risultato”, sempre che di obbligazione di risultato sia ancora possibile parlare,
sussisterebbe soltanto qualora “una cosa difettosa sia all’origine di una lesione della
190
Cass., I Ch. civ., 2 novembre 2005, in «Rec. Dalloz», 2006, Jur., 1016.
Ma prevalentemente di merito: cfr., ad es., Trib. gr. inst. Paris, 5 mai 1997 e 20 octobre 1997, in «Rec.
Dalloz», 1998, Jur., 559 e 560.
192
Cass., I Ch. civ., 9 novembre 1999, in «Rec. Dalloz», 2000, Jur., 117, con nota di P. Jourdain, e in
«Sem. jur.», 2000, II, 10251, con il commento di Ph. Brun.
193
Così, M. Bacache-Gibeili, Les obligations, cit., 237.
194
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
195
G. Viney et P. Jourdain, op. loc. ult. cit.
196
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 238.
197
Ad es., Cass., I Ch. civ., 4 février 2003, in M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 238; Cass., I Ch. civ., 22
novembre 2007, in «Rec. Dalloz», 2008, Jur., 816.
191
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168
sécurité del creditore”.198
Ecco che, allora, la dottrina ha iniziato a chiedersi “se non sia più
semplice” e meno artificioso “‘decontrattualizzare’ l’obbligazione di sécurité”.199 Ciò
consentirebbe, da un lato, di “preservare il contratto”; dall’altro, di “evitare che
l’allargamento artificiale”200 del rapporto obbligatorio possa rappresentare un attentato
alla funzione risarcitoria della responsabilità extracontrattuale; dall’altro ancora, di
tutelare meglio il creditore-vittima, consentendogli di “collocarsi sul terreno delittuale”
al fine di poter “beneficiare” del regime di responsabilità oggettiva du fait des choses
fondato sull’art. 1384, comma 1, del Code civil.201
Da qui le proposte di riforma del diritto della responsabilità civile che,
per un verso, prevedono un regime di concorso202 in deroga al principio del non-cumul
(pur enunciato nel comma 1 dell’art. 1341 dell’Avant-projet Catala) per la sola ipotesi
in cui l’inexécution abbia causato un danno all’integrità psicofisica, consentendo al
contraente di poter “ottenere egualmente la riparazione di questo danno” ai sensi della
responsabilità delittuale (art. 1386-17, comma 2, della proposta di legge presentata al
Senato il 9 luglio 2010 da L. Béteille), o di poter “optare in favore delle regole che gli
sono più favorevoli” (art. 1341, comma 2, Avant-projet Catala); per altro verso, ancor
più radicalmente, si propongono di “decontrattualizzare” l’obbligazione di sécurité,
disponendo che “salvo disposizioni particolari, le lesioni dell’integrità fisica o psichica
della persona sono risarcite” ai sensi della responsabilità delittuale «anche qualora siano
causate in occasione dell’esecuzione di un contratto» (art. 3 del Progetto Terré).
7. Il ruolo primario degli obblighi di protezione “connessi” e il problema della loro
distinzione dagli obblighi di prestazione nell’ambito di un’idea dell’obbligazione
198
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 239.
M. Bacache-Gibeili, op. loc. ult. cit.
200
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 129 e 130.
201
M. Bacache-Gibeili, op. ult. cit., 239.
202
Tale soluzione era già stata prospettata da P. Jourdain, Le fondement, cit., 1200.
199
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169
quale “struttura unitaria funzionalmente orientata”. Le difficoltà della partizione
tra leistungsbezogene Nebenpflichten e nicht leistungsbezogene Nebenpflichten al
fine di individuare il tipo di rimedio esigibile. L’impraticabilità dell’approccio
dogmatico-tassonomico e l’adozione di un metodo ispirato alla scelta del rimedio
(risarcitorio o in forma specifica) in concreto esigibile
A seguito della riforma del BGB, i problemi che interessano oggi la
dottrina tedesca in tema di rapporto obbligatorio sono in parte mutati. Il comma 2 del §
311 riconosce esplicitamente la risarcibilità in via contrattuale degli obblighi di
protezione, autonomi dalla prestazione, che insorgono a seguito dell’avvio di una vera e
propria trattativa volta alla conclusione del contratto (n. 1) e di quelli che conseguono a
un “comportamento, genericamente inteso, che possa considerarsi avere aperto la via
alla costituzione di un qualche rapporto di carattere negoziale (non necessariamente
contrattuale)”203 (n. 2). Permane il problema interpretativo dell’espressione, in sé vaga e
tendenzialmente polisensa, “ähnliche geschäftliche Kontakte” (n. 3), nel senso di
“contatti negoziali simili” ai contatti negoziali, ovvero di “contatti (non negoziali) simili
ai contatti negoziali” di cui ai nn. 1 e 2 del § 311.204
In ogni caso, limitata in questi termini la rilevanza degli obblighi di
protezione “autonomi”, l’esperienza giuridica tedesca si interessa oggi soprattutto di
studiare e di classificare gli obblighi di protezione che sono, in qualche maniera,
strutturalmente e/o funzionalmente “connessi” alla prestazione. Come si è
opportunamente rilevato,205 mentre anteriormente alla riforma il problema era quello del
fondamento e della latitudine degli obblighi di protezione, dopo l’intervento del
legislatore il problema centrale è divenuto proprio quello del rapporto tra obblighi di
protezione ed obblighi di prestazione. Cioè, quello di esaminare il tipo di connessione
ed il ruolo che assolvono gli obblighi di protezione rispetto alla prestazione, al fine di
poterli inquadrare, quali leistungsbezogene Nebenpflichten, nel primo comma del § 241,
ovvero, quali nicht leistungsbezogene Nebenpflichten, nel secondo comma del § 241. La
distinzione non è di secondaria importanza, poiché mentre la violazione degli obblighi
di cui al comma 1 del § 241 fa operare tutti i rimedi previsti “nei §§ 280, 282, 283,
203
A. Zaccaria, Der aufhaltsame Aufstieg, cit., 78.
Si rinvia, anche in ordine ai diversi orientamenti della dottrina tedesca, ad A. Zaccaria, op. ult. cit., 91,
85 ss.
205
Da R. Favale, Il rapporto obbligatorio, cit., § 9.
204
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170
311a, 323, 326 BGB, secondo le diverse perturbative dell’impossibilità, del ritardo dei
vizi della prestazione”, nel caso di violazione degli obblighi contemplati nel secondo
comma del § 241, risulterebbero applicabili le sole norme di cui ai §§ 280, 282 e 324
BGB.206 V’è poi il rilevante problema, per gli obblighi di protezione rientranti nel
comma 1 del § 241, di poter esigere non soltanto il rimedio risarcitorio, ma anche il loro
adempimento in forma specifica.
Il problema era già stato individuato, anche se a diversi fini, cioè con
specifico riguardo al diverso operare dell’onere della prova,207 proprio da Heinrich
Stoll. Nel rilevare come non sia “sempre facile accertare se si tratta della violazione del
solo interesse di protezione o anche dell’interesse alla prestazione”, 208 l’illustre Autore
aveva considerato come violazione del solo interesse alla prestazione, a titolo
esemplificativo, le ipotesi nelle quali: “il locatore di un appartamento non mantiene in
ordine la scala o […] non illumina gli ingressi”; “l’imprenditore edile danneggia per
custodia negligente il materiale consegnatogli”; “l’imprenditore dei trasporti conduce sì
alla meta esatta e in orario i passeggeri, ma con ferite”; “il barbiere ferisce un suo
cliente durante la rasatura”.209 Sulla base della convinzione che l’interesse alla
prestazione “deriva sempre dall’intero contenuto contrattuale”, egli rileva, ad es., che
“la locazione non si risolve nella mera consegna della cosa locata, ma ne prevede anche
il mantenimento in condizione fruibile”, e che nel contratto d’opera “l’interesse alla
prestazione consiste proprio nell’utilizzo corretto dei materiali consegnati o
nell’esecuzione dell’opera”.210 Senza voler entrare nel merito di queste affermazioni, è
opportuno rilevare come egli stesso sia inconsapevolmente la prova delle difficoltà
dogmatiche che possono riguardare la distinzione tra obblighi di prestazione ed obblighi
di protezione “accessori” o funzionalmente “connessi”, se è vero che tale
esemplificazione poneva in discussione, in Germania, proprio i primi casi (in tema di
trasporto, di locazione e di contratto d’opera) nei quali la giurisprudenza aveva
206
In questi termini, R. Favale, op. loc. ult. cit.
He. Stoll, Commiato, cit., nei §§ IV.4, in nt. 136, e IV.8.
208
He. Stoll, op. ult. cit., § IV.4.
209
He. Stoll, op. ult. cit., § IV.4, in nt. 136.
210
He. Stoll, op. loc. ult. cit. (il corsivo è dell’A.).
207
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individuato effetti di protezione del contratto “a favore” di terzi;211 in Francia, la
medesima “scoperta” dell’obbligazione di sécurité nel contratto di trasporto di persone e
la sua successiva estensione ai contratti “analoghi” e a quelli “diversi”; in Italia, la
struttura bipartita dell’art. 1681, comma 1, c.c. che chiaramente distingue la
responsabilità del vettore “per il ritardo e per l’inadempimento nell’esecuzione del
trasporto”, alla quale l’unanime scienza giuridica applica la disciplina di “diritto
comune” di cui all’art. 1218 c.c.,212 dall’obbligazione di sicurezza avverso i “sinistri che
colpiscono la persona del viaggiatore durante il viaggio” e la perdita o “avaria delle
cose che il viaggiatore porta con sé”, per i quali il vettore è tenuto a provare di “avere
adottato tutte le misure idonee a evitare il danno”.213 Le conclusioni alle quali perviene
Heinrich Stoll, poi, sembrano ancor più problematiche, se è vero, come egli afferma,
che il dovere di protezione deve rappresentare “il rovescio”, ma pur sempre “il
completamento dello scopo positivo dell’obbligazione”.214
D’altronde, in un settore che oggi è di grande attualità, come quello
della responsabilità degli operatori sanitari, già Luigi Mengoni aveva ammonito come
fosse facile confondere l’obbligo di prestazione con quello di protezione: nel caso in cui
“il chirurgo non opera a regola d’arte, se il medico non dà le prescrizioni adatte al
malato”, non v’è violazione di obblighi di protezione, bensì “forme diverse di
inadempimento dello stesso obbligo primario di prestazione”.215 In proposito, la stessa
Cassazione, allorché procede alla “scoperta” della responsabilità da “contatto sociale”
del medico dipendente da una struttura sanitaria pubblica, esclude la possibilità di
“condividere la tesi di coloro che sostengono che nella fattispecie sarebbe ravvisabile un
contratto con effetti protettivi nei confronti di un terzo (il paziente)”, poiché questa
211
Basti citare, in tema di contratto di trasporto, ad es., RG, 7 giugno 1915, in «RGZ», 87, 1916, 64, e
soprattutto il c.d. Klosterfall (RG, 18 novembre 1915, in «RGZ», 87, 1916, 289); in materia di contratto
di locazione, il celeberrimo c.d. Tuberkulosefall (RG, 5 ottobre 1917, ivi, 91, 1918, 21; sull’importante
ruolo assunto da questa decisione nell’evoluzione del contratto con effetti di protezione per terzi, M.
Plötner, Die Rechtsfigur des Vertrags mit Schutzwirkung für Dritte und die sogenannte Expertenhaftung,
Berlin, 2003, 24); in materia di contratto d’opera, il c.d. Gasuhrfall o Gasometerfall, deciso dal
Reichsgericht il 10 febbraio 1930, in «RGZ», 127, 1930, 218 ss.
212
Per tutti, M. Iannuzzi, Del trasporto, in Comm. del cod. civ. Scialoja e Branca, Bologna-Roma, 1970,
77; V. Buonocore, I contratti, cit., 93.
213
Per l’interpretazione di questi enunciati, si rinvia a M. Feola, La responsabilità del vettore nel
contratto di trasporto di persone, in A. Procida Mirabelli di Lauro e M. Feola, La responsabilità civile,
cit., 502 ss.
214
He. Stoll, op. ult. cit., § IV.4.
215
L. Mengoni, Obbligazioni «di risultato», cit., 371 e 372.
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figura “si avrebbe ogni qualvolta da un determinato contratto sia deducibile
l’attribuzione al terzo di un diritto non al conseguimento della prestazione principale,
come accade sicuramente nel caso del paziente”,216 ma a non violare un interesse di
protezione. La qualificazione della fattispecie in termini di inesatto adempimento
dell’obbligo di prestazione rende problematico, a fortiori, il poter ravvisare nell’attività
del
medico
dipendente
una
generalizzata
responsabilità
da
violazione
di
un’obbligazione senza prestazione, in quanto, anche in assenza di un’obbligazione, non
v’è violazione di un obbligo di protezione, ma mero inadempimento della prestazione
principale nei riguardi del paziente.
Una
posizione
più
articolata
può
riguardare
gli
obblighi
d’informazione ai quali è tenuto il professionista. Se l’informazione rappresenta
l’oggetto del contratto,217 sicuramente si verterà in tema di obbligo di prestazione. Se,
invece, l’informazione rappresenta un obbligo accessorio cui implicitamente è tenuto il
sanitario al fine di assicurare la sicurezza del paziente, in questo caso, ma al pari di tutti
gli altri, valutato il grado di connessione con la prestazione, sarà possibile ravvisare un
obbligo di protezione.
D’altronde, anche la “storia” degli obblighi di protezione in Germania
è stata costellata da significativi incidenti di percorso. Basti citare il caso leader, ma
ampiamente criticato,218 del c.d. Testamentfall, con il quale il BGH per la prima volta
estende l’area dei danni risarcibili a quelli “meramente economici” proprio risarcendo
alla figlia del mancato testatore l’inadempimento, da parte del legale, di un mero
obbligo di prestazione.
216
Così, Cass., 22 gennaio 1999, n. 589, cit., 443 (il corsivo è nostro).
Sul punto, C. Castronovo, La nuova responsabilità civile, cit., 497; M. Feola, Il danno da
«nascitamalformata», cit., 95 s.
218
W. Lorenz, Anmerkung a BGH, 6 luglio 1965, in «JZ», 1966, 143 ss.; E. von Böhmer, Bedenkliche
Konstruktion einer Vertragshaftung, in «JR», 1966, 173. Ma v., altresì, J. Gernhuber, Das
Schuldverhältnis, vol. VIII, in Handbuch des Schuldrechts in Einzeldarstellung, a cura di J. Gernhuber,
Tübingen, 1989, 513; E. von Caemmerer, Verträge zugunsten Dritter, in Festschrift für Franz Wieacker
zum 70. Geburtstag, a cura di O. Behrends, M. Diesselhorst, H. Lange, D. Liebs, J.G. Wolf e C.
Wollschläger, Göttingen, 1978, 321 ss. Per una critica nell’ambito della dottrina italiana, C. Castronovo,
op. ult. cit., 543 ss.; G. Varanese, Il contratto, cit., 87 s.
217
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173
Pur prescindendo da queste ipotesi, nelle quali si è confuso sic et
simpliciter l’obbligo di protezione con la prestazione, una netta distinzione tra questi
ultimi e gli obblighi di protezione che sono funzionalmente “connessi”, talvolta in
maniera inscindibile, nei riguardi della prestazione appare decisamente problematica ai
fini della loro qualificazione nell’una o nell’altra delle due categorie e, comunque, nella
maggior parte dei casi non sembra prestarsi ad essere effettuata sulla base di criteri
generali e astratti. Come si è rilevato, lo schema delineato dall’art. 1174 c.c. individua
“solo la dotazione elementare del rapporto, il quale, in realtà comprende anche tutte le
attività accessorie e strumentali all’esecuzione della prestazione (si pensi all’obbligo di
custodire rispetto a quello di consegnare di cui all’art. 1177 c.c.; ovvero a tutti gli
obblighi serventi rispetto a quello principale ricavabili dalla direttiva della correttezza
impartita dall’art. 1175 c.c.)”.219 Anzi, proprio la rilevanza ex contractu di tali interessi
“e, conseguentemente, della loro lesione, è subordinata alla circostanza che il
pregiudizio sia in connessione diretta con l’esecuzione della prestazione, perché
altrimenti l’innesto discenderebbe dal puro e semplice esserci del rapporto obbligatorio
e non dalla considerazione di quest’ultimo come programma d’azione”. 220 Ne consegue
che “è evidente che l’obbligo di protezione finisce per affiancarsi all’obbligo principale
ribadendo inevitavilmente il primato di quest’ultimo nella misura in cui soltanto le
condotte intese alla esecuzione (o alla ricezione) della prestazione potranno proporsi
quali veicoli di una possibile lesione dello Schutzinteresse”.221
La gran parte della dottrina italiana, piuttosto che porsi il problema di
una chiara distinzione tra obblighi di protezione “accessori” o “connessi” ed obblighi di
prestazione, ora ha riversato la maggior parte dei suoi sforzi nel dibattito
sull’obbligazione senza prestazione, schierandosi in una fazione favorevole ed in
un’altra avversa; ora si è limitata ad affermare in maniera generica – ma l’affermazione
avrebbe meritato qualche ulteriore specificazione – che gli obblighi di protezione si
219
L. Nivarra, Alcune precisazioni in tema di responsabilità contrattuale, in «Europa e dir. priv.», 2014,
48.
220
L. Nivarra, op. ult. cit., 51.
221
L. Nivarra, op. loc. ult. cit.
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174
collocherebbero “accanto, e non dentro l’obbligo principale di prestazione”.222 Essi
avrebbero una “collocazione autonoma nella struttura dell’obbligazione” in quanto “non
[sarebbero] strumentali all’esecuzione della prestazione principale”, ma avrebbero lo
“scopo di proteggere le persone ed i beni delle parti da pericoli di danno connessi con
tale esecuzione”.223
Tuttavia,
quest’ultima
asserzione
non
discende
logicamente
dall’affermazione di una pretesa necessaria autonomia, la quale, anzi, confligge con
l’idea, da tutti accettata, circa l’esistenza di obblighi di protezione (più o meno
“accessori”, ma) che sono funzionalmente connessi alla prestazione,224 all’interno di
“un rapporto obbligatorio come struttura unitaria funzionalmente orientata”.225 Non è in
discussione, infatti, che debba (o, quanto meno, possa) sussistere un “nesso” tra
Schutzinteresse e Leistungsinteresse,226 che la protezione sia pur sempre “funzionale e
comunque connessa alla prestazione”, anche se dovuta “in previsione di essa”.227
Quindi, è proprio l’incontrovertibile idea dell’obbligazione come
rapporto complesso, quale “struttura unitaria funzionalmente orientata” a rendere
estremamante difficile discernere a priori, in maniera netta e precisa, ciò che va ascritto
al primo ovvero al secondo comma del § 241 BGB. La distinzione assume estremo
rilievo anche sotto il profilo pratico poiché la dottrina tedesca applica agli “obblighi
accessori” legati alla prestazione il regime e le tutele che riguardano gli obblighi di
prestazione.228 Ma il problema consiste proprio nell’individuare parametri idonei ad
effettuare e, nel contempo, a suffragare inequivocabilmente la partizione. Sia il criterio
dello “scopo” dell’obbligo accessorio, nel senso di considerarlo tra gli obblighi di
222
F. Venosta, Prestazioni non dovute, cit., 109.
F. Venosta, op. loc. ult. cit.
224
Già L. Mengoni, Obbligazioni «di risultato», cit., 369 s.
225
Così, lo stesso C. Castronovo, La relazione, cit., 69.
226
S. Mazzamuto, Le nuove frontiere della responsabilità contrattuale, in «Europa e dir. priv.», 2014,
796.
227
A. di Majo, Le tutele contrattuali, cit., 65.
228
Così R. Favale, Il rapporto obbligatorio, cit., nel § 9.
223
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prestazione là dove è diretto alla protezione esclusiva della prestazione principale;229 sia
il requisito della “prossimità” dell’obbligo accessorio alla prestazione;230 sia il rilievo
attribuito al ruolo che la violazione dell’obbligo accessorio assume nei riguardi della
prestazione, nel senso di ledere l’Äquivalenzinteresse ovvero l’Integritätsinteresse;231
sia la caratteristica dell’azionabilità in giudizio dell’obbligo accessorio, cioè la
possibilità di esigere il rimedio dell’adempimento rispetto alla mera tutela risarcitoria,232
sono tutti parametri che, sulla base della volontà delle parti e del complessivo assetto
degli interessi divisati, possono essere utili ai fini di distinguere gli obblighi accessori
legati alla prestazione (di cui al comma 1 del § 241 BGB) dagli obblighi di protezione
(di cui al comma 2). Ma proprio la molteplicità ed eterogeneità dei criteri proposti
indicano la problematicità della partizione e l’impossibilità di fondarla su un giudizio a
priori, universalmente valido per ogni obbligazione e per ogni contratto. Per pervenire
ad una classificazione esaustiva e completa bisognerebbe esaminare l’intero diritto delle
obbligazioni e dei contratti, “tipici” ma soprattutto “atipici”. La qualificazione, quindi,
non può che essere effettuata caso per caso, sulla base del complessivo regolamento
d’interessi e di un giudizio comparativo di prevalenza che involga i diversi parametri
con riferimento al caso di specie.
Il problema appare meno complesso, però, se si invertono i termini
della questione. Piuttosto che effettuare preventivamente, sulla base di un metodo
dogmatico-tassonomico, la qualificazione dell’obbligo in una delle due categorie ai fini
dell’applicazione (della disciplina e) delle tutele (collegate al primo o al secondo
comma del § 241 BGB), individuare, in concreto, il tipo di tutela esigibile. Ma ciò
comporta che sia superato il luogo comune, del tutto indimostrato, secondo il quale la
violazione dell’obbligo di protezione consentirebbe di esperire la sola tutela risarcitoria.
Infatti l’obbligo di protezione “non rileva soltanto, al pari del dovere generico di
D. Mattheus, Schuldrechtsmodernisierung 2001/2002 – Die Neuordnung des allgemeinen
Leistungsstörungsrechts, in «JuS», 2002, 211; H.-J. Musielak, Grundkurs BGB, München, 2002, 92 s.; A.
Teichmann, Nebenverpflichtungen aus Treu und Glauben, in «JA», 1984, 546.
230
V. Emmerich, Das Rechts der Leistungsstörungen, München, 2003, 335; S. Madaus, Die Abgrenzung
der leistungsbezogenen von den nicht leistungsbezogenen Nebenpflichten im neuen Schuldrecht, «JURA»,
2004, 291 s.
231
D. Medicus, Der Regierungsentwurf zum Recht der Leistungsstörungen, in «ZfBR», 2001, 511; P.
Huber e F. Faust, Schuldrechtsmodernisierung. Einführung in das neue Recht, München, 2002, 131 s.
232
Già K. Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, I, Allgemeiner Teil, München, 1976, 9 s.; E. Kramer, in
Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, 2, München, 1994, 82 s.
229
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astensione, quando la lesione dell’altrui sfera giuridica si è ormai consumata, ossia nella
fase dell’illecito (non più extra) contrattuale e del risarcimento del danno, ma
soprattutto nella fase di attuazione del rapporto, munito com’è di una sua precettività in
grado di orientare le parti, di prevenire l’inesecuzione o di assicurare l’esecuzione in
punto di rimedi inibitori o in forma specifica”.233
È evidente che là dove la “prossimità/interferenza” abbia già
“sprigionato tutta la sua carica nagativa”234 – e sono, queste, le ipotesi di gran lunga più
ricorrenti nella prassi – alle Schutzpflichten non può che corrispondere “uno schema
puramente reattivo, nel senso che la tutela accordata al portatore dell’interesse prende la
forma del risarcimento del danno derivante dalla violazione dell’obbligo”. 235 In questo
caso il rimedio previsto assolve ad una funzione tipicamente conservativa,236 dovendo
“restaurare l’integrità del patrimonio (comprensivo dei valori economici ed esistenziali)
del soggetto che abbia subito un’interferenza indebita nella sua sfera giuridica”.237
Quindi, qualora ci si trovi in presenza di un danno “consequenziale”, cioè di un danno
subito “dalla persona o dalle cose del contraente a causa o in occasione dell’esecuzione
del contratto”,238 sarà dovuto il rimedio risarcitorio, il quale assolverà a quella generale
funzione di compensation o di réparation che è propria della responsabilità
extracontrattuale. In proposito, bisogna distinguere tra il risarcimento di questa tipologia
di danno, il quale, “al pari di quello da illecito aquiliano, non si riconnette all’aspettativa
irrealizzata ma al danno-conseguenza derivante dall’inadempimento”, e tra la
riparazione “sostitutiva” che si riconnette alla prestazione rimasta inattuata o
inesattamente eseguita e che ne “rappresenta la conversione in termini pecuniari”; cioè
tra un risarcimento del danno che si pone ora “accanto” alla prestazione mancata (neben
der Leistung) ora «al posto» di essa (statt der Leistung) (§§ 281, 282 e 283 BGB), e che
S. Mazzamuto, Una rilettura del mobbing: obbligo di protezione e condotte plurime d’inadempimento,
in «Europa e dir. priv.», 2003, 659. Sulla riparazione del danno per equivalente o in forma specifica, e
sulle differenze tra il sistema francese e quello tedesco, cfr. M.R. Marella, La riparazione del danno in
forma specifica, Padova, 2000, 64 ss.
234
L. Nivarra, op. ult. cit., 72.
235
L. Nivarra, op. ult. cit., 49.
236
M. Barcellona, Struttura della responsabilità e «ingiustizia» del danno, in «Europa e dir. priv.», 2000,
442 s.
237
L. Nivarra, op. ult. cit., 50.
238
A. di Majo, op. ult. cit., 168 (il corsivo è dell’A.).
233
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richiede la “liquidazione” del rapporto obbligatorio.239
La generale esigibilità della tutela risarcitoria ex contractu, sia pur
distinta sulla base della duplice funzione assolta nella reintegrazione del “plus
contractuel”240 o del risarcimento del danno consequenziale – che anche la prevalente
dottrina francese fa rientrare nella generale “fonction indemnitaire”241 della
responsabilità civile –, non esclude che per taluni obblighi, pur qualificati “di
protezione”, sia possibile chiedere l’adempimento e gli ulteriori rimedi che usualmente
sono ricondotti alla violazione dell’obbligazione, unitariamente considerata quale
rapporto complesso. Una volta “accettata l’idea che il dovere di protezione fa parte del
contenuto del rapporto obbligatorio, sarebbe illogico negare ad esso quella forma di
tutela (specifica) che assiste l’obbligo di prestazione”.242 Anzi è proprio nell’eventuale
possibilità di esperire forme di tutela ulteriori rispetto al risarcimento del danno che si
può cogliere una sicura peculiarità della dottrina degli obblighi di protezione rispetto
alla tutela aquiliana. Gli obblighi di protezione possono avere un contenuto sia positivo
(doveri di fare), sia negativo (doveri di astensione).243 Si pensi, ad esempio,
all’eventualità che il locatore di un immobile possa esigere che il conduttore si astenga
dal compiere atti che mettano in pericolo la stabilità della cosa locata; o, viceversa, alla
possibilità che il conduttore o i prestatori di lavoro subordinato esigano, rispettivamente,
dal proprietario o dal datore comportamenti positivi tendenti a garantire la statica
dell’immobile ovvero a proteggere l’integrità psico-fisica (e, per quanto riguarda i
lavoratori, anche la “personalità morale”: art. 2087 c.c.) dei soggetti che abitano o che
operano in quegli ambienti. In questi ed altri casi non sembra possano essere esclusi il
rimedio dell’adempimento in forma specifica, la possibilità di esigere l’esecuzione
forzata di cui agli artt. 2930 ss. c.c. e, trattandosi di una situazione di pericolo di un
pregiudizio imminente e irreparabile, i provvedimenti di urgenza di cui all’art. 700
c.p.c. Così, proprio nei rapporti di durata, la violazione degli obblighi di protezione
239
In questi termini, A. di Majo, op. ult. cit., 169 e 170.
Sul tale nozione, l’opera di G. Huet, Responsabilité contractuelle et responsabilité délictuelle, thèse
Paris, 1978.
241
Per tutti, M. Bacache-Gibeili, Les obligations, cit., 3 ss., 34 ss.
242
A. di Majo, Delle obbligazioni in generale, in Comm. del cod. civ. Scialoja e Branca, a cura di F.
Galgano, Bologna-Roma, 1988, 126 s.; analogamente, C. Castronovo, voce Obblighi di protezione, cit., 6,
anche se con specifico riferimento ai «rimedi sinallagmatici».
243
Così, A. di Majo, op. ult. cit., 127.
240
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potrà rappresentare un giustificato motivo di recesso.244
Più controversa è la questione relativa all’eventualità che la violazione
di obblighi “accessori”245 consenta alla controparte di chiedere la risoluzione del
contratto o di avvalersi della eccezione di inadempimento, non rientrando, per comune
opinione, gli obblighi di protezione nel sinallagma del contratto. Tuttavia si è rilevato
che, se è vero che “il sinallagma non possa farsi coincidere con il vincolo che lega le
sole prestazioni”, poiché esso “è il legame formale attraverso il quale si esprime
l’equivalenza dei costi cui ciscuna delle parti è tenuta per l’esecuzione del contratto”, la
mancata osservanza degli obblighi di protezione rappresenterebbe un comportamento
idoneo a squilibrare la relazione contrattuale, “sicché ad essa si deve conformemente
potere agire con i rimedi sinallagmatici”.246 La questione sembra doversi risolvere
comunque in senso affermativo là dove le parti abbiano esplicitamente contemplato
specifici obblighi di protezione in una clausola risolutiva espressa, in quanto la
valutazione dell’importanza dell’inadempimento è stata già effettuata dai contraenti
sulla base di un apprezzamento soggettivo ma concorde che non può non essere
vincolante per l’interprete. Una diversa soluzione rappresenterebbe un’indebita
“intromissione” nella sfera di autonomia delle parti che “non sarebbe propria né
opportuna”.247
8. La rispondenza delle dottrine in tema di obbligazione e di responsabilità alle
esigenze storiche e alle caratteristiche sistemologiche di ciascun diritto. Il
fenomeno dell’“equivalenza” e della “simmetria” dei regimi di imputazione della
responsabilità in ambito delittuale e contrattuale. Il superamento della partizione e
l’unificazione dei modelli di responsabilità nell’itinerario che conduce dalla colpa
alla strict liability
244
A. di Majo, op. loc. ult. cit.
Ricorda che la giurisprudenza italiana «ammette che anche l’inadempimento di una prestazione
accessoria possa essere importante per il creditore compromettendo l’utilizzazione della prestazione
principale», C.M. BIANCA, Diritto civile, V, cit., 271, anche in nt. 46.
246
C. Castronovo, op. loc. ult. cit.
247
A. Cataudella, I contratti. Parte generale, IV ed., Torino, 2014, 242 s., anche in nt. 305.
245
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La nascita e il successivo itinerario percorso, in Germania, dalla
dottrina degli obblighi di protezione e dal Vertrag mit Schutzwirkung für Dritte, e in
Francia, dalle obbligazioni di sécurité e dalla, seppur residuale, applicazione della
stipulation pour autrui tacite, trovano il loro fondamento e la loro spiegazione non in
costruzioni avulse dalla realtà sociale, ma nelle specifiche ragioni ed esigenze storiche e
giuridiche che caratterizzano i due diritti. Non è possibile, quindi, pensare e
comprendere questi istituti nella loro evoluzione dottrinale e giurisprudenziale se non in
funzione delle specifiche caratteristiche sistematiche proprie di ciascuno dei due
ordinamenti.
Problemi sociali simili posti dallo sviluppo del macchinismo e dalla
rivoluzione industriale248 spingono “l’immaginazione di una dottrina generosa”249 e,
sulla sua scia, le Corti francesi e tedesche a individuare soluzioni analoghe sotto il
profilo operazionale, ma che si caratterizzavano in funzione delle peculiarità e dello
stile dei due diversi diritti. Anche se la disciplina dell’“inadempimento” sarà
l’occasione per iniziare a pensare la dottrina degli obblighi di protezione,250 le soluzioni
a volta a volta assunte dalle scienze giuridiche tedesca e francese saranno condizionate
soprattutto da scelte sistematiche (il principio del non-cumul o del concorso, ad es.) e
dalla diversa fisionomia dei modelli di responsabilità extracontrattuale, con riferimento
non tanto alla diversa estensione dei danni risarcibili, quanto ai diversi modelli di
imputazione della responsabilità. Come si è lucidamente posto in evidenza,251 in
Francia, a differenza di quanto accaduto in Germania, la partita si gioca sulla base
dell’“equivalenza” di due regimi di responsabilità che, nella sostanza, segnano il
superamento della tradizionale partizione tra responsabilità delittuale e responsabilità
contrattuale.
Per un esplicito riferimento a questi fenomeni, in merito alla nascita dell’obbligazione di sécurité, R.
Rodière, Le régime, cit., 997, § 2; per il diritto tedesco, F. Wieacker, Industriegesellschaft und
Privatrechtsordnung, Frankfurt, 1974, 9 ss.
249
R. Rodière, op. loc. ult. cit.
250
Non a caso, anche il saggio di He. Stoll è intitolato al Commiato dalla teoria della violazione positiva
del contratto.
251
M. Feola, Le obbligazioni di sécurité “di mezzi” e “di risultato”, cit., 574 ss., 580 ss., 587 ss.
248
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180
Da un lato v’è un unitario sistema di responsabilità per colpa, che è
simmetrico in ambito delittuale e contrattuale, perché costruito sulla base di un’unica
nozione di “faute civile”. Malgrado un’autorevole dottrina abbia dimostrato come la
disciplina dell’inadempimento, in Francia, debba prescindere del tutto dalla nozione di
faute, sia per ragioni sistematiche, sia sotto lo stesso profilo esegetico, 252 la
giurisprudenza continua, secondo tradizione, a costruire il regime dell’inexécution
dell’obbligazione “di mezzi” (sia essa o meno di sécurité) sulla base degli elementi
strutturali (enunciati nel testo dell’art. 1382) che sono propri della responsabilità
delittuale per faute prouvée.
Dall’altro v’è un unitario sistema di responsabilità oggettiva, che è
simmetrico in ambito delittuale e contrattuale e che trova il suo prototipo
nell’“equivalenza”253 dei regimi della responsabilità per il “fait des choses” (art. 1384,
comma 1) e per l’inadempimento dell’obbligazione “di risultato”.
Ha contribuito a creare questa “simmetria” la Corte di Cassazione
quando, in epoca anteriore alla “scoperta” del principio del non-cumul,254 e in un
periodo in cui l’art. 1384, comma 1, sarebbe stato difficilmente applicabile al caso di
specie,255 non avendo ancora conosciuto la straordinaria espansione che poi si avrà nel
corso del XX secolo, seguì le indicazioni dei “partigiani”256 della responsabilità
contrattuale, codificando l’obbligazione di sécurité di risultato nell’ambito del trasporto
di persone, al fine di esimere i trasportati dal regime di responsabilità delittuale per
Noto è il pensiero di D. Tallon, L’inexécution du contrat: pour une présentation, in «Rev. trim. dr.
civ.», 1994, 223 ss.; Id., Pourquoi parler de faute contractuelle?, in Écrits en hommage à Gérard Cornu,
Paris, 1995, 429 ss.; di P. Rémy, La «responsabilité contractuelle»: histoire d’un faux concept, in «Rev.
trim. dr. civ.», 1997, 323 ss. Una sintesi del dibattito è in G. Visintini, Colpa contrattuale: un falso
concetto?, in «Contr. e impr.», 2004, 16 ss.
253
In questi termini già M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 228 s., 407 s. e passim.
254
Che viene collocata nel 1922, ad opera di Cass. civ., 11 janvier 1922, ora in Les grands arrêts de la
jurisprudence civile, a cura di H. Capitant, F. Terré et Y. Lequette, tome 2, XII éd., Paris, 2008, 279 s.
255
Non mancano, tuttavia, alcuni tentativi in tal senso, effettuati da qualche Corte di merito (ad es., App.
Paris, 9 novembre 1909, in «Rec. Dalloz», 1911, II, 357, I espèce; App. Besançon, 15 décembre 1909, ivi,
1911, II, 357, II espèce).
256
Discorre esplicitamente di una vera e propria contrapposizione tra i «partisans» della responsabilità
contrattuale e quelli della responsabilità extracontrattuale, J.-L. Halpérin, La naissance, cit., 1179 s.
252
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181
colpa di cui all’art. 1382 Code civil.257 Ha continuato a ragionare sulla base di questa
“simmetria” la Suprema Corte quando, successivamente ai limiti posti dal “caso
Caramello”258 all’obbligazione di sécurité-résultat, ha, prima, contrattualizzato, ma sul
modello dell’obbligazione “di mezzi”,259 e poi “decontrattualizzato”, proprio sulla base
dell’art. 1384, comma 1,260 la responsabilità del “vettore” per gli accidents de gare e de
quai. Così ha ragionato la Chambre mixte della Cassazione261 quando, al fine di porre
rimedio alla disparità di trattamento per i trasportati a titolo “di cortesia”, ha consentito
sia a costoro, sia alle vittime par ricochet di potersi avvalere del regime di
responsabilità oggettiva delittuale previsto dall’art. 1384, comma 1, “equivalente” 262 a
quello previsto, ma in sede contrattuale (obbligazione di sécurité-résultat), per i
trasportati a titolo oneroso e gratuito. E così ha continuato a ragionare sulla base di
questa “simmetria”, in presenza del principio del non-cumul, quando, suo malgrado, ha
operato lo “chambardement”263 delle obbligazione di sécurité “di mezzi” non soltanto
nei contratti analoghi al trasporto, ma anche in tutti gli altri contratti,264 prevalentemente
atipici, nei quali v’era l’esigenza di assicurare la protezione dei contraenti in maniera
“equivalente” a quanto disposto dall’art. 1382 (in ambito delittuale). Ed ha continuato a
ragionare in funzione di questa “simmetria” quando, nel tentare di porre rimedio alla
disparità di trattamento tra contraente (gravato dallo sfavorevole regime della prova
della faute contractuelle che catterizza l’inexécution dell’obbligazione “di mezzi”) e
terzo (che, invece, poteva beneficiare del regime di responsabilità oggettiva delittuale di
cui all’art. 1384, comma 1) nel caso in cui il danno fosse causato dal “fait des choses”,
ha proposto, sia pure con scarsa fortuna, il regime di responsabilità contrattuale du fait
des choses.265 E continua a ragionare sulla base di questa simmetria, oggi, la dottrina
257
Il «regno» incontrastato della responsabilità delittuale (così, R. Rodière, op. ult. cit., 997, § 3) è sancito
dalla decisione sull’affaire Recullet (Cass. civ., 10 novembre 1884, in «Rec. Sirey», 1885, I, 129, con il
commento di C. Lyon-Caen).
258
Deciso da Cass., I Ch. civ., 1 juillet 1969, in «Rec. Dalloz», 1969, Jur., 640 s.
259
Sulla base del caso “Dame Decharme”: Cass., I Ch. civ., 21 juillet 1970, in «Rec. Dalloz», 1970, Jur.,
767 s.
260
Così, nel “caso Valverde”, Cass., I Ch. civ., 7 mars 1989, in «Gaz. Pal.», 1989, II, Jur., 632 ss., con
nota di G. Paire.
261
Cass., Ch. Mixte, 20 décembre 1968, in «Rec. Dalloz», 1969, Jur., 37.
262
Per una ricerca sulle ulteriori regole “equivalenti” che inducono la giurisprudenza a qualificare la
responsabilità in termini ora delittuali, ora contrattuali, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., pp. 35
ss., 222 ss. e passim.
263
H. Groutel, Vers un chambardement de l’obligation de sécurité dans les contrats?, in «Resp. civ. ass.»,
1989, Chron., n. 16.
264
Per una panoramica dei quali, P. Delebecque, La dispersion des obligations de sécurité dans les
contrats spéciaux, in «Gaz. Pal.», 1997, II, 1184 ss.
265
Cass., I Ch. civ., 17 janvier 1995, in «Rec. Dalloz», 1995, Jur., 350 s., con nota di P. Jourdain.
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allorché, venuto meno tale tentativo, e preoccupata dal deficit di protezione che
l’obbligazione di sécurité “di mezzi” offre rispetto all’art. 1384, comma 1, propone al
legislatore il regime del concorso ispirato all’idea del “trattamento più favorevole” o,
addirittura, la “decontrattualizzazione” delle obbligazioni di sécurité (pur) nella (sola)
ipotesi in cui l’inexécution abbia causato lesioni dell’integrità psico-fisica della persona.
Questa simmetria ha trovato un temperamento, ma anche una
conferma, nella partizione tra “obligations de moyens renforcées” e “obligations de
résultat atténuées”266 caratterizzate, entrambe, da una “présomption de faute”267 a carico
del debitore, suscettibile di prova contraria. La giurisprudenza è ricorsa, spesso
implicitamente, a queste categorie intermedie dagli incerti confini, sia in presenza di
contratti considerati analoghi al trasporto (toboggan acquatici,268 organizzazione di
“passeggiate a cavallo”,269 ad es.), sia per disciplinare rapporti che prescindevano dal
trasferimento della persona nello spazio, svolgendosi, invece, all’interno di stabilimenti,
locali e perimetri conchiusi (piscine,270 piste di pattinaggio,271 parchi zoologici,272 ecc.),
quando ha ritenuto di dover offrire una maggior tutela alla vittima (di quella derivante
dal regime di faute prouvée che è proprio dell’obbligazione “di mezzi”), perché
266
Sul punto, B. Starck, H. Roland et L. Boyer, Droit civil. Les obligations, 2, Contrat, Paris, VI éd.,
1998, 419 ; F. Terré, P. Simler et Y. Lequette, Droit civil. Les obligations, Paris, VI éd., 1996, 452; C.
Larroumet, Droit civil, Tome 3, Les obligations. Le contrat, Paris, IV éd., 1998, 626. Distinguono le
obbligazioni di mezzi in «obligations de moyens renforcées» e in «obligations de moyens allégées», e le
obbligazioni di risultato in «obligations de résultat atténuées» e in «obligations de résultat aggravées», G.
Viney et P. Jourdain, Les conditions, III éd., cit., 516 ss., 519 ss.
267
Testualmente, G. Viney et P. Jourdain, op. ult. cit., 517 e 519.
268
Ad es., App. Montpellier, I Ch. civ., 20 janvier 1992, in «Sem. jur.», 1993, II, Jur., 22125, 372, con
nota di S. Bories. In argomento, M. Feola, Le obbligazioni di sécurité, cit., 257 ss.
269
Il revirement (così, M. Feola, op. ult. cit., 271) rispetto alla mera obbligazione “di mezzi” (Cass., I Ch.
civ., 16 mars 1970, in «Rec. Dalloz», 1970, Jur., 421, con il commento di R. Rodière; sul punto, G.
Cornu, Responsabilité du loueur de chevaux de promenade envers ses clients, in «Rev. trim. dr. civ.»,
1970, 794, e G. Durry, Le loueur de chevaux n’est tenu que d’une obligation de moyens, ivi, 1971, 161) è
deciso da Cass., I Ch. civ., 27 mars 1985, e da Cass., I Ch. civ., 11 mars 1986, in «Rev. trim. dr. civ.»,
1986, 768, con i commenti di J. Huet, Entreprise de promenade équestre: obligation de moyen, mais
appréciée avec sévérité, ivi, 1986, 768 s., e di P. Rémy, Le coup de l’étrier «américain»; distinction du
louage de chevaux et de l’entreprise de promenade à cheval, ivi, 1986, 608 s.
270
Pur senza qualificare l’obbligazione di sécurité come “di mezzi” o “di risultato”, App. Lyon, I Ch., 21
juin 1973, in «Rec. Dalloz», 1973, Inf. rap., 116.
271
La condanna del gestore della pista è pur sempre formalmente collegata alla violazione di
un’obbligazione “di mezzi” consistente nell’«assicurare la sicurezza degli utenti» e nell’«impedire i
giochi e gli esercizi pericolosi» (Cass., I Ch. civ., 8 février 1961, in «Rec. Dalloz», 1961, Jur., 254).
272
Trib. gr. inst. de Moulins, 10 mai 1977, in «Rec. Dalloz», 1978, Inf. rap., 324, con nota di C.
Larroumet. Afferma, in proposito, che «Il fatto dell’incidente è la prova, in re ipsa, dell’inadeguatezza
delle misure di protezione e, quindi, dell’inadempimento dell’obbligazione di sécurité», M. Feola, Le
obbligazioni di sécurité, cit., 282.
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giudicata particolarmente meritevole di protezione (si pensi, ad es., alle ipotesi di
affidamento di minori o di soggetti diversamente abili ai gestori di colonie, di
associazioni e di altre istituzioni analoghe),273 senza dover effettuare esplicitamente un
revirement consistente nel qualificare “di risultato” un’obbligazione che in precedenza
era sempre stata considerata “di mezzi”. Tale soluzione si è talvolta imposta per
rimediare ad una disparità di trattamento, allorché, mentre la Prima Sezione civile della
Cassazione continuava ad applicare a queste ipotesi “le regole della responsabilità
contrattuale, ravvisando, a carico del debitore, un’obbligazione di prudenza e di
diligenza”, la Seconda Sezione faceva beneficiare “il danneggiato minore delle regole
della responsabilità delittuale, considerando le ‘colonie turistiche, i patronati, i diversi
clubs come custodi degli oggetti utilizzati dai bambini’”.274
Le obbligazioni di mezzi “rinforzate”, secondo la dottrina, si
distinguerebbero da quelle di risultato in ordine al diverso oggetto della prova: mentre
per queste la liberazione del debitore dalla responsabilità contrattuale sarebbe limitata
alla “prova positiva della causa del danno, che deve essere estranea all’attività del
debitore”275 (cause étrangère, caso fortuito o forza maggiore), nelle prime la (inversione
della) prova, gravante sul debitore, si caratterizzerebbe in senso negativo, concernendo
l’assenza di faute. La dubbia consistenza teorica di questa partizione, però, è
testimoniata sia da quegli autori che, pur criticando la tendenza a considerare
obbligazioni di risultato (sia pure atténuées) quelle obbligazioni che determinano una
presunzione di faute, hanno preferito includere queste fattispecie nella categoria delle
“obligations de moyens renforcées”;276 sia da quella dottrina che, al contrario, piuttosto
che di obbligazioni di mezzi “rinforzate”, preferisce discorrere di obbligazioni di
273
Per alcune ipotesi cfr., ad es., Cass., I Ch. civ., 21 juin 1977, in «Sem. jur.», 1979, II, Jur., 19066 (I
espèce); Cass., I Ch. civ., 10 juillet 1979, in «Rec. Dalloz», 1980, Inf. rap., 47 s.; Cass., I Ch. civ., 10
février 1993, ivi, 1993, Jur., 605. Afferma che, in molti di questi casi, l’esistenza della faute è dedotta
«dal semplice verificarsi dell’incidente», G. Durry, La responsabilité de ceux qui se chargent des enfants
d’autrui, in «Rev. trim. dr. civ.», 1982, 770. Sul tema v., altresì, Id., La nature de la responsabilité de
l’organisateur d’une colonie de vacances envers les parents qui lui confient leur enfant, ivi, 1968, 713 s.;
P. Jourdain, L’obligation de moyens de l’organisateur de colonie de vacances: obligation de sécurité ou
obligation de surveillance, ivi, 1997, 949.
274
Lo rileva M. Feola, op. ult. cit., 294, sulla scia di F. C(habas), Note a Cass., II Ch. civ., 13 mai 1981, in
«Gaz. Pal.», 1982, I, Pan., 9.
275
C. Larroumet, Droit civil, Tome 3, cit., 626.
276
Cfr., ad es., C. Larroumet, op. loc. ult. cit.
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risultato “attenuate”, identificando, esplicitamente o implicitamente,277 le una con le
altre. Così le obbligazioni di mezzi “rinforzate o aggravate” si vengono a trovare “in
questo pericoloso viaggio, sul versante delle obbligazioni di risultato”.278
Il principio di “equivalenza” tra i regimi di imputazione delle
responsabilità contrattuale e delittuale, che spinge al superamento della tradizionale
partizione imperniata sulla natura delle fonti dell’obbligazione, interessa oggi anche il
diritto italiano che, a maggior ragione rispetto a quello d’oltralpe, professa la regola del
concorso.279 Ma una qualche diversità è ravvisabile, almeno a livello declamatorio, in
ordine alla disciplina dell’inadempimento dell’obbligazione “di mezzi” che, sulla base
del principio di riferibilità o di vicinanza della prova,280 dovrebbe essersi emancipata –
quanto meno in tema di responsabilità degli operatori sanitari281 – dal modello di
responsabilità delittuale per colpa prescritto dall’art. 2043 c.c. Diversamente da quanto
accade nell’esperienza francese, se si eccettuano i pochi casi nei quali le Corti hanno
individuato un “contratto di protezione” o una responsabilità da “contatto sociale” più o
meno qualificato,282 nella quasi totalità delle ipotesi nelle quali pur v’è un contratto o
una relazione giuridicamente rilevante tra le parti, la giurisprudenza, piuttosto che
applicare la disciplina in tema di responsabilità contrattuale, preferisce applicare una
regola di responsabilità delittuale (l’art. 2051 c.c., soprattutto) che prescrive un regime
Un’esplicita identificazione delle due categorie di obbligazioni è sostenuta da B. Starck, H. Roland et
L. Boyer, op. loc. ult. cit. Anche G. Viney et P. Jourdain, op. ult. cit., 516 s. e 519 s., pur trattando le due
categorie di obbligazioni separatamente, non sembrano indicare elementi sufficienti a giustificare la
partizione.
278
F. Terré, P. Simler et Y. Lequette, op. ult. cit., 452.
279
Sul punto, l’indagine di P. G. Monateri, Cumulo di responsabilità contrattuale e extracontrattuale
(Analisi comparata di un problema), Padova, 1989, 79 ss. e passim.
280
Enunciato, com’è noto, da Cass., Sez. Un. Civ., 30 ottobre 2001, n. 13533, in «Danno e resp.»,
2001,1567 ss., con il commento di V. Mariconda, Inadempimento e onere della prova: le Sezioni Unite
compongono un contrasto e ne aprono un altro. Su tale decisione v., altresì, G. Villa, Onere della prova,
inadempimento e criteri di razionalità economica, in «Riv. dir. civ.», 2002, I, 707 ss.; G. Visintini, La
Suprema Corte interviene a dirimere un contrasto tra massime (in materia di inadempimento e onere
probatorio a carico del creditore vittima dell’inadempimento), in «Contr. e impr.», 2003, 903; P.
Laghezza, Inadempimenti ed onere della prova: le Sezioni Unite e la difficile arte del rammendo, in
«Foro it.», 2002, I, c. 769 ss.
281
Per l’accoglimento di tale principio in materia di responsabilità dei sanitari, Cass., Sez. Un. Civ., 11
gennaio 2008, n. 577, in «Danno e resp.», 2008, 790. Tuttavia, sottolineano le diversità di disciplina che
caratterizzano la responsabilità dei professionisti legali, R. Favale, La responsabilità civile del
professionista forense, in Nuova Enciclopedia, Collana diretta da P. Cendon, II ed. con la collaborazione
di M.P. Mantovani, Padova, 2011, 182 ss.; L. Nocco, La responsabilità civile dell’avvocato, in «Danno e
resp.», 2009, 302 ss.; M. Feola, La responsabilità dei professionisti legali, ivi, 2014, 994 ss.
282
Per un’indagine sulla giurisprudenza in materia, S. Faillace, La responsabilità da contatto sociale,
Padova, 2004, 21 ss., 69 ss.
277
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di responsabilità oggettiva.283 Ciò è accaduto, ad es., allorché la Cassazione ha deciso
per le responsabilità del gestore di una piscina per i danni patiti da una minore che, nel
tuffarsi, aveva impattato il fondale;284 di un titolare di un maneggio per i danni subiti da
un cliente che, nel corso di una passeggiata organizzata, si era lasciato cadere dal
cavallo allorché lo stesso, spaventato dalla presenza di un animale sul percorso, era
partito al galoppo;285 di una società che gestiva un’autostrada (a pagamento), per la
morte di un conducente di un veicolo che, uscito di strada per cause non accertate,
aveva terminato la sua corsa in un raccoglitore dell’acqua piovana; 286 di gestori di
strutture alberghiere per i danni subiti dai clienti che erano inciampati nel percorrere una
scala di marmo,287 che erano scivolati nella sala da pranzo a causa della presenza sul
pavimento di residui di cibo,288 che erano caduti in una vasca da bagno predisposta ad
essere impiegata anche come doccia, ma senza essere dotata degli indispensabili presidi
antiscivolo e di sostegno.289 Eguale sorte ha riguardato il custode-albergatore per i gravi
danni subiti da una studentessa che, durante una gita scolastica, dopo aver superato il
parapetto del proprio balcone e avuto accesso al lastrico solare, era caduta la suolo.290
La scelta per una regola di responsabilità oggettiva extracontrattuale è stata confermata
anche nelle ipotesi di danni “da custodia” della Pubblica Amministrazione.291 Ma la
Cassazione, condizionata dalla tradizione colpevolista della responsabilità civile, ha
talvolta contaminato in senso soggettivo l’interpretazione dell’art. 2051 c.c.,292 secondo
Afferma che la responsabilità del custode disciplinata dall’art. 2051 c.c. costituisce un’ipotesi di
responsabilità oggettiva e non di colpa presunta, in quanto il danneggiato, per ottenere il risarcimento da
parte del custode, deve dimostrare l’esistenza del danno e la sua derivazione causale dalla cosa, rilevando,
ai fini dell’esonero dalla responsabilità, non la diligenza nella custodia, ma soltanto che il danno è
derivato dal caso fortuito o dalla condotta del danneggiato, Cass., Sez. III, 19 gennaio 2010, n. 713, in
«Danno e resp.», 2010, 921 ss.
284
Cass., Sez. III, 2 marzo 2011, n. 5086, in «Giust. civ.», 2011, I, 1715 ss.
285
Cass., Sez. III, 21 gennaio 2010, n. 979, in «Danno e resp.», 2010, 913 s., commentata da P. Santoro,
“Mala bestia è questa mia”: sulla responsabilità oggettiva del titolare di un maneggio.
286
Cass., Sez. III, 2 febbraio 2010, n. 2360, in «Danno e resp.», 2010, 555 ss., con nota di P. Pardolesi,
Sul “dinamismo” connaturato alla cosa nella responsabilità da custodia.
287
Cass., Sez. III, 9 novembre 2005, n. 21684, in «Foro it.», 2006, I, c. 1807 ss.
288
Cass., Sez. III, 4 agosto 2005, n. 16373, in «Resp. civ. prev.», 2006, 720, con nota di D. Calcaterra.
289
Cass., Sez. III, 28 novembre 2007, n. 24739, in «Danno e resp.», 2008, 782, con il commento di D.
Boschi, Alcune considerazioni circa l’applicazione dell’art. 2051 c.c. al c.d. danno da caduta.
290
Cass., Sez. III, 8 febbraio 2012, n. 1769, in «Danno e resp.», 2012, 755 ss., con il commento di A.P.
Benedetti, La caduta di un alunno durante gita scolastica: chi risponde?
291
Cfr., ad es., Cass., 9 maggio 2012, n. 7037, in «Danno e resp.», 2012, 799; Cass., 18 ottobre 2011, n.
21508, ivi, 2012, 614, con il commento di S. Scalzini, Danno da cose in custodia e manutenzione stradale
fra colpa e responsabilità oggettiva: un indifferibile chiarimento.
292
Ad es., Cass., Sez. III, 4 ottobre 2013, n. 22684, in «Danno e resp.», 2014, 616 ss., con nota di M.
Torresani, La responsabilità oggettiva da cose in custodia per dissesti stradali; Cass., 24 febbraio 2011,
n. 4484, in «Foro it.», 2011, I, c. 1082, con nota di A. Palmieri; Cass., 24 febbraio 2011, n. 4495, in
283
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una prospettiva che pare difficilmente compatibile con la struttura e con la storia di
questo testo.
Ecco che, allora, una ricostruzione dogmatica unitaria della
“obbligazione come rapporto complesso” cede il passo, in Germania, in Francia così
come in Italia, alla tradizione giuridica ed alle scelte sistemologiche profonde di ciascun
diritto. Una determinata esperienza giuridica non può recepire, senza inserirlo
armonicamente nel proprio sistema, un modello “dato” che è stato elaborato in presenza
di peculiari esigenze che sono state avvertite in una realtà giuridica comunque diversa
da quella che caratterizza il paese recipiente. Ogni trapianto giuridico implica, cioè, un
necessario “processo di assimilazione”, in conseguenza “della diversità del contesto nel
quale la figura originaria viene inevitabilmente a trovarsi”.293
Questa considerazione, però, potrebbe sortire, con riferimento al tema
affrontato, una pluralità di svolgimenti che sono tra loro divergenti. Da un lato, il
“diritto giurisprudenziale italiano” potrebbe sentirsi “non condizionato da quella riforma
del diritto delle obbligazioni che in Germania può suggerire di aver congelato” la
categoria dell’obbligazione senza prestazione “entro gli arbitrariamente limitati confini
della responsabilità precontrattuale”.294 Dall’altro, in presenza di una tendenza
maggioritaria a considerare rilevanti i soli obblighi di protezione funzionalmente
connessi alla prestazione, la tematica del contatto sociale qualificato e quella
dell’obbligazione senza prestazione si potrebbero progressivamente “eclissare” dalla
scena del nostro diritto civile, il quale continua a inquadrare,295 così come in Francia e
«Arch. circ.», 2011, 695; Cass., 3 aprile 2009, n. 8157, in «Nuova giur. civ. comm.», 2009, I, 1025; Cass.,
25 luglio 2008, n. 20427, in «Foro it.», 2008, I, c. 3461.
293
Così, C. Castronovo, Eclissi del diritto civile, cit., 150.
294
C. Castronovo, op. ult. cit., 148.
295
Dopo aver prospettato un mutamento di orientamento, affermando che la responsabilità precontrattuale
rappresenterebbe una fattispecie normativamente qualificata di contatto sociale, poiché il legislatore, nel
prevedere l’obbligo di buona fede, ha costituito un rapporto giuridico obbligatorio nel corso delle
trattative (Cass., I Sez. civ., 20 dicembre 2011, n. 27648, in «Europa e dir. priv.», 2012, 1240 ss., ivi il
commento di C. Castronovo, La Cassazione supera se stessa e rivede la responsabilità precontrattuale),
la Cassazione sembra essere ritornata sulle sue tradizionali posizioni (ad es., Cass., Sez. II, 10 gennaio
2013, n. 477, in «Danno e resp.», 2013, 755, con nota di F. Della Negra, La natura della responsabilità
precontrattuale: la quiete dopo la tempesta?).
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nel
diritto
europeo,296
la
stessa
responsabilità
precontrattuale
in
ambito
extracontrattuale.297
Quindi, piuttosto che continuare a interrogarsi sulle mobili frontiere
della responsabilità civile, potrebbe essere auspicabile il superamento di una partizione
che è ispirata alle fonti dell’obbligazione, prevedendo unitari regimi di responsabilità
per specifiche attività, a prescindere dalla qualificazione in termini di responsabilità
delittuale o contrattuale. In alcuni casi la tendenza alla unificazione dei regimi della
responsabilità civile delittuale e contrattuale è stata sancita dallo stesso legislatore. La
disciplina dei danni da circolazione dei veicoli a motore e quella dei danni cagionati da
prodotti “difettosi” dimostrano il superamento della partizione, sulla base di un unitario
modello di imputazione della responsabilità. Al trasportato a titolo di cortesia si applica,
finalmente, il medesimo regime di responsabilità che concerne i trasportati a titolo
oneroso o gratuito. Il risarcimento del danno cagionato da un prodotto difettoso può
essere ottenuto sulla base delle medesime “conditions” da qualsiasi danneggiato, a
prescindere dalla qualifica di contraente o di terzo utilizzatore. Ad un eguale esito si
potrebbe pervenire, ad esempio, per le responsabilità professionali, una volta introdotto
l’obbligo di assicurazione, prevedendo una normativa unitaria, a prescindere dalla
circostanza che ci si trovi in presenza di una prestazione senza obbligazione o di
informazioni destinate a soggetti determinati o a “tutti” i consociati. Un importante
risultato in tal senso è stato raggiunto, ancora una volta, dal diritto francese. A
differenza della disciplina italiana, che ha introdotto una forma anomala di
contrattazione obbligatoria asimmetrica, risultando obbligato il solo professionista
sanitario, senza che un correlato obbligo a contrarre sussistesse anche a carico delle
imprese di assicurazione,298 il legislatore francese, nel collegare il regime unitario di
296
Corte Giust. U.E., 17 settembre 2002, C. 334/00, in «Resp. civ. prev.», 2004, 400 ss., con nota di L.
Vedovato, Competenza giurisdizionale e natura aquiliana della responsabilità precontrattuale: il
responso della Corte di Giustizia e gli oblii della Corte di Cassazione.
297
Basti citare la più autorevole dottrina: R. Sacco, in R. Sacco e G. De Nova, Il contratto, in Tratt. di
Dir. Civ. diretto da R. Sacco, t. II, Torino, III ed., 2004, 247 ss.
298
Non a caso, successivamente all’entrata in vigore della legge Balduzzi, la mancata previsione di un
obbligo legale a contrarre per le imprese assicurative ha richiesto il deposito di successivi interventi
normativi (il D.d.l. n. 1581/2013, ad es., all’art. 4, dispone: «Onde evitare che le imprese assicuratrici si
rifiutino di contrarre per il rischio troppo elevato o difficilmente calcolabile, tutte le compagnie operanti
sul territorio italiano sono tenute a fornire coperture anche in ambito sanitario»; l’art. 2 del D.d.l. n.
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responsabilità per faute (art. L. 1142-1 I Code santé publ.) a modelli di assicurazione
obbligatoria e di sicurezza sociale (gravante sulla solidarité nationale), ha provveduto a
unificare il sistema di responsabilità civile in materia di sanità pubblica e privata, sulla
base di uno “statuto” autonomo e speciale che ha il suo fondamento nel Code de la
santé publique e che ha consentito di superare la tradizionale partizione tra faute
contractuelle e faute délictuelle che, ormai, “non aveva più alcun significato”.299
In attesa di eventuali interventi legislativi diretti a disporre
l’unificazione dei regimi delle responsabilità nei settori di maggiore rilevanza sociale, la
storia dimostra come, nella gran parte dei casi, la scelta per il rimedio contrattuale o per
quello delittuale è stata effettuata dalle Corti, in sistemi improntati sia al regime del
concorso, sia a quello del non-cumul, per assicurare alla vittima il risarcimento del
danno sulla base del più favorevole regime di imputazione della responsabilità. La
stessa “scoperta” giurisprudenziale del principio del non-cumul300 ha avuto la funzione
di rafforzare la tutela contrattuale della vittima, impedendo che essa, garantita (fin dal
1911-1913) dall’esistenza di un’obbligazione di sécurité di risultato, potesse vedersi
affievolita la sua tutela con il richiamo alla regola di responsabilità extracontrattuale per
colpa, in un periodo in cui sarebbe stata storicamente impraticabile l’applicazione
dell’art. 1384, comma 1, Code civil.301 La riprova è che l’odierna dottrina francese, in
presenza dello snaturamento dell’obbligazione di sécurité dovuto alla proliferazione
giurisprudenziale delle obbligazioni “di mezzi”, proprio al fine di ristabilire la tutela
risarcitoria originaria della vittima, inizia a considerare pernicioso, nella specie, il
principio del non-cumul e a proporre, in via di riforma, il regime del concorso o la
“decontrattualizzazione” dell’obbligazione di sécurité (di mezzi) ogni qualvolta risulti
1312/2013 prevede, inoltre, l’obbligo di rinnovo contrattuale per le imprese assicuratrici, stabilendo
normativamente l’incremento del premio annuo).
299
Afferma, infatti, che non ci si può non «felicitare per questa scelta unificatrice», anche perché, nella
realtà, «la distinction entre la faute délictuelle et contractuelle n’avait plus guère de signification dès lors
que la jurisprudence définissait de plus en plus les fautes par référence au code de déontologie médicale»,
scelta unificatrice che permette «aussi au juge administratif e au juge judiciaire de statuer désormais sur
un même fondement: la loi du 4 mars 2002», P. Sargos, Deux arrêts «historiques» en matière de
responsabilité médicale générale et de responsabilité particulière liée au maquement d’un médecin à son
devoir d’information, in «Rec. Dalloz», 2010, 1523. Sui rapporti tra i sistemi assicurativo, di
responsabilità civile e di sicurezza sociale, cfr. Ph. Malaurie, L. Aynès e Ph. Stoffel-Munck, Les
obligations, Paris, 2013, VI éd., 2013, 131 ss.
300
Cass., 11 janvier 1922, cit., 279 s.
301
In questi termini, M. Feola, L’obbligazione come rapporto complesso, cit., § 18.
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applicabile la regola di responsabilità oggettiva delittuale di cui all’art. 1384, comma 1,
Code civil.
In questi ed altri casi è la giurisprudenza che, sulla base delle
indicazioni della dottrina, può continuare a procedere, così come accaduto in Francia
(pur in presenza della regola del non-cumul), alla progressiva elaborazione di un “diritto
comune”302 delle responsabilità. Tale risultato può riguardare soprattutto la riparazione
dei cc.dd. danni “consequenziali” cagionati nell’esecuzione della prestazione, la quale è
caratterizzata da una funzione propriamente risarcitorio-conservativa, che si vuole
distinta dalla finalità acquisitiva, modificativo/incrementativa dell’altrui sfera
patrimoniale303
propria
della
responsabilità
conseguente
all’inattuazione
del
regolamento contrattuale in sé. L’individuazione, da parte della Corti (francesi, ma
anche italiane e tedesche), di una disciplina “simmetrica” ed “equivalente” in tema di
responsabilità delittuale e contrattuale, fondata ora sulla prova della faute, ora su una
disciplina di responsabilità oggettiva, consente di individuare il problema primario e del
tutto preminente (sulle altre “conditions”) negli standard di imputazione della
responsabilità e nella tendenza alla loro unificazione. Piuttosto che continuare a
suddividere il campo della responsabilità civile in due modelli, rigorosamente non
comunicanti, ispirati al dato formale delle fonti dell’obbligazione, può farsi strada l’idea
che in entrambi gli ambiti la partizione ordinante sia quella tra responsabilità per colpa e
responsabilità oggettiva, nella consapevolezza che l’esistenza di sistemi intermedi
caratterizzati da “presunzioni di responsabilità” rappresentino “correttivi” temporanei
(introdotti dalla giurisprudenza) nel corso di un itinerario che conduce, quanto meno in
alcune branche del diritto, e al precipuo scopo di tutelare interessi particolarmente
meritevoli di protezione, dalla responsabilità individuale per colpa a regimi di
responsabilità (oggettiva) fondati sull’assicurazione obbligatoria di responsabilità e
In argomento, sia consentito rinviare ad A. Procida Mirabelli di Lauro, Hacia un “Derecho Común” de
la Responsabilidad Civil, in La Responsabilidad Civil, a cura di C. Fernández Sessarego, Volumen III,
Lima (Perù), 2010, 41-60. Lo scritto è stato pubblicato anche in Italia con il titolo Verso un “diritto
comune” della responsabilità civile, in A. Procida Mirabelli di Lauro e M. Feola, La responsabilità civile,
Torino, 2008, 1 ss. Una significativa adesione a questa idea si è avuta nel diritto francese: intitola a «Le
droit commun de la responsabilité civile» la “Première partie” del suo trattato, M. Bacache-Gibeili, Les
obligations, cit., 133.
303
Così, testualmente, M. Barcellona. Trattato, cit., 97.
302
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190
sulla social security.304
Secondo un’idea (esposta in A. Procida Mirabelli di Lauro, Dalla responsabilità civile alla sicurezza
sociale, Napoli, 1992, passim; Id., La riparazione dei danni alla persona, Camerino-Napoli, 1993, 12-99),
che poi è stata occasione di ulteriore dibattito (Id., I danni alla persona tra responsabilità civile e
sicurezza sociale, relazione tenuta al Convegno «La responsabilità civile fra presente e futuro», Perugia,
30-31 maggio 1997, in questa «Rivista», 1998, 763-828, e in Studi in onore di P. Rescigno, vol. V,
Milano, 1998, 345-414; Id., I danni alla persona tra responsabilità civile e sicurezza sociale. A proposito
del modello neozelandese, versione italiana della relazione tenuta in occasione del Convegno
Internazionale «Personal Injury Beyond National Experiences», Pisa, Scuola Superiore S. Anna, 30
ottobre 1997, in «Rass. dir. civ.», 1998, 599-647; Id., Danno alla persona nel modello neozelandese tra
responsabilità civile e sicurezza sociale, in «Danno e resp.», 1998, 323-329).
304
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PARECER
LIBERDADES COMUNICATIVAS E “DIREITO AO ESQUECIMENTO” NA
ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
Daniel Sarmento
Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ.
Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ.
Visiting Scholar da Yale Law School.
Sumário
1. A Consulta – 2. Notas Preliminares – 3. Direito à Informação, História e Memória;
3.1. Direito à Informação; 3.2. História, Interesse Público e Esquecimento; 3.3. O
Direito à Memória e Esquecimento – 4. As Liberdades de Expressão e Imprensa como
Direitos Preferenciais e o “Direito ao Esquecimento” – 5. Liberdades Comunicativas v.
Direito ao Esquecimento na Jurisdição: breves notas sobre a jurisprudência nacional e
comparada – 6. Liberdades Comunicativas, Responsabilidade Civil e Direito ao
Esquecimento – 7. Sobra algum espaço para o “Direito ao Esquecimento” na ordem
constitucional brasileira? O controle de dados pessoais que não envolvam interesse
público – 8. Resposta aos Quesitos.
1. A consulta
A empresa Globo Comunicação e Participações S/A, por intermédio
do ilustre advogado e professor Gustavo Binenbojm, honrou-me com consulta acerca da
constitucionalidade da invocação do “direito ao esquecimento” para imposição de
restrições ao direito de acesso à informação de interesse público e às liberdades de
expressão e de imprensa, bem como para a responsabilização civil de veículos de
imprensa.
A solicitação tem como pano de fundo as decisões proferidas pela 4ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais nº 1.334.097 (“caso
Chacina da Candelária”) e nº 1.335.153 (“caso Aída Curi”), ambos relatados pelo
Ministro Luis Felipe Salomão.
No primeiro caso, o STJ condenou a Consulente a pagar indenização,
a título de danos morais, a pessoa que fora denunciada e absolvida pelo tribunal do júri,
por suposta participação na “Chacina da Candelária” – trágico caso de homicídio de
menores ocorrido em 1993, na cidade do Rio de Janeiro. Na ação, pleiteara-se a
condenação da Consulente por ter veiculado, no programa televisivo “Linha Direta –
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Justiça”, reportagem que tratou do referido crime, utilizando-se, contra a vontade do
autor, do seu nome e imagem. A decisão do STJ reconheceu a importância histórica da
“Chacina da Candelária”, e destacou que, de acordo com a avaliação dos fatos feita
pelas instâncias ordinárias, “a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade”. Nada
obstante, embasando-se em suposta precedência dos direitos da personalidade sobre as
liberdades comunicativas, o acórdão afirmou que a passagem do tempo teria tornado
ilícita a veiculação da matéria sobre o crime, tendo em vista o “direito ao esquecimento”
dos envolvidos, o qual conceituou como “um direito de não ser lembrado contra a sua
vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores”.
Já no segundo caso, foi denegado o pedido de indenização por danos
morais formulado pelos irmãos de Aída Curi contra a Consulente. O fundamento
principal da ação foi a transmissão, também pelo programa televisivo “Linha DiretaJustiça”, de matéria a propósito do rumoroso homicídio de Aída Curi, ocorrido em
1958. Nesse julgamento, o STJ afirmou, mais uma vez, que o direito ao esquecimento
pode tornar ilícita a divulgação pela imprensa de fatos pretéritos que sejam
embaraçosos ou dolorosos, e que a sua violação pode ensejar a condenação por danos
morais. No caso concreto, contudo, considerou que seria impossível narrar o crime, de
inequívoca importância histórica, sem fazer alusão à sua vítima. Diante desta
circunstância, o Tribunal atribuiu, no equacionamento do caso, peso superior à
liberdade de imprensa em relação ao direito ao esquecimento, refutando, com isso, o
pleito indenizatório.
Foram interpostos recursos contra ambas as decisões para o Supremo
Tribunal Federal, distribuídos, respectivamente, aos Ministros Celso de Mello (caso
“Chacina da Candelária, Agravo em Recurso Extraordinário nº 789.246) e Dias Toffoli
(caso “Aída Curi”, Agravo em Recurso Extraordinário nº 833.248). Nesse último
processo, já houve, inclusive, o reconhecimento pela Suprema Corte da repercussão
geral do recurso extraordinário.
O objetivo central deste parecer não é debater as especificidades
fáticas e jurídicas dos referidos casos, mas examinar a questão da tensão entre, de um
lado, as liberdades de informação, imprensa e expressão, e, do outro, o assim chamado
“direito ao esquecimento”. Para fazê-lo, o parecer se orientará pelos quesitos abaixo,
formulados pela Consulente:
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Existe um direito fundamental do público de acesso à
informação sobre fatos ocorridos no passado, ou o transcurso do
tempo acarreta o perecimento deste direito?
(b) É compatível com a tutela constitucional das liberdades de
expressão e de imprensa a invocação do “direito ao
esquecimento” para impedir a divulgação, discussão ou
encenação de fatos de interesse público ocorridos no passado,
em qualquer veículo ou plataforma, cuja recordação seja
embaraçosa, prejudicial ou dolorosa para alguém?
(c) É cabível a responsabilização civil de veículos da
imprensa em razão da divulgação, discussão ou encenação de
fatos de interesse público ocorridos no passado?
(d) Seria compatível com a Constituição a condenação da
Consulente à reparação de danos, fundada no “direito ao
esquecimento”, pela exibição, no programa televisivo “LinhaDireta Justiça”, de matérias sobre os casos “Chacina da
Candelária” e “Aída Curi”?
2. Notas preliminares
O escritor Milan Kundera, em obra literária, narrou um acontecimento
real que evidencia os perigos da imposição do esquecimento. Em 1948, Klement
Gottwald, dirigente do partido comunista tcheco, da sacada de um palácio proferiu um
discurso para milhares de pessoas. Ao seu lado estava Clementis, seu colega de partido.
A cena foi registrada em fotografia, que o departamento de propaganda estatal divulgou.
Quatro anos mais tarde, Clementis caiu em desgraça no partido e foi acusado de traição.
O Estado providenciou então o completo desaparecimento de Clementis: ele não apenas
foi morto, como também apagado da História e até das fotografias. “Desde então,
Gottwald está sozinho na sacada. No lugar em que estava Clementis, não há mais nada,
a não ser a parede vazia do palácio”.305
305
Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 09.
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A imposição do esquecimento tem sido um instrumento de
manipulação da memória coletiva de que se valem os regimes totalitários em favor dos
seus projetos de poder. George Orwell captou o artifício na sua obra-prima 1984,306 em
que narra não só a vigilância ubíqua e permanente do Big Brother sobre as pessoas,
como também as medidas utilizadas para apagamento e falsificação da história e da
memória. Um dos lemas seguidos pelos líderes do fictício Estado de Oceania era:
“Aquele que controla o passado, controla o futuro. Aquele que controla o presente,
controla o passado”.
Parecem evidentes os riscos de autoritarismo envolvidos na atribuição
a agentes estatais – ainda que juízes – do poder de definirem o que pode e o que não
pode ser recordado pela sociedade. O reconhecimento de um suposto direito de não ser
lembrado, por fatos desabonadores ou desagradáveis do passado, se afigura francamente
incompatível com um sistema constitucional democrático, como o brasileiro, que
valoriza tanto as liberdades de informação, expressão e imprensa, preza a História e
cultiva a memória coletiva. Trata-se da “censura no retrovisor”, na síntese ferina e
precisa de Gustavo Binenbojm.307
Pior: diante da cultura censória que ainda viceja no Poder Judiciário
brasileiro308 – à revelia da Constituição e da firme jurisprudência do STF –, e da forte
assimetria que caracteriza as nossas relações sociais, o “direito ao esquecimento” tem
tudo para se transformar no remédio jurídico para políticos, autoridades públicas e
poderosos de todo tipo “limparem a sua ficha”, apagando registros de episódios pouco
edificantes ou impondo mordaças aos críticos e meios de comunicação.
306
George Orwell. 1984. Trad. Heloísa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
307
Gustavo Binenbojm. “Direito ao esquecimento: a censura no retrovisor”, 2014. Acessível em
www.jota.info/direito-ao-esquecimento-censura-retrovisor.
308
Esta cultura tem sido observada e criticada em diversos votos e decisões do Min. Celso de Mello,
como quando observou: “o poder geral de cautela tende, hoje, anomalamente, a traduzir o novo nome da
censura”.(Rcl 15.243, AgReg, Rel. Min. Celso de Mello). Veja-se também, a propósito, Eduardo
Mendonça. “É permitido proibir, muito e sem critério”. Acessível em www.jota.info/constituicao-esociedade-6.
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É
perfeitamente
compreensível
que
as
pessoas
desejem
o
esquecimento dos seus erros passados ou dos episódios embaraçosos em que se
envolveram. Porém, nem todo desejo pode ser legitimamente convertido em direito
fundamental. Praticamente todas as pessoas querem ser correspondidas em seus amores,
e seriam provavelmente mais felizes e realizadas se isso lhes fosse assegurado. Nem por
isso, se pode afirmar a existência de um direito fundamental à “reciprocidade no amor”.
Nada obstante, é possível reconhecer um campo residual para o
“direito ao esquecimento” – embora esta denominação não seja lá muito adequada –
como uma manifestação específica do direito à proteção de dados pessoais, em casos
que não envolvam interesse público. Começando pelo fim, são estas, em apertada
síntese, as principais ideias que o parecer pretende desenvolver.
3. Direito à informação, história e memória
3.1. Direito à informação
Nossa época é chamada por alguns pensadores de Era da
Informação,309 tal a importância que esta assumiu na vida contemporânea. No atual
cenário, marcado pela globalização, por grandes avanços tecnológicos e pela economia
pós-industrial, a informação se produz e propaga com velocidade cada vez maior, e ela
se converteu no instrumento mais importante para o exercício e controle do poder,
acesso aos recursos materiais e imateriais socialmente valorizados e desenvolvimento
da maior parte das atividades humanas. Neste contexto, o direito à informação,
positivado pela Constituição no art. 5º, incisos XIV e XXXIII, e 220, § 1º, assume um
relevo extraordinário.
309
Cf. Manuel Castells. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, 2 v.. Trad. Klauss Brandini
Gehardt. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
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196
Já se disse que “a informação é o oxigênio da democracia”.310 O
acesso à informação é essencial para que as pessoas possam participar de modo
consciente da vida pública e fiscalizar os governantes e detentores de poder social. Não
é exagero afirmar que o controle do poder tem no direito à informação o seu
instrumento mais poderoso. A transparência proporcionada pelo acesso à informação é
o melhor antídoto para a corrupção, para as violações de direitos humanos, para a
ineficiência governamental. Isto porque, como já afirmava há mais de cem anos o juiz
da Suprema Corte norte-americana Louis Brandeis, “a luz solar é o melhor dos
desinfetantes”.311
Não é por outra razão que os regimes autoritários têm ojeriza à
divulgação de informações, buscando censurar a imprensa e criar uma redoma de sigilo
sobre as suas atividades. Já nas democracias deve ocorrer o oposto. Como salientou
Bobbio, “a opacidade do poder é a negação da democracia”,312 que pode ser concebida
como “o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público,
sob o controle da opinião pública”.313
O direito à informação é também essencial para o livre
desenvolvimento da personalidade humana,314 pois contribui para que cada indivíduo
possa formar as suas preferências e convicções sobre os temas mais variados e fazer
escolhas conscientes em suas vidas particulares. Ademais, tal direito opera como
pressuposto para o exercício eficaz de todos os demais, pois habilita o cidadão a
310
A frase foi cunhada pela ONG internacional Article 19, voltada à defesa das liberdades de expressão e
informação.
311
Louis Brandeis. “What Publicity Can Do”. Harpers’s Weekly, 20/12/1913.
312
Norberto Bobbio. “O Poder Invisível”. In: As Ideologias e o Poder em Crise. Trad. José Ferreira.
Brasília: UnB, 1990, p. 211.
313
Idem, ibidem, p. 209.
314
Cf. Wilson Steinmetz. “Art. 5º, XIV”. In: J. J Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo
Wolfgang Sarlet e Lênio Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013, p. 301; Edilsom Farias. Liberdade de Expressão e Comunicação: teoria e
proteção constitucional. São Paulo: RT, 2004, p. 90.
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reivindicá-los melhor, fortalecendo o controle social sobre as políticas públicas que
visam a promovê-los.315
O direito à informação desdobra-se em três diferentes dimensões:316 o
direito de informar, que é uma faceta das liberdades de expressão e de imprensa; o
direito de se informar, também conhecido como direito de acesso à informação, que
envolve a faculdade de buscar informações por todos os meios lícitos; e o direito de ser
informado, que é o direito da coletividade de receber informações do Estado e dos
meios de comunicação sobre temas de interesse público.
A doutrina distingue o direito de informar da liberdade de expressão
stricto sensu.317 O primeiro diz respeito à comunicação de fatos, enquanto a segunda
está relacionada à manifestação do pensamento, de ideias, juízos de valor, sentimentos e
obras artísticas e literárias.318 Dessa distinção se extrai, por vezes, uma diferenciação
quanto aos respectivos regimes jurídicos: o exercício do direito de informar pressuporia
o cumprimento do requisito da veracidade,319 absolutamente impertinente no campo da
liberdade de expressão stricto sensu.320 Tal distinção, todavia, deve ser vista cum grano
salis. Em primeiro lugar, porque, no mais das vezes, informação e opinião se imbricam
e amalgamam, como tende a ocorrer em reportagens jornalísticas, biografias, livros
Cf. Ana Paula de Barcellos. “Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle de Políticas
Públicas”. Revista Diálogo Jurídico, nº 15, 2007.
316
Cf. Jonatas E. M. Machado. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 472-486; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol I. 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 573.
317
Ele está englobado na liberdade de expressão lato sensu, concebida como um “direito-mãe” de todas
as liberdades comunicativas.
318
Cf. Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. Direito à Informação e Liberdade de Expressão.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 25; Guilherme Döring Cunha Pereira. Liberdade e Responsabilidade
dos Meios de Comunicação. São Paulo: RT, 2002, p. 54.
319
A exigência de veracidade da informação quanto aos fatos ensejou decisões importantes do Tribunal
Constitucional alemão, como o caso da Negação do Holocausto, em que se considerou válida a proibição
de realização de um congresso em que seria discutida a inexistência do trágico evento histórico, sob o
argumento de que esta negação não configurava manifestação de uma opinião, mas a afirmação de um
fato, e que as afirmações inverídicas sobre fatos, por não contribuírem para a formação da opinião
pública, não seriam protegidas pela Constituição (90 BVerfGE 241 (1994)).
320
Na jurisprudência constitucional norte-americana, é canônica a afirmação feita pela Suprema Corte no
caso Gertz v. Robert Welch Inc.: “Sob a Primeira Emenda, não existe nada como uma falsa ideia. Não
importa o quão perniciosa possa ser uma opinião, nós dependemos para a sua correção não da
consciência de juízes ou jurados, mas da competição com outras ideias”. 418 U.S. 323 (1974).
315
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históricos etc. Ademais, do ponto de vista epistemológico, quem transmite uma
informação necessariamente o faz a partir dos seus pontos de vista e perspectivas. Como
assinalou Luís Roberto Barroso, “a comunicação de fatos nunca é uma atividade
plenamente neutra”,321 pois sempre envolve um elemento valorativo da parte de quem a
realiza.
A exigência da veracidade da informação também deve ser vista com
cautela, sob pena de se chancelar a imposição de uma “verdade” oficial inquestionável
sobre acontecimentos controvertidos, bloqueando-se o desenvolvimento na esfera
pública de debates sobre a ocorrência, contornos e circunstâncias de fatos relevantes,
em prejuízo à livre formação da opinião pública. Daí porque, o dever de veracidade não
pode significar a obrigação de só divulgar fatos incontroversos, nem tampouco importa
na responsabilidade incondicional dos que transmitirem informações porventura
incorretas. Tal dever, na verdade, se esgota na exigência de lealdade e diligência dos
que comunicam informações, que não podem difundir fatos que saibam inverídicos,
nem fazê-lo sem qualquer esforço para apurar a sua veracidade.322 Em outras palavras, a
“verdade” em questão é subjetiva – quem comunicou os fatos acreditava que fossem
verídicos, depois de apurá-los com a devida cautela – e não objetiva.323
Com grande frequência, o direito à informação vem associado às
liberdades de expressão e de imprensa. É o que se deu, por exemplo, no caso em que o
Luís Roberto Barroso. “Liberdade de Expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos
fundamentais e critérios de ponderação”. In: Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 103. No mesmo sentido, Jónatas E. M. Machado consignou que “do ponto de vista
teorético-cognitivo, é há muito dada como assente a impossibilidade de conhecimento dos factos
totalmente impermeável a valorações subjetivas”. (Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais
da Esfera Pública no Sistema Social. Op. cit.,p. 425).
322
Nesta linha, registrou Luís Roberto Barroso: “Assim, o requisito da verdade deve ser compreendido do
ponto de vista subjetivo, equiparando-se à diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma
séria os fatos que pretende tornar públicos”. (“Liberdade de Expressão versus direitos da personalidade.
Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação”. Op. cit., pp. 110-111)
323
Cf. Edilsom Farias. Liberdade de Expressão e Comunicacão. Op. cit., pp. 90-92. Nesta linha, decidiu o
Tribunal Constitucional da Espanha: “La comunicación que la Constitución protege (...) es la que
transmita información veraz, pero de ello no se sigue que quede extramuros del ámbito garantizado la
información cuya plena adecuación a los hechos no se ha evidenciado en el proceso. Cuando la
Constitución requiere que sea veraz, no está tanto privando de protección las informaciones que puedan
resultar erróneas (...) sino estableciendo un específico deber de diligencia sobre el informador”.
(Sentencia 6, de 21/01/1988)
321
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STF invalidou preceito legal que vedara a divulgação de pesquisas eleitorais a menos de
15 dias das eleições.324 Há hipóteses, contudo, em que ele se apresenta de maneira
autônoma, como ocorreu em julgado da nossa Corte Suprema em que se invalidou
decisão administrativa do Superior Tribunal Militar, que negara a interessados o acesso
a registros sobre antigos julgamentos daquela corte.325
O âmbito de proteção do direito à informação é amplo. Ele abarca
todas as questões que apresentam algum interesse público, sendo que este deve ser
concebido de maneira alargada, para abranger a mais ampla variedade de matérias que
tenham relevo para a vida social. Há evidente interesse público na atividade política,
bem como na atuação dos Poderes Públicos e de seus agentes. Mas ele também está
presente em temas atinentes aos costumes, criminalidade, práticas e relações sociais,
mentalidades, vida econômica, esportes, entretenimento, artes, religião etc. Afinal, o
debate destas questões também é vital para que as pessoas formem as suas convicções
sobre assuntos que podem ser centrais em suas vidas, e para que a sociedade possa
amadurecer, através da reflexão coletiva, que ganha em qualidade quando o amplo
acesso à informação sobre os temas discutidos é assegurado.
Como já destacou o STF, deve-se partir da presunção de existência de
interesse público nas informações transmitidas pelos meios de comunicação social.326
Tal presunção se justifica porque a categoria “interesse público” é extremamente
maleável, e a sua plasticidade pode ser empregada, voluntariamente ou não, para
bloquear o acesso da cidadania a informações importantes. Não se deve confiar a
agentes estatais – nem mesmo àqueles que integram o Poder Judiciário – o papel de
324
ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 23/02/2007.
MS 23.036, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, 2ª Turma, DJ 25/08/2006. Nesta decisão, consignou-se
que “a coleta de dados históricos a partir de documentos públicos e registros fonográficos, mesmo que
para fins particulares, constitui-se em motivação legítima a garantir o acesso a essas informações” (grifo
meu).
326
Na Reclamação 18638 MC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, destacou-se: “o interesse público na
divulgação e informações (...) é presumido. A superação desta presunção, por algum outro interesse
público ou privado, somente poderá ocorrer, legitimamente, nas situações-limite, excepcionalíssimas, de
quase ruptura do sistema” (decisão de 17/09/2014).
325
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200
definir o que a sociedade tem ou não o direito de saber.327 Do contrário, instaurar-se-ia
um pernicioso regime paternalista no campo informativo, em que “tutores estatais”, nem
sempre bem intencionados, poderiam se arvorar no direito de excluir certos assuntos –
às vezes incômodos para os “donos do poder” – da pauta das discussões sociais.328
O debate sobre “direito ao esquecimento” suscita uma questão
fundamental a propósito do âmbito de proteção do direito à informação. Será que as
informações sobre fatos do passado estão também abrangidas? Ou o transcurso do
tempo tem o condão de excluí-las da proteção constitucional, justificando o
reconhecimento de um direito ao esquecimento de fatos desabonadores ou
desagradáveis, como afirmou o STJ nos casos narrados acima? É o que se examinará
nos próximos subitens.
3.2. História, interesse público e esquecimento
Não se pode falar de um suposto direito ao esquecimento, sem
contrapô-lo à História. Afinal, a História é a disciplina que se propõe a estudar e
compreender fatos passados, ainda que eventualmente prejudiciais à reputação de
alguns dos seus personagens. A História, pode-se dizer, é a antítese do esquecimento.
Considerado o “pai da História”, o grego Heródoto, na primeira frase da sua obra
clássica “Histórias”, já apontava que a finalidade da empreitada histórica era evitar o
327
No direito norte-americano existe, no campo da responsabilidade civil, uma ação pela divulgação de
fatos privados (public disclosure of private facts), que enseja reparação de danos quando o que for
divulgado “(a) for considerado altamente ofensivo para uma pessoa razoável; e (b) não for do legítimo
interesse do público” (Restatement (second) of Torts § 625D: publicity given to private facts). Para aferir
o legítimo interesse do público, criou-se o conceito de “noticeabilidade” (newsworthiness). Tem-se
entendido que a definição do que é “noticiável” se liga “aos costumes e convenções da comunidade”
(Virgil v. Time, 9th. Circuit, 1975), e que “a linha deve ser traçada aonde a publicidade deixa de ser o
fornecimento de informações às quais o público tem direito e se torna uma mórbida e sensacionalista
intromissão nas vidas privadas, sem qualquer outra finalidade, à qual um membro razoável do público,
com standards decentes, diria que aquilo não é da sua conta” (Sipple v. Chronicle Publishing Co.,Call.
App, 1984). A jurisprudência majoritária tem entendido, porém, que é função primária da imprensa e não
do Judiciário estabelecer o que é “noticiável”: e.g. “O que é noticiável é primariamente uma função dos
editores, não das cortes” (Heath v. Playboy Enterprises Inc, S.D. Fla, 1990). Veja-se, a propósito, Daniel
Solove, Mark Rotemberg e Paul M. Schwartz. Information Privacy Law. 2ª ed. New York: Aspen
Publishers, 2006, pp. 103-152.
328
Cf. Eugene Volokh. “Freedom of Speech and Information Privacy: The Troubling Implications of a
Right to Stop People from Speaking About You”. Stanford Law Review, 52, 2000.
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esquecimento: “Essas são as pesquisas de Heródoto de Halicarnasso, que ele publica
na esperança de assim preservar do esquecimento a lembrança do que os homens
fizeram”.329
Mas por que a História é importante? Existe interesse público em
estudá-la, conhecê-la e divulgá-la?
Há inúmeras razões para valorizar a História, mas talvez a principal
delas é a de que somos seres históricos, enraizados, e vivemos em um mundo que
também é inescapavelmente histórico. A História – dizia-nos Marc Bloch – não é
propriamente “a ciência do passado”, mas a “ciência dos homens no tempo”.330 Nossas
práticas, instituições e valores não são como a Deusa Atena, parida adulta, vestida e
armada da cabeça de Zeus. Em boa parte, elas têm a fisionomia que possuem por força
da sua trajetória histórica. Portanto, a História não serve apenas à compreensão do
passado, mas também do presente. Ela nos permite entender melhor o nosso mundo e
nos municia com recursos valiosos para que enfrentemos os problemas atuais, com uma
perspectiva mais ampla, e de maneira mais crítica e consciente. 331 E o conhecimento e
reflexão históricos nos ajudam também a evitar que, como pessoas, coletividades ou
nações, acabemos repetindo inconscientemente os erros do passado. Como salientou
William H. McNeill, “a ignorância da História – ou seja, a ausência ou deficiência da
nossa memória coletiva – nos priva do melhor guia disponível para a ação pública”.332
A História, por outro lado, não se resume à narrativa dos “grandes”
acontecimentos, das guerras e revoluções, dos episódios marcantes e grandiloquentes
das vidas dos Estados e líderes políticos. Esta era a visão antiga da História, há muito
ultrapassada. Fala-se hoje de uma Nova História,333 que tem objeto muito mais amplo e
diversificado. Esta guinada no campo da historiografia foi deflagrada pela École des
329
Heródoto. The History of Herodotus. The First Book. Trad. George Rawlinson. London: Encyclopedia
Britannica, 1952, p. 1.
330
Marc Bloch. Apologia da História. Trad. André Telles. São Paulo: Zahar, 2002, p. 52 e 55.
331
Cf. John Tosh. Why History Matters. London: Palgrave Macmillan, 2008.
332
William H. McNeill. “Why Study History?” Disponível em www.historians.org/about-aha-andmembership/aha-history-and-archives/archives/why-study-history-(1985).
333
Cf. Jacques le Goff. La Nouvelle Histoire. Paris: Editions Complexes, 1999.
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Annales, fundada na França, em 1929, por Marc Bloch e Lucién Lefebre, que detonou
verdadeiro giro copernicano na disciplina, ampliando o seu objeto de pesquisa,
alterando as suas perspectivas e métodos.334 Atualmente, consideram-se temas
históricos importantes assuntos como a vida privada,335 a sexualidade,336 a alimentação,
a higiene, as relações de gênero, o casamento, o vestuário, as “mentalidades”, dentre
tantos outros.337
A História voltou-se também para novos personagens: não só os
líderes políticos e as grandes personalidades interessam, mas igualmente as pessoas
comuns, incluindo os integrantes dos grupos mais desfavorecidos. Afinal, para
compreender o passado, faz todo sentido estudar como viviam, pensavam e se
comportavam as mulheres e homens ordinários, que compunham a absoluta maioria da
população. Passa-se a falar de uma “História vista de baixo”.338 Esta tendência de
estudar a história das práticas sociais e das pessoas comuns tem também forte
penetração no pensamento social brasileiro, legando ao país obras clássicas, como Casa
Grande e Senzala,339 de Gilberto Freyre, em que são discutidos, dentre outros temas, a
vida privada, a sexualidade e a alimentação as famílias brasileiras até o século XIX.
334
A École des Annales agrupava-se em torno da revista Annales: économie, societés, civilizations, e
abrigou grandes historiadores de várias gerações, como Fernand Braudel e Jaques le Goff, exercendo
enorme influência em todo o mundo. Veja-se, a propósito, Christian Delacroix, Fraçois Dosse e Patrick
Garcia. Correntes Históricas na França- séculos XIX e XX. Trad. Roberto Ferreira Leal. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2012, pp. 137 ss.
335
Veja-se a impressionante coleção em cinco volumes dirigida por Philipe Éries e George Duby.
História da Vida Privada. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Editora Schwartz, 2009.
336
Confronte-se Michel Foucault. História da Sexualidade. 3 v.. Trad. Maria Theresa de Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Edições Graal, 1985. É interessante observar que,
para elaborar esta obra tão importante, Foucault debruçou-se, por exemplo, sobre a vida de Herculine
Barbin -- um intersexual de nacionalidade francesa que viveu no século XIX, e que não era uma “figura
histórica” conhecida – cujas memórias, encontradas nos arquivos do Departamento Francês de Higiene
Pública, ele estudou e reeditou.
337
Peter Burke assim sintetizou o processo: “a nova história começou a se interessar por virtualmente
toda a atividade humana. Tudo tem uma história (...) ou seja, tudo tem um passado que pode em
princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado. Daí a expressão ‘história total’, tão
cara aos historiadores dos Annales. (...) Nos últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias
notáveis de tópicos que anteriormente não havia se pensado possuírem uma história, como, por exemplo,
a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira, a limpeza, os gestos, o corpo, a feminilidade,
a leitura, a fala e até mesmo o silêncio.” (“A Nova História: seu passado e seu futuro”. In: Peter Burke
(Org.) Escrita da História: Novas Perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.
11).
338
A expressão foi cunhada pelo historiador inglês E. B. Thompson, “History from Below”. The Times
Literary Supplement, 7/04/1966, pp. 279-280. Veja-se, a propósito, Frederick Krantz (Ed.). History from
Below: Studies in Popular Protest and Popular Ideology. Oxford: Oxford University Press, 1988.
339
Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. 2 v., 13ª ed., São Paulo: Livraria José Olympio Editora,
1966.
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E por que o direito ao esquecimento, tal como compreendido pelo
STJ, representa uma grave ameaça para a pesquisa, estudo e divulgação da História?
É que a gramática dos direitos fundamentais envolve a pretensão de
universalização.340 Em outras palavras, os direitos fundamentais devem ser assegurados,
de forma igual, para todos os que se encontrarem na mesma situação. Esta é uma
consequência inarredável do princípio da igualdade, que, além de traduzir um direito
fundamental, é também um parâmetro para interpretação e aplicação de todos os demais
direitos. Assim, afirmar que há um direito fundamental a não ser lembrado, contra a sua
vontade, por fatos passados constrangedores ou desagradáveis, é atribuir este direito a
todas as pessoas. Porém, em praticamente todos os acontecimentos existem aspectos
cuja recordação pode causar embaraço ou sofrimento para alguém. Em todos os crimes
há um culpado; em todas as batalhas e disputas existe um perdedor. As narrativas das
vivências humanas revelam as imperfeições, erros e fragilidades das pessoas, e é natural
que estas prefiram que as suas falhas caiam no olvido. Porém, erigir este desejo à
condição de direito fundamental é o mesmo que impedir o conhecimento da História.
Com essa afirmação, não se está sustentando a tese de que o direito à
informação sobre fatos passados prevalece sempre e incondicionalmente sobre outros
direitos da personalidade, como a privacidade ou a honra. O que se está afirmando é
que a passagem do tempo não retira a importância e o interesse público das
informações, porque a História é essencial para a sociedade. E o argumento torna-se
ainda mais irresistível em países que têm uma trajetória histórica de violação de
direitos humanos, em que a superação de traumas e feridas clama não pelo
esquecimento do passado, mas pelo fortalecimento da memória coletiva. Este é o ponto
que será desenvolvido no próximo subitem.
340
De acordo com Oscar Vilhena Vieira, é a possibilidade de universalização que distingue os
verdadeiros direitos de privilégios (Direitos Fundamentais: Uma leitura da jurisprudência do STF. São
Paulo: Malheiros, 2006, pp. 24-25). Tal ideia, que teve a sua expressão filosófica mais radical na noção
kantiana de “imperativo categórico” – as ações morais são as que podem se converter em leis universais,
válidas para todos, incondicionalmente (cf. Immanuel Kant. Fundamentação da Metafisica dos Costumes.
Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições Quintela, 2009, pp. 41-73) - encontrou claro acolhimento na
Constituição de 88, quando esta, no caput do art. 5º, proclamou a igualdade de todos perante a lei e os
direitos.
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3.3. O direito à memória e esquecimento
A memória individual é parte fundamental da nossa identidade. Por
isso, se diz que o estado final do paciente com Alzheimer ocorre quando ele se torna
incapaz de recordar quem é. Trata-se da sua morte como sujeito, um falecimento não
biológico, mas biográfico.341 Com a memória coletiva, não é muito diferente.342 Ela é
uma construção social, feita de informações, mitos e narrativas socialmente
compartilhadas, que integram a cultura e proporcionam um sentido de identidade, de
pertencimento, que é extremamente importante para a vida dos indivíduos, grupos e
povos.
Essa é uma das razões pelas quais se busca preservar a memória
coletiva, como um patrimônio imaterial da Nação. A Constituição de 88 impõe esta
preservação, através da tutela do patrimônio cultural que, nos termos do seu art. 216,
compreende os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira”. Tal preservação configura, portanto,
direito fundamental cultural, assegurado pelo art. 215 da Constituição.
Ora, é difícil imaginar uma ameaça maior ao direito à memória
coletiva do que o reconhecimento de um direito ao esquecimento, nos termos alargados
como este foi concebido pelo STJ. Afinal, esquecimento, em qualquer léxico, é o
antônimo de memória. Se alguém tem o direito de não ser lembrado por fatos passados
desabonadores ou desagradáveis, a sociedade não tem o direito de manter a memória
sobre estes fatos. A universalização do direito ao esquecimento é o potencial
aniquilamento da memória coletiva.
O “direito ao esquecimento” mantém também uma tensão insanável
com a faceta mais específica do direito à memória. Trata-se da dimensão do direito à
memória – por vezes chamada de direito à memória e à verdade, ou apenas de direito à
Carlos Castilla del Pino. “La forma moral de la memoria. A manera de prólogo”. In: Felipe Gómez Isa
(Dir). El Derecho a la Memoria. Bilbao: Instituto de Derechos Humanos Pedro Arrupe, 2006, p. 19.
342
Sobre a memória coletiva, a obra clássica é do sociólogo francês Maurice Halbwachs. On Collective
Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
341
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205
verdade – que envolve a obrigação do Estado de revelar e difundir à sociedade fatos
históricos profundamente negativos, consistentes em graves violações de direitos
humanos, geralmente ocorridos em períodos ditatoriais, e que eram mantidos em sigilo.
Esta é uma faceta importantíssima do direito à memória no país, tendo em vista o
período de autoritarismo que vivenciamos no passado, marcado por odiosas afrontas aos
direitos humanos, bem como pela cultura de segredo sobre o tema, que sobreviveu ao
final do regime de exceção.
A ideia básica é de que a revelação destes fatos atende não apenas aos
direitos das vítimas, de seus familiares e descendentes, como também os da sociedade,
que precisa conhecer os equívocos do passado histórico do país, até para não repeti-los
no futuro.343 Trata-se, nas palavras de Reyes Mate, da justiça anamnética, que postula
que “la memoria no es un adorno sino un acto de justicia”.344 Parte-se da premissa de
que a reconstituição da memória das barbáries pretéritas diminui o risco de futuras
recaídas autoritárias.345 Tal princípio foi sintetizado com perfeição na designação do
projeto Brasil Nunca Mais, desenvolvido entre 1979 e 1985 por Dom Paulo Evaristo
Arns, o rabino Henry Sobel, o pastor James Wright e equipe de pesquisadores, que
denunciaram e documentaram atos de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados
cometidos pelo regime militar.346
Nas palavras de Flávia Piovesan, “O direito à verdade assegura o direito à construção da história e da
memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos históricos atentatórios
aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória
das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas”
(“O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a lei da anistia: o caso brasileiro”. In: Inês Virgínia
Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi. Memória e Verdade: a justiça de transição no Estado
democrático brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 208)
344
Reyes Mate. “Em torno a una justicia anamnética”. In: La Ética ante las víctimas. Barcelona:
Anthopos Editorial, 2003, p. 118.
345
No Plano Nacional de Direitos Humanos 3, divulgado pelo Decreto 7.037/2009, esta ideia foi assim
destacada: “A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania. Estudar o
passado, resgatar sua verdade e trazer à tona acontecimentos, caracterizam uma forma de transmissão
de experiência histórica que é essencial para a constituição da memória individual e coletiva. (...) O
silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da
identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, o País adquire a consciência superior sobre
sua própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e crescem
as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio, como a
tortura, por exemplo, ainda presente no cotidiano brasileiro”.
346
Houve a publicação dos trabalhos como livro: Paulo Evaristo Arns. Brasil Nunca Mais. Petrópolis:
Editora Vozes, 1985. A expressão “nunca mais”, cuja versão castelhana também foi título do relatório da
Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) da Argentina, inspirou-se no
slogan utilizado pelos sobreviventes do Gueto de Varsóvia, após as atrocidades cometidas pelos nazistas.
343
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Esta face do direito à memória é um dos aspectos centrais da chamada
justiça de transição.347 Ela é amplamente reconhecida no âmbito do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, por diversos documentos internacionais, como o
Conjunto de Princípios para a Proteção e para a Promoção de Direitos Humanos
mediante a Luta contra a Impunidade, aprovado pela ONU em 1998. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos vem afirmando enfaticamente este direito em
inúmeras decisões, tendo destacado que as medidas tendentes à apuração e divulgação
de violações de direitos humanos “não só beneficiam os familiares das vítimas, mas
também a sociedade como um todo, de maneira que o conhecimento da verdade sobre
os fatos alegados tenha a capacidade de preveni-los no futuro”.348 No caso Gomes
Lund e outros vs Brasil, em que aquela corte internacional condenou o país por conta da
falta de investigação e punição das violações de direitos humanos na Guerrilha do
Araguaia, a questão foi explicitamente contemplada.349
Dita dimensão do direito à memória vem inspirando diversas políticas
públicas no Brasil contemporâneo, com destaque para a criação da Comissão Nacional
da Verdade, instituída pela Lei 12.528/2011, que divulgou há pouco tempo um amplo e
detalhado relatório sobre as mais graves violações a direitos humanos por agentes do
regime militar.350 A necessidade de recordar este passado pouco glorioso também já
provocou manifestações do STF, como a lançada pela Ministra Cármen Lúcia no
julgamento do ADPF nº 153: “É certo que todo povo tem direito de conhecer toda a
verdade da sua história (...). Todo povo tem o direito de saber, mesmo dos seus piores
momentos. Saber para lembrar, lembrar para não esquecer e não esquecer para não
repetir erros que custaram vidas e que marcam os que foram sacrificados.”351
347
Cf. Ruti Teitel. Transitional Justice. Oxford: Oxford University Press, 2000; Jon Elster. Closing the
Books: Transitional Justice in Historical Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; Kai
Ambos e Ezequiel Malarino (Eds.). Justicia de Transición. Bogotá: Editorial Temis, 2010; Bethania Assy
et all. Direitos Humanos, Justiça, Verdade e Memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
348
Caso de las Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador. Sentença de 1/03/2005.
349
Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24/11/2010.
350
Acessível no sítio da Comissão Nacional da Verdade: http://www.cnv.gov.br.
351
ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, DJe 06/08/2010.
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Eduardo Bertoni352 – jurista argentino, que foi relator sobre liberdade
de expressão na OEA – apontou que, em contextos com o nosso, que também se
repetem em outros países latino-americanos, falar de direito ao esquecimento representa
verdadeiro “insulto à história”, pois ainda lutamos para ter acesso a informações sobre
os atos bárbaros cometidos no passado, que por muito tempo foram escondidos dos
olhares do nosso povo, por injustificáveis “razões de Estado”.
Na verdade, características do cenário nacional tornam especialmente
grave o reconhecimento do direito ao esquecimento, nos termos formulados pelo STJ.
Pode-se dizer que o problema brasileiro não é de excesso de memória, mas de amnésia
coletiva. Fatos embaraçosos da nossa trajetória são, com frequência, “empurrados para
debaixo do tapete”, recobertos por um véu de silêncio e olvido. A falta de memória não
se dá apenas em relação às violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura
militar, mas também envolve inúmeros outros episódios importantes da vida e da
história nacional, constrangedores para alguns dos seus partícipes ou para certos grupos
sociais, cujas lições, por isso, acabam não sendo processadas e absorvidas pela
sociedade.353 Esquecidos, desmemoriados, somos condenados a repetir indefinidamente
os mesmos erros.
4. As liberdades de expressão e imprensa como direitos preferenciais e o “direito ao
esquecimento”
O exercício do “direito ao esquecimento” colide, com frequência, com
a tutela das liberdades de expressão e de imprensa, consagradas no art. 5º, incisos IV e
IX e art. 220 da Constituição. Esta colisão ocorreu, por exemplo, nos casos da Chacina
da Candelária e Aída Curi, relatados acima. Em ambos os casos, os acórdãos do STJ
Eduardo Bertoni. “El Derecho al Olvido: un insulto a la historia latino-americana”. Disponível em
www.ebertoni.blogspot.com.br/2014/09/el-derecho-al-olvio-un-insulto-la.html.
353
Cf. Luiz Felipe Alencastro. “A Desmemória e o Recalque do Crime na Política Brasileira”. In: Adauto
Novaes (Org.). O Esquecimento da Política. São Paulo: Agir, 2007, pp. 321-334.
352
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afirmaram que, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, no conflito entre
liberdades comunicativas e direitos à vida privada, intimidade, honra e imagem,
existiria, “de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções
protetivas da pessoa humana”, embora esta suposta precedência não tenha sido
observada no caso Aída Curi, em razão das suas peculiaridades fáticas. A afirmação
desta “predileção”, porém, não se concilia com o sistema constitucional brasileiro, que,
ao inverso, atribuiu uma posição preferencial às liberdades de expressão e de imprensa
no confronto com direitos da personalidade, como vem reconhecendo o STF e a
doutrina.354 Examinemos, então, as causas e consequências deste reconhecimento.
Antes, alguns breves esclarecimentos conceituais. A liberdade de
expressão em sentido amplo compreende a liberdade de imprensa. Trata-se do direito
fundamental à manifestação de mensagens de toda e qualquer natureza,355 por qualquer
forma não violenta. A liberdade de imprensa, por sua vez, é a liberdade dos meios de
comunicação de divulgarem informações, opiniões e mensagens para o público, por
qualquer veículo ou plataforma. Tais liberdades são constitucionalmente protegidas não
apenas em favor do emissor das manifestações, mas também em proveito dos seus
receptores e do público em geral, que, em razão do seu exercício, podem ter acesso a
opiniões e informações diversificadas.356 No caso da liberdade de imprensa, enfatiza-se,
inclusive, que o principal destinatário desta garantia constitucional não são os titulares
dos veículos de comunicação, mas a sociedade, que se torna mais bem informada, tem
Veja-se a propósito, na literatura nacional, Luís Roberto Barroso. “Liberdade de Expressão versus
direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação”. Op. cit; . Daniel
Sarmento. Art. 5º, IV”. In: J. J Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lênio
Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:Saraiva/Almedina, 2013; Cláudio Chequer.
A Liberdade de Expressão como Direito Preferencial Prima Facie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011;
Simone Schreiber. “Liberdade de Expressão: Justificativa Teórica e a Doutrina da Posição Preferencial no
Ordenamento Jurídico”. In: Luís Roberto Barroso (Org.). A Reconstrução Democrática do Direito
Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 217-258; Rafael Lorenzo-Fernandez Koatz. “As
Liberdades de Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do STF”. In: Daniel Sarmento e Ingo Wolfgang
Sarlet. Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Critica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011, pp. 391-447.
355
A liberdade de expressão em sentido amplo engloba tanto a manifestação de opiniões como a
comunicação de fatos. Esta última, como já destacado acima, é também chamada de liberdade de
informação.
356
Cf. Eric Barendt. Freedom of Speech. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press, pp. 23-30.
354
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acesso a mais pontos de vista sobre temas de interesse social e pode controlar melhor os
negócios públicos.357
As liberdades de expressão e de imprensa abrangem, evidentemente,
o direito do emissor de definir o conteúdo da sua manifestação, e não apenas o de
eleger o seu tema. Daí porque, estas liberdades são violadas não apenas quando o
Estado proíbe a discussão de algum assunto, mas também quando busca definir a forma
como se dará este debate, e os aspectos ou personagens que deverão ser abordados ou
olvidados pelo emissor. Embora óbvio, este registro é aqui necessário, tendo em vista o
critério adotado pelo STJ para distinguir o caso “Chacina da Candelária” do caso “Aída
Curi”, como se verá na resposta ao quesito “d”, abaixo.
Não há dúvida alguma de que tais liberdades também incidem no
ciberespaço.358
Manifestações lançadas na Internet merecem a mesma proteção do
que aquelas divulgadas por meios mais tradicionais.359 A proteção reforçada à imprensa
se aplica tanto à mídia tradicional, como àquela que se vale de plataformas digitais –
sítios de notícias, blogs de jornalistas etc. A Constituição brasileira é claríssima neste
ponto, quando, no art. 220, caput, proíbe as restrições às manifestações do pensamento,
criação, expressão e informação “em qualquer veículo ou processo”, bem como quando
explicita, no art. 222, § 3º, que também integram o sistema constitucional de
comunicação social os “meios de comunicação social eletrônica, independentemente da
tecnologia utilizada para a prestação do serviço”. Esta é a firme posição do STF, que
se verifica em diversas reclamações que suspenderam decisões judiciais que criavam
357
Cf. Owen Fiss. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva
Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
358
Cf. Daniel Sarmento. Art. 5º, IV”. Op. cit. p. 256; Ingo Wolfgang Sarlet, Luis Guilherme Marinoni e
Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 442.
359
Não se nega, com isso, que a internet suscita algumas questões específicas concernentes às liberdades
comunicativas. Elas, porém, não se relacionam com o grau de proteção constitucional às manifestações
nela divulgadas. Para uma análise de algumas destas questões, veja-se Jack Balkin. “The Future of Free
Expression in a Digital Age”. Pepperdine Law Review, vol. 36, 2008.
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embaraços à liberdade de imprensa no âmbito da Internet, em razão de descumprimento
à orientação vinculante sobre tal direito plasmada na ADPF 130.360 É também essa a
orientação que se infere da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que positivou,
como princípio da regulação da rede, “a garantia da liberdade de expressão,
comunicação e manifestação do pensamento” (art. 3º, inciso I).361 Não bastasse,
também apontam na mesma direção os posicionamentos da ONU362 e da OEA363 sobre a
questão.
As liberdades comunicativas ostentam uma dupla dimensão –
subjetiva e objetiva. Na sua dimensão subjetiva, elas são direitos negativos, que
protegem os seus titulares de ações do Estado e de terceiros que visem a impedir ou a
prejudicar o exercício da faculdade de externar e divulgar opiniões e informações. 364 Já
a dimensão objetiva destas liberdades resulta do reconhecimento de que elas encarnam
princípios fundamentais para as sociedades democráticas, que devem ser protegidos e
promovidos pelo Estado e guiar a interpretação de todo o ordenamento jurídico.365
360
E.g. Rcl 16.434, Rel. Min. Rosa Weber, j. 30/06/2004; Rcl 18290, Rel. Min. Luiz Fux, j. 15/08/2014;
Rcl 18.836, Rel. Min. Celso de Mello, j. 27/11/2014.
361
Cf. Ulisses Schwartz Viana. “Liberdade de Expressão, Comunicação e Manifestação do Pensamento
como Princípios Fundamentais do Marco Civil”. In: George Salomão Leite e Ronaldo Lemos (Orgs.).
Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 127-147.
362
O Conselho de Direitos Humanos da ONU editou, em 2012, um documento sobre a “Promoção,
proteção e desfrute dos direitos humanos na Internet”, que afirmou, em seu primeiro item: O Conselho de
Direitos Humanos (...)afirma que os direitos das pessoas também devem ser protegidos na Internet, em
particular a liberdade de expressão, que é aplicável sem consideração de fronteiras, por qualquer
procedimento que se eleja, em conformidade com o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”.
363
Veja-se a publicação oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: Libertad de expresión
e Internet, de 2013, acessível em www.oas.org/es/cidh/docs/informes/2014_04_08_internet_WEB.pdf:
“El articulo 13 (dispositivo da Convenção Interamericana de Direitos Humanos que trata das liberdades
de expressão, imprensa e informação) se aplica plenamente a las comunicaciones, ideas e informaciones
que se difunden y acceden a través de Internet” (p. 1).
364
Cf. Daniel Sarmento. “Art. 5º, IV”. In: J. J Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang
Sarlet e Lênio Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p.
256.
365
A ideia de que os direitos fundamentais em geral – e as liberdades de expressão e imprensa em
particular – possuem uma dimensão objetiva é uma construção da jurisprudência constitucional
germânica, elaborada a partir do célebre caso Lüth, decidido pela Corte Constitucional do país em 1958,
em que se discutiu a constitucionalidade de decisão judicial que proibira uma campanha de boicote contra
um filme de um diretor que fora simpatizante do nazismo. O Tribunal Constitucional alemão reformou
dita decisão, pois entendeu que ela não dera o devido peso à liberdade de expressão na aplicação das
cláusulas gerais do Direito Privado incidentes sobre a hipótese. Na decisão, consignou-se: “(...) a Lei
Fundamental não é um documento axiologicamente neutro. A sua seção de direitos fundamentais
estabelece uma ordem de valores objetivos e esta ordem fortalece o poder efetivo dos direitos
fundamentais. Este sistema de valores, que se centra sobre a dignidade da pessoa humana se
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Associa-se a dimensão subjetiva das liberdades comunicativas à proteção do emissor, e
a dimensão objetiva à tutela dos interesses dos receptores das mensagens e da sociedade
em geral, atinentes à formação de uma opinião pública crítica e bem informada,
essencial para o funcionamento da democracia.366
No cenário constitucional brasileiro, uma série de razões justifica a
proteção extremamente reforçada conferida às liberdades de expressão e imprensa. Em
primeiro lugar, há razões históricas relevantes. Embora a Carta de 88 tenha resultado de
uma bem sucedida transição pacífica e não de uma revolução, ela pretendeu romper com
o passado nacional de autoritarismo, e instaurar uma nova ordem sociopolítica fundada
sobre valores democráticos. Esta intenção se percebe claramente no histórico discurso
proferido por Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Constituinte, na sua sessão
de encerramento: “Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o
Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua
honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (...) Muda Brasil!”.
Uma das características mais nefastas do regime autoritário, da qual o
constituinte quis se desvencilhar, foi o desprezo às liberdades comunicativas. O Brasil
era um país que censurava os meios de comunicação e as artes; que proibia a divulgação
de críticas e de notícias desfavoráveis; que prendia, exilava, torturava e assassinava
pessoas pelas ideias que ousavam defender. A censura não era apenas política: o antigo
regime julgava-se também o guardião de valores tradicionais e conservadores, que
buscava impor coercitivamente, cerceando as liberdades públicas também em nome da
desenvolvendo livremente na comunidade social, deve ser vista como uma decisão constitucional
fundamental, afetando todas as esferas do Direito Público e Privado. Ele serve como metro para
medição e controle nas áreas da legislação, administração e jurisdição.(...) O direito fundamental à
liberdade de expressão é a mais imediata encarnação da personalidade humana vivendo em sociedade, é
um dos direitos humanos mais nobres (...) Ele é absolutamente central para uma ordem liberaldemocrática porque torna possível a constante troca intelectual e a disputa sobre opiniões que são o
sangue desta ordem e a matriz, a condição indispensável, de praticamente todas as outras formas de
liberdade” (7 BVerfGE 198).
366
Cf. Konrad Hesse. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad.
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 302-310.
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“moral e dos bons costumes”. Nas palavras de Luís Roberto Barroso, a censura então
praticada oscilava “entre o arbítrio, o capricho, o preconceito e o absurdo”.367
As liberdades de expressão e de imprensa receberam proteção
especialmente reforçada também por força dos seus fundamentos. Em primeiro lugar,
elas são de importância capital para a democracia, que não se esgota no governo das
maiorias.368
Uma democracia real pressupõe a existência de um espaço público
dinâmico, em que os temas de interesse social possam ser debatidos com amplitude e
liberdade. Ela demanda a existência de uma esfera pública crítica, com amplo acesso à
informação e a pontos de vista diversificados, para que cada pessoa possa formar as
suas próprias convicções sobre temas controvertidos e participar de maneira consciente
do autogoverno. Ademais, na democracia, as pessoas devem ter a possibilidade de
influenciar, com suas manifestações, as opiniões dos seus concidadãos, para que
eventualmente prevaleçam na arena deliberativa.369
Por isso, a liberdade de expressão é tão fundamental em qualquer
regime democrático. É a sua garantia que possibilita que a vontade coletiva seja
formada através do livre confronto de ideias, aberto a todos. É a sua principal projeção
institucional – a liberdade de imprensa – que potencializa as interações discursivas na
sociedade, e que confere maior transparência sobre a atuação do Estado e dos poderes
sociais, ensejando o seu controle pela cidadania. Esta ligação visceral entre democracia
Luís Roberto Barroso. “Liberdade de Expressão, censura e controle da programação de televisão na
Constituição de 1988”. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 346.
368
Cf. Alexander Meiklejohn. “Free Speech and its Relation to Self-Government”. In: Political
Freedoms. Westport: Greenwood Press, 1960, 00. 03-89; Cass Sunstein. Democracy and the Problem of
Free Speech. New York: The Free Press, 1993.
369
Como consignou o Ministro Marco Aurélio no voto que proferiu na ADPF 187, que tratou da
legalização da “Marcha da Maconha”, “a democracia compreende simplesmente a possibilidade de ir a
público e emitir opiniões sobre os mais diversos assuntos concernentes à vida em sociedade. Embora a
versão de democracia de hoje não seja idêntica à adotada pelos gregos, citada por Constant, o cerne do
que hoje se entende por governo democrático encontra-se, ao menos parcialmente contido nesta ideia de
possibilidade de participação pública. E o veículo básico para o exercício deste direito é a prerrogativa
de emitir opiniões livremente. ”
367
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e liberdades de expressão e de imprensa é amplamente reconhecida pela jurisprudência
do STF. Na ADPF 130, por exemplo, a liberdade de imprensa foi tachada de “irmã
siamesa da democracia”.370
Outro fundamento importante para as liberdades comunicativas é a
dignidade humana. Afinal, comunicar-se com o outro é uma das mais importantes
atividades do homem. A possibilidade de cada um exprimir as próprias ideias,
concepções, sentimentos é dimensão essencial da nossa dignidade como pessoas.
Quando se impede alguém de exercer com plenitude estas faculdades, restringe-se a sua
capacidade de se realizar como ser humano e de perseguir na vida os projetos que
elegeu.371 E a preocupação com a autonomia não se centra apenas na figura do
“manifestante”, alcançando também a pessoa do “ouvinte”. Para que cada indivíduo
desenvolva livremente a sua personalidade, é fundamental que lhe seja franqueado o
mais amplo acesso a informações, opiniões sobre os mais variados temas, obras
artísticas e literárias.372 Deve-se partir da premissa de que a pessoa adulta tem o
discernimento para formar as suas próprias convicções, negando-se ao Estado o poder
de proibir a divulgação de ideias ou informações que considere erradas ou perniciosas.
Nas palavras de Dworkin, “o Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles a sua
responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir
opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas.”373
Este ponto foi destacado com precisão pela Ministra Cármen Lúcia no
voto que proferiu na ADPF 130, para rechaçar a existência de tensão entre a dignidade
da pessoa humana e as liberdades comunicativas: “a liberdade de imprensa (...) se
compõe, exatamente, para a realização da dignidade da pessoa humana, ao contrário
370
ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 06/11/2009.
Cf. Thomas Scanlon. “A Theory of Freedom of Expression”. In: Ronald Dworkin (Ed.). The
Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1977, pp. 153-172.
372
Nesta linha, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco salientaram: “A plenitude da
formação da personalidade depende de que se disponha de meios para conhecer a realidade e as suas
interpretações, e isso como pressuposto mesmo para que se possa participar de debates e tomar decisões
relevante. O argumento humanista, assim, acentua a liberdade de expressão como corolário da
dignidade humana”. (Curso de Direito Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 254).
373
Ronald Dworkin. “Why Speech Must be Free”. In: Freedom´s Law: The Moral Reading of the
American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 200.
371
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de uma equação que pretendem ver como se fossem dados adversos”. Na mesma
esteira, o voto do Ministro Luiz Fux na ADPF 187 ressaltou que o “exercício da
liberdade de expressão se põe como relevante aspecto da autonomia do indivíduo,
concebida, numa perspectiva kantiana, como o centro da dignidade da pessoa
humana”.374
Outro motivo importante aduzido em favor da garantia das liberdades
de expressão e de imprensa é de que se trata da forma mais eficiente para a “busca da
verdade” em matérias controvertidas. Em síntese, o argumento, que vem do filósofo
Stuart Mill,375 postula que, diante do pluralismo de opiniões na sociedade, é o debate
livre entre pontos de vista divergentes que permite a prevalência das melhores posições.
Em passagem clássica, o juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes defendeu esta
ideia, ao afirmar que “o melhor teste para a verdade é o poder do pensamento de se
fazer aceito na competição do mercado”.376
Finalmente, uma outra razão, frequentemente invocada no âmbito da
jurisprudência interamericana de direitos humanos, se liga ao caráter instrumental da
liberdade de expressão para a garantia de todos os demais direitos. Isso porque, é
através do seu exercício que direitos podem ser reivindicados na esfera pública, por
meio de críticas às autoridades, mobilizações, protestos etc. Ademais, a liberdade de
imprensa amplia a accountability governamental no que concerne ao respeito e proteção
de todos os direitos, ao dar publicidade à violação dos mesmos. Por isso, a Comissão
Interamericana de Direito Humanos afirmou que “a carência de liberdade de expressão
é uma causa que contribui ao desrespeito de todos os outros direitos”.377
Estas múltiplas razões convergem para que se reconheça a posição
preferencial das liberdades de expressão e imprensa em nosso sistema constitucional, o
374
ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, julgada em 15/06/2011.
John Stuart Mill. On Liberty. Chicago: Encyclopeaedia Britannica, 1978.
376
Abrahams vs. United States, 260 U.S. 6161 (1919).
377
Caso n. 10.548, Hugo Bastos Saavedra v. Perú,,decisão de 16/10/1997.
375
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que vem sendo destacado em diversas manifestações do STF. Com efeito, em seu voto
na ADPF 130, o Ministro Carlos Britto averbou que “a Constituição brasileira se
posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para, de imediato, cravar uma
primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato senso”.
Na mesma trilha, o Ministro Luiz Fux consignou, em voto proferido na ADPF 187, que
“a liberdade de expressão (...) merece proteção qualificada, de modo que, quando da
ponderação com outros princípios constitucionais, possua uma dimensão de peso prima
facie maior”, em razão da sua “preeminência axiológica” sobre outras normas e
direitos.378 O Ministro Luís Roberto Barroso, também assentou, em recente decisão, que
“as liberdades de expressão, informação e imprensa (...) são tratadas como liberdades
preferenciais em diferentes partes do mundo, em um bom paradigma a ser seguido”.379
E o Ministro Marco Aurélio, em julgamento ainda não concluído, ressaltou: “é forçoso
reconhecer a prevalência da liberdade de expressão quando em confronto com outros
direitos fundamentais, raciocínio que encontra diversos e cumulativos fundamentos.
(...) A liberdade de expressão é uma garantia preferencial em razão da estreita relação
com outros princípios e valores fundantes, como a democracia, a dignidade da pessoa
humana, a igualdade”.380
A ideia de que certos direitos desfrutam de posição preferencial é
originária da jurisprudência constitucional norte-americana. Ela surge na célebre nota de
rodapé nº 4 aposta pelo Justice Stone na decisão do caso United States v. Carolene
Products,381 julgado em 1938, que tratava da regulação econômica pelo Estado.
Naquele feito, decidiu-se que o Judiciário deveria ser deferente em relação às decisões
legislativas em questões econômicas, mas, no que tange a alguns direitos preferenciais
e à proteção de minorias impopulares, poderia exercer um escrutínio mais rigoroso
sobre normas restritivas. Com o tempo, definiu-se que o standard que rege este
escrutínio jurisdicional rigoroso (strict scrutiny) envolve verificar se a norma restritiva
promove um interesse público excepcionalmente importante (compelling interest), e se
378
ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, julgada em 15/06/2011.
Rcl 18638/MC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, decisão de 17/09/2014.
380
Rec. Ext. 685.493, Rel. Min. Marco Aurélio.
381
30 U.S. 144 (1938).
379
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ela é talhada de modo estreito e preciso (narrowly tailored), para favorecer dito
interesse.382
O escrutínio estrito – diz um conhecido ditado – é quase sempre fatal.
Em outras palavras, poucas normas conseguem sobreviver ao controle jurisdicional
efetuado com base neste standard.383 A doutrina foi articulada mais claramente em
relação à liberdade de expressão em Thomas v. Collins,384 em que se consignou, no voto
do Justice Routledge: “a usual presunção sustentando a legislação é ponderada com a
posição preferencial conferida no nosso sistema para as grandes, as indispensáveis
liberdades democráticas asseguradas pela Primeira Emenda. Essa prioridade confere a
estas liberdades uma santidade e uma posição que não admitem intrusões dúbias. (...)
Apenas os abusos mais graves, que coloquem em risco interesses supremos, dão espaço
a limitações admissíveis”.
A proteção das liberdades de imprensa e expressão como direitos
preferenciais vem encontrando eco na jurisprudência constitucional comparada. A tese
foi explicitamente abraçada, por exemplo, pelas cortes constitucionais da Espanha 385 e
da Colômbia.386 Mas em que consiste a posição preferencial das liberdades
comunicativas?
382
Veja-se, a propósito, Laurence H. Tribe. American Constitutional Law. 2ª ed., Mineola: The
Foundation Press, 1988, pp769-784.
383
Em algumas hipóteses, outros standards menos rigorosos de controle jurisdicional são empregados em
casos envolvendo a liberdade de expressão. É o que ocorre, por exemplo, em normas que regulam a
expressão não em razão do seu conteúdo – são neutras do ponto de vista do conteúdo (content neutral) –
mas dizem respeito ao tempo, lugar e maneira (time, place and manner) do discurso em espaços públicos.
Também recebem proteção menos rigorosa, por exemplo, a propaganda comercial e a pornografia. Vejase, a propósito, Daniel Farber. The First Amendment. 2ª ed., New York: The Foundation Press, 2003, pp.
21-38, 127-150 e 151-167.
384
323 U.S. 516 (1945).
385
E.g., STC 104/ 1986, 159/1986, 6/1988, 151/2004.
386
E.g., Sentencias C-010/00, T 391/07 e C 442-11.
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A posição preferencial envolve, basicamente, duas ideias, que se
interpenetram.387 Em primeiro lugar, deve haver um controle muito rigoroso das
medidas que eventualmente restrinjam estes direitos (escrutínio estrito). Tais medidas,
além de previstas em leis gerais, abstratas, claras e não retroativas,388 devem perseguir
objetivos extremamente importantes, amparados pela Constituição. Devem ser, por
outro lado, compatíveis com o princípio da proporcionalidade na sua tríplice dimensão
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito):389 elas têm de ser
adequadas para os fins a que se destinam; necessárias para a prossecução destes fins,
em razão da inexistência de alternativas menos gravosas; e proporcionais em sentido
estrito, gerando vantagens para os bens jurídicos tutelados que superem, sob o ângulo
constitucional, os ônus sobre as liberdades comunicativas decorrentes da sua
imposição. Nesta última avaliação, deve-se atribuir peso necessariamente elevado aos
interesses subjacentes às liberdades de expressão e de imprensa. A posição preferencial
confere ao Judiciário o papel de exercitar um controle forte sobre estas medidas
restritivas, pouco deferente às escolhas e valorações feitas pelos outros poderes estatais.
Opera-se uma espécie de inversão na presunção de constitucionalidade das normas
387
O Tribunal Constitucional colombiano, na Sentença T-391/07, discorreu de forma analítica sobre a
posição preferencial da liberdade de expressão, desdobrando-a em quatro presunções, três ônus, e uma
exigência de margem de tolerância dos Poderes Públicos, na avaliação dos riscos sociais advindos do
exercício desta liberdade. As presunções são (i) de inclusão prima facie de todas as manifestações no
âmbito deste direito; (ii) de primazia da liberdade de expressão em casos de colisão com outros
princípios; (iii) de inconstitucionalidade das medidas restritivas desta liberdade; (iv) de vedação à
censura. As três primeiras presunções, segundo a Corte, são relativas, mas a quarta, atinente a censura, é
absoluta. Já os ônus são o (i) o definitório, que impõe a explicitação, na medida restritiva da liberdade,
das finalidades perseguidas e respectiva base jurídica; (ii) o argumentativo, que atribui às autoridades
públicas o dever de demonstrarem, na edição da medida restritiva, o cumprimento dos requisitos para
limitação à liberdade de expressão, e os motivos que ensejariam a superação das presunções aludidas
acima; e (iii) o probatório, que exige que sejam evidenciados, por quem editou a medida restritiva, os
elementos fáticos, técnicos ou científicos que a embasam, e que justificariam a superação das presunções
em favor da liberdade de expressão. Para uma análise mais detida destes elementos, veja-se Aline
Rezende Peres Osório. Por um Marco Teórico para a Liberdade de Expressão no Brasil: Contribuições
do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Comparado. Trabalho apresentado no
Mestrado em Direito Público na UERJ, 2014.
388
A exigência de que as restrições a direitos estejam consagradas em leis formais, de natureza geral,
abstrata, não retroativa e de conteúdo claro nem é peculiaridade das liberdades preferenciais. A rigor,
trata-se de exigência inerente ao regime geral de restrições a direitos fundamentais, mas que deve ser
cobrada com rigor ainda maior no caso destas liberdades. Veja-se, a propósito, J. J. Gomes Canotilho.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Op. cit, p. 136; e Jane Reis Gonçalves Pereira.
Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 301-310.
389
Há ampla bibliografia sobre o princípio da proporcionalidade, e. g., Carlos Bernal Pulido. El principio
de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2003;
David Beatty. The Ultimate Rule of Law. New York: Oxford University Press, 2004; e Suzana de Barros
Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 1996.
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restritivas, que são vistas como “legislação suspeita”.390 Reconhece-se neste campo,
uma ampla legitimidade para decisões jurisdicionais contramajoritárias, visando a
contrabalançar a tendência comum – mas lamentável – dos governos e maiorias
políticas, de tentar silenciar os que expressam opiniões impopulares ou divulgam fatos
que desagradam os que estão no poder.
Além disso, a posição preferencial envolve o reconhecimento de uma
prioridade prima facie das liberdades comunicativas em casos de colisão com outros
princípios constitucionais, inclusive os que consagram outros direitos da personalidade.
As liberdades de expressão e imprensa não são direitos absolutos, mas, pelo seu
elevadíssimo peso na ordem dos valores constitucionais, tendem a prevalecer nos
processos ponderativos.391 Ademais, a não ser em casos excepcionalíssimos, a tutela
dos direitos da personalidade deve ocorrer a posteriori, através do exercício do direito
de resposta e da responsabilização dos que exerceram abusivamente as suas liberdades
expressivas.392 Esta última conclusão, de resto, também pode ser extraída do banimento
constitucional da censura (CF, art. 220, § 2º), que se aplica a todos os poderes estatais –
inclusive ao Judiciário.
Firmada esta premissa, cumpre perquirir se é legítima a imposição de
restrições às liberdades comunicativas assentadas no “direito ao esquecimento”. A
resposta é claramente negativa. O direito ao esquecimento, em primeiro lugar, não está
consagrado em qualquer norma jurídica, constitucional ou infraconstitucional. Na
extensão que lhe atribuiu o STJ, ele tampouco pode ser extraído da Constituição pela
via interpretativa – seja da garantia da privacidade, do princípio da dignidade da pessoa
390
Veja-se, a propósito, Sérgio Moro. Legislação Suspeita? 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2004.
Cf. Letícia de Campos Velho Martel. “Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição
preferencial na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana. Revista Síntese, nº 48, 2004, pp. 91117.
392
Neste sentido, registrou o Ministro Luís Roberto Barroso em recente decisão: “Da posição de
preferência da liberdade de expressão deve resultar a absoluta excepcionalidade da proibição prévia de
publicações (...) A opção pela composição do dano posterior tem a vantagem de não sacrificar
totalmente nenhum dos valores envolvidos, realizando a ideia de ponderação.” (Rcl 18638/MC, decisão
de 17/09/2014)
391
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humana393 ou de qualquer outra cláusula – pois é claramente incompatível com nosso
sistema constitucional, como já se demonstrou acima. Afinal, o esquecimento sobre
fatos que envolvem interesse público não pode ser visto como um direito fundamental,
em regime constitucional que se preocupa tanto com o acesso à informação, garante a
memória coletiva e valoriza a História. A restrição não satisfaz, portanto, o requisito da
reserva legal para restrição de direitos fundamentais.
Ainda que assim não fosse, tratar-se-ia de restrição excessivamente
vaga a uma liberdade preferencial, o que, como já assinalado, se afigura francamente
inadmissível. É que, como destacou Ronaldo Lemos, “como é praticamente impossível
definir os limites deste direito (ao esquecimento), as decisões tornam-se subjetivas”.394
A exigência de clareza e determinabilidade das restrições a direitos
fundamentais destina-se a conter a discricionariedade dos que as aplicam a casos
concretos, e a conferir maior previsibilidade e segurança aos seus titulares. Nas palavras
de Jorge Reis Novais, “uma restrição de contornos não antecipadamente bem firmados
alarga potencialmente a margem de actuação restritiva dos poderes constituídos (...) e
gera efeitos inibitórios no lado do exercício destas liberdades”.395 Trata-se de uma
exigência especialmente importante no campo das liberdades comunicativas. É que,
diante da incerteza da restrição, os titulares das liberdades expressivas tendem a se
silenciar, para evitarem possíveis responsabilizações e sanções, mesmo em hipóteses em
suas manifestações seriam absolutamente legítimas.
393
Por honestidade intelectual, cumpre registrar que a existência do direito ao esquecimento foi
reconhecida, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, no âmbito da VI Jornada de Direito
Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo STJ em 2013. Na ocasião, foi aprovado o
Enunciado 531, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação
inclui o direito ao esquecimento”. Apresentou-se a seguinte justificativa para o enunciado: “Os danos
provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao
esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela
importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos
ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos
fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.
394
Ronaldo Lemos. “Direito ao esquecimento é mais veneno que remédio”. Folha de São Paulo de
19/05/2014.
395
Jorge Reis Novais. As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 771.
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Foi com esta preocupação que a jurisprudência norte-americana
desenvolveu as doutrinas do overbreadth (excessiva abrangência) e void for vagueness
(vedação à vagueza), que se prestam à invalidação de restrições ao free speech.396
Dentre as finalidades destas construções jurisprudenciais, estão “minimizar a
discricionariedade das autoridades públicas na aplicação de restrições à liberdade e
(...) diminuir o ‘efeito resfriador’ das restrições sobre a intenção das pessoas de se
manifestarem, protestarem e adotarem outras atividades desta natureza”.397
Orientação similar se encontra no sistema interamericano de direitos
humanos, que também não se compatibiliza com restrições vagas às liberdades
comunicativas. De acordo com a Relatoria sobre Liberdade de Expressão da OEA,
“normas vagas, amplas ou abertas, pela sua simples existência, dissuadem a emissão de
informações e opiniões pelo medo de sanções e podem levar a interpretações judiciais
amplas, que restringem indevidamente a liberdade de expressão”.398 A Corte
Interamericana tem usado este critério em vários julgamentos, como no caso Kimel vs
Argentina,399 em que se considerou inválida a legislação argentina de crimes contra a
honra – que permitira a condenação de jornalista por criticar duramente um juiz –, pela
sua excessiva vagueza e indeterminação.
Por outro lado, não há um interesse suficientemente relevante – um
compelling interest, na linguagem constitucional norte-americana – que justifique a
restrição às liberdades comunicativas para promover o esquecimento. Como já
ressaltado, é natural e compreensível que as pessoas desejem o olvido coletivo dos fatos
embaraçosos do seu passado. Daí, porém, não se segue que tenham um direito a isso,
quando tais fatos envolverem algum interesse público. Menos ainda que tenham um
direito com peso suficiente para justificar tão forte restrição às liberdades
comunicativas.
396
Veja-se, a propósito, Daniel Farber. The First Amendment. Op. cit., pp. 49-53.
Idem, ibidem, p. 51.
398
Cf. Marco Juridico Interamericano de la Libertad de Expresión. Op. cit., p. 25.
399
Caso Kimel vs Argentina, Sentencia de 2 de Mayo de 2008.
397
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221
Ademais, o reconhecimento do “direito ao esquecimento”, nos termos
amplos em que foi afirmado pelo STJ, gera danos muito maiores ao sistema
constitucional do que as vantagens que enseja. A imposição desta restrição às liberdades
de expressão e imprensa não sobrevive, portanto, a uma ponderação abstrata,400
calcada no princípio da proporcionalidade, que atribua peso elevado a tais direitos, em
razão da sua posição preferencial na nossa ordem jurídica.
Afinal, reconhecer um direito de impedir a recordação de fatos
passados desagradáveis ou desabonadores implica obstar o conhecimento e debate sobre
questões que podem ser extremamente importantes para a sociedade, e que não se
despem do seu interesse público apenas pela passagem do tempo, como já se
demonstrou acima. A veiculação de reportagem sobre um crime ocorrido no passado,
por exemplo, além de proporcionar conhecimento histórico para a audiência, pode trazer
à tona discussões relevantes sobre mazelas persistentes da nossa sociedade e sistema de
justiça. Pode contribuir para a formação e desenvolvimento da personalidade dos
expectadores, auxiliando-os a formarem as suas convicções sobre temas importantes.
Pode estimular a reflexão sobre alternativas para a superação dos nossos problemas
sociais, sugerindo novos ângulos de observação.
A afirmação do direito ao esquecimento, com a amplitude que lhe
deram as decisões do STJ, tem, portanto, grave impacto sobre as liberdades
comunicativas. Ela pode comprometer o acesso à informação de interesse público,
prejudicar gravemente a nossa capacidade de pesquisar e discutir a História, de cultivar
nossa memória coletiva, de esclarecer e dar publicidade a fatos terríveis da trajetória do
país. Especialmente porque, pela generalidade com que está sendo concebido, o “direito
ao esquecimento” certamente dará margem a decisões exorbitantes, inibindo os
indivíduos e veículos de comunicação a pesquisarem, divulgarem e discutirem fatos
passados, pelo temor de responsabilização, especialmente quando tais acontecimentos
projetarem sombras sobre a reputação de pessoas poderosas. Assim, os discutíveis
400
A ponderação entre interesses constitucionais pode ser realizada no caso concreto, mas também pode
ser feita de modo abstrato, para avaliar a constitucionalidade de normas jurídicas ou de construções
doutrinárias ou jurisprudenciais, como é o caso do reconhecimento do “direito ao esquecimento”.
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ganhos à proteção da personalidade certamente não compensam tamanho impacto sobre
as liberdades de expressão, imprensa e informação, valoradas com o peso que lhes
confere a sua posição preferencial no sistema constitucional.
5. Liberdades comunicativas v. direito ao esquecimento na jurisdição: breves notas
sobre a jurisprudência nacional e comparada
O tema do direito ao esquecimento ainda não foi enfrentado no
âmbito do STF. No STJ, além dos casos da Chacina da Candelária e Aída Curi, cabe
mencionar o acórdão401 em que se discutiu a pretensão da apresentadora de televisão
Xuxa Meneghel de impedir o Google de exibir resultados de pesquisa que a
associassem à pedofilia.402
Parte da decisão foi dedicada à exposição da tese – oposta à adotada
recentemente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia – de que provedores de
pesquisa não são obrigados a deixar de exibir links com conteúdo ilegal. Consta na
decisão, ademais, reflexão importante atinente ao confronto entre a direito à informação
e a pretensão ao esquecimento: “não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação
de conteúdo ilícito, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os
direitos envolvidos e o risco potencial de violação a cada um deles, o fiel da balança
deve pender para a garantia da liberdade de informação, assegurada no art. 220, § 1º,
da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo
de comunicação de massa”.
Outra importante decisão sobre o conflito entre esquecimento e
liberdade de imprensa foi proferida pelo TJ/RJ, em caso envolvendo a exibição, também
pelo programa “Linha Direta-Justiça” da Consulente, de matéria sobre o rumoroso
homicídio de Ângela Diniz, cometido pelo seu então companheiro “Doca Street”. O
autor do crime, que já havia cumprido a pena a que fora condenado, tentou obter
reparação de danos morais pela divulgação do programa televisivo, mas não logrou
401
Recurso Especial nº 1.316.921, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26/6/2012.
A apresentadora, antes de se dedicar profissionalmente ao público infantil, gravou filme em que
protagonizou cena sensual com um menor.
402
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êxito. A 5ª Câmara Cível do TJ/RJ negou o pedido,403 tendo o acórdão destacado que o
direito coletivo a receber informação jornalística não pressupõe a “contemporaneidade
dos fatos”, uma vez que, em relação a acontecimento dotado de interesse social, a
sociedade mantém “o direito de discutir e avaliar suas causas e consequências
independente do tempo decorrido, já que inserido nos anais históricos daquela
coletividade”. A decisão foi mantida em sede de embargos infringentes e os recursos
especial e extraordinário interpostos não foram conhecidos.
No âmbito do Direito Comparado, há diversos julgamentos relevantes
sobre a matéria. Os eruditos votos do Ministro Luis Felipe Salomão proferidos nos
casos Chacina da Candelária e Aída Curi aludiram à decisão do caso Melvin vs, Reid,404
julgado pela Suprema Corte da Califórnia em 1931, em que se reconheceu o direito de
uma antiga prostituta, que fora processada e absolvida por um homicídio, de obter
indenização em razão da exibição de filme, que revelava aspectos da sua antiga vida que
ela desejava manter em segredo. É certo, porém, que tal precedente foi superado pela
evolução da jurisprudência norte-americana em matéria de liberdade de expressão.405
Neste sentido, o Judiciário norte-americano em Wilan v. Columbia County,406 julgado
em 2002, chegou a afirmar: “o caso Melvin, paternalista na sua dúvida sobre a
capacidade do povo de atribuir o peso próprio e não excessivo a história criminal de
uma pessoa, está morto”.
Em Sidis vs. F-R Publishing Corp.,407 julgado em 1940, por exemplo,
a Justiça norte-americana examinou o caso de publicação de matéria sobre um jovem
superdotado, que conseguira se graduar em Harvard aos 16 anos de idade, mas que, na
idade adulta, acabara não prosperando profissionalmente, levando uma vida recolhida.
Ele postulou reparação de perdas e danos por violação da sua privacidade. A decisão
403
TJ/RJ, Apelação Cível nº 2005.001.54774, 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, j.
07/03/2006.
404
297 P. 91 (Cal. 1931).
405
Como ressaltou Anita A. Allen, “as interpretações atuais da responsabilidade civil não favorecem a
proteção, com base em ações de indenização por violação à privacidade, a pessoas cujo passado público
foi ressuscitado pela mídia para discussão e debate públicos. A Primeira Emenda e a common law
determinam ampla liberdade para falar a verdade, publicar notícias acuradas e liberdade artística”
(“Dredging up the Past: Lifelogging, Memory and Surveillance”. The University of Chicago Law Review,
n. 75, 2008, p. 59). No mesmo sentido, Steven C. Benett. “The Right to be Forgotten: Reconciling EU
and US Perspectives”. Berkeley Journal of International Law, vol. 30: 1, 2012, pp. 170-171.
406
280 F.3d 1163 (7th Circuit, 2002).
407
113 F. 2d 806 (2nd. Circuit, 1940).
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judicial entendeu que havia interesse público na questão, que não era afastado em razão
da vida do autor ter sido reclusa nas últimas décadas. Os fatos do seu passado remoto
bastavam para tornar o assunto “noticiável” (newsworthy), o que afastava o direito à
indenização. Na jurisprudência constitucional norte-americana, as liberdades de
expressão e imprensa quase sempre prevalecem sobre a tutela de direitos da
personalidade, como se vê no julgamento, pela Suprema Corte, dos casos Cox
Broadcasting Corp v. Cohn408 e The Florida Star v. B.J.F,409 em que se afastou a
responsabilidade civil da imprensa por revelar os nomes de vítimas de estupro, obtidos
de forma lícita, afirmando-se a inconstitucionalidade de normas jurídicas que vedavam
tal divulgação.
Em relação à Alemanha, é sempre recordado o caso Lebach, decidido
pelo Tribunal Constitucional em 1973.410 Na hipótese, indivíduo que fora condenado e
preso por homicídio de vários soldados, cometidos durante um roubo de armas, pleiteou
que se impedisse uma rede de televisão de fazer um documentário sobre os fatos, meses
antes da data da sua soltura. O Tribunal germânico manteve a decisão que proibira a
veiculação do documentário, sob a alegação de que, na hipótese, a tutela dos direitos da
personalidade sobrepujava a liberdade de comunicação. Dois fundamentos importantes
da decisão foram a conclusão de que a exibição do programa poderia comprometer
seriamente a ressocialização do prisioneiro, e a ideia de que não haveria significativo
interesse público na informação, em razão do transcurso de vários anos desde a data do
crime.
Cumpre salientar, todavia, que nas últimas décadas, a proteção da
liberdade de expressão vem se tornando mais intensa na jurisdição constitucional alemã,
em casos envolvendo colisões com direitos da personalidade. Em 1999, o Tribunal
Constitucional examinou o caso Lebach II,411 atinente à pretensão de outro canal de
televisão de exibir programa sobre o mesmo crime, objeto do primeiro julgamento
Lebach. Dessa vez, a Corte germânica afastou a proibição de veiculação do programa,
que fora imposta por instâncias judiciais inferiores, em nome da proteção da liberdade
408
420 U.S. 469 (1975).
491 U.S. 524 (1989).
410
35 BVerfGE 202 (1973).
411
1 BVerfGE 349 (1999).
409
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comunicativa. Dentre os argumentos empregados para distinguir o caso do julgamento
anterior, o Tribunal afirmou que neste novo programa, ao contrário do primeiro, não
haveria o mesmo risco para a ressocialização dos autores do crime, pois já haviam
decorrido muitos anos desde a sua soltura.
Outro julgamento importante na Alemanha sobre o tema foi o caso
Seidlmayr.
Walter Seidlmayr foi um famoso artista, assassinado por dois irmãos
em 1990. Um deles, que sairia da prisão em 2008, ajuizou várias ações objetivando a
retirada da Internet de notícias antigas que narravam o crime, arquivadas em páginas de
veículos
de
comunicação.
O
feito
chegou
até
a
Suprema
Corte
alemã
(Bundesgerichtshof),412 que, ponderando os diversos elementos do caso, como o tempo
transcorrido, o caráter verdadeiro da notícia e o impacto da manutenção dos arquivos,
rejeitou o pedido, destacando, na sua argumentação, que a supressão dos registros do
crime nas webpages da imprensa poderia levar ao “apagamento da História”, o que
prejudicaria a mídia de cumprir o seu papel constitucional de informar o público.
Na França, há também decisões importantes sobre a matéria. Foi
naquele país que se cunhou a expressão “direito ao esquecimento” (droit a l’oubli), pelo
Professor Gerard Lyon-Caen, em comentário a uma decisão judicial proferida em 1965,
no affaire Landru,413 em que a ex-amante de um famoso serial killer pretendia obter
reparação de danos pela exibição de um filme que retratava fatos do seu passado, que
ela desejava que fossem esquecidos. Dita ação foi julgada improcedente, porque se
entendeu lícito o filme, já que baseado em informações judiciárias públicas e nas
memórias divulgadas pela própria autora. De todo modo, o reconhecimento
jurisprudencial do “direito ao esquecimento” no Judiciário francês ocorreu em decisão
de 1983, proferida pelo Tribunal de Paris no caso Madame M. v. Filipachi et
Congedipress,414 que tratou de matéria jornalística sobre um crime que ocorrera 15 anos
antes.
412
BGH, VI ZR 227/08, decisão de 15/12/2009.
TGI Seine, 14/10/1965.
414
TGI Paris, 20/04/1983.
413
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Ocorre que a Corte de Cassação, última instância da justiça civil
francesa, proferiu posteriormente decisão no caso Mme Monanges v. Kern,415 afirmando
que não existe direito ao esquecimento em relação a fatos passados de interesse público,
que tenham sido licitamente revelados.416 Tratava-se de ação de pessoa que buscava a
supressão de trechos de um livro que narravam suas atitudes condenáveis durante o
período de ocupação nazista (1940-45), e que já tinham sido discutidas publicamente no
passado, em processos judiciais divulgados pela imprensa.
Da Itália, cabe a referência a um interessante exemplo de solução
compromissória encontrado pela Corte de Cassação do país. 417 Tratava-se de ação
proposta por político italiano que fora processado por corrupção e depois absolvido. A
instauração do processo fora, à época, noticiada pelo jornal Corriere dela Sera, e a
notícia ficara no arquivo histórico do periódico, acessível em sua página na Internet. O
Tribunal afirmou, por um lado, que era lícita a iniciativa do jornal, de manter em
arquivo histórico a notícia, pois a passagem do tempo não lhe subtraíra o interesse
público. Considerou, porém, que era legítima a pretensão do autor, de que os dados no
arquivo digital se mantivessem atualizados por algum meio, que poderia ser a criação de
link entre a referida notícia e a informação posterior, da absolvição processual. Nesta
hipótese, impôs-se uma restrição à liberdade do jornal, mas esta, além de promover os
direitos da personalidade do autor da ação, ampliou, ao invés de restringir, o acesso do
público à informação.
O caso mais debatido sobre direito ao esquecimento não é do Poder
Judiciário de qualquer Estado, mas do Tribunal de Justiça da União Europeia. Aquela
Corte regional reconheceu que a garantia da proteção de dados pessoais envolve o
direito ao esquecimento no recente caso Google Spain SL e Google Inc. v. Agencia
415
Cour de Cassation, Chambre civile 1, n. 89-12580, j. 20/11/1990.
Na decisão, destacou-se: “considerando (...) que os fatos atinentes à vida privada de Mme X, foram
expostos, ao seu tempo, ao conhecimento do público em razão dos debates judiciários divulgados pela
imprensa local; que eles foram licitamente revelados e assim, escapam da sua vida privada, Mme X não
pode invocar um direito ao esquecimento para impedir que eles sejam, de novo, revelados”.
417
Corte Suprema di Cassazione, Terza Sezione Civile, nº 5525/2012, julgado em 11/01/2012.
416
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Española de Protección de Datos e Mario Costeja Gonzales,418 julgado em 13 de maio
de 2014.
Tratava-se de pedido de cidadão espanhol que postulava que o Google
não mostrasse, nos seus resultados de busca, o link de um jornal que noticiara o leilão
de um imóvel seu, ocorrido muitos anos antes, decorrente de dívidas junto à seguridade
social. A execução já estava encerrada há bastante tempo, mas o indivíduo continuava
sendo associado à dívida na Internet. O Tribunal deu razão a Costeja Gonzalez,
afirmando que “um tratamento inicialmente lícito de dados pode se tornar, com o
tempo”, ilícito, “quando estes dados já não sejam necessários, atendendo às
finalidades para que foram recolhidos ou tratados”. Considerou que, nesta hipótese, a
pessoa tem o direito de postular que os dados em questão sejam retirados da lista
fornecida pelo provedor de buscas.
Há na decisão, porém, dois disclaimers muito importantes. O primeiro
é de que há casos em que o direito do indivíduo à privacidade e ao controle dos seus
dados pessoais é sobrepujado pelo interesse público no acesso às informações
disponibilizadas pelos provedores de buscas, tendo em vista aspectos como “o papel
desempenhado por essa pessoa na vida pública”. O segundo é de que a questão assume
outros contornos quando se discute a disponibilização de dados pessoais não por um
provedor de buscas, mas pelo editor de um sítio na web, já que, nessa hipótese, poderão
ser invocadas as liberdades de expressão e imprensa. Afinal, o editor do site –
diferentemente do provedor de buscas – se manifesta na rede, e, dependendo do caso,
ele também pode ser caracterizado como veículo de imprensa.
Muitas críticas foram desferidas contra a referida decisão, ao meu ver
procedentes. Aduziu-se, por exemplo, que ela consagrou uma restrição muito ampla e
genérica ao direito à informação. Outra importante objeção é a de que o esquema
engendrado pelo Tribunal Europeu importou na transferência, para o sítio de buscas, da
418
Caso C-131/12, Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia.
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incumbência de ponderar, a requerimento do suposto lesado, o direito à privacidade
com o interesse público na informação, para o fim de manter ou não a exibição dos links
que tenham sido questionados. Considerando a responsabilidade civil dos provedores de
buscas, esta solução tende a gerar o resfriamento dos debates na Internet, pois estimula
o exercício da censura privada, para evitar possíveis condenações à reparação de danos.
O modelo desenhado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia tem, em minha
opinião, impactos muito severos e desproporcionais sobre o direito de acesso à
informação e sobre as liberdades comunicativas, não sendo legítima a sua adoção no
Brasil, considerando a posição preferencial desfrutada por tais direitos em nossa ordem
constitucional.
Esta breve exposição demonstra que, apesar das significativas
variações nacionais e regionais, um denominador comum na experiência transnacional
sobre o “direito ao esquecimento” é que as cortes, para reconhecê-lo ou refutá-lo,
sempre levam em consideração as liberdades de expressão, imprensa e informação, bem
como o interesse na preservação da História e da memória coletiva.
De todo modo, é pertinente uma breve reflexão sobre o modo como o
Direito Comparado deve ser empregado no caso. O conhecimento das decisões adotadas
por outros países e por instâncias regionais e internacionais é sempre positivo,
inserindo-se na benfazeja tendência contemporânea ao diálogo internacional no campo
da jurisdição constitucional. Porém, não cabe transpor acriticamente orientações
adotadas em outros Estados ou instituições para o nosso sistema. É sempre importante
refletir sobre a compatibilidade destas soluções com o nosso ordenamento jurídico,
sobre o seu ajuste à realidade e aos problemas nacionais. No caso específico do “direito
ao esquecimento”, há várias razões para se preferir, no Brasil, soluções mais inclinadas
à proteção das liberdades comunicativas.
Em primeiro lugar, existem razões ligadas à nossa ordem
constitucional, que, como já destacado, justificam que se atribua uma posição
preferencial às referidas liberdades. Além disso, deve-se tomar em conta o fato de que,
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a despeito da Constituição, ainda vivemos no Brasil sob o signo de uma cultura de
sigilo419 e desmemória, que seria reforçada com o acolhimento do “direito ao
esquecimento”, concebido com grande amplitude. Não bastasse, cumpre considerar os
riscos – muito elevados no nosso cenário de grandes assimetrias sociais –, de
apropriação do discurso do “direito do esquecimento” em favor da manutenção de um
indevido manto de opacidade sobre os desmandos e atos reprováveis dos “donos do
poder”, em detrimento do controle social e da crítica pública sobre os seus atos.
6. Liberdades comunicativas, responsabilidade civil e direito ao esquecimento
A responsabilidade civil, como todos os demais campos do
ordenamento jurídico, deve ser permeada pelo valores e princípios da Constituição.420 O
texto constitucional, como se sabe, prevê expressamente a responsabilidade civil por
danos materiais e morais, no caso de lesão à intimidade, à vida privada, à honra e à
imagem das pessoas (art. 5º, incisos IX e X). Tal responsabilidade também é regida pelo
Código Civil, mas é certo que este deve ser lido a partir do filtro principiológico da
Constituição.
Por isso, os contornos da responsabilidade civil por lesão aos direitos
da personalidade não podem ser desenhados com abstração dos valores que regem as
liberdades comunicativas, especialmente diante do reconhecimento da posição
preferencial de que estas desfrutam em nosso sistema constitucional. É que a liberdade
de expressão não incide apenas no momento anterior à manifestação, para impedir as
restrições prévias. Ela opera também depois, para eximir da responsabilidade civil e
penal aqueles que exerceram legitimamente a sua liberdade. 421 Afinal, de pouco
Como declarou Gil Castelo Branco, fundador da ONG Contas Abertas, “a cultura do brasileiro ainda
é mais para o sigilo e para o secreto, do que propriamente para a informação aberta”. Entrevista para o
Instituto Millenium, acessível em www.imil.org.br/entrevistas/gil-castelo-branco-cultura-brasileiraainda-marcada-pelo-sigilo.
420
Sobre a incidência dos valores constitucionais no campo da responsabilidade civil, veja-se Anderson
Schreiber. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2012; e Maria Celina
Bodin de Moraes. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.
421
Cf. Daniel Sarmento. “Art. 5º, V”. In: J. J Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang
Sarlet e Lênio Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. Op. cit., pp. 262-263; Eric Barendt.
Freedom of Speech. Op. cit., pp. 199-205.
419
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adiantaria proibir a censura e permitir, pela via da responsabilização ulterior, que as
pessoas fossem penalizadas, ou que tivessem que pagar vultosas indenizações pelas
suas manifestações causadoras de algum dano a terceiros. Se as liberdades
comunicativas compreendem a faculdade de criticar e de transmitir informações
negativas sobre as pessoas,422 é natural que o seu exercício incomode, cause embaraços
e até sofrimento nos indivíduos retratados. Tal fato, porém, não caracteriza a
responsabilidade civil, pois traduz exercício regular de direito (art.188, inciso I, Código
Civil). Entender o contrário seria amesquinhar a garantia constitucional conferida às
liberdades de expressão e de imprensa.423
Tal orientação também se inspira no relevante interesse social de que
haja um espaço público dinâmico, em que as discussões possam ser travadas de forma
aberta e desimpedida, e em que as pessoas tenham amplo acesso às informações de
interesse público. É que a expansão e a exacerbação da responsabilidade civil nesta
seara tende a inibir as críticas às autoridades e aos poderosos, e a desestimular as
denúncias e divulgações de fatos negativos.424 Em outras palavras, um regime muito
alargado de responsabilidade civil sobre supostos abusos expressivos exerce um
pernicioso efeito resfriador sobre a esfera comunicativa, em detrimento da vitalidade da
democracia.
Este ponto foi ressaltado em caso seminal da jurisprudência norteamericana, Sullivan v. New York Times,425 julgado pela Suprema Corte do país em 1964.
Nesse famoso julgado, discutiu-se se poderia haver responsabilização civil no caso de
Como ressaltou a Corte Europeia de Direito Humanos no caso Lingens vs Austria, “a liberdade de
expressão não é aplicável apenas às informações e ideias que são favoravelmente recebidas ou vistas
como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam e acarretam distúrbios”. (Case
9815/82, j. 08/07/1986)
423
Nesta linha, veja-se recente decisão da lavra do Ministro Celso de Mello, em que se destacou: “não
induz responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações de
caráter mordaz ou irônico ou, então, que veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou até
impiedosa, ainda mais se a pessoa a que tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura
pública, investida ou não de autoridade governamental” (Rcl. 15.243-MC, AgReg, Rel. Min. Celso de
Mello).
424
Cf. Guillaume Lécuyer. Liberté de Expression et Responsabilité: Étude de Droit Privé. Paris:
Dalloz,2006, pp. 519-554; Jonatas E. M. Machado. Liberdade de Expressão. Op. cit., pp. 803-821.
425
376 U.S. 254 (1964).
422
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manifestação contendo erro factual, cometido sem má-fé, que atingira uma figura
pública. O Tribunal entendeu que não. Em voto histórico, o Justice Brennan destacou
que “os debates sobre assuntos de interesse público devem der desinibidos, robustos e
abertos” e que as “afirmações equivocadas são inevitáveis em um debate livre”,
devendo ser protegidas “se se deseja que as liberdades expressivas tenham o ‘espaço de
respiração’ de que precisam para sobreviver”. Para a Corte, “uma norma que exigisse
do crítico (...) a comprovação da verdade das suas alegações fáticas”, sob pena de
responsabilização civil, levaria à “autocensura”. Uma regra como esta – disse o
Tribunal – não inibiria apenas manifestações falsas. Mais que isso, “possíveis críticos
(...) poderiam se abster de manifestar suas críticas, mesmo considerando-as corretas e
mesmo que elas de fato fossem verdadeiras, pela dúvida sobre se seriam capazes de
prová-las numa corte, ou pelo medo dos custos de fazê-lo”. Neste contexto, a Suprema
Corte fixou a orientação de que estas ações de reparação de danos à honra propostas por
figuras públicas só seriam cabíveis nos casos em que se provasse que “a manifestação
foi feita com “malícia real” (actual malice) – ou seja, com o conhecimento de que era
falsa ou com descuidada desconsideração (reckless disregard) sobre se era falsa ou
não”.
Esta preocupação com os efeitos negativos que a responsabilidade
civil pode exercer sobre as liberdades expressivas também se faz presente na
jurisprudência do STF. Na ADPF 130, o ponto foi ressaltado no voto condutor do Min.
Carlos Britto, que destacou que excessos indenizatórios são “um poderoso fator de
inibição da liberdade de imprensa”, que justificaria, no caso de ofensas à honra e
imagem de agentes públicos, uma exigência constitucional de modicidade das
condenações. Em recente decisão, a Ministra Rosa Weber bateu na mesma tecla:
O regime democrático, contudo, não tolera a imposição de ônus
excessivo a indivíduos ou órgãos de imprensa que se proponham a
emitir publicamente opiniões, avaliações ou críticas sobre a atuação
de agentes públicos. Os riscos envolvidos no exercício da livre
expressão, em tais hipóteses, não podem ser tais que apresentem
permanente e elevado potencial de sacrifício pessoal como
decorrência da exteriorização de manifestações do pensamento
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relacionadas a assuntos de interesse público, real ou aparente (...) O
ônus social é enorme e o prejuízo à cidadania manifesto.426
Assim, como é constitucionalmente legítima a divulgação de fatos
ocorridos no passado que envolvam interesse público, não há que se cogitar em
responsabilidade civil na hipótese. Possível sofrimento que essa divulgação venha a
gerar para as pessoas envolvidas, que preferiam “ser esquecidas”, não é suficiente para
ensejar o dever de reparação, pois não se trata de dano injusto, 427 e sim de
consequência do exercício regular de um direito.
Por outro lado, críticas lançadas nestas manifestações, ainda que
duras e contundentes, também não dão azo à responsabilidade civil, uma vez que
criticar, como já salientado, é faculdade inerente ao exercício das liberdades
comunicativas.
Tampouco erros fáticos devem ensejar a responsabilização, desde que
não tenha havido má-fé, nem falta de diligência na apuração do ocorrido. É que também
em relação às informações sobre fatos passados subsiste uma exigência de veracidade,
mas esta deve ser sempre compreendida sob o ângulo subjetivo – como exigência de
lealdade e de diligência de quem informa – e não sob o enfoque objetivo. O contrário
seria chancelar um regime de responsabilidade civil inibidor do exercício das liberdades
comunicativas, em contrariedade aos valores constitucionais.
426
Rcl 16434, Rel. Min. Rosa Weber, decisão de 30/06/2014.
Em instigante parecer sobre a constitucionalidade da restrição à publicação de biografias, Gustavo
Tepedino fez registro também pertinente ao presente caso: “Na vida cotidiana, a personalidade humana
é atingida rotineiramente, sem que haja dano ressarcível. A cobrança de dívida pode levar o devedor
insolvente à depressão profunda e até mesmo ao suicídio. No âmbito das relações afetivas, bastaria
pensar no fim de um relacionamento amoroso, como ocorre na ruptura unilateral de noivado, por
exemplo, em que não há dano injusto, inexistindo, portanto, dever de reparação, ainda que a dor possa
ser lancinante, com evidente dano à personalidade causado pela separação”. Acessível em
www.migalhas.com.br/arquivo/art20120823-06.pdf.
427
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7. Sobra algum espaço para o “direito ao esquecimento” na ordem constitucional
brasileira? O controle de dados pessoais que não envolvam interesse público
Como já ressaltado, o reconhecimento do direito ao esquecimento,
nos termos formulados pelo STJ nos casos da Chacina da Candelária e Aída Curi, não é
compatível com a Constituição de 88, pelas ameaças que encerra às liberdades
comunicativas, à História e à memória coletiva. Existe, contudo, um espaço legítimo
para que ele seja protegido, que não envolve risco tão significativo para estes bens
jurídicos essenciais. Trata-se do campo da proteção dos dados pessoais despidos de
interesse público, especialmente – mas não exclusivamente – no âmbito da
informática.428
É sabido que, na atualidade, por força de vertiginosos avanços
tecnológicos, instituições estatais e privadas têm condições de obter, armazenar, tratar e
divulgar uma quantidade de informações sobre as pessoas que era impensável no
passado, o que aumenta a vulnerabilidade dos indivíduos. Fazemos compras, lemos
textos e notícias, nos comunicamos com o mundo e conduzimos as nossas atividades
cotidianas por meios eletrônicos. O uso disseminado em todo o mundo da Internet e das
redes sociais permite que sejam armazenadas informações pessoais, mensagens
privadas, fotografias, dados sobre os hábitos de busca e navegação e muitos outros
elementos, que podem ser utilizados de forma ilegítima, violando direitos humanos.429
428
Sobre o direito ao esquecimento no âmbito digital, veja-se Daniel Solove. The Digital Person:
technology and privacy in the digital age. New York: New York University Press, 2004; Alessia Ghezi,
Angela Guimarães Pereira e Lucia Vesnic-Alujevic. The Ethics of Memory in the Digital Age:
Interrogating the right to be forgotten. London: Palgrave Macmilian, 2014; Daniel Solove e Paul M.
Schwartz (Eds.). Privacy, Information and Technology. New York: Wolters Kluer, 2009; Stefano Rodotà.
A Vida na Sociedade de Vigilância: A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; Danilo Doneda.
Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; Têmis Limberger. O
Direito à Intimidade na Era da Informática: A necessidade de proteção dos dados pessoais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
429
Em decisão proferida em 1995, o Ministro do STJ Ruy Rosado de Aguiar já detectava o problema: “A
inserção de dados pessoais do cidadão em bancos de informações tem se constituído em uma das
preocupações do Estado moderno, onde o uso da informática e a possibilidade de controle unificado das
diversas atividades da pessoa, nas múltiplas situações da vida, permitem o conhecimento de sua conduta
pública e privada, até nos mínimos detalhes, podendo chegar à devassa de atos pessoais, invadindo área
que deveria ficar restrita à sua intimidade; ao mesmo tempo em que o cidadão objeto dessa
indiscriminada colheita de informações, muitas vezes sequer sabe da existência de tal atividade (...) E
assim como o conjunto dessas informações (...) também pode servir, ao Estado ou ao particular, para
alcançar fins contrários à moral ou ao Direito como instrumento de perseguição política ou opressão
econômica. A importância do tema cresce de ponto quando se observa o número imenso de atos da vida
humana praticados através da mídia eletrônica” (Recurso Especial nº 22.337, Rel. Min. Ruy Rosado
Aguiar, DJ 20/03/1995).
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A possibilidade de vigilância total e permanente sobre o indivíduo, com graves riscos à
sua personalidade, saiu do terreno da ficção para entrar na realidade, como se tem
verificado na atuação de diversos Estados após o atentado às torres gêmeas. E não é só
do Estado que vem a ameaça. Como observou Laura Schertel Mendes, o risco hoje
“não se restringe mais à figura do ‘Big Brother’, de Orwell, mas abrange também o
setor privado, que utiliza massivamente os dados pessoais para atingir os seus
objetivos econômicos”,430 como por vezes ocorre, por exemplo, no âmbito das relações
de consumo e de trabalho.
Um componente relevante deste quadro é a memória praticamente
infinita da Internet e de outras tecnologias hoje disponíveis. Esta realidade – que tende a
se intensificar, com a continuidade dos progressos científicos –, torna possível o acesso
generalizado, no presente, a dados ou informações sobre fatos da vida privada de
pessoas comuns, por vezes embaraçosos, ocorridos há muitos anos. Postagens em blogs,
atualizações de Facebook, tweets, fotos, vídeos etc, mesmo quando tratem de questões
estritamente particulares, podem ficar eternamente armazenados
em nuvens
cibernéticas, sendo facilmente acessados por meio de sítios de busca. Nas palavras de
Simón Castellano, “nossos dados são gravados na rede como se fossem uma tatuagem,
que nos seguirá pela vida toda”.431 Uma foto de um adolescente embriagado, postada
numa rede social pelo próprio ou por terceiros, por exemplo, pode se tornar a razão para
que ele seja descartado numa entrevista de emprego realizada quando já adulto.
Neste cenário, é importante construir instrumentos jurídicos que
permitam às pessoas o exercício de algum controle sobre os seus dados pessoais que
não ostentem interesse público. Embora a designação não pareça a mais apropriada, o
“direito ao esquecimento” encontra aqui um campo legítimo para desenvolvimento, do
ponto de vista dos valores jurídicos e morais envolvidos. Os maiores desafios a serem
enfrentados nesta área são de natureza técnica, haja vista as conhecidas dificuldades de
exercício de controle sobre o ambiente virtual, derivadas de fatores como a pulverização
430
Laura Schertel Mendes. Transparência e Privacidade: Violação e proteção da informação pessoal
na sociedade de consumo. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Direito da UnB, 2008, p. 75.
431
Pere Simón Castellano. “The Right to be Forgotten under European Law: Constitutional Debate”. Lex
Electronica, vol 16.1, Winter 2012, p. 4.
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dos agentes, a velocidade das mudanças tecnológicas e a natureza transnacional do
ciberespaço.
A proteção de dados pessoais – por vezes também chamada de
autodeterminação informativa – exprime uma visão mais moderna, dinâmica e
relacional da privacidade,432 que se afasta da sua ótica estritamente individualista,
subjacente, por exemplo, a ideia do “direito de ser deixado só” (right to be let alone), de
que falavam Samuel Warren e Louis Brandeis, no primeiro texto doutrinário sobre o
direito à vida privada.433
No âmbito jurisprudencial, a ideia de existência de um direito à
autodeterminação informativa sobre dados pessoais foi formulada em importante
julgado do Tribunal Constitucional alemão proferido em 1983 – o caso sobre a Lei do
Censo.434 Discutiu-se, na hipótese, a constitucionalidade de uma lei federal sobre o
censo que determinara o preenchimento pelas pessoas de detalhado questionário sobre
dados pessoais, e previra o envio dos dados estatísticos para os governos locais, para
diversos fins. A Corte germânica reconheceu a constitucionalidade da maior parte dos
dispositivos legais questionados, mas invalidou os que possibilitavam a identificação do
cidadão que fornecera os dados. No julgamento, o Tribunal afirmou que “as pessoas
devem ser protegidas da busca ilimitada, armazenamento, uso e transmissão de dados
pessoais, como condição para o livre desenvolvimento da personalidade, considerando
as condições modernas de processamento de dados”. Para a Corte alemã, este direito,
conquanto não seja absoluto, “garante a faculdade do indivíduo de determinar por si
quando o Estado pode usar ou divulgar os seus dados pessoais”. Posteriormente, a
jurisprudência constitucional germânica reiterou a existência e relevância deste direito
432
Cf. Alan Westin. Privacy and Freedom. New York: Atheneum, 1967; Stefano Rodotà. A Vida na
Sociedade de Vigilância: A privacidade hoje. Op. cit.; Danilo Doneda. A Privacidade e a Proteção dos
Dados Pessoais. Op. cit..
433
Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis. “The Right to Privacy”. Harvard Law Review, n. 4, 193, 1890.
434
65 BVerfGE 1 (1983).
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em diversos outros casos.435 E outras cortes nacionais e internacionais também
reconheceram tal direito fundamental.436
O direito à autodeterminação informativa, sintetizado por Canotilho
como “a faculdade de o particular determinar e controlar os seus dados pessoais”,437 é
previsto pelos ordenamentos internos de quase todos os estados europeus, que
elaboraram detalhadas legislações para disciplinar a matéria.438 Em alguns, ele recebeu
consagração constitucional expressa, como em Portugal (art. 35), Espanha (art. 18.4),
Holanda (art. 10) e Grécia (art. 19 A). Em diversos países, foram criados órgãos
reguladores independentes voltados para a questão, como a Comission Nationale de
L’Informatique et des Libertés (CNLS) francesa, o Garante per Protezione dei Dati
Personali (GPDP) italiano e a Agencia Española de Protección de Datos (AEPD).
No âmbito da União Europeia, foi editada, em 1995, a Diretiva 95/46,
relativa ao processamento e circulação de dados pessoais, que deu detalhado tratamento
à matéria. Foi nesta Diretiva que se baseou a decisão do Tribunal de Justiça da União
Europeia no caso Google Spain. v. Agencia Española de Protección de Datos e Mario
Costeja Gonzales, acima referido. Outras normas comunitárias subsequentes também
cuidaram do assunto, como as Diretivas 97/66 e 2002/58. A proteção dos dados pessoais
foi expressamente consagrada como direito fundamental pelo art. 8º da Carta de
Direitos Fundamentais da União Europeia.
Não há, na legislação comunitária europeia, alusão explícita ao
“direito ao esquecimento”. A percepção de que tal direito, além de necessário para fazer
435
Um resumo de alguns deles se encontra em Donald P. Kommers e Russel A. Miller. The
Constitutional Jurisprudence of the Federal Republico f Germany. 3ª ed., Durham: Duke University
Press, 2012, pp. 411-418.
436
E.g., a Suprema Corte do Canadá, em R. v. Plant (1993) 3 SCR 281, e a Corte Europeia de Direitos
Humanos, em S. and Marper v. United Kingdom (30562/04 (2008)).
437
J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
468.
438
Veja-se, a propósito, Viktor Mayer-Schönberger. “Generational Development of Data Protection in
Europe”. In: Technology and Privacy: The New Landscape. Massachussets: The MIT Press, 2001; Têmis
Limberger. O Direito à Intimidade na Era da Informática. Op. cit., pp. 79-100.
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frente às ameaças tecnológicas à personalidade, já estaria implícito no Direito
Comunitário, levou a Comissão Europeia a elaborar uma proposta sobre nova regulação
de dados pessoais que o contempla expressamente. Destaque-se, porém, que no
lançamento desta proposta, Viviane Redig, à época Vice-Presidente e Comissária de
Justiça da União Europeia, ressaltou que o direito ao esquecimento não pode se
sobrepor às liberdades de expressão e imprensa, nem justificar o apagamento da
história.439 De todo modo, a proposta de regulação, ainda em fase de discussão, tem
provocado intensa controvérsia.
No cenário brasileiro, o direito ao controle de dados pessoais pode ser
inferido da Constituição.440 Ele é inerente ao direito à privacidade e se vincula também
à dignidade da pessoa humana. Tal direito é parcialmente disciplinado por diplomas
específicos, como o Marco Civil da Internet, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei
de Acesso à Informação e a Lei do Habeas Data. O seu exercício pode justificar, em
certas circunstâncias, o não processamento e até o apagamento de dados pessoais,
contemplando, neste sentido, uma espécie limitada de direito ao esquecimento. É
altamente recomendável no Brasil a edição de uma lei geral e sistêmica para disciplinar
a proteção de dados pessoais, como ocorre em praticamente todos os Estados europeus,
e em países como Canadá, Argentina, Uruguai, Chile e México.
Porém, a disciplina da questão não pode ameaçar as liberdades de
imprensa, expressão, o direito de acesso à informação de interesse público, nem
tampouco o cultivo da História e da memória coletiva. Não há, assim, como estender o
direito ao esquecimento às informações que se revistam de interesse público, e este,
como já destacado anteriormente, não desaparece tão somente pela passagem do tempo.
Viviane Redig. “The EU Data Protection Reform 2012: Making Europe the Standard Setter for
Modern Data Protection Rules in the Digital Age”. Disponível em http://www.europa.eu/rapid/pressrelease_SPEECH-12-26_en.htm. Nas suas palavras, “o direito ao esquecimento não é um direito
absoluto. Há casos em que existe uma finalidade legítima e um interesse juridicamente justificado em
manter os dados num banco de dados. Os arquivos de um jornal são um bom exemplo. É claro que o
direito ao esquecimento não pode se tornar um direito ao total apagamento da história. Nem ele deve ter
precedência sobre a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa”.
440
Cf. Danilo Doneda. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Op. cit; Ingo Wolfgang Sarlet,
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. Op. cit., pp. 417-421.
439
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8. Resposta aos quesitos
Diante do que foi exposto, passa-se à resposta sintética dos quesitos
formulados pela Consulente:
(a) Existe um direito fundamental do público de acesso à
informação sobre fatos ocorridos no passado, ou o transcurso do
tempo acarreta o perecimento deste direito?
Sim. O direito fundamental de acesso à informação também abrange
as informações referentes a fatos passados, porque estes não se despem do seu interesse
público apenas pela passagem do tempo. O reconhecimento da importância da História
e da memória coletiva são incompatíveis com a ideia de que apenas os acontecimentos
contemporâneos interessam à sociedade. O conhecimento e a discussão de fatos
passados são essenciais não só para a cultura do país, como também para que as pessoas
e a sociedade possam compreender melhor o seu presente e tenham condições de fazer
escolhas mais conscientes e informadas quanto ao seu futuro.
(b) É compatível com a tutela constitucional das liberdades de
expressão e de imprensa a invocação do “direito ao
esquecimento” para impedir a divulgação, discussão ou
encenação de fatos de interesse público ocorridos no passado,
em qualquer veículo ou plataforma, cuja recordação seja
embaraçosa, prejudicial ou dolorosa para alguém?
Não. As liberdades de expressão e de imprensa configuram direitos
preferenciais na ordem constitucional brasileira. Elas ostentam prioridade prima facie
em casos de colisão com outros princípios, e a restrições que lhes são impostas estão
sujeitas a uma série de requisitos, que o suposto “direito ao esquecimento” não atende.
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Não há base constitucional ou legal para tal restrição. Ela é, ademais,
excessivamente vaga e genérica. Não bastasse, os ônus que o “direito ao esquecimento”
impõe às liberdades comunicativas são incomparavelmente mais graves do que os
benefícios que ele enseja, sob a perspectiva dos valores constitucionais.
É compreensível que as pessoas queiram que a sociedade olvide os
fatos desabonadores ou desagradáveis em que se envolveram no passado. Porém, nem
todo desejo configura direito fundamental. Não há como reconhecer um direito ao
esquecimento de fatos pretéritos que envolvam interesse público. Menos ainda um
direito que seja forte o suficiente para prevalecer sobre uma liberdade preferencial.
(c) É cabível a responsabilização civil de veículos da imprensa
em razão da divulgação, discussão ou encenação de fatos de
interesse público ocorridos no passado?
Não. É lícita a conduta dos veículos de imprensa de divulgar, discutir
ou encenar fatos de interesse público ocorridos no passado. Trata-se de legítimo
exercício da liberdade de imprensa, que não gera, portanto, direito à reparação de
danos.
Inexiste, tampouco, responsabilidade civil em razão de críticas, ainda
que contundentes, feitas nestas manifestações, já que a liberdade de imprensa abrange o
direito à crítica. Da mesma forma, erros factuais porventura cometidos também não
geram direito à indenização, desde que não tenha havido má-fé ou falta de diligência na
sua apuração pelo veículo de comunicação.
(d) Seria compatível com a Constituição a condenação da
Consulente à reparação de danos, fundada do “direito ao
esquecimento”, pela exibição no programa televisivo “Linha-
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Direta Justiça”, de matérias sobre os casos “Chacina da
Candelária” e “Aída Curi”?
Não. Os casos “Chacina da Candelária” e “Aída Curi” cuidam de
episódios criminais que pertencem à História, e são, pela sua própria natureza,
revestidos de inequívoco interesse público. A exibição das matérias em questão
configurou legítimo exercício das liberdades de expressão e imprensa da Consulente,
atendendo, por outro lado, ao direito do público de acesso à informação.
A 4ª Turma do STJ valeu-se de critério francamente incompatível com
a Constituição para traçar uma distinção entre os casos “Chacina da Candelária” e “Aída
Curi”. Entendeu a Corte que teria sido possível para a Consulente narrar os assassinatos
dos menores na Candelária sem qualquer alusão a Jurandir Gomes de França – o autor
da ação judicial –, mas que seria inviável contar o homicídio de Aída Curi sem fazer
referência à sua vítima. Tal diferença, no seu entendimento, justificaria o acolhimento
do pleito indenizatório no primeiro caso, mas não no segundo.
Ocorre que as liberdades comunicativas garantem à Consulente não só
o direito à escolha dos fatos a serem narrados em sua programação, mas também do
ângulo de análise destes fatos, bem como do conteúdo da sua narrativa, o que,
naturalmente, envolve a eleição dos personagens cujas participações são retratadas. Na
matéria sobre a Chacina da Candelária, a Consulente optou por perspectiva em que a
participação do sr. Jurandir se afigurava fundamental: tratou dos graves equívocos que
marcaram a investigação criminal do caso, que levaram a que ele fosse indevidamente
acusado pelos homicídios. O interesse público envolvido na discussão desta faceta dos
acontecimentos é evidente. Por tudo isso, a conduta da Consulente representou exercício
regular das suas liberdades constitucionais, o que afasta de plano a responsabilidade
civil.
É o parecer.
Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 2015
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RESENHA
RESENHA DE “NULIDADES PRESCREVEM? UMA PERSPECTIVA
FUNCIONAL DA INVALIDADE”, DE MARCELO DICKSTEIN
Carlos Nelson Konder
Professor adjunto do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio).
Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ.
Especialista em Direito Civil pela Università di Camerino (Itália)
O alerta, atribuído a Baudelaire, de que "só se destrói, realmente,
aquilo que se substitui" é especialmente pertinente para aqueles que, ousados de
espírito, se aventuram no árido campo da teoria das nulidades. Não são poucos os novos
doutrinadores que, pairando na superficialidade de tema tão complexo, limitam-se a
afirmar que a teoria clássica está superada e que os tradicionais critérios não mais
funcionam, e com isso consideram seu trabalho cumprido.
No entanto, a constatação da insuficiência e da imprecisão de muitos
dos conceitos e classificações voltados a abranger e enquadrar toda sorte de invalidade
já fora constatada pela doutrina clássica, que se dedicou com afinco e atenção ao tema.
O desafio que se coloca hoje, portanto, não é mais, apenas, desconstruir a formulação
tradicional da teoria das nulidades, mas propor novos métodos e parâmetros para
enfrentar as dificuldades, antigas e novas, que se colocam.
Esse é o grande mérito da obra de Marcelo Dickstein, “Nulidades
prescrevem? Uma perspectiva funcional da invalidade”. Trata-se de uma incursão na
teoria das nulidades que não se limita a uma análise crítica, mas traz propostas efetivas
de solução para uma série de dificuldades práticas. Mais do que isso: as propostas
destinam-se não apenas a oferecer soluções entre si harmônicas e coerentes, mas acima
de tudo soluções compatíveis com a principiologia constitucional, que, como é cediço, é
o que garante unidade e sistematicidade a todo o ordenamento jurídico.
O trabalho, oriundo de dissertação de mestrado do autor, que tive a
honra de orientar, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ, foi
aprovado por banca composta também pelos renomados professores Francisco Amaral
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(UFRJ) e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho (UERJ), tendo a banca destacado a
importância de sua contribuição científica para esse tema.
A premissa fundamental do estudo é a análise funcional da teoria das
nulidades. Norberto Bobbio, em sua cuidadosa análise do positivismo jurídico, destacou
que, sob uma perspectiva dogmática, o jurista tradicionalmente priorizava a análise
estrutural dos institutos – a composição de seus elementos –, como forma de
“salvaguardar a pesquisa teórica contra a infiltração de juízos de valores e de evitar a
confusão entre direito positivo, o único objeto possível de uma teoria científica do
direito, e o direito ideal”.441 Hoje, contudo, reconhecendo que a atividade interpretativa
necessariamente envolve valores, prioriza-se a perpectiva funcional, passando o foco do
estudo de todo instuto do “como ele é” para o “para que ele serve”. 442 Nesse sentido, o
autor reconhece na teoria das nulidades uma construção científica instrumental à
solução de problemas concretos e à efetivação, na realidade social, de valores jurídicos.
Essa perspectiva remete, inevitavelmente, à Jurisprudência. Deve-se
reconhecer que estamos diante de mais um dos diversos setores do direito em que, ante
a insuficiência das construções doutrinárias, tem sido a Jurisprudência, na diuturna
interpretação e aplicação do direito, que, mesmo adstrita pelas limitações de sua função
jurisdicional, tem desenvolvido as mais pioneiras soluções para as dificuldades que a
vida real coloca ao Direito.
Nessa linha, a partir de um exame minucioso e sistemático do
conjunto de decisões judiciais sobre o tema, assim como das diversas correntes
doutrinárias sobre o assunto, o autor infere critérios que reputa idôneos a guiar o
intérprete na relativização dos dogmas tradicionais da teoria das invalidades. Esses
critérios, consistentes na preeminência das situações existências sobre as patrimoniais,
na aplicação do princípio da boa-fé objetiva em sua tríplice função e na consideração da
função social do contrato, permitem a ponderação dos interesses e valores envolvidos
no caso concreto, como decorrência da aplicação do controle funcional da invalidade.
O autor aplica essa proposta de reconstrução da teoria das nulidades,
com base em uma releitura funcional guiada por critérios condizentes com a
principiologia constitucional, à difícil questão relativa aos efeitos do decurso do tempo
441
BOBBIO, Norberto. Verso una teoria funzionalistica del diritto. Dalla strutura alla funzione. Milano:
Edizioni di Comunità, 1977, p. 65.
442
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil, trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar,
1999, p. 94.
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sobre as invalidades. Como é cediço, a teoria clássica, consagrada na letra do Código
Civil, assevera que as nulidades não sofrem efeitos pela passagem do tempo, podendo
ser declaradas a qualquer tempo e em qualquer instância.
No entanto, esse suposto axioma tem sido bastante relativizado, não
apenas pela crítica doutrinária contemporânea, mas principalmente pelo pioneirismo da
jurisprudência, que verifica em concreto a necessidade de levar em conta interesses
merecedores de tutela. É nesse ponto que a obra revela não apenas a coerência
científica, mas a sua utilidade prática, ao demonstrar que utilização dos critérios
apresentados para a releitura funcional das invalidades permite garantir harmonia e
coerência às decisões que relativizam o entendimento clássico e impedem o
desfazimento de situações formalmente eivadas de nulidade em vista dos interesses
consolidados pelo decurso do tempo.
O título instigante da obra reflete a empreitada do autor, não apenas
crítica, mas também propositiva. À indagação desafiadora – “nulidades prescrevem?” –
combina-se uma proposta promissora – e –, com a qual o autor consegue recoser o
ordenamento em uma sistematicidade guiada por princípios, e que efetivamente oferece
instrumentos para a resolução dos problemas concretos. É, por isso, obra fundamental
para aqueles dispostos a deixar os alardes críticos para começar a colocar as mãos à
obra.
RESENHAS
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SUBMISSÃO DE ARTIGOS
Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil para publicação devem observar às seguintes normas:
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sejam gravados no formato .rtf (Rich Text Format), formato de leitura comum a todos
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acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado.
4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15
e 35 laudas. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita.
Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não
se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os parágrafos: o próprio <ENTER>
já determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo
12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo,
2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve
ser A4.
5. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do
trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, faz, email, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade
exercida.
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(Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica básica
deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em
letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto;
palavra edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos
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que designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto.
Exemplo: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
7. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não
ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por
um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por
um travessão. Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2.
Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código
Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada descodificação.
8. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve
ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.
9. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações
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serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a
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Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade, que
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