A História da Escrita

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A História da Escrita
A História da Escrita
Pré­história da escrita: a pintura e o desenho
A necessidade de registrar os acontecimentos surgiu com o homem primitivo no tempo das
cavernas, quando este começou a gravar imagens nas paredes. Estima-se que esse desenhos e
pinturas tivessem uma dupla função: além de representar fatos, serviriam para projetar ações e
ajudar a obter resultados práticos, como por exemplo, uma boa caçada. Exemplos de desenhos
encontrados em cavernas e paredes de pedra na Serra da Capivara (PI):
Os sistemas de escrita
Sistemas de
Escrita
Escrita
Mista
Tipo de
escrita
Caracteres sua estrutura
Escrita
Hieroglífica
Hieróglifo - caractere figurativo que
representa idéias e objetos, palavras ou
sons.
Exemplos
- cobra, [d]
Escrita
Figurativa
ou
Pictográfica
Pictograma - caractere que representa
um objeto, sendo o caractere figurativo
(uma imagem que se reconhece
imediatamente)
Escrita
Logográfica
Logograma - caractere que representa
uma palavra, podendo o caractere ser
figurativo ou não (uma imagem que se
reconhece imediatamente)
Escrita
Silábica
Silabograma - caractere que representa
um conjunto de sons que formam uma
sílaba (os mais comuns são os
silabogramas "consoante-vogal")
Escrita
Alfabética
Letra - caractere que representa um
som (fonema), por si só ou em
conjuntos de dois ou três caracteres
- sol
Escrita
Ideográfica
Escrita
Fonética
(fonogramas)
- banco (sentar), banco (e
banco+ada = bancada
- [ka]
ch - [
]
Para além dos sistemas de escrita acima mencionados, existem ainda sistemas de registro que se
baseiam, não em caracteres, mas noutros métodos de representação. O exemplo mais conhecido é
talvez o quipu inca, um sistema complexo de nós dados em pequenas cordas atadas a uma corda
central.
O surgimento e evolução da escrita
Uma das principais consequências do surgimento das cidades e dos Estados foi a criação dos
primeiros sistemas de escrita por volta de 3200 a.C. Vários são os fatores que explicam o
nascimento da escrita:
-A necessidade de contabilizar os produtos comercializados, os impostos arrecadados e os
funcionários do Estado.
-O levantamento da estrutura das obras, que exigiu a criação de um sistema de sinais numéricos,
para a realização dos cálculos geométricos.
Com a escrita, o ser humano criou uma nova forma de registrar suas idéias e de se comunicar. A
linguagem escrita é especial porque permite que a vida que levamos hoje seja conhecida pelas
gerações que virão depois de nós. Por isso a invenção da escrita é usada como referência para
marcar o fim da pré-história e início da história da humanidade.
A Mesopotâmia viu nascer aquele que se julga ser o primeiro sistema de escrita da humanidade: a
escrita cuneiforme suméria. Mas este não foi o único sistema de escrita que surgiu - apenas o
primeiro! Temos ainda a apontar a famosa escrita egípcia, os menos conhecidos hieróglifos hititas
e a escrita chinesa.
Uma das características mais marcantes da escrita cuneiforme suméria é o seu aspecto em cunha,
resultante dos estiletes utilizados para fazer os caracteres. Estes estiletes, assim como o modo como
eram usados, evoluíram ao longo do tempo, alterando o aspecto dos pictogramas bem definidos para
caracteres estilizados e padronizados. Assim, as inscrições mais antigas (cerca de 3 400 a.C.),
encontradas nas antigas cidades de Uruk e Tell Brak, apresentam uma escrita extremamente
pictográfica, apesar da existência de tendências estilizantes. Ao olhar não treinado, estes caracteres
pouco ou nada fazem lembrar uma escrita cuneiforme. A evolução para os conhecidos caracteres
cuneiformes, de aspecto abstrato, deu-se com o passar do tempo e a necessidade que os escribas
sentiam de simplificar e acelerar o processo da escrita. Inicialmente, no 4o milênio a.C., a escrita
tinha primordialmente uma função de registro; mas no milênio seguinte existiam já textos literários
e pedagógicos, incluindo textos gramaticais. Os escribas deixaram, por isso, de usar os estiletes para
desenhar, literalmente, os caracteres; passando estes a ser gravados, com base em três símbolos, por
calcamento das pontas do estilete. Em conclusão, até meados do 3o Milênio a.C., a escrita
cuneiforme vai sofrer uma rápida ascensão e dispersão - por via econômica e política -, tornando-se
rapidamente mais abstrata e complexa. A própria direção da escrita muda: passa de uma orientação
da direita para a esquerda, em colunas de cima para baixo, para uma forma em que os caracteres
passam a ser inscritos da esquerda para a direita, em linhas de cima para baixo.
A Suméria, inventora da escrita cuneiforme, foi conquistada e, passados mil anos, tinha
desaparecido. Mas os invasores assimilaram muitas das suas inovações (técnicas e culturais) nomeadamente o seu sistema de escrita e, durante muito tempo, a própria língua suméria (nas
academias e nos templos). A evolução da escrita cuneiforme viu-se, assim, continuada pelas mãos e
língua dos povos semitas. O que significa isto? Que a escrita suméria fora desenhada para a língua
suméria, evoluindo para e junto com esta; mas os babilônios e os assírios falavam uma língua muito
diferente, obrigando-os a adaptar a escrita. Por quê? Para responder a esta última pergunta temos de
olhar para a estrutura da escrita.
Inicialmente os caracteres seriam apenas ideográficos e pictográficos, mas depressa evoluíram para
logogramas e, daí, para silabogramas. No entanto, esta evolução não foi linear! O resultado prático
foi uma escrita composta por:
•
•
•
ideogramas - funcionando como determinativos
logogramas
silabogramas - funcionando como complemento fonético, podiam representar...
• Vogais (V)
• Consoantes + Vogais (CV)
• Vogais + Consoantes (VC)
• Consoantes + Vogais + Consoantes (CVC)
Determinativos, complementos... O que é isto tudo? Vamos responder por partes:
1- Todas as línguas apresentam palavras semelhantes mas com significados diversos, e o sumério
não era exceção Assim, os ideogramas usados pelos sumérios, de modo a simplificar a escrita,
tornaram-se em logogramas - em vez de representar uma idéia, representavam palavras. Deste
modo, o caractere para "seta" passou a ser utilizado também para "vida", pois ambas as palavras se
diziam "ti". Mas isto podia trazer confusões, o logograma referia-se, afinal, a que palavra? Para
esclarecer as dúvidas os escribas acrescentavam determinativos - caracteres cuja única função é
identificar a classe ou natureza da palavra (madeira, divindades, lugares...).
•
Características dos Determinativos no Sumério:
• podiam ser colocados no início ou no final das palavras;
• não eram lidos;
• eram associados para distinguir entre caracteres iguais lidos do mesmo modo;
• eram associados para distinguir entre caracteres iguais com leituras diferentes.
2- Porém, os determinativos não podiam ser usados para todos os casos: utilizavam-se então os
complementos fonéticos. Os logogramas, que representavam palavras, passaram a designar apenas
sílabas (muitas das palavras eram silábicas) - tornaram-se silabogramas. Assim, eram acrescentados
ao final das palavras de modo a dar pistas sobre qual a leitura correta do silabograma. Por exemplo,
o mesmo caractere era usado para "du", perna, e para "gin", ir. Se se acrescentasse o silabograma
"na" ao caractere, já se sabia que este tinha de ser lido "gin".
•
Características dos Complementos Fonéticos no Sumério:
• eram colocados no final das palavras;
• eram lidos;
• eram associados para distinguir entre caracteres iguais com leituras diferentes;
• podiam representar...
• Vogais (V)
• Consoantes + Vogais (CV)
• Vogais + Consoantes (VC)
• Consoantes + Vogais + Consoantes (CVC)
Quando a Mesopotâmia foi tomada pelos babilônios e pelos assírios, a escrita suméria, como já
dissemos, foi adotada pelos invasores. Mas, a língua era diferente e, por isso, a escrita teve de ser
adaptada a essa nova realidade. Como? Recorrendo especialmente aos complementos fonéticos, o
que clarificava a leitura correta - porque as palavras se diziam de modo diferente na língua acádica,
os complementos eram associados a quase todos os logogramas! Muitas vezes, a escrita ia mais
longe e utilizava os silabogramas para escrever as palavras e não apenas como complementos
fonéticos.
Porém, a escrita cuneiforme foi adotada (e adaptada) por muitas outras culturas, além de ser
também usada como língua franca (quer para comércio quer para política) desde muito cedo.
•
•
•
Elamitas, no Irã;
Hititas, na Anatólia;
Hurrianos, na Síria;
•
•
Persas, na Mesopotâmia;
Urartianos, na Arménia.
Tal como o Império Sumério, também a Babilônia e a Assíria acabaram por se render a invasores os Persas. Mas, estes, ao contrário de muitos outros, não se limitaram a adotar a escrita cuneiforme eles reiventaram a escrita com base naquela! Como? Simplificando-a. Face às centenas de
caracteres da escrita cuneiforme suméria, babilônica e assíria, os caracteres persas consistiam em 36
silabogramas (Vogais e Consoantes + Vogais), aos quais se juntavam um punhado de logogramas números e determinativos (apenas cinco). Esta escrita, no entanto, depressa viria a ser suplantada
pelo Aramaico - de cujas raízes falaremos a seguir.
A escrita hieroglífica hitita é, infelizmente, uma ilustre desconhecida - sabe-se que co-existiu com
a escrita cuneiforme, adotada da Suméria, e que não foi baseada na egípcia. Inicialmente, os
hieróglifos hititas eram extremamente pictográficos mas, tal como aconteceu no Egipto, foram-se
tornando mais cursivos - visto serem escritos com pincéis. Sabe-se ainda que a escrita era
constituída por logogramas e silabogramas (Consoante + Vogal).
Chegamos, finalmente, à escrita egípcia; mas, atenção! A escrita egípcia conheceu diversas fases:
•
•
•
•
Hieroglífica
Hierática
Demótica
Alfabética - alfabeto copta (de influência grega)
A escrita egípcia, quase tão antiga quanto a escrita suméria (ou talvez ainda mais antiga que esta),
remonta ao final do 4o milênio a.C., de acordo com os registros descobertos. A sua função variava
de acordo com a grafia: os hieróglifos, a única maneira de se conseguir nomear as coisas pela
escrita, eram sagrados e tinham um grande poder mágico; a escrita cursiva hierática era uma versão
mais rápida, utilizada pelos escribas nas suas tarefas administrativas. Enquanto a primeira tendia a
ser desenhada com pormenor e riqueza (a própria conjugação dos hieróglifos fazia-se por questões
estéticas); a segunda era usada no dia-a-dia e, por isso, tornou-se uma versão simplificada ao ponto
de perder o caráter pictográfico dos hieróglifos. A escrita demótica, que viria a suplantar a hierática
por volta do século VII a.C., era igualmente escrita com um pincel de junco mas apresentava-se
ainda mais simplificada - distante quer do aspecto pictográfico dos hieróglifos, quer do aspecto da
hierática.
No entanto, independentemente de qual a grafia usada, a estrutura da escrita era igual... ou
semelhante, pois esta evoluiu ao longo do tempo, claro. Sintetizando-a, porém, observamos as
seguintes características:
•
Logogramas - representam palavras, podem surgir por si só ou acompanhados por
silabogramas e determinativos.
•
Silabogramas - para formação de palavras e como complementos fonéticos:
• podem ser:
• unilíteros - Consoantes (C) - 26 caracteres
• bilíteros - Consoantes + Consoantes (CC) - cerca de 100 caracteres
• trilíteros - Consoantes + Consoantes + Consoantes (CCC) - cerca de 50
•
caracteres
• os caracteres unilíteros podem conjugar-se para formar palavras, o que é raro,
acontecendo apenas com algumas palavras gramaticais;
• são os caracteres unilíteros que mais costumam ser usados como complementos
fonéticos, apesar de qualquer silabograma poder ter essa função.
Ideogramas - como determinativos:
• surgem sempre no final da palavra;
• podem surgir um ou mais determinativos:
• determinativos específicos - surgem apenas com uma determinada palavra e
não são lidos;
• determinativos genéricos - definem a natureza da palavra (divindades,
coisas abstratas, casa...) e não são lidos;
• determinativos fonéticos - são os complementos fonéticos (silabogramas),
que podem acompanhar logogramas ou silabogramas.
Tal como a escrita cuneiforme foi adotada e adaptada por outras culturas, também a escrita egípcia
teve o seu impacto: os seus caracteres serviram de exemplo e base para a chamada escrita protocananita, da qual supõe-se terem existido muitas variantes (na região das atuais Síria, Palestina e
Arábia). Ainda fortemente pictográfico, considera-se que o proto-cananita terá adotado os
caracteres unilíteros egípcios, ou seja, os mono-consonânticos, para formar um alfabeto
consonântico. O princípio da atribuição de valores fonéticos aos caracteres, julga-se, terá sido
baseado no primeiro som do significado de cada caractere. Parece confuso? É muito simples: o
caractere para o som "dj" era uma cobra, mas, na língua dos inventores do proto-cananita, a palavra
para "cobra" começava com um "n". O caractere passa, assim, a representar o som "n". Podemos,
então, sintetizar as características desta escrita:
•
•
•
existiam 22 caracteres organizados num alfabeto;
cada caractere representava:
• uma palavra (logograma);
• o primeiro som dessa palavra (letra);
os caracteres representavam apenas consoantes.
Ao longo de cinco ou quatro séculos, o proto-cananita foi evoluindo de uma escrita de caráter
pictográfico para uma escrita linear - o fenício (os registros mais antigos são do século XI a.C.).
Porém, esta escrita não se limitou a evoluir isoladamente, antes propagou-se por outros povos e
culturas que a adaptaram, originando, entre outros, o...
•
•
Arábico Meridional - que deu origem a várias escritas, das quais se destacam:
• o silabado Etíope
• o Amárico
Aramaico - que deu origem a várias escritas, das quais se destacam:
• o Árabe
• o Hebreu Moderno
• o Devanagari (Índia)
Todas estas escritas, quer as mencionadas, por serem as de maior destaque, quer as não
mencionadas, apresentaram variações, sofreram influências e influenciaram - chegando, assim, a
atingir lugares tão longínquos como o Tibete e a Tailândia. Mas voltemos ao Fenício - à escrita e ao
povo! Os Fenícios foram um povo mercantilista com uma forte tendência para a navegação, o que
os levou a espalharem-se pelo Mediterrâneo. Formaram colônias por toda a costa mediterrânica e
espalharam a sua escrita dando origem a outros alfabetos (alfabeto cipriota, em Chipre; o
predecessor da atual escrita Tifinagh, utilizada pelos Berberes). E foi à escrita fenícia que os Gregos
vieram beber para formar o primeiro alfabeto (de que há registro histórico) com consoantes e
vogais! (Por volta do século VIII a. C.)
Os caracteres fenícios sofreram algumas modificações quer ao nível da escrita, quer ao nível dos
valores fonéticos que representavam. As alterações no desenho dos caracteres levou não só a uma
distinção entre caracteres gregos e fenícios, como criou também variações locais do alfabeto grego.
No que se refere aos valores fonéticos, podemos referir dois pontos importantes: o "nome" das
letras e os sons a que estas correspondem. Os caracteres fenícios representavam uma palavra
("gimel"), e um som ("g"). O alfabeto grego vai seguir um princípio semelhante, mas os seus
caracteres não vão representar palavras - são apenas "nomes" que identificam as letras. Olhemos
agora o segundo ponto: a representação fonética dos caracteres. De um modo geral, o valor fonético
fenício manteve-se nos caracteres gregos - mas nem todos os sons consonânticos existentes na
língua fenícia faziam sentido na grega; e faltavam caracteres para representar os sons vocálicos.
Aqueles caracteres foram, por isso, direcionados para a representação dos sons vocálicos. Este
alfabeto tornou-se o primeiro alfabeto consonântico e vocálico da história e é com base nele que
surgiria o alfabeto latino - aquele que nós utilizamos. Contudo, não podemos limitar a influência do
grego ao alfabeto latino (por via do alfabeto etrusco - séc. VII a.C.); o alfabeto grego influenciou
ainda a escrita copta (séc. I d.C.), no Egipto, e o alfabeto cirílico (séc. IX d.C.) utilizado por povos
eslavos, como os russos.
A Escrita Chinesa A escrita chinesa remonta ao 2o milênio a.C. e, até aos dias de hoje, manteve-se como uma escrita
logográfica. Os seus caracteres, cerca de 50 000 dos quais apenas 4 000 ou 3 000 são usados no diaa-dia, pouco ou nada mudaram desde o século IV d.C. - só em 1956 é que vários caracteres foram
simplificados num esforço para aumentar os níveis de leitura da população. Tal como vimos nas
escritas do Médio Oriente e do Mediterrâneo, também a escrita chinesa se espalhou pelo Oriente - a
seguir veremos a sua influência no Japão e na Coréia. Mas, primeiro, vamos compreender um pouco
as idiossincrasias desta escrita.
Nota - Não iremos aqui distinguir entre os diversos dialetos falados na China, referindo apenas a
"língua chinesa"; nem iremos distinguir entre a variedade de tonalidades nas vogais.
De aspecto fortemente pictográfico, os caracteres chineses foram, com o tempo, evoluindo para um
aspecto mais abstrato Além disso, os caracteres passaram também a ser uma forma de arte:
desenhados no espaço correspondente a um quadrado invisível, cada caractere deve ser harmonioso
no seu desenho, demonstrando equilíbrio no conjunto dos traços. E existem 12 tipos de traços
específicos - é com base nestes doze traços que os caracteres se constroem, podendo conter entre 1 e
84 traços.
Mas, que tipo de caracteres é que constituem a escrita chinesa? Os caracteres chineses são formados
tendo em atenção a imagem ou forma, o sentido, o som ou o empréstimo das palavras:
•
•
•
•
Logogramas - representam palavras (cada caractere representa uma sílaba);
Pictogramas - representam objetos físicos;
Ideogramas - representam idéias ou conceitos, surgindo muitas vezes unidos a pictogramas;
Silabogramas - representam apenas sons, podendo ser utilizados para escrever nomes
estrangeiros, por exemplo.
Contudo, os caracteres chineses são mais comumente caracterizados de acordo com a sua
composição. Um caractere simples será um pictograma (ou um ideograma); mas todos os caracteres
se podem fundir para dar origem a novos caracteres:
•
•
Caracteres Compostos - quando dois ou mais logogramas (podem ser simples, compostos
ou complexos) se fundem para formar uma nova palavra;
Caracteres Complexos - quando um caractere (pode ser simples, composto ou complexo)
funde-se com um determinativo;
Claro que não podemos isolar facilmente um caractere como sendo um logograma ou um
pictograma ou... Por quê? Porque, tal como uma língua não evolui de modo linear e lógico, também
a escrita não é planejada de modo imutável num laboratório. Assim, vamos tentar compreendê-la a
partir de princípios acompanhados por exemplos: um princípio estrutural da escrita permite um
conjunto de ocorrências.
1. Todos os caracteres se encontram associados a uma idéia ou objeto, e a uma palavra
(conjunto de sons).
• O caractere para representar "sol" (pictograma) também representa
"dia" (ideograma).
• Os caracteres para "prazer" (le) e "música" (yue) são o mesmo, tendo apenas uma
leitura diferente a acompanhar a diferença do significado (logograma).
• O caractere para representar "lagartixa" (pictograma) é utilizado para o conceito
"fácil" pois as palavras dizem-se de igual modo, "yi" (logograma).
• A palavra mo-fang ("copiar"), é escrita com dois caracteres, mas o primeiro (com o
significado de "copiar") pode ser substituído por outro com o sentido de "imitar" - a
leitura não sofre qualquer alteração.
• Os caracteres para representar "pacífica floresta" (tai sen) são usados para
representar o último nome de Mike Tyson (como simples silabogramas).
2. Muitos caracteres chineses são categorizados pelos radicais - caracteres que se fundem
com um outro caractere para clarificar a natureza deste de acordo com a sua origem,
grupo, significado ou pronunciação.
• O caractere para representar "lagartixa" (pictograma) é utilizado para o conceito
"fácil" pois as palavras dizem-se de igual modo, "yi" (logograma) - utiliza-se um
determinativo (o caractere para "animal" - ideograma) para esclarecer quer o
significado, quer a leitura correta
• O caractere para "tio" (bo ou bai) é composto pelos caracteres "pessoa", que indica
tratar-se de uma pessoa, e "branco", que se pronuncia de modo semelhante (bo ou
bai) - trata-se de um caractere semântico-fonético.
3. Os caracteres chineses representam apenas sílabas, mas a língua não consiste apenas
de palavras mono-silábicas.
• As palavras são representadas por um caractere para cada sílaba, correspondendo a
uma conjunção de significados - a palavra diao tou, "dar meia-volta", é composta
pelos caracteres "diao" (virar) + "tou" (cabeça).
• Nem todas as palavras compostas por dois (ou mais) caracteres são compreensíveis
quando se distinguem os significados individuais das sílabas - a palavra jing-ji,
"economia", é composta pelos caracteres "jing" (governo) + "ji" (assistir, ajudar).
• As palavras são representadas por um caractere para cada sílaba, sem que as sílabas,
individualmente, façam sentido - a palavra putao, "bago de uva", é composta pelos
caracteres "pu" (sem significado) + "tao" (sem significado).
• Muitas palavras são formadas por dois caracteres quando, aparentemente, elas
poderiam ser representadas por apenas um caractere - a palavra yue-liang, "lua", é
composta pelos caracteres "yue" (lua) + "liang" (brilho).
Mas, com tanta confusão, porque não se simplificam os caracteres para um silabário ou alfabeto?
As vantagens de um sistema e de outro são tantas quanto as desvantagens. Basta olhar para a barra
dos botões no Word para compreendermos a simplicidade de imagens para referir algo - uma
impressora, linhas centradas, um "N"... tudo isto são pictogramas e ideogramas! Em termos da
realidade lingüística presente na China - uma incrível diversidade de dialetos - a escrita por
caracteres logográficos torna-se uma vantagem, uma ponte que permite a qualquer "letrado"
entender, por exemplo, o caractere para "cinco". Independentemente deste ser lido como wu, n,
ggoo ou ng.
A Escrita Japonesa
Tal como aconteceu na Coréia e outros países asiáticos, devido aos contatos econômicos e culturais
com a China, também o Japão adotou a escrita chinesa como sua, por volta do século V. Numa
sociedade que colocava a ênfase no homem, estes aprendiam a escrever utilizando os caracteres
importados e as mulheres utilizavam uma forma cursiva baseada nos sons - um silabário - que se
desenvolveu a partir de certos caracteres chineses. Foi também criado um outro silabário, no século
IX, por monges budistas - uma escrita "dos homens". Estes dois silabários estão, então, na origem
dos dois silabários kana ainda hoje utilizados - hiragana e katakana.
No Japão não podemos apontar apenas um sistema: são usados vários sistemas de escrita!
•
Kanji - caracteres pictográficos, ideográficos, logográficos... os "descendentes" dos
caracteres chineses adotados no século V.
Existem entre 5 000 e 10 000, mas apenas cerca de 1 945 caracteres (mais 166 para
nomes de pessoas) são considerados obrigatórios pelo governo japonês. Regra geral
usam-se muitos mais caracteres em textos literários e científicos. Estes kanji devem,
por lei, ser acompanhados por furiganas nos jornais.
• Os kanji possuem, pelo menos, duas leituras distintas - on-yomi e kun-yomi.
• Muitos dos kanji japoneses são semelhantes aos chineses, mas...
• como os caracteres adotados eram do período clássico, os japoneses não
fazem uso dos caracteres desenvolvidos na China após esse período;
• foram criados caracteres específicos quando era considerado não existir um
caractere chinês que pudesse representar adequadamente uma palavra
japonesa - estes caracteres (kokuji) são, contudo, abrangidos pelos dicionários
chineses;
• certos caracteres que apresentavam algumas variações na escrita foram
uniformizados de modo diverso;
• tanto os caracteres chineses (anos 50) como os japoneses (após a Segunda
Guerra Mundial) foram, em alguns casos, simplificados para facilitar a
aprendizagem - o que aconteceu de modo diverso;
• quando da simplificação dos kanji, o governo japonês também substituiu
alguns caracteres por outros (kanji ou hiragana);
• a evolução natural das línguas levou a alterações dos significados chinês e
japonês de alguns caracteres.
Hiragana - silabário baseado no criado pelas mulheres da corte.
• Composto por 48 caracteres de aspecto cursivo e delicado.
• Adicionam-se dois diacríticos (dois tracinhos ou uma pequena bola) a alguns dos
caracteres para dar origem a mais alguns sons (25).
• Alguns caracteres conjugam-se (um silabograma seguido de outro ligeiramente mais
pequeno) para dar origem a mais alguns sons (33).
• São especialmente usados para representar palavras e terminações gramaticais, mas
são também aplicados como substitutos de kanji mais obscuros, em textos para
crianças, que ainda estão a aprender a ler, ou nos jogos de video para os mais jovens.
Substituem também o silabário katakana, mais masculino, nas revistas e programas
para meninas.
Katakana - silabário baseado no criado por monges budistas.
• Composto por 48 caracteres de aspecto angular.
• Adicionam-se dois diacríticos (dois tracinhos ou uma pequena bola) a alguns dos
caracteres para dar origem a mais alguns sons (25).
• Alguns caracteres conjugam-se (um silabograma seguido de outro ligeiramente mais
pequeno) para dar origem a mais alguns sons (44).
• São especialmente usados para representar palavras estrangeiras (com exceção para
palavras chinesas), nomes de animais e plantas (não de um ponto de vista científico!)
e onomatopéias. São também usados nos textos em telegramas. Podem substituir
outros caracteres como forma de enfatizar o que se quer dizer.
Furigana - pequenos silabogramas (hiragana ou katakana) escritos junto dos kanji para
•
•
•
•
•
indicar a leitura correta destes.
• São chamados de furigana ou ruby.
• São escritos, com um tamanho diminuto, por cima dos kanji quando o texto se lêm
em linhas (da esquerda para a direita), ou ao lado destes quando o texto se escreve
em colunas (de cima para baixo, e da direita para a esquerda).
Romaji - o alfabeto latino (também são usados os numerais árabes).
Conclusões
Falamos de sistemas de escrita quando nos referimos ao modo como os caracteres são usados para
comunicar. No entanto, cotidianamente não se ouve falar de "escrita alfabética" mas de "alfabeto".
Por quê? Porque "escrita alfabética" refere-se a um sistema de escrita com caracteres que
representam sons; e "alfabeto" refere-se a um conjunto de caracteres (letras) organizadas segundo
uma ordem específica. Do mesmo modo, uma "escrita silábica" é um sistema de escrita que usa
caracteres que representam sons agrupados em sílabas; e um "silabário" é um conjunto de
silabogramas organizados de acordo com uma ordem específica. Reparem nos exemplos:
Alfabeto Latino - A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L ...
Silabário Japonês - Ka, Ki, Ku, Ke, Ko, Ga, Gi, Gu ...
Existe, no entanto, mais um grau de distinção nos sistemas de escrita fonéticos - distinção essa
baseada nos sons representados pelos caracteres:
Alfabeto
Silabário
Consonântico
Consonântico e Vocálico
Árabe
Hebraico
Semita
...
Etrusco
Grego
Romano
...
Egípcio
...
Japonês
Persa
Sumério
...
Mas, será que a realidade se conforma realmente a todas estas categorias classificatórias
apresentadas? Não, não se conforma. Na realidade, são muito poucas as línguas que utilizam apenas
um sistema de escrita. Se um leitor português ou brasileiro encontrar o caractere "+", lê-lo-á
"mais"; enquanto um leitor inglês dirá "plus". Do mesmo modo, face ao numeral "100" um
brasileiro dirá "cem"; um inglês, "a hundred"; um japonês, "hyaku". Alguém que ouça as diferentes
línguas não se aperceberá do significado das palavras, contudo reconhecerá os dois caracteres
imediatamente - são caracteres logográficos!
Tal como as escritas fonéticas usam, em conjunto, caracteres logográficos; também outros sistemas
de escrita se combinam. Vejamos o exemplo da escrita chinesa: usa de igual modo caracteres
ideográficos e pictográficos!
- sol
- calor
No primeiro exemplo vemos a conjunção dos sistemas de escrita fonético e logográfico; enquanto
que no segundo exemplo são dois sistemas logográficos. Isso mostra que também nos sistemas
logográficos se recorre a caracteres fonéticos! Estes caracteres (complementos ou auxiliares)
fonéticos têm como função ajudar os leitores a reconhecer a leitura correcta do caracter. Como
exemplos podemos olhar para três línguas:
•
Escrita (Hieroglífica) egípcia - certos hieróglifos, como complementos fonéticos, são
acrescentados de modo a auxiliar a leitura correcta dos hieróglifos anteriores; enquanto
outros, os determinativos, auxiliam a leitura ao identificar a categoria dos hieróglifos
(escribas, coisas abstractas, etc);
•
Escrita chinesa - alguns caracteres, os radicais, indicam qual a natureza da palavra (origem,
pronunciação, significado, etc), ajudando a encontrar a leitura e significado correctos;
•
Escrita japonesa - alguns caracteres, os radicais, indicam qual a natureza da palavra
(origem, pronunciação, significado, etc), o que ajuda à leitura e compreensão correctas; e,
em alguns casos, especialmente para as crianças que estão a aprender a ler, por cima de cada
caracter escreve-se a pronunciação em silabogramas.
A conclusão que podemos retirar é que o sistema de escrita de cada língua é complexo e abrangente,
fruto de necessidades específicas características da língua em questão e que a evolução histórica da
escrita não segue um caminho linear (que vá da pictografia ao sistema alfabético). Também não se
pode concluir que o sistema alfabético seja superior, mais evoluído, etc. Um outra conseqüência
importante é que o sistema de escrita, uma vez estabelecido, continua se desenvolvendo, dando
origem a inúmeras variações que estão registradas na estrutura ortográfica de cada língua. A língua
portuguesa, por exemplo, seguiu um processo de evolução próprio no seu sistema de escrita, com
será visto a seguir.
Textos adaptados do site: http://criarmundos.do.sapo.pt/Linguistica/pesquisaescrita.html
História e Evolução da Língua Portuguesa
Origens do nosso idioma
O surgimento da Língua Portuguesa está profunda e inseparavelmente ligado ao processo de
constituição da Nação Portuguesa. Na região central da atual Itália, o Lácio, vivia um povo que
falava latim. Nessa região, foi posteriormente fundada a cidade de Roma. Esse povo foi crescendo e
anexando novas terras ao seu domínio. Os romanos chegaram a possuir um grande império e, a cada
conquista, impunham aos vencidos os seus hábitos, as suas instituições, os seus padrões de vida e a
sua língua.
Existiam duas modalidades de latim: o latim vulgar (sermo vulgaris, rusticus, plebeius) e o latim
clássico (sermo litterarius, eruditus, urbanus). O latim vulgar era somente falado. Era a língua do
quotidiano, usada pelo povo analfabeto da região central da atual Itália e das províncias: soldados,
marinheiros, artífices, agricultores, barbeiros, escravos, etc. Era a língua coloquial, viva, sujeita a
alterações freqüentes e por isso apresentava diversas variações. O latim clássico era a língua falada
e escrita, apurada, artificial, rígida; era o instrumento literário usado pelos grandes poetas,
prosadores, filósofos, retóricos. A modalidade do latim que os romanos acabavam por impor aos
povos vencidos era a vulgar; estes povos eram muito diversificados e falavam línguas muito
diferentes, por isso em cada região o latim vulgar sofreu alterações distintas, o que resultou no
surgimento dos diferentes romanços (do latim romanice, que significa "falar à maneira dos
romanos"), que deram posteriormente origem às diferentes línguas neolatinas.
Seja como for, será errado considerar Latim Urbanus e Latim Vulgaris como duas línguas
diferentes. Do mesmo modo que não será correto estabelecer-se entre estas duas denominações uma
diferenciação assente na oposição entre língua escrita e língua falada, uma vez que ambas eram
utilizadas quer por escrito, quer oralmente.
Os próprios Romanos distinguiam já sermo urbanus (linguagem culta) de sermo vulgaris ou sermo
plebeius (linguagem popular ou corrente). Cícero, nas suas Cartas, além de empregar certos
vulgarismos, comprazia-se com o uso da linguagem da vida quotidiana (cotidianis verbis). E
também Catulo e Petrónio deram foros de literário ao latim vulgar.
Nesta perspectiva, em relação à Língua Latina, costuma distinguir-se duas modalidades de uma
mesma língua, embora marcadas por características diferenciadoras.
A título exemplificativo, vejamos agora algumas diferenças entre o Latim Clássico e Latim Vulgar:
O Latim Vulgar (sermo vulgaris, sermo usualis ou sermo plebeius), como linguagem coloquial,
quotidiana, corrente, e tendente para a simplificação, apresentava algumas características
peculiares:
1) Ao nível fonético, nota-se uma forte tendência por parte do povo para evitar as palavras
proparoxítonas.
2) Ao nível lexical, predomina o uso de vocábulos mais caracteristicamente populares e afetivos,
com sufixos diminutivos:
- "Ignis", que significava fogo, foi substituído por "focu", este com o sentido de fogo doméstico;
- "Equus", termo usado no Latim Clássico para cavalo, nunca fora utilizado pelo povo, que o
substituira por "caballu";
- "Auris" foi substituído pela forma diminutiva "auricula", termo de onde proveio orelha; etc.
Cícero empregara vários diminutivos (febricula, nauseola, etc), mas é em Catulo e Petrónio que eles
mais abundam: amiculus (amiguinho), asellus (burrico), occellulus (olhinho), basiolum (beijinho),
etc.
As línguas românicas fizeram, não raramente, derivar alguns dos seus vocábulos de formas
diminutivas, sobretudo de caráter popular:
- linteolum > lenzuelo (ital.), lenzuelo (esp.), linceul (fr.), lençol (port.);
- Sorella > sorella (ital.: irmã);
- Fratellus > fratello (ital.: irmão); etc.
Igualmente característico da língua falada é o que Nyrop denomina de cacofonia. Este fenómeno
consiste na utilização de termos pejorativos, mas com sentido afetivo, carinhoso: canalha, para
designar crianças pequenas; doidinha, tontinha; etc. No português persiste ainda essa mesma noção
de carinho associada aos diminutivos: mulherzinha, filhinho, segredinho, pastorinho, criancinha,
etc.
Conclui-se que o Latim Vulgar manifesta tendência para o emprego de palavras mais populares e
preferência pelo uso de sufixos diminutivos.
3) Ao nível morfológico, nota-se uma tendência natural para o uso de formas analíticas, que
funcionam, em alguns casos, como marcas de expressividade:
- Através do emprego de demonstrativos e do numeral "unus". Enquanto no Latim Clássico se dizia,
por exemplo, "liber", no Latim Vulgar era recorrente dizer-se "illu libru" ou "unu libru" (> o livro;
um livro);
- Pelo uso de formas analíticas nos graus dos adjetivos Assim, enquanto o Latim Clássico formava
os comparativos e superlativos de forma sintética, por meio de sufixos, o Latim corrente dava
preferência às formas analíticas, através do uso de advérbios antepostos ao adjetivo: à forma do
comparativo no Latim Clássico "dulcior", sucedia no Latim Vulgar "plus / magis dulce" (mais
doce); a forma clássica do superlativo "dulcissimus"; tinha como correspondente, no Latim Vulgar,
"multu dulce" (muito doce);
- Mediante o uso de formas analíticas na voz passiva: o presente do indicativo passivo do verbo
"amare" era no Latim Clássico "amor", e no Latim Vulgar "amatus sum".
Sintetizando, ao nível morfológico, e em oposição ao que acontece com o Latim Clássico, o Latim
corrente revela forte tendência para o emprego de formas analíticas, que se manifestam no uso dos
artigos, nos graus dos adjetivos e na voz passiva do infectum.
4) Ao nível sintáctico, verifica-se no Latim Vulgar o incremento do uso das preposições com a
consequente redução das desinências de caso, das quais o Latim Clássico se servia para determinar
as funções sintáticas.
Tomando como exemplo a palavra "livro", verificaríamos o seguinte:
- Com a função de sujeito, apresentava na forma clássica "liber" (isto é, a desinência de
nominativo), enquanto o Latim Vulgar usava, para a mesma função, "illu / unu libru";
- Com função de complemento restritivo (do livro), o Latim Clássico empregava a forma do
genitivo "libri", e o Latim corrente utilizaria "de libru";
- No campo sintático é freqüente a tendência do Latim Vulgar para o analitismo, no que se refere à
construção das orações subordinadas infinitivas. Estas podem, na língua portuguesa apresentar duas
estruturas: seja de forma reduzida de infinitivo, como se constata por frases como "O povo diz ser a
Terra redonda"; seja através da forma desenvolvida pela inclusão da conjunção integrante (que) " O
povo diz que a Terra é redonda". E o mesmo se passava no Latim: enquanto o Latim Clássico
preferia a forma infinitiva, "Vulgus dicit terram esse rotundam", o Latim corrente tendia para a
utilização da forma desenvolvida, "Vulgus dicit quod terra est rotunda";
- Um outro aspecto prende-se com o uso das desinências para expressão das funções sintáticas
Assim, no Latim literário as desinências ou casos constituíam indicação da função sintática que a
palavra possuía na frase, o que permitia uma grande liberdade quanto à disposição dos termos pela
cadeia sintagmática. Uma frase como "Deus ama o homem" poderia apresentar vários
encadeamentos: "Deus hominem diligit", ou "Hominem diligit Deus", ou "Diligit Deus hominem",
ou "Hominem Deus diligit". O Latim Vulgar, por seu lado, eliminando essas desinências casuais,
recorria a uma ordem direta mais fixa (sujeito, predicado, complementos), dado que a própria
ordem dos elementos frásicos ajuda a determinar as funções que os mesmos contêm na frase: "Deus
diligit hominem".
Em suma, ao nível sintático, o Latim Vulgar, diferenciando-se do Latim Clássico, manifesta
tendência para o uso de formas analíticas, pela introdução de preposições, artigos, pronomes,
redução dos casos, e pela preferência na utilização das orações substantivas desenvolvidas.
- Igualmente característico da linguagem corrente é o gosto pelo concreto: mulier (mulher) em vez
de uxor (esposa); siccus em vez de sitiens (estar seco, ter sede, estar sedento, estar sequioso); etc.
Além do Latim Literário e do Latim Vulgar, existem outras duas modalidades:
a) O Baixo-Latim, falado pelos Padres da Igreja da Idade Média, que, pretendendo atingir a
formação moral dos seus fiéis, estavam mais preocupados em fazer-se entender do que em exibir
discursos eloquentes.
b) O Latim Bárbaro, exclusivamente escrito, era a língua dos copistas da Idade Média. A
designação de bárbaro devia-se ao fato de terem sido introduzidos nesta modalidade lingüística
vocábulos próprios dos falares romances e provinciais.
No século III a.C., os romanos invadiram a região da península ibérica, iniciando-se assim um
longo processo de romanização da península. O domínio não era apenas territorial, mas também
cultural. No decorrer dos séculos, os romanos abriram estradas, ligando a colônia à metrópole,
fundaram escolas, organizaram o comércio, levaram o cristianismo aos nativos. A ligação com a
metrópole sustentava a unidade da língua, evitando a expansão das tendências dialetais. A pouco e
pouco foram sendo anexadas palavras e expressões das línguas dos nativos à língua latina.
No século V, com as invasões de povos bárbaros germânicos (vândalos, suevos e visigodos) e a
queda do Império Romano no Ocidente, intensificou-se o aparecimento desses vários dialetos No
final de um processo evolutivo, constituíram-se as línguas modernas, conhecidas como neolatinas.
No caso particular da Península Ibérica, várias línguas e dialetos se formaram, entre eles o catalão
(língua de cultura da região da Catalunha, a nordeste da Espanha), o castelhano (da região de
Castela, onde se situa Madrid) e o galego-português.
As invasões não pararam por aí, uma vez que no século VIII a península foi tomada pelos árabes. O
domínio mouro foi mais intenso no sul da península. Formou-se então a cultura moçárabe, que
serviu por longo tempo de intermediária entre o mundo cristão e o mundo muçulmano. Apesar de
possuírem uma cultura muito desenvolvida, esta era muito diferente da cultura local, o que gerou
resistência por parte do povo. A sua religião, língua e os seus hábitos eram completamente
diferentes. O árabe foi falado ao mesmo tempo que o latim (romanço). As influências lingüísticas
árabes acabaram por limitar-se ao léxico, em que os empréstimos são geralmente reconhecíveis pela
sílaba inicial al- correspondente ao artigo árabe: alface, álcool, Alcorão, álgebra, alfândega,
Alcácer, Alcântara, Algarve, tendo também ficado outros vocábulos de origem árabe, por exemplo:
bairro, berinjela, café, califa, garrafa, quintal, sofá, xarope.
Embora bárbaros e árabes tenham permanecido muito tempo na península, a influência que
exerceram na língua foi pequena, tendo esta ficado restrita ao léxico, pois o processo de
romanização tinha sido muito intenso.
Os cristãos, principalmente do norte, nunca aceitaram o domínio muçulmano. Organizaram um
movimento de expulsão dos árabes (a Reconquista). A guerra travada foi chamada de "santa" ou
"cruzada". Isso ocorreu por volta do século XI. No século XV os árabes tinham sido expulsos de
toda a península.
Durante a Guerra Santa, vários nobres lutaram para ajudar D. Afonso VI, rei de Leão e Castela. Um
deles, D. Henrique, conde de Borgonha, destacou-se pelos serviços prestados à coroa e por
recompensa recebeu a mão de D. Tareja (ou Teresa), filha do rei. Como dote recebeu o Condado
Portucalense. Continuou a lutar contra os árabes e a anexar novos territórios ao seu condado, que foi
tomando os contornos do que hoje é Portugal.
D. Afonso Henriques, filho do casal, fundou a Nação Portuguesa, que se tornou independente em
1143. A língua falada nessa parte ocidental da Península era o galego-português que, com o tempo,
se foi diferenciando: no sul, português, e no norte, galego, o qual foi sofrendo cada vez maior
influência do castelhano. Em 1290, o rei D. Diniz fundou a Escola de Direitos Gerais e obrigou, por
decreto, que se tornasse oficial o uso da Língua Portuguesa.
O galego-português era um falar geograficamente limitado à faixa ocidental da Península, que
corresponde aos atuais territórios da Galiza (Espanha) e do norte de Portugal. Cronologicamente,
esse dialeto restringiu-se ao período compreendido entre os séculos XII e XIV, coincidindo com a
época das lutas da Reconquista. Em meados do século XIV houve uma maior influência dos falares
do sul, principalmente da região de Lisboa, aumentando assim as diferenças entre o galego e o
português.
Fases históricas do português
Fase proto-histórica
Estende-se do final do século IX até ao século XII, com textos escritos em latim bárbaro
(modalidade do latim usada apenas em documentos e por isso também chamada de latim tabeliônico
ou dos tabeliões). Dessa fase, os mais antigos documentos são um título de doação, datado de 874, e
um título de venda, de 883.
Fase do português arcaico Período Fonético
Do século XII ao século XVI, compreendendo dois períodos distintos:
· do século XII ao XIV, com textos em galego-português;
· do século XIV ao XVI, com a separação entre o galego e o português.
A este período também se chama PERÍODO FONÉTICO e inicia-se com os primeiros
documentos redigidos em português e termina no século XV.
A escrita neste período caracteriza-se pela forte tendência para ortografar as palavras tal qual eram
pronunciadas: honrra; ezame; etc. Porém, a ausência de uma normalização ortográfica conduzia a
uma variação na representação dos sons da linguagem falada. O som /i/, por exemplo, era
representado ora por i ora por y; a nasalização realizava-se através do m ou do n o do til (bem, ben,
be), etc.
Por outro lado, a ortografia não acompanhou a evolução que se operava no oral, conservando-se
palavras como "ler" e "ter" grafadas com vogal dupla: "leer", "teer". Veja um exemplo de texto em
Português Arcaico:
Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo
Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça
Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi
o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por
que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o
gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram
porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom
que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia
a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes
sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia
em si, por se comtemtar de tal casamento. E delles diziam que melhor
fezera elRei teella por tempo, e des i casar com outra molher; mas que
esto era cousa que mui poucos ou ne nhuum, posto que emtemdessem
que tal amor lhe era danoso, o leixavom depois e desemparavom,
moormente nos mançebos anos. E leixadas as fallas dalguuns
simprezes, que em favor delle razoavom, dizendo que nom era
maravilha o que elRei fezera, e que ja a outros acomteçera semelhavel
erro, avemdo gramde amor a alguumas molheres; dos ditos dos
emtemdidos fundados em siso, alguuma cousa digamos em breve: os
quaaes fallamdo em esto o que pareçia, diziam que tal bem queremça
era muito demgeitar, moormente nos Reis e senhores, que mais que
nenhuuns dos outros desfaziam em si per liamça de taaes amores.(...)
fonte: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/p00001.htm#_ftn2]
Fase do português moderno
Período Pseudo-etomológico
A partir do século XVI, quando a língua portuguesa se uniformiza e adquire as características do
português atual A rica literatura renascentista portuguesa, nomeadamente a produzida por Camões,
desempenhou papel fundamental nesse processo de uniformização. As primeiras gramáticas e os
primeiros dicionários da língua portuguesa também datam do século XVI.
Existe um período na evolução da língua portuguesa a que também se denomina PERÍODO
PSEUDO-ETIMOLÓGICO e que se inicia no século XVI e se prolonga até 1911, ano em que é
decretada a reforma ortográfica, fundada nos preceitos da gramática de Gonçalves Viana, publicada
em 1904.
A chegada do Renascimento e a admiração dos humanistas pela cultura clássica motivou uma
atenção particular para o Latim. Esta atitude levou a que os eruditos aproximassem o mais possível
a língua portuguesa à sua língua-mãe. Este fato provocou o abandono da simplicidade da
representação fonética e deu lugar a uma escrita com base etimológica. Assim, começamos a assistir
ao aparecimento de grafias como fecto (feito), regno (reino), etc.; a um freqüente emprego de
consoantes duplas (metter, fallar, etc); à ocorrência dos grupos dígrafos PH, CH, TH e RH
(pharmacia, lythografia, Matheus, Achiles, etc.).
Por outro lado, o pretenciosismo, aliado a uma certa ignorância, levou à prática de exageros. Entre
outros casos, deixamos como exemplo o seguinte: introduziram-se letras que não eram
pronunciadas, como esculptura; astma; character; etc.; o y passou a figurar em muitos vocábulos,
como lythografia, typoia, lyrio, etc.. No fundo, o que se pretendia era transformar a escrita em
etimológica, mas a ignorância não permitiu que tal se realizasse total e plenamente. Daí o nome
"Pseudo-Etimológico".
Segundo José Joaquim Nunes "por este processo recuavam-se bastantes séculos, fazendo ressurgir o
que era remoto, e punha-se de lado a história do nosso idioma..." Mas não se pense que os critérios
ortográficos, no decorrer deste longo período, foram aceites de forma pacífica. Aliás, cedo as
reações ganharam eco.
No século XVIII, Luís Antonio Verney, com "O verdadeiro método de estudar", não só propunha
uma ortografia simplificada, como, usando precisamente essa mesma ortografia, fazia desta sua
obra um exemplo a seguir. Apesar disso, o que acontecia na quase totalidade dos escritos, sobretudo
a partir da publicação, em 1734, da "Ortografia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a lingua
portugueza", de João Madureyra Feijó, era o recurso à grafia mais complexa.
Em relação aos acentos, o seu uso era muito restrito e o seu emprego não obedecia às regras de
hoje.
Nos inícios do século XIX, Almeida Garrett apresentava-se como defensor de uma escrita
simplificada e insurgia-se contra a ausência de uma norma regularizadora da ortografia. E, seguindo
este mesmo espírito, muitos outros, entre os quais Castilho, ergueram a sua voz em defesa de uma
reforma ortográfica. Todavia, e tal como acontecera com os adeptos da grafia etimológica, também
a 'febre' de simplificação da ortografia levou a que se cometessem numerosos disparates e a que, em
finais do século XIX se assistisse a uma ortografia quase anárquica (cada um seguia o que se lhe
afigurava mais adequado).
Período Simplificado
Após este período surge então o PERÍODO SIMPLIFICADO, que podemos situar no tempo desde a
Ortografia Nacional até aos nossos dias. Com vista a normalizar os documentos oficiais, o Governo
nomeou uma comissão para estabelecer uma normalização da ortografia. Esta limitara-se a seguir e
oficializar as propostas defendidas por Gonçalves Viana, em 1907.
A reforma de Gonçalves Viana prescrevia:
a) "Proscrição absoluta e incondicional de todos os símbolos da etimologia grega: th, ph, ch (=>K),
rh e Y;
b) Redução das consoantes dobradas a singelas, com exceção de RR e SS, mediais, que têm valores
peculiares;
c) Eliminação das consoantes nulas, quando não influem na pronúncia da vogal que as precede;
d) Regularização da acentuação gráfica."
Esta reforma foi tornada obrigatória em 1911. Também neste mesmo ano, as Academias de Letras
do Brasil e de Ciências de Lisboa, celebraram um acordo ortográfico, com vista a solucionar
divergências ortográficas entre o português de Portugal e o português do Brasil.
A obediência a estas novas regras acabava com os exageros do período pseudo-etimológico e
promovia uma certa aproximação ao período fonético. Embora o objetivo essencial da reforma de
1911, pela aproximação da ortografia à grafia fonética, fosse pôr fim ao despotismo da tendência
etimológica, o essencial da reforma ortográfica de 1911 foi acabar com o despotismo da etimologia,
a verdade é que não se eliminaram totalmente os hábitos anteriores, dos quais continuou a perdurar,
entre outros, o uso de consoantes mudas, como homem, direto, sciência, etc.).
Além disso, no que respeita à utilização dos acentos, esta reforma distanciou-se da escrita dos
primeiros tempos. Os acentos passaram a ser freqüentes e, em particular, todas as palavras
proparoxítonas possuíam obrigatoriamente acento. No essencial, as prescrições da reforma de 1911
vigoram até aos nossos dias, mas sujeitas a algumas tentativas de ajustamento, entre portugueses e
brasileiros, com vista a uma maior uniformização do idioma falado nos dois países, como as que
tiveram lugar em 1920, 1929 e 1931.
A grande reforma seguinte, em 1945, resultante de um acordo ortográfico entre Portugal-Brasil,
sofrendo algumas alterações em 1971, continua a ser norma oficial da ortografia por que nos
regemos ainda hoje.
O que se precisa destacar é o fato de que o sistema ortográfico da língua portuguesa não segue uma
base fonética (como é o caso, por exemplo, do espanhol), mas se caracteriza como um sistema
fonético-etimológico. Ou seja, para escrever corretamente não basta conhecer as letras e tentar
escrever como se fala , mas é preciso um conhecimento das formas usuais de escrita e das regras
gramaticais que organizam a grafia em português.
texto adaptado do site: http://www.gforum.tv/board/1277/153003/historia-e-evolucao-da-linguaportuguesa.html

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