a organizadora - Thesaurus Editora

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a organizadora
© Copyright Thesaurus Editora – 2007
LILIANE BERNARDES CARNEIRO é mineira de Patos de Minas.
Formada em Pedagogia pela Universidade Católica de Brasília
e mestranda em Ciência da Informação / Universidade de
Brasília. Professora da Secretaria de Estado de Educação,
atualmente está cedida para a Biblioteca Nacional de Brasília.
Participou da comissão de implantação da Biblioteca Pública
de Ceilândia e como assessora da Diretoria de Bibliotecas/
Secretaria de Estado de Cultura coordenou atividades culturais
na Feira do Livro de Brasília, um dos eventos literários mais
importantes da capital do país. Em 2006, a convite do
Ministério da Cultura da Espanha, em Santa Cruz de La Sierra
- Bolívia, apresentou o programa de políticas públicas de
incentivo ao livro e à leitura desenvolvido no Distrito Federal,
com destaque aos seguintes projetos: Inclusão Digital para a
Rede de Bibliotecas Públicas do DF; Revitalização,
Modernização, Ampliação e Dinamização da Rede de
Bibliotecas Públicas do DF. Desenvolveu e coordenou, ainda,
projetos importantes na área de leitura, entre os quais O
Escritor no Meio da Gente e a Tenda da Leitura.
Arte, impressão e acabamento:
Thesaurus Editora de Brasília
Editor: Victor Alegria
Os direitos autorais da presente obra estão liberados para sua difusão desde que sem
fins comerciais e se citada a fonte. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG
Quadra 8, lote 2356 – CEP 70610-480 - Brasília, DF. Fone: (61) 3344-3738 – Fax:
(61) 3344-2353 *End. Eletrônico: [email protected] *Página na Internet:
www.thesaurus.com.br – Composto e impresso no Brasil – Printed in Brazil
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NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
HERBERTO SALES, jornalista, contista, romancista e
memorialista, nasceu em Andaraí, Bahia, em 21 de setembro
de 1917. Faleceu no dia 13 de agosto de 1999, no Rio de
Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Letras, trabalhou
no Diários Associados, de Assis Chateubriand, na área da
revista O Cruzeiro da qual foi assistente de redação. Em
1974 mudou-se para Brasília, onde foi diretor do Instituto
Nacional do Livro e assessor da Presidência da República. A
partir de 1986, por quatro anos, residiu em Paris, servindo
como adido cultural à Embaixada Brasileira. Regressando ao
Brasil, fixou residência em São Pedro da Aldeia, Rio de
Janeiro.
Principais obras de Herberto Sales: Cascalho (1944);
Além dos marimbus (1961); Dados biográficos do finado
Marcelino (1965); Histórias ordinárias (1966); O
sobradinho dos pardais (1969); O lobisomem e outros
contos folclóricos (1970); Uma telha de menos (1970); O
Japão: experiências e observações de uma viagem (1971);
A feiticeira da salina (1974); A vaquinha sabida (1974); O
homenzinho dos patos (1975); Armado cavaleiro o audaz
motoqueiro (1980); Einstein, o minigênio (1983); Os
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Herberto Sales
pareceres do tempo (1984); O menino perdido (1984); A
volta dos pardais do sobradinho (1985); A porta de chifre
(1986); Subsidiário (1988); Na relva da tua lembrança
(1988); Andanças por umas lembranças (Subsidiário 2)
(1990); O urso caçador (1991); Eu de mim com cada um de
mim (Subsidiário 3) (1992); Rio dos morcegos (1993); As
boas más companhias (1995); Rebanho do ódio (1995); A
prostituta (1996).
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Emboscada
O
s dois homens começaram a descer a encosta.
O velho Patuá vinha na frente. Era um cabra
de ombros estreitos, grande bigode e pernas
em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negro
Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a
capanga de munição. Na semi-obscuridade da
madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos,
encaixotando funebremente o rio. Os dois homens
saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos
lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes
atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de
malva ou de velame, com uma agilidade de cabritos
monteses. Agora, porém, tinham eles conseguido
alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num
passo regular, encolhidos nos capotes surrados.
O ar era frio e úmido.
— Será que ele passa hoje? – perguntou Guido.
— Tem de passar — respondeu o outro homem.
— Não é possível que o santo dele seja tão forte.
— Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por
ele...
— É assim mesmo. Tem emboscadas que dão
muito trabalho. Você ainda não viu nada.
— De qualquer maneira, confesso que isto já
está me amolando — disse o outro.
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Herberto Sales
O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim
mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma
dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo
hábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninos
encardidos.
— Quanto mais se você tivesse ajudado a gente
a matar o Major Cavalcanti! — disse.
— O que foi que teve?
— Nós esperamos por ele na emboscada oito
dias seguidos.
— Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta
paciência. Juro.
— Será que nunca lhe aconteceu uma coisa
destas?
— A mim? Deus me livre!
Andando sempre, os dois homens contornaram
uma grande rocha, e atravessaram em seguida uma
moita de capim-gordura. O negro Guido olhou:
amanhecia. A aurora barrava o horizonte de vermelho,
e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio
a um espantoso incêndio. Então o velho Patuá, que
usava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas,
disse de repente:
— Pois pode preparar o dedo, companheiro, que
de hoje ele não passa.
— Como é que você pode saber disso? —
indagou o outro homem, meio intrigado.
— Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe
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Emboscada
interessa. Sobre certas coisas é melhor a gente não
fazer perguntas.
O negro era muito supersticioso e revelava uma
espécie de místico respeito pelo seu companheiro.
Disse com hesitação:
— Eu sempre ouvi dizer que você era um mestre
em rezas bravas... Na verdade, eu estou aqui faz
somente um mês. Mas em minha terra me contaram
muitos casos que aconteceram com você.
— Não lhe disseram que eu tinha parte com o
Diabo? — perguntou sardonicamente o velho.
E o outro, olhando-o de lado:
— Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi
dizer que você tinha reza para amarrar rastro, e até
para fazer uma pessoa desaparecer.
O velho Patuá assumiu um ar de mistério:
— Você fala demais, Guido.
— Eu não falei por mal... — disse o outro homem,
arrancando uma haste de capim com a larga mão de palma
musculosa. — Se você não gosta de perguntas, acabouse. Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje.
— Pois fique calado e espere.
Os dois homens subiram uma rampa, entraram
por um atalho, e pararam defronte de uma pequena
caverna. Em torno, a vegetação era rude e
agressiva. Instalaram-se atrás de uma pedra, como
já vinham fazendo havia dois dias, e o velho Patuá
observou:
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Herberto Sales
— Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente
pode atirar nele à vontade.
Estavam instalados na crista de um precipício
que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra.
O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado
entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um
tom róseo substituía agora o vermelho sangüíneo de
antes. Pássaros-pretos cantavam.
— Quer fazer uma combinação, Patuá?
perguntou o negro Guido.
— Qual é?
— Como você tem melhor pontaria, atira na
cabeça dele.
— E você?
— Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil.
O velho Patuá, teve um risinho sarcástico :
— Não pensei que você fosse tão nervoso,
Guido.
O outro homem guardou silêncio, demonstrando
não ter gostado da observação do companheiro. De
repente, atentando na pedra que ficava à entrada da
caverna, foi empolgado pela certeza de estar bem
protegido. “Caso ele reaja” — pensou — “toda a
vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira.”
Depois desembainhou a sua longa e afiada faca, de dez
polegadas e começou a cortar fumo para um cigarro.
Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma
expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais
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Emboscada
uma vez o local. Completando de maneira magnífica as
virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista
um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da
caverna. Olhando através da folhagem, que descia em
cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos,
àquela, hora deserta, por onde o homem teria de passar.
— Vai ser uma pontaria bonita — disse. — Ele
não vai nem gemer.
O chão da caverna era coberto de capim — tufos
verdes, amarelados, macios — e o velho Patuá sentouse. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas,
retirando da capanga a munição para a carga.
— Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de
vigia — disse. Sentado como estou, não posso
enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de
joelhos, você domina a estrada toda. É só um instante,
Guido. Eu carrego a arma depressa.
— Está certo — concordou o outro homem.
— Está enxergando bem? — perguntou ainda o
velho.
— Estou.
De joelhos como se achava, Guido dominava
realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na altura
do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a
cabeça. Nessa posição, acendeu um cigarro, tendo o
cuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna,
o que fez por duas vezes. Mas, logo depois, atinando
com a inconveniência de estar fumando ali, pois a
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Herberto Sales
fumaça, poderia, denunciar sua presença no local,
apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o na
ponta de uma pedra. Depois soprou com força, para
expelir o resto de fumaça que tinha na boca.
— Cadê a rolimã? — perguntou o velho Patuá.
— Você vai carregar com ela? — disse Guido,
sem desviar os olhos da estrada.
— Vou. Você não quer que eu atire na cabeça
dele? Portanto, vou precisar de uma carga possante. E
ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve
estar passando por aqui.
Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã,
que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara
numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de
pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e
espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia
servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era
do tamanho de um caroço de pitanga.
— Tome — disse, passando-a ao companheiro.
O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a
examinou por um momento, como se estivesse
avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do
homem a ser morto. Com ela carregou a arma, juntando
boa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depois
socou a bucha e colocou a espoleta.
— Pronto? — perguntou Guido.
— Pronto — respondeu o velho, limpando nas
calças a mão suja de pólvora.
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Emboscada
E depois de mais uma vez examinar a arma :
— Agora você carregue a sua, que eu fico de
vigia.
Mais que depressa, o negro Guido trocou de
lugar com o companheiro e tratou de carregar o seu
clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da
capanga, que a carga talvez não ficasse bastante forte,
perguntou ao velho:
— Você não tem aí um chumbo mais grosso do
que este meu?
— Tenho — respondeu o outro homem. —
Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem;
é chumbo para matar onça. Tome.
E passou a lata de chumbo ao negro.
— Mas eu acho bom você botar estes pregos
também — acrescentou. — Reforça mais.
O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e
socou, bem socada, a carga do seu clavinote.
— Não bote chumbo demais não — observou o
velho Patuá.
— Você está pilheriando? — respondeu Guido,
guardando na capanga o pedaço de chifre que lhe
servia de depósito de pólvora.
— Pilheriando?
— Sim, companheiro. Será que você acha que eu
não sei carregar uma arma?
— Estou avisando por avisar.
— Fique sossegado. A carga foi bem calculada.
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Herberto Sales
O velho Patuá voltou-se rapidamente para o
companheiro e, vendo que este já havia carregado a
arma, disse:
—Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E
agora fique aqui junto de mim.
O negro devolveu o chumbo restante, que o
velho guardou apressadamente na capanga e
entrincheirou-se atrás da pedra.
— Eu não estou enxergando bem daqui, não —
disse, espiando por entre as folhas do imbezeiro. —
Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.
— Então, fique — concordou o outro homem.
— E você já sabe : só atire quando eu mandar.
— Está certo — respondeu Guido. — Mas eu
acho que a gente só deve atirar quando ele entrar
naquela curva.
E com o dedo apontou o local.
Era o trecho mais estratégico da estrada, porque
ali a vítima poderia ser colhida pelas costas.
— O tiro vai ser seguro — garantiu Guido.
O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar
nenhuma sugestão do companheiro. Como jagunço
que já tomara parte em várias emboscadas, tinha, de
resto, as suas vaidades. Respondeu secamente:
— Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe
digo.
Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar
de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O
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Emboscada
velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da
caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote
contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava
uma visibilidade perfeita.
— Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora
— confessou Guido.
— É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem —
respondeu o velho Patuá. — Não tem mais nem um
pingo.
— Se ele não tivesse se atrasado — disse o outro
homem — eu não estava agora com a garganta seca.
Nós trouxemos bastante cachaça.
No fundo, também o velho Patuá sentia falta da
bebida. Entretanto, mordaz, com o intuito de rebaixar
o companheiro, perguntou:
— Será que você precisa beber para criar
coragem?
Mas já o negro Guido não o escutava:
— Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?
O outro homem estava ouvindo. E identificou o
ruído como sendo o dos cascos de um animal que vinha
subindo a serra.
— É. Talvez seja ele — disse. — Vamos nos
preparar para fazer fogo.
Os dois clavinotes estavam apontados em
direção à estrada. Os canos tinham sido apoiados
sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A
essa altura, já o Sol faiscava nos lajeados, e o ar, embora
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Herberto Sales
frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousar
perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir
os dois homens. Houve em seguida um rumor de folhas,
provocado por uma lagartixa em fuga.
— Já vem bem perto — disse o negro Guido,
com o dedo no gatilho da arma.
O tropel fazia-se ouvir cada vez mais próximo.
De repente, surgiu, no topo do atalho, a cabeça de um
cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o
outro dava visíveis mostras de excitação. À vista da
cabeça do cavalo, seus lábios chegaram mesmo a
embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse
assaltado.
— Será ele mesmo? — perguntou.
Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada
descuidado, assobiando. Guido logo reconheceu o
fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza
no seu espírito transformou-se imediatamente numa
sensação de alívio, marcada a um só tempo de medo e
crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com
o dedo no gatilho. Viu o homem parar de assobiar,
enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novo
guardou no bolso, e acender o cigarro.
Foi quando o velho Patuá comandou :
— Fogo !
O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria
contra o paletó de brim cáqui, onde havia manchas de
suor.
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Emboscada
— Fogo! — repetiu o velho Patuá, num tom de
irritação.
E, com o clavinote apontado para a nuca do
homem, apertou o gatilho. O negro Guido
acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo
tempo que a caverna se enchia de fumaça. Como se
uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram.
Um desabrido tropel foi então ouvido : era o cavalo do
fazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado,
corria doidamente estrada abaixo – as caçambas
batendo como sinos. Como sinos roucos.
Estranhamente roucos.
***
O conto Emboscada foi extraído da “Antologia escolar
de contos brasileiros”, organizada por Herberto Sales,
seleção de Ivo Barbieri e Maria Mecler Kampell. _ 5ª. ed. _
São Paulo: Ediouro, 2002.
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